PIERRE CHARRON (1541-1603)
Petit Traité
D E L AG E S S E L A S P equeno T r ra t ad o d e S abed or i ia
Tradução de MAR IA C CÉLIA V VEIGA F FR ANÇA
Pequeno tratado de SABEDORIA “Tendo feito alguma coisa bela, boa, útil e oficiosa ao público ou a um particular, aquele [o pedante] se comporta ambiciosamente. Faz que isto soe alto, repete-o freqüentemente, indagase acerca do que se diz e se zanga por não se fazer mais barulho e festa. Este [o sábio] suavemente escuta o que dizem, se contenta consigo mesmo por ter feito um bem e se gratifica por ter sido bem-sucedido e pela aprovação das pessoas de bem”. Pierre Charron
PERFIL DO AUTOR
Pierre Charron - Moralista francês, nascido e falecido em Paris (1541-1603), exerceu a advocacia durante algum tempo e depois dedicou-se aos estudos teológicos e ordenou-se religioso. Tornou-se um pregador de renome, famoso principalmente no n o sudoeste su doeste da d a França, onde o nde conheceu Montaigne, de quem se tornou amigo. Escreveu "As três Verdades" (1593), um tratado de apologética católica, "Discurso Cristão" (1600) e Tratado de Sabedoria" (1601), sua obra mais famosa, inspirada em Cícero, Sêneca, Bodin, Du Vair e especialmente, em Montaigne. Como este, Charron com bate a segurança e o orgulho da ciência humana, que se opõe à prud'homie, virtude feita de razão e de bom bo m senso.
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SUMÁRIO
Prefácio_................................................................................... 5 Capítulo_I................................................................................. 7 Capítulo_II.............................................................................. 14 Capítulo_III............................................................................ 34 Capítulo_IV............................................................................. 41 Capítulo_V.............................................................................. 49
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PREFÁCIO Tendo sabido e ouvido as diversas críticas que faziam contra meu Livro da Sabedoria, há pouco vindo à luz, achei que alguns falavam movidos pela fraqueza de espíritos vulgares e populares, que se ofendem não somente com aquilo que choca as opiniões comuns, mas também com o estilo livre e ousado do livro e com sua linguagem brusca e viril. Eu o havia previsto e dito em meu Prefácio, julgando que não poderia acontecer de outro modo, dado que a Sabedoria não é comum nem popular. Vindo a desacreditar e condenar com autoridade, iure suo singulari , as opiniões comuns e po pulares, em geral errôneas, errône as, ela - a Sabedoria - se expõe à rudez e à inveja do mundo.
ou fingirem não me compreender (e eu não quero abordar se há aí paixão e malícia misturadas), tomando as coisas de outra maneira, em outro sentido e de outra mão que aquela em que eu as dou, referindo ao direito e ao dever o que é fato, ao fazer o que é do julgar, à resolução e determinação o que é somente pro posto, agitado e disputado problemática e academicamente, atribuindo a mim e às minhas próprias opiniões o que é de outro; ao estado, à profissão e à condição externa, o que é do espírito e da suficiência interior; à religião e à crença divina, o que é da opinião humana; à graça e à operação sobrenatural, o que é da virtude e da ação natural e moral.
De modo algum é o livro para São sete os enganos que eu o comum e baixo escalão. Se observei em suas reclamativesse sido popularmente ções, dos quais eu me queixo. recebido e aceito, ter-se-ia Ora, em função de uns e ouencontrado bem decaído com tros que se ofendem com este relação a suas pretensões. Livro (pois há muitos que o Outras falas vêm do fato de julgam de outra maneira e, de não me compreenderem bem, boa vontade, o recebem e 5
Tratado serve tanto como prefácio para o livro, quanto como de aviso para o leitor. É também, em todo caso, mais leve e transportável, para servir àqueles que não gostariam de se dar ao trabalho de em pregar seu lazer em ler inteiramente o Livro, maior e incômodo.
acolhem humanamente), eu tomei a resolução de revê-lo, explicá-lo e amenizá-lo em vários lugares. Tendo feito isto, e estando a ponto de pu blicá-lo, pensei em redigir este pequeno Tratado, que contém um sumário daquele livro, uma pintura breve e geral da Sabedoria, e a declaração de minha intenção. Este
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CAPÍTULO I 1. Acerca da palavra Sabedoria, com uma descrição tosca e geral desta. 2. Divisão da Sabedoria. 3. Acerca da Sabedoria mundana. 4. Acerca da Sabedoria divina. 5. Acerca da Sabedoria humana, sua definição e comparação dos filósofos e teólogos com o propósito do autor. 6. Meio para obter essa Sabedoria humana. 1. Em relação à primeira e simples audição da palavra Sabedoria, todos em geral facilmente concebem e imaginam alguma qualidade, suficiência ou hábito não comum, nem popular, mas excelente, singular e sublime, acima do comum e do ordinário. Seja para bem ou para mal, pois ela é tomada e usur pada (talvez impropriamente) de ambas as maneiras: Sa pientes sunt ut faciant mala. E não significa apenas uma coisa boa e louvável, mas excelente, preciosa e singular no que quer que seja, com a qual se pode dizer Sábio tanto um tirano quanto um pirata, ladrão, quanto Sábio rei, pi-
loto, capitão, quer dizer: suficiente, prudente e distinto. E não simplesmente, comumente e popularmente, mas excelentemente e singularmente. Por isso se opõe à Sabedoria não somente a loucura, que é um desregramento e um vício - e a Sabedoria é uma regra bem medida e proporcionada, - mas também a vileza e sim plicidade comum e popular, pois a Sabedoria é sublime, rara, forte e excelente. Assim, seja no bem como no mal, a Sabedoria abrange duas coisas: suficiência, que é a provisão e guarnição de tudo o que é requerido e necessário, e 7
que ela esteja em muito alto grau.
três classes do mundo que dissemos, cada uma de acordo com seu alcance e seus meios. Mais própria e formalmente o comum - ou seja, o mundo fala da mundana, o filósofo da humana e o teólogo da divina.
Eis o que - ao primeiro sim ples som da palavra Sabedoria Sab edoria - os mais simples imaginam. A partir disso, admitem que existem poucos Sábios - que são raros, como o é toda excelência - e que a eles pertence o direito de comandar e guiar os outros; que eles são como oráculos, dos quais nos vem o provérbio de crer nos Sábios e se remeter a eles. Entretanto, definir bem a coisa de fato, e distingui-la por suas partes, nem todos sabem fazê-lo nem estão de acordo e não é fácil. O vulgo, os filósofos e os teólogos falam dela de diferentes maneiras: são as três etapas e classes do mundo. Estas duas procedem com ordem, regras e preceitos; a outra, confusa e muito impro priamente.
3. A mundana e mais baixa, diversa de acordo com os três grandes chefes desse baixo mundo: opulência, volúpia, glória, avareza, luxúria e am bição. Quidquid est in mundo est concupiscentia oculorum, concupiscentia carnis, su perbia vitae. É chamada por
S. Jacques de três nomes, Terrena, Animalis, Diabólica; é reprovada pela filosofia
e pela teologia, que a denomina loucura diante de Deus, stultam fecit sapientiam huius mundi . Ora, dela nada
é falado em nosso livro acerca da Sabedoria, senão para condená-la.
2. Ora, podemos dizer que há três tipos e graus de Sabedoria: a divina, a humana e a mundana, que correspondem a Deus, à natureza pura e inteira e à natureza viciada e corrompida. De todos esses tipos, e de cada uma delas, discorrem e falam todas estas
4. A mais sublime e mais excelente - que é a divina - é definida e tratada pelos filósofos e teólogos um pouco diversamente (eu desdenho e abandono aqui tudo o que acerca dela pode dizer o homem comum, como profano e indigno de ser ouvido sobre 8
tal coisa). Os filósofos a fa- se encontra senão nos justos e zem completamente especu- limpos de pecado. In malelativa, dizem que é o conhe- volam animam introibit sapicimento dos princípios, das entia. Desta Sabedoria divina primeiras causas e mais altos também não pretendemos motores de todas as coisas e falar aqui. Ela é, em certo mais altos motores de todas as sentido e medida, tratada em coisas e, enfim, da causa so- minha primeira verdade, e em berana que é Deus; é a Meta- meus discursos acerca da Difísica. Esta reside toda no vindade. entendimento, é seu soberano 5. Segue-se, pois, que é da bem e sua perfeição, é a pri- Sabedoria humana que nosso meira e mais elevada das cin- livro trata e de que leva o co virtudes intelectuais, que nome. Procuramos aqui, pois, pode existir sem probidade, primeiramente sua definição ação, e sem nenhuma virtude e, em seguida - para melhor moral. compreendê-la, - nós nos esOs teólogos não a elaboram tenderemos por uma explicade maneira tão especulativa, a ção e um quadro mais amplos ponto de não ser de forma e particulares, que serão como nenhuma prática, pois eles o sumário e o resultado de dizem que é pelo conheci- nosso Livro. mento das coisas divinas que As descrições comuns são se chega a um julgamento e a diversas e todas curtas. Aluma regra das ações humanas. guns, e a maior parte dos hoE fazem dupla a Sabedoria mens, pensam que é uma prudivina: uma é atingida pelo dência, discrição e comporestudo, e é mais ou menos tamento prudente nos negóciaquela dos filósofos que eu os e na conversa. Isto é digno acabo de mencionar; a outra, do homem comum que relaciinfusa e dada por Deus. De ona quase tudo ao exterior, à sursum descendens. É o priação, e não considera outra meiro dos sete dons do Espí- coisa senão o exterior. Ele é rito Santo. Spiritus Domini todo olhos e ouvidos, os mospiritus sapientiae, que não vimentos internos o tocam e 9
pesam para ele muito pouco. seja, com a Sabedoria divina e Assim, segundo eles, a Sabe- com o crer. Assim, os filósodoria pode existir sem pieda- fos se demoraram e se estende e sem probidade essencial: deram mais aí, regulando e é uma boa aparência, uma introduzindo não somente o doce e modesta fineza. particular, mas também o Outros pensam que é uma comum e o público, ensinansingularidade rude e espinho- do o que é bom e útil às famísa, uma austeridade contraída lias, às comunidades, às repúde opiniões, costumes, pala- blicas e aos impérios. vras, ações e modo de viverde tal forma que chamam, àqueles que são feridos ou tocados por este humor, filósofos. Em outras palavras, em bom jargão, extravagantes, esquisitos, heteróclitos. Ora, tal Sabedoria - de acordo com a doutrina de nosso livro - é, antes, uma loucura e uma extravagância. É preciso, então, aprender que é de outros e não do homem comum, a saber, dos filósofos e dos teólogos, que ambos trataram em suas doutrinas morais. Aqueles mais longa e propositadamente como sua verdadeira presa, seu assunto próprio e formal, pois eles se ocupam com aquilo que é da natureza e com o fazer. A teologia vai mais além, conta e se ocupa com as virtudes infusas teóricas e divinas, ou
