Cidadania em Palestras Roberto Carlos Ramos
A Pedagogia do Amor Data: 14/04/2007 Encontro Nacional de Voluntários - Comunidade Educativa Guarulhos - SP
Bem, gente, bom dia. Olha, é um prazer muito grande estar no meio de uma turma com uma energia tão alta como a de vocês. Eu falo que, as vezes, a gente chega em algum local, parece que eu estou chegando num velório; todo mundo com medo, todo mundo muito sério. Então, a gente fica muito mais descontraído. Bem, para quem não me conhece, eu sou o Roberto Carlos, só que não sou o cantor e nem jogador de futebol, não é? Que, às vezes, a pessoa está batendo palma... Quem está lá atrás... “É o Roberto Carlos, é o Roberto Carlos?” Mas eu sou contador de histórias. Eu ganho a vida contando histórias. Eu viajo pelo Brasil inteiro e pelo mundo inteiro com esta atividade ímpar e peculiar de contar histórias. Aí, você deve estar pensando assim: “O coitado deve passar fome, meu Deus do céu”. “Aonde já se viu, não é? Ganhar dinheiro contando história. h istória. Dá dinheiro isso?” Dá sim. Eu descobri que não importa qual a sua profissão, não importa qual a sua área de atuação. Se você fizer bem feito, se você fizer com amor, as pessoas passam a te respeitar por aquilo que você faz e a recompensa, ela vem com o tempo, não é? Pode ser em nível de reconhecimento ou em nível financeiro. Em nível de reconhecimento, para você ter uma idéia, no ano passado, eu até ganhei um comercial na televisão. Aquela propaganda “o melhor do Brasil é o brasileiro”. Aquele negão era eu. Obrigado. Bem, em nível financeiro, também eu não estou mal não, viu? Atualmente, eu moro numa casa que tem três andares, ela é estilo colonial e com piscina, tenho uma fazendinha em Minas Gerais, tenho um carrão importado, um apartamento na praia e ainda sou solteiro. Bem, primeira dica que eu dou para os colegas voluntários: volun tários: Nunca perca a oportunidade de fazer o seu comercial. Não, mas é Sério. Se você não falar bem de você, mais ninguém vai falar, não é? E, no Brasil, por muitos anos, nós cultuamos uma coisa da baixa estima, eu sou brasileiro, não é? “Onde você mora?” “Estados Unidos. Estados Unidos”. “O cara é americano, o cara é americano”. Mas, quando é brasileiro, o cara fica com a cabeça baixa. Eu aprendi a vender o meu peixe e as pessoas começaram a me valorizar por isso. Bem, eu vim falar para vocês aqui hoje coisas simples da minha vida, mas eu acho que vale muito a pena. Eu descobri, ao longo da minha vida, que existem dois tipos de pessoas: as que choram e as que vendem lenços, não é? E você, depois, vai escolher de que lado você vai ficar: ou reclamar da vida ou vender lenços, não é?Existem pessoas simples, pessoas comuns, pessoas ordinárias, mas existem também pessoas extraordinárias. E as respostas que as pessoas dão para a vida é que mudam completamente a realidade delas e a realidade das pessoas que estão à sua volta. Eu descobri que existem pessoas pessimistas e pessoas otimistas e como essas pessoas, ao agir, tocam em alguma coisa que está à sua volta, mudam realmente a realidade. Quando conta as coisas boas que aconteceram comigo, as pessoas falam assim: “Pôxa, o cara tem um carro importado, tem uma fazenda, uma casa grandona. Nasceu com o negócio virado para lua”. Mas nem sempre foi assim. Não, não foi assim. O interessante da minha história é que eu fui menino de rua, em Belo Horizonte. Eu fui um aluno da extinta FEBEM de Minas Gerais. Eu fui um caso tão complicado para a FEBEM de Minas Gerais, que eu cheguei a fugir das unidades dela 132 vezes. Sério! E, quando eu tinha nove anos de idade, o meu prontuário tinha sido carimbado com uma declaração assim: “Ao que nos parece, trata se de um caso irrecuperável”. Com nove anos, eu não tinha mais jeito. Gente, com 13 anos, eu estava perambulando pela rua, fumando um cigarrinho de maconha, de vez em quando, batendo carteira.
Mas, um dia, a minha vida deu uma guinada de 180º graus. Então, eu vou mostrar para vocês a diferença que existe entre as pessoas simples, comuns, ordinárias, para as pessoas extraordinárias. A diferença que existe das pessoas que choram para as pessoas que vendem lenços. Parece bobagem, mas elas mudam realmente a realidade do mundo e das pessoas. Na parte de religião, muitas vezes, eu gosto de fazer palestras vestindo um terno, não é? Aí, as pessoas falam: “Negão de terno é motorista ou é pastor”. Eu falo: “Não, eu sou palestrante. Eu faço palestra”. Não, às vezes, eu termino de fazer a palestra, eles falam: “Na paz do Senhor, Pastor”. Pastor”. ”Não, eu sou contador de histórias”. Mas eu não tenho uma religião definida, mas, acredito muito em um cara aí em cima; alguns chamam de Alá, Jeovah, Buda, Maomé, Xangô, Cristo, Christian, eu não sei qual o nome, mas tem um cara aí em cima que eu agradeço diariamente o dom da minha existência. Eu descobri mais. Esse cara é tão otimista, e como diz a minha amiga Neila Navarro, ela fala que a única palavra que Deus fala com todo mundo é a palavra sim. Deus não abre a boca para falar outra coisa com a gente, a não ser a palavra sim. Se você abre a boca para ele e fala: “Deus, eu sou um miserável, um pobre coitado, eu não sirvo para nada”. Ele vira e fala: “Sim, meu filho”. E ele faz de tudo para que você seja aquilo que você falou para que você não passe por mentiroso. A pior coisa que Deus quer ter na vida é um filho mentiroso. Então, ele investe em você, te capacita para ser um pobre coitado, um miserável, não é? Agora, se você abre a boca e fala: “Deus, eu quero ser rico, r ico, reconhecido, respeitado”. Ele abre a boca e fala: “Sim, meu filho. Você vai ser rico, reconhecido e respeitado”. E ele faz de tudo para que você seja aquilo que você falou. Bem, então, nessa parte de responder sim para todas as coisas, de uma maneira otimista, eu descobri que nós vamos passando por outros estágios. É como se fosse um upgrade na vida da gente. Vai mudando um pouquinho. Eu vou mostrar como é que isso funcionou na minha vida. Bem, mas já que têm contadores de histórias, pessoas que trabalham como contadores de histórias, e eu sou um contador de história, permita eu brindar a vocês com uma história. No ano de 2001, eu tive a oportunidade de ser eleito nos Estados Unidos, como um dos dez maiores contadores de histórias da atualidade. E foi, talvez, um golpe de sorte. No ano de 2000 para 2001, eu estava ainda construindo essa minha casa que tem três andares, estilo colonial e com piscina. Ela era, assim, um grande projeto. Eu estava na metade ainda porque eu sempre descobri: “Sonhe alto para você pelo menos fazer metade”. Se você sonhar com uma casa térrea, você faz um barracão. Se você sonha com um barracão faz um quartinho, se você sonha com um quartinho, vai morar na casa do vizinho. A gente nunca consegue atingir os objetivos, a gente pára no meio do caminho, não é? Eu pensei, casa de três andares com piscina, pelo menos, dois andares, não é? E uma banheira está bom demais. Estava endividado, tinha entrado no cheque especial, quando chega o motoqueiro do Correio. Chega lá, me entrega um envelope, quando olhei as bordas, tinha azul e vermelho. Falei: “Pronto. É conta dos Estados Unidos que está chegando. Comprei alguma coisa no cartão de crédito”. Quando eu abri, estava escrito assim, em inglês: “O senhor está sendo convidado para participar de um Encontro Internacional de Contadores de Histórias em San Diego, na Califórnia. Eu falei: “Encontro internacional de Contadores de Histórias, existe isso?” Sabe o que eu pensei? “Gente, deve ser uma reunião para cinco ou seis pessoas, chega lá eu conto a história para um, escuto a história de outro”. Mas estavam me mandando uma passagem aérea de graça e mais 500 dólares para tomar Coca cola depois do evento. Falei: “Mas é claro que eu vou”. Peguei minhas coisinhas, coloquei numa mochila francesa, e lá fui eu. Deixa eu explicar por que mochila francesa. A mochila francesa cabe uma muda só de roupa. Na mochila brasileira... Brasileiro, quando viaja, coloca 40 calças jeans, 50 cuecas, 18 camisolas, não é? Vai preparado... Até guarda chuva ele leva, não é? Eu falei: “Não, vai uma muda só de roupa. Ou eu visto aquela ou vou pelado para o evento, não é?” Quando o avião desceu em San Diego, eu olhei pela janelinha e eu já vi um outdoor no alto de um morro: “Wellcome to story tellers”. “Bem vindos, contadores de histórias”. “Que exagero!” Fizeram uma placa daquele tamanho para meia dúzia de pessoas, não é? Quando eu desço do avião, eu vi umas 30 recepcionistas, clone uma da outra. Já estão clonando gente há muito tempo, viu? Todas tinham a mesma cara, a mesma peruca da Marilyn Monroe, a mesma saia esvoaçante, rindo assim para mim. Eu falei: “Gente, que exagero, não é?” Cheguei com a minha mochilinha, falei assim: “Sorry, I’m from Brasil”. Com licença, eu vim do Brasil para um Encontro de Contadores de História. Meu nome é Roberto Carlos. As 30 fizeram ao mesmo tempo: “Oh, wellcome, Profesgsor Roberto”. Bem vindo. “Nós estávamos aguardando o senhor, não é?” Eu falei: “I am a story teller”, eu sou contador de histórias. “Não sou cantor não, viu?” “É o senhor mesmo”. Eu falei: “Mas e aí? Já chegaram todos os contadores de história?”
Ela falou: “Não, estão faltando uns 300 ou 400 ainda”. Eu falei: “Estão faltando quantos, minha senhora?” “Uns 300 ou 400”. “Espera aí! Mas quantos que vão vir para esse evento?” “Você não leu no convite não? Aproximadamente quatro mil contadores de histórias, não é? É o Encontro Internacional de Contadores de História. O senhor nunca ouviu falar desse Encontro, lá no Brasil?” Eu: “Claro que já, uai”. “Lá no Brasil, a gente não fala de outra coisa. Depois da Copa do Mundo esse encontro é o mais falado, não é?Jesus do céu, o que é que eu vim fazer aqui?E a mulher mu lher falou: E no dia da sua apresentação estamos olhando uma tenda maior que comporte todo mundo porque todo mundo está querendo ouvi lo. Eu falei: Pronto. Eu estava com uma dor de barriga, a dor de barriga virou quase que uma diarréia. Falei: Seja o que Deus quiser. quiser. Eu fiquei em depressão no quarto de hotel pensando em que história que eu vou contar para essas pessoas, não é? No dia da minha apresentação subo no palco, me lembrei de uma orientação que minha mãe tinha me dado enquanto viva. Falou: Meu filho, não tenha medo. Se você tem boa vontade, se você não vai ameaçar ninguém, não vai xingar ninguém, chegue em qualquer lugar com um sorriso no rosto. Você pode ser cristão, vai chegar no meio dos muçulmanos sorrindo, alguém vai te sorrir em contrapartida se você não é ameaça. Falei: Seja o que Deus quiser. quiser. Pisei no palco e... Não é? Mas americano já conhecia essa técnica e fizeram assim: “Hum... ” Mas eu vi na minha frente um senhor que, graças a Deus, era da minha cor, negro. Mas era desse tamanhozinho, tinha uns 80 centímetros. Falei: “Serve em caso de emergência, não é?” Aí, eu ri mais para ele, não é? Ele fez... Eu falei: !Pronto. Vou contar história para esse cara, não é?” Eles me deram 50 minutos para eu me apresentar. Gente, eu utilizei os 50 minutos no máximo. Eu nunca gostei de largar a aula antes da hora, não é? Porque tem professor que fica assim. “Nossa, falta 15 minutos para acabar, não é? Falta 10 minutos”. Eu não. Eu tenho que ficar o máximo. Quando eu terminei, gente, a minha apresentação a platéia aplaudiu. O pessoal começou a ficar de pé me aplaudindo. Eu falei: Graças a Deus, deu certo, não é?Eu estava me preparando para me retirar do palco, quando o meu irmão de cor, aquele baixinho, foi pedir ajuda, não é? Ele subiu na cadeira dele. Gente, ele silenciou quase que quatro mil pessoas no gogó. Eu estava usando o microfone bonitinho, aqueles tipo da Madonna, aquelas coisas assim, o cara sem microfone virou para a platéia e falou assim: “Aiamoré aimininonó aminimonó(F)”. Eu falei: “Ai, ai, ai. O cara não gostou”. Eu falei: “Não só não gostou, como está falando para ninguém me aplaudir”. Eu falei: “Eu tenho um metro e 92 de altura, aquele neguinho tem uns 80 centímetros”. “Vai calar a boca é agora, quer ver?” Eu fui me aproximando como quem não queria nada. Mas, ainda bem, gente, em meu socorro veio uma senhora, uma professora lá dos Estados Unidos. Sabe aquelas mulheres que quando andam tocam música. A mulher anda e faz assim: Tchbum, tchbum. Ela chegou e falou assim: I’m sorry, may I help you?” “Com licença, eu posso ajudar?” Eu falei: “Please. Eu não estou entendendo nada do que esse cara está falando”. “Mas é claro, Professor Roberto. É porque ele é um pigmeu”. Eu: “Ah... Por isso que ele é baixinho assim”. Ela:”Baixinho não, senhor. Os pigmeus têm 50 a 60 centímetros de altura. Esse cara tem 80”. “Na tribo dele, ele é um gigante. Ele é o maior da tribo. Chamam ele de vara pau, poste, bambu e o senhor fala que ele é baixinho?” Eu falei: “Desculpa. É meu ponto de vista”. Ela falou: “Cuidado! Ponto de vista, nos Estados Unidos, dá processo”. Eu falei: “Desculpa, desculpa, desculpa”. “Bom, ele está falando que, na tribo dele, quando ele ganha uma história tão interessante como a sua de presente, não é aplauso que paga esse presente que ele ganhou; ele se sente na obrigação de retribuir essa história, con tando uma outra história para o senhor”. Eu falei: “Ai, “Ai, que ótimo! A senhora vai traduzir?” Ela falou: “Não. Não entendo nada que os pigmeus falam. Esse cara está o dia inteiro enchendo o saco do pessoal aí, querendo contar uma história, mas ele já foi desclassificado. Ninguém tem tempo para ele. Se o senhor tiver cinco minutos de atenção para dar para o coitado, não é?” Eu falei: “Tudo bem”. A mulher foi embora e me deixou a sós com o cara. Eu pensei: “Já ganhei meus 500 dólares, já contei minha história, ganhei até aplauso, o que é que custa cinco minutos?” Aí, relaxei. E, na hora que eu relaxei, gente, por incrível que pareça, eu comecei a entender a história que aquele senhor estava me contando, não com as palavras que vinham da boca dele. Ele me falava numa outra linguagem, a linguagem do coração ou da boa vontade. Aí, eu entendi que, com a boa vontade, você entende qualquer pessoa de qualquer lugar do mundo. E, com boa vontade, qualquer pessoa de qualquer lugar do mundo é capaz de te entender. entender. O importante é que você abra o seu coração e estabeleça uma sintonia com o seu interlocutor.
