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O JUDEU NÃO-JUDEU e outros ensaios
Coleção PERSPECTIVAS DO HOMEM Volume 61 Série Política Direção de MOACYR FELIX
ISAAC DEUTSCHER
O Judeu Não-Judeu e outros ensaios Apresentação e Introdução de TAMARA DEUTSCHER
Tradução de MONIZ BANDEIRA
civilização brasileira
TÍTULO DO ORIGINAL INGLÊS: T h e N on-Jew i sh Jew A nd O t l i er Essaij s
©
Oxford Universitij Press 1968.
Desenho de capa: MARIUS LAURITZEN BERN Diagramação: RENATO BASTOS Direitos para a língua portuguesa adquiridos pela EDITORA CIVILIZAÇÃO BRASILEIRA SA. Rua 7 de Setembro, 97 RIO DE JANEIRO, que se reserva a propriedade desta tradução. 19 7 0 Impresso no Brasil Printed in Brazil
índice
Apresentação In Memoriam — Isaac Deutscher (1907-1967) Introdução — A educação de uma criança judia I — O judeu não-judeu II — Quem é judeu? III — A revolução russa e a questão judaica IV — Remanescentes de uma raça V — O clima espiritual de Israel VI — Décimo aniversário de Israel VII — A guerra entre árabes e judeus de junho de 1967 VIII — Marc Chagall e a imaginação judaica IX — A tragédia judaica e o historiador
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Apresentação
dêste volume ocorreu, pela primeira vez, depois da morte de Isaac Deutscher. Se êle ainda vivesse, talvez fizesse uma revisão completa de seu trabalho. Resolvi, porém, tocar o menos possível nesses ensaios que, vez ou outra, a imprensa publicou. Aqui e ali, Isaac Deutscher fazia uma anotação ao pé da página ou, então, cortava alguma coisa. Quanto à conferência sôbre a Revolução Russa e a Questão Judaica, que ficou incompleta, coube-me a responsabilidade de publicá-la. Já o ensaio Quem é um judeu? exigiu um trabalho mais rigoroso de filtragem e condensação. Numa coletânea de conferências, artigos e entrevistas, dedicadas a um só assunto, mesmo quando tratado de diferen tes ângulos, algumas repetições se tomam inevitáveis. O leitor não ficará na dúvida sôbre a coerência de Isaac Deutscher publicação
quanto ao destino trágico e ao complexo papel dos judeus na Europa e no seu próprio Estado nacional. Creio que consegui preservar, fielmente, seu pensamento em todos os pontos, nesses ensaios. Agradeço ao Dr. R. Miliband e a D. Singer que leram êste volume antes de sua publicação; aos senhores John Bell e Dan M. Davin, da Edi tora da Universidade de Oxford, pela assistência c sugestões que apresentaram. Gostaria, ainda, de agradecer aos meus amigos e vizinhos, Sr. e Sra. E. F. C. Ludowyk, pelo apoio e encorajamento. Londres, janeiro de 1968
In Memoriam
ISAAC DEUTSCHER ( 1 9 0 7 1 9 6 7 )
de Isaac Deutscher firmou-se, antes de mais nada, como poeta, quando, aos dezesseis anos, seus pri meiros poemas foram publicados em revistas literárias da Po lônia. Alguns leitores daquela época ainda se lembram de seus versos, que revelavam forte influência do misticismo ju daico, versando sôbre temas da história e mitologia do povo judeu, e mesclavam 0 romantismo polonês com o rico folclore dessa cultura, numa tentativa de unir as tradições polonesa e iídiche. Também traduziu para o polonês muitas poesias do hebraico, latim, alemão e iídiche. Isaac Deutscher assistiu, como ouvinte, conferências sôbre literatura, história e filosofia, na medieval Universidade de Yagellon, na Cracóvia. Na vida artística dessa culta cidade . A l r e pu t a ç ã o
da Polônia, os serões dedicados à leitura dos seus poemas se tornaram notáveis acontecimentos. Ató aos dezoito anos de idade, viveu em Cracóvia, indo depois para Varsóvia. Deixou também a poesia pela crítica literária e por um mais profundo estudo da filosofia, da eco nomia o do marxismo. Por volta de 1927, filiou-se ao Partido Comunista da Polônia, então proscrito, e logo se tomou redator-chefe da imprensa comunista clandestina e semiclandestina. Viajou, em 1931, por tòda União Soviética, conhecendo as condições econômicas do país na época do primeiro Plano Qüinqüenal e recusou o oferecimento de cargos acadêmicos Universidades de Moscou e Minsk, como professor de História do Socialismo e da Teoria Marxista. No ano seguinte, @^ubr«nHK) do Partido Comunista. O motivo oficial da expulsão foi o de que “êle exagerava ® praig® oaaista e espalhava o pânico nas fileiras comunistas”. TDàss tesga voltou da URSS. Isaac Deutscher fundou, com très «pata» eanmdás, a primeira oposição anti-stalinista no ( M m Owmmwista da Pcmoia. Seu grupo protestou contra a HA* «to jMaitisfcx sumido a qual a social-democracia e o twasiarí®) “tóa temanau «típroJas, mas gêmeos*. E. certo dia «psnucefo a iMjfswtasai eswumiista dlamdlestiina estampou a mandtóte «Sr IbiMMjriK' sàilwe a Ekiiopm’", o ledator-cfaefe Saü « o^smomigcsfito, A jmtór dkqmdle t fa , Isaac DenIttfcJbfír tese «Hmua; sfimrJbflas a sfí£jmS-fc:: rnimiTm.. da pdSriia pofcraxesa. ee a «fe uramwfflBmm&amim
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campos de concentração, como "elemento perigoso e subver sivo” — por causa dos seus protestos contra o anti-semitismo predominante nas tropas. Libertado em 1942, uniu-se à equipo do The Economvrt, tomando-se perito em assuntos soviéticos, comentarista militar e chefe dos correspondentes europeus dêsse periódico. Juntou-se também à equipe do The Ohterver, para o qual trabalhou, inter alia, como correspondente itine rante, escrevendo sob o pseudônimo de Peregrino. Em 1940-47, deixou Fleet Street e o jornalismo regular para dedicar-se a trabalhos menos efêmeros. Stalin, uma Bio grafia Política foi publicado em 1049, Considerada "a mais controvertida biografia do nosso tempo", apareceu em muitas e muitas edições e em doze idiomas, A edição aumentada de 1967 contém um adendo sôbre os últimos anos de Stalin, A publicação de Stalin consagrou Isaac* Deutscher como autoridade em assuntos soviéticos e historiador da revolução russa. A trilogia que escreveu sobre Trotski1 — O Profeta Armado (1954), O Profeta Desarmado (1959) e O Profeta Banido (1963) — estabeleceu ainda sua reputação como mestre na prosa inglesa. Essa biografia se baseia em minuciosa pesquisa nos arquivos de Trotski, que se encontram na Universidade de Harvard. A maior parte do material contido no terceiro vo lume é único, pois o autor recebeu permissão especial da viúva de Trotski, Natália Sedova, para ler a Seção Reservada dos Arquivos, que, pela vontade do próprio Trotski, deverá permanecer interditada até o fim do século. Isaac Deutscher pretendia concluir sua série biográfica com um estudo sôbre Lenin, manifestando mesmo a esperança de que se visse o seu trabalho como “simples ensaio 3e uma análise marxista da revolução de nossa época e ainda um tríptico de alguma unidade artística”. Como G. 51. Trecely an Lecturer, na Universidade de Cambridge. em 1966-67, Deutscher falou para auditórios superlo tados e foi recompensado por sua extraordinária atenção e carinho. Recolheu a mesma recompensa em sua permanência i
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(HL d» T.)
de seis semanas na Universidade Estadual de New York, em Binghamton, Harpur Collcge e, ainda, quando fêz conferências na Universidade de New York, Princeton, Harvard e Colúmbia, na primavera de 1967. As G. M. Travehjan Lecturer aparece ram simultaneamente em quatorze ou quinze países sob o título de A Revolução Inacabada2, mas nenhum dos seus livros, em bora editados e traduzidos em vários idiomas, jamais foi publi cado no bloco soviético. É evidente, entretanto, que, mesmo lá, Isaac Deutscher possui leitores devotados e corajosos. Fascinante orador e polemista de grande fôrça de argu mentação, Isaac Deutscher freqüentemente se dirigia a grandes audiências em ambos os lados do Atlântico. Em 1965, partici pou da primeira reunião sôbre o Vietnã, durante a qual quinze mil estudantes, no campus da Universidade de Berkeley, ouvi ram suas invectivas contra a guerra fria. Era tanta a extraordinária vitalidade de Isaac Deutscher que, embora engajado no seu monumental trabalho literário, èle ainda seguia o curso das correntes políticas com apaixonado interesse e, durante quinze anos, suas análises dos mais impor tantes acontecimentos internacionais foram amplamente lidas nos principais jornais da Europa, Estados Unidos, Canadá, Japão, índia e América Latina. Trabalhou até quase o seu último dia de vida e morreu, em Roma, a 19 de asròsto de 1967. Maio de 196S T. D.
2 Também editado pela Editora Civilização Brasileira ( X . do T.)
Introdução
A Educação de uma Criança Judia
os últimos anos de vida, Isaac Deutscher pretendeu escrever sua autobiografia, ou parte dela pelo menos, abrangendo a infância e a juventude. Queria mostrar aos lei tores do escritor maduro qual fôra a sua origem e o meio do qual viera. O mundo de onde surgiu já não existe mais — um mundo brutalmente desaparecido. Jamais será recriado. Vi verá, apenas, na memória e na sensibilidade daqueles que lhe sobreviveram. Ao pintar para a geração de hoje o panorama da vida secular e religiosa dos judeus, como êle a conheceu antes do dilúvio nazista, desejava Isaac Deutscher salvá-la do esquecimento? Isaac examinou com cepticismo as numerosas iniciativas das organizações judaicas do Ocidente para contar-lhes a his tória: colecionou documentos, computou fatos, diários e tôda D
lhante
a sorte de material, de modo a manter viva a tradição e a história do judaísmo europeu de antes da guerra. Essa respi ração artificial, como êle a considerava, não traria de volta o pulso e o alento a um corpo sem vida. Nenhuma riqueza do documentos, apesar de verídicos, transmitiria a contento a atmosfera, o clima espiritual e intelectual daquela comuni dade extremamente fechada, na qual Isaac passara os mais impressionantes anos de sua vida e que fôra destruída. Teria sido, realmente, aquêles os seus anos mais impres sionantes? Parece-me que a insistência racional do historiador em olhar o interior do passado, para fazê-lo compreensível, e em mostrar como êle evoluiu até o presente, dispôs Isaac a escre ver sôbre sua infância. Gostava de evocar os seus primeiros dias, porque lhe pareciam tão incrivelmente distantes que se tornavam irreais. Grande abismo separava aquele meninoprudtgio Hiassidista. de Chrzanow1, imerso no Talmude e na Toriu, ou estudando na Còrte do Maravilhoso Rabino — o Tsatfík de Gera — do ateu, do marxista revolucionário, falando ein seu rio.*, sonoro e fluente inglês a milhares de estudantes americanos, às margens do Pacifico. Êsse abismo era tão imenso que o confundia e o fascinava. Foi exatamente essa fascinação que se podia perceber na maneira de Isaac recordar a sua infância. Tanto isso o en cantava e o divertia que as passagens, os incidentes relem brados e relatados envolviam a si mesmo. Para nós, menos do que para èle, não era fácil vè-lo como um garotmho. com espessa, cabeleira preta, encacheada. com uma braraleante lâmpada a óleo nas mãos, às cinco horas da manhã, caminhan do pela ueve e lama da adormecida Chrzanow. para acordar «* vmue^ como um privilegio que lhe cabia por ser o melhor ãkiOk “Batia na porta, primeiro timidamente, depois mais forte, e mais forte, até que a luz fraca de uma vela aparecia na janela, A R dubeísin me deixaria entrar, murmurando alguma ís®
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coisa de dentro de seu xale. E eu ficava na porta até que 0 rebe viesse: magro, esquálido, com a barba ruiva ainda por fazer. íamos então para a Sinagoga rezar as preces da manhã. Êle, alto e andando muito rápido, segurava minha mão. Eu, muito pequeno, parecia balançar de seus longos braços, mal tocando o chão. Era eu realmente essa criança?” Eis a per gunta que ficava depois desta história. A infância de Isaac realmente influiu na sua maturidade? Originários de Nurenberg, de onde, no século XVII, seus ancestrais vieram para a Galícia, chamavam-se, então, Ashkenazy ( alemão , em hebreu). Houve tantos gráficos entre êles, que a concorrência nos negócios provocou confusão e fre qüentes querelas. Um ramo de seu clã mudou então o nome para Deutscher. Mesmo entre os Deutscher, diversas gráficas concorriam umas com as outras. Isaac era o nome de seu bisavô, um aprendiz da sabedo ria talmúdica, homem de temperamento medonho e convicções fanáticas. Considerava o khamdwmo, — uma seita onde os plebeus manifestavam a revolta contra a pompa e o formalis mo da Instituição religiosa do judaísmo, — como um desvio da ortodoxia. O khassidvsmo, entretanto, atraiu um dos filhos do velho Isaac por causa de sua visão mais alegre da vida, por sua disciplina mais elástica. E o jovem jurou lealdade ao Tsadík de Gera. Esse era um fato íncomum entre os judeus da Galícia. O rabino de Gera tinha sua eôrte no outro lado da fron teira, no chamado Congresso Polonês, e as restrições às viagens, especialmente para os judeus, faziam as peregrinações quase impossíveis. O bisavô de Isaac portou-se de maneira desuma na: recorreu às autoridades civis e não judaicas; apelou mesmo para o auxílio da polícia austríaca. Denunciou o filho deso bediente, telegrafou para os guardas da fronteira e pedia que o “contrabandista” fôsse trazido de volta, sob escolta. % con seguiu. Mas, somente por algum tempo. O fíll*> pródigo foi mais feliz na fuga seguinte, Até o fírn de seus dias perma neceu fiel adepto do 1íhaM dismof ficou com o 'Tmãík de Gera e morreu tranqüilamente; de velhice, na soa Bet h M í- draíh — Casa das Orações, — na noite sagrada do Ano Névo, Baixou â sepultura com grande» homas, pgrío da Smoiba ásss
fundadores da dinastia de Gera. E o khassidisnw conquistou a família Deutscher, apesar da ira do rabino Isaac. Jacob Kopel, pai de Isaac, homem de grande conheci mento e cultura, também teve os seus períodos de inquietude e revolta. Viajou na juventude para a Alemanha, onde se dedicou ao estudo dos arquivos das comunidades judaicas da zona do Reno. Devotou-se, durante anos, à elaboração de exaustiva história dos judeus, baseada numa pesquisa com pleta, original e cansativa. Só quando o manuscrito estava pronto retomou ao seio da família. Aí encontrou hostilidade não só por parte do pai como da mãe. A mulher, fanática e temente a Deus, suspeitava de algumas inclinações heréticas nas intenções do filho. Seu dever, assim o concebia, era salválo a tempo: lançou ao fogo o formidável manuscrito. Jacob Kopel parecia esmagado pelo acontecimento. Submeteu-se, conformou-se, perdoou a mãe, mas a experiência o marcou para o resto da vida. Permaneceu angustiado entre o senso do dever, a lealdade à rígida ortodoxia de seus ances trais e uma insaciável curiosidade intelectual, que lhe criava dúvidas e o tentava, não digo a abandonar o judaísmo, mas, a ultrapassar as suas limitações. Não se rebelou. Tomou-se, como o pai e o avô, um gráfico e deu todo o seu carinho aos manuscritos dos outros. Sob o nome de Buchruckerei Deutscher apareceram tra balhos religiosos, dissertações filosóficas, tratados históricos, e mesmo livros de matemática e álgebra, em hebreu, alemão e latim. A famosa edição da Bíblia, com ilustrações de Gustavo Doré, que saiu de sua gráfica, provocou-lhe imenso orgulho. Este quase desvio da ortodoxia foi desculpado, no caso; a satis fação profissional pesou mais do que a obediência à rígida lei mosaica que proíbe qualquer “imagem gravada”. Isaac, seu filho, era o mais velho dos três que nasceram do segundo casamento. Destinaram-no, de acôrdo com a tradi ção familiar, à missão de rabino. Seu pai, entretanto, não o via como um rabino comum, atendendo as necessidades da fé, e sim como um sábio talmúdico. Projetou, no primeiro filho, a sua ambição intelectual frustrada, torcida. Tinha bons mo tivos.
