Myriam Szejer com a colaboração col aboração de Hervé Hervé Bernard Bernard
Palavras para nascer A escuta psicanalítica na maternidade
Tradução Claudia Berliner
© 1999 Casa do Psi, Livraria, Editora e Gráfica Ltda. © 1997 Éditions Gallimard, Paris É proibida a reprodução total ou parcial desta publicação, para qualquer finalidade, sem autorização prévia por escrito dos editores.
2ª Edição 2006 Editor Anna Elisa de Villemor Amaral Güntert Editor-assistente Sergio Poato Revisão Ruth Kluska Rosa Editoração Tarlei E. de Oliveira Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Szejer, Myriam Palavras para nascer: a escuta psicanalítica na maternidade / Myriam Szejer; com a colaboração de Hervé Bernard; tradução Claudia Berliner; [prefácio Joanna Wilheim]. – São Paulo: Casa do Psicólogo, 1999. Título original: Des mots pour naïtre Bibliografia. ISBN 85-73961. Psicanálise infantil 2. Recém-nascidos – Aspectos psicológicos I. Bernard, Hervé. II. Wilheim, Joanna. III. Título. 99-3031
CDD-618.928917 NLM-WS 350
Índices para catálogo sis temático: 1. Recém-nascidos: Psicanálise infantil: Medicina 618.928917 Impres so en Brasil Printed in Brazil Reservados todos os direitos de publicação em língua portuguesa à
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A todos os bebês, recém-nascidos de ontem e recém-nascidos de hoje. A François.
Agradeço a René Frydman e a toda a equipe da maternidade Béclère por sua confiança e pela qualidade de nossa colaboração. Agradeço a Lucien Kokh pelo que me ensinou e por suas sugestões conceituais que permitiram estabelecer minha prática. Agradeço a Hervé Bernard a profundidade e a sensibilidade do trabalho realizado.
Sumário
Nota preliminar Prefácio à edição brasileira de Palavras para nascer Introdução Os três tempos da psicanálise A causa dos bebês Um percurso profissional Uma direção indicada por Françoise Dolto A maternidade Béclère Um lugar para o psicanalista Os recém-nascidos, uma especialidade? O olhar e a voz Alguns dias para escutar Léa, a menininha a quem faltava um nome O recém-nascido não é um objeto de estudo Nasce-se pelo menos duas vezes A criança agente e desejante A sensorialidade do recém-nascido Rafael, ou como dar sentido à sua vida Um lactente sensível A repetição Uma coação inelutável Do feto ao lactente, uma continuidade Palavra e linguagem no recém-nascido A palavra dirigida ao recém-nascido A fala do recém-nascido As disposições do recém-nascido para a linguagem A memória Uma memória criativa O processo de memorização Um protocolo psicanalítico O enquadro A demanda A equipe mediadora da palavra
Do nascimento ao limbo da vida Nascer para a vida Um mal dos mais comuns No limbo incerto Para o feto, desejo e necessidade confundem-se Baby blues, mummy blues, daddy blues Nascer em segredo A urgência de palavra A viagem de Pierrette Segredos de família, segredo de Estado Nascer não é tudo Nascer para a sociedade A escolha de viver
Nota preliminar
Depois de muitos anos de prática e de reflexão com crianças em idade pré-verbal, pude trabalhar na qualidade de psicanalista com recém-nascidos na maternidade. Essa clínica tão particular foi pouco a pouco fazendo nascer em mim um desejo de testemunhar. A originalidade da abordagem e os efeitos que pude constatar sempre me questionaram e orientaram minhas investigações em diversas direções, descortinando as potencialidades da pluridisciplinaridade. Hervé Bernard, psicanalista, decidiu empreender um longo trabalho comigo. Acompanhou-me na maternidade, escutou-me e depois colaborou comigo, colocando a serviço deste livro sua escrita e sua cultura.
Myriam Szejer
Prefácio à edição brasileira de Palavras para nascer
Esta é a segunda oportunidade que tenho para prefaciar um livro de Myriam Szejer em sua edição brasileira. Se na primeira atendi a um convite da Casa do Psicólogo, nesta não esperei ser convidada: o meu entusiasmo por este livro me fez anunciar ao editor que fazia questão de prefaciálo. Se por um lado me sentia com este direito em função de tudo que batalhara para conseguir que fosse produzido em tempo recorde e útil para ser lançado por ocasião da presença da autora em mais um evento da ABREP, por outro via nele uma contribuição ímpar: ele trata de um assunto absolutamente inusitado – a psicanálise de recém-nascidos. Nele a autora narra a sua experiência enquanto psicanalista de recém-nascidos – prática a que se dedica, na condição de pioneira, desde o início da década de noventa – e a implantação deste trabalho na maternidade. No dizer da própria autora: “Meu desejo neste livro é o de dar o testemunho da minha experiência com os recém-nascidos junto dos quais intervim com a palavra falada quando isto se fez necessário, e eles – apesar das crenças até então vigentes de que bebês não entendem o que lhes é dito – deram evidências de que puderam aproveitá-la. Em um momento em que os conhecimentos científicos sobre o feto e o recém-nascido, evoluem com a mesma velocidade que as incertezas sobre as explicações teóricas, parece-me importante testemunhar a respeito daquilo que constitui a eficácia do trabalho psicanalítico com os recém-nascidos. Este trabalho tem efeitos com os quais eu mesma continuo a me surpreender: rápidos, fulgurantes.” Graças à confiança que nela depositou o Prof. René Frydman – “pai” de Amandine, o primeiro bebê de proveta francês, Chefe da Maternidade do Hospital Antoine Béclère, em Clamart, nos arredores de Paris – a Dra. Szejer ganhou um espaço, que de há muito procurava, para colocar em prática uma idéia surgida a partir de sua experiência quando trabalhava com bebês e crianças muito pequenas na creche pública de Antony: bebês nascidos de “partos em segredo” 1 faziam uma remissão muito rápida de seus sintomas após intervenções verbais que davam sentido aos pedaços até então esparsos e perdidos em sua história. Ao se dar conta que crianças abandonadas sofriam tanto daquilo a que a autora denomina vazio de palavra , e que elas elaboravam seus sintomas quando esta palavra lhes era oferecida, ocorreu-lhe que seria mais econômico intervir mais cedo, antes do aparecimento dos sintomas. A razão pela qual acho este livro fascinante e que me moveu a batalhar para que fosse publicado em português, permitindo aos profissionais da área que acessassem seu conteúdo inédito e inusitado, é que ele traz evidências do quanto o recém-nascido é uma pessoa, do quanto ele é um ser de comunicação, do quanto necessita ser compreendido e que esta compreensão possa ser expressa através da palavra – da palavra verdadeira – porque se refere ao real conteúdo e significado de seu sofrimento. Além de conter o relato de uma série de situações clínicas que ilustram tanto a linguagem a que
o corpo do recém-nascido recorre para expressar a dor de sua alma, quanto a forma verbal empregada pela psicanalista para lhe fornecer a palavra certa com que poderá preencher o vazio de alavra, este livro contém várias outras contribuições importantes. Destacarei algumas: a) A visão que a autora transmite do bebê como um ser desejante, e nos ensina: “devemos reconhecer sistemática e pacientemente o desejo irredutível do recém-nascido”. Considera que o simples fato de ele ter nascido significa que ele foi movido por um desejo de vida e que os sintomas que o enredam – nem sempre explicáveis pela medicina – estão aí para dizer que o seu desejo humano irredutível está sendo contrariado. É amplo o espectro de sintomas que o recém-nascido apresenta: ele vomita, regorgita, tem diarréias ou constipação, cólicas; recusa o seio, fica anoréxico; apresenta bulimia, chora sem parar, dorme em excesso ou fica acordado em demasia; apresenta problemas de pele, hipotonia, não aumenta de peso, apresenta-se apático ou grita sem parar. Ele recorre a estes sintomas como forma de comunicação; caberá ao psicanalista estabelecer as conexões existentes entre estes sintomas e a história do bebê e de sua família. “Meu ofício é o de fazer lugar para a palavra sofrida”, diz a autora. b) quanto às contribuições na área da linguagem dos recém-nascidos, a autora afirma que estamos diante de um terreno muito novo que está começando a ser desbravado. Afirma que há várias tentativas de explicações científicas, nas quais se nota a incerteza quanto ao que os recém-nascidos compreendem e o que eles dizem, “Mas” diz “nós sabemos que os recémnascidos não compreendem no sentido lingüístico do termo: sua semântica, sua fonética e sua sintaxe não são iguais à nossa; por outro lado, a clínica – apoiada na escuta psicanalítica – nos fornece a certeza de que eles compreendem e que eles dizem”, conclui. c) a contribuição que traz das neurociências para o estudo da linguagem e da memória: através das pesquisas dos neurocientistas Gerald Edelman e Jean-Pol Tassin, introduz o leitor aos novos conhecimentos existentes neste campo, permitindo a compreensão de fenômenos até então inalcançáveis. d) finalmente, a autora ilumina o fenômeno do baby-blues que acomete de 70% a 90% das parturientes: ela o vem estudando desde a década de 70 oferecendo agora ao leitor o fruto de todos estes anos de dedicação e estudo. Creio que, com o que acabei de alinhar, fica justificado o meu entusiasmo pelo livro e a importância que lhe atribuo.
Joanna Wilheim
1 Designação dada a bebês nascidos de mães que, de antemão, decidiram dar o filho para adoção, não constando o nome da mãe nos prontuários destes bebês.
Introdução
Há uma idade em que se ensina o que se sabe; mas logo segue-se outra em que se ensina o que não se sabe: isto se chama pesquisar.
Roland Barthes
Existem certos dias em que nos sentimos pequenos em nosso ofício. De nada adianta gabar-se da experiência de psicanalista, dos anos de psiquiatria com adultos e crianças, do ensinamento dos mestres; é tudo inútil. Quando um paciente conta que toda a miséria do mundo pesa sobre suas costas, fica-se mudo. Aliás, é o mínimo que se pode fazer. Calar-se permite, às vezes, entender. E, talvez, falar em seguida. Um mal-estar difuso
Faz alguns anos, ao chegar como todas as segundas-feiras de manhã à maternidade, senti um clima estranho na ala das puérperas. Nada de grave, aparentemente, mas os pediatras, as parteiras, 1 as enfermeiras e as puericultoras pareciam estranhamente preocupados com uma nova mãe, a Sra. Lemercier. Dois dias antes, ela dera à luz o seu primeiro filho, um menino, a quem dera o nome de Yvon. O parto transcorrera sem qualquer problema, e ela estava muito contente, sobretudo porque três anos antes perdera um filho a quatro meses do termo normal da gravidez. Um único pequeno detalhe criara na equipe o mal-estar difuso que mencionei há pouco: ao retornar para o quarto, a Sra. Lemercier apagara escrupulosamente todas as luzes e fechara as cortinas. Desde então vivia enclausurada nesse ambiente. Como ela não se queixasse de nada e não tivesse comentado suas atitudes, ninguém sabia o que pensar disso e todos se abstinham de indagá-la a respeito. Só restava esperar que aquela esquisitice fosse algo sem conseqüências. Contudo, os membros da equipe estavam perplexos; eles, que costumam indicar-me mães que poderiam recorrer a mim, hesitavam em me falar da preocupação que ela lhes causava. Em suma, todos pareciam inquietos, menos ela. Naquela segunda-feira de manhã, no entanto, nova angústia, desta vez por parte da Sra. Lemercier. Ela foi tomada de pânico diante da idéia de que seu filho, que tem portanto dois dias, “ainda não tinha feito xixi”. Manda vir a pediatra, que, depois de dar de beber à criança, examina-a na frente da mãe. Rapidamente, durante o exame, Yvon se põe a urinar, para grande alívio da mãe, que assiste à cena. A pediatra tinha certeza de que a criança já tivera micções depois de nascer e achava que a retenção urinária era antes da ordem de uma angústia fantasística da mãe. Com o consentimento da parteira, decide explicar à Sra. Lemercier que nessa maternidade há uma
“psicanalista para os bebês” com quem poderia conversar, se desejasse falar dessas inquietações. Como a Sra. Lemercier até então fora mais que discreta em relação ao que lhe acontecia, elas temiam uma recusa. Mas, para sua grande surpresa, ela aceitou encontrar-se comigo. Na verdade, era com uma psicanalista que ela deseja conversar. Logo ficarei sabendo por quê: durante certo tempo recorrera à psiquiatria, e depois, aconselhada pela mãe (que, por sua vez, fora pedir a opinião de um psiquiatra conhecido seu), fizera uma psicanálise de vários anos. Portanto, agora ela não opõe qualquer resistência à idéia de falar com a psicanalista que eu sou. Sofrimento de mãe, sofrimento de mulher, sofrimento de menina
Nem bem entrei no quarto e me apresentei, ela começou a me contar seus sofrimentos de mulher e de mãe. Sofrimento de mulher através de uma amenorréia que aparecera quando tinha 12 anos, pouco depois de suas primeiras regras, e que só cedera quando conhecera o marido, aos 18 anos. Sofrimento de mãe quando, vários anos mais tarde, ela e o marido queriam ter um filho e desesperavam consegui-lo. Ao perguntar-lhe se algo de particular ocorrera com a idade de 12 anos, ela me relatou a seguinte cena: seu pai, personagem extraordinariamente respeitado por todos e por ela mesma, certo dia pediu-lhe para buscar uma garrafa de vinho. Honrada pelo pedido e preocupada em desempenhar bem sua tarefa, corre para a adega, cai na escada, quebra a garrafa escolhida e fere gravemente o joelho. O ferimento é sério, ela seciona um tendão e uma intervenção cirúrgica se faz necessária. Pouco depois da operação, a família Lemercier vai para a praia. Ela, que se diz excelente nadadora, entra na água. Mas, subitamente, tem a sensação de que seu joelho machucado não responde, que sua perna se paralisa e que ela vai se afogar. Pede por ajuda. Seu pai mergulha em seu socorro, mas ele é vítima de uma hidrocussão. Agora é ela quem tenta salvar o pai: sente que recupera o uso do joelho, tenta levar o pai de volta para a margem, mas o homem é pesado, ela não agüenta. Ela grita de novo por ajuda, dessa vez para seu pai. Quando outras pessoas acodem para resgatá-los e os retiram da água, seu pai já está morto. O negro que reina no seu quarto parece celebrar o horror dessa lembrança. Estaria dessa forma realizando, sem ter consciência, o luto por seu pai? Primeiro tempo: a mocinha, que foi buscar uma garrafa a pedido do pai, cai e fere o joelho. Esse simples relato condensa os mais variados elementos do romance familiar, constitui uma verdadeira garrafa lançada ao mar cuja mensagem ela decifrará muitos anos depois, após o nascimento de Yvon. Segundo tempo, a morte do pai. Tudo transcorre como se esse episódio extremamente doloroso tivesse fixado por muito tempo o caráter dramático do primeiro, como se o segundo ato do drama revelasse a posteriori a importância decisiva do primeiro, e não o inverso. Os psicanalistas estão acostumados com esses efeitos só-depois. Duas cenas fortes, dois pedidos de socorro, como mais tarde dois bebês.., e dois psicanalistas ligam o enunciado desse drama e sua simbolização. Terceiro tempo, o nascimento do filho e sua angústia a propósito de suas micções. Depois de também ficar sabendo da existência de um pesado passado de alcoolismo entre os avós paternos, imagina-se que das garrafas quebradas ao sangue derramado do primeiro ato, da hidrocussão à amenorréia do segundo ato, até a inundação tranqüilizadora do bebê no terceiro ato, muita água (e sangue) correu debaixo das pontes. Com certeza. O problema era que essa água tivesse
secado. Com efeito, a amenorréia data do afogamento do pai, amenorréia esta que vem como que secar o sangue da ferida: o corpo falhou em responder ao apelo do pai de ir buscar o vinho, o corpo cala-se perante a morte do pai, que ele acredita ter provocado. A dor da Sra. Lemercier pela morte desse pai amado foi uma dor muda, se é que se pode dizer. Ela entrou num estado de estupor durante dois dias, ao final dos quais atirou-se em público do telhado da casa dos pais. Na verdade, ela subira nele como freqüentemente fazia para brincar. Sua família, dado o contexto, alarmara-se ao vêla no alto. Não conseguindo fazê-la descer, chamaram os bombeiros, que apenas tiveram tempo de chegar no momento em que ela saltou. Foi uma tentativa consciente de suicídio? Ninguém sabia dizer, nem mesmo ela, que apagou totalmente esses três dias da memória, e reconstituiu a cena de acordo com o que lhe disseram durante sua análise. Amnésica, portanto, mas não desligada. Ela mesma conta como, na adolescência, provocava a mãe até ser esbofeteada, tendo na cabeça uma resposta pronta: “Você bateu em mim porque matei o papai!”. O lugar da criança
No lugar do luto do pai impossível de fazer, só havia culpa. Disso dá fé a amenorréia que se seguiu. Além disso, esse sintoma pós-traumático desapareceu quando ela conheceu o marido aos 18 anos: reconciliada com a figura masculina, ela reconquistara parte de sua feminilidade. Mas então deparou com o problema da esterilidade, alguns anos depois: mulher sim, mas mãe ainda não. De fato, o nascimento de Yvon foi ainda mais saudado porque concluía uma longa seqüência de sofrimentos ligados à espera de um filho. Alguns anos antes, a Sra. Lemercier havia solicitado a ajuda de um ginecologista para tratar uma esterilidade confirmada. Os tratamentos empreendidos não tiveram o sucesso esperado, e ela decidiu interrompê-los. Nas semanas seguintes, declarou-se uma gravidez espontânea, que foi interrompida por um aborto tardio depois de vinte e três semanas de gravidez. Esse primeiro filho, natimorto, recebeu o nome de Jean-Yves. Este nome reunia um nome escolhido pelo pai, o outro pela mãe; este último encontrará eco no nome do segundo filho, que portanto se chama Yvon. Ao aborto seguiu-se um período de esterilidade de mais de três anos, o que levou a Sra. Lemercier a marcar uma consulta no hospital Béclère, a conselho de uma amiga cujas opiniões respeitava. Tranqüilizada, ao que parece, pela idéia de ser acompanhada no hospital, ela iniciou um novo tratamento para a sua esterilidade. O tratamento, pouco significativo, aliás, logo desencadeou uma nova gravidez. Estava feliz com esse sucesso, e aliviada pela idéia de que cuidassem dela no hospital Béclère. Foi nesse clima de confiança que Yvon nasceu. O aborto talvez estivesse ligado à sua culpa, como se ele significasse: matei meu pai, os deuses têm sede de vingança, e eles exigem o sacrifício da criança. Seja como for, tornar-se mãe exigia dela transgredir a proibição ligada ao luto não realizado. Mais ainda, supunha que ela pudesse identificarse com a mãe. Para recuperar sua parte maternal, tinha de entrar em acordo com o único modelo de maternidade que importa para uma jovem parturiente, o de sua própria mãe. Como ela me disse durante nossa entrevista, tinha estima pela mãe, e essa estima incluía também sua vida profissional: a Sra. Lemercier, como sua mãe, trabalhavam em meio médico. Vimos também que foi seguindo um conselho da mãe que ela começou uma psicanálise. Considero que esses elementos de identificação materna não são alheios à sua escolha do hospital para tratar da sua esterilidade e fazer o acompanhamento da gravidez. Explicam em grande medida a tranqüilidade que ali encontrou. Foi no
hospital que ela pôde se tornar mãe, porque foi no hospital que ela pôde ser maternada. Não cabe interpretar mais profundamente essa história, pois a narração desse trecho de vida já é uma interpretação, porquanto está marcada pelo trabalho efetuado em análise pela Sra. Lemercier durante vários anos. Em contrapartida, esse relato me obriga a definir o lugar que o filho vem ocupar. Nesse caso, o recém-nascido vem ali onde o luto do pai pode ser feito; talvez ele seja aquele que permite concluí-lo. Ele responde a isso, para além da demanda da mãe, pela micção. Aliás, ela me dirá que teve a sensação de que seu filho só começou a viver depois desse xixi salvador; até então – dizia ela –, para ele só houvera angústia e sofrimento. Não há melhor maneira de representar a situação do que dizendo: a micção da criança, embora recoloque a mãe na posição em que o drama a deixara, dá-lhe um novo destino. A «inundação» da criança dá, pois, um sentido novo a esse líquido, essa água, esse mar, essa mãe que matou seu avô. É, pode-se dizer, o significante de um novo batismo. A roda das mortes e dos nascimentos não tem fim, mas ela se detém para a Sra. Lemercier pelo fato de que o vivo possa ser a ocasião de celebrar o morto. Foi esse o sentido do ritual realizado no quarto da puérpera. Em contrapartida, para essa mulher, cuja questão das relações com um pai admirado foi tão cruelmente regrada por sua morte, a homenagem a um pai, dessa vez simbolicamente morto, é a ocasião para uma acolhida cheia de esperança da criança viva. O «sintoma» da criança é como o grão de areia que faz a lógica mortífera de sua mãe desgarrar-se, e propicia a ambos uma nova presença no mundo. Da morte à vida
Que esse “bebê da análise” tenha escolhido viver, ao contrário de seu irmão mais velho, é em si mesmo uma resposta viva à morte de seu avô, resposta de uma ordem distinta da do real do sintoma que perpetuava o impossível e o horrível. Seu nascimento orienta a mãe para a significação da dívida simbólica por intermédio do luto realizado: para ela, o pai simbólico é o pai morto, como Françoise Dolto tanto insistia. O pai real, figura mítica na família da Sra. Lemercier, fora ele mesmo filho de pais alcoólatras e agressivos. Aos 18 anos, fugira de casa e alistara-se no exército. Mais tarde, conseguira ser nomeado tutor de seu irmão, e o fizera ser colocado numa instituição para protegê-lo. Simultaneamente primogênito e tutor, quando não paterfamilias , efetuou assim um salto simbólico importante. Não apenas simbólico, diga-se de passagem: no exército, crescera vinte centímetros em dois anos! Conseguiu arcar sozinho com as necessidades de toda a sua família, e casou-se aos 38 anos com uma mulher de 18. Para terminar o enunciado do drama com uma pitada de comédia, contarei o seguinte: esse bebê, com sua vinda ao mundo, fará a mãe sair da prisão! Efetivamente, a Sra. Lemercier, depois de uma formação em Administração Pública, conseguira um emprego em meio carcerário, onde seu marido á trabalhava. Na época ficou muito feliz, pois, conforme me disse, ficava fascinada vendo o que era uma prisão de mulheres. Acontece que durante sua segunda gravidez o marido foi transferido. Depois da licença-maternidade, ela irá retomar o trabalho, mas fora de qualquer centro penitenciário. Feliz coincidência com a vinda de Yvon.
Participar um luto pode, como nesse caso, juntar-se a uma participação de nascimento. Participar um acontecimento que nos toca consiste em dirigir-se à sociedade, seja ela reduzida a um grupo de amigos ou de conhecidos, para lhe pedir não tanto que compar tilhe da nossa dor ou da nossa alegria, mas que a reconheça como aceitável. Supõe uma confiança no outro, chamado a ser testemunha dessa dor ou dessa alegria, somada à esperança de que essa confiança permita seguir em frente. Nesse sentido, para seguir em frente, todos temos necessidade de testemunhar o que constitui nossa vida, de compartilhar com o outro o que nos é próprio. Isso é algo verdadeiro no âmbito de uma entrevista psicanalítica: a Sra. Lemercier pôde dessa forma encontrar uma saída para esses nãoditos que a reduziam ao silêncio. Também é verdadeiro no contexto de um livro como este, que procura relatar uma experiência. É hora, portanto, de esclarecer a gênese dessa experiência. Os três tempos da psicanálise
“Psicanalistas na maternidade, não é novidade; psicanalistas que falam com os bebês, isso sim é novo”, dizia o professor René Frydman a uma jornalista que indagava sobre o meu trabalho no serviço dele. Novo? Sejamos claros: Não existem psicanalistas de recém-nascidos, assim como não existem psicanalistas de adultos ou de crianças: é uma comodidade de linguagem que, na nossa profissão, permite evocar diferenças de técnica ou de experiência entre nós. Na verdade, existem tão-somente psicanalistas. Se somos psicanalistas é antes de mais nada porque alguns sujeitos na sua dor nos convocam a sê-lo, antes de qualquer referência a Freud e a seus sucessores. O desejo irredutível do recém-nascido
O novo nesse assunto é tender a reconhecer sistemática, metódica e pacientemente o desejo irredutível do recém-nascido. Primeiro, porque se ele nasceu foi porque a algo ele veio. Em seguida, porque se ele está preso a sintomas que a medicina nem sempre explica, é muito provável que esse desejo humano irredutível esteja sendo contrariado. Não se trata de uma suposição teórica, mas de algo que eles mesmos me ensinaram. Por exemplo, ainda jovem na minha prática com os bebês, recebo uma mãe devido a um baby blues2aparentemente anódino. Ela inicia uma conversa tranqüila comigo, quando de repente o bebê – que a mãe dizia estar mudo desde o nascimento –, ao escutar que o chamo por seu nome e que começo a contar-lhe sua história, começa a se movimentar e a gemer. O tom da conversa muda imediatamente, pois o nome ao qual a criança reagiu evocava de modo direto o lugar em que estava enterrada sua avó. Para a mãe foi um choque tomar consciência disso, o que deu lugar a um trabalho de elucidação de suas relações conflitivas com essa avó. A tristeza que sentiu após o nascimento do filho tão esperado revelou-se estar fortemente ligada à decepção de não ter podido contar com a presença da mãe ao seu lado. Não estarei exagerando se disser que esse recém-nascido, como tantos outros, despertou em mim minha função de psicanalista: escute-me – ele me fez saber em sua linguagem –, embora sua razão lhe diga que eu não posso lhe falar. E saiba que eu a entendo, embora você me considere idiota. Foi basicamente essa mensagem que renovou minha prática de psicanalista. E é dela que
quero dar testemunho neste livro. Pois, numa época em que os conhecimentos científicos sobre o feto e o recém-nascido evoluem tão rápido quanto as incertezas sobre as explicações teóricas, acho importante poder testemunhar aquilo que constitui a eficácia do trabalho psicanalítico com os recémnascidos. Esse trabalho produz efeitos que nunca cessam de me espantar, efeitos rápidos, quando não fulgurantes. Os três prisioneiros
Para poder dizer como é possível essa modalidade de prática, é preciso inspirar-se nos princípios de ação empregados pelos psicanalistas e elaborados por um predecessor, por meio de um conhecido jogo de lógica: o dilema dos três prisioneiros. O diretor do presídio pretende libertar um dos três detentos que lhe parecem dignos disso. Seu direito de conceder a graça está limitado a apenas um dos três detentos, mas, não conseguindo decidir em sã consciência qual dos três, apela à sagacidade deles, dizendo-lhes o seguinte: “Vocês são três aqui presentes. Aqui estão cinco discos que só diferem por sua cor: três são brancos e dois são pretos. Sem dar a conhecer qual deles terei escolhido, prenderei em cada um de vocês um desses discos nas costas, isto é, fora do alcance direto do olhar [...] A partir daí, estarão à vontade para examinar seus companheiros e os discos de que cada um deles se mostrará portador, sem que lhes seja permitido, naturalmente, comunicar uns aos outros o resultado da inspeção. [...] Pois o primeiro que puder deduzir sua própria cor é quem deverá se beneficiar da medida liberatória de que dispomos”. 3 A análise que Lacan faz dessa situação afasta-se daquela da lógica tradicional. Ele supõe uma estratégia em três tempos. O que conta em primeiro lugar para o prisioneiro que quer vencer a prova – diz ele, em essência – é o que é evidente, o que ele pode constatar sem refletir, antes de refletir: no caso em questão, se os dois outros prisioneiros têm um disco preto nas costas, ele pode, sem hesitar, deduzir que ele tem um disco branco nas costas; ergo, que pode sair imediatamente. Esse lado imediato é o que o autor denomina o instante do olhar . O segundo tempo da estratégia, ao contrário, supõe passar pela mediação do alter ego. Na prática, o prisioneiro precisa de um tempo para compreender que a hesitação dos dois outros lhe diz algo sobre a sua cor: se ele é preto, os dois outros rapidamente deveriam concluir que eles são brancos e sair; caso contrário, eles hesitarão. É o tempo de uma análise “objetiva” da situação. A decisão final, o momento de concluir , supõe, segundo o autor, uma pressa, ou seja, uma decisão subjetiva do prisioneiro: ele tem de decidir qual a sua cor sem prova objetiva, pois uma hesitação sua pode ser o pretexto para os outros dois o fazerem em seu lugar. O contato com os recém-nascidos
Jacques Lacan via nessas três escansões, instante do olhar, tempo para compreender e momento de concluir , um modelo da situação psicanalítica. Meio século mais tarde, elas iluminam o movimento que temos de fazer no nosso contato com os recém-nascidos. Para mim, o instante do olhar foi constatar o que era feito na França pelos bebês que nasciam em condições difíceis. Deslocar-se para junto deles colocava toda uma série de problemas, práticos mas também éticos.
Relatarei como a experiência do atendimento de F. Dolto aos lactentes do abrigo provisório 4 de Antony e minha própria experiência ao lado de Caroline Eliacheff deram origem a uma reflexão a esse respeito. Falarei também da vida da maternidade dirigida por René Frydman, do movimento que ele desencadeou e da formidável colaboração das equipes do hospital Antoine-Béclère de Clamart, que me ajudaram a imaginar procedimentos de intervenção. Falarei, por fim e sobretudo, do que os bebês me deram a ver e a escutar. Pois, diferentemente do protocolo psicanalítico clássico em que paciente e analista escapam um ao olhar do outro, o trabalho com os bebês começa com o olhar. E, no contexto da intensa emoção que representa muitas vezes o nascimento e os dias que a ele se seguem, os bebês nos mostram de modo quase palpável as problemáticas que os agitam. Ser psicanalista junto dos bebês tem suas regras: foi preciso reconstruir seus rudimentos, sem os quais nenhum trabalho propriamente psicanalítico teria sido possível na maternidade. Um psicanalista apóia-se na demanda de um sujeito, que ele diferencia da necessidade e do desejo. Se um paciente não demanda nada, se está ali por conveniência ou por obrigação, o psicanalista não pode, não deve operar. Como fazer então num serviço de maternidade em que, por definição, é preciso deslocar-se para a cabeceira do paciente? Faz-se necessário um protocolo que garanta ao bebê e a seus pais que será a sua demanda que será escutada, que só verão a psicanalista se o quiserem, que não serão objeto de uma visita sistemática por algum motivo “psi”. Esse tempo para compreender mínimo é necessário para que o trabalho comece. Isso evidentemente só é possível em função dos inúmeros avanços científicos que foram feitos nestes últimos anos sobre o conhecimento dos fetos e dos lactentes, o que o torna ainda mais apaixonante. Pesquisadores em neurociências, etólogos, psicanalistas, mas também pediatras, ecografistas, neonatologistas – é longa a lista daqueles que produziram recentemente descobertas fundamentais e/ou experimentais. Sem fazer um recenseamento exaustivo delas, o que excederia os limites deste livro, indicaremos aquelas que ajudaram a assentar esse protocolo de trabalho psicanalítico. O que não muda é este princípio ético primeiro que é o pivô da ação de um psicanalista: todo ser humano é um ser de desejo, seja qual for sua idade. Na ausência desse postulado, não se é psicanalista. Como dar conta desse desejo e da trama inconsciente na qual ele se desenrola? Por que, sem esperar uma “palavra” do recém-nascido, somos levados pela prática psicanalítica a afirmar que a criança tem um pensamento? Que esse pensamento está diretamente ligado à importância evidente que ela atribui às palavras de seu meio quando estas, desde que lhe sejam diretamente endereçadas, lhe permitem dar sentido ao que vive? Onde se situa a interpretação analítica, sua eventual urgência? As respostas que minha posição de psicanalista me permite dar a essas questões, meu momento de concluir , conduzem-me a certo número de hipóteses clínicas. Penso particularmente no período do limbo e no do baby blues que a ele se segue, mas também nas respostas preventivas a serem dadas, por exemplo nos casos de parto em segredo.5 Algumas pessoas – entre elas alguns psicanalistas – queixam-se da lentidão de certos tratamentos psicanalíticos. Desse ponto de vista, é incontestável que o trabalho psicanalítico com recém-nascidos seja gratificante porque muitas vezes provoca efeitos quase imediatos. Essa rapidez entusiasma, pois confirma um psicanalista naquilo que o fez sê-lo: o tratamento psicanalítico é um
lugar de achados permanentes para aqueles que o empreendem, nesse caso para os psicanalistas. Essa eficácia também intriga e precisa ser interrogada. Compreender algumas de suas razões permite, entre outras coisas, entender nos tratamentos de adultos vestígios do “arcaico” até então mudos; à medida que essa compreensão se afine, a eficácia da psicanálise de crianças maiores ou de adultos decerto aumentará. Em todo caso, o encontro com os recém-nascidos quase sempre se dá num contexto em que o potencial humano de emoções se revela em seu mais alto grau. Por isso esse testemunho é urgente. Temos certeza de não ter de extravasar a emoção que nos causa compreender que os recém-nascidos podem “conversar” conosco. Pois apostamos que os leitores reconhecerão essa importante verdade como também sendo a deles. 1 No original sage-femme. Atualmente, na França, são profissionais que exercem uma profissão médica cuja competência se estende ao acompanhamento da gravidez, ao parto normal e à sua preparação, bem como à assistência pós-natal da mãe e do recémnascido (N.T.) 2 Denominação da depressão normal que afeta a maioria das puérperas, em maior ou menor grau, a partir do 3º ou 4º dia do puerpério. Ver mais detalhes ao longo do livro. (N.T.) 3 J. Lacan, “Le temps logique et l’assertion de certitude anticipée”, in Écrits, Seuil, 1966, p. 197-203. (Edição brasileira: Escritos, Jorge Zahar, 1998, p. 197-203.) 4 Pouponnière: instituição pública que abriga crianças de até três anos que não estão sob a guarda dos pais. (N.T.) 5 Desde 1941, a lei francesa autoriza as mulheres a dar à luz sem revelar sua identidade. São os chamados partos em segredo, partos anônimos ou partos sob o nome X. As crianças que nascem nessas condições estão destinadas à adoção. No Brasil, existia a prática de “entregar o filho na roda”: do lado de fora dos conventos havia uma roda onde a mãe colocava o filho, a roda girava e a criança entrava no convento sem que se soubesse quem era a mãe. (N.T.)
A causa dos bebês
Gente grande não entende nada sozinha, e para as crianças é cansativo sempre ter de lhes dar explicações.
Antoine de Saint-Exupery
Como vai o bebê? Fazer essa pergunta a um(a) amigo(a) é coisa corrente, mas responder a ela em escala social é bem mais árduo. Nasce-se em melhores condições nesse fim de século do que no seu início, ou a medicalização da gravidez e do nascimento reduz o bebê e sua mãe a seres sem alma? O bebê tem um lugar mais aconchegante no ninho familiar do que há cem anos, ou é ele vítima da desagregação da família nuclear? Houve algum ganho em proclamar que “o bebê é uma pessoa”, ou deve-se crer no historiador Philippe Ariès que afirma que a idade de ouro da criança ficou para trás? O bebê levou alguma vantagem com a redistribuição dos papéis na sociedade, com o trabalho das mulheres e com o aparecimento dos “novos pais”? Ou ele não passa do gnomo dos desenhos de Claire Bretécher que de manhã é pendurado pelos suspensórios no cabide de um maternal, à tarde no de uma creche e, à noite, no de algum ateliê de sensibilização que esteja na moda? As respostas a todas essas questões não são tão claras quanto parecem. É sempre uma questão de opção pessoal. A mortalidade infantil sem dúvida diminuiu com os avanços da medicina, e sobretudo graças aos higienistas e aos médicos sociais do século XIX. A febre puerperal não resistiu à organização nos hospitais de estruturas dedicadas às parturientes e a seus filhos, e a introdução dos antibióticos e da assepsia a erradicou. Desde então um longo caminho foi percorrido. Neste fim do século XX, toda mulher tem a garantia de que sua maternidade se beneficiará de condições de segurança particularmente desenvolvidas: higiene, atenção aos cuidados pré e pós-natais para ela e para o bebê, prevenção... – pensando bem, a panóplia de intervenções existentes é bastante diversificada. Para o bebê, os avanços são tão decisivos que retrospectivamente até parecem evidentes: já se foi o tempo em que não se anestesiavam as crianças de pouca idade “porque elas não sentem dor”. Os médicos sabem agora diferenciar os sinais de dor dos recém-nascidos, e geralmente conseguem evitá-la. Melhor ainda, eles começam agora a reconhecer os sinais de dor do feto. O nascimento nem por isso se tornou um ato anódino, nem do ponto de vista afetivo, é claro, nem mesmo de um ponto de vista estritamente médico. Embora os progressos da obstetrícia sejam impressionantes, continuamos à mercê de afecções e acidentes. Nesse sentido, a morte súbita do lactente é o paradigma das várias mortes inexplicadas das crianças de baixa idade: ela impressiona o grande público e preocupa, com razão, os profissionais. Para preveni-la, os pediatras de Béclère,
com base em estudos epidemiológicos internacionais, adotaram o costume de recomendar deitar os bebês de costas. As parteiras e eu mesma, nas reuniões de sensibilização e de informação sobre puericultura que organizamos para as mães que acabaram de dar à luz, insistimos nesse modo de deitar os bebês. Isso é motivo de orgulho para nós, porque a taxa de mortalidade vem diminuindo em proporções incontestáveis desde a aplicação dessa recomendação. No plano médico, ginecológico e obstétrico, mas também pediátrico, os avanços fundamentais são imediatamente aplicados na prática hospitalar. No que concerne à nossa profissão, há progressos: psiquiatras, psicólogos e psicanalistas são chamados à cabeceira das parturientes nas maternidades para dar assistência às mães. Todos esses recursos representam uma maior responsabilidade da sociedade por cada um de seus novos membros que acaba de nascer. Tudo isso é de conhecimento público, e as pessoas reconhecem as pontes que se estabelecem entre o mundo frio da medicina especializada e a intimidade da família. O bebê não ocupa mais apenas um lugar nos livros especializados classificados nas estantes empoeiradas da biblioteca sob a letra P de puericultura, ele é objeto de inúmeras revistas de ampla difusão, umas mais atraentes que as outras. O bebê interessa. Não passa um dia sem que se escute uma mãe lançar afirmações do seguinte estilo: “cuido do meu bebê dessa maneira porque Dolto disse que...”, “disseram-me que se deve aleitar ao seio porque o aleitamento artificial desumaniza o bebê”, “li que o bebê é sensível à música, por isso todas às noites, antes de dormir, toco para ele a Pequena Música noturna ” etc. Muitas vezes é preciso relativizar essas interpretações um tanto apressadas e pessoais, mas elas decerto manifestam um interesse novo pelos pequeninos. Se o Congresso nacional é o reflexo digno de uma sociedade, também ali a criança vem ganhando em estima. Nos últimos dez anos foi votado um florilégio de leis que a concernem: sobre a adoção, o parto em segredo, os novos métodos de fertilização. A legislação sobre a criança, os comitês de ética encarregados de refletir sobre o direito da criança e do recém-nascido em nossas sociedades são outros tantos sinais que indicam que o bebê está de vento em popa. Todos esses esforços para que o bebê «vá melhor» merecem nossos aplausos. Felizmente não vivemos num país em que os bebês são objeto de comércio, nem num tempo – enterrado – em que eles morriam sem cuidados por desconhecimento de seus sofrimentos. Façamos no entanto um pequeno senão a essa homenagem, pois o bebê, por motivos evidentes, não diz ele mesmo como vai. Formei-me em medicina e sei que o paciente nem sempre tem algo a dizer quando se trata de diagnosticar e tratar seu distúrbio. Foi certamente por isso que me tornei psicanalista. Mas guardo a nostalgia daqueles grandes clínicos que detectam os problemas escutando o paciente, e que de alguma maneira sabem que nenhuma outra fonte é mais autorizada que o próprio paciente. Desde o começo dos anos noventa, meus pacientes são principalmente bebês na maternidade do hospital Antoine Béclère; mas precisei retroceder vários anos em minha prática para compreender por quê. Um percurso profissional
Um desvio por meu percurso profissional explicará melhor que uma explicação científica como os recém-nascidos podem dizer respeito à psicanálise. Desde meados dos anos setenta, após estudos
de medicina e o internato em psiquiatria, trabalhei com psiquiatria de adultos em diversos serviços da região parisiense, e a partir dos anos oitenta tive uma prática de psicanalista em consultório. Nada na minha vida profissional me predestinava a me interessar pelo recém-nascido. Nada conhecia sobre ele, ou muito pouco. Tinha efetivamente feito uma parte de minha especialização médica num serviço de psiquiatria infantil, e portanto eu era psiquiatra infantil, o que era mais uma qualificação suplementar do que sinal de um interesse pessoal. Passados vinte anos, não renego essa ignorância necessária, pois não há nada de mais terrível do que tomar-se por um especialista da infância. Continuo não sendo uma especialista nesse sentido, e mantenho minha prática privada de psicanalista aberta para os adultos. De que serve «saber» escutar uma criança se nos recusamos a entender no adulto as palavras que cantam o verde paraíso da infância? Inversamente, como pretender dar assistência a um recém-nascido sem imaginar o lugar simbólico de ser social que ele será levado a assumir no mundo dos adultos? O pouco que conhecia das crianças era por intermédio de suas mães, sobretudo pelos casos de baby blues e de depressão pós-parto com que deparara na minha prática. Isso levou minha colega e amiga Claudine Cohen (que dividia comigo o mesmo consultório) e eu a fundar um grupo de reflexão sobre o baby blues . A esse grupo logo se juntaram alguns colegas psicanalistas homens, mas também ginecologistas e pediatras. Fazíamos pesquisa bibliográfica sobre o tema do baby blues, comparávamos nossas experiências... Elaboramos um questionário voltado para as mães. As respostas ao questionário, difundido em consultórios particulares de ginecologia, eram apaixonantes. Não tínhamos nenhuma pretensão estatística, mas a freqüência de certas respostas não deixou de chamar nossa atenção. Assim, na pergunta: caso isso lhe fosse proposto, você aceitaria falar com um profissional sobre os problemas que teve depois do parto?, o “sim” predominava de forma ampla nas respostas provenientes de mulheres que eram mães. Essa resposta era particularmente chamativa porque naquela época, como ainda hoje na maioria dos atendimentos públicos, não havia nada previsto a priori para o acompanhamento das puérperas. Os problemas dos primeiros meses eram sempre tratados na pediatria, quando se tratava da criança, e eventualmente em psiquiatria, no caso de problemas da mãe. Mas na maternidade não existia nada específico nesse sentido. No entanto, a demanda parecia existir. Uma direção indicada por Françoise Dolto
Paralelamente a esse grupo de reflexão, dava consultas num centro médico-psicológico (CMP) desde 1979. Lá recebíamos crianças com patologias que iam das dificuldades escolares menores às psicoses mais graves. A maioria das crianças que eu atendia estava na “fase de latência”, com idades oscilando entre 5-6 anos, e no começo da adolescência. Para dar uma imagem, digamos que estava me tornando uma especialista do “xixi na cama”, visto que esse tipo de sintomatologia é freqüente nessa idade. Mas as crianças muito pequenas me deixavam fortemente intimidada, não sabia como ajudá-las. Minha colega Caroline Eliacheff sugeriu acompanhá-la para assistir a uma consulta de F. Dolto. Naquela época ela atendia, na rua Cujas, bebês que lhe eram encaminhados pelo abrigo provisório de Antony, acompanhados de sua maternante. 1 Esses bebês, às vezes nascidos de um parto anônimo,
sempre se encontravam em situações sociais e psicológicas dramáticas. Eles tinham entre 8 dias e 3 anos de idade. Eu conhecia F. Dolto por intermédio da escola de psicanálise à qual ela pertencia, por seus livros2 e por seus programas de rádio. Mas nunca me ocorrera a idéia de aprender meu ofício com ela, embora a consulta que há pouco mencionei fosse aberta para uma dezena de psicanalistas de adultos que procuravam ali uma formação para os problemas específicos das crianças. A pessoa dela não despertava em mim nenhum interesse particular. Logo tive, inclusive, razões para temê-la. Escrevi-lhe para dizer que desejava assistir sua consulta: argumentei que queria aprender a entender o sofrimento dos bebês, para ter condições de reconhecê-lo nos meus pacientes adultos. Recebi uma convocação para comparecer à rua Cujas. Compareci na hora marcada, para escutar da boca dela que ela devia ter se enganado e que já havia muitas mulheres na sua consulta. Soube que outra postulante fora rejeitada com a alegação de que sua competência em psiquiatria infantil nada tinha a ver com a psicanálise. Amarga decepção. Tive de dissimular minha impaciência e esperar que um «lugar de mulher» ficasse vago. Com efeito, ele ficou vago seis meses depois. De uma hora para a outra, a impaciência que sua primeira recusa gerara em mim transformou-me numa aluna supermotivada. Todos aqueles que acompanharam aquelas consultas sabem que elas eram impactantes. Como dizia um deles: “Ela acredita de verdade na psicanálise!”. Sua consulta era um lugar de formação porque Dolto era uma clínica ímpar, com seu modo inimitável de falar com as crianças, que muitas vezes lhe respondiam taco a taco. Mas também porque ela ensinava que a psicanálise não se ensina, e que era preciso encontrar no próprio saber inconsciente de cada um a relação entre o que a criança nos lança na cara e o que a teoria professa. Enfim, porque ela nunca perdia uma oportunidade para sublinhar que a idade dita pré-verbal exprime, mais longe do que o arcaico de que a psicanálise tradicional fala, algo de uma palavra falada. Ela falava muito com os bebês, ela achava que com eles se trocavam palavras de forma mais direta do que com um adulto. Com os psicanalistas presentes, ela também falava: comentava a sessão que acabara de se dar, perguntava o que tínhamos entendido. Melhor ainda, ela se servia do que lhe respondíamos; agradecia ou criticava conforme o caso. Em suma, um tipo de transmissão a que não fôramos acostumados nem em nossos estudos, nem em nossas supervisões com psicanalistas renomados, nem em nossos congressos. F. Dolto ajudou-me a adentrar um terreno em que pouco tempo antes eu não teria arriscado penetrar. Passei a atender crianças pequeninas, e a constatar que seus sintomas podiam, como com ela, regredir depois de algumas sessões. Essa eficácia súbita me espantava. Os psicanalistas estão acostumados a pensar que a cura é um elemento acessório num tratamento, e que existem sujeitos que não a desejam, ou para quem esse desejo... se eterniza. Ali, tudo era vivo e claro. Como sou psicanalista e um psicanalista continua sendo um terapeuta, eu só tinha a ganhar: conseguir entender algo dos pequeninos na minha prática, quando um ano antes eu não teria entendido nem uma palavra, me deixava muito feliz. A paixão da transmissão de Dolto nos confortava nas nossas tentativas de escutar esses pequeninos. Portanto, eu continuei; ela merecia! Guardarei como lembrança pessoal de sua devoção à causa das crianças aquele dia, pouco antes de sua morte, em que a levei de carro para casa depois de uma manhã inteira de consultas. Apesar da fibrose pulmonar que a debilitava, apesar da morte que ela sentia próxima, ela continuava as consultas com os recém-nascidos do abrigo provisório: era a única atividade que ela mantinha.
Naquele dia, como todos os dias fazia algum tempo, ela levava consigo seu balão de oxigênio móvel e a sonda que a ajudava a respirar (“seus óculos de nariz” como ela dizia às crianças para banalizar a horrível máquina). Saíra com muita dificuldade do carro, e, passo a passo, me arrastara até uma mercearia pedindo que a ajudasse a carregar o balão. Eu resistia: “Não faz sentido, a senhora tem de ir descansar...”. – “Não, não, meus netos vão vir me visitar e eu preciso comprar uns doces de qualquer jeito.” F. Dolto carregava isso no corpo: a paixão pelas crianças e a força de viver. Depois da sua morte em 1988, as consultas tinham de continuar; era este o seu desejo, que foi assumido pelo Assistência Social à Infância (ASE), órgão do qual dependia o abrigo provisório de Antony. Caroline Eliacheff foi uma das que aceitaram levar adiante o empreendimento no CMP. Quanto a mim, passei a atender crianças já colocadas em família de acolhida que o ASE me encaminhava para consultas psicanalíticas. Também acompanhei Caroline Eliacheff durante alguns meses, para continuar a aprender sobre e com os lactentes. Embora F. Dolto tivesse me libertado de meus medos em relação às crianças pequenas, eu ainda não sabia totalmente o que tinha a ver com elas. O que a consulta tinha de apaixonante era que crianças muito pequenas, gravemente perturbadas, podiam livrar-se de seus sintomas no espaço de algumas sessões. Ainda que esses sintomas fossem dos mais severos, eles sofriam uma remissão quando as palavras ditas às crianças davam sentido aos pedaços até então soltos de sua história. Isso era particularmente notório com crianças nascidas de um parto em segredo. Tal constatação levou-me, certo dia, a perguntar a Caroline Eliacheff: se as crianças abandonadas sofrem de vazios de palavra e em conseqüência disso elaboram sintomas, se nossa intervenção faz esses sintomas perderem sua força, não seria mais econômico para todo o mundo que interviéssemos mais cedo, ou seja, antes do aparecimento do sintoma? As evidências redundaram numa resposta afirmativa. Com certeza precisávamos ter acesso a uma maternidade. Era tentador, mas o problema era que jamais houvera algum serviço hospitalar da França que aceitasse pagar uma psicanalista para trabalhar junto dos recém-nascidos. Quem seria suficientemente ousado para tentar tal experiência? A maternidade Béclère
A sorte me sorriu, e ela tinha a cara do professor Frydman. René Frydman já dirigia a maternidade do hospital Antoine Béclère de Clamart, que por acaso estava sob a jurisdição da mesma regional infanto-juvenil do CMP em que eu trabalhava e do abrigo provisório de Antony. Muitas crianças acolhidas no abrigo provisório tinham nascido naquela maternidade. Mera questão de proximidade? Não só. Falar com recém-nascidos em sofrimento supunha por definição três elementos: bebês que expressassem uma dor psíquica, uma concepção psicanalítica da escuta e uma instituição de ponta. Béclère desfrutava de sólida reputação devido às inovações ali implantadas. Ali existia um dos serviços pioneiros no campo da reprodução medicalmente assistida (PMA), um dos departamentos
mais especializados para as chamadas gestações de alto risco (GHR), associado a um serviço de neonatologia. Mais tarde, esses serviços vieram a se tornar o centro de uma rede de equipamentos da região parisiense que para lá encaminham as patologias mais difíceis. A equipe era das mais reconhecidas. Era um centro experimental de todo tipo de inovação, e ali fora criada uma das primeiras unidades canguru da França. Essa “unidade de criação”, com propósitos mais humanistas do que sua denominação nos textos dá a entender, tem por finalidade permitir que algumas crianças prematuras permaneçam em contato com a mãe. Em caso de prematuridade, as crianças que necessitam de cuidados particulares são, em qualquer outro hospital, enviadas para o serviço de neonatologia enquanto a mãe permanece na ala das puérperas. (Se o hospital em questão não estiver equipado com um serviço de neonatologia, a criança é transferida para um outro centro.) As mães têm maior ou menor liberdade de visitar os filhos, conforme o regulamento de cada hospital e segundo o tipo de cuidados que a criança exige. Mas elas não podem ter com eles um contato constante, e muitas vezes custa-lhes muito trabalho chegar até o setor de neonatologia, sobretudo se o parto deixou seqüelas. No hospital Béclère, mãe e filho são internados no mesmo andar. A idéia da unidade canguru consiste, pode-se dizer, em deslocar os profissionais para perto dos bebês, e em manter as mães ao lado deles. Ela se aplica às crianças hipotróficas nascidas a termo, ou aos prematuros de baixo peso, ou seja, pesando em torno de dois quilos e que não requerem cuidados que exijam técnicas sofisticadas. O recém-nascido passa a noite na unidade, mas durante o dia fica no quarto da mãe. Às vezes propõe-se à mãe colocar o filho em contato com a pele de seu corpo, e uma incubadora é colocada no quarto para o caso de necessidade. A criança é retirada para cuidados especializados pelas equipes, mas a mãe pode a todo momento vê-la, falar com ela e participar dos cuidados. Isto é inclusive estimulado pelas puericultoras e enfermeiras, que têm por missão ajudar a mãe a cuidar de seu bebê, visto que ela poderia se sentir incapaz dada a fragilidade da criança. Em razão de seu sucesso no mundo inteiro, a unidade canguru é tema de muitas publicações 3 destinadas a estudar seu impacto sobre o desenvolvimento das crianças prematuras. É incontestável que os recém-nascidos que passaram pela unidade canguru se remetem rápido, e que as mães partem tranqüilas e certamente mais “competentes”. Ao preservar as relações precoces mãe-filho, a unidade canguru permite que a criança reencontre após o nascimento as percepções pré-natais que já conhece, e portanto desenvolva-se em maior segurança. Como dizia F. Dolto, e como Catherine Dolto-Tolitch sempre relembra na qualidade de haptoterapeuta, o recém-nascido encontra aí uma oportunidade para se desenvolver na mesmidade de ser , sem que se dê um corte arbitrário entre o antes e o depois do nascimento. Tudo isso era para mim indício de que a aventura poderia ser tentada naquele hospital. Se a isso somarmos a personalidade do professor Frydman, compreender-se-á que o indício transformou-se em esperança. Não era a primeira aventura dele. Ele passara pela guerra! Na verdade, a da Nicarágua, a da Palestina, acompanhando os Médicos Sem Fronteiras ou a Cruz Vermelha Internacional. Mas também a do direito ao aborto, para a qual dera sua contribuição como médico. Mais ainda a guerra pela inseminaçãoin vitro , pois ele é um dos “pais” científicos de Amandine, o primeiro bebê de
proveta francês. Mais que como pioneiro de todas as novas técnicas de reprodução erroneamente denominadas de artificiais, ele era conhecido como uma das pessoas que mais fazia avançar a reflexão ética a propósito das reproduções medicalmente assistidas (PMA). Portanto, eu podia tentar convencer um homem para quem o nascimento parecia obrigar a tentar uma experiência inédita. A aproximação foi paulatina. Primeiro um convite para ir falar com a direção do serviço sobre um projeto de trabalho em maternidade. Depois, uma carta propondo que eu me juntasse a um grupo de reflexão dos psiquiatras e psicólogos do hospital. Por fim, a convocação para uma entrevista com ele sobre a possibilidade de ajudar os recém-nascidos por meio da palavra, na qual se concluiu que valia a pena fazer uma experiência por um período de três meses. René Frydman logo decidiu transformar essa tentativa em profissão, a fim de implantar oficialmente minha prática no serviço. Ele achava que a aposta valia a pena: embora ainda não tivesse tido tempo de se convencer da validade de minhas afirmações, pelo menos o que os funcionários lhe transmitiam a respeito lhe parecia favorável. No entanto, a guerra ainda não fora ganha, pois era preciso encontrar financiamento, e a Proteção Materna e Infantil (PMI) se recusara a subvencionar essa atividade. A política das tutelas era, sem dúvida, menos ousada do que a do hospital. Basicamente diziam que os recém-nascidos não precisavam de nada, e que, aliás, eles não tinham pedido nada! Num primeiro tempo, foi portanto como médica transferida da regional de psiquiatria infantil que fui trabalhar em Béclère. Além da minha prática clínica, organizava ali reuniões com os membros do serviço com o objetivo de sensibilizá-los para a especificidade da minha intervenção. Pouco depois, a regional houve por bem cortar meu salário, e foi a maternidade que o assumiu. Um lugar para o psicanalista
Que vemos todos os dias nas maternidades, tanto em Béclère como em qualquer outro lugar? Mulheres que conversam com seu filho recém-nascido. Pensa-se, por certo, nos vagidos dos lactentes em resposta aos afagos maternos, mas, mais longe, pode-se também evocar o baby blues . Ele afeta quase todas as mães, de modo mais ou menos pronunciado. Descobri ao longo de meu trabalho na maternidade que não apenas a presença do bebê desencadeava o baby blues, mas também que o baby blues chamava o bebê para a linguagem. Em outras palavras, contrariando a prática consagrada, um psicanalista não pode escutar a mãe sem escutar o bebê, nem falar com a mãe sem falar com o bebê. Isso será mais amplamente discutido no capítulo dedicado ao baby blues . Mas já se pode afirmar que mãe e filho vão de par. Embora eu tivesse compreendido, graças ao meu grupo de reflexão sobre o baby blues, que havia uma demanda das mulheres para falar, embora, por outro lado, eu tivesse visto os efeitos benéficos de uma escuta psicanalítica sobre crianças muito pequenas, a solução agora era untar as duas pontas. Era preciso ter acesso a ambos sem separá-los. É verdade que um dia é preciso que mãe e filho se separem para não permanecerem num vínculo patológico: que cada qual viva a sua vida! Mas para aquelas que justamente encontram dificuldades para estabelecer um limite entre elas e o pedaço de carne que o filho delas é a seus olhos, trata-se enquanto isso de que elas possam negociar a interdependência dos primeiros dias. Os recém-nascidos, uma especialidade?
