O MÉTODO STANISLAVSKI: A EDIÇÃO DE A CONSTRUÇÃO DA PERSONAGEM EM PORTUGUÊS E ESPANHOL, UM ESTUDO COMPARATIVO Michel MAUCH1 Robson Corrêa de CAMARGO2
Resumo: Esta pesquisa indica, defronta, coteja e sistematiza alguns trechos do livro A Construção da Personagem com El Trabajo del Actor Sobre Sí mismo en el Proceso Creador de la Encarnación (livros considerados equivalentes, entretanto sendo o primeiro traduzido do inglês e o segundo diretamente dos originais russos); mostrando as possíveis incoerências e falhas que levaram a um entendimento parcial do trabalho de Constantin Stanislavski. Igualmente, faz uma breve introdução sobre a importância do Teatro de Arte de Moscou, no qual Stanislavski desenvolveu e aprimorou o seu “sistema”. Levanto aqui, também, cinco fatores que influenciaram na disseminação do seu “sistema”. Por fim, analiso as diferenças de dois períodos que se inserem no capítulo Plasticidade do Movimento do livro A Construção da Personagem. Palavras-chave: Stanislavski, A Construção da Personagem, Crítica Genética, Stanislavski no Brasil. Resumen: Esta pesquisa indica, enfronta, coteja y sistematiza algunos trechos del libro A Construção da Personagem con El Trabajo del Actor Sobre Sí mismo en el Proceso Creador de la Encarnación (libros considerados equivalentes, pero siendo el primero traducido del inglés, ya el segundo directamente de los origináis rusos); mostrando las posibles incoherencias y imperfecciones que llevaran para un entendimiento parcial del trabajo de Constantin Stanislavski. Igualmente, una breve introducción sobre la importancia del Teatro de Arte de Moscú, en el cual Stanislavski desenvolvió y primorea el su “sistema”. Levanto aquí, también, cinco factores que influenciaran en la diseminación del su “sistema”. Por fin, analizo las diferencias de dos períodos que se inserten en el capítulo Plasticidad de los Movimientos del libro A Construção da Personagem. Palabras-clave: Stanislavski, El Trabajo del Actor Sobre Sí mismo en el proceso Creador, Crítica Genética, Stanislavski en Brasil.
1. INTRODUÇÃO
O objetivo deste trabalho é analisar a tradução dos escritos do livro A Construção da Personagem, de Stanislavski, ao português, cotejando esta com sua tradução ao espanhol. Este estudo comparativo procura entender as 1
Graduando em Artes Cênicas (Bacharelado — habilitação em Interpretação Teatral) pela Universidade Federal de Goiás e membro do Máskara - Núcleo Transdisciplinar de Pesquisas em Teatro, Dança e Performance; pelo qual desenvolveu esta pesquisa, como aluno PIBIC (CNPq/UFG). E-mail:
[email protected] 2 Professor da UFG e Diretor Teatral. Coordenador do Grupo de Trabalho Teorias do Espetáculo, da Recepção da ABRACE e da Rede Goiâna de Pesquisa Performances Culturais. E-mail: robson.correa.camargo@gmaial .com
