ENTRE FACTO E SENTIDO: A DUALIDADE DO ACONTECIMENTO Louis Quéré * «O acontecimento [é] o que se torna» (Mead, 1932, p.51) «O sentido real de todo o acontecimento transcende sempre as “causas” passadas que lhe podem ser associadas […] mas, além disso, esse mesmo passado apenas emerge graças ao acontecimento» (H. Arendt, 1980, p.75). Na nossa experiência individual ou social, confrontamo-nos com acontecimentos de natureza diferente. Por isso temos, espontaneamente, a intuição da existência de diversas categorias de acontecimento. Há aqueles que ocorrem independentemente da nossa vontade e nos caem em cima contra toda a expectativa e aqueles cuja ocorrência provocamos e, melhor ou pior, controlamos, na maior parte das vezes com objectivos estratégicos. Há aqueles que se produzem devido às modificações que, em permanência, atingem as coisas e aqueles que sucedem connosco. Há aqueles que ocorrem no dia-adia, sem que lhes atribuamos um valor particular e aqueles que se revestem de especial importância. Que são mais marcantes, ao ponto de poderem tornar-se referências numa trajectória de vida, individual ou colectiva, na medida em que correspondam a experiências memoráveis e, até mesmo, a rupturas ou a inícios. Podemos também diferenciar os acontecimentos em função do seu poder de afectar os seres e de impregnar as situações de qualidades difusas que as individualizam. A morte de um parente ou de um amigo próximo é um acontecimento acontecimento que afecta uma u ma família ou uma rede de amigos, enquanto que o 11 de Setembro, em Nova Iorque, afectou, segundo modalidades diferentes, não somente as vítimas directas do atentado terroristas e suas famílias, mas também uma colectividade nacional e, mais genericamente, uma grande parte do mundo. O mesmo se pode dizer d izer relativamente à catástrofe catástro fe de 26 de Dezembro de 2004 na Ásia do Sul que afectou, não só as populações locais vítimas do tremor de terra e do tsunami subsequente, mas também uma grande parte da população do mundo,
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Centro Nacional de Investigação Científica – CNRS e Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais, de Paris - EHESS
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particularmente a dos países ocidentais (e não apenas porque naturais desses países alongaram a lista das vítimas). De que natureza é este poder do acontecimento? acontecimento? Não é seguro que as ciências sociais tenham efectivamente avaliado o lugar do acontecimento na estruturação da experiência individual e colectiva. Por diversas razões. Uma delas tem a ver com o facto das ciências sociais tenderem a associar a acção a sujeitos movidos por razões de agir, por motivos ou por interesses, e menos a uma afecção por acontecimentos e por mudanças, nos objectos ou nas situações, no decurso da própria organização da experiência. Uma outra é que as ciências sociais apreendem, sobretudo, o acontecimento, como integrante da categoria do facto e recorrendo ao esquema da causalidade, hesitando em tratá-lo como um fenómeno de ordem hermenêutica. Para evidenciar o lugar do acontecimento na organização da experiência, seja esta individual ou colectiva, é preciso, por um lado, conseguir situá-lo correctamente na ordem do sentido - «correctamente» significando: sem ser em termos de atribuição, à posteriori, de valores e de significações a factos, por sujeitos individuais ou colectivos -, por outro lado, inscrever a acção numa dinâmica em que a passibilidade do acontecimento acontecimento e o seu poder hermenêutico hermenêutico desempenhem um papel mais importante do que a motivação dos sujeitos. Nas últimas décadas, a difusão das teses narrativistas em filosofia e em epistemologia da história, assim como o esboço de uma hermenêutica da narrativa por Paul Ricoeur, permitiram ultrapassar numerosos pressupostos da
apreensão apreensão
habitual dos
acontecimentos, em particular ligar a individualidade de um acontecimento à intriga da qual ele faz parte e para a qual contribui. Mas a contribuição da narrativa não é suficiente para pôr em destaque o poder hermenêutico do acontecimento, na medida em que este intervém na experiência segundo modalidades que não implicam, necessariamente, a mediação da narração. Em que consiste, exactamente, esse poder hermenêutico? É a questão que gostaria de explorar nas páginas seguintes, a partir de duas descrições da dualidade do acontecimento, uma de H. Arendt e outra de G. H. Mead. 1. Compreender o acontecimento, compreender segundo o acontecimento
Num artigo de 1953, intitulado «Compreensão «Compreensão e política» po lítica»,, H. Arendt sublinhava su blinhava que o acontecimento tanto podia representar um fim como um começo e que cada uma dessas formas de apreender o acontecimento correspondia a um ponto de vista diferente: 2
entendimento e acção. Do ponto de vista do entendimento, que privilegia «a contemplação», o acontecimento é um facto ocorrido no mundo, susceptível de ser explicado como um encadeamento – ele é «um fim onde culmina tudo o que o precedeu» - e inscrito num contexto causal. Do ponto de vista da acção, em que é necessário «aceitar o irrevogável e reconciliar-se com o inevitável», o acontecimento é um fenómeno de ordem hermenêutica: por um lado, ele pede para ser compreendido, e não apenas explicado, por causas; por outro, ele faz compreender as coisas – tem, portanto, um poder de revelação. Pode assim revelar uma situação problemática que aguarda resolução, ou descobrir “uma paisagem inesperada de acções, de paixões e de novas potencialidades […]” (Arendt, 1980, p.76). É na acção, diz Arendt, em particular na acção política, “sempre, por essência, o começo de qualquer coisa de novo”, que nos “apoiamos sobre a nova situação criada pelo acontecimento, isto é, que o consideramos um começo” ( ibid ). O acontecimento apresenta, pois, um carácter inaugural, de tal forma que, ao produzir-se, ele não é, apenas, o início de um processo, mas marca também o fim de uma época e o começo de outra. É, evidentemente, este poder de abertura e de fecho, de iniciação e de esclarecimento, de revelação e de interpelação que nos interessa aprofundar, em ligação com as modalidades de experiência que nos remetem para acontecimento assim entendido. Esse poder é tão ligado à perspectiva da acção, como o supõe Arendt, de tal maneira que a dualidade facto/sentido se sobrepõe à dualidade conhecimento/acção? Tudo depende da concepção de acção que se partilhe e sabe-se que Arendt concebe o poder de agir como um poder de iniciação (começar qualquer coisa de novo) e dissocia, fortemente, o conhecimento e a acção. Pelo nosso lado, optamos antes pela dialéctica da experiência que implica, simultaneamente, um processo diferenciado de exploração e uma articulação estreita entre o suportar e o agir. A compreensão do acontecimento e da situação que ele gera, ou revela, passa, também, pela sua explicação causal, que não é unicamente da ordem da contemplação. Mas essa explicação não é mais do que uma componente da compreensão que deriva, igualmente, da comprovação do acontecimento e da experiência dos seus efeitos. Porque o verdadeiro acontecimento não é unicamente da ordem do que ocorre, do que se passa ou se produz, mas também do que acontece a alguém. Se ele acontece a alguém, isso quer dizer que ele é suportado por alguém. Feliz ou infelizmente. Quer dizer que ele afecta alguém, de uma maneira ou de outra, e que suscita reacções e respostas mais ou menos apropriadas. É porque ele acontece a alguém que ele «se torna», para retomar a definição de Mead apresentada em epígrafe. Enfim, 3
