Filosofia africana na antiguidade: tecendo mundos entre ancestralidade e futuridade Renato Noguera Universidade Federal Federal Rural do Rio de Janeiro
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Resumo O objetivo deste artigo é apresentar a filosofia africana na antiguidade, considerando e os textos africanos são são mais antigos do do que os ocidentais. ocidentais. Apoiados pelos pelos estudos de diversos diversos pensadores, pensadores, enfatizando as contribuições de Molefi Asante, Théophile Obenga e Maulana Karenga. O estudo faz uma análise dos textos dos filósofos Ptahhotep, Amenemope e Merikare. Obenga explica que na língua língua egípcia antiga existia existia uma palavra para para filosofia, a saber: rekhet . A pesquisa analisa os textos dos filósofos Ptahhotep, Amenemope e Merikare. Nosso exame foca foca sobre o conceito de filosofia formulado por Ptahhotep: os limites da arte de filosofar (rekhet) não podem ser alcançados. Nós apresentamos outro aspecto importante da filosofia antiga africana, o coração como habitat do pensamento, das emoções e do caráter. Numa leitura articulada e aprofundada das filosofias de Ptahhotep e Amenemope entram em cena os conceitos de: coração, barca, balança e peso-padrão. Pensar filosofia antiga africana é um desafio, principalmente trazendo à luz argumentos que contrariam o maior consenso da história da filosofia ocidental. Nós não focamos na tese de que a filosofia grega é um roubo da filosofia egípcia. Mas, criticamos que essas influências não sejam mencionadas m encionadas e, sobretudo o apagamento da vasta produção filosófica africana na antiguidade. O nosso interesse não é somente denunciar esse apagamento, mas particularmente apresentar o caráter filosófico dos escritos africanos. A partir disso, nós sustentamos que o ato de educar e a arte de filosofar formam uma encruzilhada encruzilhada com a ancestralidade ancestralidade e a futuridade. futuridade. Sem sombra de dúvida, dúvida, este artigo é um convite para filosofar. Porque promove o exercício de repensar o nosso conhecimento sobre a história da filosofia, problematizando a tese de que os gregos inventaram a filosofia.
Palavras-chave: rekhet, filosofia africana, coração, balança.
Abstract The purpose this article show african philosophy in antiquity, taking account that African are older than Westerns. We are supported by various thinkers, emphasizing contributions of the Molefi Asante, Théophile Obenga and Maulana Karenga. Obenga explain that in ancient Egypt language language there was a word for philosophy, that is rekhet . The research to do analyzing about texts of philosophers Ptahhotep, Amenemope and Merikare. Our examination focus about Philosophy Concept by Ptahhotep: Ptahhotep: the limits of art (rekhet) cannot cannot be delivered. We presented another important aspect about African ancient philosophy, the heart as habitat of thought, emotions and character. A articulated and comprehensive reading of the philosophies of Ptahotep and Amenemope come into play concepts: heart, boat, balance, faithful balance and standard weight. Boarding African ancient Philosophy is a challenge, African ancient philosophy , especially bringing forth arguments that contradict the greater consensus consensus in the history of Western philosophy. We don’t focusing on the thesis that Greek philosophy is a
theft of the Egyptian philosophical thought. But we criticize these influences are not mentioned , and especially the deletion of the vast African philosophical production in antiquity. Our aim isn’t to denunciate this deletion, particularly to show the philosophical character of African writings. From that we maintain that the the act of educating and the art of philosophizing form a crossroads with ancestry and futurity. Beyond a shadow of doubt this article is invitation to philosophize. Because promotes the exercise of rethink our knowledge about history of philosophy, problematising the thesis that Greeks invented the philosophy.
Key-words: rekhet, African Philosophy, heart, balance.
Dedicado a (e inspirado em) Wilson N.
