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O CORAÇÃO COR AÇÃO DA VIDA VIDA visão, meditação, transformação integral
Paulo Borges
GUIA PRÁTICO PRÁTICO DE MEDITAÇÃO
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Título: “O Coração da Vida” Autor: Paulo Borges Capa e Paginação: Patrícia Gil Impressão: Realbase ISBN: 978-989-8522-60-3 Depósito Legal nº: 1ª edição: janeiro 2015 EDIÇÕES MAHATMA Tlm: 967319952
[email protected] www.edicoes-mahatma.com
Ao Gaspar, ao Martim “pequeno”, à Carolina, à Oriana, ao Martim “grande” A todas as crianças e jovens, exteriores e interiores, que são o eterno sorriso do Aqui-Agora, as mais belas flores e frutos do Coração da Vida A todos nós: todos os seres
Índice Introdução - Uma via espiritual, meditativa e ética laica e universal ....................................................................................9 I. A revolução silenciosa e a mudança de paradigma ..................................................................................................................................20 II. A mudança em curso. Um novo desígnio para Portugal e para o mundo: pacicar e despertar a mente ..................................................................................................................................................40 III - O que é a meditação? ....................................................................................................................................................................................................................52 IV - Porque meditar? Razões, sentido, nalidade e benefícios da meditação .........................................................59
1. O turbilhão. Ansiedade, insatisfação, mal-estar e sofrimento ..................................................................................................60 2. A aparente separação e dualidade: medo, egocentrismo, avidez, apego, aversão e indiferença ..................................................................................................................................62 3. Serão reais a separação e a dualidade? Da ignorância à sabedoria .................................................................................66 3.1. Independência ou interdependência? Ser, não-ser ou entre-ser? ................................................................................67 3.2. A natureza profunda ou a vida original ............................................................................................................................................................72 4. A via que se cumpre a cada instante e a “viagem na qual nasce o próprio viajante” .................................85 V. Como meditar? Exercícios e métodos meditativos ..................................................................................................................................91 1. Preparação ...................................................................................................................................................................................................................................................91 1.1. Aqui-Agora ...............................................................................................................................................................................................................................................92 1.2. Motivação .................................................................................................................................................................................................................................................93 1.3. Puricação dos canais e dos centros da energia vital .....................................................................................................................94 2. Postura............................................................................................................................................................................................................................................................96 3. Desenvolver a calma e a estabilidade mentais (śamatha ) mediante a atenção plena ..........................100 3.1. Atenção plena ao corpo e às sensações físicas .....................................................................................................................................100 3.2. Meditação sem objecto ou presença aberta ............................................................................................................................................102 3.3. Pós-meditação e estiramento da coluna .....................................................................................................................................................104 3.4. Atenção plena à respiração e às sensações respiratórias .......................................................................................................105 3.4.1. Respiração ao ritmo natural .......................................................................................................................................................................................105 3.4.2. Respiração integral ou do vaso .............................................................................................................................................................................107 3.4.3. Outra alternativa .....................................................................................................................................................................................................................109 3.4.4. Contar a respiração ...............................................................................................................................................................................................................110 3.5. Atenção plena aos fenómenos mentais ..........................................................................................................................................................111 3.6. Atenção plena aos fenómenos “externos” ..................................................................................................................................................116 3.6.1. Visão ...........................................................................................................................................................................................................................................................117 3.6.2. Audição ................................................................................................................................................................................................................................................118 3.6.3. Tacto ........................................................................................................................................................................................................................................................121 3.6.4. Olfacto ..................................................................................................................................................................................................................................................122 3.6.5. Paladar ................................................................................................................................................................................................................................................123 3.7. Meditação sem objecto ou presença aberta com todos os sentidos despertos .........................................125
3.8. Meditação em pé e a caminhar..................................................................................................................................................................................127 3.9. Meditação deitada ......................................................................................................................................................................................................................130 4. A Troca . Desenvolver amor e compaixão incondicionais e universais ..........................................................................132 4.1. Começar por si mesmo .........................................................................................................................................................................................................133 4.2. Incluir os entes queridos .....................................................................................................................................................................................................134 4.3. Incluir os que nos são indiferentes .......................................................................................................................................................................136 4.4. Incluir aqueles por quem sentimos aversão .............................................................................................................................................137 4. 5. Incluir todos os seres e todo o unimultiverso .........................................................................................................................................141 4.6. Prática gradual da Troca e sua integração na vida quotidiana ...........................................................................................142 5. Vipaśyāna ou visão penetrante .......................................................................................................................................................................................145 5.1. Três questões fundamentais sobre a natureza da experiência .........................................................................................146 5.2. Interrogar, investigar e contemplar a natureza da mente. A consciência natural e originalmente desperta ............................................................................................................................................150 6. Dedicatória................................................................................................................................................................................................................................................156 VI. Acção e transformação integrais. Linhas orientadoras de uma ética integral .............................................. 159 1. Dez pontos para uma ética integral.............................................................................................................................................................................161 2. Os Cinco Treinos da Atenção Plena ...........................................................................................................................................................................167 2.1. Reverência pela Vida.................................................................................................................................................................................................................168 2.2. Verdadeira Felicidade .............................................................................................................................................................................................................169 2.3. Verdadeiro Amor ........................................................................................................................................................................................................................169 2.4. Escuta Profunda e Discurso Afectuoso ...........................................................................................................................................................170 2.5. Nutrição e Cura ................................................................................................................................................................................................................................171 3. Carta pela Compaixão Universal (Por uma nova Cultura e uma nova Civilização) .......................................172 VII. Conselhos gerais, enquadramento e estrutura de uma prática regular .............................................................178 1. Conselhos gerais .................................................................................................................................................................................................................................180 1.1. Duração........................................................................................................................................................................................................................................................180 1.2. Hora do dia..............................................................................................................................................................................................................................................181 1.3. Lugar ..............................................................................................................................................................................................................................................................181 1.4. Enquadramento. Tripla Conança e Compromisso ..........................................................................................................................182 1.5. Estrutura de uma sessão formal e de uma prática regular ...................................................................................................183 1.6. Os cinco obstáculos à atenção plena e respectivos antídotos ............................................................................................185 1.6.1. Preguiça ou adiamento ......................................................................................................................................................................................................185 1.6.2. Esquecimento ..............................................................................................................................................................................................................................186 1.6.3. Agitação................................................................................................................................................................................187 1.6.4. Torpor.....................................................................................................................................................................................187 1.6.5. Excesso na aplicação dos antídotos ......................................................................................................................188 1.7. Os cinco estádios da calma mental ...........................................................................................................................188 1.8. O não apego às três experiências ...............................................................................................................................189 Conclusão – Uma via aberta e um eterno começo.........................................................................................................191
O Coração da Vida
Introdução Uma via espiritual, meditativa e ética laica e universal Sinto que devo começar esta introdução com algumas linhas sobre a minha vida e o meu encontro com a espiritualidade e a meditação. Decorria o ano de 1981, tinha 22 anos, terminava a licenciatura em Filosoa na Universidade de Lisboa e começava a sentir a necessidade de uma mudança profunda após a turbulência da adolescência e dos anos posteriores. A minha visão do mundo, na altura muito inuenciada por Friedrich Nietzsche, à mistura com muita revolta niilista contra tudo e todos, fruto da desilusão com a expectativa de mudança social profunda após o 25 de Abril de 1974, evoluiu subitamente para a compreensão de que tinha em mim muito daquilo que rejeitava no mundo e que era disso que primeiro que tudo tinha de me libertar, se queria realmente contribuir para mudar o mundo exterior. Ao mesmo tempo, acentuou-se o sentimento, surgido já na infância, de que a Vida é muito mais do que aquilo que dela em geral compreendemos e vivemos e nos é oferecido pela cultura socialmente dominante, o sentimento de que somos seres potencialmente ilimitados que nos ignoramos e auto-aprisionamos na estreiteza de um mundo convencional, o sentimento de que a suposta normalidade das nossas vidas pode ser uma forma aguda de patologia. Surgiu assim um interesse por todas as tradições espirituais da humanidade – a começar pelo cristianismo – e passei a reconhecer nelas e nos seus fundadores não ilusões e manipuladores das consciências, como pensei nos momentos de maior confusão, mas vias para nos libertarmos de todos os condicionamentos e exemplos de vidas humanas realizadas e plenas por haverem percorrido esse caminho até à perfeição. Devo reconhecer aqui a importância do meu querido pai, Álvaro, que desde a infância não só me transmitiu o amor ao conhecimento e me abriu a sua biblioteca de espiritualidade, mas também me iniciou nos 9
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primeiros exercícios de relaxação e abertura da consciência. Só mais tarde, após a fase revoltada e niilista, reconheci toda a importância desta boa inuência, que hoje aprecio e agradeço cada vez mais. Dele e do meu avô paterno, José, recebi também o sentido e a exigência da justiça social, sem o qual a espiritualidade é incompleta. Adiante falarei do não menor contributo da minha mãe. Persistia todavia o desassossego e a agitação mental e emocional que trazia comigo desde há muito. Alguém me aconselhou a fazer Yoga e, como tinha antigos amigos a viver num centro budista tibetano em Lisboa, foi aí que me dirigi. Pratiquei uma hora de Yoga por dia, de madrugada, durante um ano ou ano e meio, da qual fazia parte um período daquilo que mais tarde descobri ser meditação. Foi assim que iniciei uma prática que nunca mais abandonei, embora no início com uma regularidade instável. A pouco e pouco troquei o Yoga, excepto alguns exercícios preliminares, pela prática desta estranha actividade em que aparentemente não fazemos nada a não ser permanecer sentados bem direitos numa almofada ou numa cadeira. Nada que contribua, dirão os éis da nova religião ou superstição do crescimento económico ilimitado, para aumentar o PIB, o Produto Interno Bruto. Todavia, como pude vericar, estar simplesmente sentado, sem nada fazer a não ser estar bem consciente, atento ao corpo, à respiração e aos pensamentos, sem nos identicarmos com eles, é uma poderosa e profunda acção interior, muito mais exigente e benéca, como hoje comprova a neu rociência, do que a maior parte das coisas que fazemos em piloto automático nas nossas vidas desatentas, ansiosas e neuróticas. Ainda me recordo como nas primeiras aulas oscilava entre a total agitação mental e o torpor, adormecendo sentado e acordando a cabecear para diante... Quando vejo hoje os meus alunos, nas primeiras aulas, bem direitos e sem cabecear, não posso deixar de pensar que começam bem mais avançados do que eu... Estarmos apenas sentados e conscientes é na verdade uma prática de grande alcance, da qual resulta a pouco e pouco uma transformação profunda, uma paz, uma calma, uma clareza e uma abertura que impregnam toda a nossa vida, tudo o que pensamos, dizemos e fazemos. Não é por acaso que ser, em português e castelhano, vem da fusão dos latinos esse e essere (ser, existir, haver; estar) com sedere (estar sentado, residir, car 10
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tranquilo, pousar). Permanecer sentado, calmo e consciente, não parece contribuir para o PIB, mas contribui decerto para algo incomparavelmente mais importante, a FIB, a Felicidade Interna Bruta, sem a qual o crescimento do PIB não só não faz sentido como resulta na verdade de factores nocivos, pois há mais consumo (por exemplo de álcool, drogas, antidepressivos e outros fármacos) e trocas comerciais em sociedades e populações mais doentes, stressadas, deprimidas e insatisfeitas… Foi assim que me iniciei na prática da meditação, a qual naquele contexto me conduziu à espiritualidade budista tibetana, que comecei a tentar praticar desde 1983. Reconheci naturalmente na via do Buda um caminho para aquilo a que, sem o saber, desde há muito aspirava, encontrando nela duas coisas que para mim foram e são decisivas: 1 - ser uma via experimental e não dogmática que visa levar-nos o mais rápido possível a uma libertação de todos os condicionamentos e ao despertar da consciência para além de todas as vias, crenças e doutrinas, incluindo as budistas (gosto de dizer que sigo a via do Buda porque o objectivo é ser Buda, uma consciência desperta, e não budista, sendo o budismo descartável, um instrumento para usar e deitar fora); 2 - ser uma via inseparável de uma ética de amor e compaixão universais e imparciais, que abrange todos os seres sencientes e não apenas os humanos e que considera ainda os elementos, a natureza e todos os fenómenos manifestações sagradas da natureza de Buda universal. Devo aqui dizer que a minha sensibilidade a este aspecto da ética budista, onde incorporo a vertente franciscana da minha sensibilidade cristã, foi previamente despertada pelo exemplo de amor aos animais que encontrei na minha querida mãe, Maria Isabel, e na minha avó materna, Maria da Conceição, e que hoje felizmente impregna toda a minha família. A elas devo outra preciosa inuência que contribuiu decisivamente para a minha formação e pela qual lhes sou também innitamente grato. A minha tentativa de praticar o budismo tibetano levou-me aos encontros fundamentais da minha vida, os mestres espirituais de quem tive e tenho a boa fortuna de ter recebido e receber iniciações e ensinamentos, em Portugal, na França, na Áustria e no Nepal. Rero os seus nomes como um preito mínimo de reconhecimento e homenagem. Aqueles que já deixaram de se manifestar nesta existência foram Dilgo Khyentse Rinpoche, Trulshik 11
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Rinpoche e Tenga Rinpoche. Aqueles que ainda se manifestam entre nós para o bem de todos os seres são Sua Santidade o XIV Dalai Lama (de quem tive o privilégio de ser tradutor, em Portugal e em França), Sua Santidade Sakya Trizin, Mingyur Rinpoche, Jigme Khyentse Rinpoche e Tulku Pema Wangyal Rinpoche. Tive também o privilégio de participar em 2012 num retiro para educadores, em Londres, orientado por Thich Nhat Hanh, consagrado mestre Zen vietnamita em cujo projecto de um budismo social e ambientalmente comprometido me revejo muito. A todos estes mestres e seres realizados de linhagens autênticas devo a oportunidade de ter recebido e receber ensinamentos sobre budismo e meditação de quem os incarna integralmente e é um exemplo de não separação entre a prática espiritual e a vida. Digo-o com um sentimento misto de gratidão, regozi jo, embaraço e constrangimento, pois com tão excelentes mestres ainda mais reconheço quão diminutas e lentas têm sido a minha aprendizagem e a minha evolução… Aprendizagem e evolução no sentido de descobrir o mestre absoluto, a natureza originalmente desperta da nossa própria consciência, o estado a que todos os verdadeiros mestres visam conduzir os discípulos o mais rapidamente possível. Ao mesmo tempo que descobri a meditação e a via do Buda despertei para o potencial de sabedoria da cultura portuguesa, na sua vertente poético-losóca (com destaque para Antero de Quental, Teixeira de Pascoaes, Fernando Pessoa e o grande lósofo José Marinho), e tive outro encontro pessoal que muito me inspirou e marcou: Agostinho da Silva, um sábio muito inspirador com quem tive o privilégio de conviver nos últimos doze anos da sua vida, de 1982 a 1994, e cujas obras tive a grata oportunidade de organizar. Rero-o por ser outra inuência fundamental na minha formação e por ser outro homem ilustre simultaneamente aberto à experiência meditativa e contemplativa e à acção educativa mediante uma ética global não antropocêntrica, que não exclui nem secundariza os animais e a Terra. Dele recebi também o sentido de um universalismo e ecumenismo espiritual, transversal a crentes e descrentes, religiosos, ateus e agnósticos, que muito contribui para a proposta de espiritualidade e ética laicas que apresento neste livro. Essa proposta radica também no meu estudo de todas as tradições espirituais da humanidade, religiosas ou não, o que faço por 12
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profundo interesse pessoal e prossional enquanto professor e investiga dor de Filosoa da Religião e Pensamento Oriental na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Gostaria de deixar clara a grata inuência e profunda inspiração que continuamente recebo de todos os textos, mestres, sábios e espíritos profundos da humanidade, com destaque para o Buda Gautama, o I Ching , os Upanishades , o Bhagavad Gītā , o Eclesiastes , o Cântico dos Cânticos , Confúcio, Lao Zi, Heraclito, Jesus Cristo, o Evangelho segundo São João , o Evangelho de Tomé , Plotino, Nāgārjuna, os Yoga Sū tras , Pseudo-Dionísio, o Areopagita, os Tantras hindus e budistas, Huineng, Lintsi, Padmasambhava, Yeshe Tsogyal, Shankara, João Escoto Erígena, Hallaj, Hadewijch, Joseph Gikatilla, Longchenpa, Dōgen, Eckhart, Rumi, São João da Cruz, Madame Guyon, Holderlin, Rilke, Simone Weil, Thomas Merton, Chogyam Trungpa, Agostinho da Silva, Thich Nhat Hanh, Satish Kumar, Jean-Yves Leloup e Sua Santidade o XIV Dalai Lama, entre muitos outros. A partir de 1999, primeiro como vice-presidente e depois como presidente da União Budista Portuguesa (de 2002 a 2014), os meus companheiros propuseram-me que começasse a orientar cursos, workshops e aulas de introdução à losoa budista e à meditação, o que tenho feito até hoje, com conhecimento dos meus mestres e crescentes solicitações, por todo o país. Mais recentemente tenho facilitado alguns retiros curtos, para quem dese ja aprofundar a sua experiência meditativa e estudar alguns aspectos mais especícos do caminho para libertar a mente de tudo o que a obscurece e atormenta, pacicando-a e despertando-a para o reconhecimento da sua natureza profunda e original. Como rero mais à frente, tenho nos últimos tempos recebido vários convites para palestras e workshops de introdução à meditação em escolas, empresas e outras instituições. Como é natural, procuro apresentar a meditação numa perspectiva laica, não religiosa nem propriamente budista, de modo a que todas as pessoas possam praticá-la e beneciar dela, independentemente das suas convicções, crenças ou descrenças. Isso acontece aliás também nos meus cursos mensais na União Budista Portuguesa, onde faço uma pequena introdução teórica que mostra o sentido da meditação no contexto da via do Buda, tornando todavia claro que os exercícios práticos que se seguem não implicam que ninguém seja budista, sendo igualmente benécos para pessoas com todo o tipo de orientações. 13
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No nal destes cursos e workshops quase sempre várias pessoas perguntam se não tenho um registo escrito da informação partilhada, incluindo a descrição dos exercícios práticos que fazemos. Isso levou-me a pensar escrever um guia ou manual prático de meditação e o convite das Edições Mahatma mostrou-me ser o momento para tal, embora este livro vá mais longe e pretenda ser mais do que um guia técnico de meditação, enquadrando os exercícios aqui descritos no contexto mais amplo, espiritual e ético, do qual a meditação é inseparável e sem o qual não pode dar os melhores frutos. Os exercícios meditativos e contemplativos que aqui exponho e proponho são alguns dos que desde 1983 tento praticar diariamente e que consistem fundamentalmente em métodos de pacicação, estabilização e abertura da mente e da consciência. A maioria são transversais, sob diversas formas, a várias tradições espirituais e religiosas, embora alguns, como a Troca, tenham uma origem especicamente budista, mas perfei tamente compatível com outros enquadramentos religiosos ou com uma abordagem não religiosa e uma prática laica. De um modo geral, o que aqui exponho e proponho é o conteúdo do nível I dos meus cursos e workshops de introdução à meditação, com excepção do conteúdo de V. 5., sobre vipaśyāna ou visão penetrante, que já faz parte do nível II dos mesmos cursos e workshops. Estes exercícios serão desenvolvidos, junto com a exposição de outros, no segundo volume deste livro, mais focado no desenvolvimento cognitivo e na experiência da nossa natureza profunda. As bases para lá chegarmos, bem como uma introdução à experiência da nossa natureza original, estão presentes neste volume e são indispensáveis para praticar com sucesso os exercícios do segundo volume, o que dicilmente aconte cerá se não tivermos a capacidade de permanecermos focados sem distracções no tempo mínimo de uma sessão curta, aproximadamente cinco minutos. É essa base mínima de estabilidade e clareza mental que, entre outras coisas, os exercícios deste volume visam desenvolver e assegurar. Se a informação aqui contida não pode deixar de reectir a minha formação espiritual, meditativa e ética como alguém que tenta seguir a via do Buda, a novidade deste livro – em relação a outros guias de meditação meramente técnicos ou conotados com uma tradição espiritual ou religiosa especíca – reside precisamente em expor exercícios meditativos tra14
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dicionais enquadrados na proposta de um caminho espiritual, meditativo e ético, de acção integral, que seja transversal e possa ser seguido por todas as pessoas, independentemente das suas orientações e convicções religiosas, losócas ou outras . O que aqui proponho é uma espiritualidade e uma ética laicas, alimentadas pela experiência meditativa, na sua dupla vertente reexiva e contemplativa, que acredito poder ser compatível com todas as crenças ou com a sua ausência. O que entendo por espiritualidade não é outra coisa senão a expansão fraterna e activa da consciência , que não é pertença exclusiva de nenhuma tradição espiritual, religiosa ou losóca especíca, sendo todavia o que em todas e cada uma delas há de melhor e mais autêntico e por isso compatível com a rica diversidade das suas formas. Creio que não é o sermos ou pensarmos que somos budistas, cristãos, islâmicos, hindus, judeus, Bahá’í ou outra coisa, incluindo ateus ou agnósticos, que faz de nós pessoas melhores, mais serenas, sábias e fraternas, mas sim o sermos pessoas melhores, mais serenas, sábias e fraternas, que pode tornar-nos budistas, cristãos, islâmicos, hindus, judeus, Bahá’í, ateus ou agnósticos mais autênticos, felizes e solidários. Isto caso tenhamos alguma dessas identidades, o que não é todavia necessário: basta sermos pessoas autênticas, felizes e solidárias. Estou convicto que a meditação é um caminho bastante seguro e ecaz para isso. A via proposta neste livro visa oferecer a uma civilização e a uma sociedade confusas, divididas, conituosas e sem rumo, confrontadas com um profundo mal-estar interior e graves riscos de colapso ecológico-social, uma orientação básica para que possamos ter vidas mais plenas, conscientes e fraternas, não só a respeito da humanidade, mas de todos os seres e da Terra. Como adiante se expõe, estou convicto que isso depende essencialmente da mais profunda das mudanças, a da percepção de quem somos, pela qual possamos reconhecer ou redescobrir uma natureza mais profunda e um estado de consciência mais original, livre de tomar como real esta aparente separação entre nós, os outros e o mundo que tende a tornar-nos egocêntricos, carentes e inseguros e com isso reféns de todo o tipo de formas de pensar e de agir que se traduzem no estado problemático e crítico do mundo contemporâneo, com todas as suas opressões e violências internas e externas, visíveis e invisíveis. No fundo, 15
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sinto a via que neste livro proponho, na linha de outras obras recentes 1 , como um contributo para uma profunda mudança de paradigma cultural e civilizacional. Ao fazê-lo, assumo a continuidade do projecto de ecumenismo e universalismo espiritual de Agostinho da Silva 2 , bem como a inspiração dos ensinamentos laicos, não religiosos nem budistas, de mestres budistas consagrados como Chogyam Trungpa, Thich Nhat Hanh e Sua Santidade o XIV Dalai Lama. Este livro insere-se ainda no projecto do Círculo do Entre-Ser, uma associação losóca e ética da qual sou um dos fundadores e à qual neste momento presido, que visa precisamente promover uma espiritualidade e uma ética laicas e universalistas, transversais a todas as tradições e religiões da humanidade, com base na prática da meditação ou atenção plena. Cabe enfatizar que essa espiritualidade e ética têm de radicar na prática e no cultivo regular da experiência meditativa, simultaneamente reexiva e contemplativa, que conduz ao conhecimento aprofundado de si mesmo, não podendo reduzir-se a meras especulações intelectuais e abstractas ou ao conhecimento externo, livresco e erudito. Neste sentido, esta proposta é a de uma sabedoria ou losoa práticas, mais conformes aliás com as origens da losoa, como um modo de vida autêntica e integral e não como um mero modo de pensar divorciado da vida, como hoje em geral acontece. Espero que a leitora ou leitor possa sentir que tem nas mãos um livro para praticar e continuar com a sua vida, não para ler e arrumar na prateleira. Escrevo e publico este livro com a convicção profunda de que pacicar a 1. Cf. Paulo BORGES, É a Hora! A mensagem da Mensagem de Fernando Pessoa , Lisboa, Temas e Debates / Círculo de Leitores, 2013; Quem é o meu próximo? Ensaios e textos de intervenção por uma consciência e uma ética globais e um novo paradigma cultural e civilizacional , Lisboa, Mahatma, 2014. 2. “Reservemos para nós a tarefa de compreender e unir; busquemos em cada homem e em cada povo e em cada crença não o que nela existe de adverso, para que se levantem as barreiras, mas o que existe de comum e de abordável, para que se lancem as estradas da paz; empreguemos toda a nossa energia em estabelecer um mútuo entendimento; ponhamos de lado todo o instinto de particularismo e de luta, alarguemos a todos a nossa simpatia. Reictamos em que são diferentes os caminhos que toma cada um para seguir em busca da verdade, em que muitas vezes só um antagonismo de nomes esconde um acordo real” - Agostinho da SILVA, “Por um m de batalha”, Considerações [1944], in Textos e Ensaios Filosó cos I , introdução e organização de Paulo Borges, Lisboa, Âncora Editora, 1999, p. 117. 3. Podem consultar o nosso site em: http://www.circuloentreser.org/
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mente e despertar a consciência, levando-a ao pleno desenvolvimento de todas as suas ilimitadas potencialidades cognitivas e afectivas, deve tornarse o centro das nossas preocupações e investimentos pessoais, sociais e políticos. Com serenidade, sabedoria, amor e compaixão, encontraremos as soluções mais adequadas para todos os problemas sociais, políticos, económicos e ambientais. Sem serenidade, sabedoria, amor e compaixão, todas as pretensas soluções sociais, políticas, económicas e ambientais jamais deixarão de se converter em novos e maiores problemas, como em geral tem acontecido. A humanidade paga muito caro a recusa da espiritualidade , que, insisto, não é religião, mas a expansão fraterna e activa da consciência . É isto que temos de mudar, se queremos realmente mudar alguma coisa. É a isto que chamo política da consciência , que começa pelo que se pode chamar a micropolítica da mudança de cada uma das nossas mentes e pela educação de cada um de nós e dos mais jovens para sermos mais conscientes da interconexão e interdependência de todas as formas de vida e dos ecossistemas, numa ética da responsabilidade e da solidariedade universal. A política da consciência é também a proposta de uma profunda mudança do paradigma dominante na política e, sendo transversal a todos os quadrantes ideológicos e partidários, transcende o espectáculo em geral triste e o horizonte estreito da política partidária e convencional, mediante uma visão de Bem Comum universal e integral que não desconsidera os seres não-humanos e os ecossistemas nem os factores internos, mentais e emocionais, da felicidade que todos procuramos, assumindo-os como parte das necessidades fundamentais de todo o ser humano. A política da consciência reúne contemplação e acção na acção integral, interna e externa, em prol de uma sociedade mais pacíca, solidária e desperta. Com efeito, como veremos, voltar a atenção para o interior e observar os movimentos da mente, deixá-los dissolver-se e repousar num estado calmo, claro e aberto, livre da ctícia separação entre eu e outro, pode reve lar-se o fundamento indispensável de uma vida saudável e a acção interna que é a fonte de toda a acção externa justa e esclarecida, amorosa e compassiva. O estado do mundo e a tremenda violência contra a Terra e os seres, humanos e animais, são o espelho do contrário disto. Não há mudança de paradigma sem reunião da contemplação e da acção. Cremos ser este 17
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um dos desaos fundamentais do mundo contemporâneo, equidistante do extremo de uma contemplação sem acção externa e assim degradada numa experiência intelectual desprovida do calor e do dinamismo do amor e da compaixão, bem como do extremo oposto da obsessão do agir externo desprovido de visão e do mesmo dinamismo amoroso e compassivo e assim convertido numa agitação e activismo pouco esclarecidos e beligerantes que são parte de todos os problemas e de nenhuma solução. Seria desnecessário, mas é conveniente dizer – pois nos domínios da espiritualidade abundam hoje muitos e graves equívocos – que ao escrever este livro e fazer esta proposta não me considero mestre espiritual ou de coisa alguma. E por favor que ninguém me considere mestre por dizer que o não sou!… Tomara eu ser um sofrível discípulo dos meus mestres. Sou apenas alguém que está no caminho, como todos nós. Escrevo o livro e faço esta proposta por um apelo interior, por solicitação de várias pessoas (no que respeita ao guia de meditação) e porque estou sincera e profundamente convicto, pela minha experiência pessoal e pela experiência de outros, que o que aqui proponho, em termos de visão do mundo, de exercícios práticos e de linhas orientadoras da nossa acção, faz sentido e é benéco. Quem desejar aprofundar a experiência meditativa segundo a especíca via budista tibetana que pessoalmente tento seguir, aconselho que consulte as actividades da Fundação Kangyur Rinpoche no seu sítio na Internet, onde pode seguir a orientação de mestres qualicados. As vias espirituais e religiosas mais especícas não são contudo adequadas a todos os tipos de pessoas, do mesmo modo que um mesmo medicamento não é aconselhável para todas as doenças e para todos os doentes. Talvez haja contudo um conjunto de práticas que possam ser universalmente benécas, para manter, recuperar ou redescobrir a saúde integral, e que possam servir de base para alguém procurar uma via mais especíca, se for o caso. Daí uma vez mais a razão deste livro, com a sua proposta de uma via espiritual, meditativa e ética laica e universal, puramente experiencial e sem qualquer pressuposto doutrinal que não tenha de ser comprovado pela experiência. Se algo aqui houver de prejudicial e negativo, é minha a responsabilidade. Se algo aqui houver de benéco e positivo, é a manifestação da nossa comum sabedoria inata. 18
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Que todos os seres possam beneciar da leitura e da prática do que aqui houver de benéco e positivo! Que todos os seres sejam livres de todas as formas de sofrimento e suas causas! Que todos os seres encontrem a paz e a felicidade profundas! Que todos os seres descubram a sua natureza original, despertem e sejam livres!
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I. A revolução silenciosa e a mudança de paradigma A crescente (re)descoberta da meditação pelos ocidentais, num contexto laico, como um treino da mente para manter uma atenção focada, calma e clara na experiência presente, momento a momento, sem juízos, interpretações e rótulos conceptuais, é um fenómeno histórico-cultural e civilizacional dos mais relevantes no nal do século XX e no início do século XXI. A meditação ou as técnicas de mindfulness (“atenção plena”, tradução do pali sati 4 ) estão hoje cada vez mais em voga como via para a evolução espiritual, desenvolver as potencialidades cognitivo-afectivas da consciência, investigar as relações entre mente, cérebro e corpo e melhorar a qualidade de vida, em termos psicossomáticos, com profundos e comprovados benefícios no plano da saúde, das terapias e dos cuidados paliativos, da educação e do desenvolvimento sócio-prossional, da liderança e da vida empresarial, da consciência ambiental e da acção social e política. A par da difusão da prática meditativa em sectores crescentes da população, das várias experiências de sucesso em escolas, empresas, prisões e hospitais e da divulgação dos seus benefícios pela comunicação social, ela é objecto de um crescente interesse da comunidade cientíca, em particular no do mínio das neurociências, psicologia, psiquiatria e medicina, como mostram as experiências rigorosas que nos últimos anos têm sido realizadas no MIT (Massachusetts Institute of Technology) e noutros lugares, bem como os encontros Mind and Life , promovidos desde 1987 pelo Mind and Life Institute e onde investigadores de vanguarda têm dialogado com o Dalai Lama e outros contemplativos, na maioria budistas, mas também cristãos. Se falamos da (re)descoberta da meditação pelos ocidentais é porque - embora ela se faça hoje sobretudo a partir da tradição budista, que a renou particularmente - a meditação já fez parte da cultura ocidental, quer na Antiguidade greco-latina 5, quer na Cristandade, onde se desenvolveu e permaneceu sobretudo na tradição monástica e dos “exercícios espirituais” 4. Sobre o signicado de sati , cf. Bhikkhu BODHI, “What does mindfulness really mean? A canonical perspective”, in AAVV, Mindfulness. Diverse Perspectives on its Meaning, Origins and Applications , editado por J. Mark G. Williams e Jon Kabat-Zinn, Londres/Nova Iorque, Routledge, 2013, pp. 19-39.
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(aquilo que nas espiritualidades orientais se traduz como “meditação” corresponde em geral ao que tradicionalmente na espiritualidade cristã se chama “contemplação”, embora haja hoje, na Igreja Católica, uma Comunidade Mundial para a Meditação Cristã, segundo os ensinamentos dos primeiros séculos da Igreja redescobertos por John Main e continuados por Laurence Freeman, que tivemos o privilégio de conhecer pessoalmente em Portugal)6. A chamada meditação corresponde na verdade a uma sabedoria espiritual profunda que parece ser transversal a todas as tradições espirituais, sapienciais e religiosas e que hoje, como defendemos, pode estar no centro de uma espiritualidade e uma ética laicas, transversais a crentes e descrentes, religiosos, ateus e agnósticos. Pode-se dizer que, no seu sentido mais profundo - a que conduzem, como veremos, os métodos de concentração e calma mental - , a meditação ou contemplação consiste numa experiência de reconhecimento e fruição do que verdadeiramente se é, aqui e agora, sem a interferência de interpretações, avaliações e desejos subjectivos e de preocupações com o passado, o futuro e mesmo com o presente. Libertando a mente de tudo isso, a meditação ou contemplação manifesta-se como a experiência natural de integração na natureza profunda, perfeita e primordial de tudo o que existe, em interconexão com todas as suas manifestações, todos os fenómenos e todos os seres. A experiência meditativa ou contemplativa contrasta assim com uma experiência do mundo centrada na aparente separação do sujeito ou do “eu”, na qual tudo é percepcionado, interpretado e avaliado segundo os seus medos, expectativas, desejos e aversões, as suas supostas necessidades, os seus gostos, desgostos e apetites de ter, fazer e 5. Cf. Pierre HADOT, Exercices spirituels et philosophie antique , prefácio de Arnold I. Davidson, Paris, Albin Michel, 2002, nova edição revista e aumentada. 6. Sobre a contemplação e meditação cristãs, sem sermos exaustivos: Thomas MERTON, Seeds of Contemplation , Wheathampstead, Anthony Clarke, 1972; Id., The Inner Experience. Notes on Contemplation , Nova Iorque, Harper Collins, 2004; John MAIN, The Heart of Creation. Meditation: a way to set God free in the world , editado por Laurence Freeman, Londres, Canterbury Press, 2007; Martin LAIRD, Into the Silent Land. The Practice of Contemplation , Londres, Darton, Longman and Todd, 2009; John MAIN, A palavra que leva ao silêncio. Um manual de meditação cristã , tradução de Artur Morão, Lisboa, Pedra Angular, 2010; Laurence FREEMAN, A peregrinação interior. O caminho da meditação , Prior Velho, Paulinas, 2012; Pablo D’ORS, A Biograa do Silêncio. Breve Ensaio sobre Meditação , Prior Velho, Paulinas, 2014.
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desfazer. É nesse sentido que tradicionalmente, segundo a chamada lo soa perene , a meditação ou contemplação se considera a suprema e mais ecaz forma de acção, por promover a mais profunda e radical de todas as transformações, a da consciência do sujeito agente, descentrando-o das suas necessidades ctícias e apetites egocêntricos, levando-o ao (re)conhecimento de si como inseparável da ou idêntico à natureza profunda e plena do real e diminuindo e abolindo assim a experiência de separação dos demais seres e do mundo como um todo. Neste processo reintegrase uma experiência primordial e original e uma consciência não-dualista, integral e holística, uma presença aberta ilimitadamente consciente e bondosa, desvela-se à medida que se dissipa o véu da ilusória percepção de uma cisão, distância e desconexão entre cada um de nós e a natureza profunda de todos os seres e coisas, entre eu e outro, nós e eles, ser humano e mundo, sujeito e objecto. O aprofundamento desta experiência mostra-a como a plena realização de si – no sentido de abandonarmos todas as fantasias acerca de quem somos na tomada de consciência da nossa realidade profunda – e o m supremo da existência humana 7, aquilo a que na verdade inconscientemente aspiramos em todos os objectos do desejo (e daí nenhum o saciar). A meditação ou contemplação é a suprema forma de acção enquanto um agir interno, invisível e imóvel, em que o resultado coincide com ele mesmo. Não é uma acção transitiva, um fazer ou um produzir, que origine algo distinto de si mesmo, mas antes um reconhecimento contemplativo daquilo que é tal qual é: por isso se chama por vezes não-acção, parecendo inútil e sem valor para a visão estreita de quem só avalia as acções pela sua produtividade externa e pelos seus resultados aparentes e mensuráveis. Apesar de parecer improdutiva, a não-acção meditativa ou contemplativa é na verdade, na medida em que consiste num descentramento e numa desegoização, a fonte de toda a acção genuinamente altruísta, amorosa e compassiva, sem parcialidade e sem expectativa de retribuição porque sem outro interesse senão o bem de tudo e de todos, que o agente não distingue do seu próprio bem (superando assim os próprios conceitos de 7. Cf. Aldous HUXLEY, La philosophie éternelle. Philosophia perennis , traduzido por Jules Castier, Paris, Éditions du Seuil, 1977, pp.13-34.
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egoísmo e altruísmo, pois já não faz sentido falar de “eu” nem de “outro”). Numa apreciação muito geral, pode-se dizer que o esquecimento, recusa ou desconhecimento da experiência meditativa ou contemplativa tende a gerar o estado de consciência predominante nas várias modalidades históricas e planetárias da civilização, em particular naquela que hoje se globalizou: o sentimento da e a crença na separação e desconexão entre si e o mundo, entre cada ser humano e os demais seres, entre a humanidade, a Terra, o uni(multi)verso e a natureza primordial ou original de todos os seres e coisas. O processo civilizacional, desde as suas mais remotas origens, parece resultar da percepção de sermos um “ego encerrado na pele” 8, um centro de pensamento, sentimento e acção isolado e fechado num corpo físico por sua vez inserido num mundo externo, estranho e hostil, do qual o referido ego humano, movido pelo sentimento de vulnerabilidade e pelo medo, procura defender-se tentando dominá-lo e submetê-lo 9. Autolimitada por essa percepção e identicando-se com uma experiência de des conexão, insegurança e carência, a consciência egocentrada desenvolve a percepção de que a segurança e felicidade que procura depende de conseguir algo de exterior e futuro, algo que ainda não se tem ou não se é e que depende do triunfo sobre um mundo desconhecido e seres adversos, controlando-os e dominando-os 10. Se esta percepção de si como uma entidade separada de um mundo constituído por outras tantas entidades e coisas separadas é uma “ilusão” – como o sustentam, cada uma a seu modo, as múltiplas tradições meditativas e contemplativas planetárias e hoje a física quântica - , então todo o processo civilizacional está baseado numa “ilusão” 8. Cf. Charles EISENSTEIN, The Ascent of Humanity. Civilization and the Human Sense of Self , Berkeley, Evolver Editions, 2013, p.XVII. 9. Cf. Alan WATTS, The Book on the Taboo Against Knowing Who You Are , Londres, Souvenir Press, 2013, pp.8-10. 10. “Depuis l’époque des hommes des cavernes, l’être humain recherche la paix et le bonheur en chassant, en cultivant la terre et en accumulant des biens matériels. Nous avons passé tant de temps à les chercher en dehors de nous-mêmes que nous n’avons jamais eu le loisir de les récolter en notre propre esprit” [“Desde a época das cavernas o ser humano procura a paz e a felicidade caçando, cultivando a terra e acumulando bens materiais. Passámos tanto tempo a procurá-las fora de nós mesmos que não tivemos jamais a ocasião de as colher no nosso próprio espírito”]– Dzigar KONGTRÜL, Le Bonheur est entre vos mains. Petit guide du bouddhisme à l’usage de tous , prefácio de Matthieu Ricard, tradução de Carisse Busquet, Paris, NiL éditions, 2007, p.55.
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e na manutenção de um tabu acerca de quem verdadeiramente somos que só pode trazer insatisfação e sofrimento e culminar no consumar da “crise” que é desde o início inerente à natureza da civilização 11. Em termos mais próximos, parece evidente que a experiência meditativa ou contemplativa se esbateu e desconsiderou com o progressivo declínio ou marginalização da espiritualidade na cultura ocidental, cedendo o lugar a uma cultura e a uma civilização em que a mente se demitiu da mais difícil e exigente acção interior de primeiro que tudo reconhecer, superar e transformar os apetites e impulsos dualistas e egocêntricos e cada vez mais se voltou e precipitou, dominada por eles e ao mesmo tempo cheia de contraditórias intenções e expectativas libertadoras, para a acção externa sobre os outros e o mundo. A mente humana orientou-se progressiva e predominantemente, não já para a observação, o conhecimento e a transformação de si mesma, não já para a contemplação e identicação com o mundo ou com a fonte original e comum de si e do mundo (aquilo que nas tradições teístas se chama “Deus”, da raiz indo-europeia –dei , que designa “o que brilha”, a irrupção da luz nas trevas 12, e que por isso mesmo pode ser interpretado, como veremos, como a luz da natureza profunda da consciência), mas antes para o conhecimento e o domínio do mundo que passou a ser cada vez mais visto como distinto, exterior e estranho 13. Isto mediante uma razão quantitativa, calculadora e planicadora, que deu lugar à ciência moderna e ao projecto tecnológico a ela inerente, movido pela promessa e expectativa do progresso e acesso geral da humanidade à felicidade, abundância material e liberdade mediante o domínio e exploração da natureza e dos seres vivos em ordem ao usufruto hedonista e hegemónico da Terra 14. Foi esta cultura e esta civilização - só possível pelo esquecimento ou rejeição da experiência não-dual, meditativa ou contemplativa, e obcecada com a eciente organização política, económica e tecnocientíca do mundo tal como surge na ilusória percepção dualis 11. Cf. Charles EISENSTEIN, The Ascent of Humanity. Civilization and the Human Sense of Self, pp.XVII e XXI; Alan WATTS, The Book on the Taboo Against Knowing Who You Are . 12. Cf . Odon VALLET, Petit lexique des mots essentiels , Paris, Albin Michel, 2007, p.63. 13. Mediante o que B. Alan Wallace designa como a “externalização cientíca da meditação” – cf. B. Alan WALLACE, Mind in the Balance. Meditation in Science, Buddhism, and Christianity , pp.15-16.
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ta dos egos supostamente separados - , que a partir do Renascimento e da modernidade capitalista ou socialista/comunista se globalizou, por via imperial, colonial e neocolonial, na chamada “ocidentalização do mundo” 15. Apesar dos vários aspectos positivos da modernidade de matriz iluminista, no que respeita por exemplo à emancipação do dogmatismo religioso e da rigidez hierárquica das sociedades tradicionais e ao reconhecimento dos direitos humanos, não deixa de ser um facto hoje dramaticamente evidente que as supostas Luzes do século XVIII evoluíram não no sentido da prometida e desejada ilustração ou iluminação das consciências, mas antes em direcção a novas formas de miticação, dogmatismo e obscurantismo. Com efeito, ao libertar-se daquilo que tradicionalmente a continha e limitava - no caso da Cristandade a crença num Deus criador, omnipotente e transcendente e numa salvação supraterrena caso obedecesse aos seus mandamentos - , ao deixar de viver para contemplar no mundo a presença do divino como fonte comum da humanidade e do mundo e procurar unirse a ele (mas também ao conceber a divindade como separada do mundo e criadora do ser humano como único ser à sua imagem e semelhança), ao dessacralizar a natureza e a totalidade da existência em nome da racionalidade humanista e antropocêntrica, a humanidade também libertou todos os impulsos e apetites milenarmente recalcados, nomeadamente a vontade de poder que a levou a imaginar-se no centro de um mundo separado de si e existente para seu usufruto e a ganância e usura com que se dedicou à exploração da natureza e dos seres vivos, humanos e não humanos. Seja proclamando a morte de Deus e autodivinizando-se para ocupar o seu lugar vazio 16, seja agindo em nome da suposta missão divina 14. Processo que gerou a modernidade capitalista e a sua crítica radical, quer de teor tradicionalista e reaccionário, quer de teor socialista, revolucionário e libertário, até ao surgimento do actual movimento ecológico. Cf., entre muitos outros, René GUÉNON, A crise do mundo moderno , tradução, prefácio e notas de António Carlos Carvalho, Lisboa, Vega, 1977 [1927]; Id., Le régne de la quantité et les signes des temps , Paris, Gallimard, 1970 [1945]; Julius EVOLA, Rivolta contro il mondo moderno , Roma, Edizioni Mediterranee, 1969 [1934]; Michael LÖWY / Robert SAYRE, Révolte et mélancolie. Le romantisme à contre-courant de la modernité , Paris, Payot, 1992. 15. Cf. Serge LATOUCHE, L’occidentalisation du monde. Essai sur la signication, la portée et les limi tes de l’uniformisation planétaire, Paris, La Découverte, 2005 (com um prefácio inédito do autor). 16. Cf. Friedrich NIETZSCHE, A Gaia Ciência , tradução de Alfredo Margarido, Lisboa, Guimarães Editores, 1977, 2ª edição, p.144.
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de dominar a Terra, a humanidade imaginou-se ela mesma omnipotente e entendeu que a sua divina vocação de dona e senhora do mundo ou que a sua emancipação do innito divino passava pela innita realização de todas as suas paixões, impulsos e desejos num mundo igualmente visto, por crentes e descrentes, como um obstáculo a vencer. O desejo do innito divino ou da sua recusa converteu-se no innito desejo de poder, posse e fruição antropocêntrica da Terra17. Surgiu assim, com o Iluminismo, a ideia do “progresso”, entendido como a emancipação da humanidade, pelo trabalho, das necessidades do mundo natural e a subordinação da natureza, por via da ciência e da tecnologia, aos ns hedonistas, utilitários e materialistas da civilização. O resultado da crença fanática neste tipo de progresso, que se converteu num novo mito e na nova religião laica e globalizada, foram as sucessivas revoluções industriais, a superstição e o novo obscurantismo do crescimento económico innito num planeta com recursos nitos, a devastação dos recursos naturais, a destruição massiva da biodiversidade e da diversidade cultural, a destruição, industrialização e sofrimento da vida animal, a poluição e o lixo industrial, o aquecimento global e as mudanças climáticas, a sociedade obsessivamente mobilizada para o trabalho, produção, consumo e desperdício, com níveis de stress, ansiedade e depressão cada vez maiores. E nada disto parece ter feito a humanidade progredir, a não ser para guerras mundiais devastadoras, terrorismo de grupos e Estados, a manipulação dos governos e do poder político pelas grandes corporações económiconanceiras, o aumento do fosso entre ricos e pobres, o agravamento da fome e o surgimento de novas doenças, o ressurgimento do nacionalismo e da xenofobia, a destruição das solidariedades tradicionais, o esvaziamento do sentido da vida e a insatisfação generalizada, apesar da manipulação mediática das consciências e da multiplicação de fármacos e distracções 17. “Cada vez mais o homem se tem posto e considerado como dono do mundo, com o direito de destruir os animais e as plantas, de escravizar os irmãos homens, de transformar a vida inteira nalguma coisa que não tem outro m senão o de sustentar a sua vida material. (…) A vida tornou-se feroz, implacável e, o que é pior ainda, sem sentido nenhum que eleve a vida além da vida. É uma série de momentos em que se produz para se consumir e se consome para se poder produzir de novo” - Agostinho da SILVA, A Comédia Latina (1952), in Estudos sobre Cultura Clássica , introdução e organização de Paulo Borges, Lisboa, Âncora Editora, 2002, pp. 306-307.
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alienantes como sedativos e analgésicos do crescente mal-estar global (a persistência do mal-estar é aliás do interesse da indústria dos fármacos e das distracções, garantindo os seus negócios imensamente lucrativos). Como já anunciou Erich Fromm em 1976, vivemos todos hoje o trauma do “fracasso” e “m de uma ilusão”: a da “Grande Promessa de Progresso Ilimitado”18. Após a morte de Deus proclamada por Nietzsche, vivemos hoje a do grande ídolo com o qual a mente humana o procurou substituir no altar das suas contínuas cções. Mas na verdade o que está na raiz da frustração geral desta expectativa de um Paraíso terreno cientíco-tecnológico e político-económico, cerca de três séculos após o seu aparecimento, convertendo o sonho cor-de-rosa da modernidade no pesadelo do sofrimento e da angústia pós-moderno? Cremos que na origem das dimensões externas e mais visíveis deste processo civilizacional – tecnocientícas, sociais, económico-nanceiras, políticas e ambientais - , há um acontecimento interno, de natureza espiritual e psicológica, que tende a ser ocultado ou camuado pela predominante análise supercial que se limita àquelas dimensões mais aparentes e que a nosso ver resulta do mesmo processo geral de obscurecimento e declínio da consciência. O que aconteceu e acontece é que, com a recusa ou esquecimento da profunda experiência espiritual de uma não-separação entre cada consciência e a realidade última, com o esquecimento ou recusa da espiritualidade e da sua prática meditativa ou contemplativa – e isto no seio das próprias religiões, que se tornaram cada vez mais centradas na crença dogmática e no intelecto conceptual, igualmente dualistas - , crescentemente se legitimou e normalizou uma vida dominada por aquilo que a espiritualidade e a ética tradicionais sempre apontaram e denunciaram, 18.Eis o que escreve sobre este “fracasso” e “m de uma ilusão”: “A Grande Promessa de Pro gresso Ilimitado – a promessa de domínio da Natureza, de abundância material, de maior felicidade para o maior número de indivíduos, e de liberdade pessoal irrestrita – alimentou a esperança e a fé de inúmeras gerações desde o início da Revolução Industrial”; “A trindade da produção ilimitada, liberdade absoluta e felicidade irrestrita formaram o núcleo de uma nova religião”; “É importante visualizar a imensidão da Grande Promessa, as maravilhosas conquistas materiais e intelectuais da Revolução Industrial para podermos compreender o trauma que a constatação do seu fracasso está a produzir nos dias de hoje. Porque a Revolução Industrial falhou efectivamente no cumprimento da sua Grande Promessa” – Erich FROMM, Ter ou Ser? , Lisboa, Editorial Presença, 1999 [1976], pp.13-14.