Porque, sem que eu percebesse, aquele senhor de 80 centímetros estava me dando de presente uma história que faria com que eu ganhasse um prêmio de 50 mil dólares, naquele ano, lá nos no s Estados Unidos. Naquele ano que eu fui para ganhar 500 dólares, eu ouvi a história daquele senhor, não sei como, eu fui parar na semifinal do concurso. Eu não tinha história interessante para contar. Eu pensei: “Por que não contar a história que o pigmeu me deu de presente, pelo que eu entendi”. Eu usei a história na semifinal e me atrevi a contar a história na final do concurso. Naquele ano, ano de 2001, pela primeira vez, um brasileiro, um Sul Americano ganhou o prêmio como um dos 10 maiores contadores de história da atualidade. E, se vocês me permitem, a BUNGE me contratou para vir aqui dividir o prêmio de 50 mil dólares com vocês. Contando a história, é claro; o dinheiro já acabou há muito tempo, não é? Gente, casa com piscina é uma nota, você não sabe o que é, não é? Essa história, talvez vocês já ouviram, que, quando eu voltei dos Estados Unidos, eu coloquei em livro, fita, CD, CD ROM, distribuí para as escolas Estaduais e Municipais do Brasil quase todo; um banco mineiro comprou quase que 200 mil cópias para distribuir para todo mundo, fui parar na Internet. Talvez Talvez vocês já conheçam, mas é bom saber de onde que ela veio. A história é chamada de “O homem sem sorte”. Essa história ensina para as pessoas a criar sorte. Ela é, mais ou menos, assim: “Era uma vez um homem que se achava tão sem sorte, mas tão sem sorte, que ele vivia reclamando com Deus. “Ô, Todo Poderoso, onipotente, onipresente, criador de todas as coisas, o senhor deu sorte para todo mundo na vida, todo mundo tem um carro legal, tem uma casa, tem uma namorada, eu não tenho nada, que injustiça foi essa que o senhor fez comigo, deu sorte para os outros e não deu para mim?” E ele vivia reclamando a espera de resposta mas não vinha resposta nenhuma. Um dia, então, cansado de brigar com Deus ele extrapolou. Falou: “Deus, o senhor não vai me responder não, não é? Pois eu vou descobrir onde que o senhor mora. Eu vou atrás do senhor eu vou ter um tete a tete”. E ele pensou:”Aonde que Deus mora? Ah, já sei. Deus deve morar é lá no fim do mundo. Mas espera aí. Como é que eu faço para chegar no fim do mundo? É muito fácil. O fim do mundo deve ser o local onde terminam todas as estradas e todos os caminhos do mundo. Então, se um dia eu insistir e seguir uma estrada até no final, e lá for o final de outras estradas, lá é o fim do mundo. Lá eu vou encontrar com Deus, o Criador, e vou saber com ele qual o motivo da minha falta de sorte. Então, pela primeira vez na vida, aquele homem sem sorte resolveu arriscar. arriscar. Ele colocou o “pezinho” para fora da casa dele, olhou o tempo, não ia chover, não ia fazer o sol quente, era um tempo ideal para começar a caminhar e, quando ele começou, ele não parou mais. Porque, segundo o pigmeu, gente, que me contou essa história, aquele homem sem sorte caminhou, caminhou, caminhou, caminhou um dia, caminhou uma semana, caminhou um ano, um ano e um dia. No final de um ano e um dia, quando ele estava caminhando, ele pisou numa coisa macia e escutou. “Ai”. E quando ele olhou para o chão ele viu um lobo, pelo menos, aquilo que parecia um lobo. Olha, gente, era um lobo tão magro, mas tão magro que só tinha pele e osso. E o lobo, muito fraquinho, falou assim: “Moço, moço, será que você não poderia me ajudar”. “Não posso não, seu lobo. Eu sou muito azarado. Tudo que eu faço dá errado na vida. Eu sou tão azarado que eu estou indo procurar Deus, o criador, lá no fim do mundo para saber com ele qual o motivo da minha falta de sorte”. Quando o rapaz contou aquela história, o lobo falou assim: “Espera aí. O senhor diz que vai encontrar com Deus, o Criador? “Ah, moço, então, faz um favor para mim. Deixa eu contar o meu problema. É que, de uma hora para outra, eu caí aqui no chão prostrado, numa fraqueza tão grande, que eu não consigo mais me levantar. Tudo Tudo que eu faço para me levantar dá errado e eu caio novamente. Já que vai encontrar com Deus, pergunta para ele qual o motivo da minha fraqueza. O senhor pergunta?” O rapaz falou assim: “Tudo bem, seu lobo. Eu posso até perguntar. perguntar. Só que quando eu encontrar com Deus, eu acho que eu vou ter tanta sorte na vida, mais tanta sorte, que eu acho que eu não vou voltar por esse caminho não. Eu vou voltar pelo caminho onde as pessoas sortudas, bem aventuradas, abonadas, das pessoas felizes. Mas se eu passar por esse caminho, eu dou a resposta para o senhor. Tchau e boa sorte. ” E ele deu tchau para aquele lobo e novamente se pôs a caminhar. E ele, então, caminhou, caminhou, caminhou um dia, caminhou uma semana, caminhou um mês, caminhou um ano, um ano e um dia. No final de um ano e um dia, quando ele estava caminhando, ele tropeçou de árvore e ia xingar um palavrão, mas, quando observou, a raiz estava dando uma árvore que estava perdendo todas as folhas e a árvore falou assim: “Moço, moço, será que você não poderia me ajudar?” “Não posso não, dona árvore. Eu sou muito azarado, tudo que eu faço dá errado na vida. Olha, eu sou tão azarado que eu estou indo procurar Deus, o Criador, lá no fim do mundo, para saber com ele qual o motivo da minha falta de sorte”. Quando o rapaz contou aquela história, a árvore falou assim: “Espera aí. O senhor disse que vai encontrar com Deus, o Criador? Ah, moço, então, faz
um favor para mim. Deixa eu contar qual o meu problema. É que, de uma hora para outra, eu comecei a sentir um calor aqui no meio das minhas raízes e este calor está subindo pelo meu tronco afora e está me fazendo perder todas as folhas. Já que o senhor vai encontrar com Deus, pergunta para ele qual o motivo do calor que eu estou sentindo aqui, que está me matando aos poucos. O senhor pergunta?” Falou: “Tudo bem, dona árvore. Eu posso até perguntar. Só que quando eu encontrar com Deus, eu acho que eu vou ter tanta sorte na vida mas tanta sorte, que eu acho que eu não vou voltar por esse caminho não. Eu vou voltar pelo caminho das pessoas sortudas, bem aventuradas, abonadas, das pessoas felizes. Mas, se eu passar por esse caminho, eu dou a resposta para a senhora. Tchau e boa sorte”. E ele deu tchau para aquela árvore e novamente se pôs a caminhar. Ele, então, caminhou, caminhou, caminhou um dia, caminhou uma semana, caminhou um mês, caminhou um ano, um ano e um dia. No final de um ano e um dia, quando ele estava caminhando, ele passou por um jardim gramado, florido, viu aquela profusão de flores, uma quantidade de flores e viu também, gente, uma casinha branquinha pequenininha. Sabe aqueles quadros pequenininhos que você vê numa casinha, um chalezinho, ele viu aquela casa. Ao se aproximar daquela casa, ele viu uma moça, uma jovem varrendo o quintal. Quando ele olhou para aquela moça, ele parou meio congelado. Olha, ele nunca tinha visto uma moça tão bonita como aquela. E a moça quando percebeu o rapaz, parou assim meio sem graça, porque ela nunca tinha visto um rapaz tão simpático como aquele. E ela, então, por educação convidou o rapaz para entrar na sua casa. O rapaz foi entrando e ela rapidamente fez um suco para ele. Ele foi tomando o suco e pensando: “Hum, mas que suco gostoso. De que será feito? Eu vou tomar coragem e perguntar para essa moça”. Quando o rapaz ia abrir a boca para perguntar de que era feito o suco, a moça, gente, que estava de costas, começou a responder antes dele perguntar. “O suco é feito desse jeito, desse jeito, desse jeito”. Ele falou: “Gente, mas que moça mais interessante. Ela responde antes da gente perguntar. Significa que é uma pessoa muito atenta e atenciosa. Olha, podia bem namorar com ela mas... “Ah, moça, eu sinto muito porque eu estou com um pouco depressa, é que eu sou muito azarado, sabe? Eu estou indo procurar Deus, o Criador (... )” E contou aquela mesma história de todo dia. Quando ele terminou, a moça falou assim: “Espera aí, o senhor disse que vai encontrar com Deus, o Criador? Ah, moço, então, faz um favor para mim. Deixa eu contar qual é o meu problema. É que eu moro aqui nessa casinha e, como o senhor pode ver, é uma casinha simples, pequenininha, mas, de vez em quando, vai me dando um vazio no peito, uma tristeza tão grande, uma vontade de chorar e aí eu fico aqui dentro lavando, passando, cozinhando e chorando sozinha, dentro de casa. Já que vai encontrar com Deus, pergunta, por favor, qual o motivo do vazio que eu sinto no peito, que me faz chorar. O senhor pergunta?” Ele falou: “Tudo “Tudo bem, moça. Eu posso até perguntar. perguntar. Só que quando eu encontrar com Deus, eu acho que eu vou ter tanta sorte na vida, mas tanta sorte que eu acho que eu não vou voltar por esse caminho não. Eu vou voltar pelo caminho das pessoas... Mas se eu passar por esse caminho, é claro que eu te dou a resposta. E ele deu tchau para aquela moça e novamente se pôs a caminhar, caminhar, gente. Ele, então, é claro, caminhou, caminhou, caminhou, caminhou um dia, caminhou uma semana, caminhou um mês, caminhou um ano, um ano e um dia, até que ele chegou, gente, no local onde terminavam todas as estradas e todos os caminhos do mundo. E, segundo a história que eu estou contando, o local onde terminou todas as estradas e todos os caminhos é o fim do mundo; o lugar onde, segundo o pigmeu, morava Deus, o Criador. O rapaz foi chegando ao fim do mundo, querendo se ajoelhar para fazer uma prece, quando ouviu aquela voz. “O que queres meu filho”. “Opa, me chamou de meu filho, só pode ser meu pai, não é? Eu vou vo u logo pedir para não perder tempo porque Deus deve ser muito ocupado, não é?” Ele falou: “Ô, Todo Poderoso, desculpe incomodar o senhor, mas o senhor, quando me fez, esqueceu da minha sorte. O senhor deu sorte para todo mundo na vida, todo mundo tem uma casa legal, tem um carro, uma namorada, tem alguma coisa, eu não tenho nada, que injustiça foi essa que o senhor fez comigo? Deu sorte para os outros e não deu para mim?” Aí veio a resposta: “Você acha mesmo, meu filho, que eu dou sorte para alguém? Lamente informar que eu não dou sorte para ninguém. O que eu dou são oportunidades e a pessoa transforma as oportunidades da vida dela em boa sorte ou má sorte. Olha, volte pelo seu caminho e perceba quantas oportunidades você teve até hoje na sua vida e não aproveitou para transformá las em boa sorte ou má sorte”. Falou: “Ah, é. Se eu voltar eu vou encontrar uma oportunidade, uma boa sorte, má sorte. Gente, mais que bobagem. Eu perdi anos da minha vida vindo descobrir isso. Eu estou voltando é agora. Tchau para o senhor e fique com Deus. Quer dizer, fique com o senhor mesmo, hein, tchau!” O rapaz já ia saindo do fim do mundo, quando Deus chamou: “Rapaz, rapaz, com tanta vontade, mas
tão desatento ainda, hein? “Não está esquecendo de me perguntar mais nada não?” “Não, Todo Poderoso, Poderoso, não tenho. Ah, é mesmo, que bom que o senhor lembrou. Eu tenho três perguntas para fazer o senhor, mas é coisa sem importância. É sobre um lobo, uma árvore e uma moça”. O rapaz, então, perguntou. Deus respondeu e ele se pôs no caminho de volta. E ele estava agora com tanta pressa, gente, mas tanta pressa para encontrar com a sorte dele, que ele caminhou, caminhou, caminhou, caminhou um ano e um dia, caminhou um ano, um mês, uma semana, um dia. No final daquele dia, à tardinha, ele passou correndo por um jardim gramado, florido, viu uma casinha pequenininha, branquinha e uma moça muito bonita, mas triste, chorando na janela, mas ele estava com tanta pressa, mas tanta pressa para encontrar com a sorte dele, que ele nem quis parar, só parou quando a moça chamou: “Moço, moço, está lembrado de mim?” “É a moça mo ça que me fez o suco. Oi, moça, tudo bem? Eu estou com um pouco depressa”. “Só um minutinho, o senhor encontrou com Deus, o Criador?” “Moça, eu encontrei. Ele falou que minha sorte está no caminho. Eu estou voltando para encontrar com ela”. A moça falou: “Que bom. Moço, você lembrou de perguntar aquilo que eu pedi sobre o vazio que eu sinto no peito, a tristeza que me faz chorar?” “Ah, moça, eu perguntei. E Deus falou que o seu problema é solidão. A senhora fica aí chorando porque não tem ninguém para conversar, ninguém para namorar, ninguém para divertir, divertir, ninguém consegue ser feliz sozinho não. Deus deu uma dica para a senhora. Mandou a senhora ficar muito atenta porque segundo ele um dia vai passar um rapaz por aqui. A senhora, então, convida esse rapaz para entrar, entrar, quando o rapaz entrar, a senhora faz um suco para ele e ele vai tomar o suco e vai gostar. Antes dele abrir a boca para perguntar de que é feito o suco, a senhora explica para ele porque ele vai apaixonar pela senhora, vai pedir a senhora para namorar, o namoro vai dar em casamento e, segundo Deus vocês, vão ter dois filhos lindos maravilhosos e saudáveis e que o seu lar vai ser o lar mais rico da face da terra”. A moça: “Nossa, moço, mas que notícia mais agradável. Você não quer entrar e tomar um suco aqui, então, não? “Não posso não, moça, eu estou com pressa. Eu vou encontrar com a minha sorte. Não tenho tempo não. Imagine tomar um suco uma hora dessa, não é? Não tenho tempo não. Mas quando passar o tal rapaz que Deus falou, a senhora convida para entrar, entrar, hein? Tchau para a senhora e boa sorte, hein?” h ein?” E ele deu tchau para aquela moça e novamente se pôs a caminhar. E ele, então, caminhou, caminhou, caminhou, caminhou um ano e um dia, caminhou um ano, um mês, uma semana, um dia. No final daquele dia, à tardinha, ele tropeçou numa raiz de árvore e, quando olhou, a árvore estava perdendo a última folha. E a árvore falou assim: “Moço, que bom que o senhor voltou. O senhor encon trou com Deus, o Criador?” “Ah, dona árvore, encontrei. Ele falou que a minha sorte está no caminho. Eu estou voltando para encontrar com ela”. A árvore falou: “Que bom. Moço, o senhor lembrou de perguntar sobre aquilo que eu pedi, sobre o calor que eu sinto aqui nas minhas raízes, que está subindo pelo meu tronco e que está me matando aos poucos?” Ah, dona árvore. Eu perguntei. O seu problema é de fácil solução. Segundo Deus o seu problema é o seguinte: Quando a senhora era uma árvore pequenininha, desse tamanhozinho, veio um homem e enterrou uma caixa de ouro, diamante, de jóias, pedras preciosas, no meio das suas raízes, é, e agora a senhora está crescendo e a caixa de ouro está sufocando as suas raízes. Para a senhora ficar boa, é só desenterrar a caixa de ouro, que a senhora fica frondosa e verdinha que nem antes”. A árvore falou: “Gente, então, tem uma caixa com tesouros que está me sufocando? Ah, mas que bobagem... Ô, moço, vem cá, faz um favor para mim, desenterra essa caixa com tesouro, olha, pode até ficar com o tesouro para o senhor porque eu sou uma árvore, árvore não precisa de tesouros”. O rapaz, falou: “Não tenho tempo não, dona árvore. Eu vou encontrar com a minha sorte. Agora, quer que eu desenterre o ouro? Ah, pelo amor de Deus! Não, tenho coisas para fazer. fazer. Quando passar alguém, mande desenterrar porque eu estou com muita pressa, não é? Tchau para a senhora e boa sorte”. E ele deu tchau para aquela árvore e novamente se pôs a caminhar. Ele, então, caminhou, caminhou, caminhou, caminhou um ano e um dia, caminhou um ano, um mês, uma semana, um dia. No final daquele dia, à tardinha, ele pisou numa coisa macia e escutou. “Ai”. “Ai”. E, quando olhou para o chão, ele viu o lobo. Pelo menos aquilo que sobrava do lobo, não é gente? Olha, o lobo já estava tão magro, gente, mas tão magro que nem osso tinha mais. Era um tapete de pele estendido no chão, aquele olho branco soltando do globo ocular, os dentes caindo da boca. Mesmo assim, num esforço sobre-humano, ou “sobrelobal”, ou “sobrecanino”, sei lá qual esforço que o lobo faz, o lobo conseguiu levantar a cabeça e falar assim: “Moço, ô moço, o senhor encontrou com Deus, o Criador?” “Ah, “Ah, seu lobo, encontrei. E ele falou que a minha sorte está no caminho. Eu estou voltando para encontrar com ela”. O lobo falou: “Que bom. Moço, o senhor lembrou de perguntar aquilo que eu pedi sobre a minha fraqueza? Por que é que eu não consigo mais me levantar?” Ele falou: “Ah, “Ah, seu lobo, perguntei. E, de todas as perguntas que eu fiz para Deus, a do senhor é a mais chata de responder, mas eu vou falar com o senhor. senhor. Deus falou que o senhor está fraco desse jeito é de