diferenças estabelecidas nas duas versões e as possíveis conseqüências na sua recepção. Constantin Siergueieivitch Alexeiev (1865 – 1938) - escritor, pedagogo, ator e diretor de teatro, mais conhecido como Stanislavski - e seu parceiro Vladímir Ivânovitch Niemiróvitch-Dântchenco (1858 – 1943), escritor e professor de arte dramática na Filarmônica de Moscou; iniciaram no dia 22 de junho de 1897, às 14h; no Slaviánski Bazar3 (Mercado Eslavo, nome de um restaurante), não só um conversa histórica, mas um diálogo, de um empreendimento, que marcaria o teatro no século XX: o Teatro de Arte (ou Artístico) Moscou Acessível a Todos4 (TAM). O TAM5, em seus objetivos, queria combater formas de encenação, atuação e direção usuais nos palcos russos da época, que deveriam ser superadas como: técnicas declamativas; a qualidade inferior de repertórios; e o descuido com os figurinos e cenários. Nele seria gerado o famoso método de interpretação de Stanislavski, ─ o “sistema” 6 ─ tendo como base as ações físicas, as quais “[...], por sua vez, transmitem o espírito interior do papel que estamos interpretando [...]”7, sendo estas “abastecidas” pela vida e pela imaginação que o ator empresta à personagem. Ações Físicas, espírito interior, imaginação, são palavras chaves em todos os métodos de interpretação para o ator desde então. As edições dos escritos de Stanislavski ao português se originam, infelizmente, de versões das traduções ao inglês e não do original. Portanto, torna-se necessário o entendimento de alguns vícios de origem. 3
Cf. TAKEDA, Cristiane Layher. O Cotidiano de uma Lenda. São Paulo: Perspectiva, 2003, p. 44. 4 Cf. GUINSBURG, Jacó. Stanislavski e o Teatro de Arte de Moscou. São Paulo: Perspectiva, 2006, p.38. 5 Sua formação, inicial, foi composta por 39 atores (23 rapazes e 16 moças, de 20 a 23 anos) que foram ou alunos de Dântchenco (Meyerhold, Olga Kniper...), ou que já trabalhavam com Stanislavski (Maria Liliana, Lujski...); mais um pintor, maquiador e demais empregados que no final somavam uma quantia de 313 funcionários (GUINSBURG, 2006, p.38) 6 O “sistema” leva o ator ao estado criativo através da perda da tensão muscular e objetiva exprimir os estados interiores pela imaginação. Assim, como nos traz Dallago (2005, p.11 - 12), a sistematização escrita do “sistema” foi feita por Stanislavski por volta de 1906. Isto, segundo uma carta da mulher de Stanislavski, Maria Liliana, a Olga Knipper, atriz de Stanislavski (TAKEDA, 2003, p. 305); e sua utilização ocorreu no ano de 1907, na peça O Drama da Vida, de Knut Hamsun, conforme Dallago (idem) embasado em Stanislavski (1956, p. 169) em Minha Vida na Arte. 7 STANISLAVSKI, Constantin. A Construção da Personagem. Tradução de Pontes de Paula Lima. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1986, p. 98.
Há cinco fatores que certamente alteraram o pleno entendimento do “sistema” nos Estados Unidos8 e, portanto em português. O primeiro refere-se à prática do método. Stanislavski autorizou alguns de seus melhores alunos – Ievguêni Bogratiónovitch Vankhtangov (1883 – 1923)9 e Michael
como
Tchekhov (1891 – 1955)10– a difundir o saber que com ele adquiriram. Entretanto outros “alunos” que ficaram períodos muito curtos na companhia, e/ ou mesmo não receberam a permissão de Stanislavski, acabaram passando os ensinamentos que conseguiram de forma generalizada.