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a Oriente e Ocidente, como as causas de todos os problemas da humanidade. Referimo-nos, por exemplo, aos kleshas (na tradição indiana yóguica e budista, “venenos”, “obscurecimentos”, “máculas”, “aições”, factores mentais que obstruem a consciência na ignorância dualista, no egocentrismo, no apego e na aversão, sendo fonte de sofrimento para si e os outros) e aos pecados , equivalentes ao que o psicólogo Daniel Goleman chama hoje “emoções destrutivas” e “toxinas mentais” 19. Recorde-se que pecado , palavra tão traumática para a consciência ocidental, vem do peccatum latino, do verbo peccare , dar um passo em falso, que por sua vez traduz o grego amartia , que signica “falhar um alvo ou um objectivo”, o qual, por seu turno, verte o hebreu pâcha , que expressa “o facto de se revoltar” 20. O engano, o desvio e o fracasso, presentes nas expressões grega e latina, convergem com o sentido de uma projecção oblíqua e dia-bólica , de diaballein , que se desvia e transvia de um rumo certeiro, directo ao objectivo. Que objectivo? Como vimos, o objectivo intemporal, não do progresso tecnocientíco, económico e material a todo o custo, dominando e explo rando a Terra e os seres vivos para realizar os ns egocêntricos dos indivíduos, dos grupos e das nações, mas o da evolução interior e comunitária no sentido de superar todas as divisões do ser e da consciência e realizar a suprema potencialidade do ser humano: aquilo a chamámos plena realização de si, como o alvo inconsciente de todo o desejo, que se ilude nos objectos e graticações que jamais o podem substituir 21; aquilo que no Oriente se designa sobretudo como libertação e iluminação e no Ocidente cristão como salvação e divinização (a deicatio latina, a theôsis grega). O objectivo de aceder àquilo que, para lá de todas as diferenças doutrinais, religiosas, teológicas e losócas, indica a experiência de um estado de plenitude, integridade e totalidade. O objectivo de manter, (re)descobrir e restaurar aquilo que as grandes tradições espirituais e sapienciais da humanidade sempre consideraram o mais importante: uma Vida plena, inteira e total, sem divisões e conitos entre as várias dimensões do nosso ser e assim sem divi19.Cf. Daniel GOLEMAN, Emoções destrutivas e como dominá-las. Um diálogo cientíco com o Dalai Lama , Lisboa, Temas e Debates, 2005. 20.Cf. Odon VALLET, Petit lexique des mots essentiels , pp.178-179. 21.Cf. Ken WILBER, The Atman Project. A transpersonal view of human development , Wheaton/ Chennai, Quest Books, 1996, p.XIV.
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sões e conitos entre nós e os outros, entre nós, os demais seres vivos e o mundo. Trata-se do m supremo de descobrir, manter e restaurar a nossa saúde ou sanidade fundamental 22, cabendo aqui recordar que a palavra saúde procede etimologicamente de uma raiz indo-europeia – sal ou sol – que exprime a ideia de inteireza, integridade e perfeição e está na origem do indo-europeu solwos (“sê inteiro”), do sânscrito sarvah (tudo), do pali sabba (tudo, todo), do avéstico haurva (ileso, intacto, são e salvo), do grego holos (inteiro), do latino salus , utis (saúde, salvação), dos termos ingleses all (tudo), whole (inteiro), healthy (de boa saúde), holy (santo) e dos alemães alles (todo, tudo), Heil (salvação, inteiro, são) e heilig (santo, sagrado)23. Se esta saúde (para a qual se dirige a nossa mais profunda saudade 24) é a da plena realização de si, por integração na plenitude e totalidade do real, sem dualidade nem separação, compreende-se que Jean-Yves Leloup interprete a amartia grega - traduzida por “pecado”, mas que vimos signicar apenas “falhar um alvo ou um objectivo” - como o estado de quem está “ao lado de si mesmo”, cujas várias manifestações patológicas são o que a tradição cristã considerou “pecados capitais”, entendidos nesta perspectiva não como actos contra Deus, mas contra si mesmo, enquanto “sintomas de uma doença do espírito ou doença do ser” 25. Apesar de todo o ser humano e mesmo todos os seres vivos aspirarem inconscientemente a tal, não foi a busca de manter ou recuperar esta saúde profunda, em termos de plenitude, integridade e totalidade do ser e da consciência, que motivou o caminho seguido pelas várias civilizações e em particular por aquela, de matriz europeia-ocidental, que hoje se globalizou e domina a maior parte do planeta. Perdida e desconsiderada a experiência meditativa ou contemplativa, que preserva e promove um estado não-dual de consciência, a consequente cção da separação en22.Cf., por exemplo, o sentido de “saúde” e “sanidade” em Chogyam TRUNGPA, na sua proposta, que subscrevemos, de uma “iluminação secular” e de uma “sociedade desperta”: Shambhala. La voie sacrée du guerrier , Paris, Éditions du Seuil, 1990, pp.29 e 31. 23.Cf. Odon VALLET, Petit lexique des mots essentiels , pp.232-234. 24.Cf. Paulo BORGES, Da saudade como via de libertação , Matosinhos, Quid Novi, 2008. 25.Cf. Jean-Yves LELOUP, Écrits sur l’Hésychasme. Une tradition contemplative oubliée , Paris, Albin Michel, 1999, p.53. “O pecado não é uma distância. É uma má orientação do olhar” – Simone WEIL, L’amour de Dieu et le malheur (1942), in Oeuvres, edição estabelecida sob a direcção de Florence de Lussy, Paris, Gallimard, 1999, p.697.
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tre eu e outro, humanidade e mundo, deu lugar ao investimento massivo na produção de mecanismos de sobrevivência – instrumentos, armas, Estados, cidades, tecnologia, etc. – que ameaçam cada vez mais a própria sobrevivência da espécie humana, além de destruírem outras espécies e o equilíbrio dos ecossistemas. Perdida e desconsiderada a experiência meditativa e contemplativa, a humanidade não pode senão car à mercê daqueles impulsos sediados no velho cérebro, o hipotálamo – designados pelos neurocientistas como os quatro Fs (feeding, ghting, eeing, f……; alimentação, luta, fuga, “reprodução”) e herdados dos primitivos répteis, há quinhentos milhões de anos - , sobretudo quando deixamos que dominem e instrumentalizem os recursos do neocórtex, pondo ao serviço desses mesmos impulsos a capacidade de reexão e inteligência que nos poderia distanciar e libertar deles 26. Assim nos convertemos em répteis primitivos, mas muito mais perigosos porque sosticados, pois dotados de todos os recursos da inteligência tecnológica e bélica que nos converte no maior predador que a Terra conheceu, como todas as violências da civilização amplamente mostram. Na verdade, não tem havido interesse, nem da população em geral, nem dos poderes instituídos, em que a vertiginosa evolução cientíca e tecnológica da humanidade, voltada para a acumulação obsessiva de controlo, poder, prazer e riqueza, na qual têm apostado os poderes económicos e políticos mundiais, seja acompanhada por uma igual evolução ética, estética e espiritual, por via da educação e da formação de consciências. Isto faz com que indivíduos, grupos e nações sujeitos aos mais primitivos instintos e emoções detenham hoje e cada vez mais sosticados mecanismos de poder, exploração e destruição militar, ambiental e económico-nanceira, para comum prejuízo da população humana, dos seres vivos e da Terra. Temos uma civilização global, em termos tecnocientícos, económico-nanceiros e mediáticos, mas não temos uma consciência ética, estética e espiritual global que nos permita usar de modo construtivo, não-violento e para o bem comum os recursos tecnocientícos da civilização, preservar a beleza do mundo e estender a categoria bíblica de próximo a todos os seres vivos, à Terra e 26.Cf. Karen ARMSTRONG, Doze Passos para uma Vida Solidária , Lisboa, Temas e Debates / Círculo de Leitores, 2011, pp.19-20.
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ao universo como um todo, como temos defendido 27. Não deixa de ser signicativo que Keynes, o mais inuente economista do século XX, que determinou muitas das políticas governamentais, haja declarado que o motor da economia mundial tem de continuar a ser a deliberada inversão dos valores fundamentais e, em termos espirituais e psicológicos, aquilo que a espiritualidade cristã chamou “pecados capitais” e que vimos consistirem em profundas patologias do ser e da consciência: “Durante ainda mais um século, pelo menos, carecemos de ngir para nós próprios e para todos os outros que o que é justo é mau e o que é mau é justo, porque o mau é útil e o justo não é. A avareza, a usura e a precaução têm de ser os nossos deuses ainda por mais algum tempo”28. Como se os meios justicassem os ns e um m benéco pudesse ser alcançado por um meio nocivo! O estado actual das consciências e do planeta é o espelho e o resultado desta intencional legitimação das doutrinas da ecácia a todo o custo, despida de considerações ético-morais, seja o maquiavelismo da Realpolitik , seja a doutrina do homo economicus , racional, calculista e egoísta na busca ávida de lucro e riqueza. E isto só é possível pela mesma recusa ou esquecimento de um estado de consciência onde predomine a não-separação eu-outro e a consequente empatia, precisamente o que é promovido pelos exercícios meditativos e contemplativos adiante propostos. Na verdade, se os relatórios cientícos nos advertem que a Terra enfrenta a sexta extinção massiva da biodiversidade desde o Holoceno, a primeira por causas humanas, os relatórios da alma dizem-nos que perdemos ou esquecemos o nosso centro e a nossa meta real, pois a paz, a felicidade e a plenitude é o que mais procuramos e parece ser disso que cada vez mais nos afastamos. O estado de pré-colapso social e ecológico em que se encontra o planeta não é senão o reexo e a projecção externa do caos e do colapso em que tantas vezes se encontram as nossas mentes, nos afazeres de mil actividades divorciadas dos ritmos naturais do corpo e da vida e perdidas num turbilhão de pensamentos, emoções e preocupações 27.Cf. Paulo BORGES, Quem é o meu próximo? Ensaios e textos de intervenção por uma consciência e uma ética globais e um novo paradigma cultural e civilizacional . 28.John Maynard KEYNES, citado em E. F. SCHUMACHER, Small is Beautiful (um estudo de economia em que as pessoas também contam) [1973], Lisboa, Dom Quixote, 1985, p.85.
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que irresistivelmente nos arrastam como folhas secas numa tempestade interior, privando-nos de toda a calma, serenidade e lucidez necessárias ao pleno orescer e fruticar de uma vida humana sã e normal. Talvez seja o momento de termos a coragem de assumir que aquilo que passa por ser normal no nosso estado mental e comportamental dominante não é senão uma “normose”, a patologia de uma normalidade que se apresenta como tal, mas que é na verdade lesiva do nosso ser e das nossas mais profundas aspirações, tornando-nos cronicamente insatisfeitos, infelizes e doentes29. O conceito de “patologia da normalidade ” foi também antecipado por Erich Fromm, ao considerar que, contra a perspectiva limitada de muitos psiquiatras e psicólogos, o problema da saúde mental não se limita aos indivíduos “desajustados”, estendendo-se antes ao “possível desajuste da própria cultura”, congurando uma “patologia social”, neste caso “a pa tologia da sociedade ocidental contemporânea” 30. Com efeito, do ponto de vista das possibilidades reveladas pelo que o professor Roger Walsh chama as “disciplinas da consciência” (como a meditação e a contemplação), “o nosso estado comum de consciência de vigília está severamente abaixo do óptimo”31. A cultura instituída, ao normalizar estados mentais e emocionais dissonantes e patológicos, só por serem social e quantitativamente dominantes, passou a percepcionar como patológicos muitos estados de consciência mais profunda, aquilo a que Stanislav Grof chama “emergências espirituais”. Tendemos por exemplo a achar normais e salutares a competição, a ambição e a ganância, no plano pessoal, social e institucional, enquanto somos capazes de considerar sinais de fraqueza ou de falta de inteligência o amor e a compaixão, além de considerarmos psicóticas pessoas que não se sintam separadas dos outros seres e do mundo e que experimentem estados holotrópicos de consciência (com um dinamismo 29. Pierre Weil dene assim a “normose”: “é o conjunto de hábitos considerados normais e que, na realidade, são patogénicos e nos levam à infelicidade e à doença” – in Pierre WEIL, Jean -Yves LELOUP, Roberto CREMA, Normose. A patologia da normalidade , Petrópolis, Editora Vozes, 2012, 3ª edição, p.15. 30. Cf. Erich FROMM, The Sane Society [1956], Londres/Nova Iorque, Londres, Routledge Classics, 2002. 31. Cf. Roger WALSH, citado em Jon KABAT-ZIN, Full Catastrophe Living. How to cope with stress, pain and ilness using mindfulness meditation , Londres, Piatkus, 2013, edição revista e actualizada, p.189.
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de aspiração à totalidade), como aqueles que surgem espontaneamente ou resultam naturalmente da prática meditativa e contemplativa regular. Há nisto também um profundo etnocentrismo, em que a única cosmovisão do mundo tida por válida é a do racionalismo materialista da civilização ocidental tecnocientíca e industrial. Se, por exemplo, uma experiência de abertura não-dual e holística da consciência, em que alguém se sinta inseparável do universo e do divino, ocorrer numa cultura oriental ou indígena, haverá um enorme respeito pelo seu sujeito e um imenso interesse social em aprender com ele e usufruir da partilha da sua vivência, considerada preciosa, ao passo que se a mesma experiência ocorrer numa sociedade ocidental ele tenderá a ocultá-la, pois se a partilhar expõe-se ao ridículo e ao gozo público de ser considerado um “místico” alucinado ou a ser hospitalizado para receber tratamento psicofarmacológico que suprima os sintomas (perturbadores não tanto para ele, mas para a estreiteza mental dominante) e o devolva à “normalidade” segundo o critério médico-psiquiátrico ainda dominante32. Todavia, apesar do paradigma da consciência dual e fragmentada ser ainda predominante na cultura ocidental e na civilização que a partir dela se globalizou, os sinais externos e internos da sua disfunção e fracasso – as sucessivas crises económico-nanceiras e os riscos de colapso ecológicosocial, a par da angústia existencial e do sofrimento psicológico generalizado, patente por exemplo no aumento substancial dos índices de comportamento antissocial, alcoolismo, toxicodependência e outras adições, stress, depressão e suicídio – conguram uma crise que é simultaneamente um risco e um momento extremamente oportuno para uma mudança de raiz do referido paradigma. Recordamos que crise , em chinês – wei-ji - , se expressa por dois ideogramas que designam o “risco” e a “oportunidade” 33 e em português remete para uma raiz sânscrita – kri ou kir – com o sentido de “desembaraçar”, “puricar” e “limpar”, donde vêm “crisol” e “acrisolar”. Toda a crise implica um processo de puricação, uma eliminação das gan32. Cf. Stanislav GROF, A Psicologia do Futuro. Lições da Investigação Moderna sobre a Consciência [2000], Porto, Via Óptima, 2007, pp.31 e 235-237. 33. Cf. Fritjof CAPRA, O Ponto de Mutação. A ciência, a sociedade e a cultura emergente , tradução de Álvaro Cabral, São Paulo, Editora Cultrix, 2007, p.24.
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gas ou elementos acidentais “que se incrustaram num processo vital ou histórico” e se absolutizaram ao ponto de comprometerem o seu âmago e a sua substância. Crise em grego (krisis, do verbo krínein ) também signica “decisão num juízo”, implicando ruptura e descontinuidade, pela qual se siga um caminho diferente do anterior. Se vem perturbar o curso normal da vida é porque se esgotaram as “possibilidades de crescimento de um arranjo existencial”, o que exige o questionamento radical dos seus fundamentos e a decisão criativa que abra e rasgue novos e mais amplos caminhos e horizontes para a irradiação da própria vida e a evolução do ser e da consciência. Sem essa decisão, a crise , no seu comum sentido negativo, arrisca prolongar-se indenidamente sem ter um desfecho feliz, resultando em desespero, niilismo e destruição 34. É próprio do tempo de crise o sentimento ambíguo de que algo de habitual está a morrer ou vai morrer, com a inerente perturbação e angústia, e de que outra coisa, ainda indenida e desconhecida, está a emergir ou prestes a aparecer, oferecendo uma sensação de libertação e de arranque para um novo início, com soluções superadoras e integradoras dos elementos antes em confronto. Numa crise experimenta-se intensamente o kairós , o tempo oportuno, onde o essencial se torna mais visível e o acidental perde a sua aparente “consistência e validade”35. Cremos ser o que acontece neste preciso momento com o paradigma cultural e civilizacional dominante, que se revela desajustado à natureza profunda das coisas e de nós próprios. Com efeito, a origem profunda do nosso mal-estar radica neste sentimento de tudo parecer estar organizado, a começar pelo medo que temos de mudar, para que vivamos aquém das nossas melhores, mais amplas e generosas potencialidades36. Como única alternativa à ruptura violenta e destrutiva, impõe-se a decisão criativa atrás referida e que a nosso ver tem de passar - para gerar os necessários consensos transversais, de natureza trans-religiosa, trans-cultural e trans-ideológica - por uma espiritualidade e uma ética laicas e seculares, que possam ser praticadas por todo o tipo de cren34. Cf. Leonardo BOFF, Crise. Oportunidade de crescimento , Petrópolis, Vozes, 2010, pp.26-29. 35. Cf. Ibid ., p.19. 36. Cf. Paulo BORGES, “A verdadeira causa do nosso mal-estar”, in Quem é o meu Próximo? Ensaios e textos de intervenção por uma consciência e ética globais e um novo paradigma cultural e civilizacional , pp.117-119.
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tes e não-crentes e cujo principal alimento seja, não a crença dogmática, a especulação intelectual ou a rigidez e confronto ideológicos, mas aquilo que cada um de nós pode directamente descobrir, sentir e experimentar na abertura da mente e do coração por via meditativa e contemplativa. Com efeito, este sentimento de crise e frustração geral, associadas à constatação de que a felicidade que tão dramaticamente se procura, por meios que geram todos os problemas referidos, não reside propriamente no progresso, riqueza e conforto materiais, que hoje se vê serem cada vez mais parte do problema e não da solução, é sem dúvida um dos factores mais decisivos do renovar da inquietação espiritual da humanidade e da reorientação da mente de cada vez mais pessoas para a busca do autoconhecimento e do sentido profundo da vida numa existência mais sábia, harmoniosa e simples. Com efeito, a milenar e predominante orientação da humanidade e da ciência, desde o século XVII, para o conhecimento do mundo externo e para a sua transformação tecnológica, parece haver esquecido a necessidade de primeiro que tudo se conhecer e transformar aquilo que em nós conhece e experimenta a vida e o mundo, ou seja, a própria mente, a própria consciência. Este esquecimento da mente e das dimensões mais profundas da consciência é o esquecimento daquilo cujo estado condiciona toda a percepção e interpretação dos acontecimentos do mundo como agradáveis, desagradáveis ou neutros, e assim toda a reacção ou ausência de reacção a eles, determinando a qualidade satisfatória ou insatisfatória da própria vida. Esta parece assim depender, em última instância, de um factor interno, invisível e imaterial e não tanto das condições externas da existência, como o prova o facto de se encontrarem elevados índices de insatisfação em pessoas, grupos e sociedades dotados das circunstâncias de vida material mais favoráveis e elevados índices de satisfação em pessoas, grupos e sociedades que vivem em circunstâncias que, segundo os critérios das sociedades ocidentais ditas desenvolvidas, são menos boas ou difíceis37, como é o caso das comunidades indígenas e de muitas nações ditas em vias de desenvolvimento. É certamente por 37. Entre outros, um estudo recente (2013) feito pelo Happy Planet Index considera que os três países mais felizes do mundo são, por esta ordem, a Costa Rica, o Vietnam e a Colômbia, numa lista de dez dominada por nações da América Latina.
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isso que uma das grandes alternativas ao critério do Produto Interno Bruto (PIB) como índice do desenvolvimento social venha de um país com uma forte cultura meditativa e contemplativa, como é o caso do Butão, com a proposta da Felicidade Interna Bruta (FIB), termo criado pelo rei Jigme Singye Wangchuck em 1972. É neste contexto que a espiritualidade hoje ressurge, compreensível e desejavelmente menos ligada à crença e ao dogmatismo religiosos ou às especulações intelectuais da losoa teórica do que à busca experimental, vivencial e prática própria da via meditativa e contemplativa. É também compreensível que este regresso da espiritualidade como uma sabedoria de vida, inseparável de uma prática profundamente transformadora da percepção de si, do mundo e da acção, assuma hoje uma feição predominantemente terapêutica. Isso é inevitável, porque boa parte da humanidade – em particular a população das sociedades ocidentais e ocidentalizadas, o que é signicativo - sente-se hoje cansada e doente, não só física, mas mental e emocionalmente, sendo o stress, a ansiedade e a depressão algumas das patologias mais salientes do actual “mal-estar na civilização”38. Deste modo, é natural que a principal motivação para se procurar hoje os métodos meditativos e contemplativos seja a de restabelecer as bases indispensáveis a uma vida minimamente sã, como ter uma mente mais calma, pacíca, clara e focada no presente. É natural que a meditação e a contemplação, que tradicionalmente visam realizar as superiores possibilidades da consciência numa irreversível e plena libertação espiritual, sejam hoje maioritariamente demandadas como uma via para restaurar a saúde em termos psicossomáticos, aquilo que na perspectiva tradicional não é mais do que um produto derivado ou efeito colateral do caminho para o primeiro e grande objectivo 39. É natural e compreensível que o cultivo da atenção plena surja hoje como um caminho para nos curarmos dos excessos e males do chamado progresso que, no seu entendimento redutor como crescimento económico e desenvolvimento material e tec38. Cf. Sigmund FREUD, Das Unbehagen in der Kultur , 1930. 39. Cf. o diz S. S. o Dalai Lama num dos seus diálogos com médicos e cientistas: DALAI LAMA, in AAVV, The Mind’s Own Physician. A Scientic Dialogue with the Dalai Lama on the Healing Power of Meditation , editado por Jon Kabat-Zinn e Richard J. Davidson com Zara Houshmand, Oakland, Mind & Life Institute / New Harbinger Publications, 2011, p.117.
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nológico, tem tido um efeito devastador da harmonia psicossomática do ser humano. O ressurgimento da meditação e da contemplação – mas hoje felizmente não restritas a vocações monásticas e religiosas e antes abertas a toda a população – parece constituir na verdade uma reacção orgânica e natural pela qual cada vez mais seres humanos sentem necessidade de abrandar e parar esta azáfama obsessiva e cada vez mais acelerada que encerra, esgota e esvazia a vida humana no círculo vicioso da produção, do consumo, da competição e da luta pela sobrevivência, privando-nos de saúde, tempo, energia e disponibilidade para o verdadeiro crescimento, aquele que se opera mediante a compreensão da natureza das coisas, a alegria de ser e o alargamento da empatia amorosa e compassiva a todos os seres, para além do círculo limitado dos nossos afectos mais imediatos. Do renovado regresso da espiritualidade, em termos laicos e seculares, pela via experiencial meditativa e contemplativa, com a ética global que nela se funda, depende hoje também a possibilidade de se reorientar para ns superiores e mais harmoniosos os recursos económicos e cientíco-tecnológicos da civilização, colocando-os ao serviço de uma vida boa e feliz para o ser humano e os demais seres, no respeito pelo equilíbrio dos ecossistemas e pelas leis fundamentais da vida na Terra. No que respeita à humanidade, como entre nós o viu e defendeu Agostinho da Silva, há que fazer com que o melhor do progresso tecnocientíco ajude a suprir as necessidades básicas do ser humano, libertando-o da nova escravatura do trabalho alienado para a realização da nossa superior vocação de contemplar, amar e criar 40. Para isso é necessário que a espiritualidade e a ética impregnem cada vez mais o tecido social e nele se expandam, chegando também às instituições e em particular aos educadores e decisores no plano administrativo, político e económico. É o que já começa a acontecer, conforme indicaremos no capítulo seguinte, e é um signicativo sinal dos tempos que a meditação e o cultivo da atenção plena comece a penetrar em tantas instituições, a ganhar cada vez mais visibilidade na comunicação social e a interessar tantos médicos, investigadores, cientistas, professores, gestores e políticos. Há na verdade uma transição silenciosa em curso e o paradigma já está a mudar. 40. Para uma introdução ao pensamento de Agostinho da Silva, cf. Paulo BORGES, Agostinho da Silva. Uma Antologia , Lisboa, Âncora Editora, 2006.
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Vivemos num momento fundamental da história da civilização e da vida humana na Terra, em que a experiência meditativa e contemplativa começa a ocupar o centro da solução criativa da presente crise e do processo de cura que tem de se estender das nossas mentes e corações a todas as dimensões da nossa vida social e institucional. Todavia, para além de ser decisiva para sarar as feridas mais visíveis e mais perceptivelmente dolorosas das nossas vidas, das nossas sociedades e do processo civilizacional, é fundamental não esquecer o m supremo da experiência meditativa e contemplativa, que se agura como o próprio m supremo da existência humana: o reconhecimento ou realização plena de quem somos e a partilha disso com os outros. Cremos na verdade ser disso que depende a recuperação – ou melhor, reintegração - da nossa Saúde integral, tal como é do esquecimento ou distracção disso que resultam todas as nossas doenças, tormentos e problemas, internos e externos, pessoais, sociais e civilizacionais. Com efeito, conforme a hipótese de trabalho que as várias sabedorias planetárias nos legam, sujeita à vericação da nossa razão e experiência, pode haver uma plenitude do ser e da consciência, uma grande perfeição universal, sempre presente em nós e em todos os seres e coisas, que nunca foi lesada ou perdida, mas apenas temporariamente obscurecida e esquecida pelo hábito de nos vermos como entidades separadas e isoladas e pela identicação da consciência com os estados mentais e emocionais dualistas e egocêntricos daí resultantes, dominados, como veremos, pelo apego, avidez, aversão, indiferença e todas as preocupações e conitos que nos agitam resultando em acções que causam todo o tipo de sofrimentos a nós e aos outros. Todos estes estados podem todavia não ser mais do que nuvens passageiras – brancas, cinzentas ou negras, pouco importa que não alteram o céu amplo e iluminado que somos ou vagas à superfície – por mais violentas e alterosas que pareçam – que nada perturbam o fundo sereno do vasto oceano do nosso ser. E este céu amplo e iluminado ou este oceano sereno pode ser por nós reconhecido e experimentado como o fundo, a fonte, a matriz e a natureza comum de tudo, de todos os seres e do universo, o sagrado espaço fundamental onde a consciência, a vida e a energia uem em toda a sua aparente diversidade, mas sem 38
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qualquer separação, na interconexão profunda de todos os seres e de todos os fenómenos. Ter o mínimo vislumbre disto pode reorientar para o aprofundamento da sua descoberta a nossa energia e o nosso desejo, em termos pessoais e sociais, libertando-nos das demandas ilusórias e fatalmente insatisfatórias em que nos esgotamos, gerando todo o sofrimento e destruição atrás referidos para nós, as demais espécies e o planeta. O investimento consciente e empenhado nessa descoberta pode converterse no centro de um novo paradigma cultural e civilizacional menos dualista, mais sábio e mais empático, bondoso e compassivo a respeito de todos os seres e da Terra. A descoberta e a experiência, por nós todos, desse fundo, fonte, matriz e natureza universal como o próprio âmago ou imo do nosso ser, como a nossa mais funda intimidade, pode converter-se no centro de uma Nova Aliança entre o ser humano, todos os seres vivos, a Terra e o universo. Essa descoberta e essa experiência pode ser precisamente a do Aqui-Agora que sempre somos. Sabê-lo-emos da melhor forma, por nós próprios, quando iniciarmos e à medida que aprofundarmos a viagem que este livro propõe.
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II. A mudança em curso. Um novo desígnio para Portugal e para o mundo: pacifcar e despertar a mente Como vimos, o crescente interesse das sociedades laicas ocidentais pela experiência meditativa e contemplativa, com as inovadoras vias de transformação, acção e intervenção sábia e serena que a partir dela se abrem, constitui hoje um fenómeno histórico-cultural e civilizacional extremamente relevante. Nesse interesse conjugam-se a busca de uma via para o desenvolvimento espiritual e cognitivo-afectivo de cada um de nós, a demanda de uma resposta para a questão sempre premente de qual o sentido maior e mais profundo da vida e a necessidade de sarar as feridas psicológicas, sociais e ambientais decorrentes dos desequilíbrios e violências de um processo civilizacional em contradição com as leis fundamentais da natureza, da vida e do nosso ser mais profundo 41. Isto traduz-se pelo crescente número de pessoas que participam em workshops, cursos, retiros e outras formações de introdução e aprofundamento dos métodos meditativos-contemplativos e que iniciam uma prática regular em casa e nas suas vidas quotidianas. Isto traduz-se também na impregnação das mais diversas áreas da vida social e institucional pelas práticas meditativas-contemplativas e pela crescente divulgação, na comunidade cientíca e na comunicação social, dos seus benefícios psicossomáticos, terapêuticos, educativos, empresariais, sociais, ambientais e políticos (são cada vez mais frequentes os encontros e linhas de investigação académicos e cientícos sobre meditação, ao mais alto nível, e as publicações cientícas especializadas sobem em echa 42). Muitos destes benefícios são desde há milénios conhecidos no seio das diversas tradições espirituais, religiosas e sapienciais da humanidade, 41. “Enquanto o fosso ecológico se baseia num desconectar entre eu e natureza e o fosso social num desconectar entre eu e outro, o fosso espiritual-cultural reecte uma desconexão entre eu (“self”) e Si (“Self”) – isto é, entre o nosso corrente “eu” e o futuro “Si” emergente que representa o nosso maior potencial. Este fosso é manifesto em números rapidamente crescentes de esgotamento e depressão, que representam o crescente fosso entre as nossas acções e quem realmente somos” – Otto SCHARMER / Katrin KAUFER, Leading from the Emerging Future. From Ego-System to Eco-System Economies , São Francisco, Berrett-Koelher Publishers, 2013, pp.4-5.
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mas têm sido desde há cerca de 35 anos comprovados, no que respeita ao seu efeito sobre o cérebro e o organismo humanos, por experiências cientícas rigorosas, com recurso a imagens de ressonância magnética, tomograas axiais computorizadas e electroencefalogramas aplicados a meditadores experimentados e a principiantes. Se desde sempre a melhor prova dos efeitos benécos da meditação é a transformação da consciência e da vida dos praticantes, evidentes em seres humanos, mulheres e homens, mais sábios, calmos, felizes e solidários com os outros humanos e todas as formas de vida, mesmo em circunstâncias externas fortemente adversas – com destaque para os grandes sábios e mestres da humanidade que zeram de uma ou outra forma de meditação e prá tica espiritual o alimento fundamental das suas vidas - , a isto junta-se hoje a comprovação cientíca dos efeitos positivos da meditação, mesmo em principiantes, num vasto leque de domínios: na transformação estrutural e funcional do cérebro, na activação de redes neuronais e na sincronização de ritmos cerebrais nas ondas “gama”, no aumento do volume e da densidade da massa cerebral, na capacidade de reter mais informação e de a processar mais rapidamente, no desenvolvimento da memória, da concentração e da criatividade, na redução da insónia, do stress, da ansiedade, da depressão e do “burnout” (esgotamento), na menor activação da amígdala (área cerebral associada ao medo, agressividade e cólera), na prevenção de acidentes vasculares cerebrais e cárdio-vasculares (por diminuir a tensão arterial), no reforço do sistema imunitário e da resposta às infecções, na cura da psoríase, na redução da experiência da dor física, emocional e mental (com destaque para doentes oncológicos terminais), na gestão mais harmoniosa de situações adversas, de pressão e crise emocional, no retardar do envelhecimento das células e no aumento da longevidade, numa maior empatia e conexão com os outros (mesmo desconhecidos e membros de outras espécies), num comportamento mais responsável, amo roso, compassivo e pró-social 43, no incremento da 42. Vejam-se dois grácos eloquentes em AAVV, The Mind’s Own Physician. A Scientic Dialogue with the Dalai Lama on the Healing Power of Meditation, editado por Jon Kabat-Zinn e Richard J. Davidson com Zara Houshmand, Oakland, Mind & Life Institute / New Harbinger Publications, 2011, p.7; AAVV, Mindfulness. Diverse Perspectives on its Meaning, Origins and Applications , editado por J. Mark G. Williams e Jon Kabat-Zinn, Londres/Nova Iorque, Routledge, 2013, p.2.
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satisfação, da alegria de viver, do entusiasmo e do sentimento de se viver uma vida com sentido, etc 44. Existem duas abordagens terapêuticas com sucesso evidente – a Mindfulness-Based Cognitive Therapy (Terapia Cognitiva Baseada na Atenção Plena) e a Mindfulness-Based Stress Reduction (Redução do Stress Baseada na Atenção Plena) – e a meditação está hoje no centro dos interesses da psicologia clínica, da terapia cognitiva, da psiquiatria, das ciências da saúde e da investigação neurocientíca de vanguarda, fornecendo algumas das provas mais conclusivas de uma das maiores descobertas cientícas deste século: a plasticidade cerebral, a possibilidade do cérebro se renovar ao longo de toda a vida, o que é particularmente evidente pela prática da meditação. A experiência meditativa é também cada vez mais incontornável para a investigação sobre a natureza da consciência, obrigando a repensar os pressupostos materialistas e reducionistas no que respeita à relação entre mente, cérebro e corpo, pois o cultivo de certos estados mentais e emocionais, por via dos diferentes tipos de meditação, tem efeitos comprovados e com uma correspondente diversidade sobre o funcionamento cerebral e siológico. A meditação regular mostra também que podemos modicar voluntariamente os nossos padrões de percepção, pensamento e comportamento, mostrando ser possível mudar intencionalmente o nosso carácter, que hoje se sabe ser muito menos condicionado pela genética do que se pensava45. Há também quem sustente, como a professora Barbara Fredrikson, que a meditação permite modicar o ADN, nomeadamente a 43. O Professor Paul Ekman cita vários relatórios cientícos que mostram que as “práticas meditativas […] aumentam a compaixão para com os desconhecidos” e pondera as diculdades da meditação ser promovida à escala mundial, “a não ser que fosse incorporada na educação escolar primária ou secundária”– Paul EKMAN, Moving Toward Global Compassion , São Francisco, Paul Ekman Group, 2014, pp.48-50. 43. Veja-se uma apresentação resumida de muitas das experiências que conduziram a estas conclusões em Matthieu RICARD, Plaidoyer pour l’Altruisme. La force de la bienveillance , Paris, NiL éditions, 2013, pp.274-289. 45. Referimos apenas alguns estudos e obras mais recentes que dão conta da investigação actual e das aplicações da meditação: Deane H. SHAPIRO / Roger N. WALSH, Meditation, classic and contemporary perspectives , Nova Iorque, Aldine, 1984; Daniel GOLEMAN, The meditative mind: The varieties of meditative experience . Nova Iorque, Tarcher, 1988; James H. AUSTIN, Zen and the Brain: Toward an Understanding of Meditation and Consciousness , Cambridge, MIT Press, 1999; T. BENNETT-GOLEMAN, Emotional Alchemy: How the Mind Can Heal the Heart, Harmony Books , 2001; AAVV, The experience of meditation: Experts introduce the major traditions ,
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meditação sobre a bondade amorosa, pois “o amor, e a sua ausência, altera fundamentalmente a bioquímica na qual o nosso corpo está mergulhado”, alterando “os próprios caminhos pelos quais o nosso ADN se expressa no interior das nossas células”46 (a meditação a que se refere a autora é aqui designada como “Troca” e exposta no ponto 4 do capítulo V). Perante todas estas evidências, não podemos senão subscrever a proposta recente de Matthieu Ricard de que a meditação e os métodos de atenção plena sejam integrados no programa de educação das crianças e dos jovens – como “uma espécie de equivalente mental da aula de educação física” – e no cuidado “terapêutico dos problemas emocionais dos adultos” 47. Por todos estes motivos, a meditação começa a fazer parte da vida de um crescente número de pessoas em todo o mundo, com destaque para o editado por Jonathan Shear, St. Paul, MN, Paragon House, 2006; Maria B. OSPINA, Kenneth BOND, Mohammad KARKHANEH, Lisa TJOSVOLD, Ben VANDERMEER, Yuanyuan LIANG, Liza BIALY, Nicola HOOTON, Nina BUSCEMI, Donna M. DRYDEN, Terry P. KLASSEN, “Meditation prac tices for health: state of the research”, Evidence Report / Technology Assessment (Full Report), prepared by the University of Alberta Evidence-based Practice Center under Contract No. 29002-0023) (Junho, 2007), 472 págs.; A. LUTZ, J. P. DUNNE e R. J. DAVIDSON, “Meditation and the neuroscience of consciousness: an introduction”, in AAVV, Cambridge Handbook of Consciou sness , editado por P. Zelazo, M. Moscovitch e E. Thompson, Nova Iorque, Cambridge University Press, 2007; Matthieu RICARD, L’Art de la Méditation. Pourquoi méditer? Sur quoi? Comment? , Paris, NiL éditions, 2008; B. Alan WALLACE, Mind in the Balance. Meditation in Science, Buddhism, and Christianity , Nova Iorque, Columbia University Press, 2009; Id., Meditations of a Buddhist Skeptic. A Manifesto for the Mind Sciences and Contemplative Practice , Nova Iorque, Columbia University Press, 2012; AAVV, La espiritualidad a debate. El estudio cientíco de lo trascendente , tradução do inglês de David González Raga, Barcelona, Editorial Kairós, 2010, em particular Joan H. HAGEMAN, “No todas las meditaciones son iguales. Una breve revisión de las perspectivas, las técnicas y los resultados”, pp.298-309, com mais bibliograa especiali zada nas notas; Matthieu RICARD, “Neurociências e meditação”, Cultura ENTRE Culturas , nº2 (Lisboa, 2010), pp.82-86; Id., A Arte da Meditação , Lisboa, Pergaminho, 2011; AAVV, The Mind’s Own Physician. A Scientic Dialogue with the Dalai Lama on the Healing Power of Meditation , editado por Jon Kabat-Zinn e Richard J. Davidson com Zara Houshmand, Oakland, Mind & Life Institute / New Harbinger Publications, 2011; Jon Kabat-Zinn, Full Catastrophe Living: Using the Wisdom of Your Body and Mind to Face Stress, Pain, and Illness , Bantam, 2013 (edição revista); AAVV, Mindfulness. Diverse Perspectives on its Meaning, Origins and Applications , editado por J. Mark G. Williams e Jon Kabat-Zinn, Londres/Nova Iorque, Routledge, 2013; AAVV, Meditation – Neuroscientic Approaches and Philosophical Implications , editado por Stefan Schmidt e Harald Walach, Heidelberg, Nova Iorque, Dordrecht, Londres, Springer, 2014; Aux Origines de la Méditation. Les textes fondamentaux commentés , Le Point. Références (juillet-août 2014). 46. Cf. Barbara FREDRIKSON, Love 2.0. How our supreme emotion affects everything we feel, think, do, and become , Nova Iorque, Hudson Street Press, 2013, p.4. 47. Matthieu RICARD, Plaidoyer pour l’Altruisme. La force de la bienveillance , p.289.
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Ocidente, onde foi durante séculos ignorada ou esquecida e onde hoje começa também a penetrar em diversas instituições fundamentais, algumas das quais inesperadas, como as ligadas à economia e à política. Há cada vez mais escolas e professores (também em Portugal) de todos os níveis de ensino que começam as aulas com pequenas sessões de meditação, o que se verica aumentar consideravelmente os níveis de atenção e de bom relacionamento na sala de aula e portanto a rentabilidade escolar (é sabido que um dos maiores problemas escolares é o déce de atenção). Há vários programas, formações de atenção plena e retiros para educadores, como aquele que tivemos o privilégio de fazer com Thich Nhat Hanh em Londres, em 2012. Vários hospitais, com destaque para os EUA e a Grã-Bretanha, recorrem à meditação para reduzir a dor pós-operatória e em pacientes oncológicos terminais, chegando a níveis de redução da dor acima dos 50%. Em muitas prisões são introduzidos programas de meditação, para reclusos e guardas prisionais, que permitem reduzir a tensão a que ambos estão sujeitos, melhorar as relações entre todos e preparar uma melhor reintegração na vida social (houve em 1994 uma experiência particularmente tocante e bem sucedida na maior prisão indiana, a de Tihar, com cursos de meditação vipassana , que continuam até hoje; a experiência deu lugar ao documentário premiado Doing Time, Doing Vipassana ). Segundo notícia do Finantial Times , de 24 de Agosto de 2012, cerca de 25% das grandes empresas norte-americanas oferecem períodos e programas de 30 minutos a 1 hora de meditação no local e no horário de trabalho, com uma redução evidente das faltas por baixa médica, um aumento da motivação e ecácia dos funcionários e o consequente aumento da produtividade. Isto acontece por exemplo na General Mills e na Google, bem como na Sanyo, Mitsubishi e muitas outras empresas em todo o mundo. Banqueiros, agentes nan ceiros e gestores incorporam cada vez mais o cultivo da atenção plena para humanizarem a sua actividade e manterem as mentes abertas à “big picture”. A meditação é considerada fundamental para uma nova concepção e prática da liderança (a vice-presidente da General Mills, Janice Marturano, deixou a empresa em 2011 para criar o Institute for Mindfulness Leadership e escreveu um livro sobre o tema 48) e da criatividade (vejam-se as declarações de Steve Jobs, cofundador da Apple). 44
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A meditação também chegou à esfera da intervenção social e política. Congressos cientícos sobre a importância da meditação para o trabalho, o activismo e a transformação sociais têm tido lugar nos EUA e na Europa e há institutos consagrados à questão, como o Garrison Institute. Cerca de cem membros do Parlamento Britânico, de várias forças políticas, reúnem-se hoje regularmente para praticar meditação em conjunto, numa iniciativa coordenada com três grandes universidades britânicas, que visa estudar os benefícios da meditação para os cuidados de saúde, a educação e o sistema de justiça criminal e na qual são acompanhados por exministros e outros políticos. O objectivo é converter o Reino Unido numa “nação da atenção plena”, eco da proposta do congressista norte-americano Tim Ryan, que publicou em 2012 um livro, The Mindful Nation , onde advoga as múltiplas vantagens de se promover a prática da meditação na vida privada e pública dos seus concidadãos – na educação, na saúde, no exército, na economia - , considerando mesmo que disso depende o relançar do espírito da nação norte-americana. O autor leu a centena de páginas sobre atenção plena e política do livro de Jon Kabat-Zinn, Coming to Our Senses 49 (que o editor enviou a todos os 535 membros do Congresso norte-americano), fez com o autor um retiro de atenção plena, assumiu uma prática diária e sentiu, enquanto político, o dever de propor a toda a nação os benefícios pessoais que encontrou. Como escreve na Introdução, após dizer que “uma revolução serena” e “pacíca” “está a acontecer na América”, com a “atenção plena” no seu “âmago” 50: “Escrevi A Mindful Nation para promover os valores de diminuir o ritmo de actividade, cuidar de nós mesmos, ser bondosos e ajudar-nos uns aos outros. Parece-me que se adoptarmos estes valores individualmente, isso beneciar-nos-á colectivamente. E a nossa nação será um bocadinho melhor como resultado”51. 48. Janice MARTURANO, Finding the Space to Lead: A Practical Guide to Mindful Leadership , Bloomsbury Press, 2014. 49. Jon KABAT-ZINN, Coming to Our Senses. Healing ourselves and the world through mindfulness , Hyperion, 2006. 50. Tim RYAN, A Mindful Nation: How a Simple Practice Can Help Us Reduce Stress, Improve Performance, and Recapture the American Spirit , Hay House, 2012, p.XVII.
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Como espelho de tudo isto, o Fórum Económico Mundial de 2014 em Davos teve a presença do cientista e monge budista Matthieu Ricard e do professor e neurocientista Richard Davidson, que falaram para as elites mundiais do poder político e económico sobre a importância da meditação para uma vida pacíca e feliz, tendo Matthieu Ricard orientado sessões matinais de meditação para os participantes. A Lesley University em Cambridge, Massachusetts, acaba de abrir uma pós-graduação em Mindfulness Studies , onde se estuda a teoria e a prática da atenção plena e se ensina a aplicar os recursos da meditação às prossões e “a estudos de caso sociais, culturais, históricos, organizacionais e políticos”. A edição de Novembro de 2014 da prestigiada revista Scientic American dedica a capa ao tema The Neuroscience of Meditation , com um artigo de Matthieu Ricard e dos neurocientistas Antoine Lutz e Richard Davidson sobre a mais recente pesquisa sobre os benefícios da meditação. A edição da TIME de Fevereiro do mesmo ano também dedicou a capa e um longo artigo ao que chama The Mindful Revolution (A Revolução Plenamente Atenta), onde salienta que a meditação está a tornar-se “mainstream” (“corrente dominante”), o assumido propósito do professor Jon Kabat-Zinn, o criador da Mindfulness-Based Stress Reduction : além de muitas das iniciativas já referidas, o artigo refere que em 2007 os norte-americanos investiram cerca de 4 biliões de dólares em terapias alternativas relacionadas com a atenção plena, que há hoje centenas de aplicações de atenção plena disponíveis no iTunes, que há um programa de atenção plena – Mindful Schools - que se expande entre os educadores e que a meditação já chegou ao exército, com o programa da professora Elizabeth Stanley, nanciado pelo Departamento da Defesa, para tornar os Marines norte-americanos mais resilientes em situações stressantes de combate52 (claro que isto, a nosso ver, não deixa de ser um desvio e uma perversão da ética tradicional de não-violência associada à meditação, o mesmo aliás já cometido pelos samurais japoneses). Isto não contradiz que mestres com a reputação mundial de Thich Nhat Hanh fa51. Ibid ., p.XVIII. Cf. também: “Se mais cidadãos puderem reduzir o stress e aumentar o desempenho – mesmo que apenas um pouco – serão mais saudáveis e mais resilientes. Estarão melhor equipados para enfrentar os desaos da vida quotidiana e chegar a soluções criativas para os desaos com que se confronta a nossa nação” – Ibid ., p.XIX. 52. “The Mindful Revolution”, TIME, 3 de Fevereiro de 2014, pp.32-38.
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çam retiros de meditação destinados a agentes de segurança, de modo a que possam exercer com atenção plena a sua actividade e serviço público de agentes da paz, serviço que considera aliás extensivo a todos nós 53. O mesmo mestre foi recentemente convidado pela Google e pelo presidente do Banco Mundial, Jim Yong Kim, para falar para líderes de negócios e orientou um dia privado de atenção plena para directores executivos de 15 das mais poderosas empresas da indústria tecnológica. No regresso à sua comunidade em Plum Village, declarou: “Em todas as visitas, disse-lhes que têm de conduzir o negócio de forma a que a felicidade seja possível para todos na empresa. Para que serve ter mais dinheiro se sofremos mais? Eles devem compreender também que, se tiverem uma boa aspiração, tornar-se-ão mais felizes, porque ajudar a sociedade a mudar dá um sentido à vida” E deixou um alerta quanto às verdadeiras intenções por detrás deste interesse empresarial pela meditação: “Se consideramos a atenção plena como um meio para ter muito dinheiro, então não alcançámos o seu verdadeiro propósito. Pode aparentar-se à prática da atenção plena, mas no interior não há paz, não há alegria, não há felicidade. É apenas uma imitação. Se não sentimos a energia da irmandade, irradiando do nosso trabalho, isso não é atenção plena. […] Se somos felizes, não podemos ser vítimas da nossa felicidade. Mas, se temos sucesso, podemos ser vítimas do nosso sucesso” Jamais se poderão sublinhar demasiado estas advertências, que devem ser ponderadas por todos nós neste momento em que a meditação começa a fazer parte da cultura dominante, com o risco de ser instrumentalizada para tornar as mentes mais focadas e ecazes na prossecução de ns não só mundanos, mas egocêntricos e pouco éticos. Ainda assim, cremos que vale amplamente a pena correr este risco inevitável, na medida em 53. Cf. Thich Nhat HANH, Keeping the Peace. Mindfulness and Public Service , Berkeley, Parallax Press, 2005.
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que a experiência meditativa pode sempre trazer um pouco mais de paz e de redução do sofrimento a cada pessoa, ao mesmo tempo que pode abrir as mentes para dimensões mais amplas e subtis de consciência, e por isso também mais empáticas com os outros, mudando substancialmente as nossas vidas. Se os ns mais nobres da meditação, em termos espirituais e éticos, podem ser corrompidos pela sua instrumentalização para promover mais ecazmente actividades que lhes são contrárias, também pode acontecer que motivações mais mundanas e limitadas e menos correctas sejam transformadas no decurso da experiência meditativa em propósitos mais generosos, pela capacidade que a meditação tem de nos abrir à dimensão mais profunda, sã e virtuosa de cada um de nós. Apresentados todos os efeitos benécos mas colaterais da meditação, devemos contudo dizer que nos parece evidente que o benefício superior da meditação – o de nos levar ao conhecimento experiencial da nossa natureza profunda, com a inerente abertura amorosa e compassiva para com todos os seres – inclui todos estes benefícios, ao passo que estes benefícios secundários, se forem visados como um m em si e se neles nos detivermos, não nos conduzem necessariamente ao benefício superior. Em Portugal a revolução silenciosa também já chegou às pessoas, à sociedade e às instituições: a revista VISÃO dedicou recentemente a capa e um artigo à “revolução mindfulness”, signicativamente referida como a “revolução do bem-estar” 54. Multiplicam-se os workshops, cursos, formações e retiros centrados na experiência da atenção plena e dos vários métodos meditativos e contemplativos, orientados por instrutores com diversos níveis de qualicação e credibilidade (aqui, como em todas as áreas, cabe estarmos atentos a quem faz um pequeno curso ou workshop e se acha capaz de começar logo a dar formação...). A meditação também já entra nas escolas, hospitais, empresas, prisões e universidades, embora de forma mais lenta e menos visível do que noutros países. Em Lisboa ocorrem desde há vários anos encontros regulares de responsáveis e seguidores de várias vias espirituais e religiosas para praticarem 25 minutos de meditação em silêncio, precedidos por uma leitura de textos das várias tradições 54. Teresa CAMPOS (texto), Marcos BOGA (fotos), “A revolução do bem-estar”, VISÃO , 4 a 10 de Setembro de 2014, pp.52-58.
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e seguidos por uma partilha de experiências e perspectivas. No que me diz respeito, tenho tido desde há 15 anos a grata experiência de - no contexto da União Budista Portuguesa, do Círculo do Entre-Ser, associação losóca e ética (que visa expandir a cultura meditativa como centro de uma espiritualidade e de uma ética laicas, transversais a crentes e descrentes), e a nível pessoal, correspondendo a múltiplas solicitações - orientar aulas semanais e cursos mensais de introdução à meditação, workshops e retiros por todo o país, tendo alguns desses workshops tido lugar em escolas (por vezes incluindo professores, alunos, funcionários e encarregados de educação), empresas, prisões e instituições estatais, como o Ministério da Defesa Nacional. Tive também a satisfação de ver surgir a meditação ao mais alto nível dos estudos académicos ao integrar o júri e ser um dos arguentes de uma tese de doutoramento em Ciências da Educação, sobre educação holística e sua possível adequação ao sistema educativo nacional, em que o autor, o professor Carlos Mário Fernandes Mateus, levou a cabo um extenso trabalho de campo com a introdução da meditação nos vários níveis de ensino, experiência cujo sucesso geral foi mais relevante nos níveis mais básicos55. Tive ainda a grata oportunidade de leccionar uma disciplina opcional de Técnicas Meditativas na Escola Superior de Enfermagem de Lisboa, nos anos lectivos de 2011-2012 e 2012-2013, com as vagas totalmente preenchidas e que não continuou por falta de verbas. Pude assim complementar, no ensino superior, o estudo mais teórico da meditação (por vezes também prático, quando os alunos o solicitam, como acontece nas pós-graduações) que desenvolvo nas minhas aulas de Filosoa da Religião e Pensamento Oriental. Como referi na Introdução, o grande interesse, a crescente solicitação destas actividades e o pedido de um manual que permita recordar e acompanhar a sua prática em casa, levaram-me a escrever este livro. Pela minha experiência dos efeitos benécos da meditação em mim e nos outros, e pelos abundantes relatórios cientícos que os comprovam, estou convicto, tal como o congressista Tim Ryan, que promover a sua prática por todos os meios e em todas as esferas, pública e privada, é desde sempre – e sobretudo hoje, perante os problemas, desaos, pressões, 55. Carlos Mário Fernandes MATEUS, Educação Holística. Possibilidades de Adequação ao Sistema Educativo Português , Universidade Aberta, 2011.