Uma das fraquezas de que sofrem as profissões ligadas à saúde mental é recortar a história dos indivíduos em fatias: temos a psiquiatria infanto-juvenil, que diferencia a psicopatologia da criança da do adolescente (e que acrescentaria um ramo lactente e uma subseção recém-nascido se o permitíssemos), uma psiquiatria do adulto, uma geronto-psiquiatria... Certos psicanalistas ainda insistem em marcar sua especificidade como analistas de crianças ou de adultos, como já disse. Decerto é preciso adequar-se a todos os gostos dos profissionais, bem como aos gostos de todos os públicos de “doentes”, mas não ao preço de esquecer o continuum de uma vida de ser humano. Com as crianças de muito pouca idade, é impossível separar o dizer da criança do da mãe, e tampouco, aliás, do dizer do pai. Béclère carrega uma marca dessa situação, que, embora seja formal e benigna, nem por isso deixa de ser real: o departamento de acompanhamento das puérperas depende administrativamente do serviço de obstetrícia do professor Frydman, ao passo que a unidade canguru bem como todos os pediatras da maternidade dependem do serviço de neonatologia. Administrativamente falando, uma mãe e seu filho competem portanto a duas unidades diferentes. Nada de grave nisso, pois geralmente serão internados juntos no mesmo andar; mas a separação continua inscrita. Já faz muitos anos que os psicanalistas trabalham em hospitais. No entanto, até então seu objetivo era apenas trabalhar no antes e no depois do nascimento. Antes, para ajudar as mulheres com gestações difíceis ou para as PMA; depois, para os problemas que surgiam em neonatologia e em pediatria. Nada para os partos «normais». A prioridade era ocupar-se das mães, não dos bebês. Muitas vezes, essa prioridade incluía, como condição subentendida, que o sintoma do bebê era de outra alçada, médica e pediátrica: não se deve misturar alhos com bugalhos, nem as mães sofredoras com os bebês que supostamente nada têm a dizer, e muito menos as coisas sérias com os médicos da alma. E eis que agora chega alguém que pretende falar com os bebês... Na verdade, eu apenas propunha aplicar o que F. Dolto me havia ensinado com bebês de algumas semanas aos recém-nascidos de alguns dias. Tratava-se de psicanálise, ou seja, de uma insistência em dar palavra – como se diz “dar na mosca” – a todo sintoma articulado que representa sua parte de verdade inconsciente. Quanto a isso, a psicanálise não indaga os sujeitos sobre sua idade ou seus motivos. Mas ela exige um protocolo particular, que a diferencia da psiquiatria e da psicologia. Não exatamente o do consultório de um psicanalista, pois é preciso deslocar-se para o leito das pessoas que sofrem, mas com certeza um enquadro que responda a critérios psicanalíticos. Para compreendê-lo, tomemos a lista dos males com que deparamos numa maternidade. Os recém-nascidos sofrem de distúrbios digestivos os mais variados: vomitam, regurgitam, têm diarréias ou prisões de ventre, têm cólicas – alguns em proporções alucinantes, que os colocam em perigo. Fazem anorexias, rejeitam obstinadamente o seio. Fazem bulimias, ou, mais exatamente, exigem sem parar. Choram ininterruptamente, noite e dia. São vítimas de hipersonia, ou acordam com demasiada freqüência. Têm distúrbios cutâneos. Têm distúrbios respiratórios, leves ou dramáticos. São hipotônicos, têm uma curva de peso que não volta a subir passados três dias, como é normal, são anormalmente “apagados”, gritam, são hiperagitados... As mães reagem como podem em função de seu estado e de sua constituição. Os profissionais tranqüilizam. Sem fraquejar. Que faz o psicanalista? O olhar e a voz
O psicanalista deve abrir os ouvidos e tentar entender o bebê, sua mãe e seu pai. Dizer isso ainda não explica nada se não esclarecermos que ele recorre aos seus olhos como ajuda. Quando entro num quarto de uma mãe que mandou me chamar para ela ou para seu bebê, começo por arrumar o espaço de maneira a poder ver ambos os protagonistas, ou os três, se o pai estiver presente, e a poder ser vista por eles. O dispositivo é diferente daquele a que estamos acostumados com adultos em consultório, onde o analisando deitado no divã furta-se ao olhar do analista e vice-versa. O primeiro órgão da fala, nesse caso, será o olho. Trata-se de instalar com o olhar essa cena em que o recém-nascido é incluído no espaço de fala que se cria. Trata-se de ser testemunha. Olhar a mãe, olhar a criança, ser olhado. O termo «olhar», que acrescenta um prefixo de repetição a “guardar”, 4 deriva do termo germânico wardôn, que significa “esperar”, “cuidar”. É justamente disso que aqui se trata. Diz-se que o recém-nascido não vê nada, por uma deficiência devida à imaturidade dos receptores retinianos. Convido o leitor a ler os trabalhos experimentais sobre o olhar do lactente. 5 Lá encontra-se demonstrado que a criança lê de certa maneira os lábios, que ele entende melhor o que vê. Ver-se-á também que ela sabe imitar um adulto puxando a língua e abrindo a boca, que copia as expressões de seu rosto sorridente ou severo. Simples conduta reflexa? Ou será que o bebê entende que ao franzir o cenho sua mãe mostra sua inquietude, ao passo que seu sorriso é de melhor augúrio para ele? Tudo indica que essa conduta pressupõe na criança uma representação simbólica para além do olhar. Por qual outro motivo os pesquisadores insistiriam em dizer que uma criança vê um novo objeto como algo já visto? Será porque existe uma vida antes do nascimento, porque o recémnascido tem uma história? Deixemos que cada um se indague e contentêmo-nos por enquanto em acreditar no olhar dos recém-nascidos. O psicanalista deve tentar deixar que as vozes se expandam. A sua, a do bebê, a da mãe. Tenho razões pessoais para pensar isso, pois uma formação em canto me permitiu compreender de que maneira a voz é realmente um corpo nascente: uma glote, cordas vocais, caixas de ressonância, músculos e um fole, mas também um corpo que vai além de si, que vai em direção ao outro que escuta. Mas, avancemos. Como demonstra o psicanalista Denis Vasse, quando o umbigo se fecha, a boca se abre: é o momento mesmo da vinda à vida. Quando o cordão é cortado e o umbigo é levado a se fechar, chega para a criança o tempo de viver de seu próprio corpo. Muitas vezes este é também o instante de seu primeiro vagido. Quando surge a voz do outro, é uma dimensão outra que se abre: “dali em diante o corpo-acorpo com a mãe se encontra mediado pela voz, tanto a do bebê como a da mãe ou a do pai. É nela que vêm se significar o contato ritmado dos cuidados, simultaneamente com as inflexões mais inconscientes que esse contato provoca no coração dos pais". 6 Em outras palavras, a voz é aquilo por meio do que o bebê é simbolizado no Outro, porquanto ele é representado, falado, vocalizado em relação ao outro. Pela voz de outros homens, o recém-nascido deixa de ser apenas um corpo, e passa a ser um ser inserido no simbólico. A voz é essa cesura significante mais apta a levá-lo à vida do que o corte do cordão umbilical. Ela é o que nomeia, distingue e celebra o corpo da criança. Essa capacidade da voz, na medida em que é escutada e entendida pela criança desde seus
primeiros instantes, vincula-a desde então e para o resto da vida a duas ordens que se conjugam: seu corpo e a história que ele veicula – é o “momento” umbilical – e a humanidade, o conjunto daqueles que falam, a sociedade – é a nomeação. Portanto, é como força de vida que cabe considerar a voz na entrevista com o lactente. Sobre esse tema do olhar e da voz, citaremos um caso clínico de F. Dolto, que evoca um problema que se origina no imediato do pós-nascimento. Trata-se de uma criança abandonada ao nascer, Frédéric, que se recusa a aprender a ler e a escrever. Nos desenhos que executa para a analista, pinta uma multidão de figuras que se parecem com a letra A. Françoise Dolto se espanta e se pergunta: será a inicial do nome de alguém da família? De uma maternante? A pesquisa parece não dar em nada até que a mãe de Frédéric revela que o nome da criança antes da adoção era Armand. F. Dolto explica então a Frédéric que é a dor da separação precoce que se encontra garatujada nos A de seus desenhos. Mais uma vez, não obtém nenhum efeito. É então que ela tem a intuição de chamar a criança pelo nome como se estivesse falando com as paredes, com uma voz impessoal, “sem olhar para ele, ou seja, sem me dirigir à pessoa presente por meio de seu corpo diante de mim, mas com uma voz alta, de tom e intensidade diferentes, minha cabeça virando para todos os pontos cardinais, para o teto, para debaixo da mesa, como se eu chamasse alguém localizado no espaço, que eu não soubesse onde está: ‘Armand...! Armand...! Armand...!’”. 7 De um jeito que lembrava uma das vozes de maternantes desconhecidas que ele devia ter escutado nos corredores do abrigo provisório antes de ser adotado. De repente a criança volta a orelha para cada canto da sala, sem olhar para Dolto assim como ela não olha para ele, até que os olhares deles se cruzam e ela lhe diz: “‘Armand, era seu nome quando você foi adotado’. Nesse momento, percebi em seu olhar uma excepcional intensidade. Denominado, o sujeito Armand pudera re-amarrar sua imagem do corpo à de Frédéric. [...] Foi esse reencontro na transferência comigo, sua psicanalista, de uma identidade arcaica, perdida desde os onze meses, que lhe permitiu superar, na quinzena que se seguiu, suas dificuldades para ler e escrever”. Olhar e voz: é nos primeiros contatos com o recém-nascido que algo se dispõe a se desamarrar. Alguns dias para escutar
O primeiro trabalho na maternidade é perceber o que acontece ali. Não é ainda um trabalho de psicanalista, mas um trabalho preliminar: tentar compreender as constantes dentro do leque de situações. Ora, o que acontece? Na medida em que «as coisas não vão bem» e que uma mulher convoca o analista para escutá-la, ele constatará que ela chora, que ela pensa, que ela chama, que ela demanda, que ela se enfurece, em suma, que ela fala. Nenhum temor do “psi” se opõe a esse afluxo; é a confirmação da resposta das parturientes ao questionário de que falamos há pouco. Quando as puericultoras e as parteiras sentam por um momento com as parturientes para falar um pouco, elas sempre saem perdendo: às vezes não conseguem mais sair do quarto de tanto que as mães são tagarelas. Por sorte, elas recebem uma recompensa, porque a humanização de sua relação com as mães torna a comunicação mais fácil e o trabalho mais eficaz; mesmo assim, elas gostam que um analista tome o lugar delas quando a necessidade se faz sentir. Esse reservatório de palavras cujas torneiras se abrem é, na verdade, mais uma questão de qualidade do que de quantidade. As histórias
evocadas por essas mulheres, a intimidade e a carga de dor que elas transmitem, provam que nesse momento algo de inconsciente aflora e se revela ou insiste com força. Isso coloca um problema prático e cruel: falta tempo para escutá-las. Uma maternidade como a de Béclère, embora flexível, mantém internada uma parturiente por quatro dias no máximo, sete em caso de cesariana. Ora, é no terceiro ou quarto dia que mãe e filho começam realmente a efetuar trocas. Muitas vezes é no quarto dia que começa um baby blues. Geralmente é nesse momento que conflitos aparecem, por ocasião de uma visita dos pais ou porque o leite não desce com facilidade... Nessas condições, às vezes é impossível trabalhar de maneira eficiente, mesmo admitindo-se um prolongamento da internação “por motivos médicos”, mesmo que a mãe ou o bebê possam ser atendidos na cidade depois da alta. Antigamente, as mulheres ficavam duas semanas na maternidade “para descansar”, agora elas têm menos de quatro dias para se reerguer. É verdade que há o perigo do déficit da Seguridade Social, mas será essa a mais inteligente das reformas que o progresso médico produziu? Em termos mais gerais, gostaria de sensibilizar os responsáveis para a idéia de um acompanhamento do pós-parto nas maternidades. Existe uma demanda importante das mulheres nesse sentido. Ofereço como prova o sucesso de um atendimento do pós-parto que acabamos de inaugurar em Béclère faz alguns meses. Esse atendimento, reembolsado pela Seguridade Social, destina-se a pais e bebês em dificuldade nos meses que se seguem ao nascimento. Ele visa justamente a paliar o efeito das altas precoces demais e a tratar as dificuldades vividas pelas famílias depois do nascimento, que não foram tratadas antes por falta de tempo. O importante é que esse atendimento seja aberto na maternidade, a fim de evitar que os pacientes tenham de formular uma demanda em serviços especializados de pediatria ou de psiquiatria infantil. É imprescindível que se tome consciência de que o parto é um princípio e não um fim, e que se deve garantir um acompanhamento posterior. Léa, a menininha a quem faltava um nome
Para além do olhar e da voz, à margem do momento intenso que são os dias posteriores ao parto para uma mãe, o mais importante é a palavra que se possa dirigir a um recém-nascido. Vim trabalhar em Béclère para responder à pergunta: as intervenções junto de um recém-nascido têm algum efeito? Ou, para tomá-lo sob um ângulo estratégico: como criar condições para que elas o tenham? Como encontrar a brecha para falar com o bebê? Antes mesmo de dizer o por quê e o como, é preciso verificar se é possível. Gostaria de citar um exemplo atípico, pelo fato de que ele não se apresenta sob a aparência abrupta de um sintoma maciço, da mãe ou da criança. Esse caso, no entanto, provocava um mal-estar evidente: não só para o casal de pais, mas também para a equipe encarregada. Quanto à criança, embora nada dissesse, sabia-se que ela não poderia consentir com o que estava sendo decidido. Era uma mulher que acabara de dar à luz por cesárea em circunstâncias um tanto perturbadas. Ela fizera o acompanhamento da gravidez, uma gravidez gemelar espontânea, numa outra maternidade. Descobriu-se durante a gravidez uma malformação muito grave em uma das gêmeas. O prognóstico limitava-se à esperança de uma pequena sobrevida após o nascimento. De qualquer
maneira, a hospitalização era indispensável. Os médicos haviam prescrito aos pais tomarem a decisão de interromper in utero a vida da criança ou deixar as coisas como estavam. O casal, transtornado, não sabia o que pensar. Conversaram com amigos que já tinham enfrentado um dilema parecido. Estes lhes contaram o inferno que foi para eles o fato de ver o filho sobreviver algumas semanas nas piores agonias. Horrorizado, o casal se resignara a pedir um feticídio seletivo para a gêmea malformada, e isso quinze dias antes do final da gravidez. O ato foi portanto praticado tardiamente. Quanto ao parto, expressaram o desejo de que ele não se desse no mesmo local. Ele ocorreu, agora em Béclère, quinze dias mais tarde. A mãe pediu uma cesárea e conseguiu. Ela temia, com um parto natural, ficar face a face com a criança morta. A cesárea foi portanto praticada. É preciso dizer que, em caso de feticídio tardio, o feto morto permanece no útero até o nascimento. Para evitar qualquer toxicidade para o segundo feto, não se aplica peridural. A escolha possível, portanto, é entre parto por via baixa sem anestesia e cesárea sob anestesia geral. A mãe não tinha nenhuma vontade de acrescentar à dor moral a do parto. Além disso, o feto morto seria o primeiro a se apresentar, e como eu já disse ela tinha medo de vê-lo. O pedido de cesárea era, pois, justificado. No entanto, o mal-estar permanecia entre a equipe responsável. Eles não julgavam essa mãe, pois aprenderam a tolerância no contato com dramas que tantas vezes viram se desenrolar no nascimento. Mas, sem poderem criticar o casal, eles sentiam a necessidade de transmitir o que sentiam crescer neles, e que eu formularia assim: “O que acontece com essa senhora que exige uma cesariana e que não quer saber nada de seu filho morto? O que acontece com esse casal que decide um feticídio imediatamente antes do termo previsto? Não podiam deixar chegar até o fim?”. Logo chamei a atenção deles para o que me parecia o mais importante como medida preventiva: era preciso que eles pudessem dizer para a gêmea viva que sua irmã estava morta e que ela não a reencontraria mais. Eles estavam reticentes, não consideravam que entre suas funções estava a de ter de falar com o bebê. Eu não tinha como intervir, pois na qualidade de psicanalista só posso comparecer a pedido, e nem os pais nem o bebê não me pediam nada. Então, que fazer? O bebê, a partir do que sei sobre os efeitos de choques pré-natais, podia estar em perigo; os pais, embora não se queixassem abertamente, viviam em plena negação e desamparo; a equipe responsável pela unidade canguru não conseguia trabalhar com serenidade com eles. Se alguma intervenção era possível, era junto do bebê, pois só ele não podia mascarar o problema: tinha atrás de si vários meses de companheirismo com sua irmã gêmea, e esta de repente ficara inerte, e depois desaparecera por completo de seu contato. No entanto, eu estava proibida de interferir sem um chamado da família. Outro problema, aparentemente de menor importância, surgiu. Os pais não conseguiam se resolver por um nome, mas era necessário fazer o registro da criança. A situação ganhava outro rumo, pois os pais manifestavam dessa maneira que não conseguiam sair do impasse em que eles mesmo se tinham colocado. Eu podia, portanto, ver nisso um apelo da parte deles. Propus então que a parteira mencionasse a minha existência e propusesse minha ajuda nesse assunto do nome. Eles aceitaram. Eu achava que eles não conseguiam nomear a criança por não terem podido nomear a irmã. Essa morte era uma morta “a viver”, se é que posso dizer, e era preciso que eles nomeassem os dois bebês.
Não tive de lhes dizer isso. Entre o momento em que eles solicitaram minha vinda e aquele em que cheguei, apenas uma hora passou. Esse tempo foi suficiente, e o problema foi resolvido: eles tinham dado à filha morta o nome de Sophie, e à sua irmã viva o nome de Léa. Léa, embora tivesse nascido um pouco antes do tempo, tinha o aspecto de uma grande prematura. Foi a ela que me dirigi em primeiro lugar: “Sua irmã Sophie, que estava ao seu lado no ventre da sua mãe e cujos movimentos você sentia, morreu. Foi por isso que antes de você nascer você sentiu que ela não se mexia mais. É também por isso que você não a vê mais agora, e que você não a verá nunca mais. É claro que você pode guardar a lembrança viva dela no seu íntimo, mas ela nunca mais estará ao seu lado”. A mãe levou um susto ao meu ouvir falar dessa maneira com o bebê. Antes da IMG (interrupção médica de gravidez), ela perguntara aos médicos se a criança perceberia o que iria acontecer, mas a resposta evasiva deles a deixara perplexa. Garanti a ela que ela certamente percebera sensações relativas a esse acontecimento, e que por isso mesmo era preciso colocar palavras sobre suas percepções. Quando voltei a vê-los três dias depois, a situação estava tensa. Léa tinha emagrecido muito. Fora preciso amamentá-la à força com o leite da mãe, mas ela regurgitava sem parar e todos estavam inquietos. No entretempo, eu ficara sabendo pela pediatra que ela apresentava uma sindactilia , dois dedos de seu pé estavam colados um ao outro... Malformação visível e incômoda, mas facilmente tratada por meio de uma intervenção cirúrgica praticada posteriormente. No momento da segunda entrevista, Léa não estava no quarto, estava sendo alimentada na unidade canguru. Propus aos pais irmos ao encontro dela, e eu lhe disse: “Léa, tenho a impressão de que você tinha vontade de nascer mas que você ainda não decidiu totalmente viver, por isso você hesita em comer. Para viver, é preciso comer. Você tem uma malformação no pé, mas isso de forma alguma tem a mesma gravidade que a malformação de sua irmã. Você não vai morrer disso; simplesmente será operada mais tarde, e então terá um pé normal”. Em seguida dei alguns conselhos quanto à forma de cuidar da criança. Sugeri às puericultoras que fizessem Léa experimentar o leite da mãe na xícara. Fazer um recém-nascido beber na xícara é um “truque” que se utiliza com os prematuros que não conseguem ainda sugar o seio. No caso de Léa, o intuito era que ela pudesse experimentar o leite da mãe na sua presença. Propus à mãe deitá-la sobre sua barriga contra a sua pele para que ela pudesse escutar as batidas de seu coração, reencontrar seu calor e seu cheiro. Como nos ensinam os haptoterapeutas, fiz a mãe deitar a criança sobre o lado esquerdo com a mão sob o sacro, de modo a lhe dar um sentimento de segurança que lhe permitisse beber em confiança. Léa estava profundamente deprimida, não conseguia se pensar viva devido à morte de sua irmã gêmea. Era preciso que ela voltasse a encontrar suas referências pré-natais – o cheiro e o gosto da mãe nesse caso – para que ela pudesse estabelecer uma continuidade apaziguadora entre o antes e o depois do nascimento. Isso era ainda mais indispensável porque a cesariana sob anestesia geral a tinha privado dos primeiros instantes com a mãe, e porque ela não pudera ser assistida pela mãe na sua descoberta do desconhecido. Apenas reencontrando essas sensações que a separação em relação à mãe a fizera perder brutalmente é que ela poderia se pensar viva. A esse preço, Léa podia fazer do luto da irmã uma «coisa da vida», e não se identificar a ela num impulso mortífero.
No dia seguinte, Léa decidiu “salvar a pele”: começou a mamar sozinha e em grande quantidade, o que era impressionante, considerando-se a sua prematuridade. Duas semanas depois, ela saía da maternidade, o que foi motivo de espanto, dado seu peso inicial. Era evidente que ela recuperara o controle da situação. Esse auto-salvamento aliviou toda a equipe, que, até então, estivera muito inquieta; também sobre os pais produziram-se efeitos. Estes continuavam, sem dúvida, vivendo uma forma de negação: “Infelizmente, tudo o que está acontecendo é normal, é porque ela é prematura!”. Mas eles tinham encontrado novas energias para cuidar de Léa. Eu tinha de respeitar essas defesas, que os protegiam de uma culpa grande demais. Se eu tivesse questionado essa recusa em ver a gravidade da situação, poderia ter comprometido todo o novo equilíbrio desses pais e de sua filha. De fato, não é banal esperar dois filhos e só ter um. Agora que Léa os fizera reencontrar uma nova segurança, ela tinha o futuro pela frente... Essa confrontação com Léa foi decisiva para a equipe e para mim. Era pegar ou largar. Eu não tinha trabalhado como de costume, eu não tinha evocado com eles a história dos pais como costumo fazer. Tinha me centrado apenas nas palavras ditas à criança a propósito do que lhe era dado viver, e no seu entendimento. Pois se o silêncio de Léa fazia tanto barulho, era preciso conseguir tomá-lo ao pé da letra. Era uma questão de vida ou morte. Mas impor o levantamento do véu sem ser convidado a fazê-lo era correr o risco de não ser compreendida. No caso dessa menininha, como não conseguiam chamá-la, chamaram a mim. O recém-nascido não é um objeto de estudo
Assim foi o começo de minha prática em Béclère. Eu vira com meus próprios olhos, se posso dizer, os efeitos da palavra sobre os recém-nascidos. E outras pessoas tinham testemunhado comigo. Os médicos que tratam da infância sempre ficam espantados ao ver uma psicanalista aplicar seus conhecimentos ao mundo dito pré-verbal. No entanto, é preciso que eu o diga claramente, é ao mundo da pesquisa e ao da medicina clínica, mais que ao da psiquiatria tradicional, que devo o fato de ter podido dar seqüência a esses estudos. Por isso quis criar uma associação, A Causa dos Bebês, em que esses mundos possam trocar seus pontos de vista com os da psicanálise. Nessa associação, pediatras, parteiras, puericultoras, psicólogos, psiquiatras, assistentes sociais, mas também neurobiólogos, psicofisiólogos, obstetras, historiadores e epistemólogos, expõem suas práticas e o produto de suas pesquisas. Todos têm em comum em seu trabalho o interesse pela sensorialidade e sensibilidade do bebê, antes e depois do nascimento. Todos questionam a reificação da criança vista como uma espécie de objeto virtual não identificado, objeto de todas as encenações experimentais e de todos os voyeurismos favorecidos por certas pesquisas. Todos, em suma, tratam a criança na sua dignidade de sujeito. A psicanálise muitas vezes deu a impressão de se manter afastada da ciência, e de mostrar com essa distância seu desprezo pelo corpo humano. Há trinta anos, nos primórdios da cibernética, acusava-se os psicanalistas de pretender conhecer o funcionamento psíquico sem aceitar escutar a caixa preta do cérebro, onde se encontrava a chave, como faziam os cientistas. Hoje criticam-na por
negar a origem orgânica, ou mesmo genética, de tal ou qual doença mental, e a acusam de não querer ver as descobertas da bioquímica. Há nisso certo mal-entendido. A psicanálise não volta as costas para a ciência. Ela simplesmente não acha que seja conseqüente considerar o ser humano um objeto, nem mesmo um objeto de estudo. Ela não pode compreender que o sujeito humano seja reduzido ao sujeito abolido da ciência que Lacan condenou ao comentar Galileu, ou seja, a um sujeito destituído de qualquer desejo. Questão de perspectiva. Aliás, pelo menos depois de Einstein, que se imaginava um encanador “se tivesse de fazer tudo de novo”, os cientistas sabem que eles mesmos não estão destituídos de desejo. No entanto, os psicanalistas demonstrariam má vontade se se queixassem. Pois, pelo menos no que concerne à perinatalidade, o mundo científico é um dos apoios mais seguros para as suas postulações teóricas. Quer se trate da sensorialidade do feto e do recém-nascido, da aquisição da linguagem, da memória, do vínculo entre o corpo e o pensamento, as esperanças do pensamento científico moderno juntam-se às da psicanálise. Além disso, os cientistas lhe permitem questionar de uma maneira nova as hipóteses que ela considerava suficientemente definidas. É esse esforço de compreensão que a ciência exige de nós, e para isso ela nos dá sua contribuição, que agora evocaremos. esignação dada ao profissional que serve eletivamente de substituto materno para crianças em instituição. (N.T.) 1D 2 A importante bibliografia de F. Dolto comprova sua contribuição à psicanálise. Todos sabem que ela era generosa em suas palavras; o problema para o leitor consistia em situar-se numa obra marcada pela profusão de anotações clínicas. Um dos trabalhos mais completos que permite compreender a inovação e a coerência teórica dessa obra é, a nosso ver, o de Gérard Guillerault, Le corps psychique , Ed. Universitaires, 1989.
3 Cf. sobretudo Charpak et al ., “Rey-Martinez Kangaroo Mother Program: an alternative way of caring for low birth weight infants?”, in Pediatrics, v. 14, nº 6, dez. 1994, p. 804-10. 4 Em francês se diz regarder ( re-garder ) para “olhar”. (N.T.) er D. Stern, Le monde interpersonnel du nourrisson , PUF, 1984, em particular p. 69-90. 5V . Vasse, L’ombilic et la voix, Seuil, 1974, p. 18. [Edição brasileira: O umbigo e a voz, Loyola, 1977.] 6D 7 F. Dolto, L’image inconsciente du corps , Seuil, col. “Points”, p. 47-8. [Edição brasileira: A imagem inconsciente do corpo , Perspectiva, 1992.]
Nasce-se pelo menos duas vezes
Não há liberdade sem lei [...]. Um povo livre obedece, mas não serve; ele tem chefes e não senhores; ele obedece às leis, mas só às leis, e é pela força das leis que ele não obedece aos homens.
Jean-Jacques Rousseau
A criança agente e desejante
1905: Sigmund Freud publica em Viena seus Três ensaios sobre a teoria da sexualidade, 1 em que traz à luz a sexualidade da criança. Ele a faz surgir de uma maneir a tal que a torna inaceitável para muitos, pois atribui à criança de pouca idade o papel ativo de um ser já independente, mesmo não sendo autônomo. “A criança é um perverso polimorfo”, escreve ele. A expressão fez sucesso. Por um lado, a criança concentra sua sexualidade nas diferentes zonas erógenas tentando manter o estado de excitação dessas zonas num nível suportável – a boca, o ânus, o pênis: é a famosa teoria das fases. Por outro, suas “respostas” sexuais a essas excitações fazem pensar em comportamentos que seriam chamados de perversos num adulto: a criança pré-púbere pode ser alternadamente voyeur, exibicionista, até mesmo fetichista, cruel ou, ao contrário, masoquista etc. Freud descreve o onanismo do lactente de modo incrivelmente preciso para alguém que reconstruiu suas teorias a partir dos depoimentos e lembranças de adultos que ele analisou. A isso associa certo número de distúrbios da primeira idade – distúrbios da sucção e da regurgitação, distúrbios intestinais etc. – nos quais vê um meio masturbatório que a criança tem para acalmar a excitação das zonas erógenas correspondentes, respectivamente, à boca e ao trato digestivo. Em todas essas situações, a criança é vista como uma pessoa «agente» de sua sexualidade, e não apenas como o joguete passivo de desordens corporais ou de influências do meio familiar. Aliás, ao falar do onanismo Freud não deixa de descrevê-lo como “a realização da fantasia, esse reino intermediário que se inseriu entre a vida segundo o princípio de prazer e a vida segundo o princípio de realidade”. 2 Para ele, o que tem primazia é a fantasia subjacente, é a elaboração feita pela criança de suas sensações, e as teorias sexuais que ela esboça. Pouco importam os erros existentes nessas teorias – diz ele –, são elas que permitem à criança dar sentido a excitações corporais ou a percepções de que não dá conta. Mais exatamente, é seu modo – diz Freud – de responder à pergunta: de onde vêm os bebês? Entenda-se que isso se refere a crianças com pelo menos três anos, e portanto não deveria
concernir ao nosso tema. Mas para além desse problema de idade, do conteúdo dessas duas teses e das controvérsias que elas suscitaram, depreende-se o princípio intangível que desde o começo ele afirma, qual seja, que a criança reflete, elabora, age sua vida, e em primeiro lugar sua sexualidade. Ela é ativa e desejante nesse assunto, e não reconhecê-lo é pior do que tomar o caminho errado: é não ir a lugar nenhum. Nesse sentido, todos os psicanalistas são anões postados sobre os ombros de um gigante. As formidáveis descobertas daqueles que depois de Freud se ocuparam das primeiras idades – Anna Freud, Melanie Klein, Donald Winnicott, Françoise Dolto, para citar apenas os mais conhecidos – não teriam sido possíveis se não tivessem seguido essa exigência primeira de Freud. O passo que nos cabe dar agora é reconhecer que o recém-nascido já nasceu antes de nascer, mais precisamente, que sua vida começou cerca de nove meses antes, que ele o sabe à sua maneira, e que isso é portador de sentido para ele desde o primeiro dia. A sensorialidade do recém-nascido Rafael, ou como dar sentido à sua vida
Eis a seguir um exemplo, dentre os mil que chegam aos meus ouvidos na maternidade, de que o recém-nascido dá sentido à sua vida com os meios de que dispõe, e de que a primeira exigência para um psicanalista é a de reconhecê-lo. Rafael, com apenas três dias de vida, sofre de diarréias dolorosas. Trata-se de algo freqüente entre os lactentes, cujo sistema digestivo ainda não está maduro nos primeiros tempos da vida. Mas essa diarréia resiste aos tratamentos. Ela o deixa num estado de dor, de choros e de gritos insuportáveis até mesmo para os funcionários do hospital, que já viram outras, e sua curva de peso desce perigosamente. “Não tenho nada para dizer, tudo está bem com exceção dessa diarréia!”, comenta a mãe, que, no entanto, pediu para me ver. Por um certo tempo ela tivera episódios anoréxicos, e a gravidez provocara nela algum desespero. Regimes draconianos, náuseas, fantasias de provocar aborto, qualquer coisa servia para manter aos seus próprios olhos um certo ideal de ventre achatado. Chegou a maldizer em certos momentos essa criança que a deixava “enorme”, apesar do desejo e do desvelo que tinha por esse futuro bebê. Minha discussão com ela trouxe à tona seus próprios problemas de identificação como mulher e possível mãe, mas o que importava sobretudo era fazer da criança testemunha. Basicamente, eu disse a Rafael que, embora sua mãe tivesse pensado de alguma maneira em evacuá-lo, ela tinha renunciado a esse desejo; que ela inclusive parecia particularmente feliz de ter podido superá-lo para acolhê-lo. E que, portanto, para ser plenamente aceito por ela, ele, Rafael, não precisava corresponder a esse desejo “evacuando-se” a si mesmo por seus próprios meios, como se apenas fosse um dejeto da mãe e não um bebê. Essa mensagem não basta por si só para explicar o fato de que seu sintoma tivesse desaparecido naquele mesmo dia, pois a entrevista trouxe outros elementos. Mas ela foi o contato que permitiu ir mais longe: sem esse reconhecimento prévio do sentido que ele dava à sua presença e à sua existência precárias, o diálogo talvez não tivesse se estabelecido.
A base da prática com os recém-nascidos é esta: o bebê tenta dar sentido ao que vive, sejam quais forem as condições de seu nascimento, num momento em que tudo é novo para ele nesse meio aéreo em que ainda lhe custa deslanchar. Como dar a esse sentido a oportunidade de ser entendido quando ninguém vem reconhecê-lo? Como fazer para que ele encontre fiador quando este vem a faltar? Como dar asilo a essas tentativas de comunicação do recém-nascido, quando o meio imediato não pode fornecê-lo pelas mais diversas razões? A resposta não é simples, ela é inclusive sempre provisória, dada a evolução extremamente rápida dos conhecimentos científicos sobre o feto e o lactente nos últimos 20 anos. A pesquisa levou a novas descobertas fundamentais que, por si mesmas, favoreceram o surgimento de novas técnicas, que, por sua vez, favoreceram a emergência de novas hipóteses teóricas. No que tange ao feto, isso é particularmente claro: ali onde havia tão-somente conjeturas nos anos 70, a evolução da embriologia e da genética propiciou o desenvolvimento de novas abordagens pré-natais, a ecografia modificou completamente os procedimentos diagnósticos e o acompanhamento das gestações, as pesquisas em psicofisiologia do feto e do recém-nascido favoreceram novas medidas preventivas, as técnicas de assistência médica à reprodução revolucionaram o destino de muitos casais estéreis... Na maternidade Antoine-Béclère somos ao mesmo tempo testemunhas e atores privilegiados desses avanços. O paradoxo é que esses progressos complicam as coisas no pós-parto. Quanto mais se sabe no plano médico sobre os fetos, os recém-nascidos e as parturientes, mais seus cuidados no hospital são medicalizados, maior é o risco de que não sobre lugar para suas palavras. Não quero com isso cair no exagero de dizer que o meio hospitalar infantiliza os pacientes. Não é verdade. Ao contrário, a reflexão a esse respeito tem avançado muito na França e posso garantir que em Béclère vários médicos, parteiras, enfermeiras e puericultoras desempenham suas tarefas fazendo apelo à dignidade das parturientes e dos bebês. O problema é mais difícil de abordar por que é institucional. Prematuros com falta de mãe
Tomemos o exemplo dos partos prematuros. Os prematuros nascidos depois de 26 semanas de gestação são muitas vezes viáveis do ponto de vista médico, mas evidentemente necessitam de cuidados permanentes que não podem ser ministrados no serviço que cuida dos pós-partos “normais”. Portanto, eles são separados de suas mães e colocados no setor de reanimação do serviço de neonatologia, que se encontra em outra ala do hospital. O peso deles pode ser pequeno (às vezes de até 400 gramas), a maturação de seu sistema pulmonar e neurológico ainda é insatisfatória, precisam de uma assistência constante num serviço onde tudo é feito para que eles prossigam sua maturação fora do ventre materno. E as mães? As mães esperam, sozinhas nos seus quartos da maternidade. Às vezes elas nem mesmo sabem exatamente quem elas esperam, porque deram à luz sob anestesia geral e a criança foi transferida para a neonatologia sem que elas a vissem. Nesse caso, elas passam e repassam diante dos olhos a Polaróide desgastada do filho. Dubitativas ou inquietas, elas tentam relacionar essa imagem de um ser virtual, invadido por estranhos tubos, com o fruto esperado de sua carne. É claro que poderão visitar o filho, mas para isso terão de esperar que o estado dele seja considerado aceitável. Por enquanto, elas esperam o pior ou o melhor, conforme
suas disposições. Quando se recebe mães de grandes prematuros para uma entrevista, é impressionante ver o quanto sua preocupação materna primária – empregando a expressão do psicanalista D. Winnicott 3 –, o quanto o desvelo que têm pelo filho é forte, mas cai no vazio. Elas imaginam, freqüêntemente com razão, os cuidados particulares que a situação de seu filho exigiria da parte delas. Mas, por não poderem efetivamente propiciá-los nesses instantes de separação, elas desistem e ficam deprimidas. “Sou uma mãe ruim, incapaz de ajudá-lo no momento em que ele mais precisa de mim. A senhora, que é psicanalista, sabe como os primeiros instantes são decisivos...”, dizia uma com uma voz embargada por soluços de impotência. “Nem mesmo fui capaz de levá-lo a termo... é tudo culpa minha”, indignava-se outra. “De que adianta ir vê-lo e falar com ele? Disseram-me que ele está com tubos na boca e no nariz, como é que ele vai conseguir me reconhecer desse jeito?”, queixava-se uma terceira. “Só vou atrapalhar”, dizia outra mulher que tentava se desculpar por seu amor materno, “aliás, me disseram que eu mesma estou muito fraca. As enfermeiras da reanimação farão isso melhor do que eu”. A essas mulheres e a outras, destituídas de sua preocupação materna primária por força da técnica médica, eu respondia, no princípio da minha prática, a partir do que eu sabia da situação dos prematuros. Fazia “medicina da educação”, como dizia F. Dolto. Explicava que essas crianças prematuras, mais ainda que as outras, precisavam da presença da mãe e do pai. Que mais ainda que as outras seriam sensíveis a essa presença e a reconheceriam. Contava a elas como fora provado que o recém-nascido reconhecia a presença e a voz da mãe entre outras cem, 4 por que ele tinha uma memória do timbre e da freqüência baixa da voz paterna, o quanto discernia o odor corporal da mãe, o sabor de seu leite... Explicava-lhes de que maneira as palavras que elas davam ao seu bebê faziam nexo para eles, como era importante que elas pudessem nomeá-lo, falar-lhe de seus irmãos e irmãs, contar-lhe o contexto particular de seu nascimento e da gravidez, em suma todos aqueles significantes necessários para que a criança se construa. É claro que em condições normais elas teriam dito tudo isso ao filho. A criança teria sido embalada pelas palavras da mãe, nos seus diálogos cotidianos ou durante as visitas da família. Aqui, infelizmente, isso não era possível. Por mais que os pais o desejassem, a separação imposta pela necessidade médica ameaçava criar um vazio de palavras, um buraco de linguagem em torno da criança. Propunha-lhes, então, exceto em caso de contra-indicação médica, ir visitá-lo com a maior freqüência possível para suprir essa falta; falar com ele, cantar para ele se lhes desse vontade, acariciá-lo, já que não podiam ministrar-lhe cuidados. Ensinava-lhes a perceber quando o bebê abria os olhos e buscava a comunicação, quando, ao contrário, ele manifestava que estava cansado e que podia-se ficar ao lado dele sem incomodá-lo... Em suma, tentava dar-lhes o máximo de elementos para poder apreciar e respeitar as possibilidades de concentração de seu filho, que apesar de tudo são pequenas ainda que sejam intensas. A criança imaginária
Essa assistência de palavra ao recém-nascido prematuro não agrada a todos. Alguns psicanalistas trabalham em neonatologia pensando ser mais urgente ajudar as mães a fazer o luto de sua “criança imaginária”, sem o qual a separação em relação ao filho real ser-lhes-ia insuportável. Insistem em nos explicar a necessidade de renunciarmos assim à nossa pretensão de suprir a qualquer preço o irreparável dano causado pela prematuridade. Não é certo que o debate tenha de se situar nesse nível. Para o psicanalista, a prioridade deveria ser o recém-nascido: é para ele que a separação é portadora dos mais graves danos. A função de serviços como o da unidade canguru vai no sentido de evitar essa situação de fato. Os atendentes procuram deslocar-se para junto dos recémnascidos, enquanto que, num serviço de neonatologia clássico, é o contrário que acontece. Procuram favorecer a proteção do vínculo mãe-filho, e para isso privilegiam tudo o que possa amenizar para a criança o estado de privação sensorial patogênico no qual uma separação prolongada a mergulharia. Quanto a essa idéia de que a mãe deva fazer o luto de uma criança imaginária, qual o sentido disso? Não se poderia dizer, ao contrário, que a criança imaginária nunca morre? É dela que um pai ainda poderá dizer, quando estiver desolado com o fato de que sua progênie agora adulta esteja menos próxima de suas esperanças do que ele sonhara: “Sabe, mesmo quando você tiver 60 anos, continuará sendo o meu bebê!”. É essa criança ideal, essa criança que deve de antemão responder às mais caras esperanças que nela se depositam, que servirá de guia educativo para os pais. Serão eles afáveis ou tirânicos? Será de seu próprio ideal do ego no sentido freudiano que dependerá sua maior ou menor abertura para as surpresas que seu filho real não deixará de lhe trazer. Portanto, sejam quais forem os avatares de seu rigor pedagógico, a aceitação do filho real não pressupõe a morte da criança imaginária. Quanto a ela, ela «se fará um nome» graças a – ou a despeito de – esse rótulo que lhe tiverem aposto. Aplicando secamente o discurso psicanalítico a um problema que é de todos, poder-se-ia dizer: tudo se ordenará em função de como a criança distribuirá, nas identificações constituídas por seu ego ideal e nas fantasias que regem seu ideal do ego, o que é da ordem da Lei simbólica e da dívida de transmissão e o que é da ordem do princípio moral abusivo e fantasístico. 5 Retomando os conselhos que eu dava às mães de grandes prematuros, apenas raramente eu era testemunha do efeito que eles podiam ter sobre os bebês, pois só excepcionalmente tinha acesso a eles. Na melhor das hipóteses, escutava o que as mães me relatavam quando porventura as revia. O que em contrapartida eu via o tempo todo era o rosto radiante delas no fim de nossas conversas, seu alívio por encontrar uma justificação viva para sua solicitude materna. Acabei dizendo para mim mesma que esse tipo de intervenção não era apenas pedagógico e que eu não devia me limitar a responder a demandas particulares. Se o problema desses pais era: como ser mãe (ou pai) de prematuros? como fazer uma maternagem e uma paternagem identificadas?, então era um trabalho de prevenção sistemática que cabia empreender, sem deixar de observar os princípios da psicanálise. Não só para narcisar mulheres que não se sentiam perdendo importância na vinda de seu filho. Não só para estimulá-las a exercer sua preocupação materna primária quando elas não sabiam mais a qual bebê se dedicar. Mas também e sobretudo para a própria criança, para não privá-la dos elementos primordiais que garantem seu crescimento, e isso longe de qualquer consideração médica.
Agora, com o consentimento das equipes, vou sistematicamente ver em seu quarto as mães cujo filho está na reanimação. Faço, por assim dizer, informação preventiva, tanto mais necessária, acredito eu, no serviço de neonatologia de Béclère, pois ali os casos desse tipo não são raros. Um lactente sensível
Só é possível combater o efeito iatrogênico da separação dos recém-nascidos de suas mães graças à segurança que nos dá o trabalho dos cientistas sobre o pré e o pós-natal. 6 Desse ponto de vista, seus resultados são mais que estimulantes. Para eles, quer se seja prematuro ou não, “a cama já está feita” no nascimento. A base da sensorialidade fetal já está pronta para acolher o mundo novo. O re-conhecimento da voz
Os recém-nascidos reconhecem a voz da mãe como sendo a mesma que eles escutaram, filtrada pela parede abdominal e portanto deformada, durante a gravidez. Também reconhecem a voz do pai ou do homem presente ao lado da mãe, desde que esse homem tenha falado perto do ventre da mãe, ou que ele tenha se dirigido de forma diferente a um e à outra durante a gravidez. Desde T. B. Brazelton, pioneiro no campo da pesquisa sobre a hipersensibilidade dos recém-nascidos, há um consenso a esse respeito. M.-C. Busnel, para fornecer um critério pertinente de verificação, comprovou a desaceleração dos ritmos cardíacos das crianças enquanto a mãe fala e – resultados ainda mais comprobatórios – quando a mãe lhes fala. Outros fiaram-se no aumento dos reflexos de sucção não provocados pela fome nas mesmas circunstâncias. Outros, ainda, referem-se à freqüência de suas respostas motoras à fala da mãe (virar a cabeça na direção da emissão da voz, abrir os olhos, mexer os braços). Todos chegam à mesma conclusão: a criança de poucos dias reage aos estímulos de linguagem mais que a outros tipos de estímulos, apesar de supostamente não entender nenhuma palavra. Quando ainda era feto, ela aprendeu a distinguir a voz da mãe do ruído de fundo uterino, de outras fontes de barulhos externas e mesmo das vozes de outras pessoas. Recém-nascida, ela reconhece essa voz entre as de outras mulheres, prefere-a e reconhece-a como proveniente daquela mesma mulher que ela escutava in utero. Além disso, depois do nascimento, a criança reconhece a língua falada por sua mãe e não reage a uma língua que nunca escutou durante a gravidez. Que é que isso quer dizer? Demonstrou-se, para sermos precisos, que o feto discrimina as sílabas da língua materna. É como se o recém-nascido tivesse à sua disposição um estoque de fenômenos dessa língua escutada durante a gravidez, e, ao nascer, estivesse como que «pré-moldado» por essa língua. Essa pré-moldagem prepondera por cerca de seis meses, período durante o qual ele mantém essa preferência por sua língua materna. O termo “materna” para designar essa língua deve ser tomado ao pé da letra. Isso evidentemente não impede a manutenção da faculdade de aprender um grande número de línguas, mas a preferência se mantém. Isso quer dizer que ele fala a nossa linguagem? De forma alguma, e nenhum psicanalista nem qualquer pesquisador aventurar-se-ão a afirmar tal coisa. Ele fala, diremos nós num ímpeto, remetendo esse debate para um capítulo posterior deste livro, ele fala pelo menos como um surdo!
