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Papo de Garota Valeria Piassa Polizzi * Crônicas publicadas na revista Atrevida
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É pra você, Marcelo. Quando comecei a escrever meu primeiro livro — Depois daquela viagem * —, eml994, estava fazendo um tratamento tuberculose renal (uma oportunista que tive decorrente da AIDS). de Fraca e debilitada, quase nãodoença podia sair de casa, meus amigos vinham me visitar nos fins de semana. Eu adorava. Fazíamos a maior farra, e eles sempre me cobrando que eu escrevesse logo o livro. Mas chegava segunda-feira, cada um tinha que seguir com a sua vida: faculdade, estágio, trabalho... E eu ficava sozinha, num tédio total, às vezes com vontade de desistir de tudo. Numa dessas segundas-feiras, sem vontade de sair da cama, olhando para a estante, certo livro começou a piscar para mim: Feliz Ano Velho, de Marcelo Rubens Paiva. Como todo mundo, eu já o tinha lido na adolescência — conta a história, de da umestante garoto edeo 19 anos que fica tetraplégico e repensa suaestava vida. Tirei o livro li todinho novamente. Me dei conta de quea eu fazendo o mesmo, escrevendo a minha história e repensando a minha vida. Mas o que me angustiava era não saber se eu teria tempo de acabar e se valeria a pena. O Marcelo também terminava o seu livro dizendo que não sabia se era melhor ele estar vivo ou ter morrido. Aquilo me intrigou. Peguei o telefone, liguei para a minha amiga Priscila, sua fã incondicional. — E aí, Pri, o que aconteceu com aquele tal de Marcelo? Ele está superbem. Escreveu outros livros, o Blecaute, o Bala na Agulha... E tem uma coluna às segundas-feiras na Folha de S. Paulo. Puxa, ele devia estar bem mesmo. E o meu problema de segunda-feira resolvido. Um jornal atrás da porta que conseguia me tirar da cama. Aquele tal de Marcelo, tão distante e ao mesmo tempo tão próximo, aquela coluna que falava de tudo: de que a vida podia ser tão complicada a ponto de dar vontade de chorar ou simples de nos fazer rir. Em 1997, acabei de escrever o meu livro. Publicar e assumir toda a minha história era a questão agora. Vesti minha cara-de-pau e fui atrás do Marcelo. Apareci do nada e pus meu texto em suas mãos. — Também escrevi um livro autobiográfico, eu disse. Ele ficou meio sem saber o que dizer, mas na verdade eu só queria perguntar uma coisa: — Alguma vez você se arrependeu de ter escrito e publicado a sua história em Feliz Ano Velho? Ele pensou um pouco... — Não, Valéria, não me arrependi. Alguns meses depois publiquei meu livro, que foi um sucesso. Por conta disso, fui convidada para ser colunista da revista Atrevida onde pude desenvolver meu trabalho de "escrevente". O próprio Marcelo me orientou quanto aos caminhos que eu deveria percorrer e continua me orientando sempre que lhe peço socorro. E hoje sou eu que estou aqui escrevendo esta crônica para ele. Como essa vida é cheia de surpresas. Obrigada por tudo, Marcelo. * Valéria Piassa Polizzi. Depois daquela viagem. São Paulo, Ática, 1998.
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Escrever por prazer Assim que em comecei escrevia letra por com prazer. pequena, com dificuldade segurara oescrever, lápis, ia juntando letraAinda até formar palavras. Ah, e como elas eram divertidas! Pronunciadas, tinham som, lidas e pensadas, produziam imagens. Com o tempo, esse meu jogo foi se expandindo e eu podia montar frases e orações. Estas diziam coisas, passavam mensagens, comunicavam. Minha mãe conta que o primeiro bilhete que escrevi foi para o meu pai. Nós havíamos brigado e eu ficara de castigo. Injuriada, peguei lápis, papel e escrevi com minhas letrinhas, ainda malformadas, todos os palavrões que sabia! É óbvio que nenhuma professora me ensinara aquilo. Mas eu já dominava o jogo e, pelo som, sabia fazer nascer as letras, as palavras e... por que não os palavrões? Quando meu pai pegou o papel, ficou estupefato. Que atrevimento! Mas também, puxa, sua filhinha já estava escrevendo. E que palavrões! A briga acabou ali mesmo. É claro que depois ele me explicou: "Menina bonitinha não deveria escrever coisas tão feias". Que escrevesse então coisas belas! Daí para frente, não parei mais. Vieram as redações no colégio, e a arte de inventar histórias, descrever os lugares, contar os fatos... Uma verdadeira viagem! Nos meus diários, podia guardar as boas lembranças do desgaste do tempo, conversar mesma. cartas, mais perto alguém. Cada palavra umcomigo sentido, cada Com sentido um chegar sentimento. Cada de sentimento uma emoção. Ah! Aquilo tudo era uma brincadeira infinita! Depois veio um livro, em que eu ousei falar de coisas até então proibidas. Descobri ali a força das palavras, que, além de criarem, podem derrubar conceitos, libertar e fazer crescer. "Valéria, você escreve com o coração", me disse uma pessoa um dia. E é verdade. Quando escrevo, vem primeiro a vontade de agradar, de chegar perto, de fazer um carinho tocando com as palavras. Quando escrevo, vejo você, quem quer que seja, esse alguém que lê. E assim, como que por magia, acabamosmorta, juntos quando num lugar nem tempo. aindaescritor que eu estivesse vocêsem lesseespaço esse texto, se dariaPois, a união: e leitor. União no universo mental, o universo de dentro. União no universo de todos nós, o de fora. A certa altura, começaram a me falar das tais técnicas e métodos. "Para ser uma verdadeira escritora, precisa ralar muito... escrever é 10% inspiração e 90% transpiração...". E então eu passava horas quebrando a minha cabeça para no fim conseguir um parágrafo apenas. E, ainda por cima, duro e seco como uma pedra! Cheguei a pegar textos de autores que gosto, como o conto Herbarium, da Lygia Fagundes Telles, e ler só com o intuito de descobrir a tal da técnica. Mas não dá. é tão envolvente que mais logo na segunda frase só vejo os personagens, os Ele lugares... E aí não tem jeito, sou totalmente
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levada pela emoção. Depois me descabelo, me desespero, pois nunca consigo a tal da técnica! Até que um dia uma sábia amiga, percebendo minha aflição, colocou em minhas mãos o livro Entre a ciência e a sapiência, de Rubens Alves, um escritor, doutor em que, Filosofia. E vejam só! Numa das crônicas,educador, ele conta psicanalista a história deeuma jovem ao fazer sua tese científica, lhe entregou um formulário em que perguntava qual era o método e a teoria usados por ele para escrever suas histórias. Sabem como respondeu? "O pintor espanhol Picasso dizia: 'Eu não procuro. Eu encontro'. As histórias são assim. A gente vai vagabundando, fazendo nada, com uma coceira no pensador. De repente a história chega. Sem teoria, sem método. É só ir para casa e escrever." E foi isso que acabei de fazer. Sentei e escrevi. Acho que o Rubens tem razão, não existe um método para se ter idéias boas. O melhor mesmo é continuar escrevendo por prazer. Pelo meu e pelo seu!
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A arte de sonhar Você algumamesmo vez já teve vontade mergulhar de cabeça infinitono céuimenso negro e estrelado, sabendo quedepoderia se perder parano sempre breu da noite? Você trocaria toda a sua riqueza material pela riqueza de sua alma? Você teria coragem de voar em direção ao céu, mesmo sabendo que, se, em algum instante, sentisse medo e olhasse ao seu lado, não veria ninguém? Você saberia como enfrentar todas as coisas que surgissem em seu caminho querendo te derrubar? Você já teve vontade de mudar o mundo e se decepcionou com pessoas que deveriam tê-lo feito, mas que passaram para outro lado? Você sua? já tentou fazer isso, mudar o mundo de uma maneira totalmente original e Você já quis penetrar no coração de uma pessoa e mostrar a ela os horrores de uma guerra, a beleza da paz, a glória de um ilustre, a decadência de um tirano, vim amor puro e grande, o ódio que corrói? Ou já quis divertir uma criança e fazer parte do mundo dela? Você já quis iluminar uma pessoa com o seu próprio brilho, como tantas outras já fizeram com você mesmo? Você conhece alguém assim? Se conhece, provavelmente acha que ela é uma sonhadora, uma louca. Uma louca, sim, mas, como eu, louca de amor pela arte. Esta é uma redação que escrevi quando tinha 15 anos. Naquela época, queria ser cineasta, estudar teatro, mexer com arte. E, como todos os adolescentes, queria, mais do que tudo, mudar o mundo. Só que, aos 18 anos, descobri que tinha o vírus da AIDS, e vi, então, todos os meus sonhos irem por água abaixo. Durante anos, achei que não poderia ser, nem fazer mais nada. Mas, depois de uma viagem que fiz aos Estados Unidos, aprendi a lidar com tudo isso de uma maneira completamente diferente. Voltei a sonhar e agir. Comecei a escrever um livro. Passei três anos escrevendo, pensando e repensando minha vida. E na minha "obra de arte" escrita a lápis, num velho caderno universitário, muita gente não acreditava, achava que era mais uma bobeira da juventude. Mas meu sonho de dividir minha história com outras pessoas acabou dando certo. E, depois daquele livro, outras portas se abriram. Fui chamada para dar palestras por todo o Brasil, participar de entrevistas, debates e congressos. O livro foi traduzido para outras línguas e eu ganhei uma coluna na revista. Mais espaço para eu continuar a escrever! E, o principal, continuar a sonhar e fazer "arte". Que ironia é essa vida, não é mesmo? Eu que, por causa da AIDS, um dia havia abandonado meus projetos. Agora era através dela mesmo que estava reaprendendo a sonhar e fazer planos.
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Sabe, acho que acabei mudando um pouquinho este mundo. E você aí, vai insistir nos seus sonhos?
Lição de arvore Assim eu a chamava, "a minha árvore", linda, alta, forte, imponente. Estava lá desde o dia em que mudamos para aquele apartamento, bem em frente à janela do meu quarto, no sexto andar. Durante o dia eu a olhava banhada pelo brilho do sol. E, também, à tarde, quando chegava a hora de ele se pôr, deixando o céu todo tingido de cor-de-rosa alaranjado, como se já estivesse com saudades. Lá permanecia ela, imóvel com suas profundas raízes que eu só podia imaginar e que me faziam crer que jamais me deixaria. Nas noites de lua cheia e céu estrelado, eu gostava de ficar horas sentada apreciando o contorno dos seus mil galhos em forma de uma mão gigante e aberta. Parecia até que ela estava ali para amparar e proteger minha janela e quem mais estivesse lá dentro de casa. Minha árvore — que, na verdade, nunca foi minha, porque as árvores não têm donos — ficava no terreno ao lado do meu prédio. Um lugar abandonado, cheio de mato, plantas e outras árvores menores. Era a minha minifloresta, que deixava a conturbada São Paulo menos cinza, menos feia e morta. Mas o terreno tinha dono e, um dia, soube eu, foi vendido. Iam construir uma mansão. E a minha árvore, o que seria dela? Será que alguém teria coragem de tirá-la dali? Se fôssemos índios, certamente, não. Entretanto, há muito tempo deixamos de ser. Hoje, somos homens civilizados, que matam, derrubam e destroem. Traem a própria Mãe Natureza, para em seu lugar construir prédios escabrosos. Nós nos julgamos donos da Terra, esquecendo que somos filhos dela. Pensei em falar com o novo proprietário e implorar para que poupasse aquela árvore. Um discurso assim: "Olha quanto bem ela faz a essa cidade!". Mas quem se importa? Hoje em dia, quem gasta um segundo do seu tempo para namorar uma árvore? Que direito eu tinha de interferir em sua construção? Destruição... E a minha árvore continuava ali, forte e majestosa, esperando por seu destino, guardando minha janela, enquanto eles limpavam o resto do terreno. Não, eles não teriam coragem de derrubá-la, aquela obra de arte de quem chamamos de Deus! Um dia, cruzei um porteiro do meu prédio em frente ao terreno onde homens já trabalhavam. — E aí, seu Zé, acho que essa árvore fica, não é? Ela é linda, seria loucura tirá-la daí. — Que nada, menina, ela sai e logo. Já colocaram até veneno pra bichinha morrer. Vai comendo por dentro. Quando estiver toda seca, os homens chegam com os materiais e cortam. Do chão, olhei para a minha árvore, seus troncos, seus galhos, suas folhas... elame ficava "Ah,umminha guardiã está morrendoDali e nem faloumaior nada?"ainda. Procurei traço de tristezafiel, emvocê seu sem-
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blante. Nem sinal. Ela era mesmo forte, morria com dignidade. Uma certa dignidade que só as árvores têm. Dias depois, fui viajar. Fiquei meses fora, não vi quando cortaram a árvore nem quando foi arrastada dali. Melhor assim. Em seu lugar, hoje há uma bela casa com piscina, churrasqueira jardim Saudades? Muitas! Mas sintoeque, deprojetado. certa forma, ela ainda está aqui me protegendo, forte e viva dentro de mim. E, quando o sol brilha, ou tinge o céu de cor-de-rosa alaranjado, eu saio andando pelas ruas do meu bairro apreciando as árvores, esses seres tão calados que me dizem tanto. E agradeço: obrigada, "minha árvore", por ter me ensinado a amar e compreender.
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A menina e o espelho No começo, ela gostava de se admirar. O formato do rosto, o contorno da boca, a cor dos olhos. Era a época das transformações. Os seios crescendo, os pêlos surgindo, as curvas se acentuando. Toda noite, antes de se deitar, ficava nuazinha e ia para a frente do armário. Talvez por isso tivesse se afeiçoado tanto àquele espelho. Era grande, imponente, e ficava do lado de fora da porta, e não escondido do lado de dentro, como a maioria. Era lindo, delicado, e fazia parte da refinada decoração do quarto. Ou será que ela teria se afeiçoado ao próprio reflexo? Era tão bom se ver, se apreciar; quase mágico! E, quando finalmente crescesse, ficasse com corpo de mulher, como seria? Bonita? Às vezes, gostava de se pintar, prender o cabelo de forma diferente, roubar as roupas da mãe. Em outras, de falar, de gesticular, sorrir. Tudo ficava duplamente interessante diante daquele espelho. Podia até se beijar nos lábios. Um beijo gelado, sim, mas divertido. Ou ainda respirar fundo, abrir bem a boca e soltar um bocado de ar quente. E, com a ponta dos dedos, no pedaço embaçado pelo vapor, desenhar um coração. Quando estava muito quente, chegava pertinho e ia encostando, devagarinho, rosto com rosto, mão com mão, peito com peito, barriga com barriga. Humm, que refrescante! E também dava para criar histórias. Fazer de conta que lá dentro do espelho havia um outro mundo. Um mundo só dela, onde apenas ela poderia entrar e existir. Só que o tempo passou. A menina já não era tão menina assim. E tudo aquilo parecia bobo, infantil e até ridículo. Continuava a gostar do espelho. E como. Mas agora ele inspirava outras coisas: questões. E toda noite, quando se sentava a sua frente, na penumbra da luz do abajur, pensava: "Quem sou eu? De onde venho? Por que existo? Há alguma razão para estar aqui? Por que as coisas acontecem do jeito que acontecem? Até que ponto a gente tem controle sobre nossa vida? E, afinal, o que é vida e para que existe vida?". Mas o grande espelho, tão companheiro antes, agora parecia se calar. Como alguém que carrega um precioso segredo. E o reflexo da menina no espelho era, então, mais reflexivo ainda, pois a fazia refletir sobre o próprio reflexo. Infinita reflexão... A falta de respostas, mais do que as perguntas, tornou-se insuportável. Até que um dia a pobre menina não agüentou mais. Chegou em casa tarde da noite, esgotada depois de um dia cheio. A única coisa que queria era se jogar na cama, pegar no sono e desligar-se do mundo. Mas, assim que entrou no quarto e acendeu a luz, viu o espelho. E ele parecia ainda maior, monstruoso quase, com um aspecto inquisidor, como se cobrasse algo dela. A menina,
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então, desesperada, pegou o primeiro objeto que lhe veio à mão e atirou-o, com toda a força. O barulho dos cacos se espatifando no chão soou como uma melodia, enquanto ela olhava para a porta do armário. Agora só restava a madeira, ela estava livre! Foimais chegando perto,Passou caminhando cacos, fazendo barulhocada com vez seusmais sapatos. a mãopor e ocima rostodos na madeira fosca, que nada refletia, que nada a fazia refletir. Sentiu um imenso alivio. Mas só até o momento em que abaixou os olhos e viu as dezenas de pedaços no chão. Agora já não era mais um espelho, eram vários, refletindo sua imagem e lhe exigindo uma reflexão.