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conitos e violências da vida contemporânea – o melhor contributo que podemos oferecer a nós mesmos e à sociedade em que vivemos. Acredito que a meditação é mais do que nunca necessária no mundo e particularmente em Portugal, um país que por várias razões tem hoje uma população triste e desmotivada, com falta de autoconança e sérios problemas de depressão. O consumo de antidepressivos na Europa aumentou 20% por ano de 1995 a 2009 e em Portugal um estudo recente do Infarmed mostra que este consumo quase quadruplicou de 2000 até 2013, apontando as previsões de 2011 do grupo técnico que trabalha no Plano Nacional de Saúde para que aumente para mais do dobro até 2016. Perante os custos desta situação a todos os níveis para o país, o que faz da saúde mental dos portugueses não só um problema social, mas também político, pergunto se não passará o novo desígnio nacional - que tanto se sente que falta após 500 anos de busca da riqueza exclusivamente material no Oriente, em África, no Brasil e na Europa, que nos deixa hoje frustrados e sem rumo – por construirmos um país mais autoconsciente, mais ético, mais são, mais resiliente e mais feliz? E não será a meditação ou o treino da atenção plena um instrumento, ou melhor, o instrumento indispensável dessa construção, pois é dele que comprovadamente resulta uma maior serenidade, clareza, empatia, equilíbrio e felicidade dos construtores, todos nós, sendo do estado em que estiverem as nossas mentes que vai depender toda a orientação e qualidade da construção de um novo Portugal? Será possível construir um país autoconsciente, ético, são, resiliente e feliz sem cidadãos autoconscientes, éticos, sãos, resilientes e felizes? A meu ver isto faz da promoção da meditação ou atenção plena, a partir do ensino primário e em todos os níveis de ensino – no âmbito de uma educação mental e emocional, complementar da educação física (e da educação ambiental, outra necessidade urgente) - , não só um serviço social, mas também uma questão política, para os quais deve estar desperta toda a população e todo o governo atento aos sinais dos tempos e às descobertas cientícas de vanguarda. Estou profundamente convicto que a nova cidadania que urge em Portugal e no mundo passa por uma espiritualidade e ética laicas, com princípios e valores transversais a crentes e descrentes, agnósticos e ateus, que se baseie numa consciência integral da interconexão entre a 50
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humanidade, todos os seres vivos, a Terra e o universo e que a meditação ou atenção plena devem ocupar o centro da sua prática, conduzindo-nos a experiências cada vez mais profundas de conexão com os outros e portanto a vidas mais solidárias e responsáveis pela Vida e pelo mundo como um todo. Que o sentido e a vocação de Portugal possam ter a ver com esta mudança global e profunda de paradigma é a leitura que fazemos da Mensagem de Fernando Pessoa 56.
56. Cf. Paulo BORGES, É a Hora! A mensagem da Mensagem de Fernando Pessoa .
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III - O que é a meditação? Já atrás abordámos esta questão, que aqui tentamos desenvolver um pouco mais. A palavra “meditação” é hoje cada vez mais usada na cultura ocidental para designar práticas e experiências muito diversas, surgidas num contexto espiritual, religioso ou laico. Etimologicamente, a palavra vem do latino meditatio , que no Antigo Testamento traduz termos da raiz hebraica hāgâ , por sua vez traduzidos em grego por meleté 57, que signica “exercício”, tal como askesis , de onde vem “ascese”, e que signica apenas um treino metódico, físico ou espiritual, para se superar os actuais limites e atingir uma perfeição. Na cultura grega, meleté surge associado a prosoché , “a atenção a si mesmo, a vigilância de cada instante”, pela qual “o homem “desperto” está sem cessar perfeitamente consciente não somente do que faz, mas do que é”. Ambos os termos integram o vocabulário original da losoa como uma “maneira de viver” ou uma “arte de viver”, com um eminente sentido prático e de terapia das patologias da alma que depois se perdeu à medida que a vida losóca declinou em mera análise ou especulação intelectual, teoria abstracta e hermenêutica textual 58. A palavra meditatio signica, além de “meditação” e “reexão”, “preparação”. Deriva do verbo meditari , que tem os seguintes signicados: 1. exercitar-se, aplicar-se a, praticar; 2. pensar em, meditar, reectir, elaborar, preparar, maquinar, projectar, ter em vista; 3. entregar-se a, estudar, preparar. Por sua vez, meditari relaciona-se com mederi , que signica: 1. cuidar de, tratar; 2. socorrer; 3. dar remédio a, remediar, facilitar. A relação é óbvia com medicare , medicar, medicus , médico, e medicina , arte médica, medicina, indicando um sentido terapêutico e medicinal do exercício e prática meditativos, que têm o cuidar no seu centro. Destacamos também 57. Jean-Yves LELOUP, Écrits sur l’Hésychasme. Une tradition contemplative oubliée , Paris, Albin Michel, 1990, p.19. 58. Cf. Pierre HADOT, Exercices spirituels et philosophie antique , prefácio de Arnold I. Davidson, Paria, Albin Michel, 2002, nova edição revista e aumentada, pp.77 e 81; Paulo BORGES, “A meditação entre Oriente e Ocidente ou a actual e urgente redescoberta de um antigo paradigma”, in AAVV, Cristianismo e Cultura. Homenagem a Arnaldo de Pinho, Humanística e Teologia (Porto, Dezembro de 2012), tomo XXXIII, fascículo 2, pp.617-634; Mónica CAVALLÉ, La Sabiduría Recobrada. Filosofía como terapia , Barcelona, Kairós, 2014.
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o primeiro sentido do verbo meditari : a meditação é um exercício e uma prática, que supõem uma entrega e uma aplicação constantes. Por outro lado, nas línguas das culturas orientais que muito desenvolveram a experiência meditativa, algumas das mais importantes palavras que se traduzem como “meditação” são: o sânscrito dhyāna (procedente da raiz -dhyai , com o sentido de “pensar”, que em dhyāna designa uma absorção meditativa ou contemplativa da consciência, dirigida para uma coisa só), de onde vem o chinês chan e o japonês zen ; o sânscrito bhāvanā (da raiz – bhava , “devir”, “tornar-se”), que signica “cultivar”, “desenvolver”, “produzir” novas qualidades e modos de ser e que evoca a cultura da terra, o processo de preparar o solo e plantar uma semente; o tibetano gom , que signica “familiarizar-se” com o modo como a mente funciona, com estados de consciência mais compreensivos e harmoniosos e novas formas de ver o mundo. Note-se, a propósito do sânscrito dhyāna proceder da raiz -dhyai , com o sentido de “pensar”, que o sentido originário de pensar não é propriamente produzir pensamentos, mas antes cuidar , alimentar , curar , amar , como sugere o sentido antigo de “pensar” em português, presente nos cancioneiros medievais (“pensar” no “amigo” para que ele não morra 59) e ainda hoje no interior de Portugal: “pensar uma criança”, “pensar os animais”, deixá-los “bem pensados”. Daí vem “pensar uma ferida” e “fazer um penso” no sentido de um curativo (no mesmo espírito, a ração surge como a forma popular de razão , que assim se liga não ao raciocínio abstracto, mas ao cuidar e alimentar concretos, ao serviço da vida dos viventes)60. No mesmo sentido, em francês, até ao século XVI, “penser” (pensar) e “panser” (cuidar, curar) eram um mesmo verbo61. Também nas línguas anglo-germânicas pensar é mais do que ter pensamentos. Pensar é agradecer, como mostra a raiz comum do inglês “think” e “thank” e do alemão “denken” e “danken”, mas também reconhecer e comemorar (“Gedanke” é am a “gedenken”) 62. Procurando a convergência destas várias tradições, ocidentais e orien59. Cf. Pero MEOGO, Cantigas de Amigo dos Trovadores Galego-Portugueses , edição crítica de José Joaquim Nunes, II, CCCCXIII, Coimbra, Imprensa da Universidade, 1928, p.374. 60. Cf. José ENES, Linguagem e Ser , Lisboa, Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1983, pp.146-150. 61. Cf. Odon VALLET, Petit lexique des mots essentiels , p.187. 62. Cf. Martin HEIDEGGER, Qu’apelle-t-on penser? , traduzido do alemão por Aloys Becker e Gerard Granel, Paria, PUF, 1983, 4ª edição, p.238.
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tais, consideramos aqui a meditação como um exercício que consiste no cultivo de, na familiarização com ou no reconhecimento de um estado não-dual, pacíco, compreensivo e amoroso-compassivo de consciência, num cuidar de si que é implicitamente um cuidar dos outros e do mundo , pois como vimos e veremos o mais precioso fruto da experiência meditativa e contemplativa é a descoberta da natureza original e comum de tudo, uma presença aberta ilimitadamente consciente e bondosa onde jamais houve, há ou haverá qualquer separação entre si, os outros e o mundo, entendendo como outros e mundo todos os seres e coisas . Partindo de múltiplos métodos que permitem focar, pacicar e despertar a mente, me ditar e contemplar é em última instância reconhecer essa não-separação, reintegrar a saúde original do ser e sarar as feridas de todas as ctícias e ilusórias dualidades mentais e emocionais. Libertando a consciência de uma experiência centrada na auto-importância do eu como uma suposta entidade separada e isolada - com todos os decorrentes medos e expectativas, apetites e carências, crenças, ideias e juízos parciais e preconceituosos porque autocentrados - , a meditação ou contemplação é, como vimos, a natural experiência de serena e silenciosa integração na natureza profunda, perfeita e primordial de tudo o que existe. A meditação ou contemplação é a experiência de reconhecimento e fruição do que é tal qual é, aqui e agora, sem interpretações, avaliações, interesses e desejos egocêntricos e as consequentes preocupações com passado, presente e futuro. O cuidar meditativo e contemplativo é um cuidar integral , que abrange todas as dimensões do ser, física, emocional, mental e espiritual, entendendo por “espiritual” a esfera mais subtil e primordial da consciência que unica, engloba e impregna todas as demais dimensões. Este cuidar é um cuidar da saúde original , que vimos relacionar-se etimologicamente com integridade e totalidade, abrangendo assim o corpo, as emoções, o pensamento e a consciência mais profunda. Cuidar da saúde signica descobri-la, reconhecê-la, preservá-la, cultivá-la ou reintegrá-la, quando a confusão, a desarmonia, a doença e o sofrimento mental, emocional ou físico temporariamente a perturbam ou ocultam. Cuidar da saúde é assim muito mais do que pôr m ao sofrimento ou recuperar de uma doença, signicando reconhecer, despertar, cultivar e desenvolver todo o nosso 54
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potencial cognitivo e afectivo, do qual depende uma vida plena e feliz, livre dessa doença mais grave que é não sabermos quem realmente somos e passarmos assim ao lado da nossa natureza mais profunda, desperdiçando o nosso melhor potencial de a descobrirmos e partilharmos para o bem de todos, manifestando a sensibilidade, disponibilidade e bondade ilimitadas e universais que nos são inatas. Por ser um cuidado integral de si, que não exclui o corpo e nenhuma dimensão do ser humano, a meditação exercita aquele centro do nosso ser do qual, apesar de ser invisível e intangível, depende a totalidade das nossas experiências, percepções, acções e reacções, sendo ele que lhes confere um sentido positivo ou negativo, benéco ou prejudicial, agradável, desagradável ou neutro. Referimo-nos à chamada mente , termo que aqui em geral usamos num sentido amplo, que abrange vários níveis funcionais, desde o pensamento dualista e discursivo, que opera com conceitos, imagens e palavras e depende dos estados psicossomáticos e das tendências e pulsões subconscientes, até à consciência mais profunda e subtil, nãodual, silenciosa, contemplativa e livre. Pese a nossa vida depender de muitas condições – biológicas, sociais, económicas, políticas, educativas e histórico-culturais – , parece com efeito haver em primeira e última instância algo em nós que, apesar de poder deixar-se condicionar por esses factores, pode também – se o desejar e se se esforçar e exercitar nesse sentido libertar-se parcial ou totalmente deles, adquirindo então a capacidade de os transformar a partir da sua própria transformação interna. Esse factor decisivo é a mente e em particular a consciência mais profunda, a fonte de toda a liberdade e criatividade que o ser humano pode exercer e de cujo estado depende em primeira e última instância a percepção global que temos de nós, do mundo e da realidade, bem como, por via disso, a qualidade da nossa vida e das nossas acções mentais, verbais e físicas. A meditação consiste precisamente na experiência de descobrir ou reconhecer esse factor interno, a mente, e no treino de uma das suas funções centrais, a atenção, para primeiro se tornar focada, calma e clara, de modo a poder então ver e compreender claramente a si e ao mundo, libertando-se dos condicionamentos internos (padrões habituais de pensamento, percepção, emoção e acção-reacção, tendências e pulsões subconscientes, 55
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factores hereditários e psicosiológicos) e externos (pressão social e formatação histórico-cultural) – o “interno” e o “externo” são obviamente interdependentes - que lhe impedem o pleno exercício do que se pode descobrir como o seu inato e ilimitado poder de conhecimento, sensibilidade e bondade amorosa e compassiva. Daí que uma das expressões muitas vezes hoje usada para designar a meditação seja treino da mente ou da atenção plena , na medida em que evita as conotações religiosas ou esotéricas que a palavra “meditação” ainda tem para muitas pessoas (e que geram desconança, como se se tratasse de algo hermético ou obscuro, incompatível com a razão e não acessível a todos) e indica aquilo que a meditação verdadeiramente é: um treino sistemático e gradual da função central do nosso ser, a atenção, para desenvolver níveis crescentes de capacidade de orientação e transformação da intenção, de concentração, serenidade e clareza, bem como de presença consciente de si e do mundo, ao ponto de superar o sentimento de separação entre nós e o mundo, que veremos ser a fonte de todo o nosso mal-estar. O treino meditativo desenvolve a mente para além dos seus limites actuais e comuns, tal como um atleta treina o corpo num ginásio ou num estádio para levantar maiores pesos, correr mais depressa ou saltar mais alto. Como diz o Professor Jon Kabat-Zinn - o criador da Mindfulness-Based Stress Reduction a partir dos métodos budistas - , podemos pensar na nossa atenção como um músculo que, ao ser exercitado pela meditação, se fortalece cada vez mais, tornando-se capaz de níveis de desempenho cada vez maiores. Sintetizando ainda as várias etimologias e palavras que se traduzem como “meditação” nas línguas orientais e ocidentais, a meditação é um treino e uma cultura da atenção que a foca no cuidar de si e dos outros e na não-separação entre si e os outros, familiarizando-a com esse novo estado de ser e de consciência ao mesmo tempo que o reconhece como o estado original do ser e da consciência. No contexto em que nos situamos, a meditação pode ser reexiva ou analítica , usando o pensamento para analisar, raciocinar, discernir e interpretar, colocar questões e procurar respostas, como pode ser quiescente ou contemplativa , consistindo então num treino da atenção para permanecer estável e repousar descontraidamente focada, com clareza e sem distracção, no objecto ou suporte que escolher, durante o tempo que quiser, sem 56
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qualquer interpretação, juízo ou comentário. Se a meditação reexiva ou analítica pode perturbar e interromper a meditação quiescente ou contemplativa, quando esta não se encontra sucientemente desenvolvida e estável, já a meditação quiescente ou contemplativa pode aumentar a clareza e o rigor da meditação reexiva ou analítica, aumentando o poder de esta se concentrar sem distracções num determinado tema, assunto ou questão. Estes dois tipos de meditação podem e devem combinar-se, como veremos – mas sobretudo no segundo volume desta obra - , para desenvolver uma compreensão ou insight aprofundados da natureza da realidade, seja a dos fenómenos percepcionados, seja a da mente que os percepciona. No contexto deste guia, partimos da meditação reexiva – que nos apresenta os comprovados benefícios da meditação, nos leva a encontrar por nós mesmos as razões para meditar e nos motiva para tal – para a meditação contemplativa - que pacica a mente, desenvolve a sua natural ca pacidade de atenção plena livre de agitação, juízos e conceitos e a converte assim no melhor e mais rigoroso instrumento de observação do mundo e de si própria – e desta, com um breve recurso à meditação reexiva ou analítica, para o seu aprofundamento e culminação na visão directa , já não conceptual, reexiva ou analítica, da natureza dos objectos sobre os quais a mente incide, incluindo ela própria (o que será sobretudo desenvolvido no segundo volume). Nos termos da tradição budista indiana, trata-se de levar o cultivo da calma, serenidade ou paz mental (śamatha ), mediante uma atenção plena concentrada de modo estável, claro e sem tensões num determinado suporte, a orescer naturalmente na visão penetrante (vipaśyāna ) da natureza última desse objecto, da mente e da própria realidade, do tal qual de todos os fenómenos e da mente que os percepciona 63. A par destas formas de meditação, que visam pacicar a mente e des 63. Cf. DALAI LAMA, Estágios da Meditação , texto-raiz de Kamalashila, traduzido para o inglês pelo Venerável Geshe Lobsang Jordhen, Losang Choephel Ganchenpa e Jeremy Russell, tradução portuguesa de Paulo Borges, Lisboa, Âncora Editora, 2001, pp.99-100 e 113-116. Cf. ainda: “Deixar a mente pacicar-se e permanecer num estado meditativo de quietude livre de muitos pensamentos chama-se shamatha ou calma constante. Reconhecer a natureza vazia da mente no íntimo desse estado de calma chama-se vipashyana ou visão profunda. Unir shamatha e vipashyana é a essência da prática meditativa” – Dilgo KHYENTSE, The Heart of Compassion. The Thirty-Seven Verses on the Practice of a Bodhisattva , tradução do Grupo de Tradução Padmakara, Boston/Londres, Shambhala, 2007, p.145.
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pertá-la para a consciência da natureza profunda de si e de tudo, propomos outro exercício, chamado troca , que permite transformar as emoções “negativas” (na medida em que causam sofrimento a nós e aos outros e encobrem aquela natureza profunda), reorientando a sua energia para o desenvolvimento das nossas capacidades inatas de amor, compaixão, alegria (incluindo o regozijo pelo bem dos outros) e equanimidade ou imparcialidade. Na verdade o desenvolvimento do nosso potencial é inseparavelmente cognitivo e afectivo, podendo, consoante as tendências e predisposições de cada pessoa, um destes aspectos conduzir ao outro ou serem simultâneos. Nenhum deles se desenvolve isoladamente e não há realização plena do ser que seja apenas e unilateralmente cognitiva ou afectiva. Terminamos aqui a exposição teórica do que é a meditação pois este livro consiste fundamentalmente num manual prático que nos mostra concretamente como meditar. Como veremos, a meditação é ainda e necessariamente inseparável da ética e nesse sentido sugerimos no nal um conjunto de orientações para fazer de toda a nossa vida uma meditação em acção, a que poderíamos também chamar MeditAcção .
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IV - Porque meditar? Razões, sentido, fnalidade e
benefícios da meditação
Qual a razão ou razões, o sentido, a nalidade e os benefícios de meditar? Muito já se disse antes a este respeito, ao tentarmos explicar o que é a meditação e ao apresentarmos os seus múltiplos benefícios cienticamente comprovados. Todavia, a melhor resposta é sempre aquela que encontramos por nós próprios e neste caso não a podemos encontrar senão por nós e em nós mesmos, pois meditar é reconhecer e treinar a mente e a mente de que aqui falamos é a minha e a sua, cara leitora ou leitor. A mente não pode ser reconhecida senão por si mesma e aquilo a que chamamos mente é precisamente isto que me concede agora mesmo a experiência de escrever e a si de ler e ao mesmo tempo de pensarmos sobre tudo isto, com todos os sentimentos, emoções e ideias associados. A sua mente é isso que a/o faz estar agora consciente de si a seguir com interesse, aborrecimento, curiosidade ou expectativa as linhas deste livro. A sua mente é o que percepciona e confere sentido a estas palavras e reage a elas intelectual e emocionalmente. Parece que a sua mente é você. A minha e a sua mente parecem ser isto ou uma dimensão essencial disto a que chamamos habitualmente “eu”, porventura sem saber muito bem de que falamos. Seja como for, a nossa mente não é algo distante, nem sequer próximo, mas sim isto que em nós há de mais íntimo e mais íntimo do que a própria intimidade, pois é o que nos permite ter a percepção do distante, do próximo e do íntimo. Tentemos então olhar para ela e vê-la. Ou melhor, tentemos que a mente olhe para si e se veja aqui e agora mesmo. E esta inversão da orientação habitual da mente, para o que se passa nela própria neste preciso instante, pois quase sempre está voltada para o exterior, para o passado ou para o futuro, é já, como veremos, o início e um aspecto fundamental da meditação.
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1. O turbilhão. Ansiedade, insatisfação, mal-estar e sofrimento Qual é a experiência mais comum e imediata quando a mente se volta para si mesma? Provavelmente o que acontece é tornarmo-nos conscientes do que quase sempre lá está, mas desapercebido pela distracção que arrasta constantemente o foco da atenção para as coisas externas, passadas ou futuras: um turbilhão de percepções, pensamentos, emoções, imagens, palavras, diálogos, juízos, interpretações, memórias, planos e projectos. Um uxo constante, às vezes mais lento e calmo, outras vezes mais rápido e impetuoso, de todo o tipo de experiências, que surgem associadas a ou que geram todo o tipo de sentimentos, emoções e sensações de bem ou mal -estar, prazer, dor, medo, expectativa, angústia, desejo, apego, satisfação, insatisfação, orgulho, inveja, ciúme, alegria, avareza, avidez, raiva, irritação, amor, tédio, aborrecimento, compaixão, entusiasmo, excitação, tristeza, depressão, cansaço, torpor, esperança, exaltação, desespero, etc. Por vezes o turbilhão ou torrente são tão intensos e constantes, como uma tumultuosa e espumejante queda de água, que se torna difícil distinguir estas experiências entre si, pois parecem ser simultâneas, mesmo contraditórias, e cada uma conduzir vertiginosamente a muitas outras. Outras vezes uma delas predomina como se fosse o pano de fundo das demais e noutras situações ainda há um determinado sentimento, emoção ou sensação que se avoluma e parece ocupar todo o espaço da mente, preenchendo-a durante períodos de tempo mais ou menos longos. Quando tal acontece, parece que tudo se resume a isso e que a nossa vida não existe fora desse estado mental ou emocional, que pode ser de exaltação, depressão ou indiferença, causando bem-estar, mal-estar ou nem uma coisa nem outra. Porém, nenhum desses estados dura para sempre e, seja por iniciativa nossa, seja, mais frequentemente, por motivos que não controlamos, algo interior ou exteriormente acontece e tudo muda. Mas o turbilhão, a torrente e o uxo permanecem, difíceis ou impossíveis de orientar, controlar e prever e mais ainda de compreender, parecendo não obedecer a qualquer regra, razão ou nalidade, numa turbulência feita de acasos e mais ou menos caótica. Claro que, perante isto, e em função dos nossos desejos, interesses e nalidades – que podem ir desde a mera luta pela sobrevivência até à busca 60
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de segurança, conforto, prazer, riqueza, posses, poder, fama e felicidade - , traduzidos nos imperativos das tarefas e acções que queremos ou temos de executar na vida, tentamos ignorar ou pôr minimamente em ordem essa turbulência e dar um rumo à nossa atenção e ao nosso pensamento, concentrando-nos nos assuntos, matérias ou questões que pretendemos investigar, nos raciocínios, opções e decisões que queremos efectuar e nos problemas que queremos resolver, o que obriga a mente a esforçarse por se focar em determinados objectos durante o tempo necessário para alcançar esses ns. Todavia, como bem sabemos, isso não põe m à turbulência mental e emocional e não só ela continua a manifestar-se dicultando a concentração que procuramos e arrastando-nos para todo o tipo de esquecimentos, distracções, imprecisões, percepções distorcidas e falta de clareza e de rigor no pensamento e na acção - , como ela própria também resulta das ou aumenta a partir das nossas tentativas para lhe pôr m. Com efeito, a turbulência muitas vezes se reproduz e agrava pelo próprio esforço de nos concentrarmos, sendo também inerente aos fenómenos mentais e emocionais associados aos nossos desejos, interesses e nalidades e à luta contra certos pensamentos, sentimentos, sensações e emoções desagradáveis ou que não queremos aceitar para os substituirmos por outros, que consideramos mais positivos e legítimos. Tudo isto resulta numa constante sensação de divisão, dualidade e conito internos e numa ansiedade que tende a tornar-se crónica, sobretudo nas situações de stress a que somos expostos ou nos expomos quando nos subordinamos às fortes pressões e acelerados ritmos do trabalho e da vida quotidiana nas nossas sociedades contemporâneas. Exaustos por tudo isto, ao m de um dia, de uma semana ou já ao longo de todo o dia, muitas vezes só pensamos em afogar ou esquecer esse mal-estar em comes e bebes, comprimidos, prazeres fugazes, consumo desnecessário, conversas sem sentido, futilidades e distracções de todos os tipos (sendo as mais comuns a televisão e as redes sociais), para recomeçarmos cansados e sempre insatisfeitos o dia ou a semana seguintes. E a vida, apesar de todos os seus encantos e momentos bons, parece demasiadas vezes resumir-se a isto: uma busca ansiosa e contínua de uma satisfação, um bem-estar e uma felicidade que não sabemos bem o que sejam, mas que se revelam sempre fugazes, 61
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por vias que só nos causam insatisfação, mal-estar e sofrimento evidentes, constantes e crescentes. Para nossa frustração, a vida parece mais vezes do que gostaríamos resumir-se a isto (que já é doença e nos torna vulneráveis a todas as doenças, pois consome a energia vital e sabemos hoje que enfraquece o sistema imunitário), à doença, ao envelhecimento e à morte.
2. A aparente separação e dualidade: medo, egocentrismo, avidez, apego, aversão e indiferença Mas porque é que isto acontece? Por mais incómodo ou difícil que no início pareça ser, apenas porque não estamos habituados a fazer isto, tentemos continuar a voltar as nossas mentes para si mesmas e a observar e analisar o que nelas se passa, pois o que aqui se passa não é menos do que aquela dimensão interior da nossa vida que, apesar de não ser apreensível pelos cinco sentidos, é como vimos aquilo do qual depende a qualidade de todas as nossas experiências e portanto a qualidade satisfatória ou insatisfatória da nossa vida como um todo. Se virmos bem, talvez possamos constatar que, na base de tudo o que pensamos, dizemos e fazemos, existe a percepção não só de uma distinção, mas de uma separação entre o que chamamos “eu” e “outro”, “nós” e “eles”, “si” e “mundo” ou sujeito e objecto, observador e observado, acompanhada da crença de que cada um dos termos dessa dualidade existe realmente, em si e por si, independente, distinto e separado do outro, com características sólidas, imutáveis e singulares. Inerente a essa percepção, há em cada um de nós a identicação com esse chamado “eu”, na dimensão mental, emocional e física, o que nos faz sentir como um ponto diferenciado, animado e sensível no seio do espaço ilimitado do mundo, habitado por outros pontos diferenciados, sensíveis e animados como nós e por uma multidão de objectos que podem ser coisas externas, inanimadas e materiais ou então imateriais e presentes no espaço da nossa vida interior, como conceitos, palavras e imagens. Isto torna obviamente possível todo o tipo de acontecimentos e experiências de interacção com os outros pontos vivos, que são todos os organismos diferenciados, humanos e não-humanos, bem como 62
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de posse e usufruto dos objectos que povoam o mundo, sejam coisas naturais ou articiais, concretas ou abstractas, imateriais ou materiais. Esta percepção, de estarmos aqui, estranhamente lançados sem saber como nem porquê (embora possamos recorrer a todo o tipo de mitos, doutrinas e crenças religiosas ou teorias losócas e cientícas para atenuar o incómodo dessa estranheza) num mundo distinto de nós povoado por objectos e seres distintos e separados de nós que têm todavia a capacidade de nos afectar, causando-nos dor ou prazer, satisfação ou insatisfação, implica necessariamente uma experiência de vulnerabilidade mas também de curiosidade e de desejo. Temos a percepção de existir como seres independentes e autónomos, dotados de uma consciência, vontade e sensibilidade distintas de outras consciências, vontades e sensibilidades igualmente independentes e autónomas, num mundo povoado de coisas externas e internas. Temos a percepção de existir e isso é sentir-se exposto a todo o possível, agradável ou desagradável. Esta sensação de exposição, curiosidade, vulnerabilidade e desejo é na verdade acompanhada pela percepção do mundo como uma colecção de seres, acontecimentos e situações atraentes, hostis ou neutros, o que tende a gerar um sentimento constante, consciente ou inconsciente, de medo e insegurança de que nos possa acontecer o que não desejamos e não nos aconteça o que desejamos, a par da indiferença em relação a tudo o que nem desejamos nem rejeitamos, que é como se nem existisse para nós. Uma vez identicados com o chamado “eu” nos seus aparentes limites mentais, emocionais e físicos, tendemos a sentir esse “eu” como o mais real e valioso e esse sentimento de auto-importância manifesta-se em tudo o que pensamos, dizemos e fazemos, mediante um profundo desejo de autoconrmação, autopreservação, autoprotecção, autograticação e autopromoção, acompanhado por uma sensação de carência fundamental, como se algo sempre faltasse e devesse ser obtido. Sentindo-nos lançados num mundo alheio, povoado de seres e coisas distintos e separados de nós, sentindo-nos expostos, carentes e vulneráveis, e por isso também curiosos e atraídos pelas possibilidades de experiência e fruição desse mundo, temos diculdade em não nos autocentrarmos: vendo-nos e crendo-nos separados dos outros e da realidade envolvente, o egocentrismo tende a ser o 63
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nosso modo fundamental de ser, encerrando-nos numa esfera restrita de intenções, interesses, nalidades e objectivos, em que primeiro e acima de tudo visamos o nosso bem-estar e felicidade pessoais e depois os daqueles com quem mais nos identicamos, o que no fundo não deixa de ser ainda visar primeiro e acima de tudo o nosso bem-estar e felicidade pessoais. Por via desse sentirmo-nos separados e carentes e do consequente egocentrismo a nossa experiência do mundo é necessariamente condicionada, quer por uma profunda avidez de experiências reconfortantes e agradáveis, que supomos geradoras do bem-estar e felicidade que procuramos, acompanhada pelo intenso apego a elas, como se pudessem ser permanentes, quer pelo outro lado da mesma moeda, que é a profunda aversão a todas as experiências de sinal contrário, deixando tudo o mais na penumbra da indiferença. O regime mental, emocional e existencial do “eu” autocentrado é inevitavelmente dominado pela avidez-apego e pela aversão, pelo medo de que aconteçam certas coisas e pelo desejo e expectativa de que aconteçam outras. Isto resulta da fundamental insegurança de nos percepcionarmos distintos do mundo e dos outros e não pode senão reproduzir essa insegurança, pois como é evidente e comprovado por todos nós o uxo dos acontecimentos do mundo, bem como as acções-reacções e interacções entre todos os seres que o habitam, são absolutamente imprevisíveis e incontroláveis e não decorrem de modo a que só nos aconteça o que desejamos e nunca nos aconteça o que não desejamos. Todavia, contra todas as evidências da razão e da experiência, é essa expectativa que continuamente alimentamos e é por isso que constantemente nos esforçamos. Tentamos controlar-nos a nós mesmos e a tudo e todos à nossa volta em função dos nossos interesses e objectivos pessoais e colectivos, condenando-nos assim a uma contínua insatisfação, frustração, mal-estar, competição e conito, pois os outros tendem a ser tão egocêntricos como nós, têm interesses e objectivos distintos e muitas vezes contrários aos nossos e, mesmo quando conseguimos ou acontece aquilo que desejamos e evitamos ou não acontece o que não desejamos, isso não dura para sempre e o simples facto de sabermos que tudo pode mudar a qualquer momento corrói o bem-estar e felicidade que tentamos manter e instala ou revela o medo instalado no centro das nossas vidas. 64
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O mundo e a vida são um uxo de acontecimentos e interacções radicalmente imprevisíveis e impermanentes, mas a expectativa e o apego à ideia de que algo possa permanecer para sempre, agradável ou desagradável, e de que se possa controlar esse uxo de acordo com os nossos desejos, além de criar todo um conjunto de dependências e vulnerabilidades, que só por si são sofrimento, impedem-nos de aceitar e fruir o mundo e a vida tal como são e não podem deixar de ser. Olhando bem, a cada instante, para o interior das nossas mentes, talvez possamos constatar ser no fundo esta percepção de estarmos aparentemente separados dos outros e do mundo, com a sensação de carência, medo, expectativa, desejo ávido, apego, aversão e com o constante mal -estar, ansiedade, dependência e insatisfação inerentes, que gera toda a turbulência mental e emocional atrás descrita que arrasta e dispersa continuamente a nossa atenção em todas as direcções, como uma folha seca levada pelo vento, impedindo-nos paradoxalmente de nos focarmos de forma mais ecaz na realização dos nossos interesses, desejos e nalidades. Paradoxalmente ainda, parece que o modo como procuramos o que supomos poder trazer o bem-estar, a satisfação, a liberdade e a felicidade nos conduz precisamente ao oposto, o mal-estar, a insatisfação, a dependência e a infelicidade, ou seja, em suma, o sofrimento, mais obviamente na sua dimensão mental e emocional, mas também nas suas manifestações físicas, pois sentimos e sabemos cada vez mais que as doenças são psicossomáticas. A nossa vida parece encerrada numa contradição trágica e insuperável, como se tivéssemos sido feitos não só para procurar sempre uma felicidade que constantemente nos foge, mas ainda para a procurar de um modo que nos faz sempre sofrer. Podemos aqui interrogar-nos e especular com alguma angústia sobre as razões disto, como desde sempre o tem feito a humanidade, confrontada com a experiência do sofrimento e da dor, por vezes associada ao que algumas culturas chamam o “mal”. Será a vontade de Deus ou a punição por alguma falta ou pecado original? Seremos seres decaídos de um estado divino ou expulsos de algum paraíso? Será uma fatalidade ou uma tendência de natureza astrológica ou kármica? Serão os limites da actual condição humana, lha (ainda) imperfeita de uma longa evolução natural? Será o 65
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resultado dos nossos condicionamentos educativos, culturais e sociais? Ou haverá alguma outra resposta, que possamos encontrar por nós e em nós mesmos, sem nos deixar dependentes de acreditar naquilo que não podemos comprovar nem dependentes de causas e condições externas que por isso mesmo não podemos mudar nem controlar? Talvez haja e é isso, leitora ou leitor, que temos de continuar a investigar por nós próprios, olhando bem para o íntimo das nossas mentes e da nossa experiência da vida. Só isso nos pode trazer um conhecimento real e transformativo, que não se reduza à mera aceitação intelectual ou crente de ideias ou doutrinas expostas e transmitidas por outros, por mais veneráveis e respeitáveis que sejam esses outros ou as fontes e tradições que veiculam.
3. Serão reais a separação e a dualidade? Da ignorância à sabedoria Na raiz de todo o nosso mal-estar parece residir assim a percepção de uma distinção e separação entre “eu” e “outro”, “nós” e “eles”, “si” e “mundo”, com a rme crença na existência independente e permanente de cada um dos termos dessa dualidade. Mas será uma percepção real? Seremos real e absolutamente distintos uns dos outros e do mundo ou, mesmo sendo distintos, implica isso que os seres conscientes e sencientes não tenham as mesmas necessidades e aspirações fundamentais e estejamos realmente separados? O mundo será na verdade uma colecção de seres, acontecimentos e objectos independentes uns dos outros, que existam em si e por si com características intrínsecas e permanentes que os tornem agradáveis, desagradáveis ou neutros e que constituam o fundamento objectivo da avidez e do apego, da aversão e da indiferença? Ou toda a aparência disso é meramente relativa à nossa percepção, que depende de muitos factores variáveis, não sendo por isso única e universal?
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3.1. Independência ou interdependência? Ser, não-ser ou entre-ser? Usemos agora a meditação analítica ou reexiva, em combinação com o voltar a mente para si própria, para investigarmos, antecipando parte do que será adiante exposto em V. 5. Será que tudo o que percepcionamos existe absolutamente em si e por si independentemente da mente que o percepciona, das demais coisas e do mundo envolvente, com características próprias e imutáveis, ou os seres, coisas e objectos que percepcionamos e as características que aparentam são também fruto da mente dirigir a sua atenção para umas coisas e não para outras e lhes atribuir qualidades que mudam em função dos seus variáveis conceitos, inclinações e interesses? Estamos conscientes de tudo à nossa volta ou sobretudo do que corresponde mais às predisposições ou opções da nossa atenção? E vemos as coisas como elas são ou em função dos juízos e interpretações que consciente ou inconscientemente fazemos, individual e colectivamente, e se xam nos nossos pressupostos, categorias e conceitos, que funcionam como lentes coloridas que fazem aparecer com a sua cor tudo o que percepcionamos? Neste momento o leitor ou a leitora segura este livro nas mãos que lhe parece bem real por estar a dirigir a atenção para ele, mas será que confere o mesmo sentido de realidade àquilo que ao mesmo tempo está presente em si ou a acontecer à sua volta e do qual está muito ou completamente distraído/a por não ser objecto do seu actual interesse? Por exemplo, a sensação do chão debaixo dos seus pés, o bater do seu coração, alguma preocupação subconsciente, as pessoas que estão eventualmente à sua volta, outros objectos que possam existir onde se encontra, a cor das paredes da sala ou a forma das nuvens no céu lá fora? E, voltando a este livro, como poderia percepcioná-lo a não ser destacando-o dos outros objectos, do seu próprio corpo e do espaço comum onde todas as formas se desenham? Como poderia haver “livro” se não houvesse o “não-livro”, tudo o que não coincide com esta forma e volume que tem nas mãos? Mas estará o livro realmente separado do não-livro e não haverá uma matéria, uma energia e um espaço comuns a tudo o que se manifesta no campo da sua percepção? E como existiria o livro completamente separado de si se tem uma clara 67
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percepção dele? Vê-lo, lê-lo e ter uma reacção ao que lê não implica que sucessivas imagens dele e do seu conteúdo se formam no seu cérebro e na sua mente, que são fruto de toda a sua informação e experiência acumulada e que variam de leitor para leitor? E dizer que é um “livro” e um “livro sobre meditação” não implica colar os rótulos desses conceitos e palavras no que de outro modo é apenas um conjunto de folhas de papel coladas com caracteres impressos ou mesmo um conjunto de imagens sucessivas de algo rectangular, com fundo branco e pequenas formas negras horizontalmente alinhadas? O livro é em si e por si mesmo um “livro” ou é a mente que faz dele um “livro”? Para um bicho ou traça do papel o livro é um “livro” ou apenas uma matéria de que se alimenta, sem pensar nisso? E para uma mosca, um gato ou um cão? Talvez uma superfície em que se pousa e se defeca, um volume que se ignora ou alguma coisa que se pode morder ou na qual se pode urinar, mas nunca um “livro”. Este livro existe então em si e por si, separado e independente de si, ou a mente da leitora ou do leitor está, ainda que sem consciência disso, a colaborar na criação da sua realidade aparente como “livro”, numa criação em que é acompanhada/o pelas mentes de todos os seres humanos que se habituaram a percepcionar esta realidade como tal? Como pode então este livro ser exterior a si e a nós? E o que será a realidade do livro, em si e por si? Será alguma coisa ou não terá realidade alguma, independente e permanente, fora da relação com todas as percepções das diferentes mentes que o possam percepcionar, fora da relação com os demais objectos pelas mesmas mentes percepcionados e fora da relação com o espaço vazio, exterior e interior, que é o fundo comum que permite todas as percepções na sua dimensão física e mental, ou seja, o fundo comum onde surgem as “coisas” e os “pensamentos” que as pensam como tais? O livro existirá separado do corpo de todos os fenómenos a que chamamos “mundo”? E, pensando na sua origem, o livro não terá ainda em si a madeira de onde veio o papel, a árvore de onde veio a madeira, a semente, a terra, a água, o sol e o ar de onde veio a árvore, o trabalho e a vida de todos os que a cortaram, processaram e transformaram em papel, o trabalho e a vida de todos os que o transportaram até à gráca, o cortaram, imprimiram e colaram e o trabalho e a vida de todos os que depois o levaram da gráca para a editora e da editora para a dis 68
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tribuidora até que chegou a si? E no trabalho e na vida de todos esses sem os quais não haveria este livro não estará por sua vez presente o trabalho e a vida de todos aqueles sem os quais estes não existiriam, incluindo por exemplo todos os animais que entraram na sua alimentação? Para já não falar da origem de tudo o que está presente no conteúdo imaterial deste livro, desde o meu corpo-mente, investigação e experiência meditativa até todos os corpos-mentes, informações e experiências que conuem nesta visão e percepção das coisas que aqui exponho… O que é anal este livro? Este livro é apenas este livro? O leitor ou leitora tem nas mãos apenas um “livro” ou uma aparição viva de toda a trama da história do mundo, um momento orgânico de todo o devir do universo? Não sei quais as respostas a que chegou, mas as minhas fazem-me ver que este livro é uma fulguração de toda a história do planeta e do cosmos, ao mesmo tempo que é tão criado pela sua e pela minha mente como pela mente de todos os que o vêem como um “livro”! Na verdade, cara leitora ou leitor, também a si, a todos e a tudo neste unimultiverso, e não só a mim, deveriam ser pagos os direitos de autor deste livro! C A mesma análise pode ser aplicada a tudo que seja objecto de qualquer percepção. Por exemplo, a própria leitora ou leitor, será que neste preciso momento existe em si e por si, com as características que aparenta e crê ter, fora da relação com todas as mentes dos seres humanos e não-humanos que a/o percepcionam, fora da relação e interacção com todas as coisas que a/o rodeiam e são ou não por si percepcionadas, com o chão que pisa, o ar que respira, o sol e a energia que o aquecem, o alimento sólido e líquido que absorve, o espaço físico onde se recorta e move a forma do seu corpo e o espaço mental das ideias e emoções pertencentes à sua cultura e das quais depende que seja vista/o e apreciada/o por si e pelos outros como uma pessoa humana? Será o leitor ou leitora realmente o ser amável que é para os seus entes queridos e amigos, o ser detestável que é para os seus inimigos ou o indiferente que é para todos os que o/a não conhecem ou conhecem sem sentirem por si nem atracção nem aversão? Será o leitor ou leitora intrinsecamente o pai ou mãe que é para os seus lhos, o lho ou lha que é para os seus pais, o irmão ou irmã que é para os seus irmãos, o professor ou professora que é para os seus alunos e 69
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vice-versa, o empregado ou patrão que é para o seu patrão ou empregados, etc.? Terá o leitor ou leitora realmente alguma nacionalidade, será um cidadão do planeta ou um habitante do universo? Será o leitor ou leitora intrinsecamente uma pessoa humana ou essa é uma interpretação própria de mentes humanas que pertencem a uma cultura e a uma época especícas, a cultura europeia-ocidental do início do século XXI? O que será o leitor ou leitora para uma pulga, um mosquito ou um crocodilo senão uma fonte apetecível de alimento e energia? Terá realmente o leitor ou leitora a identidade e as características apontadas pelo seu bilhete de identidade ou cartão de cidadão ou não serão tudo isso meras convenções humanas para designar um composto sempre em mutação de estados de consciência, pensamentos, emoções, percepções, sensações, pulsões subconscientes, memórias, expectativas, energia e matéria? Energia e matéria que, consoante as condições da observação, se apresenta como corpúsculo ou onda inseparável de tudo o mais na grande trama do unimultiverso, como nos revela hoje a microfísica quântica? Será a leitora ou o leitor um ser separado e independente de tudo, como estamos habituados a pensar, ou será antes, tal como eu, interdependente de tudo e todos no uxo contínuo dos acontecimentos do mundo? Seremos seres radicalmente isolados, distintos e separados ou, apesar de termos formas corporais e estados emocionais e mentais relativamente distintos, não estaremos intimamente ligados a todos os fenómenos e a todos os seres, pela inscrição na mesma biosfera onde comungamos com tudo o que existe a matéria e energia de que somos feitos, pela absorção do alimento que é extraído de todo o corpo do mundo – num só pedaço de pão não temos toda a terra onde o cereal foi plantado e que o nutriu, toda a água que irrigou a terra, todo o sol e todo o ar que zeram crescer a planta, bem como todo o tra balho do número incontável de humanos e animais que permitiram que chegasse até nós? - , pelas aspirações fundamentais à paz, ao bem-estar e à felicidade que partilhamos com todos os seres sencientes e pela incorporação das ideias, conceitos e imagens que desde há milénios circulam na atmosfera mental e cultural planetária? Será que na verdade somos ou entre-somos , como propõe Thich Nhat Hanh ? Ao contrário do que escreveu Shakespeare, a questão talvez não seja ser ou não-ser , mas sim 70
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entre-ser 64: se nada existe como uma entidade separada, isso não implica que nada exista em absoluto, mas sim que tudo entre-existe, que tudo existe interconectado, o que também signica que tudo existe em tudo, que tudo se interpenetra, sendo o unimultiverso uma trama e uma tessitura innita na qual todos os fenómenos e seres se interligam, estando cada um presente em todos e todos em cada um. No nal da análise da realidade do livro e de nós mesmos, a conclusão não será que aquilo que nos parece mais real e concreto – nós e o livro sermos entidades intrinsecamente existentes, em si e por si, independentes de tudo o mais – se revela como o mais irreal e abstracto, sendo pelo contrário a nossa interdependência de tudo e de todos a nossa realidade mais concreta e verdadeira? E não se aplicará esta mesma análise, com as mesmas conclusões, a tudo o que percepcionamos, material ou imaterial, exterior ou interior? Não sei, uma vez mais, as respostas a que chegou, caríssima leitora ou leitor, mas parece evidente que tudo aquilo que estamos habituados a pensar acerca do mundo, dos outros e de nós mesmos, e que nos surge como mais evidente e inquestionável, é extremamente relativo e dependente de juízos, crenças e conceitos irreectidos que herdámos, com a cultura e a educação recebidas por via familiar, escolar e social, sem jamais os havermos submetido a um exame crítico rigoroso e posto à prova da razão e da experiência. A mais questionável e duvidosa dessas evidências parece ser precisamente a que a maioria de nós tem por mais inquestionável e indubitável, sendo a crença fundamental que estrutura o actual paradigma de civilização – com todo o impacto nocivo hoje evidente sobre o planeta e os seres vivos - , as nossas instituições e a nossa vida pessoal e social: precisamente a crença na separação entre o eu e os outros, o eu e o mundo, e na existência independente e permanente, em si e por si, de cada um dos termos desta dualidade. Precisamente aquilo que, como vimos, é a raiz de todo o egocentrismo, carência, medo, expectativa, avidez, apego, aversão e indiferença, gerando toda a turbulência mental e emocional e os inerentes mal-estar, ansiedade, dependência, insatisfação, sofrimento e conito, no plano pessoal e social. É curioso e paradoxal como o pressuposto de 64. Thich Nhat HANH, Interbeing. Fourteen Guidelines for Engaged Buddhism , editado por Fred Eppsteiner, Berkeley, Parallax Press, 1998, 3ª edição.
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sermos independentes nos torna tão dependentes, pela avidez, o apego e a aversão, pelo medo e pela expectativa, do que percepcionamos como separado e independente de nós!
3.2. A natureza profunda ou a vida original A análise efectuada mostra todavia - e isto é uma excelente notícia! – que a origem de todos os referidos aspectos nocivos e indesejáveis da nossa experiência da vida parece residir numa percepção falsa e equivocada da natureza das coisas, não sendo inerente a ela, nem à natureza humana, nem à natureza profunda da mente e podendo por isso ser corrigida. Tudo se passa, na verdade, como se os nossos problemas e o nosso sofrimento resultassem de um erro de percepção e assim de uma ignorância acerca da natureza profunda da realidade, da mente, da vida e do mundo. Se em vez da separação virmos a interdependência, interacção e interpenetração entre todos os seres, acontecimentos e coisas e se em vez da separação sentirmos a conexão e a integração de tudo e todos não se manifesta ou descobre aí um estado de consciência radicalmente distinto daqueles estados mentais e emocionais que tanto nos perturbam e fazem sofrer? Não encontraremos, em vez de dualidade, egocentrismo, carência, medo, expectativa, avidez, apego, dependência, aversão, turbulência, mal-estar, ansiedade, insatisfação, sofrimento e conito, precisamente o oposto: não-dualidade, abertura, plenitude, satisfação, destemor, generosidade, liberdade, amor, compaixão, paz, serenidade, bem-estar, felicidade? Não passaremos da ignorância e da confusão à sabedoria, que etimologicamente tem a ver com saborear plenamente a vida e não com o mero conhecimento intelectual 65? Não haverá um estado ou uma natureza original e profunda, nossa e de todos os seres e coisas, alheia à cção da separação? E não residirá na sua descoberta ou reconhecimento o acesso a uma vida plena, sábia, pacíca, solidária e feliz? Não ignoraremos ou teremos esquecido quem realmente 65. “A palavra grega que designa o sábio está ligada etimologicamente a sapio , eu saboreio, sapiens , o saboreador, sisyphos , o ser humano de gosto extremamente subtil” – Friedrich NIETZSCHE, La naissance de la philosophie à l’époque de la tragédie grecque , traduzido por Geneviève Bianquis, Paris, Gallimard, 1974, p.38.
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somos – nós e tudo quanto sente, vive e existe – e não poderemos recordá -lo e (re)descobri-lo? Não resultará a busca constante de paz, segurança, bem-estar e felicidade, nossa e de todos os seres, cada um a seu modo, precisamente da presença no nosso íntimo dessa mesma paz, segurança, bem-estar e felicidade, numa dimensão de nós por enquanto esquecida, desconhecida ou encoberta por estar velada pela ignorância passiva de estarmos desatentos a ela e pela ignorância activa de nos fantasiarmos entidades separadas e carentes e nos identicarmos com a multidão de estados mentais dualistas e conituosos daí decorrentes? Não buscaremos senão o que já temos ou somos, numa saudade mais essencial do que todas as saudades do passado ou do futuro: a saudade de quem verdadeiramente somos, Aqui-Agora66? E não será por esse motivo que nunca encontramos a satisfação ao procurar isso no exterior e no futuro, nesta busca desesperada de uma paz e felicidade plenas e permanentes em coisas, objectos, experiências, situações e seres que são naturalmente impermanentes e condicionados? Não será por ignorarmos, mas ao mesmo tempo pressentirmos no nosso íntimo essa paz, felicidade e plenitude que nos sentimos tão carentes e ávidos dela e nos condenamos a procurá-la de um modo que tragicamente nos impede o seu encontro, pois procuramos possuir num objecto externo as qualidades do não-objecto que internamente somos e colocamos assim esse encontro dependente de algo que não podemos de todo obter? Poderão a paz, a felicidade e a plenitude verdadeiras e duradouras depender de alguma coisa que possamos ter ou não, ganhar ou perder, como relacionamentos, prazer, riqueza, fama ou poder? Poderão a paz, a felicidade e a plenitude verdadeiras e duradouras depender de alguma coisa que não seja a sabedoria de as reconhecer e fruir em tudo o que gratuitamente somos e não menos gratuitamente nos é oferecido em toda e na mínima coisa que simplesmente se manifesta a cada instante? Se nos libertarmos da multidão dos desejos sempre insatisfeitos e impossíveis de satisfazer - “Onde há desejo tudo falta, onde não há desejo tudo sobra”, diz um provérbio Zen - , não podemos encontrar paz, felicidade e plenitude profundas na simples experiência de ser, respirar, estar em pé ou sentados, a andar ou deitados, plenamente abertos e atentos a tudo? Não podemos 66. Cf. Paulo BORGES, Da Saudade como Via de Libertação , Matosinhos, Quid Novi, 2008.