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Quando criança, Isaac era tão kha.ssidista quanto seus tios, amigos e vizinhos. A religião arcaica, preconceitos, crenças, temores, o modo anacrônico de viver, também eram os seus. Menino precoce, com fantástica memória, espírito capaz e incomum habilidade para pensamentos abstratos, Isaac tornou-se rabino com a tenra idade de treze anos. A comunidade judaica de Livorno, ortodoxa, já fizera sondagens sôbre os planos futu ros para aquele menino-prodígio, vislumbrando-lhe resplan decente carreira entre os eminentes e ricos judeus italianos. Mas, lá pelos treze anos, quando se celebrava o seu Bar Mitzva, êle, proferindo um erudito discurso, pelo qual seria “consagra do” como rabino, começou a fazer perguntas (e nunca mais o parou de fazer), algumas sôbre assuntos que acreditava, como supunha na época, os assuntos de sua religião. Nada de extra ordinário: o tema de sua dissertação não poderia ser mais escolástico e arcaico, mais afastado da realidade da vida. “Cêrca de cem rabinos vieram a nossa pequena cidade para ouvir o meu discurso, julgá-lo e, ainda, abençoar-me, ou rejeitálo!”, declarou Isaac. Para seu pai, para a família e certamente para tôda a sua comunidade esta era a prova suprema. Isaac estava tenso, mas não intimidado. Lembrou-se do conse lho do pai: aprume-se, ordene os pensamentos e, quando você souber o que vai dizer, fale alto e claro. Esta era uma daquelas advertências paternas repetidas muitas e muitas vêzes, e com as quais as crianças se impacientam mas sempre recordam. Vestido com uma kapota de sêda pura, feita especialmente para a ocasião, o pequeno Iciu — como era afetuosamente chamado — “aprumou-se, ordenou seus pensamentos” e come çou um discurso de duas horas sôbre o tema de Kikiyon: “Uma vez em cada setenta anos aparece um pássaro no mundo. O pássaro é grande, belo e diferente de todos os outros. Chama-se Kikiyon. Este curioso nome, talvez de origem grega, nunca foi explicado. Quando voa — uma vez, de setenta em setenta anos — o pássaro cospe sôbre a terra. E só cospe uma vez. Sua saliva é extremamente preciosa. Possui qualidades miraculosas que curam qualquer doença ou deformidade. E Isaac tinha que discutir e opinar sôbre se a saliva do pássaro era kosher ou treyfe. Em outras palavras, preenche ou não os requisitos do ritual judaico no que se refere à alimentação?
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Isaac citou por extenso tudo o que anteriormente se escreveu sôbre o assunto — todos os comentários, tôdas as doutas dis cussões que, em milênios, houve entre os mais sábios dos sábios. Mostrou domínio de suas fontes e capacidade de lidar com os detalhes mais obscuros. A audiência ficou cativada e em com pleto silêncio. Os presentes acenavam com a cabeça, admira dos. Então, depois de rápida consulta, proclamaram-no, inevitàvelmente, apto e digno de se tomar um rabino. “Quando terminei de falar, choveram as congratulações. Minha mãe, todos os meus tios e tias abraçaram-me e beijaramme, chorando e sorrindo ao mesmo tempo. Meu pai tentava disfarçar seu profundo orgulho e satisfação. Senti-me aliviado. Mas, subitamente, um inesperado embaraço e constrangimento me tomaram. Estava representando um ato e ficara satisfeito com o lado teatral da minha atuação”. Teve alguma utilidade êsse exercício de debate acadêmico? Foi, por acaso, uma lição de pensamento abstrato, um treino de especulação mental? Era o que Montaigne chamava “ginás tica do raciocínio?” Talvez, a primeira tentativa de uma polê mica bem sucedida? A essas perguntas a resposta de Isaac foi sempre um “não” categórico. Ao contrário. “Todo êsse pseudoconhecimento tumultuou e esgotou minha memória, tirou-me da realidade da vida, do verdadeiro aprendizado, do real co nhecimento do mundo que nos cerca. Isto impediu meu desen volvimento físico e mental”. Na preparação de seu tratado sôbre Kikiyon, Isaac dispen sou longas horas de estudo e leitura. Aos quatro anos foi envia do ao kheder, escola de religião judaica, da qual sempre falou com desagrado. Era um buraco fétido e sujo, com vinte ou trinta garotos espremidos uns contra os outros em bancos de madeira, com a mal cuidada e encardida professora, impingin do em suas arengas o alef, beis, gyml, o alfabeto hebraico, a Bíblia e as Escrituras numa cantilena mecânica e monótona. Freqüentemente a professora tinha que recorrer a uma vara com a qual atingia a cabeça, os ombros ou o rosto de um aluno indisciplinado. Havia ainda outra forma de castigo: “no meu primeiro dia no kheder fiquei horrorizado com o castigo da bacuT, Isaac continuava a recordar. Ao mau aluno ordenava-se que tirasse
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a roupa e ficasse em frente dos outros com os pés dentro de uma bacia de esmalte lascada. “Jurei que isso jamais me acon teceria. Forcei cada nervo a seguir as palavras da professora e a estar sempre pronto para responder a qualquer pergunta”. Apenas uma vez o pobre Iciu foi esbofeteado. Sua atenção se desviou: um bando de gansos mostrou ser demais para sua concentração no alfabeto hebraico. Mesmo êsse fétido e sujo buraco tinha, porém, algo de compensador. “Havia um professor de quem me lembro melhor do que dos outros. Tinha a barba ruiva, longa barba ruiva, que balançava ritmadamente durante as lições, e os olhos de um azul muito pálido, com inocente e infantil expressão de encantamento. O olhar sempre se fixava num canto do teto, em algum lugar no fundo da sala, atrás de todos os meninos. Êsse professor contava e recontava a história da fuga do Egito. Enfeitava-a à vontade. Sua imaginação poderosa trazia para dentro da sala abafada a melodia, o perfume e o ar do Mar Vermelho. Podíamos sentir a suavidade da brisa que empurra va para frente a coluna de nuvens. E a coluna de fogo ardia diante de nossos olhos, e as chamas dardejavam, dançavam e estouravam em cascatas de cintilantes estréias. Mas, logo, ter rível mêdo se apossou de todos nós; podíamos escutar, como se estivessem ao nosso encalço, os cavalos e os carros do exército do Faraó. A tensão aumentava e parecia que, num minuto nós, “crianças de Israel”, poderíamos elevar as nossas vozes “até o Senhor”. Então, piedosamente, víamos estendidas sôbre nossas cabeças a mão de Moisés e sob os pés, sêca e firme, a reconfortante terra. Forte vento do Leste empurrava o mar. Estávamos de nôvo salvos pelas águas, “que eram uma mura lha” para nós. E a muralha era, na verdade, maravilhosa: feita de puro cristal, com tôdas as côres do arco-íris refratadas e multiplicadas milhões de vêzes. Ficamos estupefatos e quase não podíamos respirar”. Esse tipo de imaginação judaica nutriu e estimulou Isaac na sua infância; e êle se relembrava disso com forte e vivida emoção. No ensaio sôbre a arte de Marc Chagall, Isaac desceu às raízes judaicas, que de algum modo eram comuns em ambos. Chagall, na sua juventude, transgrediu o ortodoxismo dos rabi nos, que “impediam o crescimento das artes visuais”. “Pintar,
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para um judeu, era revoltar-se, era executar um ato de emanci pação”. Isaac conseguiu sua emancipação ao revoltar-se contra a fé messiânica e contra o khassidismo tradicional e ao aderir ao socialismo revolucionário. Vendo naquele grande artista um “garôto do kheder”, uma criança judia olhando o mundo com olhos instáveis, cheios de encantamento e fervor, Isaac se sentiu atraído pelas primeiras pinturas de Chagall. A fantasia do folclore iídiche, tão oposta à rigidez da religião ortodoxa, a poesia daqueles pobres professores “barbas-ruiva”, que teste munhavam diàriamente a passagem pelo Mar Vermelho, as canções dos bardos, pobres e errantes trovadores e, acima de tudo, o humor judeu, tudo isso representava uma inesgotável fonte de fascinação. Era sintomático e significativo, êle obser vou, que quase tôdas as piadas sôbre as quais Freud baseou o seu Wit and the unconscious tinham origem judaica, cheias de auto-ironia e zombarias e, até um pouco de autopiedade. Foi êsse humor que ajudou os perseguidos e oprimidos a suportar a incerteza e a tristeza da existência. E foi exatamente a pre cariedade dessa existência que se tomou dolorosamente óbvia para Isaac, quando, ainda menino, presenciou o massacre dos judeus na sua nativa Chrzanow. De repente, tornou-se consciente do quanto lhes era hostil a vizinhança não-judia. Houve, na verdade, um gentil amigo de seu pai que veio para prevenir a família do iminente desas tre; mas, poucos judeus tinham tais amigos ou protetores. “Nós vivíamos no centro da cidade, no seu lado mais rico e burguês, onde nem todos os vizinhos eram judeus. O jardim da frente vivia cuidadosamente tratado, cheio de roseiras e árvores. No térreo, ficava a gráfica de meu pai e, no andar de cima, a nossa residência. Papai resolveu fazer barricadas em tôdas as portas e janelas, para oferecer resistência aos atacantes, caso tentas sem entrar. E ficou atrás da porta trancada, armado com uma barra de ferro, que trouxera da adega. As luzes foram apaga das. Escutávamos gritos e lamentos e o tumulto da multidão que se aproximava. Os gritos e pedidos de socorro tomavam-se cada vez mais altos. Através das frestas das venezianas podía mos ver o clarão das chamas distantes. Iriam botar fogo na cidade inteira? Fiquei petrificado, sentado no pequeno degrau que liga o quarto de meu pai ao meu. Orava, sussurrando, e
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apertava fervorosamente os cordões do meu pequeno Tales, que sempre usava sôbre a camisa. A multidão enraivecida estava passando por nós, pois escutávamos o quebrar de jane las na casa seguinte”. Isaac ainda não completara onze anos. Sua fé religiosa estava algo enfraquecida. Entretanto, na hora do perigo, os cordões de sua vestimenta ortodoxa, com seus supostos poderes de prevenir o perigo, ainda lhe pareciam dotados de qualidades mágicas. A gentalha selvagem e destruidora deixou para trás a casa dos Deutscher. Mas, a experiência ficou indelével. “Na manhã seguinte fugimos. Alcançamos a estação da estrada de ferro através das ruas entulhadas de móveis e vidros quebrados e ainda fumegantes roupas de cama. Quando chegamos na pe quena cidade vizinha, encontramos, de nôvo, fisionomias ansio sas nos judeus locais. Havia rumores de que os camponeses das redondezas estavam de ânimos exaltados”. Os dias de feira seriam as melhores ocasiões para “lutar com os Yid”. Os cam poneses costumavam selar cada transação comercial demorada com não menos demorados torneios de bebida. Vodca ou bebi da regional circulavam livremente e, em breve, qualquer arma — uma longa faca, uma foice, um pedaço de pau ou chicote — serviria para ajustar as contas do passado ou, talvez, mesmo as que aparecessem no futuro. Ao excitamento normal dos dias de feira, agora, em novembro de 1918, somou-se o fervor de um nôvo patriotismo mui hábil e apaixonadamente pregado em tôdas as igrejas da recobrada terra natal. Os refugiados do massacre de Chrzanow seguiram para adiante, mas a cidade seguinte também não lhes ofereceu segu rança. “Sobrevivi a três massacres durante as primeiras semanas da renascida Polônia”, lembrava Isaac, com ódio e com triste za. “Foi como nos saudou o raiar da independência polonesa”. “O ano de 1918 foi o mais longo de minha infância”, costu mava dizer. “Vivíamos no chamado canto dos Três Imperado res. De um lado estava a Polônia, do outro a Polônia Alemã e estávamos colocados exatamente no meio dessa população plurirracial, que constituía o Império Austro-Húngaro. Naque le canto dos Três Imperadores, o ano de 1918 pareceu ainda mais dramático do que em qualquer outro lugar da Europa.
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Caíram, naquele ano, as três monarquias e estivemos sob a avalanche de três revoluções”. Isaac guardava as mais vividas recordações daqueles anos e gostava de recordar, em particular, um incidente que consi derava sua primeira importante lição de política. Na praça do mercado de Chrzanow, não muito longe da casa dos Deutscher, ficava o mais importante prédio do distrito: a Prefeitura e a Estação de Polícia, formando um todo. Sôbre a pesada porta de entrada, num grande escudo, aparecia gravado o emblema do Império dos Habsburgos: uma águia com asas abertas e duas cabeças, ambas coroadas, olhando, uma, para a direita, e a outra, para a esquerda. Certo dia de novembro de 1918, verda deira multidão reuniu-se, em frente da Prefeitura, para comen tar as declarações do último dos Habsburgos. Um jovem corcunda, uma das pessoas menos notadas da cidade, subia numa frágil escada, encostada no prédio municipal. Todo mundò olhava seus movimentos ágeis com a respiração prêsa. Atingiu o mastro e, então, alcançou a águia de duas cabe ças. Com duas ou três marteladas, soltou o escudo da base; depois, olhando para baixo gritou, ao povo: “Ei, vocês, afas tem-se, tomem cuidado!”. A multidão recuou um pouco. O corcunda atirou a águia austríaca diretamente sôbre o piso da praça. O escudo e a águia espatifaram-se em centenas de pe daços. No dia seguinte, nova bandeira, a da Polônia tremulava sôbre Chrzanow. O simbolismo da cena gravou-se na memória do futuro historiador. Quando o momento chegar, “o menos notado” corcunda da pequena cidade pode fazer em pedaços a reve renciada e horrenda águia imperial. A infância de Isaac chegava ao fim. Até a idade de treze anos, freqüentara, mais ou menos regularmente, a escola públi ca estadual. Depois de suas preces matinais na Sinagoga, vol tava para casa e, então, lá pelas oito horas, mergulhava nos diferentes mundos da patriótica e altamente religiosa Escola Católica Romana. “A nós, meninos judeus, permitia-se — na verdade, esperava-se — que deixássemos a sala quando o padre entrava para a aula diária de catecismo. Embora raramente
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sentíssemos qualquer anti-semitismo consciente da parte de nossos colegas, depois dessas aulas freqüentemente verificavase certa tensão entre os meninos cristãos e os que ficaram fora da sala. Éramos levados, de algum modo, a sentirmo-nos cul pados pelo drama da crucificação. Não se dizia uma palavra, porém, os olhares incomodavam. Essa tensão, entretanto, não durava muito, pois os jogos em comum novamente nos uniam”. À tarde, depois das aulas, enquanto a maioria dos colegas fazia seus deveres ou perambulava pelos campos vizinhos, Isaac se dedicava aos estudos religiosos. “Suponho que as duas ortodoxias — pela manhã, a católica e, à tarde, a judaica — se invalidaram, mutuamente, neutralizando-se em meu cérebro; muito cedo, eu as repudiei e me tomei ateu”, disse, quase meio século depois1. Aos treze anos, começou nova fase cheia de esforço e dedi cação para o mais nôvo rabino consagrado, para o brilhante primeiro aluno do Colégio Católico Romano local, para o escri tor e poeta que nascia. À insatisfação da adolescência juntouse uma rebelião claramente definida contra sua educação religiosa judaica e contra as cadeias do ortodoxismo. Longo período de “regatear” com o pai começou: quantas horas por dia precisava ficar na Sinagoga? Quantas na escola religiosa? Quantas na escola secundária, o gymnasium polonês? “Costumava sonhar com o gymnasium. Lá, tudo era tão atraente: prédio modemo, iluminado, arejado, coberto com fôlhas de era, o playground, os professores, alguns dos quais já conhecia, mas, acima de tudo, desejava, ardentemente, vestir o uniforme da escola. Via-me como um estudante de verdade, com brilhantes botões no casaco, a pasta cheia de livros — todos sôbre a história e a poesia da Polônia, é claro”. Êsse sonho, no entanto, nunca se realizou. Sem dúvida, não se per mitiria ao menino, que era o orgulho dos mais cultos da comu nidade judaica, perder tempo com a educação secular polonesa. “Com ameaças de suicídio, lágrimas de desespêro, usando argumentos lógicos em que realmente acreditava, dobrei meu pai e chegamos a um compromisso. Fizemos um horário, embo ra bastante desfavorável para mim. Estudaria a Torá e o Tal1 Entrevista feita pela Televisão Alemã, em julho de 1967.