As teorias, como
afirma Picon-Vallin em seu artigo La Soledad de Stanislavski11, que foram emitidas por estes “alunos”, se originaram em um curto período de trabalho, ou dados a uma pessoa em particular: [...] La gente se quedaba un tiempo con él, luego se iba a difundir su palabra, generalizando se una experiencia temporal, las instrucciones de un día o las que estaban dirigidas a una persona en particular en las circunstancias dadas durante los ensayos en los que habían participado, sin tomar cuenta en absoluto las contradicciones que existían en Stanislavski entre su imaginación desbordante y la tiranía de la verdad de la vida [...]12 (PICON-VALLIN 1993, p. 44)
Assim o que houve é que estes “alunos” levaram não um processo totalmente refletido do conhecido “sistema”,
mas sim, fragmentos, versões
e/ou compreensões parciais dele. Isto fez com que os alunos-atores norteamericanos, e também de outras localidades, não conhecessem os ensinamentos de Stanislavski diretamente da fonte produtora, mas que recebessem somente uma fração do processo ou suas distintas versões. 8
Em 1923, o TAM estreou, em tournè nos EUA. Cf. COSTA, Iná Camargo. Stanislaviski na Cena Americana. In: Revista do Instituto de Estudos Avançados: São Paulo, v. 1, 2002, p. 107 – 108. 9 Aluno do Primeiro Estúdio, criado em 1914 por Stanislavski e Meyerhold, para fazer experiências e treinamentos com novos atores. 10 Sobrinho do famoso dramaturgo Anton Tchekhov (1860 – 1904) — que escreveu as peças que se tornaram as montagens de maior significação para o Teatro de Arte de Moscou: A Gaivota (1898), Tio Vânia (1899), As Três Irmãs (1901) e O Jardim das Cerejeiras (1904) — também, aluno do Primeiro Estúdio, Tchekhov, segundo Mel Gordon (2006, p. 50) na Introdução livro Lecciones para el Actor Professional (de Tchekhov) no ano de 1941 abre uma escola de teatro, Tchekhov Teatro, em na cidade de Nova York. 11 In: Revista Máscara: Stanislavski, Eso Desconocido. Escenología: México, n. 15. Out/ 1993, p. 44. 12 “As pessoas permaneciam um tempo com ele e logo iam difundir seus ensinamentos, generalizando-se uma experiência temporal, as instruções dadas durante um dia de ensaio ou que estavam dirigidas a uma pessoa em particular nas circunstâncias dadas do ensaio, sem tomar conta em absoluto às contradições que existiam em Stanislavski, entre sua imaginação transbordante e a tirania da verdade cotidiana”. (Estas e as demais traduções feitas neste artigo ao espanhol são de minha autoria).
Para que se entendam os próximos fatores que prejudicaram a compreensão do “sistema”, é necessário, primeiramente, saber que os livros de Stanislavski foram traduzidos primeiramente para o inglês por J.J. Robbins (Minha Vida na Arte, 1924)13, portanto, logo após a visita do TAM aos EUA, e por Elizabeth Reynolds Hapgood (A Preparação do Ator, 1936; A Construção da Personagem, 1949 e A Criação de um Papel, 1961)14, todos para editora Theatro Arts Books, de Nova York. A publicação dos seus escritos ao português apresenta incorreções, as quais infelizmente aparecem após cerca de cinqüenta anos da primeira publicação, que foi feita a partir de 195615, Minha Vida na Arte, que por sua vez apareceu em uma versão reduzida. Há também a tradução desta obra por Paulo Bezerra (em 1989) e os seguintes por Pontes de Paula Lima (a partir de 1964), todos pela Civilização Brasileira. Mas, todas se originam da tradução das cópias norte-americanas e não do original russo. Entretanto, as traduções ao português, apresentam omissões de períodos importantes da obra original russa e que podem deturpar o entendimento mais aprofundado das propostas de Stanislavski; para o ator e o teatro em si. Tentando superar as limitações, que não aparecem somente em nossa língua, na década de 1970 a editora Quetzal, traduziu, através de Salomón Merecer, as obras de Stanislavski diretamente do russo, de forma mais integra, o que possibilitou cotejá-la com a tradução ao português. Existem várias outras traduções ao espanhol que antecedem e procedem a esta da Quetzal, mas que também se originam da versão inglesa. Do mesmo modo que a tradução feita para o centenário de Stanislavski encontrou problema de circulação por causa dos direitos autorais16 as obras em espanhol também encontraram. A partir disso pode ser introduzido o segundo fator que certamente empobrece a compreensão dos textos do autor russo. Entre as publicações do 13
Na Rússia depois de uma reformulação de Stanislavski este livro foi publicado em setembro de 1926. Cf. RUFFINI, Franco. Novela Pedagógica: Un Estudio Sobre los Libros de Stanislavski. Tradução de Margherita Pavia. In: Revista Máscara: Stanislavski, Eso Desconocido. Escenología: México, n. 15. Out/1993, p. 06. 14 Impressos na Rússia em: 1938 (A Preparação do Ator), 1948 (A Construção da Personagem) e 1955(A Criação de um Papel) (RUFFINI, 1993, p. 28). 15 A obra de Stanislavski no Brasil mais antiga de que tive notícias é: STANISLAVSKY, Konstantin. Minha Vida na Arte. Tradução de Esther Mesquita. São Paulo: Anhembi, 1956. 16 RUFFINI, op cit., p. 31.