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encontrar tudo o que desde sempre procuramos na contemplação do céu, do mar, da folha de uma árvore, de uma sombra fugaz, de um olhar ou movimento humano ou animal? Ou no mínimo som, seja o de uma fonte, de uma voz ou de um carro a passar? Ou ainda na experiência táctil, ao acariciar um rosto, ao deslizar a mão pelo lombo de um gato ou ao colocar os pés nus sobre a terra? No odor que impregna o espaço ou no sabor de qualquer alimento? Não aparece todo o universo na mínima coisa? “Ver o mundo num grão de areia E um céu numa or selvagem, Ter o innito na palma da mão E a eternidade numa hora” - William Blake, “Augúrios da Inocência”. E não será deste encontro da paz, da felicidade e da plenitude no íntimo de nós mesmos e nas coisas simples e gratuitas que sempre abundam e não nos podem ser tiradas que depende a possibilidade de viver bem todas as experiências da vida que surgirem, incluindo aquilo que em geral a humanidade mais procura – relacionamentos, prazer, riqueza, fama, poder - , sem apego nem expectativas, logo sem o medo e a insegurança de o perdermos e assim de um modo muito mais graticante, justo e positivo para todos? É claro que as respostas a estas questões só podem, como todas as respostas autênticas, ser dadas pela investigação e pela experiência de cada um de nós, desde que nos disponibilizemos sincera e empenhadamente para tal. Este livro é precisamente um convite a essa investigação e experiência e a que cada um de nós encontre por essa via as respostas às questões aqui levantadas, se formos sensíveis a elas e acharmos que fazem sentido. Pela minha pesquisa e experiência pessoal (embora limitada, própria de quem está apenas no caminho e na busca em que andamos todos, consciente ou inconscientemente) e pelo conhecimento de experiências desde sempre testemunhadas por muitos seres humanos, não posso deixar de partilhar a minha profunda convicção de haver efectivamente estados de paz, plenitude e felicidade alheios à separação ctícia entre nós 74
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e os outros, entre cada um de nós, todos os seres vivos e a totalidade do universo ou unimultiverso. Estou também convicto que, em conformidade com muitas tradições e experiências, religiosas ou não, esses podem ser e vir a ser mais do que estados passageiros, provocados por certas causas e condições, sendo antes diferentes níveis de abertura à natureza profunda de tudo o que existe, vive, sente e pensa, a natureza profunda e primordial de tudo e de todos, alheia ao espaço-tempo e emergente num eterno e sempre instante Aqui-Agora. Creio ser essa natureza que irrompe de diferentes modos e em diversos níveis de profundidade, clareza e intensidade – em função da pureza e abertura da nossa mente e do nosso coração - nos momentos mais graticantes da nossa existência, quando subitasubita mente temos o vislumbre de que a vida é innitamente mais do que habi tualmente parece ser, as coisas de todos os dias perdem a banalidade que lhes conferimos ao surgirem no milagre da primeira vez e sentimos um não sei quê simultaneamente íntimo e estranho que nos traz, por vezes com algum sobressalto, uma paz, uma alegria e uma felicidade ilimitadas, incomuns e sem motivo, facultando-nos um sentimento de união e comunhão com tudo – dissipando toda a dualidade e oposição superior-inferior, superior-inferior, interior-exterior interior-exterior,, animado-inanimado, etc. - e deixando-nos uma memória e uma saudade indeléveis. Pode ser perante uma paisagem, num momento de graticação ou de crise ou na situação mais comum e imprevista da vida quotidiana. Pode ser no decurso ou não de uma busca ou prática espirituais. A sua expressão desaa todos os conceitos, palavras e imagens, in cluindo os das mais veneráveis e milenares tradições, religiões, sabedorias e losoas. Entre as muitas e inspiradoras descrições destas experiências de abertura da consciência, e de preferência às que fazem parte das biograas de mestres espirituais, sábios, santos, religiosos e místicos famosos, famosos , gosto de destacar a de uma pouco conhecida novelista norte-americana, Margaret Prescott Montague, um ser humano comum como todos nós, que assim descreve a experiência que teve, em 1915, quando foi pela primeira vez levada à varanda do hospital na convalescença de uma operação cirúrgica, num livro precisamente chamado Vinte Minutos de Realidade , o tempo aproximado que durou o que nos relata:
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“[…] neste cenário de todos os dias, e de um modo inteiramente inesperado (pois jamais havia sonhado com tal coisa), os meus olhos foram abertos e, pela primeira vez em toda a minha vida, tive um vislumbre da beleza extática da realidade… […] Não vi nenhuma coisa nova, mas vi todas as coisas habituais numa miraculosa luz nova – no que acredito ser a sua verdadeira luz. Vi pela primeira vez quão selvaticamente bela e jubilosa, para além de quaisquer palavras minhas para o descrever, é a totalidade da vida. Cada ser humano atravessando aquela varanda, cada pardal que voava, cada ramo oscilando ao vento, estava integrado e era parte do inteiro e louco êxtase de encanto, alegria, signicância e embriaguez da vida. Não que por uns poucos e excitados momentos eu imaginasse toda toda a existência como bela, mas, antes, a minha visão interna foi desobstruída para a verdade, de modo que vi o o real encanto que está sempre aí, mas que tão raramente percepcionamos, e soube que todo o homem, mulher, ave ou árvore, toda a coisa viva diante de mim, era extravagantemente bela e extravagantemente importante. E, ao contemplar, o meu coração fundiuse e abandonou-me num arrebatamento de amor e deleite. […] Uma vez, no meio de todos os cinzentos dias da minha vida, vi o coração da realidade; testemunhei a verdade; vi a vida vi da como ela realmente é – arrear rebatadora, extática, loucamente bela e cheia até transbordar com uma alegria selvagem e um valor indizível. Durante esses momentos gloricados estava apaixonada por cada coisa viva diante de mim – as árvores no vento, as pequenas aves a voar, as enfermeiras, os internados, as pessoas que iam e vinham. Não havia nada que estivesse vivo que não fosse um milagre. A minha própria alma uiu para fora de mim numa grande alegria” 67. A senhora Margaret acrescenta, ao comentar a sua experiência, que “a cinzenta cortina da irrealidade se tinha desvanecido”, que “estava a ver no coração da vida”68 e que durante esses momentos não só amou o seu 67. Margaret Prescott MONTAGUE, Twenty Minutes of Reality. An experience with some illumina ting letters concerning it , New York, E. P. Dutton & Company, s. d., pp.7-11. Sobre esta experiênexperiên cia, cf. W. T. STACE, Mysticism and Philosophy , Londres, The MacMillan Press, 1972, pp.83-84; Michel HULIN, La Mystique Sauvage. Aux antipodes de l’esprit , Paris, PUF, 1993, p.37.
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próximo como a si mesma, mas mais ainda, pois de si estava “dicilmen te consciente” ao passo que se sentia “loucamente apaixonada” pelo seu “próximo em todas as formas, desde os ramos agitados pelo vento e pequenos pardais a voar até seres humanos” 69. É uma experiência comovida comovi da e comovente, que não nos deixa indiferentes, pela sua intensidade e pelo seu perturbador contraste com a nossa triste experiência habitual da vida como algo banal, quando não aborrecido e, como diz a autora, cinzento. Este relato pode ser tão incómodo que nos leve a recorrer a todos os argumentos para pôr em causa ca usa a sua veracidade vera cidade e conrmar assim a normalidade da nossa percepção habitual do mundo, do nosso sentimento de separação dos demais seres e do nosso egocentrismo que nos leva a amar apenas os poucos que sentimos como mais próximos, limitando-os muitas vezes a alguns parentes, amigos e à espécie humana. Tendo já feito um breve comentário desta experiência no nosso livro anterior70, queremos aqui destacar que a senhora Margaret não havia ingerido nenhuma substância estranha – legal ou ilegal - nem feito qualquer prática espiritual e que, apesar de crente num Deus criador, cri ador, considerou que não houve “nada exactamente religioso” no que viu, distinguindo claramente a sua crença daquilo que experimentou e a que chama “visão”71. A sua experiência, entre muitas outras ans, mostra claramente que há excepções à percepção comum ou socialmente soci almente dominante da realidade em que a consciência se abre de um modo que põe radicalmente em causa a nossa visão e sistema de crenças acerca da natureza das coisas, vivenciando então a conexão de todas as formas de vida em vez da separação e experimentando uma alegria extática e um amor universal e desegoízado em vez do egocentrismo e da tristeza ou indiferença com que uma imensa massa da humanidade infelizmente passa pela vida sem verdadeiramente a viver, sem a sabedoria de a saborear plenamente. 68. Cf. Margaret Prescott MONTAGUE, Twenty Minutes of Reality. An experience with some illumi nating letters concerning it , p.12. 69. Cf. Ibid .,., pp.12-13. 70. Cf. Paulo BORGES, Quem é o meu Próximo? Ensaios e textos de intervenção por uma consciência e ética globais e um novo paradigma cultural e civilizacional , Lisboa, Edições Mahatma, 2014, pp.29-30. 71. Cf. Margaret Prescott MONTAGUE, Twenty T wenty Minutes of Reality. An experience with some illumi nating letters concerning it , pp.18-19.
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Se nesta experiência o esplendor da realidade emerge particularmente em todas as coisas vivas, vistas como unicadas e integradas na “totalidade da vida”, vida”, outros relatos mostram experiências onde desaparece todo o sentimento de separação do inteiro universo, incluindo as coisas ditas inanimadas: “Era eu aspirado pelo universo uni verso ou o universo penetrava em mim? Estas expressões não têm qualquer sentido neste caso, pois que as fronteiras entre o meu corpo e o mundo se desvaneciam, ou antes, pareciam não haver sido senão uma alucinação da minha razão que fundia sob o fogo da evidência…”72 “[…] fui levado não meramente a crer, mas a ver que o universo não é composto de matéria morta, sendo, pelo contrário, uma Presença viva; tornei-me consciente da vida eterna em mim mesmo. Não era a convicção de que teria vida eterna, mas sim uma consciência de que possuía vida eterna” (depoimento de Richard Maurice Bucke, psiquiatra canadiacanadia no, que a partir daí mudou radicalmente a sua visão do mundo) 73 “[…] o conhecimento, o reconforto, a irradiação, a paz – numa palavra, o êxtase, aprofundavam-se também, até que “Eu” parecia ser “Isso” e “Isso” parecia ser “Eu”. Estávamos confundidos, misturados, fundidos…” (após esta experiência ter passado, a senhora Dorothea Spinney sentiu que ti nha “tocado o Real” e passou a sentir a estranheza e irrealidade i rrealidade do mundo aparente)74 “E subitamente… O quê? Nada: Tudo! Sem discurso. Sem sentido. Sem interrogações. Apenas uma surpresa. Apenas uma evidência. Apenas uma felicidade que parecia innita. Apenas uma paz que parecia eterna. O céu 72. Marius FAVRE, “Fragment autobiographique”, Hermès , 3 (1964-1965), pp.91-92, citado in Michel HULIN, La Mystique Sauvage. Aux antipodes de l’esprit , p.42. 73. Richard Maurice BUCKE, citado em William JAMES, The Varieties of Religious Experience. A Study in Human Nature , Nova Iorque, Prometheus Books, 2002, p.399. 74. Cf. R. C. ZAEHNER, Inde, Israël, Islam. Religions mystiques et religions prophétiques , Paris Desclée de Brouwer, 1965, pp.113-114, citado in Michel HULIN, La Mystique Sauvage. Aux antipodes de l’esprit , p.45.
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estrelado acima de mim, imenso, insondável, luminoso lumi noso e nada de outro em mim senão este céu, do qual eu fazia parte, nada de outro em mim senão este silêncio, esta luz, como uma vibração feliz, como uma alegria sem su jeito, sem objecto (sem outro objecto senão tudo, sem outro sujeito senão ela mesma), nada de outro em mim, na noite negra, senão a presença deslumbrante de tudo! Paz. Imensa paz. Simplicidade. Serenidade. Alegria” (o autor, André Comte-Sponville, é um lósofo ateu contemporâneo, que propõe uma espiritualidade ateia) 75 Notamos que todas estas experiências e imensas outras surgiram espontaneamente, sem que fossem procuradas, preparadas ou induzidas por qualquer via, em pessoas comuns em condições psicosiológicas nornormais e que na maioria dos casos não tinham conhecimentos e interesses aprofundados de natureza espiritual ou religiosa. Isto mostra que uma experiência não-dual da realidade e da vida faz parte das mais fundas e universais potencialidades da natureza e da consciência humanas, independentemente do desenvolvimento espiritual, da formação cultural e de haver ou não uma crença religiosa. Isto mostra também que, quando esta experiência se actualiza, surgem uma paz, uma graticação e um sentisenti mento de realização incomparavelmente superiores aos que temos habitualmente ou que podemos obter por outras vias. Estas experiências - e muitas outras que muitos de nós já certamente tivemos e que fazem parte das nossas memórias mais gratas e íntimas - mostram que a realidade terrena e quotidiana pode surgir de modo muito diferente e innitamen te mais pleno e graticante se as portas dos sentidos e da consciência se abrirem e nos libertarmos das preocupações, juízos, conceitos e dicotomias com que por(des)ventura dividimos, limitamos e fechamos a nossa percepção do mundo, privando-nos do fulgor arrebatador da vida e do real. Se estas experiências são fugazes, inconstantes e raras, isso iss o pode obviamente dever-se a predominar nas nossas mentes e vidas, em termos pessoais e sociais, aquilo que tende a impedir a sua manifestação, ou seja, precisamente as preocupações, juízos, conceitos e dicotomias que estruturam a 75. André COMTE-SPONVILLE, L’esprit de l’athéisme. Introduction à une spiritualité sans Dieu , Paris, Albin Michel, 2006, p.167.
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cultura dominante e que assim passam por normais e naturais, apesar de causarem todo o profundo mal-estar e sofrimento atrás descritos (a chamada “normose” ou patologia da normalidade 76). Tudo isto abre a hipótese de ser possível orientarmos a vida e treinarmos a mente e a consciência para uma maior abertura à realidade profunda das coisas, não propriamente tentando tentando fazer com que aquelas experiências aconteçam para nosso prazer e ostentação - o que parece ser a forma mais ecaz de as impedir, pois consiste ainda numa estratégia de manipulação e poder própria do ego em busca de realizar os seus desejos, neste caso de graticação e poder espiritual, o que obstrui a abertura da consciência mais profunda - , mas removendo os factores externos externos e internos que condicionam a nossa atenção pelas referidas preocupações, juízos, conceitos e dicotomias que tendem a cristalizar um sentimento constante de separação e desconexão entre nós e o mundo e o consequente egocentrismo manipulador. manipulador. Desde há milénios a possibilidade de remover o que impede a abertura à profundidade do real não é aliás uma mera hipótese teórica, mas uma prática comprovada com resultados concretos por via dos chamados exercícios espirituais que são o alimento fundamental das grandes tradições espirituais, religiosas e sapienciais, bem como da losoa sempre que esta permanece um modo de vida e ampliação da consciência e não um mero exercício intelectual, analítico, hermenêutico ou especulativo, como acontece predominantemente predominantemente nas suas instituições de ensino ocial 77. Na nossa perspectiva estas e outras experiências de profunda abertura da consciência são a verdadeira fonte das religiões e da autoridade espiritual dos seus fundadores, mas isso não as torna necessariamente religiosas, como o comprova o facto de serem vividas por muitas consciências não religiosas, laicas, ateias ou agnósticas. Segundo cremos, apesar das múltiplas modalidades e níveis de profundidade que assumem em função da diversidade das formações culturais, sensibilidades e graus de consciência dos seus sujeitos, há no fundo em todas estas experiências uma mesma abertura da percepção à natureza profunda de tudo, o que não 76. Cf. Pierre WEIL, Jean-Yves Jean-Yves LELOUP, LELOUP, Roberto CREMA, Normose. A patologia da normalidade . 77. Cf. Pierre HADOT, Exercices spirituels et philosophie antique ; Mónica CAVALLÉ, La Sabiduría Recobrada. Filosofía como terapia .
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as torna todavia absolutamente idênticas ou equivalentes. Uma hipótese que particularmente acarinhamos é que haja uma experiência primordial e original, não-dual, inerente à natureza profunda de todos os seres e coisas, que seja anal a base constante e imutável de todas as demais experiências que temos e que resida sempre presente no fundo sem fundo do ser e da consciência de todos os seres vivos (não só do ser humano, pois o que está aqui em causa não é uma compreensão racional e conceptual do mundo, mas uma conexão pré-reexiva com ele), que todavia não a podem plenamente usufruir quando a sua atenção está condicionada e obscurecida pelos instintos e necessidades da luta pela sobrevivência, como acontece com os animais (que não obstante aparentam por vezes ter experiências de concentração ou mesmo contemplativas mais longas e profundas do que os humanos) e também com os humanos que, mesmo quando não lutam pela sobrevivência, ainda têm a atenção mais condicionada e distraída pela multidão dos afazeres e das percepções do mundo social e culturalmente normalizadas. Perante estes condicionamentos da atenção consciente, é inevitável que a conexão não-dual com a realidade e com o mundo seja em geral recalcada nos domínios do subconsciente, de onde aspira todavia a manifestar-se, gerando a inquietação espiritual que, embora muitas vezes irreconhecida, constitui porventura a força mais profunda latente no ser humano e nos demais seres vivos. Pela nossa experiência, pela investigação feita e por conversas com muitas pessoas, temos fortes razões para crer que esta experiência de abertura não-dual da consciência é muito mais conhecida e comum do que se pensa – ou que se tenta fazer que se pense - e que muitos de nós a temos ou tivemos nalgum momento, embora nem sempre a reconheçamos plenamente e evitemos falar disso pois existe desde há milénios a tentativa das instituições religiosas se apropriarem dela, estabelecendo o que seria a sua forma ortodoxa e perseguindo os supostos desvios ou as reais simulações, e há, sobretudo no actual ciclo de civilização e em particular no Ocidente a seguir ao século XVIII iluminista, uma pressão cultural e social para se desacreditar, censurar e não falar desta experiência de conexão não-dual com o mundo pelo desconforto de estar nos antípodas do sistema estabelecido acerca do que é normal e real. Ela tende assim a ser con81
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siderada um sinal de regressão infantil, de alucinação ou devaneio místico e por isso um sintoma patológico, irracional e anormal que deve ser tratado e curado pela psicologia e pela psiquiatria dominantes. Devido a vivermos dominados pela normose de uma percepção do mundo dualista e que nos faz sofrer, mas que pretende ser a única real, possível e legítima – e decerto também por ser o fundamento e a garantia de um paradigma de civilização e de um sistema de poder religioso, político e económico baseados no desconhecimento de quem verdadeiramente somos ou podemos ser e que nos educa para nos identicarmos com um “eu” atomizado e separado do mundo e dos demais seres vivos que necessita de se subordinar aos poderes instituídos para sobreviver 78 - , a experiência em causa tende a ser julgada como sintoma de desadaptação, disfunção ou loucura quando pode ser na verdade a manifestação da nossa mais autêntica e profunda saúde (cuja etimologia, como vimos no início, remete para as ideias de integridade, totalidade e perfeição). Cremos que esta experiência é transversal a crentes e descrentes, bem como às espiritualidades, tradições e religiões teístas, não-teístas, panteístas e outras, que diversamente a interpretam e nomeiam em função dos seus pressupostos metafísicos e doutrinais e do seu enquadramento histórico-cultural. Nesse sentido tanto pode ser conceptualizada como a experiência da essência da Vida, do Tao , de śūnyatā (vacuidade, abertura), de Brahman , do Ser, do Innito, de Deus, etc. No caso desta expe riência ser referida a Deus, tanto o pode ser a respeito das suas várias concepções tradicionais, como se o pensarmos, o que nos parece uma possibilidade inovadora e aliciante, em conformidade com a sua etimologia, a raiz indo-europeia –dei , que apenas designa “o que brilha”, a irrupção da luz nas trevas 79. O que se chama Deus pode não se reduzir assim às suas dominantes interpretações religiosas e teológicas como uma entidade transcendente no sentido de extrínseca ao ser humano e ao mundo, referindo antes, num sentido fenomenológico, a experiência iluminativa da natureza original, profunda e comum de todos os seres e de tudo o que existe que, ao irromper na consciência, dissipa as trevas 78. Cf. Alan WATTS, The Book on the Taboo Against Knowing Who You Are . 79. Cf . Odon VALLET, Petit lexique des mots essentiels , p.63.
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da dualidade entre o eu e o mundo, entre nós e os outros, entre cada ser humano, todos os seres vivos, a Terra e o inteiro unimultiverso. Deus , neste sentido, pode ser sinónimo de iluminação . Estamos convictos que a luz desta experiência, que no fundo é a do despertar da consciência para a natureza profunda de si e de tudo, é na verdade o foco do nosso inato desejo do innito, perfeição e totalidade que anal desde sempre residem em nós e em tudo, podendo assim conver ter-se no centro e no alimento de uma espiritualidade laica, trans-cultural e trans-religiosa, aberta e transversal a crentes e não-crentes (compatível com todas as crenças e descrenças, desde que aprofundadas para além dos seus limites dogmáticos religiosos e irreligiosos), que conduza a um novo paradigma de civilização menos dualista e antropocêntrica e mais universalmente compassiva e empática com todos os seres vivos, a Terra e o cosmos. Cremos que essa luz , que não é uma ideia, dogma ou crença, mas antes uma experiência e não carece de qualquer nome – nem sequer o de “luz”, pois transcende todas as palavras, conceitos e imagens - , pode e deve ser o centro de uma urgente e Nova Aliança entre o ser humano, todos os seres vivos e o cosmos. Sentimos que essa luz é a do Aqui-Agora em que sempre estamos. Sentimos, e por isso sabemos, que essa luz somos Nós. Ou seja, todo o Unimultiverso. Sentimos ainda que este momento de crise civilizacional é a Hora , ou seja, o tempo oportuno, para nos desinibirmos de falar e debater publicamente esta experiência-cume de realização das mais intemporais e melhores aspirações humanas e sobretudo de nos dispormos a ela, libertando-nos de tudo o que a obstaculiza e obscurece, pois sem ela a vida perde sentido e sabor e só nos resta a contínua agitação, turbulência, insatisfação, mal-estar e frustração atrás descritos. Sem ela só nos resta esgotarmonos em trabalho e tarefas inúteis, fúteis e nocivas e em vidas vazias de sentido que alimentam o paradigma e sistema civilizacional dominante – o da dualidade e da luta de todos contra todos e contra a natureza e os seres vivos pela nova religião, superstição e obscurantismo do crescimento económico ilimitado, como se isso fosse possível num planeta com recursos naturais nitos80 – , sem deixarem de nos conduzir acelerada e igualmente a todos - ricos ou pobres, opressores ou oprimidos, poderosos 83
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ou fracos, vencedores ou vencidos - para a destruição dos ecossistemas e da biodiversidade e para a doença, a velhice e a morte, fazendo-nos perder esta imensa oportunidade da vida humana enquanto porta aberta ao pleno despertar da consciência e com isso a uma vida harmoniosa na relação com a Terra, os demais seres vivos e o unimultiverso. Cremos com efeito que a crise da actual civilização, os múltiplos problemas que nos afectam e a ameaça de colapso ecológico-social em que nos encontramos têm como raiz profunda a ignorância e mal-estar provocado pela tentativa da presente globalização industrial e comercial, tecnocientíca, mediática e económico-nanceira esquecer, desconsiderar e reprimir a vida espiritual como o centro da vida humana, substituindo a nossa intemporal aspiração a uma paz, felicidade, sabedoria e plenitude últimas pelas contrafacções e distracções hedonistas da modernidade e da pós-modernidade. Com efeito, não parecem ser os sempre efémeros prazeres da comida e da bebida, do sexo sem amor nem consciência do potencial libertador da energia sexual, do conforto material, das viagens e do turismo, do consumo ilimitado, da tecnologia de ponta, do sucesso prossional, da riqueza, da fama, do poder ou da mera acumulação de cultura, conhecimento erudito, experiências estéticas ou emoções, especulações e devaneios “espirituais”, que nos conduzem ao não sei quê que talvez sem o saber nisso tudo procuremos. Sendo estes prazeres usufruídos por uma minoria e invejados pela maioria dos habitantes do planeta, pois é isto que a propaganda ocial propõe como garantia de realização humana, a uns e outros deixam igual e profundamente insatisfeitos, o que em última instância é uma insatisfação espiritual, a insatisfação do espírito ou consciência que é a dimensão mais funda e subtil da mente e de cujo estado depende, como vimos, a qualidade e o sentido das nossas vidas. Para além das múltiplas causas externas, de índole sócio-económica e outras, dela inseparáveis, cremos ser esta in80. Sobre a impossibilidade do crescimento económico innito e a urgência do decrescimento, mediante uma vida mais simples e de abundância frugal, em que haja mais satisfação com menos coisas, como a que a meditação favorece, cf., entre muitas obras: Serge LATOUCHE, Pequeno Tratado do Decrescimento Sereno , Lisboa, Edições 70, 2011; Richard HEINBERG, The End of Growth: Adapting to Our New Economic Reality , New Society Publishers, 2011; Andrew SIMMS, Travar o Apocalipse. Porque precisamos de parar de crescer e começar a viver , Lisboa, Temas e Debates / Círculo de Leitores, 2014.
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consciente insatisfação espiritual com as actuais ofertas da civilização que em última instância se traduz no sentimento do vazio e sem sentido da vida, no tédio de viver, na desmotivação e indiferença – tão dramaticamente presentes nas gerações mais jovens - , na depressão e no suicídio, nas diversas formas de toxicodependência (incluindo as de todas as formas de consumo compulsivo e das drogas legais, como os fármacos e o álcool) e nos comportamentos anti-sociais e violentos de todos os tipos. A toxicodependência, o alcoolismo e outras buscas de anestesia, excitação ou libertação dos sentidos, como o frenesim sexual, podem ser aliás muitas vezes não só uma busca de evasão das pressões e responsabilidades pessoais e sociais, mas também tentativas conscientes ou inconscientes de transcender os limites da percepção socialmente normalizada, buscando estados de consciência menos dolorosos, robóticos e “cinzentos” ou mais felizes, livres e despertos, que tragicamente acabam por car dependentes dos métodos e substâncias usados, claramente nocivos para o corpo e a mente, fechando ainda mais as já tão estreitadas portas da percepção. Felizmente há uma via alternativa, à qual neste livro exortamos: aceder ou regressar ao Coração da Vida , o coração da respiração comum de todos os seres e coisas.
4. A via que se cumpre a cada instante e a “viagem na qual nasce o próprio viajante” A leitora ou o leitor terá porventura constatado que nos entusiasmámos mais nas últimas páginas, como sempre acontece quando expomos as nossas experiências e convicções mais gratas e profundas. Exortamos todavia a que ninguém as aceite ou rejeite como uma doutrina, o que seria contradizer todo o espírito deste livro. Tudo o que aqui partilhamos são meras hipóteses de trabalho e propostas para uma reexão e um cami nho conjuntos, que as leitoras e leitores, se o desejarem e acharem que faz sentido, poderão investigar e vericar ou não por si mesmos, usando a sua própria razão e experiência. Para voltar à questão do início deste capítulo, cremos que a razão, o sen85
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tido, a nalidade e os benefícios maiores de meditar residem precisamente no facto de a meditação ser desde sempre uma via privilegiada para, sem riscos e independentemente das nossas crenças ou descrenças cientícas, losócas ou religiosas, cultivarmos a paz e o despertar da mente, removendo os obstáculos e obscurecimentos conceptuais e emocionais que porventura nos condicionam actualmente a percepção, a acção e a vida, privando-nos de um maior conhecimento experiencial da natureza profunda e comum de nós e do mundo e assim de uma vida mais ética e mais plena. Esta é, a nosso ver, a razão e a motivação superior para meditar e o seu supremo benefício: procurarmos o conhecimento profundo de nós e da realidade, libertando-nos da ignorância passiva do que não vemos e da ignorância activa do que imaginamos ver e traduzindo isso numa sabedoria prática que nos permita uma vida boa e plena, incluindo todos os seres vivos e em harmonia com as leis fundamentais da Terra e da Vida. Como vimos, a meditação é uma via para o desenvolvimento cognitivo-afectivo de todos nós, que por inerência enriquece e torna melhor o mundo, beneciando todos os seus habitantes, humanos e não-humanos. Na perspectiva que defendemos, é a partir daqui que ganham pleno sentido todos os benefícios da prática regular da meditação atrás apontados e que são os seus efeitos colaterais, embora compreensivelmente a sua busca constitua muitas vezes e maioritariamente a principal motivação de uma humanidade cansada, doente e autocentrada na tentativa de resolver os seus problemas mais imediatos. Como já dissemos, isto no fundo é natural e positivo, porque praticar meditação, mesmo que com objectivos limitados, benecia muitos seres humanos, reduzindo o seu sofrimento ao diminuir a sua agitação e os seus obscurecimentos mentais e emocionais, e porque assim se criam gradualmente as condições para que venham a descobrir e a interessar-se pelas possibilidades superiores da experiência meditativa e contemplativa. Em qualquer dos casos, a prática da meditação – a não ser que reforce a concentração em objectivos nocivos e destrutivos – benecia não só os praticantes, mas também a sociedade e o mundo onde se inscrevem. Queremos precisamente realçar aqui que a meditação e a ética são inseparáveis e indispensáveis como via para as igualmente indissociáveis sabedoria, paz e felicidade, pois uma vida feliz não é possível sem uma 86
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compreensão justa da realidade e ambas não se realizam sem uma mente calma e uma conduta virtuosa na relação com todos os seres, nossos próximos. Precisamente o contrário das expectativas dominantes – fortemente alimentadas pela indústria da publicidade - que consideram ser possível comprar a felicidade adquirindo produtos, bens e serviços sem criar as condições mentais e éticas de uma vida plena, sem ver a natureza profunda e interdependente da realidade e agir em consonância. Precisamente o contrário também do que supõe a ciência, que considera o acesso à verdade uma experiência exclusivamente intelectual, alheia ao pleno desenvolvimento humano na paz interior e na conduta virtuosa em relação aos outros seres 81. Resumindo os três pontos anteriores deste capítulo, 1) se ao observarmos as nossas mentes e vidas vericamos uma agitação, inquietação e insatisfação contínuas, 2) se constatamos que isso se deve fundamentalmente à crença irreectida na separação e desconexão entre nós, os outros e o mundo, com o consequente medo, egocentrismo, avidez, apego, aversão e indiferença que só geram conitos e sofrimento, 3) se sabemos por experiência própria que há ou se, pelos muitos testemunhos, admitimos a hipótese de haver um estado de consciência livre de tudo isso onde se experimenta a íntima conexão com os outros e o mundo e 4) se a meditação se tem comprovado uma via por excelência para esse estado de consciência – com todos os benefícios adicionais atrás referidos - , é evidente que ela é já o primeiro e fundamental momento de uma ética original e global, na sua dupla vertente de reconhecimento de quem realmente somos, da nossa morada fundamental, e de acção tendente à melhor vida possível para nós, os demais seres e o próprio mundo82. Esta associação entre meditação e ética oresce naturalmente num estado de 81. Como escreve Alan Wallace: “Tal como vejo a minha própria civilização, impressiona-me que no nosso mundo moderno, estas três buscas – a busca da felicidade, a busca da verdade na compreensão da realidade e a busca da virtude – sejam frequentemente vistas como não relacionadas. A indústria da publicidade conta com isso. Eles vão vender-nos a felicidade – não se incomodem com a verdade – e a clara implicação é que a felicidade nada tem a ver com a virtude. A ciência tem imenso a ver com a verdade, mas frequentemente não aborda as mais profundas questões do orescimento humano ou da sua relação com a ética” – Alan WALLACE, in AAVV, The Mind’s Own Physician. A Scientic Dialogue with the Dalai Lama on the Healing Power of Meditation , p.143.
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consciência sábio, pacíco e feliz. A partir da experiência meditativa e contemplativa de uma não-separação entre cada um de nós, todos os seres e o mundo, a ética aí radicada só pode ser global, integral ou holística, não-antropocêntrica e sem um centro especíco, visando o bem comum a todos os seres e à biosfera onde estão inseridos83. Cremos que só esta profunda mutação de perspectiva pode inverter o processo que actualmente, segundo abundantes relatórios cientícos, nos conduz para um colapso ecológico-social sem precedentes, corolário da sexta extinção massiva da biodiversidade desde o Holoceno, a primeira por causas humanas. Só esta profunda mutação da consciência e da acção nos pode preservar, no limiar do desastre, de repetirmos uma vez mais, mas agora à escala planetária, os erros sucessivamente cometidos pelas grandes civilizações do passado que foram sempre vítimas da tendência para se hierarquizarem e concentrarem poder e riqueza numa minoria, ao mesmo tempo que devastaram o mundo natural por via tecnológica para encontrar alimento para uma população crescente 84. A meditação tem aqui uma função extremamente importante. Com efeito, se não formos míopes, não carmos pela superfície e formos bem ao fundo da questão, não será que toda a violência, conitos e problemas que há no mundo, e que tanto lesam os humanos, os animais e o próprio planeta, se devem à crença na separação e desconexão entre nós e os outros, com o consequente egocentrismo, medo, insegurança, avidez e hostilidade? Não será daí que, em primeira e última instância, vem toda a ganância e competição desenfreada entre indivíduos, grupos, empresas e nações com os consequentes problemas sociais, ambientais, económicos e políticos que nos colocam numa crise sem precedentes e à beira do colapso? Não será que a raiz de todos os nossos problemas é assim o estado dualista e de divisão em que estão as nossas mentes? Será que isso se pode mudar por 82. Heidegger fala de uma “ética original” baseada no sentido de êthos , que signica “morada, lugar de habitação” e é distinto de éthos , que signica “hábito, costume” – cf. Martin HEIDEGGER, Lettre sur l’humanisme (edição bilingue), texto alemão traduzido e apresentado por Roger Munier, Paris, Aubier–Montaigne, 1983, 3ª edição, pp.144-151. 83. Cf. a nossa proposta em Paulo BORGES, Quem é o meu Próximo? Ensaios e textos de intervenção por uma consciência e ética globais e um novo paradigma cultural e civilizacional . 84. Cf. Ronald WRIGHT, A Short History of Progress , Edimburgo/Londres, Canongate, 2005.
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decreto e por via jurídica, política ou económica? Parece evidente que não e que resta apenas um caminho, que facilite aliás a aceitação das medidas externas necessárias: mudar a mentalidade e o estado de consciência individual e global. Para isto só parece haver uma via, a percorrer por cada um de nós, que nasça de dentro e dispense a imposição de ou adesão cega a qualquer crença, doutrina ou ideologia: a meditação, simultaneamente reexiva, contemplativa e activa. Como vimos, ela é já o invisível mas de cisivo início da acção esclarecida e não-violenta que transforma o mundo transformando a mente que o percepciona e que, sendo feliz com o ser e não com o ter, a par de ver o outro inseparável de si, age em consequência, fazendo parte da solução e não do agravar do problema. Correspondendo à noção tradicional de meditação em acção, uma nova palavra pode expressar isto: MeditAcção , a Revolução Silenciosa que, mais do que diabolizar e combater pessoas, faz já de cada um de nós a mudança contagiosa que queremos ver no mundo. Neste sentido, não será exagerado considerar a meditação, reexiva-contemplativa-activa, como a mais profunda e ecaz forma de serviço e intervenção ambiental, social e política. Em termos mais concretos, a ética meditativa assume a Regra de Ouro de toda a ética, formulada pela primeira vez por Confúcio – “Nunca faças aos outros aquilo que não gostarias que te zessem” 85 - , mas alarga-a a todos os seres vivos e ao mundo, tanto quanto possível acrescentando a vertente positiva de fazer aos outros tudo o que lhes seja realmente benéco, o que não quer dizer tudo o que desejam e exige uma discriminação que só a atenção plena e a sabedoria podem proporcionar. No nal deste livro propomos algumas linhas orientadoras da nossa conduta ao longo da vida e na relação com todos os seres e com o mundo, assumindo que com elas pretendemos ir mais longe do que a professora Karen Armstrong na sua Carta pela Compaixão , apoiada e divulgada por muitas entidades governamentais e religiosas, mas infelizmente limitada à esfera da humanidade. A nossa proposta condensa-se na Carta pela Compaixão Universal , aqui igualmente republicada, que tem o apoio de guras internacionais de relevo, como o XIV Dalai Lama, Satish Kumar e Matthieu Ricard, entre outros, e que está a ser divulgada num site próprio 86. A “vida solidária”, que 85. Cf. CONFÚCIO, Analectos , XV, 24.
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Karen Armstrong propõe, e para a qual considera igualmente fundamental a atenção plena a tudo o que pensamos, dizemos e fazemos , deve na nossa perspectiva estender-se a tudo e a todos 87. A via meditativa – reexiva-contemplativa-activa – aqui proposta como redescoberta da natureza profunda ou da vida original é uma via que, caso desejemos, tem de ser percorrida por cada um de nós, de forma empenhada, metódica e constante. Não é um remédio pronto a consumir – não há e jamais haverá comprimidos ou injecções de meditação... - e ninguém a pode percorrer por nós. Mas não é um caminho para uma meta distante. Pelo contrário, é uma via que se cumpre e consuma a cada instante, onde a cada passo do caminho se alcança o objectivo, desde que o meio seja o próprio m e mais do que perseguir um ideal sejamos a sua realização aqui e agora. No fundo, não se medita para. Medita-se. Nesta via não há sujeito, objecto e acção, caminhante, caminho e m do caminho, mas um nascer a cada instante no milagre da primeira e única vez. Esta via é, como o disse um profundo e mal conhecido lósofo português, uma “viagem na qual nasce o próprio viajante” 88.
86. http://www.charterforuniversalcompassion.org/ 87. Cf. Karen ARMSTRONG, Doze Passos para uma Vida Solidária , pp.111-115. 88. José MARINHO, Teoria do Ser e da Verdade , Lisboa, Guimarães Editores, 1961, p.65.
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V. Como meditar? Exercícios e métodos meditativos Expomos aqui a sequência de alguns dos principais exercícios e métodos meditativos, tal como os aprendemos, praticamos e desenvolvemos nos nossos cursos e workshops de introdução à meditação. Como vimos, o primeiro objectivo é a calma, serenidade ou paz mental (śamatha ), mediante uma atenção plena concentrada de modo estável, claro e descontraído num determinado suporte, que é a base da visão penetrante ( vipaśyāna ), compreensão ou insight acerca da natureza última desse objecto e da própria mente que o percepciona (que será aqui brevemente exposta, para ser mais desenvolvida no segundo volume deste livro). Expomos separadamente cada exercício e método e no nal faremos uma proposta de organizar uma prática diária com todos ou alguns deles.
1. Preparação Chamamos preparação a esta parte inicial, mas na verdade é composta por três momentos indispensáveis da experiência meditativa. Convém contudo que primeiro escolhamos o local mais adequado para meditar. No fundo todos os lugares e situações são bons, pois quem medita é a mente e à medida que o faz mais se liberta da inuência e dependência das con dições externas. Porém, sobretudo no início, se ainda somos muito vulneráveis a essas condições, convém escolher um espaço tranquilo, arejado e com luz mediana, nem muita nem pouca. Convém também que seja um espaço relativamente simples e despojado, com poucas coisas que nos distraiam a atenção. Devemos evitar ser incomodados durante esse período e não ter telemóveis ou outros instrumentos de comunicação perto de nós. Vestimos roupas largas e confortáveis e descalçamos os sapatos.
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1.1. Aqui-Agora Sentamo-nos, para já apenas com a coluna vertebral bem direita, numa almofada no chão, sobre um tapete, ou numa cadeira. Se possível devemos evitar encostar a coluna, a não ser que haja alguma situação física que a isso nos obrigue. Nesse caso podemos usar o apoio necessário. Se estivermos numa cadeira, os pés cam paralelos um ao outro. Se estivermos numa almofada, sentamo-nos com as pernas cruzadas na postura mais confortável, procurando que a almofada tenha a altura suciente para erguer a região pélvica de modo a que haja uma maior abertura das pernas e os joelhos se aproximem o mais possível do tapete. Se por enquanto os joelhos não tocam o chão, não forçamos. Fazemos três profundas inspirações e expirações, de modo a descontrair e dissipar tensões o mais possível e estamos sentados aqui e agora, abandonando todas as preocupações com o passado, o futuro e mesmo com o presente. Sentamo-nos pela primeira vez nas nossas vidas, com uma mente fresca e aberta à experiência de estarmos aqui e agora, sem memórias, planos ou projectos. Se já lemos alguma coisa sobre meditação, incluindo as páginas anteriores deste livro, esquecemos isso agora. Se já praticámos alguma forma de meditação, também esquecemos isso. Esquecemos mesmo tudo o que habitualmente pensamos ser ou saber. Entramos num estado sem conceitos, pressupostos ou expectativas, livres da ideia de haver alguma coisa a obter, a rejeitar ou a transformar. Não há nada a fazer senão estarmos conscientes do que está a acontecer. Nada fazer senão reconhecermos o que se passa sem nada querermos transformar, é noutro sentido fazer imenso e uma profunda transformação em relação ao nosso estado habitual de inquietação e ansiedade, em que andamos sempre a fugir de alguma coisa e a correr atrás de outra. Sentamo-nos uns momentos com a mente aberta a todo o espaço circundante e trazemos então a atenção para a experiência que estamos a ter, aqui e agora, a nível físico, emocional e mental. Sentimos tudo o que se passa em nós – sensações físicas, emoções e pensamentos - e aceitamos incondicionalmente isso como puras experiências, que não rotulamos como boas ou más, agradáveis ou desagradáveis: são apenas experiências. 92
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Estamos como estamos, reconhecemos e aceitamos isso, sem juízos, juí zos, comparações ou críticas. Estamos livres do conito inerente a sentir-nos X e achar que devíamos sentir-nos sentir-nos Y. Largamos os conceitos habituais de estar bem ou mal dispostos, alegres ou tristes, entusiasmados ou aborrecidos. Estamos como estamos. Estamos. E é tudo. Como podemos facilmente constatar, ao tentarmos fazer isto, a mente tende a fugir em todas as direcções, mas ao tomar consciência disso estamos já a focá-la na experiência presente. Estarmos conscientes da agitação e da distracção é já o primeiro e precioso fruto e benefício da meditação.
1.2. Motivação Tomamos então consciência de qual a nossa presente motivação para meditarmos. Seja qual for, é boa e é a base de onde partimos actualmente. Quando estiver clara, procuramos então torná-la ainda mais positiva e abrangente. Pensamos por exemplo no que desejamos de melhor para nós e para aqueles entes queridos que nos suscitam um amor e uma compaixão mais incondicionais, ou seja, com menos expectativas de reconhecimento e retribuição, menos egocêntricos. E aspiramos a que a nossa presente prática possa contribuir para esse bem que desejamos a nós e a eles. Quando sentirmos isto, tentamos abrir ainda mais a mente e o coração, pensando em todos os seres, humanos e animais, visíveis e invisíveis, que tanto sofrem física, emocional e mentalmente. Seres como nós, que apenas procuram continuamente, cada um a seu modo, o bem-estar e a felicidade e evitar o seu oposto, mas que tantas vezes encontram uma dor e um sofrimento enormes, inimagináveis... Podemos pensar naquelas formas de sofrimento a que somos mais sensíveis e, quando nos sentirmos tocados por elas, aspirar do fundo do coração a que a nossa prática contribua para pacicar e puricar todo esse sofrimento e levar todo o bem e felicidafelicida de a todos. É muito importante começar com esta motivação amorosa e compassiva, o mais incondicional e universal possível. Abre a mente e o coração, tornando-os desde logo tão vastos como o universo, relativiza e dissipa os nossos problemas, que parecem maiores quando estamos mais 93
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autocentrados, faz com que a energia vital se desbloqueie e ua melhor e experiências cientícas recentes mostram que activa o córtex pré-frontal esquerdo, área ligada à autoconança e aos sentimentos positivos. Desejar o bem de todos, o que inclui a nós, torna-nos mais felizes, como desde sempre dizem as tradições espirituais da humanidade e hoje as neurociências comprovam experimentalmente. Numa sessão formal de meditação importa que estejam presentes três elementos, por vezes designados como três perfeições: a perfeição no início é esta motivação pura, que visa desinteressadamente o bem de todos; a perfeição no meio é a manutenção da atenção plena na prática propriamente dita, sem distracções; a perfeição no m é, como veremos adiante (em V. 6.), a dedicatória igualmente pura, pela qual oferecemos desinteressadamente tudo o que de bom zemos para o bem de todos os seres, sem qualquer excepção. 1.3. Purifcação dos canais e dos centros da energia vital
As tradições orientais conhecem uma psicosiologia subtil e falam de uma energia vital – prana , na tradição indiana, chi , na chinesa, lung , na tibetana – que circula em múltiplos canais canai s internos, havendo três principais: dois laterais que se intersectam ao longo do canal central, ao longo da nossa coluna vertebral, em centros ou vórtices energéticos, os chakras . Segundo as mesmas tradições, as nossas emoções, preocupações e pensamentos obsessivos criam bloqueios na circulação dessa energia, fazendo com que circule menos livremente pelo canal central e mais pelos laterais, de onde resultam estados mentais e emocionais dualistas - dominados mais pelo apego ou pela aversão -, desarmoniosos e conituosos que geram mal-esmal-es tar e que tendem a debilitar o sistema imunitário imunitári o e a somatizar-se no corpo físico sob a forma de várias doenças. Convém então, antes de começarmos a meditação formal, puricar essa dimensão subtil do nosso ser com o seguinte exercício. Colocamos os polegares na base dos anulares e fechamos os punhos, sem crispação, colocando-os sobre os joelhos, voltados para baixo. Pensamos em tudo o que 94
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nos possa condicionar em termos de medo, insegurança, raiva e aversão, vemos se é ou não causa de sofrimento para nós e para os outros e, caso seja, aspiramos a libertar-nos disso. Inspirando, erguemos a mão direita e, mantendo o polegar na base do anular, bloqueamos a abertura da narina esquerda, o que acontece quando os pulmões já estão bem cheios. Começamos então a expirar, pela narina direita, ao mesmo mes mo tempo que abrimos e estiramos bem os dedos da mão esquerda, sobre o joelho do mesmo lado. Ao mesmo tempo, sentimos que expulsamos, pela narina direita e pela ponta dos dedos da mão esquerda, todas as toxinas mentais e emocionais relacionadas com o medo, a insegurança, a raiva e a aversão, podendo visualizá-las como um fumo cinzento que se dissolve no espaço, sem deixar vestígios e sem prejudicar ninguém. Caso não haja um estado de gravidez, damos no nal da expiração uma chicotada chi cotada com o diafragma, para dentro e para cima, de modo a expulsar o ar estagnado na base dos pulmões. Fazemos agora o mesmo em sentido senti do inverso. De novo n ovo com os polegares poleg ares na base dos anulares e os punhos fechados sobre os joelhos, pensamos em tudo o que nos possa condicionar em termos de medo, insegurança, desejo possessivo, apego e avidez, vemos se é ou não causa de sofrimento para nós e os outros e, caso seja, aspiramos a libertar-nos libertar-nos disso. Começamos a inspirar ao mesmo tempo que erguemos a mão esquerda até que o anular bloqueie a base da narina direita, no nal da inspiração. Expiramos então, pela narina esquerda, abrindo e estirando bem os dedos da mão direita sobre o joelho direito. Sentimos que expulsamos, pela narina esquerda e pela ponta dos dedos da mão direita, todas as toxinas mentais e emocionais relacionadas com o medo, a insegurança, a possessividade, o apego, a avidez e todas as inerentes inerentes carências e dependências. dependências. Podemos visualizar de novo que todo esse fumo cinzento se dissolve no espaço, sem deixar vestígios e sem prejudicar ninguém. Damos, no nal da expiexpi ração, a mesma chicotada com o diafragma. Colocamos agora de novo os punhos fechados sobre os joelhos, sempre com os polegares na base dos anulares. Pensamos em tudo o que nos possa condicionar em termos de ignorância da nossa natureza profunda, de percepção dualista e de crença na separação separaçã o entre nós, os outros e o mundo, com o consequente egocentrismo, de onde procedem todas as toxinas 95
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mentais e emocionais atrás referidas. Vemos se é ou não a causa de todos os nossos problemas, bem como dos de toda a humanidade e do mundo, e aspiramos a libertar-nos disso. Inspiramos plenamente por ambas as narinas, mantendo os punhos fechados nessa posição. Mal a inspiração termine, começamos a expirar profundamente, igualmente pelas duas narinas, abrindo e estirando bem os dedos de ambas as mãos, sempre sobre os joelhos, até à chicotada nal com o diafragma. Ao mesmo tempo sentimos que estamos a libertar-nos de tudo isso, que se dissolve como um fumo cinzento no espaço, sem deixar rasto e sem prejudicar ninguém. Ao fazer isto, podemos começar a sentir logo uma maior calma, leveza e clareza mentais e interiores. Convém repetir três vezes estes três exercícios, com esta sequência, antes de uma sessão formal de meditação. Podemos também fazer este exercício em qualquer momento da nossa vida quotidiana, sobretudo quando nos sentirmos dominados por pensamentos e emoções negativas. Veremos que imediatamente diminuem ou se dissipam.