fome”. “É? Fome?!” “Tem muito tempo que o senhor não come nada. E a única forma do senhor sobreviver é o senhor comer alguma coisa ou alguém que passar por aqui. Mas, sinceramente, fraco do jeito que o senhor está o senhor não vai conseguir caçar nada. A não ser que a caça venha aqui e entre na sua boca. Mas, pelo visto o senhor vai é morrer”. O lobo falou: “Deus falou que se eu não comer n ada e nem ninguém eu vou morrer?” “É isso mesmo. Se o lobo não comer nada e nem ninguém, ele vai morrer. Palavras do Senhor. O lobo, então, desolado, gente, olhou para um lado, olhou para o outro, olhou para o rapaz. “Falou, moço, já que eu vou morrer mesmo e o senhor é a última pessoa que eu vejo em vida, o senhor não poderia, então, me dar um abraço de despedida?” O rapaz: “Não tenho tempo não, seu lobo. Eu vou encontrar com a minha sorte. A minha sorte, ela é muito mais importante”. Só que o lobo insistiu: “Espera aí, moço, não vai embora. O que custa, um abraço só?” O rapaz: “Não, não tenho tempo”. Mas o lobo foi perseverante. Gente, o lobo insistiu tanto que convenceu o rapaz. O rapaz: “Ih, mas que lobo chato, eu vou dar um abraço nesse lobo e depois vou encontrar com a minha sorte”. O rapaz se virou, abriu os braços e foi caminhando em direção ao lobo. E a medida que ele se aproximava, gente, o lobo ainda olhava para ele e falava assim: “Mais perto, moço”. “Um pouquinho mais perto”. Coitadinho. Olha a cara de alegria do lobo, gente! Quando o rapaz estava ajoelhado, com os braços abertos, de frente para o lobo, ele percebeu uma coisa, aliás, a única coisa que ele percebeu durante toda a vida dele, ele percebeu, gente, que, à medida em que ele se aproximava do lobo, os olhos do lobo iam sendo tomados de um brilho estranho, intenso, como se aquela fosse uma oportunidade. E quando... Assustaram? Ô, gente, é só uma história! Geralmente a gente assusta quando perde a oportunidade. Vocês não estão perdendo nada. Vocês são tão atentos que vocês já desconfiaram como é que termina essa história, hein? Mas, segundo o pigmeu, ele me falou uma coisa: “Dificilmente podemos mudar o começo das nossas histórias, mas, com certeza, temos o dever de fazer de tudo para mudar o final das nossas histórias”. Então, segundo o pigmeu, toda a história pode ter um final feliz e o final que ele deu para a história é mais ou menos assim: E foi, então, num golpe de sorte, que aquele lobo tão faminto devorou aquele rapaz tão sem sorte. Obrigado, pessoal. Muito obrigado. Bem, vamos lá, então, obrigado, gente. À segunda história. A diferença entre as pessoas que choram e as pessoas que vendem lenços-Só ia a Belo Horizonte para lá, gente. A diferença entre as pessoas que choram e as pessoas que vendem lenço, para isso eu vou pedir cinco minutos de atenção. Acho que vocês podem me dar cinco minutos de atenção, como eu fiz para o pigmeu. Bem, cinco minutinhos. A minha história começa quando eu tinha seis anos de idade e eu morava com a minha família em uma favela em Belo Horizonte. Era uma favela muito grande e a minha família era numerosa. Nós éramos 10 filhos, mais meu pai e minha mãe e nós morávamos, gente, num barracão, gente, de dois cômodos com telhado de zinco. Éramos 12 pessoas num barracão de dois cômodos com telhado de zinco. Eu lembro que, no verão, era tão quentinho, mais tão quentinho dentro de casa que, se você entrasse com um pão de queijo cru na sala, ao passar do teto, ele chegava assadinho no colo da visita. A minha família inventou o microondas, microo ndas, mas não teve coragem de patentear a invenção. Mas, para mim, que tinha seis anos de idade, isso era uma vida normal e agradável. Sabe por que, gente? Eu tinha nascido na favela, morava na favela, meus irmãos era favelados, meus pais favelados, vizinhos favelados. Sabe o que eu achava? “A humanidade é uma grande favela”. Por que eu vou querer ser ou fazer alguma coisa diferente, se tudo que eu tenho de referência é isso aqui? Então, tudo está muito bom. De importante para mim, gente, quando eu tinha seis anos era o domingo. Todo o domingo, na minha casa, tinha frango, tinha maionese, tinha macarronada e tinha o programa do Silvio Santos na casa de um vizinho. Um vizinho, lá, gente, o mais rico da favela, o mais ousado, o mais atrevido, um dia, ousou novamente. Ele comprou a primeira televisão preta e branca da favela. Gente, quando aquele cara chegou com aquele caixote de madeira, não é? Carregando com mais dois, não é? Auxiliares lá, foi um rebuliço no morro. “Fulano comprou televisão”. “Comprou televisão? Mas que exagero, isso é coisa de rico. Tanta Tanta gente passando fome, comprando televisão?” Subiu o morro e todo mundo atrás, aquela procissão. Colocou em cima do móvel, eu lá, no meio da confusão. Eu não sabia o que era uma televisão. Já tinha ouvido falar alguma coisa, mas não tinha noção nenhuma do que vinha a ser. Eu comecei a ouvir o que os vizinhos falavam. Aí eu descobri que o mundo está dividido entre pessoas otimistas e pessoas pessimistas. Os otimistas são aqueles que te estimulam na sua idéia. “Ô, seu Zé, o senhor comprou mesmo televisão. Gente, esse homem é doido. Tem três anos que está juntando dinheiro, falou que ia comprar e ele conseguiu comprar. comprar. Eu quero ser que nem o senhor, senhor, viu, seu Zé? Quando colocar uma u ma
coisa na cabeça, eu vou fazer. fazer. E os pessimistas estavam assim: “Mas não liga, não, viu seu Zé? Fiquei sabendo que isso aí explode, viu? É, explode. O Governo manda um raio, pega na tal de antena, esse vidro pula para a frente, não é? Numa explosão, e mata tudo que é pobre. Já matou oito na outra favela. Não sei para que pobre compra televisão, não é?” E tinha um outro grupo que era o grupo dos radicais e eles não sabiam do que se tratava, de dentro de casa, gritava: “É coisa do capeta. Acabou foi a paz na favela”. Aí que eu fiquei curioso, gente. Televisão era o sonho do meu vizinho, era projeto do Governo para acabar com os pobres ou era coisa do capeta? O vizinho ficou na dúvida, mas o sonho era dele. E ninguém podia dissuadí lo l o da idéia, do projeto dele. Ele pegou a tomada e colocou na parede, apertou o botão. Por via das dúvidas, deu dois passos para trás. Se explode, não é? Eu não sei se vocês viveram essa fase televisão preto e branco, de válvula. Gente, mas televisão, antigamente, era de válvula. Para essa nova geração que não sabe, esqueçam o plasma, chip ou transistor. Imagina um caixote de madeira, com uma tela cinza, não é? Cheio de válvula lá atrás. O processo de funcionamento era o seguinte: Você pegava a tomada, colocava na parede, apertava o botão, aí, parecia uma estrelinha no visor cinza. A estrelinha, gente, virava uma linha branca, que cortava o aparelho. Vocês estão balançando a cabeça. Já viveram essa fase já? Olha, mais de 30 já se foram aí, hein? Aí, aquela estrelinha virava uma linha branca que cortava cor tava o aparelho, chuviscava o aparelho, não é? Você rodava o tal de seletor de canal, uma manivela, pegava a antena, ficava fazendo o sinal da cruz em cima do aparelho, para lá e para cá, para lá e para cá, para lá e para cá, pegava dois tuchos de Bombril, moldava: Coelho de um lado, borboleta do outro. E o filho mais velho, enquanto ficava fazendo a cruz, ficava assim, aos berros: “Vai, vai, aí, não, volta, volta, passou, vai, vai, vai, vai”. Quem passasse na rua, achava que era uma relação sexual. Não. Sério. Alguém tentando atingir o ‘ponto G” da casa. “Ai, para o lado, está bom, está bom, fica, deixa, deixa”. Era uma coisa assim, não é? O processo todo, para sintonizar o canal, gente, demorava de cinco a sete minutos. Para você mudar de canal, você fazia assembléia na casa. “Muda?” “Não, acho que não deve mudar”. O processo é sério. Porque, até sintonizar outro canal, demorava mais sete minutos e perdia toda a notícia, não é? Então, nada de pegar o controle remoto, ti ti ti ti, como você faz hoje. Não. Você pensava muito a respeito, não é? O vizinho colocou a tomada, apareceu a estrelinha, aí, os o s pessimistas, os pessimistas gostam de meter, gente, o pitaco antes da coisa acontecer: “Mas não falei? Olha lá a luzinha. Vai explodir, vai explodir”. O pessoal saiu em debandada. Só que não explodiu, gente. Apareceu a imagem. Quando apareceu a imagem, eu l embro da reação da vizinhança. O pessoal fez: “Oh, o trem funciona. Funciona, não é?” Aí, os pessimistas colocaram o rabo entre as pernas e falaram: “Não explodiu hoje, mas explode amanhã. Mas que explode, explode, você vai ver, não é?” O meu vizinho descobriu, depois mais tarde eu descobri, aquela cara dele, gente. Eu descobri que as coisas boas demoram um certo tempo para acontecer. A nós, seres humanos, não foi dada varinha de condão para fazer a mágica na hora: “Apareça!” Não é? É como se fosse televisão de válvula, demora alguns minutinhos, tem que insistir, tem que sintonizar para a coisa acontecer e aconteceu. Quando ele olhou a imagem, aquela coisa toda, um sonho foi realizado. Eu não consegui ver televisão naquela confusão por que pobre, quando vê uma novidade, é terrível. Ele vê 30 segundos o objeto, não é? A novidade e fica meio hora dissertando: “fklfsdlafhsdljhsdghsagh... kefjoifofodf”. “Gente, cala a boca, presta atenção!” Ninguém presta atenção. Já estão dissertando a respeito da cosmocidade da coisa, não é? Filosofia profunda. Eu saí da confusão e busquei um ponto estratégico. Um alto de um barranco, a 50 metros de distância da casa do vizinho. E, sentado em meu barranco, gente, eu descobri uma coisa interessante. Porque eu via a imagem pela janela, eu vi os vizinhos se acotovelando, via também os carros passando lá embaixo, no centro de Belo Horizonte. E vi também que todos os prédios de apartamentos, em Belo Horizonte, tinham aquela cor azulada, sabe, que vinha da televisão do meu vizinho. Falei: “Espera aí, se aquela cor azulada é de televisão, todo mundo em Belo Horizonte tem televisão. É... Só nós da favela, gente, nós que não temos”. Sabe... Então, eu descobri uma coisa: Em toda a situação de confusão, conflito, desespero, caos, mágoa, não adianta ficar na muvuca, na confusão, no buraco. Saia do buraco, da confusão, e busca um ponto elevado, um ponto estratégico. Esse ponto pode ser físico, mental ou espiritual, mas saia da muvuca e da confusão e fique no alto. Sabe por quê? Do alto, você vê muito mais longe. Até numa briga, eu descobri, mais tarde, que dá certo. Quando tiver dois colegas brigando, não entra para separar a briga não. Trepa num muro para você ver a briga de cima, você vê. Você vai ganhar dinheiro prevendo o futuro quem está brigando. “Pessoal, o futuro de vocês é negro. Eu estou avisando. Pára com isso”. Quem está brigando fala: “Cala a boca, você não sabe de nada não”. Pois, do alto do muro, que vai ver a briga, vai ver o carro da polícia virando a esquina, vai ver os dois entrando no camburão. Eles vão te perguntar: “Como é que você sabia que a gente ia ser preso?” Porque eu estava no alto. Quem está no alto, vê muito mais lon ge. É