A Teologia é mais mesquinha e taciturna nessa parte, visando principalmente ao bem e à salvação de cada um. Os filósofos a tratam mais delicada e agradavelmente, os teólogos mais austera e secamente. A Filosofia, que é a primogênita - como a natureza é a primogênita da graça - parece persuadir graciosamente e querer agradar aproveitando. Revestida e enriquecida de discursos, razões, invenções, agudezas engenhosas, exemplos, semelhanças; ornada com belos dizeres, apotegmas, palavras sentenciosas; paramentada com eloqüência e artifício. A Teologia - que veio em seguida - parece comandar e ordenar imperiosa e magistralmente. Certamente os filósofos foram excelentes nessa parte, não 10
somente por tratá-la e ensinála, mas ainda por representála, viva e ricamente, em suas vidas nobres e heróicas. Eu entendo aqui por filósofos e Sábios não somente aqueles que levaram o nome de Sá bios, como Tales, Sólon, os outros que tiveram envergadura e os do tempo de Ciro, Creso, Pisístrato. Também aqueles que vieram em seguida e ensinaram em público, como Pitágoras, Sócrates, Platão, Aristóteles, Aristipo, Zenão, Antístenes, todos chefes de partido, e tantos outros seus discípulos, diferentes e divididos em seitas. E ainda todos os grandes homens que faziam profissão singular e exemplar de virtude e sabedoria, como Fócio, Aristides, Epaminondas, Alexandre que Plutarco chama tanto de Filósofo quanto de Rei dos Gregos. Os Fabrícios, Fábios, Catões, Torquatos, Régulos, Lélios e Scipiões: romanos que em sua maioria foram generais de exército. Por essas razões eu sigo e emprego em meu livro, de melhor grado, a opinião e o dizer dos filósofos, sem toda-
via omitir ou rejeitar a dos teólogos, pois também em substância eles estão todos de acordo e muito raramente têm diferenças, e a Teologia não desdenha empregar e fazer valer os belos dizeres da Filosofia. Se eu tivesse empreendido instruir para o claustro e para a vida conciliar, ou seja, para a profissão dos conselhos co nselhos Evangélicos, ter-me-ia sido necessário seguir ad amussim, a opinião dos teólogos. Mas nosso livro instrui para a vida civil e forma um homem para o mundo, ou seja, para a Sabedoria humana e não divina. Dizemos, então, naturalmente e universalmente com os filósofos e com os teólogos, que esta Sabedoria humana é uma retidão, bela e nobre composição do homem inteiro em seu interior, seu exterior, seus pensamentos, palavras, ações e todos os seus movimentos. É a excelência e perfeição do homem como homem, ou seja, segundo leva e requer a lei primeira, fundamental e natural do homem. Da mesma forma que dizemos ser uma obra bem feita e excelente quando ela 11
está completa em todas as suas partes e quando todas as regras da arte foram nela observadas. Homem Sábio é aquele que sabe com excelência fazer o homem. 6. Para chegar a essa fortuna e adquiri-la, há dois meios. O primeiro está na conformação natural e no caráter primeiro, ou seja, no temperamento da semente dos pais. Em seguida, no leite nutritivo e na primeira educação em relação à qual se diz alguém ser bem ou mal nascido, ou seja, bem ou mal formado e disposto para a Sabedoria. Não se crê o quanto esse começo é poderoso e importante; pois se se cresse, ter-se-ia com ele um cuidado e uma diligência diferentes do que se tem. É coisa estranha e deplorável que se esteja em tal indolência, de não ter nenhum cuidado com a vida e com a boa vida daqueles que nós queremos serem nós mesmos. Nos assuntos menores, damos atenção e empregamos conselhos; aqui, no maior e no mais nobre, não pensamos senão por acaso ou por coincidência.
Quem é aquele que se inquieta, que consulta, que se coloca no dever de fazer o que é devido, se guardar e preparar como é necessário para criar filhos viris, sãos, espirituais e próprios para a Sabedoria - já que o que serve para uma destas coisas serve para as outras, e a intenção da natureza visa conjuntamente a tudo isto? Ora, é no que menos se pensa, e mal se pensa sim plesmente em fazer filhos, mas apenas em saciar seu prazer, como animais. Esse é um dos mais notáveis e im portantes erros que pode haver em uma República, do qual ninguém se adverte ou se queixa, e não há nenhuma lei, regra ou aviso público a esse respeito. É certo que, se se comportassem como se deve, teríamos outros homens e não os que temos. O que é requerido nisto e na primeira alimentação está dito em nosso terceiro livro, no capítulo quatorze. O segundo meio está no estudo da Filosofia. Eu não me refiro a todas as suas partes, mas à moral (sem, todavia, desprezar nem esquecer a 12
natural), que é a luz, o guia e a regra de nossa vida, que explica e representa muito bem a lei da Natureza, instrui o homem universalmente em tudo - no domínio público e no privado, só e em sociedade, para toda conversa doméstica e civil - tira e suprime todo o lado selvagem que está em nós, ameniza e domestica o natural rude, feroz e selvagem, habitua-o e afeiçoa-o à sabedoria. Enfim, é a verdadeira ciência do homem. Todo o resto, face a ela, é somente vaidade, e não é nem necessário nem útil, pois ela ensina a bem viver e a morrer bem, o que é tudo. Ensina uma brava prudência, uma hábil e forte preud’hommie1 e uma probidade bem avisada. 1
Nota Ádvena - Preud'hommie: Probidade, nobreza espiritual, delicadeza de caráter, senso moral íntegro e generoso, distanciamento racional e impassibilidade ataráxica. Personalidade independente, de serenidade inabalável e livre de conceitos anteriores e opiniões antecipadas, que permite viver sem sobressaltos, sem sentir-se perturbado pelas desgraças do mundo exterior ou pela ameaça religiosa de um inferno escatológico, “nascida em nós de suas própri-
Mas esse segundo meio é quase tão pouco praticado e mal empregado quanto o primeiro. Nem todos se preocu pam com essa sabedoria, tão atentos estão à vida mundana. Eis os dois meios de chegar à sabedoria e obtê-la, o natural e o adquirido. Quem foi feliz no primeiro, ou seja, quem foi favorecido pela natureza e tem um temperamento bom e afável, o qual produz uma grande bondade e suavidade de costumes, avançou bem no segundo. Sem muito esforço ele se encontra completamente propenso e disposto à sabedoria. Quem for constituído de modo contrário deve, com grande e laborioso estudo do segundo meio, recom por-se e completar o que lhe falta. Como Sócrates, um dos mais Sábios, dizia de si: que, pelo estudo da filosofia, tinha corrigido e endireitado seu mau natural. Que isto tenha sido suficientemente dito em geral de nossa sabedoria humana, o que é, e os meios de chegar até ela.
as raízes pela semente da razão univer sal impressa em todo Homem não desnaturado”. (Montaigne in Les Essais).
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CAPÍTULO II 1. Descrição ampla da Sabedoria por seus traços e ofícios pró prios, cujo primeiro é conhecer conhec er a si e à condição humana. human a. 2. Segundo, regular sua vida exterior segundo as leis e costumes. 3. Terceiro, isentar-se de erros populares e paixões. 4. Quarto, tudo julgar. 5. Quinto, não se obrigar a nada. 6. Sexto, preud’hommie essencial. 7. Sétimo, seguir em tudo a natureza, ou seja, a razão, a eqüidade universal. 8. Conclusão do dito acima. 9. Aviso de que a graça é necessária para conduzir a sabedoria humana para sua meta, perfeição e coroamento. Passemos agora a uma descrição mais ampla, clara e particular. Eu quero aqui apontar e delinear os verdadeiros e pró prios traços e esboços desta, considerando brevemente os principais ofícios e deveres que convêm ao Sábio, omni sui, et semper . Os traços comuns, dos quais todos partici pam, eu não os abordo, mas somente aqueles que, sendolhe peculiares, separam e elevam o Sábio acima do comum.
1. O primeiro traço consiste na inteligência, é conhecer bem o assunto que nós tratamos e tentamos formar para a Sabedoria - que é o homem. Por homem eu entendo tanto universal quanto particularmente a condição humana, ela própria. É uma ciência belíssima e útil como preliminar necessária. A primeira de todas as coisas é o conhecimento daquilo que temos em mãos e de que tratamos. Isto, porém, é bastante difícil, pois
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o homem é extremamente dissimulado e disfarçado, não somente de homem para homem, mas de cada um para si mesmo. Cada um sente prazer em se enganar, se esconder, se esquivar e trair a si mesmo - Ipis Ipis nobis furto subducimur, - gabando-se e se afagando para fazer rir a si mesmo, atenuando defeitos e adorando o que possui de bom. Ora, para tanto, é preciso primeiramente conhecer co nhecer todos os tipos de homens, de todas as aparências, climas, de todas as naturezas, idades, estados, profissões - para isto servem o viajar e a história, seus movimentos, inclinações, ações; não somente as públicas - elas são o de menos, pois são todas artificiais - mas as privadas e, especialmente, as mais simples e ingênuas, produzidas por seu movimento próprio e natural. Também todas aquelas que o tocam e interessam particularmente, pois nestas duas se descobre o natural em sua verdade, já que os homens as revelam todas juntas para delas fazer um corpo com pacto e um julgamento uni-
versal. Mas especialmente que o homem entre em si mesmo e se toque, se sonde bem atentamente sem se lisonjear, que ele examine cada pensamento, cada palavra e cada ação. Finalmente ele certamente aprenderá que o homem é, na verdade, por um lado uma coisa muito medíocre, fraca, lastimosa e miserável, e terá compaixão. Por outro lado, o encontrará todo inchado e empolado de vento de orgulho, de presunção e de dese jos, dos quais ele terá despeito, desdém e horror. Não quero me demorar mais neste primeiro ponto, pois é o assunto de meu primeiro livro, no qual por tantos meios diferentes, em todos os sentidos e para todos os usos, e certamente até o âmago da questão, o homem é descrito e representado. E com tal força que - para dizer a verdade, pois o sinto bem - muitos se ofendem e reclamam, se irritam que se diminua e se de precie tanto o homem, que antecipem a descoberta de suas vergonhas. E eu me queixo e grito que ninguém
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estuda para se conhecer, nem se preocupa com isto, apesar do que se diz e alardeia, ele não sente, não se move nem apreende. Quem é que confessa de boa fé não se conhecer? E onde está aquele que estuda seriamente para se conhecer? Ninguém é mestre de si mesmo, e menos ainda dos outros. Nas coisas não necessárias há tantos mestres e discípulos; nesta, não. Nós nunca estamos à vontade em nosso interior, mas sempre no exterior a distrair-nos. O homem conhece todas as coisas melhor do que a si. Que miséria! Eu vejo todos os dias pessoas que têm classe, que andam de cabeça erguida e dão lições aos outros - que, por fazerem disso profissão, têm reputação de virtude e de saber - tão co bertos e transbordantes de taras, de defeitos e de vícios, que todavia absolutamente não sentem, mas sim permanecem tão satisfeitos de suas pessoas. O que faríeis com relação a isto? Doença incurável, esta. Ora, unicamente o Sábio se conhece, e quem se conhece bem, Sábio é.