2. Postura Após a puricação dos canais e dos centros, passamos aos sete pontos da postura, que não é apenas física, pois cada um dos seus aspectos corresponde a uma importante experiência interior. A postura meditativa nada tem a ver com um exercício de ginástica. Uma postura fundamental é a postura sentada, que deve ser a base da nossa prática, embora também se possa meditar em pé, a caminhar e deitado (convém neste caso ter alguma experiência, pois de outro modo o mais provável é cairmos no torpor ou adormecermos: meditar não é “me deitar” C). Tal como entre nós e o mundo, há uma interdependência entre os três níveis fundamentais do nosso ser: corpo, energia vital e mente (que aqui usamos como designação geral das várias dimensões da consciência). Uma correcta postura física sentada facilita o uxo da energia vital e este contribui para estados mentais e emocionais mais positivos e harmoniosos. Estes, por sua vez, também desimpedem o uxo da energia e contribuem para a saúde física. Estamos sentados numa almofada no chão ou numa cadeira, como 96
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atrás cou exposto, e alinhamos o corpo e a mente nos seguintes pontos, por esta ordem: 1) Trazemos a atenção para a base do corpo e sentimos a implantação dos
pés no solo ou do traseiro e das pernas na almofada e no tapete. Se estamos sentados numa cadeira, os pés cam paralelos um ao outro, com o ângulo de abertura das pernas que for mais confortável. Se estamos sentados numa almofada, as pernas estão igualmente cruzadas na postura mais confortável (com tempo e exibilidade podemos eventualmente chegar à posição de lótus completo, em que cada um dos pés ca sobre a coxa da perna oposta). Entregamo-nos ao efeito da gravidade e sentimos a nossa íntima conexão com a terra, como se o corpo fosse uma árvore ou montanha que lançasse fundas raízes no coração do planeta. Estamos conectados com a matriz de toda a vida na Terra e sentimos a força, conança, estabilidade e o sentimento de pertença que isso nos traz, libertando-nos da ideia e sensação de isolamento e separação, com todo o medo, insegurança e consequências devastadoras que estas cções provocam. Talvez não seja exagerado dizer que boa parte do estado actual das mentes e do planeta resulta de não passarmos mais tempo verdadeiramente sentados, ou seja, ligados à Terra, integrados no mundo. Não é por acaso que “ser”, em português e castelhano, vem do latim “sedere”, que signica estar sentado, residir, car tranquilo, pousar, etc. Já “estar” vem de “stare”, que signica estar de pé, mas também estar a favor de ou contra alguém. Precisamente a dualidade e a parcialidade de onde vêm todos os nossos problemas e que a experiência meditativa e contemplativa suprime. Todavia, como veremos, podemos meditar agindo exteriormente, o que implica permanecer interiormente sentados, em repouso, mantendo a imparcialidade que nos permite agir para o bem de todos, sem qualquer excepção. 2) Dirigimos
agora a atenção para a base da coluna vertebral e tornamo -la tão direita e vertical quanto possível, sem rigidez e com descontracção, vértebra a vértebra. Ficamos mais altos e o topo do crânio toca o céu. Sentimos que a coluna é como o tronco da árvore ou o eixo da montanha e o traço de união que liga céu e terra. Sentimos a conexão com o céu e pela 97
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coluna o uxo de energia que o liga à terra. O corpo e o ser prolongam-se no céu e na terra. Sentimos a dignidade e sacralidade do nosso corpo e do nosso ser profundo, com toda a energia e conança acrescida desta dupla conexão com todo o visível e todo o invisível. 3) Atendemos agora aos ombros, que colocamos
direitos, ao mesmo nível, como os pratos de uma balança em equilíbrio, sem inclinações para trás, para diante ou para os lados. Deixamo-los cair e abrimo-los puxando-os ligeiramente para trás, de modo a que o peito, o coração e o ser também abram, sem medo, livres do sofrimento da insegurança e da autoprotecção. Conectados com o céu e a terra, estamos agora também abertos a tudo o que nos rodeia. O corpo é um corpo aberto, inseparável do mundo, ilimitado e vasto como o espaço, em todas as direcções. 4) Colocamos as costas da mão direita sobre a palma da mão esquerda e
os polegares tocam-se na horizontal, em frente ao umbigo. As mãos unidas, ligeiramente arqueadas e com as palmas para cima, tocam o ventre ao nível de um ponto situado cerca de quatro centímetros abaixo do umbigo. Vericamos que há um espaço entre os braços e o tronco. As mãos e a mente estão em paz, sem nada a agarrar nem a combater, sem apego nem aversão (devemos começar por esta posição das mãos, mais exigente em termos físicos e de atenção; quando tivermos mais estabilidade mental podemos abandonar apenas as mãos sobre os joelhos, numa postura mais descontraída, mas que no início nos pode arrastar para alguma frouxidão e torpor). 5) Mantendo
a verticalidade da nuca, recolhemos ligeiramente o queixo em direcção à base da garganta, num recolhimento e interiorização simultâneos da atenção. 6) Os lábios e os dentes estão unidos, mas não completamente cerrados,
havendo um espaço milimétrico pelo qual o ar circula, embora a respiração se faça pelo nariz. A ponta da língua encosta-se ao céu da boca ou à parte de trás dos dentes de cima. Descontraímos os maxilares, os músculos fa98
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ciais e o centro das sobrancelhas. Alinhamos o nariz e o umbigo, de modo a que o rosto esteja direito. À medida que descontrairmos, um ligeiro sorriso oresce naturalmente nos lábios. 7) Os olhos dirigem-se para um ponto no solo, no prolongamento de uma
linha imaginária que parte do centro das sobrancelhas e segue paralela à cana do nariz. Se a mente estiver muito agitada, devemos focar mais perto e mais para baixo, fechando mais o leque da visão. Podemos mesmo focar na ponta do nariz. Se a mente estiver mais entorpecida, devemos focar mais longe e mais acima, abrindo mais o leque da visão. Vamos regulando assim a direcção do olhar em função do estado mental e do que sentirmos que é mais ecaz para nós. Os olhos podem estar nem completamente abertos nem completamente fechados ou podemos fechá-los, pelo menos no início, se sentirmos que é mais fácil. É todavia aconselhável que a pouco e pouco nos habituemos a praticar com os olhos abertos, pois o objectivo é levar a experiência meditativa para a vida quotidiana, na chamada pósmeditação, onde temos que manter os olhos bem abertos, habituando-nos a que as percepções visuais externas não nos distraiam. Meditar com os olhos abertos, segundo tradições como a budista tibetana, também ajuda a abrir um canal energético entre os olhos que torna a consciência mais ampla e viva. Além disso, a meditação com os olhos abertos ajuda-nos a não carmos tão envolvidos com os pensamentos, a não nos fecharmos fazendo da meditação uma fuga ao mundo, bem como a superar os conceitos dualistas de interior e exterior e experimentar que a mente não está separada do que percepciona visualmente. Outra alternativa é não focar um ponto no solo, dirigindo apenas o olhar para o espaço vazio à nossa frente.
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3. Desenvolver a calma e a estabilidade mentais ( samatha) mediante a atenção plena 3.1. Atenção plena ao corpo e às sensações físicas Começamos aqui a expor algumas técnicas meditativas de base, usando sempre como foco da atenção aquilo que faz naturalmente parte da nossa existência e temos constante e gratuitamente connosco, o que nos livra de dependermos de algo para meditar e do negócio dos kits de meditação. É o caso do corpo, da respiração, dos fenómenos internos – pensamentos, emoções, imagens mentais, etc. – e externos, ou seja, tudo o que percepcionamos com os cinco sentidos. Começamos pelo corpo. Estamos na experiência externa e interna da postura em sete pontos e a partir daqui podemos optar por focar a atenção no corpo como um todo, abrangendo todas as sensações externas e internas que se manifestarem, ou escolhemos uma região especíca, onde essas sensações forem mais evidentes, como por exemplo a testa, os ombros, as mãos, os joelhos, etc. O objectivo é focar a atenção, com clareza e descontracção, num determinado objecto ou suporte e mantê-la aí concentrada, a m de que a mente se acalme e pacique. Neste caso o objecto é o corpo ou uma região do corpo e a focalização da atenção faz com que a mente lance uma âncora na experiência física. Temos assim um ponto de referência, ao qual tentamos voltar assim que surgir a mínima distracção. A mente deve estar bem focada, mas ao mesmo tempo descontraída e consciente de estar focada. A atenção está assim maioritariamente focada no objecto, mas sem nele mergulhar completamente, havendo uma dimensão que permanece livre para contemplar a própria focalização. É muito importante não tentarmos esvaziar a mente nem deixar de pensar, bloquear ou reprimir os pensamentos. Contrariamente ao que muitas vezes se pensa, a meditação nada tem a ver com isso, que só vai contrairnos e agitar-nos ainda mais, podendo ter consequências graves para o nosso equilíbrio mental. Se reprimirmos os pensamentos, eles vão ressurgir com mais força, como o efeito de uma mola comprimida. Deixamos assim os pensamentos uir, sem lhes darmos qualquer importância, mantendo 100
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a atenção nas sensações corporais. Sempre que a atenção se desviar do foco e se extraviar, envolvendo-se com os pensamentos, as emoções, as imagens, os estímulos externos e as mil preocupações habituais, o que é perfeitamente natural que no início aconteça constantemente, trazemo-la calma e pacientemente de volta ao foco escolhido e tentamos mantê-la lá. O progresso na prática vai ser indicado pela capacidade de permanecermos cada vez mais tempo focados, com a atenção livre de tensão e o objecto claramente presente, bem como de sermos capazes de diminuir o intervalo entre o surgimento da distracção, o tomarmos consciência dela e o regressarmos ao foco. Mas vamos progredir tanto mais quanto menos tivermos expectativa e pressa de resultados e quanto menos estivermos ansiosos. Devemos evitar fazer da meditação uma competição connosco próprios. Ao constatarmos toda a nossa inicial agitação e diculdade de concentração, podemos pensar que estamos mais distraídos do que antes e que isso se deve à meditação. Na verdade o que está a acontecer é que estamos a car mais conscientes do estado em que constantemente nos encon tramos sem dar plenamente por isso, o que agora acontece porque estamos a tentar focar a atenção. Em vez de carmos desencorajados e de nos recriminarmos ou nos sentirmos tentados a desistir, pensando que não somos capazes, devemos considerar isto uma boa notícia e um incentivo, pois estarmos conscientes da distracção signica que ela já não é total e que estamos a conseguir o nosso objectivo, que é desenvolver a atenção. Estarmos conscientes da distracção e da agitação mental é já o primeiro fruto e benefício da meditação. Mantemos então a atenção completamente focada nas sensações físicas externas e internas. É uma atenção nua, que reconhece apenas as sensações como sensações, sem juízos, etiquetas ou comentários. Tentamos não as rotular como agradáveis ou desagradáveis, boas ou más. São apenas experiências que aceitamos e acolhemos plenamente, sem apego nem rejeição. Se surgirem todo o tipo de incómodos, dores, dormências, comichões, etc., é natural, sobretudo no início. Procuramos aceitá-los, não reagir a eles e manter a atenção focada. Por vezes podemos mesmo focar a atenção no incómodo e na dor e usá-los como suporte da meditação. Se o zermos poderá parecer que no início aumentam, mas normalmente acabarão 101
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por se desvanecer. Se forem todavia muito fortes e persistentes podemos massajar essa região, estirar as pernas ou a coluna, etc., dirigindo então a atenção plena para essa experiência e para o corpo em movimento. Praticamos assim durante o tempo estabelecido (no início aconselham-se sessões curtas, de 3 a 5 minutos). Podemos usar um sinal de um aparelho electrónico que programamos para a duração pretendida, de modo a evitar olhar para o relógio. No nal de uma sessão passamos à meditação sem objecto ou sem suporte, também chamada presença aberta, que descrevemos a seguir.
3.2. Meditação sem objecto ou presença aberta No nal de cada sessão de meditação com objecto, colocamos as mãos sobre os joelhos – caso estejam uma sobre a outra - com as palmas voltadas para baixo, descontraímo-nos e abrimo-nos completamente, libertando a mente de toda a focalização em qualquer objecto ou objectivo. Como se terminássemos uma tarefa árdua ou chegássemos a casa após um longo dia de trabalho, sentamo-nos apenas e repousamos sem tentar fazer seja o que for. Erguemos os olhos para o espaço em frente, abrangendo tudo numa visão panorâmica, e deixamo-los abertos, sem lhes darmos qualquer direcção especíca ou os xarmos onde quer que seja. É como se estivéssemos a contemplar uma vasta paisagem, numa visão global de tudo, sem nos determos nos pormenores. A mente está livre de qualquer intenção, acção ou nalidade e repousa apenas nesta experiência, sem nada a fazer ou evitar, nada a tirar nem pôr, nada a ganhar ou perder, nenhuma elaboração. A atenção ca assim com pletamente aberta, a 360 graus, em todas as direcções, abrangendo primeiro todo o espaço físico à nossa volta e depois, com o tempo, também o espaço ilimitado da própria consciência. Há uma libertação dos limites da percepção visual, que tem sempre um ângulo limitado por uma certa perspectiva. Na tradição zen fala-se do “olhar nas dez direcções”: os quatro pontos cardeais, os intermédios, o zénite e o nadir 89. A distracção consiste agora em se fazer o quer que seja e haver focalização e xação nisto ou naquilo em particular. 102
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À medida que desenvolvemos esta prática e nos habituamos a ela podemos começar a sentir que, desaparecendo o foco ou objecto observado, desaparece também o sujeito observador e ca apenas uma experiência de consciência aberta, ilimitada, sem sujeito nem objecto, sem interior nem exterior. Sem dualidade. No fundo, sem meditação. É o estado natural da mente e repousar nele faz com que a energia vital subtil ua naturalmente no canal central e nos regenere completamente90. No início podemos sentir alguma diculdade ou estranheza, pois não estamos habituados a estar assim, uma vez que toda a evolução nos programou para tentarmos sempre alcançar uma coisa e evitar outra, num comportamento próprio de presas-predadores, o que foi continuado pela educação e pela pressão social, que nos leva a considerar os estados dualistas e intencionais de consciência, sempre dirigidos para um determinado objecto, como os únicos normais ou possíveis (talvez hoje também por serem os únicos que nos levam a produzir e consumir coisas...). Mas, como no slogan concebido por Fernando Pessoa para a Coca-Cola, “primeiro estranha-se, depois entranha-se”! C Basta praticar a meditação sem suporte durante uns momentos após cada sessão com um foco, a não ser que nos sintamos desde o início à vontade com ela e até mais calmos e focados, o que em geral acontece, pela minha experiência, com 10 a 15% dos praticantes: nesse caso podemos prolongar mais o tempo da sua prática, mas sem nunca deixarmos de a alternar com a meditação com objecto. Ao praticar assim, deixando a consciência naturalmente presente e aberta, deixamos os pensamentos irem, virem e dissolverem-se, sem nos xarmos neles ou noutra coisa qualquer. Todavia, se no início desta prática nos sentirmos muito agitados, confusos e perdidos nos pensamentos ou nos fenómenos externos, podemos restabelecer durante uns momentos um foco, seja o corpo e as sensações físicas ou algum dos outros a seguir expostos. Quando recuperarmos alguma estabilidade, tentamos então 89. Cf. Hôgen YAMAHATA,Folhas caem, um novo rebento / Falling leaves, a shooting sprout , edição do texto de Shingan Francis Chauvet, Fotos de Jeanne Chevalier, Lisboa, Assírio & Alvim, 2002, p.60. 90. Vejam-se as páginas dedicadas a esta experiência no livro muito inspirador, que aconselhamos vivamente, de Yongey MINGYUR RINPOCHE, A Alegria de Viver , prefácio de Daniel Goleman, tradução de Artur Lopes Cardoso, Lisboa, Temas e Debates, 2008, pp.69-72 e 162-165.
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largar o foco e abrir a atenção sem qualquer suporte. A pouco e pouco começamos a experimentar a profunda diferença entre ter a mente focada num determinado objecto, o que dá sempre uma sensação de afunilamento da atenção e da consciência e de limitação do ser, e o abandonar o foco, abrindo-nos completamente a todo o espaço envolvente e ilimitado. Descobrimos então que somos vastos e ilimitados como o próprio espaço.
3.3. Pós-meditação e estiramento da coluna Entre duas sessões formais de prática da meditação com objecto, e sempre após um curto período de meditação sem objecto, convém fazer uns momentos de chamada pós-meditação, que na verdade é a continuação da meditação, mas agora com o corpo em movimento. Saindo da meditação sem objecto, dirigimos a atenção para o corpo e, ao longo de uma profunda inspiração, unimos as mãos diante do peito, entrelaçamos os dedos e viramos as palmas para cima enquanto as erguemos ao estirar a coluna como se quiséssemos empurrar o céu. Sentimos a coluna alinhar-se, vértebra a vértebra, e focamos a atenção em tudo o que se passa no corpo, nos ossos, músculos, tendões e articulações. Estiramos o mais possível até ao nal da inspiração, mantemos o estiramento durante a expiração e fazemos isto três vezes, estirando sempre um pouco mais ao inspirar. Ao longo da terceira expiração, as mãos unem-se, descem e regressamos lentamente à posição inicial, com as mãos em cima dos joelhos. Fazemos então uma curta sessão de pós-meditação, em que se for necessário podemos levantar-nos, dar uns passos, estirar e massajar as pernas, etc., de modo a que o corpo que confortável para a próxima sessão sentada. Ao longo da pós-meditação tentamos não perder o o da atenção focada em tudo o que fazemos e sentimos. Na verdade, a pós-meditação entre sessões é o início da realização do objectivo de levar a experiência meditativa ou da atenção plena para tudo o que zermos na nossa vida quotidiana, de modo a fazê-lo com mais calma, concentração, clareza, descontracção, ecácia e responsabilidade.
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3.4. Atenção plena à respiração e às sensações respiratórias Se temos constatado que focar a atenção no corpo e nas sensações físicas pode não ser fácil e evidente para muitas pessoas – o que também mostra o grau do distanciamento da mente em relação à experiência física - , já o dirigi-la para a respiração é bastante mais fácil e constitui uma técnica meditativa universalmente usada nos mais distintos contextos e para os mais diversos ns. Eis três métodos mais simples, entre os muitos existentes.
3.4.1. Respiração ao ritmo natural Findo o pequeno período de pós-meditação, entramos de novo num breve momento de meditação sem objecto, mantendo apenas a coluna bem direita. A partir daí, dirigimos a atenção para o corpo, que alinhamos de novo na postura em sete pontos, vivenciando a sua dimensão física e mental, interna e externa. Procuramos fazer sempre todos estes exercícios como se fosse a primeira vez, sem os converter num hábito, rotina ou processo automático. Na verdade é sempre a primeira e única vez que os fazemos, tal como tudo na nossa vida. Mantemos um espírito fresco, aberto e muito sensível à constante novidade de cada experiência, que é sempre irrepetível. Por muito que já tenhamos praticado ou lido sobre meditação, abdicamos de pensar que já sabemos alguma coisa e vivenciamos cada instante da experiência a partir do zero, como uma or fresca que se abre a cada instante pela primeira vez: “espírito zen, espírito de principiante”. Começamos por estabilizar durante uns breves momentos a atenção no corpo como um todo ou numa região apenas, como atrás descrito. Entramos então mais fundo, numa dimensão mais interna e subtil de nós mesmos, a respiração. O método mais simples consiste em respirarmos apenas como natural e espontaneamente o fazemos, sem alterar nada, e focarmos plenamente a atenção nessa experiência, embora uma parte que livre para estar consciente da própria focalização. Procuramos sentir o ar a entrar e a sair, acompanhando-o ao longo de todo o percurso, mantendo a mente focada em todas as sensações que isso provoca. Como 105
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sempre, é uma atenção nua, que repousa no inspirar e no expirar sem comentários, sentindo tudo o que está a acontecer sem juízos, rótulos ou comparações. Mantemos a atenção no uxo e reuxo da respiração, como uma maré que sobe e desce ao seu ritmo natural, e descontraímos totalmente, sem nenhum esforço adicional à simples manutenção do foco. Como diz um texto antigo, a mente repousa na respiração como uma borboleta numa or, docemente, sem tensão. Deixamos que os pensamentos, emoções e imagens venham e vão, no seu uxo habitual, sem lhes darmos qualquer importância, procurando apenas manter a atenção na respiração, sem nos envolvermos com eles e sem acrescentar mais pensamentos àqueles que espontaneamente surgem. Se nos distrairmos com os pensamentos ou com outra coisa qualquer, como o que se passa à nossa volta, os estímulos externos, damos por isso e regressamos imediatamente à respiração, sem perdermos tempo e agitarmos a mente com juízos, comentários e autocríticas. Ao respirar assim, plenamente atentos, entramos cada vez mais em contacto com uma dimensão de nós sã, simples e natural, livre das complicações, preocupações, problemas e sofrimentos conceptuais e emocionais da mente dominada pela cção da separação e por tudo o que disso resul ta: medo, insegurança, avidez, apego, aversão e indiferença. A respiração consciente revela-se assim um espaço de sanidade, frescura e abertura de que sempre dispomos e aonde podemos regressar a qualquer momento. Um espaço de encontro connosco próprios, mas numa dimensão de nós que, ao mesmo tempo que é mais íntima, menos fechada está em si mesma: pelo contrário, ao inspirar e expirar sentimos a evidente interconexão com a totalidade dos seres e do mundo. Na verdade a respiração é a presença em nós do uxo da vida e atender a ela conduz-nos a sentir e descobrir a interconexão com tudo o que existe, comungando o mesmo uxo vital universal. Inspiramos o que os outros expiram, expiramos o que os outros inspiram, não existimos nem vivemos separados e isolados, fora da comunhão e da osmose com esse uido que envolve, banha e impregna tudo: humanos, animais, plantas, Terra, universo. Quanto mais entramos na atenção plena ao respirar, mais a percepção do corpo se aprofunda e dilata: é um corpo aberto, sem os aparentes limites da pele, um corpo que acolhe 106
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em si o mundo ao inspirar, um corpo que se entrega ao mundo ao expirar. Um corpo-mundo. Podemos mesmo questionar se somos nós que respiramos ou se não somos antes respirados... Se somos nós que respiramos ou se é o inteiro unimultiverso que nos respira... Talvez na nossa aparente expiração sejamos inspirados por tudo e na nossa aparente inspiração se jamos expirados por tudo... Sentir e reconhecer isto pode levar-nos muito longe, a um profundo despertar da consciência para além das cções do ego, para além da cção do ego ou do eu separado. Se não conseguimos acompanhar todo o percurso do ar a entrar e a sair, focamos a atenção onde isso é mais evidente. Pode ser por exemplo apenas a sensação do ar a entrar e a sair pelas narinas. Se for possível acompanharmos a inspiração até ao seu limite, sentimos até onde os pulmões se enchem e a partir de onde se esvaziam. Aceitamos a respiração tal qual se processa, seja mais profunda ou mais supercial. Terminado o período que destinámos a esta sessão, esquecemos a respiração, abandonamos todo o foco da atenção e deixamos que esta se abra completamente na meditação sem objecto ou presença aberta, ao mesmo tempo que repousamos as mãos sobre os joelhos, caso estejam uma sobre a outra. Descontraímos profundamente, física e mentalmente. Passamos depois ao estiramento da coluna e à pós-meditação. Com a evolução da prática, podemos começar a conciliar a abertura da atenção, sem qualquer foco ou suporte, com a consciência do corpo em movimento no estiramento e na pós-meditação. É como se o corpo, ao estirar-se, fosse uma árvore que crescesse e se expandisse em pleno espaço, dele inseparável. A pós-meditação também pode começar a experimentar-se assim: estamos completamente abertos a tudo e ao mesmo tempo conscientes de cada coisa que fazemos.
3.4.2. Respiração integral ou do vaso Sentamo-nos com a coluna bem direita e camos uns momentos em meditação sem objecto. Alinhamos e vivenciamos então o corpo nos sete pontos, externos e internos, sempre pela ordem indicada. Estabilizamos a 107
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mente na atenção plena a todo o corpo ou numa região especíca e depois na respiração ao ritmo normal, durante uns breves momentos. Experimentamos agora um outro método respiratório, por vezes chamado respiração do vaso. Inspiramos mais longa e profundamente, começando por levar o ar bem para o fundo dos pulmões, de modo a que a região abdominal se dilate, e a partir daí enchemos a região intermédia, sentindo um alargamento do tórax, até chegarmos à zona superior, com uma ligeira elevação das clavículas e dos ombros. Sem reter a respiração com os pulmões cheios, começamos imediatamente a expirar, esvaziando primeiro o fundo dos pulmões, o que provoca uma ligeira retracção do abdómen, depois a região intermédia, com um ligeiro estreitamento do tórax, e nalmente a região superior, o que provoca o abaixamento das clavículas e dos ombros. Igualmente sem reter o ar com os pulmões vazios, começamos então de novo a enchê-los, conforme descrito. Enchemos sempre da base para o topo e esvaziamos também da base para o topo, em longas e profundas inspirações e expirações aproximadamente com a mesma duração. Se surgir o som natural do inspirar e do expirar mais profundos, deixamos que se manifeste. Ao mesmo tempo que sentimos os pulmões a encher-se e esvaziar-se integralmente, sentimos que a energia vital que impregna o ar se não limita aos pulmões e enche todo o corpo na inspiração, da ponta dos dedos dos pés à raiz dos cabelos, esvaziando-o na expiração, da base para o topo, para logo voltar a enchê-lo na inspiração seguinte e assim sucessivamente. É como se o corpo fosse um vaso que se enchesse e esvaziasse continuamente. Ao inspirar sentimos que o ar e a energia vital são como um bálsamo que nos impregna completamente, chegando a todas as dimensões do nosso ser – física, emocional, mental, espiritual - e regenerando-as plenamente, enquanto ao expirar abandonamos todas as doenças, emoções negativas, tensões, preocupações, problemas e xações mentais e emocionais, que se dissolvem no espaço sem prejudicar ninguém e sem deixar rasto. Procuramos agora acompanhar com atenção plena toda a experiência da inspiração e da expiração, bem como da energia a encher-nos e esvaziar-nos, como uma poderosa maré que sobe e desce, focando a mente em todas as sensações dessa profunda massagem interna, sempre sem 108
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comentários. Se nos distrairmos da experiência experiênci a do ar a entrar e a sair, estamos atentos a isso e regressamos imediatamente a ela. Estamos atentos à experiência da respiração integral, que constitui o nosso foco, e ao mesmo tempo conscientes de estarmos focados. Há assim uma função da atenção que está atenta não só ao foco, mas também ao estar focada e a atenção desdobra-se em vigilância pela qual a mente nota quando se afasta do foco e se envolve com outro objecto qualquer, cai no torpor ou se perde num turbilhão de pensamentos imprecisos. Mal damos conta disso, corrigimo-lo e restabelecemos a atenção nas longas inspirações e expirações, procurando mantê-la aí. Tentamos manter um estado de imobilidade física e mental, com uma concentração descontraída e clara, onde o foco, objecto ou suporte esteja sempre nitidamente presente. Tal como no método anterior, anterior, à medida que entramos mais nesta experiência sentimos que a percepção do corpo e de nós mesmos se aprofunda e amplia, diminuindo o sentimento de estarmos separados do quer que seja. Podemos no nal do exercício esquecer a absorção da energia e o abandono de tudo o que for negativo para entrarmos simplesmente na experiência de que ao inspirar acolhemos tudo quanto existe e ao expirar nos esvaziamos em tudo quanto existe. Ao inspirar e expirar somos inspirados e expirados ou expirados e inspirados por tudo quanto existe. Ao inspirar e expirar somos tudo quanto existe ou tudo quanto existe é nós. Findo o período de tempo destinado a esta sessão, entramos naturalmennatur almente na experiência aberta, sem objecto (e, à medida que avançamos, sem su jeito) e depois passamos à pós-meditação começando começando com o estiramento, estiramento, procurando sempre conciliá-lo com a abertura da consciência a 360 graus.
3.4.3. Outra alternativa Uma alternativa aos dois métodos anteriores consiste muito simplesmente em focar sobretudo a atenção numa longa expiração, à qual nos entregamos totalmente. Não nos preocupamos depois em inspirar, pois a inspiração vem por si. Neste caso, a expiração é naturalmente mais longa do que a inspiração e sentimo-la particularmente a nível abdominal. Ao expirar 109
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abandonamos todas as crispações e apegos e entregamo-nos entregamo-nos totalmente. Se preferirmos usar este método, começamos sempre como atrás descrito, pela meditação sem objecto e pela postura em sete pontos, mas passamos imediatamente dela para esta forma de respiração. Terminamos como sempre pela meditação sem objecto e pela pós-meditação com o estiramento no início.
3.4.4. Contar a respiração Um outro método, que pode ser usado com qualquer um dos três métodos anteriores e que pode ajudar-nos a manter a atenção mais focada na respiração, consiste em contar as vezes que se inspira e expira. Podemos contar mentalmente até dez, contando um por cada inspiração e expiração. Se vericarmos que perdemos a contagem, regressamos regressamos ao início. Se chegarmos a dez sem distracção, recomeçamos um novo ciclo de dez inspirações e expirações. O objectivo e a utilidade deste método consistem em oferecer mais um apoio à atenção para que esteja focada na experiência da respiração e não se distraia com outras coisas, como os pensamentos e os estímulos externos. Devemos por isso mesmo vericar se não nos distraímos também com a contagem, focando-nos apenas nela e diminuindo ou perdendo a atenção à respiração. Verica-se que a contagem é útil para algumas pessoas, ajuaju dando-as a concentrarem-se no respirar, enquanto para outras se converte num factor de distracção. Se for este o caso, devemos abandoná-la. Mas primeiro experimentamos várias vezes, até se tornar claro se ajuda ou não. Pode também acontecer que num determinado momento ajude e noutro não. Cabe a cada um de nós vericar se e quando contar a respiração é útil ou não para desenvolver a atenção plena e atingirmos o objectivo de pacicar e acalmar a mente, mantendo-a mantendo-a bem focada, descontraída e viva.
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3.5. Atenção plena aos fenómenos mentais Apresentamos agora um método que, a par da atenção à respiração, constitui um dos mais universais e importantes para acalmarmos e focarmos a mente, com a vantagem de constituir um passo fundamental para usufruirmos do potencial autocognitivo da experiência meditativa, unindo a calma, serenidade ou paz mental (śamatha ( śamatha ) à visão penetrante (vipaśyāna ),), a compreensão da natureza profunda das coisas e da mente que as percepciona. Começamos sempre pela presença aberta, sem foco e sem objecto, seguida pelo alinhamento e vivência dos sete pontos da postura externa e interna. Podemos depois dirigir a atenção, por breves momentos, para os dois suportes anteriores – o corpo e as sensações físicas e a respiração respiraçã o (usando o método respiratório que preferirmos, preferirmos, com ou sem contagem) – ou então focar logo a atenção naquele que for neste momento o mais ecaz para nós. Quando sentirmos que começa a haver alguma estabilidade mental, passamos então a uma dimensão ainda mais profunda, ampla e subtil de nós mesmos, que na verdade é composta por várias dimensões de cada vez maior profundidade, amplitude e subtileza em termos de consciência: referimo-nos àquilo que aqui a qui designamos em geral como “mente”. “mente”. O que fazemos é voltar a mente para si mesma, de modo a que se observe serenamente e a que aquilo que tantas vezes nos distrai, quando tentamos focar a atenção no corpo e na respiração – todo o turbilhão de pensamentos, palavras, imagens e emoções, ou seja, todos os fenómenos internos ou mentais – , deixe de ser um adversário para passar a ser um aliado. Os fenómenos internos ou estados mentais passam agora a ser o objecto ou o suporte onde focamos a atenção, a m de que a mente seja como um espectador sereno que contempla num ecrã toda a sucessão de pensamentos, palavras, imagens e emoções sem se identicar nem en volver com eles. Tentamos não nos identicar com eles abandonando o duplo hábito de considerarmos que somos os pensamentos que temos e que eles são “nossos”: na verdade a mente é muito mais vasta do que os fenómenos e estados mentais que nela se manifestam, que na maioria são involuntários; não temos (pelo menos neste momento) qualquer 111
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poder absoluto sobre eles, no sentido de os poder ter ou não quando desejamos e de os modicar a nosso bel-prazer. A não identicação com os fenómenos mentais torna mais fácil não nos envolvermos com eles, seja a nível conceptual – analisando, interpretando, julgando e colando-lhes rótulos, como “bom”, “mau”, “positivo”, “negativo, “agradável”, “desagradável”, etc. - , seja a nível emocional (os dois níveis são obviamente inseparáveis), reagindo-lhes com apego, aversão ou indiferença. Ao fazer isto constatamos haver algo em nós - uma dimensão mais profunda da mente e de nós mesmos, uma dimensão mais profunda da consciência - que tem a capacidade de contemplar apenas tudo o que surge na experiência interna, acolhendo-o tal qual se manifesta, sem analisar, interpretar, comentar, comparar, julgar ou conceptualizar e sem lhe reagir em função disso. Há nisto a que chamamos “nós” uma dimensão mais profunda e original da consciência que contempla todos os estados mentais e emocionais sem lhes impor os moldes e as formatações conceptuais e valorativas resultantes da nossa história pessoal em interacção com a educação, a cultura e o ambiente social e que constituem ltros ou lentes coloridas que desfocam ou tingem com os seus pré-juízos e pressupostos aquilo que surge tal qual surge. O “espectador” não é senão uma metáfora dessa dimensão mais funda da consciência que contempla com muita atenção tudo o que nela se manifesta, mas sem comentários, num profundo silêncio exterior e sobretudo interior, e sem reagir a isso, numa profunda paz, simplicidade e liberdade. Numa outra imagem, é como se esta dimensão mais funda da mente ou da consciência fosse um céu – vasto, ilimitado e naturalmente luminoso, porque naturalmente consciente – que contempla serenamente todos os pensamentos, emoções, palavras e imagens como nuvens – brancas, cinzentas ou negras, pacícas ou tempestuosas, lentas ou velozes, mas sempre apenas nuvens - que nele se formam, transformam e dissipam, sem deixar rasto e sem o perturbar minimamente, permanecendo sempre inalterável. Ou, noutra imagem ainda, como se essa dimensão correspondesse à visão de um mergulhador que contempla do fundo do oceano a superfície agitada do mesmo. Por maiores e mais violentas que sejam as vagas e as tempestades à superfície, o mergulhador contempla tudo isso 112
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do fundo sereno do oceano. Na verdade ele é o fundo sempre sereno do oceano e permanece imperturbável. E noutra imagem essa dimensão da consciência pode ser como uma criança que sorri em paz, feliz e divertida, contemplando o espectáculo dos pensamentos e de tudo o mais como meras bolas de sabão que pairam, brilham e utuam uns momentos no espaço para logo explodirem e se desvanecerem sem deixar qualquer rasto, como se nunca houvessem existido. Observamos assim todas as experiências mentais como o que realmente são: mera energia que assume todas as formas possíveis, que se transformam continuamente, dando lugar a outras ou desaparecendo por vezes no espaço mental, sem que nada imediatamente então se manifeste. Se houver muitos pensamentos, emoções, palavras e imagens, tudo bem. Observamos isso. Se houver poucos, tudo bem. Observamos isso. Se não houver nenhuns, tudo bem. Experimentamos isso e repousamos nesses momentos em que nada se manifesta, conscientes de que nada se manifesta, mas sem traduzirmos isso em qualquer pensamento. Por vezes experimentamos isto e surge o pensamento de que não estamos a ter pensamentos. Tudo bem. Observamos apenas esse pensamento e não acrescentamos mais pensamentos, não os procuramos e não camos na expectativa de ver quando aparecem. Repousamos neste espaço aberto, consciente e livre, sem pensamentos. Por vezes esta ausência de pensamentos pode manter-se durante um período mais ou menos longo. Outras vezes é algo que emerge entre um pensamento que passou e outro que ainda não chegou. Repousamos então nesse intervalo e nesse espaço de consciência livre de pensamentos. E, quando surgir algum pensamento, observamos apenas e deixamo-lo seguir o seu destino natural que é desaparecer. Não esquecemos todavia que o objectivo deste exercício não é não pensar, mas sim manter a mente atenta, calma, descontraída e clara, haja ou não pensamentos. Se ao observar os pensamentos e outros fenómenos mentais vericamos que nos estamos a envolver com eles e a produzir mais pensamentos, observamos isso, observamos o envolvimento e assim largamos o pensamento ou o fenómeno mental com o qual nos estamos a envolver. Ao fazer isto, deixamos de alimentar o uxo de pensamentos e com o tempo ele 113
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perde força, deixando também de parecer ocupar todo o espaço da natureza profunda e original da mente. Começamos a descobrir que os pensamentos e demais fenómenos ou estados mentais ocupam apenas uma área supercial e restrita da mente, cuja natureza profunda é muito mais vasta e na verdade ilimitada. Começamos a perspectivá-los de fora e assim o seu peso e importância relativizam-se, o que nos abre um espaço de visão ampla e grande paz e liberdade interiores. Vericamos que, mesmo que haja muitos pensamentos e emoções, e sejam eles quais forem – mesmo pensamentos e emoções habitualmente considerados muito “negativos” , podemos contemplar tudo isso numa paz profunda e experimentar que, se nada zermos a não ser observá-los, eles se mostram completamente inofensivos e não nos afectam minimamente, acabando por desaparecer pois não os alimentamos com a nossa identicação, envolvimento, juízos, censuras ou tentativas de os reprimir, desviar ou parar. Contemplamos todos os fenómenos que cruzam a mente como pessoas que entram e saem à vontade numa casa vazia, vendo que nada nos trazem e nada nos tiram. Ou então como crianças que brincam sem qualquer perigo junto de uma avó ou avô sábios que os observam sorridentes. Não nos identicamos com nenhum pensamento ou emoção, sejam convencionalmente “positivos” ou “negativos”, e não nos apegamos a uns rejeitando outros. São apenas pensamentos e evitamos deixar que uns nos exaltem e outros nos deprimam, pois facilmente constatamos que são todos impermanentes e que, se nos apegamos a pensamentos “bons”, “positivos” ou excitantes, cedo ou tarde se desvanecerão dando lugar a um sentimento contrário de carência, aborrecimento ou depressão. Se contemplarmos todos os fenómenos mentais com imparcialidade, sem procurar uns e evitar outros, a pouco e pouco descobriremos que isso nos conduz a um estado de profunda abertura, paz e felicidade, muito mais graticante e contínuo do que a excitação e o entusiasmo fugazes causa dos pelos pensamentos ditos “positivos”. Na verdade este exercício de atenção plena aos fenómenos mentais, sem identicação nem juízos, conduz-nos a uma descoberta de grande signicado e alcance para as nossas vidas: descobrimos que não somos nem temos os pensamentos ou emoções que experimentamos, mas que 114
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eles apenas passam por nós, ou seja, por esta dimensão mais funda e original da consciência que os observa em paz, sem com eles se identicar ou envolver. Descobrimos por exemplo que observar pensamentos de medo, angústia, apego e possessividade, orgulho, inveja, ciúme, avareza, avidez, raiva, cólera ou preguiça não faz de nós pessoas medrosas, angustiadas, apegadas, possessivas, orgulhosas, invejosas, ciumentas, avarentas, ávidas, raivosas, coléricas ou preguiçosas. E o mesmo se aplica aos pensamentos e emoções que habitualmente consideramos positivos: não é por observarmos pensamentos fugazes de sabedoria, compreensão, amor, amizade, compaixão, alegria, solidariedade, etc., que somos necessariamente pessoas sábias, compreensivas, amorosas, amigas, compassivas, alegres e solidárias, se estes estados não passarem de pensamentos e emoções passageiras a sentimentos mais profundos e estáveis, inerentes a outro patamar de consciência. Adiante veremos um poderoso método meditativo que nos ajuda a cultivar e desenvolver estes sentimentos, a troca . Contemplamos assim, com atenção plena, tudo o que surge constantemente na experiência mental, sem juízos, apego ou aversão. A pouco e pouco, quando os pensamentos, emoções, palavras e imagens emergem, começamos a vê-los como aves que levantam voo na vastidão do espaço, contemplando mais esse espaço do que aquilo que nele se manifesta, embora sejam inseparáveis. Esse espaço é já a natureza mais profunda da mente, da consciência e de nós mesmos, o ilimitado fundo sem fundo onde surgem, se transformam e desaparecem todos os fenómenos mentais e emocionais. Descobri-lo é descobrirmo-nos e encontrar, como na experiência da respiração, a dimensão livre, sã e aberta dessa natureza original e profunda a que podemos sempre regressar, quando sofremos por a esquecermos, encobrirmos e obscurecermos ao identicarmo-nos e envolver-nos com o que nela constantemente se manifesta e dissolve. Ao repousar a atenção nesse fundo sem fundo da mente, recuperamos um estado de consciência natural e original, anterior a todos os pensamentos e emoções resultantes da cção da separação entre nós e o mundo, entre nós e os outros, e por isso livre de ignorância, dualidade, medo, insegurança, apego, aversão ou indiferença. Ao repousarmos nele, é natural que continuem a surgir todo o tipo de experiências mentais e emocionais - que 115
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procedem do subconsciente, dos hábitos e tendências acumulados no passado e das preocupações e projecções presentes em direcção ao passado, ao presente e ao futuro - , mas contemplamos apenas e deixamos que se dissipem. Praticamos assim durante o tempo previsto e passamos então à presença aberta, sem sujeito, sem focalização ou direccionamento da atenção e sem objecto. No fundo estamos no mesmo estado natural e original de consciência que vamos descobrindo no exercício anterior, mas agora sem nos focarmos minimamente no que nele surge. Abrangemos todo o espaço a 360 graus à nossa volta e reconhecemos progressivamente que, mais do que o espaço físico, embora dele inseparável, é o espaço não-dual da própria consciência que experimentamos e que se abre e expande para a sua vastidão natural ao não se autolimitar por nenhuma focalização, que implica sempre construir uma aparente experiência dualista, com sujeito e objecto, afunilando, dirigindo, xando e limitando a consciência. Passamos então à pós-meditação, começando com o estiramento. O estiramento e a pós-meditação inscrevem-se cada vez mais na experiência aberta, que procuramos manter e conciliar com a atenção plena a tudo o que pensamos, dizemos e fazemos na vida quotidiana.
3.6. Atenção plena aos fenómenos “externos” Além do corpo e das sensações físicas, da respiração e dos fenómenos mentais, podemos também usar como objecto, suporte ou foco da atenção plena qualquer uma das percepções sensoriais habitualmente consideradas “externas” (na medida em que estejamos ainda dominados pela crença na dualidade e não tenhamos reconhecido que os fenómenos percepcionados são inseparáveis dos sentidos e da mente que os percepciona). Treinar deste modo a atenção plena é muito importante pois é fundamental para integrar a experiência meditativa na vida quotidiana e mostra que o objectivo da meditação não é fugir do mundo exterior e refugiarmo-nos no interior, mas sim o de superar a falsa dualidade entre interior e exterior e manter uma mente atenta e calma em todas as situações e circunstâncias. Daí também 116
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a já referida conveniência de nos irmos habituando a meditar com os olhos abertos, entre outras razões para evitar essa dualidade exterior-interior e fazer da meditação uma fuga e um ensimesmamento subjectivo.
3.6.1. Visão Procedemos como sempre – mas sempre pela primeira vez! - , começando pela meditação sem objecto e pelo alinhamento do corpo nos sete pontos. Ao chegar ao último ponto, a xação do olhar, escolhemos ou colocamos um pequeno objecto diante de nós, onde o olhar incidir, e focamos plenamente a atenção visual e mental nele. Pode ser um pequeno pormenor no chão ou no tapete à nossa frente, uma or, a chama de uma vela, uma moeda, um botão, uma pedrinha, etc. Convém que seja um objecto neutro, pequeno e simples, que não suscite apego, aversão ou outras emoções e que não estimule associações de ideias e imagens. Seja o que for, repousamos a atenção nessa percepção pura de uma forma, um volume e uma cor (ou cores, mas quanto menos melhor) e mantemos a mente onde está o olhar, sem comentários, interpretações, juízos, especulações ou fantasias. Deixamos uir os pensamentos que surgirem, sem lhes dar importância, mantendo o foco no objecto. Muitas vezes a natural criatividade mental tende a enredar-se em imaginações complexas a partir da coisa mais simples - fazendo de uma or um sol ou de uma pedrinha uma nave ou uma megacidade, como acontece com as crianças que ainda não perderam a imaginação devido ao excesso de brinquedos ou de jogos de computador... - , mas neste contexto tudo isso são apenas distracções que extraviam a atenção do foco e envolvem a mente num novelo de pensamentos que a agitam e obscurecem. Quando isso acontece, ou quando nos distraímos com outros pensamentos ou estímulos externos, damos conta da distracção e regressamos ao foco. Descansamos apenas o olhar no objecto, docemente, evitando contrair o centro das sobrancelhas e repousamos a mente na percepção visual. Tal como nos outros exercícios, procuramos estar simultaneamente conscientes do objecto e do focarmo-nos nele, de modo descontraído e claro. Se 117
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o objecto desfocar, é apenas uma experiência óptica (e não uma experiência mística! C). Voltamos a focar e continuamos durante o tempo previsto. No nal abandonamos o foco, entramos na experiência aberta o tempo que sentirmos conveniente e integramos nela a pós-meditação e o estiramento. Podemos usar este foco em qualquer momento da vida quotidiana, repousando o olhar e a mente na percepção de uma forma, uma cor ou um volume, tal qual surgem, sem nada acrescentar ou retirar aos fenómenos visuais. É um exercício muito simples, pacicador e discreto.
3.6.2. Audição Começamos como habitualmente, com a meditação sem objecto e a postura externa e interna, e se sentirmos ser mais conveniente dedicamos uns momentos a estabilizar a mente focando a atenção no suporte que for mais ecaz. A seguir abrimos a experiência auditiva de modo a acolher todos os sons que se manifestarem ou, o que pode ser mais fácil no início, escolhemos um determinado som ou tipo de sons, focando a escuta aí. Repousamos assim na experiência do som, mantendo nele a mente focada, descontraída e clara, sempre sem comentários, interpretações ou juízos. Estamos focados no som e ao mesmo tempo conscientes disso mesmo. Se nos distrairmos com pensamentos, outro tipo de sons que não o escolhido ou outros fenómenos sensoriais, tomamos consciência disso e voltamos pacientemente ao foco, satisfeitos por conseguirmos identicar e corrigir a distracção. Qualquer som pode e deve servir para este exercício e evitamos car dependentes dos sons que à partida julgamos e etiquetamos como “agradáveis”, rejeitando outros como “ruídos” e “desagradáveis”. Claro que podemos sentir-nos inspirados e graticados por meditar no som dos passarinhos a cantar, do vento a passar pelas árvores, de uma fonte a correr ou de uma música pacicante e favorita, mas podemos encontrar a mesma graticação nos sons urbanos, como o dos carros a passar, de um elevador a subir e a descer ou das pessoas a falarem, caso não os estigmatizemos à partida como algo desagradável a rejeitar. Na verdade o que nos incomoda 118
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nos ditos “ruídos” não são eles mesmos, mas a nossa interpretação deles como negativos e a consequente rejeição. O que nos incomoda nos ditos “ruídos” – e nos perturba também a experiência meditativa, quando tentamos focar a mente noutro objecto – é a nossa própria mente, ao julgá-los e recusá-los. No fundo, vendo bem - não só em relação aos “ruídos”, mas a tudo o que acontece - , quem se perturba sempre a si mesma é a mente, mediante os seus próprios juízos, interpretações e reacções. Jamais é algo exterior a si que a perturba. A este respeito costumo contar, nos meus cursos e workshops de meditação, duas histórias reais e bem exemplicativas. Uma, já antiga, passou-se com uma ex-aluna de meditação, hoje instrutora, que no decurso de uma aula, quando zemos esta meditação no som, me disse que tinha um grave problema, pois não conseguia dormir com o ruído intenso de um velho frigoríco avariado que não tinha possibilidade de reparar ou substituir. Sugeri-lhe que, em vez de se irritar e lamentar, se concentrasse antes no som do frigoríco, acolhendo-o, aceitando-o plenamente e usando-o como suporte da meditação, repousando nele a atenção. Assim fez e na aula seguinte apareceu muito contente, dizendo que tinha passado a adormecer embalada pelo som do velho frigoríco avariado. Uma outra história, recentemente contada por outro aluno, é bem elucidativa do mesmo. Um amigo seu, estrangeiro, comprou uma bela casa de campo em Portugal para aí viver permanentemente, com a grande expectativa de a desfrutar plenamente, pois o local era muito calmo e agradável. Porém, na primeira noite que lá cou, descobriu subitamente um rumor ao fundo que nunca havia percepcionado antes. Imediatamente pensou ser o ruído da auto-estrada e cou extremamente triste e deprimido, vendo o seu sonho de uma vida pacíca e feliz desvanecer-se num ápice e acreditando ter feito anal um péssimo negócio, que o condenava a viver com um som extremamente desagradável, contra todas as suas anteriores expectativas. Passado algum tempo neste tormento, o meu aluno visitou-o e, colocado ao corrente do problema, pôs-se a escutar atentamente o som e viu clara mente a sua natureza e origem. Não vinha de modo nenhum de uma auto-estrada, pois nenhuma passava ali sucientemente perto, mas sim do oceano, pois a casa cava de facto bastante perto da costa! Imediatamente 119
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o proprietário viu desfeito o brutal equívoco da sua percepção e cou ra diante, vendo que tinha feito uma compra ainda melhor do que inicialmente pensara e cando ainda mais entusiasmado do que antes com a sua casa! Estas duas histórias reais são exemplos eloquentes. Em nenhum dos casos o fenómeno “som” mudou, mas sim a percepção do mesmo, deixando de ser negativa, com a consequente aversão, o que fez toda a diferença, convertendo o tormento em prazer. Ambos os casos mostram o imenso poder que a mente tem e o modo como pode destruir ou agraciar e fazer orescer plenamente as nossas vidas. Ambos mostram, e sobretudo o segundo, como uma percepção e um juízo precipitados podem conduzirnos ao inferno e como a sua desmontagem nos pode devolver ao paraíso. Não serão no fundo semelhantes a estas tantas outras percepções e juízos sobre os acontecimentos, os outros e nós mesmos que tanto nos atormentam e fazem sofrer? Não viveremos dominados por ilusões sem qualquer fundamento real, das quais somos os únicos responsáveis para nosso enorme prejuízo? E não será possível pôr-lhes m, com um enorme benefício, nosso e de todos, sendo a meditação a via directa para isso? Parece evidente que sim. É assim importante que deixemos de discriminar entre os diversos sons, criando apego a uns e aversão a outros. De outro modo, caremos dependentes de determinado tipo de sons que não podemos ter sempre connosco e sofreremos com a presença de outros que não podemos evitar. Já vimos que meditação é em última instância um treino da mente para se libertar de toda a dualidade, discriminação e dependência (reconhecendo a não-separação e interdependência de tudo, incluindo a mente e aquilo que percepciona). Se não discriminarmos entre os diferentes sons, libertando a nossa percepção de apreciações subjectivas e reconhecendo em todos a mesma essência e energia de vibração sonora, podemos repousar em qualquer som que se manifeste em qualquer situação e circunstância da vida, o que constitui também um exercício muito simples, pacicador e discreto. Se nesta prática houver momentos em que nenhum som se manifesta, não o procuramos e não caímos na expectativa de ver quando surge. Ficamos apenas na experiência da mente aberta, sem qualquer apoio ou foco, e assim que surgir o som escolhido focamo-la nele. À medida que 120
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nos familiarizarmos com este exercício e sentirmos que a mente está mais estável, podemos começar a abri-la a todos os sons que se manifestarem à nossa volta. Podemos fazer isto na mesma sessão ou noutra. Ao fazê-lo, vamos sentir que a audição se amplia e que conseguimos detectar sons cada vez mais distantes, ínmos e subtis, antes imperceptíveis. Este exercício, além de desenvolver a concentração, clareza e paz mentais, aumenta também a nossa capacidade auditiva. Terminamos como habitualmente – mas sem hábito, sempre pela primeira e única vez - , com a meditação sem objecto e a pós-meditação com o estiramento da coluna.