segundo e do terceiro livro de Stanislavski, não apenas se passam 13 anos – A Preparação do Ator, 1936; A Construção da Personagem, 1949 – mas ocorreu a morte do autor em 1938, fazendo com que a terceira obra fosse “finalizada” por terceiros e em pleno vigor da censura stalinista e dos ditames do realismo socialista. O terceiro fator é a limitação dos originais ingleses. Este se alia ao segundo fator no comprometimento do entendimento do “sistema”, pois com medo do fracasso financeiro, que poderia acontecer com a publicação do segundo livro — A Preparação do Ator — os editores norte-americanos reduziram a publicação eliminando alguns trechos que permitiriam uma melhor compreensão da obra do autor17. Dessa forma temos apenas dois livros publicados plenamente com a supervisão do autor, que falece em 1938: Minha Vida na Arte (1924) e A Preparação do Ator (1936). Portanto, não pode ser percebido, pela distância temporal entre as publicações, que os livros de Stanislavski fazem parte de um conjunto integral em seus diferentes volumes, os quais compõem o entendimento mais aprofundado do trabalho do ator. Cada livro, destes volumes, insere-se como uma etapa da labuta do ator. Assim, com a publicação do livro A Preparação do Ator em 1936, o trabalho do ator proposto por Stanislavski foi compreendido ao “interior/psicológico” por não se perceber que existiriam outras perspectivas complementares na obra do autor. Da mesma forma, cooperaram de maneira negativa, os cortes feitos pelo editor norte-americano, excluindo trechos importantes desse livro. Sobre a divisão em volumes de seus livros, Stanislavski afirma categoricamente, em seu segundo livro, como podemos ver em um excerto do Prólogo da edição espanhola de El Trabajo del Actor Sobre Sí Mismo en el proceso Creador de las Vivencias, expõe: Tengo la intención de publicar una obra extensa, en varios tomos, sobre el oficio del actor (el llamado “sistema de Stanislavski”) [...] Mi vida en el arte, libro ya publicado, es el
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CARNICKE, Sharon. La Tradición Oral de Stanislavski (En Estados Unidos). Tradução de Pilar Jerildy López Bosch Martineau. In: Revista Máscara: Stanislavski, Eso Desconocido. Escenología: México, n. 15. Out/1993, p. 42.
primer tomo y constituye una introducción18 (STANISLAVSKI, 1977, p.41).
O quarto fator que influencia também esse entendimento é o das terminologias usadas e o modo como elas foram traduzidas, pois elas não estão ligadas diretamente com seu preciso conceito e entendimento. A respeito disto Stanislavski, novamente no Prólogo do livro El Trabajo del Actor Sobre Sí Mismo en el proceso Creador de las Vivencias, diz: La terminología que empleo en esta obra no es de mi invención; la he tomado de la práctica, de los alumnos mismos y de los actores principiantes. Ellos, en el transcurso del trabajo, fueron determinando con designaciones sus sensaciones creadoras. Su léxico es valioso porque resulta claro y accesible para los principiantes. [...] Es cierto que utilizamos también términos científicos, como por ejemplo “subconsciente”, “intuición”, pero no en su sentido filosófico, sino en el más simples, o da vida diaria [...]19 (STANISLAVSKI, 1977, p.42).
Já o quinto fator é o que passamos a descrever mais especificamente e que se insere na proposta deste trabalho.