a tal de perspectiva. O ser humano é movido pela perspectiva, ele tem que ver mais longe. Então, do alto do meu barranco, eu falei: “Então, já que todo mundo tem, quando eu tiver uns 15 anos e eu for rico, eu vou comprar umas 10 televisões”. Porque eu tinha uma certeza: que ia ser rico um dia. Ainda não sou, mas eu vou ser. Porque são duas certezas que todo o ser humano tem. Uma é que um dia vai ficar rico. É ou não é? Quem aqui nessa sala, em sã consciência, nunca falou: “Quando minha vida mudar, mudar, quando eu tiver muito dinheiro, quando eu tiver condições, não é?” Todo mundo tem essa certeza. E a outra certeza, a gente finge que não sabe, é que nós vamos morrer. Vai morrer sim. Todo Todo mundo vai morrer. morrer. Uns mais rápido, outros ou tros mais tarde, o importante é o que você vai fazer antes dela chegar, da morte chegar, chegar, não é? Mas a gente finge que não está sabendo. Então, eu falei: “Quando “ Quando eu for rico eu vou comprar umas 10 televisões. Eu vou colocar quatro no telhado, para todo mundo ver que eu sou rico. Vou colocar uma no portão, para quem passar na rua ver a novela, não é? Colocar uma em cima da geladeira, uma no galinheiro, galinha também tem direito, vamos socializar a coisa, não é? E o resto no meu quarto”. Sabe porque tantos televisores, gente? Porque me ensinaram que antigamente valorizava se uma pessoa, ainda se valoriza, pelas coisas que ela tem e não pelo que ela é. Isso cresceu comigo e infelizmente nós passamos aí para nossos filhos que o i mportante é ter alguma coisa e não ser alguma coisa. E eu lembro, quando eu falei para meu ai assim:”Ô, pai, compra uma televisão só para a gente”. Sabe o que meu pai me falou, na insignificância daquela época? “Meu filho, presta atenção no que eu vou te falar: quem tem uma televisão é rico”. Foi aquele silêncio dentro de casa. Aí, eu, curioso: “Pai, e quem tem duas televisões?” Meu pai falou: “Meu filho, é milionário”. milio nário”. E eu falei: “Pai, e quem tem três?” “Isso é ladrão, roubando de alguém, para quê três televisões, menino?” Meu pai ficou com raiva, bateu a porta, saiu de dentro de casa. Eu cresci aquela coisa: “quem tem três é ladrão”. Para você ter uma idéia do peso que a palavra tem na cabeçada gente. Eu cresci com isso. A gente, já adulto já, um dia apareceu uma promoção no Carrefour, televisão 29 polegadas, 799 reais. Lá fui eu comprar uma terceira televisão para casa, tinha uma no meu quarto, uma na sala e uma no quarto do hóspede; do hóspede, por que não, não é? Estava lá na fila, pega a televisão. O vendedor, vendedor, muito educado, fala assim: “É a sua primeira televisão”. Eu falei: ‘Não, é a minha terceira... ai, meu Deus, quem tem três é ladrão. Moço, eu vou levar duas de uma vez, eu fico com quatro. Mas três... Eu não sou ladrão, gente, eu não sou ladrão”. É o peso que a palavra tem. A palavra, ela serve para estimular o indivíduo, mandá lo para frente e para limitar o indivíduo. Parece bobagem, mas é. Quantos de vocês, mulheres, principalmente, não cresceram com a mãe, com a avó, falando com vocês o seguinte: “Minha filha, não usa u sa calcinha rasgada não. Um dia você pode passar mal, cair na rua, a calcinha está furada, não é? Eles vão abrir a sua roupa, ventilar e a calcinha está furada”. Já ouviram isso? Já? Pois é, toda mãe fala aquilo. Eu nunca vi uma moça cair na rua com a calcinha furada e os outros abanando. Mas já ouviram uma coisa dessa, não é? Quantos de vocês não passam debaixo de uma escada porque dá sete anos de azar, azar, não é? Então, a gente vai criando superstições na cabeça da gente porque a palavra, ela te estimula, te limita. Mas, tudo bem. Então, naquele processo todo, um dia, o frango desapareceu lá de casa, a maionese fugiu com o frango e um dia apareceu a tal de canjiquinha, um milho moído, triturado; daqui para o Sul, o pessoal fala “quirera”; no Norte, é mugunzá, aquela coisa toda. Tem gente que fala: “É uma delícia”. Mas experimenta comer um ano inteiro para vocês verem. É um horror, gente. Canjiquinha no almoço, canjiquinha no jantar e no café da manhã... O bicho pegou lá em casa, literalmente, porque meu pai estava desempregado. E, naquela época, não existia nenhuma entidade governamental de creche, de escola, que acolhe se a criança em situação de risco. Imagina meu pai e minha mãe com dez filhos pequenos. Minha mãe tinha que sair para procurar emprego. A única solução apareceu. Minha mãe saiu um dia e voltou e falou assim: “Meu filho, arruma suas coisas porque eu consegui uma vaga numa escola para você. Lá é que nem escola de rico. Lá você vai aprender a ler, a escrever, escrever, vai passar o dia inteiro brincando com seus colegas”. Eu falei: “Ôba, mãe, que escola é essa?” “Chama FEBEM”. “Ôba, mãe, vou para a FEBEM?!”. “Vai, meu filho”. Eu não sabia o que era FEBEM, gente, nem minha mãe tão pouco. Lembro que eu peguei minhas coisinhas, coloquei numa sacola de plástico e fui descendo as ruas da favela, dando tchau para os vizinhos: “Dona Maria, tchau para a senhora, estou indo para a FEBEM”. “Seu Zé, minha mãe está me levando para a FEBEM”. Eu via que todo mundo olhava para mim, gente, com uma cara de dó, de piedade. Sabe o que eu pensava? “Eles estão morrendo de inveja. É porque os filhos deles não podem ir para a FEBEM, só eu que vou. FEBEM é para poucos, não é?” Paramos no ponto de ônibus, minha mãe me comprou um saquinho de pipoca e era coisa rara comer pipoca naquela época. A gente só comia pipoca depois da missa de domingo. Mesmo assim, meu pai comprava um saquinho para dividir com meus nove irmãos. Aquele dia foi
um saquinho só para mim. Eu entrei no ônibus e minha mãe me descreveu o que é que era a FEBEM. Só que ela contou na linguagem dela de mãe, de adulta. E eu entendi na linguagem de menino de seis anos de idade. E um dos grandes problemas que persegue a humanidade é o problema de comunicação. Uma coisa é aquilo que a gente fala; outra coisa é aquilo que as pessoas entendem. Nem sempre a comunicação é perfeita. E um dos processos, talvez, vocês estarem se reunindo aqui é para vocês tentarem o tempo todo falar a mesma linguagem, no mesmo nível de compreensão. Minha mãe não tinha essa noção. E sem contar que, na atualidade, existe aí uma tal de neurolingüística. A gente fala uma coisa, a pessoa entende outra, a pessoa entende uma maneira diferente, expressa... Eu gosto até de brincar, talvez, você já conheça a brincadeira, é velha, não é? Mas vale a pena. Vocês... Já fizeram aquela brincadeira com vocês do “branco, branco, branco”. Não? Então, vamos brincar. brincar. Para vocês verem como a neurolingüística neurol ingüística funciona. Eu quero ver a rapidez de vocês em me responder r esponder,, ta? Eu vou falar uma palavra e vocês vão repetir a palavra comigo, depois, eu vou fazer uma perguntinha “na lata” e vocês têm que responder “na lata” também. Tudo Tudo bem? Então, vai lá. Repitam comigo! Branco, branco, branco, branco... PÚBLICO: Branco, branco, branco, branco. ROBERTO CARLOS RAMOS: RAMOS: Branco, branco, branco, branco. PÚBLICO: Branco, branco, branco, branco... ROBERTO CARLOS RAMOS: RAMOS: Agora, me respondam rapidinho: A vaca bebe... PÚBLICO: Leite. ROBERTO CARLOS RAMOS: Leite? Eu nunca vi a vaca com a teta na boca. “Ei, vai querer?” Vaca bebe água, gente. ROBERTO CARLOS RAMOS: RAMOS: A não ser que as vacas da BUNGE Alimentos bebam leite, não é? Eu não sei. ROBERTO CARLOS RAMOS: Mas a culpa não é de vocês não, gente; a culpa é da tal da neurolingüística. Eu bombardeei vocês com a informação que eu queria... Com o objetivo que eu queria atingir. E a mídia hoje incorporou isso muito bem. Quando eu quero fazer a cabeça de alguém, não é? A mídia brasileira, ela está tão danada nesse sentido, sem perceber, ela está cavando um buraco no ânimo do povo brasileiro. Quando você liga a televisão, nós sabemos que a violência está muito grande, todo mundo sabe disso, não é? Mas o que você vê? Seqüestro, tiroteio, bala perdida, dinheiro na cueca, mensalão. Quando você vê, todo dia... E quando amanhece o dia, eu te pergunto: “Como vai o seu país?” O que você fala? “Uma porcaria. Deus me livre e guarde. Se eu pudesse eu ia embora daqui. Só tem ladrão, só tem corrupto. Só tem tiroteio”. Calma lá. Prestem atenção numa coisa. Quantos de vocês aqui estão passando fome. Ôba, ninguém levantou a mão. Quantos de vocês têm emprego? Todo mundo tem emprego! Quantos de vocês estão estudando, se graduando, quantos de vocês não estão tendo condições de pagar uma escola particular para os filhos, quantos de vocês tem um dinheirinho que sobra para ir no cinema, para comer uma pizza, quantos de vocês não estão fazendo o consórcio do carro ou estão mudando de carro, estão com carro novo? Espera aí, será que a vida estão tão ruim assim, ao ponto de você o tempo todo ficar maldizendo, dizendo que está uma porcaria, que está uma merda. Lembre se de uma coisa: “Quando você abre a boca e fala uma coisa, a única coisa que Deus fala com você é a palavra... PÚBLICO: Sim. ROBERTO CARLOS RAMOS: Exatamente. Sem perceber, nós reforçamos uma coisa, aquela América católica, desculpe a palavra, mas fodida, não tem jeito, de que está ruim. Vamos, talvez, assumir um pouco o ânimo protestante, porque a máxima protestante é interessante, é: “Viverás do suor do teu rosto. Aquilo que plantares, colherás”. Eu não sou protestante não, mas eu gosto de estudar um pouquinho isso, não é? Aquilo que você plantar, plantar, vai colher. Lá nos Estados Unidos, quando o cara fatura o primeiro milhão de dólares, ele entra para a revista Forbs e o nome dele é proclamado, o pessoal solta fogos, ele dá champanhe para todo mundo. Aqui, quando o brasileiro ganha o primeiro milhão, sabe o que ele faz? Ele esconde, ele muda de lugar, tem vergonha de assumir que ganhou o primeiro milhão, como se ganhar dinheiro fosse um crime. Como se viver bem, com dignidade fosse um roubo. Porque a máxima do catolicismo é: “Só os pobres herdarão o reino dos céus. É mais fácil um camelo passar no furo de uma agulha do que um rico entrar no reino dos céus”.
Então, vamos saber distanciar um pouco das coisas, não é? Somos católicos, sim, tudo mais, mas vamos trabalhar que essa evolução material também vai trazer uma certa tranqüilidade para as pessoas e aquilo que nós falamos, de sonhos e de projetos, começa a acontecer também de uma maneira interessante. Minha mãe me levou para a FEBEM, ela me descreveu que a FEBEM era um castelo encantado, com muro com algodão doce e ponte elevadiça. Mas ela tinha uma certeza: A minha vida ia mudar naquela escola. E mudou, realmente. Quando eu cheguei lá, em vez de muro de algodão doce, era um muro de ferro, todo retorcido e o portão se abriu, como se abrem os portões de contos de fadas. Fez aquele barulho de “ihhhhhh”... Mas, quando eu entrei, o portão se fechou como se fecham os portões de castelo de terror: “Puffff”. E aí começou o meu contato com as pessoas simples, comuns, ordinárias, com as pessoas que choram o tempo todo. A primeira mulher que me atendeu naquela escola foi uma tal de assistente social. Lá veio ela, gente. Nada contra as assistentes sociais, ta? Nada contra. Mas, naquela época, tinha um problema. Para ter uma idéia, para você identificar uma assistente social, na minha época, ela tinha colar de pérola; uma volta, era recém-formada; colar de pérola com duas voltas, era chefe do setor; colar de pérola com cinco voltas, era mulher do Governador. Bastasse, não é? Ser importante, que tinha um colar de pérola, que era a assistente social. Lá veio a minha: o perfume que ela usava não era o tal do Channel nº 05, aquele caro não. Era o Channel 300, mais forte do que o nº 05, porque o cheiro do perfume vinha meia hora antes dela virar a esquina. O cheiro vinha, vinha, depois, que ela apontava. E parece que ela colocava, na vitrola, aquela música. “Como uma deusa... ” Porque ela não tocava em nada para não se contaminar. Gente, ela flutuava, assim, pelos corredores, com medo de encostar alguma coisa. Quando ela me vê, assim, ela viu que era um “menino ioiôzinho”. “Menino ioiôzinho’, todo mundo já foi um dia, é aquele que o nariz fica assim com o catarro, olha... É ioiô de catarro. Era, não é? ROBERTO CARLOS RAMOS: Não vem com nojeira, que todo mundo já foi assim, não é? Aí a mulher, não é? E eu tinha uma destreza tão grande no fio de catarro, que eu pegava uma tampinha no chão e sabia se era Coca ou Fanta, aquela coisa. A mulher mulh er,, quando me encontrava, falava assim: “Ô menino, limpa esse nariz, faz favor”. “Ah, o nariz?” Eu fui fazer assim, ela: Ô menino, com a mão não senhor”. “Com a mão não?” Eu peguei a camisa. “Ô menino, com a camisa também não”. “Como faz, se não for com a mão, nem com a camisa... Ah, tia, entendi”. Eu fiz assim, olhando para ela. Sabe aquela puxada nasal que o cérebro pára na porta do nariz; só não passa por falta de espaço? A mulher fez que nem você. Ai, seu porco! O... Eu que comi o catarro e ela que saiu vomitando. ROBERTO CARLOS RAMOS: A pior coisa que a humanidade tem é a tal hipocrisia. Todo mundo já comeu um catarrinho disfarçado e depois fica com nojo, não é? Exatamente. Aí, mal cheguei na FEBEM, ganhei o apelido de porco, porquinho. Tudo bem, dormi a primeira noite naquela escola e eu dormi como dorme toda a criança, xinga depois não consola, o menino fica: “Eu quero a minha mãe”. Aí, entrava o instrutor: “Quem está miando aqui nesse dormitório?” Era eu que estava miando. Amanheceu o dia e eu descobri que estava na creche, que era o setor que os meninos ficavam de zero até seis anos de idade. E a rotina era mais ou menos assim: Nós levantávamos 5:30 da manhã e os meninos que faziam xixi no colchão, tinham que colocar o colchão no sol. A partir daquele dia, eu voltei a mijar na cama. Não sei por que, mas voltei. Coloquei meu colchão no sol, voltei para o dormitório. Meus colegas começaram a me chamar de “mijadinho e mijadão”. “Ô, mijadão”. Eu fui falar com a tia: “Eles estão me chamando de mijadão”. A tia: “Claro, o senhor mijou mesmo. E você que mije amanhã outra vez que eu vou, ó, ó no senhor, ta?” Aí, eu perguntei para o colega: “O que é que é isso?” “Vai te capar, capar, retardado”. Eu: “Ih... “Ih ... ” Gente, com a resposta daquela mulher, ela se tornou o meu primeiro carrasco. Só de eu ver aquela tia no corredor, eu já mijava pelas pernas abaixo, com medo dela. Ela não tinha noção do estrago que ela tinha feito na minha vida, com aquela resposta simples dela. Para ela, ela falava aquilo todo dia, com todo mundo, mas essas respostas têm que ser pensadas de indivíduo para indivíduo. Ela não sabia disso. Mês depois, para ter uma idéia, eu fui escolhido para ser noivo da quadrilha. Estava todo bonitinho, lá, vestido de jeca, para ser o noivo. Quando chega essa tia que um dia me ameaçou. Ela pega uma tesoura de picotar, aquela cheia de dente, e começa a fazer bandeirola para enfeitar o pátio, não é? Quando eu vi a mulher com uma tesoura na mão, eu já parei sem fôlego. Ela olhou para mim e falou: “Roberto, você está aí? Você está bonito. Daqui a pouco vai começar, ta?” Eu: “Ahhhh... ”. Ela falou: “Gente, esse menino é doido, não é? Ele olha para mim e começa a chorar”. Eu fui chorar no banheiro. Não dancei a minha primeira quadrilha. Ela falou que ia começar a quadrilha. Eu entendi que era acerto de conta, o juízo final, não é?Que ela ia fazer a justiça que ela tinha falado. Essas pessoas são chamadas pessoas “tsunami”. Elas vêm e passam por cima dos outros, atropelam todo mundo, continuam o caminho sem olhar para trás, não imaginam o estrago que fizeram na vida dos outros. Com sete anos, eu saí do setor da creche, fui para o setor infantil; setor que os meninos ficam de sete até 14 anos de idade. Era o mesmo setor onde os meninos bobinhos, que nem eu, se misturavam com outros que ti-