Duas pesquisadoras oriundas de outro campo, duas psicolingüistas, 7 demonstraram que os bebês surdos profundos de nascença, filhos de pais também surdos e que, portanto, utilizam a língua dos sinais, começam a tagarelar com as mãos antes de dominar a língua dos sinais. Elas compararam as atividades manuais de dois bebês surdos e de três outros que não eram surdos, com idades entre 10 e 14 meses. Tomaram o cuidado de diferençar seus gestos ordinários (por exemplo, esticar os braços para ser pego no colo) de sua “tagarelice manual”, ou seja, de gestos sem motivação aparente. Resultado: essa tagarelice manual representa mais da metade da atividade das crianças surdas contra apenas 10% da das outras, e, percorrendo as mesmas etapas, conduz ao aparecimento dos primeiros sinais-palavras. Os recém-nascidos, surdos ou não, não são, pois, mudos, no sentido de que desde que entram no nosso convívio têm um repertório mínimo, e no sentido de que estão aptos para gerar, construir uma linguagem. Para dizê-lo de outra maneira, eles falam antes de saber falar, tentam tagarelar antes de ter um repertório semântico e lexical ad hoc. Não digamos que eles compreendem o que fazem, nem o que lhes dizemos: essa é uma árdua tarefa! Mas contentemo-nos por enquanto em constatar que eles têm com que entender e emitir mensagens, e que estas talvez tenham um sentido. Cabe a nós descobri-lo! O paninho que tem o cheiro gostoso da mamãe
Embora a base sensorial já exista antes do nascimento, embora os fetos e os recém-nascidos já tenham uma vivência sensorial importante, nem por isso os dados estão lançados, pois o recémnascido precisa dos pais para fazer a ligação entre suas sensações de antes e de depois do nascimento. A menor ruptura dessa ligação demonstra a contrario a dificuldade de se construir sem ela. A Sra. Perrier me é indicada certo dia porque ela não consegue parar de chorar há vários dias, e quer falar disso comigo. É uma mãe primípara, e seu choro não diminui sua alegria de ter esse primeiro filho. Ela não se queixa de nada no que a ela concerne. Acontece que sua filha, Maria, tem uma leve icterícia que exige um tratamento fototerápico. O tratamento consiste em expor a criança a fortes lâmpadas durante sessões de quatro horas, tantas vezes quanto for necessário para que o “amarelo” desapareça. Ela é colocada, nua e com os olhos vendados, sobre uma espécie de rede, e ali é deixada sob o calor dessas lâmpadas. Nada de violento em si, exceto o ambiente luminoso sem dúvida um pouco desnorteante para uma menininha que acaba de passar nove meses numa relativa escuridão. A aparelhagem é um pouco impressionante, a nudez e a vendagem dos olhos causam certa insegurança. Às vezes os bebês manifestam o desconforto de sua posição, embora o tratamento seja indolor e relativamente banal. Ora, Maria acha esse tratamento insuportável. Seus gritos e choros têm por efeito provocar pânico na mãe, que, desarmada, encontra como única solução chorar junto com ela. O conjunto é suficientemente perturbador para que as atendentes tenham proposto à mãe encontrar-se comigo. Essa criança esta separada daquela que ela primeiro conheceu. Também aí, basta eu me lembrar dos protocolos experimentais para compreender que lhe falta algo que faça a ponte com todas as novas sensações provenientes de pessoas desconhecidas e de situações inéditas. Não, a Sra. Perrier não está exageradamente “sensível” ao mal-estar de sua filha quando chora sem cessar. Não, Maria não é estatisticamente anormal ao reagir mal ao tratamento da icterícia. Sim, ela
tem necessidade de reencontrar sensações que conhece para enfrentar situações que não conhece. Foi para Maria e sua mãe que tive de inventar um procedimento de separação, de tal modo que ela possa usar sua sensibilidade natural como referência, em vez de, sem dizer uma palavra, deixar que ela se torne uma fonte de angústia. Propus que ela avisasse a filha da chegada do tratamento, que lhe explicasse a razão dele e seu desenrolar, que lhe dissesse o nome da atendente a quem ela seria entregue, permitindo que a menina identificasse sua voz, que lhe dissesse que a reencontraria em quatro horas. Agora costumo aconselhar esse procedimento para todas as mães temporariamente separadas de seu recém-nascido com quem eu cruze. De que serve saber que os ritmos cardíacos e respiratórios dos recém-nascidos se modificam apenas por escutar a voz materna no meio de várias outras mulheres, de que serve saber que eles procuram essa voz abrindo os olhos e virando a cabeça, se não fizermos uso disso em situações profiláticas simples como essas? A Sra. Perrier foi ver Maria e, como eu lhe sugerira, colocou um lenço com seu cheiro perto do rosto da filha. Conhecemos a importância do olfato no recém-nascido desde, pelo menos, os anos 50. O fundador da etologia moderna, Konrad Lorenz, o teorizou entre os animais, o psicanalista René Spitz o evocou a propósito dos casos de hospitalismo, F. Dolto já o praticava durante a guerra, Schaal o provou experimentalmente no fim dos anos 80: os recém-nascidos têm um olfato particularmente desenvolvido, cuja acuidade perderão mais tarde. Além disso, têm uma memória olfativa importante, e a presença junto deles de um lenço impregnado do cheiro de sua mãe é um potente meio de tranqüilização no caso em que ela esteja ausente. Maria pôde portanto sentir esse lenço junto dela, até mesmo se enrolar nele. Essa menininha, que quatro dias antes ainda batia contra as paredes do ventre da mãe, encontrava-se agora no vazio sob essas lâmpadas, sem contato com nada, sem referência. Ora, ela não está numa idade em que se tenha uma percepção clara dos limites do próprio corpo. Esse simples lenço pôde certamente lhe servir de borda, como as bordas de um berço servem para o lactente se “escorar”. Em todo caso, a Sra. Perrier veio me ver uma hora depois, radiante, para me dizer que a sessão do dia transcorrera de forma magnífica e que Maria dormia tranqüila na sua rede. Por que o olfato tem tanta importância para o lactente? Sem dúvida devido a um substrato cortical particularmente desenvolvido nesse momento da vida dele. A importância do rinencéfalo, que regredirá mais tarde, faz temporariamente do lactente um superdotado do olfato. Aliás, do ponto de vista neurofisiológico, trata-se de um pequeno enigma. Expressêmo-lo assim: qualquer um pode ter tido sonhos contendo imagens mais ou menos fantásticas, músicas enlevantes, contatos físicos mais ou menos agradáveis ou degustações de iguarias estranhas. Mas não se conhece ninguém que acorde e evoque a lembrança de uma cheiro particular em seu sonho, sua delicadeza ou sua aspereza, sua força, sua suavidade... Na verdade, parece que, diferentemente das outras sensações, o olfato não é tratado e memorizado por meio do tálamo, essa estrutura considerada o principal suporte de uma certa memória afetiva. Como fazem, então, os bebês que, como se sabe, ao mergulharem no seio da mãe buscam tanto satisfazer a fome quanto aspirar o odor materno, aquele de seu corpo e de seu leite? Terão eles memorizado esses cheiros que “provavam” ao engolir o líquido amniótico durante sua vida intrauterina? O cheiro da mãe, e os sabores do que ela come, realmente passam para o seu sangue e para o
líquido amniótico. Será que os recém-nascidos se comportam como narizes, esses profissionais que elaboram perfumes e conseguem estocar na memória duas ou três centenas de perfumes diferentes, de uma maneira ainda incompreensível para a ciência? Poder-se-ia até, como o romancista Patrick Süskind, ver nessa hipersensibilidade a marca de uma vida e de seu gênio? Recordemos o fabuloso Jean-Baptiste Grenouille de seu romance O perfume,8 nascido numa peixaria cujo fedor mal cobria o cheiro de cadáver do cemitério des Innocents! Todos conhecem o destino desse personagem perdidamente apaixonado pelo cheiro das mulheres e pela essência dos seres que esse nascimento particular lhe prometeu por meio da fantasia do escritor. Para os neurofisiólogos, a solução desse enigma ainda não foi encontrada. Para um psicanalista, cabe considerar o olfato do recém-nascido como um dos primeiros vínculos com a mãe, junto com o da sucção/deglutição ao qual ele está associado. É ali, na intimidade corporal entre ela e ele, que ele começa a se construir. Ao seio-fonte de prazer está ligado seu próprio corpo: do cheiro dessa mãe depende sua própria idéia de seu corpo, de sua boca que chupa e que emite sons, de seu nariz que cheira, de seus lábios que mamam, de seus ouvidos que escutam a voz familiar... Se a mãe desaparece sem explicação, a própria segurança de seu corpo próprio é posta em xeque. Por isso é indispensável que palavras venham paliar essa ausência, seja qual for a razão dela. No caso de Maria foi fácil, e o efeito, rápido porque foi a própria mãe que pôde explicar à filha a razão de sua ausência temporária. Há casos em que isso não é possível, nas circunstâncias que envolvem um parto em segredo, ou quando a mãe sofreu um acidente ou morreu. Não era nisso que F. Dolto pensava ao evocar uma “ferida na relação do sujeito com seu corpo próprio, porque a imagem do corpo está amputada de uma zona erógena que partiu com a mãe, e que era o olfato, a deglutição do bebê? Essa imagem do corpo pode lhe ser devolvida se lhe trouxerem de volta, digamos, material ou sutilmente, o cheiro da mãe que ficou em suas roupas. O que recupera vida então é seu corpo. É sua imagem de base, de corpo próprio; é a imagem de funcionamento, a possibilidade de sucção; antes, sem o cheiro da mãe, ele não sabia mais, por exemplo, nem sugar nem engolir”. 9 Compreende-se, portanto, a necessidade de garantir para a criança uma “continuidade olfativa”. Em caso de separação
A Sra. Perrier ficou tão satisfeita com o meu conselho e com os efeitos de sua intervenção junto a Maria, que ela queria muito seriamente que eu retornasse antes de cada sessão do tratamento. Evidentemente declinei o pedido, pois isso teria feito ela acreditar num efeito “mágico” de tais intervenções, e o objetivo era ela perceber que ela podia ter a mesma eficácia. Isso porque uma paciente deve esperar menos da pessoa do psicanalista que do funcionamento do enquadro psicanalítico. Pode esperar que as leis, os procedimentos aplicados, as regras de funcionamento, libertem da obediência aos homens (nesse caso, à pessoa do psicanalista) para poder obedecer apenas às leis, como dizia Rousseau. A isso se deve a importância de tal procedimento. Esse procedimento poderia parecer um detalhe ou um ritual para alguns. Não é essa de qualquer forma a opinião das pessoas da equipe médica, que recolhem diretamente seus efeitos benéficos, e os relatam. Segundo o psicanalista Lucien Kokh, cuja reflexão teórica foi de grande ajuda para a elaboração dos pontos cruciais de minha prática, um procedimento desse tipo é “a condição sine qua
non para tornar a palavra presente”. Sem ela, fica difícil restabelecer essas pontes interrompidas na comunicação entre o lactente e sua mãe. O enquadro psicanalítico existe para permitir que a mãe se lembre, caso queiram que ela esqueça, que falar é o meio de comunicação humano por excelência: por que privar-se disso sob o pretexto de que seu filho ainda não estaria maduro? Porque a acusariam de entregar-se a um monólogo insensato? No caso das visitas sistemáticas que faço às mães de crianças prematuras, só nos resta orgulharmo-nos do efeito vivificante que esse procedimento pode ter. É raro que depois dessas visitas elas continuem deprimidas; caso isso aconteça, outras causas mais profundas estão em jogo. Geralmente, elas recuperam uma euforia que é até preciso refrear quando elas querem intempestivamente adentrar pela neonatologia para ver seu bebê, sendo que seu estado exige, apesar de tudo, precauções (particularmente no caso de mulheres que passaram por cesariana). É esse desejo de vida reabilitado nelas que sustentará o do bebê prematuro nas dificuldades que tem de enfrentar. O tratamento da icterícia evoluiu um pouco desde a aventura da Sra. Perrier. Foram criados dispositivos móveis de insolação colocados nos quartos das mães; a mãe está presente e os problemas se atenuam. Mas o procedimento permanece válido para outros cuidados que exigem a separação da criança em relação à mãe. Esses procedimentos são de fato exceções ao protocolo geral de tratamento da demanda de que falaremos mais adiante. Aqui, intervenho sistematicamente; ali, intervenho a pedido. Em ambos os casos, o objetivo é manter a possibilidade dessa relação sensorial intrapsíquica que existia entre mãe e filho antes do nascimento. E impedir que por razões de funcionamento normal de um serviço hospitalar crie-se um obstáculo para que palavras da mãe possam completar essa sensorialidade do recém-nascido. Quando se fala de procedimento, de protocolo ou de metodologia no terreno científico, logo se evoca a avaliação de que eles são objeto. O procedimento é passível de reprodução? Os critérios considerados são pertinentes? Existe uma correlação suficiente entre o objeto que se estuda e os procedimentos considerados, entre esses procedimentos e os resultados obtidos? Essas indagações destinam-se a evitar falsas conclusões, ou hipóteses de trabalho mal formuladas. A recusa a se submeter a elas poderia produzir interpretações funestas ou irônicas que compõem o grosso do repertório das piadas estudantis. Um psicanalista precisa proceder a avaliações dos procedimentos que ele emprega para evitar tais erros? É muito tentador pensar que sim num meio hospitalar em que a precisão das metodologias é a garantia da melhora do estado dos doentes. E, com toda delicadeza, não deixaram de nos fazer essa observação. Respondamos de imediato para eliminar qualquer ambigüidade. Ao intervir junto dos bebês na maternidade, o psicanalista não é um homem de ciência: é um praticante da palavra. Permanece fiel ao fato de que a psicanálise é, como se dizia no tempo de Freud, uma talking cure . Ou, para retomar as palavras de Lucien Kokh, extraídas de um comentário pessoal: “aquele que ocupa uma posição de praticante da palavra, aquele que exerce sua concepção de uma tese na prática da palavra não pode ser a mesma pessoa que efetua uma avaliação. No contexto do inconsciente, não se pode estar ao mesmo tempo dentro [isto é, à escuta do que é não dito no que nos é dito] e fora [isto é, tentar avaliar se esse não-dito tem motivos para ser dito ou se inexiste]”. É lógico: não se estuda
um objeto sobre o qual é preciso dizer algo, escuta-se um sujeito falando. Não é o mesmo ofício. Dessa forma, não se deve esquecer o que a psicanálise deve à criação artística. Pensemos na frase de Malraux pronunciada por ocasião de sua entrada no Panteão: “Não é a paixão que destrói a obra de arte, é a vontade de provar”. Por que o psicanalista não poderia tentar exercer o ofício de cientista que não é o seu, e quantificar os resultados que descreve? Porque perderia assim a possibilidade de escutar esse nãodito que supera o sujeito a todo momento e a oportunidade de suscitar as palavras que faltam. Em suma, é pela mesma razão que lhe alegam: porque a melhora do estado de seus pacientes depende disso. Se nos afastássemos desse princípio básico, incorreríamos no erro de querer, tal como Penélope, desfazer com uma mão o que se faz com a outra. Não seria possível escutar os sofrimentos de que lhe falam sem ao mesmo tempo perguntar-se se eles são válidos ou se seria melhor não escutá-los. O psicanalista não está à escuta de verdades factuais, mas de palavras verdadeiras. Isso não elimina o interesse pelas pesquisas científicas mais recentes sobre os fetos e os lactentes, muito pelo contrário. Elas são apaixonantes e permitem fortalecer ou modificar a abordagem psicanalítica. As descobertas recentes da neurologia sobre a memória e o tratamento das informações pelo cérebro humano nos darão um exemplo disso. O que nos aproxima dos pesquisadores em neurologia é a curiosidade. O que nos separa é a idéia de que o respeito pelo conhecimento predomina sobre o respeito pela pessoa. Remetemos o leitor para as declarações, definitivas a esse respeito, de André Green, escritas em resposta a um artigo do professor JeanPierre Changeux.10 A repetição
“Sabe, sinto-me muito bem de viver assim!”, me diz a Sra. Cohen caindo no choro. Estas são suas primeiras palavras depois de ter me cumprimentado. Ela aceitou me ver porque um de seus filhos está constipado, e nenhum tratamento consegue vencer essa constipação. Aparentemente ela não se sente tão bem assim, e ela logo me fala de sua vida nos últimos meses. Faz uma semana ela deu à luz gêmeos. Quando soube que sua gravidez era gemelar, reagiu violentamente: “Um filho dá para agüentar; dois...”. Ela mesma é gêmea e sofreu muito com a preferência dada à sua irmã, que seus pais sempre elogiavam, ao passo que ela era sempre denegrida. A história parecia se repetir, e isso ela não suportava. Pedira, pois, um aborto. Depois de refletir, mudara de idéia, voltara à primeira posição, hesitara novamente. Finalmente – terá sido por causa de uma ecografia? – ela decidira ficar com as duas crianças. E, por excesso de rigor, também decidira que, já que fizera essa escolha, tinha de ficar feliz. Daí o conteúdo de sua declaração contraditória: choro mas estou muito bem. Palavras em eco
Ocorreu-me que a criança constipada em questão nada mais fazia senão repetir essa denegação
da mãe colocando em jogo o próprio corpo, que é nesse momento seu meio privilegiado de expressão. Com efeito, ela se encontrava muito serena, apesar do desconforto que devia lhe causar sua constipação refratária a qualquer tratamento; aí, também, tudo estava bem. De repente, também tomada de um espírito de decisão que nada abalava, ela se recusava a beber e a dar suas fezes. Disse-lhe então: “Sua mamãe diz que ela se sente muito bem vivendo assim e ao mesmo tempo ela sofre. Você também parece nos dizer a mesma coisa: você está calmo, está bem, mas recusa qualquer troca com sua mãe. Você não lhe pede nada quando tem fome, não lhe dá nada quando está saciado”. Com essas palavras a mãe percebe de imediato que, para alimentar esse filho, ela nunca espera que ele lhe peça para beber. Quando o irmão reclama, ela o alimenta, e aproveita para acordá-lo e lhe dar de mamar sem dizer uma só palavra e sem que ele tenha pedido nada. Essa situação é freqüente com gêmeos – é muito cansativo para uma mãe levantar duas vezes a mais à noite – mas nem por isso ela desencadeia um sintoma, como ocorre nesse caso. Que faz essa criança? Ele se apaga, como sua mãe teve de se apagar outrora. Não só toma para si a denegação da mãe, como reatualiza o desejo de aborto que ela manifestara no começo da gravidez. Só é possível o desejo por um filho único, portanto, ele cede seu lugar. Ele sobrevive, mas não pede ou dá nada; ele existe, mas tão pouco, ele não engorda. É algo desta ordem que acontece com ele, acho eu: “Sua mãe teve medo no começo da gravidez de ter dois filhos e não um. Durante certo tempo ela pensou em não ficar com os dois. Mas isso não durou, ela mudou de idéia. Foi por isso que você nasceu, você não precisa se apagar... Talvez você queira fazer como sua mãe com a irmã dela? Mas você não é a irmã da sua mãe, você é o filho dela”. Segue-se a verbalização de outros elementos de sua história familiar, que me absterei de relatar. O principal é que elas permitem desenhar para ele os contornos de seu espaço familiar, distinguindo-o assim das fantasias parentais ligadas à gemelaridade. A criança evacuou uma hora depois. Sem qualquer consideração pelos fabricantes de suco de ameixa utilizado para colocar em andamento a motricidade intestinal dos recém-nascidos, e cuja administração não dera resultado nesse caso! Resultados tão evidentes impressionam. Mesmo depois de ter visto muitos desse tipo, eles sempre nos deixam boquiabertos. Ainda assim, restam questões inquietantes. A primeira concerne à ligação entre a vida psíquica antes e depois do nascimento. Sabemos tratar-se do mesmo ser «antes» e «depois», mas a questão é saber se ele mesmo traz marcas desse saber. Ou seja, se acontecimentos pré-natais que lhe dizem respeito fazem parte de sua bagagem pós-natal. Depois de ter dito que o filho da Sra. Cohen reatualizava, por seu sintoma, o desejo da mãe de que ele se apagasse, é preciso esclarecer o mecanismo dessa repetição. Uma coação inelutável
A repetição, essa “mesma invariável queixa [que] noite e dia se escuta o vento repetir no mesmo tom”,11 é um problema que assombra a história da psicanálise, e os consultórios daqueles que a praticam. Ela explica o estranho fato de que as pessoas em análise teriam tendência para voltar aos
mesmos impasses, aos mesmos comportamentos ou aos mesmos discursos que motivaram seu pedido de análise e que as incomodam. Aquele homem, que não conseguia explicar para si mesmo o mal-estar altivo e distante que sentia, a contragosto, em relação ao filho, contará que considerava um dever receber todo sábado de modo protocolar cada um de seus filhos no seu escritório. Sem perceber, repetia uma cena memorável de sua infância em que seu próprio pai o desconsiderara diante de seus irmãos e irmãs, no seu escritório. Esquecia apenas um ingrediente, que a análise da repetição o ajudou a reencontrar: era a palavra “desprezo” que seu pai empregara naquele dia referindo-se a ele, e a quarentena que se seguira, proibindo-lhe por um certo tempo de participar das brincadeiras com seus irmãos e irmãs. Daquele desprezo e daquela quarentena que ele sofrera, subsistia, como um eco abafado, a postura altiva e distante que ele manifestava para como seu próprio filho. Uma mulher passa seu tempo esquecendo as chaves do apartamento, até que uma pergunta de seu analista a faça lembrar-se de súbito que nasceu no hospital Trousseau há muito tempo e que lhe contaram que ficou “extraviada” nos serviços durante alguns minutos! Os exemplos mais engraçados e mais trágicos ilustram esse fenômeno de repetição. É como se essas pessoas tropeçassem em algo. Elas não sabem de onde provém essa compulsão repetitiva e, em vez de se lembrar do que possa tê-la motivado, atuam um roteiro que lembra por elas. Freud via nessa insistência um automatismo, uma coação ( Wiederholungszwang ). Seu caráter coercitivo é ainda mais marcado pelo fato de que esse retorno da lembrança na repetição pode ser imposto pela lógica e pelo automatismo da própria língua. Por isso, a associação chaves perdidas – Trousseau [trouxa] – extraviada12 indica um caminho pré-imposto... que revela a chave do enigma. Pense-se nas situações cotidianas em que quanto mais se procura esquecer uma idéia, mais as palavras empregadas a impõem.13 É isso o automatismo de repetição. Mas a repetição é também resultante de um encontro infeliz. O encontro com um real insuportável, com um dado inassimilável como tal pelo sujeito. O encontro desconcertante com um pai no seu escritório, por exemplo. De forma mais geral, porquanto Freud ligava a repetição à pulsão de morte, o encontro com um fantasma que se insinua furtivamente no horizonte das lembranças esquecidas. Introduzimos a repetição com as palavras de Sôren Kierkegaard, o filósofo que fez dela um conceito atribuindo-lhe a figura alegórica do vento. Deixemos o escritor Claude Simon explorar a mesma metáfora para nos fazer perceber o horizonte que ela descortina: “Logo [o vento] sopraria como tempestade sobre a planície (...), força desenfreada, sem objetivo, condenada a se enfraquecer infinitamente, sem esperança de fim, gemendo à noite numa longa lamúria, como se ela se lamentasse, invejasse os homens adormecidos, as criaturas passageiras e perecíveis pela sua possibilidade de esquecer, de paz: o privilégio de morrer”. 14 O “relógio orgânico”
Essa tese de um inassimilável retomado através do sintoma é muito útil na prática. Ela permite compreender uma idéia sugerida a F. Dolto por sua clínica e pela leitura de Ferenczi, e que, ao que tudo indica, encontra poucos ecos na literatura científica. É a idéia da repetição cronológica, ou seja, a idéia de que o sintoma de um recém-nascido num tempo Tn de sua vida pós-natal possa
corresponder a um acontecimento traumatizante do tempo correspondente Tn de sua vida pré-natal. Como se a criança se lembrasse de um acontecimento ocorrido por exemplo no segundo mês de gravidez e, como um relógio, manifestasse um sintoma que evoca essa lembrança no segundo mês de sua vida pós-natal. É claro que esse acontecimento desencadeante tem de lhe dizer respeito, quer ela o tenha percebido diretamente por intermédio de sua mãe ou que ele tenha sido indiretamente gerado por seu pai. Idéia aceitável? A razão diz que não: nenhuma verificação experimental a confirma. No entanto, a prática diz que sim, e o número de coincidências desse tipo, embora possam parecer ilusórias para alguns, nem por isso são menos patentes. F. Dolto dava alguns exemplos extremamente precisos de “crianças-relógios orgânicos” desse tipo. Enquanto os cientistas não se interessarem por essa tese para eventualmente corrigi-la, é insensato descartar um indício desse tipo se dele temos conhecimento: na maioria das vezes isso implicará perder a oportunidade de livrar o recém-nascido de uma repetição que o ameaça. Da mesma maneira, pode-se dizer que as ausências de palavras que marcam um recém-nascido podem reaparecer como um «chapéu claque» (expressão de F. Dolto) na adolescência . A escuta psicanalítica dos recém-nascidos é também um método de prevenção dos distúrbios da adolescência. Do feto ao lactente, uma continuidade
Alguns psicanalistas, como Bernard This, pedem que se pare de chamar de “feto” o que para eles são simplesmente bebês humanos antes de nascer. This vê nisso um risco de desrespeito pelo ser humano que eles são, risco este reforçado pelo álibi de um discurso tecnicista. É um lembrete importante, pois sugere de modo inequívoco a continuidade de substância e de existência do sujeito humano desde sua concepção. Vimos que isso era verdade no nível da sensorialidade. Procuraremos mostrar que isso também é pertinente no que tange ao vínculo estabelecido pela criança com sua mãe. No entanto, continuaremos falando aqui de feto, pois, não nos esqueçamos, o nascimento não é uma simples mudança de hábitat ecológico. Sem recorrer à clínica psicanalítica, pode-se discutir as repetições pré/pós-natais com base nas observações de fetos e de lactentes. Ao contrário do que se pensa, o bebê in utero e sua mãe não fazem um só corpo. Trofoblasto e placenta, uma parede os separa. Trata-se apenas de uma tênue diferença, da espessura de uma folha de papel de cigarro? Com efeito, não menos espessa que o limite que separa o erro da verdade! A pretensa fusão
Já temos elementos suficientes para rever algumas idéias preconcebidas. Não existe fusão entre mãe e filho, nem física durante a gravidez nem psíquica depois do nascimento. Nada do que é dito nesse sentido baseia-se em alguma realidade. No final da gravidez, aliás, o feto e a mãe não vivem mais no mesmo ritmo. 15 Se no começo da gravidez são os hormônios ovarianos que mantêm o feto, a partir do terceiro mês a placenta está suficientemente madura para cumprir essa função. Como a placenta faz parte da unidade corporal da criança, ela implica um primeiro esboço de autonomização
da criança em relação à mãe. O feto passa a secretar por conta própria os hormônios necessários ao seu crescimento. Tanto isso é verdade que é possível para uma mulher sem ovários levar adiante uma gravidez, desde que lhe tenham dado durante os três primeiros meses um tratamento hormonal substitutivo; depois disso, a placenta agora funcional assume a direção das operações. O bebê-feto já tem sua parcela de autonomia. Um estudo sobre esse assunto, que infelizmente ainda não foi traduzido para o francês, foi feito pela psicanalista de origem italiana Alessandra Piontelli. Esse trabalho denso, apaixonante, ainda inacabado, gira todo ele em torno das relações de continuidade entre a vida intra-uterina e a primeira infância. Terapeuta de crianças e professora na famosa Tavistock Clinic de Londres, professora convidada do departamento de psiquiatria infantil da universidade de Turim, trabalha como psicanalista em Milão. Além desse trabalho, ela deu início a um programa de observação e de pesquisa sobre o antes e o depois do nascimento. Na tentativa de encontrar meios novos e eficazes de levar adiante esse estudo, escolheu acompanhar as mesmas crianças utilizando a técnica da ecografia durante a gravidez e o método de observação mãe-filho de Esther Bick durante os cinco anos posteriores ao nascimento. 16 Seus trabalhos estão repletos de anotações e de revelações extraordinariamente desconcertantes para nossos espíritos cartesianos. Limitar-nos-emos a chamar a atenção para dois temas desenvolvidos por ela que vão ao encontro de nossa indagação sobre a repetição pré/pós-natal: o fenômeno tão mal explicado da amnésia infantil e o estudo dos gêmeos. Ela explica seu interesse por gêmeos, a quem dedica particular atenção em seu estudo, por uma curta terapia que realizou muito tempo antes de suas pesquisas, e que a marcou profundamente. Tratava-se de um menino de 18 meses, inteligente e sensível, trazido pelos pais porque dormia muito pouco e não parava quieto durante o dia: ele os deixava loucos. No consultório, A.Piontelli logo percebeu que ele começou a remexer em todos os cantos da sala, visivelmente à procura de algo que não encontrava. Os pais confirmaram que ele passava o tempo todo em casa em semelhantes investigações, de dia... e de noite! Acrescentaram que, a cada novo movimento que a criança conquistara – sentar, engatinhar etc. –, ela parecia tê-lo feito com um intenso pavor, como se, diziam eles, tivesse medo de “deixar algo para trás”. A. Piontelli notou um outro comportamento repetitivo por parte da criança, que consistia em sacudir diversos objetos que se encontravam na sala, como se sacode alguém para acordá-lo. Ela decidiu falar diretamente com o menino para lhe dizer o que ela sentia: que ele parecia tentar desesperadamente encontrar um objeto perdido. A criança – diz ela – interrompeu bruscamente sua movimentação e a olhou fixo por muito tempo. Ela aproveitou sua inabitual atenção para dizer-lhe que tinha a impressão de que ele sacudia os objetos como se temesse que estivessem mortos. Ao escutar essas palavras, os pais começaram a chorar, explicando que essa criança de 18 meses, Jacob, na verdade era gêmea de um pequeno Tino, morto in utero quinze dias antes do termo. Portanto, Jacob procurava sempre Tino, sem deixar qualquer canto inexplorado! Será que ele tinha sacudido Tino na barriga da mãe da mesma maneira como empunhava os objetos do consultório? Não o sabemos. Mas A. Piontelli explica que uma mudança muito intensa operou-se em Jacob a partir daquele momento, e que ela só precisou de algumas sessões para falar com ele daquela intensa culpa pela morte do irmão que acompanhava cada um de seus atos. Quanto aos pais, tiveram por fim a oportunidade de fazer o luto de Tino. Eles tinham feito questão de lhe dar um nome, sinal de que
apesar de sua morte precoce eles lhe atribuíam uma existência singular a seus olhos. Mas até aquele instante não suspeitavam da intensidade da dor e da culpa que haviam sentido com sua morte. Como no caso da Sra. Lemercier citado no começo deste livro, a criança-anterior-à-linguagem apontava para a falta de palavras que traspassava os pais e a condenava a uma busca sem esperança e sem descanso. Estranha redundância esta, entre o cruel acontecimento que afeta uma gravidez e a fuga para adiante à qual se condena a criancinha. A. Piontelli guardou disso uma pungente lembrança e passou a se dedicar em suas pesquisas a notar cuidadosamente os movimentos dos fetos, gêmeos ou não. De suas observações, que decerto se referem a um número limitado de casos, surgem constatações muito claras. Em primeiro lugar: a motilidade das crianças já existe antes do nascimento. Movimentos dos braços, da cabeça, cruzamento das pernas, sucção do polegar, e até observações de certa atividade sexual aparecem entre a nona e a vigésima semana de gravidez, e são do mesmo tipo dos que serão praticados depois do nascimento. A iniciativa e a escolha desses movimentos em resposta a estímulos também já estão presentes na oitava semana, e serão idênticas depois do nascimento. Nada muda depois do nascimento, exceto a qualidade e a precisão desses movimentos, provavelmente pela influência de uma gravidade maior. Em segundo lugar: os movimentos in utero de um gêmeo em relação ao seu alter ego são visíveis e podem fazer pensar em comportamentos organizados. As atitudes gerais constatadas numa sessão de ecografia são reencontradas depois do nascimento: tendência de um a proteger o outro, atitude de imitação de um dos dois em relação ao seu compadre etc. Se é costume dizer que a vida começa com a descoberta do outro, os gêmeos (trigêmeos...) seriam então seres privilegiados. Na verdade, nada indica que eles sejam mais precoces ao nascer do que recém-nascidos “normais”. Mas, embora não possa prová-lo com toda a certeza, A. Piontelli acha que em ambos os casos pode-se falar de sensibilidade e de respostas emocionais, e que estas podem depender em certos casos dos estados psíquicos da mãe. Em terceiro lugar: as crianças, particularmente os gêmeos, reencontram em suas brincadeiras e, depois, quando já falam, nas suas trocas verbais pedaços inteiros de sua vida pré-natal. Entre dois e quatro anos isso se torna quase uma obsessão, como se sua identidade presente dependesse desses pedaços de vida pré-natal. Para ela, não se trata de simples reprodução desse passado, como o seria uma fita de vídeo, nem de uma repetição compulsiva. Trata-se de uma reconstrução desse passado, de um esforço para lhe associar emoções e lhe dar um sentido. Em suma, de uma elaboração, de um progresso simbólico. Para além de sua contribuição ao estudo da repetição, destacaremos nesses estudos a idéia de continuidade pré/pós-natal. O que parece primordial na prática psicanalítica com bebês é preservar vínculos. Vínculos com a mãe, é claro, com o pai genitor ou aquele “que faz função de pai”, vínculos com a sociedade (por exemplo, nos casos de parto em segredo), mas também vínculos com o antes do nascimento. A criança nasce num vínculo sensorial com o outro que preexiste ao seu nascimento: F. Dolto o ensinou, a ciência experimental incita a pensá-lo, e a observação de A. Piontelli ou de outras pessoas de que falaremos mais adiante tendem a prová-lo. É nesse sentido que, verdadeiramente, o bebê é uma pessoa . Existe uma pré-história, até mesmo uma proto-história da criança, como afirmei num livro meu já publicado.17 O filhote de homem nasce de um projeto cujo destino é contrariado em maior ou menor medida, ele vive simbolicamente de um banho de linguagem no qual ele se constrói. Tudo isso é verdade. Resumamos as coisas dizendo que a criança já está construída no vínculo, e que
é da preservação desse vínculo ao nascer que depende sua “eclosão”. A contribuição da haptonomia
Quando queremos manifestar a outrem o vínculo que temos com ele, nem que seja por pura convenção, nós o tocamos: apertamos sua mão, beijamos seu rosto, ou seus lábios, se formos russos... É a pele que faz contato. O tocar e a sensibilidade cenestésica são justamente uma das primeiras qualidades sensoriais que aparecem na embriogênese. Bem antes de haver um sistema auditivo funcional – para isso é preciso esperar o terceiro trimestre da gravidez –, a criança consegue reconhecer e discriminar as vibrações acústicas repercutidas pelo líquido amniótico. Os haptoterapeutas dizem às vezes que ela “escuta com a pele”. Essa “pele inteligente”, como diz Catherine Dolto-Tolitch, permite por exemplo que o feto se aproxime do lado de onde vem uma voz conhecida e apreciada como a de seu pai; que responda aos convites “internos” (sem contato manual) da mãe; que reaja ao toque, venha ele da mãe, do pai ou do haptoterapeuta, quer se acrescente ao toque um chamado verbal ou não. O balé uterino... espantoso ao qual o feto convida constitui, mais que um “envoltório sonoro do eu”, 18 uma primeira abertura do corpo para a linguagem. Falar de “pele inteligente” não é um simples modo de dizer; supõe uma visão mais ampla do ser humano. A haptonomia, 19 tal como se desenvolveu depois da guerra a partir dos trabalhos do holandês Frans Veldman, aborda de maneira original os problemas da sensorialidade fetal, da memorização precoce e da relação genitor-filho antes do nascimento. O acompanhamento praticado pelos haptoterapeutas durante a gravidez leva a descobrir que todo acontecimento físico, afetivo, psíquico ou emocional vivido pela mãe tem uma repercussão imediata sobre o ambiente da criança. A criança reage ao que lhe concerne “autenticamente”. A mãe encontrará nisso a possibilidade de uma relação extremamente sutil com o filho. O pai, se a mãe a isso o convidar, também poderá entrar em contato e estabelecer com o filho um vínculo “afetivo”, tátil e vocal ao mesmo tempo. Com os gestos e acalentos que oferecer à mãe, é também a criança que ele englobará indiretamente numa relação em que ela será convidada a se manifestar como sujeito desejante. Nessa relação a três (ou mais, em caso de gravidez múltipla) estabelecida com a ajuda do haptoterapeuta, a criança mostra muito claramente seu prazer ou desprazer, sua vontade de contato ou sua necessidade de descanso e de tranqüilidade. Os haptoterapeutas dizem que a criança, graças à “confirmação afetiva” que recebe, desenvolve um sentimento de segurança básica que perdurará muito tempo depois do nascimento. Em troca, com suas respostas, ela “confirma seus pais afetivamente”: sinal de uma dinâmica muito particular na tríade parental, e entre os gêmeos quando é o caso. A criança não só se interessa pelo mundo exterior, reage às vozes familiares e se desloca para se aproximar delas desde a vida intra-uterina, como se manifesta em função do contexto afetivo. Sem que haja explicação por enquanto, ela parece inclusive memorizar movimentos de balanceio que propõe em circunstâncias precisas. Também nesse caso, não há nenhuma fusão entre mãe e filho: o reconhecimento de seu lugar de autêntico ator modifica a vivência da gravidez e do parto para a própria criança e para seus pais.
A haptonomia, que concebe a criança como alguém em busca de sentido e de comunicação desde a vida intra-uterina, tem um objetivo preventivo. Por exemplo, é fato comprovado que as crianças “contatadas” durante a gravidez pela abordagem haptonômica são muitas vezes mais presentes que a média depois do nascimento. Algo da ordem de um despertar foi antecipado para elas por essa forma de diálogo pré-natal a três. No caso de gestações patológicas, de doença ou de morte da criança, a haptonomia propicia aos pais um acompanhamento totalmente diferente da dor da criança, pelo simples fato de que ela é retirada de seu lugar de vítima potencial passiva. Da mesma forma, a criança presente por meio de suas manifestações em eco modifica as eventuais rejeições, ambivalências, interditos e dramas que alteram a relação entre os pais e ela. No nascimento, a manutenção do contato “auditivo-tátil” é primordial. Ele nem sempre é possível por motivos técnicos, mas continua sendo necessário. Se o recém-nascido tinha em meio aquático a liberdade de se deslocar em direção a um som que ele percebia, a tarefa é bem mais árdua ao ar livre. Existem sem dúvida observações que mostraram que um bebê, nas quatro primeiras horas subseqüentes ao nascimento, procura a voz do pai, e consegue virar a cabeça na direção dele, se ele falar. É verdade que um estudo feito pelo mesmo laboratório mostra que um recém-nascido colocado sobre o ventre da mãe ao nascer chora significativamente menos que um bebê levado diretamente para seu berço, sejam quais forem os cuidados atenciosos que lhe forem dedicados. Apesar disso tudo, ele está muito desprotegido. Aliás, nos dois exemplos citados, a criança só se encontra por intermédio da percepção que tem de pessoas conhecidas, seus pais no caso. Em outras palavras, quando nos perguntávamos há pouco se a criança “antes” e “depois” era o mesmo ser e se sabia que o era, é preciso responder que “sim”, desde que o continuum sensorial com a mãe e seu companheiro se mantenha. Essa é a condição de um conforto necessário para que o nascimento não seja uma violência para a criança que nasce. As parteiras de Béclère sabem muito bem disso. Elas têm o cuidado, uma vez constatado que depois da expulsão tudo corre bem, de se afastar o mais rápido possível, se, é claro, as circunstâncias e os pais o permitirem. É claro que elas estão prontas para intervir a qualquer momento, mas ficam à distância. Sabem o quanto esses momentos que se seguem ao nascimento pertencem a seus três (ou dois) protagonistas, e que seu dever enquanto profissionais de assistência médica é de não interferir de modo intrusivo. Às vezes também assisto a nascimentos. Lembro-me, numa das primeiras vezes em que tive de fazê-lo, de ter ficado impressionada com o desamparo do bebê separado de sua mãe para os primeiros cuidados. Para amenizá-lo, propus ao pai falar com seu bebê segurando sua mão para fazer borda, para lhe dar o limite tranqüilizador de seu calor. O fato de então ter visto aquele bebê manifestar e procurar o pai “pela voz”, ao mesmo tempo em que ficava totalmente insensível à minha e à da parteira, me intrigou. Depois disso vi esse fenômeno repetir-se inúmeras vezes. Peço que não se espantem muito com minha sensibilidade à violência do pós-parto: os profissionais mais indiferentes têm a mesma em seu histórico. Os primeiros cuidados podem ser muito agressivos para a criança. Quer se trate de desobstruir as cavidades nasais, de aspirar os resíduos de líquido amniótico e o muco, nenhum gesto é anódino. É preciso todo o tato e a competência dos profissionais para efetuar “com delicadeza” a limpeza (anal, nasal, auricular,
umbilical). Por certo é preciso prática e destreza para pesar a criança, medi-la esticando bem os membros ainda dobrados como dentro do útero, instilar produtos mais ou menos irritantes nos olhos e no nariz..., sem que esses cuidados não se transformem em agressões na vivência da criança. Se agressão há, ela é relativamente benigna. Mas suas repercussões para a criança serão maiores se for efetuada quando ela está separada da mãe. Afastada de sua principal fonte de percepções conhecidas, ela perde qualquer meio de se tranqüilizar. Ora, o bebê procura o já conhecido . Para que reencontre esse já conhecido, costumo aconselhar as mães que vejo nos dias seguintes ao nascimento a pegarem seu bebê «pele contra pele», quando o fio entre eles me parece rompido ou danificado. É o caso das mulheres que o baby blues deixa desarmadas. A idéia é simplesmente que o bebê possa descansar nu sobre o peito da mãe enquanto ela eventualmente lhe fala. Assim, ele fica em contato pelo toque, a audição, o olfato e a visão com esse outro corpo que ele já conhecia e que agora reconhece. Essa proximidade sensorial é estruturante, pois reatualiza o vínculo pré-natal. Mas esse pele contra pele, preconizado às vezes pela unidade canguru e por mim, só é recomendável se a mãe sente vontade de praticá-lo. Caso contrário, forçar a mão só pode ser prejudicial para ambos os protagonistas. Por que fazê-lo, por outra parte: existem tantas maneiras de ser mãe, cabe a cada uma elaborar a sua! O objetivo é manter o vínculo sensitivo entre mãe e filho, e geralmente isso é suficiente para proteger um recém-nascido dos efeitos de depressões leves e passageiras de sua genitora. Em casos mais severos, é uma oportunidade para a mãe começar a falar de sua história, por mais dolorosa que seja. De qualquer maneira, a manutenção desse vínculo é necessária e proveitosa para ambos. Manter os vínculos
Da pediatria nos chega, pela generosa obra de Marie Thirion, um discurso similar sobre o vínculo mãe-filho. “Para viver depois do nascimento – escreve ela – exatamente da mesma forma como nos primeiros dias depois da fecundação em que sua nidação uterina condicionava de modo imediato sua sobrevivência ou sua eliminação, um recém-nascido precisa se enraizar em algo que vive, tem de se implantar numa relação humana.” 20 A observação é sedutora, ela concorda com o que acabamos de dizer. Alguns capítulos depois, a autora acrescenta: “O bebê brutalmente separado da mãe no momento do nascimento, afastado de seu cheiro, de sua voz, das carícias sobre seu corpo não pudera criar vínculos [sublinhado por ela]. (...) quando ela o pegou nos braços falando-lhe dela e dele, e não mais se dirigindo a alguma outra pessoa ao pé da cama, a criança, esgotada, adormeceu. Ela criara o vínculo...”. Um psicanalista poderia dizer o mesmo, modificando um único detalhe, mudando completamente de direção: não se trata de criar vínculos mas de mantê-los . Não se trata de um novo apego no sentido que lhe dava René Zazzo e a psicologia francesa, nem do engrama ou do vínculo no sentido de Boris CyruInik e dos etólogos, mas de manutenção e de reatualização de um substrato perceptivo e linguageiro preexistente. Empregando metáforas próprias ao palco, diremos que a vida intra-uterina é um ensaio geral : a ele assistem pelo menos a mãe como diretor, e um público seleto que faz parte da companhia, primeiro o pai, se estiver por ali, um companheiro ou pessoas próximas. O repertório sensorial foi revisto, as diferentes vozes escutadas, e a intriga inicial já está armada. O nascimento é uma pré-
estréia aberta ao público desconhecido, e é uma aventura sobre a qual ninguém sabe, os “produtores” em primeiro lugar, quanto durará e o sucesso que terá. O que é certo é que o sucesso inicial da peça depende dos vínculos estabelecidos durante os ensaios. Resta agora saber como os atores infans entendem e falam o texto da peça, como o memorizam, e que “repetidor” pode lhes ser útil para se situar no caso de haver problemas. Palavra e linguagem no recém-nascido
A segunda questão que surge nas entrevistas com os recém-nascidos, a mais evidente, é a da compreensão que o recém-nascido pode ter de nós, e nós dele. Descartemos de imediato todas as pistas falsas: o recém-nascido não compreende a língua como uma pessoa que já fez a aquisição da linguagem. Ninguém, cientista ou não, perderia seu tempo pensando nisso. Assim como não se poderia acreditar num terapeuta que pretendesse que o recém-nascido, embora não compreenda o sentido do que ele lhe diz, ainda assim obedecesse aos seus votos de que ele melhore para agradá-lo. A palavra dirigida ao recém-nascido
E pur si muove! E no entanto ela gira! Apesar de tudo, a entrevista psicanalítica com o recémnascido tem efeitos sobre seu corpo. Sobre o do psicanalista também, aliás, pois a supressão do sintoma pode ser fonte de energia, ao passo que as complicações esgotam. Então, o que pensar disso mesmo sem compreender? F. Dolto mostrava grande tranqüilidade de espírito a esse respeito quando dizia: “Essa ferida só pode ser reparada ou melhor superada com palavras verdadeiras, ditas por alguém que a criança sabe estar de acordo com sua mãe e com seu pai, e que lhe fala da provação que elas viveram, ela e sua mãe. (...) A palavra pode, por ela mesma, de maneira simbólica, restabelecer a coesão interna da criança (...) As crianças, bebês, lactentes, compreendem as palavras – é incrível, não sabemos como – quando elas são ditas para lhes transmitir uma verdade que concerne a elas; palavras que relatam o que se sabe dos fatos, sem julgamento de valor”. 21 Não sabemos como, é verdade. Mas sabemos. Não é necessário ser psicanalista para constatar que as mães e os pais falam com seus bebês. Atribuem sentido aos diferentes balbucios e grunhidos de seus filhos, quando não a seus gestos. Se isso fosse uma imbecilidade, a saúde mental da humanidade inteira correria perigo. Pode-se contestar que um recém-nascido não compreende a língua, e que o que ele percebe de nossas intervenções é, no limite, nossas intenções: o timbre de nossa voz, a sedução de nosso sorriso, o tom que empregamos. Por que não? Esses elementos denominados pelos lingüistas de prosódicos – ênfase, tom – somados à compleição física dos interlocutores – a começar por seu sexo – fazem parte da comunicação. No entanto, temos outros indícios que nos levam a pensar que o que não compreendemos existe. Parece-me que já temos várias pistas de investigação. A primeira pista a seguir é... magnética. Sabe-se que F. Dolto afirmava que uma criança em idade pré-verbal pode funcionar como uma fita magnética. Ou seja, ela é capaz de registrar fonemas
e até palavras e frases que não compreende stricto sensu. Consegue engramá-las, armazená-las em sua memória, de tal modo que essas palavras e essas frases podem reaparecer vários anos mais tarde, em circunstâncias e com uma pertinência psicologicamente significativas para ela. Lembremonos da menção que ela faz de uma de suas alunas analistas, caso particularmente comovente porque unta numa única imagem o começo e o fim de uma vida. Essa mulher sofria de um câncer incurável na época, mas ainda levava adiante sua vida profissional e social. Naquela que veio a ser sua última sessão, ela contou um sonho de felicidade indizível que, dizia ela, a teria consolado de tudo se fosse duradouro: “Essa felicidade provinha de sílabas que eu escutava [no sonho], sílabas que não querem dizer nada”. 22 Três dias mais tarde, ela ficou paraplégica. A morte a levou pouco depois. Essa mulher, de origem inglesa, vivera na Índia entre um e nove meses de idade. Ficara sob os cuidados de uma jovem hindu que a mantinha o tempo todo no colo e a embalava. A despedida, conforme o que lhe contaram posteriormente, foi extremamente dolorosa. F. Dolto intuiu que as sílabas incompreensíveis do sonho podiam ser palavras pronunciadas por aquela mulher. Depois de pesquisar, descobriu-se que aquela era uma frase que todas as babás daquela região diziam aos bebês: “minha queridinha cujos olhos são mais lindos que as estrelas”. Esses fonemas, “que tinham vindo acompanhados daquele prazer narcísico indizível que tem o nome de felicidade”, tinham servido de viático para aquela menininha que perdia sua babá portadora, suas pernas, poderíamos dizer. Ressurgindo anos mais tarde, elas anunciavam a perda das próprias pernas, dessa vez, e um adeus ao mundo. Limitemo-nos por enquanto a guardar desse exemplo que uma criança que ainda não adquiriu nenhuma língua entende, compreende e memoriza pedaços de linguagem semântica e sintaxicamente pertinentes. Com-preender deve aqui ser escutado no sentido etimológico de “prender com”: a criança leva consigo uma mensagem codificada cuja chave desconhece, e essa mensagem faz corpo com ela. Ou melhor, a despeito da própria criança, ela tem efeitos sobre seu corpo. No caso dessa mulher, é como se seu corpo lembrasse: ela sonha com isso. Ela sonha com isso num momento em que, como diz F. Dolto, aparece o mesmo tipo de ruptura de seu esquema corporal que sucedeu no primeiro acontecimento. Outrora, era o momento de ela se ver como um corpo autônomo às vésperas de andar: ela ia ser separada desse corpo-babá que estava como que colado a ela, que andava para ela e com ela. Agora, era o anúncio da paraplegia e da separação do mundo vivo. Sonho premonitório? É mais interessante pensar no fato de que o corpo tenha memorizado a frase enigmática, de que o próprio corpo é de certa forma o lugar da linguagem. Mas, visto que a mensagem é indecifrável enquanto tal e ainda assim o corpo se lembra dela, é porque a mensagem está acompanhada de um sentido esquecido ou, melhor, rejeitado, forcluído. Nesse caso, o corpo é como um palimpsesto, um pergaminho cujo texto encobre o sentido apagado. Pode-se falar de uma semântica do recém-nascido?
Já dissemos que o recém-nascido é sensível à voz da mãe. É preciso ir mais adiante, procurando saber a que ele reage ao escutá-la. M.-C. Busnel, pesquisadora do INRA em fisiologia acústica, tem realizado nos últimos 20 anos inúmeros estudos sobre o efeito da voz da mãe sobre o
filho. Em alguns desses estudos, ela observou a freqüência e a variabilidade dos ritmos cardíacos: no feto, no recém-nascido, no bebê prematuro. A idéia era interpretar essas flutuações como respostas aos estímulos da voz da mãe, eliminando, é claro, todos os artefatos de outra ordem presentes na mãe. Sem entrar nos detalhes desses protocolos, lembremos que ela provou pelo menos quatro pontos fundamentais. Em primeiro lugar, o bebê reconhece preferencialmente a voz da mãe: ele manifesta que «a entende» melhor do que entende outras pessoas. Em segundo lugar, o bebê reage mais quando a mãe lhe fala do que quando ela fala com outras pessoas, os experimentadores no caso. Em terceiro lugar, o bebê assim como o feto reagem quando a mãe pensa neles e se comunica com eles... pelo pensamento, mesmo que em proporções ínfimas! Em quarto lugar, e aí se abre um campo imenso: não só o bebê reage bem mais a uma história ou a uma música conhecida do que a outras que ele escuta pela primeira vez, mas sua manifestação é tanto maior quanto mais emoções o que lhe for contado provocar nele ou na mãe. Cabe a cada um decidir se isso significa que o recém-nascido tem uma semântica e que é dotado de uma (boa) memória. M.-C. Busnel não se dá o direito de fazer o salto que consistiria em dizer que as reações da criança significam que ela compreende em sentido estrito. Mas é evidentemente uma diferença essencial em relação ao que a psicanálise diz. Por outro lado, é também uma indicação de prevenção, pois M.-C. Busnel mostra que uma sobre-estimulação dos fetos anula o efeito esperado, quando não é prejudicial para a criança. Eis algo que irá decepcionar os defensores do treinamento intensivo desde os primeiros tempos da gravidez. Alguns momentos musicais com o feto não prejudicam, é claro. Mas, como ela lembrou recentemente, é uma obrigação ética dos cientistas dizer que a aplicação sistemática de uma aprendizagem sobre o feto é odiosa e inútil. 23 Para ilustrá-lo, ela evocou a célebre experiência realizada pelo americano Gilbert Gottleib com patos. Sabe-se que o patinho tem uma necessidade vital de aprender desde a gestação a reconhecer a voz da mãe. Com efeito, assim que sai do ovo irá segui-la pela voz, se não quiser morrer. Procurouse, pois, saber se, reproduzindo de maneira artificial, diretamente no ovo, os estímulos da vida aérea necessários para o patinho, facilitar-se-ia a aprendizagem do patinho. Abriu-se alguns ovos e fez-se o feto escutar a voz de sua mãe ao mesmo tempo em que lhe iluminavam o olho. Resultado: catastrófico! Os patinhos nada aprenderam, como se as duas estimulações tivessem se anulado em vez de se somar. Como a visão aparece cronologicamente mais tarde, é provável que seja ela a responsável pela anulação das capacidades de aprendizagem auditiva. Quando os dois estímulos eram fornecidos de modo alternado, os patinhos tinham uma aprendizagem muito retardada em relação à normal. Quando o olho era iluminado sem que a voz da mãe fosse ouvida, o efeito era nulo. Portanto, não há nenhuma necessidade de sobre-estimular “nossos queridos patinhos”! A fala do recém-nascido
Quase todos os neurobiólogos aceitam agora a idéia de que não há aquisição nem memorização possíveis sem participação «emotiva», isto é, sem o concurso do sistema límbico e do córtex cingular anterior. Alguns vão mais longe e permitem pensar que “engramando” uma percepção
engrama-se a emoção correspondente. Cada informação estocada soma-se à informação emotiva que lhe concerne. É este o sentido da hipótese dos marcadores somáticos de A. Damasio, 24 para quem cada estratégia de tomada de decisão é influenciada por estados gerais do corpo que informam o cérebro sobre a conduta a seguir. Esses marcadores do corpo funcionam como sinais de perigo: por exemplo, o fato de que se salive ao pensar em comer foie gras ou que se tenha dor de barriga ao imaginar um prato de topinambo. As estruturas que sustentam esses marcadores somáticos são, por um lado, o córtex pré-frontal, que organiza a classificação dos dados que concernem ao mundo exterior e os acontecimentos particulares da vida de cada indivíduo, por outro, o córtex somatosensorial, que trata todas as informações de que falamos nos capítulos precedentes. É delas que depende nossa aprendizagem da vida. Em outras palavras, tomando emprestado o título de um de seus capítulos: Sem corpo, nenhuma representação mental! Karina ou o medo de viver
Citamos esses poucos dados sobre a ligação entre a linguagem, a emoção e o corpo porque os recém-nascidos que me cabe escutar só me falam disso. Sem dúvida Damasio diria que eles ainda não tiveram tempo de fabricar esses marcadores somáticos, mas o corpo desses bebês de 3 dias é o sítio de todos os perigos: transtornos de ordem respiratória, distúrbios do sistema digestivo, anormalidades da curva ponderal, distúrbios do sono, anorexia do lactente, rejeição do seio, infecções..., tudo se diz ali. Linguagem de órgãos, como se diz? Na verdade, não. Se fosse verdade, eu não teria como explicar por que minhas palavras podem ter um efeito direto sobre esses males do corpo. Karina é uma menininha de dois dias, hipotônica, que não come e cuja perda de peso é alarmante. Uma parteira chegou a descrevê-la como moribunda! Quanto aos pais, dizem-me que é como se estivessem paralisados, sem outra reação que um sofrimento impotente ante as desgraças de sua filha. Vou até a cabeceira dela. “Entenda-me, senhora, perdi meu filhinho há cinco anos durante o parto, foi horrível; e agora, Karina...” Essa mulher sofrera por muito tempo de uma esterilidade, e, após vários tentativas de fecundação in vitro no hospital Béclère, conseguiu finalmente engravidar. A criança esperada, um menino, morrera antes de nascer. “... Preparamos tudo direitinho, pode ter certeza. Um berço, um carrinho de rodas altas, um assento para o carro, brinquedos... A roupa de batizado estava pronta. E não adiantou nada! Jogamos fora todas as roupas, exceto aquelas que tínhamos recebido emprestadas, tive de dar o carrinho para a minha sobrinha, porque ela pelo menos é jovem, ela conseguirá fazer filhos.” Ela tem 44 anos, e essa pequena Karina que se anunciou é seu primeiro bebê vivo. Ela a colocou no seu lugar na cama e a vela como se vela um morto, sentada aos prantos ao seu lado. Via nela apenas o filho morto, o destino de Karina estava ligado ao de seu irmão mais velho: como se ter um filho vivo fosse algo proibido para ela. “E agora Karina que não quer comer, ela está morrendo a olhos vistos, não é possível... Meu marido e eu não somos supersticiosos, mas desta vez juramos fazer de tudo para que aquilo não recomece. Quase não compramos nada para ela, para não dar sopa
para o azar. Só o necessário, um pijama, algumas mamadeiras. Nem isso adiantou. Dá para ver que ela está sofrendo.” A mãe, imigrante, me fala do isolamento em que se encontra, e se põe a evocar o projeto de ir apresentar a filha aos avós, que moram no exterior. Algo de vivo começa a aparecer ali, e aproveito para falar com Karina desse luto não feito do primeiro bebê que parece lhe barrar a inscrição na sua filiação: “Seus pais ficaram com tanto medo de que você não conseguisse viver, como seu irmão, que não sabem o que fazer e pensar. Mas você é diferente de seu irmão e você decidiu nascer. Não sei se você já decidiu viver. Se você quiser viver, precisa comer para poder crescer. A escolha é sua, mas saiba que seus pais estão dispostos a tudo para ajudá-la”. Nenhuma reação da criança. Aconselho a mãe a pegar Karina no colo “pele contra pele” para restabelecer o vínculo com ela, que parece tão frágil quanto a fé que tem na sua vida. Explico-lhe que dessa forma Karina poderá reencontrar o apoio e a segurança de que necessita, e em seguida me despeço. No corredor, encontro a pediatra e a puericultora que cuidam de Karina. A primeira considera uma urgência vital fazer a criança engordar, e pensa em alimentação forçada. A segunda propõe dar a mamadeira longe da presença da mãe antes de forçar a alimentação. Acrescenta que a mãe está tão mal que corre o risco de transmitir sua angústia à filha e de, por assim dizer, cortar-lhe o apetite. Ambas insistem quanto à urgência. Sem desconsiderar a necessidade de intervir rápido, peço-lhes no entanto que esperem algumas horas. Considero de primeira importância que a própria Karina escolha se alimentar, e que acerte isso com sua mãe. Alimentar Karina longe da mãe seria correr o risco de confirmar, nessa mãe de narcisismo tão frágil, um sentimento de incompetência que agravaria as coisas. A pediatra aceita esperar. Três quartos de hora mais tarde, Karina pediu e engoliu 50 ml de leite, dados pela mãe. Ela recuperou peso nos dias seguintes, e os pais vieram me contar seu alívio no momento da partida. Mathieu, o pequeno delator
Haverá quem diga, como o professor Lebovici, que ler a lista telefônica para esse bebê teria tido o mesmo efeito. A objeção tem algum peso, mas é difícil de admitir vindo de um psicanalista dessa qualidade. Em todo caso, ele é um bebê a quem isso teria feito berrar. Esse bebê se chama Mathieu. Conheci-o no quarto 37 da maternidade, porque sua mãe estava angustiada pensando nos problemas que a esperavam ao sair da maternidade. Nós três tivemos uma longa conversa. De passagem, ela me explicou que morava na casa de um “senhor” que lhe emprestava dois cômodos em seu próprio apartamento, em troca de pequenos serviços. Ele lhe fazia uma espécie de gentileza, mas evidentemente isso não deixava de causar problemas de comodidade prática e de intimidade para essa mulher. Esses acessos de bondade de qualquer forma logo terminariam, pois a vinda do bebê era menos do gosto do “senhor” em questão.