mude pela manhã e à tarde, mas nas horas livres, poderia seguir o curriculum do gymnasium; poderia ter contato com os cole gas e professores, e preparar-me para os exames como ouvinte. Meu pai tinha idéias exageradas sôbre minhas possibilidades e tal desprezo pela educação secular polonesa que, dando de ombros, dizia: “Você não precisa de mais de duas semanas para aprender aquilo que os outros meninos levam suando um ano inteiro”. Nem o pai nem o filho, como sempre acontece, deixaram de regatear por muito tempo. Isaac abandonava mais e mais a Sinagoga e a escola judaica pelo arejado e iluminado prédio do gymnasium. Não freqüentava regularmente qualquer curso. De tempos em tempos, escapava para as aulas do professor Urbanczyk, que ensinava literatura polonesa e saudava o curio so menino vestido com uma kapota preta e os cachos desajei tadamente escondidos atrás das orelhas. Isaac costumava dar vida às aulas, com as suas idéias, explodindo em perguntas, problemas, objeções. Quando convidado, ficava de pé, “coor denava seus pensamentos” e fazia uma análise original sôbre o assunto ou dava a própria opinião sôbre a obra literária de algum poeta polonês. Organizou ainda um círculo literário que habitualmente se reunia fora das horas de aula, para discutir questões não só de literatura como de filosofia. Aí estourou, então, um pequeno escândalo: numa dessas reuniões, Isaac abriu os debates com um tema de sua escolha: “Cristo era judeu e comunista”. Iniciou sua dissertação, mas não pôde continuá-la; alguns dos meninos ficaram chocados, outros, horrorizados com a audácia do judeu. “Num instante me tornei intruso, estranho. Tomei-me um Yid. Por acaso, naquela mesma manhã, não lhes ensinaram que os judeus assas sinaram Cristo? Dois ou três meninos judeus silenciosamente deixaram a nossa reunião. Alguns não-judeus me defendiam. Outros estavam tão inflamados com a minha blasfêmia que tudo quase terminou em luta”. A escola, no dia seguinte, estava em pé de guerra. O diretor e os professores, que, até então, toleraram as incursões irregulares e apenas semi-autorizadas de Isaac nas salas de aula, ameaçaram impedi-lo de entrar. Foi o bondoso professor Urbanczyk que o socorreu. Serenou os animos e, finalmente, liquidou o caso. Bem cedo, porém, a
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freqüência de Isaac ao gymnasium estaria novamente ameaçada por outro motivo. Jacob Deutscher entendera chegado o mo mento de seu filho deixar a casa paterna e dedicar-se a estudos teológicos mais sérios, uma vez que ali não poderia realizá-los. Devia beneficiar-se da companhia dos homens santos, apro fundar-se na atmosfera dos debates religiosos eruditos. Jacob decidiu enviar seu filho à Côrte do Tsadik de Gera. Isso repre sentou um duro golpe para Isaac, que se recusava a partir e discutia exacerbadamente com o pai. Isaac conseguiu o apoio materno e, finalmente desesperado, cortou os cachos de seu cabelo. “Isso não foi um gesto de desafio e sim do mais alto deses pero. O aparecimento de um judeu na Côrte do Tsadik de Gera sem os seus peyes (cachos) era inconcebível. Estava convencido de que meu pai não se exporia a esta vergonha, que cederia, ou, pelo menos, abandonaria a idéia durante algum tempo. Enganara-me. Primeiramente com calma, depois com ressentimento e, logo em seguida, eu veria uma terrível fúria dêle se apossar. Esbofeteou-me, pela primeira e única vez. Tam bém foi a primeira vez que percebi um lampejo de fanatismo em seus olhos”. Jacob Deutscher — atormentado por dúvidas religiosas latentes e estrita ortodoxia, ansiando por mais largos horizontes, temeroso de transgredir o judaísmo — vivia uma fase de paixão religiosa que acendia a chama do fanatismo em seus olhos. No dia seguinte, pai e filho iniciaram a pere grinação: “Resignei-me com o destino. Meu estratagema não me salvou. Estava plenamente consciente da enormidade da minha ofensa: é pecado para o judeu “cortar os cachos de seu cabelo com gilete”. Feri papai com meu pecado. Fiquei com pena de mim e cheio de tristeza porque não sabia o quão pro fundamente eu o magoara”. Isaac, entretanto, não permaneceu em Gera por muito tem po. Mais tarde justificou esta experiência com um dar de ombros: “Estava mergulhado na idade Média. Meus correli gionários viviam como que em transe: havia tanto fervor em suas preces como em seus rituais. Mas, havia também um punhado de judeus ricos nada zelosos com a observância dos ritos. Vinham para pequenas visitas, alguns de além-mar, em busca dos sábios conselhos do Tsadik para assuntos comerciais.
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Alguns eram bastante cínicos: ofereciam ao santo uma parti cipação nos negócios em troca de sua bênção que, assim, adqui ria a forma de um seguro espiritual”. Apenas duas ou três semanas depois, Jacob Deutscher trouxe seu filho de volta ao lar. A fase de fanatismo passou. E, agora, nas relações entre pai e filho, reconciliados e, talvez, ambos com um pouco de remorso, manifestava-se novamente calor e afeição. As longas noites de inverno foram outra vez dedicadas à leitura em comum. Era a escolha dos temas que evidenciava mais cla ramente o conflito que ia na alma de seu pai. Depois de seu retomo da arcaica e austera atmosfera de Gera, marcada pelo ensino escolástico e um modo de vida do século XIII, Isaac tomou a si a tarefa de estudar as obras de Goethe e Lessing ou os tratados filosóficos de Spinoza. Tôdas as pági nas dos livros lidos juntamente com o pai, proclamavam: “DE OMNIBUS DUBITANDUM; ainda há poucas semanas, na côrte do maravilhoso rabino, a tradição, a autoridade e a cegueira da fé constituíam tudo. Spinoza, o rebelde, o ateu, o herege, o judeu excomungado, mostrou-se um bem sucedido mentor para o jovem rabino, que já abandonava a religião de uma vez para sempre. Quando estavam bem-humorados, pai e filho costumavam voltar-se para a poesia e a prosa de Heine. Outra vez, aqui, a história da religião na Alemanha, que Isaac conhecia quase de cor, não poderia levá-lo de volta à Sinago ga, mas, pelo contrário, deveria afastá-lo. Houve, então, as noites em que as poesias de Heine —poemas e versos satíricos — eram lidas em voz alta. A declamação do longo poema Disputation, na qual um pastor católico e um rabino debatem a dignidade e o valor de suas respectivas religiões causou grande alegria. O poema termina assim: Welcher recht hat weiss ich nicht Doch es will mich sóhier bedünken Dass der Rabbi und der Mónch Dass sie alie beide stinken ° # Numa tradução literal: Quem tem razão, isto não sei./ Mas quase me parece./ Que o rabino e o monge./ Todos os dois cheiram mal (N. do T.)
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Não é de admirar que, no dia seguinte e ainda por alguns outros, o lugar de Isaac permanecesse vazio na Sinagoga. “Spinoza, Heine, Lassale. . . eis os seus três heróis”, Isaac costumava dizer para seu pai. “Você empurra as obras dêles para as minhas mãos, lê-as comigo e me contamina com o seu entusiasmo pela sua filosofia e pelas suas idéias. Todos os três deixaram ou superaram o judaísmo e a religião. E você quer que eu permaneça crente e leal ao que, já para Spinoza, no século XVII, era um anacronismo, assim como para Heine e Lassale, há cêrca de cem anos, era ridículo. Você quer que eu aceite de bom grado a vida que você planejou para mim e, no entanto, todos os seus heróis foram rebeldes, apóstatas, subversivos”. Não há dúvida de que Jacob Deutscher foi a maior influência pessoal na infância e adolescência de Isaac. Havia harmonia e comunhão intelectual entre pai e filho, permitindolhes entender-se mutuamente; havia também discordância e aborrecimentos, que tomavam suas relações, algumas vêzes, tempestuosas, tensas, mas sempre ricas e altamente férteis. Nesse contato, a personalidade do filho formou-se por si só. Eis como, um mês antes de morrer, Isaac falou sôbre seu pai:1 “Meu pai foi um judeu ortodoxo, amante da cultura, da filosofia e da poesia alemãs. . . Sempre desejava ler comigo a literatura e os jornais da Alemanha. Publicou, em sua juventude, ensaios no Neue Freie Presse, o mais conhecido jomal de Viena; foi correspondente do Hazefira, de Varsóvia, o primeiro diário a aparecer em língua hebraica; e escreveu, ainda, um pequeno livro em hebraico sôbre Spinoza, com o título latino Amor Dei Intellectualis. Spinoza foi um de seus heróis, Heine, outro. Meu pai tinha também grande respeito por Lassale, porém, para êle, o mais alto ideal intelectual, fora dos escritores judeus, era, sem dúvida, Goethe. Eu não compartilhava com a sua parcialidade pela poesia alemã. Era um polonês patriota. Mickiewicz e Slowacki eram-me, incomparàvelmente, mais que 1 Entrevista feita pela Televisão Alemã.
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ridos e chegados. Por esta razão, também nunca aprendi com pletamente o alemão1. Meu pai costumava dizer: ‘Sim, você quer escrever sua boa poesia apenas em polonês. Sei que você será um dia um grande escritor’. Tinha uma idéia exagerada do meu talento literário e queria que me exercitasse numa linguagem mundial. ‘Alemão’, dizia êle, ‘é a língua universal. Por que enterraria você todo êsse talento numa língua provin ciana? Você só tem que ir além de Auschwitz. . . ’ — Auschwitz estava bem próximo de nós, na fronteira —‘você só tem que ir além de Auschwitz e, praticamente, ninguém mais o entenderá, nem você nem seu belo idioma polonês. O que vocè deve é aprender o alemão’. Êste era o seu nunca esquecido refrão. Você só tem que ir além de Auschwitz e estará completamente perdido, meu filho’. Eu já estava impaciente e, algumas vêzes, o interrompia: — Já sei o que você vai dizer, papai — você só tem que ir além de Auschwitz e estará perdido. A trágica verdade é que meu pai nunca foi além de Auschwitz. E, na Segunda Guerra Mundial, ali desapareceu”-. Isaac reconciliou-se, afinal, com a língua e a cultura ale mãs: foram os trabalhos de Marx e Engels que conseguiram esta reconciliação. Só os leu bem mais tarde, quando adulto. “Era um menino polonês, educado numa escola polonesa. Para nós, os alemães, como os russos, eram opressores, que nos roubaram a independência por século e meio e contra quem lutamos em numerosas insurreições. Na escola cantávamos a canção de Maria Konopnicka, grande e renomada poetisa, com o seguinte refrão: ‘Os alemães não cuspirão em nossos rostos nem transformarão em alemães nossas crianças’. E, eis meu pai querendo transformarme num alemão! Essa tentativa se chocava contra minha sensibilidade pela poesia lírica polonesa e tôdas as minhas noções sôbre a independência da Polônia”. Amor Dei Intellectualis parece ter sido o lema tanto de Jacob como de Isaac Deutscher. Êsse lema contradizia todos 1 Isaac falava um alemão fluente e idiomático. 2 Durante a ocupação nazista, em Auschwitz existiu um dos mais famosos campos de concentração, onde milhares de judeus foram dizimados. (N. do T.)
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os esforços de um pai que desejava para seu primogênito uma carreira teológica. O próprio pai, indiretamente ou sem perce ber, semeou a dúvida e incutiu em Isaac aquêle respeito pela heresia, que permaneceu, caracteristicamente, até o fim de sua existência. Mas, em que ponto de sua vida, Isaac abandonou a religião para sempre? Isso foi, na verdade, um processo gradativo. Mas, sem dúvida, determinado episódio, altamente dramático, que atraiu o senso teatral de Isaac, selou o rompimento final. Aqui, de nôvo, de modo mais remoto, a personalidade do pai contribuiu em alguma coisa para o desenvolvimento da perso nalidade do filho. Poucos meses depois de completar quatorze anos, Isaac fêz-se amigo de um jovem aprendiz da gráfica, excelente tra balhador, muito amadurecido para sua idade, sempre bem informado sôbre os acontecimentos políticos de então. Era comunista, ateu, e, ainda, o favorito de Jacob Deutscher! Êste rapaz tratava Isaac com pouca condescendência, e um toque de ironia. Mas gostava de envolvê-lo em todo o tipo de debate sôbre política e religião. Em ambos os casos, parecia disposto a converter Isaac aos seus pontos de vista. Na véspera do Yon Kippur, o Dia da Expiação, êle provocou Isaac: “Se você realmente não acredita em Deus” — disse —“prove-o. Faça-me companhia amanhã na porta do cemitério judeu”. Isaac aquiesceu. Enquanto seus pais se dedicavam às orações os dois com panheiros encontraram-se. O aprendiz levou o jovem Isaac ao túmulo do rabino. Ali, êle tirou do bôlso dois sanduíches de manteiga e presunto. Isto, sem dúvida, era uma extrema blas fêmia; acumulavam-se pecados sôbre pecados. No dia do mais rigoroso dos jejuns, quando nem mesmo uma gôta de água deveria passar através dos lábios de um judeu ortodoxo, Isaac empunhava a mais pecaminosa das comidas. A simples visão do presunto ser-lhe-ia odiosa. Botar qualquer carne entre camadas de manteiga constituía grave ofensa às leis do ritual; e aí estava o presunto, o mais abominável, o mais pernicioso dos alimentos. “Fiquei petrificado pela iniqüidade de minha conduta. Mastiguei o sanduíche e engoli cada pedaço com dificuldade. Estava meio esperançoso e meio temeroso de que algo acontecesse; esperava que um relâmpago me despeda
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çasse. Mas nada aconteceu. Tudo estava quieto. Meu com panheiro considerou a experiência uma grande brincadeira. Apertou minhas mãos, bateu-me nas costas. Deixei-o e corri de volta à cidade”. Na Sinagoga ninguém notara a ausência de Isaac. Voltou de sua escapada pecaminosa a tempo de misturar-se com a multidão, que, depois de um dia de rezas e jejum, retornava a seus lares para um solene banquete. “À mesa, com a família, mal podia levantar os olhos. Nunca tinha sentido tanto remorso em tôda a minha vida. Não pelo que tinha feito; não era, de modo algum, a ofensa contra as leis de Moisés que pesava tanto em minha consciência. A solici tude de meu pai, o carinho de minha mãe, que, pálida e consumida pelo longo jejum, se apressava em servir a família faminta — e a mim, antes de todos — tudo isso se tomara insuportável para mim”. Isaac narrava êste episódio sempre com grande dose de emoção. A refeição profana sôbre o túmulo do rabino, o sacrilégio, a impiedade, seus temores, crenças e descrenças eram apenas o ápice de um longo processo no caminho do ateísmo. Mas, naquela noite, não foi Deus o ridicularizado. Seus pais é que foram ludibriados. E isto fêz o jovem peca dor, chocado, engasgar com a comida, envergonhar-se e chorar. Isaac não viveu para descrever sua infância tal como desejava fazer, mas referências autobiográficas, em muitos de seus trabalhos, mostraram o que lhe aconteceu na sua pere grinação de fé. No primeiro ensaio dêste volume, fala, indire tamente, sôbre si próprio, sua origem, seu desenvolvimento intelectual e filosófico. Pertencia — e sentia-se pertencer — àquela estirpe de judeus não-judeus, que transcendiam o ju daísmo, para atingir os mais altos ideais da humanidade. Como Heine, Marx, Rosa Luxemburg, Trotski e Freud, Isaac achou o judaísmo e tôdas as religiões bastante limitadas e, como êles, viveu à margem de várias culturas nacionais e estava na so ciedade — polonesa, judaica, inglêsa, alemã — sem nela se integrar. Ainda aí permanecia na tradição judaica e nunca o negou.
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Na última noite de sua vida, inspecionamos do alto do Capitólio o Arco de Tito, brilhantemente iluminado pela plena luz do verão. Em suas precisas e bem torneadas frases, em inglês, cheias de sentimento e poesia, Isaac contava como, apesar de odiado pelos judeus, aquêle era o símbolo do triunfo romano. “A batalha de Jerusalém foi prolongada. Tito desfilou suas legiões ao longo dos muros da cidade em cêrco. Eram bem armadas e pareciam audazes. Deviam atemorizar os sitiados. Lembrem-se”, continuou Isaac, persuasivamente, “que os ro manos possuíam tudo em volta — Jerusalém estava sozinha. Havia o templo cercado de muros, e o palácio real, também com as suas fortificações. Tinham proteções internas, defesas cuidadosamente construídas e baluartes externos. Os defenso res poderiam ousar sair para atacar o inimigo, mas eram obri gados a voltar para dentro de sua enorme e aparentemente inexpugnável fortaleza. Os romanos impacientavam-se. Seu orgulho estava ferido e concentraram tôdas as suas fôrças no assalto. Tito ordenou que não dessem trégua nos ataques. Dentro da fortaleza, mais de meio milhão de homens, mulhe res e crianças, todos armados e sem mêdo de morrer; e êles viram o brilho do relâmpago e escutaram a voz de Deus, dizendo-lhes que defendessem o templo até o seu último suspiro; e o fizeram. Tito, porém, era mais forte; investiu com tôdas as suas fôrças contra o bastião e as paredes ruíram. Em Roma, regozijava-se. Levantou-se o Arco para comemorar a volta triunfal de Tito e de sua tropa da Judéia. Êste fato assinala a queda de Jerusalém e a destruição do templo. Gerações de judeus vêm derramando lágrimas e suspirando ao pensar nessa calamidade”. Mais de meio século passou desde que a imaginação de Isaac se abalou quando ouviu esta trágica história dos lábios do seu professor, o poeta visionário, o rabino barba vermelha do colégio judaico. O caminho que Isaac percorreu, do kheder de Chrzanow aos salões de conferência de Cambridge e Harvard, ao campus dos estudantes rebeldes de Berkeley, foi muito longo; foi também solitário e árduo. “A infância mostra o homem Como a madrugada mostra o dia”
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Assim escreveu Milton. Parece que Isaac obedeceu ao pre ceito do poeta: “Sê famoso então Pela sabedoria; como teu império deve [estender-se, Estende tua consciência sôbre todo o mundo”. Londres, dezembro de 1967 Tamara Deutscher
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I
O Judeu Não-Judeu'
I Já ditado talmúdico — “o judeu que pecou permanecerá sempre judeu”. O que penso, sem dúvida, trans um velho
cende a idéia do pecado e do não pecado. Mas êsse preceito me reavivou no espírito uma recordação da infância que pode ser relevante para meu tema. Lembro que, quando era criança, li o Midrasli e a descri ção de uma cena muito me impressionou. Era a história do Rabino Meir, o grande santo e sábio, o pilar da ortodoxia mo saica e o co-autor do Mishnáh, que aprendeu teologia com um 1 Êste ensaio se baseia numa conferência pronunciada durante a Semana do Livro Judaico, para o Congresso Judaico Mundial, em feve reiro de 1958.