nham 12, 13 anos, que tinham uma trajetória de rua, fumavam cigarro, usavam droga, eu não sabia disso. Caio naquele setor, setor, é claro, comecei a me misturar porque era um “tio” para trabalhar com 50 crianças; é uma coisa desumana, até. E eu não tinha nome mais. Eu era, agora, um nú número mero 374; o meu short escrito FEBEM-374; a camiseta, FEBEM-374 e eu insistia que era Roberto Carlos 374, perdi completamente a minha individualidade. Com sete anos e meio, iniciaram in iciaram se as minhas fugas. Porque um dia falaram que a tal de “tia Dulce” ia lá. Para quem não sabe, a tia Dulce, ela foi a antecessora da Xuxa e da Angélica, em termos de Programa Infantil no Brasil e na TV Tupi Mineira. Era uma mulher loira que, como a Xuxa e a Angélica, tinham os ajudantes, não é? Aliás, qual era a condição para uma menina ser paquita, na época de vocês. A menina tinha que ser... Não sei por que, mas tinha essa coisa, tem essa coisa no n o Brasil, não é? O negro, n egro, na televisão, a gente não via. Na minha época, não via. Então, só via menino branquinho e loirinho ajudando a tia Dulce. Aí, eu falei com a tia assim: “Tia, a senhora reparou? Só tem menino branquinho no programa. Por quê?” Sabe o que a professora falou comigo? “Você não sabia não, Roberto? Porque preto, quando não caga na entrada, caga na saída, meu filho”. Sabe o que eu entendi, com sete anos? Se um dia eu fosse a um programa, por ser negro, ia dar uma dor de barriga. Os loirinhos lá dançando jazz e eu lá travado, não é? Na hora de sair, entrar na Kombi da FEBEM, a diarréia vinha. Se não fosse na entrada, ia ser na saída. Eu não sabia o porquê, mas tinha uma coisa racial muito mal explicada e ainda tem, não é? Ainda Ain da permeia o nosso dia a dia. Pois, pessoal, eu fiquei com aquela coisa na cabeça. Mas um dia a tia Dulce, não tem a propaganda, como faz a Xuxa, a Angélica, a Xuxa tem o carrinho da Xuxa, a bicicleta da Xuxa, sandalinha da Xuxa. A tia Dulce fazia propagandas. Tinha um tal de Yakult. Ela abraçava um menino loirinho, pegava o Yakult e falava assim: “Ei, você aí de casa, se você tomar Yakult vai crescer fortinho e loirinho loir inho que nem esse menino. Hum. Tome Yakult, você também!” Sabe o que eu entendi? Se um dia eu fosse no programa e tomasse o Yakult, Yakult, meu cabelo, puff, ficava loirinho. As minhas madeixas loiras iam cair ou entrar no programa da tia Dulce. Comecei a sonhar com o Yakult. E um dia deram a informação. Meninada, dia 12 de outubro, Dia das Crianças, a tia Dulce vem aqui na FEBEM visitar vocês. A gente: “Tia Dulce, aqui na FEBEM? Ah... ” Ela falou:”Olha, tem mais: Ela falou que só vem aqui se vocês lavarem o chão e passarem cêra para ela”. Lavamos o chão e passamos a cêra. “Roberto, mandou lavar as paredes”. Lavei as paredes. “Olha, tem que lavar os banheiros”. Lavamos o banheiro, tudo. Gente, foi uma semana de trabalho escravo em função da chegada da tia Dulce. Sabe o que eu imaginava. Dia 12 de outubro os helicópteros sobrevoando a FEBEM: “Ela está chegando. Câmbio, X. Prepara”. Aquela limusine preta parando, atrás, um caminhão cheio de bicicletas; o outro caminhão cheio de Yakult. Nós, os necessitados da FEBEM, íamos fazer a fila, não é? E íamos ganhar seis Yakult; íamos tomar três e jogar três no cabelo para apressar o processo, para andar rápido, não é? ROBERTO CARLOS RAMOS: Uma raça só no mundo é bem melhor, não é? Aí jogava, puff, puff, cabelo tudo loirinho, não é? E nós íamos gravar o clip com a tia Dulce. O clip dos loirinhos da FEBEM e, no final, cada um ganhava a sua bicicleta. Só que não foi bem assim, gente. Dia 12 de outubro, onze horas da manhã, deram para os meninos da FEBEM uma conga azul, com a frente branca e, para as meninas, conga vermelha, com a frente branca. E nós tínhamos uma professora de Educação Física que pesava uns 220 quilos. Ela era carrasca: “Larga aqui, passa aqui, senão a tia Dulce não vem”. E a mulher pisava, puff, puff, puff, e ela gritava o tempo todo. Eu imaginava a tia Dulce pisando, suavemente, não é? Andando pelo corredor, abraçando, não é? E os cabelos, puff, puff, loirinhos. Dia 12 de outubro, 11 horas da manhã, nós estávamos em estado de êxtase, quase tendo um orgasmo infantil, todo mundo. E ela, quando vem aquela Kombi, a Kombi da FEBEM. “Ué, a Kombi. Não é a tia Dulce não?” Quando pára a Kombi, chegou a tia Dulce. “!Mas não é a limusine”. Quando abre a porta da Kombi desce a nossa tia Dulce, só que era a tia Dulce cover, a imitação da tia Dulce, a Professora de Educação Física de 220 quilos imitando ela. “Oi meninada, eu sou a tia Dulce!” “Oh... ” ROBERTO CARLOS RAMOS: A gente: “Não é não”. “Sou sim’. A gente: “Não é não”. “Roberto, se você falar quem eu sou, eu te quebro a cara, hein?” Eu sabia quem era, não é? E, depois daquilo, a falsa tia Dulce deu para a gente o iogurte e todo mundo sabia que iogurte não fazia ficar loiro, o que fazia era o tal de Yakult. Mais terrível, ninguém podia escolher o sabor; todo mundo ganhava de côco. “Toma o de côco e some daqui. Toma o de côco e some daqui”. ”Tia, eu queria de morango”. “Que morango, isso foi doação, está vencendo amanhã, olha o rótulo. Vai vencer, hein? Faz hora para você ver. Se você não tomar, as três estragavam na sua mão. Eu pensei: “Já que a tia Dulce não vem, está na hora de eu fugir para encontrar com a verdadeira tia Dulce”. Pulei o muro a primeira vez com uma turma de meninos que fugiam diariamente. E foi interessante, que Belo Horizonte se manifestou para mim uma cidade muito maior do que eu imaginava. Eu fiquei três dias,
a primeira vez, na rua. E interessante que falava assim. “Está com fome? Bate na porta de alguém e pede um prato de comida”. “Mas tem que mendigar?” “É claro e tem uma coisa... ”. Olha o que os meninos jjáá tinham na cabeça: “Todo “Todo mundo vai te perguntar cadê seu pai e cadê sua mãe”. Adulto adora perguntar para o menino, menin o, “cadê seu pai e cadê sua mãe”, não é? Só sabe perguntar isso. Se você contar uma história alegre, ninguém te ajuda. Conta uma história triste que te dão de tudo na vida. Eu falei: “Que história triste?” “Fala que estão doente, passando fome, você ganha até bicicleta”. Aí pronto. Bati numa porta. “Dona, dá um prato de comida”. A mulher: “O menino, cadê seu pai? Cadê sua mãe?” Eu falei:“Meu pai? Meu pai foi atropelado. Minha mãe tem uma perna só e meus irmãos estão morrendo de fome”. Ela falou: “Coitado! Espera aí meu filho”. Foi lá e buscou um prato de comida. “Opa, funcionou, não é?” Aí, bati em outra porta. “Dona, dá um prato de comida? O meu pai não tem braço, minha mãe não tem perna, meu irmão só tem cabeça, a cabeça fica em cima do sofá”. “Só a cabeça?” Quanto mais eu mutilava a minha min ha família, mais eu comia; era perna de um, braço de outro. Gente, ganhei até cadeira de roda para levar a mãe lá para casa. Então, era só mutilar todo mundo. Eu comia, eu comia. Com oito anos, tinha fugido 12 vezes da FEBEM. Não sabia ler, nem escrever, escrever, com oito anos de idade. Mas aí que entrou o talento de contador de histórias. Eu descobri que toda a criança adora ouvir história. O ser humano adora novidade. E o contador de história chega nessa função de passar aquilo que é novidade, mesmo que seja o fantástico, o maravilhoso, mas é uma coisa completamente fora da realidade. E eu sabia que meus colegas gostavam. Mas, os adultos da FEBEM, sabe, só liam mesmo o livrinho li vrinho de gatinho e de boizinho, não se dava o trabalho de reciclar; era a mesma história. Um dia, eu peguei o jornal, e eu sabia mais que, pela vivência dos meus colegas de rua, eles estavam numa fase de histórias de violência, de crime, de seqüestro, atropelamento, queriam essa novidade. E as “tias” da FEBEM: “porquinho ”, “gatinho”, “boizinho”. Um dia, eu peguei o jornal e falei: “Turma, vem cá que eu vou ler para vocês”. “Neguinho, você sabe ler?” Quando perguntaram “você sabe ler?” Eu decidi meu futuro. Eu podia falar assim: “Não, não sei. E ser mais um da turma”. Mas se eu colocasse que era superior, a turma ia acreditar. “Claro que eu sei, com dois meses, eu aprendi. Eu estava no berço e lia a Bíblia todinha para a minha mãe”. “Com dois meses, você já lia? Então, lê aí”. Peguei o jornal. Sabia o que eles queriam ouvir. Comecei: “Lá vai. Uma mulher morreu atropelada na linha de trem de ferro. O trem passou 14 vezes em cima dela, mas ela não morreu na hora. Ela ficou gritando: ‘Ai, ai, ai, pelo amor de Deus! Quem me acode?’ Para a mulher morrer, morrer, o homem teve que descer e dar um tiro de escopeta na cara dela. Aí, ela morreu”. A turma: “Onde foi isso?’ Dei detalhe de hora, de local, de lugar. A pessoa: “Nossa, esse menino lê bem para caramba, hein? Lê melhor que a “tia’ da FEBEM”. Gente, eu não sabia ler uma palavra. Era tão analfabeto quanto meus colegas. Mas acreditaram. E quando chegava algum coleguinha que sabia ler, ele poderia me desmascarar, desmascarar, mas ele não sabia convencer as pessoas. E se você é bom numa coisa, sabe, mas não consegue convencer as pessoas que você é bom, não é? O seu peixe é vendido muito barato. “Gente, eu vou ler, ta. Só que eu não sou muito bom não porque a professora falou que eu sou burro”. Aí meu colega começava: O me-ni-no fa-lou... ” Os colegas: col egas: “Ah, “Ah, o cara é burro mesmo. O que é isso, pelo amor de Deus? Roberto, você que sabe ler, lê aí Roberto”. Eu pegava o jornal, virava de cabeça para baixo, eu lia até de cabeça para baixo, hein? “Nossa, até de cabeça para baixo. O cara é bom mesmo, hein?” É que dá outra notícia, seu burro, de cabeça para baixo, não é?” “Lá vai: O menino caiu do 15º andar de um prédio. Ele quebrou os dois braços e as duas pernas. Quando chegou no pronto socorro, ele cortou o pescoço do médico com uma navalha. O médico levou 88 pontos e nunca mais demorou a atender ninguém. O pessoal: “Bem feito mesmo, cortar o pescoço do médico. O cara lê bem”. A turma adorava. Com nove anos, eu descobri que falar bem era fundamental. Eu não sabia ler nem escrever. Tinha que guardar na memória, mas tinha que saber expressar o que eu queria. Não adiantava ficar mudo, caladinho, aquela coisa toda. Então, mas na rua, a escola que me ensinava eram... De dez palavras que eu falava, onze eram palavrões. O palavrão, gente, era fantástico. Você via um adulto, eu falava um palavrão, ele corria, sabe? Então, palavrão tinha uma força muito grande. Um dia, me mandaram para uma escola que era dirigida por umas irmãs de caridade, eram umas irmãs sex... agenárias. ROBERTO CARLOS RAMOS: Deram aula para um tal de Piaget e Vygotsky, essas mulheres. Tinha uma u ma metodologia da régua. “Se não aprender, eu quebro a régua em você”. Aí, eu chego com meus palavrões. No primeiro dia, a irmã falou comigo assim: “Imbecil, estúpido, insignificante, larápio, reles, vil, torpe, ínfimo”. Eu falei: “Que bonito, irmã. Isso é poesia?” Um colega: “Seu bobo, ela está te xingando de palavrão”. “Ah, “Ah, isso é palavrão?” Eu falei: “Irmã, eu vou ensinar para a senhora”. Eu falei: “Vai tomar banho”. Quando eu falei para uma irmã de caridade “vai tomar banho”, a mulher ficou de pé na carteira. “O que você falou?” Eu percebi que ela ficou ofendida. Falei: “Vai tomar banho, bunda”. “Ô menino, ninguém nunca falou isso comigo”. Eu vi que aquele era o caminho. Eu falei: “Vai tomar banho, bunda e perereca”. “Ah... “Ah... . ”. Quando eu falei ‘perereca’, a irmã sentou na cadeira e começou a ter um tremelique. Eu percebi que aquele era o ponto fraco dela. E quan-
do, gente, o aluno descobre o seu ponto fraco, o aluno abusa. Eu dei, então, o adjetivo à perereca. “Perereca grande, cabeluda, recheada, careca, amanteigada, com creme de leite, com cereja, com ar eia”. “Ah... “Ah... ” A irmã caiu no chão. A perereca era o ponto fraco dela. Ela rolou no chão várias vezes. ROBERTO CARLOS RAMOS: RAMOS: A boca da mulher entortou. Veio uma ambulância do Estado e a levou, levou a mulher. lher. E o pessoal: “Você matou a irmã, você matou a mulher”. Eu fiquei uma semana, com o coração na mão. “E se eu matei a irmã?” Mas não morreu não. Ela voltou, uma semana depois, com o braço na tipóia e segurando na bengala, não é? E era uma cara que não era mais de irmã de caridade. Ela olhou para mim, ela era voluntária, não é? Ela tinha se proposto a fazer aquilo de coração, cor ação, mas ela, no caminho, ela ficou desesperada, que ela não imaginou que fosse daquele jeito, ela transformou completamente. Ela fez o laudo que ia mudar minha vida, baseado em Piaget, Vygotsky, Lafontaine, Freud, Jesus Cristo, tudo o que é mais sagrado, “esse aluno não tem jeito, ele é irrecuperável”. Pum! Eu, agora, tinha um atestado de doido. E, segundo a educação da época, por que perder tempo com uma criança excepcional? Com alguém que não vai ser nada na vida? Sabe, para quê o Governo vai gastar dinheiro, investindo profissionalmente em alguém que não vai ter condições de assimilar nada? E ficou aquela pergunta. Por que alguém que se proponha trabalhar voluntariamente, de coração, começa a estressar, estressar, a desgastar, desgastar, a arrancar o cabelo, se é de coração, seja eternamente de coração. E se tiver que fazer, fazer, faça rindo, dando gargalhada, porque a opção é de quem se propôs a fazer; ninguém obrigou a fazer. fazer. Faça realmente de vontade, porque aquele laudo mudou a minha min ha vida de uma maneira, eu ia... Voltei para a FEBEM, ia fazer capoeira: “Não, capoeira você não vai gostar não”. Fazer bordado: “Bordado é igual capoeira”. “Bordado é igual capoeira?” “É, você vo cê pega a agulha e faz: Bem, bem, berenguebem... ” ROBERTO CARLOS RAMOS: Então, está, então, eu vou bordar. “Ô tia, eu vim bordar. ” “Nem, pelo amor de Deus, esse aqui matou a irmã, não foi? Deus o livre e guarde, esse menino é um capeta. Vai lá para o desenho”. Eu ia:”Tia”. “Ah não, comigo não. Estou aposentando, meu filho”. Fechava a porta. Ninguém me queria em sala de atividade nenhuma. Já que ninguém queria, porque eu ia que ficar naquela escola? Eu falei: “Tia, vou pular o muro”. “Não pode não”. “Tia, eu estou subindo o muro”. Ela falou: “Está bem, então, tchau, vai com Deus”. Era um aluno que era melhor fora da escola do