veremos que a principal origem da compreensão do acontecimento está no próprio acontecimento. Uma das dificuldades da reflexão, está em conseguir integrar essas diferentes dimensões na concepção do acontecimento. Uma outra dificuldade, diz respeito ao ultrapassar da dualidade conhecimento/acção e à integração tanto da explicação causal como do poder hermenêutico do acontecimento na análise da organização dinâmica da experiência. Uma última dificuldade resulta da pregnância, quando se trata de descrever como é que o acontecimento faz sentido, do esquema da atribuição de significações e de valores, por sujeitos, a factos que se produziram no mundo. Parece que não será segundo esse esquema que se deva pensar a inscrição do acontecimento na ordem do sentido. Mas de que alternativa dispomos para descrever essa inscrição? 1 Encontramos, na reflexão de G. H. Mead sobre o tempo, a formulação de um outro aspecto da dualidade do acontecimento. Este, diz Mead, nunca é inteiramente condicionado por aquilo que provocou ou tornou possível. Ele introduz, necessariamente, alguma coisa de novo ou de inédito. Quando um acontecimento se produziu, qualquer que tenha sido a sua importância, o mundo já não é o mesmo: as coisas mudaram. O acontecimento introduz uma descontinuidade, só perceptível num fundo de continuidade. No entanto, apesar da ocorrência de um acontecimento mudar qualquer coisa ao estado anterior do mundo, nem tudo o que acontece é descontínuo. Certos acontecimentos são esperados, ou previstos, e quando se produzem são o resultado daquilo que os precedeu. A sua ocorrência faz, apesar disso, emergir algo de novo. Os acontecimentos importantes são, em grande parte, inesperados. Quando se produzem, não estão conectados aos que os procederam nem aos elementos do contexto: são descontínuos relativamente a uns e a outros e excedem as possibilidades previamente calculadas; rompem a seriação da conduta ou a do correr das coisas – há seriação quando os actos ou os acontecimentos anteriores da série abrem a via aos seguintes, de tal forma que estes resultam dos que os precederam. Esta descontinuidade provoca surpresa e afecta a continuidade da experiência porque a domina. Por isso, fazemos tudo quanto está ao nosso alcance para reduzir as descontinuidades e para socializar as surpresas provocadas pelos acontecimentos: reconstruímos, através do 1
Basear-me-ei, para as considerações seguintes, na explicação filosófica de Claude Romano cuja inspiração é, em parte, comum à de H. Arendt (em particular a obra de Heideggar). Cf. Romano, 1998 & 1999; e também Ricoeur, 1971
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pensamento, as condições que permitiram ao acontecimento produzir-se com as particularidades que apresenta; restauramos a continuidade no momento em que a ruptura se manifestou, ligando a ocorrência do acontecimento a um passado de que ele é o ponto de chegada ou incluindo-o num contexto no qual ele se integra coerentemente e surge como, afinal, previsível. Agimos, então, como «profetas virados para o passado» (Arendt). Mas paradoxalmente, sublinha Mead, esse passado e esse contexto não preexistiam ao próprio acontecimento. A continuidade na qual podemos inscrevê-lo e que quase permite deduzi-lo do seu passado ou do seu contexto, não existia antes dele se produzir (tal como a descontinuidade, aliás). Em suma, é preciso que o acontecimento tenha lugar, que ele se manifeste na sua descontinuidade e que tenha sido identificado de acordo com uma certa descrição e em função de um contexto de sentido, para que se lhe possa associar um passado e um futuro assim como uma explicação causal. Que emergem graças ao acontecimento. E que são da ordem da representação, ou melhor, da imaginação. Mead exemplifica com um tremor de terra: na experiência de tal acontecimento, o que surgiu foi totalmente descontínuo relativamente ao que precedeu. Mas, uma vez que o acontecimento teve lugar, podemos reduzir essa descontinuidade invocando os sinais percursores, comparando-os a acontecimentos similares do passado, ou reconstruindo um contexto causal, em termos geológicos por exemplo. É portanto o acontecimento que acaba de se verificar que faz aparecer a dimensão do passado; porque antes de ele se verificar não há passado. É preciso que se produza o acontecimento para que haja um passado do acontecimento. Um passado relativo, em exclusivo, a esse acontecimento e à maneira pela qual ele é percebido, identificado e descrito. O mesmo raciocínio é válido para o contexto. O paradoxo é ainda maior para tudo o que emerge de novo enquanto descontínuo. «Se o novo emerge, não pode haver aí uma história da continuidade da qual ele seja parte integrante, mesmo se, quando ele surge, as continuidades que manifesta nos permitam descrever uma sucessão de acontecimentos no âmbito da qual ele apareceu» (Mead, 1964, p.353). É por isso que o acontecimento esclarece o seu passado e o seu futuro, melhor ainda, é por isso que o passado e o futuro são relativos a um presente evenemencial: «Verificando-se a emergência de um acontecimento, as suas relações com os processos que o precederam tornam-se condições ou causas. Uma tal situação é um presente. Ela delimita, e num certo sentido selecciona, o que tornou possível a sua particularidade. Ela cria, devido ao seu carácter único, o seu passado e o seu futuro. 5
Logo que a vemos, ela torna-se uma história e uma profecia» (Mead, 1932, p.52). Por isso, o passado é tão hipotético como o futuro. Mead, que se apoia em Bergson, antecipa, aqui, o que H. Arendt explicitará uma vintena de anos mais tarde (o artigo já citado data de 1953) em termos quase equivalentes: «É somente quando qualquer coisa de irrevogável se produz que podemos determinar, às arrecuas, a sua história. O acontecimento esclarece o seu próprio passado; nunca pode ser deduzido dele» (Arendt, 1980, p.75). Daí também que à compreensão de um acontecimento, conseguida a partir de um passado e de um contexto causal que o explique, relativamente a uma descrição, escape a sua novidade e a sua descontinuidade. É, então, o acontecimento que torna compreensível o seu passado e o seu contexto, em função do sentido novo cujo surgimento ele provocou. Assim se explica o seu poder de revelação ou de descoberta: «Manifesta qualquer coisa do seu próprio contexto que, sem ele, permaneceria dissimulado» (Romano, 1999, p.176). Contrariamente a Arendt, Mead não opõe o ponto de vista do entendimento ao da acção porque, na sua opinião, o segundo inclui o primeiro. É na organização da conduta que intervêm, tanto a explicação causal do acontecimento e a construção do seu passado e do seu futuro, como o seu poder de esclarecimento e a fonte de inteligibilidade que ele constitui. Em particular, o passado e o futuro servem para interpretar e para controlar o presente, no quadro de uma actividade que implica, necessariamente, múltiplas modificações e, portanto, a emergência do novo: «É o teor da acção, ou da apreciação, que requer um esclarecimento e uma direcção, devido à aparição constante do novo pelo qual a nossa experiência exige uma reconstrução que inclua o passado» (Mead, 1932, p.56). Uma tal reconstrução, cognitiva, é essencial à organização da acção. Mais genericamente, diríamos que os acontecimentos constituem o pivot da temporalização interna da conduta tendo em conta a característica serial desta. Se nada acontecesse no decurso de uma actividade, esta seria desprovida de estrutura temporal. Trata-se, claro, de micro-acontecimentos. Por mais descontínuo que ele seja, o acontecimento que se produziu foi, apesar de tudo, condicionado. Condicionado mas não determinado: «Tudo o que se passa, passa-se segundo condições necessárias, [No entanto] essas condições, que são necessárias, não determinam completamente o que emerge» ( ibid , p.47). Pelo que, mesmo o acontecimento mais determinado, pode ser considerado como comportando uma parte de indeterminação, logo de novidade. Tal como o presente não é nunca completamente determinado pelo passado, mesmo se condicionado por ele. O conhecimento do que 6