2. PLASTICIDADE DO MOVIMENTO 2.1 A AUSÊNCIA DE DALCROZE
A primeira diferença clara que encontro neste capítulo, refere-se à mudança de ordem que ele se insere em cada livro, pois o capítulo Plasticidade do Movimento, do livro A Construção da Personagem, de Stanislavski, insere-se como o V, mas no livro “equivalente” em español, El Trabajo del Actor Sobre Sí mismo en el Proceso Creador de la Encarnación,
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“Tenho a intenção de publicar uma obra extensa, em vários volumes, sobre o trabalho do ator (o chamado “sistema de Stanislavski”) [...] Minha vida na arte, livro já publicado, é o primeiro volume e constitui uma introdução”. 19 “A terminologia que emprego nesta obra não é de minha invenção; tenho-a tomado da prática, dos próprios alunos e dos atores principiantes. Eles, no decorrer do trabalho, foram determinando com designações suas sensações criadoras. Seu vocabulário (léxico) é valioso porque resulta claro e acessível para os principiantes [...] É certo que utilizamos também termos científicos, como por exemplo “subconsciente”, “intuição”, mas não em seu sentido filosófico, senão no mais simples, ou da vida diária [...]”.
ele aparece como o segundo “sub-capítulo”20 do capítulo de número II Desarrollo de la Expresión Corporal21. No referido capítulo, Stanislavski trabalhou o andar e como se porta cada parte do corpo neste movimento, como: cabeça, pescoço, torso, tórax, ombros e as molas do corpo ( pés, quadris). Igualmente, fala de movimento e ação, que têm origens nos recessos da alma e seguem um caminho interior, sendo fundamental ao verdadeiro artista22. É deste Capítulo que trago os dois quadros para análise — nos quais o lado esquerdo corresponde a um fragmento do livro A Construção da Personagem, em português; e o direito corresponde ao seu “equivalente” em espanhol. Vejam a diferença entre as duas traduções:
TRADUÇÃO AO PORTUGUÊS ------------------------------------------------------------------------------------------------PARALELAMENTE às nossas ginásticas rítmicas, iniciamos agora uma aula de movimentos plásticos, dirigida por Mme. Sonova [...] (STANISLAVSKI, 1987, p. 71).
TRADUÇÃO AO ESPANHOL Arkadi Nikoláievich estuvo en el clase de gimnasia rítmica y nos dijo: ─ Paralelamente con nuestras prácticas de gimnasia rítmica con Dalcroze5 comenzamos hoy los ejercicios de movimientos plásticos, bajo la dirección de Xenia Petrovna Sónova23 (STANISLAVSKI, 1997, p. 42) (Grifos, em negrito, meus).
Como sabemos Kóstia é o aluno da escola de teatro de Arkadi Nikoláievich Tortsov, que escreve e descreve as suas próprias experiências e quais os ensinamentos e sugestões que o professor dá nos ensaios da escola de teatro. A partir disso, podemos perceber não há em português a primeira oração que no lado esquerdo, da tradução em português, represento por duas linhas tracejadas. Esta primeira oração em espanhol aparece como uma descrição de Kóstia (“Arkadi Nikoláievich estuvo en el clase de gimnasia rítmica y nos dijo:”).
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Junto dele temos o “sub-capítulo”: Gimnasia, acrobacia, danza, etc. (Ginástica, acrobacia, dança, etc.) 21 II Desenvolvimento da Expressão Corporal 22 STANISLAVSKI, 1997, p 42 - 59. 23 “Arkadi Nikoláievich esteve hoje em nossa aula de ginástica rítmica e disse:” “─ Paralelamente com nossas práticas de ginástica rítmica com Dalcroze começamos hoje os exercícios de movimentos plásticos, sob a orientação de Xenia Petrovna Sónova.”