Preâmbulo: África A História da Filosofia tem se confundido com a historiografia filosófica do Ocidente. No Brasil é raro encontramos textos de introdução que não iniciem os primeiros registros filosóficos na Grécia, embora existam discordâncias que pairam entre a paternidade; o berço não é questionado. Apenas encontramos com muita frequência Tales de Mileto consagrado como o primeiro filósofo. Outras tradições insistem em deslocar essa paternidade para Sócrates ou Platão. De qualquer modo, não vamos tratar disso. Essa brevíssima menção se deve à necessidade de pluralizar a História da Filosofia, trazendo à luz as bases da Filosofia Africana. Sem dúvida, precisamos caminhar para um entendimento prévio de África. O termo é polissêmico e pode gerar confusões. De início, tudo indica que o nome “África” provêm de um batismo colonial, não teriam sido “africanas/os” que teriam se autodenominado. Mas, alguns registros informam que foram os romanos durante a expansão do seu domínio sobre outros povos na antiguidade (KI-ZERBO, 2010, p. XXXI). O historiador burkinense Joseph Ki-Zerbo foi um dos responsáveis por um trabalho magnífico, contar a história da África a partir de africanas/os, o que fez com que organizasse o primeiro volume da coleção História Geral da África e nos brindasse com o primeiro levantamento mais preciso a respeito do nome do continente mais antigo do mundo. Conforme Ki-Zerbo, uma genealogia da “África” passa pelas seguintes possibilidades (Ibidem): (1) afrig – nome de povo berbere que vivia ao sul de Cartago; (2) nas línguas
sânscrita e hindi africa significa algo como “o que vem depois”, isto é, ocidente; (3) oriunda de um termo fenício com o sentido de fertilidade; (4) viria da palavra faraga (diáspora) que tem mesma grafia e sentido no fenício antigo e no atual idioma bambara; (5) viria do latim apricao (ensolarado); (6) origem na palavra grega apriké (sem frio); (7) nome da cidade Afrikyah fundada pelo líder iemenita Africus dois séculos antes da Era Comum. Para o nosso trabalho vamos assumir a quarta possibilidade como chave para definição do termo: África. Nessa hipótese, o povo bambara, assim como os fenícios 1 na antiguidade, já apontavam para uma característica importante dos povos do continente estava em ser faraga. Ou seja, diáspora, dispersão, um tipo de viagem para fora do lugar habitual seja de modo cíclico ou “definitivo”, por interesses próprios ou alheios. Uma dúvida que surge é a respeito dessa “unificação” da África, na ideia de submeter o continente africano a uma certa uniformização. Tal como nos diz o pensador camaronês Celéstin Monga em seu livro Niilismo e negritude: “O mito da homogeneização racial do mundo negro e das visões de mundo dela decorrentes não resiste à análise” (MONGA, 2010, p.29). Na esteira de Cheik Anta Diop – um dos maiores pensadores do século XX. – podemos entender que “África” extrapola os limites geográficos continentais. Vale comparar com o conceito de “Ocidente”. Sem dúvida, ainda que as bases da cultura ocidental estejam assentadas na Europa, não podemos confundir os dois conceitos. Europa difere de Ocidente, ainda que estejam imbricados e articulados. Aqui vamos definir Ocidente como um paradigma cultural, cujas bases estão, dentre diversas outras, na filosofia grega. A Europa é um continente diversificado, com povos e nações diferentes; mas, politicamente existe um projeto de unidade que encontra lastro e fiança para avançar num paradigma comum que aqui chamamos de Ocidente. Do mesmo modo se dá com o continente africano, sendo que usamos o mesmo termo para designar o continente e o paradigma cultural. Em linhas muito gerais, quando tratamos de Ocidente emergem diversas fontes, dentre as quais vale apenas citar as seguintes: a filosofia grega, a tradição religiosa de matriz judaico-cristã (uma estrutura em que a busca pela salvação informa que apenas um “povo eleito” terá direito ao paraíso) , o modelo político de um Estado tripartido assentado nos princípios da Revolução Francesa, a ciência como modelo de desenvolvimento da racionalidade humana. Pois bem, ancorados nas leituras de Diop (1954, 1967, 1977) e do pan-africanismo, quando tratamos de África estamos a falar da filosofia egípcia, da diáspora, da xenofilia, da matrifocalidade, da religiosidade de matriz kemetico-banto-ioruba (uma estrutura plural que 1
Vale registrar que os fenícios eram negros, o que aparece mencionado por Heródoto.
não opera através da lógica da salvação; mas, do estabelecimento do bem-estar individual e coletivo), o modelo político de gestão através de linhagens familiares, a ciência como um modo de raciocínio entre outros. Não cabe aqui nos demorarmos nesse ponto. Mas, somente sublinhar o que nos diz o filósofo Nkolo Foé. O Egito antigo faz parte integrante da história da cultura africana. Para nós, ele desempenha mais ou menos o mesmo papel que a Grécia e Roma desempenham para o Ocidente. Isso é uma evidência conhecida desde os trabalhos de Victor Schoelcher, Cheikh Anta Diop e Théophile Obenga (FOÉ, 2013, p.197).
Neste sentido que tomamos África como um termo complexo que diz respeito a encruzilhadas de tradições combinadas e assentadas na noção de diáspora, um tipo de nomadismo. Nós voltaremos adiante nesse aspecto. Mas, de qualquer forma o que importa é fazer uma apresentação da filosofia africana, por isso: vamos adentrar o Egito, território que segundo diversos autores foi indevidamente embranquecido. James, Diop, Bernal e Asante convergem com a ideia de que o racismo antinegro embranqueceu o Egito. Na antiguidade, os egípcios eram negros. As pesquisas de Diop (1954, 1967, 1977) confirmam isso, seja com os testes de melanina em múmias ou através dos estudos da arte egípcia. Aqui não vamos nos deter nesse aspecto; mas, vale registrar que o racismo antinegro tem sido o único argumento mais contundente contra a negritude do Egito antigo, autodenominado na própria língua de Kemet – terra negra. De qualquer maneira, as noções de África e Ocidente são relativizáveis, à medida que aqui coletamos somente imagens, referências e possibilidades. Nós concordamos com Bernal que descontrói o purismo da Grécia antiga. No trabalho, “A imagem da Grécia Antiga como uma ferramenta para o colonialismo e para a hegemonia europeia”, Bernal propõe uma reavaliação histórica da imagem da Grécia Antiga como “berço da civilização europeia” e questiona a ideia de neutralidade e de homogeneidade do Mundo Clássico. Na obra, o autor analisa dois modelos explicativos modernos a respeito das origens da Grécia Antiga: O Modelo Ariano e o Modelo Antigo (...)Neste modelo, acreditava-se que os conquistadores faziam parte de um ramo superior da raça branca, e mesmo os nativos que sofreram as invasões, eram considerados “racialmente puros”, ideia que sustenta as bases racistas dos séculos XIX e XX, época em que foi elaborado (EGGERS, 2013, p. 20).