herege, Elisha ben Abiyuh, chamado Akher (O Estrangeiro). Certo sábado, o Rabino Meir estava com seu mestre e, como de costume, se envolviam em profundo debate. O herege ia ' num burrico e o Rabino Meir, como não podia cavalgar aos sábados, caminhava a seu lado. Escutava tão atentamente as palavras de sabedoria saindo dos lábios do herege, que não percebeu quando ultrapassaram aquela divisa proibida aos judeus de cruzar naquele dia. O grande herege, dirigindo-se ao aluno ortodoxo, disse: “Veja, alcançamos a divisa, devemos nos separar agora, você não mais deve acompanhar-me. Volte!” O Rabino Meir voltou para a comunidade judaica, enquanto o herege ultrapassava a divisa. Havia muito naquela cena para preocupar um pequeno judeu ortodoxo. Por que — eu me perguntava — o Rabino Meir, aquêle homem luminar da ortodoxia, tomava lições de um herege? Por que lhe dedicava tanta afeição? Por que o defendeu contra os outros rabinos? Meu coração, ao que pare ce, estava com o herege. E quem era êste herege? Êle parecia estar, ao mesmo tempo, dentro e fora do judaísmo. Mostrou estranho respeito pela ortodoxia de seu aluno quando o fêz retomar aos judeus, no Sábado Santo; mas, êle mesmo, des considerando os cânones e o ritual, ultrapassou a divisa. Quan do eu tinha treze anos, ou talvez quatorze, comecei a escrever uma peça sôbre Akher e o Rabino Meir e tentei encontrar mais alguma coisa a respeito do herege. Que o fêz superar o judaísmo? Era um agnóstico? Era adepto de alguma outra escola de filosofia grega ou romana? Não pude encontrar res postas e não consegui passar do primeito ato. O judeu herege, que superou o judaísmo, pertence a uma tradição judaica. Você pode ver Akher, se quiser, como um protótipo daqueles grandes revolucionários do pensamento mo derno: Spinoza, Heine, Marx, Rosa Luxemburg, Trotski e Freud. Também pode, se assim o desejar, colocá-los dentro da tradição judaica. Todos ultrapassaram a divisa do judaísmo, que consideravam tão estreito, tão arcaico, tão constrangedor. Todos procuraram ideais e satisfação fora do judaísmo e repre sentaram a soma e a essência de tudo que é mais grandioso no pensamento moderno, a soma e a essência das mais profundas
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convulsões que ocorreram na filosofia, na economia, e na polí tica nos últimos três séculos. Tinham alguma coisa em comum? Influenciaram, talvez, o pensamento da humanidade por causa do seu especial gênio judaico? Êles não acreditavam na genialidade exclusiva de uma raça. Penso, não obstante, que, de alguma forma, foram bastante judeus. Levavam dentro de si algo da quintessência da vida judaica e de sua intelectualidade. Foram excepcionais nisso, pois, como judeus, viviam nas fronteiras de várias civili zações, religiões e culturas nacionais. Nasceram e se criaram nas fronteiras de várias épocas. Amadureceram onde se cru zavam as mais diversas influências culturais, fertilizando-se umas às outras. Viveram nas margens, nos cantos ou nas fen das de suas respectivas nações. Cada um dêles estava na socie dade ou fora dela, pertenciam-lhe ou não. Foi isso que lhes possibilitou elevar o pensamento acima de suas sociedades, suas nações, suas épocas, seus contemporâneos e expandir-se mentalmente para novos horizontes e para o futuro. Penso que um protestante inglês, biógrafo de Spinoza, disse que somente um judeu teria conseguido aquêle desenvolvi mento na filosofia de sua época, como Spinoza o conseguiu — um judeu liberto dos dogmas das igrejas cristãs, católica e protestante, e também daqueles em que se criou1. Nem mesmo Descartes ou Leibnitz puderam libertar-se dêsse tipo de gri lhões que os acorrentavam às tradições da escolástica medieval na filosofia. Spinoza educou-se sob as influências da Espanha, Holanda, Alemanha, Inglaterra e Itália do Renascimento. Tôdas as ten dências do pensamento, que vigoravam naquela época, forma ram seu caráter. Sua terra natal, a Holanda, estava em plena 1 “É uma séria desvantagem, resultante do grande triunfo externo do Cristianismo, o fato de que os pensadores da cristandade só muito raramente entraram em contato com outras religiões e com outros tipos de orientação mundial. A conseqüência dessa inexperiência consiste em que as coisas comuns foram tomadas como verdadeiras pela forma cristã de encarar o mundo. . . .O mais ousado e original pensador.. . foi Spinoza que se colocou acima dos preconceitos teológicos, dos quais os outros não puderam libertar-se completamente” (A Correspondência de Spinoza. Introdução escrita por A. Wolf).
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revolução burguesa. Seus antepassados, antes de virem para a Holanda, foram cripto-judeus maranim, judeus de coração e cristãos de fachada, assim como o eram muitos judeus espa nhóis aos quais a Inquisição impusera o batismo. Depois de chegar à Holanda, os Spinozas mostraram-se, na realidade, ju deus; mas, evidentemente, nem êles nem seus descendentes mais próximos eram estranhos ao ambiente intelectual do cato licismo. O próprio Spinoza, quando se lançou como pensador independente e iniciador da moderna crítica à Bíblia, compre endeu, imediatamente, as principais contradições do judaísmo — a contradição entre o Deus monoteísta e universal e o con junto com o qual êle se apresenta na religião judaica — como um Deus legado somente a um povo: a contradição entre o Deus universal e seu “povo eleito”. Sabemos o que a consciên cia desta contradição provocou em Spinoza: foi banido da comunidade judaica e excomungado. Teve de lutar contra os clérigos judaicos, os quais, vítimas recentes da Inquisição, se tomaram infectados pelo seu espírito. Depois, teve de enfren tar a hostilidade dos clérigos católicos e dos padres calvinistas. Sua vida inteira constituiu uma luta para sobrepujar as limita ções das religiões e culturas de seu tempo. Entre os judeus de grande inteligência, expostos às con tradições de várias religiões e culturas, alguns foram de tal forma impelidos em diferentes direções por influências e pres sões contraditórias que, não conseguindo encontrar o equilíbrio espiritual, fracassaram. Um dêsses foi Uriel Acosta, precursor e mais velho que Spinoza. Muitas vêzes, êle se rebelou contra o judaísmo e outras tantas se retratou. Os rabinos excomun garam-no. E sempre Uriel Acosta se prostrava diante dêles, no chão da Sinagoga de Amsterdã. Spinoza, porém, tinha a grande felicidade intelectual de não harmonizar influências conflitantes e delas tirar uma alta visão do mundo e uma filo sofia integrada. Em quase tôdas as gerações, onde quer que o intelecto judeu, a serviço da concatenação de várias culturas, luta contra si próprio e contra problemas do seu tempo, encontraremos alguém que, como Uriel Acosta, fracassou sob o pêso dessa tarefa e alguém, como Spinoza, que tirou desta carga as asas
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para a sua grandeza. Heine foi, de certo modo, um Uriel Acosta mais velho. Sua relação com Marx, neto intelectual de Spinoza, é comparável àquela que existia entre Uriel Acosta e Spinoza, Heine dividia-se entre o cristianismo e o judaísmo e entre a França e a Alemanha. Em sua terra natal, a Renânia, cho cavam-se as influências da Revolução Francesa e do Império Napoleônico com as influências do velho Santo Império Romano dos Kaisers alemães. Ele cresceu no âmbito da filosofia clássica alemã e no seio do republicanismo francês, vendo Kant como um Robespierre e Fichte como um Napoleão no reino do espírito. É assim que os descreve em uma das mais profundas e comoventes passagens do Zur Geschichte der Religion and Philosophie in Deutschland. (Sôbre a História da Filosofia e da Religião na Alemanha). Nos seus últimos anos, entrou em contato com o socialismo e o comunismo francês e alemão, e, ao encontrar-se com Marx, demonstrou aquela mesma apreen siva admiração e simpatia com que Acosta encontrara Spinoza. Marx, da mesma forma, cresceu na Renânia. Seus pais deixaram o judaísmo e êle não lutou contra a herança judaica como Heine o fizera. Entretanto, grande foi sua oposição ao atraso social e espiritual da Alemanha de então. Viveu no exílio a maior parte de sua existência e suas idéias se formaram na filosofia alemã, no socialismo francês e na economia política inglêsa. Em nenhum outro cérebro contemporâneo estas dife rentes influências se combinaram de forma tão fecunda. Marx ultrapassou a filosofia alemã, o socialismo francês e a economia política inglêsa. Extraiu o que nêles havia de melhor e superou suas limitações. Em época mais recente, teremos Rosa Luxemburg, Trotski e Freud, cada um dêles formado no meio de um entrelaçamento de correntes históricas. Rosa Luxemburg representa uma fusão única das características alemãs, polonesas e russas no tempe ramento judeu; Trotski foi aluno de um gymnasium luterano russo-alemão na cidade cosmopolita de Odessa, nas fronteiras do Império grego-ortodoxo dos Czares. E, o caráter de Freud amadureceu em Viena, alheio ao judaísmo e em oposição ao clericalismo católico da capital do Império dos Habsburg. Todos tinham em comum aquelas condições próprias, com as quais viveram e pelas quais lutaram, que não os deixavam reconci
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liar-se com idéias nacional ou religiosamente limitadas e que os impeliam a combater por uma universal Weltanschauung. A ética de Spinoza não era mais a judaica, mas a de um homem sem amarras, assim como seu Deus já não era mais o Deus dos judeus. Seu Deus, unido com a natureza, derramava sua divina identidade separada e distintamente. O Deus e a ética de Spinoza, de certo modo, permaneciam judaicos, mas, 0 monoteísmo o levou a conclusão lógica e o Deus universal judeu foi decifrado. E, uma vez decifrado, deixou de ser judeu. Heine lutou contra o judaísmo a vida inteira. Essa atitude era característicamente ambivalente, cheia de amor-ódio e ódioamor. Nesse ponto, foi inferior a Spinoza que, excomungado pelos judeus, não se tomou cristão. Heine não teve a mesma opinião e fòrça de caráter de Spinoza. Viveu numa sociedade que, nas primeiras décadas do século XIX, era ainda mais atra sada do que a holandesa no século XVII. A princípio, êle se prendia às esperanças da pseudo-emancipação dos judeus, o ideal expressado por Moisés Mendelsohn nas seguintes pala vras: “ser um judeu em casa e um homem fora dela”. A timidez daquele ideal gennano-judaico era um pouco do vulgar liberalismo não-judaico da burguesia alemã: “o alemão liberal era um ‘homem livre’ dentro de casa e um allertreuester Unter tam (O súdito mais leal) fora dela”. Isto não satisfaria Heine por muito tempo: abandonou o judaísmo e rendeu-se ao cris tianismo. No íntimo, nunca se conformou com a deserção e a conversão. O repúdio à ortodoxia judaica atravessa sua obra inteira. Seu Don Isaac diz ao rabino de Bachrach: “Eu não poderia ser um dos vossos. Gosto muito mais de vossa comida do que de vossa religião. Não, eu não poderia ser um dos vossos e. imagino mesmo que, naqueles bons tempos e sob as leis do vosso Rei David, no seu período áureo, eu fugiria de vos e me abrigaria nos templos da Assíria e Babilônia, que eram mais cheios de amor e de alegria de viver”. Mas. foi êste eausticante e ressentido judeu que, no An Edom, “geicaltig besehtvoren den tausendjakrígen Schmerz” (“evocou com força o sofrimento milenar'). Maix, cerca de vinte anos mais moço, superou os proble mas que atormentavam Heine. Apenas uma vez se viu às
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voltas com êsse assunto: foi no famoso Zur Judenfrage1, sua franca repulsa ao judaísmo. Apologistas da ortodoxia e do na cionalismo judaicos atacaram-no violentamente por causa dessa obra, acusando-o de “anti-semita”. Mas, creio, Marx entrou no âmago da matéria quando disse que o judaísmo sobreviveu “não em virtude da história, mas na história e através da histó ria”; devia sua sobrevivência ao papel que os judeus desempe nhavam como agentes de uma economia monetária, enquanto que em volta dêles ainda se vivia em uma economia natural. Aquele judaísmo foi essencialmente um resumo teórico de rela ções de mercado e de crédito dos comerciantes. E aquela Euro pa cristã, ao evoluir do feudalismo para o capitalismo, tomouse, em certo sentido, judaica. Marx viu Cristo como um “judeu teórico”, o judeu como um “católico prático” e, conseqüente mente, “o prático cristão burguês” como um “judeu”. E, con siderando o judaísmo um reflexo religioso do modo de pensar da burguesia, observou que o judaísmo assimilava a Europa burguesa. Seu ideal não era a igualdade entre judeus e não judeus numa sociedade capitalista “à judaica”, mas, a emanci pação, tanto do judeu como do não-judeu, da vida burguesa, ou, como provocativamente definiu com o seu ultraparadoxal lin guajar, no estilo de Hegel, “a emancipação da sociedade do judaísmo”. Sua idéia era tão universal quanto a de Spinoza, além de avançada duzentos anos — era a idéia do socialismo e de uma sociedade sem classes e sem govêmo. Dentre seus muitos discípulos e seguidores nenhum se identificava tanto com êle, em espírito e pensamento, como Rosa Luxemburg e Leon Trotski. A afinidade dêles com Marx aparecia na sua visão dialética do mundo cheio de dramas, de lutas de classes, e naquela excepcional coordenação de pensa mento, paixão e imaginação, que davam à linguagem e ao estilo uma clareza, densidade e riqueza peculiares. (Talvez Bemard Shaw tivesse em mente essas qualidades quando se referiu aos “dons literários peculiarmente judaicos” de Marx). Rosa Luxemburg e Trotski, da mesma forma que Marx, lutaram, juntamente com seus camaradas não-judeus, por solu1 A Questão Judaica — obra escrita na sua juventude ( N. do T .)
ç6es universais para os problemas do seu tempo, opondo-se tanto ao particularismo quanto ao nacionalismo e a favor do intemacionalismo. Rosa Luxemburg procurou superar as contradições entre o socialismo reformista alemão e o marxismo revolucionário russo. Tentou injetar no socialismo alemão algo do idealismo revolucionário c do élan russo e polonês, alguma coisa daquele “romantismo revolucionário”, que mesmo um grande realista como Lênin exaltou sem constrangimento. Ou tras vêzcs, ela quis transplantar o espírito e a tradição demo cráticos da Europa ocidental para os movimentos socialistas subterrâneos da Europa oriental. Fracassou no seu principal propósito e pagou com a vida. Mas não foi apenas ela que pagou. No seu assassinato, a Alemanha dos Hohenzollern fes tejou 0 último triunfo e a Alemanha nazista, o primeiro. Trotski, o teórico da revolução permanente, tinha diante de si a visão de 11111 levante universal que transformaria a hu manidade. O líder da revolução russa c o criador — junto com Lênin — do exército vermelho, entrou em choque com o Estado que ajudara a criar, quando êste Estado e seus líderes levanta ram a bandeira do socialismo num só país. Trotski não admitia que se restringisse a imagem do socialismo às fronteiras de um unieo país. Todos èsses grandes revolucionários foram extremamente vulneráveis, pois, em certo sentido, não tinham raízes como judeus. Mas, sob outros aspectos, deitavam profundas raízes na tradição intelectual e nas mais nobres aspirações do seu tempo. Contudo, sempre que a intolerância religiosa ou as emoções nacionalistas estivessem em ascensão, onde quer que a estreiteza dogmática de raciocínio e o fanatismo triunfassem, êles eram as primeiras vítimas. Foram excomungados pelos ra binos, perseguidos pelos padres cristãos, oprimidos pelos gen tltinurs de governos absolutistas e pela soldateska; odiados pelos pseudodeinocrat&s filisteus e expulsos de seus próprios partidos. Quase todos sofreram o exílio e, uma vez ou outra, seus escritos foram queimados na fogueira. O nome de Spinoza não pôde ser mencionado por mais de um século depois de sua morte; mes mo Leilmit*, que devia muitos de seus pensamentos a Spinoza, nSo ousava mencioná-lo. Trotski permanece ainda anatematfcado na Rússia de hoje. Os nomes de Marx, Heine, Freud e
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Rosa Luxemburg foram proibidos até recentemente na Alema nha. Mas, é dêles a vitória. Depois de um século, durante o qual o nome de Spinoza foi premeditadamente coberto com a capa do esquecimento, ergueram-sc-lhe monumentos e reconhe ceram nêle a mente mais fecunda do pensamento humano. Herder disse ccrta vez sôbre Goethe: “Estimaria que Goethe lêsse algumas obras latinas além da Ética de Spinoza”. E, muito corretamente, Heine o descreveu como o “Spinoza que jogou fora o manto de sua fórmula geométrico-matemática e apre senta-se diante de nós como um poeta lírico”. O próprio Heine triunfara sôbre Hitler e Goebbels. Outros revolucionários dessa linha também sobreviverão e, mais cedo ou mais tarde, triunfa rão sôbre aquêles que tudo fizeram para apagar a sua lem brança. Toma-se patente o porquê de Freud pertencer a essa mes ma linha intelectual. Em seus ensinamentos, possua ou não méritos ou deméritos, transcende às limitações das primeiras escolas psicológicas. O homem que analisa não é alemão ou inglês, russo ou judeu — é o homem universal, no qual lutam o subconsciente e o consciente, o homem que é parte da natu reza e parte da sociedade, homem cujos desejos e súplicas, escrúpulos e inibições, ansiedades e condições são as mesmas, qualquer que seja a raça, religião ou nação a que pertença. Os nazistas, no seu modo de ver, estavam certos quando liga ram o nome de Freud ao de Marx e queimaram as obras de ambos. Todos êsses pensadores e revolucionários tiveram certos princípios filosóficos em comum. Embora variem suas filoso fias, é claro, de século para século e de geração a geração, todos êles, de Spinoza a Freud, são deterministas. Todos sus tentam que o universo é dirigido por leis inerentes à sua pró pria existência e governado pelas Gesetzmassigkeiten (pelas leis). Não vêem a realidade como um amontoado de acidentes ou a história como um conjunto de caprichos e fantasias dos governantes. “Não há nada fortuito”, diz Freud, “nos nossos sonhos, loucuras e mesmo nos lapsos de nossa fala”. “A lei do desenvolvimento”, afirma Trotski, “retrata-se através de aci dentes”. E, ao dizer isso, aproxima-se bastante de Spinoza.