2. O segundo traço e ofício de sabedoria que compreende todo o exterior e as aparências, ou seja, tudo o que diz respeito ao público e ao alheio (palavras, ações, todos os desígnios e movimentos externos) é se regrar inteiramente no nível das leis, dos costumes, dos hábitos e das cerimônias de seu país, evitando cuidadosamente toda singularidade e particularidade extravagante afastada do comum e do ordinário, pois, qualquer que seja, ela sempre choca e fere outrem, e é sus peita de loucura, de ambição ou de hipocrisia. Ainda que tenha a alma doente e pertur bada, non conturbabit sapiens publicas mores, non po pulum in se novitate vitae convertet eadem, sed non eodem modo faciet, nec eodem propositio.
Eu desejo então que meu Sá bio caminhe sob a proteção das leis e costumes, sem dis putar ou hesitar, sem buscar dispensá-las ou encarecê-las para se fazer de d e bom servidor. Sem aumentar nem diminuir, isto não pelo amor delas e por serem elas justas e eqüitativas 16
- pois há muitas que não o são e, além disso, não é lícito contradizê-las ou consultá-las; se isso fosse lícito, tudo aca baria em confusão e desordem. Tudo simplesmente porque são as leis e costumes do país. Nem por temor, nem por po r superstição e nem por uma servidão imposta, escrupulosa e permeável a elas, mas por uma intenção e de maneira livre, nobre e elegante. Soli hoc sapienti contíngít, ut nihíl faciat invitus, recta sequitur gaudet officio.
O Sábio faz seu dever e res peita as leis. Não por causa delas, mas por si mesmo, pois ele está acima delas e não precisa delas, elas são requeridas para o homem comum. E se não as houvesse, ele não faria nada a menos e nada a mais, e nisto ele difere do homem comum, que não age bem sem as leis. At justo et
Sábio viverá sem ofender a outrem, sem chocar o público nem o particular e sem escandalizar os fracos, os imperfeitos e os populares. Todas essas condições fazem com que esse seja o segundo traço de sabedoria - de outra maneira ele seria o traço característico do homem comum - pois não há homem tão pequeno que não diga que se deve viver de acordo com as leis, mas Deus sabe como eles se comportam. Observando as leis, eles troçam delas, as ofendem e ultrajam, não estando de forma alguma contentes com sua observância e obediência, pois elas não são como eles querem e entendem.
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sapienti non est fex posita.
Ora, seguindo esta lição, o 2
Nota Ádvena – “Espíritos evoluídos se comportam com integridade por índole natural ou por ter consciência de que assim deve ser e não por medo do tacão divino, dos rigores da lei ou de qualquer outra ameaça”. (Persis Pacci in Primeira Luzes, pg. 261).
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3. O terceiro grande e verdadeiramente próprio traço da sabedoria - que diz respeito ao espírito e ao interior - é uma plena, nobre e generosa liberdade. Por ela o Sábio se afasta e se exime de todo erro e paixão, considera e julga todas as coisas, não se choca nem se agarra a nenhuma, mas permanece completamente franco, inteiro e contente consigo mesmo. Essa
liberdade é o cume, o próprio direito e privilégio do Sábio, que é o único verdadeiramente livre. Nisi sapiens liber nemo: stufti omnes et improbi servi .
acreditar nem seguir a opinião - que é uma louca, volúvel, incerta, inconstante, - é o guia dos loucos e do vulgar. Ao contrário, sempre e em todas as coisas se dispor segundo a razão, guia dos Sábios. Seguir a razão é a verdadeira liberdade e o verdadeiro domínio. Dura servidão é se deixar levar pela opinião. Isto já é se divorciar e romper com o mundo, que é coberto de erro, opinião e paixão. Mas o que se poderia fazer? Não se pode aproximar e aliar à sabedoria de outra forma. Retirar-se e se desviar do mundo é um preâmbulo, quando se quer saudar o umbral do santo sacrário da sabedoria. Odi prophanum vulgus et arceo.
Ora, essa liberdade Está em várias coisas, entre as quais contei três principais, que são três traços e ofícios da Sabedoria. Uma, que será o terceiro traço da ordem, é uma isenção e libertação de todas as coisas que perturbam, infestam e deterioram o espírito, se opõem à sabedoria e a impedem. É o que acontece com todos os erros populares, com as opiniões vulgares, fracas e, freqüentemente, falsas (nihil remotius à veritate quám vulgaris opinio), das quais o mundo está repleto, e 4. A segunda parte dessa lique nos atraem e recebemos berdade e quarto ofício do facilmente na sua freqüência Sábio é ver, considerar, exacontagiosa. E, além do mais, minar e julgar todas as coisas. as paixões que nascem em Nada deve escapar ao Sábio, nosso interior, como peque- que ele não coloque sobre a nos tiranetes, conduzem mal mesa e a balança. É o consenosso espírito. lho de um dos Sábios mais Para se proteger e se garantir divinos, omnia probata, quod contra esse miserável cativei- bonum est tenere. É, segundo ro e da mão desses inimigos ele, o privilégio honroso do externos e internos, é preciso Sábio e do homem espiritual. aprender e resolver-se a não Spiritualis omnia dijudicat et 18
a nemine iudicatur .
É a verdadeira ocupação, seu ofício verdadeiro e natural; é por isso que o espírito lhe foi dado, é por isso que ele é homem.
heróica parte escravizada pelo homem comum?
Ao público e comum deve contentar que se conforme a ele em todas as aparências. Que tem ele com meu interior Para quê, então? Para se en- meus pensamentos e minhas treter com vaidades e tolices e opiniões? Eles governarão o se alimentar delas, e fazer, quanto quiserem minha mão, como se diz, castelos na Es- minha língua, mas não meu panha, como fa.z f a.z todo homem espírito; este possui um outro comum: quis unquam oculos mestre. Não se saberia impetenebrarum causa habuit . O dir a liberdade do espírito e Sábio não se deve deixar le- do julgamento; querer fazê-lo var como um búfalo, não deve é a maior tirania que possa acolher opiniões sem entrar existir. O Sábio se preservará em análise e discussão, nem tanto ativa quanto passivareceber ligeiramente tudo que mente, se manterá em sua se lhe apresenta, ainda que liberdade e não perturbará a seja plausivelmente aceito por de outrem. todos. Isto é para os profanos, Ora, disso sucederá freqüenque não têm nem a força nem temente que o julgamento e a a coragem, nem a capacidade mão, o espírito e o corpo se de pesar, julgar, examinar. contradirão. E que o Sábio Aceito que se viva, fale, faça fará no exterior coisas que como os outros e como o ho- julga em seu espírito esp írito que seria mem comum. Mas não que se muito melhor fazer de forma julgue como o comum, ou diferente. Ele desempenhará seja, quero que se julgue o um papel em seu interior e comum. Que possuirá o Sábio outro em seu exterior, e deve e sagrado a mais que o profa- fazê-la para manter a justiça no, se ainda é necessário que em toda parte. Fazendo no ele tenha seu espírito, seu exterior - para a reverência julgamento, sua principal e pública e para não ofender ninguém - o que a lei, o cos19
tume e a cerimônia do país usam e requerem, ainda que isso não seja em si bom nem justo. Error comunís facit jus. E, julgando no interior o que é verdadeiro segundo a razão universal - para a reverência que deve a si, a seu julgamento e à razão - ele se dirigirá às coisas e aos fatos como Cícero se dirigia às palavras, ao dizer: "Eu deixo o uso do falar ao povo e me reservo a ciência das palavras." Loquendum et vivendum extra ut multi, sapiendum ut pauci .
Expliquemo-la por diversos exemplos. Eu tirarei humildemente meu gorro, e permanecerei com a cabeça desco berta frente a meu superior, pois assim manda o costume de meu país. Mas não deixarei de julgar que a maneira de saudar e fazer reverência do Oriente, levando a mão ao peito - sem se descobrir com prejuízo da saúde e se incomodar de diversas formas - é bem melhor. Por outro lado, se eu estivesse no Oriente, tomaria minha refeição sentado no chão ou apoiado sobre os cotovelos e meio deitado,
olhando a mesa de lado, como eles fazem lá, e outrora fazia o Salvador com seus Apóstolos; recumbentibus, discumbentíbus. Mas não deixaria de julgar que a maneira de se sentar ereto à mesa e o rosto reto em direção a esta - como a nossa - é mais correta, conveniente e cômoda. Estes exemplos são de pouco peso, e há milhares semelhantes. Tomemos alguns de maior envergadura. Eu quero e consinto que os mortos sejam enterrados e abandonados à mercê dos vermes, da podridão e do fedor, pois é hoje a maneira comum e quase geral em todo lugar. Mas não deixaria de julgar que a maneira antiga de queimar e recolher as cinzas é muito mais nobre e limpa. Dá-los e recomendálos antes ao fogo - o mais nobre dos Elementos, inimigo da podridão e do fedor, vizinho do Céu, signo da imortalidade, cujo uso é próprio e peculiar ao homem - do que à terra - que é a lia, o bagaço e o lixo dos Elementos, a sentina do mundo, mãe de corrupção - e aos vermes - que são a extrema ignomínia e horror -
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e, desta forma, emparelhar e tratar o homem da mesma maneira que o animal. A própria Religião ensina e ordena dispor assim de todas as relíquias, como do Cordeiro Pascal que não se podia comer, as Hóstias consagradas, as roupas pintadas com óleos sagrados. Por que não seria feito o mesmo com nossos corpos e relíquias? Eu vos rogo pensar algo pior, se puderes, do que colocá-los na terra para a corrupção. Isto parece que deveria ser feito para aqueles que são punidos pelo pior suplício e para as pessoas infames, e que as relíquias das pessoas de bem e de honra fossem mais dignamente tratadas. Certamente, de todas as maneiras de dis por dos corpos mortos, que resultam em cinco - ou seja, dá-los aos quatro Elementos, e aos ventres dos animais - a mais vil, baixa e vergonhosa é enterrá-los, e a mais nobre e honrosa é queimá-los.