A conversa dirigiu-se para outras paragens, quando de repente ela voltou a falar desse «senhor», mas dessa vez dando-lhe um nome: «Sr. X». E, nesse momento, Mathieu berrou. Quando, no fim da entrevista, a mãe me sussurrou: “confidencialmente posso lhe dizer, mas não conte a ninguém: o Sr. X é o pai de Mathieu”, não foi difícil responder-lhe que eu já imaginava isso porque Mathieu o indicara. Coincidência? Talvez ele estivesse sonhando com a lista telefônica... Em todo caso, ele reagiu como um homem singular a esse lugar-comum da psicanálise dos últimos anos: que cabe à mãe nomear o pai para a criança. O lugar do nome do pai deixava de estar vago a partir daquele instante para Mathieu. Se um ou outro dos pais se sentir incomodado com isso, apostamos que o inconsciente de Mathieu, por exemplo por meio de uma amnésia infantil típica, poderá mais tarde cobrir pudicamente sua estátua. Um esquecimento diplomático é algo que acontece tão rápido!... Também haverá quem diga que a única circunstância em que pode ser útil falar com o bebê é quando se pretende tocar indiretamente pais que não suportem escutar certas coisas ex abrupto. O comentário é elegante e hábil, e em certos casos é isso o que faríamos. Mas não será desrespeitoso ater-se a esse «truque»? Desrespeitoso não para com os pais, nem para com o bebê, mas para com a verdade? Pois embora um profissional possa julgar supérfluo falar com um recém-nascido, ele não ignora que às vezes a criança entende algo do que lhe dizem os pais. Se entende deles, porque não entenderia dele? Quanto aos experimentadores que gravam em vídeo a entrevista deles com um bebê, dirigindo-se a ele para sensibilizar mais a mãe, e que depois passam a fita para ela para que “entenda” do que se trata, o que eles fazem? Eles provam a validade de suas hipóteses para a mãe, e sem dúvida também para nós, leitores. E demonstram que sabem convencer. Todos aplaudimos tanta perspicácia desenrolando-se diante de nossos olhos. Mas já não nos encontramos no campo da psicanálise; estamos no da pedagogia, que não parece particularmente apropriada para o trabalho em maternidade. Sempre que possível, é melhor dar a César o que lhe pertence: se os pais são o centro do problema, é com eles que se deve falar. Se for a criança, dirijamo-nos a ela. Afinal de contas, é ela o paciente! Maurice e o marabuto
Inversamente, ocorre de eu falar com uma mãe para que seu filho entenda. É o caso dos bebês prematuros e, também, o de Marie Perrier, que já mencionei. Falo com a mãe deles por não poder dirigir-me diretamente a eles, na esperança de que a mãe o faça, pois sei que isso não deixará de ter efeitos. Posso também dirigir-me à mãe ou ao pai em presença do bebê, como no caso em que a solução depende evidentemente deles. Foi este o caso de Maurice. Maurice, já com seis dias, também tinha um problema de peso. O problema dele, porém, era não conseguir manter a linha. Digo isso com um sorriso nos lábios, mas a velocidade com que engordava era algo perigoso para ele. Ninguém compreendia por que ele inchava daquela forma, como a rã da
fábula. Nem os membros da equipe nem seus pais. Era o quinto da fratria, filho de pais africanos extremamente joviais, com uma mãe mais terna e atenciosa do que seria possível sonhar. Mas o marabuto que os pais consultaram durante a gravidez dissera que ele era “diferente”. Essa palavra sobre o destino da criança deixara o pai num estado de intenso pânico. Este último contou-nos com um tom muito calmo os pesadelos assustadores que tivera com a criança nos últimos tempos, o que teve por efeito imediato acordar Maurice em sobressalto e fazê-lo gritar. (Esta criança pelo menos escutava e entendia o pai, mesmo se não me entendesse! Mais uma coincidência, sem dúvida, que faz com que ele reaja com susto à voz familiar de um pai que fala com toda a serenidade dos mais horríveis sonhos.) Percebi durante a entrevista que a mãe compartilhava da inquietação do marido, mas de um outro modo. Sempre que o bebê se manifestava, fosse como fosse, ela ficava com medo, pensando na sua inquietante “diferença”. Quando isso acontecia, ela sistematicamente o punha no seio. Aliás, como ela me disse, empregava a mesma estratégia para “acalmá-lo” fazia uma semana. Por isso ele engordava. Acreditando “acalmá-lo”, ela tranqüilizava a si mesma. Como Maurice era tolerante e um filho inteligente, ele mamava alegremente. Dessa maneira tranqüilizava a mãe, mostrando que não tinha medo algum dos pesadelos do pai, mas que, como ela imaginava, tinha fome. Em todo caso, quando tranqüilizei os pais explicando-lhes que talvez ele viesse a ser “diferente” no futuro, mas que por enquanto cabia a eles protegê-lo e não o contrário, ele parece ter deixado de ter tanta fome. Nos dois dias seguintes, as coisas entraram nos eixos e a curva de peso de Maurice voltou a ter um aspecto normal. As disposições do recém-nascido para a linguagem
Adquirir a linguagem é uma coisa, ter as disposições para fazê-lo é outra. Assim como compreender uma língua é uma coisa e falá-la, um outro assunto. Sobre esses dois pontos, psicanálise e neurobiologia concordam: o bebê humano não adquiriu a linguagem, mas possui mecanismos que lhe permitem fazê-lo, diferentemente dos outros bebês primatas. Esta é pelo menos a opinião de um dos grupos mais importantes e mais inovadores em neurociências. Num livro recente, 25 Edelman expõe teses sobre a linguagem que, embora possam inicialmente causar aversão para um leigo, dão o prazer de descobrir algo novo. Resumamos sua demonstração. Para falar e compreender a linguagem, e para construir em nós uma linguagem, são necessárias pelo menos duas etapas, diz ele. Primeiro, ter uma consciência – que ele denomina de consciência primária das coisas –, isto é, sermos capazes de seriar nossas percepções em função de nossas experiências passadas e dos “custos” que elas acarretaram (satisfação ou desprazer). Trata-se de reagir às informações que a realidade do presente venha a nos apresentar, e de fazê-las passar pelo crivo de nossa memória. Sem essa faculdade, torna-se problemático falar. Pode-se citar a esse respeito o exemplo do que se chama “o cego que vê” (agnosia visual ). O cego que vê é uma pessoa que sofreu uma lesão do córtex visual primário, que ainda vê muito bem, mas que diz que não vê! Por exemplo, ele pode perfeitamente pegar um garfo e usá-lo de forma adequada, mas, se lhe perguntarem o que se encontra sobre a mesa na frente dele, ele responderá: “não vejo nada”. Essa consciência primária faz intervir uma primeira presilha (Edelman diz um primeiro bootstrapping perceptivo) entre dois tipos de estruturas nervosas diferentes: o sistema límbico e o tronco cerebral, que tratam lentamente as informações em função do prazer
sentido, e o sistema tálamo-cortical, que analisa rapidamente o que pode aprender da nova situação. Até aí nada de muito complicado, e em última instância nós não somos nisso muito diferentes de nossos confrades chimpanzés. Nesse sistema, estamos submetidos apenas à tirania das experiências do present pre sente, e, e estamos estamos lim l imitados itados em nossas nossas perspectivas. perspec tivas. A segunda fase consiste naquilo que Edelman chama uma consciência de ordem superior, consciência esta que seria a principal característica do humano, e portanto intimamente ligada à linguagem. Ela consiste, graças à linguagem, em tornar nossas as sensações às quais nossa consciência primária atribuiu este ou aquele valor, em “encarná-las”. Falávamos há pouco dos narizes dos perfumistas, pode-se também citar os degustadores de vinhos. Segundo Edelman, o talento deles “pode ser considerado como resultante de uma paixão baseada em sensações que se tornam cada vez mais refinadas graças à linguagem”. Do ponto de vista neurofisiológico, essa consciência de ordem superior é o produto de uma segunda presilha ( bootstrapping semântico) entre as áreas corticais da linguagem, graças às quais elaboram-se e memorizam-se as palavras e as frases, sua ressonância, sua significação e sua sintaxe, e o córtex pré-frontal, responsável pela classificação das idéias. Com efeito, para falar é preciso emitir sons, mas sons relacionados com idéias que têm um sentido. O interessante é que Edelman estabelece uma equivalência entre essas capacidades e – cito – uma memória simbólica. Ou seja, não se fala apenas porque se quer dizer alguma coisa, mas fala-se porque se inven i nventa, ta, porque ao falar imagin imagina-se, a-se, e porqu porq ue se fala de si perante o mun mundo do ao falar da chuva e do tempo. Evidentemente essa perspectiva compraz o psicanalista, porque, para além da explicação que se possa dar dos funcionamentos cerebrais, ela chama a atenção para a singularidade de cada um. A criação na linguagem é uma assunto pessoal! É o feito de cada ser diante das questões que espreitam sua vida, é seu perfume, se se pode dizer! Como psicanalista, tem-se um interesse apenas distante pela questão de saber se a fala é uma competência adquirida (pela influência da comunidade à qual se pertence) ou se o dispositivo de aquisição da linguagem é inato. Importa mais dizer que a linguagem, como as sensações, constrói-se com o outro, e acrescentar graças à prática com os bebês que essa construção é mais precoce que o aparecimento da própria linguagem falada. Como diz Edelman: “A atribuição de significação aos símbolos não se dá de modo formal; ao contrári contrário, o, supõe-se que as estruturas estruturas simbólicas têm um sentido sentido desde o prin pri ncípio”. cípi o”. 26 E mais adiante: «O que importa compreender é que os modelos cognitivos idealizados recorrem à encarnação conceitual conceitual e que esta se efetua efetua graças a atividades ativid ades corporai c orporaiss anteriores à ling li nguag uagem em”. ”. 27 Ainda mais interessante é escutar Edelman explicar que, “quando os símbolos [empregados] não correspondem diretamente ao que existe no mundo, os seres humanos utilizam metáforas e metonímias para estabelecer relações”. 28 Eis algo que vai ao encontro de toda uma parte da teorização psicanalítica sobre os temas da condensação e do deslocamento no sonho, traduzidos por outros no plano da metáfora e da metonímia. Este não é o lugar para retomá-los; citaremos apenas a tirada de Lacan a propósito da criatividade da linguagem: se a metáfora é tomar uma palavra por outra, então os erros das crianças são criativos. «O gato faz au-au, o cachorro faz miau-miau... Eis como a criança soletra os poderes do discurso e inaugura o pensamento.” 29 D4: o momento de se fazer entender 30
Portanto, o cérebro humano estaria programado para a fala. Pelo menos para emitir sons. Um
bebê, na matern maternidade idade ou em outro outro lugar, lugar, chalra, grita, chora, sorri. sorri . Será isso linguag linguagem em?? Seja como como for não se pode negar a evidência de que é uma tentativa de comunicação. A prática cotidiana com os bebês decerto mostra que isso i sso não é uma comun comunicação icação com um alvo como como um diálogo de d e teatro. teatro. É mais da ordem de jogar lenha na fogueira, de falar com as paredes: para bom entendedor, meia palavra alavr a basta! Na maternidade, aternidade, evidentement evidentementee escutam escutam-se -se primeiro os choros, pois esse é o modo de expressão vocal favorito dos recém-nascidos. Às vezes, o nível sonoro ou lacrimal ultrapassa o limiar de tolerância dos adultos, e então pede-se que intervenhamos. Lembro de ter conseguido interpretar para um bebê de quatro dias os motivos de seus choros, incessantes desde seu nascimento. Uma das puericultoras da noite me contou que depois disso não mais o escutara. Ela tinha acrescentado: “Se eu soubesse, teria avisado antes; isso teria me poupado três noites extenuantes!”. Para ele também, sem dúvida... Se essa puericultora tivesse me avisado dessa criança, isso prova que ela sabia s abia que a criança cri ança dizia alguma alguma coisa, coi sa, e que um um psicanalista psicanalis ta talvez pudesse pudesse entendê-lo. entendê-lo. Escutam-se também choros e palavras de alegria nos serviços. Como aqueles daquela obstetra, que saltitava pelos corredores que ligam as salas de trabalho, de tamanco e roupa de cirurgiã, pulando ulando e gritando entre dois soluços que ela el a “tinha “tinha feito um bebê do jeito que gostava”. De forma forma geral, um serviço de maternidade às vezes se parece com uma sala de ensaios em que cada um afina seu instrumento antes do concerto: limpam-se as gargantas ou o colofônio dos arcos, afinam-se, tocam-se tocam-se as escalas, es calas, fazem fazem-se -se vocalises, vocali ses, tudo isso na mais mais estrita independência independência do vizin vi zinhho. Também se grita nos quartos da maternidade. No melhor dos casos, chalreia-se! É algo comum, aliás, e que dá muita energia para todo mundo. Não é algo anódino. É inclusive uma das pistas a seguir para falar da linguagem, da mesma ordem que a hipótese de F. Dolto sobre a repetição cronológica e as hipóteses das neurociências. A escutar Boris CyruInik, o etólogo especialista em comportamentos humanos, gritos e chalreadas são mesmo como um embrião de fala. A prova? Cyrulnik gravou gritos de recém-nascidos que estudou no analisador de freqüências. Percebeu que os histogramas desses gritos não tinham a mesma forma conforme fossem “entre eles“ e se “respondessem” de berço para berço, ou houvesse adultos entre eles conversando. Em suma, num caso era cacofônico, no outro, a partir do quarto dia, a coisa ganhava uma aspecto nitidamente melódico.31 A experiência é decisiva. Ela prova que, como as sensações de que falávamos há pouco, a fala (de um, o bebê) precisa da fala (do outro, o adulto). Esse argumento me ajuda a compreender o baby blues, que, como se sabe, aparece por volta do terceiro-quarto dia. Durante os primeiros dias, tudo ocorre como se os bebês só produzissem a título de sons gritos que são igualmente ecos fônicos de seu estado. Um discurso frio e realista, em suma. Gritam para constatar sua falta: “tenho fome”, “tenho frio”, “estou com sono e tem barulho demais”, ou então “estou mal-instalado”, “estou com dor de barriga”. É uma simples constatação do que sentem, uma espécie de salmodia que traduz suas sensações. Depois, de repente, um outro mecanismo íntimo e delicado se instala entre mãe e filho, pelo fato de que a criança se dá conta de que é ela que provê suas necessidades. Uma nova espécie de modulação linguag linguageira eira se faz escutar, escutar, que varia var ia em função função da mãe mãe e se dirige di rige a ela. el a. Se essa nova comunicação vocal fracassar, por exemplo devido a uma depressão muito intensa
da mãe, o recém-nascido poderá se resignar a um sintoma: aparecerão, por exemplo, no lugar dos choros, uma forma de cólica do recém-nascido, ou então regurgitações, ou ainda vômitos. Nesses momentos, pode-se inclusive entrar num verdadeiro jogo de pingue-pongue entre a criança e a mãe, como os pediatras bem sabem. Foi esse o caso daquela mulher cujos dois filhos tinham sofrido de cólicas do lactente. Era tão difícil para ela suportar que eles digerissem mal, que o momento de alimentá-los tornava-se um suplício para ela. Ela ficava angustiada porque eles tinham dor de barriga, e é fácil supor que em troca eles tinham dor de barriga de sentir a angústia da mãe; era como um poço sem fundo. Passados três ou quatro meses, felizmente seu sistema digestivo amadureceu e eles encontraram sozinhos uma outra maneira de funcionar, pararam de regurgitar e de ter dor de barriga, e tudo entrou nos eixos. Na verdade, essa mãe sentia-se culpada por não ter aleitado, e atribuía ao leite artificial as cólicas de seus filhos. Esclareçamos que esse argumento é falacioso e que os leites artificiais comercializados são extremamente bem tolerados hoje em dia. Mas para ela, essa era a verdadeira razão. Até o dia em que seu pai, vendo-a angustiar-se com os espasmos digestivos de seu segundo filho a quem ela dera uma mamadeira, disse-lhe inocentemente: “... Com você era igual; eles se parecem com você. – Como Como assim, mas mas eu mam mamei ei no seio?!? – É verdade, mas você tinh tinha o tempo tempo todo dor de barriga. barri ga. No começo, começo, eu e a sua mãe não sabíamos como aliviar a sua dor. Lembro bem; a gente revezava a noite inteira embalando você!” Ela começou a pensar que era possível ser uma boa mãe mesmo dando mamadeiras! Essa mulher ficou aliviada. Os próximos filhos que ela vier a ter ficarão ainda mais à vontade: talvez eles tenham tenham menos dor de barriga, ou talvez ela se autorize a amamentá-los... O banho de linguagem e o primeiro sorriso
E os sorrisos? Ah, a beleza de um primeiro sorriso... Pois bem, não; segundo CyruInik é uma ilusão de ótica! O primeiro sorriso é conseqüência da secreção de um neuropeptídio, e seria um contra-senso da mãe interpretá-lo como um agrado. Esse truísmo já foi respondido com uma simples pergunt ergunta: a: onde está o contra-se contra-sennso? Na mãe, que está pouco se lixando lixando com qual secreção s ecreção cerebral cerebr al está em jogo, ou o pesquisador que acha que a alegria da mãe não passa de uma conseqüência acessória da biologia? Mas acompanhemos CyruInik. Ele toma o contra-exemplo do baby blues, ou seja dessas mulheres deprimidas que ficam frias como pedra quando seu bebê sorri. Elas criam em torno da criança o que ele chama de um “mundo sensorial frio” e comprometem como isso seu sono, e portanto p ortanto seu futuro futuro cresci cr escim mento. Esse é com certeza o risco nas depressões graves. Mas não se observa isso no baby blues clássico, cláss ico, nessa depressã de pressãoo normal normal se não necessár necessária ia que afeta a maiori maioriaa das parturientes, parturientes, em maior ou menor grau. Ao contrário, a lassidão dessas mães – “não sei cuidar dele, nunca vou conseguir” –, essa depressão leve parece ser um apelo necessário à criança para que ela reaja como um humano. Sua resposta marcará o começo começo da comun comunicaçã icaçãoo oral. oral . Essa tese precisa ser fundamentada em exemplos clínicos, e, por uma questão de clareza, reservamo-nos o direito de fazer uma explicitação mais detalhada no capítulo dedicado ao limbo.
Afora essa pequena divergência com CyruInik, também estamos persuadidos da necessidade do banho de linguagem que a clínica demonstra todos os dias. Talvez CyruInik veja nisso uma fidelidade nossa ao que ele enuncia mais adiante: “Para que se abra o acesso à linguagem são necessários não só pré-requisitos neurológicos, mas também pré-requisitos afetivos! O sistema comportamental que sustenta a fala e a faz surgir supõe a presença em torno da criança de algum outro ser com quem falar, para quem falar; é preciso que à fala própria responda uma outra fala”. 32 Cyrulnik demonstra a existência desse banho de linguagem a propósito do processo de designação, que ele considera o pródromo do acesso ao simbolismo e à linguagem. Com efeito, diferentemente dos outros primatas, o homem aprende espontaneamente a apontar com o dedo para mostrar um objeto, e a compreender o que um outro lhe aponta com o dedo. Adquire essa habilidade com mais ou menos 1 ano, segundo as observações de CyruInik. Essas observações foram objeto de gravações em vídeo, e examinando essas fitas ele percebeu que o surgimento do comportamento de apontar com o dedo numa criança vem invariavelmente acompanhado de um outro comportamento: a criança começa a olhar o pai, a mãe ou o adulto que se encontra com ela no local da “experiência” e tenta articular uma palavra dirigida a eles. É por isso que o etólogo pode dizer que «a linguagem (...) se instaura não num face-aface da criança com a coisa que ela designa, mas por meio de uma dupla referência afetiva à coisa e à pessoa significativa”.33 A disposição para silabar
Mais algumas palavras sobre a comunicação do e com o lactente. Tomá-las-emos emprestadas da neuróloga e fisióloga Gisèle Gelbert, cuja teorização inaugurou uma nova abordagem clínica dos distúrbios da linguagem de extraordinária eficácia. Para ela, é porque falamos com a criança que ela mesma irá falar. No princípio era o verbo? Não, no princípio era o pensamento, apoiado por essa “estrutura que a criança já traz consigo antes de qualquer palavra exterior”. 34 O cérebro humano é programado pela fala, a criança tem uma “disposição para silabar”. Mas, entre entender ou discriminar sons e reproduzi-los, falta um passo; entre reproduzi-los e criá-los, outro. Segundo Gisèle Gelbert, é o aparecimento de “proposições orais exteriores” (da mãe, por exemplo) que, por intermédio de modelos internos complexos que ela define, permitirá que a criança tenha “proposições orais próprias”. Essa fala que a criança escuta “vai simultaneamente ser ouvida e analisada”. A língua escutada virá a se tornar sua língua. Gisèle Gelbert escolheu excluir de sua demonstração qualquer contexto psicoafetivo, preferindo delegar essa tarefa a outros. Os psicanalistas dirão portanto que não existe psíquico sem afetivo, e que o segundo estrutura o primeiro. Retenhamos das afirmações dessa neuróloga que a criança fala porque falam com ela. Não se trata de mero truísmo, pois isso implica, por um lado, que a língua dita materna se constrói – com – a mãe, depois do nascimento, e, por outro, que ela se apóia sobre algo de psíquico que existe – antes – do nascimento. No que se refere a esse problema de «linguagem» dos recém-nascidos, percebe-se que o terreno ainda não foi explorado. É fácil ver, nas tentativas de explicações científicas, a permanência de incertezas sobre o que eles «compreendem» e o que eles «dizem». Em que língua eles falam? Não sabemos. Sabemos que eles não compreendem no sentido lingüístico do termo: sua semântica
(semiótica), sua fonética e sua sintaxe não são as nossas. Por outro lado, a clínica, apoiada na escuta psicanalítica, fornece a certeza de que eles “compreendem” e que eles “dizem”. Como eles falam? Em versão original, singular, sem legendas. Não temos outro modo de justificá-lo senão pela exposição dessa clínica, tentando fazer entrever a emoção que um psicanalista pode sentir quando uma criança se dirige ou responde a tal ou qual de suas intervenções. Pretender dizer mais seria presunção, seria correr o risco de cair num “estado bem perigoso: acreditar compreender”, 35 como dizia Valéry. “O espírito claro faz compreender o que ele não compreende”, acrescentava ele. É a esse ideal que devemos tentar nos agarrar. É apenas uma maneira dentre outras de aprender na escola dos recém-nascidos que sofrem. Pois, o que fazem esses bebês senão tentar fazer compreender a quem quiser escutá-los o que eles não compreendem, e que lhes fere na carne? A memória
Edelman falava de “consciência primária” e de “consciência de ordem superior”... Quid do inconsciente em tudo isso? Curiosamente, a preocupação com o inconsciente nos vem, nesse fim de século, de pesquisadores que se interessam pela memória. Na verdade, nenhuma surpresa, se partirmos do princípio de que tudo de que falamos, ou seja, a sensorialidade fetal e precoce, a repetição, a linguagem, tem a memória como condição comum. Com sua descoberta do inconsciente, Freud acreditava estar dando início a uma revolução, assim como Copérnico e Darwin. Com Copérnico, dizia ele (embora não seja ele exatamente o primeiro responsável), a Terra perdia o privilégio de ser o centro do mundo. Darwin fizera o homem perder sua primazia de espécie. E ele, Freud, vinha anunciar que “o ego não é senhor em sua própria morada”, e que a consciência podia ser superada por um pensamento desconhecido. Pensava ele que essa ferida no orgulho da raça humana significava o despertar de uma nova era? Ele ficaria decepcionado, pois vivemos numa época que parece virar as costas para essa verdade, e para a força do simbólico. É uma pena. Ela sem dúvida deteria sua corrida atrás da imagem rainha, do dinheiro – comandante supremo – e do príncipe midiático. É certo que a literatura do século XX continua a dar lugar ao inconsciente; suas mais belas obras o comprovam, bem como as confidências desses escritores que encontram uma nova força no fato de que a escrita supera seu autor. A filosofia é mais tímida quanto a esse assunto, apesar da singularidade de vários filósofos franceses. Ainda recentemente Derrida denunciava a ilusão de acreditar que “uma vez assimilada ou domesticada, a psicanálise poderia ser esquecida. Ela se tornaria uma espécie de remédio antigo no fundo de uma farmácia. Sempre pode servir em caso de urgência ou de falta, mas já existem outros melhores”. 36 Ele vê nisso uma “denegação inventiva ou arrogante”, em que a psicanálise teria sua parte de responsabilidade, mas essa é uma outra história... Em todo caso, felizmente para ela, a psicanálise não é um remédio! O método científico é dos mais exigentes em relação à “verdade”, pois tem por princípio experimentá-la e verificá-la. No entanto, custa-lhe interessar-se pela verdade inconsciente, pois esta contradiz o ideal de controle que o caracteriza. Citamos Edelman, cuja vontade de edificar uma epistemologia fundamentada na biologia e que integrasse o inconsciente é corajosa embora não satisfatória. Sua tentativa é preciosa para o
mundo do pensamento. Embora sua prudência e sua humildade sejam louváveis, no que concerne ao inconsciente é difícil conceber como essa tentativa poderia ser bem sucedida quando ele diz: “[os] mecanismos inconscientes bloqueiam e perturbam aquilo que consideramos seqüências de pensamentos transparentes e evidentes”. Para um psicanalista, o inconsciente não é um bloqueio ou uma perturbação em si, menos ainda uma doença. O que bloqueia e perturba, e faz o sintoma, é deixar de levá-lo em consideração. O inconsciente é inclusive a condição de “pensamentos transparentes e evidentes”. Por que então querer fazer do inconsciente uma entidade neurobiológica, quando Freud deveu sua descoberta e sua invenção do inconsciente justamente ao luto que fez de suas pesquisas biológicas e neurológicas? Apesar de tudo, é das neurociências que atualmente parece vir um apoio possível para as posições de Freud. O psiquiatra e psicanalista Daniel Stern, um dos pioneiros da observação dos lactentes, lembra que a memória garante para o lactente a permanência de si , que ela dá ao recémnascido um sentido para a vontade de “continuar a ser”, como dizia Winnicott. Embora as conclusões clínicas que D. Stern tire de suas hipóteses nem sempre obtenham um consenso unânime, esse novo desenvolvimento é ainda assim particularmente interessante. Para ele, a memória se constrói com o outro, de acordo com as modalidades do que ele denomina as representações de interações eneralizadas (RIG). Com sua mãe, o bebê aprende a distinguir, categorizar e memorizar “os episódios específicos de sua vida (por exemplo, ‘aquela vez em que mamãe me pôs na cama, ela estava perturbada e cumpriu os rituais de ir dormir com a cabeça em outro lugar, e eu estava cansadíssimo, e ela não conseguiu fazer eu adormecer’) e os episódios generalizados (‘o que acontece quando minha mãe me faz adormecer’)”.37 A base da memória é por esse motivo tanto afetiva como perceptiva. Tudo indica que agora a neurobiologia esteja demonstrando essa tese. Se o leitor não tiver aversão à exposição de teorias científicas, encontrará mais adiante alguns apanhados esclarecedores sobre elas. Uma memória criativa
De que memória estamos falando? De uma memória bem singular, fiel e incorreta ao mesmo tempo: humana, humana demais. Por isso, existem alguns acontecimentos que não costumamos esquecer, como as mortes daqueles que nos são próximos. Os recém-nascidos tampouco esquecem. Mencionamos a criança que A. Piontelli atendeu e que procurava por toda parte seu irmão gêmeo morto in utero . Infelizmente encontrei muitos casos similares em Béclère, onde o número de gestações gemelares ou triplas é bem superior à média. Isso se explica pela particular qualificação do serviço do professor Frydman em matéria de reproduções medicalmente assistidas, que ainda geram muitos nascimentos múltiplos. Acrescente-se a isso a estruturação da rede hospitalar que faz dessa maternidade um pólo de referência capaz de acolher gestações de alto risco – geralmente gestações múltiplas – transferidas de outras maternidades. Entre os gêmeos que passaram por essa funesta aventura e que me foram indicados porque choravam demais, não comiam ou porque sua mãe estava deprimida, praticamente todos recuperam seu equilíbrio quando se fala com eles e com seus pais do luto a fazer do irmão ou da irmã
desaparecidos. Tanto isso é verdade que passou a ser motivo de prevenção sistemática nos casos dos nascimentos prematuros ou das separações em relação à mãe. Aliás, em casos espinhosos como esses as parteiras vêm espontaneamente e me dizem: “A Sra. X teve um filho cujo gêmeo morreu a um mês do termo. Ele chora sem parar. O que devemos fazer?” ou “Essa senhora tinha uma gravidez tripla, mas um dos três morreu”. Em geral, os pais informam espontaneamente o filho da dor que estão sofrendo. Contudo, às vezes um sintoma nos indica que talvez eles tenham necessidade de uma pequena ajuda. Essa ajuda consiste mais uma vez em falar com os recém-nascidos. Por que falar com eles? Porque, mais uma vez, é uma maneira de fazer a ponte entre as sensações dessas crianças que, como se sabe, viveram a morte de seu companheiro de gravidez, e o sofrimento, que é como o eco desesperado dessa vivência, depois do nascimento. O luto perinatal deve sempre ser levado em consideração. Na verdade, é como se esses recém-nascidos rememorassem o acontecimento em falso, mas não equivocadamente. Em falso porque seus sintomas podem parecer insensatos, sem limite «razoável». Mas de modo certeiro no sentido de que a dor pós-natal da qual provêm é plenamente motivada. Se tomarmos como exemplo o caso extremo dos recém-nascidos que não só recordam um luto, mas um luto que não é seu, compreender-se-á por que falamos de lembrar-se em falso, mas não equivocadamente. A dama de preto
Tratava-se de uma mulher que passara pela dor de perder sua irmã e depois, no transcurso de sua gravidez, a mãe. Chamemo-la de a dama de preto, pois no seu leito de puérpera ela ainda parecia estar envolvida na horrível mortalha. «Economia, economia!» Para ela como para Hamlet, “os assados das exéquias enfeitaram com carnes frias as mesas nupciais”. Essa mulher estava extremamente triste, mas ela tentava mostrar-se alegre para a filha. A relação que ela estabelecia entre a morte e esse nascimento consistia na sua desolação pelo fato de que sua mãe não pudesse ver a netinha Eva. Também a criança chorava, mas choros terríveis, guturais, insustentáveis. Eu, que gosto de ópera, escutava neles o grão de voz que faz de um grito uma dor encarnada. Ela chorava de sofrimento, embora não lhe faltasse nem sono nem alimento, nem cuidados nem consolo: era algo para além da falta e da necessidade. Falo de ópera porque seus choros eram públicos: ela praticamente fagocitara a reunião com as novas puérperas que organizamos naquele dia. Ela chorara sem cessar durante essa reunião, e as espectadoras, longe de ficarem irritadas, tinham sido ganhas pelo penar que essa criança salmodiava. Diz-se que os choros de um recém-nascido desencadeiam na mãe a descida do leite. 38 Mais adiante darei minha opinião sobre essa questão. Em todo caso, durante a entrevista que ela teve comigo, a dama de preto queixava-se de não ter leite, e via nisso o motivo dos choros de seu bebê. Na verdade, ele não estava realmente morto de fome, e é por isso que a equipe hesitava em lhe dar um substituto do leite materno com medo de bloquear a descida de leite. Ela tivera de fato uma descida de leite um pouco atrasada; mas daí a inferir que ela fazia sua filha morrer de fome, como ela pensava... O leite veio nas duas horas que se seguiram à nossa entrevista, o que, embora
correspondesse ao prazo esperado, leva a pensar que essa entrevista teve um efeito catártico. Por outro lado, quanto mais sensível ficava aos choros da filha, mais se sentia impotente. Achava-a inconsolável. Era ela que estava inconsolável. Como já disse, a mãe dessa mulher morrera enquanto ela estava grávida. Suas relações com ela sempre tinham sido difíceis, e se alguma vez houvera ternura materna nessa família, fora a da própria dama de preto, que cuidou da irmã como se fosse sua filha. No entanto, quando a gravidez foi confirmada, sua mãe se aproximara dela. Num momento de ternura como ela nunca conhecera, ela lhe afirmou sua certeza de que ela seria uma boa mãe. Ela a tinha apoiado, amparado, assistido, como nunca fizera antes. Como dizia a dama de preto: “Tinha por fim uma mãe!”. Era dessa nova mãe que a dama de preto levava o luto: essa mãe por fim encontrada, e logo perdida, que lhe dava confiança. Ao perdê-la, perdia também a segurança de poder ser uma “boa mãe”, e até de ter leite suficiente para alimentar sua filha. Ela imaginava que seu bebê estava pagando a conta. Acho que o bebê não pagava nada; ele contava os pontos. Registrara as mudanças «humorais» e o estresse da mãe quando do anúncio da morte da avó, memorizara-os, e também chorava essa morte, mas sem saber realmente por quê. Sua mãe estava tão tomada pelo luto, custava-lhe tanto dar vida, que não encontrara tempo para lhe falar. A criança chorava porque acreditava ser a causa da dor da mãe. Como se sentia incapaz da consolá-la, chorava ainda mais: era uma maneira de “ocupá-la”. Era esse círculo infernal que me cabia romper, dizendo ao bebê que era bem possível que se lembrasse da dor sentida pela mãe durante a gravidez, mas que ele não era responsável por isso; à mãe, que a morte de sua própria mãe não era um mau oráculo que faria dela uma mãe incapaz de criar a filha. Era pouco, era o suficiente: os choros da criança cessaram, e a descida de leite que se deu nas horas seguintes acabou por tranqüilizar a dama de preto e sua filha. Os mapas neuronais
Vão nos acusar de tomar o efeito por causa, de confundir um distúrbio emocional com a disfunção cerebral ou somática que o engendrou. É mesmo? Falemos então do cérebro e de sua memória. Primeiro ponto: nenhum ser humano tem o mesmo cérebro que o seu vizinho, nem que este fosse seu gêmeo. Portanto, não existe fatalidade genética absoluta na espécie. Por quê? Porque, como explica Rosenfield,39 a diferenciação das células durante o desenvolvimento embrionário não é a simples aplicação de um programa genético. Para que uma célula se torne um neurônio, uma célula hepática ou dérmica tudo depende também... da localização dessas células e de seu movimento durante a embriogênese. Corolário: não há um grande arquiteto gênico que tivesse desenhado o sistema de organização cerebral de antemão. O que existe são pedaços que ocupam um lugar, se mexem, se ajustam uns em função dos outros. Esses “pedaços” são grupos de células ligadas por um cimento que Edelman denomina CAM ( Cell Adhesion Molecules , moléculas de aderência celular). Por exemplo, N-CAM específicas dos neurônios que se agregarão a outras N-CAM cuidando de não se ligar indevidamente a CAM específicas de células do fígado ou da pele: a cada um seu território! São essas CAM que definem os limites de junção ou de separação dos diferentes conjuntos. Portanto, por um lado existe um background genético que garante a todos os cérebros humanos um ar familiar.
Construídas sobre esse background , as CAM, em função da topologia celular, de seu percurso e de seus acasos, são a garantia das variações individuais. E essas variações são em grande medida tributárias do contexto. Segundo ponto: o sistema de organização neuronal estabelece-se durante a embriogênese, somente o grau das conexões mudará depois do nascimento, em função dos estímulos externos. Essas variações desembocam, segundo Edelman e Rosenfield, em verdadeiros mapas neuronais, eles mesmos compostos de subgrupos neuronais tais como definidos acima. Terceiro ponto: no interior desse sistema, a memória não é, propriamente falando, um processo localizado. Por certo, as lembranças têm de ficar estocadas em algum lugar no cérebro, mas por que às vezes nos custa tanto reavivá-las? Será porque não conseguimos reencontrar suas áreas de estocagem? É mais provável que a memória possa ser considerada, desde os trabalhos de D. Marr, um processo inventivo. Ou seja, que, como mágicos, reinventamos nosso passado. Ou, para dizê-lo como Frederic Bartlett citado por Rosenfield: “A rememoração não é uma reativação de inúmeras marcas inanimadas e fragmentárias. É uma reconstrução ou construção imaginativa, baseada em nossa atitude perante uma globalidade ativa, composta de reações passadas ou de experiências, em relação a um pequeno detalhe que se destaca e que geralmente aparece sob forma de imagem ou através da linguagem. Por isso, só raramente a lembrança é fiel, mesmo na sua expressão mais elementar, em que o que é repetido foi aprendido de cor, e pouco importa que assim seja”. 40 O processo de memorização
Com pequenas diferenças de estilo, esses são os mesmos argumentos que defendíamos há pouco a propósito da repetição. Apenas raramente a lembrança é fiel... Para aqueles que duvidavam disso, tomaremos o exemplo do sonho, em relação ao qual ninguém contesta que ele recorre à lembrança mas que no mínimo ele a deforma. Já na segunda metade da gravidez, o feto sonha. Pode-se inclusive dizer que, para ele, memorizar é sonhar. Ele alimenta seus sonhos com as informações percebidas durante suas raras horas de vigília, e seus sonhos lhe servem de certa forma para interpretar esses dados sensoriais, e para conservá-los conforme lhe convenha. Para CyruInik, é isso que assinala o nascimento da vida psíquica intra-uterina. 41 Mas como ele armazena suas informações via sonho? Sabê-lo é ainda mais importante, haja vista que os neurofisiólogos apenas conseguem explicar por enquanto a memória a curto prazo, ou seja, aquela que se mantém entre alguns minutos e três dias. Ora, o sonho é um lugar em que as lembranças são «estabilizadas» de modo a poderem se manter a longo prazo. Tratamento mnemônico lento e rápido
Esquematizando, digamos que a hipótese atual mais audaciosa afirma que a informação a memorizar envereda por duas estradas principais. Ela passa por um primeiro circuito somatosensorial, que para atingir as áreas perceptivas primárias do cérebro (áreas visuais, auditivas...) atravessa a rotatória do tálamo, tálamo este que distribui os diversos dados perceptivos entre as áreas cerebrais capazes de tratá-los. É a estrada obrigatória no caminho da memorização. É tão
obrigatória, como a estrada que leva para as praias no começo do verão, que fica bastante congestionada: sozinha, representa cerca de 99% do trânsito das informações a memorizar. Apesar disso, todo mundo tenta andar rápido: o tempo de passagem de uma ponta à outra da cadeia, através das sinapses dos neurônios, é inferior a 300 ms. É o circuito do tratamento rápido da informação. Em paralelo, a informação toma um segundo circuito neurovegetativo, cujo eixo central é o hipotálamo, que coloca em correspondência o córtex pré-frontal (lugar da “consciência de ordem superior” de Edelman) com o sistema límbico (“sítio das emoções”). Esse eixo secundário é bem menos freqüentado, e nele os limites de velocidade são mais respeitados: ele representa apenas 1% do trânsito total, e a duração de viagem da informação é superior a 400, até 500 ms. É o circuito do tratamento lento da informação. Aí está o nó do problema. Pois esse segundo eixo, aparentemente menos importante, é decisivo. Imaginemos que estamos na estrada que leva para as praias e que estejamos sendo o tempo todo seguidos numa via secundária por uma viatura da polícia que nos obrigasse a frear sempre que ultrapassássemos a velocidade permitida. É o que acontece com esse circuito de tratamento lento da informação. Por uma modificação enzimática e não mais elétrica, ele controla a velocidade de circulação da informação, e pode dar ordem de mudar de rota e desacelerar. Em seguida ele desaparece, deixando a informação voltar para a estrada principal. Esse jogo de “pare ou siga” é regulado pelos neurônios moduladores monoaminérgicos (neurônios que liberam a dopamina, a serotonina ou a noradrenalina), dos quais se começou a falar a propósito da doença de Parkinson e cuja função moduladora é utilizada por vários produtos psicotrópicos. Esses neurônios estão encarregados de desacelerar a informação, ou melhor, de extrair informações oriundas do primeiro circuito para tratá-las de modo mais pausado. Como se nossos policiais nos convidassem a passar para a via deles de velocidade limitada o tempo necessário para... refletirmos. Recomendamos, para uma compreensão mais precisa e menos metafórica desses fenômenos, os artigos de Jean-Pol Tassin, neurofarmacólogo do Collège de France e autor de trabalhos sobre essa questão. 42 Deixemos a palavra do artista fazer eco ao discurso do cientista, a do romancista Pascal Quignard, nesse caso: “Verifica-se que a dificuldade que a função da memória oferece não é a do armazenamento do que se imprimiu na matéria do corpo. É a da escolha, do levantamento, da evocação e do retorno de um único elemento dentro do que foi armazenado em bloco. Esquecimento não é amnésia. O esquecimento é uma recusa do retorno do bloco do passado sobre a alma”. 43 Freud já o dissera: o artista precede sempre o cientista no desvelamento da psique. A memória do sonho
Uma boa ilustração do papel dos neuromoduladores é o sono. Ao adormecimento corresponde uma relativa inibição dos neuromoduladores, mas o sonho é, ao contrário, o momento em que eles são reativados de maneira intensa, embora breve. Já nos anos setenta os trabalhos de Jouvet sobre o sonho interessaram tanto a comunidade científica quanto o grande público. Jouvet mostrou a correlação entre uma fase de atividade elétrica do cérebro, que ele denominou “sono paradoxal”, e o sonho. Como as pessoas que ele despertava em pleno sono paradoxal contavam um sonho, ele concluiu que o sono paradoxal era o centro do sonho.
Depois disso avançou-se um pouco mais. Mostrou-se que existiam fases de microvigília durante o sono lento, ou seja, entre as diferentes fases de sono paradoxal. Esses períodos de microvigília correspondem ao momento em que os neuromoduladores são de repente terrivelmente ativados, eles que até então estavam em repouso. Toda informação era até então objeto de um tratamento rápido durante o sono, e subitamente os neuromoduladores fazem-na passar para o tratamento lento. Bruscamente, ao chegar à vigília e à consciência, o cérebro desacelera a informação e fabrica um sonho em 300 ms, mesmo que se precise de meia hora para relatá-lo. É esse sistema “lento” de dar coerência às informações que permite a organização do relato. Para dizer as coisas tal como elas são, afirmemos com J.-P Tassin: sonhamos porque somos despertados! Os tanques atratores da memória
Retomemos nosso percurso. O tratamento rápido da informação pode ser considerado analógico: ele consiste em selecionar elementos salientes análogos e em memorizá-los sob a forma d e tanques atratores . Esses tanques “atraem” para si todo novo elemento perceptivo similar aos elementos que constituem sua memória. Logo o comparam com seu estoque. Feita essa verificação, o elemento novo é identificado por extrapolação à forma global conhecida. Por isso, quando num piscar de olhos reconhecemos um rosto, é porque inconscientemente reparamos em três ou quatro elementos salientes no rosto. Depois, a partir desses poucos elementos, reconstituímos num lampejo o rosto. Da mesma maneira o lactente reconhece o rosto da mãe, esteja ele sorridente ou triste, crispado ou relaxado. Consegue também reconhecer o perfil de um rosto do qual só viu três quartos (experiência de Fagan citada por D. Stern). Esse tratamento é rápido, e é fonte de erros por esse motivo. Se nos apresentarem dois rostos que têm as mesmas características salientes embora sejam diferentes, é possível que os confundamos, a não ser que eles nos sejam muito familiares: ambos serão atraídos para o mesmo tanque e serão confundidos. Se nos apresentarem um tabuleiro de damas no qual uma das casas brancas foi pintada de preto, ainda assim “reconheceremos” o tabuleiro de damas sem que essa pequena diferença incomode. Ao contrário, o tratamento lento é um tratamento cognitivo, lógico. No exemplo do tabuleiro de damas, ele permitirá manter o tabuleiro na memória, para em seguida constatar, analisando cada um de seus elementos, que há um que ficou preto. Na opinião de J.-P Tassin, o tratamento rápido, ou pelo menos o equilíbrio incessantemente alterado entre tratamento rápido e tratamento lento, poderia ser comparado à base neurobiológica do que Freud denominou o inconsciente. Quem sabe?... A hipótese é corajosa, sobretudo vindo de um cientista de alto nível. Ele acrescenta que o feto e a criança anterior à linguagem têm acesso primordialmente ao tratamento rápido, sobretudo devido à imaturidade de seu córtex pré-frontal; o tratamento lento só aparece mais tarde, paralelamente ao desenvolvimento cognitivo. Seria no entanto possível pensar que ao falar com os bebês no contexto do pós-parto estaríamos lhes entregando um tratamento lento “já pronto”, visto que sozinhos eles não podem fabricá-lo? É a hipótese proposta por Tassin para explicar as constatações da clínica. Nada em suas teses parece se opor à nossa afirmação de que o recém-nascido pode tratar de forma analógica uma informação de tipo cognitivo que se lhe dê, e estar mais tarde habilitado para dar-lhe um novo tratamento, dessa vez cognitivo. Confiamos na sagacidade dos cientistas para verificar experimentalmente a veracidade dessa tese.
Extrair e desacelerar a informação
O problema continua sendo o da pertinência dos termos: que é memorizar? Para J.-P Tassin, é extrair a informação de seu tratamento rápido para desacelerá-la. O que é que decide extrair ? Ele não sabe. Mas ele afirma que desacelerar a informação não permite armazená-la. Cada vez que se tem acesso a algo, poder-se-á analisá-lo, mas em seguida será necessário voltar a armazená-lo sob forma analógica. O tratamento cognitivo vai assim modificar seu próprio estoque analógico, e favorecer a emergência de novos tanques atratores. Nesse momento haverá portanto, paradoxalmente, acontecimentos ao mesmo tempo “rápidos” e “lentos”, elementos cognitivos no estoque analógico. Essas informações que passaram por um tratamento cognitivo e foram novamente armazenadas como analógicas constituem para J.-P Tassin o inconsciente psicanalítico: teoricamente, pode-se ter acesso a elas e reativá-las, a não ser que certos elementos dolorosos, ou agradáveis demais, a elas se incorporarem. Nesse caso há recalcamento ou negação. Recalcamento aliás necessário, pois sem recalcamento cai-se no inferno da hipermnesia. Como aquele paciente descrito por Luria, que não conseguia esquecer estritamente nada do que vivia: atado às lembranças auditivas e visuais de seus primeiros anos, era totalmente incapaz de viver o presente, a fortiori de imaginar projetos de futuro. A amnésia infantil
Parece extremamente difícil rememorar lembranças da primeira infância. Todos sofrem desse fenômeno tão mal explicado da amnésia infantil. Algumas pessoas que fizeram uma psicanálise afirmam ter reencontrado lembranças chaves de seus dois primeiros anos. Outras pessoas, que voltaram do coma e da “morte”, dizem ter visto desfilar as imagens dessa época. Os neurofisiólogos retrucam que no melhor dos casos trata-se de lembranças encobridoras, e no pior, de construções imaginárias. J.-P Tassin o diz à sua maneira: não é possível reativar conscientemente, ou seja, em tratamento lento/cognitivo, sistemas precoces que só foram tratados de forma rápida/analógica, porque os elementos salientes retidos para a discriminação mnemônica eram demasiado primários. Conseqüentemente, um recém-nascido que só trabalha de modo analógico não poderia «desacelerar» seu modo de tratamento no sentido de que ele não é capaz de comunicá-lo. Em outras palavras, ele não sabe falar, e não é útil falar-lhe. O círculo se fecha. A partir daí, como interpretar nem que sejam os choros da filha da dama de preto? Como explicar a hipermnesia descrita por Luria? Como compreender a segurança de A. Piontelli que afirma em suas observações que as emoções pré-natais recalcadas nem por isso deixam de ter efeitos para além da amnésia infantil? Como já dissemos, A. Piontelli completou suas investigações pré-natais feitas através de ecografias com entrevistas com as mesmas crianças nos cinco anos posteriores ao seu nascimento. Tudo lhe prova que as crianças entre dois e quatro anos reproduzem seu passado pré-natal por meio de seus jogos. É fácil admitir que o filhote humano é um animal social, seus jogos o demonstram. Como diz D. Stern, o outro é para o lactente um “outro regulador de si”, é através dele que a criança constrói sua subjetividade. Mas, ao reencenarem seu passado pré-natal nos jogos, as crianças de que A. Piontelli fala procuram dar-lhe um sentido e exprimir as emoções a ele ligadas. Não repetem
simplesmente esse passado, elaboram-no. Ela menciona o desenho que Fabrizio fez de um travesseiro que tinha uma boca e dois olhos, e que ele comentou assim: “Os travesseiros são uma coisa que se mexe. Nunca tive paz nem mesmo à noite”. A alusão era transparente para quem «conhecia» sua vida intra-uterina, pois acontece que ele tinha compartilhado com seu irmão gêmeo Giorgio a mesma bolsa amniótica. Essa singularidade tivera por conseqüência que ele de fato tivera como travesseiro um irmão com uma boca e dois olhos, e que esse travesseiro se mexia sem parar. Por volta dos 4 anos e meio sobrevém a amnésia infantil. Ao que parece, nessa época as brincadeiras ou as histórias dessas crianças ainda refletem as experiências pré-natais, mas de forma indireta, sem que tenham em momento algum consciência disso. Conformam geralmente mitos em que se misturam as lembranças pré-natais, reduzidas a lapsos ou atos falhos, e as projeções de sua vida atual. Assim era com Marisa e Beatrice, essas gêmeas que tinham o costume, antes e depois do nascimento, de bater uma na outra. Depois dos seus cinco anos, a lembrança de seu combate ancestral só passava sob a forma de desenhos; e ainda, sem qualquer aparência de contato. Uma representava sua casa registrando escrupulosamente nela os nomes de todos os membros de sua família, com exceção, é claro, do da irmã gêmea. A outra desenhava uma casa onde estava escrito “sai da minha casa!”, e uma outra casa que ela dizia ser a sua, esclarecendo que ela só podia conter uma criança.
A fortiori, concluía Piontelli, as lembranças precoces quando não pré-natais reencontradas por adultos em análise decorrem antes da reconstrução do que da realidade histórica. Por amor ao rigor, ela depositava sua esperança no refinamento das técnicas ecográficas para reconstituir essas lembranças. Não iremos até o ponto de compartilhar essa esperança e ficaremos com seus esclarecimentos clínicos sobre o fato de que, se existe trauma pré-natal, ele permanece inconsciente. Se existe no recém-nascido uma memória não dita, analógica se quisermos, é preciso que ela possa ser dita: pelos pais e avós ou pelos amigos, se possível; pelo psicanalista, se essa fala estiver interdita. O papel de um psicanalista que trabalha com recém-nascidos é nomear essa memória, caso ela não o tenha sido, é colocar palavras ali onde só há um sentido não dito, um «buraco de linguagem». As palavras ditas à criança, ou a interpretação feita à criança dos conteúdos inconscientes de seus pais que entravam seu desenvolvimento, justificam-se pelo fato de que liberam algo que permanecia estagnado no sintoma pós-natal. Todos sofremos de falta de palavras. Quando elas vêm a faltar, é na história que se pode encontrá-las. A história precisa ser dita a alguém, de preferência por seus protagonistas. Antes mesmo de pensar em falar com os bebês num contexto psicanalítico, é preciso organizar um espaço para que essa história possa ser dita a um outro, no caso o ou a psicanalista. Nesse sentido, a interpretação nem sempre é necessária: a simples presença do psicanalista pode às vezes bastar para permitir que no lugar dos buracos de linguagem surjam palavras, por parte da mãe, por exemplo. Mas isso só será possível por meio de um dispositivo que garanta essa possibilidade: as sessões psicanalíticas.
Um protocolo psicanalítico
Certo dia um parteiro – pois efetivamente tínhamos em Béclère um homem que desempenhava essa função, 44e era dos mais competentes – manda-me chamar durante um parto. O trabalho já durava tanto tempo que ele achava que um bloqueio psíquico impedia a mãe de dar à luz. Naquele momento eu estava ocupada e só cheguei no momento da expulsão, que parecia difícil. Depois dos cumprimentos habituais, dirigi-me imediatamente à parturiente: “Bom dia, venho ajudá-la a acolher da melhor maneira possível seu bebê”. Ela me olhou com olhos bem abertos e... pariu no mesmo instante! Diz-se que certas candidatas à gravidez que padecem de esterilidade podem engravidar no mesmo dia em que conhecem o chefe do serviço. Essa história é inclusive objeto de piada em nosso meio. Mas assim mesmo, uma virada tão súbita da situação! Não sou nem homem nem chefe e eu nunca tinha visto aquele casal mais gordo, seria o caso de dizer. No entanto, o obstetra confirmou que toda a dinâmica do parto mudara desde o momento em que entrei na sala. A parturiente forneceu o motivo dessa mudança: “A senhora me estomagou! A senhora não sabia nada dessa história e chegou assim, como uma mosca na sopa, para cuidar de um bebê que nem tinha saído ainda!”. Considero sua fala uma interpretação literal do que aconteceu. Pois, se algo minha chegada e minha curta frase desencadeou, foi a possibilidade de também ela sair de seu regaço. Eu estava de fora do assunto, e permiti que ela viesse parir do meu lado, se assim posso dizer, isto é, que pudesse se subtrair desse círculo interior que a unia a seu filho. Dessa forma, «visto de fora», seu filho podia aparecer-lhe como um ser diferente dela, e ela então podia deixá-lo pôr o nariz para fora. Vê-se aí que não basta vigiar a tela do monitor para prever a iminência do parto, também é preciso recorrer a limites e referências, e demarcar a função de cada um: ao bebê cabe entrar na vida, à mãe, sair da gravidez! O enquadro
Na maternidade como na cidade, nem todo o mundo tem de recorrer à psicanálise. Não que os psicanalistas não possam enfrentar a exposição dos sofrimentos de seus contemporâneos, mas só podem responder àqueles que o peçam. Regra arbitrária, dirão alguns? Regra arbitrária de fato, mas salutar e pensada. Um terapeuta tem sempre o direito, se tiver a força física, de se tomar por um “SOS-saúde psíquica” e de correr em socorro de todos os acamados. No entanto, brincar de bom samaritano quando as famílias nada pedem incorre no risco de produzir o efeito inverso. Com efeito, situar o lugar do desejo inconsciente que rege um sujeito é algo que só pode ser feito em função da demanda e de seus efeitos: é o bê-á-bá do trabalho do psicanalista. Às vezes, chego a ler o prontuário médico de um recém-nascido como o faria na qualidade de psiquiatra ou psicóloga; no entanto, evito fazê-lo sempre que possível. Não se trata de inconsciência profissional, mas de não submeter a escuta «neutra e benevolente» que devo ter de um paciente aos dados obtidos previamente de um dossiê. Em 99% dos casos, os elementos que figuram no prontuário encontram-se no relato feito pelo pessoal paramédico. Há uma grande diferença entre escutar dizer e ler num prontuário, pois no primeiro caso já se trata de uma palavra viva, carregada de todos os
efeitos que a demanda do paciente produziu na pessoa que sobre ela me fala. O caso dos recém-nascidos é um tanto particular. Eles estão sob tutela e sua demanda passa pelo reconhecimento que seus pais fizerem ou não dela. Se eles se recusam a comunicar o sofrimento de seus filhos, não posso intervir. Essa demanda talvez venha a se repetir, em outros lugares e num outro tempo, e conseguirá então ser entendida: não se deve fechar a porta para essa eventualidade impondo-se durante o pós-parto. Para aqueles que considerarem esse raciocínio “cruel”, tentarei responder como o faço para os membros da equipe que ficam aborrecidos se não intervenho quando eles encontram um caso que consideram alarmante, mas em que os pais nada pedem: é preciso aceitar não poder interferir na vida das pessoas nem em seus dramas. Imiscuir-se sem seu consentimento seria pior que a indiferença. Seria uma falta de respeito, irresponsável e de qualquer forma votada ao fracasso, pois consiste em não levar em conta desde o princípio o que motiva o sofrimento dos sujeitos: o desejo inconsciente. A lista dos que “fazem isso para o seu bem”, “que só querem o seu bem”, é negra demais para que um psicanalista aceite nela se inscrever. Esta é uma das particularidades de sua prática. Em suma, é a demanda dos pais, apoiada pelos membros da equipe, que me colocará em posição de psicanalista. Uma vez que meu ofício é dar lugar à palavra sofredora, é só a ela que devo responder, sejam quais forem as necessidades reais ou imaginárias do serviço. Portanto, essas intervenções precisam de um limite. Um limite semelhante a essa linha que foi traçada entre as duas salas da Maison Verte ,45 linha esta que as crianças estavam proibidas de cruzar de bicicleta ou carrinhos com pedais. A linha de separação em questão destinava-se a proteger os menores do barulho e de encontrões. Mas, enfim, por que traçá-la num lugar e não em outro? Ninguém sabia mais: o regulamento era igualmente idiota e inexorável, conforme palavras da própria F. Dolto. Na sua arbitrariedade, esse limite tinha no entanto uma função de humanização de primeira importância para essas crianças. Primeiro, enunciar-lhes a regra e permitir que a discutissem permitia... que a compreendessem. Óbvio? Nem tanto. Para uma criança que nem mesmo imagina que quando sobe num triciclo é ela quem dirige – fica perplexa quando lhe dizem que ela ultrapassou a linha porque seus pés a levaram até lá –, compreender é uma revelação; este diálogo de F. Dolto com um pequenino, extraído de um vídeo inédito, ilustra isso: – “Essa linha é porque do outro lado os bebês estão no chão engatinhando... Se seu papai vier com sua moto ou seu carro, ele também não terá o direito de ir para a outra sala. – Terá sim, se o papai vier, ele virá com seu carro e passará para lá. – Ah, você acha? Eu não acho. Fale disso com ele hoje à noite”. – “E no dia seguinte: “– E aí, você falou com ele sobre aquilo? – Ele disse que não vai vir de carro. Mas a mamãe disse que em casa eu podia ir para a sala de antar com meu triciclo. – Na sua casa é diferente. Aqui é a Maison Verte , e aqui não pode. Isso vale para você, mas também vale para mim, para sua mamãe e para todas as pessoas que vêm aqui.