que dentro dela. Com 10 anos, descobri a primeira droga, a cola de sapateiro. Com 11 anos, a maconha. Com 13 anos, eu tinha fugido 130 vezes da FEBEM. E era tido como um caso irrecuperável. O interessante que eu não tinha cometido, até então, nenhum delito que eu achasse terrível. Mas as pessoas começaram a me imputar coisas. O imaginário humano é uma coisa tão fantástica. Chegava uma “tia’ da FEBEM e falava assim: “Roberto, você andou com uma turma da pesada, hein? Você já matou alguém?” Eu sabia que ela queria ouvir o uvir um “sim”, não é? Ela queria ficar estimulada. “Matei uma velha de 82 anos na cama”. “Meu Deus do céu! O menino já matou uma velha. Roberto, já estuprou alguém?” “Estuprei. Um bebezinho de dois meses”. “Meu Deus, um bebê!” Eu falava aquilo que as pessoas queriam ouvir aquilo. Mas nunca tinha feito nada. E aquilo, cada vez mais, sem que eu percebesse, me distanciava das pessoas. Com 13 anos, eu era da escória da FEBEM. Foi então que um dia chegou a mulher que ia mudar a minha vida. Antes disso, eu quis fazer parte de uma turma de meninos maiores do que eu. Os caras tinham 17, 18 anos, eram realmente bandidos, usavam até armas. Eu quis fazer parte da turma, eles usavam muita droga, tinha uma prova de fogo para fazer parte da turma deles. Porque, assim, como eram marginais, a polícia não tinha piedade quando apanhava os elementos daquela turma, em termos de pau de arara, sabe? Existia, na nossa época, o que chamava o “esquadrão da morte”, que era a própria polícia que matava os meninos, tinham meninos que eram empalados, gente, a palavra, o policial enfiava o cassetete no ânus do menino para que ele confessasse alguma coisa. E pau de arara, talvez, vocês nunca façam idéia do que é. Mas é uma coisa que amarra a sua perna, atravessa um pau, você fica algemado com os pés algemados, o braço algemado, ele enfia uma mangueira no seu nariz com água. Era um ritual de tortura, uma coisa assim, eu não sabia, não fazia idéia de que a polícia fazia isso com os meninos. Mas, para mim, fazer parte daquela turma de pivetes, eu passaria por uma coisa semelhante. A turma que me receberia, os pivetes poderiam espancar, me estuprar. Eu não sabia que tinha e se eu não chorasse, não pedisse arrego, significava que eu era um homem durão para ficar na turma deles. Porque a pior coisa que uma turma podia aceitar era um pivete que, no primeiro momento de tortura, na polícia, ele confessasse tudo que a turma fez. Estava eu com aqueles pivetes, usavam muita droga. Falaram: “Vem cá. Está na hora da sua primeira prova”. “Qual vai ser?” “Você vai ser nossa mulher essa noite. ” “Nossa o quê?” “Nossa mulher”. “Dá licença, não tem jeito não”. Levantei para correr, me derrubaram no chão com rasteira; o outro me quebrou um cabo de vassoura nas n as costas; tinha um que usava um calçado com uma ponta emborrachada, chamado Kichute, me rasgou a sobrancelha num chute, que o sangue começou
a jorrar. Naquela noite, me desbancaram tanto, gente, mas tanto, que me deixaram caído nos trilhos da rede ferroviária. Eu fui tomado de uma depressão tão profunda, um senso de inutilidade tão fatal, que a minha vida começou a passar em questão de segundos pela minha mente: “Meu pai não me quer, minha mãe não me quer, quer, os professores não me aceitam, as irmãs de caridade têm medo de mim e nem meus colegas me aceitam. Por que é que eu vou ficar vivo?” Eu procurei um único motivo para ficar vivo e não encontrei nenhum. Então, para encurtar aquilo, pela primeira vez e única, eu pensei em suicídio. Puxei meu corpo para cima dos trilhos, deitei em cima, e pensei: “O trem vai passar e acaba com esse sofrimento”. Naquele dia, eu me senti muito fraco realmente. Eu desmaiei em cima dos trilhos. Só que eu fui tão azarado, tão sortudo, que eu deitei numa linha e o trem passou na outra, ao lado. ROBERTO CARLOS RAMOS: RAMOS: É porque não era a hora h ora ainda. Eu descobri mais, que todas as dores doem a noite. O grande lance da vida, do ser humano, é esperar o dia amanhecer amanh ecer.. Preste atenção. Se você persevera naquela noite na sua vida, se você insiste um pouquinho, busca uma fortaleza, busca energia, não sabe de onde, quando amanhece o dia, parece que o sol afugenta, sabe, um pouco os fantasmas, as dores, as mágoas, você tem um dia inteiro para procurar ajuda. Imagine que esse dia também são fases na sua vida. Têm fases negras, terríveis, que você acha que não está agüentando, mas persevere um pouco mais, que um dia vai clarear. Um taxista me viu machucado, me colocou no táxi, me levou para o pronto socorro e eu levei 72 pontos pelo corpo afora. Fui devolvido, três dias, depois à FEBEM. Naquele primeiro dia, eu fui parar numa cela, eu briguei com um dos meninos lá, e ele contou que tinham tentado me estuprar. Se eu perdesse a minha fama de bad boy, de menino mau, dentro da FEBEM, os meus 400 colegas iam cair em cima de mim e o s “tios” que me temiam, agora, também iam voltar a ter autoridade sobre mim. Então, para ele não contar nada, eu quebrei os dentes da boca dele com uma bola de sinuca. Gente, cada vez que eu voltava para aquela escola, eu estava me animalizando. O contado com o bicho me tornava cada vez mais bicho. Estava virando uma fera. Fui parar numa cela de castigo, era um cubículo de um metro e meio por um metro e meio, com um vaso sanitário. Na minha época, o aluno ficava até três dias numa cela como essa, sem comer e sem beber água. Se ele quisesse beber água, ele tinha que defecar e urinar no chão da cela, para beber água de dentro do vaso sanitário. Eu estava deitado no chão da cela e um instrutor chegou e jogou um balde de água em cima de mim. Eu fiquei a noite toda de pé. Quando amanheceu o dia, ele ficou com dó porque meus pontos estavam infeccionando. Ele abriu a minha cela, mas me deu dois tapas no rosto. Sabe aquele tapa masculino, pesadão, que você escuta durante 20 anos, zoando no seu ouvido ainda. E o cara fez a previsão do meu futuro. “Escreve o que eu estou te falando: Pela minha experiência, você não vai ser nada na vida. Daqui a pouco, você está matando, está estuprando. Você vai morrer cedo. Escreve o que eu estou te falando. Você vai morrer cedo”. E ele falou tanto aquilo, ou seja, me deu um tapa, eu já fiquei confuso, você vai morrer cedo. Eu estava assim: “Você vai morrer cedo, está matando e estuprando, não é?” “Quando eu fugir daqui eu vou matar, vou roubar e vou estuprar”. Meia hora depois, estava eu ganhando o campo de futebol, vendo meu ponto de fuga, pulei o muro. Mas eu estava tão... Todo dolorido, quando eu segurei no muro do outro lado, eu caí de uma altura de três metros de altura, esborrachei do outro lado do chão. Me doeu tanto o corpo e o espírito, que eu fiquei deitado, acho que meia hora, assim, na grama, sem conseguir respirar. respirar. Quando eu consegui sentar, sentar, eu recuperei, um pouco, a sã consciência, con sciência, a única coisa que me veio foi um ódio ó dio tão grande ou uma fé, eu não sei, porque, gente, a linha que divide a fé do ódio é muito pequena. Eu lembro que eu virei para o muro e falei assim: “Eu não volto mais nesse lugar. Chega de sofrer”. Eu estava decidido. E, como eu disse, a única palavra que Deus fala com todos os filhos dele é a palavra... É, Deus acreditou. Realmente, chega de sofrer. Eu estava acreditando naquilo. Ele teve que importar, naquele dia, uma voluntária para trabalhar comigo, uma professora francesa chamada Marguerite Duvas. Eu fui preso a dois quarteirões de distância da FEBEM, todo mancando, querendo correr da Kombi. A Kombi me cercou e me levou de volta. vo lta. Na hora que eu estava sentado no banco de cimento para fazer uma nova admissão, chega aquela mulher loira, dois metros de altura, perfume Channel nº 05, autêntico. Não agride os outros perfumes, não tem pretensão nenhuma de ser melhor que os outros, está na dele. A mulher chegou e era importante, todo mundo cumprimentava. A minha sorte é que vieram duas “tias” cansadas e falaram: “Minha senhora, a senhora não sabe o que a gente sofre aqui nessa escola. Só tem aqui os piores elementos. Está vendo aquele menino”. Apontou para mim. “Ele tem 13 ano anoss de idade, não sabe ler, ler, nem escrever, é um caso irrecuperável”. A francesa parou e falou: “Mas como caso irrecuperável? Se um ser humano vive até 80, 90 anos de idade, como é que, com 13 anos, se condena alguém a errar para o resto da vida? E como essas pessoas se propõem a trabalhar com seres humanos, se elas não acreditam que o ser humano é capaz de alguma coisa?” Deu uma nó na cabeça dela. Ela falou: “Eu gostaria de falar com aquele caso irrecuperável”. E, pela primeira vez, alguém se aproximou de mim
e, antes de falar alguma coisa da minha cor de pele, do meu cheiro de xixi, antes de observar meu cabelo com piolho ou de falar do meu nariz com catarro, aquela mulher me mandou que eu olhasse para os olhos dela; ela foi de encontro aos meus olhos. Eu estava olhando para o chão, ela chegou, se aproximou, ela foi abaixando e, quando o rosto dela estava na altura do meu, os nossos olhos se cruzaram. Ela fez uma coisa que parece magia, mas é verdade. Ela me sorriu com os olhos. Para você sorrir com os olhos, ol hos, eu aprendi a técnica, desarme o seu espírito de conceito e preconceito. Aproxime se de alguém sem medo ou sem ser ameaçador. Enquanto sua alma está desvestida de couraça, sabe, de parede de gelo, o espírito brilha. E o único ponto de fuga são os olhos. Enquanto seu olho brilha, convence alguém. Porque o olho dela brilhou, sorrindo e ela falou comigo: “Com licença, por favor, eu gostaria de conversar com você. Posso?” Pela primeira vez, alguém falava “com licença” e “por favor” comigo. Quando ouvi aquele sotaque francês, eu falei: “Gente, coitada, ela tem a língua presa, ela fala tudo errado. ” Não, eu falo errado, é que eu moro num lugar onde todo mundo fala assim como eu”. “Ah, “Ah, que nem na colônia colô nia de leprosos, quem tem lepra fica lá trancado com a senhora?” “Não, não é lepra não. É que eu moro do outro lado da terra. É que a terra, você sabe, é redonda. Enquanto aqui é de dia, no meu país é de noite, as pessoas estão de cabeça para baixo. ” “Ih, a mulher mu lher é doida. Usou maconha estragada. Achei que ela fosse louca, fugi aquele dia. Três dias depois, estava na rua. Quem eu encontro me chamando? “Roberto, Roberto... está lembrado de mim?” “Lá vem a doida francesa. Falar que a terra é redonda, que ela mora de cabeça para baixo”. Ela se aproximou, eu vi que ela tinha um trem dourado no braço. “Ôba, se for ouro aquela correntinha, eu vou roubar e comprar pão com salame”. Mas ela se aproximou e, em vez dela esconder o ouro, como todo mundo fazia, quando me via na rua. Todo mundo, quando vê um pivete, vem para o seu lado, você já pega a bolsa e, não é?” Ela não, não , ficou passando a corrente na minha cara. “Oi, aquele dia você fugiu da FEBEM”. Eu assim... Falei: “Não, gente, não deve ser ouro não. Porque o que é valioso todo mundo esconde de mim. O que é fuleiro, todo mundo mostra. Deve ser bijuteria”. Era ouro mesmo. Só que ela tinha uma outra noção de valores. Coisas importantes eram outras coisas para ela. Ela falou: “Você fugiu da FEBEM. Lá me parecia uma escola tão bom”. Falei: “Bom? Eles mostraram a cela para a senhora?” Ela: “Cela? Que cela?” “Você não viu o pau de arara não?” Ela: “Pau de arara, o que é pau de arara?” Aí, eu descrevi o que era a escola que eu freqüentava. Quando terminei, gente, pela primeira vez, alguém me ouvi u 20 minutos em silêncio. Ela ficou calada. Ela não falou comigo: “É mentira, você está exagerando, lá é uma maravilha. Eu conheço alguém”. Ela não falou nada. n ada. Ela ficou calada. Quando eu terminei, ela falou: “Roberto, eu poderia falar com você, ‘vá com Deus, siga seu caminho, Deus te ama’. Mas será que eu conseguiria voltar para a minha casa, colocar a cabeça no travesseiro, será que eu conseguiria dormir tranqüilamente fingindo que eu não ouvi a sua história e que eu não tentei fazer nada para mudar a sua realidade? Que ser humano seria eu se eu não conseguisse fazer o mínimo... ” Eu pensei: “Ih, essa mulher está doida, está falando coisa que não deve, não é?” Ela falou: “Olha, vou ficar uma semana em Belo Horizonte. Você gostaria de ficar uma semana comigo, em meu casa? Eu quero gravar uma entrevista para mostrar a meu país”. Ela queria fazer uma denúncia internacional de maus tratos na FEBEM. Falei: “Morar com a senhora uma semana?” Ela: “Sim”. “Ôba, agora que eu vou roubar tudo que eu tenho direito da casa dela”. Sabe porque eu pensei em roubá la? Porque todas as vezes que alguém me levava para casa, me pediam coisas que eu não podia dar. dar. Uma vez, um casal me tirou da FEBEM. Me disseram que eu seria adotado por eles. Quando eu cheguei na casa do casal, eles me deram um quartinho no fundo do quintal, onde ficava a cama quebrada, o fogão quebrado, a geladeira quebrada, tudo que não prestava ficava ali, inclusive eu, o Roberto Carlos. Eu tinha uma missão na casa: limpar a piscina e cortar a grama, enquanto o filho saia de carro para ir para a escola. Eu senti que jamais faria parte daquela família. Fugi daquela casa. Outra vez tinha 12 anos, passou um senhor num carrão, menino, estou com dó de você. Quer morar na minha casa? “Um pai rico, de carro”. O cara era tão legal que me levou para uma mansão afastada, no bairro Mangabeiras, em Belo Horizonte, que é um bairro vip, não é? O cara é tão legal, gente, que ele me deu um quarto, tinha cama de casal. Eu falei: “Olha que pai legal que eu arrumei”. À, meia noite, de banho tomado, deitado na cama de casal, a porta do meu quarto fez: “Einnn”... E o cara que queria ser meu pai entrou peladão para mostrar o tamanho de amor que ele tinha para me dar. dar. ROBERTO CARLOS RAMOS: E olha que o amor dele era grande. Quando eu vi aquele amor todo para mim. Falei: “Ah, não. Não tem espaço para tanto amor não”. Eu pulei a janela e fui embora. E meus colegas me advertiram: “Se alguém te chamar para casa e falar que te ama, é para fazer bobagem com você. Ninguém trabalha de graça não, bobo. Se passar a mão na sua cabeça e falar que gosta de você, vai querer te comer depois. Pode saber disso”. Então, fiquei vacinado, não é? Vinha até irmã de caridade de FEBEM, “vem cá meu filho, eu gosto de você”. “Irmã safada, hein? Até a senhora, hein?