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A humanidade Deitada de bruços sobre os paralelepípedos, eu sentia muita dor. Mas não era a dor dos tiros que havia levado. Era uma dor de tristeza, de revolta e de amargura. Continuei a ouvir o som das metralhadoras. Elas não parariam enquanto não matassem todos. Afinal, era a guerra. Um soldado passou ao meu lado. Só pude ver as suas botas sujas de lama, que quase encostaram no meu rosto. Ele me ignorou, supondo que eu já estivesse morta, e continuou atirando impiedosamente nos outros. Um pequeno e velho caminhão também passou muito próximo. A princípio tive medo de que suas rodas passassem sobre mim. Depois, indiferente, eu já não sentia o corpo. De repente, silêncio. As metralhadoras cessaram. O extermínio tinha acabado: todos mortos. Tive ódio e nojo de toda a humanidade. "Do que o ser humano é capaz...", pensei. Algum tempo depois, chegaram garotos vestindo roupas civis. Passaram por mim e se sentaram num vagão abandonado logo atrás, um soldado veio e perguntou a cada um deles para qual país iria. Um garoto disse o nome do meu. Senti saudades. Talvez aquilo tudo fizesse parte de algum programa de guerra. O soldado se afastou. Um dos garotos, de uns 15 anos talvez, desceu do vagão e veio em minha direção. Olhei para ele, que, percebendo que eu estava viva, ficou perplexo. Levantei a cabeça com dificuldade e pedi: — Me mate, por favor, me mate! Como se entendesse meu sofrimento, fez menção de me ajudar. Passou a mão pelo próprio corpo em busca de alguma coisa, mas, como não encontrava, disse desculpando-se: — Eu não tenho arma. O soldado, de olho no movimento, aproximou-se. Quando viu, surpreso, que eu estava respirando, sacou o revólver da cintura e apontou em minha direção. Olhei para a arma, tive medo de morrer. Mas tive mais medo ainda de ficar viva. — Só um ou dois tiros. Atire, por favor, atire! — Segurem-na! — ele gritou. — Eu quero atirar no peito! O garoto que me havia descoberto me segurou pelos cabelos, molhados de suor e sangue, e puxou minha cabeça para trás, deixando meu peito à mostra. — Atire, por favor! — gritei pela última vez, olhando firmemente para o soldado ali parado. E foi então que aconteceu. Um outro garoto, que devia ter perto de 6 anos, desceu do vagão e, com o próprio peitinho estufado, colocou-se entre mim e o revólver, deixando o solda-
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do assombrado. Ele continuou apontando a arma, só que desta vez frouxamente. Nesse instante, senti amor. Um amor profundo e enorme por toda a humanidade. "Do que o ser humano é capaz!", pensei. Fechei olhos e morri. e acordei de um pesadelo. Abri os os olhos, assustada,
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O mundo da televisão Depois de passar horas em frente à televisão, pulando de canal em canal, de programa de auditório para novela, de novela para telejornal, de telejornal para videoclipe, de videoclipe para propaganda, a garota deu um clique final no controle remoto e a tela escureceu. Em uma fração de segundo aquele mundo de cubo animado, colorido e fascinante, havia desaparecido. Silêncio. Uma sensação de vazio tomou conta da sala. E a garota teve a nítida impressão de que o mundo em que estava era menos real do que dentro da tevê. Lembrou-se de quando era criança e achava que televisão era isso mesmo: um mundo real com minúsculas pessoas vivendo dentro do aparelho. Por que será que agora quem se sentia minúscula era ela? Solidão. Clique, ligou a tevê de novo. Som, música, pessoas alegres e sorridentes, palmas, folia. Até a desgraça parecia virar um show. Isso deveria ser triste, muito triste. Mas parece que a gente vai se acostumando, se acostumando... Não! desligou novamente. A Clique, sala vazia, o chiado do silêncio. O ato de desligar abria um espaço em sua cabeça e era em si mesma que começava a pensar. Seus problemas, sua rotina mecânica e sem graça, sua vida sem sabor, era isso! A vida na tela tinha sabor. Clique, ligou outra vez. Ah, as novelas, ainda que tão previsíveis, são a nossa pequena distração do dia-a-dia. Pequena distração? A das 5, das 6, das 7, das 8? Já virou alienação. Clique, desligou. Também, vai, no meio disso tudo a gente ainda encontra programas bons. Clique, ligou. Se bem que, ultimamente, isso tem sido como procurar um anel de ouro (que engoliu diaesse anterior) fezesClique, do dialigou. seguinte. desligou. Mas se o que fazerno com temponas vazio? Nossa,Clique, suas costas já estavam doendo de tanto sofá. Clique, desligou. Além do mais, ela nâo era a única. Conhecia muita gente que ligava a tevê assim que chegava em casa, só para não se sentir sozinha. Clique, ligou. E aquilo acrescentava alguma coisa? Clique, desligou. E dessa vez contou até dez. "Um, dois, três..." e, olhando a tela vazia de repente, se deu conta de que estava olhando para si mesma, era seu reflexo na tela negra. E como doía reconhecer aquele mundo de fora, que em nada se parecia com o de dentro. Como era difícil encarar sua existência tão comum em meio àqueles padrões de de perfeições de do AnaTchan, PauladeArósio, cinturinha de Adriane Galisteu, reboladode dasolhos Sheilas pernasdee
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bunda da Feiticeira, de peitos da Globeleza... Tudo tão distante. Tudo tão perto. Tudo tão verdadeiro e tão falso como todos os "boa-noite" de Fátima Bernardes, a facilidade de Babi pra falar de sexo, as mil e uma receitas de vida feliz de Ana Maria Braga ou o Planeta Xuxa, que não existe em lugar nenhum. Quem eram aquelas pessoas afinal? E quem era a menina sentada no sofá? Clique. Ligou a televisão e ficou pensando que daria tudo para entrar naquele aparelho e pertencer àquele mundo, ainda que só por um dia. E de lá de dentro olharia para a menina aqui fora, sentada no sofá. Quem sabe assim gostaria mais dela, se sentiria um pouquinho especial. O que ela não sabia, entretanto, é que as pessoas, quando ficam minúsculas e vão para a tevê, não enxergam nada. Do lado de lá, as pessoas só vêem as câmeras.
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Um político no poder Clarinha estava sentada na sala, aos 13 anos de idade, prisioneira em sua própria casa. Como se não bastasse, fora proibida de ligar a tevê, de mexer no jornal e até de brincar com seus amigos e vizinhos. — Seu pai está passando por um momento bastante difícil. Você tem que ter paciência — explicou sua mãe. — Mas eu não gosto de ir pra escola com aqueles dois seguranças. Fica todo mundo me olhando. — É necessário. — O Pedro disse que meu pai é ladrão. — São problemas da política, minha filha — a mãe deu um suspiro e se levantou, perguntando — "Você não tem lição de casa?" — Tenho que fazer uma redação — e tratou de pegar rapidinho, na mochila, os livros e cadernos. Clarinha não era boba, sabia que sua mãe não estava para conversa. Seu pai, então, nem o via. Saía cedo e voltava tarde da noite. Na madrugada anterior, tinha acordado com os dois brigando. Levantou-se da cama de mansinho, abriu uma fresta da porta e foi então que viu seu pai, cie pijamas, saindo pelo corredor. Estava tão diferente, cabisbaixo, com uma expressão pesada no rosto. Nem parecia aquele homem grande, elegante, que três anos atrás fora considerado o herói da cidade. Propagandas, debates na televisão, homem de fibra. Ninguém duvidaria da sua integridade. Era a primeira vez que se envolvia na política e já ganhara as eleições. No começo, tudo maravilhoso, gente importante freqüentando a sua casa, muitos jantares, eventos... Clarinha era ainda muito pequena para participar de tudo aquilo, mas, entre seus amigos, ser a "filha do Prefeito" era um título e tanto. No segundo ano, entretanto, começou a ouvir um papo estranho entre os pais. — Ah, cansei de te pedir: "Não se meta na política, é só sujeira". — Eu queria ajudar, fazer alguma coisa pela cidade. Se pelo menos eu soubesse que era tão difícil... — Ninguém nesse país pode com essa corrupção. Ou a gente entra na dança, ou não consegue fazer nada. E, nos últimos meses, deu no que deu, todos estavam contra eles. Clarinha pegou o caderno de português e abriu na última página: "Um político no poder". Era o título da redação. Sim, parecia que até a professora,
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os alunos..., a escola inteira estava contra eles! Teve vontade de gritar, chorar, espernear. Rasgar aquele caderno inteirinho e nunca mais pisar na sala de aula. Mas não ia baixar a cabeça; pegou um lápis e escreveu: Sou um ser vivo, mas não sei se sou humano. Sou grande por fora, mas pequeno por dentro. ricopor detodos, dinheiro, pobre de espírito. Tenho fartura, mas sou carente. SouSou visto masmas compreendido por ninguém. Dizem que falo, mas o que faço é me calar. Gero infelicidade, mas também sou feliz. Falo por todos, mas não sei expressar minha vontade. Cheguei lã, mas não sei se estou satisfeito. Queria mudar tudo, mas quem mudou fui eu, posso ver e ouvir, mas preferia ser cego e mudo. Sou um e falo por milhões. Me sinto tão sujo, mesquinho e baixo que preferia nem existir. Um político no poder E, no dia seguinte, entregou o texto à professora, uma cidadã comum, cansada e enojada com a situação do país. Uma pessoa que, como tantas outras, se sentia totalmente impotente diante de tamanho caos e sujeira que desde o descobrimento tem sido a política brasileira. Mas, ao ler as palavras da menina, teve, por um momento, uma grande esperança. Quem sabe, em breve a geração de Clarinha pudesse vir a fazer alguma coisa.
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O apartamento Olhando o apartamento, assim, pareceu-lhe um corpo que havia visto certa vez, sobre uma maça num corredor de um hospital. Estava coberto até a testa por um lençol branco, deixando à mostra somente uma parte dos cabelos grisalhos. Um dos braços pendia para fora, solto no ar. Um corpo vazio, morto, sem alma, com mais nada que lembrasse a última pessoa que ali vivera. Exatamente como aquele apartamento agora: nenhuma cortina, nenhum sofá, tampouco quadros. Somente paredes brancas e vazias, Ela se sentou no chão da sala. Estava só. E, sem sair dali, fechou os olhos e percorreu todo o apartamento. O quarto, o banheiro, a cozinha, a área de serviço, a sala... Lembrou-se da primeira vez em que o vira, pronto para ser alugado. Assim também sem mobília, porém cheio de sonhos. A vista da janela da frente — para o lago no parque — era maravilhosa. E no começo, ainda que só tivessem um colchão no chão, bastava para os dois irem juntos apreciar a vista pela janela da sala, as cores do pôr-do-sol, o alaranjado cor-de-rosa descendo sobre o verde do parque ao som dos pássaros... Eram jovens e estavam apaixonados. Era tudo o que se podia querer. Com o tempo chegaram os móveis. Um sofá, a cama de casal, um quadro. A cozinha pequena e moderna, mais uma mesa, outra cadeira. Era como ir jogando sementes sobre a terra. Sonhos e mais sonhos. Como uma semente na barriga. Um ninho de amor? De repente, contudo, as portas começaram a bater. As paredes já não ouviam as doces conversas e risadas e, sim, gritos e discussões. O colchão parecia ter se transformado em pedra. E o lago do parque, quem diria, havia se tornado lamacento e obscuro. As folhas das árvores não mais refletiam o brilho do sol. Secas, caíam. As árvores, nuas. E as sementes, abortadas? Ela olhou mais uma vez o apartamento vazio. Tudo que ali um dia chegara havia ido embora de novo. Nenhum quadro, nenhum vaso, nenhuma cadeira. Nada. Nada que lembrasse como eram as pessoas que ali moravam. Exatamente como aquele corpo vazio de alma, morto, na maça do hospital. E ela se levantou e saiu pela porta da frente, para nunca mais voltar. E, ainda que naquele momento não tivesse mais esperança alguma, alguém saberia por ela que existiriam outras primaveras, outras sementes, outros sonhos, outros amores. Porque a vida é um ciclo. E continuaria mesmo que longe dali.
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A cantada Era uma noite de inverno, fria e úmida em San Diego. Eu estava no dormitório da Universidade, com o saco cheio de tudo! Sabe aqueles dias em que a gente não agüenta mais ficar dentro do quarto, pensando na própria vida, também não consegue se concentrar numfeito livro,tudo numa revista? Pois é! Eu mas já tinha estudado o que tinha para estudar, o tinha para fazer. E agora? Pensava eu, no meu canto. Foi me dando uma vontade imensa de sair dali, de ir para a rua, ver outras caras. Simplesmente andar, olhar ao redor e ver a vida. Queria fazer como um espectador de um filme no cinema, que se envolve, se emociona, sente as coisas, mas na verdade não precisa fazer nada, além de ficar ali, sentado. Então, catei uma jaqueta e saí do dormitório. Quando cheguei lá fora, vi que estava garoando, uma chuvinha fina, capaz de deixar qualquer um encharcado. Andei uma quadra e resolvi pegar um ônibus. De noite, os ônibus por lá iam sempre e, quando estava pagando dei contapara de que nemvazios. havia Entrei visto para onde ele ia. Olhei paraaopassagem, motorista eme perguntei onde ele estava indo. Rindo, ele me respondeu: "Hillcrest, garota!". Agradeci e sentei na terceira cadeira perto da porta. Havia apenas uns três passageiros lá no fundo e uma garota sentada atrás do motorista, no segundo assento, quase ao meu lado. Mas ela olhava pela janela e eu não pude ver seu rosto. Encostei minha testa no vidro, gelado, e também fiquei observando a noite, ali, de camarote. Hillcrest, o bairro para onde íamos, era um lugar bem movimentado, cheio de bares, cafés e restaurantes aconchegantes. Eu já havia ido lá uma vez e me lembrava desse lugar alegre, freqüentado por uma intelectuais O ônibus deu parada eegays. uma senhora entrou e foi sentar lá no fundo. Ao passar por mim, notei que a garota da outra fileira me observava. Mas, quando olhei de volta, ela desviou o olhar. Vi eme tinha lincios cabelos cacheados, castanhos escuros, num corte reto, deixando a nuca de fora. Do pedaço que pude ver do rosto, notei a pele muito clara, os traços bonitos e sobrancelhas bem desenhadas, realçando os olhos. Voltei a olhar pela janela e percebi que já estávamos em Hillcrest. As ruas não estavam tão cheias quanto no verão, mas ainda havia muita vida por lá. O ônibus parou, a tal garota dos cabelos cacheados se levantou e caminhou para aséria: frente. Enquanto porta abrir, minha direção e disse "You are very esperava beautiful!".a Ela falou comolhou tanto em gosto, como se fosse uma
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cantada apaixonada, que não resisti e olhei para trás. Eu precisava ver quem era o garoto tão bonito capaz de chamar tanto a atenção da menina! Mas não havia ninguém. Me toquei então que a cantada era para mim. Olhei novamente para a porta, mas a garota já havia descido. E, enquanto o ônibus partia, direção.pude vê-la pela janela, parada na garoa, olhando fixamente em minha Alguma coisa havia acontecido naquela noite. Uma daquelas coisas que nos envolvem, nos emocionam, nos fazem sentir, sem a nossa participação direta, além de ficar ali sentada e assistir! Pronto. Agora eu já podia voltar para o dormitório.