Já a segunda oração, em espanhol aparece como uma fala do diretor Arkadi Nikoláievich Tortsov. Mas, em nossa língua, o mesmo período (o segundo da obra em espanhol), é dado como uma descrição da personagem Kóstia. Além disso, temos em português, o nome da professora reduzido e acompanhado da expressão “Mme”, que pode ser uma influência dos estadunidenses. Deste quadro comparativo, a questão que aparece com maior relevância é a omissão do nome Dalcroze na tradução ao português. Quando esta tradução omite o nome Dalcroze ela, simultaneamente, exclui toda uma teoria que Stanislavski fez uso ao montar o seu “sistema”. Diferentemente disso, faz a tradução ao espanhol que traz este nome e, conseqüentemente, as teorias a ele ligadas. Para que se possa entender a importância do trabalho do suíço Èmile Jacques-Dalcroze (1865 – 1950) é necessário saber que ele se insere em uma época na qual o “[...] corpo belo e sadio, assim, passa a ser a representação de uma superioridade não somente estética como também moral”24. Dalcroze no ano de 1892, começou a lecionar no Conservatório de Genebra. Neste local se deparou com o problema de que seus jovens alunos não conseguiam compreender o ritmo. Para solucioná-lo, cria táticas que envolviam, paulatinamente, os corpos dos alunos com exercícios de solfejo envolvendo braços e pernas. Seu fito era desenvolver o “ouvido interior” no qual o corpo aparece como uma ponte entre os sons e o pensamento25. Para isto, percebeu como era de grande importância o ritmo e que a sua assimilação era “[...] um produto da compreensão do sentido rítmico [...]” (BONFITTO, 2007, p.10). Assim sendo, Dalcroze levanta a hipótese do “sentido muscular” — que é relação da “[...] dinâmica dos movimentos e a situação dos corpos no espaço [...]”26 — pela qual trabalharia a duração, a energia e a dimensão do espaço nos movimentos. Dalcroze igualmente afirma que: o sentido muscular deve ser percebido tanto pelos sentidos quanto pelo intelecto.
24
BONFITTO, Matteo. O Ator Compositor. São Paulo: Perspectiva, 2007, p. 10-11. Idem, p. 11. 26 Idem. 25
Dalcroze, portanto, chega à idéia da “consciência rítmica”; relação entre os movimentos intelectuais e físicos27. Por último, para que ocorra o estabelecimento da “consciência rítmica” é necessário, segundo a teoria dalcroziana, que haja uma “representação do ritmo”, que é a reflexão do ritmo nos músculos28. Sobre os resultados que levam os exercícios do trabalho de Dalcroze, tanto os relacionados aos sentidos, ao ritmo, a percepção e ao desenvolvimento cognitivo; refere-se Odette Aslan, em seu livro O Ator no Século XX: [...] Os exercícios despertam o sentido muscular, rítmico, auditivo e, desencadeando imagens no cérebro, desenvolvem faculdades imaginativas, ao mesmo tempo que o sentido de ordem e de equilíbrio [...] (ASLAN, 2007, p. 41)
Dalcroze, portanto, através do sentido muscular chega à idéia da “consciência rítmica”; relação entre os movimentos intelectuais, sensórios e físicos. Coloco em consideração essas informações e, também, sabendo que, como afirma Stanislavski, “[...] no alicerce da Plasticidade do Movimento temos que estabelecer uma corrente interior de energia”29 e que esta “[...] por sua vez, deve ser coordenada com as batidas compassadas do tempo e do ritmo”30 e, tendo em consideração o exposto sobre o trabalho de Dalcroze, como afirma Wolf Dorhn em relação ao ritmo dalcroziano, era: [...] a expressão da necessidade mais íntima, da aspiração mais secreta [...] o ritmo tornou-se para nós uma noção quase metafísica, espiritualizando o que é corporal e encarnando o que é espiritual” (DORHN 1911, p. 90 apud ASLAN, 2007, p. 42).