face às coisas naturais, que ele esconda e cubra as partes e ações que chamamos vergonhosas. Se fizesse de outra maneira eu teria pavor e uma péssima opinião dele. Mas quero que julgue que, em si simplesmente e segundo a natureza, elas não são mais vergonhosas que o nariz e a boca, o beber e o comer. Havendo somente a natureza, Deus nada fez de vergonhoso: não é na natureza, mas no inimigo desta que está o pecado. A teologia - ainda mais pudica que a filosofia - nos diz que na natureza inteira e ainda não alterada pela ação do homem, elas não eram de maneira alguma vergonhosas. Não havia vergonha, ela é inimiga da natureza: é a raça do pecado. Eu me contento com esses quatro exemplos e concluo esta segunda parte acerca da liberdade do Sábio, que é examinar e julgar todas as coisas. O homem comum não é capaz disso; o que o impede é a forte prevenção e antecipação de opiniões, que o possuem inteiramente. Ele esta tão dirigido que não pode mais des-
Tomemos ainda um outro exemplo e toquemos em uma das reclamações contra meu livro. Eu quero e consinto que meu Sábio se faça de rogado 21
fazer-se delas, nem desdizê- e que, aquele que assim conlas, e pensa que isso não lhe é dena os outros, se tivesse nas permitido. De tal forma que cido e sido criado em outros, vive e age mais ou menos não os acharia melhores, e os como o animal - sem trazer aí preferiria a esses que ele conseu julgamento e exame - sidera agora como os únicos movido pela necessidade do bons? costume e da opinião anteci- O costume e a prevenção fa pada, assim como o animal zem tudo. Àquele que é louco por necessidade e instinto de o bastante para dizê-la, eu natureza. Ora, para julgar é responderei que este conselho preciso despojar-se de tudo, será então pelo menos para se colocar a nu, considerar as todos os outros, a fim de que coisas com sangue frio, como se coloquem a julgar e exase fossem propostas recém- minar tudo, e que assim facolocadas. zendo eles achem os nossos Ele se dispõe a julgar e pôr melhores. Mais ainda, já que sob exame as opiniões e ma- entre mil mentiras há uma só neiras de agir estrangeiras. verdade, mil opiniões de uma Por que não faz o mesmo com mesma coisa e uma só verdaas próprias? Não para mudá- deira, por que não examinaria las ou ser contrário a elas - eu com razão qual é a melhor, isto foi dito, - mas para sem- qual a mais verdadeira, mais pre buscar a verdade v erdade e exercer ex ercer razoável, mais útil, mais côseu ofício, que é julgar. É moda já que tenho espirito e possível que de tantas leis, sou homem para fazê-la? Socostumes, opiniões, cerimôni- bre este ponto falou-se o sufias diferentes e contrários aos ciente, com exceção de uma nossos que há no mundo, so- palavra que preciso acresmente os nossos sejam bons? centar, a fim de que não se Que todo o resto do mundo se enganem, e que servirá como tenha enganado? Quem ousa- passagem ao traço e ofício ria dizê-la? E quem duvida seguinte. É que este julgar e que os outros não dizem exa- examinar não é resolver, tamente o mesmo dos nossos afirmar, determinar, mas bus22
car a verdade - pesando e balanceando as razões de todas as partes, - procurar o mais verossímil. E é o que vamos dizer. 5. A terceira parte dessa li berdade e quinto ofício de Sabedoria que segue - e que é preciso juntar ao precedente é uma suspensão e indiferença de juízo. Por ela o homem, considerando tudo como é dito friamente e sem paixão, não se ofende nem se liga ou obriga a coisa alguma, mas se mantém livre, universal e aberto a tudo, sempre pronto para receber a verdade quando ela se apresenta. Adere, no entanto, ao que lhe parece mais verossímil, dizendo e atribuindo em seu julgamento interno e secreto o que os antigos diziam em seus julgamentos externos e públicos. Ita videtur . Assim parece, há grande aparência desse lado. Se alguém diz que é de outra maneira, ele responderá sem se comover. Pode perfeitamente estar pronto a escutálo, guardará sempre lugar para uma razão mais forte, não jurando sobre nada. É a modéstia acadêmica tão re-
quisitada ao Sábio, pela qual ele está sempre pronto para a verdade e a razão, sempre capaz destas quando elas se apresentam. Essa modéstia e essa suspensão retida vêm do precedente - que é tudo tu do julgar, - pois, examinando universalmente todas as coisas sem paixão, encontrar-se-á por todo lugar a aparência que pára e impede de precipitar seu próprio julgamento, e traz o temor da decepção. Os que não julgam não podem ter essa suspensão, tanto é que eles se ofendem de ouvir falar dela. Julgando os outros por eles mesmos, não acreditam de forma alguma que se possa aí permanecer sem perturbação e pena de espírito. Ora, ela é primeiramente fundamentada nestas proposições tão famosas entre os Sábios: não há nada de certo, nós não sabemos nada, a única certeza e ciência é que não há nada de certo - solum certum nihil esse certi, Hoc unum scio quod nihil scio, - nós unica-
mente buscamos, inquirimos, procuramos e tateamos em redor das aparências - scimus nihil opinamur verisimilia.
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A verdade não é de nossa aquisição, invenção nem apreensão. Mesmo se ela se entregasse em nossas mãos, nós não teríamos como reivindicá-la, assegurarmo-nos dela e possui-la, pois a verdade e a mentira entram em nós pela mesma porta, aí tomam o mesmo lugar e crédito, e aí se mantêm pelos mesmos meios. Não há opinião alguma tida por todos em todo lugar. Não há nenhuma que não seja de batida e contestada, que não haja uma contrária que não seja colocada e sustentada. Todas as coisas têm duas enseadas e duas caras, há razão em todo lugar e não existe nenhuma que não possua seu contrário.
Sábios, - do qual é dito, como discorre Plutarco, que ele não paria, mas m as servia de parteira a todos os outros que fazia parir.
A razão humana é de um chumbo que se dobra, vira e se acomoda a tudo que se quer. Todos os Sábios e mais insignes filósofos fizeram profissão expressa de duvidar, duvid ar, de inquirir e de buscar. Ser Sábio é ser inquiridor da verdade. É esta bela e grande tranqüilidade ou suficiência, dada por precípuo a Sócrates o Corifeu dos Sábios, pelo consentimento de todos os
É certo, segundo todos os Sábios, que ignoramos mais coisas do que sabemos, que todo nosso saber é a menor parte e quase nada em vista do que ignoramos. E o que pensamos saber, nós não o sabemos nem o possuímos. Prova disso é que ele nos é arrancado freqüentemente dos punhos. E se não é arrancado - porque a teimosia é mais forte, - pelo menos nos é contestado, perturbam-nos a seu respeito. Ora, como seremos capazes de saber mais e melhor, se nós nos obstinamos, paramos e repousamos sobre certas coisas, de tal maneira que não somente nós não buscamos nada a mais nem melhor, nem examinamos mais o que possuímos, mas ainda achamos ruim que nos queiram dar alguma nova luz, como faz o vulgo? Com essa boa, cândida e inocente suspensão, nosso espírito permanece primeiramente livre, universal e mestre, pas-
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seando por todo lugar - Mag- pacífico, suave, contente e na et generosa res humanus não se abala com nada. animus nullos sibi poni nisi communes et cum Deo terminas patitur , - contemplan-
do com um olhar firme como de uma alta escora todas as variedades, mudanças e vicissitudes do mundo. Sem mudar-se ou variar de forma alguma, mas se agarrando a si como à libré da divindade também o privilégio do Sábio, que é a imagem de Deus na terra - sem se engajar e se tornar parcial ou particular, pois a parcialidade é inimiga da liberdade e do domínio.
De onde vêm as perturbações, as sedições, as rebeliões, as seitas, as heresias, senão dos orgulhosos, dos afirmativos, dos arrogantes e dos resolutos? Eu sei que esta liberdade é difícil e rara, por dois impedimentos contrários. Um é a presunção e a louca persuasão de ver suficientemente claro, de ter juízo suficiente e de possuir a verdade através da qual, orgulhosamente, eles condenam todas as opiniões contrárias às suas, sem antes examiná-las. Se disputam, não é para encontrar a verdade e o melhor, mas unicamente para sustentar sua opinião e defender seu partido.
Um paladar alertado e tomado por um gosto particular não pode mais julgar bem os outros; o indiferente julga a todos. Quem é apegado a um O outro impedimento é o telugar está banido e privado de mor e a fraqueza. Como com todos os outros. O cartão aqueles em quem o coração pintado de uma cor não é ca- aperta, estando em uma alta paz de receber as outras, o torre e olhando para baixo, branco o é de todas. O juiz poucas pessoas têm a força e que tenha prevenções, incli- a coragem de se manter de pé, nando-se e se tornando favo- é-lhes necessário se apoiar. rável a uma parte, não é mais Não podem viver se não são direito, inteiro nem verdadei- casados e amarrados, não ro juiz. Ele permanece assim ousam permanecer sós, com limpo, isento de todo erro e medo dos duendes, temem descontentamento, modesto, 25
que o lobo os coma. São pessoas nascidas para a servidão. Concluo esses dois traços e ofícios de Sabedoria, que são primos. A eles eu me ative mais, porque sei que eles estão distantes do gosto do mundo - tanto quanto a Sabedoria. São atacados por muitos, a saber, por todos; e não se obstinam nem teimam com nada. Por eles o Sábio se so bressai acima do comum, se protege de dois obstáculos contrários, nos quais caem os loucos e os populares - a sa ber, a cabeçuda teimosia, as vergonhosas retratações, os arrependimentos e as mudanças - e se mantém livre, em liberdade de espírito, que o Sábio nunca se deixará arre batar. Não é coisa estranha que o homem não queira ex perimentá-la e até mesmo se ofenda em ouvir falar dela? E não há motivo aqui para gritar com Tibério, e mais justamente que ele, O homines ad servitutem nati ! Que monstro é esse, para querer todas as coisas livres - seu corpo, seus membros, seus bens, - mas não o espírito que, todavia, nasceu para a liber-
dade, contrariamente ao resto? Não temam, diz a Verdade, aqueles que têm potência no corpo, mas não a têm no espírito. Item, todos querem se servir daquilo que está no mundo, do que vem do oriente, do ocidente, para o bem e para o serviço do corpo, da saúde, da comida, do ornamento, e acomodar esse todo a seu uso, mas não para a cultura do espírito, seu exercício, seu bem e seu enriquecimento. Soltam os corpos nos campos e trancam a chaves o espírito. Quero aqui acrescentar uma única palavra, ainda que tenha sido bastante dita. Essa liberdade - tanto no que diz res peito ao julgar, quanto ao suspender - não toca de maneira alguma as coisas divinas e sobrenaturais que estão acima de nós, das quais não falamos neste livro. Estas devemos admirar, adorar e simplesmente receber.
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6. O sexto ofício e traço do Sábio - que diz respeito à vontade - é uma probidade e uma preud’hommie fortes e firmes, que nascem nele por ele mesmo, ou seja, pela con-
sideração de que ele é um homem. Todo homem se reconhecendo como tal é obrigado a ser bom, direito e inteiro, tal qual deve e pode ser, e o que a natureza e a razão o obrigam a ser. Não querendo ser tal, é preciso que desista de ser homem, de outro modo é um monstro, e vai contra si mesmo.
sencial como lhe é seu ser e como ele é a si mesmo. Não será, pois, por nenhuma consideração externa e vinda de fora, qualquer que seja, pois sendo tal causa acidental e exterior pode vir a falir, se enfraquecer e mudar, e então toda a preud’hommie apoiada nela fará o mesmo.
Quem deseja e consente uma coisa por necessidade a quer boa e inteira. Desejar e aceitar uma coisa, mas não se preocupar que ela não valha nada, implica em uma contradição. O homem quer ter todas as suas partes boas e sãs; o cor po, a cabeça, os olhos, o julgamento, a memória e até mesmo os calções e as botas. Por que não gostaria de ter também a vontade, ou seja, ser bom e são inteiramente?