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O vestido azul Alice olhou o vestido mais uma vez antes de colocá-lo na mochila. O azul bonito, profundo da cor dos olhos dele. Sentiu o tecido macio, ah... e lhe caía tão bem... Que pena, que pena. Sentou-se nacolorida, cama e cheia se lembrou dasEúltimas estava quente. A praia, de gente. o mar...férias. Ah, o Janeiro, mar azul,como aquele azul profundo da cor dos olhos dele. Já haviam se visto várias vezes, faziam todos parte da mesma turma. Quando ele a olhava, Alice se derretia, o corpo inteiro queimava. Será? Será um flerte? Mas sabe como é, né? Férias, praia, é um olha daqui, um olha dali. Será que ele não fazia isso com todas? Ela mesmo jogava um charminho de vez em quando para o Rogério. E também tinha o Pedrinho, mas esse era caso antigo, coisa velha. Ah, mas ele, com aqueles olhos azuis... Nunca tinham chegado a conversar. "Nada íntimo, pelo menos", dizia Alice. Sabe comoali,é uma aquele papo lá... de Cinco, turma, seis, né? dez Umafalando conversinha aqui,tempo. uma brincadeira gozação ao mesmo Ela sentia falta, queria poder um dia sentar e conversar profundamente e, olhando através daqueles olhos, descobrir os segredos de sua alma. Xii, mas também que coisa mais novela das oito! Hoje em dia não tem mais essa, não. O que é que tem então, hein? Ela lembrou a primeira vez que ele lhe tocou. "Hum, como você está queimadinha, hoje, Alice !!" E lhe apertou as bochechas. Minha nossa, ainda bem que o sol já tinha se encarregado de deixar nas faces dela todo o vermelho possível. Senão ia dar uma bandeira... Queria responder, dizer alguma coisa. Só conseguiu sorrir. Tudo bem, valeu. "Sorriso bonito", ele lhe disse noutra noite. Como ficaram na primeira vez? Sabe-se lá, foi tudo meio rápido. Estavam na danceteria, ela saiu para tomar um ar, ele veio por trás, passou o braço pelo pescoço, ela levou um susto e se virou. Só viu os olhos, ele lhe tacou em beijo. Ah, e que beijo! Na segunda noite ele tentou abaixar a alça da blusa. Na terceira noite ela deixou. Nunca um garoto havia lhe passado as mãos nos seios. Que sensação! Na quinta noite já estavam deitados na praia, ele em cima dela. "Meu Deus, será que a gente vai acabar transando? Pera lá, não foi bem assim que eu planejei." Mas estava tão bom... No sexto dia acabaram-se as férias.assim "Ufa, pelo salva pelo teriam gongo!"mais Cada um de foi conversar. para sua cidade. Trocaram telefone, menos tempo
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Se ligaram algumas vezes. Saudades. Mas, afinal, o que era aquilo, namoro, só umas ficadas? Dane-se, o próximo feriado seria dali a dois meses. Alice queria vê-lo de novo, conversar ao vivo, ficar mais perto, se amassar e..., por que não, quem sabe até transar? E foi pensando foi pensando neleolhos que comprou aquele Ah, tão lindo, azul, azulnisso, profundo, da cor dos dele. Mas não ovestido. usou logo na primeira noite. Melhor esperar o momento certo. Deixar passar aquele brilho acinzentado de seus olhos, que estava meio esquisito, frio. No segundo dia o viu com outra garota na praia e na terceira noite se agarrando com outra numa festa. E hoje... hoje era dia de ir embora, acabarase o feriado. Hora de arrumar a mochila e levar de volta o vestido azul, novinho, intocado, sem uso. Com um aperto no coração. Que pena, que pena, olhos azuis...
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Vivendo um conto de fadas Bar de jovens, uma turma de amigos conversa animadamente numa mesa. Entre eles, um garoto e uma garota trocam olhares, rola um clima. Ele diz alguma coisa sorrindo e faz questão de tocar em seu braço por alguns instantes. Ela sorri volta,de olha para ela o seu rosto Continuam bonito, seusaolhos verdes code tirar o fôlego. "Eledegosta mim", pensa. conversar, mentam como está sendo interessante a viagem de ônibus, mochila nas costas, dormindo em albergues. E de como é bom estar em um país distante e conhecer gente de todo o mundo. — É, eu nunca tinha conversado tanto com um austríaco — diz ela. — Nem eu com uma morena tão bonita da América do Sul. Ela sorri, tímida. "Ele está interessado mesmo", pensa. Ele dá um gole na cerveja, ela olha seus cabelos loiros e imagina qual a sensação de tocá-los. Ele enxuga o canto da boca, ela pensa que gosto teria o beijo daquela boca de sorriso perfeito. Os dois se olham e, por um instante, parece que têm o mesmo pensamento. — Fiquei feliz hoje cedo quando vi que você estava no mesmo ônibus que a gente. Fiquei te olhando enquanto dormia. — Tava me espionando? — ela brinca. — Depois você acordou, olhou pela janela, tomou uns comprimidos e fez uma cara tão feliz que eu pensei: deve ser uma pílula milagrosa. Os dois riem. — Não, são só remédios. — F. você toma remédio para quê? —
Porque sou acabou HIV positiva, ela responde. "E agora o sonho", passa pela cabeça dela. "Ele vai ficar constrangido, assustado ou simplesmente dar uma desculpa, se levantar e ir conversar com outra." Mas não. Ele continua a sorrir aquele sorriso bonito. — Que bom que você toma remédios, diz ele. E continuam a conversar de outras coisas como se aquilo não tivesse tanta importância. Nos dias seguintes continuam a viajar juntos, a conhecer os lugares bonitos, a tomar o mesmo ônibus. Sentavam lado a lado e ficavam horas conversando. Às vezes contando a história de suas vidas, às vezes só falando besteiras e dando risada.
Só rolou mesmo uns quatro dias.estava Uma noite numembaixo pub, ele daquela disse... — Hoje à tarde, no depois parque,dequando a gente deitado
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árvore, eu quis te beijar. — Por que não beijou? — Porque é mais difícil quando se gosta de verdade de alguém. Acho que tive medo de você não querer. Ela acha o que eleMais dissetarde, bonito, seusselábios no deledae os doisnão se beijam longamente. elaencosta pergunta a questão AIDS atrapalha. Ele diz que não. Depois de muitos dias de amasso e masturbação a dois, quando resolvem transar de penetração, escolhem uma camisinha juntos. E os dois se amaram como nunca, numa perfeita lua-de-mel. Gostaram? Parece um conto de fadas, não é mesmo? Bom demais para ser verdade. O sonho de todo jovem que vive com HIV e AIDS. Mas saibam que, às vezes, os sonhos se realizam. Agora, com licença, que eu preciso ligar para um austríaco que conheci na Nova Zelândia em fevereiro e matar a saudade de umas férias inesquecíveis.
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O teste — Senhorita Luiza — chamou a enfermeira —, pode me acompanhar, por favor? As duas foram até uma pequena sala e a enfermeira ofereceu-lhe uma cadeira. — Tem preferência de braço? — perguntou ela. — Pode ser o esquerdo — respondeu Luiza, apoiando no aparador. A enfermeira lavou as mãos, colocou as luvas e preparou a seringa. Luiza esticou os olhos na direção da agulha e teve um calafrio. Sentiu o algodão geladinho, desinfetando seu braço. — Só uma picadinha... — disse a enfermeira. — Ai! — gemeu Luiza, enquanto o sangue enchia o tubinho. — Prontinho, meu bem. O resultado sai daqui a uma semana. Luiza se levantou, saiu cio laboratório e foi para a casa. Uma semana... Como se não bastasse todo o tempo de indecisão: fazer, não fazer, fazer, não fazer... Agora que tinha resolvido (afinal, melhor um resultado ruim do que uma dúvida angustiante), ainda ter que esperar uma semana! E que semana! A pobrezinha quase pirou. Sabia muito bem que o exame podia dar positivo. As campanhas alertavam para a SITUAÇÃO DE RISCO: transar sem camisinha. Bastava uma vez sem e olha aí o risco. Luiza lembrou do Carnaval. O Rodrigo — ah, como ele era lindo! Um beijo na boca, uma passada de mão aqui, outra ali e, quando viu, já estavam transando. E sem camisinha. Que vacilo! Justo ela, Luiza, que era tão bem informada e sempre se cuidava. Exceto, claro, com o ex-namorado de dois anos. Será que isso conta? Claro que conta. Não tinha aquela história da amiga do colégio? HIV pego do namorado. Por que não? Mas eles. estavam tão apaixonados... No começo, sempre de camisinha, é lógico. Mas, depois, sei lá, deu bobeira. Uma prova de amor, a tal da confiança. Deveriam ter feito o exame antes. E aí, sim, conversarem. Que mancada! E se der positivo? Meu Deus! A vida toda mudar por causa de alguns segundos. Médicos, remédios, preocupações... Bem que a Clau tinha razão: "O pior gozo é o gozo sem camisinha. Você goza hoje e fica meses se preocupando: será que deu merda?". Luiza rezou, fez promessa e jurou que marcar bobeira desse jeito nunca mais! Pode aparecer o Thiago Lacerda, o Brad Pitt, o príncipe encantado, e a
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camisinha vai estar lá, preparadinha, no ponto. Até treinou como colocar numa banana. Pediu ainda a uma amiga que lhe ensinasse a usar a outra, a camisinha feminina. Oba! Mais uma opção. E, se na hora H não tivesse nenhuma, ficaria só nos amassos, nas carícias, na masturbação a dois... tomadas De qualquer jeito, ao frente resultado dando positivo ou negativo, as precauções dali para seriam as mesmas. E assim foi.
Medo de ginecologista Consultório ginecológico, início da tarde. Uma garota de uns 14 anos entra acompanhada da mãe. As duas vão até a mesa da secretária. A mãe explica: — Minha filha tem consulta marcada para as duas horas. — Pois não, só um minutinho que o Dr. Pedro já vai atender. — Pedro?! É um homem? Vocês não têm médica por aqui? — pergunta a menina assustada. — Não, meu anjo, só o Dr. Pedro. A garota fica branca. Parece que vai desmaiar. A mãe não está nem aí, já tão acostumada com esse negócio de ginecologista. Senta no sofá e lê uma revista feminina. E eu, que observo toda a cena do outro canto da sala, vejo a menina roer as unhas e suar frio. E lembro de mim mesma e de TODAS as minhas amigas nessa fase de horror aos ginecologistas. No colegial era batata. Chegava uma menina nervosa, anunciando: — Estou sofrendo por antecipação! Minha mãe marcou consulta no ginecologista pra mim! E aí começava o falatório. — Eu é que não vou com médico homem, nem ferrando! Imagine só, ficar pelada na frente dele. — Tem gente que fala que eles enfiam o dedo na gente, credo! — É, mas, se for mulher, vai enfiar o dedo de qualquer jeito... — Mas pelo menos dá menos vergonha! Minha irmã mais velha falou que dá vontade de rir, ficar lá deitada com as pernas abertas, e que eles não colocam só o dedo, não, colocam um negócio que dói pra caramba! — E a hora que eu tiver que contar que já transei? Já pensou se ele dedura para a minha mãe?! — Pior sou eu que nem transei ainda, nem sei como é. Vou morrer de vergonha pra perguntar... E por aí iam, e pelo jeito ainda vão, as fantasias das adolescentes de primeira viagem. Calma lá, pessoal! Primeiro não importa se o ginecologista é homem ou mulher. Antes de tudo, trata-se de um profissional que estudou anos para isso. Nos dois casos, ele tem, sim, que nos examinar com respeito e nos tirar todas dúvidas. Caso você não goste da atitude dele, reclame. O diálogo é sempre a
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melhor saída. Quanto ao papo de "enfiar o dedo", isso se chama exame de toque vaginal. E geralmente só é feito em garotas que não são mais virgens. Assim como o "negócio" que se coloca lá dentro — chama-se especulo —, para que o médico possa examinar o colo do útero. Não vou mentir, são exames meio chatos, podem muitoeunaconversei prevenção de doenças. Agora, invertendo ummas pouco essaajudar história, outro dia com uma ginecologista especializada em adolescentes e descobri algumas coisas. Ela me explicou que, geralmente, a garotada tem muito medo desses exames, principalmente porque não conhecem o próprio corpo. Muitas meninas têm medo até de se tocar, de colocar o próprio dedo na vagina e se sentir, descobrir o clitóris, o períneo, os pequenos e grandes lábios... Gente, os órgãos sexuais femininos fazem parte do nosso corpo e da nossa vida, como todos os outros órgãos. A gente conhece bem nossa boca, os olhos e o nariz, por que não nossos órgãos genitais? E sem esse papo que é feio! Isso me soa como da podem Idade da Nossos sexuais são sem lindos e, quandoalgo bemsaído usados, nosPedra. dar muito prazerórgãos e alegria. Portanto, esse medo de ginecologista. Eles existem para ajudar e não para atrapalhar!
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O segredo Quando eu tinha uns quatro ou cinco anos, comecei a fazer uma coisa. Ninguém havia me ensinado não. Nem sei como eu tinha descoberto. Só fazia e pronto. Era o meu segredo. Não tinha hora pra acontecer. Qualquer hora era hora. Era só estar assim, meio de bobeira. Cruzava as pernas e apertava bem forte. Tão forte, tão forte, até que de repente eu alcançava uma luz. E essa luz passava por todo meu corpo. Era tão intensa que me fazia tremer. E, quando acabava, eu ficava cansada, mas feliz! É lógico que eu nem desconfiava do que se tratava. Só sabia que era bom. Muito bom. Era mágico! Alguns adultos, entretanto, começaram a me dar bronca: "Pára de fazer isso, menina. Que coisa mais feia!". Não entendia por que era feio. Será que eles não enxergavam a luz? Certa vez, minha mãe chegou a dizer que "aquilo" era nojento. E o meu pai, quando minha irmãzinha perguntou o que eu fazia, riu e, atrapalhado, explicou: "É como a Tiquinha faz quando brinca com as almofadas". Tiquinha era a nossa cachorra. Legal, agora eu era igual a um cachorro. Chamei a vira-latinha para um papo cabeça: "E aí, Tiquinha, o que é isso que a gente faz?". A cadelinha não respondeu... O jeito, então, foi parar de fazer. Na frente dos outros, é claro! Lá pelos doze anos quase descobri. Estava brincando na casa de uma amiga, quando umas gurias mais velhas soltaram à palavra masturbação. "O que ê isso?", perguntei à minha amiga, que também não sabia. Cor remos então para o dicionário. Ma, ma, mas, masturbação.- "ato de fricção". "Ãh? Você entendeu? Não? Nem eu, deixa pra lá, bora brincar." Com catorze anos, numa feira de ciências, levamos nosso coelho Pafúncio... Mas não é que colocaram sua gaiola bem vizinha à gaiola de uma senhorita coelha? Pronto, o bicho ficou doidão... Os guris gritavam: "Vai lã, Pafúncio, bate uma, mostra que tu é macho que nem a gente, se masturba aí, mano velho". Foi aí que me liguei, se masturbar, "bater uma". Era aquilo que o Pafúncio, a Tiquinha, eu e pelo jeito o colégio inteiro fazia. Mas por que será que os
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meninos podiam e até se vangloriavam, enquanto nós, meninas, levávamos bronca? Será que mulher não podia fazer aquilo? Será que eu era doente? Pra complicar as coisas, durante toda a adolescência, nenhuma amiga tocou naquele assunto. Tabu entre garotas. F, eu, pobrezinha, continuei a achar que era meioa pinel. Só fui me darisso conta normalidade comecei fazer terapia. "Mas é a da coisa mais normaldadosituação mundo",quando a Dra. Sylvia me explicou um dia. Gente, sejamos coerentes, masturbação é natural, é bom e é segura. Deixemos nossas crianças e adolescentes se masturbarem a vontade (ainda que seja escondido no quarto). E que todos encontrem a luz!² Assim que acabei de escrever esse texto, mostrei para duas amigas. Elas coraram. "Ah, vão dizer que vocês nunca se masturbaram?", perguntei. As duas ficaramsobre brancas! E eu a rir. Provavelmente, elas nunca haviam conversado aquilo comcomecei outra pessoa. Depois resolveram se abrir. Uma delas me contou que desde pequena gostava de acariciar a sua "bolinha", quando tomava banho de banheira. "Bolinha" era um nome que ela dava ao clitóris, já que ela não sabia como chamar aquela parte do corpo, naquela época. A outra usava o jatinho d’água no bidê no meio das pernas até sentir algo maravilhoso. É... todo mundo tem a sua técnica. Já uma jovem jornalista, quando veio me entrevistar após a publicação do livro, disse que achou esse trecho um barato. Ela, filha de estrangeiro, de cabeça aberta, me contou que um certo dia a mãe a chamou junto com o irmão para uma oconversa. Ela explicou que a bem masturbação um jeito de conhecer próprio corpo. Só não ficava fazer issoera na frente doslegal outros! Que eles fossem fazer no banheiro, no quarto, com toda a privacidade, para curtir aquele momento tão íntimo. E agora eu me pergunto: a geração de vocês, como é que lida com o tal segredo? Continuam naquela de "tira a mão daí!"? Ou já conquistaram o direito de se divertir e até conversar sobre isso numa boa entre amigas? De qualquer jeito, todas nós sabemos, o mais importante de tudo é desvendar os segredos do nosso próprio corpo.