condicionou a produção do acontecimento é decisivo para a organização da conduta. Aliás, é para controlar o reaparecimento do passado no futuro, enquanto condicionante deste, que nos referimos ao passado na conduta. Mas, qualquer que seja o passado que construamos, este «nunca pode ser tão apropriado como a situação o exigiria» ( ibid , p.59). Se o acontecimento se caracteriza pela sua descontinuidade, e pelo novo que faz emergir, necessário se torna especificar a maneira como ele se relaciona, por um lado, com o que o condiciona e, por outro, com as nossas atitudes temporais que são a atenção, a presença e a recordação. Se é descontínuo, excede o que pôde condicioná-lo, ultrapassa as possibilidades previamente estabelecidas. Ou seja, não se inscreve em eventualidades determináveis antes da sua ocorrência, inscritas num contexto. Foi preciso que se produzisse para que a sua possibilidade aparecesse, para que a sua eventualidade se tornasse manifesta. «Surge antes de ser possível» (Maldiney, citado por Romano, 1999, p.169): é produzindo-se que ele manifesta a sua possibilidade e que revela diferentes potencialidades (porque as actualizou) e eventualidades (porque é possível inferi-las do que se passou) preexistentes. É, em certa medida, o que explica que ele seja não identificável e incompreensível num primeiro tempo: não se sabe o que se passa porque a serialidade do decorrer das coisas, que configura localmente uma parte do possível, é rompida, e não se compreende o acontecimento porque não podemos ainda inseri-lo num contexto, nem considerá-lo como resultado de um encadeamento serial. Há coisas que acontecem, e que julgávamos impossíveis de acontecer porque excediam o pensável ou o nosso sentido do possível. Ao acontecerem somos obrigados a reconhecer que havia possibilidades, potencialidades ou eventualidades. Podemos também imaginar o que poderia passar-se de diferente. Ou como é que as coisas terão podido produzir-se. Somos, portanto, impelidos a rever o nosso sentido do possível, a descobrir «os possíveis que eram os nossos», e a inscrever na ordem das eventualidades o que até então parecia impensável. Essa revisão do sentido do possível tanto diz respeito ao passado como ao futuro. Não só o nosso conhecimento do que é possível, mas também as nossas retrospecções e as nossas projecções, se modificaram à luz do acontecimento: há coisas que agora sabemos possíveis e podemos reinterpretar a nossa experiência passada tendo em conta essas mesmas coisas, tal como podemos tentar provocá-las ou evitar que se produzam (cf o adágio: «crer na infelicidade para evitá-
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la»). Enfim, o acontecimento pode afectar profundamente o horizonte dos possíveis que serve de pano de fundo ao traçar dos nossos projectos. É, por exemplo, o que sucede com uma catástrofe natural de grande dimensão: quando ela tem lugar, ultrapassa tudo o que julgávamos possível até essa altura. Ela muda o campo do possível que era o nosso. Mas qual a ordem de onde releva esse possível? Do ponto de vista científico, essa catástrofe faz parte, é certo, dos fenómenos perfeitamente explicáveis e, portanto, previsíveis. Não contraria, em nada, as leis estabelecidas ou os processos naturais identificados pela ciência. Pode, no limite, ir contra as previsões feitas a partir do conhecimento dessas leis ou desses processos, ou desiludir as expectativas. Pode, igualmente, trazer novas indicações sobre o estado de desenvolvimento dos processos em curso. Ou tornar visíveis novas possibilidades ou novas eventualidades no desenrolar dos processos (na deriva dos continentes, por exemplo). Mas importa distinguir entre essa ordem de possibilidades e a ordem de possibilidades humanas. Qual a diferença? 2. Excurso sobre o possível humano
Na sua trilogia – o virtual, o possível e o provável – G. G. Granger considera à parte o possível que constitui, afirma, «a categoria que convém aos nossos discursos sobre as acções e sobre as práticas individuais, tão pouco previsíveis, dos homens» (Granger, 1995, p.75), enquanto que a ciência se funda no virtual e no provável. Esses três metaconceitos têm em comum o serem formas do não-actual. É actual o que é efectivo, isto é, «esse aspecto do real que se nos apresenta como impondo-se à nossa experiência sensível, ou ao nosso pensamento do mundo, como existência singular hic et nunc» (ibid , p.13). É virtual «o que é possível sem presunção da sua realidade» ou da sua actualizibilidade. É possível «o não-actual na sua relação com o actual». Mais precisamente, a tomada em consideração do que é susceptível de entrar numa experiência sensível de sujeitos humanos, restringe, levanta obstáculos, ao jogo das virtualidades. Face a tais restrições, os objectos virtuais mais abstractos da ciência, construídos segundo «referenciais» desconectados da experiência sensível, podem representar objectos dessa experiência. Enfim, o provável é aquilo que estrutura e mede o possível. Designa «um grau da nossa expectativa do actual». Admite graus, contrariamente ao possível e ao virtual.
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Um dos argumentos de Granger consiste em dizer: as teorias formais do possível, que definem sistemas nos quais as modalidades se determinam mutuamente por relações de oposição e de complementaridade (por exemplo: o possível, o impossível, o necessário e o contingente), são de facto teorias do virtual, no sentido em que ele o entende. Os mundos possíveis, por exemplo, são mundos virtuais (portanto sem relação com o actual) configurados segundo referenciais puramente abstractos. Há também possíveis lógicos ou formais, sem qualquer ligação com o mundo das acções. Esse índice de desligamento é, para Granger, a dissociação da modalidade do possível relativamente à temporalidade, enquanto que, na linguagem ordinária, uma e outra aparecem ligadas entre si. Na linguagem ordinária, o possível está estreitamente associado a marcas temporais e relaciona-se, principalmente, com o momento presente da experiência de um sujeito. Granger estuda longamente a teoria dos verbos modais (por exemplo I can, I may, I will, I would ,
etc, em inglês) do linguista Gustave Guillaume, que destaca a
inseparabilidade, nas línguas, da expressão da modalidade, como a modalidade do possível, e da expressão temporal. Essa dimensão temporal verifica-se, entre outras formas, na referência do possível ao actual, no sentido temporal do termo: na prática, não se pode definir uma possibilidade sem supor um agora, sem dar conta desse «instante privilegiado para o locutor que é o ‘agora’» ( ibid ., p.52), momento singular e contingente a partir do qual se abrem possíveis. Esse nunc institui um corte na continuidade do tempo, e confere um sentido ao antes e ao depois onde possíveis podem ser configurados. Mas pode sublinhar-se, também, que se trata precisamente de um termo indexical, i.e. de um termo cujo sentido não é especificável independentemente do contexto da sua enunciação. O que tende a indicar que o possível é relativo a uma situação particular, e que a abertura dos possíveis «praticamente acessíveis» releva da própria dinâmica do desenvolvimento de uma situação (incluindo as expectativas e os projectos dos sujeitos). Uma exploração conceptual deste tipo permite observar a relatividade do possível não simplesmente a outras modalidades lógicas ou formais, interdefinindo-se num sistema de relações de oposição e de complementaridade, mas ainda a dimensões essenciais da acção: o tempo e a situação, a expectativa e o projecto. A realização da acção é, simultaneamente, abertura e fecho contínuos de possibilidades. A relatividade do possível ao campo da acção foi também posta em evidência, embora num aspecto completamente diferente, por um grande especialista contemporâneo da lógica modal, G. H. Von Wright, que estudou lógica das normas: uma lógica que, 9