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Todos são deterministas porque, tendo estudado muitas sociedades e observado “maneiras de viver” em períodos deter minados, compreenderam as regularidades básicas da existència. Suas diferentes formas de pensar são lógicas, porque, vi vendo dentro de fronteiras de várias nações e religiões, vêem a sociedade cm estado de fluidcz. Concebem a realidade como dinâmica e não estática. Aquêles que estão fechados dentro de uma sociedade, de uma nação ou de uma religião, tendem a imaginar que a sua própria maneira de viver e de pensar tem validade absoluta e imutável e que tudo o que contraria seus padrões é, de alguma forma, “anormal”, inferior e maligno. Aquêles que, por outro lado, vivem dentro dos limites de várias civilizações compreendem mais claramente o grande movimento e a g r a n d e contradição entre a natureza e a sociedade. Todos êsses pensadores concordam sôbre a relatividade dos padrões morais. Nenhum dêles acredita no absolutamente bom ou absolutamente mau. Todos observaram sociedades aderindo a diferentes padrões de moral e a diferentes valores éticos. O que e r a bom para a Inquisição católieo-romana. sob a qual viveram os avos de Spinoza, não o era para os judeus: o que e r a bom para os rabinos e os mais velhos judeus de Amsterdã e r a mau para o próprio Spinoza. Heine e Marx experimenta ram. em sua juventude, o tremendo choque entre a moralidade da revolução francesa e a da Alemanha feudal. Quase todos tinham, ainda, outra grande idéia filosófica em comum — a idéia de que o saber, pira ser verdadeiro, deve ser atuante, tsto, aliás, se relaciona com seus pontos de vista sôbre ética, pois se o saber è inseparável da ação, ou da Pmris. que, por naturexa, é relativa e contraditória, então a moraL o conheci mento do bem e do mal ó inseparável da Fnms e é tambems relativa e eoutraditória, Spiimza disse que “ser é fazer e saber é fagerw, Isso estava a mo passo apenas do que M an pnjdunava; "até assara os filósofos; intemretaram o mmede»; de agora en\ diante tratais© de tiansfonn&lo” FinahnenU% todos èsses homens* de Spioaizai a FrenadL aaneditavam na verdadeira solidariedade do lnommema e isto ffiemni Jtoplfeíto esn soas atitudes a respeito da judafemn®» Aígara, ©fesarèsses «rentes da humanidade, atareés da sMfijrejmta mêwm âôs através da ftmnnuaçia da cisiniMunfi
de gás; fumaça que nenhum vento dispersa de nossas vistas. Esses “judeus não-judeus” foram essencialmente otimistas; e o seu otimismo alcançou pontos dificilmente atingíveis em nosso tempo. Não imaginavam que a “civilizada” Europa mergulha ria lios abismos da barbárie, quando simples palavras como “solidariedade humana” soassem como brincadeira perversa aos ouvidos dos judeus. Entre êles, sòmente Heine teve aquela sensibilidade intuitiva dos poetas, quando, então, advertiu à Europa que se precavesse contra o iminente ataque dos velhos deuses germânicos emergindo “aus clern teutscnem Urwalde” (da floresta teutônica). Lamentava que o destino dos judeus de hoje fôsse muito mais trágico do que se possa expressar ou compreender — tão trágico que “êles riem quando se fala disso”. E eis exatamente aí a maior das tragédias. Não se encontram em Spinoza ou em Marx êsses pressentimentos. Freud, já na velhice, vacilou mentalmente sob a pressão do nazismo. Para Trotski, a premonição chegou como um choque, porque Stalin usou contra êle o anti-semitismo. Trotski repu diara, quando jovem, em têrmos bastante categóricos, o desejo de uma “autonomia cultural” judaica, que o Bund, Partido So cialista Judaico, reivindicara em 1903. Fizera-o em nome da solidariedade aos judeus e não-judeus no campo socialista. Aproximadamente um quarto de século mais tarde, quando se entregava a uma luta desigual contra Stalin e foi às células do partido, em Moscou, a fim de expor seus pontos de vista, en controu maldosas alusões à sua origem judaica e mesmo insul tos anti-semitas. As alusões e os insultos partiram de membros que êle, juntamente com Lênin, conduziu durante a revolução e na guerra civil. Outro quarto de século mais tarde, e depois de Auschwitz, Majdanek e Belsen, uma vez mais, só que desta feita aberta e ameaçadoramente, Stalin recorreu às alusões antisemitas e ao insulto. É indubitável que o massacre de seis milhões de judeus europeus não deixou grandes marcas nas nações européias. Nem, na verdade, chocou suas consciências. Isso as deixou quase frias. Justificava-se a crença otimista no sentimento de humanidade, crença esta tão decantada pelos grandes revolu cionários judeus? Devemos, ainda, compartilhar de sua fé no futuro da civilização?
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Admito que, mesmo se alguém tentasse responder a essas perguntas, formuladas sob o ponto de vista exclusivamente judeu, seria difícil, ou mesmo impossível, uma resposta positiva. De minha parte, como não posso falar sob um ponto de vista exclusivamente judeu, minha resposta é: “Sim, a fé que êles tinham se justificava. Justificava-se de qualquer modo, tanto mais que a crença nos derradeiros sentimentos de solidariedade dos homens é, por si própria, uma das condições necessárias para a preservação da humanidade e para varrer, de nossa civi lização, os resquícios de barbárie que ainda estão presentes e ainda a envenenam. Por que o destino dos judeus europeus deixou os países da Europa, ou o mundo não-judeu, indiferentes, quase frios? In felizmente, Marx estava muito mais certo, a respeito do lugar que os judeus ocupavam na sociedade européia, do que se podia pensar há algum tempo. Grande parte da tragédia dos judeus consistiu em que, como resultado de um longo processo histó rico, os europeus se acostumaram a identificar o judeu como dono de negócios — câmbio, empréstimo — enfim, um fazedor de dinheiro. Judeu, na opinião popular, tomara-se sinônimo ou símbolo disso tudo. Procurem no Oxford English Dictionanj e verão como se expõe o significado corrente do têrmo “judeu”: primeiramente, é uma pessoa da raça hebraica; em seguida, vem o uso comum: um usurário extorsivo; condutor de negócios difíceis. Tão rico como um judeu, diz o provérbio. Correntemente, a palavra também é usada como verbo transitivo: “to jew”, que, no Oxford Dictionary significa enganar, levar vantagem. Esta é a imagem vulgar do judeu e os preconceitos comuns contra êle estão fixados em muitos idiomas, não apenas no inglês, e em muitas obras de arte. Não apenas em O Mercador de Veneza. Entretanto, essa não é a única imagem vulgar do judeu. Tentem lembrar a ocasião e a forma pela qual Macaulay plei teou igualdade política para os judeus e não-judeus e o direito de entrarem para a Câmara dos Comuns. Apreciava-se, nessa ocasião, a admissão de um Rothschild, o primeiro judeu a entrar para os Comuns, um judeu eleito pela cidade de Londres. E o argumento de Macaulay foi o seguinte: “se permitimos a um judeu dirigir os assuntos financeiros para nós, por que não
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permitir-lhe sentar-se conosco no Parlamento e ter o direito à palavra sôbre a direção de todos os nossos assuntos públicos?” Essa era — na verdade — a voz do cristão burguês que, depois de rápida ponderação, saudou Shylock como seu irmão1. O que capacitou os judeus — creio — a sobreviver como comunidade separada foi o fato de representarem o mercado econômico entre pessoas que viviam em economia natural. Isto, ligado às lembranças populares, condicionou também, pelo menos em parte, a indiferença com a qual a plebe da Europa presenciou o holocausto dos judeus. Para sua maior desventu ra, quando os povos europeus se tomaram hostis ao capitalismo, na primeira metade do século, êles não o fizeram senão muito superficialmente, e, de qualquer modo, na primeira metade dêste século. Não atacaram o cerne do capitalismo, nem suas relações de produção, nem as organizações de propriedade e trabalho, mas suas externas e antiqüíssimas ligações que, não raro, eram de fato de judeus. Esta é a cruz da tragédia judaica. O capitalismo decadente já ultrapassou seus dias e arrasou moralmente a humanidade e nós, judeus, pagamos por isso e, talvez, tenhamos de pagar de nôvo. Tudo isso forçou os judeus a ver a criação do seu Estado como a solução. A maior parte dos grandes revolucionários, cuja herança estou apreciando, viram que a derradeira solução para os problemas do seu e do nosso tempo estava não em Nação-Estado, mas em sociedade internacional. Como judeus, foram os pioneiros naturais dessa idéia. Quem melhor qualifi cado do que êles para pregar uma sociedade internacional de iguais, livre de tôda ortodoxia e nacionalismo judeu e não judeu? Entretanto, a decadência da burguesia européia forçou os judeus a optar pela nação-estado. E, paradoxalmente, isso foi a consumação da tragédia judaica. É paradoxal porque vivemos numa época em que as nações-estado se tomam um anacronis mo, um arcaísmo, não só nações-estado como Israel, mas como a Rússia, Estados Unidos, Grã-Bretanha, França, Alemanha e 1 O judeu usurário de O Mercador de Veneza, peça de Shakespeare (N. do T.)
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outros. Todos constituem anacronismos. Ninguém ainda viu isso? Não é evidente que, quando a energia atômica diminui, diàriamente, o tamanho da terra, quando o homem já começou suas jornadas interplanetárias, quando o sputnik sobrevoa o território de uma grande nação-estado em um ou dois segun dos, que, nesta época, a tecnologia tomou a nação-estado tão ridícula e ultrapassada quanto o foi um pequeno principado medieval na época das máquinas a vapor? Mesmo aquelas jovens nações-estado, que surgiram como o resultado de progressiva e necessária luta, levada a efeito por nações coloniais e semicoloniais, pela emancipação — índia, Birmânia, Argélia, Gana e outras — não conservarão suas características por muito tempo. Essas características formam um estágio necessário na história de algumas nações, mas são estágios que aquelas nações, também, terão de ultrapassar de modo a encontrar estruturas mais largas para sua existência. Em nossa era, qualquer nova nação-estado, logo após consti tuir-se, começa a ser afetada pelo declínio geral dessa forma de organização política e isto já se mostra evidente na rápida experiência da índia, Gana e Israel. O mundo compeliu os judeus a adotar a nação-estado e a fazer dela seu orgulho e esperança justamente quando lhe resta muito pouca ou quase nenhuma viabilidade. Não se pode cul par os judeus por isso. Deve-se culpar o mundo. Mas os judeus, pelo menos, deviam ficar atentos ao paradoxo e compreender que seu grande entusiasmo pela “soberania nacional” é histori camente tardio. Êles não se beneficiaram das vantagens da nação-estado naqueles séculos em que esta era uma forma de progresso humano e um grande fator revolucionário e unificador da história. Tomaram posse dêsse estado e logo em seguida o transformaram num fator de desunião e de desintegração social. Tenho esperança, entretanto, que, juntamente com as ou tras nações, os judeus — mesmo tardiamente — se tomem atentos ou recobrem a consciência da imperfeição de uma nação-estado e achem seu caminho de volta à herança política e moral que o gênio dos judeus, ultrapassando as fronteiras do judaísmo, nos legou: a mensagem da emancipação universal do homem.
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II Quem é Judeu?1
de que, na verdade, se possa fazer a pergun ta “quem é judeu?” dá-me a desagradável sensação de que estou a ponto de discutir um dos tópicos familiares a tantos O
fato
1 Quem é judeu? Qual o lugar do intelectual judeu na sociedade moderna e qual o papel que nela representa? — Estas perguntas foram formuladas no meio de aceso debate travado nos círculos judaicos por volta de 1960. Isaac Deutscher deu a sua contribuição sôbre o assunto em forma de entrevista ao The Jewish Quaterly (Londres, 1966) na qual abordava a suposição tácita da existência de uma “comunidade judaica” positiva. Também tomou parte nos debates patrocinados pela Seção Inglêsa do Congresso Judaico Mundial, em novembro de 1963. Êste ensaio constitui a versão condensada da entrevista e de sua inter venção no debate.