A crítica à pretensão de homogeneidade da cultura grega na antiguidade não significa o abandono de relações específicas de saber e poder que, de um modo ou de outro, fazem que a filosofia ocidental se reporte invariavelmente aos gregos. Num sentido similar ao tratarmos de filosofia africana precisamos articular com o Egito, a cultura kemética é de suma importância para o nosso percurso de demonstração de uma das tradições filosóficas mais antigas da história da humanidade.
“Origens” da Filosofia (Africana) Théophile Obenga é um dos maiores expoentes nos estudos de filosofia antiga africana – aqui também denominada de filosofia africana na antiguidade. Sem dúvida, Obenga ainda não é muito conhecido entre scholars da filosofia antiga (ocidental). O filósofo, egiptólogo e linguista Obenga nos diz em Egito: História Antiga da Filosofia Africana: Filosofia nos tempos do antigo Egito faraônico era uma espécie de atividade pedagogia de ensinamento da sabedoria (sebayt) dos antigos sábios, que eram estudiosos, sacerdotes, oficiais e altos funcionários ao mesmo tempo. De fato, o verbo rekh (escrito com os signos hieroglíficos de “boca”, “placenta” e “papiro enrolado, amarrado e selado”) significa “saber” ou “estar ciente de algo”, mas também “aprender”. Os seres humanos conhecem através do aprender, isto é, por meio da experiência ou condicionamento, da educação ou dos estudos. A palavra rekh (quando escrita com o hieróglifo de um homem sentado) significa “prudente”, isto é, uma pessoa culta, um erudito, um filósofo. Portanto o conceito de rekhet (escrito com hieróglifos que remontam a noções abstratas) significa uma espécie de “conhecimento”, um tipo de “ciência” no sentido de “filosofia”, isto é, perguntar pela natureza das coisas (khet) baseado no conhecimento acurado (rekhet) e bom (nefer) discernimento (upi). A palavra upi significa “julgar”, “discernir”, o que é “dissecar”. A palavra cognata upet significa “especificação”, “julgamento” e upset quer dizer “específico”, isto é, dar os detalhes de algo. Na língua egípcia “sabedoria” e “prudência” são expressas pela mesma palavra: sat (o hieróglifo determinativo é muito característico; trata-se de um homem com a mão na boca). Com efeito, ser sábio (sai) é ser prudente (sai); também significa “silencioso”, isto é, sagaz em lidar com variados assuntos e exercitar bom julgamento. (OBENGA, 2004, p.33-34).
A extensa passagem acima ajuda-nos a situar a filosofia africana como uma atividade que teve início por volta de 2780 a. E.C. com Imhotep. Conforme estudos de Asante, Imhotep foi um alto funcionário, médico e arquiteto que atuou intensamente durante a 3ª Dinastia do Reino Antigo durante os reinos dos faraós Nebka e Djeser. Imhotep aparece venerado e divinizado como patrono da medicina. De qualquer modo os indícios históricos apontam para um expoente filosófico que deixou um legado, segundo Asante, um legado a respeito da emergência da razão expresso nos registros do Rei Antef de Tebas. O mesmo para nascidos ricos ou pobres. As palavras de Imhotep, ouvi. (...). O que é prosperidade? Ensine! Suas cercas e muros são destruídas, suas casas não existem mais E ninguém vem novamente da tumba Para dizer o que passa abaixo. Você vai para o lugar das carpideiras. Devem fortalecer seus corações para esquecer suas alegrias, No entanto, devem cumprir os seus desejos enquanto viver Cabe ungir -se, vestir -se bem,
Use as dádivas que os deuses concedem Cumprir os nossos desejos sobre a terra para o dia que virá para todos quando você não ouve as vozes de amigos quando o choro não puder nada mais fazer sendo assim, festeje (o) agora com tranquilidade (ANTEF apud ASANTE, 2000, p.28-29).