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Trecho do livro Depois daquela viagem, de Valéria Piassa Polizzi, Atica, p. 202-4, 1998.
O tal orgasmo Você já teve um orgasmo? Não?! Nem sabe como é isso? Então não se preocupe, você é mais normal cio que pensa. O dicionário define orgasmo como: "o mais alto grau de excitação dos sentidos ou de um órgão, especialmente o clímax do ato sexual". Mas tem muita gente sexualmente ativa que garante nunca ter sentido isso. Outro dia, conversando com uma amiga responsável por um curso de educação sexual em escolas, ela me disse que havia ficado chocada com um grupo de meninas 14 a 18 anos. Todas já tinham transado, só que nenhuma delas havia ido ao de ginecologista, nem sentido um orgasmo. Conversando mais profundamente, as garotas começaram a reclamar que o ato sexual era quase como uma obrigação. Elas não conseguiam se excitar, os meninos não sabiam fazer carinho e, quando tentavam, acabavam sendo brutos, desajeitados. Às vezes, até as machucavam. "Mas é melhor eu transar com ele, senão ele logo arranja outra", diziam elas. Que horror! Fiquei chocada. Mas sabe que, pensando melhor, lembrei que na minha adolescência também foi assim. "E, na minha também", confessou minha amiga. E, conversando mais um pouco, nós chegamos à conclusão de que mulheres um poucoa transar para semuito acostumar com sexo.muitas Ou seria por quedemoram estão começando cedo? E qualessa seráde a hora certa? Certa vez, depois de uma palestra numa escola, uma garota de 16 anos me chamou de lado e contou: — Eu e meu namorado estamos juntos há dois anos. Você acha que já está na hora de transar com ele? Vejam vocês o que essa menina estava fazendo! Colocando sua vida sexual (e mais: seu corpo, seu desejo, sua responsabilidade, expectativa, amor, paixão) nas mãos de alguém que ela mal conhecia. Eu disse isso a ela e perguntei: — Será que assim você está sendo justa consigo mesma?
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Algumas pessoas têm mania de achar que existe uma idade, uma pista que diz: "Pronto! Agora, tenho que perder a virgindade!". Ou, então, ficam naquela ânsia de saber como é que é, e acabam transando de qualquer jeito, sem ter as informações necessárias sobre como se cuidar e evitar as doenças sexualmente transmissíveis e a gravidez indesejada. Entram nessa sem conhecer direito o próprio corpo, órgãos sexuais e também o coração. Tô falando de sentimento, viu? Isso é muito importante e deve ser levado em conta nessa hora. Pare e pense em quantos problemas sérios isso pode acarretar. E, ainda por cima, não sentir prazer, não ter orgasmo, como dizem aquelas meninas. Agora, eu pergunto: vocês já tentaram sentir e curtir o próprio corpo sozinhas? Sabem em que lugares são mais sensíveis, onde sentem mais tesão? Já se masturbaram e chegaram ao orgasmo? Não? Têm vergonha? Se a gente não se sente à vontade consigo mesma, como é que vai se sentir à vontade com vamos o parceiro? nósa sabemos de temos que carinhos gostamos, como é que poder Se darnem a dica eles? E, se vergonha de nos cuidarmos, indo a um ginecologista, de exigir sempre a camisinha, de conversar e deixar os sentimentos claros no relacionamento, será que estamos prontas? E o tal do orgasmo... Bem, esse virá com o tempo!
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Gravidez (in)desejada Querida Lúcia, Sei que não escrevo há algum tempo, eu gostaria de ter boas notícias, mas infelizmente não tenho, pelo contrário: nossa irmã mais nova está grávida. Por favor, Lúcia, não fique brava comigo. Sei que é difícil de aceitar e eu também não me conformo. Não sei como ela pôde deixar isso acontecer. Quer dizer, sei sim. Na verdade, todos nós sabemos como isso acontece. Mas é difícil aceitar todas as mudanças que acontecerão na vida de uma garota de 15 anos. Não quero que ache que essa carta é pra pedir ajuda. Lembro que, quando resolvemos sair daí e vir para São Paulo, você nos avisou-. "A vida de cidade grande não é fácil". Só que a vida aí, Lúcia, nesse fim de mundo, sem emprego, estudo ruim, também não tava fácil não! Nesse ano que passei aqui, pelo menos um emprego arrumei. Sei que não é grande coisa e o salário mal dá pra viver. Mas a Keite, você sabe, não teve muita sorte. Não arrumou vaga aqui pra terminar a 8 a série. Sei que você deve estar pensando que ela nunca foi lá grande aluna, nunca se esforçou como nós duas, até repetiu de ano. Mas tenho que confessar que, desta vez, ela tentou de verdade. E nem emprego, Lúcia, casa de família amigos,nem sem em conhecer muita gente.ela arrumou. Andava por aí perdida, sem E eu, quando comecei o curso de computação à noite, depois do trabalho, quase não dava atenção a ela. Talvez parte da culpa seja minha. Desde que nossa mãe morreu e você se casou, tento cuidar da Keite como se fosse minha filha. Ela fica brava e berra: "Você só tem 25 anos, fala como se fosse minha mãe!". Até conversei com ela quando vi que estava cie namorico com aquele um. Expliquei um pouco de sexo, gravidez, doenças, camisinha. E adiantou? Agora, quando tento conversar com ela, me joga na cara que eu sou uma encalhada, que quesó o Robson meestudar largou enunca maise saí Que soua uma desde "cdf", que penso em trabalhar quecom isso ninguém. não vai me levar
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lugar nenhum. Ela chegou a dizer que você, pelo menos, ainda está casada. Mas que eu vou acabar como a nossa mãe, sozinha. Aí eu disse que a mãe nunca havia ficado só, que ela tinha três filhas sempre com ela. Embora os homens nunca tivessem ficado por muito tempo. Então, Lúcia, ela só disse: "Tá vendo?". Se calou, sentouDesde no sofá e começou chorar. pela E euminha também não consegui dizer mais nada. então, mil coisasa passam cabeça. Cheguei a pensar se inconscientemente ela não quis isso. Será que a falta de estudo e de trabalho, o medo de ficar sozinha, a dificuldade pra ver qualquer futuro não a levaram a isso? Todo mundo quer deixar sua marca no mundo. Será, Lúcia, que esse não foi o único jeito desesperado e inconsciente de nossa irmãzinha gritar isso? Meu Deus, a que ponto chegamos. Que mundo estamos deixando para os nossos jovens! Ontem fui a um Posto de Saúde. A assistente social me explicou como funciona o pré-natal e falou sobre todos os exames que a Keite vai fazer. Até o de HIV. Agora rezo17pra quetrabalha ela não como tenhaoffice-boy e pego nenhuma doença. Quanto ao namorado, só tem anos, estuda à noite. Ficou de vir conversar comigo amanhã. Enfim, estou tentando contornar a situação. Quero que saiba mais uma vez que esta carta não é pra lhe pedir ajuda. Sei que você tem sua vida aí e nós duas resolvemos partir. Mas, como é nossa irmã mais velha, achei que era minha obrigação contar. Espero que vocês estejam bem por aí. Saudades, Sua irmã Rosa.
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O amor é lindo! (Mas, com AIDS, como é que fica?) — Como é que você faz para namorar, hein? Há anos essa é uma das perguntas que mais O UÇO. No grupo de apoio para pessoas que vivem com vírus HIV e AIDS do qual eu participava, era batata. Quando chegava alguém novo para conhecer o grupo ou pedir ajuda, uma das
primeiras perguntas era sempre essa. E, durante anos, eu não sabia a resposta. Sabe como é, né? Há uns oito ou dez anos, AIDS ainda era uma palavra impronunciável, um assunto intocável. E eu, em plena juventude, louca para sair, curtir a vida, dar uns beijos, "ficar", como a gente chama. Ou seja, o problema começava antes mesmo do namoro. Lá estava eu com meus amigos numa festa em um bar, quando surgia um ser maravilhoso dando em cima de mim descaradamente. Para qualquer outra garota era fácil, eu pensava. Era só ir para um canto e dar uns amassos. Mas, no meu caso, o que fazer? Contar ou não que eu tinha o vírus da AIDS? E quando? Antes ou depois do primeiro beijo? E se ele fosse preconceituoso? E se o cara tivesse um chilique? Certo dia, resolvi eu mesma fazer a tal pergunta a meu médico. — E aí, doutor, o que eu faço para namorar? Dar uns beijos, ficar com alguém? Bem, para dar uns beijos, não precisa dizer que tem o vírus. O HIV não se transmite pela saliva. E você não vai contar isso para qualquer um, certo? Faça assim: saia, dê uns beijos, depois mais outros beijos... Se perceber que o negócio está esquentando e que vai virar um namoro, daí, sim, você conta. — Tá bem! Tá bem??? Tá bem, nada! Aquilo deu um nó na minha cabeça! Quer dizer que eu andava beijando qualquer um na boca? É, pelo jeito, acho que sim. Caramba, quantas vezes eu havia beijado alguém que eu nem sabia quem era?
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Pára tudo! Chega dessa história. Achei que aquilo não estava nada certo e resolvi mudar. Dali em diante, se eu quisesse ficar com alguém, teria que conhecer melhor a pessoa. E a pessoa, a mim, é claro. E isso incluiria dizer: "Eu tenho AIDS!". Nem tudoe me foram flores nesses anos Houve todos. quem Teve ficasse, gente que assustou, levantou deixou falando sozinha. mas se namorar não deu certo e nos tornamos amigos. E teve gente que resolveu namorar. Ah, o amor é lindo!, mas com AIDS, como é que fica? Sabe, acho que não há uma fórmula exata, uma resposta pronta ou fechada para esta questão. O melhor é sempre conversar muito (aliás, isso deveria valer para todos). Ser honesto e deixar as coisas claras desde o início ajuda qualquer relacionamento. Falar dos medos, das esperanças, dos sentimentos. Conversar sobre sexo, as formas de prevenção, o sexo seguro, as camisinhas (agora tem também a feminina). E quer saber de um segredo? Depois queSegente se acostuma, transarvocê de camisinha é como comer de garfo e faca. a comida é boa mesmo, esquece que eles existem e curte o ato de comer em todos os sentidos. Tente se lembrar, por exemplo, qual foi a última refeição gostosa que você comeu. Você se recorda do cheiro, cio gosto, da textura e da cor da comida ou do garfo de metal entrando e saindo da boca? Humm... acabei de me lembrar de um prato delicioso que meu namorado preparou pra mim: Kraut-Fleckerl, uma especialidade austríaca. Macarrões verdes macios, em forma de pequenas gravatas-borboleta, com molho doce de repolho, cebola, ervas, açúcar e muito amor. Ai, ai. só de pensar me dá água na E qual era a sensação do garfo na minha boca? Não me lembro. Só sei boca! que comi de garfo. Resumindo, minhas amigas, garfo, faca e camisinha são só artifícios que a gente usa para não se lambuzar. E, cá entre nós, quando bem usados, nem dá para lembrar que eles existem. O que conta é sempre a comida. Com amor, então, fica mais gostoso.
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Ah, esses adultos... Durante três anos dei palestras sobre prevenção à AIDS em diferentes escolas, pelo Brasil afora. Os adolescentes me ouviam atentos e depois me enchiam de perguntas. Nada mais natural, afinal de contas, ninguém nasceu sabendo, e para a gente se informar.tem mais que perguntar mesmo! Mas o que andou me assustando foi a atitude cie alguns adultos. Certo dia, cheguei a ouvir de alguém que ficar falando sobre sexo induz o adolescente a transar mais cedo. Numa outra escola chegaram a proibir que eu mostrasse como se usa a camisinha corretamente. Que imbecilidade! Já está mais do que provado que quanto mais informação sobre sexo um jovem tiver, quanto mais maduro ele for, mais vai deixar para transar na hora em que estiver pronto e se cuidar direito. Eu mesma, se tivesse tido alguma educação sexual decente na escola, certamente não teria transado aos 16 anos. E, se tivesse, no mínimo teria feito sexo seguro. Outro papo absurdo, típico de certos adultos, é dizer: "Os adolescentes de hoje já sabem de tudo sobre sexo". Mentira! Eu já ouvi isso na minha adolescência, há dez anos, e não sabia nada. E sabe por que eles dizem isso? É simples: se os adolescentes já soubessem de tudo, os adultos não precisariam explicar nada. É isso aí. esses adultos têm é medo de conversar sobre sexo! Mas, se nós pensarmos direito, dá até para entender o lado deles. Essa geração que hoje tem 30, 40, 50 anos não teve educação sexual nenhuma, nunca foi acostumada a conversar sobre o assunto. Trocando uma idéia com uma professora, um dia, ela me disse: — Valéria, na nossa época ninguém falava nada. Um dia antes do meu casamento eu perguntei à minha mãe como ela fazia para evitar filho. A resposta dela foi: "Não sei, quem cuida disso é seu pai, pergunte a ele". Fiz a mesma pergunta ao meu pai, que me disse:
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"Deixa que eu vou ter uma conversa com o teu marido". Ou seja, educação sexual caiu mesmo como uma bomba na cabeça de todo mundo. Há muito tempo que existe o risco de uma gravidez indesejada e uma série de DSTs (Doenças Sexualmente Transmissíveis). Mas com a chegada da AIDS fica difícil ignorar esse assunto. Portanto, repito aqui o que sempre disse em minhas palestras: — Vocês têm direito a uma educação sexual na escola! Um espaço para bater papo, tirar dúvidas. E, se vocês acham isso importante, se querem se informar, comecem a pedir a seus professores e pais, façam um abaixo-assinado na escola se for preciso. Já existem instituições especializadas em treinar professores — que também não nasceram sabendo — para aprender a abordar esses assuntos em sala de aula. Em outro programa, de se tirar o chapéu — o de multiplicadores —, um grupo de adolescentes formadores de opinião treina diretamente outros adolescentes, e vem obtendo ótimos resultados. Só para terminar, uma notinha sobre as escolas dirigidas por religiosas. Ao contrário do que se pensa, muitas delas vêm abrindo suas portas para a educação sexual. Inclusive, fui muito bem recebida pelas irmãs, que, atentas à minha mensagem, me apoiavam: — É isso aí, essa garotada precisa de informação! E eu fico pensando: "Isso sim é que é evolução!".
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Trabalho voluntário: Entre nessa Certo dia, lá nos Estados Unidos, Érica, uma americana de 21 anos, já pensando em fazer trabalho voluntário em outro país, ouviu uma fita do grupo Olodum. Ela se apaixonou por aquele som, "era como se aquela música me chamasse!", disse. E não teve dúvidas. Logo começou a ajeitar as coisas para vir ao Brasil. Por meio de sua universidade, que fica na Califórnia, onde cursa Serviço Social, fez os primeiros contatos e, em julho de 1998, mudou-se para Salvador. "Eu tinha só uma lista de telefones quando cheguei aqui", lembra. "No início, fiquei na casa da amiga de uma amiga, até me ajeitar melhor. Eu não falava uma palavra em português e tratei de fazer um curso intensivo de duas semanas. O resto aprendi na prática." E como Érica aprendeu! Ela me conta tudo isso num português muito bem falado. "É a língua mais linda do mundo", diz ela. O próximo passo foi procurar uma ONG (Organização Não Governamental). Ela escolheu o GAPA — Grupo de Apoio e Prevenção à AIDS, Bahia. Ela queria trabalhar com adolescentes, e lá, Ana Paula, uma baiana de 22 anos que também cursa Serviço Social, vinha desenvolvendo projetos na área de educação sexual com a moçada. Ana Paula e Érica me explicaram como funciona: logo que chegam em uma escola, dão uma palestra para os professores. Depois, divulgam em todas as classes, para alunos de 13 a 18 anos, que vão dar um curso. Geralmente, aparece aquela moçada mais desinibida, que gosta de se comunicar e liderar gru pos. Mas os mais tímidos também vão chegando de mansinho, "só a vontade já vale", diz Ana Paula. O curso pode ser intensivo — sete dias, todas as tardes — ou durante quatro meses, uma vez por semana. No primeiro encontro, fazem o jogo de integração para se apresentarem e se conhecerem. Depois, rola um pacto de que vale qualquer pergunta, sem essa de vergonha, e a proibição de fazer piadas ou rir da dúvida do outro.
