Olavo de Carvalho
Leituras animais
Todos os nomes no mundo dos escritores “Nem todos os animais receberam os benefícios de uma educação humana.” — Erik Satie “A mídia é uma máquina onde entra um homem e sai um hambúrguer.” — Mario Vargas Llosa
A diferença fundamental entre escrever como escritor e escrever como qualquer outra coisa é que no primeiro caso o sujeito dispõe de um conjunto de instrumentos expressivos adquiridos de uma tradição. Ele é um u m aprendiz ou mestre do ofício, um membro da corporação; corporação; ele conhece seus antecessores, ele sabe como Ronsard, Cervantes ou Dickens diriam isto ou aquilo, ele escolhe seus esquemas expressivos numa galeria imensa onde palavras e giros frasais estão arranjados segundo as épocas, as afinidades e os mil e um [1]
usos possíveis de cada instrumento. Desse repertório ele escolhe, combina e adapta o que bem lhe lh e pareça. No outro caso, seus recursos estão limitados ao arsenal do dia, da moda, do meio, da mídia. O repórter atém-se às normas da redação, o chefe de gabinete aos cacoetes do estilo ministerial, o demagogo às frases feitas da retórica partidária. Se algum deles sai da bitola, já não o compreendem. Cada um só está apto a dizer, num tom idêntico ao dos seus semelhantes, o que qualquer deles diria em idênticas circunstâncias. São linguagens gerais aptas a dizer coisas de domínio geral. São o idioma da praça pública, onde cada um só pode dizer o que os outos já sabem e onde, quanto mais estreito e cerrado é o horizonte do conjunto, mais cada um tem uma tremenda impressão de amplitude, de abertura, de universalidade, de modo que ao perfeito engano corresponde o sentimento de máxima certeza. O escritor tem, portanto, aparentemente, [2]
mais recursos (e denomino escritor não somente aquele que escreve por ofício, mas também todo aquele que tenha os meios de fazê-lo ainda que não o faça). Ele sabe dizer o que os outros não sabem. Ele pode registrar por escrito impressões fugazes, nuances, sutilezas, insights que as outras pessoas só podem vivenciar como estados mudos, incomunicáveis e sem forma. Mas o escritor não usa as palavras só para escrever livros, e sim para falar consigo mesmo. Daí que a diferença entre ele e o outro não seja só de meios expressivos, mas também de nível e estofo de consciência. Tudo aquilo que no outro, por falta de registro, foi se perdendo, se dissolvendo no esquecimento, cavando um abismo entre a consciência presente, verbal, e a consciência profunda não-verbal, nele se conserva e está presente a cada momento: é a sua constelação interior, o seu mundo próprio, um mundo onde as coisas têm nomes, um mundo onde tudo fala e responde. Por isso, ser escritor é uma forma superior e “
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mais intensa de vida, que aqueles que a obtiveram devem agradecer aos céus. Por isso, o aprendizado das artes da palavra é, segundo o entendo, o primeiro passo na educação da autoconsciência, na preparação para a filosofia. Mas tudo tem um preço. Desde logo, quem aprenda a escrita com a simples intenção de escrever livros e publicá-los comete um grande erro. Antes de servir para isso a linguagem tem de ser adestrada para a conversação interior, e para o su jeito dizer a si mesmo a verdade do que sente, pensa e quer. Quien habla a sólo espera hablar a Dios un día , dizia Antonio Machado. Mas falar a Deus não é difícil. Ele é o único público universal, que compreende todas as línguas. O difícil é encontrar o tom da própria voz, aquele tom que, quando você o ouve desde dentro, você sabe que está dizendo a verdade. Repare e perceberá que por dentro você tem “
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várias vozes, correspondentes aos diferentes papéis que tenciona desempenhar no mundo. Umas são arrebatadas, enfáticas, histriônicas. Outras, autopiedosas e gementes. Outras, frias e imperiosas. Todas são imitações baratas. Só uma é sua autenticamente, e ela não pode ser descrita por nenhum adjetivo: o nome dela é o seu nome próprio. Só quando você aprende a distingui-la, a ouvila, a obedecê-la, a escrever no tom, no ritmo e com as cores que ela ordena, é só então que você sabe escrever. E Deus, que fala todas as línguas, não aceita que você Lhe fale senão nessa. Em todas as outras, você mente. Um segundo problema é que você ter mais instrumentos de expressão não lhe garante que as as pessoas vão compreendê-lo melhor. Ao contrário. Quanto mais rico e mais coeso o mundo interno de um escritor, quanto mais meios ele tem de expressá-lo, mais ele requer um leitor rico de experiência potencial, capaz de atualizá-la ao seu chamado. Para compreender a voz de quem fala desde [5]