É interessante notar que Imhotep proponha uma determinada desconfiança acerca da continuidade da existência, ainda que mencione os deuses, o filósofo sugere que a vida seja festejada agora. Imhotep insere um elemento filosófico importante: a dúvida. Sem saber o que nos espera no futuro, devemos nos concentrar no presente. Uma postura filosófica que nos convida para atenção ao presente. Por outro lado, os comentários sobre o pensamento de Imhotep (OBENGA, 1990; ASANTE, 2000) trazem uma relevante perspectiva filosófica: perguntar. Não aceitar uma ideia sem que ela possa ser medida, pesada na balança do conhecimento. Considerando os relatos e o material que temos, o primeiro filósofo (africano) é bem anterior ao primeiro filósofo grego. Com efeito, aqui não nos interessa examinar uma querela que pouco acrescentaria ao nosso objetivo: quem “inventou” a filosofia ? Sem sombras de dúvidas, o que temos diante dos papiros, registros e documentos atesta simplesmente que os escritos egípcios são mais antigos do que os gregos. A suspeita dos críticos da tese de que a filosofia em solo africano é mais antiga do que a que foi erigida na Europa pode estar justamente num elemento: o baixo conhecimento do material africano. Per Ankh (Escola de Vida) era o nome dos espaços em que escribas, sacerdotes, altos funcionários eram formados. A formação básica era a respeito da sebayt (sabedoria), da investigação de todas as coisas – khet, para que a pessoa pudesse enveredar para se tornar rekh – filósofo(a). A atividade filosófica diz respeito a um certo esforço que aparece bem descrito na Sátira das profissões (2000) de Khéti que se encontra integralmente nos Papiro Sallier II (Museu Britânico 10182) e parcialmente no Papiro Anastasi VII (Museu Britânico 10222), ambos da 19ª Dinastia que durou de 1295 a 1213 a. E.C. Na Sátira, o filósofo Khéti procura convencer seu filho Pépy a escolher os estudos, porque durante a formação de escriba, o conhecimento de rekhet (filosofia) é aprendido como um dos pilares básicos dessa formação (ARAÚJO, 2000; ASANTE, 2000, OBENGA, 1990). Não podemos deixar de registrar um dado muito relevante acerca da origem da filosofia africana que se mistura com o noticiário acadêmico da filosofia ocidental. Se defendemos uma perspectiva que não quer “descobrir” quem “inventou” a filosofia, deve -se
primeiro à compreensão de que filosofar não é exclusividade de nenhum povo. Mas, algo que atravessa e constitui a condição humana. Por outro lado, vale insistir que estamos embrenhados numa arqueologia dos primeiros escritos. Nessa arqueologia que encontramos indícios que parecem confirmar a hipótese de que egípcios e gregos dialogavam bastante. Kemetismo e helenismo teceram encontros de diversos modos e clivagens. Numa dessas tessituras encontramos um elemento que merece destaque. Uma significativa parte dos comentadores atribui à Pitágoras de Samos (570- 496 A.E.C) o termo “filosofia” pela primeira vez. Dentre as fontes de que foi no século V A.E.C. com confirmam essa versão Diógenes de Laércio (~ 225 A.E.C- 3000 A.E.C.) com Vida dos filósofos e Cícero (106- 44 A.E.C) com Discussões de Túsculo. Ambos assentados numa leitura amplamente popular que remonta aos escritos de Heráclides Pôntico (~ 387 A.E.C.- 312 A.E.C), discípulo de Platão (428 A.E.C – 348 A.E.C). Um dado importante que nem sempre é mencionado diz respeito aos vinte e cinco anos que Pitágoras estudou no Egito (CARREIRA, 1994; ASANTE, 2000, OBENGA, 1990). O filósofo grego frequentou Per Ankh, sua formulação de que sua atividade não era coisa de sábio; mas, de amante da sabedoria (filósofo) se dá em seu retorno à Grécia. Sem dúvida, Pitágoras poderia ter feito essa formulação para se diferenciar dos egípcios. Mas, também poderia ter feito justamente para revitalizar o seu aprendizado kemético no contexto grego. O que aqui nos interessa são os sinais de contato entre essas duas culturas na antiguidade. Porém, ainda que distantes da tese de George James exposta no livro Legado roubado: que os gregos teriam sido meros repetidores do pensamento filosófico egípcio (JAMES, ), não podemos deixar de sublinhar de modo enfático que os africanos começaram a escrever milênios antes e que a ausência dessas menções causa estranheza. Ainda mais quando se trata de uma área sem respostas consensuais e que o mais importante é recolocar as questões sem temer os caminhos que elas possam nos impor. Por isso, cabe sempre refazer aquela pergunta simples e inescapável: o que é filosofia?
O que é filosofia (africana)? Na antiguidade egípcia encontramos um texto que pode lançar bastante luz sobre as dúvidas a respeito do que viria a ser a atividade filosófica propriamente dita na antiguidade (e, em certa medida na atualidade e na futuridade). Ora, Os ensinamentos de Ptahhotep são exemplo magistral para que possamos discorrer acerca da natureza da filosofia. Logo no início dos seus ensinamentos encontramos uma formulação que merece exame detido. Não te envaideças de teu conhecimento, toma o conselho tanto do ignorante quanto do instruído, pois os limites da arte de filosofar (rekhet) não podem
ser alcançados e a destreza de nenhum artista é perfeita. O bem falar (a palavra perfeita) é mais raro do que esmeralda, mas pode encontrar-se entre criados e britadores de pedra (PTAHOTEP, 2000, p.247).