Se ele é virtuoso pela honra e reputação ou por outra recompensa, estando na solidão, na segurança de não ser percebido, cessará de sê-lo, ou o será friamente e covardemente. Se o é pelo temor das leis, magistrados e punições, podendo fraudar as leis, rondar os juízes, evitar ou iludir as provas e se esconder do conhecimento de outrem, ele não o será. Eis uma preud’hommie caduca, ocasional, acidental e certamente muito débil. É ela que está em voga e em uso, não se conhece nenhuma outra. Ninguém é homem de bem, salvo quando induzido, seja por uma causa ou por ocasião. Nemo sponte et gratis bonus est .
Eu quero então que ele seja bom, que tenha sua vontade firme e resoluta à retidão e à preud’hommie. Isto pelo amor de si mesmo e por ser homem, sabendo que não pode ser outro sem renunciar a si, se desmentir e se destru- Ora, eu quero no meu Sábio ir. E assim sua preud’hommie uma preud’hommie essencial lhe será própria, íntima e es- e invencível, que se sustente 27
por si mesma e por sua pró pria raiz, e que, assim como a humanidade do homem, não possa ser arrancada a rrancada nem separada. Eu quero que ele nunca consinta no mal; mesmo quando ninguém saiba nada, não o saberá ele? Que mais é preciso? Todas as pessoas tomadas em conjunto não chegariam a tanto. Quid tibi prodest non habere conscium conscium habenti conscientiam? Nem
se ele devesse receber uma recompensa enorme, pois que recompensa poderia ser essa, que lhe tocasse tanto quanto seu próprio ser? Seria como querer possuir um cavalo mau, sob a condição de que ele tivesse uma bela sela. Eu quero então que sejam coisas inseparáveis: ser um homem e consentir em viver como tal, ser um homem de bem e querer ser tal. Ora,
por
meio dessa preud’hommie que engloba as virtudes morais, mas que consiste especialmente na justiça - principal e mestra de todas elas, que devolve a cada um o que lhe pertence, o Sá bio cumprirá bem e devidamente todos os seus deveres
para com todos: Deus, si mesmo e seu próximo. Deus primeiramente soberano e absoluto Senhor e mestre do mundo - é a piedade, a religião, que é a primeira parte da justiça e a mais nobre das morais. Assim a religião está contida sob a preud’hommie, mais precisamente sob uma parte da preud’hommie. Por isso, meu Sábio guardião da lei e da virtude moral honrará, temerá, amará, reverenciará e servirá a Deus de espírito e de corpo, antes e sobre todas as coisas. Em seguida atribuirá a si e a seu próximo o que deve, de acordo com a ordem e a medida usada pela dita lei. 7. O sétimo e último ponto que guia e compreende todos os outros e é para o espírito, o corpo, o interior, o exterior, o julgamento e a vontade - é voltar a vista e o pensamento para a lei da natureza, sempre acreditar nela e segui-la como regra primeira, soberana, universal e infalível que é. Naturam si sequaris ducem nusquam aberrabis: sapientia est in naturam converti, et eo restitui unde publicus error
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expulerit. Ab illa non deerrare, ad illius legem exemplumque formari sapientia est: idem est beatae vivere et secundum naturam: omnia uitia contram natura sunt .
É a razão, a equidade, a luz natural que Deus inspirou em todo homem e que, como um astro flamejante, ilumina e brilha sem parar dentro dele, qualquer que seja, se ele não for desnaturado. Signatum est supernos lumen vultus tui. Gentes naturaliter quae legis sunt facíunt: ostendunt opus legis scriptum in cordibus suis: lex scripta in cordibus nostris, quam necípsa delet iniquitas. É Deus mesmo, ou
então a lei primeira, original e fundamental, sendo Deus e a natureza no mundo como o Rei e a lei em um Estado. Quid natura nisi et divina ratio toti mundo et partibus ejus inserta?
Por isso, assim como a agulha imantada no ímã não pára senão quando vê seu norte, e por ele se endireita e conduz cond uz a navegação; da mesma forma o homem nunca está bem, e está até mesmo desprovido e deslocado, se não tem em vista e
não conduz o curso de sua vida, seus hábitos, seus julgamentos e vontades segundo esta lei primeira, divina e natural - que é uma chama interna e doméstica. Todas as leis que existiram depois no mundo não são senão pequenos extratos tirados dela. A Lei de Moisés em seu decálogo é uma cópia externa e pú blica. A Lei das Doze Tábuas, os ensinamentos morais dos teólogos e filósofos, as opiniões e conselhos dos Jurisconsultos, os Éditos e Ordens dos Soberanos não são senão pequenas e particulares inter pretações e expressões dela. Se há alguma que se distancia um mínimo dessa matriz primeira e original, ela é um monstro, uma falsidade e um erro. Ora, seguindo essa regra mestra com relação a todas as outras, ele se comportará reta e inteiramente em tudo e por todo lugar. Andará com um passo suave, igual, eqüitativo, uniforme e tranqüilo em todas as coisas. Nunca ofenderá a outrem, será modesto na prosperidade e na adversidade, pronto e paciente para a morte e contente consigo
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mesmo. Tudo o que nos perturba vem do fato de que queremos, desejamos e perseguimos aquilo que está além da natureza, contra ela e acima dela. Aprendamos com os animais, que se deixam guiar pela simplicidade da natureza e levam uma vida doce, pacífica e inocente com toda li berdade, repouso e segurança. E assim estaremos isentos de tantos males, vícios e desregramentos, que o homem adota por não crer na natureza e não segui-la. O que tornou Sócrates - e todos os outros grandes homens que eu nomeei no começo - tão Sábio, senão a prática dessa lição? É preciso reanimar, fortificar e retesar o espírito. Não forçar, violar, disfarçar e fraudar a natureza, mas secundá-la, socorrê-la fazendo valer não a sutileza, fineza e invenção; menos ainda o vício e o desregramento. Mas a verdade, a solidez e a integridade. Ir bem e ganhar no caminho não é voltear, dar saltos, cabriolas e corridas, mas manter um bom passo, firme, regrado, seguro e durá-
vel, ou seja, segundo a natureza. 8. Eis uma pintura sumária de nossa sabedoria humana nesses sete pontos. Conhecer bem o homem e a si; regrar generosamente a vida exteriormente, segundo o que é prescrito exteriormente; guardar o espírito limpo de paixões e erros; julgar tudo; não se obrigar a nada; essencial; preud’hommie visar e se conduzir sempre segundo a natureza e a razão. Contrariamente, o comum - e o profano - não se conhece, nem conhece a condição humana, obedece às leis servilmente, tem seu espírito com pletamente escravo e servil, não julga nada, toma e recebe tudo como os outros querem; sua preud’hommie adquirida por causa externa, ou por ocasião externa visa antes a uma lei local, particular e positiva que à lei universal e natural que é Deus. Ora, essa inscrição é quase toda interna e não aparente, pois esses traços estão no espírito. Também a sabedoria é qualidade espiritual e não
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pomposa e barulhenta, ela vida eterna, como o gostaria mal é aparente. O Sábio não é Pelágio: pois essa segunda percebido nem conhecido afirmação é totalmente inducomo tal por todos, é necessá- bitável. rio percebê-lo atentamente de Mas dizemos que o homem, perto e escutá-lo. Todavia, empregando bem essa luz da daremos em seguida marcas natureza e fazendo o que é de externas para conhecê-lo, fé, se dispõe para a graça. A comparando-o com o não observação da lei da natureza Sábio em seus desregramen- é como uma isca, um esboço tos. e um traço daquela. Aquele 9. Antes de sair desse propó- que segue o máximo que pode sito, gostaria de acrescentar as virtudes morais, naturais e uma palavra que não é propri- humanas convida e dá ocasião amente parte desse assunto de a Deus de dar-lhe as primícias sabedoria humana e filosófi- e gratificá-lo com as virtudes ca, mas que servirá para tirar sobrenaturais e divinas. Pois o toda dúvida e escrúpulo que fato de que quem foi leal e poderiam nascer dos propó- cuidadoso em pouco seja sitos precedentes. É que, com agraciado ao máximo é uma tudo que dizemos vantajosa- eqüidade e regra de convenimente da lei da Natureza hu- ência. mana e da Sabedoria humana, Com isso concordam os sannão pretendemos, absoluta- tos Aforismas. Quia in modimente, excluir ou derrogar a co fuisti fidelis supra multa honra e a necessidade da gra- te constituam: Deus dat spiça, da ajuda e do socorro es- ritum bonum omnibus pe pecial de Deus. Sem ele con- tentibus eum: facienti quod fessamos que o homem nunca in se est Deus non denegat pode cumprir inteiramente e gratiam: Deus non deficit in perfeitamente bem toda a necessariis, et disponit omnia virtude moral e a lei da natu- suaviter: Si homo incipiens reza, como é preciso. Ainda habere usuram rationis, et menos pode cumpri-la mere- deliberans de se ipso, ordinacidamente e salutarmente à verit seipsum ad debitum 31
finem, per gratiam conse- preud’hommie, estes acrediquetur remissionem peccati tam conseguir essa graça originalis etc. Nisto concor- alhures. Eles se lisonjeiam, se
dam os sagrados exemplos de Abraão, de Jó, dos dois centuriões, de Naaman Sírio e do pai de Santo Gregório. Estes, sendo Pagãos e infiéis, por terem seguido bem esta lei e a luz da natureza, foram chamados para a fé, que lhes foi dada - segundo diz este santo Pai - como recompensa por suas virtudes morais. Monum probitas eum nobis vendicabat vendicabat unde retulit fidem in praemium praecedentium virtuum: inverter a lei da na-
tureza é se opor formalmente e impedir diretamente a graça. Sobre isto discorrem em seguida o Apóstolo, os Padres, Agostinho, Crisóstomo e Grilo, fornecendo a razão pela qual muitos judeus não rece beram o Evangelho e pela qual o Salvador não pôde pregar em vários lugares. Por isso se enganam fortemente aqueles que têm outra via e que desdenham essa virtude moral e a lei da natureza como muito baixa e pequena para eles. Não tendo nenhum verdadeiro sentimento de
glorificam e se fiam de ser grandes e ricos em bens so brenaturais e divinos, mas se encontram a cada passo cul pados da simples lei da natureza e do dever humano. Muito abaixo da virtude e probidade desses d esses simples s imples filósofos que eles rejeitam e condenam veementemente, assim serão condenados por eles como tão freqüente e acremente os ameaça o Soberano Doutor da verdade; mas eles não se incomodam em nada com isso. Conhecem alguma sutileza pela qual se persuadem de ser primos e amigos de Deus, sem fazer nem preservar sua lei primeira e fundamental. Tudo isto está de acordo com a ordem ordinária da natureza que, no entanto, não impede que Deus a mude quando desejar, fazendo funcionar primeiramente sua graça especial, que precede toda probidade, todo pensamento e toda deliberação naturalmente boa. Eu já me alongo demais nesta digressão.
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Por isso, concluo que essa sabedoria humana é via para a divina; a lei da natureza é via para a graça, a virtude moral e filosófica para a Teologal, o dever humano para o favor e a
liberalidade divinos, assim como a alma vegetativa e sensitiva - que pertence ao domínio dos pais - é via para a alma racional - que pertence ao domínio de Deus.