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contos modernos, de Kafka a Nigel Dennis: carteiras de iden tidades perdidas e, talvez, algumas delas sejam introuvables. Quando tantos intelectuais rejeitaram os rituais, os tabus, os prós e os contras de tantas religiões, como se pode esperar de um intelectual judeu que se identifique com as mais arcaicas tradições judaicas ainda hoje adotadas? Há uns trinta anos passados, julgaria que a pergunta “o que dá a um intelectual judeu a sua condição de judeu?” era completamente irrelevante. Ainda hoje penso parcialmente assim. Não é bastante pergun tar-se algo sôbre a identidade de um abstrato intelectual judeu, assim como é infrutífero falar-se dêle como se fôsse a manifes tação daquele grande eg o — em letras maiúsculas — que existe de algum modo no vazio da eternidade judaica. A identidade de um intelectual judeu — sim, mas em que mundo, em que ambiente, em que relações com os problemas de nosso tempo? Esta é a maneira, a meu ver, pela qual se deveria formular a pergunta, se é que alguém o fará. É por demais fútil e irreal julgar-se só e exclusivamente com o solipsismo do intelectual judeu, tentando defini-lo sem muita referência ao mundo exterior e aos antagonismos que despedaçam e dividem a humanidade. Se nos ocupamos com o lugar dos judeus na sociedade, devemos, imediatamente, pro curar saber que tipo de judeu se considera e em que tipo de sociedade se está pensando. O judeu na América ou na União Soviética? Na Inglaterra, na França? Na Alemanha ou em Israel? Em cada uma dessas sociedades, a posição do judeu é diferente. Qual o denominador comum entre as atitudes, papel e funções do judeu nessas diferentes circunstâncias? É altamente significativo e característico de nossa época que agora, mais do que nunca, os judeus sintam necessidade de tentar definir sua posição vrisàvis de sua vizinhança não judia. Sabemos que seu papel é diferente, em qualidade, da quele, por exemplo, do intelectual irlandês nos Estados Unidos. Por acaso o Presidente Kennedy pesquisou sua identidade como intelectual irlandês? E, todavia, o judeu está cônscio, doloro samente cônscio, de que há uma tremenda diferença entre sua posição e a do irlandês na América. Sente que, de algum modo, naquela grande democracia, êle é o “outro” negro: o de pele branca. Mas, freqüentemente, vira as costas ao negro: nos
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estados sulinos, o judeu, muito mais do que os outros, é um adepto fanático da supremacia branca. Como é difícil nesse entrelaçado de emoções, mêdos, preconceitos e arrogância racial encontrar a identidade de alguém. É quase impossível acharse uma compreensão satisfatória para tôdas as complexidades da situação. Há aproximadamente trinta ou trinta e cinco anos, creio, nenhum intelectual judeu sentia necessidade de definir seu papel ou identidade. Vejamos o meu caso: eu não discutiria jamais um problema como êsse. Não porque não tivesse raízes na tradição judaica. Ao contrário, fui educado num ambiente judeu, numa escola rigorosamente talmúdica; usei cachos no cabelo e minha longa kapota até os dezessete anos. Muito cedo me rebelei contra a ortodoxia religiosa judaica, mas me sentia atraído pelos elementos não religiosos da cultura iídiche que se manifestavam na literatura e no teatro. Escrevia em iídiche e em iídiche me dirigi aos trabalhadores em grandes comícios — nem sempre comícios políticos. Ainda vejo diante de mim aquela massa de jovens e velhos, trabalhadores, artesãos e pe dintes, que se reuniam à noite para escutar leituras de poesias e dramas. Às vêzes, vinham com os uniformes de trabalho, para aplaudir Peretz Markish ou Itzik Manger, recitando poe mas, ou Joseph Opatoshu ou J. N. Weissenburg, lendo prosa, ou, ainda, H. D. Nomburg, relembrando escritores iídiches do passado. Em lugar nenhum do mundo, em nenhuma sociedade altamente civilizada, excetuando-se, talvez, a Rússia de hoje, as pessoas ficavam tão emocionadas ao escutar seus poetas e escritores como os trabalhadores de Varsóvia e das províncias polaco-lituanas. Aí, algo como que uma nova cultura judaica se formava e isto se fazia através de um brusco rompimento com a consciência religiosa. Daí em diante, empreguei os meus melhores anos, anos de atividade política, entre os trabalhadores judeus. Escrevia em polonês e em iídiche e sentia que minha identidade se fun dira com o movimento operário da Europa oriental em geral e da Polônia em particular. Nós, como marxistas, tentávamos teòricamente, negar que o movimento operário judeu possuísse um caráter próprio. Mesmo assim, porém, possuía. Era bas tante óbvio que, naquele movimento operário, o intelectual
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achasse a sua função e não tivesse de se dar ao trabalho de defini-la. Da classe operária da Europa oriental veio o flores cimento da cultura iídiche. Aquela língua vigorosa, rica, renovando-se e enriquecendo-se constantemente, tomar-se-ia, da noite para o dia, uma língua morta. Poetas e escritores judeus se apoiaram naquele movimento operário que vimos afundar no nada, como a Atlântida. Todos sabemos como são repelentes alguns círculos judai cos no Ocidente, onde não há senão alguns tabus e muito dinhei ro. Aqui, porém, no ambiente que conheço, dá-se o contrário: nenhum dinheiro, nenhum tabu, mas abundância de esperanças, idéias e ideais. Todos nós tínhamos profundo desprezo pelo Yahudim do Ocidente. Nossos camaradas possuíam um estôfo diferente. Por volta da década dos trinta, tive a oportunidade de tra balhar em íntimo contato político com um homem, aproxima damente vinte anos mais velho do que eu. Nascido na mais extrema miséria, cresceu entre os piores lumpenproletariat e a gentalha da cidade, no último degrau da escala social, perma necendo analfabeto até os dezessete anos. Quando o conheci era um dos mais bem educados intelectuais que jamais encon trara em qualquer país. Onde aprendera a ler, nunca soube. Foi, porém, nas celas das prisões da Rússia czarista e nas da Polônia de Pilsudski, nos cursos leninistas em Moscou e nos círculos de palestras dos movimentos revolucionários subterrâ neos, onde êle, ávida e ardentemente, absorveu tudo o que a literatura mundial e a literatura clássica socialista tinham para oferecer. Para essa criança, fruto da mais extrema pobreza judaica, qualquer migalha de saber era sempre mais preciosa do que um pedaço de pão. A primeira revolução russa de 1905 foi um jato de luz que iluminou seu horizonte; e, sob essa luz — dentro e fora da prisão — leu as obras de Marx, Engels, Kautsld, leu os contos de Tolstoi, poemas de Mickiewicz e os dramas de Peretz. “Sem a revolução eu me afundaria no pân tano do submundo criminoso da Rua Smocha”, diz êle de si mesmo em suas Mémoirs. Mas, ao contrário, deixou bem dis tante de si a Rua Smocha com suas prostitutas, seus bordéis, seus batedores de carteira e ladrões, sua degradação física e moral. Na verdade, êle subiu do Vale de Lágrimas de sua
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meninice para as alturas espirituais da época. Tinha de saber por que lutava e contra que lutava. Não havia lugar para êle na sociedade onde nascera — sua vida foi dedicada a modificála. No Distrito Muranov de Varsóvia, êle estava na vanguarda dos operários judeus; todos tinham sua identidade estampada nas faces, nos olhos, nas mãos cansadas pelo trabalho. Nós, intelectuais judeus, que nos preocupávamos com sua sorte, seu desenvolvimento e educação, aspirações e desejos, também possuíamos nossa identidade definida sem nunca tê-la pro curado. O Yahudim. do Ocidente, a burguesia e a plutocracia, ti nham de conduzir suas fábulas e Tefilim como alguma coisa que realçasse seu senso de responsabilidade e dignidade. Não podiam ficar atrás dos não-judeus, que, todo o domingo, leva vam o missal para a Igreja. Tínhamos a nossa dignidade e não havia necessidade de expô-la. Conhecíamos o Talmude, envere damos pelo khassidismo. Tôdas as suas idealizações eram para nós como areia jogada nos nossos olhos. Crescêramos naquele passado judaico. Tínhamos o décimo-primeiro, o décimo-terceiro e o sexto séculos da história judaica vivendo vizinho a nós, e sob o mesmo teto, mas desejávamos fugir dêles, desejávamos viver no século XX. Através dos dourados e dos vernizes de românticos como Martin Buber, podíamos ver e sentir o obs curantismo de nossa religião arcaica e do modo de vida imutá vel desde a Idade Média. Para alguns dos meus conhecidos, parecia irreal e kafkiano aquêle ardor, tão comum nos judeus do Ocidente, de voltar ao século XVI, volta que, supunham, lhes ajudaria a recobrar ou a redescobrir sua identidade cultu ral judaica. Deixemos de lado reminiscências pessoais e passemos para assuntos mais comuns: quando se pergunta sôbre a identidade judaica, começa-se pela suposição da existência de uma iden tidade positiva. Mas, estamos autorizados a fazer tal suposição? Neste período da história do mundo não é a prudência judaica, no fundo, um reflexo de pressões anti-semitas? Acredito que se o anti-semitismo não se mostrasse tão arraigado, persistente e poderoso na civilização católica européia, os judeus não exis
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tiriam agora como uma comunidade distinta. Teriam sido completamente assimilados. O que vem recriando constante mente essa consciência judaica e injetando-lhe, sempre, nova vitalidade tem sido o hostil ambiente não-judeu que o cerca. Há trezentos anos Spinoza não via nada de milagroso no fato de que os judeus resistam a uma dispersão e a uma perda do seu estado. Diz Spinoza que êles incorreram “em ódio univer sal por se colocarem à parte dos outros povos”1. Atribui sua sobrevivência, em grande parte, às hostilidades dos não-judeus e lembra que, quando o Rei da Espanha forçou os judeus a aceitar a religião oficial do reino ou a ir para o exílio, grande número dêles abraçou o catolicismo romano, após o que lhes foram outorgados privilégios e honrarias iguais aos dos outros cidadãos. Os judeus em breve se identificaram com os espa nhóis e, em poucos anos, misturaram-se com a população local. Em Portugal ocorreu o oposto. Quando Manoel I forçou os judeus a aceitar a sua religião, êles se “converteram”, mas el rei não os julgava ainda dignos de quaisquer honrarias; então, êles, judeus, continuaram a viver separados da comunidade portuguêsa. Pode-se dizer que o que provoca tais emoções negativas deve ser, no íntimo, um caráter positivamente definido ou iden tidade. Entretanto, tempos atrás, por volta do fim do século, essa “identidade positivamente definida” dos judeus estava em processo de dissolução. Afinal de contas, foi em protesto contra essa dissolução que apareceu o sionismo onde quer que o socia lismo europeu, como regra, aceitasse e encorajasse a assimila ção dos judeus, como parte de um extenso e progressivo movi mento, em conseqüência do qual supunha-se estar a sociedade moderna perdendo suas tradições particulares e nacionais. Por muitos séculos, o elemento positivo da identidade do judeu estava arraigado ao excepcional papel representado pelos judeus na sociedade européia. Na época do feudalismo e no princípio do capitalismo, êle representava a economiamonetá ria e idéias correlatas para as pessoas que estavam condiciona das pela economia natural. Não foi por acaso que, para os 1 Tratado sôbre Religião e Política. (Capítulo II I).
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cristãos, o judeu se identificava com um símbolo como Shylock ou Fagin, símbolo que aparece na literatura mundial em várias versões e apresentações. Não foi também a malícia de mesliu mad que levou Marx a dizer: “o verdadeiro Deus do judeu é o dinheiro”1. Não via nisso uma condenação moral para os judeus, mas uma conseqüência da função especial exercida por êles na sociedade cristã. Marx também disse que a sociedade cristã, quanto mais e mais se tomava capitalista, mais e mais ficava “judia”. Estava firmemente convencido de que, quando a socie dade européia passasse do capitalismo para o socialismo, ambos, cristãos e judeus, deixariam de ser “judeus”, ou, por isso mesmo, cristãos. E, durante a vida de Marx, que foi o período de assimilação, a identidade judaica estava, na verdade, em fase de desaparecimento, pelo menos da Europa oriental. Os trágicos acontecimentos da era nazista, a meu ver, não invalidaram a clássica análise marxista da questão judaica nem exigiram a sua revisão. Continua-se sem dizer que o marxismo clássico não fêz concessões a algo como a “solução final” nazis ta, ou às graves complicações do problema no período stalinista e pós-stalinista, na União Soviética. O marxismo clássico con tava com um desenvolvimento mais normal e sadio da nossa civilização em geral, isto é, com uma gradual transformação do capitalismo numa sociedade socialista. Não se contava com a persistente sobrevivência do capitalismo nem com seus efeitos degenerativos sôbre a nossa civilização em geral. Entretanto, Marx, Engels e Rosa Luxemburg disseram, repetidas vêzes, que a humanidade tinha diante de si a alternativa: ou uma sociedade internacional ou o barbarismo — tertium non datur. Provàvelmente, nem êles próprios sabiam quão certos estavam e quão verdadeiras eram as alternativas. Só não puderam pre ver o grau de barbarismo que a humanidade atingiria por não adotar o socialismo. O nazismo não foi nada mais do que uma autodefesa das velhas instituições contra o comunismo. Os próprios nazistas sentiam que seu papel consistia nisso; a sociedade alemã inteira os via dessa forma e o judaísmo europeu teve de pagar o preço 1 A Questão Judaica. (N. do T.)
da sobrevivência do capitalismo; o preço do sucesso do capita lismo ao defender-se contra a revolução socialista. Êsse fato certamente não pede revisão da teoria marxista clássica, pois, ao contrário, a confirma. Mostrando-se a um médico um tipo de câncer caracteristicamente perigoso, êle certamente não sen tiria necessidade ou justificação para rever a ciência médica. O destino dos judeus não enfraquece minhas convicções mar xistas. Ao contrário, apóia o meu Weltanschauung marxista. O marxismo, como método e uma concepção materialista da história, ajuda na análise das fôrças que moldam a sociedade. Aquêles que usaram êsse método tiveram o pressentimento — e, no caso de Trotski, uma extraordinária visão — da selvageria que ameaçava engolfar a Europa. Mas, todo o horror, a degenerescência e o caráter patológico da teoria e das práticas nazistas desafiavam a imaginação humana normal e sadia. É uma verdade, trágica e macabra, que o maior “re-definidor” da identidade judaica foi Hitler e êste é um dos seus maio res triunfos póstumos1. Auschwitz foi o terrível berço da nova consciência e da nova nação judaica. Nós, que tantas vêzes rejeitamos as tradições religiosas, agora pertencemos àquela comunidade negativa dos que, tantas vêzes através da história, e mesmo bem recentemente, e de forma tão trágica, foram escolhidos para a perseguição e o extermínio. Para aquêles que sempre perseguiram os judeus, e tudo aquilo que com êles se relacionava, é amargo e estranho pensar que o extermínio de seis milhões de judeus desse nôvo alento ao judaísmo. Eu preferiria seis milhões de homens, mulheres e crianças vivos e a extinção do judaísmo. Das cinzas de seis milhões de judeus, ressurgiu a Fênix do judaísmo! Que ressurreiçãol E, agora, esta nova e tràgicamente ressurrecta identidade exige que a definam, que a localizem na realidade despedaçada por um passado recente. Êsse esforço será infrutífero, se feito com o intuito de uma aproximação de todos os judeus. Quem é que se propõe à la recherche de son identifé juive: Sir Isaac 1 Com a criação do Estado de Israel, os judeus se nazificaram chegando a usar contra os Estados árabes métodos hitleristas de con quista de espaço vital e na imposição do seu Israel über alies ( N. do T .)
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Wolfson ou Mendès France? Ben Gurion ou Lazar Kaganovich? O rabino-chefe na Grã-Bretanha ou eu mesmo? A comunidade judaica, para mim, pessoalmente, ainda per manece negativa. Nada tenho em comum com os judeus, diga mos, do Mea Shaarim ou com qualquer outro tipo de naciona lidade israelense. Sinto-me atraído pelos marxistas da ala esquerda de Israel, mas também me sinto ligado àqueles que assim pensam seja na França, na Itália, Grã-Bretanha ou Japão, ou àquelas multidões de americanos às quais me dirigi em Washington e São Francisco, cm vastos comícios de protesto contra a guerra do Vietnã. Vamos agora aceitar as idéias de que sejam laços raciais ou “vínculo sangüíneo” que faz a co munidade judaica? Não seria outro triunfo para Hitler e sua degenerada filosofia? Se não é a raça, que é então que faz um judeu? Religião? Eu sou ateu. Nacionalismo judaico? Sou internacionalista. Dessa forma, em nenhum dos dois sentidos sou judeu. Sou judeu, entretanto, pela fôrça de minha incondicional solidariedade aos perseguidos e exterminados. Sou judeu por que sinto a tragédia judaica como a minha própria tragédia; porque sinto o pulsar da história judaica; porque daria tudo que pudesse para assegurar aos judeus auto-respeito e segu rança reais e não fictícios. A diferença de background, nas condições de vida, de Wel tanschauung, que separam, por exemplo, Sir Isaac Wolfson ou o Rabino-chefe da Grã-Bretanha de mim ou do meu amigo do Distrito de Muranov, em Varsóvia — cujo retrato esbocei propositadamente — sublinha a incongruência de uma aproxi mação total dos judeus do problema que nos preocupa. A definição de um judeu é tão artificiosa precisamente porque a Diáspora expõe os judeus a uma tremenda variedade de pres sões e influências e, também, a grande diversidade de meios que êles tinham para defender-se da hostilidade e da persegui ção. Minha participação em assuntos judaicos, na Polônia de antes da guerra, sem dúvida alguma seria chamada de subver siva, herege e completamente antijudaica por qualquer congre gação das sinagogas de New York, Paris ou Londres. Falar de uma “comunidade judaica” como se fôsse associa ção envolvente não faz sentido e, muito menos, para um marxis
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ta, pois êste encara tôdas as sociedades do ponto de vista de sua sua divisão divisão em classe. A “comunidade judai jud aica ca”” não contém contém somente classes sociais antagônicas; ela se dividiu, por assim dizer, dizer, geogràficamente. As tradições culturais culturais nativas de cada um dos países onde os judeus eram minoria, afetaram-nos de várias formas e deixaram diversificadas marcas no seu perfil mental. ental. (Tensões (Tensões e animosida animosidades des entre alemães e judeus orien tais, por exemplo, ainda persistem e são objeto de inúmeras pilhérias, mesmo hoje, em Israel). Na Europa oriental, a secular vida cultural dos judeus liga va-se va-se confusamente com o movimento operário. operário. Aquela Aquela vida e aquêle movimento ovimento jamais poderiam poderiam ressuscitar. Os remanes centes, nos Estados Unidos e em outros lugares, estão em franco processo processo de extinção. Qualquer um pode cultuar cultuar o iídiche, iídi che, como se cultua uma tradição à qual nada se pode adicionar. Lembro-me que, há quarenta anos, discuti êsse problema com Moshe Nadir, um grande mestre do iídiche e, também, mestre do parad paradoxo oxo.. Naquela época já se debatiam debatiam as possibilidades de sobrevivência e desenvolvimento do iídiche na América. Nadir era era cético: — Não acredito acredito — disse isse — que o iídiche sobrev sobreviva iva,, mas se isso não acontec acontecer, er, paciênc pac iência. ia. Se nossa lín gua morrer, nós, escritores iídiches, seremos lidos e estudados como o são os mestres de qualquer literatura morta, como o grego grego e o latim. latim. Ficaremos Ficaremos clássicos. As gerações futuras lerão minhas sátiras como atualmente lemos e estudamos Horácio e Ovídio. O paradoxo formulado por Nadir tornar-se-ia realidade e de forma muito mais mais triste triste do que êle imaginaria. imaginaria. Apesar de sua aparente ou fingida indiferença pelo destino de sua língua, Nadir teria tentado àvidamente achar meios de partilhar, com os leitores de língua inglêsa, todo o sabor da poesia e da prosa iídiche e transm transmitir-lhe itir-lhess a riqueza dessa herança herança literária. lit erária. Mas, êle sabia que, apesar da inteligência, ternura e amor dedicado àquele trabalho, haveria certo ranço de pesquisa arqueológica, de trabalho de restauração e de apresentação de fragmentos de uma colossal colossal Pompéia. Pompéia. É bem verdade que milhares ou mesmo dezenas de milhares de pessoas ainda falam iídiche, mas a base é por demais estreita para levantar sôbre ela alguma cultura ou literatura vivas.