– ...” A humanização da criança, nesse caso, é também o prazer de brincar com a regra, de fingir transgredi-la e de morrer de rir quando percebe que ela foi entendida, dar marcha a ré porque, em última instância, o que mais conta para ela é a Maison Verte e o fato de gostar de ficar lá. Em suma, desde que ela seja assistida nesse jogo, que se preste atenção à sua pessoa, o prazer da transgressão transforma-se em cumplicidade. É com o mesmo espírito que desde o começo estabeleci um limite para o meu trabalho em Béclère. Pois “com o limite, diz Denis Vasse, ninguém reprime, ninguém se protege, ninguém mete medo. Com o limite, fala-se”. 46 É esse o objetivo do protocolo geral da demanda que instituí: ele foi elaborado para que se possa falar, não apenas para cuidar. Cuidar, na minha posição, seria julgar-me responsável pelo comportamento dessas mães e desses bebês, e gratificá-los com meus bons conselhos ou minhas prescrições, em detrimento dessa história que eles poderiam contar. Pode ser útil em caso de urgência, mas geralmente há coisa melhor para fazer. Khader e o mau olhado
Tumulto no primeiro andar da maternidade: uma voz de homem que vocifera, que grita e que esbraveja não é algo comum nesses lugares. A voz é forte e sonora, todo o andar está ao par. O marido da paciente da quarto 32 está ali faz uns quinze minutos pondo todo o mundo em sobressalto. Chama a mulher de todos os nomes; o bebê está aterrorizado, berra e chora copiosamente, o que é pouco comum aos quatro dias de vida. Além do mais, o pai sai do quarto e admoesta todos os passantes: parteiras, puericultoras, médicos, jovens mães. É preciso a intervenção de um enfermeiro para que as coisas se normalizem. Dá-se um jeito de acalmar o pai, o bebê é tranqüilizado com palavras doces, a mãe é reconfortada. A vida retoma seu curso tranqüilo naquele andar, mas o quarto 32 tremeu. No dia seguinte, uma das parteiras relata-me as emoções da véspera e me propõe ver o bebê, para quem, diz ela, isso faria bem; a mãe está de acordo. Vou portanto para o quarto 32. “– Bom dia, chamo-me Myriam Szejer, disseram-me que a senhora pediu para me ver a propósito de seu filho? Que acontece? – Sabe, ele chora o tempo todo. Está doente: teve icterícia, e desde hoje de manhã está com conjuntivite. Comigo é diferente, choro porque estou cansada. – Como se chama seu filho? – Ele se chama Khader. Na verdade não, ele se chama Azzedine, mas os pais de meu marido acham melhor para um bom muçulmano chamar-se Khader. – Eles são religiosos? – São, sobretudo minha sogra. Dão muita importância a esses detalhes, eles não brincam com a tradição. No meu país de origem é assim, é a família do marido que decide; e é melhor não contrariálos. No entanto, prefiro Azzedine como nome.
– Foi sempre assim com eles? – Foi, aliás eles não gostam de mim, nem da minha família. Dizem que meu irmão e meu pai são gente que não vale nada, que não saberei criar meus filhos como uma boa muçulmana... – E seu marido? – Eu adoro ele. Ele também, como está desempregado, o pai dele diz que ele não vale nada e que tem de escutá-lo e fazer o que ele manda. Mas não é verdade. Meu sogro é tradicional. Quanto à minha sogra, ela é muito possessiva: meu marido é seu único filho, a senhora pode imaginar... Acabei me enchendo, e saí da casa dos meus sogros. Meu marido estava de acordo. Agora, tenho medo de que eles peguem Khader para educá-lo na tradição do país. Mas meu marido e eu não queremos, queremos ficar com ele.” Khader parece dormir. Dirijo-me a ele para lhe falar de seus nomes e do problema familiar e cultural, se não político, que ele representa. Khader se agita. Falo-lhe então da cena da véspera: “Acho que ontem você ficou agitado e com muito medo quando seu pai gritou... – Não, não, meu filho não ficou com medo, mesmo que meu marido tenha gritado um pouco alto. Um bebê não tem medo”. Ao escutar essas palavras, Khader tem um espasmo violento e enrijece seus quatro membros. Acaba relaxando e adormece de novo. Registro a simultaneidade de ambos os fenômenos, e prossigo com a mãe: “– Que aconteceu ontem? – Pois bem, meu marido veio, mas trouxe dois amigos, apesar de saber que durante o primeiro mês não se pode mostrar um recém-nascido a estranhos, porque isso atrai mau olhado sobre ele. No meu país cobrimos os bebês com um lençol quando saímos, porque caso contrário corre-se o risco de lhe trazer desgraças. Então eu fiquei zangada, disse ao meu marido que ele devia ter me avisado e que eu teria escondido a criança dos seus amigos. Foi a vez dele de se zangar, e aí a coisa degringolou”. Penso imediatamente na conjuntivite que só afeta o olho direito de Khader, e dirijo-me a ele: “– Khader, você não precisa carregar o mau olhado no seu corpo. Você nasceu na França, como seus pais desejaram. E, aqui, visitar um recém-nascido é uma honra para ele, e não uma desgraça. Seu pai e sua mãe respeitam as tradições da família, mas acham normal praticar os mesmos costumes das pessoas daqui. Como seus pais, você também pode se submeter às mesmas regras sem se sentir obrigado a ficar doente. – A senhora tem razão, mas tem outra coisa: Khader dorme o tempo todo e nunca pede para comer. Não entendo por quê”. Khader não deixou a mãe terminar a frase. Pôs-se a se mexer nesse preciso instante, acordou e começou a mamar no seio da mãe. “– Veja, ele ainda sabe pedir o que precisa... – Ainda bem que eu me enganei...
– Seja como for, ele entendeu o que a senhora disse!”. Terminei a entrevista nesse momento, e saí um tanto atônita com essa história de olho que chora e de mau olhado. Era uma questão de crença, de superstição ou de tradição? Eu estivera certa em ligar o sintoma da conjuntivite de Khader ao do mau olhado que assustava a mãe? Eu devia tê-lo dito à criança diante da mãe, que só via no marido o elo de uma família persecutória? Afinal de contas, não compartilho de suas tradições; quem era eu para me meter nesse assunto? Fui embora de Béclère não muito tranqüila naquele dia, um pouco acossada por minhas próprias lembranças desses jogos de criança em que se lançavam “de brincadeira” maldições entre companheiros de infortúnio. Por sorte, a pediatra, de mesma origem que eles, pôde conversar longamente sobre esse assunto com a mãe. Ela conhece bem o meio cultural dos pais de Khader, e dizem que a conversa foi bastante calorosa. De volta ao serviço dois dias mais tarde, fui vê-lo de novo. Tinham me dito que Khader estava melhor e que sua mãe mudara de tom. “É incrível, doutora, Khader não tem mais problemas nos olhos. Não chora mais, está com os olhos secos, e não grita mais. É incrível!” A mãe acaricia Khader e lhe fala no ouvido durante alguns minutos. “– Falei com a pediatra, ela disse que tudo está em ordem novamente. Conversamos um pouco, ela é muito gentil. – Ela tranqüilizou a senhora? – Sim, ela me contou como foi para ela quando teve seu primeiro filho na França, como era difícil explicar à família que seu marido cuidava dele... – Um pouco como para a senhora, não é? – Sim, mas vamos dar um jeito. Meu marido está construindo um trocador para Khader, mostrou-me o desenho, inclusive me explicou que ao montá-lo era preciso prestar atenção em... em não sei mais o quê, não entendi nada, mas foi engraçado. Os pais dele, bem, são os pais dele. Mas ele me ajuda muito. Quando voltar para casa, vou arrumar tudo porque conheço ele, a casa não deve estar nenhum brilho. Enquanto eu estiver fazendo isso, ele cuidará de Khader. E, depois, a gente faz a festa.” Tudo voltava de fato a uma certa ordem. Khader não chorava mais e comia. Sua mãe não estava mais inquieta e dava um novo lugar para o marido; ela tinha encontrado alguém digno de falar com ela sobre o país e as dificuldades da expatriação; ela se sentia pronta para proteger o filho como ela mesma conseguira se proteger até então. Seu pai afainava-se. E eu esquecia meus medos de criança na brincadeira de lançar maldições! Ou seja, o importante era voltar a pôr em circulação a palavra, aquela mesma que surgia como uma erupção da garganta do pai, e que se toldava no olho do filho. Esse recolocar em circulação da palavra possibilitava uma redistribuição dos papéis: “você é o pai e você não é apenas o representante e a vítima de sua família”; “você é a mãe e cabe a você proteger seu filho”; “você é o filho de seus pais, e os temores deles não devem impedi-lo... de ver com clareza!”.
A demanda
Para que tais palavras surjam é preciso um protocolo que permita que elas sejam realmente entendidas, e não apenas lançadas com estardalhaço nos corredores ou anotadas num prontuário médico. É preciso uma qualidade de escuta que possibilite um diagnóstico por parte dos membros da equipe, acrescida ao enquadro de uma sessão psicanalítica que possibilite escuta e interpretação, e além disso é preciso levar em consideração o contexto, nesse caso, cultural. A clarividência das parteiras, o ofício das puericultoras, o talento dos pediatras, a interpretação do psicanalista: nada disso é suficiente para garanti-lo. É da colaboração que um efeito realmente sanativo pode surgir. Também para regrar essa colaboração é preciso que os papéis estejam claros. O protocolo funciona como um monitor ou um roteiro que se consulta no estúdio de televisão para não se perder; mais que um apontador, portanto – não se aponta um texto para uma pessoa que sofre e que é a única a ter a memória dele –, o protocolo é um registro, uma partitura que faz lembrar quem é quem e em que momento da ação os atores se encontram. Disse que tive de batalhar para conseguir que esse protocolo fosse aceito. É lógico. Minha idéia era transpor minha prática de psicanalista em consultório para o hospital, inspirando-me no trabalho imaginado por F. Dolto com o abrigo provisório de Antony. Era algo novo em Béclère, ninguém tinha motivos para compreender a priori a necessidade desse protocolo, e eu tive de explicar. As reuniões preliminares com cada categoria de profissionais foram a ocasião para falar a respeito. Com os debates, construímos algo, pois tudo aquilo era inédito. Até então, como todos os psicanalistas, eu recebia, na cidade ou no CMP, demandas de pessoas que tinham condições de formulá-las, e que faziam o esforço de separar uma parte de seu orçamento para seu tratamento. Que essas demandas sejam ou não passíveis de ser recebidas, que as pessoas tenham ou não tenham tido a oportunidade de descobrir o desejo inconsciente que as mascarava, é uma outra história. Mas elas era os autores dessa demanda que me faziam. No CMP e no meu consultório, recebia também crianças colocadas em família de acolhimento encaminhadas pela Assistência Social à Infância. É claro que nesses casos a responsabilidade, para melhor dizer, a tutela em causa era da instituição, e não mais do demandante. Mas, no hospital, não se tratava mais nem de tratamento psicanalítico particular nem de consulta no CMP, mas de uma consulta psicanalítica dentro da instituição. Para estruturar um enquadro em que a fala pudesse ser entendida de modo analítico, enfrentava agora um duplo problema: por um lado, quem era demandante na maternidade? E quem, no serviço, podia servir de mediador para esses sujeitos demandantes, como a ASE servia de intermediária para as crianças colocadas em família de acolhimento? Qual demanda devo escutar, ou, se preferirem, quem devo ir ver? O bebê, ou a mãe e o pai? Digo: os três, pelo menos a mãe e o filho, se o pai não estiver lá. Não posso dirigir-me a um sem falar com o outro, não posso entender um sem escutar o outro. Minha resposta não é sibilina, como poderia parecer, quero simplesmente dizer que as coisas estão intricadas de maneira muito íntima nesse espaço da perinatalidade e do pós-parto. O lugar do sintoma é tripartite, como vimos na história de Khader. O pai grita, é o sinal de alarme; o menininho tem uma conjuntivite, é o sintoma, estritamente falando; a mãe está totalmente metida num conflito familiar e cultural, é o nó do problema. O lugar do sintoma pode ser a criança, a
mãe, o pai, ou os três ao mesmo tempo. Quando me é feita uma indicação, tudo se passa na intimidade dos três. Falei diretamente com Khader e isso teve por efeito fazer desaparecer seu sintoma, mas também mudar a posição da mãe em relação ao seu marido e ao seu filho. No caso de Karina, primeiro falei com a mãe, permitindo que ela se identificasse com a própria mãe e se tornasse mãe por sua vez, fazendo cair o interdito. Terá sido o efeito dessa fala sobre a mãe que permitiu que a criança mamasse, ou foram as palavras dirigidas à criança e escutadas pela mãe? Não posso nem quero responder a essa questão, como insistem que eu faça. Há, no entanto, uma exceção a essa indeterminação, é o parto em segredo. Aí, só importam as palavras ditas à criança, ainda que essas palavras sejam as da mãe: seja porque ela as diga diretamente, seja porque, recusando-se a ver a criança, ela me peça para transmiti-las. Considero que o sintoma funciona na tríade pai-mãe-filho. Às vezes ele afeta a integridade do corpo do filho, mas pode igualmente se expressar pelos choros de uma mãe, por um pai que quebra a perna ou que tem uma crise nervosa. A criança também pode ser mencionada como uma criança que não come, que chora etc. “Psicanalista para os bebês”
Claro, sou a “psicanalista para os bebês”, é assim que às vezes me apresentam para as mães. Mas, como insisti em mostrar, trabalho com os recém-nascidos tendo em mente o continuum afetivo e sensorial no qual eles se encontram ao nascer. Dito isso, os profissionais me atribuem vários rótulos quando falam de minha existência para as mães. Essas denominações são mais ou menos ustificadas, conforme sejam empregadas por funcionários novos ou por membros da equipe que me conhecem bem. Ora sou “a psiquiatra”, ora “a psicóloga”, ou então “alguém que se chama Myriam que poderia ajudá-la”, “a pedopsi”... Eles têm certa resistência a simplesmente falar de “psicanalista”, porque na cabeça deles isso teria uma conotação de tratamento de longa duração ou de loucura confirmada (“a gente não vai dizer para elas que elas ou o bebê delas estão loucos!”). Porém, as mães ficam no máximo uma semana na maternidade, eu só vou duas vezes por semana a Béclère. Podem acontecer no máximo uma, duas ou três sessões. Não digo que a mãe e a criança sempre saiam de nossas entrevistas com o coração leve, mas de uma a três sessões muitas vezes é o suficiente para que todos saiam de algo que comprometia o futuro desde o nascimento. Qualquer um tem a liberdade de em seguida fazer uma psicanálise, caso na maternidade se revelem problemas estruturais muito comprometedores. Costumo encaminhar os pais que me fazem esse pedido para um dos analistas em quem confio. O importante, na verdade, é que sua demanda possa se reformular num outro âmbito, fora da maternidade. A equipe mediadora da palavra
Quem pode preencher essa função de mediação entre o demandante e o psicanalista, como as tutelas institucionais fazem no âmbito das consultas de crianças? As parteiras, as puericultoras, os pediatras, as enfermeiras, as assistentes sociais, os obstetras ou ginecologistas, ou seja, todos aqueles que estão em contato permanente com os bebês. São eles que “indicam”, que sentem, que verificam a pulsação dos internados para saber se “está tudo bem” ou se é preciso dizer aos pais que posso ajudar o bebê deles que sofre, e que me transmitem o desiderato desses pais. São eles os
guardiães do protocolo. As sondas vivas
Diferentemente dos guardiães das portas da lei do Processo de Kafka, eles estão lá para facilitar o acesso à palavra. Quando eles me interpelam para me dizer que a Sra. Fulana concorda em me ver, vou ver a Sra. Fulana. Quando, coisa rara, eles me dizem que a senhora do quarto 8 precisaria, na opinião deles, de meus serviços, mas que ela não quer me ver, eu não vou. O mesmo ocorre quando alguém de fora me indica um bebê ou uma mãe, mas nenhum membro da equipe considerou conveniente fazê-lo: só me desloco depois de ter tomado a precaução de mandar perguntar à mãe se ela deseja me encontrar. Eles e eu estamos ligados, não há nenhuma hierarquia que interfira nessa troca entre nós. Eles o sabem e, se nessa troca a necessidade é a lei, a confiança que existe entre nós é a condição de nossa colaboração. É claro que esse eixo essencial de meu trabalho não funcionou desde o primeiro dia como se fosse natural. Tive de sensibilizar as pessoas para o que eu tinha vontade de fazer. Meu discurso era novo para elas, às vezes incômodo, porque havia quem pudesse imaginar que teria de “brincar de psi” além de sua carga de trabalho cotidiana. Mas a fineza de seus critérios me impressionou. Tinha medo, no começo, de que eles me encaminhassem mães que não precisassem de fato, ou que o fizessem a contragosto, ou, pior ainda, que não encaminhassem ninguém. Por isso, instituí inicialmente duas etapas de encaminhamento: eles me falavam dos bebês que achavam que eu devia ver, e eu arbitrava para dizer se era da minha alçada ou não; somente depois disso, eles propunham às mães minha visita. Logo eliminamos uma etapa, pois eles avaliavam as necessidades com muita habilidade. Compreenderam suficientemente o que me dizia respeito para se autorizarem a perguntar diretamente às pessoas se elas queriam me ver. Chego de manhã, dizem-me que fulano ou fulana me espera, e eu vou. Excepcionalmente ocorre de me indicarem alguém para quem isso era claramente desnecessário; nesse caso, tenho por princípio ir, a fim de respeitar a demanda das mães que pediram para me ver. Existe também o problema da rotatividade do pessoal: periodicamente é preciso reexplicar o sentido desse trabalho; discussões pessoais, conversas de corredor com os “antigos” ou alguns textos em geral são suficientes para integrar os “novos” à nossa equipe. As parteiras preferem em geral trabalhar na sala de parto a trabalhar no acompanhamento das puérperas, pela emoção que isso traz, pelo espírito de responsabilidade, quando não pelo lado “esportivo” que isso suscita. A alegria de pôr no mundo uma criança de fato não tem equivalente, e a riqueza de emoções que isso suscita nunca se esgota. No entanto, muitas das que fizeram esse protocolo funcionar junto comigo declararam que elas encontravam um prazer diferente nesse novo trabalho com as puérperas. Suas intervenções têm um não-sei-quê de humano que torna seu trabalho mais leve e mais interessante. Da humanidade e da eficiência de que elas dão prova dependem a minha eficiência e o bem-estar dos recém-nascidos. Nesse sentido, elas (e eles, pois também temos alguns profissionais de sexo masculino) são verdadeiras sondas vivas trabalhando junto dos pacientes, como diz Lucien Kokh. A inteligência do contexto
Essa função de mediação exige o talento e a sensibilidade de cada um. Ela só funciona graças à inteligência que as pessoas da equipe têm do contexto. Pois, para fazer uma triagem entre o que é sofrimento anormal e o que é depressão passageira devido à fadiga, é preciso mais do que “faro”. É preciso compreender, como eles o fazem, que o desamparo do baby blues é estruturante, porque permite a instalação da relação mãe-filho: que é preciso, portanto, respeitá-lo e escutá-lo se ele pede para sê-lo. Eles sabem discernir o baby blues anódino das situações em que a coisa “complica” para o lado do recém-nascido ou dos pais. Eles também sabem, como disse acima, que existem casos em que não irei intervir sob nenhum pretexto, por exemplo quando a mãe rejeita minha intervenção. Que quer dizer o fato de que ela rejeite? Certamente não significa que lhe tenham explicado mal o sentido de minha intervenção, pois os membros da equipe estão muito seguros a esse respeito. Os pais têm sempre bons motivos para não quererem me ver depois de isso lhes ter sido proposto: seja porque simplesmente não seja esse o momento, seja porque querem inconscientemente que o bebê fique no lugar do sintoma. Cabe então aos pediatras intervir para aliviar a criança; cabe a mim aliviar a equipe e fazê-los entender que sua demanda não é necessariamente a do paciente. Tudo isso exige muita constância e tenacidade por parte de todos, considerando-se as resistências que se pode provocar. Pode acontecer, por exemplo, que um médico de um serviço vizinho, que não está ciente dessas práticas, se diga consternado: ele pediu para eu ir ver uma parturiente, e eu recuso porque a paciente não o deseja. Dá para imaginar os qüiproquós. Além disso, num caso como esse, é melhor não ver a paciente em questão, para que ela não tenha de padecer conflitos de competência e de poder com os quais ela não tem nada a ver. A mais simpática das resistências, porque é a mais inteligente, é a que se desfaz pelo humor. Foi o que aconteceu com aquele obstetra que, cruzando comigo um dia no serviço, pediu para eu ir ver uma de suas pacientes de 50 anos. Foi evasivo quanto aos motivos desse pedido, explicando que essa mulher beneficiara de uma inseminação in vitro na Inglaterra e voltara para dar à luz aqui. Tudo transcorrera perfeitamente, ela estava radiante e relaxada e a criança estava bem. Isso ocorreu na época das primeiras intervenções na mídia do Dr. Antinori – «como, esse médico inescrupuloso que faz avós terem filhos!» -, e esse tipo de parto cheirava a enxofre. Meu colega se fazia um monte de perguntas sobre essas parturientes de um novo tipo, e sem dúvida propunha-se a esclarecê-las pedindo para eu ver sua paciente “a título iconográfico”. Esse colega é unanimemente respeitado no hospital AntoineBéclère por sua competência e seu gosto pela pesquisa, e eu também o tenho em alta estima. No entanto, recusei educadamente ir ver sua paciente, argumentando que seu estado parecia excelente de acordo com o que eu ficara sabendo pela equipe, e que era evidente que ela não precisava de nada. Como também conheço o senso de humor desse homem, perguntei-me em voz alta na frente dele se não era ele o demandante. Acrescentei que, se fosse esse o caso, estava à sua inteira disposição. Ele riu do fundo do coração. A inteligência do contexto também inclui o contexto sociocultural no qual cada um dos que intervêm está imerso. E nisso, nenhuma neutralidade pseudopsicanalítica é aceitável. Cada qual tem sua competência e sua especificidade, é claro, mas é importante não mascarar o tipo de laço social no qual cada um se inscreve se se pretende ajudar a inscrever crianças num laço social nascente. As discussões entre nós são sempre informais. Não convoco nenhuma reunião, prefiro os corredores, onde, como nos congressos, sempre se dizem as coisas mais importantes. As colocações pessoais
nunca são recusadas em nome de sabe-se lá que discrição profissional. As demandas de alguns sobre tal ou qual de seus problemas pessoais tampouco. Esta é uma condição mínima, de bom senso e de boa convivência, para que uma colaboração possa servir aos recém-nascidos. Posso, pois, afirmar que, no caso de Khader, foi a colaboração da pediatra e da psicanalista que permitiu que cada membro dessa família voltasse a ocupar o seu devido lugar. No âmbito da maternidade, é pelo viés do protocolo que a psicanálise opera. O primeiro efeito notável, que surpreende todo o mundo no serviço, a começar por mim, é, como já disse, a quantidade impressionante de material que aparece entre as puérperas. Nenhuma das mulheres que com elas trabalhava imaginava a avalanche de confidências que receberiam se se dessem o tempo de escutar: cada vez que se sentam cinco minutos num quarto, não conseguem mais ir embora. Algumas pouco a pouco se deram conta de que esse material as fascinava tanto quanto as agredia. Elas o temiam, mas elas não se sentiam com força para dar um basta. Logo se sentiram aliviadas ao entender que iriam poder me passar a bola quando atingissem o limite de sua disponibilidade e de sua competência. Muitas delas só viam vantagens no fato de essas mães em sofrimento não ficarem ali plantadas sem que suas palavras encontrassem eco, e de poderem encaminhá-las para mim: da curiosidade inicial, elas passaram à cooperação. Talvez agora se entenda melhor por que este livro é um testemunho. Ele pretende ser uma memória do que foi construído com as equipes de Béclère, e que tornou possível um real exercício da psicanálise em maternidade. A conjunção de seu know-how e de sua inteligência do contexto por um lado, e minha compreensão dos trabalhos científicos e minhas exigências éticas de psicanalista por outro, possibilitaram uma experiência inédita com os recém-nascidos. As trocas, até mesmo as «transferências de know-how» entre nós (como se diz transferência de tecnologia), mantêm a vivacidade dessa experiência. Elas não podem ser objeto de uma teorização unívoca: pretendê-lo seria pura ficção. São vínculos de qualidade humana que condicionam para cada um seu tempo para compreender , e possibilitam todos os dias o exercício da psicanálise via protocolo. Não tenho nenhuma verdade a impor às suas colocações, mas sim uma homenagem a lhes prestar. Elas me levam naturalmente ao meu próprio momento de concluir sobre o que a prática psicanalítica com os recémnascidos traz. Quando e por que a interpretação pode ser feita, qual é a sua urgência e quais são seus efeitos sobre o baby blues, sobre a prevenção, nos partos em segredo? Quando e por que se pode dizer que o bebê é um sujeito? O que essa prática com os bebês traz para a psicanálise de adultos? São essas as questões às quais nos cabe responder agora. 1 S. Freud, Trois essais sur la théorie da la sexualité , Gallimard, 1962. [Edição Brasileira: Três ensaios sobre a teoria da sexualidade, vol. VII da Standard Edition, Imago, Rio de Janeiro.] 2 S. Freud, “Pour introduire la discussion sur l’onanisme”, in Résultats, idées, problèmes 1 , PUF, 1984, p. 183. Ver também «Les théories sexuelles infantiles», in La vie sexuelle, PUF, 1969, p. 14-27. [Edição brasileira: respectivamente, Contribuições a um debate sobre a masturbação (1912), vol. XII da Standard Edition; Sobre as teorias sexuais das crianças (1908) , vol IX da Standard Edition, op. cit.] 3 Por “preocupação materna primária” Winnicott designava a sensibilidadeaumentada da mãe no final da gravidez e depois do nascimento. Esse grau agudo, até mesmo “anormal”, de adaptação às necessidades do bebê vai diminuindo à medida que a mãe se
desidentifica de seu bebê, permitindo pouco a pouco que a criança diferencie a mãe de seu “self”. Cf. D. Winnicott, “La préoccupatio réoccupationn maternel maternellle primai primaire”, re”, in in De la péd pédiatrie iatrie à la psycha ps ychanaly nalyse se , Payot, 1969, p. 168-74. lang age des béb bébés és,, ed. Jacques Grancher, Paris, 1993, e particularmente o 4 Ler a esse respeito M.-C. Busnel, F. Morel. Le langage depoimento de F. Morel, “Écoute, mon bébé, c’est ta maman”, p. 96-8, bem como o artigo de M. Couronne, “Le prématuré, un bébé à part entière”, p. 130-8. Ver também J.-P. Lecanuet, C. Granier-Deferre, M.-C. Busnel, “Sensorialité foetale. Ontogenèse des systèmes sensoriels, sensoriels, consequences consequence s de leur fonctionnement fonctionnement foetal”, in Médecine éd ecine peri-natale peri-n atale I , Paris, 1989, p. 201-25.
5 Para Freud, o ego ideal constrói-se conforme o modelo do narcisismo infantil: ele se constitui a partir da imagem do corpo próprio no espelho. O ideal do ego, ego , primeira exigência moral superegóica, forja-se sob a férula dos modelos parentais. Ambos concorrem para as identi dentificações ficações que que presidem presidem à constitui constituição ção do ego. Embora Embora a gênese, ou, mesmo, mesmo, a função função dessas duas duas instâncias nstâncias sejam facilmente confundidas, ainda assim sua natureza deve ser distinguida: imaginária no primeiro caso, simbólica no outro. 6 Da enorme bibliografia científica sobre esse tema, será proveitoso consultar, dentre as mais recentes publicações: J .P. Lecanuet, “L’expérience auditive prenatale” e C. Fassbender, “La sensibilité auditive du nourrisson aux paramètres acoustiques du langage et aissa nce et dévelo d éveloppe ppement ment du sens musical , musical , organizado por l. Deliège e J. A. Sloboda, PUF. 1995, p. 7-38 e de la musique”, in Naissance p. 63-99 63-99;; J. Mehler Mehler et al .,., “Discrimination de la langue maternelle par le nouveau-né”, in C. R. Acad. des Sciences de Paris , t. 303, série Ill, nº 15, 1986. Em inglês: M.-C. Busnel, “Pre- and Perinatal audition and the relationship between mother and baby”, C.R. Acad. Sc., Nova York, 1992, e “ls there prenatal culture?”, in Gardner et al , The Ethological Roots of the Culture , Kluwer Acad. Publish, Dordrecht Netherlands, 1994, p. 285-314. Science , março de 1991, vol. 7 L. A. Petitto, P. F. Marentette, “Babbling in the manual mode: evidence for the ontogeny of language”, Science, 251, p. 1.493-6. pa rfum m, Fayard, 1986. 8 P. Süskind, Le parfu 9 F. Dolto, op. cit .,., p. 212-3. eche rche , nº 247, vol. 23, outubro de 1992, p. 1.166-74. 10 A. Green, “Un psychanalyste face aux neurosciences”, in La Recherche c omplètes es,, ed. de l’Orante, 1972, vol. 5, p. 27. 11 S. Kierkegaard, “La répétition”, Oeuvres complèt
12 Nesse caso, é a língua francesa que impõe essa associação, pois o nome do hospital (Trousseau) também quer dizer trouxa, pacotinh acotinho. o. (N.T.) 13 Para uma versão humorística dessas situações, pode-se ler ou reler Raymond Devos, “Les oublis”, in Matière à rire , ed. Olivier Orban, 1991, p. 379-82. ven t , ed. de Minuit, 1975. 14 C. Simon, Le vent no urritures es aff a ff ectives . ed. Odile Jacob, 1993, p. 59 sg. 15 B. Cyrulnik, Les nourritur rom Feto to Child – an 16 Sua metodologia e seus resultados encontram-se descritos na sua obra prínceps: A. Piontelli, From Observational and Psychoanalytic Study , Tavistock/Routledge, Londres, 1992. [Edição brasileira: De feto fe to a criança crian ça,, Rio de Janeiro, Imago, 1995.] mois-là , Robert Laffont, 1994. [Edição brasileira: Nove meses na vida da mulher , São Paulo, 17 M. Szejer, R. Stewart, Ces neuf mois-là, Casa do Psicólogo, 1997.]
18 Título de um célebre artigo do psicanalista Didier Anzieu. 19 As reflexões que se seguem devem muito a C. Dolto-Tolitch, uma das pessoas que mais contribui para a defesa e a ilustração da haptonomia na França. Aqueles que quiserem conhecer melhor a haptonomia podem consultar seus artigos: «Haptonomie pre- et ou rnal de péd pédiatrie iatrie et de pué puériculture riculture , nº 1, 1991, pp. 36-46; «Génération, espoir et souffrance», Actes du postnatal ostnatale», e», in Journal colloque colloque «Souffrances, «Sou ffrances, quel sens auj ourd’hui?» ourd’hui?» , Eres, 1992, p. 111-2. De Frans Veldman, pode-se ler: Haptonomie apto nomie – Science Scien ce de l’afféctivité, l’afféctivité , PUF, 1989. co mpétences du nou nouveau veau-né -né , Ramsay, 1986. 20 Marie Thirion, Les compétences cit. , p. 213. 21 F. Dolto, op. cit.,
22 F. Dolto, Séminaire de psychanalyse d’enfants , t. II, Seuil, col. “Points essais”, p. 174 sg. 23 M.-C. Busnel, intervenção no lV Salão internacional de Psiquiatria e sistema nervoso central, Paris, 19 de outubro de 1996. Desc artes – la raison raiso n des d es émotions , ed. Odile Jacob, 1995. [Edição brasileira: O erro de Descartes 24 A.R. Damasio, L’erreur de Descartes – emoção, emoçã o, razão r azão e o cérebro cére bro humano , São Paulo, Companhia das letras, 1996.]
conscien science ce , ed. Odile Jacob, 1992. Ver em particular o capítulo 12, “Langage et conscience 25 G. M. Edelman, Biologie de la con d’ordre supérieur”, e o epílogo, “L’esprit sans la biologie: postface critique”. cit. , p. 315. 26 G. M. Edelman, op. cit., 27 Ibid .,., p. 322.
28 Ibid .,., p. 315. cit. , p. 891. [Edição brasileira, p. 905.] 29 J. Lacan, op cit., ecorremos e corremos aqui a qui ao hábito profi profission ssional al de sol s oletra etrarr pela abrevi a breviaçã açãoo os dias que se s e seguem ao nascimento: nascimento: D 1, D2 ..., D n. 30 R na issance ce du d u sens se ns,, Hachette, Hac hette, 1991. 1991. 31 B. Cyrulnik, La naissan 32 B. Cyrulnik, op cit .,., p. 57 sg.
33 Ibid .,., p. 55. c’es t vivre, vivre , ed. Odile Jacob, 1994. 34 G. Gelbert, Lire, c’est 35 P. Valéry, Tel quel , Gallimard, “Pléiade”, p. 497. ésistanc es,, ed. Galilée, 1996. 36 J. Derrida, Résistances interpe rsonnel nel du d u nourriss no urrisson on , PUF, 1989, p. 227. 37 D. Stern, Le monde interperson 38 Sobre a questão da relação entre o bebê e a mãe durante a mamada, ler A. Naouri, “La bouche et le vœu tu”, in Revue de Médecine éd ecine psychoso psyc hosomatique matique,, set. 1987. mémoire , ed. Eshel, 1989. 39 I. Rosenfield, L’invention de la mémoire 40 I. Rosenfield, op. cit .,., p. 177. no urritures es aff a ff ectives , ed. Odile Jacob, 1993, p. 61. 41 B. Cyrulnik, Les nourritur 42 J.-P. Tassin, “Peut-on trouver un lien entre l’inconscient psychanalytique et les connaissances actuelles en neuro-biologie?”, in Neuro-Psy euro -Psy.,., vol. 4, nº 8, 1989, p. 421-34. “Schizophrénie et neuro-transmission: un excès de traitement analogique?”, in L’Encéphale ’Encéph ale,, 1996, suplemento III, p. 91-8. bo ut de la langue lan gue , POL ed., 1993. 43 P. Quignard, Le nom sur le bout age -femm mmee (parteira, ver nota da p.17) começou a receber homens faz pouco tempo, mas o termo que os designa 44 A profissão de sage-fe continua sendo usado no feminino. É verdade que tantas palavras que denominam médicos especialistas não têm feminino em francês...
45 Lugar de acolhida para as crianças pequenas e seus pais, criado por Françoise Dolto. Essa “Casa” propunha-se a preparar as crianças pequenas para a entrada na escola. A freqüentação do local era livre; era um local de trocas tanto para os adultos como para as cri c rianças anças e contava contava sempre com a presença de um psicanali psicanalista. sta. (N.T.) (N. T.) . Vasse, Vasse , Se tenir debout et marcher , Gallimard, col. “Sur le champ”, 1995, p. 248. 46 D
Do nascimento ao limbo da vida
Todos os que me conheceram, todos sem exceção crêem-me morto. Minha Mi nha própria convicção de que existo exist o tem contra si a unanimidade. (...) só isso basta – decerto não para me matar – mas para me empurrar para os confins da vida, num lugar suspenso entre céu e inferno, no limbo, em suma.
Miche Miche l Tournie Tournierr
O período de três ou quatro dias que se segue ao nascimento é um período incerto, porque nele deve se decidir o nascimento para a vida simbólica. Chamemo-lo de período do limbo, para significar a espécie de limiar sobre o qual ele mantém a criança na borda da vida. Ele é, como veremos, o momento de uma escolha para o recém-nascido e também para os pais. Escolha de dar lugar ao seu desejo inconsciente para a criança, escolha de reconhecer essa criança desejante e singular singular para os pais. pa is. Qu Quando, ando, por algu al gum m motivo motivo particular, os pais pa is não estão mais mais lá logo depois do nascimento, alguém tem de dizer para a criança que reconhece a sua história como sua para que ela possa assumir assumir seu desejo. Esse moment omentoo crítico do limbo revela-se revel a-se em toda sua clareza clare za clínica através do baby blues e do parto em segredo. Embora o primeiro seja tão freqüente quanto o segundo é raro, ambos levantam a questão crucial do vínculo e da comunicação entre o novo ser e aqueles que o engendraram. Essa questão contém em germe toda a problemática da aceitação da vida pelo ser humano. umano. Nascer para a vida
A criança nasceu, a criança está lá. Dois, três dias se passaram desde o parto. A mãe se recupera lentamente de suas emoções e de seu cansaço. O pai diminui seu consumo de cigarros. As eventuais cicatrizes (episiotomia, cesariana) ainda doem um pouco, mas a presença do bebê ajuda a suportá-las. O bebê é uma maravilha, a gente não se cansa, mesmo grogue, de olhar para ele. Ele perde um pouco de peso, mas mas os médicos médicos dizem di zem que é norm normal. al. De repente, por um nada, sem saber por quê, a gente não suporta mais. Ou melhor, muda de humor a todo momento. Durante uma hora a gente está feliz, e depois, subitamente, tudo vai mal: a
gente sente as dores decorrentes da descida do leite e logo pensa que “não vai dar conta do recado”; o bebê está incomodado com um problema de digestão ou de regurgitação, e a gente vê nisso um sinal de que é incapaz de cuidar dele; a gente pensa que tem “tudo para ser feliz”, e esse simples pensamento deixa desesperadamente triste. Então a gente chora. Não uma lagrimazinha: uma cachoeira! O bebê, sensível às contrariedades da mãe, põe-se a fazer eco. Ela, acreditando ver confirmada sua idéia de que realmente faz de tudo para que ele não fique bem, chora mais ainda. Em suma, a gente está com o blues, e o canta em solo e em duo. Esse baby blues, o pessoal o conhece bem. No turno da manhã, escuta-se regularmente frases do seguinte tipo: «tenho nove que choram, mas fora isso nada de grave». Ou então, vêm-me dizer: “A Sra. Dos Santos chora demais”, “a Sra. Durieux chora de um jeito particular”, “O comportamento da Sra. Taulay com o filho me faz pensar que as coisas não estão muito bem, ela não reage de fato em função das demandas do bebê” etc. Um mal dos mais comuns
Nada disso é de fato alarmante. Direi mais, e me explico: é legítimo de um ponto de vista fisiológico, e sem dúvida até desejável. O baby blues “padrão” é muito freqüente em todo caso, afeta de 70 a 90% das puérperas, conforme as estatísticas. Além disso, ele sempre aparece por volta do terceiro ou quarto dia. Por que nesse momento? Provavelmente porque ele corresponde a um ritmo, a um ciclo humano natural: do lado do bebê, é o momento em que o tipo de comunicação que ele tem com a mãe muda. Seus gritos, que até então pareciam uma reação imediata a suas percepções internas, tornam-se um esboço de diálogo: a observação de CyruInik que relatamos no capítulo precedente o prova. Ele já se dirige, senão a um outro constituído, pelo menos a entidades diferentes dele mesmo, e diferentes entre si. A mãe, por sua vez, teve tempo de constatar que esse filho não é realmente parte dela mesma. Se ela ainda esperava isso por meio de suas palavras amorosas – “meu pequeno”, “meu bebê”... –, os cuidados que lhe são prodigalizados, as palavras da família e dos amigos que lhe são reservadas, tudo isso pode lhe dar a impressão de ser posta um pouco para escanteio. Portanto, ela está prestes a reconhecer que seu filho e ela fazem dois! Essa verdade, que ela decerto sabe intelectualmente, deprime-a porque tem de vivê-la em seu corpo, em suas percepções e em seus pensamentos. Aliás, a transformação de seu corpo, e particularmente a descida do leite que também aparece por volta do terceiro dia, se dá na relação com seu filho. Também esse é o princípio de uma troca. Esse baby blues comum se resolve sozinho, e o pessoal interfere pouco, apenas facilitando um contato íntimo entre a mãe e o filho. Não se deve, no entanto, confundir esse baby blues com depressões mais acentuadas. Psiquiatricamente falando, é o caso da depressão pós-parto em sentido estrito, que aparece mais tarde. Ela costuma aparecer depois que a mãe volta para casa, embora, curiosamente, tudo estivesse bem na maternidade. Também pode ser um baby blues clássico que se eterniza. É também o caso da psicose dita puerperal, estado melancólico grave da mãe, com tonalidades delirantes, que também
pode aparecer sem qualquer relação com um baby blues aparente, ou, ao contrário, ser a degradação inquietante de um baby blues. Observa-se com mais freqüência em sujeitos já conhecidos por sua fragilidade, mas pode se declarar por ocasião de um primeiro parto, ou constituir como que uma recaída num segundo nascimento. Sua freqüência tende felizmente a diminuir graças à maior precocidade dos tratamentos medicamentosos e psicológicos. Depressão melancólica, psicose puerperal, psicose do desmame são casos extremos que podem estar relacionados com um drama da mãe: sua história e seu passado de sofrimento estão em questão, muito mais que o presente do recém-chegado. Contudo, podem predispor a criança a entrar ela mesma na psicose. Como disse F. Dolto, tal descompensação por parte da mãe é para o recémnascido “um fantástico apelo para que devolva sua própria vida (à sua mãe) para, mais tarde, sentirse no direito de largá-la e de ir embora. (É) um círculo vicioso do qual só conseguem escapar os psicóticos, porque, para escapar, primeiro precisam reencher a mãe. Uma vez feito isso, ficam fusionalmente atados a ela sem poder mais se separar (...) Se se pudesse explicar aos recém-nascidos o que aconteceu, com eles, com seus genitores, eles não fariam uma depressão”. 1 O psicanalista pode intervir para que essa história entre a mãe e a criança seja minimamente explicada, e começar a desfazer esse vínculo patógeno. Poder-se-ia dizer: a cada um seu baby blues ? Ou, para formular de outra forma a pergunta: existe alguma mãe que não faça um baby blues ? Sem dúvida existe, mas porque provavelmente são mães que o anteciparam e preveniram durante a gravidez. Os antropólogos nos dizem que em muitas sociedades africanas esse fenômeno não existe. Nessas sociedades em que existe um ritual altamente simbólico de acolhida do nascimento e de assunção da maternidade, o baby blues não existiria. Notemos que são sociedades que, por um lado, levam o tabu do incesto muito a sério e de modo muito concreto, e nas quais, por outro lado, a socialização é marcada por ritos de iniciação muito rigorosos, particularmente para os homens. A idéia do que é o laço de parentesco é portanto transmitida nessas sociedades de maneira bem diferente do que na nossa, e o enquadramento social desempenha nelas um papel estabilizador não mais reconhecido na França. Assim, dá-se uma importância particular aos irmãos, às irmãs e aos pares do clã em geral na educação de um caçula. A coisa é menos freqüente sob nossos céus. No entanto, ela dá para a criança uma dimensão identificatória totalmente diferente daquela que propicia o campo de batalha individualista em que às vezes chafurdamos: quando a ideologia do “cada um por si” se impõe às “meninas-mães”, como se dizia outrora com desdém, elas se encontram sozinhas contra todos, e seus filhos têm como único referencial os prepostos da Caixa de salário-família! Também é corrente na África negra que uma mulher carregue o filho até que ele atinja a idade de dois anos; se as circunstâncias o impossibilitarem, outra mulher do clã materno a substituirá. A criança é constantemente carregada, fala-se com ela o tempo todo, ela é inevitavelmente menos vítima desses «buracos de palavra» que afetam tanto os pequeninos. Ao contrário, numa família francesa de nosso fim de século, vê-se muito menos mulheres, parentes ou amigas, assistirem as paridas. As solidariedades de antanho parecem menos presentes. As mães se «voltam» então para seus companheiros, que, nem mais nem menos que outrora, sem dúvida não sabem lidar com os
problemas de uma puérpera. Os homens, que decerto estão bem mais presentes nos primeiros momentos, na verdade só são recebidos nas maternidades como maridos ou companheiros das mães, não como pais. Nos serviços tudo é feito para as mães, sua barriga, suas cicatrizes, seus seios..., e toda abordagem do recémnascido só é tolerada em função delas. A paternidade só nascerá de fato no retorno à casa, quando as mães lhes pedirão para se aproximar do bebê, trocá-lo etc.: são elas, e o bebê, que os farão pais. Não se pretende negar que o baby blues possa estar ausente nesta ou naquela mãe, e que isso se dê graças a uma assistência particularmente solidária do meio. Resta a questão de que esse baby blues, tão freqüente, sobrevém num momento fundamental para os três parceiros – pai, mãe e filho -, e que ele lhes coloca uma questão essencial sobre o que é a filiação. Às vezes isso extrapola a intensidade normal. Ou seja, um dos três manifesta que sofre demais, e que não consegue resolvê-lo sozinho. Pode ser a mãe ou a criança, mas também pode ser o pai, pois o pai pode fazer um baby blues. É nesses casos que, via protocolo, peço aos pediatras, às parteiras, enfermeiras e puericultoras para lhes propor um encontro comigo. Se nossa disponibilidade de tempo não coincidir, poderão marcar uma hora no ambulatório. O bebê dá o “lá”
Para descrever os choros sem pés nem cabeça das mães no quarto dia, fala-se de baby blues, de blues do bebê. Deve-se entender isso em sentido subjetivo ou objetivo? Trata-se de blues ao bebê, ou de blues que ele desencadeia? Em outras palavras, trata-se de uma depressão da mãe ou de uma depressão do bebê? Pode-se responder num primeiro tempo: essa depressão tem a ver com os dois. Não é suficiente. É preciso acrescentar: é o recém-nascido que desencadeia o baby blues na mãe. Da mesma maneira como a descida do leite é suscitada pelos choros da criança, pelo menos por sua presença, a depressão do baby bluesé provocada pela criança. Consideremos agora o caso em que a mãe não está com o filho perto dela. Essa ausência lhe evita o baby blues? Tomemos as mulheres cujo filho foi transferido logo depois de nascer para a reanimação neonatal a fim de receber cuidados particulares. Essas mulheres não fazem baby blues no quarto dia. Elas ficam inquietas e deprimidas por causa da situação, pelo menos tristes com essa separação imediata. Elas ficam deprimidas por ter de fazer o luto do que elas tinham imaginado ser os primeiros contatos com seu filho, primeiros contatos estes que não puderam ter lugar depois do nascimento. É uma depressão reativa no verdadeiro sentido do termo, uma depressão em reação a uma situação difícil que lhes foi imposta. Mas isso não tem a mesma qualidade de depressão que o baby blues , e não tem nem a sua tonalidade nem o seu “gosto”. Essas mulheres não dizem como no baby blues: “estou chorando sem saber por quê, no entanto tenho tudo para ser feliz, mas não sou capaz de cuidar do meu filho”. Elas dizem que é aflitivo estar separada do que foi sua carne e não poder fazer nada para ajudá-lo quando ele sofre, porque as circunstâncias a impedem de fazê-lo. A rigor, elas podem recriminar-se de não serem capazes de alguma coisa, de não ter feito um filho sadio, coisa de que uma mulher em pleno baby blues só se recriminará excepcionalmente. Tranqüilizemos o leitor: mesmo as mulheres cujo filho foi transferido para a neonatologia depois de nascer fazem um baby blues, mas mais tarde. Elas esperarão... o reencontro! Geralmente, essas
mulheres põe-se a chorar, e não só de alegria, quando o filho volta para perto delas. A presença do filho as desperta para a necessidade de festejar esse reencontro com um baby blues como manda o figurino. Tampouco o bebê deixará de se manifestar, pois, lembremos, demonstrou-se numa recente estatística que um bebê que foi imediatamente separado da mãe ao nascer chora muito mais em quantidade do que aquele que pôde ser colocado sobre o ventre da mãe. No caso em que o bebê é colocado sobre o ventre da mãe, ele trava conhecimento do mundo exterior – com ela –, o que é totalmente diferente da situação em que ele foi afastado por alguns instantes para receber os primeiros cuidados. No primeiro caso, ele tem menos motivos para chorar. Da mesma maneira, conhece-se bem o caso dessas mulheres adotantes que, três ou quatro dias depois da chegada em casa da criança adotada, começam a chorar e a entoar a tão conhecida lamúria: “Não sei por que estou mal. É uma idiotice, fico chorando embora tenhamos esperado tanto tempo por esta criança e a tenhamos desejado tanto, mas ainda assim não consigo parar de chorar. Não venha me dizer que ele é uma gracinha, sei muito bem disso e isso me faz chorar mais ainda...”. O baby blues não é apenas uma questão de hormônios, como crêem alguns. Esse estado decerto encontra reforço no cansaço e na desestabilização hormonal, mas nem por isso trata-se de um sintoma médico. O baby blues é a história de um pequeno ser de carne e osso organicamente inacabado e dependente, considerado imaturo em muitos planos, que no entanto decide que é a vez dele de brincar. A vez de ele desencadear por sua presença um processo de troca com a única mulher que conhece bem, sob a forma do que as pessoas maduras, mentalmente independentes e de grande cultura, denominam o baby blues da mãe. Ele é, se não a causa, pelo menos a condição dessa depressão. Sem ele ao lado da mãe, não há depressão. Deve-se ver a depressão da mãe como um movimento seu de aspiração da necessidade ativa de comunicação do filho. Ao fazer isso, e em troca, ela o solicita nesse lugar especificamente humano de ser um outro que ela tenta reconhecer, nem que seja com alguns choros e ranger de dentes. Esta é uma dimensão especificamente humana, e o momento do baby blues é um de seus primeiros passos. A maneira como a criança irá responder à depressão da mãe marcará o começo da comunicação ativa. Até esse momento, repitamos, o bebê chorava para exprimir sem mediação seu mal-estar corporal. Uma salmodia vocal sem comentários, como a leitura das páginas de um anuário. Era dessa forma que outrora ele era entendido nas maternidades. Os choros serviam de advertência, de intérprete automático e simultâneo de sua saúde; para verificar se um lactente estava bem ao nascer, batia-se de leve nas suas nádegas para fazê-lo chorar. Desde então evoluiu-se. Com o baby blues , a salmodia torna-se intencional e é «recitada» nas nuanças dessas emissões moduladas de que falávamos antes. Se essa tentativa de comunicação fracassar, todo o corpo passará a ser lugar da linguagem, via seus sintomas. Essa tentativa de comunicação se dá por exemplo em torno da lactação, ou seja nessa zona de apoio das pulsões orais sobre a satisfação das necessidades de alimentação de que Freud falava. Em se tratando da lactação e do baby blues, diz-se: quando o moral cai, o leite desce! 2 Basta lembrar da dama de preto de quem falei no capítulo precedente. Tinham-me indicado essa mulher por causa da tristeza inconsolável que a invadira, mas o apelo podia igualmente ter vindo de sua filha Eva que chorava de sofrimento. Sua mãe relacionava sua culpa com a descida do leite que não ocorria – “nem
mesmo sou capaz de alimentar meu bebê”. Na verdade, o importante era colocar palavras no que estava em jogo entre o luto, o nascimento e a ausência de leite. Essas palavras podiam provocar a descida do leite e fazer cessar os choros porque endireitavam uma comunicação que se estabelecera de modo “atravessado” entre Eva e a dama de preto. Depois de ter finalmente podido dar lugar à filha como outro, ela que até então estivera oculta por trás da lembrança onipresente dos mortos, a dama de preto pôde (re)encontrar a si mesma como mãe provedora, e Eva pôde ser acolhida. O lugar tripartite do sintoma
É muito freqüente que o recém-nascido aponte o pai ou a mãe como aquele ou aquela com quem é preciso falar. Este é um claro sinal de que o recém-nascido é ativo no desencadeamento do baby blues. É de certa maneira o equivalente do que se vê nas crianças mais velhas com o pagamento simbólico.3 Aconteceu de eu receber no meu consultório uma criança de menos de dois anos que estava com seu pagamento nas mãos, mas que no entanto se recusava a entrar na sala. Aceitei, é claro, que ela não tivesse sua sessão, desejo este que ela manifestava de forma enviesada, e me voltei para a mãe para comunicá-lo a ela. Mal eu começara a lhe falar e ela se pôs a chorar, encetando uma longa narrativa de seus próprios problemas... A criança, de certa forma, recusou o pagamento simbólico para que eu escutasse a mãe e não ela. Transposto esse “obstáculo”, o trabalho com a criança voltou ao seu curso normal nas sessões seguintes. A criança pode apontar precisamente no discurso do pai ou da mãe “o lugar onde dói”. Certo dia pediram-me para ver uma mulher porque a gravidez fora particularmente difícil. Essa mulher caíra num estado depressivo no segundo mês de gravidez, e tivera rubéola no sexto mês, colocando em perigo a saúde do filho. A razão de seu desmoronamento no segundo mês era a seguinte: ela percebera que o homem com quem tinha concebido essa criança não era “feito para ela”: em poucas palavras, ele estava “abaixo da crítica”. Compreendera naquele momento que vivendo com ele ela tinha renunciado a tudo o que faz de uma mulher uma mulher: todas as suas aspirações à sedução, ao gozo sexual, à cumplicidade tinham sido frustradas, contou-me ela. Por outro lado, pouco tempo depois de ter ido embora para descansar, sua mãe, a avó da criança, fizera uma tentativa de suicídio. Tentativa que minha paciente logo interpretara como um medo da avó de que sua filha, depois de ter um filho, se afastasse dela. Essa avó parecia com efeito onipotente, exigindo tudo e mais um pouco da filha, e considerando-a como o seu “bebê”. A mãe se entristecera, e sentira-se ainda mais desamparada com o ato da avó: ela tinha de escapar à tutela da própria mãe, ela não podia mais ser seu «bebê» se quisesse ser a mãe do seu. Logo em seguida falou-me de seu pai: um “bunda mole”, um “imprestável”, incapaz de dar alegria a quem quer que fosse... Cada vez que fazia um elogio desse tipo ao seu pai, o filho dela pontuava sua fala com um gemido. O bebê reagia à idéia que a mãe fazia de seu avô como que para indicar onde a ferida doía! O mais engraçado é que ele tinha razão, e sabia do que se tratava. A mãe, provavelmente entendendo o que ele dizia, ficou pasma: “– Quer dizer que estou tratando meu marido como meu pai? O bunda mole é meu pai, não meu marido?