precisamente, está em ligação directa com o domínio da acção. Ora, tratando-se de acção humana, diz Von Wright, é-se obrigado a especificar a categoria do possível, de maneira a destacar um outro tipo de possibilidade, ao lado da possibilidade lógica e da possibilidade física/natural: o «fazível» (Von Wright, 1995). A teoria de Von Wright é, também ela, uma teoria formal. A possibilidade define-se em relação com a necessidade e a contingência, sendo a impossibilidade uma figura da necessidade: se p é necessário, a negação de p é impossível («a necessidade é a impossibilidade do contraditório»). É relativamente a este sistema que Von Wright define o «fazível». Retenho dois aspectos da sua teoria: o laço do fazível com a contingência e a sua relação com a capacidade 1. «Um estado de coisas cuja obtenção, numa dada ocasião, é, ou necessária ou impossível, não é um estado fazível» ( ibid ., p.36). Para que uma coisa seja fazível, ela deve ser logicamente e fisicamente contingente. Se ela é logicamente ou fisicamente necessária, não é fazível, o que significa que é «humanamente impossível de a concretizar». O mesmo, quando ela é logicamente ou fisicamente impossível. Donde a definição de fazível: «Diremos que é fazível um estado de coisas que podemos produzir ou destruir, que podemos impedir de se produzir ou, quando ele existe já, impedir de desaparecer. Um estado é fazível quando a sua realização ou não-realização, numa dada ocasião, pode ser o resultado de uma acção humana». E Von Wright acrescenta: «O que um homem pode fazer, um outro homem pode não ser capaz de fazer. A ideia de um estado ‘fazível’ é, portanto, relativa à capacidade humana, que pode variar de uma pessoa para outra» ( ibid ., p.36). Convém, sem dúvida, alargar o sentido de capacidade, não a identificando unicamente com o poder-fazer. Nela se inclui, igualmente, uma dimensão de receptividade que diz respeito ao que alguém pode suportar, aguentar, sofrer e, ainda, aquilo pelo quê esse alguém pode ser afectado, tocado, etc., e ao que é que pode reagir, em função da sua constituição e da sua sensibilidade. A relatividade do possível à capacidade humana, na dupla dimensão passiva e activa, descobre um outro aspecto da conexão entre temporalidade e possibilidade. Esse aspecto foi salientado por C. S. Peirce na citação seguinte: «Diz-se que um homem sabe uma língua estrangeira. O que é que isso quer dizer? Apenas que, quando a ocasião se apresentar, as palavras dessa língua vir-lhe-ão ao espírito. O que não quer dizer que as 1
Sobre a epistemologia da contingência, ver Bubner, 1990: «Uma coisa aparece como contingente quando se espera uma finalidade. O contingente surpreende na medida em que parece intencional sem que, apesar disso, se possa encontrar um fim que justifique o facto dele se produzir […]. Rigorosamente falando, é contingente não o que pode apresentar-se de uma maneira ou de outra sem que isso se tenha já produzido, mas o facto de uma qualquer dessas possibili dades poder realizar-se sem razão» (ibid ., pp.4647).
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palavras estejam continuamente em estado actualizado no seu espírito. Mas nós só podemos dizer que ele não sabe essa língua no momento em que lhe vêm ao espírito as palavras particulares que ele deve pronunciar. Ora ele nunca poderia estar seguro de saber inteiramente essa língua se soubesse apenas a palavra particular necessária num dado momento. De maneira que o seu saber da coisa, que existe durante todo o tempo, não existe senão pelo facto de que, quando uma determinada ocasião se apresentar, uma ideia vir-lhe-á ao espírito» (citado em Chauviré, 1989). Uma capacidade (saber falar uma língua, jogar xadrez, calcular de cabeça…) não se reduz, portanto, a performances pontuais e intermitentes. Seria absurdo dizer que não sabemos jogar xadrez apenas no momento em que disputamos uma partida ou efectuamos uma jogada. Uma capacidade implica uma certa continuidade e permanência. Mas ela não se manifesta senão em situação e deve ser exercida quando a ocasião se apresenta (deve também ser exercida para não se perder, enquanto capacidade). A categoria da possibilidade aparece aqui como constitutiva da capacidade. Para que João exerça a sua capacidade de falar chinês, é preciso que ele disponha da ocasião para isso; que as circunstâncias – uma viagem à China ou um encontro com um chinês nas ruas de Paris – lhe forneçam a ocasião de exercer essa capacidade. A ocasião surge, então, como uma forma de possibilidade. Uma possibilidade que depende das circunstâncias, tal como se apresentam ou se descobrem. No entanto, a ocasião e a capacidade de falar chinês não garantem que João fale, efectivamente, chinês. Ele deve aproveitar a ocasião, tirar partido das circunstâncias e exercer a sua capacidade. Pode deixar fugir a ocasião ou ser impedido de exercer a sua capacidade (por um bloqueio psicológico, por exemplo). Onde nos conduz este pequeno exercício conceptual? A mostrar-nos, com maior clareza, o conjunto de obstáculos no âmbito do qual o possível humano ganha forma. É um possível que se nos assemelha porque, antes de mais, ele é relativo ao que pode entrar, sob a forma de uma existência singular hic et nunc, portanto, numa situação, na nossa experiência sensível ou no nosso pensar o mundo. É também relativo às nossas capacidades e às condições particulares do respectivo exercício que implicam, não só um sentido do possível, mas ainda um sentido do fazível e um sentido da ocasião, do momento propício, etc.. É relativo, enfim, a uma sensibilidade, a uma capacidade de ser afectado e de equilibrar a receptividade e a reactividade na organização da conduta, assim como a atitudes estabelecidas e a organizações de respostas e de hábitos (inclusive instituições).
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3. Uma inversão de perspectivas
Uma parte da compreensão do acontecimento tem origem na passibilidade 1 a seu respeito. Passibilidade não é passividade, no sentido ordinário do termo. Em francês a palavra não é de uso corrente contrariamente ao seu antónimo, a impassibilidade: é impassível aquele que não é susceptível de ser tocado, afectado, perturbado, emocionado pelo que lhe acontece e, por conseguinte, de suportar, de aguentar, de sofrer o que quer que seja. Pelo contrário, é a passibilidade que faz com que a confrontação com um acontecimento assuma dimensões de teste, isto é, de travessia, na qual, aquele que é visado pelo acontecimento, seja um indivíduo seja um colectivo, se expõe, corre riscos, perigos, põe em causa a sua identidade. Mas essa travessia é, também, um factor de individualização do acontecimento que nela encontra uma parte da sua significação. Podem distinguir-se duas modalidades de experiência dos acontecimentos, não dissociadas, contudo, na vida real. Digamos, prolongando a imagem introduzida por Arendt, que um acontecimento pode ser individualizado a montante e a jusante. Eis duas perspectivas distintas que, na maior parte das vezes, se combinam concretamente. Quando um acontecimento se produz, tratamo-lo como um facto no mundo, situável no tempo e no espaço. Identificamo-lo através de uma descrição. Descrevemo-lo especificando as suas circunstâncias (especificação que pode ser resumida ou alargada). Tentamos explicá-lo pela trama causal que o provocou, dar-lhe um sentido em função de um contexto prévio que o torne compreensível, socializar a surpresa que ele constitui atribuindo-lhe
“valores
de
normalidade”
(tipicidade,
comparabilidade
com
acontecimentos passados similares, previsibilidade à luz das possibilidades do contexto, necessidade de ocorrência, etc.). Desse ponto de vista, o acontecimento é apreendido como um fim, como o ponto de chegada de um encadeamento serial. É relativamente transparente à luz das possibilidades de explicação e de interpretação oferecidas pelo contexto. Além disso, aparece fechado quando concluído. É inteiramente contido no presente da sua ocorrência. Não o transborda. Inscreve-se bem no tempo: tem um início, um fim e uma certa duração. Pode ser situado e datado com precisão, através de utensílios convencionais de medida do tempo e de localização no espaço. Podem medir-
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NT: Neologismo que designa a qualidade do que “é passível de”. Designaremos a negação dessa qualidade por impassibilidade.