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Remanescentes dos judeus estão espalhados por todo o mundo e algumas de suas tradições seculares se expressam em outros outros idiomas. O elemento judaic judaicoo adquiriu proeminência proeminência no moderno moderno conto americano. americano. Mas isso não pode contribuir contribuir de modo algum, para a sobrevivência da genuína tradição judaica. Há muito tempo os escritores vêm debatendo se Heine era ou não um escritor judaico. E Boeme? Como considerá-los? Jude Judeus us ou simple simplesm smen ente te alemães? alemães? Não há e não não poderá poderá have haverr resposta definitiva. definitiva. Hein Heinee lutou com seu dilema judaico judaico a vida vida inteira; o mesmo esmo aconteceu acontec eu com com Boeme. Boeme. “Gestem Gestem noch ein ein Held gewesen, ist is t man heute heute schon ein Schurke” Schurke” — “ontem um herói, herói, hoje, hoje, apenas um vilão” vilão” — assim Heine Heine comentou a con versão de Boeme ao cristianismo, para, em seguida, segui-lo e obter, pelo batismo, “um bilhete de entrada na civilização européia”. européia”. A carga carga — que representava a condição de de judeu judeu — parecia, uma geração depois, mais leve para os escritores jude judeus us alemã alemães es com como Franz Werfel, Am Amold old e Stefan Zwei eig, g, Wasserman e muitos outros que obtiveram sucesso antes da era nazista. Bem poucos escritores poloneses tinham origem judaica, como, por exemplo, Julian Tuwim e Antoni Slonimski, os mais eminentes poetas do período que mediara entre as duas grandes guerras. guerras. O elemento judaico manifestava-se, algumas algumas vêzes, vêzes, no que êles escreviam, mas apenas vagamente, até que o mas sacre sacre dos dos guetos deu nova dimensão às suas poesias. Mesmo Mesmo assim, nunca tiveram aquela profunda consciência de sua con dição de judeu, como, digamos, Isaac Babel, o bolchevique, que lutou na guerra civil, viveu e se afogou no mar da revolução russa. Na Rússia, os distritos habitacionais tomaram impossível qualquer crescimento orgânico e espiritual em comum entre jude judeus us e esla eslavo vos. s. Na Polôni Polônia, a, mesm esmo antes antes de 1940 1940,, os jude judeus us já vivi viviam am virtualm virtualmente ente em guet guetos os.. Nacio Naciona nalis lismo mo polon polonês ês,, anti-semitismo e clericalismo católico, de um lado, e separa tismo judaico, ortodoxia e sionismo, do outro, trabalharam con tra duradoura duradoura e fecunda simbiose. simbiose. Devemos Devemos lembrar que foram os teóricos do sionismo e não apenas os do socialismo que dissertaram sôbre o caráter improdutivo da “economia” judaica judaica na Diáspora; Diáspora; os anta antago goni nism smos os entre os element elementos os pro
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dutivos e os não produtivos da sociedade eram de todo ine vitável; e, além dêsse antagonismo, social e economicamente determinado, cresceu, com o correr dos séculos, a poderosa superestrutu superestrutura ra da alienação ideológica. Era Er a tal a alienação alien ação na Polônia que, na verdade, nunca existiu qualquer ponto de contato entre a literatura literatura polonesa polonesa e a iídiche iídiche.. Para ser mais mais objetivo, escritores poloneses, acadêmicos, educadores, nem mesmo estavam cientes de que Varsóvia constituía o centro da florescente e moderna literatura iídiche, lida e admirada por judeus (e ( e não apenas judeus judeus)) em todo o mund mundo. o. No comêço do século, a situação russa estava mais com plicada. A literatura literatura russa russa tinha imenso poder de assimilação, assi milação, em parte motivado pelo caráter universal das idéias que a animaram na época moderna, idéias de Tolstoi, Plekhanov, Lênin. É difícil, entretanto, falar-se de qualquer influência específica específica do do judaísmo judaísmo na cultura russa. russa. Os judeus judeus não entr e ntra a ram na literatura russa antes de 1890; e quando os judeus entraram entraram foi com a revolução — e, esta esta foi f oi a sua “ent “entrada” rada” para a cultura que, por por séculos, séculos, os manteve à distância. distância. Isaac Isaac Babel não tem nenhum predecessor; e o judeu que foi o maior mestre da prosa russa na geração da revolução foi Leon Trotski, que, contudo, contudo, não exerceu influê influência ncia enquanto enquant o judeu. Temas jud judaico aicoss entra entrara ram m na literatu literatura ra polon polones esaa muito uito mais mais cedo, cedo, onde onde o seu problema ocupou poetas e contistas antes de haver a Polônia reconquistado a independência, de Mickiewicz a Orzeszkow Orzeszkowaa e Konopnicka. Entend Entendo, o, porém, que os motivos juda judaico icoss soa soam um tanto tanto exót exótic icos os e esotér esotérico icoss — talvez talvez mesm esmo incompreensíveis — para as gerações de poloneses criados numa Polônia sem judeus. Será possível que nenhum traço da presença judaica ficou na Europa Oriental? Oriental? Algun Algunss cer certame tamente nte ficaram. ficaram. Mas, se, no longo caminho, terão ou não mais importância do que as marcas deixadas pelos peles-vermelhas na civilização ameri cana, isto é outro outro caso. caso. Para os judeus de nossa geração geração é extremamente difícil compreender a realidade da Europa Cen ju denr nrein ein,, isto é, a realidade da elimi tral e Oriental sendo jude nação de todo um elemento social que, uma vez, teve formi dável pêso.
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Em Israel de hoje, por assim dizer, há uma nova mudança nos judeus e na sua identidade. A sua consciência cultural é hebraica e, buscando o apoio histórico da Bíblia, do Talmude e da liturgia medieval, sustenta-se nos fantasmas do passado. O Mea Shaarim não produziu qualquer literatura, porque, para os verdadeiramente ortodoxos, qualquer escrito não reli gioso em hebreu é quase uma blasfêmia. Não importa como os jovens escritores modernos possam dar ênfase a essa quebra da tradição religiosa e à independência, que adquiriram. Êles têm de pesquisar o passado de modo a reviver uma língua que, como o latim, estava morta por mais de dois milênios e que sobreviveu na teologia, mas, agora, não conseguirá fàcilmente a secularização. A tradição tem sua lógica objetiva e está destinada a pesar muito sôbre a nova geração de escritores de Israel. Não posso aceitar, no meu entender, essa mutação hebraica da consciência judaica e absorvê-la em minha iden tidade, pois fui bastante bem formado pela tradição européia internacional, polonesa e russa, alemã e inglêsa e, acima de tudo, marxista. O hebraico pertence à minha infância e meni nice e a êle, que rejeitei, não poderia agora retomar. Marxista não arrependido, ateu, intemacionalista — como posso eu ser judeu? Que me aproxima daquela “comunidade negativa”? Paradoxalmente, inteirei-me, sem esperar, dos temores de um judeu ortodoxo e sionista. Não acredito que o anti-semitismo seja uma fôrça cansada. Temo que possamos estar vi vendo num falso paraíso no nosso próspero estado ocidental. O verdadeiro sentimento de libertação do anti-semitismo tal vez possa ser uma ilusão a mais, própria dos judeus, engen drada pela nossa “rica sociedade”. Trotski, perante o fenômeno nazista, descreveu-o como uma “coleção do refugo dos pensamentos sôbre política inter nacional”, que entrava na massa do “tesouro intelectual do nôvo messianismo germânico”. O nazismo misturou e recolheu tôdas as fôrças do barbarismo escondendo-as sôbre a fina superfície da sociedade “civilizada”. Numa memorável frase, viva e com pressentimento da câmara de gás, Trotski assim resumiu a essência do nazismo: “Tudo aquilo que a sociedade,
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se ela se desenvolvesse normalmente (isto é. na direção do socialismo) rejeitaria... como excremento da cultura, irrompe agora pela sua garganta: a civilização capitalista está vomi tando sua barbárie não digerida...” Não acredito que a so ciedade burguesa do Ocidente (como também a sociedade póscapitalista da Rússia ) fôsse capaz de digerir e livrar-se do sistema do qual Hitler representava aquela barbárie. Confarrae relembram, quando a era do racionalismo começou, os judeus, atribuindo-se a tolerância universal, disseram, uns pira os outros: “Não nos incomodemos mais com o Talmude e a Tcarâ — dancemos em volta da deusa da razão . Era a deusa da alta burguesia, a pctmnesse de uma sociedade cuja preo cupação com o “‘faturar’ (preocupação não apenas judaica mã® ibe permitia digerir o barbarismo. Esta é a sociedade «Ume, a cada momento de insegurança aguda, levanta com pres teza o racismo. o nacionalismo, a xenofobia, o ódio e o médo do estrangeiro. E quem è tão estrangeiro quanto o judeu? Nio imaginamos que. neste verão indiano da prosperi dade bcurgiiiesi de após-guerra, estejamos dançando novam t e em volta da densa da razão e que. agora, eía não muts faltará, mas. pelo contrário, nos concedera seus favores afe n u vez para sempre. Mesmo nessa mansa altamante Mssral e civilizada sociedade inglesa, vemos suásticas brotando acjtam e acolá, rabiscadas nas paredes dos blocos de aparíammta em zusaas “‘respeitáveis’’. Por experiência, sei que. ao ptwjcimrar um apartamento em Londres, em Hampstead diga■ük, vi© dizer-nos que os vizinhos fariam obje^ões ã presença «Se mnmii inquilino negro ou judeu. mas. certamente reiícíseiianm®s bem a eoc$ como uma exceção. Sim. sob a superfiriie flSsa esfcí. a barbárie, áspera ç cjtujl, $£xnprc pnonifca suur^nir. Teumfflts a impressão de que o anti-semitismo ê uma fânça jga&ta poffqme nesta situação de bem-estar, as pessoas estão s&fasfetas e c«o tentes e seus problemas sooais apare^mte^I!!]]e^mte■ sie lesobcem. Deixemos esta sociedade sofrer qualquer hmipmritin gjrawe, asma está destinada a sofrei; deixemos, de irôvo. qme Hn&|& mASes de desempregadas e veremos a nmesnma dksse rarçdia maâis humilde Mgar-se com o hutpempnjkimrmt, de «nuk Hüfer leOTutod seus seguidores, e correr, amatimada, imffllamada peita aatit-semitism©, Enquanto as nações-estado imiQjMiseireimii
sua supremacia, enquanto não houver uma sociedade inter nacional, enquanto as riquezas de cada país estiverem nas mãos de uma oligarquia capitalista nacional, teremos o chau vinismo, racismo e, como clímax, o anti-semitismo. Eis por que entendo que o papel do intelectual — judeu e não-judeu, igualmente — daqueles que estão conscientes da profundi dade da tragédia judaica e da ameaça de seu retômo é per manecer em eterno protesto: manter oposição à fôrça; com bater os tabus e as convenções, lutar por uma sociedade, na qual o nacionalismo e o racismo finalmente perderão seu poder sôbre a mente humana. Sei que não é uma saída fácil; pode ser penosa e cheia de enganos; e, para aquêles que aceitarem essa posição, não haverá um conjunto definido de preceitos. Mas, se não continuarmos protestando, seremos presos de um círculo pernicioso e destrutivo, um círculo suicida. Quando se olha para a atuação passada de intelectuais judeus do Ocidente, chega-se a bem tristes e desapontadoras conclusões. O que há de tão notável a respeito dêles é exata mente o seu extraordinário conformismo político, ideológico e social. Na guerra fria que, por mais de treze anos, dominou nossas vidas, os judeus foram muito proeminentes. Desta atuação eu excluiria, talvez, os que se ocuparam com estudos absolutamente científicos. Mas, quando nos mudamos para o setor das humanidades, vemos, entre as hostes de historia dores políticos, sociólogos, etc., grande número de judeus fu riosamente entretidos nesta guerra fria, em benefício desta sociedade e de sua barbárie ainda não digerida. Quando vemos as legiões de Pangloss proclamando que o “nosso pa drão de vida americano” ou que o “nosso padrão de vida inglês” é o melhor modo de vida possível, sentimo-nos, às vêzes, tentados a rezar para que alguns numerus clausus sejam impostos ao acesso dos intelectuais judeus à profissão de Pan gloss, na qual têm tanta voz ativa e estão em relativa minoria. Longe de mim reagir contra êles, assumindo o papel de Cassandra, pois ainda acredito que o “protestador eterno” (per mitindo-me usar a expressão do professor Daiches) verá seus ideais realizados e suas esperanças satisfeitas. A busca de uma identidade, pelo intelectual judeu a meu ver, somente se justificará se ela o ajudar na luta por um futuro melhor para tôda a humanidade.
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III A Revolução Russa e a Questão Judaica'
que aborde o tema desta conferência, A Revolução Russa e a Questão Judaica, deverá fazê-lo com cuidado, por se tratar de algo extremamente complexo e multilateral. Nada será mais fácil e mais prejudicial do que sim plificá-lo, experimentar e dividir culpas — culpar os judeus, a revolução ou os russos. Devemos ainda ser cautelosos ao pensar nesse problema em têrmos familiares de relações entre a Rússia revolucionária e outras nacionalidades da União So viética. Em certo sentido o “problema judaico” é único. Para v em quer
1 Texto de uma conferência pronunciada na Sociedade Judaica do Sindicato dos Estudantes da Escola de Economia de Londres, em 29-101964. (N. do T.)
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sentirmos tôda a sua complexidade, deveríamos voltar às origens. Poderíamos analisar, ràpidamente as estruturas da população judaica no começo da revolução, investigar o lugar que tinha o judeu na sociedade russa, seguir as mudanças e metamorfoses da própria revolução russa e apreciar aspectos de tôdas essas mudanças, sôbre o destino dos judeus na União Soviética. A principal questão que temos de enfrentar e res ponder cândidamente é esta: por que a revolução russa, no correr de quase meio século, não conseguiu resolver o pro blema judaico? Devo iniciar mostrando o forte contraste entre o lugar dos judeus nas sociedades ocidentais e o seu lugar na Europa oriental, e, especialmente, na Rússia. Também devo prevenir que considerar o problema dos judeus na Rússia, através do prisma da vida que levam na Europa ocidental é ter a imagem destorcida e enveredar por um caminho que não levará a lugar algum. Não se deve, nem por um momento, pensar que a vida de um judeu ou de uma comunidade judaica, na Europa ocidental e na Rússia, se compara com qualquer aspecto das comunidades judaicas na Inglaterra, na França ou mesmo nos Estados Unidos. Através do século XIX, nos países da Europa oci dental, os judeus pertenceram principalmente à classe média. Havia poucos judeus operários, não muitos artesãos e alguns pequenos comerciantes. A maior parte dos judeus era de mer cadores, que comerciavam em larga escala e em várias capitais do Ocidente. Alguns eram banqueiros e a Casa dos Rothschild tomou-se quase o símbolo da haute bourgeoisie judaica. Este caráter predominantemente burguês das comunidades judaicas da Europa ocidental permaneceu em gritante contraste com as comunidades judaicas do leste europeu. É certo que, tam bém no leste, tínhamos uma burguesia judaica, mercadores e comerciantes. Mas a grande maioria constituía-se de pobres trabalhadores, artesãos primitivos, sapateiros, alfaiates, carpin teiros e o que vulgarmente se chamava de metalúrgicos. Mas não caiamos no êrro e não pensemos em têrmos, digamos, dos metallos franceses ou dos metalúrgicos inglêses. Êsses meta lúrgicos, como os conheci, eram principalmente bombeiros, soldadores e serralheiros. Costumavam formar um tipo de
comunidade que denominavam de Sindicato dos Metalúrgicos. Era um orgulho colossal para todos aqueles pobres-diabos pertencerem a um sindicato com um nome tão pomposo, mas, nem por isso deixavam de viver na miséria. Imagine uma população de milhões de desamparados, judeus na extrema pobreza, e entre êles uma horda dos chamados Luftinenschen, que são pessoas sem qualquer raiz na estrutura das sociedades, sem nenhuma ocupação, sem nenhum ofício regular, vende dores ambulantes, compradores de papel e garrafas, pessoas que faziam a vida como casamenteiros — êles não faziam apresentações, mas casamentos, e discutiam a percentagem dos dotes que deveria ser sua recompensa. Na Europa ocidental, depois da Revolução francesa, os judeus gozavam de igualdade formal perante os olhos da justiça. (Em 1847, Lionel Rothschild, o primeiro parlamentar judeu, foi eleito para a Câmara dos Comuns). Essa igualdade pe rante a lei foi paralela à crescente assimilação da comunidade judaica, pois, mesmo aquêles grupos que conservaram sua reli gião e consciência judaica foram assimilados através da adoção da língua do país onde viviam e por se tomarem parecidos externamente com seus compatriotas. Na Europa oriental, grandes massas de judeus, milhões dêles, viviam em comuni dades compactas, separados de sua vizinhança não judia. Êsses guetos não eram formais; os judeus podiam sair e alguns iam realmente embora. Eles, entretanto, viviam em comunidades fechadas, vestiam roupas diferentes — completadas com as barbas, cachos no cabelo — falavam sua própria língua, desen volveram sua própria cultura, sua própria literatura. O conhe cimento que tinham da língua polonesa e do russo era sempre menor do que o rudimentar. Sua língua continuava o iídiche. Havia também, é clàro, a minoria de judeus educados que, pouco a pouco, foram assimilados e não mais se distinguiam por seus hábitos e costumes da chamada intelligentsia. Mas, a forma de vida da grande massa de judeus ortodoxos desenvolveu-se muito pouco no correr dos séculos. Ainda mantinham o mesmo tipo de comércio que praticavam nos séculos XVI e XVII. Seus tabus e ritos religiosos eram igualmente arcaicos e anacrônicos.