– Seria importante a senhora poder dar um lugar para esse pai que escolheu para seu filho... – É isso, não o lugar do meu pai!” Na verdade, o pai nada tinha do avô, longe disso. O “bunda mole” e personagem “abaixo da crítica” impressionara os membros do serviço como o cúmulo da virilidade ostensiva e da autoridade brutal quando ele ali comparecera por ocasião das ecografias. Preocupado com tudo, não aceitando nada sem algum senão, chegando inclusive a vir a uma consulta no lugar da mulher, parecera antes um super-homem conquistador, conforme palavras dos funcionários. Mas, para essa mulher, o homem que ela tinha escolhido só podia ser semelhante ao pai em tudo, apesar das evidências em contrário. Quando revi pela segunda vez essa mulher a pedido dela, o peso da repetição tornara-se perceptível para ela, e a condenação transformara-se em queixa: “Que fazer com um marido que não assume concretamente sua paternidade?”. Esse homem com efeito não tinha qualquer paixão por trocar fraldas ou dar mamadeiras, e parecia pouco interessado nos cuidados da criança. O desalento revelado por sua queixa contrastava com a sedução estampada em seu modo de vestir e no deleite que lhe dava relatar seus recentes sucessos profissionais. Ao vê-la assim recuperada e capaz de assumir as coisas, aconselhei-a a transigir com o marido e dar-lhe tempo para se tornar pai. Ela desejara essa filha, ele na verdade não. Era preciso contar com essa filha para fazer dele um pai, agora ou mais tarde. Quanto a si mesma, ela estava convencida da necessidade de fazer um trabalho próprio, e me pediu a indicação de um analista. Talvez ele a tenha ajudado a superar a constatação que ela fez sobre seu marido no final de nossa entrevista: “É um homem à moda antiga, como meu pai...”. O recém-nascido, sua mãe e seu pai podem, pois, alternadamente, estar no centro do questionamento induzido pelo baby blues. A questão que então se coloca é: se o lugar do sintoma é tripartite, com quem falar? No que me diz respeito, eu nunca falo com um sem falar com o outro: como os pais dificilmente estão presentes, falo pelo menos com a mãe na frente da criança, e com a criança na frente da mãe. No caso de Karina, que se recusava a mamar, primeiro me dirigi à mãe para aconselhar-lhe o pele contra pele com a filha. A irmã mais velha de Karina morrera quatro dias após o nascimento, e seus pais, para afastar o azar, não tinham querido prever nada para a chegada da caçula. Devo acrescentar um elemento que ainda não evoquei. Ao falar dessa criança “interdita”, a mãe evocou uma coincidência que Karina logo sublinhou com movimentos ruidosos de sucção: Karina é a caçula, assim como sua mãe é a última de sua fratria. A mãe percebeu que nunca havia falado na frente da filha de seus próprios pais que moravam na Hungria e não tinham podido vir ver Karina. Nossa entrevista consistiu a partir de então em simplesmente contar os assuntos de família, tornando Karina testemunha do fato de que não estava limitada à sua família nuclear, mas provinha de uma linhagem. Ela não estava mais no lugar da criança interdita, mas fora recolocada na cadeia de seus ascendentes. Assim foi mais fácil para a mãe ter acesso a essa identificação com a própria mãe necessária para as mães primíparas: é o identificar-se com a própria mãe que permite tornar-se mãe, por sua vez, e essa identificação era ainda mais difícil no seu caso, pois se vira complicada por um longo passado de esterilidade. Foi somente depois disso que me dirigi diretamente a Karina para lhe dizer que, diferentemente de seu irmão mais velho, dependia apenas dela poder viver, se ela decidisse se alimentar.
Falar com o bebê, falar com a mãe: as duas coisas me parecem necessárias, e não vejo nenhum motivo a posteriori para mudar de posição. Com efeito, deve-se considerar, como F. Dolto, que «as crianças falam seus pais e, inversamente, elas estão dentro dos pais». O sintoma funciona na tríade mãe-filho-pai. Quando acontece de ele afetar a integridade do corpo da criança, isso pode se dar através dos choros da mãe, ou de uma irritação do pai no quarto da maternidade. A criança também pode ser mencionada como uma criança que não come, que não acorda, que rejeita... Em todos os casos em que intervenho, procuro fazer com que possam ser atribuídas palavras a conteúdos do inconsciente, com que eles circulem entre os três protagonistas e permitam que a fala deslanche. Essa necessidade de um bem-dizer e de uma circulação da fala começa por uma denominação correta dessas três pessoas. Como chamá-las? Em certas maternidades, chama-se as mulheres que deram à luz de “mamãe”: fala-se da mamãe “do 15”, da mamãe do “pequeno Gregório”, “essa mamãe que chora tanto”. Ninguém reclama, porque a intenção não é má. Mas uma puérpera é uma mulher antes de ser mãe; quanto a ser “mamãe”, é aos filhos delas que está reservado o privilégio de chamálas assim. A menos que ao chamá-las de “mamãe” os funcionários estejam pensando na própria mãe! Comentemos rapidamente o caso de pacientes mais velhas para quem as denominações dão mais um passo na direção da inconveniência: “a vovó do 12”, por exemplo. Essas coisas sem dúvida não seriam ditas se deixassem os pais estarem mais presentes nas maternidades. Infelizmente, não se dá a eles um lugar digno de sua posição. Quando os pais podem dormir na maternidade, quando se lhes dá o direito de vir a qualquer hora do dia e da noite, eles passam a ter aos olhos de todos um outro papel, além de ser aquele que leva a roupa suja para casa. Eles têm mais tempo para fazer às suas companheiras esses elogios que eles tanto gostam de fazer, para trazer flores que perfumam mãe e filho tanto quanto embelezam o pai. O regulamento de muitas maternidades proíbe isso com demasiada freqüência. É claro que um hospital não é um hotel, ao contrário do que seu sentido etimológico poderia dar a crer. Mas será preciso alugar trailers nos estacionamentos do hospital para esses pais cujas mulheres estão hospitalizadas há várias semanas em GHR (departamento das gestações de alto risco), e depois na unidade canguru durante outras longas semanas, após o nascimento? Se o pai for reconhecido como homem não apenas pela mãe, mas também pela equipe hospitalar, ele poderá nesse momento reintroduzir a feminilidade no pós-parto dessa mulher cujo corpo foi mais ou menos maltratado. Pensemos num exemplo anódino: desde Leboyer, uma das tarefas dos homens é dar o banho depois do nascimento. Muito bem. Infelizmente, acaba-se esquecendo de pedir a opinião deles. Também eles ficam intimidados, muitas vezes podem ter reticências em tocar o bebê. Alguns desempenham essa tarefa, vale dizer, a despeito do bom senso. Mas será que alguém lhes esclareceu que o objetivo da operação não é lavar o bebê, mas associá-los ao banho de corpo que começou sem eles? O modo como nos apresentamos e nomeamos é de suma importância. Tive uma vez uma estagiária que, no Brasil, de onde ela vinha, acompanhara um bebê desde os 10 dias até 1 ano, segundo o método anglo-saxão de Esther Bick. Esse método prescreve ver a criança regularmente, uma hora por semana, e respeitar escrupulosamente uma regra de «presença silenciosa» junto dela, de modo a não induzir deformações no discurso do querubim. Com 1 ano, o garotinho a acolhera com
um “Vovó”. Ela me contava isso com um prazer nostálgico, como se se tratasse do triunfo de uma transferência positiva. Permiti-me dizer-lhe que esse menino era bem educado, ou então que tinha boas defesas, como ela preferisse. Pois se ele tivesse a idade para fazê-lo, em vez de perguntar-lhe dessa forma se ela era sua avó, ele também poderia ter-lhe dito diretamente: “Mas quem é você, afinal de contas, e porque você fica me olhando desse jeito?”. Esses são efeitos da sacrossanta “presença silenciosa” que abomino. Fui um pouco dura com ela, mas sei agora que ela já desconfiava da minha resposta: ela não teria vindo de tão longe fazer um estágio comigo se não fosse por isso. Para a criança que não fala, tenho certeza, é preciso articular alguma coisa. Pois, se você não sabe disto, ela o sabe: ela já está na linguagem. É por isso que, por mais fútil que possa parecer, nunca deixo de me apresentar quando entro num quarto. Não é uma mera questão de cortesia. Digo quem sou e por que vim, aos pais e às crianças. Para um psicanalista, falar às vezes leva a interpretar. Aqui, as feridas da criança serão sua referência: aquelas que concernem ao comprometimento do corpo próprio e que estão vinculadas a amputações das percepções sensoriais anteriores ao nascimento; mas também aquelas que concernem à perda da relação interpsíquica entre o lactente e a mãe. A partir daí, a interpretação consiste em palavras verdadeiras, em palavras apostas à história calada de um nascimento: essas palavras podem ser as do analista, em função do que ele pôde escutar dessa história, mas podem também ser as dos pais, suscitadas pelo enquadro psicanalítico da entrevista. O importante é que ela forneça uma saída para o problema que a psicanálise tenta resolver desde sua origem: que a história de um sujeito precisa ser pensada e dita a alguém. E que ela permita desviar a trajetória da repetição que leva o sujeito para o impasse do sintoma. A interpretação
A interpretação pode ser endereçada aos pais ou à criança, conforme o caso; de qualquer forma, os dois (ou três) a terão escutado e entendido. É preciso insistir na presença do recém-nascido, no sentido em que se diz que um ator tem presença. A criança pode reagir a uma palavra que a toque com um movimento de cabeça, um espasmo, um grito... Bem. Mas, e quando a criança está dormindo? Ela não está menos presente. Deve-se sempre cuidar de falar da ou com a criança da mesma maneira como quando ela parece acordada. Pode-se fazer barulho (comedidamente!) e falar perto do bebê sem perturbar seu sono, mas ele é incomodado se o provocamos, por exemplo inclinando-nos sobre seu berço para lhe falar. Em outros termos, quando nos dirigimos a ele, ele sempre responde presente! Sem comparar mais do que o necessário ambas as situações, pode-se evocar a esse propósito o relato que F. Dolto fez das sessões analíticas com uma pessoa em coma. 4 Psicanálise não é reeducação, diz ela em suma a respeito desse caso estranho e perturbador, e nossa vantagem é poder trabalhar como psicanalistas com pessoas que dormem em coma. Essas pessoas, na passividade de seu coma, são extremamente receptivas, embora evidentemente não se expressem. Elas têm um lembrança onírica do conteúdo da sessão, quando conseguem sair do coma. O motivo disso, diz ela, é que para além da pessoa física “o sujeito do desejo, o sujeito de sua história estão bem presentes”. Isso também me parece válido para os recém-
nascidos. A fortiori para a mãe deles: durante um parto cesariano sob anestesia geral, sugiro às equipes que falem com a parturiente, que a informem da chegada da criança. Faço questão de ficar cega aos risinhos que tal sugestão sempre provoca, pois sei que pelo menos a jovem mãe, ao despertar, se sentirá menos frustrada ao saber que lhe permitiram participar dessa maneira. Tenho um amigo cirurgião ortopedista, agora aposentado, que nunca deixava de falar com seus pacientes adormecidos durante uma intervenção porque, dizia ele, isso os ajudava a se recuperar melhor e mais rápido. Esse homem é não só alguém são de espírito, mas uma eminência em seu campo e reconhecido como tal; talvez seu único defeito fosse ter se casado com uma psicanalista, e ter se interessado pela relação entre a psique e o corpo... A interpretação no contexto do pós-parto é antes de mais nada preventiva. Vejo essas crianças em crises agudas, e a princípio não costumo revê-las fora do lapso de tempo que passam na maternidade. Como já disse, esse tempo será de quatro dias para um parto normal, de sete em caso de cesariana. Em tão pouco tempo, a interpretação feita à criança dos conteúdos inconscientes da mãe ou do pai que afetam sua evolução visa a libertá-la do sintoma. Do mesmo modo, a interpretação feita à mãe ou ao pai do que a criança questiona neles tende a permitir que eles reencontrem uma harmonia entre sua história e sua maternidade (paternidade). Trata-se então de certa forma de redistribuir as cartas embaralhadas pela nova cartada que é o nascimento. Pois, embora a partir daí eles estejam em condições de iniciar uma nova partida ao sair da maternidade, nada garante que isso seja tudo o que eles pedem ao analista. Aconteceu, por exemplo, de um casal e o bebê deles pedirem para me ver quando eu estava ausente do hospital. Deram-lhes, pois, o endereço do meu consultório, e foi lá que eles vieram me consultar. A demanda deles dizia respeito ao filho... e foi o pai que em seguida acompanhei num trabalho psicanalítico. O trabalho com o recém-nascido permite reexaminar o problema da interpretação. Com um recém-nascido temos de nos perguntar de modo mais freqüente do que de costume: o que interpretei, ou, o que interpretou quando ele abandona seu sintoma muito rapidamente? O que o psicanalista sabe certamente importa, desde que ele esqueça seu saber: cabe a ele permitir que as palavras dos protagonistas expliquem os nós que os apertam, no sentido latino do termo, ou seja, que os estendam, os desdobrem. Quando há interpretação, pode ser a do analista, mas também pode ser a fala de uma mãe ou de um pai que se revela por si mesma quando é testemunhada. Quando se diz que se interpreta, pronunciêmo-lo à antiga: 5 entre-presta-se, uma fala se entre-presta entre aquele que pede ajuda por meio de seu sintoma, aqueles a quem esse sintoma se endereça, e o psicanalista que mantém a exigência de fazer circular essa fala. Ouvi alguns testemunhos concretos disso por parte de mulheres que vi com vários anos de intervalo, em vários partos sucessivos. Vi a Sra. Ormani por causa de um baby blues subseqüente ao nascimento de sua primeira filha Elsa. Essa criança estava internada na unidade canguru devido ao seu peso insuficiente, e ela não manifestava nenhum apetite, para grande desespero da mãe. O parto fora difícil, em decorrência de uma hemorragia da dequitadura. Sabe-se que F. Dolto via na hemorragia da dequitadura uma ameaça para a criança, como se o intuito fosse “jogar fora a criança junto com a água do banho”. Esse sofrimento do parto reavivara nela a lembrança das violentas crises abdominais em função das quais fora hospitalizada aos 8 anos de idade, no mesmo momento e no mesmo hospital em que sua mãe
dava entrada... depois de um aborto. Ele também a lembrava a cesariana sofrida um ano antes para pôr no mundo seu filho Alexandre, morto dez dias depois do nascimento. No dia de nosso encontro, a Sra. Ormani conseguiu falar disso para a sua filha tomando-me como testemunha. Elsa sorriu ao escutar seu relato, e logo depois pediu para comer. A Sra. Ormani ainda se lembrava disso três anos mais tarde, quando a encontrei por ocasião de um novo nascimento: “Elsa está em perfeita forma, sabe. Cada vez que houve algum problema, pensei de novo na nossa entrevista e no sorriso dela. Fiz como fizemos naquele momento: contei-lhe o que estava acontecendo, e tudo entrava nos eixos. Quando fui hospitalizada dois anos e meio atrás, expliquei-lhe que ela ia ficar na casa da tia dela na Itália porque eu não estava bem. Contei a ela por que estava mal, e que iria me encontrar com ela quando estivesse melhor. Ela entendeu e não houve qualquer incidente”. Elsa estava melhor, mas a Sra. Ormani ainda corria perigo. Um trabalho sobre seu estado depressivo quando do nascimento de Elsa possibilitou que, três anos depois, ela desse à luz em boas condições, e na alegria, um filho, Guillaume. Como se vê, o que a psicanálise tem de apaixonante é que seus progressos interessam tanto ao paciente como à análise: as interpretações se dividem (aqui entre a Sra. Ormani e mim), e seus efeitos tanto podem ser imediatos (para Elsa) como a posteriori (para a Sra. Ormani e, indiretamente, para Guillaume). Para falar do que é a interpretação psicanalítica, Alain Didier-Weill emprega uma preciosa metáfora musical. Para tanto forjou o termo nota azul [ note bleue], derivado da blue note cara aos azzmen. Essa nota azul é aquela que o ouvinte espera no auge de seu prazer de escuta, quando ela o “leva a esperar o apelo de uma certa nota que ainda não está lá, mas cuja tensão, produzida pelo encontro entre a harmonia e as notas melódicas já tocadas, (o) faz supor que não é vão esperá-la”. 6 É o silêncio que se segue a uma obra de Mozart e que ainda é Mozart, segundo a famosa expressão. Não se trata apenas, como para aquele que tem noções de história da composição, do prazer de terminar uma frase de Verdi ou de Louis Amstrong que eles não escreveram, “à maneira de”. Pois, afinal de contas, isso seria mais difícil com Bach ou Coltrane. Trata-se antes dessa nota esperada e ainda assim inesperada que, ao ser escutada, “me faz transpor um limiar que, sem ela, eu sem dúvida não teria ousado transpor – limiar de um mundo cuja novidade extrema deve-se ao fato de que, nele, reina o poder do inaudito: poder de me despertar, mostrando-me que tudo o que eu podia ouvir de sensato até então estava, sem que eu soubesse, sob o ascendente do inaudito”. Essa esperança, esse inaudito, essa espera são o que o recém-nascido grita para quem quiser escutar, e não resistimos a traçar o paralelo entre o blues do bebê e a nota azul [ bleue]. A psicanálise é eficaz, paradoxalmente, porque não deixa de ser uma arte. Quer ela tenda para a poesia, como esperava Lacan, ou para a música, como sugere Didier-Weill, a interpretação, tal como a nota azul, tem de se condensar num “significante despojado de todo sentido, junto do qual todas as outras notas articulavam o sujeito que eu ignorava ser”. Ela possibilita o acesso a esse limiar de que se falou acima, ele mesmo eco desse passo transposto pelo recém-nascido no baby blues: o limbo da vida. No limbo incerto Para o feto, desejo e necessidade confundem-se
A ética do feto, dizia F. Dolto, é o vampirismo: primeiro viver e crescer, por todos os meios! Ele aspira o líquido amniótico e ao mesmo tempo sensações. Nele, desejo e necessidade confundemse, não estão desintrincados. Essa hipótese é ligeiramente diferente daquela que os psicanalistas aprendem a distinguir em seus pacientes mais velhos que já aprenderam a língua, ou seja, a necessidade, o desejo e a demanda. A história do pensamento humano não se resume à questão ontológica, mas nosso campo ficou marcado pela questão da alma e do corpo, mais recentemente do inato e do adquirido. Habituamonos a distinguir a máquina humana e suas necessidades do ser de linguagem com seus desejos, mantendo um fosso que os separa. À ciência, à técnica e à medicina caberiam o estudo e a codificação das necessidades humanas, que fazem do corpo uma imagem definível, reprodutível quando não digitalizável: dos clones à ecografia, o embrião e o recém-nascido representam nesse sentido um campo de investigação dos mais avançados. Para o resto, isto é, para o ser humano na sua singularidade e em seus desejos, o século XIX inventou as ciências humanas: cabe a elas, no formigar de suas diferenças, quando não de suas contradições, encontrar as pequenas diferenças, as exceções, os desvios das regras de escrita enunciadas por “a” ciência. Entre ambas, sobra desdenhosamente um deserto para as especulações filosóficas ou teológicas. Ora, para um psicanalista que trabalha com recém-nascidos e também se interessa pela vida pré-natal, corpo e linguagem, desejo e necessidade, são uma coisa só. Não se pode separar ficticiamente um do outro. O corpo da criança nasce para várias articulações da linguagem. Por um lado, ele vem no banho de linguagem constituído pelas gerações que o precedem: o projeto de filho de seus ascendentes diretos, os ditos e não-ditos que presidem à sua concepção, mas também as eventuais pendências que remontam a gerações antecedentes. Em relação a isso, nota-se que a história dos baby blues está repleta de alusões ligadas a uma tia, um avô etc. As indagações dessas alusões, remanejadas em cascata nos sucessivos elementos da linhagem, confluem para os choros do baby blues, manifestando o buraco de palavra que até então servia de resposta. Mas, por outro lado, quando essa própria criança adquirir a língua dita materna, apropriar-se-á ao mesmo tempo desse espaço potencial de linguagem, conforme as palavras de Lucien Kokh, isto é, de um espaço de linguagem que já estava em conversação entre pelo menos três gerações. O problema surge quando essa confusão entre necessidade e desejo perdura depois do nascimento, porque nenhuma fala dos pais veio reiterar o corte fisiológico do cordão umbilical. É nesse momento que as pulsões orais canibais do lactente poderiam se desencadear. É de extrema importância significar para o lactente a diferença entre desejo e necessidade, para que a psicose não se instale. F. Dolto citava em relação a isso o exemplo daquela criança que, embora fosse maravilhosa, mordia tudo o que se encontrava ao seu alcance. Não era aceita nas instituições, nas lojas, nos parques etc., porque, apesar da sua viva inteligência, ela constituía um perigo público. Dolto explica que ela entendeu o que acontecia com aquela criança ao ver a mãe amamentar o irmão caçula. Ela o alimentava em silêncio, e em vez de lhe falar beliscava e manipulava todas as partes de seu corpo, sem parar. Em suma, ela criava nele bocas por todo o corpo, ela o sugava, o canibalizava pelo toque. A mãe não distinguia entre o que era a necessidade de alimento da criança e o prazer da sucção, aprisionava-o numa “violência amorosa” que F. Dolto resumiu numa frase dirigida à criança: “Ela tinha necessidade de tocar você e você achava que isso estava certo; e você achava que, quando
se gosta dos outros, deve-se mordê-los e comê-los”. 7 Não se trata evidentemente de desencorajar as mães que acariciam seus bebês enquanto os alimentam, ao contrário. Trata-se de sublinhar quão importantes são as palavras de amor com que elas acompanham as mamadas na maior parte do tempo. Há quem diga, baseando-se numa similaridade com uma fusão da vida pré-natal que não existe, que o problema do baby blues é desfazer a fusão entre a mãe e seu filho. Como há fusão entre feto e matriz, poderia haver fusão entre determinado recém-nascido e sua mãe quando ela estivesse próxima demais dele por seus afagos, suas confidências, sua proximidade imaginária com ele. Já nos referimos à fusão feto-mãe, apenas voltaremos ao tema com uma observação: desde o momento em que a placenta assume a manutenção da gravidez pelos hormônios placentários, a fusão entre mãe e filho já se desfez. Ou seja, no quarto mês depois da concepção. Nos primeiros dias, trata-se simplesmente de uma multiplicação das mitoses de células; mas a partir do quarto ou quinto dia aparece a primeira diferenciação celular, e o ovo migra para o útero. É a nidação no útero dessa mórula, desse pequeno ovo fecundado, que provocará na semana seguinte o aparecimento do trofoblasto e das vilosidades coriais. O trofoblasto, esse precursor da placenta fabricado pela criança a título provisório, já é um intermediário entre o feto e a mãe. E se há intermediário, é porque há troca entre a mãe e a criança: em nenhum caso há fundamento para dizer que eles fazem apenas um. É por essa “boca placentária” que a criança respira, se alimenta e toca a mãe. Outros ainda traduzem essa idéia de fusão dizendo, tal como o professor Lebovici num programa de televisão: “Bebê, eu só conheço nos braços da mãe”. Com isso querem dizer que ambos estão ligados em suas sensações. Eles se baseiam numa realidade clínica inegável: o bebê, nos primeiros dias, faz coro com as emoções da mãe, mas essa hipersensibilidade regride progressivamente. A intensidade desses ecos enfraquece-se progressivamente, sem que jamais desapareça por completo. Mas isso é suficiente para dizer que eles fazem apenas um? O baby blues aí está para permitir que afirmemos, ao contrário, que são as palavras pronunciadas ao bebê que lhe dão sua autonomia. Dando sentido a suas emoções, essas palavras e os desejos que elas veiculam permitem que ele as “pense”. Dessa forma, instauram a criança na sua dimensão de sujeito desejante autônomo, decidido a enfrentar seu próprio futuro. Gérard, um recém-nascido enlutado
Se o feto tem algum desejo, é o de viver. Ele o realiza para além de toda esperança: Marie Thirion, pediatra, notava que 950 crianças em cada 1.000 nascem normalmente constituídas. Taxa excepcional, se pensarmos bem. Ela supõe que isso só é possível graças a uma troca, uma comunicação forte com a mãe: “Para viver depois de nascer, exatamente como nos primeiríssimos dias após a fecundação em que sua nidação uterina condiciona imediatamente sua sobrevivência ou sua eliminação, um recém-nascido tem de se enraizar em algo que vive, tem de se implantar numa relação humana”.8 O parto, porém, modifica essa relação, fisiologicamente é claro, mas também psiquicamente. Ele representa uma ruptura radical e ao mesmo tempo um salto no desconhecido. Basta dizer que a
eventual angústia de uma mãe não se transmite da mesma maneira que no período pré-natal, fosse apenas porque a resposta do recém-nascido modifica mais facilmente o comportamento da mãe. Dizse que o recém-nascido é indefeso, que está nu diante da vida. O que chama a atenção é sobretudo o fato de ele não oferecer resistência ao que vem de fora. Isso se nota particularmente no modo como ele recebe as interpretações. Não que ele seja mais ou menos permeável que uma criança mais velha, mas ele não oferece praticamente nenhum obstáculo a essas interpretações. Há quem se espante com o efeito radical e fulgurante das interpretações, e fala-se de magia. Não há nada de magia na reviravolta desses recém-nascidos que conseguem abandonar em algumas horas o sintoma que os ameaçava, às vezes em suas funções vitais. É preciso pensar que, na psicanálise de adultos, o trabalho de rememoração é mais longo porque as «camadas» a atravessar são inúmeras. Alguns adultos gravemente neuróticos são nesse sentido como mutilados da troca e do pensamento. A história deles é feita de palavras infelizes, de palavras faltantes, de estratos que equivalem a muros contra os quais eles vieram se chocar no sentido quase corporal do termo. Desenvolveram, portanto, certo número de defesas, de formações reativas contra suas próprias capacidades de troca e de pensamento que os levaram ao sofrimento de que padecem. Perdidos nos estratos de sua história, precisam de tempo para reencontrar a confiança na palavra do outro, e portanto na deles próprios. No entanto, mantêm uma sensibilidade intacta para a articulação quase corporal de seus distúrbios. O problema é conseguir atingir essa sensibilidade. Ela é mais rapidamente acessível no recém-nascido, pois os estratos não são tão numerosos. Mas eles existem, pois o recém-nascido de 3 dias não é de hoje: ele tem um passado de quase nove meses atrás dele! Seu sintoma, quando ele existe, pode revelar-se como sendo o a posteriori de um acontecimento anterior ao nascimento: uma patologia fetal ou um choque pré-natal, por exemplo. Mas o recém-nascido entende mais rápido o que lhe permite ingressar na vida simbólica. Aprendi isso graças a um menino como Gérard, que passara suas primeiras 48 horas de vida chorando na sua incubadora da unidade canguru. Esses choros eram de fato inquietantes, pois a médica responsável, que geralmente recorre pouco à minha ajuda, veio pedir minha intervenção, para ele e para sua mãe, a Sra. Ruyckert, que parecia sofrer muito. Propusera portanto à Sra. Ruyckert a minha intervenção, e a pedido da mãe conversei com ela e com Gérard. Nessa entrevista, ela me falou primeiro de sua gravidez, uma gravidez gemelar espontânea e desejada: uma menina e um menino (nosso Gérard) tinham sido concebidos. Os Ruyckert tinham “dividido” de antemão seus filhos entre si: para a senhora, a menina, o menino para o senhor. Cada um tinha escolhido o nome do «seu». A Sra. Ruyckert chamava a filha de “minha filhinha” e seu filho de “o outro”. Mas logo fora detectado um retardo de crescimento intra-uterino da menininha, exigindo um acompanhamento rigoroso desde então. O moral da Sra. Ruyckert não fora muito afetado, pois ela nada quis saber do risco existente: se o monitoramento estava bom, tudo daria certo. Ela simplesmente acariciara bastante sua barriga no lugar em que se encontrava a filha, para confortá-la. Quando a paciente finalmente tivera de ser hospitalizada no setor de GHR (gravidez de alto risco), descobriu-se que a menininha morrera in utero aos sete meses e meio de gravidez. Em caráter de urgência, os médicos praticaram uma amniocentese para tentar compreender o motivo dessa morte. O exame revelou um líquido amniótico escurecido, que pode fazer pensar numa infecção, perigosa para a saúde da criança sobrevivente. Os médicos, que não queriam correr
nenhum risco com essa segunda criança, logo fizeram uma cesariana na Sra. Ruyckert. Foi assim que Gérard nasceu, com um peso de nascença que justificava sua admissão na unidade canguru e a colocação em incubadora. “Nada poderá me consolar, me diz ela, era a minha filha, ela está morta para sempre. O outro também chora, mas ele não tem como saber o que isso representa para mim.” Durante a sessão, oriento essa mulher a falar sobre sua linhagem materna. Fico sabendo que a bisavó de Gérard, a avó da Sra. Ruyckert, também era gêmea. Essa mulher logo ficara viúva com quatro filhos, sem muitos recursos, e os criara de maneira muito dura. A Sra. Ruyckert chegou a falar de maus-tratos sofridos por sua mãe. Para essa avó, tudo estava destinado às crianças de sexo masculino. Somente os meninos tinham de estudar, e as meninas tinham de servi-los. Logicamente, sua mãe foi trabalhar de empregada doméstica com muito pouca idade, para sustentar a família. O dono da casa, que tinha perdido a mulher, seduziu-a e a engravidou. Essa criança, que o pai reconheceu, era a própria Sra. Ruyckert. Logo depois veio um filho, que foi adulado, enquanto a Sra. Ruyckert passava para segundo plano. A primeira parte de sua vida de adulta foi pura instabilidade afetiva e conflitos com sua mãe, até que ela conheceu e se casou com o Sr. Ruyckert, de novo um homem “de outro meio”. Antes mesmo de comentar esse destino digno de um Dickens, considero indispensável e urgente explicar as coisas para Gérard: “Você nunca mais verá sua irmã que estava com você na barriga da sua mãe, o que você pode é guardá-la em seu coração. Ela não nasceu viva, ao passo que você escolheu nascer e viver”. Se falo assim com a criança do luto a fazer de sua irmã é porque as coisas que acontecem sem que se fale delas levam às vezes a funestas confusões. Que Gérard chore a sua irmã é algo concebível, mas que ele esteja inconsolável só se explica se imaginarmos que a tristeza vem de outro lugar e espera ser nomeada. O ser humano é feito de tal modo que no mais profundo luto ele deve encontrar repouso. É preciso um tempo para comer, um tempo para dormir, “talvez para sonhar”, com o desaparecido, por exemplo. Numa palavra, é preciso viver para chorar o morto, a não ser que se caia na melancolia. Essa sem dúvida é uma das duras leis do espetáculo da vida: “ The show must go on ! O Rei está morto, viva o Rei!”. A dificuldade para Gérard de se persuadir disso é ainda maior porque ninguém lhe contou o que tinha acontecido. Vi uma criança da minha família, que eu acompanhei ao enterro do avô, assistir imperturbável à cerimônia, e depois chegar no ouvido da mãe e lhe dizer: “Foi triste. Espero que a próxima vez que a gente vir o vovô, seja em casa!”. Na dor do momento, simplesmente tinham esquecido de lhe explicar o caráter definitivo da morte. Como poderia um recém-nascido se situar, se uma criança mais velha pode passar ao largo de verdades subentendidas? Na minha prática, sempre que possível intervenho esclarecendo os dados para as crianças que nasceram depois de uma morte. Vejo nisso, inclusive, uma importante questão de prevenção nos casos de morte in utero , de redução embrionária, de antecedentes de morte súbita do lactente, até mesmo de IVG ou de IMG (interrupção voluntária de gravidez / interrupção médica de gravidez), de luto não feito de um filho morto ou de aborto espontâneo. Geralmente, os próprios pais falam com seu filho. Mas às vezes eles se abstêm, seja porque sua dor os deixa mudos, seja porque sejam
pudicos (“não queria lhe contar para que ele não sofresse”), seja simplesmente porque não pensam em fazê-lo. Nesses casos, é preciso que um terceiro intervenha: uma parteira ou um pediatra que conheça bem a família e se sinta forte o suficiente para fazê-lo, por exemplo. No entanto, o tato é imprescindível, pois não se trata de passar “por cima” da vontade dos pais. Mas, sensibilizando-os para a importância da explicação dada à criança, ou aproveitando um eventual sintoma que exigisse uma resposta desse tipo, pode-se dar à criança a possibilidade de sair de um silêncio que pode ser patógeno. Mas retomemos o fio da conversa entre a Sra. Ruyckert e mim. Disse-lhe que a sua filha, tão privilegiada, me parecera ter sido investida por ela da tarefa de vingar e reparar o dano causado às duas mulheres desprezadas das gerações precedentes. Acrescento uma brincadeira em forma de um desejo em relação a ela: sendo seu mais velho um menino, a filha que ela pudesse ter no futuro certamente estaria livre da carga de conjurar a maldição das filhas mais velhas da família! Ela parece gostar da interpretação, e termina a entrevista com uma interrogação: o que fazer com o corpo do feto morto? Ela só teria pensado em enterrá-lo ou cremá-lo se o bebê tivesse nascido vivo e tivesse morrido rapidamente. Mas, e agora? Ela tinha mandado registrar o nome da criança, mas isso não resolvia o problema que lhe colocava esse corpo. Tenho notícias dela alguns dias depois. Não obstante esse resto de não-pensado sobre o lugar da criança morta, Gérard e sua mãe estão radiantes. Para mim, restam algumas perguntas. Em meu foro interior, pergunto-me se a gêmea não morreu pela enormidade desse peso que pesava sobre ela: terá ela se sacrificado no altar da neurose familiar? Que desejo de vida do feto, submetido aos significantes da história materna, foi afetado ao ponto de não conseguir nem crescer suficientemente nem nascer? Se a ética do feto é viver, o que acontece com aqueles que renunciam no meio do caminho? Não disse nada disso àquela mulher. Isso só teria por efeito reavivar uma culpa que a entrevista tentava justamente conter, essa culpa que vem com a maioria das mortes in utero e dos partos prematuros, e que faz as mães dizerem: “Não consegui levá-lo a termo!”. Essa culpa que encobre uma idéia de onipotência materna, que submete a vida e a morte do filho a seus próprios acasos conscientes e inconscientes. Formular como postulado a existência do desejo do feto e expressá-lo à mãe pelo menos permite que essa onipotência opere um compromisso que possibilite o luto. Do nascimento à vida simbólica, um passo tem de ser dado, e esse passo tem de vir acompanhado de palavras. Pois, depois do parto vem o nascimento do sujeito. É o momento crucial do baby blues. O momento de o recém-nascido se tornar sujeito depende certamente dele. Mas também depende de seus pais e do momento em que eles podem autorizá-lo a ser ele mesmo. Até então, a criança se encontra numa situação incerta: o real do nascimento ocorreu e a abalou; digamos que ela ainda não se recuperou. Quase todas as crianças, observem-no, são relativamente boazinhas e calmas até esse momento. Dormem e se restabelecem de suas emoções. É um período de limbo: “não estou mais dentro da minha mãe, mas ainda não estou totalmente entre vocês; dêem-me um tempo”. Elas estão ali, mas ainda estão alhures. Aparecem o baby blues , a descida do leite e choros, as modulações fônicas da criança, e é o a posteriori do nascimento que as desperta para uma nova vida. Lembremos
de Karina, que tinha tanto medo de nascer: ela ficava no limbo de um nascimento não realizado por falta de sustentação na segurança parental. É certo que cada criança tem sua personalidade, e algumas abrem bem os olhos, curiosas que estão do que acontece em volta delas. Outras, ao contrário, manterão os olhos fechados por algum tempo, preferindo sem dúvida não saber demais do que se diz «fora». O fato é que esse período indeterminado do limbo, esse momento do ser adormecido que precede o baby blues , é clinicamente observável. Baby blues, mummy blues, daddy blues
A ação que vem consagrar o baby blues é da ordem da castração, precisamente do que F. Dolto chamava a castração umbilical (ela às vezes também dizia castração fetal). É no momento do despertar da criança e dos choros da mãe que pode se operar essa reiteração do corte do cordão que ocorreu três ou quatro dias antes. Castração fetal
Esse corte, simbólico dessa vez, afeta a criança porquanto ela depende dos pais. É na medida em que essa castração umbilical se inscreveu para eles, na medida em que eles possam reconhecer o recém-nascido como alguém que não se reduz a ser apenas o fruto de sua carne, que eles possibilitam a essa criança o acesso à metáfora paterna: “você é o filho nascido de nosso desejo, como cada um de nós foi o de nossos pais, e assim por diante até o começo dos tempos. Sua vida está marcada por essa história, agora cabe a você afastar-se dessa marca, honrando-a sempre, para dela fazer uma vida singular e inédita: a sua”. Isso pressupõe por parte dos pais a aceitação de uma perda irreversível, que nem sempre é fácil. Quando ela não é possível, a criança o paga com sua saúde psíquica: ela fica então no lugar do sintoma, como “apêndice do gozo dos pais”, segundo a expressão de Lucien Kokh. É como se os pais, em vez de inscrevê-la no simbólico, preferissem que o corpo da criança continuasse da ordem do real. No no man’s land do limbo, o recém-nascido está no espaço intermediário entre o real de seu nascimento e seu advento simbólico. À espera da afirmação primeira de seu ser-entre-os-outros (Freud falava de Bejahung , enunciado afirmativo), ele fica como que à mercê de um julgamento salomônico, nascido mas ainda não outroa os olhos de seus ascendentes. Para retomar o continuum que vai do nascimento ao baby blues, direi que há dois momentos rinceps. O cataclismo do nascimento em primeiro lugar: além da violência da chegada à vida aérea, é a brutalidade da passagem das percepções pré-natais para novas percepções de um mundo desconhecido. É este o drama da dequitadura placentária. Segundo tempo: por volta do terceiro ou quarto dia, no baby blues, é a castração umbilical que vem desfazer o peso desse cataclismo. É uma castração simbolígena, no que ela tem de linguagem e no fato de que faculta o acesso a uma comunicação com o outro. Ela é um esforço de nomeação – «é um menino», “é uma menina!” – e ao mesmo tempo o reconhecimento do lugar singular da criança numa linhagem que vai além de seus
pais. São essas palavras ditas em relação ao nascimento, conotadas da alegria ou da inquietação que elas veiculam, que a criança registra como uma fita magnética. Essa castração contém em si mesma uma outra castração, imaginária, dos pais, “não, esse filho não é uma coisa nossa ou nosso objeto, nem uma bonequinha falante”. Essas duas castrações são a fonte do poder de simbolização da criança, elas condicionam sua liberdade futura. Como o resumia F. Dolto: “É da falta de palavras que ela sofre. É falando ao seu filho desse vínculo [entre ela e ele] que a mãe vai conseguir parar de olhar para ele como um objeto parcial dela mesma, e concebê-lo como um outro real. Trata-se, portanto, de dar a castração do lado da criança e do lado da mãe. É a castração que permite que a criança se identifique ao indivíduo de mesmo sexo exclusivamente, dando acesso ao Édipo”. Falamos de nascimento simbólico no momento do baby blues . A criança imaginária, como dissemos, pode perfeitamente coabitar com a criança real de carne sem ameaçá-la. Nenhuma necessidade de fazer o luto dela. Se algum luto há a fazer para a mãe é o do feto e da gravidez, e sua “substituição” por uma nova relação mãe-filho referida ao pai e ao seu nome. É o que as palavras de uma mãe, no mais profundo de sua depressão, dizem: “Antes, era tudo para mim. Agora, é tudo para o bebê”. Elas vivem a si mesmas como o dejeto, o resto de uma divisão no sentido algébrico. A mãe é confrontada com algo que a supera por todos os lados: de real, a criança se torna simbólica, e essa distância é difícil de transpor. O começo da utilização da voz com fins de comunicação, no quarto dia, é uma simbolização, uma realização, como diria Bion, do espaço potencial de linguagem de que falávamos. As modulações da criança são expressões concretas que correspondem a uma estimulação e um despertar do cérebro, realizações fônicas. À medida que se dá a realização fonatória do lactente, a conformação de seus gestos e seu funcionamento corporal são mentalizados. São dois funcionamentos paralelos: por um lado ele reage mentalmente aos sons, palavras, falas, potencialmente carregados de sentido que são trocados entre ele e seu meio; em primeiro lugar aos de sua mãe, de quem ele é o enxerto de corpo primeiro. Por outro lado, o funcionamento de seu corpo reproduz a expressão oral. Isso provoca confusões, como a de reservar à linguagem oral do ser humano o lugar de uma expressão bruta, enquanto a linguagem escrita seria o asilo natural dos conceitos e do pensamento. Isso contradiz o que escutamos dos recém-nascidos. Não esqueçamos as palavras de Gisèle Gelbert sobre a primazia dos circuitos que levam ao “proposto oral próprio” no humano; para ela, também, é o oral que condiciona a potencialidade do escrito. O lactente, filho da linguagem, é um pensador: ele reage em função do modo como as coisas reagem em torno dele. Suas emoções-sensações não são simplesmente afetos, mas as primeiras modalidades de suas capacidades de pensar. Inversamente, notava F. Dolto, nos lactentes precocemente separados da mãe e a quem nenhuma palavra foi dita em relação ao nascimento, observam-se um «retardo e defeitos de linguagem, enganches da língua no palato que tornam impossível toda pronúncia ou parte da pronúncia dos fonemas. São gritos que são expulsões contínuas de sons, ou, ao contrário, a ausência total de sonorização por falta simbólica da laringe na qualidade de lugar de prazer ativo para as modulações de comunicação». Castração da mãe
Do lado da mãe, a castração consiste em aperceber-se de que ela tem diante de si um verdadeiro ser humano, um sujeito bebê. Ela sem dúvida deve se sentir na situação de um prestador
de serviços a quem se agradece com um sorriso pelo fantástico trabalho realizado, mas a quem depois se agradece secamente, e sem sorriso, porque não se tem mais necessidade dele. É para ela o momento de perceber que, embora seja a autora de seu filho, não é a única. O corpo do filho era locatário do seu, mas nem por isso ela é sua proprietária. Ela precisa de certo tempo para mentalizar essa distância entre ela e o filho. É o tempo do limbo, e o do baby bluesq ue o encerra. Isso exige dela uma renúncia, pois ela já não pode deixar de reconhecer que o futuro do filho a ele lhe pertence. É claro que ela vai influenciar seu desenvolvimento, mas ele já terá começado a construir um lugar para si. Que ela possa reconhecer esse lugar que ele ocupou depende daquele que lhe tiver sido outorgado na sua primeira idade. Terão ou não terão permitido que ela se situasse como outro, como individualidade singular na sua linhagem? Muitas vezes é essa a questão que ganha a frente da cena por ocasião do baby blues. Esse problema de lugar a ocupar pelo bebê tem uma dimensão física para os recém-nascidos que não conseguem recuperar o peso após alguns dias. É muitas vezes como que o eco do lugar inencontrável da mãe depois do seu próprio nascimento. É por isso que um baby blues tantas vezes cede a partir do momento em que se possa falar das relações da mãe com sua própria mãe. Penso naquela mulher que encontrei por ocasião de seus dois partos – de seu primeiro filho, Joseph, e de sua caçula, Laure, no ano seguinte. Quando teve o primeiro filho, estava desesperada, achando que não conseguiria amamentar. Esse desejo contrariado provinha para ela da obrigação inconsciente que se impunha de não seguir o exemplo materno: sua própria mãe não amamentara nenhum de seus cinco filhos, e era uma opositora ferrenha do aleitamento ao seio. Pouco depois do nascimento, o casal quis fazer do batizado uma grande festa familiar. Péssima idéia, pois a festa converteu-se na exibição dos dramas familiares. O irmão menor dessa mulher recusara-se a comparecer à recepção e sua mãe fizera a mais velha pagar pela defecção do caçula, pondo uma cara de enterro pouco apropriada à circunstância. Ao contar-me isso, essa mulher percebeu que ela fora relegada em proveito do irmão durante toda sua infância, fato esse que sempre quisera ignorar. Cada um tira proveito de seus infortúnios para obter um pouco mais de esperança, e essa mulher encontrou nisso ocasião de se aproximar do pai, sobretudo após a separação dos pais. Foi certamente essa atenção à imagem paterna e masculina que a ajudou mais tarde a encontrar um bom parceiro. Mas esse problema de ciúmes continuava sendo central, e apareceu sob a forma de uma extrema agitação e de nervosismo quando do nascimento de sua segunda filha. Ela não suportava a idéia de que pudesse haver ciúmes entre seus dois filhos. Sua agitação provinha de ela ficar o tempo todo imaginando estratégias para evitar de antemão um hiato: será que ela tinha de tirar o mais velho da creche para que ele soubesse que lhe dedicavam tanta atenção quanto ao recém-nascido, será que era preciso moderar os carinhos dados à menor para não incomodar o mais velho etc.? Sem deixar de privilegiar Joseph, ela evidentemente resistia mal à pulsão de repetição que a fazia adotar com seus dois primeiros filhos a mesma posição que a de sua mãe com ela e seu irmão. Sua mãe, na sua onipotência, sem dúvida não previra a possibilidade de que sua filha mais velha um dia viesse a ser mãe, por sua vez. Para consegui-lo, sua filha tinha de passar por três transgressões sucessivas. Primeiro, poder dar à luz, o que já era um desafio a essa onipotência materna: ela aliás voltara atrás três vez, pois três abortos espontâneos tinham precedido ao nascimento de Joseph. Em segundo lugar, poder amamentar, contra a opiniões professadas pela mãe: isso foi o centro de seu baby blues no
primeiro nascimento. Aceitar, no seu lugar, a caçula como uma igual do mais velho: esse era o problema, mal resolvido, que a chegada de Laure lhe colocava. Três castrações, em suma, que não estavam inscritas para ela. Um lugar pequeno demais para Anne
Anne é uma criança cuja própria vida está condicionada pelo lugar que ela tem de ocupar na sua linhagem. Essa questão é crucial para ela, bem como para seus pais. Para eles, a questão tem múltiplas ressonâncias: que lugar aceitamos que nosso novo filho ocupe? Mas também, para a mãe: que lugar eu mesma pude ocupar entre meus irmãos e irmãs? E por fim, como um último produto dessa questão: qual é o lugar da psicanalista, em que medida sua função de mediação está autorizada e é útil? Veremos que não há uma resposta simples e unívoca para essas questões. Pois, na dor do parto que uma criança tem de fazer de si mesma, a única resposta possível é singular. A Sra. Rigaud pediu para me ver certa manhã porque chora muito. Ela é mãe de trigêmeos: Anne, que foi encaminhada para o serviço de neonatologia, porquanto pesa apenas 600 g, Maxime e Nathalie que estão internadas junto com a mãe na unidade canguru, por causa de uma leve prematuridade. Ela se inquieta com razão com o sofrimento de Anne que está intubada, pois na época em que a conheci não existia ainda protocolo anti-dor no tratamento dos prematuros. Mas seus choros não diminuem faz dois dias, apesar das visitas que fez a Anne e a garantia de que o prognóstico não é muito desfavorável no momento. Sou recebida no quarto pelo Sr. e pela Sra. Rigaud, bem como por Nathalie e Maxime que estão em suas incubadoras. Como observa a Sra. Rigaud: “Aqui dentro desse quarto tem tanta gente quanto ele pode conter, mas ainda falta gente”. A história que ela me conta desse nascimento triplo é cheia de meandros. Seis anos antes, o casal teve uma primeira filha, Maud; o nascimento desencadeou na Sra. Rigaud uma depressão pós-parto que durou seis meses. Seguiu-se um período de esterilidade de cinco anos. Foi feito um tratamento dessa esterilidade em Béclère e, ao fim desses cinco anos, uma inseminação artificial resultou numa gravidez. Quando o casal ficou sabendo, já na segunda semana de gestação, da presença de três embriões, acreditou compreender que lhes prescreviam uma redução embrionária. Essa intervenção consiste numa operação visando a aniquilar in situ um dos embriões, a fim de reduzir a gestação a uma gravidez gemelar e aumentar as chances de sobrevivência dos embriões. É um gesto delicado que sempre causa algum mal-estar nos médicos: embora a seleção do embrião que desaparecerá não seja mera loteria, nem por isso deixa de colocar problemas de consciência. Foi por isso que a reflexão ética conduzida pelo professor Frydman e sua equipe impôs, desde o aparecimento dessa técnica, uma dupla exigência: a redução só é considerada em Béclère para gestações pelo menos quádruplas, e ela tem de ser proposta aos casais, nunca imposta. No caso da Sra. Rigaud, cuja aventura se deu em outro estabelecimento, criou-se um mal-entendido. Achando que a redução embrionária lhe estava sendo prescrita como tratamento médico, ela caiu em depressão, e o casal antecipou o luto desse embrião. Quando, depois de uma discussão mais aprofundada, esclareceu-se aos pais que a opinião deles era necessária, eles recusaram a redução e decidiram levar a termo a gravidez tripla. Depois de escutar isso, propus à Sra. Rigaud ir ver Anne na reanimação e explicar-lhe esse
imbróglio. Era preciso que Anne pelo menos escutasse da mãe que o luto e a depressão do começo da gravidez não correspondiam ao desejo de seus pais de livrar-se de um de seus filhos; que ela soubesse que eles não exigiam que ela ocupasse o lugar da vítima de um sacrifício não desejado por eles. Que ela também escutasse de sua boca os motivos do tratamento e de seu sofrimento. Revi-a três dias depois e fiquei sabendo que, algumas horas depois que os pais falaram com Anne, foi possível desintubá-la e deixá-la respirar sozinha durante doze horas. A Sra. Rigaud, cujo marido dessa vez está ausente, me fala de sua depressão na primeira gravidez. Fora muito difícil para ela constatar, por ocasião desse nascimento, o comportamento da família do marido. Até então eles a adulavam, mas, de repente, todas as atenções se voltaram para Maud, e ela passou a ser considerada apenas como uma mãe de aluguel. Depois ela associou sobre seu próprio nascimento: quarta criança de sua fratria como sua filha Anne, ela sabe que não foi desejada e que, como se não bastasse, teriam preferido que ela fosse menino. Seu nome já estava pronto – Paul –, e a decepção dos pais foi tal que só encontraram um nome para ela depois de três dias. Sua reação fora claríssima e determinara seu futuro por muito tempo: ela se tornou uma criança boazinha, fez de tudo para não incomodar e ser aceita! Depois de adulta, considerara um dever mostrar seu valor; prova disso era seu sucesso profissional. Esse sucesso também estava dedicado à sua família, visto que, desde então, a Sra. Rigaud se responsabilizava pelo sustento material dos seus. O nascimento de sua primeira filha, e o comportamento da família do marido, que de certa forma exigia que ela se apagasse de novo, reavivou a lembrança desse lugar que nunca era o seu – «há o mesmo tanto de gente quanto de lugar, e no entanto falta». Como felizmente ela já não era mais tão boazinha como antes de ser mãe, só lhe restavam seus olhos para chorar o nascimento de sua filha e seu próprio nascimento. Para pontuar essa segunda entrevista, aconselho essa mãe a contar tudo isso para sua filha Anne, que também parece estar se apagando para não incomodar: dizer-lhe quem ela é na sua fratria e na sua linhagem, qual o lugar dela. Revemo-nos para uma terceira entrevista em que me confirmam que Anne está melhor, que ela pesa agora mais de um quilo e bebe o leite da mãe, que Maxime e Nathalie puderam sair da incubadora e que a Sra. Rigaud recuperou o gosto pela vida. Mas agora é a vez do Sr. Rigaud ficar deprimido e fragilizado. Ele não agüenta mais visitar Anne com sua mulher e nem falar com ela, a tal ponto que sua mulher diz esconder dele certas coisas, acrescentando que ele se comporta como se fosse seu quinto filho. Enquanto a mãe fala de seu pai, Maxime comenta intensamente a entrevista. Proponho então conversar com o pai, mas ela garante que ele não vai querer, pois já achou um abuso eu ter me metido na vida deles. Ela acrescenta que se sente responsável por isso, pois tomou todo o cuidado de não informá-lo de nossa primeira entrevista. Compreendo melhor por que ele se espantou com minha «intrusão». Proponho então escrever para esse pai, a fim de esclarecer esse qüiproquó, o que ela aceita de bom grado. Na carta, afirmo para o Sr. Rigaud que eu jamais me teria permitido intervir junto a eles sem o seu consentimento e tampouco sem que ele fosse avisado. Cinco dias depois, o pai lerá a carta diante de sua esposa sem fazer qualquer comentário; ele melhora de forma evidente e pode novamente ir até a cabeceira de Anne com a mulher. Anne, por sua vez, ainda corre perigo. Tem espasmos da laringe cada vez que tentam desintubála; intubada, ela respira tranqüilamente, sem ventilação. Vorreï e non vorreï :9 Anne continua ambivalente. Sem muito pensar, lembro-me do calendário e aconselho a mãe a dizer para a sua filha:
“Estamos agora na data em que você teria chegado normalmente se tivesse nascido a termo. Se isso tivesse acontecido, você teria respirado sozinha, sem a ajuda de nenhuma máquina. Entendo que você gostaria que eu a embalasse, que eu a acariciasse e alimentasse, mas enquanto essa máquina estiver ligada não posso fazê-lo. Logo que isso for possível, eu o farei com prazer. Também vou lhe dar um lenço que usei para que você sempre tenha meu cheiro perto de você, e virei vê-la e conversar com você para ajudá-la até que estejamos reunidas”. Eu achava que esse tubo podia ser para Anne um equivalente do cordão umbilical que a ligava a uma placenta perdida, e que ele agora substituía a mãe obrigatoriamente ausente demais. Tinha ou não tinha razão? Não sei, o tempo foi insuficiente para poder afirmá-lo. A Sra. Rigaud, Maxime e Nathalie saíram do hospital muito rápido. Algumas semanas depois, Anne pôde prescindir desse tubo, e reuniu-se a eles em casa. Muito tempo depois fiquei sabendo que outros problemas apareceram em seguida, exigindo várias hospitalizações. Anne parou de lutar no fim de seu primeiro ano de vida. A análise não dá conta de tudo; de qualquer forma, desejo que ela tenha podido atenuar a dureza de sua vida. Assim, sobretudo quando a depressão se instala e se torna crônica, remontamos com freqüência a um problema ligado aos avós de um lado ou do outro. O contexto do nascimento da mãe, ou do pai, volta à superfície. Na verdade, a criança é a realização concreta das linhagens tanto paternas quanto maternas da mãe (e também do pai, aliás). Na lembrança de seus ascendentes figuram, em filigrana, os vivos e os desaparecidos, o que deles se diz e o que é omitido, a homenagem prestada ou não aos mortos da família. A criança presentifica tudo isso de forma abreviada. Ela é o resultado tanto da potencialidade dessa mulher para ser mãe no âmbito dessas linhagens, como de sua aliança com um homem-pai e sua própria linhagem. Cabe a ela renunciar pela castração a considerar o filho apenas como fruto de suas entranhas. É essa castração da mãe que torna possível a castração simbolígena da criança. É fácil perceber que essa castração é um movimento positivo: ela concerne à inscrição da criança nas linhagens, e portanto vai além do processo de nomeação da criança (dizer o sexo, o nome escolhido, convocar as testemunhas etc.). É nesse sentido que o baby blues, a despeito do momento difícil que ele constitui, tem por efeito libertador aspirar a criança para a vida. Castração do pai
E os pais? Os pais estão em êxtase, mas não há alegria que não tenha seu preço. Concedamos a palavra ao professor Frydman, ao mesmo tempo marido, pai e obstetra. A cena se desenrola no café La Bonbonnière – café de nome predestinado, como ele mesmo diz. Sua mulher está prestes a dar à luz, e ele marcou um encontro com ela ali. “Chamam-me ao telefone: ‘Sua mulher está dando à luz, o senhor tem de vir para cá.’ Chego em Port-Royal, procuro, pergunto: ‘O senhor não viu uma Sra. Frydman, ela deve estar no comecinho do trabalho?