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se, também, as distâncias entre os acontecimentos; verificar se são contemporâneos ou não; construir séries ordenadas em função do antes e do depois. Enquanto facto no mundo, inscrito no tempo, o acontecimento implica uma modalidade particular de experiência. Poderá ter sido esperado e, quando produzido, satisfazer ou desfazer as esperanças, validar ou contrariar as previsões, preencher ou desiludir as expectativas (uma expectativa está sempre ligada a um contexto ou a uma situação). Poderá ter sido observado, no próprio momento da sua produção: alguém pode ter assistido a ele, esperando os seus desenvolvimentos e retendo as fases passadas, conservando a ocorrência presente no campo da sua atenção à medida em que se ia produzindo; alguém poderá ter sido, dele, contemporâneo; alguém terá podido memorizá-lo e fazer dele o objecto das suas recordações. Mas esse alguém pode ter sido incapaz de saber no próprio momento, no próprio lugar, o que se passava e ter-se visto obrigado, portanto, a recorrer a uma fonte exterior ou a aguardar o desenrolar da situação para identificar o acontecimento que testemunhou. Acontecimento que pode ter sido apercebido segundo diferentes pontos de vista. E que pode, até, não ter constituído o mesmo acontecimento para todos os que a ele assistiram. Enfim, o acontecimento foi, sem dúvida, dotado de um certo valor e de uma determinada significação, qualificado como acontecimento insignificante ou marcante, eventualmente revestido de um sentido que não tinha à partida. Terá podido tocar sujeitos, individuais ou colectivos, fazer vítimas e sobreviventes, provocar, nos indivíduos e nas colectividades, sensações, emoções e reacções, satisfazer ou desiludir, alegrar ou horrorizar, satisfazer ou desesperar, aterrar ou traumatizar, alterar as “vivências” para o bem ou para o mal, resolver a situação das pessoas ou colocar-lhes novos problemas. Por outro lado, tendemos também a considerar os acontecimentos como começos. Deixam, então, de ser apreendidos na sua origem, com um passado e numa trama causal. A sua significação já não é derivada de um contexto pré-definido: constituem o seu próprio contexto de sentido. É uma inversão de perspectivas que se produz. Ou uma conversão do olhar: em vez de ser o contexto no qual o acontecimento se produziu a esclarecê-lo, passa a ser o acontecimento a esclarecer o seu contexto, a modificar a inteligência de acontecimentos ou de experiências anteriores, a revelar uma situação com os seus horizontes, a descobrir «uma paisagem inesperada de acções e de paixões» (Arendt), a fazer surgir possibilidades e eventualidades insuspeitas, a projectar a sua luz sobre o que o terá precedido e sobre o que lhe poderá seguir. Em síntese: o
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acontecimento passará a projectar um sentido novo sobre o mundo. Sentido do qual ele será a origem. A individualização do acontecimento, assim apreendido, excede o momento da sua ocorrência: o acontecimento continua, de facto, a ocorrer e a singularizar-se enquanto produzir efeitos sobre aqueles que afecta. Não efeitos causais, mas efeitos na ordem do sentido. Isso só é possível porque o acontecimento não só acontece, mas acontece a alguém. Que pode alegrar-se, se o acontecimento for feliz. Que pode suportá-lo se for infeliz. Que pode responder a ele e, mesmo, responder por ele. Como passar do «acontecer» a «acontecer a»? E como definir aquele a quem o acontecimento acontece? Em «acontecer a», existe a ideia da implicação de um qualquer ser; desse ponto de vista, um acontecimento atinge habitualmente uma pluralidade de seres, animados e inanimados, humanos e não humanos, como podemos constatar no caso de uma catástrofe natural. Existe também a ideia de uma mudança, de uma transformação de um qualquer substrato, seja ele um substrato material ou pessoal. Mas a transformação ressentida por um objecto material, no quadro de um acontecimento, não dá lugar a uma experiência «tida» por esse objecto, pela razão simples de que o objecto é, sem dúvida, indiferente a essa transformação. Certos objectos podem, no entanto, reagir à transformação que os afecta. Mas, mesmo neste caso, não podemos, propriamente, falar de experiência. Só há experiência quando há transacção entre duas coisas que não são exteriores uma à outra, por exemplo, entre um organismo e o meio ambiente que o rodeia, em que cada um é afectado pelo outro e reage segundo a sua constituição. É, precisamente, graças a essa transacção possível que o acontecimento é um fenómeno de ordem hermenêutica: pode ser palco de encontro, interacção, confrontação, determinação recíproca. Não significa isto que aquele a quem o acontecimento afecta exerça sobre o acontecimento um poder de definição ou de controlo. A individualidade do acontecimento não é determinada, apenas, pelas características da sua ocorrência como facto, mas também pelas reacções e pelas respostas que suscita, via uma compreensão e uma apropriação, seja qual for o suporte. Não deve, por isso, conceberse o poder de afecção do acontecimento como um poder causal, por exemplo, como um poder de alterar causalmente o vivido do sujeito, individual ou colectivo, de provocar nele sensações, emoções ou reacções. Da mesma forma que não é causado por nada – na medida em que represente uma descontinuidade –, o acontecimento não causa nada, no sentido estrito do termo. Aquele a quem o acontecimento acontece parecerá afligido, 14
desolado ou, pelo contrário, radiante, alegre etc.. Não se tratarão de sentimentos provocados pelo acontecimento? Sem dúvida que sim. Mas trata-se também, trata-se sobretudo, de qualidades que, em virtude do acontecimento, impregnam as situações que o envolvem, afectam e modificam os seus elementos constitutivos assim como as relações entre eles, penetram e coloram tudo o que está implicado na experiência. Tratase, diz Dewey (1993, p.132) de qualidades difusas «únicas e inexprimíveis por palavras». O acontecimento entra, portanto, na experiência, não somente como facto mas ainda como termo de uma transacção. O acontecimento e aquele a quem ele acontece são, ambos, coisas que «se tornam» no quadro de uma transacção, embora o seu «tornar» seja muito diferente. Uma pessoa não se limita a suportar o acontecimento: respondelhe, salvo quando prevalece o suportar – ela pode então ser submersa pelo que lhe acontece, embrutecida ou siderada. O seu Lebenswelt (tudo o que tinha como natural, até aí), pode desmoronar-se ao ponto de ficar privada de todas as suas referências, paralisada pelo medo, transida pelo caos que o acontecimento instaurou. Portanto, incapaz de lhe responder. Quando pode responder-lhe, a sua resposta é mais do que uma simples reacção: a pessoa enfrenta o que lhe acontece. O que significa: apropriar-se do acontecimento em função do que ele é; integrá-lo na sua história e nos seus projectos; reconfigurar o seu futuro e o seu passado a partir dele e à luz dele; transformar-se, transformando em iniciativas suas o efeito de suportar que o acontecimento lhe impusera. Se o sujeito não pode ser a medida do acontecimento é, muito simplesmente, porque ele advém a si mesmo, a partir do que lhe acontece, e através do trabalho que efectua sobre o acontecimento. Mas, por outro lado, o próprio acontecimento é transformado por este género de apropriação. Por isso é que os acontecimentos se nos assemelham. São relativos ao que nós somos, às nossas capacidades e ao nosso sentido do possível, à maneira como somos afectados e ao nosso poder de resposta, aos nossos hábitos e à nossa sensibilidade. Tudo coisas que são sociais. Configuram-se em função do que lhes fazemos, da forma como lhes respondemos e como deles nos apropriamos. Contudo, o nosso poder de acção sobre o acontecimento é limitado já que, uma vez realizado, não temos o poder de o modificar, de fazer com que ele não tenha sido o que foi (por exemplo, um cataclismo com milhares de vítimas). O que teve lugar, teve lugar. Ele poderia não ter tido lugar, ou ter tido lugar de forma diferente e, portanto, ter tido consequências diferentes. Mas uma vez que teve lugar, não podemos modificá-lo. Como não podemos modificar a ordem temporal do que se passa. O passado que condiciona o 15