Portanto, a partir do exposto, teremos que do mesmo modo que para Dalcroze os movimentos necessitam da sensibilidade, do intelecto e do “espiritual” para serem ouvidos, percebidos e entendidos pelo “ouvido interior”, para que se possa criar a própria música e externá-la através da “representação do ritmo”; o ator segundo Stanislavski necessita buscar de
27
Idem, p. 12. Idem. 29 Idem, p. 93 30 Idem. 28
forma justificada — para não cair nos “clichês” de interpretação, a corrente interior de energia que terá como compasso o tempo e o ritmo. A questão fica ainda mais complexa se percebermos, como aponta Merecer31, em sua tradução espanhola, na nota de rodapé número cinco ao esclarecer que “[...] Stanislavski no recomendaba a los actores el sistema Dalcroze, que estaba afectado por ciertos mecanicismo. Introdujo en él correcciones esenciales exigiendo una justificación interior y la conciencia de cada movimiento, realizado al compás de la música32” Mesmo Constantin Siergueieivitch alterando o sistema de Dalcroze, ele teve por alicerce seus princípio. Isto mostra que a supressão deste nome em nossa tradução faz com que fique ausente de nosso entendimento: preceitos, conceitos e conteúdos da teoria dalcroziana que influenciaram estruturalmente a composição do “sistema” de Stanislavski. 2.2 A FLUÊNCIA DOS MOVIMENTOS
No capítulo V: Plasticidade do Movimento há outro ponto de extrema importância que devo extrair para análise, que também se relaciona com o movimento, que aprece neste quadro abaixo: TRADUÇÃO AO PORTUGUÊS
TRADUÇÃO AO ESPANHOL
Há outra espécie de dançarinos e atores além dos que já discutimos. Elaboram para seu próprio uso uma espécie de plasticidade permanente fixada e não dão maior atenção a esse lado das ações físicas. Seu movimento tornou-se parte do próprio ser, sua qualidade individual, segunda natureza. As bailarinas e os atores desse tipo só podem mover com fluidez (STANISLAVSKI, 1987, p. 72 – 73) (Grifos meus).
Hay otras clases de bailarines y actores, aparte de los que acabamos de considerar. Son los que se han elaborado una especie de plasticidad fija, para toda la vida, y no piensan más sobre este aspecto de sus acciones físicas. Sus movimientos han pasado a ser para ellos una parte de su ser, su característica individual, la segunda naturaleza. Los bailarines y actores de esta clase no bailan ni interpretan, y sólo saben hacer movimientos plásticos33 STANISLAVSKI, 1997, p. 43 - 44) (Grifos meus).
31
In: Stanislavski, 1997, p. 42. “[...] Stanislavski não recomendava aos atores o sistema de Dalcroze, que estava afetado por certo mecanicismo. Introduziu nele correções essenciais, exigindo uma justificação interior e a consciência de cada movimento, realizado ao compasso da música” 33 “Há outra classe de bailarinos e atores, aparte dos que acabamos de considerar. São os que têm elaborado uma espécie de plasticidade fixa, para toda a vida, e não pensam mais sobre este aspecto de suas ações físicas. Seus movimentos têm passado a ser para eles uma parte de seu ser, sua característica individual, a segunda natureza. Os bailarinos e atores desta classe não bailam nem interpretam, e somente sabem fazer movimentos plásticos”. 32
Como já mostrei anteriormente, Stanislavski em seus estudos e trabalhos procurava sempre uma justificação para os movimentos que o ator faz. Assim ele alega, no Capítulo IV: Tornar Expressivo o Corpo do livro A Construção da Personagem, sobre os gestos: [...] nenhum gesto deve ser feito apenas em função do próprio gesto. Seus movimentos devem ter sempre um propósito e estar sempre relacionados com o conteúdo de seu papel. A ação significativa e produtiva exclui automaticamente a afetação, as poses e outros resultados assim perigosos (Stanislavski, 1987, p.68).