3.6.3. Tacto Podemos também usar o sentido do tacto como suporte da experiência meditativa. Começamos pela presença aberta, sem objecto, alinhamos o corpo na postura externa e interna e podemos ou não estabilizar a mente num dos focos anteriores. Entramos então na atenção plena a um dos muitos aspectos da experiência táctil que estão sempre presentes, deixando ao mesmo tempo uma margem de atenção livre para estar consciente não só do foco mas de si mesma a focar-se. Podemos focar a atenção nas sensações provocadas pelo contacto das mãos uma sobre a outra ou em cima dos joelhos, pelo traseiro assente na almofada ou na cadeira, pelas pernas em contacto com o tapete ou pelas plantas dos pés coladas ao chão. Podemos sentir a roupa sobre o corpo ou a temperatura do ar na pele. Repousamos numa dessas sensações, lançando nela a âncora da atenção plena, acolhendo-a tal qual, sem tirar nem pôr, num estado de grande simplicidade e sensibilidade, livre de análises, juízos, especulações e comentários. Se a mente se extravia, recolocamos a atenção no foco e mantemo-la aí, sem mais esforço do que o mínimo indispensável. Com o evoluir da prática, podemos na mesma sessão ou numa outra começar a tentar abranger simultaneamente todas as experiências tácteis disponíveis. Abrimos completamente a experiência do corpo à sua conexão táctil com o mundo envolvente, sentindo a osmose da pele e do ser 121
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com tudo aquilo que através dela se percepciona. Passamos depois à meditação sem objecto e à pós-meditação nela integrada, a começar pelo estiramento da coluna. Fora das sessões formais podemos meditar no tacto em qualquer situação da nossa vida, focando plenamente a atenção em qualquer objecto que agarrarmos e sentindo toda a imensa riqueza da sua textura, forma, maleabilidade ou dureza, calor ou frescura nas nossas mãos. Podemos fazer o mesmo ao acariciar a mão, o rosto ou o corpo de alguém, ao fazer uma festa num animal, ao tocar num fruto ou numa planta, ao abraçar uma árvore, ao colocar as mãos numa superfície e ao caminhar, calçados ou descalços (exporemos isto mais em detalhe no subcapítulo dedicado à meditação em andamento). É particularmente graticante e rico explorar as sensações tácteis ao colocarmos plenamente atentos as mãos na água em movimento, sobre a terra, as folhas ou uma rocha. Há imensas possibilidades para a prática deste exercício, também muito pacicador, simples e discreto, que nos livra das complicações e elaborações mentais e nos reconecta com uma das dimensões mais sãs e elementares da experiência do mundo.
3.6.4. Olfacto Outro suporte possível é o sentido do olfacto. Após a presença aberta, sem objecto, e os sete pontos da postura externa e interna, podemos focar ou não a atenção no suporte que for mais ecaz para a estabilizar e passar daí para a experiência olfactiva que for mais evidente. Pode ser o odor do espaço onde estamos, o cheiro de comida ou o odor do nosso próprio corpo. Repousamos a atenção plenamente nele e na experiência de estarmos nele focados, sem discriminações, rótulos ou comentários. Todos os odores são odores apenas, puras experiências olfactivas, sem etiquetas. Se nos distrairmos deste foco passando a outra percepção ou se nos envolvermos em pensamentos sobre a experiência que estamos a ter, regressamos imediatamente à percepção pura do odor e repousamos de novo aí. Tal como com os outros sentidos, quando houver mais estabilidade podemos abrir a mente a todos os odores que se manifestarem simul122
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taneamente. Podemos praticar este exercício em qualquer circunstância, treinando a nossa sensibilidade para se abrir a todos os odores do mundo, desenvolvendo o olfacto. Como é natural, haverá neste caso uma maior tendência inicial para a discriminação entre os cheiros que achamos agradáveis e desagradáveis, com a consequente atracção por uns e repulsa por outros. Todavia, com a prática, podemos reconhecer que tudo isso são ainda projecções, condicionalismos e hábitos culturais dos quais a mente se pode progressivamente libertar. Concluímos como sempre, abandonando todo o foco na experiência aberta que integra depois a pós-meditação com o estiramento.
3.6.5. Paladar Uma experiência muito graticante é a atenção plena aos sabores. Na verdade será que alguma vez já estivemos verdadeiramente atentos aos sabores dos alimentos que ingerimos, apreciando a experiência sempre única de levar cada pedaço à boca e saboreá-lo plenamente? Ou comemos e bebemos quase sempre em piloto automático, perdendo o sabor das coisas no turbilhão de pensamentos que ruminamos enquanto mastigamos, extraviados nas memórias do passado, nas preocupações com o presente e nas expectativas quanto ao futuro, ao mesmo tempo que tentamos resolver todos os problemas da nossa vida ou acabar algum trabalho atrasado enquanto levamos maquinalmente o garfo ou o copo à boca? Se assim é, quantos sabores requintados e únicos estamos a perder desde que nos alimentamos? A palavra “sabedoria” tem a mesma raiz de “sabor”: será que há alguma sabedoria nesta desatenção constante ao sabor dos alimentos e da vida? Também aqui a atenção plena nos pode ajudar. Se estamos sentados numa sessão formal, passamos da meditação sem objecto aos sete pontos da postura externa e interna e estabilizamos a mente no foco que preferirmos. Trazemos então a atenção para o sabor da própria boca. Se virmos bem, a boca tem sempre um sabor, mesmo sem o vestígio do sabor de algum alimento que tenhamos ingerido há pouco tempo. Podemos aumentar 123
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a sensibilidade a ele passando a língua pelos lábios, pelos dentes, pelo palato e pelas várias concavidades e recônditos da boca. Repousamos a atenção plenamente nessas sensações, sem nos distrairmos com os pensamentos e sem lhes colocar etiquetas, acolhendo-as tal qual se manifestam. Estamos conscientes das sensações e do estarmos focados nelas. E é tudo. Numa variante deste exercício, podemos escolher um qualquer alimento como suporte da meditação gustativa. Sugiro uma passa de uva. Podemos desfrutar primeiro dela com os outros sentidos, começando pela visão. Pegamos na pequena passa e concentramo-nos plenamente na sua cor única, escura ou dourada, bem como em todos os pormenores da sua forma, rodando-a vagarosamente entre os dedos. Bem cientes disso, passamos a apreciar a sua textura, rugosidade, moleza ou dureza e todas as demais sensações tácteis que nos proporcionar. Entrando a fundo nisso, aproximamo -la agora lentamente do nariz e experimentamos a partir de quando o seu odor se faz sentir, crescendo à medida que se aproxima. Focamos a atenção plenamente no seu odor, sem distracção. Rodamo-la então de novo nos dedos, perto de nós, e vemos se conseguimos ouvir o som do seu movimento. Só agora chega o momento de a levar à boca. Começamos por encostá-la aos lábios e usufruir ainda das sensações tácteis que isso provoca. Detemo-nos um momento nisso. Só então a colocamos entre os lábios, aorando-a ligeiramente com a língua e sentindo as primeiras e subtis manifestações do sabor da sua pele. Sugamo-la muito lentamente para o interior da boca e vamos sentindo o avolumar do sabor, ainda sem a mordermos. Colocamo-la e rolamo-la sobre a língua, pressionamo-la contra o palato e levamo-la a todos os recantos da boca, sentindo que com o calor se começa eventualmente a desfazer e liquefazer um pouco, manifestando um sabor mais intenso. Voltamos a rolá-la sobre a língua e contra o céu da boca, estimulando as diferentes papilas gustativas. Só agora a mordemos, muito ligeiramente, fendendo-a um pouco. Sentimos o sabor líquido que ui a inundar de sensações subtis e únicas a língua e todos os recônditos da boca. Sugamo-la e entramos a fundo na experiência do sabor que nos invade a boca, a consciência e o ser. É todo um mundo que se desencobre das brumas da nossa distracção compulsiva. Mastigamos então muito lentamente a passa, sentindo cada momento da sua dissolução na saliva 124
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e o início da sua vagarosa deglutição, sentindo a sua substância e sabor a descerem pela garganta e a fundirem-se no mais íntimo do nosso ser. Tudo isto com a atenção plenamente presente, sem espaço para distracção com o quer que seja. Saborear e comer esta passa é aqui e agora a experiência mais importante e crucial da nossa vida. Se zemos isto sem ou com pouca distracção, podemos regozijar-nos e celebrá-lo como um acontecimento raro e grandioso, verdadeiro oásis de presença plena no deserto de um mundo zombie. E se comêssemos e bebêssemos sempre ou no mínimo um pouco mais assim? Podemos efectivamente fazê-lo, não necessariamente tão lentamente, mas com o vagar necessário para que a atenção se foque na experiência dos sabores e deixemos de passar ao lado desta experiência central da nossa vida. Aprendendo a saborear, seremos então um pouco mais sábios. Se estamos numa sessão formal, abandonamos por m o foco no sabor e abrimos a consciência a 360 graus na meditação sem objecto - repousando se possível na simples experiência de haver consciência - , na qual integramos então o movimento do corpo no estiramento da coluna e a pós-meditação. Tudo isto sempre pela primeira e única vez, com o espírito e o deslumbramento do eterno principiante.
3.7. Meditação sem objecto ou presença aberta com todos os sentidos despertos Após praticarmos um dos cinco exercícios anteriores, de atenção plena a uma das percepções sensoriais, podemos começar a treinar a seguinte variante da meditação sem objecto ou presença aberta. Se por exemplo acabámos de praticar a atenção plena a uma forma visual, abandonamos o foco e abrimos a mente completamente, repousando uns momentos na pura experiência de estarmos conscientes. Tentamos então conciliar isso com a abertura a todos os fenómenos visuais ao nosso alcance. Abrimos bem os olhos numa visão panorâmica que capta todas as formas, cores e volumes, numa experiência visual global, sem nos determos em nenhum objecto em particular e sem andarmos a passar de objecto para objecto. 125
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Repousamos a mente em toda a ampla riqueza daquilo que se vê. Após uns momentos assim, integramos agora a experiência de todos os sons em simultâneo, abrindo a audição a 360 graus, vivenciando como ela é bem mais ampla do que a visão, sem estar condicionada por nenhum ângulo de percepção e permitindo-nos escutar sons cada vez mais longínquos, cuja procedência é inacessível à vista. Tentamos conciliar a plena abertura da visão e da audição, vendo e escutando tudo o que há para ver e escutar, mas sempre numa percepção global e simultânea, sem passar de umas coisas para outras. Repousamos a mente uns momentos assim e depois abrimo-la à plenitude da experiência táctil. Sentimos o corpo sentado em contacto com a almofada e o tapete ou a cadeira e o chão, ao mesmo tempo que sentimos as mãos uma sobre a outra ou sobre os joelhos, a roupa sobre a pele e a temperatura ambiente, com a luz, o calor ou a frescura a envolver-nos. Sentimos tudo isso e ao mesmo tempo tudo o que se vê e ouve. Após algum tempo nesta experiência, abrimos agora o olfacto para o odor do espaço, de alguma coisa que nele haja e do nosso próprio corpo. E conciliamos isso com a abertura simultânea da visão, da audição e do tacto. A percepção do mundo torna-se cada vez mais ampla e rica. Repousando nessa percepção e usufruindo-a durante algum tempo, até nos estabilizarmos na experiência, abrimo-la agora a todos os sabores que surjam na boca, mesmo que sejam apenas os da própria boca. Percorrendo-a com a língua podemos encontrar diferentes sensibilidades e experiências gustativas, cuja subtil diversidade reconhecemos cada vez mais. E ao mesmo tempo tudo o mais que nos é oferecido pelos outros sentidos. Temos assim a mente e os cinco sentidos completamente abertos, numa abertura total da consciência em todas as suas dimensões. É uma experiência global e fresca do mundo, a sua experiência original, sem análises, comentários, interpretações, juízos, palavras, conceitos ou representações. É só depois, já no domínio do pensamento discursivo, que podemos por exemplo dizer que estamos a vivenciar a coincidência da unidade e da rica diversidade no mundo, na qual estamos integrados, sem qualquer separação. Na verdade, nesta experiência deixa de haver - como na anterior forma de meditação sem objecto ou presença aberta – observador, obser126
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vado e observação. A diferença é que, se agora repousamos igualmente no espaço aberto e ilimitado da consciência, este está mais profusamente preenchido com a totalidade das percepções sensoriais, muito vivas e frescas. Mais do que uma consciência aberta ao mundo, vivenciamos uma consciência-mundo, sem dentro nem fora, exterior ou interior. E há nisto um sentimento de despertar, energia e alegria selvagem, sem rótulos, losócos, religiosos ou outros. Mantemos esta experiência integrando a pós-meditação e o corpo em movimento ao estirar-se como outros tantos fenómenos que a vêm enriquecer, havendo mais coisas para ver – as mãos que se unem e erguem diante de nós - , ouvir – o som do corpo a estirar-se e da roupa a deslizar – e tactear – as mãos que se unem e entrelaçam, o deslizar da roupa, etc. Na verdade aqui deixa de haver a só aparente separação entre meditação e pós-meditação. Habituamo-nos a permanecer sem interrupção nesta grande plenitude da consciência-mundo, sem dualidade. Ou seja, sem ignorância e sem espaço para o medo, a insegurança, o apego, a avidez, a aversão e a indiferença.
3.8. Meditação em pé e a caminhar Outra forma de praticar a atenção plena, de preferência em complementaridade com a meditação sentada, é a meditação em pé e a caminhar. Podemos fazê-lo entre duas sessões de meditação formal sentada, em alternativa à pós-meditação com o estiramento, o que permite tornar o corpo mais confortável e prepará-lo para se sentar de novo. Podemos também praticar deste modo em qualquer circunstância da nossa vida e no meio das nossas actividades habituais. Se concluímos uma sessão de meditação sentada, entramos na experiência aberta, sem objecto, e a partir daí erguemo-nos com atenção plena a todo o movimento físico, sentindo bem tudo o que se passa no corpo e na musculatura pelo simples facto de nos erguermos. Estamos agora de pé, plenamente conscientes do que é estar de pé, pela primeira vez nas nossas vidas tão desatentas às coisas mais simples e essenciais da vida. Sentimos 127
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as plantas dos pés bem implantadas no solo, como uma árvore que lança fundas raízes no coração da Terra. Estamos conectados, inseparáveis do planeta e de tudo quanto nele vive. Estamos bem direitos, com os braços paralelos ao corpo, as mãos apontando o chão, sentindo toda a verticalidade da coluna que toca o céu no alto do crânio. Somos o eixo que liga céu e terra. Sentimos a energia que circula no interior da coluna e focamo-nos plenamente nesta experiência, sem nos distrairmos com pensamentos ou o quer que seja. Permanecemos assim o tempo que desejarmos, meditando com atenção plena ao estar em pé e fruindo todo o sentimento de estabilidade e rmeza que isso nos traz. Se estamos numa sala, rodamos agora o rosto e o corpo para a esquerda e voltamos as palmas de cada mão para a frente, sempre com os braços caídos paralelos ao corpo. Trazemos a atenção para os pés e começamos a caminhar, tão lentamente quanto possível, de modo a que possamos dar cada passo com atenção plena a todas as sensações produzidas pelo contacto de cada pé com o chão, ao erguer-se e ao pousar. É realmente a primeira vez que estamos a caminhar plenamente cientes do que estamos a fazer, sem piloto automático (e de cada vez que o zermos será sempre a primeira e única vez). Porventura foi assim que demos os primeiros passos, quando começámos a andar, mas depois o que foi uma experiência fresca, cheia do deslumbramento da primeira descoberta, converteu-se num hábito e numa rotina sem brilho, sem novidade e sem frescura. Como quase tudo na nossa vida desprovida de atenção plena... Se estamos numa sala fazemos o circuito completo da mesma, da esquerda para a direita, junto à parede, uma ou várias vezes. O olhar ca mergulhado no espaço vazio em frente e caminhamos com as palmas das mãos voltadas para diante, com atenção plena ao contacto de cada pé com o solo. Se houver desequilíbrio, o que é natural no início, podemos focar um pouco da atenção no centro energético que ca cerca de três centímetros abaixo do umbigo, sentindo que ao caminhar estamos a ser aspirados por aí e para diante. Sempre que caminharmos ou corrermos podemos focarnos neste centro e sentir que estamos a ser impelidos para diante a partir dele, o que reduzirá o cansaço e trará mais energia. Caminhamos com atenção plena a cada passo, tão lento quanto possível, 128
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com atenção plena ao movimento de cada perna, à região do pé que primeiro pousamos e à que se lhe segue, à região do pé que primeiro levantamos e à que se lhe segue, à textura, macieza, dureza, calor ou frescura do chão que pisamos, às mínimas sensações que isso provoca. Caminhamos acariciando e beijando a terra com as plantas dos nossos pés e a atenção plena que ela nos merece. Caminhamos muito sensíveis, usufruindo cada momento do caminhar. Caminhamos numa oferenda do movimento a todos os seres e ao universo, irradiando para o bem de todos a serena energia do caminhar consciente. Sentimos que ao caminhar brotam ores de lótus de cada ponto onde pousamos os pés. Começamos agora a tomar consciência de todas as sensações que ao caminhar se estendem de cada pé a toda a musculatura de cada perna e a todo o corpo. Sentimos que cada passo é dado com todo o corpo e sentimos o seu lento deslocar no espaço, como se soprado por uma brisa ligeira. Sentimos como cada pé é inseparável do solo, tal como o corpo é inseparável do espaço. Sentimos que não somos nós que caminhamos no mundo, mas sim o mundo que em nós caminha. Se nos distraímos com pensamentos ou outros estímulos, regressamos ao caminhar, às sensações nos pés, nas pernas e em todo o corpo. Se houver muitas distracções e agitação mental, é melhor focar a atenção sobretudo nos pés, ter um foco mais especíco que funcione como âncora da atenção dispersa. À medida que estabilizamos a atenção, podemos então ampliá-la dos pés para as pernas, destas para todo o corpo e deste para a sua inscrição no espaço, abrindo bem os sentidos a tudo o que nos rodeia. Caminhamos Aqui-Agora, sem meta nem objectivo, livres da expectativa de os atingir e do inerente medo de o não conseguirmos, com toda a ansiedade que isso provoca. Caminhando sem meta nem objectivo, a meta e o objectivo são atingidos a cada instante do caminho, a cada instante de atenção plena. Em cada passo que damos chegamos a casa, à casa da atenção plena. Sem pressa, ansiedade e stress. Sem competir com ninguém, incluindo connosco próprios. Sem nada nem ninguém a ultrapassar. Sem ir atrás de nada. Sem fugir de nada. Aqui-Agora. Caminhamos imóveis e em movimento. Em movimento imóvel. Em Paz. Se estamos numa sala fazemos um ou mais circuitos, sempre da es129
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querda para a direita, no tempo previsto. Se estamos num espaço aberto, caminhamos a nosso bel-prazer, sem uma direcção denida, deambulando pelo espaço sem outro objectivo senão o de manter sempre a atenção plena a cada instante do caminhar. Se estamos a praticar numa sessão formal, após o tempo denido entramos na experiência da atenção completamente aberta, sem qualquer foco, seja repousando na simples experiência do estar consciente, seja abrindo -a a todas as percepções sensoriais, como vimos em 3.7. Podemos fazê-lo continuando a caminhar, permanecendo imóveis em pé ou sentando-nos. Esta forma de meditação é muito simples e fácil de praticar em qualquer momento e circunstância da vida quotidiana. Podemos fazer este exercício sempre que podemos ou temos de caminhar um pouco, seja em nossa casa, na rua ou noutro espaço. Se for num lugar público, podemos caminhar não tão lentamente ou ao nosso ritmo normal, sendo mais fácil mantermos a atenção plena ao caminhar se o praticarmos em casa o mais lentamente possível. É particularmente interessante, graticante e vivicador fazer este exercício ao ar livre e com os pés descalços na terra, na relva, nas rochas ou dentro de água. É mais uma oportunidade e uma via para nos religarmos à natureza original e profunda, nossa e de tudo, encontrando a paz, satisfação e felicidade que tanto procuramos através de uma das actividades e experiências mais simples, elementares e naturais da nossa vida: estar em pé e caminhar. E é, tal como todos os exercícios anteriores, completamente gratuito! Que poupança, comparado com todo o dinheiro que gastamos para estar bem e ser felizes, sem jamais o conseguirmos e tantas vezes construindo apenas mais insatisfação, mal-estar, sofrimento e infelicidade, para nós e para os outros!...
3.9. Meditação deitada Podemos também meditar na posição deitada, sendo conveniente não confundir aqui o meditar com o me deitar C... Importa na verdade, ao praticar deitados, não cairmos no torpor e no sono. Para esse efeito convém treinar a mente para permanecer num estado de atenção plena bem 130
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alerta e vigilante com o corpo na posição sentada, que importa praticar sempre a par da posição deitada. Deitamo-nos com atenção plena a todos os movimentos, de preferência no chão ou num colchão rijo, sem almofada se for possível. Abandonamos o corpo completamente sobre a terra, com as pernas e os braços abertos cerca de 45 graus, as mãos com as palmas voltadas para cima ou para baixo, conforme preferirmos, na postura conhecida no Yoga como śavāsana . Os olhos podem no início car abertos ou fechados, como sentirmos ser mais ecaz, embora como vimos haja sempre vantagem em nos habituarmos a manter uma atenção plena e descontraída também com os olhos abertos. Relaxamos completamente o corpo, sentindo que pertence à Terra e que estamos deitados sobre todo o planeta, ao mesmo tempo que inscritos no imenso universo. Podemos então, nesta posição, usar qualquer um dos suportes da atenção atrás expostos na meditação sentada: todo o corpo ou uma parte do corpo, com as sensações externas e internas que aí se manifestem; a respiração, com um dos métodos apresentados e com contagem ou não; os fenómenos mentais; uma das cinco percepções sensoriais ou o seu conjunto; a presença aberta, sem objecto. Um outro método respiratório aqui particularmente adequado é respirar profundamente, sentindo o erguer e baixar do peito e do abdómen em cada inspiração e expiração. Concentramo-nos no foco escolhido, procurando manter uma atenção descontraída e clara ao mesmo e regressamos a ele sempre que nos distrairmos com outra coisa qualquer. Procuramos evitar cair no torpor ou no adormecimento. Se isso estiver a acontecer, abrimos (mais) os olhos e tentamos despertar e tornar mais viva a atenção. Após o tempo previsto, entramos na presença aberta, sem foco (se não estávamos já antes nela). A seguir passamos à pós-meditação, unindo igualmente as mãos ao inspirar, entrelaçando-as e estirando os braços acima e atrás da cabeça. Sentimos bem o estiramento da coluna e todas as demais sensações físicas, em três profundas inspirações e expirações. À terceira expiração dobramo-nos e erguemo-nos lentamente, sempre com atenção plena a toda a experiência.
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4. A Troca. Desenvolver amor e compaixão incondicionais e universais Além dos exercícios anteriores, que desenvolvem na mente a sua qualidade inata de atenção, tornando-a focada de modo estável, calmo e claro, para que nos proporcione uma vida mais satisfatória e um maior acuidade autocognitiva, há outros que despertam e desenvolvem - como indispensável complemento dos primeiros, para os mesmos ns e para uma relação mais ética com o mundo - as não menos inatas qualidades de sensibilidade, amor e compaixão que existem na nossa consciência e natureza mais profundas. Um dos mais potentes e ecazes – com resultados cienticamente comprovados em termos de activação do córtex pré-frontal esquerdo, região cerebral associada ao sentimento de autoconança e a outros sentimentos positivos - é o que passamos a descrever e se pode chamar Troca . Este exercício coloca a nossa capacidade de concentração, treinada e desenvolvida pelos métodos anteriores, ao serviço da transformação das emoções mais egocêntricas mediante o desenvolvimento do nosso potencial de amor e compaixão profundos. Expomos primeiro a forma mais completa de o praticar, numa única sessão, e no nal indicaremos outras formas alternativas, mais faseadas e graduais, caso esta não seja fácil no início. Começamos pela experiência livre de qualquer referência e focalização, numa abertura da consciência tão vasta como o espaço, sem outro suporte da atenção a não ser a própria experiência de estarmos conscientes. Deixamo-nos repousar nesta experiência original, sem pensarmos nisso. Vericamos então os sete pontos da postura física, externa e interna, assegurando que temos a coluna bem direita e que estamos descontraídos. As mãos estão abandonadas sobre os joelhos, com as palmas viradas para baixo. Centramos agora a atenção no centro do peito, na região do nosso coração energético e subtil. Podemos tocá-la com a mão e sentir algum calor. Concentramo-nos nela, sentimos e se possível visualizamos que aí se encontra uma pequena chama luminosa, que irradia luz e calor. Como se fosse a chama de uma vela ou um pequeno sol, de cor branca ou dourada. Sentimos e contemplamos que é a manifestação da nossa essência ou natureza mais profunda e, caso tenhamos convicções espirituais, religiosas 132
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ou losócas, podemos ver nessa luz a manifestação do que algumas tradições chamam Deus, Buda, Brahman, Tao, Ser, Absoluto, etc. Tentamos todavia senti-la e experimentá-la, mais do que nomeá-la e pensar sobre ela, evitando passar da experiência directa para a intelectualização que, ao colar rótulos naquilo que estamos a vivenciar, nos arrasta para dimensões conceptuais, verbais e mais superciais da consciência, que confundem e dividem em vez de esclarecer e unir.
4.1. Começar por si mesmo Sentimos então que essa chama luminosa está viva e que a sua vida é a nossa respiração ou, melhor, que é ela que em nós respira, inspirando e expirando continuamente. Sentimos e se possível visualizamos isso. Sentimos também que ao inspirar ela absorve em si, movida por profunda compaixão, tudo o que haja em nós que nos oprima e faça sofrer, a nível físico, emocional, mental e espiritual: todas as doenças, actuais ou latentes, todas as emoções e estados mentais negativos, todo o medo, angústia, ansiedade, preocupações e problemas. Tudo isso é absorvido das mais fundas entranhas do nosso ser e, mal toca a luz do coração, nela se funde, transformando-se imediatamente na própria luz, sem a afectar minimamente. Começamos imediatamente a expirar, sentindo que é a luz que em nós expira e que ao expirar se irradia, plena de amor, impregnando-nos completamente e oferecendo-nos tudo o que for melhor e mais necessário neste preciso momento (o que não coincide necessariamente com o que desejamos, pois, dominados por todo o tipo de obscurecimentos, muitas vezes desejamos o que é inútil ou nocivo). Todas as células, recônditos e dimensões do nosso ser são penetrados e iluminados pela luz que, agora na sua manifestação amorosa, nos oferece e em nós desperta toda a saúde, harmonia, paz, bem-estar, felicidade, amor, compaixão e sabedoria. A luz oferece-se despertando em nós a si mesma, todas as qualidades da nossa natureza luminosa original. Sentimos que, ao inspirar e expirar assim, esta luz absorve e transmuta em si todo o sofrimento e suas causas – a ignorância de quem verdadei133
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ramente somos, o medo e a insegurança, o apego, a avidez, a aversão e a indiferença, todos os estados mentais e emocionais daí decorrentes, todas as tendências negativas e as suas manifestações físicas em todo o tipo de problemas e doenças – e irradia o contrário de tudo isso, todo esse bem profundo que, consciente ou inconscientemente, sempre procuramos. Se isso não nos perturbar, podemos visualizar que ao inspirar a luz absorve em si, compassivamente, toda a negatividade como um fumo cinzento escuro que nela se dissolve e transmuta, aumentando ainda mais o seu poder benéco e a qualidade viva, radiante e curativa da sua irradiação amorosa ao expirar. Ao fazer isto sentimos e contemplamos que esta luz que no fundo somos começa a dissolver o denso e opaco véu da ignorância de quem somos e da indiferença ao nosso bem e felicidade profundos, que tantas vezes trocamos pelo apego a prazeres efémeros que muitas vezes se revelam nocivos e só nos conduzem a cada vez maior frustração e insatisfação.
4.2. Incluir os entes queridos Praticamos assim durante algum tempo até sentirmos que o corpo e todo o nosso ser se começam a tornar transparentes, luminosos e irradiantes. Somos agora pura energia luminosa. Isto pode não ser imediato e claramente visível, mas podemos senti-lo com a ajuda da visualização, como uma forma de imaginar, não uma fantasia, mas a nossa realidade profunda. Quando nos sentimos e vemos como um sol irradiante, é o momento de pensarmos naquele ser ou seres pelos quais neste preciso momento experimentamos um amor ou compaixão mais incondicionais, ou seja, mais livres de desejo e expectativa de retribuição e reconhecimento, mais livres de apego e possessividade. O amor e a compaixão são as duas faces de um mesmo sentimento e aspiração, respeitando o primeiro mais especicamente ao desejo de que alguém seja feliz com as causas profundas da felicidade e a segunda ao desejo de libertar alguém do sofrimento e das suas causas. Pensamos nesse ser ou seres, sentimo-los, visualizamo-los bem presentes diante de nós. Podem ser humanos ou animais e já terem partido 134
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desta existência. Eles estão aqui e agora, porque a mente e a consciência mais profunda (o que alguns chamam o espírito), o amor e a compaixão não conhecem tempo nem espaço. Para eles nunca há limites, separação ou distância. Podemos fechar os olhos, se preferirmos, para melhor vermos e sentirmos quem está agora mesmo aqui, bem presente e vivo, diante de nós. Contemplamos e sentimos então todas as suas dores, sofrimentos e diculdades, físicos, emocionais, mentais e espirituais, com as suas causas mais profundas e internas, todo o autodesconhecimento, medo, insegurança, avidez, apego, aversão, indiferença e toda a negatividade que antes contemplámos em nós mesmos. Contemplamos nesse ser ou seres tudo o que haja ou possa haver de sofrimento e causa de sofrimento, por nós e por eles conhecido ou desconhecido, actual ou latente. Deixamos assim que se manifeste e desenvolva naturalmente o nosso potencial de compaixão, aspirando do fundo do coração a libertá-lo ou libertá-los completamente de tudo isso. Podemos em alternativa sentir e focar-nos mais no amor, no desejo de que esse ser ou seres sejam imensamente felizes, não com um bem-estar ou prazer fugazes e condicionados, que necessariamente os deixarão sempre e de novo na insatisfação e no sofrimento, mas com as causas profundas da felicidade, ou seja, a sabedoria, a paz, a alegria e a satisfação com o ser e não o ter, o amor e a compaixão por si e pelos outros. Quando sentirmos a emergência desse amor e/ou compaixão, sentimos que a luz no fundo do nosso coração começa então a inspirar e, lenta e profundamente, absorve em si todo o sofrimento, negatividade e obscurecimentos, simultaneamente em nós e no ser ou seres que estão diante de nós. Visualizando ou não o fumo cinzento escuro, sentimos que tudo isso se funde na luz que somos, a qual imediatamente começa, na expiração, a irradiar todo o bem e tudo o que for melhor e mais necessário, neste preciso momento, para nós e para quem está diante de nós, banhando-nos e impregnando-nos igualmente com uma imensa paz, saúde, bem-estar, felicidade e sabedoria onde se dissipam todas as diculdades e sofrimen tos materiais, físicos, emocionais, mentais e espirituais... Ao fazer isto, sentimos que esta luz que no fundo somos, esta luz da nos135
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sa natureza original e profunda, começa a dissolver a só aparente solidez da carapaça de ignorância, medo, insegurança, autoprotecção e egocentrismo que nos leva a ver-nos e sentir-nos separados dos outros e tende a gerar o apego à ideia de uma felicidade egoísta e a rejeitar o sofrimento para eles, recusando ou temendo tomá-lo em nós, mesmo que por vezes sejam os entes que consideramos mais queridos. À medida que assim praticamos, concentrados e sentindo o efeito da abertura compassiva e amorosa, sentimos que podemos na verdade dissolver os nossos só aparentes limites e ganhamos conança nesta capacidade de nos abrirmos cada vez mais. Sentimos o que está a acontecer, o crescer do sentimento de conexão e não-separação com quem está diante de nós, a dissolução do egocentrismo e o sentimento de alegria e realização que isso nos traz. Sentimos e vemos a profunda transformação que se opera… Este ser ou estes seres que tanto e cada vez mais amamos tornam-se saudáveis, radiantes, plenos, felizes. E nós experimentamos essas mesmas plenitude, alegria, saúde e felicidade, que irradiam através de cada poro do nosso corpo e num sorriso que nos oresce nos lábios. Praticamos assim durante algum tempo, aprofundando cada vez mais a experiência como uma oportunidade extremamente preciosa e graticante. Convém não a vermos como um sacrifício ou uma obrigação, de carácter moral ou religioso, mas antes como um acesso directo à plena realização das nossas melhores aspirações e potencialidades, desenvolvendo e manifestando o melhor que há em nós ao mesmo tempo que desejamos e realizamos o bem dos outros, pois começamos a sentir e experimentar cada vez mais a não separação entre nós e os outros.
4.3. Incluir os que nos são indiferentes Passamos então a outro ser ou seres, nossos conhecidos, em relação aos quais temos uma atitude sobretudo neutra e indiferente, não lhes querendo bem nem mal. Podem ser vizinhos, colegas, empregados dos cafés, lojas ou restaurantes que frequentamos, guras públicas, animais sem ser os nossos ou aqueles de quem gostamos. Contemplamo-los como aquilo 136
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que são, seres dotados de consciência e sensibilidade, seres sencientes que - exactamente como nós e os entes queridos que acabámos de convidar para objecto do nosso amor e compaixão - não desejam senão ser felizes e não sofrer. Imaginamo-los e sentimo-los assim diante de nós, ao lado dos que mais amamos, tomando consciência que são inseparáveis uns dos outros e de nós mesmos. Podemos mesmo contemplar que no mais fundo do coração destes novos seres estamos nós próprios e aqueles que nos são mais queridos. Esta tomada de consciência abre-nos naturalmente ainda mais o coração e sentimos que a luz que somos começa agora a inspirar o sofrimento, a transmutá-lo e a expirar a felicidade abrangendo igualmente todos os que estão diante de nós e a nós mesmos. A experiência aprofunda-se e amplia-se e tentamos aumentar a motivação e a concentração, conciliando-a com uma profunda descontracção. Vivemos a crescente alegria, entusiasmo e calor de um coração que se abre, de uma respiração que se converte em bálsamo da dor, de uma consciência que se torna cada vez mais vasta e abrangente. Sentimos que agora se dissolvem as falsas barreiras do apego a nós e aos nossos entes queridos e da indiferença aos outros e que os aparentes limites do ego desaparecem cada vez mais dando lugar à crescente manifestação da nossa ilimitada natureza original, vasta e profunda, alheia a qualquer separação e discriminação entre pessoas ou seres.
4.4. Incluir aqueles por quem sentimos aversão Após algum tempo, quando esta experiência se estabiliza, passamos se possível a evocar aquele ser ou seres que neste momento mais percepcionamos como negativos e que assim mais aversão e repulsa nos causam, na medida em que os vemos como as piores pessoas e/ou como os piores inimigos, adversários ou rivais, mas que na verdade podemos constatar que só surgem como tais em função dos nossos limitados juízos e conceitos e da própria aversão com que os percepcionamos. Se virmos bem, talvez possamos vericar que, independentemente do que pensem, digam ou façam, só surgem como objectos de aversão para o ego, essa cção da consciência que nos leva a julgar-nos sempre separados e distintos 137
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dos outros e mais importantes do que eles, tentando sempre autoproteger-se ou autopromover-se e tornando-se assim extremamente vulnerável perante todos os que ignorem, ponham em causa, contrariem ou ameacem essa auto-importância, autoprotecção e autopromoção. Vendo as coisas objectivamente, ou seja, fora da perspectiva do ego, talvez não seja propriamente o que os outros pensam, dizem ou fazem que nos fere, mas sim isso que em nós os vê como separados, se apega à ideia da sua própria importância, se tenta autoproteger e autopromover a todo o custo e reage com medo, insegurança e aversão a tudo o que supostamente o contraria. Nesta perspectiva, o que nos fere não são os “outros”, mas sim o “nosso” próprio ego... E talvez não seja a negatividade dos outros que causa a nossa aversão a eles, mas sim a nossa aversão a eles que nos leva a percepcioná-los como negativos... Dito isto, é claro que há seres que têm comportamentos objectivamente muito negativos, fazendo sofrer de forma cruel muitos outros seres e que a aversão que por eles por vezes sentimos não tem a ver com o mal que nos fazem, mas sim com o mal que fazem a terceiros e que podem não ser sequer os nossos entes queridos, próximos ou amigos. Mesmo assim, todavia, ao sentirmos aversão por seres deste tipo, seja porque supostamente nos fazem sofrer ou fazem sofrer outros, a mesma cção do ego que se imagina deles separado não nos deixa ver que se o fazem é porque estão igualmente a sofrer e igualmente dominados, tal como nós, pela ilusão da separação, do egocentrismo, do apego e da aversão, que os leva a procurar a felicidade dessa forma nociva aos outros e a si mesmos. No fundo não fazem senão - embora talvez, mas não necessariamente, a uma maior escala, mais visível e porventura mais negativa - aquilo que nós próprios e os nossos entes queridos fazemos, na medida em que vivemos pouco conectados com a nossa natureza profunda, a desconhecemos e nos deixamos ainda condicionar pelo egocentrismo e pelas emoções dualistas e destrutivas dele resultantes. No fundo, se virmos as coisas desapaixonadamente, e por isso de modo mais verdadeiro, esses seres que percepcionamos como tão negativos e com tanta aversão são apenas seres ainda imperfeitos, tal como nós e aqueles que mais amamos. É por isso, e para dissolver agora as muralhas da aversão, da raiva e do 138
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ódio com que a cção do ego nos separa da nossa natureza profunda, que convidamos esses seres, consideramos que estão diante de nós, junto com os nossos entes queridos e conhecidos, e deixamos que a luz no centro do coração, a luz de quem realmente somos, nos abra a eles, estendendolhes a mesma compaixão e amor que sentimos por nós e pelos outros. Podemos sempre considerar que esses seres de quem nada gostamos ou que odiamos estão no íntimo do coração dos nossos entes queridos e dos outros, sendo inseparáveis deles e de nós próprios. Ou então que nós e os nossos entes queridos estamos no centro do coração desses seres que por agora nos causam tanta aversão. O importante é enfraquecer as barreiras da separação ctícia, para nosso bem e de todos. Decisivo é também reconhecer que esses seres nos estão a oferecer a imensa oportunidade de, ao desenvolvermos amor e compaixão por eles, não só nos libertarmos da aversão, da raiva, do ódio, do ressentimento e de todo o sofrimento que isso provoca, mas desenvolvermos ainda um amor e uma compaixão mais puros e genuínos, livres dos limites ainda egocêntricos daquele amor e compaixão que se limitam àqueles de quem gostamos e que gostam de nós, com toda a liberdade, felicidade e sentimento de profunda realização que esse aprofundamento e expansão do amor e da compaixão nos traz. Na verdade, os seres por quem sentimos aversão estão a oferecer-nos a oportunidade única de desenvolvermos o potencial de bondade incondicional inerente à nossa natureza original e profunda e sem o qual não nos podemos realizar plenamente. Se tomarmos verdadeira consciência disto, não podemos deixar de sentir uma gratidão e um apreço innitos por todos os seres que por enquanto percepcionamos como ne gativos, adversários ou inimigos. Se tomarmos verdadeira consciência disto, deixaremos de ver seres negativos, adversários ou inimigos, pois seres como eles estão na verdade, para além da realidade aparente, a oferecer uma ocasião a nós e a todos de desenvolvermos o amor, a compaixão e a bondade universais e incondicionais sem os quais permaneceremos sempre em maior ou menor sofrimento, aquém da plenitude e da perfeição a que pode chegar um ser humano, com toda a grande felicidade inerente. É todavia perfeitamente natural que seja difícil ou não seja imediatamente possível convidar para esta prática os seres pelos quais sentimos maior 139
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aversão, pois isso pode perturbar-nos ou gerar uma quebra na motivação e na concentração. Se isso acontecer, não nos culpabilizamos, aceitamos os nossos limites actuais, conscientes de que são limites provisórios, que podem a pouco e pouco, com algum tempo e esforço, ser ultrapassados. Nesse caso, pensamos antes em alguém que suscite ainda alguma aversão, mas que seja suportável e permita trabalharmos para a reduzir, sem pre juízo da calma e concentração necessárias à prática deste exercício. Começamos por aqui e um dia chegaremos a todos os outros. Seja como for, praticamos com a coragem e a profunda alegria de nos libertarmos do ódio, da raiva e do ressentimento, que só nos envenenam e fazem sofrer, a nós e aos outros (“Odiar é tomar veneno esperando que o outro morra”, escreveu Shakespeare). Praticamos com a coragem e a profunda alegria de superarmos esses aparentes limites e os convertermos em limiares de acesso a uma dimensão maior, melhor e mais real de nós mesmos. Pensamos nesses seres “difíceis” e sentimos a profunda gratidão por serem eles quem nos permite tomarmos consciência dos nossos limites e superá-los, por serem eles quem, através deste exercício, nos permite evoluir mais e mais rapidamente, libertando-nos de toda a ilusão, negatividade, rancor e ressentimento que nos levam a percepcionar seres como nós como inimigos e adversários e a sofrer e fazer sofrer terrivelmente com isso. Abrimo-nos então à luz da nossa natureza profunda ou deixamos que ela nos abra a si mesma. Deixamos que esta luz, livre de toda a dualidade, separatividade, apego, aversão e indiferença, dissolva os muros do nosso ser ou identidade ctícios, praticando pelos três tipos de seres, como se fossem um só e inseparáveis de nós, sem qualquer discriminação nem hesitação e ainda com mais empenho e entusiasmo, desenvolvendo um sentimento de profunda alegria e imparcialidade no amor e na compaixão. É por todos, igualmente, sem preferências nem exclusões, que a luz em nós compassivamente inspira nuvens escuras de ilusão, negatividade e dor, expirando amorosamente luz branca ou dourada, sábia e benfazeja, mostrando o nosso coração como o mais precioso e poderoso forno alquímico, o elixir de imortalidade ou a jóia preciosa que realiza todas as mais fundas e nobres aspirações e manifesta a nossa saúde e natureza mais autêntica, original e universal. 140
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4. 5. Incluir todos os seres e todo o unimultiverso Quando a prática se estabilizar neste nível e sentirmos a dissolução da aversão, experimentamos que a luz se dilata cada vez mais, como em esferas concêntricas que manifestam a natural tendência do amor e da compaixão para se expandirem ilimitadamente. A luz abre-nos cada vez mais, somos cada vez mais dela inseparáveis e abrangemos cada vez mais seres, inspirando negatividade e sofrimento, transmutando-os em luz e expirando-a numa irradiação incessante e inesgotável de paz, felicidade e tudo o que for a cada momento melhor e mais necessário para cada um e para todos. A luz que somos abrange agora, além dos anteriores, todos os seres humanos e não humanos, visíveis e invisíveis - seja qual for a forma que tenham, seja o que for que pensem, digam ou façam - , que habitam o lugar onde estamos… a nossa casa e o inteiro edifício… o quarteirão... o bairro… a povoação ou cidade… o país… o planeta, com todos os que habitam sobre a terra, debaixo da terra, nas orestas, ares, rios, lagos e mares… a galáxia… e, enm, o inteiro unimultiverso! Abrimos este coração luminoso, este cora ção-luz, a tudo e todos, absorvendo nele toda a negatividade, trevas, dores e sofrimentos de todos os seres e mundos – todas as doenças, cancros e sidas, todos os medos, angústias e loucuras, todas as solidões, torturas e misérias, todas as ilusões, desgraças e mortes - , transmutando-os em luz, paz, saúde, felicidade e plenitude cada vez mais poderosas e irradiantes. Praticamos, pelo bem relativo e absoluto de todos os seres, pela satisfação das suas necessidades básicas e imediatas, pelo seu bem-estar e pela sua suprema felicidade, realização, despertar e libertação. É a própria luz da nossa natureza profunda e original que pratica pelo bem de todos, imparcialmente, sem qualquer excepção. O nosso coração, do tamanho do unimultiverso sem tamanho, é uma festa e um festim cósmicos, eternos e innitos, sem espaço nem tempo, para o qual todos são convidados. Neste preciso instante, a cada instante e sempre. Praticamos assim e sentimos que nesta prática – suprema forma de acção, absolutamente discreta e invisível – tudo se revoluciona e transmuta: o mundo, a percepção de nós e do mundo, todos os seres e coisas. Tudo o que a luz toca nela imediatamente se converte. A mente, a consciência e 141
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o coração, todas as dimensões do nosso ser, transformam-se na própria luz que irradiam e nada percepcionam senão luz… Uma luz innita, subtil e viva, livre, consciente e sensível, pujante de energia, amor e compaixão, na qual por m, numa longa e profunda expiração, todos os seres e fenó menos se dissolvem, incluindo nós próprios. Tudo se absorve num estado sem qualquer conceito de eu, de outro e de prática, de sujeito, objecto e sua relação. Uma imensidão luminosa, sem centro nem periferia, sem interior nem exterior, sem superior nem inferior, sem isto ou aquilo. Um innito esplendor. O Coração da Vida. Para além de qualquer palavra, conceito ou imagem. Absorvemo-nos e repousamos o mais possível nesta experiência. Ao vivenciar isto, podemos começar a sentir e ver por nós próprios, directamente e não porque alguém nos diz que é assim, o que é mais real e nos faz sentir mais plenos e realizados: o estado glorioso em que repousamos no nal deste exercício ou o estado dito “normal”, dominado pelo sentimento de separação e desconexão e por todo o tipo de medo, insegurança, apego, aversão e indiferença.
4.6. Prática gradual da Troca e sua integração na vida quotidiana Podemos praticar tudo isto numa única e mais longa sessão, que pode levar até cerca de 20 minutos, ou então praticar gradualmente, começando por durante algum tempo, uma semana ou mais, conforme sentirmos necessário, praticar apenas por nós próprios, depois por nós próprios e pelos entes queridos, depois acrescentar alguém conhecido e que nos é indiferente, alguém por quem sentimos aversão, etc., até abrangermos no nal todos os seres, conforme agora exposto. Se praticarmos a troca gradualmente e nos focarmos numa sessão apenas em alguns seres, convém contudo que no nal sintamos sempre que a luz que irradiamos se estende a todos os seres, sem qualquer excepção. Isso aumenta o poder da prática e o seu benefício para nós, para aqueles que visamos e para todos. Mesmo sem integrar todas as categorias de seres, devemos sempre culminar na universalidade, na imparcialidade e na não-discriminação. Ou seja, na natureza profunda e original, nossa e de tudo. 142
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Cremos que se justica citar aqui uma passagem de Einstein. O exercício da Troca é a passagem desta visão à prática: “Um ser humano é parte do todo por nós chamado “universo”, uma parte limitada no tempo e no espaço. Nós experimentamo-nos, aos nossos pensamentos e sentimentos, como algo separado do resto – uma espécie de ilusão de óptica da nossa consciência. Esta ilusão é uma espécie de prisão para nós, restringindo-nos aos nossos desejos pessoais e ao afecto por algumas pessoas que nos são mais próximas. A nossa tarefa deve ser a de nos libertarmos desta prisão ampliando o nosso círculo de compreensão e de compaixão de modo a que abranja todas as criaturas vivas e o todo da Natureza na sua beleza”91. Após nos absorvermos na luz e aí repousarmos o mais possível, fazemos a dedicatória que a seguir se expõe, enquanto a experiência está plena e fresca e antes que pensamentos, percepções e emoções dualistas ressurjam. Passamos depois à pós-meditação, com o estiramento da coluna, sempre pela primeira vez. Ao praticarmos este exercício, convém na pós-meditação e na vida quotidiana recordar que os seres que a cada momento e em todo o lugar percepcionamos e com quem continuamente nos relacionamos são estes mesmos seres por cujo bem estamos a praticar, estendendo-lhes o nosso amor e compaixão profundos. Vendo-os assim e sentindo toda a gratidão por nos estarem a possibilitar o desenvolvimento das nossas melhores qualidades e a realização da nossa natureza profunda, veremos ser bem mais fácil apreciá-los – pensem, digam ou façam o que pensarem, disserem ou zerem – e superar todas as relações difíceis, tensas e problemáticas. Vendo-os assim, podemos mesmo reconhecê-los como os nossos mestres mais sublimes, a quem podemos e devemos estar gratos por nos permitirem a cada instante reconhecer e superar os nossos limites, em termos de compreensão, amor e compaixão. Além disto, o essencial é recordar o nal deste exercício e contemplar ao longo da nossa vida e em todas as circunstâncias, situações e aconteci91. EINSTEIN, The Expanded Quotable Einstein , Princeton University Press, 2000, p.316.
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mentos que nós, todos os seres e todas as coisas não somos senão manifestações diferenciadas desta luz primordial, original e não-dual onde nós e o mundo nos absorvemos. Todos os fenómenos e corpos físicos, todos os sons e energias, todas as experiências mentais, emocionais e da consciência mais profunda não são senão essa mesma luz em diferentes níveis de vibração e manifestação. Tudo neste sentido é puro, perfeito e sagrado. Ver e viver assim é viver desperto e livre e esta vida desperta e livre, à medida que aprofundarmos a experiência da sua perfeição e plenitude, não pode deixar de se manifestar num amor e numa compaixão crescentes, espontâneos e incondicionais por todos os seres. Ver e viver assim é habitar o Coração da Vida. Esta meditação – conhecida na tradição budista pali como mettā bhā vanā , literalmente “cultivo do amor bondoso”, e na tradição budista tibetana como tonglen , “receber e dar” 92 - está a ser usada por psicólogos e neurocientistas para estudar o efeito deste sentimento sobre a mente, o corpo e o comportamento humanos. Uma experiência conduzida por Barbara Fredrickson, com um grupo de pessoas que nunca haviam praticado meditação e que praticaram mettā bhāvanā vinte minutos por dia durante sete semanas, mostrou que ao m deste tempo, e por comparação com um grupo de controlo de não-praticantes, os primeiros sentiam mais amor, entusiasmo, serenidade, alegria, esperança, gratidão e satisfação com a vida. Estes efeitos estenderam-se a partir das sessões diárias ao longo do dia e aumentaram à medida que o tempo passava. Vericou-se também que este exercício, além de activar o córtex pré-frontal esquerdo, região cerebral associada aos sentimentos positivos, aumenta o tónus vagal (relacionado com a actividade do nervo vago, que liga o cérebro ao coração e a outros órgãos). A investigação constata que pessoas com um tónus vagal elevado se adaptam melhor física e mentalmente a circunstâncias em mutação e são mais aptas a regular os processos siológicos internos (açúcar no sangue, resposta às inamações, etc.), tal como as suas emoções, atenção e comportamento. Estão menos sujeitas a crises cardíacas e acidentes vasculares cerebrais, têm o sistema imunitário mais robusto e contraem 92. Veja-se uma apresentação concisa do tonglen em Yongey MINGYUR RINPOCHE, A Alegria de Viver , pp.217-218.