A passagem acima desperta atenção porque o filósofo, um vizir responsável pela gestão, armazenamento e distribuição de cereais na 5ª Dinastia do Reino Antigo, nos informa que filosofia é uma atividade em que a conclusão nunca está pronta. Ou seja, o exercício de filosofar é alguma coisa que está sempre por fazer, um processo ininterrupto que requer esforço e caracteriza-se mais pela compreensão de que precisamos aprimorá-lo continuamente do que pela convicção de que chegamos a alguma conclusão definitiva. Essa característica revelaria que filosofar é um ato de humildade. A filosofia inspira o reconhecimento da ignorância e exige a eliminação da arrogância. Sem essas características a arte de filosofar é impossível. Podemos notar que outra característica indispensável está em considerar todos os pontos de vistas como relevantes para o aprendizado. Ptahhotep é categórico ao afirmar que tanto faz aprender com pessoas desprovidas de qualquer formação, ignorantes em qualquer arte, quanto com as que são versadas em alguma. Porque Ptahhotep pressupõe que possamos nos enganar em qualquer circunstância e somente a persistência em revisitar as ideias nos trará mais “precisão”. No texto original podemos ler: “a palavra perfeita ( medet nefer ) é mais raro do que esmeralda” (Idem). A raridade da palavra perfeita, aqui entendida como aquela que tem o peso da verdade, significa que poucas pessoas conseguem medir e conhecer as medidas exatas da verdade. Porque esse “bem falar” é fruto de uma labuta pesada e estafante que requer humildade e persistência das pessoas que estão a buscar destreza na arte de conhecer as coisas e aproximar-se da sabedoria (sebayt): o conhecimento de si somado ao conhecimento do mundo. Aqui vale dizer que a dificuldade em conjugar esse duplo conhecimento, de si e do mundo, faz da sabedoria uma busca contínua. Inclusive, os estudos de egiptólogos como Obenga (2004) e Karenga (1990) revelam um fato importante e que parece desconhecido de muitos estudiosos da área de filosofia. Conforme Obenga, a inscrição Rix ki ink (conheça-te a ti mesmo) era comum nas tumbas egípcias, pelo menos, desde o Reino Médio. Ou seja, o gnothi seuaton (conheça-te a ti mesmo em grego) foi escrito no templo do Oráculo de Delfos cerca de um milênio depois da inscrição egípcia. Com isso, não queremos nos restringir apenas à leitura de que os gregos teriam copiados os egípcios. O assunto não está no escopo dessa pesquisa. Poderíamos considerar outras perspectivas, tais como: nenhum povo é dono do pensamento filosófico. O que enfraqueceria a atividade filosófica seria supor sua origem única, visto que filosofar parte da ignorância, do abandono da rotina. Contudo, a ideia de fixar-se numa única “língua” tem sido retomada como dogma
quando enxerga a Grécia como berço d a filosofia. O reconhecimento de que o “conheça-te a ti mesmo” já circulava entre egípcios é um deslocamento muito importante. Isso faz parte do ímpeto filosófico de repensarmos o que considerávamos pronto e acabado. Ora, Ptahhotep é um dos pilares do pensamento filosófico. A formulação ptahhotepiana traz um encaminhamento radicalmente filosófico que até então não existia: assumir a ignorância como ponto de partida, reconhecer que a verdade não é prerrogativa de ninguém. Conforme Emanuel Araújo (2000), os estudos que se embrenham pelos papiros egípcios parecem convergir, o principal manuscrito é o Papiro Prisse (Biblioteca Nacional, Paris, 183-194). A obra remete ao vizir da 5ª Dinastia do Reino Antigo, Ptahhotep, cujo nome está no túmulo de Saqqarah e tem registrado títulos ostentados pelas figuras mais prestigiadas do país depois do Faraó. No túmulo de Ptahhotep aparecem as menções, “juiz supremo, superintendente de todas as obras do rei, superintendente dos documentos, secretário de todas as ordens régias, portador do rolo de papiro, escriba do livro divino” (ARAÚJO, 2000, p.244). Num belíssimo trabalho intitulado The mastaba of Ptahhotep and Akhethetep, vol. I. de Normam Davies e Francis Grifftih (1975), encontramos diversos detalhes sobre o personagem histórico. O material com os escritos de Ptahhotep que foi preservado está datado no Reino Médio, no período da 12ª Dinastia, o que informa que desde a 5ª Dinastia foi reescrito pelos escribas como uma fonte importante a respeito da arte em que a destreza (perfeita) está sempre por ser conquistada – a filosofia. Ptahhotep trabalhou e escreveu sobre rekhet durante o reinado do Faraó Isési entre 2414 a 2375 A.E.C. Dentre nossas pesquisas, Ensinamentos de Ptahhotep é um dos textos mais antigos que trata de filosofia. Sem dúvida, essas informações podem criar um fértil debate, ajudando a tecer outras compreensões sobre a filosofia em sua longa história. O que nos interessa é justamente acrescentar mais elementos ao diálogo filosófico, enriquecendo o debate e reconhecendo que, quiçá, possam existir mais semelhanças entre os primeiros textos africanos e os ocidentais – escritos milênios depois. Com efeito, se o nosso alvo era uma definição, pelo menos preliminar e sumária, de filosofia a partir da tradição kemética – o que aqui fazemos assentados no pensamento de Ptahhotep – , podemos ficar com a seguinte: “filosofia é saber que a arte de buscar a palavra perfeita, reflexo do conhecimento de si e do mundo, está sempre por fazer”.