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Em seguida, falam de adolescência, o que é, o que se ganha, o que se perde. Alguns reclamam que perderam o carinho da mãe, outros, que ganharam responsabilidade. Quando Ana Paula vai falar de AIDS, a primeira pergunta é: "falar de AIDS é falar de quê?".de E eles respondem: transa, de drogas, de ser adolescente, morte, saúde...","é efalar aí da elaprimeira dá uma explicação detalhada contando como surgiu o vírus HIV, como as pessoas se contaminaram, como a doença evoluiu... Assim que começa o assunto "sexo", as dúvidas giram em torno de gravidez, prazer, doenças, virgindade. Uma das declarações da galera é: "a gente não tem lugar para transar. Tem sempre que ser escondido e com pressa. Assim, como usar a camisinha?". Para falar de sexo seguro, conversam sobre comportamento e relacionamento e também sobre as diferenças entre homens e mulheres. Os meninos montam o corpo da menina numa boneca e vice-versa. Onde ficam exatamente a vagina, o clitóris, oa útero, os testículos? que elesdosabem? E, depois, aprendem colocaro apênis, camisinha e discutemSerá como fazer jeito mais descontraído e gostoso. Ao final do curso, a moçada já está craque e pode então passar o que aprendeu para o resto dos amigos. Mas continuam em contato com Ana Paula e Érica para esclarecer outras dúvidas que forem surgindo. As duas afirmam que amam o trabalho. Ana Paula incrementa seu projeto com livros, filmes e novas dinâmicas de grupo. Já Érica teve de ir embora, mas levou consigo tudo que de bom aprendeu. Apresentará uma tese em sua universidade e um documentário com cenas e depoimentos que gravou com sua câmera portátil. aE gente a mensagem que ambas a seguinte: o trabalho voluntário, pode ajudar muitasdeixaram pessoas,éalém disso, "Com ele nos faz crescer!".
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A palavra é prevenção Será que todo mundo sabe a diferença entre prevenção e preconceito? Preconceito é quando a gente julga uma coisa antes de conhecê-la (e geralmente vai para o caminho errado). Já prevenção é quando a gente conhece uma coisa e usa as armas de que dispõe para se proteger. Qual seria então a atitude que nós deveríamos ter em relação à AIDS? A de prevenção, não é mesmo? E para se prevenir a gente precisa saber quais são as quatro formas de contrair o vírus HIV (o causador da AIDS): 1. nas relações sexuais; 2. ao receber transfusão de sangue; 3. na gravidez, durante o parto e na amamentação (da mãe para o filho); 4. usando drogas injetáveis (com seringas contaminadas). Mas, para nossa sorte, nos quatro jeitos dá para se prevenir! Nas relações sexuais, use sempre camisinha. Mas é bom se lembrar de que sexo não é só penetração. Então, trate de aproveitar todas as outras etapas, que inclusive são bem seguras: dar uns beijos, amassos, masturbação a dois, sexo oral de magipack (aquele plástico que se usa para se embalar alimentos), ou usar a própria camisinha. E nunca se esqueça de que sexo seguro a gente também faz com namorado. Não é vergonha nenhuma pedir camisinha a quem se ama. Pelo contrário, é uma prova de carinho! Nas transfusões de sangue, exija sempre que o sangue seja testado. E isso vem sendo feito no Brasil. Quem doa sangue não corre nenhum risco. Aliás, se você tem mais de 18 anos, já pode começar a doar. Eu, por exemplo, hoje só estou aqui vivinha da silva porque, um certo dia, uma pessoa legal resolveu arregaçar as mangas e doar sangue num hospital. Logo, quando eu fiquei doente de uma infecção decorrente da AIDS, lá estava um sanguinho amigo me esperando. Você não faz idéia de quanta gente pode ajudar com esse simples ato. Na gravidez, o médico receita alguns remédios quandodeo bebê ainda está dentro da sua barriga, fazendo compara que aa mãe, quantidade vírus abaixe bastante. E assim também abaixa para 4% o risco de contaminação do
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bebê. Esse, depois que nasce, toma também algumas doses de remédio e não deve mamar no peito da mãe. Quando se fala em drogas, sempre aparece alguém e berra: "Não é para usar drogas!". E eu e qualquer pessoa em sã consciência concordamos. Nós — sabemos quesérios as drogas depoissaúde. de nos prazerque podem trazer danos — à nossa Maspropiciar o que é um que suposto aquele sujeito já é dependente da droga faz? Muito fácil para nós que estamos de fora do problema dizer simplesmente: "não use". Mas, infelizmente, a história vem mostrando que para eles não é tão fácil assim. É por isso que se criou o programa de "redução de danos", que consiste na troca de seringas. Todos sabemos que uma seringa suja pode ser uma fonte de infecção, não só do HIV, mas de vários outros vírus. Deveríamos, então, sempre jogar as seringas usadas fora — em local adequado — e conseguir outras novas e limpas. E nunca compartilhar seringas com os outros. Esse programa já está implantado em várias cidades brasileiras, diminuindo o número de contamina-
ções. "redutoresnovas, de danos", que são um pessoas treinadas, colhem as sujas eOsdistribuem criando assim vínculo com os usuários deseringas drogas, deixando uma porta aberta para que, se alguém quiser, venha pedir ajuda. E muitos deles têm vindo. O usuário de drogas acaba criando responsabilidade sobre seus atos. E quem tem responsabilidade se cuida. E você, antes de atirar a primeira pedra, não se esqueça de que cigarro e bebida alcoólica também são drogas. Que os usuários de drogas também são gente. E que, melhores que o preconceito, sempre foram a prevenção e a solidariedade.
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O corte na camisinha Em dezembro de 1998 fui convidada a dar uma palestra sobre AIDS no programa Malhação, da Rede Globo. Lógico que fiquei super feliz porque adorava este meu trabalho de levar informação aos adolescentes, seja em escolas, hospitais, grupos de apoio... Eu sempre dizia que há dez anos não podia falar que tinha o vírus HIV nem para o meu melhor amigo, devido ao preconceito, depoisoacabei viajando o país inteiro, conversando abertamente com a galerae sobre assunto. Já imaginaram o grande significado que isso teve para mim? Em princípio, pensei que a palestra seria apenas para os atores, que em sua maioria eram adolescentes. Mas não, eles gravariam e levariam a cena ao ar. Melhor ainda! Poderia levar informação a milhares de outros jovens, em casa! Fui para os estúdios da Globo, no Rio de Janeiro. Nos bastidores, conversei bastante com os atores, e eles ficaram interessadíssimos no assunto. Como qualquer outro mortal, eles me encheram de perguntas; o que fazer para se prevenir? Como é hoje a vida de quem tem o vírus? Como usar a camisinha direito? Finalmente, a hora de tem gravar. pediu paraum serbate-papo o mais rápido possível. Emchegou televisão, tudo de Oserdiretor rápido. Logo, que costuma levar uma hora, teve de sair em dez minutos. E, no final, é óbvio, MOSTREI como se coloca a camisinha corretamente, usando uma cenoura para representar o pênis. Ensinei que não se deve abrir a embalagem com os dentes e sim com as mãos, para não danificar o preservativo. Na hora de se colocar, o negócio é segurar sua pontinha para evitar que fique ar dentro, encostar sobre a cabeça do pênis duro e desenrolar até o fim. Na hora de colocar a camisinha, às vezes, pode acontecer de o homem perder a ereção. Isso não é vergonha nenhuma, e acontece nas melhores famílias. O que fazer? Dar mais uns beijos e amassos e, quando a ereção voltar, o pênis endurecer novamente, tentar colocar de novo. E nunca esquecer que a camisinha deve
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sempre ser colocada antes de encostar genital com genital, ou boca com genital, para evitar a troca de secreções. Depois que os dois transaram, houve penetração e o cara ejaculou (gozou), a camisinha fica cheia de esperma. Na hora de retirar o pênis da vagina ou ânus, deve-se segurar aassim, bainhasó dolendo preservativo para não vazar. Meio complicado as instruções, não é mesmo? Melhor é VER AO VIVO e EM CORES. Por isso, eu e qualquer outro profissional que trabalha com prevenção mostra como se faz, usando uma cenoura, banana ou pênis de plástico. Imagine a minha tristeza quando liguei a tevê para ver aquele episódio de Malhação e aí... profundo corte. Tiraram justamente a cena em que eu, depois de contar minha história, ensinava a usar a camisinha. "Que ironia", pensei, "hoje em dia qualquer novela mostra quentíssimas cenas de beijos, nudez e sexo, mas na hora de ensinar a usar preservativo não pode." Parece que também não se pode falar de homossexualidade. Já vimos várias vezes personagens histórias só isso, porque tinham atração por outros do mesmoserem sexo.exterminados Sinceramente,denão entendo porque recebo muitas cartas de adolescentes homos-sexuais que certamente gostariam de ver a questão tratada na tevê com dignidade e respeito. Bem, ao pessoal de Malhação, valeu o convite e valeu falar de AIDS mais uma vez na tevê. Quanto a vocês, meus amigos adolescentes, sinto muito terem perdido daquela vez a chance de ver como usar a camisinha direito. Tomara que os meios de comunicação repensem questões deste tipo, pois a clareza de informação é fundamental para evitarmos riscos desnecessários e preconceitos.
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O cara certo Tânia e Bruno começaram a namorar no colegial. Adoravam conversar, falavam sobre tudo e faziam muitos programas juntos. Tânia não cansava de repetir que Bruno era o cara certo. Sensível, educado, compreensível. Não forçava a um barra emde nada, respeitava-a mulher.a falar em transar. Tinham Passado ano namoro, os dois como começaram educação sexual na escola e na teoria; pelo menos, já se sentiam preparados. Mas a primeira tentativa não deu certo, nem a segunda, nem a terceira. Tânia, preocupada, resolveu conversar com a melhor amiga, Cláudia, que não era mais virgem. — Não sei o que está acontecendo, Clau... A gente já chegou algumas vezes aos finalmentes, mas transar, mesmo, nunca deu certo. O Bruno diz que ele também não tem experiência. Mas fico pensando se o problema não é meu. A amiga, vendo a aflição da outra, resolveu ser sincera. — Tânia, nunca passou pela sua cabeça que o Bruno pode ser gay? — Credo, Clau, que absurdo! E eu que pensei que você fosse amiga dele também. — Olha, deixa eu dizer uma coisa: ser gay não é ofensa nenhuma, não é ser menos homem, menos gente. Ser homossexual é ter desejo pelo mesmo sexo. Mas não houve jeito de Tânia encarar aquele papo numa boa. Encerrou o assunto e pronto. O clima entre ela e Bruno começou a piorar. Os dois já não conversavam mais direito, e, assim que concluíram o colegial, o namoro terminou também, sem nenhuma explicação. Tânia entrou na faculdade, fez novos amigos e, depois de um tempo, começou a namorar outro cara, com quem acabou transando. Já Bruno sumiu do mapa. Foi morar em Londres e estudar inglês. Os dois só voltaram a se encontrar depois de dois anos, numa festa do pessoal da escola. Cumprimentaram-se numa boa, conversaram um pouco e logo bateu saudades daquele tempo tão
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bom, de namoro-amizade. Decidiram, então, marcar um outro encontro para se falarem com mais calma. Ela foi toda animada. E se voltasse a rolar um clima? Será? Assim que chegou, começaram a colocar os assuntos em dia. Tânia contou da faculdade e do atual namoro, queLondres. estava meio para acabar. Brunodocontou de einglês de sua vida em E, quando lembraram tempododacurso escola comoe haviam terminado o namoro, pediram desculpas mútuas por terem sido tão crianças na época. Inclusive, continuou Bruno: — Preciso te dizer uma coisa. Aliás, Tânia, você será a primeira dos velhos amigos a saber. Descobri muitas coisas neste tempo que passei fora. Coisas também a respeito da minha sexualidade que até então eu não sabia. Ou que, por ignorância e preconceito, não queria enxergar. Descobri que sinto desejo sexual por meninos. Sou gay, Tânia. Por isso nosso relacionamento não deslanchou. Não foi culpa minha ou sua. Confundi as coisas. Achava que, por eu gostarHoje de conviver acabaria vontade de etransar também. sei que atanto gentecom nãovocê, escolhe. Sinto sentindo atração por homens tenho de tentar ser feliz assim. No começo, Tânia ficou espantada. Achou que ia ter um treco. Mas os dois conversaram bastante e ela acabou digerindo melhor aquilo tudo. Saíram juntos outras vezes, conversaram mais. E hoje, seis meses depois, os dois não se desgrudam de novo. E Tânia continua a afirmar: — Bruno é o cara certo. Não para eu namorar, mas para ser meu melhor amigo. Demorei um tempo para entender o homossexualismo. É difícil aceitar que meu ex-namorado namora hoje outros garotos. Mas eu aprendi também que isso tudo não interfere em nada na nossa amizade, companheirismo e afeição.
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A menina que era o máximo! Ela era mesmo o máximo! Aquela garota que todos gostariam de ser: segura, bonita, extrovertida, que aparentava nãoda terescola. medo de nada, sempre com o nariz empinado, passeando pelos corredores
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Além do mais, ela enfrentava os meninos, argumentava com os professores e parecia estar sempre em todas — a rainha das festas. E, para o resto dos simples mortais, fazer parte da sua turma já seria uma glória. O nome dela? Débora. Uma garota de muita personalidade. Parecia saber a hora certa de falar as coisas nunca gaguejava. colégio usava uniforme ainda assim, conseguia dar eum toque especial No àquela roupa sem graça e, e realçar seu corpo certinho. O cabelo, então, nem se fala. E o sorriso, perfeito! Linda, linda ela não era. Mas com aquele charme todo, capaz de chamar a atenção de qualquer um, quem se importava? Já Roberta, ao contrário, ficava sempre quieta no seu canto. Detestava aquela escola e tinha dificuldades de fazer novos amigos, e, na verdade, não fazia questão de se entrosar com ninguém. Não sentia que aquela fosse a sua turma. Mas a tal da Débora, ela gostava de observar. Jogava vôlei como ninguém, apesar de não ter mais de 1,60 de altura. Ela era engraçada e às vezes simpática. Até do seu maior defeito, ser míope como uma porta, conseguia tirar proveito. Usava lente de contato, coisa que para garotas de 13 anos era realmente um charme. Algumas vezes, Débora se dava ao trabalho de dirigir a palavra à Roberta. Um dia perguntou: "Por que você usa sempre duas camisetas?". Roberta respondeu: "Sei lá... porque eu gosto!''. Desculpa esfarrapada, lógico. A verdade é que não conseguia se acostumar com aquela história de ter seios. E, pior, aquela maldita nova peça do vestuário — o sutiã — teimava em marcar as mais grossas das blusas. Mas imaginem se a super Débora entendia isso. Ela era tão dona de si que parecia nem se importar com as mudanças em seu corpo. E, mais, até se orgulhava daqueles peitinhos! Depois de um tempo, Roberta saiu daquela escola e se transferiu para outra. A tal Débora, Roberta nunca mais viu. Mas ficou em sua mente aquela imagem de triunfo e a impressão de que ainda ouviria falar dela no futuro, famosa e bem-sucedida. Quase 15 anos depois, quem diria, Roberta estava no vestiário da Academia de Natação e notou, olhando no espelho, uma mulher meio desleixada se aproximando pelo corredor. Ela estava um pouco acima do peso, com uma roupa que não lhe caía bem, uma coisa meio de gente de idade para os seus 35 anos talvez. E, quando ela chegou mais perto, minha nossa! Roberta viu que era a Débora, a garota que era o máximo, ou em quem ela se transformara aos 27 anos. A mulher sentou-se, colocou a sacola de lado e começou a tirar os sapatos. Roberta então se aproximou e perguntou se era ela mesma. "Sim", respondeu Débora. Mas, claro, nem se lembrou de Roberta...