presente é objectivo: faz parte do ambiente ao qual nos ajustamos. Num sentido, ele não depende de nós e foi preciso que ele tivesse tido lugar, da forma como o teve, para que o presente actual tivesse tido lugar, também da forma como o teve. Mas num outro sentido, ele depende de nós: podemos compreendê-lo de uma certa maneira, fazer dele um outro acontecimento, reconfigurá-lo através da maneira pela qual o apropriámos. O acontecimento assim apreendido já não é só um facto no mundo, composto de dados actuais e susceptível de ser explicado causalmente, ou interpretado à luz de um contexto. Produz-se contra toda a expectativa ou previsão. Abre possíveis e fecha outros. Revela eventualidades e potencialidades que não estavam prefiguradas no mundo antes do acontecimento – nunca se tinha imaginado que tais coisas pudessem passar-se e com tais consequências. Reconfigura o mundo, passado, presente e futuro, dos que a ele se expõem e por causa dele sofrem. De notar que os acontecimentos podem ocasionar gozo, se são felizes ou se satisfazem as esperanças para lá das expectativas. Mas parece que o seu poder de revelação e de transformação é mais importante quando são adversos. Retomamos, a este propósito, a constatação de R. Koselleck sobre a dissimetria, no que toca ao conhecimento da história, entre vencedores e vencidos. Os ganhos históricos de conhecimento, provêm sobretudo dos vencidos. Essencialmente pela razão seguinte: ser vencido é uma experiência original caracterizada, nomeadamente, pelo facto de que «tudo aconteceu diferentemente do previsto ou esperado». Os vencidos são levados, então, a procurar as causas, de longo e médio prazo, ou as transformações estruturais de longa duração, que expliquem porque é que as coisas se passaram diferentemente do previsto ou esperado. «A condição de vencido detém, visivelmente, um potencial inesgotável de crescimento do conhecimento» (Koselleck, 1997, p.247). Os vencedores, esses, não se interessam pelo longo prazo: «a sua história baseia-se no curto prazo» (a série imediata de acontecimentos que lhes deu a vitória) e as suas explicações visam, sobretudo, legitimar os seus feitos. O acontecimento que acontece a alguém é, portanto, muito mais do que um facto que pode ser dotado de sentido ou de um valor por um sujeito, em função dos possíveis prévios de um contexto: é, ele próprio, portador ou criador de sentido. Transporta, com ele, «as condições da sua própria inteligência» (Romano, p.147). Transforma o campo dos possíveis daqueles que atinge. Abre um horizonte de sentido, em particular introduzindo novas possibilidades interpretativas, concernentes tanto ao passado como ao presente e ao futuro. Não pode, por isso, ser enclausurado no momento e nas 16
circunstâncias da sua ocorrência: transborda-os, espacialmente e temporalmente. Espacialmente, porque os seus efeitos podem estender-se a lugares muito distantes daquele em que ocorreu. Temporalmente, porque se alonga para o futuro e para o passado. Para o futuro, porque é só posteriormente, com um certo atraso, via os efeitos produzidos, as consequências, as situações criadas e reveladas, as respostas suscitadas que ele pode ser verdadeiramente compreendido. Para o passado, porque, para além de que só emerge graças ao acontecimento, este permite descobri-lo sob um novo dia, devido ao ponto de vista inédito que fornece e aos recursos interpretativos que transporta. Por isso, o acontecimento não se produz somente no tempo: ele dá também «o tempo a ver-se». Sob este aspecto, o acontecimento apela para outras atitudes ou para outras modalidades de experiência que não o facto que, localizável e datável, se presta, como já se viu, a expectativas e a antecipações, a uma presença contemporânea e à produção de recordações. Com efeito, a sua ocorrência não pode ser datada como a de um facto. Produz-se contra toda a expectativa e rasga a trama de expectativas. Não tem o estatuto de um facto do qual nos podemos recordar, porque se define pela experiência que ocasiona: ora, se uma experiência pode conservar-se na memória, esta é diferente da recordação de um facto que se pode reter por referência ao seu contexto. Uma das características da experiência é, justamente, a de colocar o passado à distância, quando não esquecer o detalhe dos factos. Enfim, não é possível assistir a um tal acontecimento ou ser contemporâneo da sua realização, posto que ele não está presente na experiência, senão quando ele já teve lugar e quando ele se manifesta com a antiguidade do que teve lugar desde sempre: «É portanto enquanto passado que ele adquire, retrospectivamente, a presença que é a sua» ( ibid ., p.181). Essas características temporais são importantes porque especificam o modo de experiência ao qual se presta o acontecimento enquanto fonte de sentido. O acontecimento só pode ser compreendido a partir do seu futuro e da sua posteridade. Recolhe a sua individualidade do futuro e do destino que abre. Em contrapartida, o facto pode ser compreendido a partir do seu passado e da sua ascendência. A confrontação com um tal acontecimento é uma verdadeira experiência que consiste, como vimos, numa articulação entre um suportar e um agir, via uma exploração da situação revelada ou criada pelo acontecimento, assim como dos possíveis que ele descobriu ou reconfigurou. Mas como conceber o suporte de uma tal experiência? É preciso afastar a ideia de que a experiência seria a de um sujeito recebendo sensações ou 17
impressões e conferindo significações e valores aos factos a partir de uma perspectiva fechada. O sujeito não é a medida do acontecimento. De contrário, não haveria acontecimento possível, dotado de um poder de revelação e de um potencial de inteligibilidade: haveria apenas factos revestidos à posteriori de um sentido que antes não possuíam. Não é assim que os acontecimentos se inscrevem na ordem dos sentidos: são os acontecimentos que projectam um sentido sobre as situações e reconfiguram as possibilidades, para sujeitos dotados de uma certa sensibilidade e de hábitos. O acontecimento proporciona uma transacção e, a partir daí, dá lugar a uma experiência. Experiência «tida» (para falar como Dewey), que é fonte de identidade, ao mesmo tempo para o acontecimento e para quem, por ele, é atingido. A experiência é, pois, aquilo pelo qual um sujeito e um mundo se constituem, confrontando-se com o acontecimento, na articulação mais ou menos equilibrada de um saber e de um agir. Abrindo um horizonte de sentido, transportando com ele possibilidades interpretativas, o acontecimento permite, ao que a ele se encontra exposto, descobrir algo de si próprio e da sua situação, aprofundar a sua compreensão de si e do mundo. Porquê? Porque, enquanto paciente, ele próprio está implicado, senão investido, no que lhe acontece. Ele compreende-se à luz do que lhe acontece. A sua própria história está em causa nos acontecimentos que o afectam. Terá que os apropriar, que os incorporar na sua história e no seu projecto de vida. Terá de responder a eles e responder por eles. Neste perspectiva, os acontecimentos são uma das fontes do sujeito – acontecem a quem constrói a sua ipseidade apropriando-se deles -, ao mesmo tempo que a sua individualidade depende das experiências que ocasionam. Acontecimento e sujeito surgem, assim, em conjunto, ligados inextrincavelmente: a singularidade do acontecimento e a ipseidade dos que o sentem são tecidas em conjunto, até porque é através da sua apropriação por indivíduos ou colectividades que o acontecimento adquire a sua identidade e a sua significação próprias. 4. O carácter critico do acontecimento
Nesta última parte, gostaria de analisar a maneira como o poder hermenêutico do acontecimento é crucial para a organização da conduta e para o cumprimento da acção, nomeadamente da acção colectiva. Espero poder assim esclarecer um pouco mais o trabalho dos media, no tipo de sociedade em que nos situamos.