A balança (e o debate acerca) da verdade Como mensurar essa expressão “palavra perfeita”? Esse conceito deve ser entendido como resultado de uma laboriosa investigação sobre si e o mundo, nós temos aqui outra
questão: a medida da verdade. O que torna uma palavra perfeita? Como “pesar” a verdade ? Nesse quesito O livro do vir à luz do dia erradamente traduzido como O livro dos mortos nos ajuda bastante a compreender o assunto. O filósofo Maulana Karenga fez uma bela tradução bilíngue em 1990, em seu trabalho originalmente intitulado The Book coming forth by day (1990) encontramos a cosmovisão de Maat, a deusa que controla e gere a balança da verdade. Maat é um termo que circunscreve as noções de: verdade, harmonia, justiça, equilíbrio. A narrativa do mito é bem interessante. Na cosmovisão egípcia, ela é casada com Thot, deus do conhecimento, o inventor da escrita. Maat é responsável pela balança que decide o caminho de uma pessoa depois da morte. A balança de Maat mensura o coração – sede do pensamento, caráter e emoções – com a pena do pássaro íbis. O coração deve ser leve, o destino dos corações pesados é ruim e desastroso. Num outro registro, Maat traz a verdade como fiel de sua balança. O filósofo deve pesar suas palavras n essa balança, se a “palavra perfeita” é algo que a filosofia não cansa de buscar, a balança de Maat deve ser sempre requisitada. Ora, a balança de Maat é uma menção explícita à ideia de critério de julgamento, o juízo que separa as palavras leves e verdadeiras das falsas. Uma recomendação para o exercício da filosofia, um plano que busca o conhecimento de si e do mundo, aparece no Capítulo 10 dos escritos de Amenemope, “Não separes teu coração de tua língua, para que teus planos sejam bem sucedidos” (AMENEMOPE, 2000, p. 270). Na cultura egípcia, o pensamento é um atributo do coração, por isso a língua, isto é, as palavras lhe devem fidelidade. Ora, pensamos com o coração e as palavras que dele saem são como pinturas. Aqui temos diversos elementos que merecem vagar. Primeiro, dizer que pensar é uma atividade do coração traz uma compreensão de que pensar reúne lógica, emoções e o caráter da pessoa. Na cultura egípcia, o pensamento (sixer) é um plano, por assim dizer, uma estratégia para encontrar consigo e com o mundo. As palavras que brotam do coração são como “ pinturas”, isto é, devem obedecer à lei da frontalidade. Aqui vale introduzir um debate acerca da produção artística; ainda que o escopo desse trabalho não seja um estudo sobre artes egípcias, contudo não podemos deixar de fazer uma ligeiríssima digressão a respeito da pintura num único aspecto. Conforme, as pinturas no Egito antigo obedeciam um conjuntos de regras denominadas de frontalismo ou lei da frontalidade. Ora, tudo que sai do coração depois do plano de encontrar a si e o mundo deve estar dentro do frontalismo, o crivo da verdade que está presente na balança de Maat, para que possamos avalizar a verdade. Por frontalismo se deve entender um conjunto de regras que essa “lei determinava que o tronco da pessoa fosse representado sempre de frente, enquanto sua cabeça, suas pernas e seus pés eram sempre vistos de perfil” (PROENÇA, 2012, p. 19). Aqui não cabem considerações nas áreas
da estética e filosofia da arte, basta dizer que artistas do Egito antigo queriam colocar diversos pontos de vista num só plano. Numa analogia com a expressão conceitual de “medida da verdade” que está sob nosso exame, pode -se dizer o seguinte. A partir da necessidade de conjugação de pontos de vista distintos num só plano que se instala a verdade como princípio e critério. A palavra “verdade” (Maat) se aproxima de “ver” (maa). Pois bem, verdade é o nome da deusa e nos revela justamente a perspectiva de reunião de pontos de vistas distintos num só plano. Em outros termos, a verdade é um tipo de juízo que coloca pelo menos duas perspectivas na balança. Assim sendo, vamos retomar o trecho de Amenemope que diz: “Não separes teu coração de tua língua, para que teus planos sejam bem-sucedid os” (AMENEMOPE, 2000, p. 270). Como as palavras (aqui entendidas como “língua”) podem ser fiéis ao pensamento proveniente do coração? Ora, apoiados nos textos egípcios, o exercício filosófico consiste numa “pintura” de vários pontos de vista, reunindo -os em seus aspectos mais relevantes. Por exemplo, conforme o frontalismo (ou lei da frontalidade), a pintura egípcia coloca o tronco e o olho na posição frontal que ajuda a ver (maa) com mais extensão o corpo. A visão de perfil aumenta a compreensão do rosto. Dito de outro modo, a pintura precisa trazer dois pontos de vistas simultaneamente que ampliem a maior quantidade de informações possíveis a respeito da figura. O que significa que a lei da frontalidade aplicada à filosofia indica um tipo de combinação em favor de tornar a visão geral mais ampla, conciliando perspectivas diversas. Pois bem, considerando a tradição filosófica kemética, podenos