O homem sem braços Ontem nós fomos a uma danceteria ver o show do Zé com a banda dele. À noite, a Viviane, a Regina e a Sandrinha vieram aqui em casa. Para variar a
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gente levou horas para se arrumar. A Regina reclamando que tá magra demais, não tem peito pra encher nenhum vestido. A Sandrinha querendo esticar os cachos do cabelo dela e levou duas horas pra escolher a droga de um sapato que a fizesse se sentir mais alta. E a Vivi, linda daquele jeito, vê se pode, celulite! teve umEchilique quando descobriu três furinhos na sua bunda. Deus, eu... Bem, continuo me sentindo gorda, horrorosa, apesarMeu de só ter comido salada a semana inteira. "Ah, Paola, se liga, você não tá nada gorda. Olha aí sua calça, número 38, o que você quer mais? Gorda sou eu, olha essa barriga!", me disse a Sandrinha. É, realmente, ela é mais gorda do que eu, mas nem por isso eu vou me sentir magra. Quando a gente, finalmente, chegou à danceteria, foi aquela festa. Putz, tava o colégio inteiro lá. Tinha um pessoal mais velho também. Acho que a maioria era parente do pessoal da banda. Encontrei o Gui. Fiquei feliz da vida de ele estar lá, ganhei a noite! Mas pra variar ele me deu aquela esnobada. Idiota, eu não aprendo mesmo. A Regina ficou paquerando um cara, mas, ele25 chegou perto e que ela viu que ele não passava de um metro e meio (ouquando seja, uns cm a menos ela), emburrou e ficou sentada a noite toda. A Vivi, pra variar, foi umas cinqüenta vezes ao banheiro. E, pior, quase todas as vezes arrastava uma de nós com ela. Passou horas emfrente ao espelho. Mas homem que é bom, nada. Já a Dona Sandrinha... Essa baixinha é foda. Quietinha, quietinha, foi lá e ficou de novo com o Fabrício. Mas ela continua a jurar que eles não estão namorando. Depois de um tempo nós subimos pra ver o show lá do mezanino. Pegamos uma mesa só pra gente, tava bom pra assistir. Até que eu olhei pra uma outra mesa e vi aquele cara sem os dois braços. Meu, que aflição! No começo não conseguia parar de olhar. O cara ali, numa danceteria, sem os dois braços, se divertindo, feliz da vida! Ele era mais velho que a gente. Já devia ter uns 25 anos. Estava com a família e a namorada, que por sinal o abraçava e o beijava toda hora. E eu, sabendo que não devia ficar olhando — puta falta de respeito! —, não conseguia parar. E ficava pensando "como esse cara faz pra tocar as pessoas, como ele faz pra se vestir, pra comer, pra escrever?"... Nossa, ele devia ser dependente pra tudo! Uma certa hora eu o vi levantar. Segui com os olhos, ele foi em direção ao banheiro. Um outro cara que devia ser irmão dele foi atrás. É, ele precisa de alguém até para ir ao banheiro. Meu Deus, que humilhação! E, quando eles voltaram, ele dançou com a namorada, beijou ela na boca, tomou sua bebida de canudo. Fiquei pensando se ele não tinha os dois braços por causa de um acidente, ou se já tinha nascido assim, só um tronco. Acho que tinha nascido assim, porque parecia tão confortável naquele corpo estranho. E eu, com a minha santa ignorância, não conseguia parar de olhar. Às vezes disfarçava, olhava um pouco a banda. Mas tinha que olhá-lo novamente. Até que uma hora nossos olhos se encontraram. No primeiro segundo eu quis morrer de vergonha. Mas ele não foi rude, continuou olhando pra mim normalmente e sorriu. Eu sorri de volta e nesse instante lembrei de todas nós. Eu, a Vivi, a Sandrinha e a Regina, no banheiro. Lembrei da gente reclamando de tudo, do cabelo, das roupas, da aparência. E pensei, nós ali brigando pelo direito humano de nos sentirmos divinas. E aquele homem, sem talvez ter o direito divino de se sentir humano.
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A piscina
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- Você tem medo de água?- perguntou um menino, assim que viu a garota na beira da piscina. - Não- respondeu ela. E virou o rosto. - Então, por que não entra?- insistiu ele. - Porqueela nãosequero, oras! Irritada, levantou e foi para o outro lado. O garoto deu um mergulho, se exibindo. Nadou um pouco de crown e cruzou a piscina até onde ela estava. - Você não tem biquíni, é isso? - Tenho. - Então, por que não o colocou? - Porque eu não quis!- quase gritou. E, vendo que ele não lhe daria sossego, levantou-se e foi se sentar numa cadeira. Pegou uma revista que estava por perto e começou a folheá-la. Ele nadou mais um pouco, variando os estilos, peito, costas e até borboleta. Depois, paroudabem diante de ondeda elacabeça estavaaos e, tomando impulso com braços, saiu piscina. Pingando pés, foi sentar-se juntoosdela - Você não sabe nadar? - Dá pra me deixar em paz?- revidou a garota, exasperada, e voltou a enfiar a cara na revista. - Tá bom, tá bom!- disse ele. – Só acho que não tem cabimento você vir passar um fim de semana numa chácara com piscina e nem nadar. Daqui a pouco, o resto do pessoal acorda e vem todo mundo pra cá. - Você não dá sossego mesmo, não é? A menina, então, se levantou, jogou a revista no chão e saiu andando. - Hum! Já sei! – disse ele. – Aposto como você está menstruada! – e explodiu numa gargalhada. Ela parou e olhou para o garoto furiosa. Queria gritar, dizer um desaforo qualquer. Mas sentiu um bolo se formar na garganta e os seus olhos se encherem de lágrimas. Então se virou na outra direção e voltou rápido para a casa. Lá, se trancou no banheiro e explodiu num choro nervoso. ―Que droga, que droga! Quem esse menino pensa que é? Me humilhar assim... idiota, imbecil. Só porque é dois anos mais velho que eu e já está no colegial, pensa que pode falar comigo desse jeito.‖ Ela abriu a torneira da pia e molhou as mãos e o rosto na água gelada, mais calma, enxugou o rosto na toalha, abriu a porta, respirou fundo e decidiu voltar para a piscina. E o garoto ainda estava lá, sentado na cadeira, de costas para ela, com a revista nas mãos. - To menstruada, sim, e daí? Ele a olhou surpreso, e a garota continuou a falar. - Vai me dizer que você não sabia que as mulheres menstruam? - Não... eu não quis.. olha... – gaguejou ele, todo sem jeito. A menina deu as costas para o garoto e já tava saindo quando ouviu: - Espera, desculpa! – ele se levantou e a segurou pelo braço. - Olha, a gente pode fazer outra coisa, eu nada todo dia mesmo. A gente pode jogar algum jogo, lá dentro tem um monte de cartas de baralho.... Depois, a gente pode até dar umas voltas.... - Ta E os bem! dois – serespondeu divertiram àela. beça. Tiveram um ótimo fim de semana. Afinal, com tão boa companhia, quem é que precisa daquela piscina?
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Cartas ao Jovem professor
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www.BaixeLivro.com Ebooks Grátis 2010 2 de março – Hoje te vi pela
primeira vez. Eu sabia que algo de novo, especial, aconteceria este ano. Você acredita em amor à primeira vista? Até hoje não acreditava. 10 de abril que – Gosto jeito você fala.única. CadaGosto palavra, Gosto da atenção vocêdo nos dá.como Me faz sentir do um seucarinho. jeito de homem
e sorriso de garoto. Gosto até quando nos dá bronca: ― Esse é o pior 3º colegial que eu já peguei. Aprece um jardim-de-infância!‖. Mas do que eu gosto mesmo é de quando você pega o meu caderno. ― Isso está errado, Camille‖, e aponta com o dedo. Eu queria ser essa folha de papel. 16 de maio – Há noites em que não durmo
só pensando em você. Há dias que não passam, só pensando em você. Hoje te vi. Na verdade, você me viu primeiro. Me arrumei toda pra você. Será que percebeu? Na aula você disse coisas sobre mim. No corredor, eu disse coisas sobre você. Será que percebe? Será que desconfia? 15 de julho – Pela primeira vez, nesses 17 anos, não esperei ansiosa pelas férias. Sinto tua falta. Dói não poder te ver. Dói não estar perto de ti. 12 de agosto – Aula de novo. Qual a razão de tudo isso? Qual a razão de a
gente ter de estudar? Aonde queremos chegar? Talvez só importe o caminho... E que você esteja sempre ao meu lado. Ainda que não perceba, sua existência me basta. Amar sem esperar nada em troca, esse é o amor verdadeiro. 19 de outubro – Hoje você me beijou. Não um
beijo convencional, com boca e língua. Um beijo de alma. ―Eu te entendo, Camille‖, você disse. Você me entende? Será que entende mesmo? Te disse muitas coisas, desabafei, chorei. Reclamei da escola, da casa, dos meus pais, da pressão para entrar na faculdade. Mas não disse o mais importante, o que mais me machuca e ao mesmo tempo que me faz sentir viva. Sua existência me basta. Mas imploro: quero mais! 25 de novembro – Cada livro que leio, cada matéria
que estudo é por você. È isso que você quer, que eu entre na faculdade? Pois entrarei! 10 de janeiro – Meu mundo caiu. O resultado da faculdade saiu: passei.
Fui
até a escola correndo contar pra você, toda feliz. A professora Eloísa me recebeu e disse: ― O professor Otávio? Ah! Ele tirou licença, seu filho acabou de nascer‖. Filho!?! E você nunca nos disse que era casado. Quero morrer. Choro o dia inteiro. Minha irmã mais velha disse que isso passa. São coisas de adolescentes, esses amores platônicos... Mas sei que não vai passar. Te amarei para sempre. E nem que seja daqui a mil anos, nem que seja em outra vida, um dia criarei coragem, olharei fundo nos seus olhos e direi: te amo, viu? 2 de março - Semana que vem começam minhas aulas na
Facu . No dia da matrícula conheci o Júlio. Não é homem feito como você, tem só a minha idade. de Masdespedida estou ansiosa vê-lo de Decidi não te esperar mais. Ficam essespara versinhos denovo. faz-de-conta:
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Faz de conta que tudo isso é mentira Faz de conta que nada disso é amor Faz de conta que como veio irá embora Faz de conta que não sinto essa dor Faz de conta que é tudo passado Faz de conta que nada existiu Faz de conta que lágrimas não escorreram Faz de conta que você nunca viu Faz de conta que não mais te quero Faz de conta que nunca te desejei Faz de conta que foi sonho de criança Faz de conta que jamais te amei.
B.V.
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- Melissa, sabe que já faz três meses que eu não beijo ninguém. Pode? - ... -E Seivocê, lá. guria, qual foi o último beijo que deu? - Ah, como sei lá? - Lorena, preciso te confessar uma coisa. Eu nunca beijei. Mas não conta pra ninguém, pelo amor de Deus! - Melissa, você é B.V.?! - B.V.? - É. Boca Virgem. Ah! Ah! Ah! Quer dizer que dona Melissa com quatorze anos... - Ah, não enche vai, Lorena. - Tá, desculpa. Não vou dizer nada, prometo. -- foi Como é que foido a primeira vez que você beijou, hein?Lembra dele? Tava no começo ano passado. O Rafael do 1ª ano. rolando um clima fazia algum tempo, ele começou a me ligar direto. Até que um dia no intervalo da aula a gente foi lá pra trás da cantina. - E aí, menina? - E aí que eu estava morrendo de vergonha. É óbvio que eu não disse pra ele que nunca tinha beijado. Ele chegou, falou que era bom ficar sozinho comigo.. Aí foi chegando mais perto, mais perto... pegou na minha mão, no meu ombro... Foi me dando um nervoso! E o medo de começar a rir? Ah, parece um pouco aquela sensação quando a gente entra num elevador com um estranho. É só você saber que tem que ficar séria e aí começa a dar vontade de rir. - Credo, que comparação! Mas e o beijo, me conta. - Detalhadamente? Bem, primeiro ele encostou a boca na minha. Aí, a única coisa que eu sabia era que tinha de ser um beijo de língua! Selinho eu já tinha dado, pombas. Mas daí, até eu saber o que fazer direito... Só sei que eu abri um pouco a boca e ele enfiou a língua. Olha, pra dizer a verdade, foi uma sensação muito esquisita. Sei lá... Mil coisas passam pela sua cabeça. Uma língua estranha na minha boca?! Eca, que coisa mais esquisita! - Mas você beijou direito? - Não. Na verdade dei uma leve mordida na língua dele. - Ah! Ah! Ah! Essa é boa Lorena. - Boa nada. Fiquei com tanta vergonha que nunca mais voltei a me encontrar com ele. - A segunda vez? - A segunda foi com um cara nas férias, lá no interior. - Dessa vez foi bom? - Também não muito. Ele era um cara mais velho, já tinha 19 anos. Lembro que ele usava um perfume com cheiro de homem e eu achei o máximo. Mas na hora do beijo, mesmo, não rolou legal. Sei lá... Aquele negócio de ficar trocando saliva... Achei meio nojento. - Eca! - Depois teve o Jonas do prédio, o André do clube... Foi melhorzinho. Mas não foi aquela coisa.eu Também, a hora que começa a ficar bomquando eles desencanam. Sabe, às vezes penso se, na época dos nossos pais, o cara vinha,
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pedia em namoro, tinha todo aquele ritual, não era melhor. Hoje é tudo pá, pum. Não dá nem tempo de esquentar. - Pior são aqueles caras que ficam com dez numa noite só. Credo! Por isso é que eu continuo assim... B.V.! a boca, pentelha! - Cala - Ta bom, então senta e espera o príncipe encantado, Melissa. Quem sabe ainda exista algum perdido por aí.
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No ponto de ônibus Edileusa esperava o ônibus distraída, sentada no murinho, quando Shirlei e Claudinéia apareceram. - Nossa, Dileusa, quanto tempo... – foi dizendo Shirlei. - É, depois que ela juntou com aquele lá, nem fala mais cás amigas. Edileusa levantou-se, puxou a miniblusa para baixo, ajeitou a calça de lycra apertada, colocou a bolsa nos ombros. Por fim disse: - Tão indo pro shopping também, é? - Ahã, a gente vamos fazer umas compras. - É... puxa, esse ônibus demora. Já faz um tampão que eu to aqui. Caudinéia, que continuava ao lado de Shirlei, cutucou-lhe disfarçadamente o braço. Cê largou a escola, Dileusa? te vemo mais lá.acaso? Já sei lê, escrevê ...- Hum, escola pra quê? E isso Não ai garante futuro por deu de ombros. - Agora virou dona de casa? Provocou Shirlei. - Ele é bom pra mim. Melhor que vivê lá cá minha mãe. Aquele nojento do marido dela... As duas baixaram a cabeça. - Olha, vem vindo o ônibus. - É esse não! - Viche , eta demora! - E cês duas, anda fazendo o que da vida? -venda Estudando, NóisEuqué se formá . A Claudinéia ta trabalhando na do Seuora. Jorge. tenho que cuidá dos meustambém irmão, cê sabe. - Ele é bom com você? Perguntou Claudinéia. - É, comprou um bando de coisa lá pra casa. Sofá, geladeira e até um videocassete. - Mas ele já largou outra mulher com dois filhotes, Dileusa. Fica esperta. - Tô me cuidando. - Tá se vendo! Tá até mais bonita. Unha pintada, cabelo comprido... Essa bolsa é nova? - Ele me deu de aniversário. Shirlei passou a mão pelo cabelo. - Nossa, o meu que não cresce. Não tem jeito. - Pois me deram uma receita ótima. Tu coloca umas pílulas anticoncepcional no xampu, e olha como cresce – disse Edileusa balançando os longos cachos. - É mesmo, o teu tava curto – disse Shirlei. - Cresce rápido, né? Quantas pílulas cê coloca? - Ah, umas duas. - Oxe , mas cê comprou a caixa toda só pra isso. Dileusa? - Não, é que sobraram umas duas das que eu to tomando. - Viche , menina, pílula é pra sobrá não! Cada comprimido é prum dia do mês, 28 dias. Aí cê descansa uma semana e começa outra cartela. Não é não, Clau? A fessora de Biologia mostrou a semana passada. - É, Dileu, o que cê tá fazendo? Pra usar esses remédios direito tem que ir no médico.