– Vi Vi sim, está está tudo tudo muit muitoo bem, bem, é um um menino, enino, o senhor senhor quer vê-lo?’ (...) trazem-me logo em seguida uma espécie de homenzinho. Tive uma angina durante três dias.”10 Um pai pode fazer uma angina, mas ele também pode chegar a fazer um baby blues, do jeito dele. Os homens choram menos nessas circunstâncias, é verdade, mas acusam o choque à sua maneira: um ataque de cansaço inexplicável, não comparecimento a compromissos, condutas inadequadas e acidentes mais ou menos graves a caminho da maternidade. Muitas piadas foram feitas sobre a síndrome da couvade, que faz referência ao comportamento desses pais africanos a quem se reconhece o direito, depois do parto da mulher, de ficar na cama inativos e afastados do convívio do grupo durante certo tempo. Em nossas sociedades pós-industriais tolera-se menos esse tipo de comportamento ritualizado. Mas, como não faltam recursos para o ser humano, descobrimos entre nós equivalentes que, desse ponto de vista, colocam uns e outros no mesmo plano. De que se trata? É o mesmo baby blues para um pai e para uma mãe? Não exatamente. Para ele, a situação é difícil: até aquele momento ele talvez tivesse a impressão de não ter muita importância para o desenvolvimento desenvolvimento uterino uterino do filho, e, agora, eis essa coisinh coisi nhaa que exige exige todas as atenções. atenções. Isso sem falar que, em certos casos, ele foi posto de lado no momento do nascimento, porque “é um assunto de mulheres”, ou porque é um assunto de médicos; como se não bastasse, agora ninguém lhe dá atenção... Ele até começa a ter dúvidas: mater certa, pater incertus! Seja como for, ele ainda não está em posição de ser plenamente reconhecido como pai. Supõem que ele seja “o pai feliz”, sem dúvida, mas a mãe não teve realmente tempo de confirmá-lo como tal junto ao filho deles. Talvez ele manifeste certa contrariedade. E não chegue a tempo na maternidade para “o feliz acontecimento”. Tem uns probleminhas, como se diz: uma gripe forte, o carro quebra... Mas ninguém nunca sabe aonde levam os probleminhas. Do engraçado ao trágico é só um passo, e nunca se sabe se o pior já aconteceu. Foi assim que, indo ver uma parturiente no seu quarto onde ela me esperava, encontrei na cama um marido, eng engessado essado da coxa até os dedos do pé, com co m a mulh mulher er sent s entada ada à sua cabeceira cabeceir a para assistiassis tilo. Sem dúvida o quadro mais inesperado que me foi dado ver numa maternidade! Fato é que esse homem levara um tombo feio no dia do nascimento. Tivera de ser hospitalizado, e portanto foi de ambulância que ele veio visitar a mulher e o filho. Aliás, ele não era o único a estar brutalmente abalado com esse nascimento, pois a mãe tivera de passar pelo setor de gestações de alto risco no sétimo mês de gravidez, devido a uma ameaça de parto prematu prematuro. ro. Essa hospitalização provocou muit muitas as reflexões por parte dessa mulher mulher durant durantee nossa entrevista, e parece ter feito ela decidir iniciar um trabalho psicanalítico no futuro. Além disso, ela manifestava um forte baby blues, complicado pelo fato de sua filha ter tido de ser colocada na unidade canguru devido a distúrbios respiratórios. Estava-se justamente procurando elaborar um parecer médico para par a saber de qu q ue se tratava. O diálogo que ocorreu entre nós evidenciou a importante transgressão que representou o nascimento dessa criança. Fora preciso enfrentar os interditos familiares mais brutais para poder dar à luz com mais de 40 anos, e nesse sentido a gravidez era quase uma passagem ao ato. É cabível
pensar que foi assim que essa mãe o entendeu entendeu.. Disse ter tomado tomado consciência disso ao me falar do quanto esses interditos pesavam sobre seus ombros de pais, e mais ainda sobre os de sua filha. Via agora os sintomas da filha como um apelo que ela lançava aos pais para que cuidassem dela. Como se, dizia ela, a filha lhes pedisse para pôr uma pá de cal sobre as brigas de família e, com ela, criar uma nova célula familiar. O pai reagiu às palavras da mulher... como um só homem, como um só pai que ele se tornara graças a elas duas. Pegou a criança nos braços e deu-lhe a mamadeira, lentamente, delicadamente, num silêncio cheio de uma intensa emoção que envolveu os três protagonistas. Diria até os quatro, pois fiquei fiquei muito uito tocada de ver esse pai, deitado na cama cama da mulher, ulher, dando pela primeira vez a mamadeira amadeira à filha deles, deles , e deixan de ixando do as lágrimas lágrimas correrem. cor rerem. O problema desses “acidentes” é que eles levam esses pais a uma autêntica regressão infantil em seus corpos. Infecções passageiras, gripes-anginas-resfriados, torsões, fraturas, até mesmo apendicite ou cólicas renais provocam a hospitalização – qualquer coisa serve para colocá-los numa posição osiçã o de criança c riança de quem é preciso pre ciso cuidar, nu num moment omentoo em que que uma uma outra outra criança c riança real rea l absorve abs orve a atenção da mulher deles. A castração consiste para eles em se desfazer da imagem de sua própria mãe a quem estão ligados. Também eles podem ser levados a evocar seu próprio nascimento e o lugar que lhes foi dado. Se nos limitarmos ao nascimento do filho deles, é incontestável que pouco se faz em nossas sociedades para apoiá-los. No entanto, eles se encontram num momento de fragilidade potencial, pois, embora embora certament certamentee sejam considerados gen genitores itores do filho, ainda não são considerados pais no sentido pleno do termo. Muito raramente há irmãos, primos, aliados da comunidade em torno deles, como é o caso em outros tipos de organização social. Talvez os sinais de sofrimento desses pais que fazem um baby blues não sejam suficientemente levados a sério. O nascimento de uma criança deve-se a um pai, a uma mãe e a algo mais. Esse algo mais que tem a ver com a palavra e o simbólico surgirá desde que a criança possa se reconhecer como um ser de desejo independente, desconsiderando-se qualquer questão de maturidade fisiológica e de autonomia social. Nesse parto de si mesmo que virá a se operar, o mais importante é o vínculo com o outro – nomeadamente a mãe e a transmissão que ela fará do nome e da função do pai junto dela. Esse víncu v ínculo lo se s e reata re ata na vida pós-nat pós -natal al a partir da ren re núncia que a mãe venha venha a fazer fazer da d a criança cri ança como como pedaço de carne ca rne que seria seri a a continu continuação ação dela mesma. esma. Não é difícil di fícil imagin imaginar ar que essa castração seja uma provação para ela, o que o baby blues demonstra. No entanto, é importante que ela saiba que essa provação é salvadora sal vadora para ela, para o recém-n recém-nascido ascido e a posteriori para o pai da criança. Na verdade, trata-se aí do desenvolviment desenvolvimentoo simbólico do sujeito-bebê. A alguém alguém que fazia fazia objeção a suas teorias sobre a aquisição da linguagem e da memória, o neurobiólogo Edelman certo dia declarou: “Lembrem-se de que é pouco provável que um bebê francês, por mais bem dotado que seja, proclame Penso, logo l ogo existo exi sto ”. Edelman tem razão. No entanto, é isso o que se escuta no baby blues. Para um psicanalista, que não pode ignorar Descartes, o bebê fala, logo ele existe; mas também ele existe, logo ele pensa, ele pensa, logo ele fala. É para esse círculo que nos leva o baby blues. O bebê nasce com uma história que lhe é imposta, que está pré-arranjada para ele: a de sua
linhagem e do desejo parental. Nesse sentido, ele vive sua vida como algo agido fora dele e por outros. É a essa história que se situou fora dele que a psicanálise lhe permite ter acesso quando as coisas não foram ditas, nem nem nele nem em torno torno dele. dele . Esse dado básico bás ico e seus acasos, acas os, ele el e terá de falálo para dele se afastar se quiser inventar sua própria história. O a posteriori do parto lhe permite aceitar essa história e ao mesmo tempo dela tomar distância: “ninguém escolhe os próprios pais, portanto ortanto aceito a história da qual nasci tal como como ela se apresen aprese nta; mas deve-se hon honrar rar o desejo de transmissão deles, por isso tenho agora de secretar minha própria história”. Seu corpo, de puro real que era para os outros, torna-se nesse momento a encarnação, o lugar mesmo da linguagem: vagidos, gritos modulados, choros, movimentos da boca, das mãos ou do corpo em direção à mãe são as primeiras manifestações anifestações com destinatário destinatário de um ser independent independente. e. Paradoxalment Paradoxalmente, e, ele só poderá tomar sua vida nas próprias mãos graças ao apoio do outro: a mãe ou o pai, em princípio; na falta deles, aqueles que ocupam seu lugar e o criam. Pois, se existe castração simbolígena, é de uma voz de fora que ele a receberá. É com uma outra voz, a sua, que ele escuta ao mesmo tempo que a deixa dizer, que ele demonstrará que recebeu bem a mensagem, e que ali está, vivo e diferente, sujeito à parte. Nascer em segredo
Existem recém-nascidos que não têm a sorte de compartilhar com a mãe esses estranhos problem roble mas de baby blues. São as crianças nascidas de um parto em segredo, entregues pela mãe aos cuidados de uma instituição que irá criá-las desde o nascimento até que uma família adotiva as acolha. É certo que, diferentemente do baby blues , o parto em segredo é raro: entre 500 e 700 casos por ano na França, conform conformee as diferentes diferentes avaliações. avali ações. No entant entanto, o, ele é igualm igualment entee represent repres entativo ativo dessa necessidade de palavra relacionada rela cionada com o período do limbo. Se nos permitirmos sorrir por um instante, diremos que as crianças nascidas de um parto em segredo têm a sorte de não ter de lidar com as expectativas e projeções imaginárias daqueles que as conceberam: “eu queria que meu filho fosse um menino e é só uma menina..., minha filha vai ter o meu nariz e estudará belas-artes como a mãe... etc.”. Isso pode ajudá-las. F. Dolto chegava mesmo a dizer que isso as colocava de imediato em situação de análise: “A partir do momento em que nós (analistas) temos de estabelecer uma relação com uma criança que não tem mais seus pais de nascimento (...) podemos lhe dizer que ela é em si mesma seus pais. Ao ter de representar por conta própria rópri a a cena primitiva, primitiva, ela el a está, de fato, fato, num numa situ si tuação ação de sujeito; (...) se quiser trabalhar conosco, c onosco, ela estará, no seu lugar de sujeito, bem mais liberada que as outras crianças (...)”. 11 Em se tratando de recém rec ém-nascidos, -nascidos, acrescentem acr escentemos os que os efeitos dessa posição de sujeito conquistada conquistada desde desd e o in i nício são espetaculares: ela muitas vezes promete um bom começo, desde que, e somente desde que, sua história lhes seja dita. Pois, embora não tenham mais os pais para influenciá-las, elas os têm no coração (os pais interior interi ores es de que falava F. Dolto), e a falta deles é cruel. Desde a época das consultas na rua Cujas, vi muitas crianças nascidas de um parto em segredo em grave estado de desamparo. Já contei por que, por esses dois motivos – sua dor extrema, sua capacidade extraordinária de sair dela –, decidi trabalhar em maternidade. Foi graças a elas que fui convencida de que um
psicanalista tinha de ir escutar os recém-nascidos e falar-lhes. a elas que devo o fato de pensar que a um bebê podem faltar palavras a tal ponto que ele morra por isso. São elas que me levam a testemunhar hoje. Eu me perguntava se era possível – muito cedo, logo ao nascerem – fazer com que as crianças já pudessem escutar um depoimento sobre a “vida delas de antes” (da separação) quando todos os representantes de sua história (pai, mãe...) não mais estavam presentes para contá-la. Se algum interesse havia em ir à maternidade falar com os recém-nascidos com dificuldade de viver, era primeiro para esses que nunca tinham tido nenhum vínculo com seus genitores nem com sua linhagem. Essas crianças, por não poderem situar sua curta história passada de modo “transgeracional”, não podiam dar um sentido presente ao futuro de sua vida, e era preciso tentar intervir para ajudá-las a fazê-lo. O parto em segredo representa uma exceção ao trabalho habitual de um psicanalista. Primeiro porque ele felizmente representa apenas uma parte minoritária dos pacientes recém-nascidos. Em segundo lugar, porque ele envolve uma urgência de palavra. Um psicanalista não está acostumado com a urgência; antes, desconfia dela como de uma cilada que o impediria de escutar que o inconsciente não tem tempo. No entanto, é preciso intervir em caráter de urgência no caso do parto em segredo. É certo que essas crianças abandonadas necessitam de cuidados adaptados a elas, e as instituições hoje em dia preocupam-se com isso de maneira mais ou menos feliz. Mas, mais que isso, elas necessitam de uma verdadeira acolhida linguageira para poder se desenvolver. É preciso agir, o mais rápido e melhor possível, para nomear as coisas e possibilitar que essas crianças conquistem sua humanidade; está mais do que provado de que uma negligência a esse respeito, somada à dor da separação, às vezes as leva a perdê-la. De X a Xisete
Nomear o humano deve ser tomado aqui ao pé da letra. Assim, no começo de minha prática na maternidade, cruzo com uma auxiliar de puericultura carregando, como é freqüente, um bebê “no canguru”, isto é, apertado contra seu peito por meio de um avental, para manter com ele um contato constante. Ela se dirige a mim: “– Apresento-lhe Xisete! – Xisete? É o nome dela? – Bem... Ela nasceu sob o nome X há quatro dias, e como ela ainda não tem nome, por enquanto chamamos ela de Xisete”. Xisete? Como podia-se aceitar numa maternidade de ponta que um recém-nascido, sozinho sem a mãe num serviço, seja chamado dessa forma? “X...” em relação ao registro: a quem isso não evoca o horror dos campos de concentração? “...ete” em relação ao sexo, pouco mais que um indivíduo do sexo feminino! Que tipo de sociedade suportaria tal violência simbólica? Comecei a indagar e descobri que a mãe não quisera dar um nome a essa criança. Como é
costume nesses casos, é a parteira que lhe atribuíra um: Sandra. Diante disso, o escritório de registro civil ordenara retirar-lhe esse nome, argumentando que a parteira não tinha o direito de dar um nome a essa criança. Daí esse nome improvisado, Xisete, à espera da próxima decisão municipal 12 ... Acontece que essa intervenção “legal” era não só involuntariamente violenta, mas também ilegítima aos olhos dos textos de lei da época. Ela foi rapidamente revogada, a nosso pedido, por uma carta do procurador, pois baseava-se numa confusão. Esse “erro” decerto tinha sua lógica, mas nem por isso era menos “louco”: a administração municipal apoiava-se no fato de que só ela tinha o direito de “atribuir nomes às crianças cuja filiação é desconhecida”. Ora, uma criança cuja filiação é mantida em segredo não é uma criança cuja filiação é desconhecida! Alguns telefonemas foram suficientes para pôr as coisas nos seus devidos lugares e devolver a Sandra seu nome. Em seguida, dei um jeito de recuperar o pouco que se sabia de sua história, e convidei a auxiliar de puericultura a me acompanhar para falar com esse bebê. “Você se chama Sandra...”, comecei, e depois contei-lhe sua vida. Enquanto durou essa curta exposição, ela reagiu fisicamente com uma expressão que nunca esquecerei: ela abria e fechava a boca como se engolisse o que eu dizia. Fiquei emocionada com essa “resposta”, e no fim da entrevista a auxiliar de puericultura me disse: “Obrigada por ela!”. O que ali acontecia não era um mero reflexo de sucção, mas uma incorporação física das palavras, e, de nossa parte, uma sensação igualmente física de sermos escutadas. Para entender o que sentimos, basta imaginar atores que dizem pela primeira vez em cena um texto e que, graças ao público, percebem que não imaginavam todos os efeitos que ele produzia. Para a eventualidade de eu me imaginar vítima de alguma pieguice nova que eu desconhecia, a repetição dessas expressões em inúmeros recém-nascidos abandonados teria feito calar meu susto. Agradeçamos à história da psicanálise, que produziu conceitos tais como a incorporação da fase oral ligada à identificação, ou noções como as de alimentos simbólicos... Eles permitem compreender que o sujeito pensa, “monta” conceitos, e que esses conceitos são, em primeiro lugar, do corpo. Nesse caso particular, é a boca em forma de meia-lua nessa criança que se põe a sorrir para a vida que ela conquista, e, para a puericultora, a inteligência da situação dessa criança a partir de sua barriga em contato com ela. De separação em separação
Desconheço o destino dessas crianças nascidas sob o nome X. Mas o futuro das crianças nascidas de um parto em segredo é, antes mesmo da eventual adoção, a separação repetida e a espera. Separação da mãe ao nascer, é claro. Mas também saída do hospital para um abrigo provisório, para uma família de acolhida provisória ou para uma assistente materna;13 ruptura também quando é preciso juntar-se a uma família adotiva. Todos esses cortes em relação aos sucessivos meios reatualizam para a criança a primeira separação. Foi dessa constatação que parti: os sintomas apresentados por alguns desses bebês remetiam a vínculos criados com aqueles que cuidaram deles nos primeiros dias de sua vida no hospital. A falta de simbolização desses vínculos e da inevitável separação que fatalmente punha fim a eles fazia com que o corte reaparecesse no sintoma clínico. Portanto, é preciso esclarecer para essas crianças os limites desses vínculos, dizer-lhes que eles são
apenas provisórios, que as puericultoras não são a mãe delas, mas pessoas pagas para cuidar delas. É preciso acrescentar que a separação em relação a elas não é um pedaço de história que se repete, mas uma etapa importante e uma partida para uma nova instituição onde seu futuro estará sendo preparado: um futuro de adoção, por exemplo, mas também qualquer outro tipo de futuro que se constitua a partir de um laço social, e não a fatalidade de uma separação sempre repetida. Partir é morrer um pouco, diz o provérbio. Partir, para um recém-nascido separado de sua mãe e vagando do hospital para a instituição à espera de adoção, é, às vezes, ficar tão pouco ligado à própria vida, ao ponto de submeter-se a ela sem a menor vontade. Em toda a literatura relacionada com a separação precoce, as mais diversas síndromes foram descritas. Diversas teorias surgiram para explicá-las, a mais famosa sendo a do attachement, com que, como já dissemos, não compartilhamos. Mas, sejam quais forem as opções adotadas, esses seres, para quem uma infância passada em instituição e até uma adoção foram problemáticas, são todos eles crianças para quem não pôde ser feita uma elaboração simbólica do que eles viveram confusamente de modo perceptivo ao nascer, ou antes. A situação da lei
Deixemos de lado a adoção, e voltemos nossa atenção para a sua principal origem: o abandono. Outrora se falava de abandono. A lei baniu esse termo, que ela considera pejorativo na quase totalidade dos casos. Empregou-se, então, sucessivamente, os termos de parto anônimo, de parto “sob o nome X” e, faz pouco tempo, de parto em segredo. Por meio de uma lei específica, nossa sociedade, com efeito, permite que mulheres dêem à luz um filho sem que ninguém possa declarar legalmente que essa criança é filho daquela mulher. “Ninguém” designa tanto a autoridade executiva ou qualquer representante da sociedade, quanto o pessoal médico que tenha ajudado no parto, e a própria criança. Num prazo máximo de três dias, a criança é obrigatoriamente afastada da mãe e confiada a uma instituição privada ou pública com vistas à adoção. O segredo do parto é registrado num dossiê enviado ao DASS [Departamento de Ação Sanitária e Social] e contém, no melhor dos casos, as menções toleradas ou proibidas pela mãe do nome do pai biológico, das circunstâncias do nascimento e de uma palavra eventualmente endereçada por ela ao filho. A isso se acrescenta a declaração de abandono, assinada pela assistente social. Não pela mãe. A criança, ao atingir a maioridade, pode obter permissão para consultar esse dossiê e descobrir, em princípio, o tanto de segredo que a mãe tiver aceito confiar a ela. Se os pais adotivos concordarem e a acompanharem, poderá inclusive consultar esse dossiê já aos 13 anos. A mãe pode voltar atrás de sua decisão e pedir para recuperar o filho num prazo de dois meses, depois do qual nada mais, a priori, pode impedir uma separação definitiva. Eis o estado bruto das coisas, sem mais comentários, revisto pela lei nº 96-604 de 5 de julho de 1996 relativa à adoção . Assim redigida, essa lei supõe uma excelente colaboração entre os diferentes parceiros que dela têm ciência: assistentes sociais, pessoal do hospital, instituições públicas e privadas que cuidam da adoção e administrações competentes. Nem sempre é esse o caso, mas, desde a experiência levada a
cabo por F. Dolto há trinta anos, as relações entre a ASE, o abrigo provisório de Antony e os “psi” foram particularmente sadias e profundas. Na rua Cujas, F. Dolto recebia as crianças em sofrimento para a sua consulta e retomava a história delas a partir do sintoma e do material que elas traziam para a sessão. Nesse mesmo sentido, ela elaborara com os representantes da ASE um sistema destinado a manter as crianças diretamente ao par do andamento do dossiê delas. Os representantes das organizações vinham regularmente ver as crianças na maternidade e depois no abrigo provisório de Antony, e lhes descreviam a situação dos procedimentos: “estão buscando uma família para você”, “encontraram uma”, “há um problema para encontrar uma porque você está doente” etc. Esse sistema continua existindo e possibilita uma excepcional colaboração entre o abrigo provisório e o DASS ou a ASE. No entanto, logo surge o problema da urgência. Com efeito, embora os representantes da ASE venham ao hospital assim que são informados do parto em segredo, qualquer período de férias ou de desorganização dos serviços compromete sua vontade de intervir rapidamente. A demora pode chegar a várias semanas, demora durante a qual ninguém fala com os bebês. Portanto, é absolutamente necessário impedir que tal falha no funcionamento deixe essas crianças sem ajuda durante tanto tempo; é preciso encontrar um meio de garantir a elas palavras em caráter de urgência. O que exige de mim um esforço de reflexão compartilhado com todos, com as equipes do hospital e com os diversos outros parceiros. Outro problema de demora surge no hospital. Deve-se proibir as mães de ver o filho que elas decidiram abandonar enquanto ele estiver hospitalizado, ou tolerá-lo? Em Béclère, para respeitar a decisão da mãe, afastamos a criança, colocando-a no serviço de pediatria. No entanto, deixamos a mãe ir visitá-la se ela quiser, desde que esteja acompanhada de uma assistente social ou de uma parteira que garanta que ela é mesmo a mãe. Nenhum texto o proíbe expressamente. O pessoal do serviço de pediatria tampouco se sente autorizado a impedir que ela dê banho no filho ou cuide dele. Em contrapartida, explicamos a ela que não terá mais acesso ao filho depois que ele sair do hospital. É assim que interpretamos a imprecisão jurídica nessa matéria. Na maternidade, o que intriga em primeiro lugar é o efeito do parto em segredo sobre os funcionários em geral. O parto em segredo está envolto numa aura de drama, e por isso mobiliza comportamentos pessoais carregados de emoções descontroladas, quando não de reflexos de cidadão ou de eleitor: é-se a favor ou contra, há quem se alegre e quem fique desolado, quem gostaria de impedi-lo ou de fazer alguma coisa para que tudo dê certo... É extremamente difícil manter uma neutralidade mínima, que no entanto seria desejável caso não se queira ver mãe e filho atirados de um lado para o outro por questões morais ou ideológicas que vão muito além deles. Houve muitos deslizes na maternidade, e também nesse caso foi preciso “legiferar”, isto é, instituir um protocolo particular para conter os efeitos incontroláveis de impulsos pessoais. Esses deslizes levaram vários membros da equipe a reações que a posteriori eles julgaram estranhas aos seus hábitos, embora fossem bem reais... Uma pediatra da maternidade, talentosa tanto por sua seriedade profissional como por sua abordagem sensível das “pessoas-bebês”, certo dia teve de acompanhar uma criança nascida de um parto em segredo até o serviço de pediatria situado na outra extremidade do hospital, onde ela esperaria até ser transferida para um abrigo provisório. Era uma criança de mesma origem que a
pediatra, e ela ficara revoltada com a idéia do infeliz destino que a esperava. Durante o trajeto entre os dois serviços, ocorreram-lhe pensamentos estranhos e incontroláveis – que ela mesma me relatou depois. Ela enfiara na cabeça a idéia de levar o bebê para casa e criá-lo com seus próprios filhos. Tomada dessa idéia, ela lhe falava internamente: “Coitadinho, vou levá-lo para a minha casa, criar você com os meus filhos, para que você possa ter uma boa família...”. Esse pensamento, irresistível, apossara-se dela ao longo dos corredores, e ela estava prestes a modificar toda a sua vida num ímpeto. Mas, disse-me ela depois, algo muito íntimo no seu corpo – terá sido sua blusa branca de médica? – a impediu e a intimou a correr até o serviço de pediatria para encontrar seus colegas e recuperar a razão. Foi o que ela fez, feliz de escapar ao seu primeiro impulso. Mas como os ímpetos mais irresistíveis são muitas vezes os mais tenazes, e ninguém cala o inconsciente com um «exame de consciência», ela deixou uma pequena marca de sua primeira vontade: contrariando os princípios de segurança básicos de sua profissão, que ela é a última a negligenciar, esqueceu de avisar seus colegas que a mãe da criança era diabética, e que portanto era necessário vigiar a glicemia do bebê! Por sorte, o esquecimento foi reparado, e reparado rapidamente, e a criança foi tratada como era necessário. Que faz com que os profissionais mais aguerridos possam sair de sua função? Enquanto estão no hospital, os filhos “do segredo”, afastados de sua mãe, encontram-se num no man’s land , como que levitando no terreno das fantasias de potencialidades parentais despertadas em cada um. Todo o mundo pode se sentir como que chamado a ser o pai ou a mãe dessas crianças. Não digo que esse sentimento seja necessariamente consciente. Pode ocorrer, porém, que se ceda por um instante a esse apelo imaginário. Nem por isso as reações são necessariamente «generosas». Muitas vezes são negativas e de rejeição, geralmente moralizantes. Um dia, é uma mãe que, tendo dado à luz em segredo, recusa-se a ver o bebê. Um interno da mesma origem que ela, não tolerando a idéia de que uma mulher de sua comunidade pudesse abandonar o filho, precipita-se na sala de parto e coloca à força o bebê em seus braços. E lhe diz que a criança é maravilhosa, e que ela tem de olhá-la e segurá-la contra si. Outra vez, é um anestesista que, julgando uma jovem parturiente anônima rude demais para compreender a evolução de um parto sob peridural, avalia portanto não dever prescrever-lhe esse tipo de anestesia! Tinha ela obrigatoriamente que sofrer para pagar o abandono? Eu mesma pedi a uma parteira para intervir nesse caso, para conseguir o que qualquer outra mulher teria obtido num contexto diferente daquele do parto em segredo, e a peridural foi aplicada. Outra vez, ainda, é um oficial do registro civil que decide recusar o nome de Mohamed dado por uma parturiente anônima, porque esse nome era típico demais e “a pobre criança já tinha problemas suficientes”! Ou então, mais amena, uma enfermeira que chamava o tempo todo de “meu coitadinho” a um bebê abandonado sob sua responsabilidade: quanta dificuldade o “coitadinho” teria para vir a se tornar grande e feliz? É difícil escapar desse tipo de reação inadequada, ou pelo menos da atribuição de segundas intenções àquelas que pedem o parto em segredo. Foi também para aliviar os membros da equipe do peso angustiante ou desesperador que, pouco a pouco, elaborei um procedimento de acolhida dos pedidos de parto em segredo.
A urgência de palavra A viagem de Pierrette
O caso de Pierrette é bastante exemplar do tanto de dom que há no abandono para que mereça ser relatado aqui. Esse caso me fez refletir muito sobre um procedimento de acolhida respeitosa dessas mulheres aflitas. Pierrette, com 13 anos, compareceu certo dia em Béclère grávida de pouco mais de sete meses, para dar à luz e expor sua situação. Ela estava acompanhada da mãe. A pedido de Pierrette, recebi-as untas. Elas pareciam muito ligadas; no entanto, elas ainda se conheciam pouco. Pierrette só vira os pais esporadicamente até os três anos, e depois não os vira mais até aquele momento. Originária da África negra, a mãe de Pierrette viera estudar na França com o marido quando Pierrette tinha três meses, e tivera de confiá-la à sua irmã, no país de origem. Três anos depois do nascimento do bebê, o pai foi proibido de voltar ao país por ser um opositor do regime vigente. Irmãos e irmãs encontraram então asilo na França, mas Pierrette ficou na África aos cuidados da tia. Pouco tempo antes de nossa entrevista, o pai morrera de uma parada cardíaca. Nessa ocasião, a mãe por fim obteve autorização, até então recusada, para reunir a família. Foi para o luto de seu pai que Pierrette reencontrou a família: veio então para França. Ora, ao fazer o exame médico para a imigração, diagnosticou-se a gravidez de Pierrette. Ela disse não ter percebido nada na época. Aliás, ela só menstruara fazia pouco, e dizia ignorar tudo a respeito da sexualidade. Teria sido o irmão de uma amiga que a violentara. Em todo caso, sabendo estar grávida, ela desembarcara na França e ali reencontrara a mãe. Quando esta ficou sabendo da gravidez, decidiu acompanhá-la a Béclère. Diante dessa situação, expus-lhes os dados do problema e as diversas soluções possíveis: a adoção simples, a instituição, a família de acolhida, a eventualidade de a criança ser criada pela avó, o parto em segredo... E propus a elas refletir sobre tudo isso e marcar uma outra entrevista. Foi o que fizeram. Na segunda entrevista, a resposta estava pronta, e elas a pronunciaram em uníssono: “Vamos dálo!”. Belo presente, de fato, ainda mais precioso por ser anônimo. Depois, cada uma apresentou suas razões. A mãe de Pierrette explicou que pesara os prós e os contras: “Eu mesma gostaria de criar a criança. Se meu marido estivesse vivo, isso certamente teria sido possível. Mas estou muito abalada por esse luto, é recente demais para que eu me sinta capaz de criar essa criança”. Pierrette foi mais lacônica: “Tenho 13 anos e não posso ser mãe. Quero ir para a escola”. Decidiu-se, portanto, confiar a criança à ASE. O futuro da criança foi discutido por sua mãe e sua avó. A mãe não quis vê-la, mas prometeu fazer para ela “uma prece”. A avó, por sua vez, insistiu em transmitir algo: propôs, com o consentimento da filha, estar presente no nascimento, dar-lhe nomes e uma medalha. Raramente um dossiê de parto em segredo foi tão preciso. Depois do
nascimento, a avó e eu fomos falar com a criança. Pierrette pedira-nos que disséssemos tudo, exceto o relativo à violação e sua identidade. O bebê era maravilhoso. A avó, em lágrimas, segurou-o nos braços durante todo o encontro. Nós duas pudemos lhe contar o que se sabia de seu pai e o fato de que ele ignorava seu nascimento, a ausência de história de amor que presidira à sua concepção, a esperança que sua mãe tinha, por outro lado, de que ela encontrasse amor numa outra família. A avó acrescentou a isso todos os votos carinhosos de que seu coração generoso era capaz. A criança foi transferida para a pediatria, e depois acolhida num abrigo provisório. Como se vê, abstive-me voluntariamente de qualquer conselho ou de qualquer avaliação. Eles de nada servem na acolhida das mulheres que pedem para parir em segredo. Nessas entrevistas, nunca julgo nem estimulo. Contento-me em permanecer firme quanto ao procedimento: “Nada será decidido sem vocês, no sentido estrito do termo. Estamos aqui, a assistente social e eu, para esclarecer-lhes quanto às possibilidades que a lei lhes outorga e sobre a importância da participação de vocês para a criança. Estou aqui para acolher seus desejos e lhes dar força de lei. Mas a decisão é de vocês”. O percurso comovente dessas duas mulheres durante essas duas entrevistas é, assim espero, uma defesa eloqüente dessa neutralidade ativa. Pierrette sem dúvida é ainda uma criança, e é na qualidade de criança que ela quer livrar-se sem outra preocupação de seu bebê. Ela talvez repita assim o abandono de fato de que foi vítima aos três meses. Esse “presente” decerto oculta algo que, embora ela se recuse a admitir, ela jamais poderá ocultar de fato. Mas esse presente é realmente um dom, tanto quanto um abandono: ele foi discutido e conversado entre Pierrette e sua mãe. Acompanhar o parto em segredo
Para permitir que sujeitos desamparados progridam, foi preciso pensar um procedimento global que permitisse ao mesmo tempo escutar essas mães, respeitando sua dor, apoiá-las e acompanhá-las na urgência que comandava sua situação, e falar com os filhos delas. Quando cheguei, era costume que as mães que pediam o parto em segredo fossem recebidas por uma das duas assistentes sociais. Criamos, junto com elas, um grupo de reflexão sobre o tema. O objetivo era trocar experiências e trabalhar com as pessoas da maternidade, bem como com os responsáveis pelo abrigo provisório de Antony, que recebia a maioria dos bebês confiados à ASE. Às reuniões compareciam os membros da maternidade e do serviço de pediatria que se sentiam envolvidos, sem distinção de funções. A eles se somavam, como que vindo de fora: representantes do abrigo provisório de Antony, responsáveis de alto nível da ASE e dos serviços de adoção, alguns membros de associações da circunscrição; Simone Chalon, responsável pela Família Adotiva Francesa (instituição privada que muitas vezes colocamos em contato com as mães quando elas não querem recorrer à ASE), e suas colaboradoras; as pessoas do serviço Moïse (que acompanham as mulheres grávidas em dificuldade que querem abandonar) e as do serviço Illithye (que administram apartamentos onde as mulheres grávidas que querem parir em segredo podem ir viver sua gravidez e ser sustentadas). Essas reuniões, bimestrais, eram intensas porque apaixonadas. Tudo era abordado,
do nome aos textos de lei em vigor: o que se podia e não se podia fazer, o que ficava ambíguo ou impreciso... Em certo momento, as discussões voltaram-se para a necessidade de falar com os recém-nascidos e de fazê-lo em caráter de urgência, e para os meios que tornassem esse objetivo realizável. Apesar da vontade de cada um de colaborar em nome da idéia que tinham do que era bom para a criança, minha prática foi contestada por alguns, sob a alegação de que cabia ao Conselho de Família, a instância tutelar legar, selecionar o que devia ser dito à criança em função de “seu bem”, e não a um interventor direto. Não me detive nessa contestação, pois sabia que o tempo necessário para a constituição desse Conselho tinha por conseqüência a manutenção da criança – talvez por muito tempo – numa situação indeterminada. No que tange à urgência a considerar, avisei que podiam inclusive me chamar durante o fim de semana para um bebê nessa situação de parto em segredo, e que eu viria falar com ele. O objetivo era intervir o quanto antes possível, em função da idéia de que havia perigo de ruptura total: nesses casos, a criança, ao nascer, está em completa disjunção de todas suas percepções pré-natais; era preciso estar presente para nomeá-las, dar-lhes sentido, fazer uma ponte entre esse passado intrauterino, o presente e o futuro da criança. É uma urgência relativa, ou, melhor dizendo, «preventiva»: ela visa antes a prevenir o dano do que a remediá-lo, o que, em matéria psíquica, seria absurdo e apenas constituiria uma passagem ao ato por parte de um psicanalista. Mas é uma urgência. É preciso às vezes falar com um recémnascido que está doente, que se suicida ou se deixa morrer, que quer voltar para trás: trata-se então de uma urgência de palavra convocada pelo sintoma. Mas, no caso do parto em segredo, o sintoma é social; e é porque se sabe disso que é preciso agir rápido. Caso não se intervenha, os “verdadeiros” sintomas, clínicos agora, podem aparecer. A certeza de que a coisa será levada a sério, e rápido, tem por outra parte efeitos sobre outras pessoas além das crianças e suas mães. Primeiro sobre os funcionários. Meus colegas relatam experiências por eles vividas em outros lugares, em que não se sabe onde colocar essas crianças nem o que fazer com elas; em Béclère a situação é mais sadia: sabe-se o que se pode fazer e o que não se pode fazer. Desaparece a indecisão e o mal-estar entre as equipes diante da simples idéia de cuidar de uma parturiente anônima, pois sabe-se que é uma urgência e que é preciso chamar a psicanalista. O estresse diminui e é possível trabalhar de modo mais eficaz. Isso se comprova nos dois serviços envolvidos (maternidade e pediatria), nos quais intervenho especificamente nos partos em segredo com o consentimento dos dois chefes de serviço. Nesse mesmo sentido, quando conto aos bebês a vida deles, não evito esclarecer-lhes quem cuida deles e a que título: “Fulana cuida de você, ela está aí para consolá-lo quando você está triste, para dar-lhe comida... Ela está aí para isso, é a profissão dela. Um dia você vai ter de se separar dela, mas sempre haverá outras pessoas como ela para cuidar de você até que encontrem uma família adotiva para você...” Para essas mulheres, essas palavras simples e evidentes têm a vantagem de eliminar o caráter dramático das coisas: pelo fato de serem referidas como pessoas substituíveis, elas não se assumem como “mãe” substituta, com todo o peso afetivo que isso pressupõe. Por outro lado, falo com elas sobre o que faço e por quê. Isento-as do que não é função delas, para que elas me ajudem a cumprir a
minha, tudo em proveito do recém-nascido. Por meio dessa reflexão comum evita-se colocar as diferentes equipes em situações paradoxais. Na época em que não existia nenhum procedimento específico, colocava-se as crianças nascidas sob o nome X na unidade canguru, com o argumento de que era o único lugar em que se tinha tempo de mimá-las. Aliás, era o que acontecia, e os membros dessa equipe rivalizavam ainda mais do que de costume nos cuidados. Traziam-se para esses bebês muitas fitas e laços para enfeitá-los, colocavam-nos em bebês-conforto último modelo no meio de bichinhos de pelúcia e roupas bordadas; todos paravam para falar com eles, fazer um agrado; eles eram o bebê “deles”. No entanto, o mal-estar não diminuía na mesma proporção. Para que ele fosse reabsorvido, foi preciso refletir mais uma vez sobre a definição da unidade canguru, que é uma unidade mãe-filho: que faziam então recém-nascidos abandonados numa unidade destinada a reforçar o vínculo entre uma mãe e seu filho? Decidiu-se, portanto, que as crianças nascidas sob o nome X iriam para a neonatologia, se precisassem de cuidados intensivos, ou para a pediatria, em caso contrário. A propósito de Pierrette, eu disse que a consulta (comigo) das candidatas ao parto em segredo era obrigatória. Nem sempre foi assim, e também nesse caso o procedimento permitiu tomar uma decisão. Até então, eu via muito pouco as mulheres com projeto de abandono durante a gravidez delas, apesar de meu desejo de fazê-lo, porque eu pedira às assistentes sociais encarregadas de recebê-las que lhes propusessem vir ver-me se considerassem conveniente. Com freqüência as mães não queriam se encontrar comigo, e acabei compreendendo que os motivos dessas recusas decorriam geralmente de um mal-entendido: aparentemente, elas imaginavam que eu iria pedir explicações! Quando as duas assistentes sociais com quem eu compartilhava a aventura foram embora para exercer seus talentos em outros lugares, dei continuidade ao procedimento com suas sucessoras. Acontece que, na mesma época, aceitei ir falar do parto em segredo 14 num colóquio dos médicos da Proteção Materna e Infantil (PMI). No auditório encontrava-se Sophie Marinopoulos, psicóloga. Essa mulher, que era a responsável por uma associação de adultos abandonados durante a infância, montara com sua colega assistente social Sylvie Babin uma consulta especializada dentro da maternidade de Nantes, destinada às mães em dificuldade. Uma atenção particular era concedida às mães com projeto de abandono, para acompanhá-las durante a gravidez e permitir que amadurecessem esse projeto: ajudá-las a parir, ajudá-las a transmitir. Por não ter formação psicanalítica, ela não se perguntava se era preciso esperar um pedido para se autorizar a escutar essas mulheres: a consulta era sistemática, independentemente da opinião das postulantes. Quero homenageá-la aqui, pois devo a ela o ter compreendido o que estava em jogo. Graças a ela, também me autorizei a praticar uma consulta obrigatória, considerando que nessa situação de urgência eu não era uma psicanalista stricto sensu, mas uma especialista com formação psicanalítica, no âmbito de uma demanda formulada ao hospital – e não a mim, psicanalista. Portanto, quando uma mulher se dirige à maternidade para um parto em segredo, agora lhe respondem: “Se a senhora quer parir em segredo no hospital Béclère, precisa ir falar com a assistente social e depois com a Dra. Szejer”. Ao contrário do que acontece em Nantes, onde elas trabalham em dupla, vejo as mães sozinha, as assistentes sociais as encontram num outro momento. Quanto a Sophie Marinopoulos e Sylvie Babin, elas aproveitaram de nosso intercâmbio a idéia da necessidade de falar com a criança, e desde então praticam-no sistematicamente. Em suma, esse
procedimento inédito de acolhida das parturientes anônimas é fruto de nossa colaboração. Essa entrevista é uma oportunidade para um trabalho de escuta e de acompanhamento do projeto. Ela se dá com a garantia de um sigilo profissional que vai além do sigilo médico, ou seja, não transcrevo seu teor no protocolo médico, com exceção das respostas da paciente às especificações legais. Meu objetivo é estar suficientemente segura do que deve ser transmitido para a criança, sobretudo quando a mãe não quer vê-la, pois sou eu quem irá falar com essa criança. É melhor escutar esse conjunto de informações de sua fonte mais autorizada. As surpresas são muitas vezes grandes, pois, embora possa acontecer de eu ter algum preconceito contra um determinado pedido de parto em segredo que considero estar sendo formulado de forma leviana, não houve nenhum caso em que eu não mudasse de opinião no decorrer da entrevista. A sinceridade dessas mulheres, e a descoberta que muitas vezes elas fazem durante a própria discussão dos motivos irrefutáveis de seu pedido, predomina sobre qualquer outra consideração. Não sou a única a ficar surpresa, nem a única a mudar de opinião. Isso também aconteceu com aquela jovem que durante uma entrevista me contava seu desejo de dar à luz em segredo. Ela não queria o filho de forma alguma, explicando-me que ela e o namorado viviam juntos e tinham feito esse bebê, mas que ela achara o namorado pouco amoroso e rompera com ele. Ele não sabia que ela estava grávida. Ela tampouco queria que sua família soubesse. A criança, dizia ela, estaria melhor numa verdadeira família do que com ela, que estava “na pior”, sem trabalho. Ao escutar isso, ocorreu-me espontaneamente dizer-lhe: “Mas afinal de contas vocês quiseram esse bebê!” Eu não sabia muito bem o que estava dizendo; só sabia que tinha entendido que eles tinham concebido aquela criança com conhecimento de causa (não tinham usado nenhum método anticoncepcional). Quando a vi arregalar os olhos e aquiescer como se afinal de contas fosse isso mesmo que ela achava, eu soube que minhas palavras eram da ordem de uma interpretação, de um desvelamento do desejo inconsciente. Enquanto tais, elas surtiram seu efeito, e, na consulta seguinte, ela decidira ficar com a criança. Ela voltou para essa segunda entrevista acompanhada de uma de suas amigas em quem confiava, e com quem eu lhe propusera falar sobre nossa conversa. Dizer que ela estava transformada é pouco: ela estava radiante com a barriga para a frente, e dizia sentir-se num conto de fadas. Voltara a falar com seu companheiro, tendo entendido que não estava obrigada a compartilhar sua vida com ele para dar um pai à criança. Pelo que ela tinha compreendido, ele não estava propriamente entusiasmado com a idéia desse bebê. Concordamos que o bebê talvez viesse a fazer o necessário quando já estivesse lá para fisgá-lo na sua rede; que, caso isso não acontecesse, ele seria forte o suficiente para se adaptar ao seu destino, pois teria sido avisado. Ambos, com certeza, teriam a ajuda da família, que, feliz de acolher esse recém-chegado, prometera seu apoio. A propósito, o relato dessa entrevista me permite denunciar algumas idéias preconcebidas. A primeira é que o parto em segredo serviria para algumas de paliativo para o aborto. Não tenho a impressão de que seja este o caso na realidade, de qualquer forma nunca o constatei. Essa jovem nunca teria abortado, mas ela não via como garantir uma vida para essa criança em termos materiais. A segunda supõe que o fato de explicar a essas mulheres as modalidades de adoção serve de
estímulo ao abandono. Esse exemplo prova o contrário. Esse tipo de entrevista também tem um fim informativo. Com as mães, juntas, de modo muito rigoroso, montamos um dossiê. Repito para elas os direitos que a lei lhes dá, pergunto-lhes o que desejam transmitir ao filho e de que maneira: uma carta, objetos, palavras dirigidas diretamente à criança? Pensamos juntas o que será dito, o que será calado, a menção que será ou não feita do pai..., tudo isso conforme o desejo delas. Em Nantes como em outros serviços hospitalares e abrigos provisórios, acrescenta-se a esse dossiê um pequeno livro ilustrado com fotos, no qual o pessoal responsável pela criança lhe conta seus primeiros dias de bebê. Sophie Marinopoulos e Sylvie Babin receberam inclusive um prêmio que lhes permitiu confeccionar álbuns encadernados muito bonitos. A equipe pediátrica de Béclère também confecciona um livrinho onde se escrevem frases simples, que concernem a essas crianças em primeiro lugar: “Você mamou bem hoje...ontem, você chorou o dia inteiro... a psicanalista veio vê-lo, contou-lhe a sua história, e desde então você tem dormido bem!...”. Esses livrinhos são para essas crianças o equivalente do que são para outras os álbuns de fotos que a mãe monta com tanto cuidado. Por isso, são tão importantes. Os adotados os consideram “a menina de seus olhos”; não tendo mãe para lhes contar seus primeiros momentos, esse livrinho é o único testemunho desse tempo. Apoiar as mães é uma coisa, falar com as crianças, outra, igualmente fundamental. A criança viveu uma separação que ainda não tem sentido para ela, e que para os outros é tabu. É necessário que, de uma maneira ou outra, alguém lhe diga algo a respeito: sua mãe, um psicanalista, se lhe for dado encontrar com um, pelo menos uma pessoa que ocupe o lugar de terceiro e que possibilite que palavras sejam postas sobre as percepções pré-natais memorizadas. Embora esses elementos que possibilitam a um recém-nascido situar-se nos primeiros momentos de sua vida estejam perdidos para sempre – o cheiro, o calor, a voz da mãe e a língua materna, eventualmente a voz do pai, o ambiente familiar, mas também o relato das “histórias de família”... –, é preciso supri-los. Qualquer pessoa que se sinta em condições de falar com a criança, que conheça através da mãe sua história ou que saiba o que os pais desejaram lhe transmitir, tem por missão intervir. Pois a única coisa que fará laço são as palavras que ela vier a dirigir a ela e que virão a dar sentido ao que lhe foi dado viver. Essa pessoa é por assim dizer um go-between, um mensageiro entre a mãe e a criança. Ela é quem enuncia, e não quem consola (a equipe do hospital está mais apta para fazê-lo). Ela pode falar com a criança porque ela o faz a pedido da mãe. Nos casos mais problemáticos, em que a mãe não deixou qualquer vestígio, também é preciso falar com a criança, nem que seja para descrever-lhe as circunstâncias de seu nascimento. Nunca será bastante insistir para dizer o quanto o que pode parecer uma formalidade de minha parte é essencial, pois a separação definitiva é uma provação para um recém-nascido. A lei reduziu o prazo de retratação de três para dois meses; mesmo que tivesse sido reduzido para seis semanas, ainda seria demais para um recém-nascido mantido sem lastro num espaço simbólico não definido. Para que um ser humano possa se pensar humano, é preciso haver esse corte de que falávamos a propósito do baby blues. Para um criança nascida nas circunstâncias de um parto em segredo, é preciso que uma palavra externa realize esse corte, constituindo dessa forma uma espécie de talagarça psíquica necessária para seu desenvolvimento. Essa fala não deveria de forma alguma ser seqüestrada em seguida, como veremos que pode acontecer, para que a criança possa crescer sem tropeçar nos buracos do segredo. A partir daí ela pode vir a ocupar seu lugar nessa história tão
particular que a precede e atravessa. Todos os princípios desse procedimento são simples. O mérito deles é, na minha opinião, informar as futuras mães que muitas vezes não o foram, e permitir que elas decidam com conhecimento de causa. Escutar, acompanhar, preparar o abandono, se esta for a decisão tomada, elaborá-lo, falar com a criança, tudo isso permite minimizar o mal-estar criado pelas leis em vigor, e aplicá-las respeitando as crianças e seus pais. É um peso a menos sobre os ombros da futura criança, e para a equipe é uma garantia saber que as coisas serão faladas e que não será necessário «reparar» um destino infeliz com passagens ao ato inconseqüentes. Pois, enfim, um segredo não é uma desdita ocultada, e é necessário um mínimo de serenidade para respeitá-lo. A situação dos lugares
No entanto, é de dor que se trata aqui. O parto em segredo, é fácil imaginar, segue-se muito freqüentemente a um drama social: estupro, incesto, miséria material ou psíquica, pressões psicológicas, quando não físicas do meio, a lista das circunstâncias de um parto em segredo é dolorosamente constante. Em certos países, crianças morrem porque foram “mal previstas” (fora do casamento, no adultério etc.): não recebem os cuidados a que têm direito ao nascer. As pressões são tamanhas que as mães também correm risco de vida: levam-nas a pensar que, para elas, melhor seria estar mortas que desonrar a família. Há alguns anos, mulheres originárias desses países vinham dar à luz em segredo na França. O parto em segredo, tal como está previsto na lei, na verdade só existe na França e em Luxemburgo. Elas diziam vir porque sentiam-se ameaçadas, bem como seus filhos, por vinganças familiares: sua gravidez “ilegítima” não tinha perdão. Elas falavam de isolamento, de rapto, de bebês deixados sem cuidados... Elas pediam de certa forma asilo político para o filho por nascer, e por isso queriam dar à luz anônimas. Hoje em dia praticamente não se vêem mais casos como esses. A política de restrição de vistos de nosso país fechou-lhes a porta desse asilo. Quem ganha com isso: essas mulheres, seus filhos, os serviços de imigração? Recebem-se agora mulheres que, vivendo nos meios integralistas em Paris, escondem a gravidez, dão à luz em segredo e voltam para sua família como se nada tivesse acontecido. Elas vivem a si mesmas como clandestinas de fato, mesmo se não o são de direito, e não vêem qualquer possibilidade de criar um filho. Qualquer outra escolha afora o parto em segredo lhes é quase proibida. Admitindo-se que elas abandonassem sua comunidade de origem e aceitassem as ajudas sociais que o Estado lhes propõe para ficar com o filho, não estariam colocando a própria vida ou a de seu bebê em perigo se um membro da família os encontrasse? Em qualquer um dos casos, elas continuam sendo párias. Será que se deve, em nome do respeito pelas outras culturas e da submissão às decisões sobre a imigração de nossos parlamentares, esconder fatos tão recorrentes? Isso não é possível. Caso não haja drama social, quase sempre há drama psicológico no parto em segredo. Quando se fala de contexto dramático, não se trata de fazer o apanágio do quarto-mundo ou de populações submetidas a condições extremas (miséria, guerra): todas as categorias sociais estão representadas