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Para evidenciar o poder hermenêutico do acontecimento e fazer deste uma fonte autónoma de sentido e de inteligibilidade, ligada à descontinuidade que lhe está inerente, tendi a isolar o acontecimento da situação de conjunto em que ele aparece. Ora, na experiência real, não existe um acontecimento isolado: « Um […] acontecimento é sempre uma porção do mundo do qual se faz a experiência - uma situação. O objecto singular aparece em relevo, devido à sua posição particularmente focal e crucial num dado momento, na determinação de qualquer problema de uso ou de gozo, apresentado pelo ambiente complexo total. Há sempre um campo onde se produz a observação deste objecto ou desse acontecimento. A observação deste último, serve para descobrir o que é esse campo por referência a uma qualquer resposta activa de ajustamento que se deva fazer para promover um tipo de comportamento 1 […]. No inquérito de senso comum, não se tenta conhecer o objecto ou o acontecimento enquanto tal, mas somente determinar que sentido tem, relativamente à maneira segundo a qual devemos abordar a situação inteira […]. O objecto ou o acontecimento em questão é apercebido como uma porção do mundo circundante, não em si e por si; é apercebido como algo de válido se age como chave e como guia no uso e no gozo. Vivemos e agimos em conexão com o acontecimento existente, não em conexão com objectos isolados, mesmo quando uma coisa singular pode ter um sentido crucial para decidir sobre a maneira de responder ao ambiente total» (Dewey, 1993, p.128/129, trad. mod.) 2. A observação e a interpretação de um acontecimento singular efectuam-se pois numa situação ou num campo e são orientadas por uma intenção prática: determinar uma «resposta activa de ajustamento que se deva fazer para promover um tipo de comportamento» (pode suceder que o desânimo, a desorientação ou o medo sejam tais que impossibilitem qualquer reacção). Nesse quadro, o acontecimento tem um poder de esclarecimento e um «sentido discriminatório»: a sua observação permite descobrir o campo do qual ele faz parte, identificar a situação na qual ele se insere, referente a um problema submetido ao inquérito. Na sua singularidade, o acontecimento é mesmo o pivot do inquérito sobre uma dada
situação, porque representa o que é crítico, no sentido
literal do termo: permite fazer diferenciações e distinções, estabelecer oposições e contrastes, gerar alternativas e escolher respostas apropriadas. Esse fenómeno encontrase em níveis muito diferentes. Encontramo-lo, primeiramente, na organização de 1
NT: “train de comportement”, no original em francês. Por “problemas de uso e de gozo” ( use-enjoyment ), Dewey entendo o facto de se poder apreciar uma situação, sentir prazer com essa situação, mas também de utilizar algumas das suas condições para afastar o sofrimento. 2
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qualquer actividade da vida corrente que resulte de uma situação de conjunto orientada para um fim, por exemplo, a conclusão de um processo em curso ou a resolução de um problema prático. Essa actividade, põe em jogo objectos que mudam continuamente. Alguma coisa se passa em permanência, e o novo surge incessantemente. A cada fase da actividade, a atenção e o inquérito debruçam-se sobre coisas singulares tais como se apresentam ( isto, aquilo , aqui, agora), porque é através delas que se pode avaliar a evolução da situação referente ao problema que se quer resolver, e que as escolhas podem ser feitas com vista à obtenção de certas consequências e a atingir o fim visado. Mas os micro-acontecimentos e as modificações que neles se produzem, não constituem um «panorama mutante de aparecimentos e de desaparecimentos súbitos»; são integrados na e pela situação de conjunto que determina a serialidade da actividade. Encontra-se um fenómeno de integração equivalente na «construção da intriga» 1. Esta, pode assumir formas diferentes e não passa necessariamente por uma construção da narrativa2. Duma certa maneira, todas as situações têm uma estrutura de intriga: qualquer coisa se enlaça, num dado momento, devido a um acontecimento ou a uma iniciativa humana, para, em seguida, se encaminhar progressivamente para um desenlace resultante de contingências, peripécias, mudanças de situação, alterações do acaso. Os acontecimentos que se produzem neste tipo de situação, caracterizam-se pelo seu poder de esclarecer o contexto do conjunto, de revelar os estados de coisas existentes e de retomar os processos em curso. Parte do seu valor e da sua significação provem da sua contribuição para a progressão da intriga (podem torná-la mais complexa, como podem retardar ou acelerar o respectivo desenlace) e das discriminações que permitem operar. A nossa existência individual e colectiva é assim, em grande parte, um encastramento de intrigas, que se imbricam ou se sobrepõem, à espera de desenlace – só algumas são narrativizadas. Muitas das nossas iniciativas, ou mesmo das nossas abstenções de acção, tal como muitos dos acontecimentos que nos sucedem, ligam intrigas nas quais nos encontramos mergulhados e cujo desenvolvimento não controlamos integralmente. A maioria dos acontecimentos que retêm a nossa atenção, retêm-na em função da sua pertença a tais intrigas. Mas, por
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“mise en intrigue” no original em francês. “mise en récit”, no original em francês.
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outro lado, é à luz desses acontecimentos que se forma a nossa compreensão da evolução das intrigas. Uma intriga não é só uma acção (no sentido dramático do termo), ou uma história em torno de um tema. Frequentemente, ela também representa uma situação problemática, isto é, uma situação caracterizada por tensões, conflitos ou contradições, ou pela discordância entre os seus elementos, que impedem que se chegue a uma solução mediante a adopção de condutas apropriadas. Está-lhe subjacente um problema a resolver. Problema que, uma vez circunscrito, vai originar um inquérito com vista a defini-lo, analisá-lo, encontrar-lhe uma solução. Muitas vezes, porém, um problema é formado de uma multiplicidade de elementos constitutivos, dispostos numa relação de integração, ao mesmo tempo que se entrelaça com outros problemas conexos. Podemos falar, então, de um campo problemático. Diversos campos problemáticos constituem, assim, a trama da vida de um indivíduo num dado momento (problemas de saúde, de trabalho, de casal, de filhos, de dinheiro, etc.. Problemas ligados aos diversos empenhamentos e às iniciativas lançadas. O mesmo para a vida de uma colectividade, qualquer que seja a sua extensão (uma família, um laboratório de investigação, uma universidade, uma colectividade territorial ou nacional, uma comunidade religiosa, etc.). Tal como se integram nas intrigas, contribuindo para o seu desenvolvimento, os acontecimentos ganham um lugar em campos problemáticos e servem, pelo seu poder de esclarecimento e de discriminação, de pivots dos inquéritos que procuram e elaboram soluções. Ou, para retomar uma definição de G. Deleuze (1969, p.72) que evoca as considerações de Dewey referidas supra , os acontecimentos «são singularidades que se desdobram num campo problemático, e na vizinhança das quais se organizam soluções». Se a maior parte dos acontecimentos se inscreve em campos problemáticos já constituídos, que perduram enquanto os problemas e as respectivas causas se mantêm, também novos campos problemáticos se constituem com a emergência de acontecimentos, nomeadamente a partir do trabalho realizado em torno deles, explicitando o que está em causa, no âmbito da regulação política das condições de viver-conjuntamente numa colectividade (publicização). Foi preciso o atentado do 11 de Novembro de 2001, em Nova Iorque, para colocar, em termos novos, o problema da segurança interior/exterior dos Estados Unidos e o problema do terrorismo. Em França, a questão do porte de véu nas escolas, tal como foi encarada e tratada por uma lei recente, é o resultado de todo um processo de problematização e de publicização duma 21