denominamos de
verdade: a reunião harmoniosa de pontos de vistas diferentes, o equilíbrio entre “pesos” diferentes. Neste ponto, voltemos aos escritos de Ptahhotep que reconhece o diálogo como uma ferramenta importante na busca da verdade. O filósofo percebe a existência de contendas e traz um modelo para as pessoas entrarem em discussão acerca das palavras perfeitas. Além de Ptahhotep, outro filósofo egípcio exalta o debate. Merikare (2000) diz: “Sê um artesão da palavra e vencerá, (pois) a língua é a espada (de um nobre): as palavras têm mais força que qualquer combate, o de coração destro nã o é vencido” (MERIKARE, 2000, p.283-284). Nossa interpretação sobre os ensinamentos de Ptahhotep identifica três classes de recomendações para o debate, sugerindo uma conduta adequada para cada tipo de contenda. Ptahhotep diz que em relação ao contendor podem existir três tipos de pessoas. 1ª) As que têm uma balança mais precisa, “superiores”; 2ª) As que têm balança tão precisa quanto a nossa, “iguais”; 3ª) As que têm balança menos precisa, “inferiores”. Pois bem, Ptahhotep está a nos dizer com estes tipos algo muito interessante. De acordo com a destreza de pensamento de cada pessoa, podemos diferenciar e classificar as pessoas entre às que têm: juízo preciso, juízo razoável e juízo
impreciso. Por juízo preciso e bem ajustado se deve tomar a balança que tem o peso-padrão e o seu fiel bem ajustados, em harmonia e justo funcionamento. A partir das leituras dos filósofos Ptahhotep (2000), Amenemope (2000), Merikare (2000), Amenenhat I (2000) e de comentadores como Asante (2000), Obenga (1992, 2004) e Carreira (1994), definimos que o exercício do debate filosófico em busca da verdade envolve a balança e seus elementos, o peso-padrão e o fiel da balança. O peso-padrão do filósofo está em seu coração, o fiel da balança é a capacidade de navegar pelas águas da ignorância, mantendo o prumo, sem deixarse afogar em suas profundezas. Neste sentido, filosofar é uma atividade que exige a escuta do coração, o reconhecimento da ignorância e de alguma maneira o ato de educar.
A barca e o ato de educar Nos escritos de Amenemope (2000) podemos localizar várias menções ao barco numa travessia. Ao longo dos seus trinta capítulos, o filósofo traz uma perspectiva que merece atenção, o conceito de barca tem lugar especial. A transliteração do hieróglifo
[barca] é dpt , é importante
observar que [experimentar] transliterado como dp significa degustar e experimentar. Neste sentido, o termo barca circunscreve ideias como experimentar, degustar, testar o gosto e participar de uma experiência que não seja ordinária. A barca carrega a ideia de que a travessia é uma experimentação. Ou ainda, a possibilidade fazer um novo caminho, ou ainda, percorrer o mesmo destino para compreender, aprender e ensinar. No capítulo 29, podemos ler “Não impeças as pessoas de atravessarem o rio se tens cabine em tua barca. Quando te derem um remo em meio às águas profundas, estende teus braços e pega-o” (AMENEMOPE, 2000, p.279-280). Amenemope está dizendo bem algo bem simples: as pessoas habilitadas na arte da palavra não podem se esquivar de ensinar a usar a barca que atravessa as tormentas de dúvidas e falta de discernimento. A barca é a experimentação do discernimento. A pessoa que tem lugar na cabine de sua barca tem a tarefa de educar os que não têm barca (NOGUERA, 2013, p. 149). A travessia pelo rio da ignorância deve ser enfrentada pelo filósofo sem recuo, de modo persistente, assumindo o remo da barca. Os que sabem que não sabem, reconhecem os limites do seu conhecimento, têm um dever: oferecer um espaço na sua barca. O que pode ser entendido como apoiar com alguma estratégia, plano ou método. Neste ponto, encontramos a barca, muito ligada à filosofia. Educar em egípcio antigo tem a transliteração Sdi, o hieróglifo tem um homem com um bastão na mão. No entanto, trata-se menos de um recurso de força do
que uma orientação para que as pessoas que estão aprendendo não se assustem com a travessia. “Não movas as escalas nem falsifiques os pesos ou diminua as frações da medida” (AMENEMOPE, 2000, p. 273). O filósofo nos convida para examinar o coração e toma-lo como peso-padrão da verdade. Nossa leitura é de que esta é a condição prévia para ceder cabine na barca. O filósofo está junto do seu coração. Por isso, o filósofo pode atravessar rios perigosos e remar sem recuar diante do temor que as águas profundas inspiram. Ora, educar é justamente convidar para atravessar o rio; mas, enganam-se os que acreditam que o aprendizado é sobre o rio e a qualidade da barca. Ainda que seja necessário conhecer a barca, saber remar e ter uma noção sobre o rio. A primeira medida está na escuta do próprio coração – habitat do pensamento, das emoções e do caráter.