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- Ah, vai ver que esqueci de tomar uns dias... - Olha que é perigoso. Não cresce só o cabelo, não, pode crescer barriga! As três riram. - Cruz credo ! Tô podendo com filho não. - Tá vendo, bestalhada. Se não tivesse largado a escola, ai ter aprendido a se cuidar direito. - É, a fessora falou também que essa pílula aí só serve pra evitá filho. Mas as doença , mesmo, só se previne com a borracha. - O nome é camisinha, Shirlei. E olha, Dilê, já me falaram também que esse papo de pílula crescê cabelo é história pra boi dormir. È melhor tu cuidá da saúde! - Cê devia voltar para a escola. Acho que tem outras coisas pra aprendê lá. - E tem os amigos também né, Dileusa?! - É, vou pensá . Ih, olha aí o busu . - Arre, até que enfim! - Borá nóis lá pro shopping passear.
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O futuro Duas amigas se telefonaram em segredo. —Então, tá! A gente se encontra daqui a 15 minutos no ponto de ônibus. Mas a minha mãe não pode saber aonde nós vamos. Tudo bem, Lê. Se alguém dai perguntar, voce diz que veio para a minha casa. E eu digo aqui que fui para a sua. Já no ônibus. —Voce não tem medo, Ju? De que? —Sei la ... De que ela fale coisas muito ruins? —Ah, eu nem acredito, Lê. —Se voce não acredita, por que e que vai? —Porque sim. Porque e interessante. Se for coisa boa, eu acho bom. —Voce trouxe a grana? —Ta aqui, ó, rapei tudo da ultima mesada. —É caro esse negócio, né? —E, mas também, se ela acerta, vale a pena. Me disseram que é boa.— Tomara. As duas chegaram ao local indicado. Desceram do ônibus e andaram mais uma quadra a pe. —Aqui, Lê. E essa casinha. Pobre, né? —É meio esquisito o lugar. Mas agora que já estou aqui... E tocou a campainha. Uma senhora veio atender e as convidou para entrar. AsTem duascerteza se sentaram salanão de quer espera. — de quenavoce entrar, Lê? —Tenho ja falei que não gosto desse negocio de ler as cartas, de ver o futuro. Acho que ate perde a graça. —Perde nada, boba! —Próxima!"— chamou uma voz lá do quarto. Ju levantou-se e caminhou ate la, enquanto Lê ficou sozinha, sentada num sofá velho cheirando a mofo, roendo as unhas. Olhou ao redor e pensou: "Hum, isso aqui não lembra nada o futuro...". Depois de 20 minutos, Ju estava de volta. —Terminou, vamos. Já na rua: —Mas e ai? Me conta o que ela te disse! —Ah, mil coisas Que meu irmão vai entrar na faculdade, que minha mãe vai logo arranjar outro emprego, que os negócios do meu pai melhorar muito no próximo ano... —Po, quanta coisa boa Mas e voce? Voce e o Diego? Ela disse que voces vão continuar juntos? Falou alguma coisa do namoro? —Bem, na verdade, ela disse que, nas cartas, não via muito futuro nesse namoro. —Puxa, Ju, e ai? —Dai eu fiz uma cara de quem não gostou. E sabe o que ela fez? Na mesma hora, passou a mão sobre a mesa, desmanchando todo o jogo que tinha feito para mim, e disse: "Então, faca voce mesma seu futuro!''.
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—Nossa, Ju, que interessante! —F.oi Acho que e assim mesmo. No final das contas, quem faz o futuro e a gente mesmo. —É.... —E lá se foi toda a grana da minha mesada...
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Natal ao meio —Mãe, voce já comprou presente pra todo mundo? —perguntou Ciro do banco de trás do carro, enquanto sua mãe dirigia. —Já, Cirinho, graças a Deus essa correria de compras de Natal já acabou. —Credo, parece que Natal e isso, só comercio resmungou Marcela sentada ao lado da mãe —Falou a aborrecente!—retrucou Ciro —Cala a boca, pivete, menor de Sete anos não tem vez. —Eu já vou fazer Sete! Não é, mãe? Eu já não vou fazer Sete, logo depois do Natal?! —E, meu filho. Mas para de pular. E sossega ai atrás que voce esta me
atrapalhando retrovisor. —Ta vendo, osua besta, vou fazer Sete. Vou ganhar até mais presente que voce. — Um do papai Noel e outro do papai, e depois ainda tem o meu aniversario! — Papai Noel.. Ah! Ah! — A menina cruzou os braços e olhou pela janela. Cada ano que passa eu odeio mais essa droga de Natal. Eta festa inútil. —Ah, Marcela, Natal e festa de criança, minha filha, quando voce tiver seus filhos vai entender. —Mas eu vou ganhar os presentes, não vou, mãe, não vou, mãe?! —Vai, filho, vai —E voce já comprou presente pra toda família? —Já falei que sim, Cirinho. —Mas eu não vi voce comprar nada pra tia Isabel. —A tia Isabel e irmã do seu pai, Ciro, e eu já expliquei que eu não faço mais parte da família do seu pai não expliquei? Ciro calou-se e afundou-se no canto do banco traseiro. —Lembra que a mamãe te falou que esse ano o Natal ia ser diferente? Um pouco comigo na casa da vó Julia outro pouco voces passariam com o seu pai e a vó Filó. A mãe deu uma olhadela para o menino pelo retrovisor. — Em compensação, meu anjo, você vai ganhar mais presentes. Um do Papai Noel, outro do seu pai e outro meu. E ainda vai ter duas festas, duas arvores de Natal. . O garoto continuou calado. A mãe estacionou o carro numa padaria. —Esperem aqui um pouco que eu vou buscar pão e leite. Assim que ela saiu do carro o garoto se virou para a irmã. —Marcela, se a mãe não e mais da família do pai, em que família a gente fica? —Sei lá, guri a gente fica no meio O menino chegou mais perto. —Mas, Marcela, você vai querer ser da família do pai ou da mãe? —Não tem essa, Ciro, a gente fica metade lá metade cá. Na semana com a mãe, no fim de semana com o pai, ferias com um, com outro, meio Natal aqui, meio Nataldeu ali...um Noimpulso meio. e por trás do banco do carro abraçou o pescoço da O garoto irmã.
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—Nos dois? A gente fica no meio? —É, Cirinho. Mas não pensa nisso. Pensa no Natal no Papai Noel...—disse ela segurando as mãozinhas do irmão. —Papai Noel não existe.
Claro disse que existe, os presen... —Você outro dia que não existe. Não precisa mentir, ta, eu já sei. —Ta bom. Mas mesmo assim voce vai ganhar dois presentes um do pai, outro da mãe. —Preferia só um. —Eu também. Ciro. Eu também. —Nossa, que cena mais rara! —disse a mãe ao voltar para o carro vendo os filhos abraçados. —E, o espírito do Natal faz dessas coisas — disse Marcela sorrindo. Ainda que seja um Natal ao meio, pensou.
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Como água de bolinha Nós nem éramos muito amigas. Foi ao acaso, como tantas outras coisas que acontecem nessa vida, que dividíamos o quarto naquela noite. Ela já estava instalada quando eu cheguei, praticamente dona de todo o quarto. E eu, tímida como sempre, fui pedindo licença e me ajeitando com o que restara de espaço. Conversamos um pouco e fui tomar banho. Quando voltei, ela estava com o baseado aceso. Aquele cheiro... - Quer enrolar um, Joana? – me ofereceu. - Não obrigada, Carla – respondi. E ela rui. A princípio não entendi direito do quê. Mas na acho quepuxando foi por seu causa do enquanto meu ―obrigada‖. De meu qualquer continuou dela, fumo, eu secava cabelojeito, na toalha. - Você nunca fuma? - Não – respondi - Nem tem vontade de experimentar? Fiz que não com a cabeça. - Ah, como pode saber que não é bom se nunca experimentou? Dessa vez fui eu quem riu. Meu riso baixo, tímido. E ela continuou falando que a maconha não viciava coisa nenhuma, que isso era papo pra boi dormir, que dava um barato legal, isso sim, e que era natureba, só uma ervinha, coisa da
paz... Eu me levantei e peguei uma água mineral com gás no frigobar. Ela continuou falando, me contando uma história do caro com que estava tendo um rolo. Acho que já estava mais pra lá de Bagdá, pois o papo começou a ficar extremamente chato. E eu, na falta de que fazer, continuei saboreando a ―água de bolinha‖. Entrando na minha boca, fazendo cócegas na minha língua. Lembrei de minha avó querida, e daquela história que ela não se cansava de contar. Que eu, desde pequena, era louca por água de bolinha. ―Põe tudinho aí!‖, eu ordenava com o copo na mão. E um dia meu irmão mais velho. Só d e sacanagem, disse que iria fazer uma mágica. Pegou uma colher e mexeu tanto até todas as bolinhas sumirem. E eu, com o bico deste tamanho, reclamei: ― O que é que você fez com as minhas bolinhas, seu feio?!‖. E desde então, quando eu o perturbava muito, e le dizia: ―Quieta, senão vou fazer suas bolinhas evaporarem, sumirem!‖. E eu sossegava na hora. Só que, com o tempo, foi ele que começou a evaporar, sumir. No começo, lá em casa, ninguém entendia. Mas a cada dia ele ia ficando mais ausente. Justo ele, meu irmão velho, que era tão legal. Me pegava no colo, me girava no alto, me levava para passear... E agora se trancava no quarto por horas, não querendo falar com ninguém. E aquele cheiro... Minha mãe, então, começou a desconfiar. Mas já era tarde. Um dia, de madrugada, ligaram para casa. Ele estava preso. Meu pai gastou os tubos para tentar assalto a mão armada e porte de cocaína era difícil de livrar até umsoltá-lo. ―filhinhoMas de papai‖.
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Quando fiz 12 anos, eles me deixaram visitá-lo pela primeira vez na cadeia. Só lembro que chorei muito por ver meu irmão tão querido detrás daquelas grades de ferro, no meio daquele bando de gente esquisita, que não tinha nada a ver com ele. Não consegui dizer nada, nem me aproximar das grades. Me recusava daquilo, só chorei. ―Isso tudoaétocá-lo culpa através das drogas, Joana.‖ Tentava minha mãe, depois, me dar a educação que faltava a ele. ―Ela faz as pessoas se transformarem. Às vezes começa com um cigarro de maconha, que parece tão inocente, mas a gente sabe aonde isso pode acabar, não é filha?‖ Olhei para a Carla ali no quarto. Ela continuava a falar como se já não importasse se alguém a estivesse ouvindo, ou não. Dei o último gole na minha água de bolinha. Disse boa-noite, com meu jeito tímido, e entrei debaixo das cobertas para tentar dormir.
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Vitória - Mas que droga, pai, por que eu não posso sair?! Na hora do jantar, pai, mãe e filha discutiam na mesa da cozinha. - Porque não, minha filha! Já falei que quinta-feira não é dia de você sair de noite. Amanhã tem aula. Você é muito nova pra ficar saindo no meio da semana. - Ah, e que culpa tenho eu da festa ser hoje? - Minha culpa é que não é. - Mãe, pede pra ele deixar eu ir. Vai ser a melhor festa do ano. - Você disse isso quando saiu na sexta passada, lembra minha filha? - Mas, mãe... - Nem mais, nem menos mãe. Concordo com seu pai. Não é pra ficar saindo toda noite nessa idade, Vitória. - Toda noite... Só hoje! - Você disse isso também na festa da sua prima. - Ai, que saco! – a menina que já havia terminado de jantar se levantou da mesa e foi pra sala.- Droga, droga, droga! Não vejo a hora de ser maior de idade, poder dirigir, ter meu carro, sair a hora que eu bem entender, ser dona do meu nariz! -esqueça Ãhã, e também pagardo suas contas, luz,disse telefone, e não da gasolina, seguro do água, carro...seu aluguel... pai já naAh, sala, se sentando no sofá com um livro na mão. - A menina foi até a janela e ficou olhando através do vidro. - Tô me sentindo presa, sabia? Isso aqui parece uma prisão! Todos os meus amigos lá... - Sem drama, Vitória. - Ah, pai, você não entende nada. - Não, eu nunca fui adolescente. Espere, minha filha, espere até fazer 30 anos e vai ver quanta saudade vai ter dessa época. Vitória se abaixou de repente. -- Nossa, Cadê? o que é isso?! Pai, pai, uma borboleta aqui dentro da sala! - Ali, ali, posou no teto. Hum, coitadinha, abre a janela pra ela sair. - Tá, tô abrindo. - Vem cá, borboleta, vem cá. Ih, foi pra mais longe. Acho que ela ta perdida. - Pera aí, vou pegar uma almofada pra dar um empurrãozinho. A mãe entrou na sala. - Que é isso, ficaram loucos? - Não, mãe, é uma borboleta, estamos tentando ajudar... ops, quase... ela saiu pela janela. Olha ali, voou pro outro lado. - Nossa, como é linda! - Olha, ela ta indo pro corredor, não deixa. - Vem, vem, olha a janela ali. Ih, ta perdida coitada, que aflição.
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- Opa, com calma, com calma, assim... Vem, vem, borboletinha, vem... O pai deu uma ajuda guiando com a almofada. Por fim a borboleta saiu livremente voando pela janela. Os três ficaram olhando aliviados. - Um dia eu também vou sair voando assim. - Claro quenem vai virou filha, borboleta mas tudo –adisse seu tempo, como eu ajáfilha. falei. Por enquanto você ainda o pai, abraçando - É só nossa largatinha, né? – disse a mãe, abraçando os dois. - E vocês são dois urubus na minha cola. - Olha o respeito, menina! - Poxa, ia ser a melhor festa da minha vida... - Ah, você vai ter mil festas pela frente, Vitória.
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Três mocinhas elegantes: jacaré, leão e elefante! Era domingo, dia de churrasco. As três meninas estavam sentadas lado a lada, com os braços cruzados, bem juntinhas, em ordem decrescente: Lídia, 14 anos, a mais velha; Lea, 12, a do meio; Lara, a menorzinha rechonchuda, 7. Estavam quietas, absolutamente sérias – para não dizer emburradas -, quando Luciene veio se aproximando com sua bota bege de salto alto, calça justa, pesando siri, um decote avantajado e os cabelos pintados de loiro. - Mas como são lindas! – disse, escandalosamente. – São a cara do pai! Bem que ele me falou que tinha três joinhas. Lídia, ah... a mais responsável – e apertou a bochecha da garota, que nem piscou. - Lea, oh, que cabelo bonito! – e a menina virou os olhos para cima.- E Lara, a caçula – concluiu Luciene fazendo biquinho. Mas a pequena, antes de ser tocada, recuou e franziu a testa. A mulher não se deu por vencida. - Não é que com esses nomes nós poderíamos ser irmãs? La, Lê, Li e eu, Lu! – eberrou soltou―João!‖, uma risadinha estridente. Não vendo reação nenhuma das meninas, e foi conversar com outros convidados. - Eca! Que vulgar! Onde o papai foi arrumar isso? No lixo? – perguntou Lídia. - Aposto que ele está com ela só porque é novinha. Deve ter quase a sua idade, Li- reclamou Lea. - É, e eu queria ver só se ele ia deixar eu usar um decote desse. Os peitos quase pulando pra fora. E a calça enfiada na bunda. Você viu? - Pior é o cabelo! Loiro – amarelo e dois dedos de raiz! - E aquela bolsa que papai comprou pra ela, de oncinha! Que ridícula! - É. A gente, ele não deixa comprar nada! A menor, até então quieta, só deu um suspiro e afirmou: -Não Eu sou maismuito a mamãe. passou tempo e Luciene voltou, desta vez com uma amiga. - Olha aqui, querida. Quero te apresentar as filhas do Roberto. Não são uma graça? Três mocinhas elegantes: jacaré, leão e elefante! – falou e caiu em um riso histérico.- Ah, esse versinho é muito engraçado! Minha avó sempre recitava para mim e para as minhas primas. E, continuou a rir, sozinha, até que a amiga, sem graça, a tirou dali. Assim que se afastou, Lídia, mais séria do que nunca, declarou: - Luciene, que gracinha! Cara de macaca, bêbada e jeito de galinha! E as meninas explodiram num riso sem fim. Então. Lea se encheu de entusiasmo e, copiando a irmã mais velha, soltou: - Luciene, perua, o que você quer é dinheiro! Sai prá lá trubufu! O seu lugar é no galinheiro!