A mulher me levou para a casa dela. Eu fiquei pensando: “O que ela vai fazer comigo?” Quando eu entrei na casa ela, ela fechou a porta e falou: “No primeiro em que eu te vi, eu descobri que gostava de você”. “Safada, lá vem ela também”. Ela me deu um quarto dentro da casa, eu entrei para o quarto, fechei a porta e fiquei segurando a maçaneta, gente, rezando. Eu pensava: “Daqui a pouco ela vai arrombar a porta, pelada, falando assim: ‘Vem cá com a titia, vem cá. Está na hora. Aqui, olha, vem cá’”. E eu lá segurando: “Meu Deus do céu, tomara que não seja verdade”. Ela veio, bateu: “Roberto, você tomou banho? Não, senhora. Eu estou fedendo ainda. O que foi? Eu estou fedendo”. Ela falou: “Calma, eu só queria que você fizesse um lanche comigo na mesa de jantar”. Eu falei: “Pronto, “Pron to, vai ser em cima da mesa”. Quando eu chego na mesa de jantar, em cima da mesa tinha pão, bolo, biscoito, refrigerante, suco. Mais de 20 qualidades de pão e biscoito. Eu falei: “Para esse tanto de comida?” Ela: “Para você comer”. Gente, eu estava acostumado a, quando chegava na casa de alguém, a pessoa até escondia o prato de comida de mim. Fechavam as panelas, com medo de eu pegar alguma coisa, trancavam as portas; aquela mulher, ao contrário, tudo o que tinha de melhor, ela colocou em cima da mesa, não é? Eu falei: “Para que arroz e feijão?” Ela falou: “Se você quiser comer arroz e feijão”. “Mas está cru, minha senhora, tem que cozinhar”. Ela falou: “Não sei como é que faz esse negócio aqui no Brasil”. Eu comi que nem louco. Quando eu terminei, eu fiz a coisa que seria mais normal de se fazer depois de uma refeição: “Eh... ” Eu fazia isso na FEBEM, a “tia” falava assim: “Seu porco”. Eu cresci ouvindo isso. Quando vo cê acaba de comer e dá um arroto, aí alguém vai te saudar: “Ô porco” Se você ouvir alguém: “Ô por co, ô porca”. Ninguém falou que era errado. Só falava que era “o porco”. Eu acabei de arrotar, ela não me saudou com “o porco”, não é? Eu falei: “Essa mulher não é normal”. Soltei um punzinho básico. Ela ficou com o olho avermelhado. Eu falei: “Dona, a senhora só pode ser retardada. Eu soltei um pum na cara da senhora e a senhora não falou nada”. Ela falou: “Roberto, desculpa, mas o pum é gostoso para quem solta”. Quem respira o pum alheio é horrível. Isso é profundo. Parece bobagem mas é verdade. Não é? Faça para os outros o que você gostaria que fizesse para você. Você quer sentir um pum na sua cara? Não, não é? E tem marido que solta debaixo da coberta ao lado da esposa. Fala: “Vem cá, bem. Esse é gostoso”. ROBERTO CARLOS RAMOS: Isso é tentativa de homicídio, não é? E ela começou a me colocar essas observações. Naquele tanto de copo que tinha na n a mesa, não é? Eu falei: “Para que tanto copo?”. Ela falou: “Um é para tomar licor, licor, cerveja, champanhe, água, refrigerante”. “Mas que frescura esse tanto de copo. Se eu tomar água num copo errado, a senhora vai me bater?” Ela falou: “Não. Eu só queria que você soubesse que tem bebida certa no copo certo. A decisão de tomar no copo é você que faz”. Eu falei: “Qual que é de tomar água?” “Esse é o primeiro”. “E o de guaraná?” “Pode ser o segundo”. Falei: “Que ótimo”. Enchi. Detonei a mesa. Olha, em vez de ficar uma semana na casa dela, ficamos duas semanas, três semanas, quatro semanas. E o mais interessante foi a minha mudança de comportamento. No primeiro dia que eu entrei, eu: “Quando ela me mandar embora, eu levo vídeo cassete, levo televisão, levo dinheiro, a jóia e a prataria”. Só que, com o passar do tempo, eu falei: “Nossa, ela é tão boa comigo. Se ela me mandar agora, eu vou roubar só o vídeo cassete e a televisão da coitada, né? Não, sacanagem levar tudo, eu não vou levar não”. Eu sei que vocês levariam, mas eu não vou levar não, né? No outro dia: “Eu vou levar só a televisão”. Até que num dia, eu não queria roubar nada dela. E como o sujeito estava tomando conta da casa daquela mulher. “E se alguém entra em casa e rouba alguma coisa da coitada?” Ela era muito legal, estava ali de graça, não recebia salário para trabalhar comigo, sabe, estava ali voluntariamente fazendo um esforço para eu aprender alguma coisa. Eu não podia deixar ninguém roubar. roubar. Até na faxineira eu tomava conta. Estava lá a senhora varrendo a casa. “Dona, o que você está varrendo aí? Abre a perna, mão na parede, vou dar uma geral”. “O menino, que negócio é esse? Pivete aqui é você. ” “Eu sou faxineira. Agora virou policial?” Eu falei: “Não vai roubar nada da senhora aqui não, hein? Essa tia aqui é legal. Se a senhora roubar dela, você vai ver, hein? Eu não podia deixar ninguém roubar. Gente, quando eu fiz 14 anos de idade, aí aconteceu a bomba. Finalizando. Um dia, ela falou que voltaria para a França. Eu estava há um ano convivendo com aquela mulher. Em um ano, eu estava comendo de talher, aprendendo as primeiras palavras em francês, aurrevoir, aurrevoir, bientôt, ela me convenceu que não se solta pum perto dos outros, que o pum é gostoso para quem solta, não é? E falou mais. Que o pum tem que ser solto no banheiro, com a porta fechada. Eu falei: “Mas que frescura!” Ela falou: “Não. Imagina que um dia que você conhece uma moça, Roberto, não é? Você fala: ‘Com licença, eu vou ao toalete’. E solta um pum perto dela. Ela vai ficar decepcionada. Se você vai ao toalete, solta o pum, abana o ar, ar, solta um aerossol, tzzzzz, não é? Sai do banheiro, a moça entra e fala: ‘Nossa, esse rapaz come flores’”. ROBERTO CARLOS RAMOS: Muda completamente, não é? Muda a realidade, não é? Então, ficamos conversando disso. Quer aproximar de alguém? Um sorriso funciona muito bem. Sorria para todo mundo, não é? E nada de cruzar o braço e olhar para o chão. Olha para a frente, sempre. Ao sair com uma moça, se você puder
abrir a porta do carro para ela, ela vai ficar muito agradecida. Se você pagar a conta, por mais moderninha que ela seja, e falar: “Não, isso é por minha conta”. Ela vai ficar mui to lisonjeada. Se você mandar flores no dia seguinte, ela vai cair aos seus pés”. Ela foi me convencendo disso, que era a gentileza urbana, o trato com as pessoas, coisa que eu aprendi ao contrário. Se eu quisesse alguma coisa: “Me daí, porra, o caralho”. Era isso só, com as pessoas, o tempo todo. Com aquela mulher não. “Não. Esqueça essas palavras. Vai mudando o seu comportamento”. Ela chega e diz que ia voltar para França se não renovasse reno vasse o visto do passaporte. A minha sensação foi de perda de mãe pela segunda vez. Imagina, no meio do meu processo de aprendizado, ela vai embora. Que trabalho voluntário é esse que não tem preocupação com a continuidade? Eu fiquei meio desesperado. “Ela vai me colocar, então, para fora, com motivo? Essa desculpa de passaporte é furada”. Entrei no quarto dela, tinha um banheiro. No banheiro tinha uma banheira. Tampei o ralo da banheira, molhei uma toalha, coloquei no ralo do chuveiro, deixei a bandeira enchendo de água. A banheira transbordou, molhou o quarto e a casa. Ela tinha saído. Quando ela voltou, duas horas da manhã, a casa estava alagada. Fui para o meu quarto, coloquei minhas coisinhas na mochila e me preparei para o couro. Com certeza, ela ia me bater. bater. Ia sambar no meu peito, ia cortar minha jugular e me colocar pela janela, sangrando para o lado de fora, não é? Qualquer pessoa faz isso com um pivete. Eu tinha certeza que, naquela noite, eu ia perder a pessoa mais fantástica da minha vida. Mas, pelo menos, eu tinha dado um motivo. E eu, em um ano, fiquei bonzinho, santinho, santinho , sabe, e agora, ela ia me mandar embora? Mas, pelo menos, ia me mandar embora porque eu inundei a casa dela. Deitei no meu quarto, com uma vontade de chorar. Mas eu tinha feito 14 anos de idade, eu tinha me esquecido de como converter sentimento em lágrima. Sabe quando a lágrima pára aqui, seu olho fica avermelhado, dá aquele nó na garganta, mas você não consegue chorar? É uma dor horrível, gente. Eu fiquei mordendo meu travesseiro. Ela chegou em casa duas horas da manhã, quando ela abre a porta, pisa no carpete, ela fala: “Mon Dier, Qu’est-ce qui se passe?” Ela vai pisando no carpete molhado, vai ao quarto dela, fecha a torneira da banheira, conta até dez, até mil. Eu pensei: “Deve ter ido na cozinha pegar aquela faca grandona, deve estar amolando a faca. Ela vai arrombar a porta é agora”. Só que ela não arrombou a porta, ela bateu na porta. Roberto, abra a porta, você está dormindo [em francês]? Levantei como se fosse anjinho. “Madame, a senhora chegou?” Ela entrou séria no meu quarto, com a mão para trás. Eu podia jurar que estava vindo a ponta de um facão subindo aqui atrás dela. “Ela está com um facão. Ela vai me matar”. Sentei na cama para facilitar o golpe, não é? Ela falou: “Roberto, olha aqui nos meus olhos”. Eu estou olhando para o chão. “Eu não estou a fim de olhar para a cara de ninguém não”. “Roberto, você passou um ano inteiro morando comigo, usando um livro na testa para aprender olhar as pessoas nos olhos, esqueceu como se faz isso?” “Eu não estou a fim de olhar para a cara de ninguém”. “Desculpa, se eu te peço isso, Roberto, mas eu é que não consigo conversar com as pessoas sem olhar nos olhos delas. É um problema que eu tenho comigo. Eu só consigo falar o que eu penso quando eu vejo no olho da pessoa”. Eu pensei: “ Ah, se o problema está com ela, eu vou olhar para a cara da coitada senão ela não vai falar nada, não é?” Olhei para os olhos o lhos dela, gente. E quando eu olhei, pude perceber que o mesmo olho avermelhado, cheio de lágrimas l ágrimas que eu tinha, ela também tinha. O mesmo nó na garganta que me sufocava o choro e as lágrimas, ela também tinha. Pela primeira vez eu senti que alguém estava sendo cúmplice do meu sentimento. Pela primeira vez, eu senti que alguém sentia o que eu sentia. E ela falou assim: “Você esqueceu a torneira da banheira aberta? Ela molhou todo o meu quarto, molhou toda a casa, inundou tudo. Você esqueceu, Roberto, a torneira aberta?” Se fosse para a polícia, gente, eu ia falar: “Não, não fui eu, pelo amor de Deus, me desculpa”. Mas eu não tinha coragem de mentir para aquela mulher mulh er.. Eu falei: “Eu não esqueci, não, senhora. Eu fiz foi de propósito mesmo”. Tipo assim, “bate, bate agora e prove que a senhora não gosta de mim”. Eu esperei vir aquele tapa ou aquela cacetada. Mas eu disse, gente, aquela mulher era uma mulher extraordinária. Ela tirou a mão de trás das costas, a mão dela estava vazia. Ela me deu foi um abraço, sabe aquele abraço de mãe, ou de alguém que te ama realmente. Eu tentei negar o abraço dela, sair do abraço dela, mas ela me travou no abraço, ela começou a chorar e falou assim: “Ô, menino danado. O que eu preciso fazer para te provar que eu te amo. Me ensina, pelo amor de Deus. O que eu faço para te convencer que você me é importante e que eu amo você?” Eu: “Uhhh... ” Naquela hora, eu senti aquele nó rompendo na minha garganta, gente, eu não chorava há sete anos, não abria a boca, eu comecei a chorar. chorar. E quando ela viu a lágrima escorrendo, ela falou: “Roberto, que coisa linda, você está chorando. A gente só chora quando se fragiliza. A gente só chora quando percebe que é capaz de amar alguém e fazer com que as pessoas nos ame também”. “[inaudível], mas a senhora vai embora. ” “Eu não vou embora não. n ão. Eu consegui renovar o visto do passaporte. Vou continuar morando aqui no Brasil”. Eu: “Ai, mas agora eu molhei a casa da senhora todinha”. Ela falou: “Liga não”. Amanhã você enxuga a minha casa, que eu te ajudo”. Eu: “Uhhh... ” Naquele dia, eu me senti o último dos meninos, dos pivetes. Naquele dia, ela me ensinou o que vem a ser a pedagogia do amor. É muito fácil. Isso é uma coisa milenar, bíblico, não é? O aluno que mais tumultua, o