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CAPÍTULO III 1. Outra descrição mais sensível do Sábio e da Sabedoria, por oposição ao contrário que também é retratado. 2. Confrontação do Sábio e de seu contrário no natural, nos movimentos e nas inclinações do espírito. 3. E na conversação, na conferência e nos desvios externos. 1. Ora, eu gostaria ainda de retratar e descrever nosso Sá bio e nossa Sabedoria de uma outra maneira. Ou seja, por dissemelhança, por comparação e por antítese com o seu contrário – descrição esta que será talvez mais bem compreendida e entendida pelas pessoas simples que a precedente. Isto por ser mais sensível e aparente, tirada em sua maioria da conversação, das palavras, das ações e dos desvios. O que é mais diretamente (e, de certa forma, hostilmente) contrário ao Sábio e à Sabedoria de que tratamos é uma certa qualidade e espécie de espíritos fracos, rasos e naturalmente populares, em seguida prevenidos e obstinados em relação a certas opiniões e, por isso, incapazes de modificação e de se tornarem Sábios.
Se eles são guarnecidos de aquisições e de ciência, são totalmente irremediáveis. Isto porque esta ciência acrescenta à fraqueza e à baixeza naturais, assim como ao conflito e às preocupações das opiniões - que já são dois grandes im pedimentos, - ainda a presunção, o opiniatismo e a temeridade, envaidecendo-lhes o coração. Scientia instat ,
e colocam nas mãos armas para sustentar e defender suas opiniões anteci padas. Para concluir completamente seu retrato, eis o retrato de loucura traçado no âmago desses três. O primeiro - que é a fraqueza - vem do temperamento original e de pois do defeito de boa cultura. O segundo - que é a formação antecipada de opiniões - se encontra em todo tipo de
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gente, de toda qualidade, profissão e fortuna. O terceiro que é a aquisição das letras não está em todos.
forma seu julgamento, retifica sua vontade e se sente mais hábil onde o outro se torna mais tolo e inepto.
A fim de que me compreendam melhor e que não se pense que desejo aqui denegrir a ciência, digo que ela é um bastão muito bom e útil. Mas, quem não sabe manejá-la bem, recebe dele mais danos que proveitos. Ela torna opiniático e enfraquece (diz um grande homem hábil) os espíritos fracos e doentes, mas lustra e aperfeiçoa os fortes e bons naturais. O espírito fraco não sabe possuir a ciência, aplicá-la e se servir dela como deve.
Assim, o erro não é da ciência, nem a censura é dirigida a ela. Não mais que ao vinho ou a outra droga muito forte e boa, que superaria e oprimiria a força e o entendimento daquele que a toma. Non est culpa vinis, sed culpa bibentis. Ora, contra tais espí-
ritos fracos por natureza, envaidecidos e impedidos pelo adquirido como inimigos formais da Sabedoria - a qual requer um espírito forte por natureza, vigoroso, generoso, suave, modesto, flexível e que Ao contrário. Ele se dobra e segue voluntariamente a ra permanece escravo dela, que o zão, - eu luto propositalmente possui e rege. Como o estô- neste livro. mago fraco carregado de car- E o faço freqüentemente atranes que não pode cozer nem vés da palavra "Pedante" - não digerir; como o braço fraco encontrando outra mais adeque, não tendo poder nem quada - que é, neste sentido, habilidade para manejar bem usurpada do original por seu bastão - que é forte e pe- muitos bons autores. Em sua sado demais para ele, - se can- primeira significação grega sa e se distrai completamente. ela é bem colocada, mas em O espírito forte e Sábio não outras línguas posteriores, em desfruta [a ciência], maneja-a razão do abuso e da maneira como mestre, se serve dela errônea de proceder e se por para seu bem e vantagem, 35
tar com as letras e as ciências, é vil, sórdida, inquiridora, brigona e ostentativa. Praticada por muitos, foi usurpada como em "derisão" e "injúria", e é daquelas palavras que com um lapso de tempo mudam de significado, como “tirano”, “sofista” e outras.
me fornecerem uma outra palavra que signifique tal es pírito, eu a abandonarei de muito bom grado. Depois desta minha declaração de boa fé, quem se queixar, se acusará e se mostrará muito desgostoso.
Eu sei que os mais exasperados contra o meu livro são aqueles que pensam que essa palavra lhes diz respeito e que por meio dela eu quis taxar e atacar os professores das letras e instrutores. Mas eles se apaziguarão - se lhes agrada com esta franca e aberta declaração que lhes faço aqui, de não designar com tal palavra nenhum estado de invólucro ou profissão literária. Tanto é que, por toda parte, eu gosto muitíssimo dos filósofos, e atacaria a mim mesmo, já que eu o sou e tenho isto como ocupação habitual, ainda que o seja dos menores. Mas designo uma certa qualidade e grau de espírito que retratei acima, os quais se encontram sob toda vestimenta, em toda fortuna e condição, vulgum tam clamydatos quam coronam voce. Se
Podemos perfeitamente opor ao Sábio outros além do "Pedante", neste sentido particular de comum, profano e po pular. E o faço largamente, como o baixo ao alto, o fraco ao forte, o vulgar ao distinto, o comum ao raro, o servo ao mestre, o profano ao sagrado. Também podemos opor o Louco ao Sábio que, de fato, no primeiro sentido das palavras, é seu verdadeiro oposto. Mas é como o desregrado ao regrado, o glorioso opiniático ao modesto, o partidário e particular ao universal, o prevenido e maculado ao livre, franco e claro, o doente ao são. O Pedante, porém, no sentido em que o tomamos, compreende tudo isso, e ainda mais. Isso porque ele designa aquele que não somente é dissemelhante e contrário ao Sábio, como os citados acima, mas
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ainda aquele que arrogantemente e orgulhosamente lhe resiste de frente. E, como se estivesse armado de todas as ferramentas, se eleva contra ele e o ataca. Como o Sábio não o teme de modo algum, já que o descobre e o vê até o âmago e ao natural e lhe perturba o jogo, o Pedante o persegue com um ódio seguro e interno, empreende censurálo, depreciá-lo e condená-lo, se estimando, se dizendo e se portando como o verdadeiro Sábio. 2. Por isso, para melhor conhecê-los a ambos, gostaria de confrontá-los em todas as coisas, representá-los no teatro e fazer cada um encenar seu personagem. Primeiramente, com relação aos humores, inclinações, impulsos e movimentos de seus espíritos.
fora de si, usa e consome suas próprias faculdades e seus bens internos para conhecer o exterior. Este, ao contrário, permanece voltado para si, se serve do exterior e o traz para seu interior, não para aprisioná-lo e escondê-lo e em seguida produzi-lo como aquele, mas para se valer dele em si mesmo, para realmente se tornar melhor, mais hábil, resoluto, constante e corajoso. Aquele não aprende e nada sabe senão pelos livros, preceitos, mestres e daquilo que é estabelecido para instruir. Este tira seu benefício de tudo, de todas as coisas que se dizem, se fazem e acontecem, por ser um grande fruidor. Até mesmo das bagatelas, das coisas insignificantes, nada lhe esca pa que ele não reabilite. Aprende por si mesmo, do ignorante, da mulher, da criança, do Louco, do Pedante e daqueles com quem não quer absolutamente se parecer.
O Pedante3 estuda principalmente para enfeitar e mobiliar sua memória, para poder entreter os outros e contá-lo. O Sábio4, para formar e regrar Aquele admira e faz mais caso seu julgamento e sua consci- da arte, daquilo que é radioso, ência. Aquele está sempre reluzente e barulhento. Este pára no que é natural, suave, fluente e cômodo; e gosta 3 Nota Ádvena Ádvena – Os “Aquele”. 4 mais disto. Aquele é atento às Nota Ádvena – Os “Este”. 37
palavras. Este, às coisas: Sa- Este, todo o contrário. Aquele pientia in litteris non est, res é todo do mundo, deseja e attendis non verba. Aquele se busca, de forma atormentada, detém firme no texto e nas com o espírito e com o corpo, palavras da lei. Este, na eqüi- a honra, os bens e os prazeres. dade e na razão. Este se comporta moderadaAquele se mantém nas extre- mente em todas as coisas, tem midades, condena tudo uni- seus pensamentos mais altos, formemente, louva além da mais espirituais. medida - seja as pessoas ou as opiniões. Rejeita completamente ou adota estreitamente, é amigo ou inimigo, de uma ou duas particularidades fará um julgamento universal. Este, suave e moderadamente, aponta e concilia o quanto pode. Reconhece o bem em quem quer que seja, e o diz até mesmo em um inimigo, tanto seu quanto do público. Diz o bem espontaneamente, avaramente o mal, ciumento da verdade, da candura e da integridade de seu julgamento.
Aquele é completamente apegado aos costumes, às opiniões, às maneiras e às pessoas de seu país. Mama ainda nos seios de sua mãe, condena toda violação, as coisas estranhas a seu uso e todas aquelas que ele não compreende. Este olha com os mesmos olha com os mesmos olhos, julga e considera as coisas mais estranhas da mesma forma que as suas. Aquele é, consigo e com outrem, oneroso, desgostoso, despeitado e opiniático. Este, jovial, suave, fluente, alegre e aberto. Aquele é atrevido, temerário, premente e colérico. Este, frio, paciente, lento e estimado. Até aqui se conhece bem o gênio e o natural dos dois, e se vê suficientemente o ar de ambos.
Aquele faz tudo com uma paixão e uma emoção que lhe perturbam, corrompem e destroem o julgamento. Este, com frieza, tranquila e mansamente. Aquele é todo vaidade e barulho. Este, verdade e solidez. Aquele está pronto para falar, impaciente para ouvir, 3. Venhamos às particularidafaz as coisas impropriamente. 38
des, à conduta deles em conversação e em sociedade. Em tudo diferença e divisão, aquele não se pode manter sem ser partidário e, mesmo que possa evitá-lo, o fará ultrajado e transportado. Este, enquanto pode, se mantém neutro ou moderador e comum. Se lhe convém ser partidário, ele o será com moderação e nunca fará o pior que puder ao partido contrário, se não for pela força e em extremo, et cum moderamine inculpatae tutelae. Em companhia estranha e desconhecida, aquele quer se fazer sentir e conhecer, e que se saiba o que ele sabe, o que tem ou pensa ter de bom e recomendável. O Sábio consente em permanecer desconhecido ou, então, será preciso que algum assunto ou ocasião se apresente sobre a qual lhe convenha se declarar e se mostrar. Chegando onde cada um possa livremente tomar lugar, aquele tomará ambiciosamente a mais honrosa ou inabilmente a mais baixa. Este discretamente pensará em tomar o lugar mais cômodo e confortável.