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menos diabetes, bem como vários tipos de câncer 93. Constata-se hoje cienticamente o que as grandes tradições espirituais da humanidade armam desde há milénios: que o amor, a compaixão e a bondade, em vez de serem sinais de fraqueza, nos tornam mais sãos, resilientes, fortes e felizes. Perante isto, o professor e psicólogo Paul Ekman propõe que se criem “ginásios do amor altruísta”. Faz todo o sentido. Se vamos ao ginásio para manter a boa forma física, porque não treinar diariamente a boa forma espiritual, cultivando o amor bondoso, que pelos vistos tem ainda um efeito benéco sobre a saúde física que nenhum treino do corpo consegue ter? E o ginásio do “amor altruísta” pode ser a nossa casa ou qualquer outro lugar onde possamos dedicar uns minutos diários a esta prática preciosa, tão benéca e completamente gratuita e graticante. Além dos benefícios pessoais que deste exercício podemos colher, imaginem-se os benefícios sociais de uma cada vez maior promoção e generalização desta prática. Como serão as nossas sociedades, com cada vez mais amor e compaixão? Não valerá a pena investir nisto, sendo ainda para mais um investimento sem qualquer custo?
5. Vipasyana ou visão penetrante Como vimos, o cultivo da calma, serenidade ou paz mental ( śamatha , segundo a tradição budista indiana), mediante a atenção plena focada de modo estável, claro e sem tensões num determinado objecto, não é um m em si, apesar de todos os seus imensos benefícios espirituais, psicosiológicos e sociais atrás expostos. A concentração e a calma mental visam criar as condições para que a consciência oresça plena e naturalmente na visão penetrante ou profunda (vipaśyāna , segundo a mesma tradição) da natureza última desse objecto, da mente e da própria realidade, numa compreensão ou insight duradouro da natureza das coisas livre de qual93. Cf. B. FREDRIKSON, M. A. COHN, K. A. COFREY, J. PEK, S. M. FINKEL, “Open hearts build lives: Positive emotions, induced through loving-kindness meditation, build consequential pesonal resorces”, Journal of Personality and Social Psychology (2008), 95 (5), 1045. Cf. também Cf. Barbara FREDRIKSON, Love 2.0. How our suprem emotion affects everything we feel, think, do, and become .
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quer condicionamento psicológico ou cultural. Isso pode acontecer mediante a simples quietude mental, quando todos os juízos, interpretações, conceitos e representações que estruturam a nossa percepção do mundo, bem como as emoções, padrões habituais e tendências subconscientes que os sustentam, se silenciam e dissolvem no estado não-conceptual, não elaborado e original da consciência, mas pode ser também preparado mediante um metódico e sistemático questionar das nossas crenças mais enraizadas e irreectidas acerca da natureza da realidade por via da meditação analítica ou reexiva, que usa o pensamento e o raciocínio para desconstruir todas as elaborações e xações conceptuais do próprio pen samento, geradas pelas mesmas emoções, padrões habituais e tendências subconscientes, abrindo a mente à visão-experiência directa inerente ao estado original da consciência. Conforme anunciámos, a exposição mais enquadrada, desenvolvida e detalhada destes métodos e exercícios meditativos ca para o segundo volume do presente livro. Faremos agora apenas uma apresentação mais geral, completada com a proposta de um único exercício mais especíco.
5.1. Três questões fundamentais sobre a natureza da experiência A meditação analítica e reexiva que conduz à visão penetrante pode incidir sobre qualquer um dos objectos da atenção plena antes apresentados – sensações físicas externas e internas, sensações respiratórias, fenómenos mentais (pensamentos, emoções, imagens, etc.) e fenómenos ditos externos, os objectos dos cinco sentidos – e exerce-se submetendo-os a três questões fundamentais: 1. Estes
objectos são permanentes ou impermanentes? Há neles algo de xo e imutável ou constituem um uxo em constante transformação? 2. Estes objectos são independentes ou interdependentes? Existem em si
e por si, como entidades isoladas e separadas, ou cada um destes objectos é pelo contrário um fenómeno que depende de múltiplas causas e condições, na verdade de todos e cada um dos demais objectos/fenómenos e de 146
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todas e cada uma das próprias mentes que o(s) percepciona(m)? Têm uma realidade substancial ou pelo contrário não existem senão numa trama de relações e interacções, sujeitos a múltiplas causas e condições elas mesmas impermanentes e em constante transformação? Relacionada com esta questão surge uma outra: há na experiência de todos estes objectos/fenómenos algo que corresponda realmente aos conceitos de “eu” e de “meu” ou estes conceitos são meras interpretações e elaborações, culturalmente condicionadas, que se acrescentam à experiência directa e imediata desses mesmos objectos/fenómenos? Há nas sensações físicas externas e internas, nas sensações respiratórias, nos fenómenos mentais (pensamentos, emoções, imagens, etc.) e nos fenómenos ditos externos, os objectos dos cinco sentidos, algo que seja intrinsecamente “eu” ou “meu” ou isso são meras etiquetas que nos habituámos a colar na experiência ao ponto de o esquecermos e não darmos sequer por isso, pensando que fazem parte da natureza objectiva das coisas? Existe algo que corresponda realmente às noções de “eu” e de “meu” ou são meras convenções linguísticas e conceptuais a que recorremos para organizar a experiência do mundo em função da ignorância e esquecimento do estado original da consciência e da natureza profunda das coisas, do consequente autocentramento e dos decorrentes desejos, interesses e necessidades individuais e colectivos? Esta questão fundamental tem atravessado todo este livro: existe efectiva e objectivamente, na natureza das coisas, tal como ela surge na experiência imediata, pré-conceptual, uma separação e dualidade entre “eu” e “não-eu” e entre “meu” e não-meu” ou ela não tem outra validade senão em termos conceptuais e convencionais, resultando do obscurecimento e autocentramento da percepção do mundo que temos por normal e real? 3. Há nalgum destes quatro tipos de
objectos ou objectos/fenómenos algo que seja real, duradoura e absolutamente satisfatório ou em última instância nenhum deles sacia nem pode saciar a nossa busca constante de uma felicidade profunda, duradoura e plena? Se assim for, será por procurarmos essa felicidade nestes quatro tipos de objectos/fenómenos, ou seja, em suma, nos estados físicos, nos estados mentais e nos objectos ditos 147
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externos, que nos encontramos constantemente insatisfeitos? Estas questões devem ser colocadas, de modo metódico e sistemático, a cada um dos quatro tipos de objectos/fenómenos, quando a mente estiver plenamente focada neles, na estabilidade, clareza e descontracção da meditação contemplativa. O objectivo já não é agora usar estes objectos/ fenómenos como suportes para o desenvolvimento da paz, concentração e clareza mentais, mas antes usar essa paz, concentração e clareza para ver ou experimentar directamente a natureza desses objectos/fenómenos e da própria mente que assim os vê ou experimenta. No fundo esta meditação analítica e reexiva já foi implicitamente praticada ao longo de muitas páginas deste livro e de modo explícito e particular, no que respeita à segunda questão agora formulada, quando analisámos a natureza deste livro e da própria leitora ou leitor, em IV. 3. 1. É todavia muito importante que sejamos capazes de colocar de forma pessoal e radical estas questões sem nos satisfazermos com qualquer resposta já dada, incluindo as que cam explícitas ou implícitas neste livro, demitindo-nos assim de procurarmos e chegarmos a encontrar uma resposta por nós mesmos, validada pela nossa experiência directa. É crucial que investiguemos por nós próprios a natureza da realidade, tendo a coragem de abrir mão de todas as crenças, doutrinas e teorias, religiosas, losócas ou cientícas, que tenham sido elaboradas por outros, por mais veneráveis e credíveis que sejam essas pessoas e tradições e por maior que seja o sentido intelectual ou a coerência racional que aparentem. De outro modo, a resposta será sempre uma crença naquilo a que outros chegaram, não estando fundada na nossa experiência directa das coisas e não resultando do despertar da nossa consciência, do despertar da consciência em nós ou do nosso despertar para a consciência. Temos aqui de ser muito sinceros e honestos connosco mesmos e não presumir como verdadeiro aquilo que não investigámos nem vericámos por nós próprios, mediante a razão, mas sobretudo por via do constante aprofundamento da experiência meditativa e contemplativa, pois também devemos ter a sinceridade e honestidade de não nos satisfazermos com uma investigação apressada ou supercial, que não vá além do pensamento discursivo e da lógica conceptual, investindo em ní148
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veis mais profundos de consciência e experiência. Devemos colocar sem cessar as três questões fundamentais, até que alguma resposta se torne absolutamente irrecusável e evidente e, enquanto isso não acontecer, ou se isso não acontecer, não inventarmos uma resposta ou não nos agarrarmos a alguma resposta já dada por outros, sob pena de não despertarmos todo o nosso potencial cognitivo e carmos sempre aquém do conheci mento e da sabedoria. É muito importante não nos mantermos ou precipitarmos na adesão a qualquer crença, teoria ou doutrina não baseada na nossa própria experiência profunda por apego a uma qualquer zona de conforto intelectual, à necessidade de segurança psicológica e/ou à integração social que isso nos proporciona. Mais vale não termos referências e mantermos um espírito vivo e indagador, o melhor do verdadeiro espírito cientíco, não dogmático e nutrido por um empirismo radical, do que termos referências falsas e carmos reféns das convenções e cções utilitárias dos grupos e das sociedades humanas. Claro que, ao investigar por nós mesmos, podemos chegar e muitas vezes chegamos a respostas e conclusões formalmente idênticas àquelas a que outros chegaram antes de nós, mas tudo será então substancialmente diferente, pois teremos lá chegado pela nossa própria experiência e actualizando o nosso potencial cognitivo, o que nos libertará da insegurança, da dúvida e do cepticismo. Ao usar a meditação analítica ou reexiva, aplicando sucessivamente as três questões a todos os objectos da nossa experiência quando estamos neles bem focados, se alguma resposta se tornar evidente e surgir uma compreensão ou insight profundo acerca da natureza dos objectos visados, há que não deixar que isso se dissipe no uxo habitual dos nossos pensa mentos, emoções, preocupações e distracções. Para esse efeito recorremos à mesma capacidade de focar plenamente a atenção de modo estável, claro e sem tensões num determinado suporte - o que zemos ao longo dos exercícios anteriores no cultivo da calma, serenidade ou paz mental (śamatha ) - , focando-a agora na evidência, compreensão ou insight surgido. Chama-se a isto, na tradição budista indiana, unir śamatha a vipaśyāna , o que confere estabilidade e clareza à visão profunda, penetrante ou directa da natureza dos objectos ou fenómenos investigados. Quando, como resultado da nossa investigação e das nossas questões, algo se torna 149
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evidente e surge uma compreensão, é decisivo que deixemos imediatamente de questionar, analisar e reectir - o que passaria a ser um factor de agitação, distracção e obscurecimento da evidência e da compreensão – para focarmos e repousarmos plenamente a atenção nisso, mediante a meditação contemplativa, aprofundando a experiência da evidência e da compreensão até que deixem de ser um mero vislumbre ou intuição fugaz e se tornem completamente inseparáveis da nossa consciência e da nossa vida, para além de um registo meramente intelectual e conceptual.
5.2. Interrogar, investigar e contemplar a natureza da mente. A consciência natural e originalmente desperta Quando repousamos na meditação sem objecto ou presença aberta (V. 3. 2), bem como no nal da Troca (V. 4. 5), quando nos absorvemos num estado sem sujeito, objecto e sua relação, é extremamente importante, caso não existam muitos pensamentos que nos obscureçam e dispersem, contemplar a natureza profunda da mente, aquilo a que também chamámos o seu estado original, que na hipótese de trabalho que aqui deixamos é a natureza original e não-dual da própria consciência e de todas as coisas, o fundo sem fundo de todas as experiências e de todos os fenómenos. É essa natureza original ou fundo sem fundo de tudo que procuramos contemplar e experimentar directamente, despido dos véus das propensões subconscientes e dos estados mentais e emocionais que habitualmente o obscurecem. Insistimos todavia que é também extremamente importante não pressupor que isto é assim e não converter esta mera hipótese numa teoria ou, pior, numa crença ou doutrina não comprovada pela experiência, por mais sentido intelectual que faça ou coerência racional que aparente. Se o zermos estamos a alimentar mais um –ismo , a tornarmo-nos mais um –ista e com isso a interditarmo-nos o supremo fruto da meditação ou contemplação: o pleno despertar da consciência, a sua total libertação da ignorância e de todas as cções, com a consequen te insatisfação e sofrimento contínuos. Repousamos então, sempre alinhados nos sete pontos da postura sen150
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tada externa e interna, na experiência do simples haver consciência, ilimitada, aberta e livre como o espaço, procurando não cair no torpor e sentir esta energia-consciência bem viva. Tentamos agora ver directamente a natureza desta experiência, colocando as interrogações radicais que sacudam a letargia espiritual e façam cair todos os pressupostos conscientes ou inconscientes acerca do que está a acontecer e de quem somos: O que é esta experiência? Quem ou o que está a ter esta experiência? Se surgir alguma descoberta ou evidência, súbita ou gradual, não questionamos mais e repousamos plenamente a atenção nessa descoberta ou evidência. Note-se que esta descoberta ou evidência e a compreensão ou insight a ela inerente podem ser tão vivos e espontâneos, tão iluminativos e esclarecedores, que não sejam fácil e plenamente traduzíveis e formuláveis na suposta clareza verbal e conceptual do pensamento discursivo, por natureza dicotómico e dualista, nem sequer fácil e plenamente expressos por qualquer imagem ou representação simbólicas. Toda a tentativa de expressar essa descoberta ou evidência, essa compreensão ou insight , pode ser sentida como algo que necessariamente o obscurece, limita e diminui, na medida em que implica transitar de um nível mais fundo, subtil, não dual e não conceptual nem imagético de consciência a um outro, mais supercial, denso, dual e discursivo-representativo. Isto não legitima, todavia, as formulações obscuras, confusas e ilógicas da experiência em causa. A profundidade iluminativa desta não é necessariamente incompatível com o rigor e clareza da linguagem, do pensamento e da representação e estamos mesmo convictos que em certas pessoas e circunstâncias os pode propiciar e favorecer, dentro dos seus limites inerentes. Não obstante, podemos experienciar que o que surge como resposta a ou resultado dessas interrogações radicais é mais uma descoberta, evidência ou compreensão silenciosa que suspende a palavra, o pensamento e a imaginação e melhor se traduz na ausência de tradução verbal ou mental (ou em formas mínimas disso como interjeições, exclamações, expressões de espanto, maravilhamento, comoção, etc.). Isto pode ser também acompanhado tanto da imobilidade como de movimentos do corpo, expressões faciais e manifestações espirituais e emocionais como o riso ou as lágrimas. Na verdade, o corpo, as sensações e as emoções podem ser, nalgumas pessoas e circuns151
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tâncias, linguagens mais próximas e éis disso que transcende a linguagem verbal, conceptual e imagética. Como alternativa ou complemento das duas anteriores interrogações radicais, podemos também recorrer ao seu desdobramento noutras questões que nos permitem conduzir, metódica e sistematicamente, uma meditação analítica ou reexiva que investigue a natureza profunda e última da experiência que estamos a ter. Podemos começar por indagar e vericar se esta experiência de haver consciência, ilimitada, aberta e insubstancial como o espaço, possui uma forma e assim um limite que a dena, distinga e separe de outra coisa ou forma qualquer. Tem alguma forma, gura ou volume, tem algum limite, fronteira ou superfície que a recorte no espaço e a diferencie de algo que não seja ela, seja o próprio espaço, sejam objectos com forma, gura ou volume? Há nesta experiência interior e exterior, centro e periferia? Há nela alto e baixo ou alguma direcção: norte, sul, este ou oeste? Há nela aqui e ali, antes, durante e depois? Há nela superior e inferior, positivo ou negativo? Haverá nela algo que corresponda aos conceitos de eu e não-eu, meu e não-meu? Haverá nela isto e aquilo, ela e não-ela? Haverá nesta experiência esta experiência, distinta de outra experiência ou coisa qualquer? Haverá nela identidade e diferença, mesmidade e alteridade? Possuirá esta experiência alguma entidade ou característica intrínseca que a denam, distingam e separem de outra(s) entidade(s) e característica(s)? Se nada disto encontramos na experiência de haver consciência, ilimitada, desobstruída e insubstancial como o espaço, haverá nela alguma existência intrínseca, distinta de outras existências intrínsecas? Haverá nela alguma dualidade ou será um dos termos de alguma dualidade? Será por exemplo esta experiência de haver consciência coexistente, neste preciso instante, com a experiência de não haver consciência? Será ela o que é, neste preciso instante, por distinção de e oposição a outra coisa qualquer, que possamos identicar a par dela? Há nela então algum limite, até ao qual ela exista e a partir do qual exista outra coisa, ou pelo contrário abrange e integra tudo, nada existindo dela distinto e separado? Se assim é, como pode ser então a minha consciência, a tua, a dele/dela, a nossa, a vossa ou a deles/delas? Como pode ser então uma consciência individual, distinta de outras consciências individuais? Como pode então pertencer 152
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a algo, alguma coisa ou alguém? Como pode ser algo, alguma coisa ou alguém? Detemo-nos bem nestas questões, que são cruciais, bem como na compreensão, visão ou vislumbre profundos, súbitos ou graduais, que podem suscitar. Nesta experiência haverá de facto alguma qualidade ou característica distintiva, a não ser a sua ausência? Haverá nesta experiência o Paulo, a Maria, o João, a Teresa, o Duarte, a Marta? Haverá nesta experiência um empregado, um patrão, uma professora, uma aluna, um presidente, um vagabundo, uma empregada doméstica, uma ministra, um preso, um polícia? Uma mãe, um pai, um lho, uma lha, um irmão, uma irmã, uma avó, um avô, um tio, uma tia, um primo, uma prima? Haverá nesta experiência uma criança, uma jovem ou um jovem, um homem ou uma mulher maduros, um idoso ou uma idosa? Um português, um moçambicano, um chinês, uma ruandesa, uma australiana, um esquimó ou uma peruana? Um ateu, um crente ou um agnóstico? Um cristão, um islâmico, um hindu, um Baha’i, um budista, um xintoísta, um judeu, um taoista, um pagão, um confucionista, um wiccano, um animista? Um comunista, um social-democrata, um fascista, um socialista, um centrista? Um sportinguista, benquista, portista ou outro? Haverá nesta experiência um homem ou uma mulher? Um ser humano, um animal, um deus ou outro ser qualquer? Haverá nesta experiência ser por oposição a não-ser? Haverá nela algo que possamos apontar, identicar, ver e agarrar de algum modo? Será esta experiência uma experiência? Será uma não-experiência? Será uma coisa e outra? Não será nem uma coisa nem outra? Mantemos a abertura total da experiência e da consciência e ao mesmo tempo questionamos e investigamos sem cessar a natureza disto, procurando não separar o questionamento e a investigação desta mesma experiência de abertura da consciência em que repousamos. De outro modo, entraremos no processo habitual de divagação arbitrária, imaginativa, conceptual e especulativa do pensamento, perdidos nos pressupostos convencionais e nas abstracções sem fundamento em nenhuma experiência concreta que dão lugar a tantos sistemas de crenças e doutrinas, religiosos, losócos e pseudo-cientícos. Se porventura vericamos que estamos numa, somos uma ou nada há 153
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senão uma experiência nua e sem referências ou apoios, desprovida de qualquer qualicação, característica ou categoria – inclusive a de ser uma experiência - que a identique e dena por contraste com ou oposição a outra coisa qualquer, permitindo inscrevê-la nos nossos sistemas e códigos de sentidos e signicados, podemos e devemos questionar agora: se não tem ou é nada disso, não será nada em absoluto? Não existirá de modo algum? Será o nada, o não-ser ou um puro vazio estático e estéril? Trata-se da experiência niilista por excelência? Ou não haverá nela, pelo contrário, ao mesmo tempo que esta nudez, esta ausência de id-entidade, referências ou apoios, esta mesma experiência disto, esta experiência constante de algo que não se pode denir, este não sei quê poderoso e vasto como o espaço, inseparável da experiência e consciência que dele temos com toda esta vivacidade e energia que bem sentimos agora mesmo? E não será nesta ausência de forma, id-entidade e limite, neste fundo sem fundo vazio, neste invisível silêncio anterior a toda a imagem, palavra e conceito, que continuamente se manifestam todos os fenómenos, percepções e experiências, mentais, emocionais e sensoriais, todas as formas, dinamismos e processos do chamado mundo? Não é neste espaço ilimitado, nesta abertura sem contornos, que continuamente surge, seja a experiência da dualidade entre eu e não-eu, seja a experiência da não-dualidade e da interconexão de todos os seres e fenómenos, visíveis e invisíveis? Não é neste aqui sem aqui que continuamente emerge, seja a experiência da dualidade, com o consequente autocentramento, medo, insegurança, apego, avidez, aversão, indiferença e sofrimento, seja a experiência da não-dualidade, da ausência de tudo isso e do inerente amor, compaixão, alegria e sensibilidade imparciais e universais? Não é nesta abertura sem lugar que continuamente se experimenta e manifesta o que se pode chamar sabedoria, o reconhecimento e experiência não-conceptual desta não-dualidade, e o que se pode chamar ignorância, o obscurecimento disso na crença na realidade intrínseca de todas as formas de aparente dualidade e relação entre sujeito e objecto? Não é esta experiência sem forma, rosto ou nome a matriz de todas as experiências possíveis, a matriz que possibilita e irradia todas as formas, rostos e nomes, todas as vidas e todos os fenómenos, animados ou inanimados? Não é este 154
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fundo sem fundo o espaço que integra, abrange e se expressa em todos os seres, todos os mundos e todas as metamorfoses do unimultiverso? E isto não somos Nós, ou seja, não o eu separado que pensamos ser, quando dominados pela dualidade, mas todos os seres, fenómenos e coisas? E isto não somos Nós , ou seja, todo o unimultiverso? Questionamos e interrogamos, deixando que estas questões e interrogações fundamentais impregnem profundamente a experiência em que estamos, sacudindo o torpor da consciência e o seu apego a todas as zonas de conforto e pressupostos convencionais. Estas questões e interrogações são já o despertar da consciência para a natureza da experiência em que está, ou melhor, para a natureza da experiência que é , para a sua própria natureza, pois esta experiência é a da abertura ilimitada da consciência, sem nenhum objecto ou conteúdo particular que a delimite. Estas questões e interrogações são já o despertar da consciência para a sua natureza original e profunda, livre das limitações da mente, na medida em que esta funciona sempre na dualidade conceptual e emocional sujeito-objecto, na dualidade psicológica. Há que ter a coragem de aprofundar esta experiência da dimensão trans-psicológica da consciência ou, se quisermos, da dimensão não mental da mente, mergulhando na interrogação e contemplação da sua natureza original, não elaborada e neste sentido selvagem . Se todavia nada se tornar evidente por si mesmo, resistimos a ccionar falsas evidências, à medida dos desejos, gostos ou necessidades do nosso autocentramento e do nosso comodismo, em geral apressados em obter respostas e resultados, seja permanecendo nalguma versão dos pressupostos convencionais, seja inventando um suposto despertar de todos eles. Não nos precipitamos e damos tempo a que a semente da experiência meditativa e contemplativa germine, lance raízes, cresça, oresça e frutique. Ou não nos precipitamos e abrimos espaço a que o seu fruto irrompa subitamente, num despertar vasto, pleno e ilimitado como o espaço. Em qualquer dos casos, não inventamos nada. Desde o início ou no decurso destes exercícios meditativos e contemplativos, designados como visão penetrante , pode surgir a experiência de que o despertar da consciência é na verdade a descoberta ou reconhecimento da sua natureza primordial e originalmente desperta, de que a sua liber155
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tação é a descoberta da sua liberdade natural, de que a sua iluminação é o reconhecimento da sua luz ou transparência original, de que a sua salvação é a descoberta da sua saúde ou integridade natural, de que a sua divinização é o reconhecimento da sua divindade, brilho ou fulgor original, para recordar o sentido etimológico da palavra Deus (o que torna a palavra utilizável e com sentido na espiritualidade laica que propomos). Desde o início ou no decurso destes exercícios pode surgir a experiência de que este despertar, libertação, iluminação, salvação ou divinização não são duais e por isso não são a experiência de alguém, que o torne diferente e superior a todos os demais seres portadores de consciência, mas sim uma experiência global, a do fundo sem fundo de tudo e de todos, do inteiro unimultiverso . Foi isso que atrás chamámos a descoberta da natureza profunda ou da vida original (IV. 3. 2). É isso a que chamamos, uma vez mais, viver no Coração da Vida . Viver onde realmente vivemos. Todos já tivemos vislumbres disso. Possamos nós , ou seja, todos os seres , não passar ao lado desta Vida que nos é mais íntima do que nós a nós mesmos (como disse Santo Agostinho de “Deus”), fazendo de conta que vivemos realmente, matando o tempo que temos para a descobrir e morrendo sem a descobrir e fruir integralmente94! Possamos nós cumprir-nos, ser quem somos, Aqui-Agora!
6. Dedicatória Uma vez que são as intenções que determinam a qualidade das nossas acções –mentais, verbais e físicas – e o seu efeito interno sobre a nossa mente, cérebro e organismo em geral, tal como é extremamente importante iniciar uma sessão formal de prática com a melhor e mais abrangente motivação (atrás descrita em V. 1. 2.), também o é concluí-la com a melhor e mais abrangente dedicatória. No nal de uma sessão, antes que ressurjam estados mentais e emocio 94. É o quadro traçado por Raul Brandão e que não deixa de recordar o sentido original da palavra grega amartia que se traduziu como “pecado”, como atrás notámos, “falhar o alvo”: “Estamos aqui como peixes num aquário. E sentindo que há outra vida ao nosso lado, vamos até à cova sem dar por ela. […] Estamos aqui a representar. […] Estamos aqui a matar o tempo” - Raul BRANDÃO, Húmus , Lisboa, Vega, 1991, p.23.
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nais mais confusos, consumamos a nossa intenção inicial de praticarmos não só para nosso benefício, mas para o benefício de todos os seres, num gesto que expressa a nossa intenção mais pura, generosa e universalmente amorosa: abrimos bem os braços com as mãos abertas e, unindo depois as mãos em concha no centro do peito, sentimos que estamos a reunir tudo o que houve de positivo na sessão que acabamos de concluir (podemos acrescentar também tudo o que temos feito de bom nas nossas vidas), contemplamos que isso é a jóia mais preciosa e o único bem real e duradouro e, após o interiorizarmos rodando as mãos unidas a 360 º para baixo e para dentro, à medida que as abrimos como uma or que desabro cha, oferecemo-lo, do fundo do coração, sem qualquer apego, para que se expanda e multiplique innitamente para a paz, o bem, a felicidade e o despertar de todos os inumeráveis seres vivos, em todo o universo, sem qualquer excepção. Se quisermos e se sentirmos ser mais ecaz, podemos pensar no ser ou seres em que primeiro pensámos ao desenvolver a melhor motivação, mas depois, tal como então, é fundamental estender esta oferenda a todos, também para maior benefício dos nossos entes queridos e de nós mesmos. Na verdade, a dedicatória, se feita com a intenção de beneciar ilimitadamente seres ilimitados, benecia ilimitadamente aquele que a faz e aqueles que mais imediatamente a motivam, puricando desde logo imensas tendências dualistas, negativas e egocêntricas e abrindo a mente e o coração para o innito que somos. Esta dedicatória é o terceiro elemento de uma sessão formal de meditação, onde como vimos é importante assegurar a perfeição no início (a motivação pura de contribuir desinteressadamente para o bem de todos), no meio (mantendo a atenção plena no exercício especíco que decidi mos fazer) e no m (a dedicatória agora descrita, visando igualmente o bem universal). Importa também não esquecer que o m de uma sessão de prática formal, selado com a dedicatória, é apenas o ponto de partida para a continuidade da meditação na própria vida, que há que despertar e iluminar mediante uma atenção continuamente calma, clara, amorosa e compassiva presente em tudo o que pensamos, dizemos e fazemos, que nos permita cuidar integralmente de nós, de todos os seres e do mundo, livres da cção de existirmos separados. 157
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Sublinhe-se ainda que a melhor dedicatória, tal como a melhor prática, é livre dos conceitos de haver sujeito, objecto e acção como algo distinto, separado e existente em si e por si. Isso permite que, à medida que aprofundamos a prática e a experiência ética, meditativa e contemplativa, juntemos a energia da virtude à luz da sabedoria, que nos liberte de uma visão dualista do mundo e dos outros, de cairmos na tentação de nos sentirmos especiais, de nos orgulharmos do que estamos a fazer e de qualquer sentimento de superioridade “espiritual” ou pretensão a sermos ou tornarmo-nos justos, sábios, santos, iluminados ou mestres (o sinal mais óbvio de o não ser é ter essa pretensão). É fundamental que a prática dissolva qualquer forma de autoconceito e auto-imagem, positivos ou negativos, baseados em comparações que nos levem a sentirmo-nos superiores ou inferiores. É fundamental que o egocentrismo da percepção convencional do mundo e todas as inerentes emoções e preocupações – medo, expectativa, apego, avidez, indiferença, aversão, etc. - se vão dissolvendo como estátuas de neve ao sol da natureza profunda do real, essa fundamental sanidade de todas as coisas que não carece de se conceber como tal e não se atribui qualidade, valor ou importância alguma. Quanto menos ego, menos fantasia e mais Realização.
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VI. Acção e transformação integrais. Linhas orientadoras de uma ética integral Como vimos, este livro propõe uma experiência meditativa-contemplativa-activa como via para uma Vida plena para nós e para todos os seres. Como também vimos, a experiência meditativa e contemplativa pode considerar-se a suprema e mais ecaz forma de acção, pela profunda transformação da consciência em que consiste e que constitui uma poderosa e indispensável acção interna, reduzindo ou extinguindo a dualidade e com ela o egocentrismo, medo, apego, avidez, aversão e indiferença, sendo a partir daí a fonte de toda a acção externa virtuosa, porque desinteressada, altruísta e imparcial na busca de realizar o bem de todos os seres, correspondendo de modo sábio, amoroso e compassivo às suas reais necessidades. Se a acção interna sem a externa não é plenamente fecunda e benéca para os outros nem para o próprio, que não desenvolve assim todo o seu potencial de amor e compaixão, a acção externa sem a interna tende a converter-se numa agitação ou activismo pouco esclarecidos ou cegos que, sem a serenidade e sabedoria que permita ver claramente as necessidades alheias e dominados pelo apego ao protagonismo, pela raiva diabolizadora dos adversários e por todo o tipo de emoções conituosas, frequentemente se tornam parte agravante do problema e não da solução desejada. É nesse sentido que propomos aqui umas linhas orientadoras de uma ética radicada na experiência meditativa e contemplativa e que implica uma acção e transformação integrais, simultaneamente internas e externas. Com efeito, se temos a grande fortuna de nos sentirmos motivados para fazer da vida um caminho de aperfeiçoamento para o benefício de todos os seres, nós incluídos, não podemos deixar de vigiar continuamente, pela atenção plena, os movimentos e processos da nossa mente e da sua expressão no uso da palavra e na acção física, de modo a mantermos a consciência livre e desperta, não lesarmos ninguém e contribuirmos quanto possível para o bem-estar e felicidade de todos, o que naturalmente nos inclui. O grande objectivo é desenvolver a sabedoria da experiência-visão não-dual do mundo e dos seres, que contempla a sua não-separação, em simultâneo com o cuidado ético da sensibilidade amorosa e compassiva 159
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que é inerente àquela sabedoria, constituindo as duas inseparáveis asas que podem levar a ave de maravilha que somos a voar cada vez mais alto, fundo e longe na vastidão ilimitada do Coração da Vida. Numa imagem simbólica, que já usámos noutro livro, esta ave de maravilha que desde sempre somos – no que respeita à nossa natureza original, apenas obscurecida pelo que pensamos ou ccionamos ser - pode ser vista como uma águia-pomba, na medida em que nela a visão penetrante, alta, funda e vasta, íntima ao esplendor solar e celeste, é inseparável do mais pacíco, terno e bondoso coração que a toda a terra abraça e desce, pois a todos os seres igualmente ama e socorre, considerando a todos e a cada um mais próximos e íntimos do que a si mesmo 95. Estas linhas orientadoras oferecem-nos princípios e critérios gerais de conduta interna e externa que nos permitem respeitar e proteger toda a comunidade dos seres vivos e a própria Terra, não contribuindo jamais para o seu sofrimento e devastação e não apoiando nunca, de forma directa ou indirecta, seres ou actividades que os lesem ou façam sofrer, tudo fazendo, pelo contrário, para os beneciar a todos os níveis. Ao cumprir este objectivo, e porque nada está separado, estas linhas orientadoras preservam-nos igualmente do esquecimento da nossa natureza original e profunda, o fundo sem fundo de tudo quanto vive e existe, preservando-nos de levarmos uma vida alheia a ela e, nesse sentido, realmente alienada e lesiva do nosso interesse profundo. Podemos neste momento reconhecer-nos em todas elas ou só em parte e a nossa relação com estas propostas irá naturalmente evoluir ao longo do tempo, se zermos delas o que se propõe: não considerá-las uma doutrina ou código moral rígidos a aceitar ou rejeitar em bloco, mas apenas convites a uma reexão e reconsideração das nossas tendências e padrões habituais de percepção do mundo e de conduta ao longo da vida, muitas vezes irreectidos e demasiado dependentes da pressão social: familiar, escolar, prossional ou outra (ou todas em conjunto). Como tudo o que é dito e proposto neste livro, devemos vericar pela nossa própria razão e experiência se estas propostas fazem ou não sentido e não aceitá-las ou rejeitá-las sem ponderada investigação, caso achemos, obviamente, que conferir algum tempo a essa investigação vale a pena. 95. Cf. Paulo BORGES, Da Saudade como Via de Libertação , p.74.
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1. Dez pontos para uma ética integral Esta proposta de uma ética integral é naturalmente apresentada na perspectiva da nossa actual condição humana e baseia-se na constatação da inseparabilidade, interconexão e interdependência de todos os seres e fenómenos, que hoje se pode considerar uma evidência cientíca. É integral ou global na medida em que procura contemplar as três dimensões do nosso ser - física (I-III), verbal (IV-VII) e mental (VIII-X), sendo o factor mental presente e determinante em todas elas – e o efeito das nossas acções sobre a totalidade dos seres e da própria realidade terrena. Em cada um dos pontos seguintes sugere-se o que há a evitar e a realizar, sendo o único critério dessa discriminação entre negativo e positivo - não entre bem e mal entendidos como valores absolutos, existentes em si e por si e independentes das condições e circunstâncias de cada ser, experiência e situação concretos – aquilo que, respectivamente, provoca o que ninguém deseja e o que todos consciente ou inconscientemente desejamos: é negativo e deve evitar-se o que promove o sofrimento, nosso e de outrem, e suas causas (ignorância dualista, egocentrismo, apego, avidez, aversão e indiferença), impedindo ainda o pleno reconhecimento e fruição da nossa comum natureza original; é positivo e deve realizar-se aquilo que promove o despertar da consciência para a natureza original, profunda e comum de todos os seres, a felicidade universal e suas causas (sabedoria, abertura altruísta, amor, generosidade, compaixão, alegria, imparcialidade). Como é óbvio, a nossa capacidade de nos abstermos do negativo e de praticarmos o positivo depende estreitamente do nosso progresso no aprofundamento da experiência meditativa e contemplativa, sem o qual teremos diculdade de voltar a atenção para os nossos processos mentais e emocionais internos e ainda mais de vericarmos desapaixonada e imparcialmente a natureza das nossas intenções e inclinações e avaliarmos da negatividade ou positividade da nossa conduta mental, verbal e física, evitando e transformando a primeira e promovendo, aprofundando e expandindo a segunda. I. Não
mataremos nem contribuiremos, directa ou indirectamente, para a morte de nenhum ser senciente (dotado de sensibilidade, emoções e 161
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consciência), seja um animal humano ou não-humano, procurando ter, na medida do possível e respeitando o tempo da nossa evolução, uma alimentação conforme a esse princípio. Não contribuiremos também, directa ou indirectamente, para lesar a integridade física, o espaço vital e a liberdade de qualquer ser senciente. Pelo contrário, tudo faremos para os proteger e beneciar de todas as formas, alimentando-os, cuidando-os e libertando -os sempre que possível da tortura e morte a que os destinam as práticas cruéis de sociedades e culturas esquecidas ou divorciadas da nossa comum e cósmica natureza original (neste sentido, desnaturadas). Além de todas as mais evidentes formas de cuidar o bem dos seres sencientes, uma prática particularmente importante e potente - pois salva o que cada um mais preza, a vida, e desenvolve o amor e a compaixão para além dos limites comuns - é comprarmos e libertarmos animais vivos que estão em cativeiro ou vão ser mortos em terríveis condições de sofrimento (mamíferos, aves, mariscos, caracóis, peixes e vermes para isco). II. Não roubaremos nem caremos com o que não nos foi voluntariamente
dado. Não nos apropriaremos também dos bens de outrem por via de enganos e negócios fraudulentos. Pelo contrário, seremos o mais generosos possível, oferecendo desinteressadamente os nossos bens – prática espiritual, posses, tempo, energia, vida, silêncio, pensamento, fala, acção interna e externa - para realizar o bem de todos os seres. III. Não violentaremos sexual, emocional e afectivamente nem a nós nem
à/ao nossa/nosso companheira/o, incluindo a violência de no relacionamento sexual e afectivo procurarmos apenas ou acima de tudo a nossa graticação e prazer físico, emocional e mental, em detrimento do outro. Procuraremos também abster-nos da mais subtil e camuada violência de fazermos desse relacionamento um reforço da dualidade, do apego e do egoísmo a dois ou familiar e faremos o possível por usufruir da energia e inspiração do amor, do erotismo e da sexualidade como via para transcender tudo isso no despertar da consciência e na abertura altruísta ao mundo e ao bem de todos os seres.
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IV. Não mentiremos a ninguém e primeiro que tudo a nós mesmos, a não
ser quando esteja em risco uma vida, humana ou não humana, para a salvar e para salvar o potencial agressor de um acto tremendamente lesivo para si mesmo. Procuraremos, pelo contrário, dizer a verdade, sempre que a omissão não seja mais benéca, em função das pessoas e das circunstâncias concretas, mas nunca para ocultar injustiças e satisfazer interesses egocêntricos, nossos ou alheios. V. Não usaremos da palavra de um modo duro, que possa ferir os nossos
auditores, de acordo com as suas tendências e sensibilidades, suscitando neles dor, aversão, agitação e confusão que obscureçam a sua consciência e os levem a reacções emocionais e negativas. Procuraremos, pelo contrário, que o que dizemos e o modo como o dizemos, desde o tom, timbre, altura, ritmo e pausas da voz até aos gestos que empregamos ao falar, provenham da paz, serenidade, sabedoria, amor, compaixão, alegria e imparcialidade inerentes à conexão com a nossa natureza profunda. Se assim for, tudo o que dissermos será um bálsamo de luz, inspiração, conforto e graticação para quem nos ouvir. VI. Não usaremos da palavra para caluniar alguém ou criticá-lo destrutiva-
mente, sobretudo na sua ausência, o que é tanto mais grave se o objectivo for separar aqueles que são íntimos ou próximos. Pelo contrário, procuraremos sempre reconhecer, valorizar e enaltecer as qualidades dos outros, amigos, indiferentes ou inimigos (enquanto ainda zermos essas distinções, sem outro fundamento senão o nosso apego, aversão e indiferença, de que nos podemos libertar pela prática da troca (V, 4)). Só a partir daí - caso nos sintamos movidos pela sabedoria, pelo amor e pela compaixão e se sentirmos que o outro cona em nós e tem capacidade e disponibilidade para nos ouvir e reectir tranquilamente sobre o que lhe dissermos - po derá ser positivo aludir a algum aspecto que nos pareça menos positivo na sua conduta, admitindo todavia que isso possa ser um erro da nossa percepção e sugerindo um caminho alternativo.
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VII. Não
esbanjaremos o tempo limitado, destinado a um m certo mas imprevisível, da nossa preciosa condição humana, na medida em que nos oferece um potencial enorme de evolução, com comunicação e conversas fúteis, sejam presenciais ou por telefone, mail, sms, msn, chat, blogues, facebook, twitter e outras redes sociais. Se virmos bem, talvez possamos concluir que estas - além de nos fazerem, a nós e aos outros, desperdiçar energia vital e um tempo precioso e irreversível, que poderiam ser melhor usados para o despertar da consciência e o benefício de todos - frequentemente apenas reproduzem e reforçam as causas profundas da insatisfação e do sofrimento: dualidade, egocentrismo, apego, aversão e indiferença. A razão é girarem quase sempre em torno da dualidade eu-outro(s) e do autocentramento, deslizando facilmente para a mentira, o uso de expressões ofensivas, a promoção de si e dos próximos e a desconsideração ou difamação dos outros, enaltecendo as supostas qualidades, posses ou realizações de uns e omitindo, depreciando ou criticando as dos outros. Neste sentido, as conversas fúteis podem incorporar todos os actos verbais negativos e conduzir aos do corpo. Quanto às acções mentais negativas, que exporemos nos três últimos pontos, todas as demais, verbais e físicas, as implicam. Evitando as conversas fúteis, procuraremos repousar no silêncio da fruição contemplativa da nossa e comum natureza original, em tudo presente, sempre que a palavra não seja a melhor e mais inspirada forma de a manifestar, não para ostentação pessoal, mas para o bem comum. Falaremos apenas quando tal for necessário e benéco para todos ou quando através da pala vra consigamos sugerir e conduzir a saborear ainda mais o silêncio e o indizível. Ao falar, observaremos os três preceitos anteriores relativos à palavra. VIII. Observaremos constantemente os movimentos da nossa mente, me-
diante os exercícios meditativos e contemplativos neste livro propostos, para reconhecermos e não nos deixarmos dominar por qualquer forma de pensamento e emoção malevolentes, qualquer forma de desejar o mal, de querer prejudicar seja quem for ou de nos regozijarmos com a dor, o mal-estar, o insucesso ou as diculdades de um qualquer ser, humano ou não-humano. Mal constatemos o surgimento de tais pensamentos e emoções, podemos analisá-los e abandoná-los vericando que apenas radicam numa percep164
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ção ignorante, distorcida e desconectada da natureza profunda das coisas e de nós mesmos e só nos conduzem a prejudicar-nos e aos outros por pensamentos, palavras e acções: na verdade, um único pensamento malevolente não reconhecido e não neutralizado, mesmo que não se traduza logo em palavras e acções prejudiciais aos outros, lesa-nos imediatamente a nós próprios, obscurecendo e impedindo a fruição da nossa natureza original, e faz-nos sofrer, a curto, médio ou longo prazo, desarmonizando toda a nossa vida mental, emocional e física, dando origem a uma cadeia contínua de fenómenos mentais negativos e permanecendo como uma tendência subconsciente latente que nos inclina para continuarmos a pensar, falar e agir dominados por ela, o que só por si nos faz sofrer interiormente e nos conduz a praticar acções negativas que vão fazer sofrer os outros, suscitando a sua reacção adversa que por sua vez nos vai causar ainda mais sofrimento, desta vez vindo do exterior. Outra possibilidade de lidarmos com pensamentos e emoções malevolentes é contemplar apenas o seu surgimento e deixá-los naturalmente desvanecer-se, sem deixar qualquer rasto, o que acontece se com eles não nos envolvermos, tentando bloqueá-los ou lutando contra eles. Caso a emoção em causa seja muito forte, desviamos a mente daquilo que a suscita – um acontecimento, uma situação, o que alguém diz ou faz – e dirigimos a atenção para a própria emoção, consciencializando-a sem nos identicarmos com ela e sem a tentar combater ou alterar, o que fará com que perca intensidade ou se dissolva num estado de consciência mais desperto, vivo e não dualista. Podemos assim beneciar das nossas próprias emoções e impulsos mais violentos e negativos para redescobrirmos mais rapidamente a nossa natureza original (mas isto apenas quando surgirem, sem nunca os cultivarmos e com a condição de esquecermos completamente a sua inicial fonte externa). Livres de malevolência, ou usando a sua energia transmutada, poderemos cultivar ou manifestar uma bondade imparcial, amorosa e compassiva, a bondade fundamental da nossa natureza profunda – o bom coração - , e fruir toda a alegria e felicidade que lhe é inerente, ao mesmo tempo que beneciamos todos os seres, constantemente e em todas as situações (os exercícios aqui sumariamente expostos para lidar com os pensamentos e emoções malevolentes serão desenvolvidos e completados no segundo volume deste livro). 165
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IX. Observaremos e lidaremos do mesmo
modo com todos os movimentos mentais dominados pela cobiça e pela avidez, aos quais se aplica o que se disse da malevolência, com a singularidade de que a cobiça e a avidez, o desejo sedento de ter mais, de possuir mais prazer, riqueza, poder, estatuto, protagonismo, sucesso, reconhecimento ou fama, é o que procede da desconexão da nossa natureza profunda que nos fere de carência e insatisfação ctícias, impedindo-nos fruir a gratuita superabundância da vida em nós e em tudo o que a cada momento nos rodeia, visível e invisível. O apego ao que imaginamos ter e a cobiça do que não temos (distinta das necessidades fundamentais e do desejo salutar e positivo de desenvolver sempre mais sabedoria, amor, compaixão, alegria e felicidade) é o que nos impede fruir e pelo contrário nos leva a perder a superabundância das coisas simples, gratuitas e mais preciosas da vida – a realidade (o céu, a terra e tudo o que abrangem), a própria vida, a consciência, o tempo, a saúde, a energia, a beleza das coisas, o amor e a amizade, o convívio com os outros seres e a natureza, etc. - , fazendo que nos comportemos (por mais ricos e poderosos que sejamos) como mendigos indigentes que na verdade têm em casa, ou seja, no fundo de si e em todo o mundo à sua volta, um tesouro imenso que ignoram ou desprezam para dissiparem as suas vidas a correr atrás das migalhas incertas e sempre fugazes do prazer, riqueza, poder, estatuto, protagonismo, sucesso, reconhecimento ou fama. Abandonada ou transmutada a cobiça, residiremos naturalmente, com profunda gratidão e jubilosa celebração, na plenitude que em nós e em tudo sempre há, a plenitude do encontro, da comunhão e da partilha. Poderemos reconhecer então que a sede não era senão uma innita fonte que se ignorava, inesgotável manancial que tanto mais se avoluma quanto mais naturalmente em todas as direcções corre e se oferece, sem esforço e sem expectativa de retribuição. Deixaremos então de dar ouvidos a qualquer forma de publicidade, pois descobriremos que já somos innitamente mais do que tudo o que nos possam prometer e oferecer ou possamos conceber e desejar. Poderemos então ter pelo menos o vislumbre de sermos o próprio innito e que todo o sentido da nossa vida é descobrimos e fruirmos isso para o bem de todos os seres.
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X. Procuraremos
sempre, primeiro que tudo, reconhecer e neutralizar a raiz de onde procede tudo o que de negativo se enuncia nos nove pontos anteriores: tudo o que procede da ignorância, do esquecimento, da ausência de experiência, reconhecimento e fruição da natureza original e profunda da consciência e de tudo, livre da cção da dualidade e da separação entre isto e aquilo. Ou seja, no fundo, todas as visões, conceitos e imagens, todos os pensamentos, discursos e símbolos (este mesmo livro, como é óbvio), se os não reconhecermos como meras sugestões limitadas, que devem ser transcendidas, desse inexprimível fundo sem fundo que podemos experienciar como o próprio âmago de nós e de tudo, por via dos exercícios meditativos e contemplativos aqui expostos. Abandonando ou deixando que se dissolvam todos os conceitos, palavras e representações, e com eles todas as teorias, doutrinas e ideologias, toda a percepção de nós e do mundo e todo o uxo da nossa vida mental e emocional, sereno ou caótico, “positivo” ou “negativo”, naturalmente se reintegrará no espaço primordial da consciência e do ser, sem sujeito nem objecto, sem forma, limites, dimensões ou características, a não ser as qualidades da experiência disso numa consciência sábia, sensível e universalmente amorosa e compassiva. Nota importante: se acharmos que estas ou algumas destas linhas orientadoras fazem sentido e se em função disso nos sentimos motivados para as implementar na nossa vida, tanto mais as seguiremos quanto mais, ao tentar fazê-lo, nos libertarmos do conceito, conducente ao orgulho e à arrogância, de que assim nos estamos a converter em alguém mais sábio, melhor ou mais importante do que os outros. Pelo contrário, a via indicada por estas linhas orientadoras levar-nos-á naturalmente a viver cada vez mais livres do egocentrismo inerente a toda a forma de autopromoção, autojusticação, comparação, juízo, autoconceito e auto-imagem.
2. Os Cinco Treinos da Atenção Plena Como complemento dos dez pontos anteriores, apresentamos uma versão com algumas adaptações dos Cinco Treinos da Atenção Plena pro167
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postos por Thich Nhat Hanh 96, cuja proposta de uma via laica para o bem comum, inspirada no Dharma do Buda mas não-sectária, universal, aberta a todos e atenta às questões do mundo contemporâneo, particularmente inspira este livro e o Círculo do Entre-Ser , a associação losóca e ética a que neste momento presidimos. Os Cinco Treinos da Atenção Plena constituem um contributo para uma ética e uma espiritualidade globais, numa via susceptível de ser percorrida por todos, religiosos de todas as religiões, ateus e agnósticos.
2.1. Reverência pela Vida Conscientes do sofrimento causado pela destruição da vida, empenhamo-nos em cultivar a visão do entre-ser (da interdependência, interconexão e interpenetração de todos os seres, formas de vida e fenómenos) e da compaixão e em proteger as vidas dos humanos e dos animais, bem como as plantas e minerais, respeitando os elementos e a natureza. Estamos determinados a não matar, não contribuir para que outros matem e, se possível, não deixar outros matar, bem como a não cometer ou apoiar qualquer acto de violência e assassínio, seja no nosso pensamento, na nossa fala ou no nosso modo de vida. Vendo que as acções nocivas procedem do medo, da cólera, da avidez e da intolerância, os quais por sua vez vêm da ignorância e do pensamento dualista e discriminativo, cultivaremos abertura, nãodiscriminação e não-apego às visões conceptuais - religiosas, losócas, ideológicas ou outras - , a m de superar e transformar o dogmatismo, o fanatismo, o fundamentalismo e a violência em nós mesmos e no mundo. Ao tentar praticar isto, não nos veremos como superiores e não desconsideraremos aqueles que com isto não concordam e ainda o não praticam, considerando-os com compreensão, amor e compaixão.
96. Cf. Thich Nhat HANH, For a Future to be Possible , prefácio de Joan Halifax, posfácio de Jack Korneld, Berkeley, Parallax Press, 2007, pp.5-7. Outros treinos da atenção plena, mais exten sos e especícos, podem ser encontrados em Id., Interbeing. Fourteen Guidelines for Engaged Buddhism , pp.17-22.