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E as três gargalharam ainda mais. - Vai lá, Lara. Agora é a sua vez. - Mas eu não sei... - Sabe, sim, É só inventar. - Tá bom. Uma mandinga: de bruxa... olho de morcego... você é uma meleca! Plim, plim, plim! Quecabelo se destrua, sua perereca! E continuaram a rir, até não poder mais. Assim que a graça passou, foi Lea quem perguntou: - Quando será que essa fase do papai vai passar? - Sei lá- respondeu Lídia. – Ainda se ele fosse feliz assim... Vocês acham que ele é realmente feliz? E, quando olhou para as irmãs, viu Lea com o olhar perdido e Lara com os olhos cheios d’água. Não teve outro jeito. Respirou fundo e disparou eufórica: - E quem é feliz solta um pum e tapa o nariz! As três se deixaram levar de novo pelas gargalhadas. E rira, muito até não agüentarem mais.
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Roubos As duas garotas estavam no quarto fazendo a lição. - Bia, você não tem idéia do que eu fiz ontem. - O quê? - Roubei uma escova de dente num mercadinho. Bia riu. -bala Credo, Drica, tá voltando aos tempos de infância, quando a gente roubava na venda? - O pior você não sabe. Fui pega. Um vexame. - Drica, que horror, o que é que te deu? - Sei lá. eu tava voltando do hospital, tinha ido ver meu avô. Saí de lá com raiva, raiva de tudo, raiva da vida. Meu avô, puxa, ele era tão legal e agora está lá sentado naquela poltrona de hospital, com o olhar perdido. Parece que nem vive mais nessa mundo, nem reconhece as pessoas. A gente chama ―vô, vô!‖, ele não olha. Ontem teve uma hora que eu cheguei a berrar: ―Vô, olha aqui, sou eu, a Drica!‖. Por um segundo ele olhou para mim, mas er como se estivesse me vendo pela primeira vez. Sorriu e ficou com o olhar perdido de novo. É uma doença maldita, sabe? É como se estivesse roubando a alma dele e levando pra longe daqui. - Coitado... - Pior que nem seu se é ele o coitado. Parece que ele não sabe mesmo o que está acontecendo. Vive em outra dimensão. Já meu pai, meus tios, eles, sim, estão sofrendo. - Mas, Drica, o que é que tem a ver isso com você roubar uma escova de dentes? - Sei lá, saí do hospital meio perdida, tinha que pegar o ônibus, não sabia direito qual. Aí eu parei nesse mercadinho e pedi informação. A dona, uma mulher de uns 50 anos, foi supergrossa. Disse que não sabia, não tava lá pra dar informações. Aí me deu um ódio, uma vontade de começar a berrar e dizer: ―Ô sua idiota, não dá pra ser menos grossa, que essa vida já é cheia de problemas e por causa de um nada você ta deixando tudo pior!‖. Mas eu nem disse nada. Até agradeci. Entrei, dei uma volta pelos corredores do mercadinho, via a droga da escova de dente e resolvi que não ia pagar. Sei lá o que foi que me deu... ódio, ódio de tudo. Não to me justificando, Bia, sei que foi uma idiotice. Mas... só sei que peguei a escova e enfiei na bolsa. Achei que ninguém tivesse me visto. Mas, quando coloquei o pé fora da loja, senti uma mão no meu ombro. - Nossa, que vergonha, Drica. - Putz, nem me fale,Me eu seguraram queria morrer. Pediram ameaçaram chamar a polícia... lá uma meiameus hora. documentos, No final, paguei a droga da escova de dente e fui embora.
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- Cara, que mancada. - É, nunca mais... - Ah, todo mundo já fez isso, Drica. Eu também já roubei. Um cobertor da minha primeira viagem de avião, um papel de carta numa papelaria uma vez... Sei lá por que também, acho que só por emoção, adrenalina, pura bobeira, mesmo. - É... E já roubou também o namorado da melhor amiga – arrematou Drica num tom de brincadeira. - Ah, esse história de novo? Ele nem era seu namorado. - Mas você sabia que eu era apaixonada por ele há anos, né, Bia, que ele era o cara dos meus sonhos. - E que culpa tenho eu se ele deu mole pra mim? Além do mais, você sabe que a gente nem chegou a namorar. Foram duas ficadas e olhe lá. - Ele beijava bem? - Muuuuito bem! E só! Porque abri a boca...- As duas riram. -- Ah, , ele eraentão, de outra nada aTodas ver com gente. É, euvocê sei...sabe Tudo bem vai. turma, Absolvidas! nós,aas ladras! - Ta, mas só porque aprendemos a lição. Acho que crescemos um pouco depois dessas besteiras. - É, vai ver que esses ―roubos‖ fizeram parte de um ritual de transgressão. Vai ver que até o meu avô tá aprendendo alguma coisa com essa doença que lhe rouba a alma. Só que nós, dessa dimensão aqui, não conseguimos entender.
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Na rua Sophia quebrou um pau com a mãe. Daqueles arranca-rabo de querer sair de casa e sumir para sempre. E foi o que fez. Não bem ―para sempre‖. Mas pegou i, ônibus, cheia de ódio, e atravessou a cidade. Desceu na avenida Brasil e foi andando até o monumentos das Bandeiras. Olhou os cavalos e os homens gigantes de pedra. Ao fundo, o parque Ibirapuera. E, a sua volta, milhares de carros coloridos passando, num trânsito infernal de cidade grande. Num dos faróis, ela avistou uma menina, suja, maltrapilha, de uns 7 anos, pedindo esmola aos carros que paravam, debaixo do sol escaldante. Sophia foi chegando perto e sentou-se na beira da calçada. O farol tinha fechado e ela assistiu à menina se debruçar nos vidros dos carros e pedir. - Tio, tem um trocado aí? Um homem deu-lhe uma moeda. Uma mulher fechou-lhe o vidro na cara. A outra disse que não tinha nada. O farol tem abriuum e atrocado? garotinha voltou para a calçada, percebendo Sophia ali. - Você - Você não acha que é muito nova para ficar na rua? Devia estar na escola! - Eu vou na escola, mas é de manhã. - Sei. - Ah, me dá um real, vai. - Dinheiro não dou não. Mas, se você quiser, eu trago um picolé. Vou ali na banca comprar um pra mim. Quer? - Verdade?! Eu quero, eu quero! – disse a menina eufórica, pulando com seu chinelinho de dedo, menor que seu pé. - Tá bom. Que sabor? -- Hum.. EspereUva. aqui. O farol fechou novamente. Sophia atravessou a avenida e foi em direção à banca. Enquanto a menina voltou a pedir esmola. - Pronto, tá aqui seu picolé. E vamos tomar logo senão derrete. Quer que eu abra pra você? - Ãhã. - Tá, senta aqui comigo. As duas se sentaram e a garotinha se lambuzou toda. - Hum, tá bom! E você vai na escola? - Claro que vou. E você tá aqui na rua por quê? - Ah, porque minha mãe traz eu pra ganhar um dinheirinho. Se eu não juntá bastante ela fica brava.
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- Cadê ela? - Tá... – a garotinha olhou ao redor. – Tá por ai... Ah, tá lá, ó, lá do outro lado da rua. - Sei. – Sophia olhou. A mulher estava melhor vestida do que a menina, – E –você à sombra. que ficar à tarde,enesse sol? na direção -sentada Ta quente hoje, né? dissetem a menina seaqui, levantando já correndo dos carros. Saltitando pra lá e pra cá com seus chinelinhos. O farol abriu e de novo ela veio se sentar. - Você me da um trocado, depois? – insistiu pra Sophia. - Vou pensar – respondeu rindo, e passou a mão pela cabecinha quente e de cabelos sujos da menina. - Oba! – e estendeu as mãozinhas.- Então dá. Dá um real, vai. - Tá bom... – disse Sophia, amolecida. Apesar de ser totalmente contra o trabalho e a exploração infantil. - Mas você dá um dinheiro de papel?
-- Ué, qual eu a diferença? é um real. Ah, mas gosto maisUm de real papel. - Ta, toma aqui. O farol fechou e a garotinha não perdeu tempo. Correu atrás de outros trocados. E assim no vaivém dos carros e da menina, começou a escurecer. E Sophia ali sentada. Foi a garota que lhe perguntou: - Você não tem casa? - Tenho. - E por que não vai pra casa? Daqui a pouco minha mãe vem me buscá e nóis vai pra casa. Cadê sua mãe? Sophia se lembrou da briga e da vontade, de algumas horas antes, de sumir de casa para sempre. - Minha mãe tá lá em casa, me esperando. - Então vai logo, né? - É, vou sim. Tchau. - Pera, antes... me dá mais um trocado?
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A visita Naquele dia Anne estava com vontade de fazer caridade. Aquela vontade de ganhar os céus ou de deixar a terra menos ruim. Sempre soube da existência de um asilo na cidade. Mas, até então, nunca tinha ido lá. Era um casarão antigo, térreo, todo branco, de janelões azuis. O jardim à sua volta bem cuidado e, no portão da frente, uma placa: ―casa dos velinhos‖. Tocou a campainha, entrou e disse que queria conhecer a casa, D. Eulália, a senhora encarregada, disse que lhe mostraria tudo. - Seja bem-vinda. Ah, como é bom ter gente jovem por aqui! Os velhinhos ficam tão felizes. A maioria já não tem parentes e os que têm quase não vêm visitá-los. A propósito, meu anjo, qual é o seu nome? - Anne. - Bem, Anne, aqui é onde eles comem. Aos sábados, aquela moça, vem sempre tocar piano para eles. Anne olhou para nem a sala. Algunsaovelhinhos às mesas. Algunsmundos, olharam para ela. Outros e deram trabalho,sentados pedidos em seus próprios ouvindo ou não a música do piano. - Ali é a cozinha- continuou mostrando D. Eulália. – E por aqui é a ala das mulheres – e abriu a porta de um imenso quarto cheio de camas de solteiros, divididas por um criado-mudo, cômoda ou cadeira.- Aqui elas guardam todos os seus pertences. Anne reparou nas fotos antigas, pequenos objetos, malas velhas de roupas usadas. Cheiro de mofo. Uma velhinha se aproximou. - Olá, D. Isabel – disse Eulália, quase gritando. – Essa aqui é a Anne. Ela veio nos fazer uma visita. A velhinha seu sorriso sem dentes, e segurou a mão da menina. - Como vai sorriu, a senhora? Ela não respondeu. Continuou a sorrir e Anne a sentir o toque da suas mãos frágeis e cheias de veias. Mais quatro velhinhas se aproximaram. - Essa é a D. Cida, D. Clara, D. Nilda e D. Maria. D. Nilda foi logo dizendo: - Eu gosto de fazer tricô, fia – e passou a mão no rosto de Anne. - Ah, sim, ela faz sapatinhos lindos. Eu estou mostrando a casa pra ela. - Que bom, fia. - Vamos, Anne, por aqui.- D. Eulália abriu outra porta e deu num grande banheiro. Um forte cheiro de urina invadiu o ar.- Nós contamos com a ajuda de alguns enfermeiros e outros voluntários. Um médico vem aqui todo mês. A casa vive basicamente de doações.
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- Do que vocês precisam? - Tudo, meu anjo, roupas, comida, artigos para higiene... mas principalmente carinho. Eles são muito carentes, sabe? Às vezes só de entrar alguém novo aqui já lhes ilumina o dia. Tem gente que vem só pra visitar. Outros passam a tardeaula lendodepara os que não conseguem enxergar. Uma vez têm artesanato, música e ginástica. Daquele ladopor ficasemana a ala eles dos homens. Venha, vamos voltar para a sala. D. Eulália lhe serviu um café, na sala de visitas rodeada por velhinhos. De repente, Anne se sentiu tão nova e inexperiente. O que sabia ela da vida? E o que fazer para se aproximar daqueles velhinhos que pareciam tão distantes, vivendo em seus próprios mundos?Como se nada ao redor, realmente, importasse muito. Pois já tinham visto e vivido tudo. Achou melhor ir embora. - Bem, estou indo, D. Eulália. - Tá bem, meu anjo. E volte outras vezes para nos visitar. O Seu José Nicolau te acompanha até o portão. O velhinho levou Anne até a calçada e se despediu beijando o dorso de sua mão. - Até logo, princesinha. Anne sorriu e partiu. Mas não voltou para sua casa. Foi direto para a casa dos avós. Entrou meio de sopetão e abraçou os dois longamente. - Que surpresa, minha neta! – disse seu avô. E ela teve vontade de contra que estivera no asilo. Que viu tantos velhinhos carentes. Que não soube o que dizer... E teve vontade de perguntar o que eles, já tão idosos, esperavam da vida. Mas não disse nada. Só continuou a abraçálos. Foi sua avô que, por fim, disse: - Faz tempo que estamos esperando uma visita sua. Que bom que veio, Anne.
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Cantiga de roda Era um jantar de família. Depois que comeram, foram todos se A sentar na com sala de estar. Os avós, os tios, os primos, aquela bagunça alegre. garota, seu jeitinho meigo, foi sentar-se no colo do pai. - Não, filha, você já está grandona. Senta ali no sofá. A menina, meio sem graça, foi para o sofá. Era a primeira vez que ele lhe negara um colo. O que será que tinha acontecido? Será que tinha crescido tanto e nem percebeu? Ou será que foi porque já estava quase com 14 anos? ―Mocinhas‖ não têm mais direito a um colo de pai? Tudo bem, então. Fazer o quê, né? Arranjou um namorado. Ah, esse sim lhe deu tanto colo quanto queria. Mas, nessa vida, é dando que se recebe. Logo ela teve que dar algo em troca. O pai, vendo a garota toda animada, penteia daqui, se enfeita dali, veio logo com aquele papo: ―Menina bonita, de perna grossa, vestido curto, papai não gosta!‖. - Tá enciumado, é? Sua filha cresceu, oras. E nada de conseguir segurar a menina em casa. Festa, barzinho, danceteria... Um grude só com o tal do namorado. Telefone, car tas, Internet... A fase do ―Se essa rua, se essa rua fosse minha/ eu mandava, eu mandava ladrilhar/ Com pedrinhas, com pedrinhas de brilhantes/ para o meu, para o meu amor passar/ Se eu roubei, se eu roubei seu coração/ é porque tu também roubaste o meu/ Se eu roubei, se eu roubei seu coração/ é por que, é porque te quero bem‖. Mas, sabe como é né? O primeiro amor da adolescência, aquela coisa eterna enquanto dura! Aquela chama que uma hora se apaga. E aí: ― Ciranda, cirandinha, vamos todos cirandar/ Vamos dar a meia- volta, volta e meia vamos dar/ O anel que tu me deste era vidro e se quebrou/ O amor que tu me tinhas era pouco e se acabou‖. Ah, e a menina volta para a casa desolada, inconformada, descabelada. - Essa vida é um droga, quero sumir, quero morrer! Ninguém me ama, ninguém me quer! E nessa hora tá lá o paizão de pijama e chinelo, esperando a filhota, com uma pontinha de satisfação para lhe dar o colo de volta. - Vem logo aqui e me dá um abraço, pequenina! ―Pirulito Parece que tudo entra nos que já bateu/ Quem gosta deeixos mim énovamente: ela, quem gosta delaque soubate, eu‖. bate/ Pirulito Até o próximo namorado, é claro.
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