Tendo feito alguma coisa bela, boa, útil e oficiosa ao público ou a um particular, aquele se comporta ambiciosamente. Faz que isto soe alto, repete-o freqüentemente, indaga-se acerca do que se diz e se zanga por não se fazer mais barulho e festa. Este suavemente escuta o que dizem, se contenta consigo mesmo por ter feito um bem e se gratifica por ter sido bem-sucedido e pela aprovação ap rovação das pessoas de bem. Se acontecer uma disputa e uma conferência, aquele procederá orgulhosamente de uma maneira magistral, com termos afirmativos e resolutos, condenando arrogantemente as opiniões contrárias como absurdas, falsas e ridículas. Este, modestamente e suavemente, com palavras duvidosas e retidas diz: eu não sei, talvez, parece. Aquele fundamenta tudo so bre a autoridade e dizer de outrem, que ele alega com cuidadosa cotação dos lugares, para dar demonstração de memória e de grande leitura. Este se submete à razão, em comparação à qual a autorida-
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de é pequena. Aquele não busca senão vencer, sustentar e defender sua opinião e a torto ou a direito se desfazer de sua parte. Este visa sempre a verdade em direção da qual estende os braços e une as mãos tão logo ela lhe aparece. Aquele quer ser acreditado, se pasma e se irrita que não se ache bom e verdadeiro o que ele diz. Sofre acremente por ser contradito e pressionado e, então, cria perturbações e contesta sem fundamento. Este não se consagra a nada. Não tendo desposado nada, busca sem disfarce a verdade, à qual a contradição serve mais que o consentimento e, no entanto, se contém sempre
dentro da ordem e da pertinência. Na vitória, aquele é insolente, murmura e afronta. Na derrota não reconhece absolutamente a boa fé. Acredita que acabaria com sua honra se ele se retratasse e confessasse o erro. Este não faz soar a vitória, antes a piedade. E se mostra reservado, a não ser para algum louco, cabeçudo, insolente e opiniático, ao qual ele se revela inteiramente - a justiça é uma bela esmola. Na perda, muito galantemente se rende à razão, e sua confissão não é nunca vergonhosa, pois ele nunca afirmou nem opinou.
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CAPÍTULO IV 1. Exame da descrição feita anteriormente da Sabedoria e res posta às objeções e censuras que se podem fazer contra ela. À primeira, que é ser ela nova. 2. À segunda, que é ela não tratar da religião. 3. À terceira, proposta contra o quarto traço da dita descrição, que é julgar de tudo. 4. À quarta, proposta contra o quinto traço, a saber, não se obrigar a nada, onde se fala dos princípios e do Pirronismo. 5. À quinta, que é contra o sexto traço, a saber, a preud’hommie essencial. 6. À sexta, que é contra o sétimo traço, a saber, seguir ela a natureza. 1. Ora, já que alguns reprovam e atacam esse retrato da Sabedoria, devemos examinála e conjuntamente compreender e responder às objeções e censuras que propõem contra ela. Primeiramente, eles dizem - grosso modo - que é nova, que tomo um caminho ainda não traçado, que minhas proposições são paradoxos e, até minha maneira de falar, audaciosa e particular. Eu não gostaria agora de mostrar re pugnância nem de debater se ela é nova ou não, e se se podem dizer coisas que não foram ditas anteriormente. Mas
mesmo que ela o seja, qual o problema? A novidade e raridade choca e espanta os simples e populares, é poderosa ao fazer-lhes recomendar ou condenar as coisas. Mas não aos Sábios, que sabem que essas qualidades são comuns às coisas boas e às ruins. Ele pára somente para considerar a bondade e o valor interno e essencial, e a utilidade que retorna para o público e para o particular. No mais, quem não sabe que o Sábio é um paradoxo no mundo, um censor e um des41
prezador do mundo? Aquele próprios e particulares ao Sáque carregou este nome, o que bio, pelos quais ele difere e faz em seu Eclesiástico a não excele acima do comum. ser dizer proposições contra o Ora, a religião é uma obrigacomum? Todas as belas pro- ção comum, geral e até mes posições e opiniões dos Sá- mo natural. Mas, ainda assim, bios são contrárias ao gosto eu digo que essa objeção é do mundo. Eu tomo então esta falsa, pois tudo o que diz res primeira objeção como vanta- peito a Deus está compreengem minha. dido e nomeado no sexto traQuanto à linguagem, reclamar ço principal, que trata da dela é extrema delicadeza e preud’hommie. Seu primeiro fraqueza. Cada um tem seu e mais alto ponto está na pieestilo. Eu gosto do curto, do dade e na religião, que é a significativo, do audacioso e primeira e mais nobre parte do varonil. Se ele não agrada da justiça, na qual consiste a uns, agrada a outros. Eu pr principalmente a preud’hommie. atinjo meu objetivo quando E há ainda um artigo acerca me faço escutar, e não preten- da graça de Deus. do outra coisa. Venhamos às particularida2. A segunda é que em toda des. Contra esses três primeiessa descrição não se fala de ros traços - que são conhecerDeus, de religião e das virtu- se, tornar-se obediente aos des infusas e divinas. Digo superiores, às leis e aos cos primeiramente que é necessá- tumes, manter-se limpo de rio lembrar das duas coisas paixões e de erros, - eles não que eu disse. Eu trato aqui da dizem nada que deva ser aqui Sabedoria humana filosofi- respondido. camente, não da divindade 3. Ao quarto traço - que é teologalmente. Em linhas julgar tudo, - eles objetam que gerais, não abordo aqui tudo o é uma liberdade muito grande que é requerido em um Sábio e perigosa, que pode levar a - não os traços comuns a to- uma confusão. Primeiramente dos, já suficientemente co- é compreender mal, e em senhecidos, mas somente os 42
guida concluir mal. Existe coisa mais natural, própria e digna do homem que julgar, ou seja, considerar, examinar, pesar as razões e contrarazões de todas as coisas, o peso e mérito destas?
como poderia ele se perder, ou sequer falhar de alguma forma - mesmo que o quisesse, - se não determina nada, não se obriga a nada e não se apega a nada, como o querem a quinta e sexta lições de SaDado que o homem é dito bedoria? racional - ou seja, que discor- Da mesma forma: se o Pere, raciocina, entende e julga, dante, ao julgar, foge em tudo - querer privá-la disto não e por tudo da natureza, as seria querer que ele não fosse opiniões e julgamentos natumais homem, mas sim ani- rais são sempre verdadeiros, mal? Se isto choca o natural e bons e sãos, como traz a sétio próprio do homem, o que ma e última lição. Esse é o faria ao Sábio, que está acima único e infalível meio para dos homens comuns, assim compreender bem as leis. como aquele homem comum Assim fazem os bravos Jurisestá acima dos animais? consultos quando se deparam Como pode o homem, tão com a ambigüidade, a dificulorgulhoso e glorioso em ou- dade e a antinomia, buscando tras coisas, ser tão vil e teme- confrontá-las e fazê-las tocar roso ao fazer valer sua parte a razão natural, ut ad Lydium mais alta e nobre, que é o lapidem. espírito? Eis as duas rédeas e as duas
Mas replicarão que, se essa regras que os impedirão semliberdade não é moderada e pre de falhar. Quanto Qu anto ao resto, resto , reprimida, há perigo de o es- essa liberdade não toca nem o pírito cair em falta e se per- acreditar e a religião, nem o der, enchendo-se de opiniões fazer e a vida externa. Mas loucas e falsas. Como foi unicamente o pensar, o julgar visto com freqüência, isto é e o examinar, ação própria do verdade. Mas objetar isto é Sábio. Ora, se ele a governa mostrar que não se apreende o como eu prescrevo, ele estará quadro inteiramente. Pois sempre em segurança. 43
4. Passemos ao seguinte, que é o quinto traço vizinho e aliado ao precedente: não se obrigar a nada. Eles objetam que eu ensino aqui uma incerteza duvidosa e flutuante tal qual os Pirrônicos - que coloca o espírito em grande sofrimento e agitação, que é preciso ter e manter mant er os princí pios recebidos. Objetam que essa indiferença tem uma conseqüência ruim, tanto é que ela pode estender-se até mesmo aos assuntos de religião, dentro da qual não é permitido duvidar ou cambalear em hipótese alguma.
o verdadeiro repouso e abrigo de nosso espírito. Todos os grandes e nobres filósofos e Sábios que dela fizeram profissão, tiveram eles seus espíritos perturbados e sofridos? Mas, dizem eles, duvidar, balançar e suspender não seria estar em sofrimento? Sim para os loucos, não para os Sábios. Sim, digo eu, para as pessoas que não podem viver livres, espíritos presunçosos, partidários, apaixonados que, agarrados a certas opiniões, condenam orgulhosamente todas as outras. E, ainda que estejam convencidos, nunca se rendem, camuflam e ficam encolerizados, não reconhecem a boa fé. Ou, se eles mudam de opinião, ei-los que voltam ainda tão resolutos e opiniáticos quanto antes, não sabem aderir a nada sem paixão.
Eu respondo primeiramente que há uma diferença entre minha fala e a opinião dos Pirrônicos - apesar de esta conter o ar e o cheiro daquela, - já que eu permito consentir e aderir àquilo que parece melhor e mais verossímil, sem pre pronto e esperando rece- Tais pessoas não sabem nada bê-lo se ele se apresenta. Mas, verdadeiramente, e não sabem para chegar ao ponto, eu diria o que é saber. Aquilo que que eles não me compreen- pensam ver, não vêem absodem ou que eu não os com- lutamente, diz o doutor da preendo quando dizem que verdade aos gloriosos e preessa indiferença e suspensão sunçosos. Mas aos modestos, colocam o espírito em sofri- sóbrios e contidos, que são mento, pois eu sustento que é alisados sobre o que está aci44
ma escrito no artigo quinto, princípios, direi como o padre acerca da verdade, da razão, a seus paroquianos, em matéda ciência, da certeza e de ria do tempo, e um príncipe seus contrários, não lhes é dos nossos aos sectários deste sofrimento, mas antes uma século em matéria de religião: morada, um repouso. É a ci- concordai mutuamente, priência das ciências, a certeza meiro, sobre esses princípios, das certezas, cheia de candu- em seguida eu me submeterei. ra, de boa fé e reconheci- Ora, há tanta discórdia nos mento modesto, tanto da fra- princípios quanto nas concluqueza humana quanto da altu- sões, na tese quanto na hipóra misteriosa da verdade. tese, de onde existirem tantas Quanto aos princípios, aos seitas entre eles. Se eu me quais eles querem que nos entrego a uma, ofendo todas submetamos soberanamente e as outras. em último recurso, é uma Eu venho ao terceiro ponto de injusta tirania. Eu consinto suas queixas, que é mais peque sejam recebidos com hon- sada. É que eles querem esra, que sejam empregados em tender à religião esta minha todo julgamento, e que sejam suspensão. Ora, eu poderia levados em conta. Mas que me contentar em dizer que o isto ocorra sem se poder dis- texto tanto de meu livro tanciar! Eu resisto forte e fir- quanto deste pequeno Tratado me. Quem é que neste mundo o desmente completamente, tem o poder de sujeitar os quando declara que tudo isso espíritos e dar princípios que não diz respeito às coisas dinão sejam mais examináveis, vinas, nas quais é preciso senão Deus, único soberano simplesmente crer, receber e espírito, o verdadeiro princí- adorar, sem empreender seu pio do mundo, mu ndo, que é o único a julgamento. ser acreditado por aquilo que Para acossá-las mais, porém, diz? Qualquer outro está su- e lhes mostrar que não com jeito ao exame e à oposição, e preendem bem b em esses assuntos, é fraqueza se sujeitar. Se que- quero dizer que esta minha rem que eu me sujeite aos opinião - que eles gostam de 45
chamar Pirronismo - é algo berto, dilacerado e sujo de que presta mais serviço à pie- opiniões fantasiosas, forjadas dade e à operação divina que em seu próprio espírito. Deus qualquer outra coisa, longe de realmente criou o homem chocá-la. Serviço, digo, tanto para conhecer a verdade, mas no que diz respeito à sua ge- este não pode conhecê-la de si ração e propagação, quanto à mesmo, nem por nenhum sua comunicação. meio humano. E é preciso que A Teologia - até mesmo a Deus - no seio do qual a vermística - nos ensina que, para dade reside e que fez vir a preparar bem nossa alma para vontade no homem - a revele Deus e sua operação, e torná- como Ele a fez. la própria para receber a im pressão do Espírito Santo, é necessário esvaziar, limpar, despojar e desnudá-la de toda opinião, crença e afecção. Torná-la como uma carta branca, morta para si e para o mundo, para nela deixar Deus viver e agir. É necessário tirar uma coisa para deixar entrar outra, caçar o velho possuidor para aí estabelecer o novo. Expurgate vetus fermentum, exuite veterem hominem .