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2.2. Verdadeira Felicidade Conscientes do sofrimento causado pela exploração, injustiça social, roubo e opressão, empenhamo-nos em praticar a generosidade ao pensar, falar e agir. Estamos determinados a não roubar e a não possuir nada que deva pertencer aos outros e partilharemos o nosso tempo, energia e recursos materiais com os necessitados. Praticaremos a contemplação profunda para ver que a felicidade e o sofrimento dos outros não estão separados da nossa própria felicidade e sofrimento, que a verdadeira felicidade não é possível sem compreensão e compaixão e que correr atrás de riqueza, fama, poder e prazeres sensuais pode trazer muito sofrimento e desespero, não garantindo nada de real e permanente e fazendo perder tempo precioso para a verdadeira evolução. Estamos conscientes de que a felicidade depende da nossa atitude mental e não de condições externas e de que podemos viver com alegria a cada instante recordando simplesmente que já temos mais do que o suciente para ser felizes. Estamos empenhados em praticar um modo de vida correcto a m de ajudar a reduzir o sofrimento dos seres sencientes na Terra e a reverter o processo de destruição da biodiversidade e dos recursos naturais, da poluição e das alterações climáticas. Ao tentar praticar isto, não nos veremos como superiores e não desconsideraremos aqueles que com isto não concordam e ainda o não praticam, considerando-os com compreensão, amor e compaixão.
2.3. Verdadeiro Amor Conscientes do sofrimento causado pelo comportamento sexual irresponsável e egocêntrico, empenhamo-nos em cultivar a responsabilidade e o altruísmo no relacionamento sexual. Sabendo que o desejo sexual não é amor e que a actividade sexual motivada pela carência e pelo desejo-apego insaciável nos prejudica sempre e aos outros, estamos determinados a não nos envolvermos em relações sexuais sem verdadeiro amor e um profundo compromisso ético. Faremos tudo o que pudermos para proteger as crianças do abuso sexual e para impedir que casais e famílias sejam desfeitos 169
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pelo comportamento sexual irresponsável. Vendo que o corpo e a mente são um só, empenhamo-nos em aprender modos apropriados de cuidarmos da nossa energia sexual, pondo-a ao serviço do despertar da consciência, e em cultivar bondade, compaixão, alegria e equanimidade – os quatro elementos fundamentais do verdadeiro amor – para nossa maior felicidade e dos outros. Ao tentar praticar isto, não nos veremos como superiores e não desconsideraremos aqueles que com isto não concordam e ainda o não praticam, considerando-os com compreensão, amor e compaixão.
2.4. Escuta Profunda e Discurso Afectuoso Conscientes do sofrimento causado por palavras desatentas e pela incapacidade de escutar os outros, empenhamo-nos em cultivar uma escuta profunda e um discurso afectuoso a m de aliviar o sofrimento e promo ver a reconciliação e a paz em cada um de nós e entre outras pessoas, nações, grupos étnicos e religiosos. Sabendo que as palavras podem criar felicidade ou sofrimento, empenhamo-nos em falar com verdade usando palavras que inspirem conança, alegria e esperança. Quando a cólera se manifestar, estamos determinados a não falar. Praticaremos o respirar e caminhar plenamente atentos a m de reconhecermos e contemplarmos profundamente a cólera. Sabemos que as suas raízes podem ser encontradas nas nossas percepções erróneas e na falta de compreensão do sofrimento em nós e nos outros. Escutaremos e falaremos de um modo que nos possa ajudar e aos outros a transformar o sofrimento e a ver a saída de situações difíceis. Estamos determinados a não espalhar notícias que não saibamos serem certas ou benécas e a não proferir palavras que possam causar divisão ou discórdia. Empenhamo-nos também em não fomentar distracções, emoções negativas e perda de tempo com conversas fúteis. Praticaremos a correcta diligência para nutrir a nossa capacidade de compreensão, amor, compaixão, alegria e imparcialidade e transformar gradualmente o medo, a cólera, o apego e a violência que residam no fundo da nossa consciência. Ao tentar praticar isto, não nos veremos como superiores e não desconsideraremos aqueles que com isto não concordam e ainda 170
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o não praticam, considerando-os com compreensão, amor e compaixão.
2.5. Nutrição e Cura Conscientes do sofrimento causado pelo consumo desatento, empenhamo-nos em cultivar uma boa saúde, física e mental, para nós, a nossa família e a sociedade, praticando um comer, beber e consumir plenamente atentos. Praticaremos a contemplação profunda do modo como consumimos as quatro espécies de nutrientes, nomeadamente alimentos comestíveis, impressões sensoriais, volições e estados de consciência. Estamos determinados a não jogar a dinheiro e a não usar ou a reduzir progressivamente o uso de substâncias que lesem a mente e o corpo, como drogas, tabaco, álcool (pelo menos em excesso) ou quaisquer outros produtos que induzam toxinas mentais, como certos sítios na net, jogos electrónicos, programas de televisão, lmes, revistas, livros e conversas. Praticaremos o regressar ao instante presente para estarmos em contacto com os elementos refrescantes, curativos e nutrientes em nós e ao nosso redor, não deixando que pesares e tristeza nos arrastem para o passado nem que ansiedades, medo ou desejo ávido nos arranquem do aqui e agora. Estamos determinados a não tentar encobrir a solidão, a ansiedade ou outro sofrimento perdendo-nos no consumo. Contemplaremos o entre-ser e consumiremos de um modo que preserve a paz, a alegria e o bem-estar no nosso corpo e consciência, bem como no corpo e consciência colectivos da nossa família e sociedade, dos seres sencientes e da Terra. Ao tentar praticar isto, não nos veremos como superiores e não desconsideraremos aqueles que com isto não concordam e ainda o não praticam, considerando-os com compreensão, amor e compaixão. As linhas condutoras aqui presentes nos Dez pontos para uma ética integral , nos Cinco Treinos da Atenção Plena e na Carta pela Compaixão Universal constituem a base do que se pode chamar meditação em acção, simultaneamente externa e interna, cuja qualidade e aperfeiçoamento é interdependente do nosso investimento nos exercícios meditativos e con171
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templativos antes expostos. A ecácia de uma acção esclarecida e bondosa no mundo depende da concentração calma, clara e altruísta das nossas mentes, que por sua vez também resulta de diminuirmos o egocentrismo dos nossos interesses e acções e os abrirmos o mais possível à busca do bem comum a todos os seres vivos e a toda a Terra. Se o zermos, nós, as nossas sociedades, as nossas nações e o planeta beneciaremos imenso com isso e seremos parte activa e consciente da profunda mudança de paradigma já em curso.
3. Carta pela Compaixão Universal (Por uma nova Cultura e uma nova Civilização) Republicamos aqui a Carta pela Compaixão Universal , já incluída no nosso livro anterior97, e que propomos à reexão do leitor ou leitora para que, caso nela se reconheça, nela se inspire e a divulgue o mais possível. Cremos que pode funcionar como mais um conjunto de linhas orientadoras para uma espiritualidade e uma ética laicas inseparáveis das tomadas de consciência e da experiência meditativa e contemplativa, particularmente conducentes a uma mudança urgente do paradigma cultural e civilizacional dominante. A professora e pensadora Karen Armstrong lançou em 2009 a Carta pela Compaixão , que teve grande repercussão, colheu muitos apoios e patrocínios institucionais e estatais, foi assinada por celebridades e pelos principais líderes religiosos mundiais e deu lugar a muitas acções pedagógicas: http://charterforcompassion.org/
97. Cf. Paulo BORGES, Quem é o meu próximo? Ensaios e textos de intervenção por uma consciência e uma ética globais e um novo paradigma cultural e civilizacional . A Carta pela Compaixão Universal foi redigida em conjunto com Daniela Velho e teve a colaboração de vários membros do Círculo do Entre-Ser. É um documento que está disponível on line num sítio próprio e que está a ter o apoio de guras internacionais e nacionais como Sua Santidade o XIV Dalai Lama, Satish Kumar, Joyce D’Silva, Matthieu Ricard, Francisco Varatojo, Miguel Real, Manuela Gonzaga e Teresa Nogueira: http://www.charterforuniversalcompassion.org/
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Com todo o seu imenso mérito, cremos todavia que a Carta pela Compaixão se limita aos seres humanos, não tendo em conta o imperativo que conduziu ao próprio reconhecimento de direitos iguais para todos os seres humanos: expandir a consideração ética a todos aqueles que sejam portadores de uma mesma natureza fundamental, para lá das anidades e interesses limitados aos grupos familiares, tribais, nacionais, étnicos, culturais, políticos, económicos e religiosos. Como a ciência hoje inequivocamente reconhece98, os animais não-humanos, sendo capazes de experimentar a dor e o prazer psicosiológicos e emoções como a alegria, o sofrimento, o medo e a angústia, têm também uma natureza consciente e senciente, e logo interesses fundamentais na preservação da sua vida, integridade física, bem-estar e habitat natural, devendo portanto ser alvo de consideração e respeito pelos sujeitos racionais e éticos que são os humanos. Por este motivo, propomos aqui uma mais abrangente Carta pela Compaixão Universal , que assume também o valor intrínseco e não meramente instrumental do mundo natural. Assumimos esta Carta pela Compaixão Universal como bússola orientadora das nossas vidas e exortamos a que todos o façam, divulgando-a por todos os meios, em prol de uma urgente mudança da cultura e da civilização dominantes. 1. As tradições espirituais, culturais e religiosas, a ciência contemporânea e
a nossa sensibilidade reconhecem que todos os seres e ecossistemas são interdependentes na grande unidade diferenciada da vida. Não podemos separar a preservação e o bem de uns da preservação e do bem de todos. Conscientes disto e da natureza comum dos animais humanos e não-humanos, no que respeita à senciência e aos interesses fundamentais, sentimo-nos crescentemente movidos pelo amor e compaixão universais, ou seja, pela aspiração activa a que todos os seres dotados de consciência e senciência sejam felizes e estejam livres de todo o sofrimento que pudermos evitar. Conscientes da existência, das necessidades e dos interesses dos outros, assumimos a regra de ouro de toda a ética: não lhes fazer o que não gostaríamos que nos zessem e contribuir para o seu bem, tal como 98. Declaração de Cambridge sobre a Consciência , de 7 de Julho de 2012: http://fcmconference. org/img/CambridgeDeclarationOnConsciousness.pdf.
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gostaríamos que connosco próprios agissem. Comprometemo-nos a nunca esquecer que, além dos laços familiares e das anidades mais imediatas, todos os seres são companheiros e parentes próximos na grande aventura da existência e da vida. 2. Reconhecemos
que a interconexão de todos os seres e ecossistemas se conjuga com o valor intrínseco e não meramente instrumental de cada um e de todos. Cada ser vivo, dotado ou não de senciência, é uma manifestação singular e única do fenómeno da vida, tal como todas as formas de existência, mesmo inanimadas, constituem igualmente manifestações singulares e únicas do corpo uno e múltiplo da natureza. Conscientes disto, admiramos e respeitamos todos os seres e entidades do mundo natural, humanos e não-humanos, como sagrados, considerando-os com total respeito pelo seu modo próprio de existência e, no caso dos seres sencientes, tratá-los-emos com plena justiça e equidade, assegurando a satisfação dos seus interesses fundamentais na preservação da vida, da integridade psicosiológica e do bem-estar, tendo em conta as suas dife renças e características próprias. 3. Sabemos que há muito caminho a percorrer neste sentido, despertan-
do consciências e sensibilidades e mudando velhos paradigmas mentais e culturais, infelizmente ainda reproduzidos por muitos de nós, indivíduos e instituições laicas e religiosas. Apesar de muitos progressos no domínio da ética humana, animal e ambiental, a Terra é ainda hoje palco de um imenso sofrimento e destruição, que em muitos casos se agravam, provocados pela falta de consciência, amor e compaixão dos humanos no modo como tratam os seres humanos e os animais, bem como os recursos naturais da Terra da qual todos dependemos. Disto resulta um crescente mal-estar na civilização globalizada, um crescendo do stress, da violência, da toxicodependência e da consumodependência, um aumento do fosso económico entre ricos e pobres em cada nação, entre o Norte e o Sul do planeta, entre os países ditos desenvolvidos e aqueles em vias de desenvolvimento, bem como o risco de novas guerras, convulsões sociais e um colapso ecológico sem precedentes, que alguns cientistas designam como a sexta extinção 174
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massiva da biodiversidade do Holoceno, a primeira gerada por causas humanas. Disso resulta também um autêntico holocausto da vida animal, por motivos que vão da pesca industrial à agropecuária intensiva. A indústria da carne e dos lacticínios é responsável pelo indescritível sofrimento de milhões de animais, que vivem em verdadeiros campos de concentração 99. Há ainda graves atentados à saúde humana e de brutal impacte ambiental. Conscientes disto, comprometemo-nos a não ser cúmplices destas práticas e a fazer desde já tudo o que pudermos para alterar esta situação, a começar pelo modo como nos alimentamos, consumimos e utilizamos os recursos naturais. 4. Estamos conscientes de que a crise global do planeta não se resolve com
mais reformas superciais e pontuais, sendo a crise de uma civilização que chegou a um ponto de mutação. Sentimos ser nossa tarefa transitar do modelo dominante de opressão e exploração desenfreada dos humanos, dos animais e da Terra, bem como de competição entre indivíduos, grupos, nações e corporações político-económico-nanceiras, para um novo paradigma centrado na consciência da interdependência e no amor e na compaixão universais, que promova uma cultura da paz, da justiça e da cooperação fraterna de âmbito planetário. Isto exige preservar a diversidade cultural e sermos capazes de aprender com o melhor das culturas do planeta, com modelos mentais e de sustentabilidade ecológica alternativos. Isto exige também mudar o actual modelo de crescimento económico, substituindo-o por uma economia do bem comum, baseada na gestão racional e ética dos recursos disponíveis no planeta, na aposta crescente nas energias renováveis e no respeito integral pelos seres vivos e pelos ecossistemas. Comprometemo-nos a tudo fazer para que isto seja possível. 5. Estamos
particularmente convencidos de que a necessária e urgente
99. Além disso, o que se consome em leguminosas e água para o gado daria para alimentar 2 mil milhões de seres humanos, quase um terço da população do planeta, o dobro daqueles que neste momento morrem ou padecem de fome. Perante esta realidade, os relatórios cientícos da ONU insistem que só uma redução drástica do consumo de carne e lacticínios pode hoje salvar o planeta, sendo uma dieta vegetariana a única sustentável para alimentar os previsíveis 9 mil milhões de habitantes em 2050.
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mutação do paradigma civilizacional exige e depende de uma profunda mutação da consciência individual e colectiva, que tem de começar por cada um de nós agora mesmo. Por isso empenhamo-nos em dirigir a atenção para o nosso íntimo, vigiar as intenções subjacentes a pensamentos, palavras e acções e pormo-nos sempre no lugar do outro, humano, animal ou mundo natural, antes de tomar decisões que o vão afectar, tal como a nós mesmos. Estamos conscientes de que isto tem de incluir os que actualmente percepcionamos, também em função dos nossos limites, como adversários, hostis ou inimigos. Esforçar-nos-emos para que as nossas decisões sejam sempre movidas pela sabedoria, pelo amor e pela compaixão e visem o maior bem comum possível. Para que isto aconteça empenhamo-nos em promover uma cultura da expansão da consciência, que alguns chamam espiritualidade, que pode ser laica e não religiosa, baseada em valores transversais a crentes, ateus e agnósticos, como o amor, a compaixão, a solidariedade, a generosidade, a paz e a justiça. Importa que essa cultura, orientando a mente para o bem comum de todos os seres e do planeta, seja o centro de uma nova educação e se reicta em todos os níveis dos sistemas de ensino. Há que formar novas gerações de cidadãos conscientes e responsáveis que se empenhem numa nova intervenção social, cívica e política, radicalmente não-violenta e movida pela sabedoria, amor e compaixão universais. Deles surgirão novas pessoas que ocuparão os novos centros de decisão política, económico-nanceira e administrativa, assumindo responsabilidades institucionais e governativas em prol do bem comum global. Para tal parecenos essencial transitar da democracia representativa para a participativa, assegurando aos eleitores mecanismos de scalização ecaz dos eleitos. Estamos conscientes da urgência de novas formas de liderança e exercício do poder, o mais descentralizadas e partilhadas possível. O poder é um serviço e uma responsabilidade, não um usufruto movido por interesses pessoais e de grupos. Estamos decididos a redignicar a política, emanci pando-a dos poderes económico-nanceiros, vinculando-a à cultura da expansão da consciência e pondo-a ao serviço de uma ética do bem comum de todos os seres e da Terra. Apesar da aparência preocupante e caótica do estado actual do mundo, 176
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estamos decididos a não nos deixarmos dominar pela tristeza, desalento, desespero, angústia ou agressividade. Somos já milhões em toda a Terra a construir esta nova realidade nas nossas vidas, com alegria e conança nos imensos resultados benécos já evidentes. Com o eloquente exemplo destes benefícios, e da nossa acção baseada na paz, na alegria e na conança, sabemos que cada vez mais consciências despertam e despertarão para esta profunda mudança. *** Se concordas com os princípios desta Carta, assina-a e divulga-a por todos os meios, traduzindo-a para a tua língua, partilhando-a por correio electrónico e pelas redes sociais, imprimindo-a e axando-a na tua escola, local de trabalho ou noutros espaços públicos. Organiza também grupos de reexão e sessões para a sua leitura e debate. Todos necessitamos de todos para a urgente mudança global. O bem do planeta e dos seres não pode esperar mais. Sê desde já a diferença que queres ver no mundo. Bem hajas!
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VII. Conselhos gerais, enquadramento e estrutura de uma prática regular Como vimos ser sugerido pela própria etimologia da palavra meditação , esta supõe um exercício e uma prática aplicados, regulares e constantes, de modo a cuidarmos efectivamente do nosso bem e do bem de todos. A meditação é um caminho que exige que caminhemos, superando as nossas próprias preguiça, resistências e obstáculos, o que ninguém pode fazer por nós. Os resultados e os frutos – desde as simples concentração, calma e clareza mentais até à abertura altruísta do coração e ao despertar da consciência – só podem resultar, como tudo na vida, de reunirmos metodicamente as causas e as condições adequadas e estas são a nossa prática e treino diários (como sabemos, felizmente não há e jamais haverá um comprimido ou uma injecção que nos coloque em meditação... C). Isso signica ser necessário um mínimo de disciplina e de estrutura na nossa prática meditativa, não a deixando ao sabor da utuação dos acontecimentos ou dos nossos humores e boas ou má disposições. Como se costuma dizer: o segredo da meditação reside em praticá-la não só quando nos apetece, mas sobretudo quando não nos apetece . De outro modo, as nossas mentes e as nossas vidas permanecerão reféns das tendências subconscientes, dos hábitos e das zonas de conforto onde estamos bem ou mal instalados e nada jamais verdadeiramente mudará. Continuaremos com a insatisfação e os problemas de sempre, muitas vezes agravados, mas sem nada fazer, por pura preguiça, inércia e comodismo. Ou então caremos à mercê de que alguma crise, adversidade ou sofrimento profundo aconteçam para só então procurarmos desesperadamente uma solução, quando a crise e o sofrimento poderiam haver sido evitados ou diminuídos e melhor geridos se antes nos tivéssemos dedicado a treinar a mente para permanecer em paz, com clareza e abertura, independentemente das circunstâncias externas. É por isso mais sensato e prudente não esperar que tudo corra mal para nos dedicarmos à meditação. Quando mais necessitamos de meditar é precisamente quando tudo corre bem e achamos que não precisamos da meditação para nada . Se o zermos, pode surgir a grata descoberta de 178
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que, independentemente das coisas correrem bem ou mal, podemos estar profundamente bem, descobrindo uma paz, uma serenidade, uma conança e uma felicidade que vêm de dentro e não dependem de algo que possa acontecer ou não, que se possa ter ou não, que se possa ganhar ou perder, ou seja, de algo que não possamos controlar. Só esse estar bem é verdadeiro e duradouro e só nele podemos conar. Muitos de nós não gostamos da palavra “disciplina”, mas na verdade todos nós praticamos assídua e rigorosamente essa disciplina que em geral tanto recusamos, no que respeita à meditação, em imensas actividades da nossa vida, às quais nos aplicamos de forma metódica, constante e hiper-estruturada. Se virmos bem, levantamo-nos todos os dias da cama, tomamos banho, vestimo-nos, tomamos o pequeno-almoço, vamos trabalhar, almoçamos, regressamos do trabalho, vamos buscar os lhos à escola ou fazer outra coisa, jantamos, vemos televisão, vamos para o computador ou lemos e despimo-nos para ir dormir. Esta é em geral a estrutura de base das nossas vidas, à qual acrescentamos umas poucas variantes. As nossas vidas são extremamente disciplinadas, estruturadas e rotineiras (e muitas vezes enfadonhas), mas sobretudo para fazer mil e uma coisas – sobretudo o que produzimos e consumimos - que não resultam senão em insatisfação e que são na melhor das hipóteses inúteis e na pior prejudiciais, não só para nós, mas para os outros, a sociedade, os demais seres vivos e o planeta. O que aqui se propõe é que façamos da meditação diária um ingrediente desta disciplina, mas um ingrediente não rotineiro, não inútil e não prejudicial, nem a nós nem a ninguém: pelo contrário, um período da nossa vida em que saímos da rotina e desligamos o piloto automático para recuperar a experiência da frescura e do maravilhamento de estarmos vivos, sempre pela primeira vez, a cada instante, fazendo algo que ao mesmo tempo desenvolve e faz orescer e fruticar todo o nosso imenso potencial cognitivo e afectivo, asxiado e atroado pelos afazeres e preocupações quotidianos com que cedemos à pressão de uma sociedade e de um sistema organizados não para a Vida plena mas para uma imitação e um sucedâneo dela. É precisamente para não sermos cúmplices de mecanismos que tendem a fazer de cada um de nós um “cadáver adiado que procria”, como escreveu Fernando Pessoa, que importa que, do mesmo modo que lavamos e alimentamos dia179
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riamente o corpo, despertemos para a necessidade de lavar e alimentar diariamente a mente, mediante os exercícios aqui propostos. De outro modo, arriscamo-nos a andar limpos e nutridos por fora, mas interiormente sujos e poluídos por todo o tipo de pensamentos e emoções destrutivos, para nós e os outros, bem como subnutridos e carentes das proteínas, vitaminas, sais minerais e demais nutrientes dos quais depende o nosso crescimento interno: a paz, a sabedoria, a alegria, o amor e a compaixão. É nesse sentido que propomos aqui uma estrutura para a nossa prática diária, acompanhada por alguns conselhos e informações que poderão ser úteis para facilitar a experiência, superar obstáculos e avaliar do nosso progresso ao longo do caminho.
1. Conselhos gerais 1.1. Duração A base do nosso treino meditativo e contemplativo deve ser a meditação sentada e aconselha-se que a duração diária desta seja no mínimo de 20 a 30 m, podendo natural e progressivamente estender-se a períodos mais longos de prática, dependendo da nossa motivação e investimento, o que naturalmente conduzirá a frutos e benefícios maiores, mais profundos e mais rápidos. Esse tempo pode ser dividido em duas sessões por dia e no início convém que cada sessão seja por sua vez dividida em mini-sessões curtas, entre 3 a 5 minutos, de modo a que terminemos quando ainda temos vontade de praticar, não deixando surgir aborrecimento ou aversão em relação à prática. Se estivermos mais motivados, podemos fazer duas sessões diárias de 20 a 30 minutos, idealmente de manhã e ao entardecer.
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1.2. Hora do dia A melhor hora para meditar é de manhã cedo ou logo após o acordar. O ideal é lavarmos a cara ou tomarmos o banho matinal e sentarmo-nos para entrar na experiência meditativa e cultivar as qualidades de paz, clareza, concentração e abertura bondosa que queremos levar para a pósmeditação ao longo de todo o dia, de modo a impregnarem tudo o que pensarmos, dissermos e zermos. É preferível meditar em jejum, se for de manhã, mas, se a fome nos incomodar e distrair, podemos comer algo ligeiro. Convém não meditar com a barriga cheia. Outra hora mais oportuna é ao entardecer, de modo a levarmos para o sono uma mente limpa e livre de toda a confusão e negatividade e cultivada com todas as boas qualidades, que assim se impregnarão e desenvolverão nos tecidos e patamares mais fundos e subtis da consciência. Caso por enquanto não consigamos praticar de manhã e à tarde, é claro que todas as demais horas do dia são boas para meditar. Se o zermos à noite, antes de dormir, em geral vamos adormecer melhor e dormir mais profundamente, mas uma pequena minoria de pessoas pode car um pouco mais desperta e levar mais algum tempo a adormecer. Se assim for, praticamos um pouco mais cedo.
1.3. Lugar Como já vimos, todos os lugares e situações são adequados, à medida que as nossas mentes se tornam menos vulneráveis à inuência e depen dência das condições externas. Porém, sobretudo no início, convém escolhermos um espaço tranquilo, arejado e nem muito nem pouco iluminado. Convém ainda que seja um espaço simples e despojado, com poucas coisas que nos atraiam e distraiam a atenção e onde não sejamos incomodados ou interrompidos durante a sessão de prática. Para esse efeito é melhor não ter telemóveis ou outros instrumentos de comunicação perto de nós. Vestimos roupas largas e confortáveis, descalçamos os sapatos e sentamonos numa almofada ou numa cadeira. 181
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1.4. Enquadramento. Tripla Confança e Compromisso
Se quisermos enquadrar a nossa prática meditativa mais assumidamente numa via espiritual e ética laica e universalista, conforme é proposto neste livro, propomos que, antes de começarmos a nossa prática diária – e antes mesmo dos três pontos da preparação - , leiamos três vezes o seguinte texto, reectindo e meditando no seu signicado e deixando que ele se impregne em níveis cada vez mais profundos do nosso ser e da nossa consciência. Chama-se Tripla Conança e Compromisso e visa despertar em nós três formas de conança e de compromisso que criem a melhor motivação e inspiração para a nossa prática e se estendam a toda a nossa vida: 1 - a conança na nossa natureza profunda, comum a todos os seres, e nas nossas qualidades fundamentais, comprometendo-nos com o seu desenvolvimento; 2 - a conança em tudo o que nos leva a descobrir essa natureza profunda e a desenvolver essas qualidades, bem como na nossa capacidade de o fazermos plenamente, comprometendo-nos com isso; 3 - a conança na comunidade de todos os que alcançaram e alcançam a perfeição por esta via, embora de modos diversos, tomando consciência que não estamos isolados e sozinhos neste caminho e comprometendonos a respeitar e apoiar esta comunidade universal e não institucional, à qual todos potencialmente pertencemos. De notar que este compromisso não é senão connosco próprios e com a nossa natureza profunda, não nos vinculando a nada de exterior a quem realmente somos. Para que se desenvolva uma consciência e um coração mais amplos e abertos à natureza profunda das coisas e à não separação entre nós e os outros, propomos que ao fazermos estas declarações consideremos que o fazemos perante todos os seres e pelo seu bem profundo. Tripla Confança e Compromisso 1 – Cono
plenamente na natureza profunda, original e incondicionada que há em mim e em todos os seres sencientes e no inerente potencial de desenvolvermos sabedoria, paz, amor e compaixão ilimitados. Com182
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prometo-me, perante todos os seres e pelo seu bem profundo, a tudo fazer nesse sentido. 2 – Cono plenamente nos diversos ensinamentos, métodos e práticas que
nos levam a reconhecer essa natureza profunda e a percorrer a via do desenvolvimento de sabedoria, paz, amor e compaixão ilimitados, bem como na minha capacidade de a seguir até à perfeição. Comprometo-me, perante todos os seres e pelo seu bem profundo, a tudo fazer nesse sentido. 3 – Cono plenamente na comunidade de todos os que alcançaram a per-
feição seguindo essa via e dos que ainda a seguem de modo autêntico, mediante uma diversidade de processos, formas e modos. Comprometome, perante todos os seres e pelo seu bem profundo, a tudo fazer para respeitar e apoiar essa comunidade, que não se reduz a nenhuma forma institucional e a nenhuma tradição ou religião especícas. Caso não nos reconheçamos nestas ou em parte destas três declarações, podemos obviamente dispensá-las e fazer a nossa prática esquecendo esta proposta.
1.5. Estrutura de uma sessão formal e de uma prática regular A nossa proposta visa integrar os diversos exercícios e métodos meditativos expostos no capítulo V, em particular nos pontos 3, 4 e 5, que visam respectivamente (3) focar e estabilizar a mente, com clareza e descontracção (śamatha ), (4) abrir o coração e desenvolver amor e compaixão universais e imparciais (Troca ) e (5) investigar a natureza da mente e descobrir a consciência natural e originalmente desperta (vipaśyāna ). Os pontos 1, 2 e 6, referentes à preparação, à postura e à dedicatória devem integrar sempre as nossas sessões formais: começamos sempre pela preparação e pela postura e concluímos com a dedicatória. Como vimos, se acharmos que faz sentido, nos motiva e nos inspira, podemos começar por ler três vezes a Tripla Conança e Compromisso antes de cada sessão formal. 183
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Uma possibilidade é começarmos por sessões formais diárias onde integremos sempre um exercício de estabilização da atenção mental a par da Troca , ou seja, o conteúdo dos pontos 3 e 4 do capítulo V. Após a Tripla Conança e Compromisso (se for o caso), a preparação (ponto 1) e a postura (ponto 2) podemos começar por dedicar uma semana a cada um dos quatro focos da atenção plena: o corpo e as sensações físicas; a atenção plena à respiração e às sensações respiratórias, explorando os vários métodos respiratórios até que se torne evidente qual o mais ecaz para nós neste momento; os fenómenos mentais; os fenómenos “externos”, usando os vários objectos dos sentidos, por exemplo um por dia. Ao mesmo tempo que dedicamos cada semana a um desses focos, dividindo o tempo diário disponível para cada sessão de prática em mini-sessões curtas de 3 a 5 minutos em que os usamos, procuramos que na mesma sessão haja sempre um período nal para a Troca , a qual podemos começar por praticar de modo completo, abrangendo tudo o que está descrito nos pontos 4.1 a 4.5 do capítulo V, ou então segundo a forma gradual descrita em 4.6. Entre cada mini-sessão devemos sempre incluir um período mais curto de meditação sem objecto e o estiramento da coluna, conforme descrito nos pontos 3.2 e 3.3. Se estamos na semana de praticar a atenção plena às percepções sensoriais, podemos fazer a meditação sem objecto com todos os sentidos despertos, conforme descrito no ponto 3.7. No nal é muito importante nunca deixarmos de fazer a dedicatória (ponto 6). No nal destas quatro semanas podemos recomeçar o mesmo programa ou então, caso se tenha tornado evidente qual ou quais dos quatro focos são mais úteis e ecazes para cada um de nós neste momento estabilizar a atenção e acalmar a mente, passar a usar apenas um ou dois desses focos nas nossas sessões diárias, sempre a par da Troca . Quando sentirmos que começamos a estar bem focados, com a mente imóvel, calma, descontraída e clara, sem distracções ou com um mínimo, a par de outros sinais de progresso adiante descritos, pelo menos durante o tempo das curtas mini-sessões de prática (3-5 minutos) ou durante um tempo maior, podemos começar a integrar os exercícios da visão penetrante descritos no ponto 5, que aplicamos aos focos que usarmos (5.1) ou à experiência da meditação sem objecto (5.2). Mantemos sempre a prática 184
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da Troca após estes exercícios, no nal de cada sessão formal, e podemos aplicar a visão penetrante à experiência nal da Troca , como vimos em 5.2. Quando começarmos a conseguir fazer isto com à vontade e clareza, quando a mente começar a car livre de confusão, agitação e torpor e assim mais utilizável para o autoconhecimento profundo, é chegado o momento de passarmos aos exercícios propostos no segundo volume deste livro. Não devemos contudo ter pressa e ansiedade de resultados e precipitar-nos a imaginar que já desenvolvemos qualidades cuja actualização pode demorar vários ou muitos anos, dependendo da nossa predisposição, motivação, investimento e diligência na prática. Neste caminho devemos precaver-nos de todo o auto-engano e não ccionar egocentricamente um progresso e uma evolução que não temos, o que se converterá no pior dos obscurecimentos, o de não vermos os obscurecimentos que temos, e só poderá ter resultados nocivos para nós e para os outros.
1.6. Os cinco obstáculos à atenção plena e respectivos antídotos Há muitos obstáculos que surgem normalmente quando tentamos meditar. Os tratados das milenares tradições meditativas da humanidade identicam-nos sistematicamente, bem como aos seus antídotos, mas vamos aqui cingir-nos aos mais elementares, que todo o praticante encontra no início e ao longo da sua prática.
1.6.1. Preguiça ou adiamento O primeiro é a preguiça ou o adiamento. Podemos ter algum interesse e motivação para meditar e termos até tomado a decisão de começar uma prática regular, mas deixamo-nos dominar pelos nossos hábitos e rotinas, acomodamo-nos na nossa zona de conforto e dia após dia vamos deixando para depois o momento de o fazer. Podemos também já ter iniciado a prática, mas, após o entusiasmo inicial, deixamos um dia de a fazer, depois outro e regressamos ao hábito de nada fazer ou adiar cada vez mais: 185
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para amanhã, para o m-de-semana, para quando tiver mais tempo, para quando me sentir mais bem disposto ou inspirado, para nunca!... Por vezes não praticamos porque tudo parece correr bem e outras porque tudo parece correr mal... No preciso instante em que surgirem estes pensamentos, há que reconhecê-los como simples pensamentos e deixá-los passar, sem nos identicarmos com eles e sem sermos assim por eles dominados, tal como aprendemos atrás. Há também que recordar nesse mesmo momento as desvantagens de não meditar – ter a atenção dispersa e a mente instável e agitada, sujeita ao stress e ansiedade constantes inerentes ao medo, insegurança, apego, avidez e aversão, ser assim arrastado a todo o tipo de acções nocivas para nós e os outros, etc. – e, complementarmente, os benefícios e o propósito de meditar: libertar a mente de tudo isso e ter uma vida mais calma, lúcida, pacíca e feliz, uma vida mais consciente, ética e plena. Ao fazer isto, em vez de perdermos tempo a tentar justicar ou a lamentar a nossa preguiça e a culpabilizarmo-nos sem nada fazer, o que é sermos ainda dominados por ela, sentamo-nos e meditamos no próprio momento ou na hora que destinámos para tal.
1.6.2. Esquecimento O segundo obstáculo consiste em, no decorrer da prática, esquecermonos do que é suposto estarmos a fazer, caindo numa distracção total ou quase constante. Podemos estar numa postura física e exterior correcta, com a aparência de sermos bons ou perfeitos praticantes, mas interiormente, em vez de focarmos a mente no corpo, na respiração ou no método que pretendemos praticar, começamos por exemplo a programar o m-de-semana, as férias ou a viagem que queremos fazer daqui a uns anos, a preparar mentalmente a lista de compras no supermercado ou a recordar o que alguém disse ou fez no passado e a alegrarmo-nos ou irritarmo-nos com isso. Sempre que damos conta desta distracção, em vez de perder tempo a lamentar o esquecimento e a culpabilizarmo-nos, regozijamo-nos pelo facto de estarmos enm atentos a ele e corrigimo-lo imediatamente, fa 186
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zendo o que é suposto estarmos a fazer e reforçando a determinação de não nos deixarmos distrair. Isto é no fundo o que acontece ao longo de todas as sessões e métodos meditativos.
1.6.3. Agitação Outro obstáculo frequente é obviamente a agitação mental, a proliferação em catadupa de pensamentos, diálogos, imagens e emoções, a qual alimentamos e agravamos reagindo-lhe com a tentativa de a deter ou com juízos e comentários que podem também ser de culpabilização por não aceitarmos que isto esteja a acontecer, sobretudo quando – pensamos nós - era suposto estarmos a meditar e ter a mente mais calma. Quando nos encontramos nesta situação, e como já foi atrás referido nas indicações sobre a direcção do olhar, o antídoto consiste em focá-lo mais perto e mais para baixo, fechando mais o leque da visão, chegando mesmo a focar na ponta do nariz. Se o espaço onde estamos estiver muito iluminado, convém também reduzir a iluminação. Em termos mentais, há que começar por aceitar a agitação e não lhe dar importância, não tentando lutar contra ela, o que só vai aumentá-la. Se estamos a usar o método de observar os pensamentos, contemplamos a agitação. Contemplando-a com aceitação, seremos menos afectados por ela e deixaremos de a alimentar, o que lhe retirará força. Se estamos a usar outro foco, mantemos a mente aí e deixamos os pensamentos uírem, por mais numerosos e agitados que sejam, sem lhes darmos a mínima importância. Se perdermos o foco, camos contentes por estarmos conscientes disso e regressamos a ele, sem dramatizar.
1.6.4. Torpor Um obstáculo também frequente e contrário à agitação é o torpor, que se pode converter em sonolência. Por vezes podemos cair num estado mental e físico de grande relaxação, sem muitos pensamentos, mas no 187
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qual a mente ca entorpecida, num estado de letargia onde a consciência perde vivacidade e tende para o sono. Este não é de modo nenhum o ob jectivo da meditação, que pelo contrário visa pacicar a mente tornando-a ao mesmo tempo mais viva. Quando isso acontece, e como vimos na mesma secção sobre a direcção do olhar, o antídoto adequado consiste agora em focá-lo mais longe e mais acima, abrindo mais o leque da visão. Se o espaço estiver pouco iluminado, convém fazer entrar mais luz. Interiormente, tentamos despertar a mente tomando consciência do torpor sem nos afundarmos nele e intensicando a nossa concentração no foco. Se o torpor continuar, podemos visualizar no espaço diante e acima de nós uma luz branca muito intensa e brilhante. Isso vai ajudar a despertar e vivicar a mente. Se nada disto resultar, levanta mo-nos e molhamos a cara, voltando a sentar-nos para continuar a sessão.
1.6.5. Excesso na aplicação dos antídotos Ao aplicarmos os antídotos aos dois obstáculos anteriores, baixando ou subindo a direcção do olhar e estreitando ou alargando o leque da visão, podemos exceder o necessário e cair no obstáculo oposto. Temos então de voltar a aplicar o antídoto adequado até descobrirmos o ponto de equilíbrio em que a mente não esteja nem tensa e agitada nem frouxa e entorpecida. Vamos regulando assim a direcção do olhar em função do estado mental e do que sentirmos que é mais ecaz para nós, até repousarmos imóvel e confortavelmente na orientação correcta.
1.7. Os cinco estádios da calma mental Na tradição budista usam-se cinco imagens para descrever as cinco grandes fases do progresso até à perfeição da calma e da estabilidade mentais (śamatha ). Estas metáforas podem ajudar-nos a avaliar o estado em que as nossas mentes se encontram na demanda de uma concentração pacíca e clara. No início diz-se que o uxo dos pensamentos involun 188
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tários é como uma cascata, a seguir como um rio que corre rapidamente por um desladeiro, depois como um rio que corre lentamente num vale, a seguir a mente torna-se calma como um oceano sem ondas, mas onde o sopro do vento ainda as pode ligeiramente suscitar, e por m a mente é como uma montanha, imóvel e inabalável, por maiores e mais violentas que sejam as tempestades que se levantem à sua volta. Imóvel e inabalável, note-se, mas ao mesmo tempo livre de egocentrismo, impregnada de amor e compaixão e por isso muito sensível às necessidades dos outros e totalmente disponível para lhes acudir, o que se procura desenvolver mediante a Troca (V. 4), que é o complemento indispensável de todos os exercícios descritos em V.3. Tal como um bom cirurgião que, para poder realmente beneciar quem opera, não pode ter a mente instável e a mão a tremer no decorrer da intervenção cirúrgica.
1.8. O não apego às três experiências Na mesma tradição budista consta que, quando começamos a desenvolver uma profunda estabilidade mental, podem surgir três experiências, separadas ou simultâneas: 1. um grande bem-estar físico e mental, por vezes uma felicidade extática sem razão; 2. uma grande clareza mental, que pode ser acompanhada de formas de clarividência e da percepção dos pensamentos alheios; 3. uma completa ausência de pensamentos e um vazio que é simultaneamente uma plenitude. Convém não carmos des lumbrados com estas experiências e apegados a elas, ao ponto de meditarmos com a expectativa e o desejo de as voltar a ter, o que é a melhor forma de as impedir. Vivemo-las com desapego pois normalmente são apenas experiências transitórias e fugazes que, se nos prendemos a elas, nos obscurecem a nível subtil e mais difícil de reconhecer, impedindo o pleno despertar da consciência. Quando surgem, convém aplicar os exercícios da visão penetrante (vipaśyāna ) descritos em V. 5. e em particular a interrogação e investigação de se há nestas experiências algo que corresponda ao conceito de “eu” ou de “meu”, se sou “eu” que estou a ter estas experiências e se elas são “minhas”, se há nelas um sujeito e um objecto reais, 189
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permanentes e independentes e se são absolutamente satisfatórias. Sem nos apegarmos a elas, contemplamos a sua emergência e a sua dissipação, sem deixar rasto, tal como nos treinamos para fazer com todos os demais fenómenos mentais, pensamentos, palavras e emoções.
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Conclusão – Uma via aberta e um eterno começo A conclusão deste livro não me compete, sendo antes um desao a cada um de nós. Na verdade não é uma conclusão, mas um começo e um eterno começo, pois a via aqui aberta é uma via para habitarmos a cada instante a frescura da nossa comum natureza profunda ou consciência original, anteriores a tudo o que pensamos e julgamos ser e saber a respeito de nós, dos demais seres e da realidade. A experiência meditativa e contemplativa e a ética integral dela inseparável são a acção, simultaneamente interna e externa, que é o alimento central desta via que não visa levar-nos a lado algum senão ao que realmente somos, o que não coincide necessariamente com aquilo com que neste momento nos identicamos, nem com o que pensamos, imaginamos ou desejamos ser. A via aqui aberta é uma via de autodescoberta para além de todas as cções da consciência, individuais e colectivas. Nesse sentido é uma via de autorealização, pois tanto mais reais seremos quanto menos ccionarmos ou fantasiarmos o que somos, nós, os outros e o mundo. E o que ou quem somos nós, anal? É esta a questão fundamental que atravessa todo este livro e à qual respondem ou procuram responder todas as tradições espirituais, religiosas e losócas da humanidade, continuadas desde há séculos pelas várias ciências modernas e contemporâneas. E é esta a questão radical da qual a nossa civilização e as nossas sociedades de produção, consumo e distracção generalizada nos visam preservar, porventura porque colocá-la e respondê-la extirpa a sua raiz e abala o seu fundamento: a ignorância. A raiz e o fundamento das vidas ctícias, articiais e fúteis que nos são propostas e que aceitamos e procuramos como modelo e exemplo de normalidade, apesar de quase sempre e em última instância não nos trazerem senão insatisfação, sofrimento e decepção. Libertar-nos da ignorância acerca de quem somos e, por via das acções que daí resultam, do consequente sofrimento, nosso e de todos os seres, é pois, como vimos, o desao e a questão central das nossas vidas. Mas qual a resposta certa a esta questão fundamental - quem sou, quem somos? - , de entre as imensas respostas diferentes das mais veneráveis 191
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tradições espirituais, religiosas, losócas e cientícas da humanidade? Como vimos, a proposta deste livro é que não nos satisfaçamos com a mera aceitação passiva, irreectida, inquestionada e não vericada de uma qualquer resposta dada por qualquer uma dessas tradições, por mais respeitáveis que elas ou os seus fundadores e representantes sejam ou pareçam. Isto, como é óbvio, abrange as respostas que o autor deste livro foi encontrando e que aqui sugere. Esta questão fundamental - o que ou quem sou eu, o que ou quem somos nós? - é uma questão que pela sua natureza não pode ser autenticamente colocada senão por cada um de nós, tal como é por cada um de nós que a sua resposta tem de ser procurada e em cada um de nós que tem de ser encontrada. Ninguém nos pode substituir nisso. Nenhuma resposta alheia merece absoluto crédito, por mais coerência lógica e intelectual que pareça ter, por maior probabilidade ou veracidade racional que lhe possamos atribuir e por maior conança que possamos genuína e fundadamente depositar no seu portador, pela virtude, sabedoria ou santidade do seu exemplo de vida. É por isso que este livro não pretende propriamente oferecer uma resposta a essa questão fundamental, mas antes uma rme exortação a que a coloquemos - despertando da letargia mental e existencial em que nos encontramos - , exercícios que podem facilitar-nos o encontrá-la por nós mesmos e linhas orientadoras de acção para disponibilizarmos as nossas vidas simultaneamente para o bem comum e para essa demanda radical e última. Ou então, noutro sentido, este livro oferece-nos exercícios e linhas orientadoras de acção para não obstaculizarmos e obscurecermos a resposta que a vida, o ser e a consciência naturalmente nos oferecem, mas à qual muitas vezes persistimos em nos fechar, distraindo-nos com algo aparentemente mais cómodo e fácil, mas anal aprisionador e alienante. Esta ausência de pretensão a oferecer uma resposta não contradiz a partilha das nossas convicções mais profundas, pois elas são apenas aquelas a que neste momento chegámos pela nossa própria busca e experiência meditativa, tanto reexiva como contemplativa. Não são a resposta a que a leitora ou leitor pode e deve chegar, se o desejar e zer por isso, pela sua própria busca e experiência. E esta é uma diferença fundamental. Mesmo que em termos formais e exteriores as nossas respostas possam coincidir, 192
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o caminho e a experiência que a elas nos conduz é radicalmente singular e diverso, por mais anidades e pontos comuns que possa ter. Se num sentido os exercícios aqui propostos nos podem ajudar a encontrar essa resposta por nós mesmos, num outro apenas nos abrem ao reconhecimento da resposta já desde sempre presente em nós próprios, a resposta que somos, presente no mais fundo do nosso ser, da nossa vida e da nossa consciência. Sim, porque a resposta à questão “quem somos?” não pode ser outra senão isto a que chamamos eu/nós . E o que é isto, para além da etiqueta verbal e conceptual “eu/nós” e para além das suas múltiplas e diferentes interpretações e denições consagradas nas tradições e nos livros da humanidade? Que experiência é esta na qual comodamente colamos o rótulo "eu/nós"? Sugerimos aqui que regressemos à essência das interrogações e investigações radicais atrás propostas (V, 5.1. e 5.2.). Esta experiência de estarmos aqui, vivos e conscientes, é a experiência de algo ou alguém separado do outro, dos outros seres e do mundo ou a de algo ou alguém intimamente conectado a tudo e todos? É uma experiência fechada numa forma, com fronteiras e limites, ou aberta, imensa e ilimitada? É a experiência de eu ser eu 100, de nós sermos nós, ou a de algo mais amplo, poderoso e indescritível? É a experiência de um ponto isolado ou a de um espaço imenso, vivo e consciente que a tudo abrange e onde tudo se interconecta? Se colocarmos esta questão sinceramente e do fundo do coração, com a autenticidade de uma criança, não meramente com o intelecto e a mente saturada e obstruída de informação, este mesmo fundo do coração nos dará a resposta que desde sempre lá está pois é a resposta que desde sempre ele mesmo é, a resposta anterior a toda a questão e na qual toda a questão se silencia e dissolve. Poderemos então eventualmente experimentar que o fundo do nosso coração não é uma coisa separada de uma outra, um eu separado de um outro, um sujeito separado de um objecto, mas o fundo sem fundo do coração de todos os seres e coisas, o fundo sem fundo do coração do mundo, o fundo sem fundo do Coração da Vida. 100. Podemos recordar aqui Bernardo Soares: “Conhece alguém as fronteiras à sua alma, para que possa dizer – eu sou eu?” – Bernardo SOARES, Livro do Desassossego , in Fernando PESSOA, Obras , II, organização, introdução e notas de António Quadros, Porto, Lello & Irmão – Editores, 1986, p.823.
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Aconteça esta ou qualquer outra experiência e evidência, já sabemos o que fazer: não questionamos nem procuramos mais e repousamos imediatamente nisso mediante a concentração calma e clara desenvolvida na meditação contemplativa ao longo dos exercícios anteriores. E assim podemos romper o véu da ignorância, acordar do sono da dualidade, quebrar a concha da mente conceptual e abrir ou reconhecer um espaço de Vida desperta na letargia dos automatismos subconscientes que dominam a vida convencional, supercial e aparente. Esse espaço é - na hipótese de trabalho que aqui deixamos, sujeita à vericação dos leitores - o espaço da natureza profunda e da vida original, nossa e de tudo. Descobri-lo é a fonte da mais pura sabedoria, paz e alegria, bem como do mais genuíno amor e compaixão por todos os seres, que se revelam então, seja qual for a sua forma e actividade, simultaneamente inseparáveis de nós e manifestações sagradas e únicas desse espaço sem dimensões que é o próprio Coração da Vida. Descobrir esse espaço, ampliar o seu reconhecimento em todas as experiências e situações da vida, bem como em todos os seres e fenómenos - não só intelectualmente, mas numa experiência profunda que não deixe margem para hesitações e dúvidas - , dilatar o amor e a compaixão que daí brotam até à imparcial universalidade, é a via da plena autorealização. Não temos dúvidas de que segui-la, minimamente que seja, confere um sentido e um sentimento de graticação, preenchimento e satisfação às nossas vidas de que a vida rotineira e banal das nossas sociedades carece completamente e cuja falta é a grande lacuna da actual civilização e a fonte da sua crise e do seu fracasso. Estamos convictos que, se formos autênticos e empenhados no colocar da questão radical acerca de quem somos e, com a ajuda dos exercícios aqui propostos, no aprofundar meditativo, contemplativo e ético da experiência que daí resulta, encontraremos uma via para uma vida mais esclarecida e com ela para uma sociedade mais desperta, fraterna e solidária. Estamos também convictos que esta espiritualidade e ética laicas - inseparáveis, pois o que designamos aqui como espiritualidade não é senão o despertar fraterno e activo da consciência - são transversais a todas as religiões, ateísmos e agnosticismos e podem ser praticadas por todos os crentes e descrentes sem terem de abandonar a sua crença, descrença ou absten194
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ção de ambas. Cada um pode interpretar o que designamos como natureza profunda e vida ou consciência original à luz e no contexto da sua própria visão do mundo, sem que a sua experiência, facilitada pelos exercícios aqui propostos, deixe de ser singularmente convergente e ter a mesma ecácia de pacicar, despertar e libertar a mente e o coração. O importante não são os conceitos, palavras, símbolos e ritos, mas a experiência e a Vida. Os primeiros só fazem sentido se nos ajudarem a transcendê-los numa Vida mais desperta, fraterna e plena. Estamos convictos que, ao seguirmos esta via, cada um de nós será o fundador e o pioneiro de uma nova cultura e de uma nova civilização, amigas da Terra e de todos os seres. E essa será a melhor conclusão deste livro, pela qual somos todos responsáveis. Sem conclusão, pois não há limites para a innita perfeição e plenitude que somos e a que somos chamados. Pois não somos chamados senão a ser o que verdadeiramente somos, sem limites nem reservas, sem concessões nem compromissos. Saúde, Irmãos!
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