dentro, é preciso ouvir desde dentro, é preciso, portanto, ter ao menos a aptidão e o desejo de ouvir a própria voz. E como encontrar esses leitores numa época em que a educação educação mesma se tornou amoldagem da alma às línguas gerais feitas para o intercâmbio de slogans de d e domínio geral? Sim, a linguagem que se ensina já não é a dos escritos; é a linguagem da moda e da mídia, uma linguagem de demagogos e gerentes, de ministros e militantes. Ela existe para a mútua confirmação de preconceitos entre os atores de uma pantomima. É uma linguagem que vai de boca a boca sem passar pelo cérebro, muito menos pelo coração. Para o escritor, falar com essa gente é extremamente arriscado. Diga ele o que qu e disser, será interpretado e julgado segundo as regras da pantomima. São regras simples e estereotipadas, que determinam não somente o que se deve dizer, mas também o como e o quando. Saia da bitola, e ninguém mais entende o que você está dizendo. [6]
Mas, como ninguém pode admitir que não entende alguma coisa, todos espremerão o que você disse até fazê-lo caber na bitola. Aí você será julgado não pelo que disse, mas pelo que teria dito se fosse eles. E você não imagina como terá ficado diferente. Uma terceira encrenca é que o homem que aprendeu com a tradição da arte da escrita se reportará freqüentemente a ela, mediante alusões, paráfrases e paródias que acrescentam ao sentido aparente de suas palavras uma segunda camada de significado, só acessível a quem conheça as a s fontes. Como o conhecimento dessa tradição se perde rapidamente entre os leitores e mesmo entre os pretensos escritores, é líquido e certo que a camada mais profunda ficará sem efeito e tudo será reduzido a uma aparência imediata e rasa. Que fazer? Abdicar das alusões, consentir em escrever na linguagem unidimensional, é desistir de dizer as únicas coisas que valem a pena dizer. É consentir em tornar-se, em vez de escritor, um [7]
cozinheiro de fast-food editorial. Dou-lhes um exemplo. No Prólogo do Prólogo de O Imbecil Coletivo , fiz um experimento literário que só uns poucos leitores perceberam. Usei um estilo geral de oratória renascentista, entremeando-o, porém, de súbitas expressões do vocabulário popular mais grosso, para quebrar propositadamente o efeito e ressaltar o sentido paródico do conjunto. No final, porém, o tom paródico devia ceder vez à autêntica solenidade de uma exortação moral, extraindo a conclusão séria de uma sucessão de gracejos. Obtive esse feito comprimindo, num breve parágrafo, nada menos de três alusões a escritores da Renascença: Faze o trabalho do espírito: mostra-os a si mesmos, para que os humilhe o que os lisonjeou um dia, e, tombando de quanto mais alto subiram, conheçam que humanos são. Junta teus papéis, compõe massuda escritura, se rude e tosca não vem ao caso, mas que não minta . As alusões são a frei Luis de León ( cuanto más alto sube, viene al suelo , de A Don Pedro ‘
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Portocarrero ),), a Camões ( conheçam que humanos são , de Sôbolos Sôbolos Rios que Vão ) e a Fernão Mendes Pinto ( rude e tosca escritura , da PerePeregrinaçam ).). Um leitor de ouvido treinado, mesmo sem identificar logo as fontes, perceberia, no ato, tratar-se de alusões e instintivamente se posicionaria no nível lírico (no sentido crociano) requerido para a compreensão do texto. Mas pode-se contar com essa finura de sensibilidade em pessoas que foram adestradas pela militância universitária para uma leitura chapada, em que nem sequer a distinção de sentido direto e sentido oblíquo chega a aflorar à superfície da consciência? Para que um poeta em tempos mesquinhos? , perguntava Rilke. Mas, mesquinharia é termo suave para descrever uma situação em que a leitura ensinada nas escolas se reduz a um sistema de reflexos condicionados, com reações padronizadas ante expressões permitidas e proibidas. Mesmo barbárie , aí, é eufemismo, pois os bárbaros eram povos cantores, sensíveis à poesia ’
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épica. Devo a eles meu nome de batismo, extraído da Saga Saga de Olaf Haraldson , de Snorri Sturlson. Não sou ingrato o bastante para nivelá-los à animalidade pavloviana que impera no nosso meio universitário. ‘
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Bravo! 40 (janeiro de 2011)
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