Outro ponto que coloco, para formulação desse raciocínio, está na definição da palavra “fluidez”, que segundo o dicionário Aurélio34 é um “[...] caráter do que é espontâneo, fácil, natural; fluência [...]”. Já o dicionário Houaiss35 dá a seguinte definição para fluente: “ [...] 1 que corre ou flui bem 2 fig. fácil espontâneo [...]”. Por último, trago a definição de espontâneo: é aquilo que [...] se origina em sentimento ou tendência natural [...]”36. Dessa forma percebo que a tradução ao português comete um grande equivoco ao traduzir que os atores e bailarinos que fixam seus movimentos terão “fluidez”. Os dois dicionários citados trazem como característica de “fluidez/fluência” como aquilo que é espontâneo, mas este se origina do sentimento. Se, para Stanislavski, o gesto não deve ser feito por ele mesmo, deve está ligado e justificado por um “fundo” interior, o qual lhe dará espontaneidade, logo percebo que para Stanislavski seria improvável que um ator ou mesmo um bailarino tivesse naturalidade (espontaneidade) se estes fixassem seus movimentos. Portanto, a tradução espanhola ao apresentar que estes artistas não atuarão e nem bailarão, somente farão movimentos plástico, liga-se de forma mais intrínseca aos pensamentos, teorias e ao “sistema” de Stanislavski.
3. CONCLUSÃO 34
FERRREIRA, Aurélio Buarque De Holanda. Novo Dicionário Eletrônico Aurélio versão 5.0. Curitiba: Positivo Informática Ltda, 2004. CD-ROM. 35 HOUAISS, Antônio e VILLAR, Mouro de Salles. Minidicionário Houaiss da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2004, p. 347. 36 Idem.
Conforme percebo, antes de tudo, seria ideal que a leitura de uma obra se desse a partir dos originais, na língua materna do autor. Esta tarefa, às vezes, mostra-se difícil, como ocorre com Stanislavski, pois, como noto, o russo é uma língua muito pouca estudada e difundida no Brasil; o bom seria que se pudesse contar com uma tradução minuciosa e íntegra. Mas isto não ocorre, levando a vários equívocos em seu entendimento. Neste trabalho, ao cotejar as duas obras, A Construção da Personagem e El Trabajo del Actor Sobre Sí mismo en el Proceso Creador de la Encarnación, deparei-me com várias omissões de palavras, frases e nomes que modificam em muito o entendimento das propostas do “sistema” de Stanislavski, bem como as bases em que ele se apoiou e/ou as pessoas e livros com que teve contato para, paulatinamente, construir o seu “sistema”. Ou seja, estas omissões aparecem de tal forma que prejudicam e empobrecem o entendimento do leitor que fica sem conhecer as fontes usadas, empregadas e, quiçá, até modificadas por Stanislavski para atender os anseios dele, em determinada época de composição do “sistema”. Mas não podemos esquecer, assim como expus sobre Dalcroze, que mesmo modificadas as teorias, Stanislavski se fundamentou e/ou apoiou nelas. Assim, a partir de minhas análises, notei que a tradução ao espanhol, El Trabajo del Actor Sobre Sí mismo en el Proceso Creador de la Encarnación, foi mais cuidadosa, coerente e íntegra, abordando pontos que a tradução ao português, de A Preparação do Ator, deixa a desejar; como foram nos casos apresentados neste artigo: Dalcroze, que como vimos foi suprimido em nossa versão; e sobre a “fluência” do movimento que foi adicionada de modo indevido, alterando um entendimento teórico proposto por Stanislavski.
4. BIBLIOGRAFIA
ASLAN, Odete. O Ator no Século XX. Tradução: Rachel Araújo de Baptista Fuser e J. Guinsburg. São Paulo: Perspectiva, 2007. BONFITTO, Matteo. O Ator Compositor. São Paulo: Perspectiva, 2007. CAMARGO, Robson Corrêa. O espetáculo do melodrama. Dissertação de Doutorado em Artes Cênicas. Orientação: Ingrid Dormien Koudela. Escola de Comunicação e Artes/ Universidade de São Paulo: São Paulo, 2005.
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