filho mais bagunceiro, o vizinho mais levado, o chefe mais complicado, é o que mais precisa do seu carinho, do seu afeto, da sua atenção. Trabalhar com os normais é muito fácil, mas trabalhar com quem é diferente de você, é que é a grande deixa e é um exercício de amor realmente se você consegue transformar essa pessoa. Graças àquela mulher, eu aprendi a ler e escrever em seis meses, primeiro em francês, na língua dela, depois em português, na nossa língua; no ano seguinte, com dezesseis anos, terminei meu primário, num processo chamado aceleração de aprendizado e ela me levou para a França. Lá eu estudei e fiz o que seria até o meu 2º Grau. Voltei para o Brasil quando tinha 19 anos e meio, e logo que eu cheguei no Brasil, de volta, com 19 anos e meio, ela reencontra meu pai e minha mãe. Eu tinha uma pergunta: “Por que é que um pai e uma mãe coloca um filho tão bonitinho, tão inteligente, tão educado, assim, que nem eu, n aquela escola chamada FEBEM?” Ela me deu o endereço, eu precisei de um mês, de uma ajuda de psicólogo, para encarar a idéia de eu tivesse família, mas eu tinha que ter essa resposta. Por que me colocaram naquele lugar? Ela me deu o endereço, eu subi aquele morro novamente. Quando eu pisei, desci do ônibus e vi aquele primeiro rego de esgoto descendo, eu tinha reconhecido aquele rego de esgoto. E fui subir. À medida que eu subia, eu estava todo armado de pedras, pedras simbólicas, para agredir a minha família, eu senti que as minhas pedras iam caindo. Eu estava ficando um pouco mais leve, à medida que eu ia subindo, mas minha uma última pedra, que era para o meu pai e para minha mãe. “Por que me abandonaram sozinho, na FEBEM?” Quando eu chego naquele barraco, caindo aos pedaços, que eu sabia, estava reconhecendo tudo, eu vi uma mulher de costas, num tanque, lavando roupa, meu coração está com dois mil batimentos por minuto, quase saltando pela boca e a minha perna não movia, eu sabia quem era aquela mulher. E, depois, que eu falo que coração de mãe é a coisa mais fantástica: Minha mãe sentiu a minha chegada de costas, praticamente 13 anos depois do dia em que ela tinha me largado na FEBEM. Ela estava lavando roupa, ela foi parando a esfregação, ela sentiu que alguém estava voltando para casa e ela começou a procurar. E, quando o olho dela bateu no meu, minha mãe já estava chorando e, sem que eu falasse uma palavra, “eu sou Roberto”, minha mãe me reconheceu porque ela me abriu um sorriso do tamanho de um sol, sabe, e ela veio caminhando para o meu lado, com a mão cheia de espuma e chorando, aquela coisa toda, mas em silêncio. E eu lá, parado, sem respirar, tipo assim: “Nego o abraço dela? Corro, Corr o, jogo na cara de uma vez que eu estou com raiva dela?” Minha mãe pára e fala assim, coloca o dedo, gente, no meu nariz e, como se eu tivesse acabado de sair de casa, dado uma volta no quarteirão, jogado uma pedra no telhado, feito alguma coisinha errada e voltado para casa, minha mãe se dá ao luxo de me admoestar. admoestar. Coloca o dedo no meu nariz e fala assim: “Roberto Carlos, Roberto Carlos, a tal mulher da FEBEM, a dona assistente social, falou que os meninos só saem de lá quando viram médicos, advogados, dentistas. Para eu ficar tranqüila, que você ia ser alguém na vida. O que você virou, pelo amor de Deus, para você estar aqui uma hora dessa?” Eu falei: “Mãe, eu estou estudando para ser professor, professor, mãe. Eu vou ser pedagogo”. Ela falou: “Graças a Deus, ainda bem que deu certo. Eu sabia que você ia ser alguém na vida. Eu não falei que você ia ser alguém na vida, meu filho?” Aí, a minha última pedra caiu no chão. E eu descobri naquela hora, gente, que um pai e uma mãe só abrem mão de um filho, para colocá lo em qualquer creche, em qualquer escola, em qualquer instituição, por acreditar muito nos profissionais que estão lá dentro. É por acreditar que as pessoas que estão lá trabalhando ou vocês são capazes de fazer muito mais pelos filhos deles do que eles fariam dentro de casa, que eles confiam em vocês. Na hora, pronto, fechou uma Gestalt na minha vida, um buraco, uma lacuna, que eu entendi muito bem. Minha mãe tinha certeza de que eu seria alguém n a vida. Eu estava voltando para casa, como sendo alguém na vida. A francesa faleceu quando eu tinha 21 anos an os de idade. Ela teve um aneurisma cerebral, ela estava na França, eu estava prestes a embarcar para ficar lá em definitivo, mas ela teve um aneurisma. Para superar a dor da morte, dessa perda, eu fui fazer o meu estágio de pedagogia, sabe aonde? Na FEBEM. E é bom chegar lá na condição de estagiário. Quando eu desci do carro, alguns educadores mais velhos, aqueles desanimados da vida me viram. “Ele voltou, ele vai vingar, ele fugiu da cadeia”. Achando que eu voltei para matar alguém. Nunca eram capazes de imaginar que um ser humano era capaz de se transformar, transformar, porque eles se achavam donos da verdade. Falaram uma vez: “Não tem jeito, esse morre, vai virar bandido”. Então, para eles, eu seria bandido o resto da minha vida. E era difícil para eles acreditarem que alguém tinha transformado. Um dia apareceu um menino de nove anos de idade, pivete, malandro, cheirador de cola, um caso irrecuperável, que ninguém queria trabalhar, fugia diariamente da FEBEM. Um dia eu encontrei com esse menino na rua e o levei para a minha casa. Foi o Alexandre. O Alexandre, um dia, ele me ligou para o trabalho, ele estava lá em casa, eu dava dinheiro para ele fazer lanche. Falou assim: “Velho, o senhor comprou um fogão, o fogão chegou, tem seis bocas, a gente roda o botão, ascende sozinho, eu até comprei uma galinha para fazer nosso primeiro almoço em casa. Vem almoçar”. Eu falei: “Gente, olha lá. O prontuário do Alexandre fala que esse menino não presta, é irrecuperável, usuário de droga, mas sabe fazer galinha. Ninguém escreveu uma coisa boa que ele sabe fazer”. “Está bem, Alexandre, vou almoçar em casa”. Desliguei. Daí a pouco, ele liga: “Ô velho, já coloquei a panela
de água quente no fogo, a água está fervendo e a galinha está viva. Eu só liguei para perguntar uma coisa: eu afogo a galinha viva na água quente ou puxo a pena dela primeiro? ROBERTO CARLOS RAMOS: Eu falei: “Alexandre, “Alexandre, você não sabe fazer galinha não?” A resposta foi um tapa no meu rosto. “Não. O senhor ainda não me ensinou”. Nós só podemos cobrar das pessoas coisas que nós ensinamos, coisas que nós praticamos. E por aí vai a ética, a moral, a civilidade, a cidadania, a participação. Então, falei: “Alexandre, “Alexandre, amarra a galinha no pé da mesa que a noite eu te ensino a fazer galinha”. Quando eu cheguei em casa, à noite, eu fiz o nosso primeiro jantar à francesa. Arroz salgado, feijão queimado, mas comemos à luz de velas, eu, ele e a galinha. A galinha foi o nosso primeiro bichinho de estimação. Nesse processo, de “salvar” o Alexandre, o Alexandre, gente, já fez 28 anos de idade, formou em pedagogia, há três anos atrás. Trabalha em duas escolas em Belo Horizonte, é um excelente profissional. Depois do Alexandre, veio o Moisés, depois o Cleber, Nilton, Florisvaldo, Leandro, Washington, Muzafá(F), Marco Túlio, o Breno. Para encurtar a história, eu acabei adotando, 20, 19, 20 meninos; um já faleceu, mas não na minha casa, infelizmente não deu certo um... Ele foi morto pela polícia, estava na rua. Mas 20 ex meninos de rua. Dos 19 que estão bem, eu tenho dois; um, formado em pedagogia, o outro está fazendo Direito. Eu tenho, na minha casa, ainda morando dentro de casa comigo, 12 meninos, são crianças e adolescentes, o mais novo está com 12 anos, é o Breno. Se ele estivesse aqui, numa hora dessas, ele estava dependurando no teto, pulando na cabeça de todo mundo. Veio de uma doação frustrada, de escolas que foi o tempo todo: “Não tem jeito, não tem jeito”. Chegou lá em casa com a recomendação de não deixar pegar faca, não deixar chegar perto do fogão. Um dia, eu ensinei esse menino a fazer gelatina. E ele que nunca chegava perto do fogão, aprendeu a fazer gelatina. Eu falei com ele: “Nossa, Breno. É a gelatina mais gostosa que eu comi na minha vida. Como é que você fez essa gelatina? Para ele, foi tão bom saber que ele sabia fazer alguma coisa. Qualquer visita que chega lá em casa hoje, ele fala: “Velho, faz gelatina para ela?” ROBERTO CARLOS RAMOS: Ele quer dar o que ele tem de melhor para a pessoa, não é? Cada um é ímpar na sua coisa. Nós estamos iniciando um processo novo na minha casa, que é a construção do que seria... Nós recebemos muitas visitas, vem muita gente de fora, de outros países, que querem conhecer essa experiência com meus filhos, dentro de casa, a idéia de construir um pequeno Hotel Fazenda, estou morando num sítio agora, uma fazendinha que nós temos, um hotelzinho, onde professores, educadores podem aprender também, possam aprender com a gente, como é que é esse trabalhar de coração para as pessoas? Bem, isso tudo aconteceu porque um dia alguém saiu do outro lado e, sem ganhar um centavo, chegou perto de mim e falou comigo: “Com licença, por favor, eu posso conversar com você”? Esse “eu posso conversar” durou sete anos de convivência. Essa mulher transformou a minha vida. Eu sempre quis pagar o que ela fez por mim, mas não tinha dinheiro na face da terra. Então, comecei a fazer com os meus filhos para tentar retribuir e sempre sinto que estou aquém do que essa mulher fez comigo. Sempre estou em débito, ainda, pelo que ela fez. Ela abriu mão de trabalho na França, Universidade de Marseille; abriu mão de amigos para se dedicar a uma coisa que ela acreditava. E eu tenho tentado fazer isso com meus filhos e espero que meus filhos façam o mesmo porque eles têm o propósito de ajudar a outros 19 rapazes, como eles. Esses 19 novatos, lá para casa, eram 10, estão dobrando, porque os 10 querem ajudar 10 e esses 10 que chegarem vão ajudar outros 10 e os 10 a outros 10. Vai chegar um tempo que nós vamos adotar toda a população do Brasil, todo mundo vai ser da minha família porque é... Não é? É uma progressão aritmética, a coisa vai tomando conta. E nós acreditamos nisso. E, para encerrar, então, a única dica que a historinha “pedagogia do amor” passa para vocês, eu sintetizo numa última história. Antes de mais nada, eu lancei o livro no ano passado, retrasado. A Fox, quando eu estava nos Estados Unidos, gostou da minha história, comprou os direitos autorais dessa minha história de vida. Acabou fazendo um roteiro, vai lançar l ançar um filme chamado “A arte de construir cidadãos, uma pedagogia do amor”. Eu trouxe três para sortear para vocês . No final do evento, três livros, vai ser sorteado para vocês, mas se quiserem comprar depois, “A “A arte de construir cidadãos - as 15 edições da pedagogia do amor”. O livro chamava se “Pedagogia do amor”, mas, como eu fiquei segurando o livro um u m tempo, até assinar o contrato, infelizmente um cara aí lançou um título “A pedagogia do amor”, mas esse título, eu trabalho com ele há 20 anos, que fique bem claro isso. “Pedagogia do amor” é o nome da minha palestra há 20 anos já. Eu tive que colocar, então, as 15 lições da pedagogia do amor. E é o tema do filme, é o tema dessa palestra. Para encerrar, então, o que é que passa a pedagogia do amor? “Dê o máximo de você”. Um dia mudou para uma cidade de Minas Gerais, Araxá, uma mulher mulh er que se chamava Dona Beja. Ela foi fazer lá a única coisa--
ROBERTO CARLOS RAMOS: A turma de Araxá está ali, não é? Ela foi fazer lá a única coisa que ela sabia fazer na vida: Prestação de serviço ao público masculino da cidade. Não, ela fazia muito bem, coordenava a coisa, vinham políticos do Rio de Janeiro, de São Paulo, para ter uma noitada na chácara da Beja, porque ela era famosa. Ela era competente no que fazia. Mas um dia, as virgens da cidade ficaram indignadas, não é? Aquela cortesã, andava na rua, todo mundo cumprimentava, “como é que vai, Dona Beja? Como é que vai a senhora?” Tinha uma influência como se fosse uma primeira Ministra da cidade. As virgens ficaram indignadas e resolveram afrontar a dona Beja. As virgens, um dia, se reuniram no Salão Paroquial, pegaram uma bandeja de prata, defecaram na bandeja, cobriram com uma toalhinha de renda e mandaram para a Dona Beja uma bandeja cheia de fezes, como se fosse um presente. A Dona Beja recebeu a bandeja. Quando ela destampou, viu que tinham fezes, ela não se abalou. Segundo a história, ela pegou a bandeja, jogou fora as fezes, mandou lavar a bandeja, desinfetar, saiu do lado de fora, no jardim que ela tinha, era uma chácara, ela colheu, gente, as rosas mais bonitas do jardim dela, colocou na bandeja e devolveu a bandeja para as virgens, com um bilhetinho assim: “Cada um dá o que tem de melhor”. ROBERTO CARLOS RAMOS: Muito obrigado. Obrigado, gente! Muito obrigado mesmo. Obrigado, gente.
Roberto Carlos Ramos
Roberto é Pedagogo, Mestre em Educação pela Unicamp, Pós-Graduado em Literatura Infantil pela PUCMG, membro da Associação Internacional dos Contadores de Histórias e Valorizadores da Expressão Oral Mundial, sediada em Marselha (França). Em 2001 foi eleito como um dos dez maiores contadores de histórias da atualidade em Seattle, nos Estados Unidos. Entre uma e outra história, Roberto Carlos mostra com bom humor que é possível superar as dificuldades mesmo quando são grandes. Roberto Carlos trabalha com a motivação para fazer com que as pessoas se sintam capazes de mudar as próprias vidas e encarar desafios de forma positiva para superar os obstáculos.