Conclusões parciais: tecendo ancestralidade e futuridade De qualquer modo, este texto (inconcluso) é um convite para a leitura e releitura dos textos africanos originais.
Um encaminhamento para pensarmos dois conceitos,
ancestralidade e futuridade na encruzilhada da filosofia e da educação. O que a filosofia africana na antiguidade pode nos dizer a respeito de educar e das relações entre ancestralidade e futuridade? Primeiro, cabe registrar que uma característica muito importante na cultura africana – aqui entendida como paradigma que ultrapassa o ocidente – está na perspectiva de que “vivo” não é antônimo de “morto”. Os estudos pan -africanistas nos ensinam algo muito importante, as pessoas “mortas” adentram a categoria da ancestralidade – parte integrante da comunidade. As que estão para nascer, as não nascidas e que virão ao mundo em algum momento também fazem parte da comunidade. Nós concordamos com a ideia de que a “cultura negra é uma cultura das encruzilhadas” (MARTINS, 1997, p. 26). A cultura africana, aqui entendida como sinônimo de cultura negra, está sempre em cruzamentos e entrecruzamentos, articulando-se, reinventando-se, combinando-se com outros elementos por seu caráter xenófilo. Em certa medida, a encruzilhada é um exercício de tessitura, “pontos de encontro”, isto é, “intersecções, inscrições e disjunções, fusões e transformações, confluências e desvios, rupturas e r elações, divergências, multiplicidade, origens e disseminações” (Idem, p. 25). Pois bem, entendendo ancestralidade como as gerações passadas que vivem através de seus relatos, experiências e pensamentos. Por futuridade, as gerações que virão. Ora, o encontro entre ancestralidade e futuridade se dá na revitalização do presente como território guardião do que foi e do que virá. A partir dessas considerações, a filosofia africana na
antiguidade não é somente um legado do passado; mas, uma atualidade necessária à futuridade. Pelas seguintes razões, existiria um ato africano de educar inscrito na ideia de faraga. Ora, faraga no idioma bambara pode ser traduzido como (viver a) diáspora. O que interpretamos como uma condição da experiência humana fundamental para filosofar. A filosofia é justamente um deslocamento, um exercício de sair do lugar seguro, um abandono do território doméstico, lançando-se no mundo estrangeiro. Como anunciado no início, este escrito inspirado (e dedicado) a Wilson, griot de ascendência bambara que ocupa a terra da ancestralidade desde 1993 é um preâmbulo em busca de reafricanizar a filosofia e o ato de educar num mundo ainda tão encarcerado na monorracionalidade da modernidade ocidental. Wilson nada escreveu, frequentou a escola por quatro anos. No entanto, sua formação djeli/griot só poderia ser comparada ao título de doutor seguido de um pós-doutorado. Uma formação de 21 anos aprendendo histórias. Por isso, encerramos com uma delas. Certa vez que um rei, inspirado divinamente, precisou decidir quem era a pessoa mais sábia de seu reino. Ele passou a mesma tarefa para 13 mulheres e 13 homens. No fim um homem conseguiu realizar a tarefa até o fim. A tarefa dividida em duas partes consistia em cozinhar a melhor comida do mundo e, em seguida, a pior comida do mundo. O homem que foi sagrado o mais sábio preparou língua de touro com inhame no quesito, melhor comida do mundo. O rei banqueteou-se e sorriu com gosto. Na hora seguinte, o homem trouxe outro prato. Mas, era língua de touro com inhame. O rei comeu a contragosto, porque o odor, assim como o sabor, estava terrível. Chamado às explicações, o homem disse: “´Com a
língua, agradecemos a chuva que refresca. Com a língua, maldizemos a chuva que não para e inunda nossas casas. Com a língua, elogiamos; com a língua, xingamos. Com a língua, reclamamos; mas, com ela: agradecemos” .
Encantado, o rei disse: você é o homem mais
sábio do reino. O homem respondeu: - Eu não sou o mais sábio; mas, posso ser o que mais gosta de saber. Por isso, sei que o sabor, seja bom ou ruim, se experimenta e antes de provar, nada é sabido. Ainda assim, mesmo depois da prova, o gosto das coisas podem mudar. Basta lembrar da língua de touro com inhame. Por isso, a sabedoria é uma arte de cozinhar e provar tanto o cru quanto o cozido. Uma arte de provar todo dia o mesmo prato ou pratos diferentes. Eu só serei sábio quando provar todos os pratos, conhecer todos os sabores. Eu vou permanecer cozinhando e provando, testando temperos e iguarias. Porque a sabedoria é como o sabor da comida: depende da língua, do tempero, da fome e do cozinheiro. Ela nunca é perfeita em tudo, sempre pode melhorar.
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