série de incidentes locais que se produziram há diversos anos nalguns colégios ou liceus. Esse campo problemático elabora-se, evidentemente, em relação directa com os inquéritos em curso sobre problemas conexos: o dos espaços suburbanos, por exemplo, mas também o da integração das populações geradas pela imigração ou o da luta contra todas as discriminações. A constituição e a evolução de um campo problemático público, são processos complexos, em grande parte entregues à contingência, juntamente com os inquéritos que exploram o potencial de inteligibilidade e de discriminação dos acontecimentos. Somos, por vezes, levados a considerá-los como produtos mediáticos. O papel dos media é, sem dúvida, decisivo enquanto suportes, por um lado, da identificação e da exploração dos acontecimentos, por outro, do debate público através do qual as soluções são elaboradas ou experimentadas. Mas importa sublinhar o carácter distribuído do inquérito que está na base de toda a problematização. Todos os tipos de actores sociais, desde os cidadãos militantes aos peritos e pesquisadores em ciências sociais, passando por sindicalistas, homens políticos e funcionários, eventualmente polícias e magistrados, e todo o tipo de agências, instituições e organizações contribuem para ele. Não há coordenação organizada dessas participações. A coordenação faz-se através do debate público cujos suportes e arenas são múltiplos, ou através de concertações que concretizem as decisões tomadas aos mais diversos níveis e destinadas a dar solução aos problemas. Numerosos autores contemporâneos denunciaram a degradação do acontecimento efectuado no e pelo dispositivo mediático da informação e inquietaram-se face ao «presentismo» do «regime de historicidade» que a compreensão do acontecimento, subjacente a esse dispositivo, traduz (cf. Por exemplo, Hartog, 2003). Somos, dizemnos, diariamente submetidos a uma torrente de notícias que proliferam anarquicamente e que relatam acontecimentos ocorridos a outros, sem que possamos integrá-los na nossa própria experiência 1. É já o que denunciava W. Benjamim no seu tempo: «se a imprensa teve como objectivo permitir ao leitor incorporar na sua própria experiência as informações que lhe fornece, está longe de o ter conseguido. Mas é exactamente o contrário que ela pretende e que ela consegue. O seu propósito é o de apresentar os acontecimentos de maneira a que estes não possam penetrar no domínio onde se relacionam com a experiência do leitor. Os princípios da informação jornalística (novidade, brevidade, clareza e, sobretudo, ausência de qualquer correlação entre as 1
Retomo aqui os principais elementos do quadro crítico construído por C. Romano no fim do seu livro.
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notícias, tomadas uma a uma) contribuem para este resultado, exactamente como a paginação e a gíria jornalística» (Benjamin, 1979, p.153-154). W. Benjamim, considerava o público dos media como uma massa indistinta de espectadores indiferentes, alimentado por uma informação concebida para ser difundida massivamente,
relatando
pedaços
de
acontecimentos.
Apresentados
como
correspondendo às «últimas notícias», os acontecimentos são em regra, ou quase, desprovidos de novidade porque, para além de terem sido repetidos ao longo do dia pelos diferentes media, o seu carácter de descontinuidade foi erradicado. São já «completamente impregnados de explicações» (Benjamim). Logo, o seu poder hermenêutico é neutralizado: não há lugar nem para a compreensão do acontecimento, nem para a utilização do seu poder de esclarecimento, de revelação, de pôr à prova, onde prevalece a explicação causal e o comentário dos factos, onde a preocupação de se colar à actualidade impossibilita o menor distanciamento relativamente ao que se passou. A modalidade privilegiada de experiência da notícia é, portanto, a do choque instantâneo: a informação espanta-nos ou perturba-nos mas não se presta a nenhuma prova; desliza sobre nós sem nos atingir. Não há dúvida de que o acontecimento jornalístico apresenta, em parte, essas características (para uma análise mais precisa, cf. Arquembourg-Moreau, 2003). Mas isso não faz dele um «correlato de uma experiência degradada» (Romano, 1998, p.273). Um dos pressupostos constantes deste género de denúncia é individualista: não há experiência degradada senão comparativamente a uma experiência autêntica e esta é sempre uma experiência individual de confrontação com um acontecimento. Por outro lado, essa crítica repousa numa concepção inapropriada do público dos media, considerado como «uma massa amorfa e indistinta». Tal concepção não resiste às múltiplas investigações feitas, nas últimas décadas, sobre a recepção, mostrando que esta tem sempre um colectivo no horizonte: projecta um contexto social de apropriação e de discussão, e traduz-se pelo sentimento de pertença a um público; é retida num feixe de interacções que comandam as modalidades da atenção acordada às publicações e às emissões e passa por ajustamentos recíprocos segundo formas de sociabilidade directa; tem, como ambiente, uma circulação das interpretações nos quadros de interacção da vida quotidiana, no decurso da qual experiências singulares transformam-se em empenhamentos colectivos. Trata-se, claro, de contextos sociais: suscitam certas formas de empenhamento e recusam outras.
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A ideia de que as explicações e os comentários que «impregnam» os acontecimentos apresentados pelos media são um factor da degradação do acontecimento autêntico também não resiste ao exame. Esses comentários constituem uma das formas de desenvolvimento do inquérito que explora o potencial de esclarecimento e discriminação dos acontecimentos, já que problematizam as situações discordantes por estes criadas ou reveladas com vista a uma resolução. Não se pode fazer completamente justiça a este fenómeno sem se reinscrever o trabalho de informação feito pelos media num processo mais geral de configuração da acção colectiva num espaço público democrático, através da exploração das causas e das consequências dos acontecimentos em diferentes campos problemáticos, e a projecção das acções que o seu aparecimento incita a empreender. Essa exploração pode fazer-se recorrendo a controvérsias públicas – que são prova de verdade, rigor e justiça -, apresentadas ou organizadas nos e pelos media,
com a participação da maior diversidade de actores. É preciso, portanto, ter
cuidado para não isolar os media das outras agências ou instituições que exploram campos problemáticos à luz dos acontecimentos. Acrescentemos, para concluir, que uma tal exploração não se limita a esboçar soluções possíveis para os problemas formulados. Ela desenha, também, a figura do público atingido e interessado, tal como projecta o sistema da acção colectiva supostamente capaz de resolver os problemas. Por isso, ela propõe empenhamentos possíveis e categorias de acção e de análise a todos aqueles cuja implicação é julgada necessária para a resolução da situação. A partir daí, os acontecimentos abrem-se a uma experiência digna desse nome, e o público deixa de ser «uma massa amorfa e indistinta» porque, como lembrou R. Koselleck, a exploração e o inquérito são componentes importantes da experiência 1.
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«Num dos seus mais belos artigos, Jacob Grimm [1862] esclarece-nos sobre o sentido e a evolução da noção de experiência (erfahren, Erfahrung). Sublinha a significação primitiva activa, por assim dizer processual. Experiência tinha, antes de mais, o sentido de exploração ( Erkundung), de inquérito ( Erforschung), de verificação ( Prüfung). Nesta sentido, aproxima-se fortemente do grego historein que – para além da acepção segunda “contar” – significava simultaneamente “explorar” (erkunden) e “inquirir” (erforschen). […] Ter experiência quereria dizer “conduzir inquéritos”. Mas, para a época moderna, Grimm nota já uma deslocação, ou diferenciação, do conceito de experiência […]. No início dos Tempos modernos, a palavra “experiência” ( Erfahrung) foi amputada da sua dimensão activa, baseada na ideia de inquérito; a etapa “metodológica” da verificação foi posta entre parênteses ou suprimida. […] Uma restrição progressiva desenha-se no uso geral que tende a concentrar a noção de “experiência” no domínio da percepção sensível e do vivido. […]» (Koselleck, 1997, p.201-202).
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