Assim parece que, para plantar e instalar a Cristandade em um povo descrente e infiel, como agora é a China, começar por essas proposições e persuasões seria um belo método. Todo o saber do mundo não passa de vaidade e mentira. O mundo está co-
Mas, para se preparar para essa revelação e lhe dar lugar, é preciso antes renunciar e caçar todas as opiniões e crenças antecipadas e abreviadas pelo espírito, apresentálo nu e branco, e submetê-lo a ela muito humildemente. Tendo marcado e ganho bem este ponto, assemelhando-se os homens aos Acadêmicos e Pirrônicos, é necessário pro por os princípios da Cristandade como enviados do Céu. Como trazidos pelo embaixador e perfeito confidente da divindade e da autoridade, e confirmado em seu tempo por tantas provas maravilhosas e testemunhos muito autênticos. Assim, essa inocente e branca suspensão, livre abertura a tudo, é uma grande prepara-
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ção para a verdadeira piedade, para recebê-la, como venho de dizer, e para conservá-la, pois com co m ela não haveria hav eria nunca tanta heresia e opiniões separadas, particulares, extravagantes. Nunca um Pirrônico e um Acadêmico serão heréticos, isto são coisas opostas. Dirão talvez que ele não será também nunca Cristão ou Católico, pois ele será neutro e suspenso, tanto em uma, quanto em outra. É compreender mal o que foi dito, pois não há suspensão no que concerne a Deus. É preciso deixar Deus colocar e gravar em nossa alma o que lhe agradar, e não outra coisa.
não dos perfeitos. Também não a digo má, apesar de a filosofia cortá-la pela raiz. Oderunt peccare mali formidine poenae. Mas eu a digo
medíocre, acidental, caduca e precária. Enfim, própria para o comum, mas indigna do Sábio nobre e sagrado de quem se requer uma bem mais alta, firme e generosa probidade que do resto. resto . 6. No sétimo e último traço, que é seguir a natureza, eles se ofendem por eu recomendar e fazer valer tanto a lei da natureza, como se eu quisesse dizer que ela é suficiente e excluísse a graça. Mas o aviso colocado aos pés do meu desenho da Sabedoria desmente todas estas belas interpretações e maliciosas suspeitas. É verdade que não faço longos discursos sobre a graça e as virtudes Teologais; por que o faria? Eu sairia de meu assunto e de meu empreendimento estabelecido, que é a Sabedoria Humana e não, Divina, ações simplesmente, naturalmente e moralmente boas e não meritórias.
5. No sexto traço, que trata da preud’hommie, eles contestam - entre outras coisas - que eu deprecio a preud’hommie causada e adquirida por consideração externa de recom pensa e punição, pois ela não é, dizem, reprovada pela Igreja. Estamos completamente de acordo com relação a isto, pois a teologia, apesar de não condená-la, diz que ela é servil e não filial, imperfeita, própria daqueles que ainda Além do mais, essa graça é são iniciantes e aprendizes, e uma coisa que não é para nos47
sos estudos, nossa inquirição desejar e pedir, humilde e e nosso trabalho. Sobre ela ardentemente, e para ele se não se deve absolutamente preparar - o quanto qu anto estiver em fazer longos discursos nem nosso poder - pelas virtudes ensinamentos, pois é um puro morais e pelas observações da dom de Deus que se deve lei natural que eu ensino aqui.
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CAPÍTULO V e último Resposta geral às dúvidas e queixas propostas contra o livro da Sabedoria, e em seguida o argumento e sumário deste. Eu gostaria aqui de responder - para encerrar, fechar este livro e reunir seu final com o começo e o Prefácio - em geral àqueles que se queixam de meu livro acerca da Sabedoria, segundo o que pude saber, e talvez ainda se queixarão deste pequeno resumo, e satisfazer ao leitor indulgente e eqüitativo. Eles encontram nele uma audácia e uma liberdade que os ofende, eu lastimo por eles, e registro em todo lugar essa fraqueza popular, essa delicadeza feminina como indigna, demasiado terna para compreender coisas que valham, e com pletamente incapaz de sabedoria. As proposições mais fortes e audaciosas são as mais pró prias para o espírito forte elevado, e não há nelas nada de estranho para aquele que sabe o que é o mundo. É fraqueza se espantar com qualquer coisa. Seria preciso endireitar a coragem, consolidar a alma e
afiá-la para ouvir, saber com preender e julgar todas as coisas, por mais estranhas que pareçam - tudo é conveniente e está dentro da capacidade do espírito, desde que ele não falte a si mesmo. E assim também não fazer senão as coisas boas e belas e nunca consentir senão nelas, mesmo que todo o mundo as difame. Essas pessoas talvez não se jam capazes nem de um nem de outro, é ao Sábio que cabe possuir ambas. Estimar e apreciar o Império e a conduta do grande Senhor. Dizer que, entre os indianos, chineses, canibais, turcos e outras nações que eles julgam bárbaras, há leis, políticas, costumes e hábitos até mesmo preferíveis a alguns dos nossos. Que há muitas coisas tomadas pelo povo como milagres, encantamentos e operação dos demônios que são puramente naturais, artificiais, artifici ais, humanas e efeitos da imaginação. Que a dor é o soberano
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e verdadeiramente único mal. apresento e exponho como Que a morte, a infidelidade, a um mercador sobre o tabuleiesterilidade dos filhos e a ro. Não me preocupo que pas pobreza não são verdadeira- sem somente sem vê-las, e mente e em si um mal. Que as não ficarei furioso se não ações naturais não são em si e acreditarem em mim. É culpa naturalmente vergonhosas. dos Pedantes: a paixão testeQue a ciência, que envaidece munha que a razão não está e perturba vários espíritos não presente. Quem se apega a é absolutamente necessária alguma coisa por uma das para a conduta de nossa vida. v ida. duas, não o faz pela outra, Essas proposições e outras uma caça a outra ou toma o semelhantes os chocam. Não lugar dela. Por que essas pestemos aqui espíritos bem deli- soas se enfurecem? Por eu cados e bem capazes de gran- não ser sempre e em tudo de des coisas? Que diriam eles às sua opinião. Eu não me enfumuitas outras muito mais au- reço por eles não serem da daciosas e estranhas, já que minha. Por eu dizer coisas eles as chamam assim, se as que não estão a seu gosto. E é por isso que o digo. Eu não propuséssemos a eles? digo nada sem razão, se eles Ora, a tais pessoas, além das sabem senti-la e prová-la. Se sete distinções que eu lhes têm outras melhores que desnarrei no começo e no Prefá- truam a minha; eu escutarei cio deste livro - que eu não com prazer e gratificação a quero aqui redizer e estender - quem as disser. E que eles e nas quais eles encontrarão, não pensem poder vencer-me descobertos e resolvidos, seus por meio de autoridade e de erros e decepções: eis que eu alegações de outrem, pois ela lhes digo para tratá-los sua- tem muito pouco crédito para vemente, e os apaziguar, se minha pessoa. Exceto em eles são capazes. Eu não obri- matéria de religião, onde ela go ninguém a todas estas coi- vale sozinha sem razão. É aí sas, nem os pretendo persua- seu verdadeiro Império, como dir delas. Bem longe de dog- em todo outro lugar a razão matizá-las, eu somente as sem ela. 50
Não se deve pasmar p asmar por todos não terem a mesma opinião. Mas sim, seria preciso pasmar se todos a tivessem. Nada há de mais conveniente à natureza e ao espírito humano que a diversidade. O Sábio divino nos coloca a todos em liberdade por essas palavras. Que cada um abunde em bom senso e que ninguém julgue ou condene aquele que faz de outra forma e que é de opinião contrária, e o diz em matéria muito mais irritável; e que não somente consiste em fato e em observação externa, em função do que dissemos, que é preciso se conformar com o comum e com aquilo que é prescrito ou costumeiro. Mais ainda, no que diz respeito à Religião, saber observar as carnes e os dias. Ora, toda minha liberdade e audácia não se referem senão aos pensamentos, julgamentos e opiniões, com os quais ninguém tem a ver, senão aquele que os tem cada um como direito seu. De resto, quem ensina uma maior obediência às leis e aos superiores, uma probidade e uma virtude mais nobres e
generosas, uma maior reforma e vitória das paixões e vícios e para isso fornece mais meios e remédios que este livro? Mas, por não o fazer covardemente nem pedantemente, ele não agrada a alguns, pessoas que sempre arrastam seu ventre no chão. Também não falo a eles nem para eles. Não há nada tão fácil quanto re preender e maldizer, e muitos pensam estar se promovendo ao denegrir a imagem de outrem. Que me deixem ou que me ataquem vivamente e abertamente, eles terão de mim, incontinenti, ou uma franca confissão e aquiescência, ou uma análise de sua impertinência. De resto, certas coisas que pareciam, para alguns, muito cruas e curtas, ou duras e rudes para os simples - pois os fortes distintos têm o estômago suficientemente quente para cozer e digerir tudo, pelo amor que tenho por eles, lhes expliquei e suavizei na segunda edição, na qual há três livros. O primeiro concerne unicamente ao conhecimento de si e da condição humana, o que é tratado bem
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amplamente por cinco grandes principais considerações, que por sua vez têm várias sob si. O segundo contém as regras gerais da Sabedoria, que são doze, tanto quanto os capítulos, e são propostas e distinguidas no Prefácio do dito livro. São os principais traços e ofícios do Sábio, dos quais este pequeno livro é um
sumário e um resumo. O terceiro contém as regras e instruções particulares da Sabedoria, e isto pelo discurso das quatro virtudes principais e morais: prudência, justiça, força e temperança, sob as quais está contida toda a instrução da vida humana e todas as partes do dever e da honestidade.
FIM
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