no leque dos pedidos de parto em segredo. Felizmente existem contra-exemplos para esses dramas, e quase se pode falar em certas ocasiões de parto em segredo por consentimento mútuo! Evocarei o exemplo daquela mulher de 45 anos recebida no setor de urgências do hospital devido a dores abdominais agudas. O interno a examinou e depois, pensando num fibroma, enviou-a para o setor de urgências da maternidade para um parecer; ali constatou-se... que ela estava simplesmente em trabalho de parto. Portanto, ela descobriu que estava grávida ao dar à luz! Eu estava presente no serviço quando ela se encontrava na sala de pré-parto, e pediram-me para vê-la porque ela estava completamente transtornada, como se pode imaginar. Os médicos e as parteiras, conscientes da brutalidade da situação que ela vivia, infelizmente tinham de cuidar de outras urgências, e portanto coube a mim dar-lhe apoio. Ela então me contou que já tinha três filhos e que esse nascimento chegava num momento em que a relação do casal estava por um fio. Ela achava que o fato de estar tão infeliz junto do marido impedia seus três primeiros filhos de se desenvolverem bem, e não gostaria de acrescentar ainda mais sofrimento com o quarto. Disse que o marido era alcoólatra, violento, e a maltratava, e isso já era o suficiente. A situação era terrível para ela, e, vale dizer, ela falava de modo pungente de seu dilema: reconhecia esse filho e ao mesmo tempo achava que não podia assumi-lo, temendo impor-lhe sua própria infelicidade. A solução que lhe parecia a melhor era “que ele pudesse crescer numa família alegre, com uma mãe feliz que fosse capaz de transmitir felicidade”. Portanto, ela deu à luz em segredo e abandonou o filho com vistas à adoção. No dossiê que preparamos juntas, ela deixou uma carta com suas coordenadas, esperando que ele pudesse tomar conhecimento delas quando o desejasse. O pai, informado, concordou. Na maioria das vezes, porém, os pedidos de parto em segredo não são espontâneos, e as postulantes nem sempre conhecem essa possibilidade legal. Elas são reveladas no decorrer de uma consulta médica durante a gravidez, ou logo depois do parto. Temos, portanto, a missão de informar e de explicar, para permitir que essas mulheres escolham. Quando a decisão de parir em segredo é tomada, todas as mulheres que encontrei ficam fortemente comovidas, mesmo aquelas que não queriam ficar com a criança, mesmo aquelas que viam nessa possibilidade oferecida pela lei um dom outorgado à criança. Algumas acabarão mudando de idéia no prazo de dois meses que lhes é dado. Mas estas são raras, e a verdade obriga a dizer que, na maioria dos casos, essa mudança de opinião tem conseqüências desastrosas. Com efeito, é muito freqüente que, mesmo tendo decidido ficar com o bebê, elas não venham vê-lo, ou muito pouco. O resultado disso é provavelmente o pior que se possa imaginar para a criança: ela é abandonada de fato, quando não de direito, mas não pode ser adotada enquanto seus pais continuarem visitando-a, mesmo que esporadicamente. Enredada nessa situação, ela será criada numa instituição. Em outros casos, as mães ficam com as crianças, mas as maltratam. Esses maus-tratos, na quase totalidade dos casos, são o eco de sevícias de que elas mesmas foram vítimas. Algumas vezes oscilam por muito tempo, sem se decidir claramente. Um dia dei assistência a uma mulher, a quem perguntei, como sempre faço, se ela queria que fôssemos juntas falar com seu filho ou se ela preferia que eu fosse sozinha. Ela me pediu para acompanhá-la e, ao vê-lo, declarou:
“Não vou abandoná-lo!”. Imaginem minha perplexidade, pois o termo “abandono”, mesmo suprimido dos textos legais, pode ser utilizado, como nesse caso, em toda a sua ambigüidade: que quer dizer o fato de declarar que se vai abandonar e dizer “não vou abandoná-lo”? Ela queria ou não queria entregar o filho para adoção? Ela estava dizendo que estava voltando atrás de sua decisão ou simplesmente que guardaria o filho em seus pensamentos? A segunda solução na verdade era boa, caso desconsiderássemos sua ambivalência, que perdurou até o final do prazo que a lei lhe concedia. A história desse vaivém voltou aos meus ouvidos pouco tempo depois. Acontece que essa criança foi novamente internada depois do nascimento no serviço de pediatria por causa de distúrbios respiratórios. Revi-a nessa ocasião, e propus-lhe uma interpretação que trouxe frutos. Sugeri que com seus distúrbios ela tentava recuperar um modo de comunicação umbilical, ou seja, um modo de comunicação «pré-respiratório»: “Voltando ao hospital é como se você procurasse a sua mãe ali onde ela deixou você. Mas ela não está mais aqui, e ela não mudou de idéia: ela confiou você ao abrigo provisório enquanto se procura uma família para adotá-lo. O que você pode reencontrar à vontade, e o que você nunca perderá, é a lembrança dela: você pode guardá-la para sempre no fundo de seu coração”. Os distúrbios regrediram e a criança pôde voltar ao abrigo provisório. Pouco tempo depois, a mãe voltou ao hospital procurando o filho, e lhe disseram que ele se encontrava no abrigo provisório. Ela esperou mais de três meses depois do parto, mais precisamente um dia além da data de expiração do prazo fatídico, para... pedir de volta a criança! Uma parte dela desejava o abandono, a outra o recusava, mas a segunda era menos forte e ela deu um jeito de chegar depois do prazo e fazer a primeira triunfar. O pessoal do abrigo provisório, vendo a criança presa na oscilação de desejos contraditórios da mãe, decidiu enviá-la para uma consulta com um dos psicanalistas conveniados. Queriam saber se a criança estava psicologicamente pronta para ser adotada. Pelo que me disseram, parece que estava. Segredos de família, segredo de Estado
Ao nos referirmos a esses partos, falamos de segredo, e a palavra dá conta da situação para além da compreensão imediata. O segredo, em latim o que é secretus, é com efeito o que está “separado”, “dissolvido” (de secernere , separar, distinguir). O que segrega algo, uma secretio, segundo a mesma etimologia, é o fato de pôr de lado. Ora, se é preciso “segregar segredo” em relação a esses partos, se é preciso pôr de lado algo que concerne à separação nesses nascimentos particulares, geralmente é a propósito da relação fecundante. É bastante provável que esse segredo venha a se tornar, para a criança adotada e para as gerações seguintes, um segredo de família. Nisso, aliás, a criança nascida de um parto em segredo não escapa ao destino comum a todas as crianças do mundo. Segredos de família e romances familiares
Afastemo-nos por um instante do campo restrito do parto em segredo, e examinemos esses
segredos de família que são o quinhão de cada qual. Que são os segredos de família? Nem mais nem menos que o que alimenta todos os romances familiares, e portanto o Édipo. Aliás, esses segredos não precisam ser conhecidos para operarem; basta que existam. São eles que podem vir à tona no baby blues, por exemplo, nesse momento posterior ao nascimento que produz essa abertura do inconsciente de que falamos. Na verdade, muitas vezes é nesse momento que os segredos de família são pronunciados, concepções “ilegítimas” e outros “cadáveres no armário”. Os avós, as tias “de visita”, soltam a língua por ocasião dos nascimentos. O recém-nascido, tenha ele sido ou não afetado por esse segredo durante sua vida pré-natal, beneficia-se então de sua revelação. É preciso empenhar-se para que isso aconteça na frente dele, ajudar os pais a falar, a dizer as coisas que não teriam dito em outro lugar, às vezes até a se darem conta do alcance desses segredos que eles mantinham ocultos. Com isso, espera-se garantir à criança que, além das circunstâncias mais ou menos difíceis de sua concepção ou de seu nascimento, ela não tenha de carregar o peso da culpa ligada ao segredo. Os segredos de família podem pesar sobre o recém-nascido, até mesmo sobre o feto. Catherine Dolto-Tolitch, numa reunião da associação A Causa dos bebês, dizia que quando, durante uma sessão de haptonomia, o casal revelava um segredo de família, ela sentia o feto reagir. Compartilharia ele do segredo? Assim como pudemos falar da sensorialidade pré-natal, gostaríamos de dizer que a criança sabe algo a respeito, mas que não sabe o quê. Quando C. Dolto-Tolitch diz que a revelação do segredo de família afeta o feto... via a mulher grávida, deve-se compreender que ele memoriza percepções, que poderá ou não ligar a palavras depois do nascimento. A característica desses segredos de família, constituídos pelas famílias e transmitidos na forma de não-ditos, é a de transmitir um hiato que atravessa as gerações. Isso não concerne apenas ao feto ou ao recém-nascido, mas também ao homem ou à mulher no transcurso de sua vida, e até mesmo aos seus descendentes. Remeto aos episódios de vida relatados por Serge Tisseron em suas obras, para ilustrar o que o segredo de família envolve. 15 Um dos mais conhecidos até hoje, graças a ele, é o de Hergé, o criador de Tintin. O pai de Hergé e seu gêmeo na verdade são filhos de pai desconhecido, e apenas devem o patronímico de Remi a um casamento por conveniência. A avó manteve segredo sobre seu amante, dando livre curso às mais românticas suposições de seu neto: talvez seu avô fosse de alta estirpe, o rei dos belgas, quem sabe? Toda a fantasmagoria do menino Georges, pois é este seu nome, elaborou-se em torno dessa questão do segredo. George Remi, depois de adulto, criará a conhecida obra sob o pseudônimo de Hergé, RG16 para os íntimos (Remi George). Ora, diz Tisseron, Hergé teria feito uso de uma obra de ficção tanto como modelo explicativo de seus próprios segredos familiares quanto como fonte de inspiração para sua obra. Essa obra de ficção não é anódina do ponto de vista do que aqui nos interessa, pois trata-se de Sans famille [Sem família] de Hector Malot. Hergé tinha motivos particulares para ver nela uma obra-prima. O herói da história, recordemos, chamava-se Rémi, um de seus irmãos chamava-se Alexis, como o pai de Hergé, e uma de suas irmãs, Lise, ou seja, apenas uma letra de diferença com o nome da mãe de Hergé (Lisa). As origens nobres de Rémi, afastado dos pais para ser criado por uma família mais modesta, não podia deixar de afetar Hergé. Quanto aos personagens de Tintin, são sempre evocações dos de Sans famille, como Tisseron demonstra de forma generosa: até o castelo de Moulinsart que evoca Milligan ( mill quer dizer “moinho” em inglês
[moulin, em francês]), o castelo dos ancestrais do Rémi de Hector Malot. Segredo e anonimato: o ponto de vista da lei e o do psicanalista
Os livros falam com os livros, a acreditar nesse exemplo, e os sujeitos encontram tudo o que os define nesse percurso significante que os representa. Os segredos de família atravessam as gerações. Os não-ditos da história familiar criam como que uma voragem que chama os sujeitos para a ela voltarem. Aqui, é em prol da sublimação, para felicidade dos “tintinófilos”. Esses segredos de família são, a bem dizer, a falta em estado puro, o buraco na trama que nenhum remendo consegue tapar. Esse hiato é constitutivo de todas as famílias, nenhuma escapa. Nem por isso ficamos todos loucos, porque sempre podemos recorrer imaginariamente, da forma mais deformada que seja, às histórias de nossos ascendentes, às fundações de nossas linhagens. Se pensarmos no parto em segredo dessa ótica, veremos que tal recurso imaginário é extremamente dificultado. Sempre que possível, a lei francesa embaralha as cartas um pouco mais. Ela considera transmissíveis e não submetidos ao segredo os elementos “não identificadores”: peso da mãe, altura, cor dos olhos e da pele etc. Afora isso, ela se reserva o direito de proibir toda transmissão do que, no entanto, dá o sentido de uma vida. Além do anonimato das mães, que ela preserva, ela corre o risco de negar aos filhos delas o direito às suas origens. Pelo direito ao anonimato que ela concede às mães, a lei em nosso país dá seguimento à sua vocação de terra de asilo: ela salva vidas humanas, as das mulheres em perigo de que falávamos há pouco, por exemplo. Mas ao selecionar dentre os elementos não identificadores o que bem lhe parece, ela impede aos adotados, por falta de origem, um acesso permanente e incondicional à sua história. A criança está em busca do relato que lhe possibilitará responder à pergunta: por que eles me abandonaram? Essa resposta é ainda mais necessária para as bases de sua existência do que saber quem a abandonou. Poder responder a essa pergunta tornará mais fácil, também para a criança, adotar uma família, sua história e a identidade que ela lhe propõe. Na prática, a lei a obriga a se conformar à imposição de ignorar o que, de fato, inconscientemente , ela sabe. O que de fato acontecerá com essa criança depois do nascimento? Sem amarras, oscilando ao sabor das projeções fantasísticas parentais de cada um, ela será geralmente confiada à tutela do poder executivo e à supervisão do conselho geral, que, por intermédio da Assistência Social à Infância e do Conselho de Família, assume a responsabilidade até a adoção. Essas instâncias tutelares outorgam-se o direito de selecionar na sua história o que é bom ou ruim transmitir “no interesse da criança”. Dessa forma, autorizam-se a censurar certas informações fornecidas pelas mães que elas julguem não terem pertinência para a criança. Essas informações são pretensamente censuradas no interesse da criança, mas geralmente é o interesse ou a reputação dos pais adotivos que está em questão. Frente a essa situação, como os pais adotivos não cederiam à tentação de apagar essa história infeliz anterior à adoção? Ainda que eles resistissem a essa tentação, como a criança poderia se achar nela? Com essa censura, sob alegações pedagógicas ou morais, essas instituições idealizam uma certa visão da maternidade e da parentalidade. Essa visão não serve para a criança, que eu saiba, pois, digamo-lo com todas as letras: ela cria laços coletivos de silêncio incontestáveis. Esses segredos em proveito da sociedade criam órfãos de palavra e fabricam
crianças adotáveis “demais”, crianças exteriores às linhagens, filhos de todo o mundo e de ninguém. É muito freqüente que as mulheres que pensam em dar à luz em segredo queiram criar um segredo de família sobre a questão da relação fecundante, sobretudo em casos de estupro ou incesto. Elas não querem que nada disso seja transmitido à criança. Às vezes desejam até que nada seja transmitido sobre o pai biológico. São exigências que teriam de ser respeitadas, pois emanam da mãe. Mas é preciso esclarecer no dossiê: “Por motivos particulares, a Sra. X não deseja falar do pai biológico nem das condições da concepção dessa criança, porquanto considera que isso se refere à sua vida privada”. Uma frase como essa pode mudar tudo, porque o pai biológico foi mencionado como existente: não há forclusão. A situação é completamente diferente quando uma assistente social, porque tem conhecimento do fato, escreve no dossiê “estupro ou incesto”, e essa informação lida pelo Conselho de Família é censurada por ele. Está-se aí em plena loucura, que tende a fazer do segredo de família um segredo de Estado. Como se o Conselho de Família, previsto por lei, se tomasse pela família. Esse Conselho deveria, ao contrário, ratificar essas informações e transmiti-las integralmente à família adotiva. Se a família adotiva censura temporariamente alguns elementos, em função de suas exigências pedagógicas, ainda assim terá condições de educar a criança pelo que ela é. Uma família adotiva, que tem conhecimento de um segredo de família comunicado pela mãe de nascimento, pode mantê-lo por conta própria dizendo para a criança: «não sabemos de nada, porque sua mãe de nascimento quis que não soubéssemos nada». Isso difere radicalmente da censura estatal, pois o futuro é preservado. Tomemos o caso das mulheres originárias da ex-Iugoslávia. É de conhecimento público a política de estupros programados no âmbito da limpeza étnica, assim como se tomou conhecimento das experiências eugênicas do III Reich alemão. Algumas mulheres bósnias deram à luz em segredo na França. Foi a forma de ajudar para que, da dor indizível que as acometeu, viesse à luz do dia algo de humano como resposta viva à barbárie que o tinha engendrado. Suponhamos agora que uma família adote uma criança bósnia sabendo de suas origens. Ao não dizer nada à criança, mesmo com a intenção de evitar que sofra, ela de certa forma lhe pediria para se conformar a um modelo de criança que ela não é. Também ela tem uma memória, inconsciente em todo caso, e não seria de espantar se ela não se sentisse muito à vontade nessa roupa que modelaram para ela, pois não é a sua! Não é a adoção em si mesma que pode criar dificuldades para essas crianças, é a maneira como ela é negociada. Às vezes, crianças adotadas manifestam mais tarde um sintoma ligado aos segredos que pesam sobre elas. Elas terão então pelo menos a possibilidade de procurar penetrar nesses segredos, fazer suas pesquisas, até onde puderem, como quiserem... Não é porque descobre o segredo que o sujeito necessariamente ficará livre de um eventual sintoma (embora isso aconteça freqüentemente), mas pelo menos pode usá-lo como quiser. Portanto, cabe sempre às famílias – adotivas e biológicas – gerenciar a trajetória do segredo, certamente não ao Conselho de Família. Elas têm a liberdade de calar uma coisa ou outra em função do que julgarem bom que a criança saiba em tal ou qual idade. Será então um segredo temporário, que reflete um cuidado pedagógico por parte delas, e não mais rasura definitiva, uma escotomização, a ablação de uma parte do que constitui o vivo da criança. Os
serviços de adoção concordam agora em aconselhar as famílias a criar a criança na verdade. Para isso é preciso que essa verdade não tenha sido adulterada previamente! Deve-se garantir o segredo sobre as origens ou o anonimato dos genitores? A lei tende a impor o primeiro, os especialistas esclarecidos 17 exigem exclusivamente o segundo. Da minha parte, proponho uma solução intermediária na aplicação da lei. Como psicanalista, parto do princípio de que todo discurso formulável contém enunciados faltantes. A situação de uma criança nascida de um parto em segredo não constitui exceção. No entanto, na sua prática, ninguém deve se dar o direito de fazer uma triagem, para representar essa falta de que o inconsciente está repleto. Simplesmente peço para a sociedade, ou seja, para as instituições que são sua armadura, que respeite essa regra, e que não manipule os elementos não identificadores a seu bel prazer. Na prática, a realidade é variada, e cada problema tem sua solução. A ASE oferece a garantia do segredo mais hermético. É uma instituição confiável e responsável, que consegue assegurar a quem o peça que nada ou quase nada será dito. Ela será a melhor garantia para aquelas que manifestem um desejo de ruptura total, por exemplo não vendo a criança ao nascer, não lhe deixando nem carta nem objeto ou pedindo para calar tudo o que concerne ao pai. No caso das mulheres que, ao contrário, desejam receber notícias do filho adotado, ou daquelas que esperam que lhe transmitam as cartas ou objetos que elas lhe deixaram, algumas instituições privadas serão mais adequadas. Nelas procura-se mais transparência. Existem casos de uma liberalidade ainda maior. Assim, na Polinésia Francesa está-se mais perto de uma tradição de “doação de filho”. Ali, a adoção funciona por um transferência de autoridade parental durante dois anos. Durante dois anos (e dois meses, pois soma-se a esses dois anos o prazo de retratação), a criança vive com seus pais adotivos. Passado esse tempo, caso persista o acordo entre pais biológicos e adotivos, a adoção plena é pronunciada. Às vezes pessoas da metrópole vão buscar uma criança no Taiti, travam conhecimento com a família de origem e obtêm a delegação de autoridade parental. De volta à metrópole com a criança, permanecem em contato com a família de origem por meio de cartas, fitas de vídeo e fotos. Quando a adoção se dá, tudo transcorre geralmente, ao que parece, na mais santa paz, e o reconhecimento é mútuo. Conseqüência inesperada, embora lógica, desse sistema: a contracepção é pouco praticada, pois, quando se tem um bebê em excesso... ele é dado! Ninguém contestará a necessidade de legislar sobre a matéria, e menos ainda o belo trabalho realizado pela ASE e pelas instituições privadas para tornar essa lei eficaz. Depois da roda, prática estimulada por São Vicente de Paula para combater o infanticídio, o esforço de reconhecimento daquelas que «fraquejaram» e de seus recém-nascidos lentamente produziu seus frutos. A roda consistia em deixar a criança nascida no opróbrio na porta do asilo, ao amanhecer e dissimuladamente. Sucederam-se a oficialização dessa prática pelas leis napoleônicas de 1811, o reconhecimento da “agência de abandono” em 1904, os adendos ao Código da Família de 1911, a modificação do artigo 55 do Código da Família e da Assistência Social em 1943, a abolição do termo abandono em 1984, por fim a lei sobre a adoção de 1996. Um detalhe picante: o artigo 55 votado no governo de Pétain tinha por objetivo não revelado salvar a honra dos prisioneiros, mais tarde dos homens do STO 18 e dos maridos daquelas que foram
“tosquiadas”. uma justa reparação pensar que essa lei serve atualmente para salvar a vida das mulheres em perigo, violentadas pelos homens e pela guerra, bem como a de seus filhos, e não apenas para salvaguardar a reputação dos homens. Tanto no passado como no presente, a lei revela seus méritos, mas também seus limites. Seus méritos, porque promove na sociedade um melhor reconhecimento simbólico e ético dos membros que a constituem, mesmo se a reflexão que a fez nascer seja minoritária (pensemos na votação da lei sobre a abolição da pena de morte); seus limites, pois ela não consegue evitar uma inclinação a salvaguardar ao mesmo tempo o conservadorismo que solapa sua aplicação. Um exemplo? Pela lei de 1996, a sociedade reconhece como insuportável que possam existir indivíduos sem nome dentro dela: ela prefere Sandra a Xisete , para retomar o caso que evocamos. No entanto, ela não garante a uma criança o direito à sua história, nem reconhece a uma mãe que dá à luz em segredo o caráter positivo de seu ato; ela age como se preferisse defender um resto de civilidade pueril e honesta. Como se devêssemos dar razão àqueles que vêem nisso uma vergonha evidente ou oculta, e que poderiam dizer: “A ação ou a intenção dessa mãe é confusa, melhor calá-la definitivamente”, ou então: “o Sr. ou a Sra. Fulano abandonaram o filho, por isso estão à margem da ordem social; quanto ao resto, não nos cabe indagar enquanto as formas de amor forem respeitadas”. No entanto, respeitar (e desejar) o direito não quer dizer amar a coisa arrumadinha. Um psicanalista pode ser ver diante da situação de afirmar que uma mulher que abandona/doa um filho talvez esteja realizando um ato de amor. Que, inversamente, uma mulher que entope o filho de comida não esteja necessariamente realizando um ato amoroso. Em outras palavras, embora a intenção da lei seja boa, sua interpretação dá lugar à confusão, se não se tomar cuidado. Apenas uma formação adequada do pessoal responsável que lida com esses problemas pode fazer com que essa lei se aplique no interesse da criança, de sua mãe e de seu pai. Samia não se sente forte o suficiente
Outro exemplo? Quando a sociedade propõe a essas mulheres um lar para mãe e criança desabrigadas, uma ajuda financeira para mães solteiras, ou alguma outra ajuda, sua intenção é boa. Mas será que nos damos conta de que no mesmo movimento anula-se o que se oferece, quando se contrapõe a exigência de uma renúncia por parte da mãe: renúncia ou ruptura em relação ao seu pai, sua mãe, seus irmãos e irmãs, em relação ao amante que desapareceu de circulação, à tradição, à cultura, às festas...? Que tipo de lugar lhes damos, que tipo de futuro, de ideal para ser mãe e criar o filho? Samia encontrou-se diante desse dilema. De origem árabe, ela ficou grávida de um rapaz francês que ela conhecia há muito tempo e com quem morava. Eles não tinham feito nada para impedir a gravidez, sem dúvida eles até a esperavam. Nenhuma das duas famílias aprovava a união. A família dele era adepta das “teses” da Frente Nacional; na dela havia uma visão islâmica das coisas. Essas famílias apenas toleravam o casal, e nunca perdiam a oportunidade de acrescentar às proposições racistas o destino dos “da casa em frente”. No quarto mês de gravidez, quando esta começou a ficar visível, o pai subitamente declarou não
desejar a criança. Não conseguindo (se) convencer por meio de palavras, ele começou a bater em Samia. Ela estava a ponto de ter medo, não só por ela, mas também por seu bebê. Abandonou, portanto, a casa deles e encontrou refúgio na casa de uma parente. Alguns meses depois, tendo levado a termo a gravidez, ela veio dar à luz em Béclère e expressou sua vontade de abandonar a criança. Por que esse rapaz, contra todas as expectativas, dado seu comportamento pregresso, reagiu de modo tão violento? Levanto a hipótese de que, confrontado com o racismo do próprio pai, ele não se sentiu forte o suficiente para ele mesmo ser pai de uma criança concebida com uma mulher árabe, quando essa gravidez ficou evidente para todos, inclusive para seu pai. Ela, escutando sua família dizer que era por ter escolhido um francês que ela se encontrava nessa situação dramática, sentia-se frágil demais para lutar contra essas duas forças de intolerância. A ambos faltou força: financeiramente, a situação deles era boa o bastante para poderem acolher esse filho que tinham desejado, mas teriam de romper com a família, e isso era demais. Quem poderia condená-los? Eu não, em todo caso, pois sei por experiência que a maioria daqueles que abandonam um filho são pessoas que não têm mais forças. Acompanhei, portanto, Samia na sua decisão de dar à luz em segredo sem ver a criança. Com isso, ela desejava evitar a ruptura com sua família, e a violência de seu companheiro para com ela ou o filho deles. Ela deu nomes para o filho e pediu que eu lhe contasse toda a história deles. Em seguida, redigiu uma carta dando suas coordenadas para que ele pudesse encontrá-la se assim desejasse, conforme as modalidades legais que lhe indicamos. Por fim, pediu que a criança fosse confiada a uma instituição privada, para ter certeza de que essa carta lhe fosse entregue, sem censura. Ousemos dizer, para concluir, que um procedimento como aquele que empregamos é um complemento indispensável à lei. Antes da entrevista com Samia, meu humor era daqueles que possibilitava todo tipo de deslize. Conhecendo apenas o que constava do dossiê, eu me perguntava por que ela tinha vindo, sem ter feito o acompanhamento prévio da gravidez. Nenhum motivo me parecia justificar sua demanda, e eu estava prestes a repetir a ladainha sobre a decência que quer que não se abandone um filho simplesmente porque se tem vontade. Ela era uma moça que não só não se «sentia» mãe, mas que tampouco queria correr qualquer risco de vir a ser? É certo que o instinto materno não existe, como Elisabeth Badinter insistiu em dizer, mas assim mesmo... Estava quase interpretando sua demanda antes de escutá-la, rememorando casos similares passados: haveria nela essa forma de violência que consiste em não dar oportunidade a um filho de fazer com que você se torne mãe, porque não se suporta renunciar à própria mãe, nem à condição de filho? Estava me entregando a pressupostos que só me levariam às disfunções que denunciei acima em alguns membros da equipe do hospital. Naquele dia eu também estava mexida por causa de uma outra parturiente muito jovem que eu atendera pouco tempo antes, e que abalara minhas certezas. Tampouco ela tinha nada “contra” a criança. Ela conseguira esconder a gravidez da sua família – é incrível ver como uma mulher que quer negar ou dissimular a gravidez consegue alcançar seus fins. E então, no fim da noite, sem acordar ninguém, ela dera à luz o filho, e o depositara no lugar onde se coleta o lixo. Digo “depositara”, deveria ter dito “dispôs”: ela não se livrara da criança como se poderia pensar, mas a envolvera numa toalha e realmente a tinha instalado no local de seu imóvel destinado ao lixo. Por
fim, ela saíra para ir à escola. Policiais encontraram o bebê e logo identificaram a mãe, que foi encaminhada para o hospital, onde ficou detida para interrogatório. Foi lá que nos encontramos. Animada dos mesmos preconceitos, eu lhe perguntei: “O que você pensou que aconteceria com essa criança no lixo?”. Ela me respondeu de modo muito lógico que ela sabia que a coleta do lixo era iminente e que portanto a criança logo seria encontrada; em seguida, aconteceria o que tinha da acontecer, ela não poderia fazer nada. Nenhum indício em seu discurso de desdém pela vida da criança, tratava-se simplesmente de uma incapacidade de se pensar a mãe desse bebê. Nesse caso, como no de Pierrette, a entrevista, pela obrigação que eu tinha de escutar, me fez mudar radicalmente de posição. Ela me devolveu à minha função de psicanalista. Sem essas entrevistas, a aplicação brutal da lei não teria nenhum sentido, nem para ela nem para mim. Do meu lugar de psicanalista, sou obrigada a comprovar a veracidade do adágio: dura lex, sed lex , a lei é dura, mas é a lei. A lei existe, e é melhor assim; ela se presta à confusão, é uma pena. Mas para além dos dossiês e das declarações que a lei prescreve, cabe a nós, psicanalistas, médicos e paramédicos e representantes das instâncias tutelares, velar por suas modalidades de aplicação para garantir aos recém-nascidos que não faltem páginas demais no texto de sua vida. Nascer não é tudo
Baby blues e parto em segredo estão ligados nesse capítulo, embora um seja freqüente e o outro, raro. O primeiro põe em cena a mãe e a criança, ao passo que o segundo as separa. Num caso, trata-se de um vínculo difícil de manter, no outro, de um vínculo difícil de desfazer. Por que fazer deles um mesmo objeto de interesse para o psicanalista? É que ambos marcam o passo decisivo que vai do nascimento à humanização, e caracterizam a dificuldade desse período de limbo. Quem diz limbo, diz borda ou limiar : a criança está na borda do remate de seu nascimento aos olhos daqueles que a acolheram. Qual a natureza dessa borda, dessa suspensão entre real e simbólico? Para a criança, será o tempo da espera angustiada, o da esperança, ou um espaço de tempo incompreensível? A etimologia fornece uma versão otimista: no latim eclesiástico do século XIV, o limbo ( limbi ) é a “estada celeste situada na borda do paraíso”. É o lugar em que as almas dos justos, que morreram antes da vinda de Cristo, esperam sua libertação. O uso deriva para designar a estada das almas das crianças mortas antes de terem sido batizadas na religião católica. As crianças nascidas de um parto em segredo talvez estejam mais próximas do inferno do que do paraíso. É preciso falar-lhes para permitir que saiam do limbo. Às vezes escutam-se pessoas associar essas crianças abandonadas aos suicidas. Ambos são sentidos como inconvenientes e persecutórios, incomodam e deixam em torno de si um cheiro de erro. Em todos os tempos, como lembra a historiadora Yvonne Knibiehler, procurou-se pelos procedimentos legais de abandono dar à “filha pecadora” um meio de apagar seu “erro”: pensava-se que ela “não podia sentir nenhum afeto
pelo filho, motivo de vergonha, e que a própria criança apenas poderia sentir desprezo e ressentimento por aquela que lhe infligira tal vida. Uma filha não poderia ser mãe (...) O que o saber histórico estabelece é justamente que o desejo de filho nas mulheres jamais pôde se exprimir livremente. (...) O problema é o de sua humanização, de sua inserção e de seu funcionamento a serviço de sociedades humanas civilizadas”.19 Crianças nascidas em segredo ou crianças apanhadas no baby blues da mãe, todas elas têm de sair do limbo para nascer para o simbólico. Será que o nascimento não é algo tão natural? Nascer para a sociedade
Na maternidade, tudo começa com o nascimento. Obviedade, apenas contradita pelo trabalho realizado no mesmo serviço do hospital com as gestações de alto risco e as reproduções medicalmente assistidas. O objetivo primeiro continua sendo o nascimento. É o primeiro ato natural da vida, dizem. De um ponto de vista médico, nada permite contentar-se com tal afirmação. A experiência dos médicos de uma maternidade está repleta de fatos inexplicáveis, de nascimentos que “goram” sem motivo, de mortes in utero imprevistas, de tratamentos profiláticos que fracassam inexplicavelmente, de mortes súbitas inevitáveis... Cabe então não colocar obstáculos ao curso natural das coisas e atribuir tudo isso à fatalidade? Para o obstetra, isso não é possível: compreender é o fundamento de sua pesquisa, de sua cultura, de seu poder e de sua paixão. Para o antropólogo, o nascimento é uma questão de cultura antes de ser um simples fato biológico. Lembremos as afirmações de Françoise Héritier, segundo as quais nenhuma sociedade parece confundir filiação e engendramento.20 Como diz um provérbio samoano no qual ela se inspira: “É a palavra que faz a filiação, é a palavra que a retira”. Sem uma nomeação pela comunidade na qual ela entra por seu nascimento, a criança não é só banida da sociedade, ela não existe. Para os membros dos comitês de ética e todos aqueles que são levados a debater, como se fez recentemente, novas técnicas de assistência à reprodução (1985), o parto em segredo (1996), a adoção (1996), o nascimento é também um problema eminentemente social. A começar por sua mera eventualidade. Quem dirá, por exemplo, se toda pessoa ou casal estéril tem direito a um filho sob o pretexto de que técnicas novas podem lhes proporcionar um? Pode-se tirar partido do direito da criança (que ainda não existe) a nascer para aplicar essas técnicas em quaisquer condições? Como a lei deve decidir, arbitrar, determinar no final das contas quem é o pai de uma criança, quando seu genitor presumidamente morto reaparece depois que a mãe voltou a se casar uma vez terminado seu “luto”? E quando uma mãe de aluguel reclama direitos de educação sobre uma criança com o argumento de ter assinado um contrato nesse sentido com os pais (isso nos Estados Unidos, por exemplo, pois na França a lei proíbe essa prática)? Seja qual for a jurisprudência, importante nessa matéria, o problema é constante: quem é filho ou filha de quem, em virtude de que intervenção da sociedade uma lei de parentesco vai decidir sobre a existência de um recém-nascido?
Do nascimento ao reconhecimento
O legislador decidiu: para ele, nascimento acarreta reconhecimento. Os pais declaram o nascimento, o oficial do registro civil o constata – ou, como em algumas grandes maternidades, seu representante no hospital: “hoje nasceu Jean/Jeanne, filho/filha de Maurice Gendron e de Julie, sua esposa, nascida Jarniguet; o que nós, representantes da lei, constatamos neste dia etc.”. Se os pais não declaram, alguma outra pessoa tem de fazê-lo: um funcionário do governo, no caso de uma criança encontrada ou quando algum nome não foi notificado pelos pais; a parteira, no caso de um parto em segredo. Segue-se a declaração de reconhecimento: ele é automaticamente adquirido quando os pais são casados; caso contrário, será necessário o deslocamento da mãe e eventualmente do pai até o órgão do governo. Em caso de não-reconhecimento por um dos dois ou de retratação, a situação se complica um pouco mais. É por exemplo o caso previsto por lei do “reconhecimento antes do nascimento”: nos casais não casados, a mãe pode reconhecer o filho antes do nascimento; ele levará então seu sobrenome. Depois do nascimento, o pai também poderá reconhecer o filho: nesse caso, os dois sobrenomes serão apostos. A intervenção da sociedade no nascimento exerce-se ainda de outras maneiras. Mesmo em se tratando de uma tolerância muito pouco utilizada em nossos dias, o estado civil ou, a pedido seu, o procurador, podem rejeitar um nome “no interesse da criança” (artigos 276 a 284 da Instrução geral relativa ao estado civil de 21 de setembro de 1955 ). Pode-se chegar até a pedir uma investigação sobre o parentesco biológico etc. Os registros de estado civil não têm mais de dois séculos de existência, os registros de batismo que outrora cumpriam esse papel eram notoriamente incompletos: em suma, a preocupação estatística da sociedade é uma exigência moderna, mas nem por isso nascia-se menos antes. O que não impede que essa intervenção da sociedade não tenha conseqüências para o recém-nascido, às vezes de maneira absurda. Assim, enquanto o prazo de três dias concedido pela lei para declarar o nascimento não transcorreu, o recém-nascido não tem qualquer existência legal. Enquanto permanece na maternidade, ele simplesmente não existe, exceto para sua família e para os funcionários. A única coisa que pode fazer a criança sair dessa situação ubuesca de estar vivo sem existência é ela ser hospitalizada num outro serviço para algum tratamento particular, na pediatria, por exemplo: apenas nesse momento ela será declarada com seu nome. Até lá, apenas a mãe internada na maternidade era reconhecida pela administração do hospital. Teria ela introduzido ilegalmente um passageiro clandestino? A nomeação
O nascimento é o aparecimento de um ser concebido por dois outros seres humanos, que perdeu sua dependência fisiológica exclusiva para com aquele dos dois que o carregou em seu ventre, e que é reconhecido como membro da comunidade humana. É, pois, um assunto de nomeação. Não é algo óbvio, ou melhor, não é algo que nem se precise dizer . Fosse ele o filho das selvas ou Kaspar Hauser, ainda assim é preciso que uma criança seja reconhecida por seus pares para ela mesma se reconhecer viva. Para o psicanalista, é pois um assunto de linguagem e de corpo, de palavra ligada ao corpo: um recém-nascido que não está inscrito de uma maneira ou de outra pelos humanos que, se supõe, devam acolhê-lo é, de certa maneira, pouco diferente de um OVNI. À pergunta sobre a situação da criança entre o parto e sua declaração de nascimento, um psicanalista responde que sabe que ela está viva pelos desejos que a trouxeram até ali; mas que também sabe que o não-
reconhecimento de seu desejo pode significar para ela a morte, pelo menos simbólica. Entenda-se bem, a nomeação não é no caso um simples problema de declaração legal nem mesmo de atribuição de nome. É também uma questão de enunciação indispensável da história da criança. É preciso que a criança escute dizer um mínimo sobre sua história e sua inscrição na linhagem parental (isto é, seu pai e sua mãe, mas também os ascendentes deles, se possível). É aí que, isso não sendo possível por parte dos pais, um terceiro pode intervir. De outro modo, esse impensado pode fazer sintoma. O nascimento não é nem um fato natural nem uma história simples. Ele talvez seja mais difícil de pensar que a morte, porque não é inevitável: vimos como alguns bebês podem escolher morrer antes de nascer. Somos como aquele personagem do romance de Umberto Eco, que “se pôs a pensar em seu nascimento, sobre o qual sabia menos ainda que sobre sua morte. Dizem que pensar sobre as origens é o próprio do filósofo. Para o filósofo é fácil justificar a morte: que cada qual tenha de se lançar nas trevas é uma das coisas mais claras do mundo. O que obceca o filósofo não é o natural do fim, mas o mistério do começo. Podemos desinteressar-nos da eternidade que virá depois de nós, mas não podemos evitar o angustiante enigma da eternidade que nos precedeu (...)”. 21 A morte é, como todos sabem, a condição da vida, e a presciência da morte, a condição do bem viver. Por isso é que a resposta à pergunta “estamos aqui para viver o mais felizes que pudermos?” é o desafio da saída do limbo. Em suma, o que está em jogo nos três ou quatro primeiros dias da vida enuncia-se em termos simples: “Nascer não é tudo, é preciso viver bem!”. O coro dos recém-nascidos logo faz eco: “É tudo o que queremos!”. No entanto, parecem existir algumas notas dissonantes nesse coro, pois alguns bebês comportam-se como se isso não fosse nem um pouco evidente. 1 F Dolto, Séminaire de psychanalyse d’enfants , t. 1, Seuil, col. “Points”, p. 170. [Edição brasileira: Seminário de psicanálise de crianças, Zahar, 1985.] 2 Em francês, diz-se que o leite “sobe”. (N.T.) 3 O pagamento simbólico é uma prática instituída por F. Dolto, e que consiste em pedir a crianças que ainda não têm condições de prover sua própria vida material que paguem sua sessão com uma bala, uma pedra, em suma, com algum objeto sem significação particular que possa ocupar o lugar de dinheiro. Dessa maneira, apesar de sua dependência financeira, ela passa a ter condições de exprimir seu desejo de ter uma sessão ou de recusá-la, não pagando. 4 F. Dolto, Séminaire de psychanalyse d’enfants , t. l, op. cit., p. 114 sg. 5 Em francês, a raiz de interpréter é homófona a prêter , emprestar, prestar. (N.T.) . Didier-Weill, Les trois temps de la loi, Seuil, 1995.[Edição brasileira: Os três tempos da lei, Jorge Zahar, 1997, p. 250-1.] 6A 7 F. Dolto, Dialogues québécois , p. 71-2.
8 M. Thirion, op. cit ., p. 37. 9 “ Quero e não quero.” Célebre réplica do duo Zerline – Don Juan na ópera de Mozart Don Giovanni, libreto de Da Ponte. 10 R. Frydman, op. cit ., p. 41. 11 F. Dolto, Séminaire de psychanalyse d’enfants , t. Il, op. cit ., p. 98-9. a França, os registros civis são da alçada da administração municipal. (N.T.) 12 N 13 Famílias de acolhida são famílias com filhos próprios que acolhem por um determinado período uma criança, recebendo
remuneração por isso. Assistentes maternas são mulheres selecionadas pelos serviços de assistência social, que recebem formação específica e cujos domicílios são supervisionados pelo Estado para poderem receber várias crianças e servir-lhes de mãe substituta até serem adotadas. (N.T.) omunicação no congresso da ABREP (Associação brasileira para o estudo do psiquismo pré e perinatal) em São Paulo, em 1993, 14 C retomada por ocasião do congresso das PMI. Ver: M. Szejer, “Silence, on adopte”, in Profession sage-femme , out. 1996. As noções de “órfãos de palavra”, de “urgência de palavra”, de “laços coletivos de silêncio”, e todos os desenvolvimentos subseqüentes que lhes dei datam dessa época.
15 S. Tisseron, Secrets de famille mode d’emploi, Ramsay, 1996. 16 Assim se pronunciam essas duas letras em francês. (N.T.) . Delaisi, P. Verdier, Enfant de personne, ed. Odile Jacob, 1994. 17 G 18 Serviço de Trabalho Obrigatório. Durante a Segunda Guerra Mundial, o governo de Vichy enviava jovens franceses para trabalhar na Alemanha. (N.T.)
19 Y. Knibiehler, “Désir d’enfant”, in Études freudiennes, nº 32, nov. 1991, p. 143-57. . Héritier, Masculin/Féminin, ed. Odile Jacob, 1996. 20 F 21 U. Eco, L’île du j our d’avant , Grasset, 1996, p. 420.
A escolha de viver
A palavra é o homem, sua memória e seu devir.
Edmond Jabès
No hospital e nas instituições públicas, a psicanálise não é realmente bem-vinda como ela o foi nos anos setenta: roga-se-lhe que seja discreta. Meu caso não constitui exceção à regra, pois meu movimento da psiquiatria para uma prática realmente psicanalítica em instituição foi um dos motivos de indeferimento de meus requerimentos junto ao CMP (Centro Médico-Psicológico) e à PMI (Proteção Materna e Infantil). Foi-se o tempo da colaboração entre psiquiatria e psicanálise. Se a psiquiatria oficial não vê mais na psicanálise uma referência, muitos psicanalistas, por sua vez, assistiram com tristeza ao abandono do ideal da setorização que animara a psiquiatria e a reforma dos estudos de psiquiatria, que já não reserva mais qualquer lugar para a especificidade do sintoma psíquico. O debate entre eles, estéril de todos os lados, precisa avançar. É possível concordar em um ponto: para além de suas respectivas posições e éticas, psiquiatras e psicanalistas têm um dever social para com aqueles que os consultam. O que impulsiona a modernidade da psicanálise é a concepção de que esse dever não seja exercido como uma violência contra os clientes, isto é, que ele vise antes a reconhecer a verdade de cada ser do que a reduzi-lo a seu sintoma. É essa exigência ética que impõe à psicanálise renovar sua ação por meio da descoberta de novos campos, de novas práticas e de uma nova eficácia. No domínio da perinatalidade que nos interessa, um dos novos campos é o do limbo: o baby blues, sobre o qual insistimos, escapa por essência ao tratamento psiquiátrico padrão. Ele não está classificado como uma patologia específica, e não é «tratado» enquanto tal no momento em que surge. Ao contrário, o psicanalista, que vê nele um momento princeps de constituição do sujeito, dedicar-se-á a lhe conceder uma escuta atenta. Mais que isso, ele terá de penetrar nos terrenos não explorados pelas assistências terapêuticas existentes, nos quais, porém, constrói-se a vida dos seres humanos: o pós-parto, o apoio aos lactentes e aos pais em dificuldade, mas também a ajuda no nascimento e a consideração da vida pré-natal sobre os quais há tanto para dizer e para descobrir, de um ponto de vista psicanalítico. No plano das práticas, a primeira das inovações necessárias para o psicanalista poderia ser a de sair de seu consultório e deslocar-se até o paciente: na maternidade, no hospital, em todos os lugares onde sua escuta permita modificar o curso das patologias. Isso suporia estabelecer
protocolos de inspiração psicanalítica precisa, quer se refiram à prevenção ou ao tratamento geral da demanda: foi o que aconteceu a propósito do parto em segredo, da prevenção para os prematuros ou os recém-nascidos cuja história estava marcada por lutos anteriores, mais genericamente a propósito do modo de reconhecer e de tratar as demandas dos pais e/ou das crianças. Isso teria por conseqüência transmitir um testemunho e possibilitar aos estagiários formarem-se a partir dessa experiência. A mais urgente e a mais atual das necessidades é repensar a transposição do enquadro psicanalítico para a prática institucional. A demanda evolui sem cessar, e num sentido que, nesse tempo de crise social, torna a escuta difícil. Os psicanalistas precisam adaptar-se para encontrar uma saída para essa demanda. Nesse esforço, eles mantêm intacta sua capacidade de resposta humana a essa demanda. Numa época em que se protesta que é preciso se ocupar dos problemas mais urgentes diante do afluxo de dramas sociais, os psicanalistas podem manter a exigência de escutar a dor como uma prioridade em muitos casos. No plano da eficácia, que, como em qualquer empreendimento social, mede-se pelo tempo, trata-se em primeiro lugar de novas capacidades operatórias. Embora o baby blues não seja levado em conta pelos psiquiatras nos três ou quatro dias posteriores ao nascimento, a depressão que às vezes se segue e perdura por não ter sido prevenida é um motivo freqüente de consulta nos consultórios. Quanto maior for o tempo transcorrido desde o baby blues, mais longo será seu tratamento. Não seria mais “econômico” estar presente mais cedo, antes de ter de responder a uma síndrome caracterizada? Lembremos que foi igualmente esse o argumento que nos motivou no caso do parto em segredo. Mas, para outras idades e em outras situações problemáticas, ele também pode ser interessante. Ele apenas verifica uma das constantes de nossos ofícios: o efeito da interpretação mede-se menos por sua pertinência que por sua capacidade de intervir a tempo. Ela segue a mesma lógica do testemunho que, na introdução, dizíamos que guiaria este livro. A interpretação é um assunto de escansão, e a abordagem nova dos recém-nascidos talvez introduza o primeiro momento em que se tem de decidir por uma ação: “passado o tempo para compreender o momento de concluir, é o momento de concluir o tempo para compreender”. 1 Ao insistir sobre o período do limbo, nada mais fazemos que tentar amenizar o custo psíquico, social e financeiro de distúrbios precoces na criança. Esse papel de prevenção, no caso desempenhado pelo psicanalista, é bem recebido pelas equipes de Béclère, mesmo que possa parecer estranho às necessidades de sua prática. Pode mostrar-se útil em muitos outros lugares. A ASE, que encaminha alguns lactentes para o consultório de um psicanalista com a rubrica de «tratamento não reembolsável», tem a coragem de manifestar dessa forma que o custo da psicanálise nem é indevido nem excessivo em comparação com o que ela propicia. Com isso, na qualidade de tutor responsável que ela é dessas crianças, ela consagra a função terapêutica preventiva e também sintomática da escuta psicanalítica das crianças de pouca idade. Muitos dos pais que consultam um psicanalista também têm essa opinião. Quando em algumas sessões eles conseguem reencontrar dentro de si o recurso de falar com seu recém-nascido, mesmo no mais profundo sofrimento que os assola, eles se felicitam por evitar-lhe os distúrbios que até então estragavam a vida de todo o mundo: a do bebê, a deles, quando não a das pessoas próximas. O caráter intricado dos sintomas, especialmente na criança e no recém-nascido, torna o
diagnóstico geralmente difícil. s vezes eles parecem precisar de uma ajuda psicoterapêutica, quando na verdade sofrem de uma disfunção orgânica. Com mais freqüência ainda, o que se manifesta como uma desordem fisiológica de tratamento incerto revela-se através da escuta psicanalítica ser de ordem psíquica. Uma criança de três anos me foi encaminhada por seu pediatra, que estava preocupado porque ela dormia muito mal e sua insônia era rebelde a todos os tratamentos. Ela tivera direito a todos os exames funcionais possíveis e imagináveis, o aparelho de tomografia não tinha mais segredos para ela. Nada adiantava, não se chegara a nenhum diagnóstico, e a criança continuava insone. Tudo o que ela conseguira fora uma sólida repulsa pela medicina e pelos hospitais, próxima da fobia. Depois de um mês de consultas no meu consultório, como às vezes acontece, o sintoma tinha desaparecido. Que pensar das muitas otites ou rinofaringites de repetição que diminuem quando as crianças que delas padecem iniciam um tratamento psicoterapêutico? Por que essas crianças, que passaram anos ingurgitando antibióticos, renunciam ao seu sintoma, que às vezes já dura vários anos, em alguns meses de psicoterapia? É um fato clínico comprovado. Pode-se tirar ou não tirar conclusões dessa relação entre ambos, é uma questão de consciência profissional; mas como negá-la? Também tive a oportunidade de ver uma asma rebelde desaparecer durante uma psicanálise. Era um menininho de sete anos. Sua vida e a de sua família estavam regidas por tratamentos termais que lhe eram prescritos em todas as férias escolares. Consultara um alergologista de grande reputação, que, cansado de um sintoma que resistia ao seu tratamento, diante da pergunta dos pais sobre sua opinião a respeito da conveniência de uma psicanálise, acabou soltando o seguinte: “Se vocês têm tempo e dinheiro para perder, então mandem seu filho!...”. Talvez ele tenha perdido alguns meses, talvez um ano, até levantar todos os problemas familiares que o afligiam. Até então seus pais tinham tentado protegê-lo desses problemas, e nem imaginavam em que situação irrespirável isso colocara o filho. Em todo caso, tendo perdido todo esse tempo com constância e aplicação, o pequeno paciente perdera sua asma. Se o psicanalista preza os poderes terapêuticos de sua abordagem, ele não deve intrometer-se em territórios que não sejam o seu. Ele tampouco deve se tomar por um parteiro quando trabalha na maternidade, nem que fosse um parteiro de palavras, não deve agir como médico se não quiser deixar de ser psicanalista. Se ele for psiquiatra e psicanalista, terá de escolher entre suas duas funções. Na maternidade, ou bem eu medico e dou o endereço de um colega psicanalista que os pacientes decidirão ir ver ou não; ou desempenho meu ofício de psicanalista, e abstenho-me de medicar. O efeito terapêutico de uma escuta psicanalítica tem esse preço. Inversamente, um médico será tanto mais eficaz quanto não brincar de “psi”. Seu senso clínico, isto é, sua inteligência técnica e seu senso do humano podem ajudá-lo a acompanhar o paciente até uma demanda de assistência psicoterapêutica que não é da sua alçada. Geralmente, o “psi” intimida quem nunca recorreu a ele, e explicar ao paciente que seu mal é psíquico mais que fisiológico e que ele deve consultar um especialista seria brutal demais. Mas ajudar o paciente a superar seu medo até chegar ao psicanalista á é terapêutico: isso humaniza o sofrimento em vez de tecnicizá-lo. Os trabalhadores do corpo só têm a ganhar quando pensam em recorrer ao especialista da psique não como um fracasso a eles imputável, mas como a esperança de uma sinergia proveitosa para todos.
Ao falar de um período crucial de três ou quatro dias posteriores ao nascimento, fingimos ignorar a estranha correspondência que ele apresenta com o período de três ou quatro dias que sucede à concepção. No pré-natal, no quarto dia ocorre a migração do ovo para o útero, o que indica o começo da vida; no pós-natal, trata-se de um nascimento simbólico. Seria isso uma variante do «relógio orgânico» de F. Dolto? Metaforicamente, em todo caso, ela evoca perfeitamente a dimensão de palavra e de codificação simbólica que interessa à psicanálise. O real existe, ele é incontornável, mas ele só é apreensível pelo vínculo com a profusão imaginária que ele engendra e a tessitura simbólica que ele propicia a cada um. Esperamos tê-lo mostrado pelo sofrimento dos recém-nascidos no limbo. É algo que se constatará em toda situação médica de urgência em que a humanização das práticas pode ajudar a encontrar uma saída. Toda estrutura em que a escolha entre viver e morrer está em jogo, no serviço de reanimação, por exemplo, pode se beneficiar da contribuição da ajuda psicanalítica. Não se trata de assistência aos moribundos, mas de às vezes ajudar a identificar o que no “se-deixarmorrer” pode ser do registro inconsciente. Um de meus pacientes pediu que eu fosse ao hospital onde ele acabava de ser operado depois de um infarto do miocárdio. Ele se encontrava num estado depressivo profundo, que o levava a querer morrer, embora a intervenção parecesse coroada de sucesso. Conversando comigo, compreendeu que sua depressão podia ter motivos que não suspeitara num primeiro momento. Compreendeu que, embora dissesse querer morrer, essa vontade não era sua mas efeito de um outro desejo inconsciente. Que, caso se deixasse morrer, seria para se conformar ao ódio que sua mãe lhe tinha, que ele resumiu de modo surpreendente: “Dada sua idade canônica, vejo apenas uma explicação para sua longevidade: o que a mantém viva é ainda não ter me visto morto!”. O motivo dessa observação abrupta, mas carregada de subentendidos relacionados com a história familiar, a origem desse vínculo não liberto das questões imaginárias que mantinham atado ao desejo da mãe o fio de sua própria vida, o não-advento simbólico que disso resultava e o fazia tender para a morte por não ter “nascido”, não são do âmbito deste livro. Mas meu paciente reconquistou sua liberdade de viver. Aproveito esse exemplo para dizer que, em casos medicalmente graves ou até desesperadores, a escuta psicanalítica pode ter sua importância. Seu efeito é da mesma ordem que aquele que opera para os recém-nascidos: restituir-lhes sua palavra, o acesso à sua história e a possibilidade de escolher entre a pulsão de morte que os corrói e o desejo de vida que descobrem ter. É essa a lição de humanidade que os bebês nos dão. Mostramnos dessa forma o horizonte de trabalho do psicanalista: possibilitar que cada qual nasça e renasça sem cessar para a vida, de acordo com seu desejo. 1 J. Lacan, op. cit ., p. 197-213.