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Na Europa ocidental, juntamente com a assimilação veio a emancipação dos judeus. O mesmo não aconteceu na Europa Oriental. Na Rússia, em particular, o judeu tinha o status de um “cidadão de segunda ou terceira categoria”. Não se lhe permitia fixar-se na Rússia senão dentro dos chamados distritos judaicos; não podia possuir terras e se lhe proibiam certas ocupa ções. A sua situação era pouca coisa melhor que a dos servos da Rússia e da Polônia. Os servos pelo menos, não estavam sujeitos a perseguições, explosões de anti-semitismo e massa cres por atacado, espontâneos e freqüentemente encorajados pelas autoridades. É bem significativo o fato de que a palavra pogrom1 seja de origem russa, embora atualmente integre tôdas as línguas européias. Apenas cinco anos antes da revolução russa houve o famoso julgamento de Bayliss. em Kiev, que ca racterizou a posição dos judeus perante o Czar. Nesse julga mento — também chamado o julgamento do ritual da morte — um judeu. Bayliss, foi acusado de assassinar uma criança não-judia. a fim de usar o sangue para fazer os matzos na Pfáecft (Páscoa). Na turba estavam as Centúrias Negras, so ciedade de reacionários corrompidos e ferozes ou obscurantistas ortodoxos gregos, sustentada pelo czarismo. Temos, aqui. ex traordinário contraste entre a existência incerta do judeu na Rússia e a vida dos judeus no Ocidente. Você pode dizer que no Ocidente também houve uma erupção de anti-semitismo — o caso Dreyfus — mas êsse foi em nível de desenvolvimento política e social bem diferente. Não há dúvida, porém, de que o raso Dreyfus marcou o início do retrocesso na história dos judeus da Europa ocidental. Foi por volta do fim do século XIX que o progressivo movimento de emancipação sofreu tre inando revés e o anti-semitismo começou a aflorar, a crescer e, finalmente, a atingir as macabras dimensões da era nazista. O século que se seguiu à revolução francesa trouxe luz e pro gresso e ela permitiu a assimilação dos judeus pelas sociedades em que viviam. Mas, na Europa oriental, foi o século da opres são e do isolamento pua os judeus. * Massacre M^amado de gente indefesa. espec-Unieinte judeus.
Essa era a situação dos judeus quando, em fins de 1890 e princípio de 1900, o movimento da social-democracia começou a espalhar-se e a assumir proporções de massa. Hoje, freqüen temente, se diz que a atitude para com os judeus, como se observa na URSS, corresponde àquela originalmente concebida por Lênin e os bolcheviques. É conveniente, principalmente entre os judeus, culpar o bolchevismo e o comunismo por tôdas as desgraças que ali se abatiam sôbre seus correligionários. Mas, quando se volta às origens, quando se buscam documen tos, descobre-se que, até a revolução, os bolcheviques e os mencheviques, mesmo os socialistas-revolucionários — absolu tamente tôdas as correntes do socialismo russo — estavam concordes quanto a uma solução para o problema judaico. O bolchevique russo Lênin, o menchevique judeu Martov ou o judeu Trotski pensavam da mesma forma a respeito dêsse assunto. Colheram essas idéias sôbre os judeus nos marxistas ocidentais e, particularmente, em Marx e Engels. Num dos seus famosos ensaios sôbre o problema judaico1, escrito em 1840, Marx disse que a questão da emancipação dos judeus já não existia como um fim independente: todos os esforços deve riam ser feitos em benefício da emancipação da sociedade européia, especialmente da emancipação da sociedade ociden tal do capitalismo. Uma vez livres do pesado jugo da opressão capitalista, todos os membros da sociedade, inclusive os judeus, conseguiriam igualdade e liberdade. Nos primeiros escritos sôbre o assunto, havia nas entreli nhas certa hostilidade aos judeus, não por serem judeus, mas por constituírem proeminente e espetacular seção da burguesia da Europa Ocidental. Os Rothschilds simbolizavam o poder, a dominação financeira da burguesia judaica entre as classes médias francesas, inglêsas e alemãs. Por outro lado, eminentes líderes do socialismo tinham origem judaica, como Karl Marx e Ferdinand Lassalle. Mas, quase no fim do século XIX, como o anti-semitismo começasse novamente a crescer na sociedade ocidental, todo o movimento socialista ficou sèriamente preo cupado com o problema judaico. Foi então que August Babel, 1 A Questão Judaica.
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o grande líder da social-democracia alemã, escreveu o seu famoso trabalho sôbre o anti-semitismo, chamando-o de “socia lismo dos tolos”. Essa obra foi mais do que um brilhante para doxo ou um mordaz epigrama. O fato foi que o papel ímpar dos judeus entre os banqueiros e mercadores fêz aumentar a hostilidade contra êles, nas classes mais pobres da cidade oci dental. Babel e outros socialistas, entre os quais Kautski, ten taram explicar aos trabalhadores que êles deveriam dirigir sua luta não contra a burguesia judaica que, afinal de contas, era apenas uma pequena parte da classe capitalista, mas contra tôda a burguesia. Isso sim, era o verdadeiro socialismo; somente os tolos esperavam mudar o sistema social por virar-se contra alguns dos elementos — os judeus — da classe opressora. Numa retrospectiva, podemos perceber como Babel e seus camaradas viam longe, quando afirmaram que os capitalistas da Europa ocidental estavam prontos para sacrificar seus irmãos judeus como bode expiatório, preparados inclusive para incitar os operários, o lumpenproletariat e os pequenos comerciantes contra a burguesia judaica, a fim de salvar suas propriedades e a própria vida. Essa foi a maneira mais fácil de desviar dêles o ódio das massas oprimidas. Na Europa ocidental, quase não havia operários judeus e, conseqüentemente, não havia movimento trabalhista judeu. Os líderes socialistas juntaram-se então aos que acreditavam ser a assimilação a única resposta para o problema judaico. A êsse tempo, tanto Lênin como seus camaradas proclamavam-se, or gulhosamente, discípulos da social-democracia alemã e, dessa forma, também acreditavam que na Rússia se poderia resolver o problema pela assimilação, através de total absorção das comunidades judaicas pela grande sociedade socialista. Viram bem cedo, entretanto, que o problema no Oriente era muito mais duro do que no Ocidente e isto porque mendigos, operá rios e a baixa classe média viviam em áreas isoladas, em com pactos guetos, cultivando e perpetuando seu modo próprio de vida. Apesar disso, Lênin e Martov, bolcheviques e mencheviques, estavam absolutamente resolvidos a introduzir os operá rios judeus na luta de seus camaradas russos contra o czarismo e contra a velha ordem que reinava na Europa oriental. O mesmo ponto de vista, era sustentado pela grande revolucioná
ria de origem judaica, Rosa Luxemburg, que defendia ainda com mais ardor do que Lênin e Martov a assimilação dos judeus. A êsse tempo, o sionismo começou a desenvolver-se como um movimento político, buscando apoio principalmente nas comunidades judaicas da Europa ocidental. É preciso saber que a grande maioria dos judeus da Europa oriental, até irrom per a Segunda Guerra Mundial, era contra o sionismo. Judeus e não-judeus do Ocidente raramente atentam para êsse fato. Os sionistas nessa parte do mundo constituíam importante mi noria, mas conseguiram atrair a maioria de seus correligionários. Os mais fanáticos inimigos do sionismo eram justamente os operários, os que falavam iídiche, e se consideravam judeus. Eram adversários radicais da idéia de emigrar da Europa oriental para a Palestina. Na Polônia, em 1939, a população judaica elegeu, pela primeira vez, os líderes de suas comuni dades: os kehilalis. Os comunistas, que então exerciam muita influência, consideravam os kehilahs como instituições clericais e boicotaram as eleições. O Bund (Partido Trabalhista Judeu), ferozmente anti-sionista, tomou parte na eleição e recebeu a maioria dos votos. (Somente um setor relativamente pequeno do movimento socialista, o Poaley Zion, tentou conciliar o so cialismo com o sionismo). A opinião judaica no Ocidente fre qüentemente igualava o anti-sionismo com o anti-semitismo. De acôrdo com essa opinião, os judeus da Europa oriental, em sua maior parte, eram anti-semitas. Mas, essa conclusão repre senta, evidentemente, um absurdo. A oposição dos judeus ao sionismo foi trágica — falhou e terminou na perdição dos judeus. Na idéia da emigração, de um êxodo dos países onde tinham suas casas e onde seus ances trais viveram durante séculos, os anti-sionistas viam a abdicação de seus direitos, uma submissão à pressão hostil, uma rendição ao anti-semitismo. Para êles, o anti-semitismo parecia triunfar no sionismo, que reconhecia a legitimidade e a validade do velho brado: “Fora com os judeus!” Os sionistas concordavam, apenas com a idéia do “ir para fora”. Era quase unânime, entre os judeus da Europa oriental, a sensação de que apenas com a derrubada do czar, pela revolu ção, diminuiria a discriminação e a opressão a que estavam
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sujeitos; e os judeus desempenharam um papel muito impor tante no movimento revolucionário. Mas, quando a revolução chegou realmente, a violenta transformação da sociedade teve, também, doloroso e desintegrador impacto sôbre considerável parte da população judaica. Uma vez que tantos judeus, na Rússia, eram humildes comer ciantes, artesãos, especuladores, Luftmenschen, a revolução das necessidades procurou refazer a inteira estrutura de suas vidas. O que os socialistas queriam era conseguir a chamada produti vidade dos judeus, sua conversão em operários de fábricas, em fazendeiros, em moderna fôrça de trabalho. O pequeno comer ciante se achava à beira do abismo: a nova estrutura não os favorecia. Isso os libertava, na verdade, do temor dos pogroms e das perseguições, mas ameaçava seu tradicional modo de vida como homem simples e como comerciante primitivo. Na década de 1920, os bolcheviques começaram a encorajar os judeus a se dedicarem à terra, em colônias judaicas na Criméia, em Kherson e no Birobdjan. Visitei aquelas colônias na época e testemunhei o extraordinário esforço que alguns ‘ goijin■idea listas e alguns judeus entusiastas faziam para transformar, pelo menos parte da população, em bons fazendeiros. Fizeram-se consideráveis investimentos e tremendo empenho nessa tarefa de mudar a mentalidade dos Luftmenschen. Esperava-se que êles se libertassem da arte e dos truques do pequeno comércio e, vagarosamente, fôssem aprendendo a arte de arar e lavrar o solo. Mas, todos êsses esforços de transformar comerciantes em fazendeiros falharam. Os judeus simplesmente não estavam preparados para esta quebra de rotina, para tão radical e com pleta mudança no seu modo de vida. Mesmo hoje, em Israel, apenas a minoria vive da terra, nos Kibbutzim; a grande maioria dos judeus ainda se dirige para as cidades e prefere formar uma população urbana a trabalhar como camponeses1. Não é de admirar. Durante séculos, os judeus foram habitantes de cida des e a tradição urbana tomou-se uma segunda natureza para êles. Apenas os sionistas mais idealistas, aquêles que desejavam í 1) Em Israel, em 1965, mais de dois milhões de judeus viviam nas cidades e apenas 267.000 no campo.
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estabelecer-se no solo sagrado de Sion, emigraram da Rússia e foram para o arado. Aqueles que ficaram na União Soviética não tinham mesmo vocação para fazendeiros. Tomaram-se operários da indústria moderna. Foi a solução. Muitos, muitos dêles viraram operários de grandes fábricas, mas, mesmo assim, ainda eram minoria. A grande maioria, com sua tradição urba na e um nível geralmente mais alto de educação do que a população russa, passou a trabalhar como funcionários espe cializados e entrou en masse nas fileiras da burocracia pósrevolucionária, no partido, nas repartições públicas e nas insti tuições. Êles ainda representaram importante papel no mundo acadêmico. Mesmo hoje, a despeito dos gritos de alerta, às vêzes justificados, contra a discriminação anti-semita, existem bem mais de vinte e cinco mil judeus como professores acadê micos na URSS. Este processo de educação mais elevada, por atacado, começou, é claro, apenas depois de 1917, quando o numerus clausus foi abolido e as portas das Universidades russas abriram-se de par-em-par aos estudantes judeus. A despeito de tudo isso, mesmo nos períodos mais heróicos da revolução, havia, no fundo, uma corrente oculta, velha e persis tente, de anti-semitismo entre a população russa. Onde pode ríamos buscar as fontes dêsse amaldiçoado veneno? Primeira mente, no atraso, na ignorância e no analfabetismo das massas dos mujiques russos, assim como em algumas partes dos operá rios das cidades. Havia, também, influência perniciosa da Igreja Ortodoxa Grega, a mais obscurantista das igrejas da Europa. Havia o mito profundamente arraigado de serem os judeus os crucificadores de Cristo; mito êste que penetrou na mente de tôda a civilização cristã de forma muito mais profun da do que se poderia imaginar há cinqüenta anos. (No limiar do século XX, o século da ciência, havia esperança de que, nes sa era modema, o homem se emancipasse dos preconceitos religiosos e das maléficas influências dos mitos e lendas ou, pelo menos, os minimizasse!) Como em outros lugares, também na Rússia, o preconceito e o ódio, que durante séculos e mesmo milênios se inculcaram na mente dos povos, não podiam ser extirpados num período de alguns anos ou mesmo décadas. Isto não era tudo. Outro ingrediente alimentou o anti-semitismo nas massas. O pobre camponês russo olhava com desconfiança
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para o vendeiro e os donos de estalagens, cujos negócios fre qüentemente eram fraudulentos. Na profunda miséria em que viviam, talvez tivessem tentado minorar sua pobreza às expensas dos mujiques, que eram tão desgraçados quanto êles. Aí é que se deve ver a raiz do antagonismo do pobre camponês ou do operário contra o seu vizinho judeu. Em outro nível, os intelectuais judeus ou os funcionários graduados, que ocupavam altas posições no partido, no Es tado, no Exército e nas instituições civis, no sistema educa cional, e aquêles que se destacavam na imprensa, no cinema, no teatro atraíam certa inveja e jalousie du métier. Na corres pondência de Trotski com Lênin, durante a guerra civil, havia vivida descrição dessa atmosfera. Trotski, quando chefe do Exército Vermelho e Comissário da Defesa, escreveu uma men sagem confidencial do front da guerra, ordenando que todos os judeus, que estavam nos serviços administrativos, seguros, fôssem tirados de seus postos e mandados para a guerra. Co mentam os soldados, escreveu o judeu Trotski, que há mais judeus nos lugares seguros e remotos do que nas frentes de batalha. Mesmo durante a Guerra Civil, quando a Guarda Vermelha defendia os judeus dos massacres da Guarda Branca, havia essa tensão, fatal, mas humana e compreensível, na ati tude do homem russo contra o mais ou menos “privilegiado” judeu. Os bolcheviques, na época de Lênin, desenvolveram inten sa propaganda anti-nacionalista, anti-religiosa e anticlerical. Conduziram-na com plena imparcialidade, condenando, denun ciando e tentando erradicar qualquer tipo de nacionalismo e proclamando a igualdade de pequenas nações e de minorias nacionais. Permitia-se aos judeus e mesmo se os encorajava a publicar jornais e literatura em iídiche e a desenvolver o seu próprio teatro — e o teatro iídiche foi um dos melhores que tive oportunidade de ver. Já se esqueceu, provàvelmente, que o primeiro grande teatro hebreu da história, o Habima, foi fundado na Rússia sob a iniciativa do Comissário da Edu cação, A. V. Lunacharsky. (E, por falar nisso, o Habima muito cedo deixou a Rússia pela Palestina). Havia uma in congruência aí: os bolcheviques estavam, a princípio, contra a ressuscitação do hebreu, então uma língua morta; e, quando
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o Habima levou a cena o Dybbuk, peça mística de Ansky, ou viram-se protestos em tôda a Rússia Vermelha contra a repre sentação de lendas religiosas khassidistas no palco. Mas, o poder da criação artística foi insubmisso naquela breve e tor mentosa idade de ouro da arte de após-revolução. Os bolcheviques tiveram, evidentemente, uma visão muito otimista das possibilidades de solução do problema judaico. Êles não eram os únicos a subestimar a profundidade do senti mento anti-semita no folclore cristão. Pensaram que sua revolução seria um levante com proporções continentais. Ima ginavam que tôdas as fôrças progressistas da Alemanha e da França os ajudariam a prosseguir; que o mal do anti-semitismo desapareceria numa Europa socialista, sadia, racionalmente or ganizada. Isto não aconteceu. A revolução russa permaneceu isolada; a alemã foi derrotada; a Europa não a socorreu. A Rússia ficou sozinha remoendo o atraso que herdou do czarismo, dos séculos de Ortodoxia Grega, de analfabetismo, de pobreza e de barbarismo. Nessas condições, todos os antago nismos da sociedade russa acentuavam-se, inclusive o antago nismo entre os judeus e os não-judeus. Ninguém pode ima ginar que o problema judaico existia por assim dizer, no vácuo, que fôsse independente do que havia no resto da sociedade soviética. Êle se sedimentava na estrutura daquela sociedade, firmemente ligado ao seu desenvolvimento e evolução, ao cres cimento e ao progresso, à regressão e ao nôvo progresso. Precisamente porque o problema que analisamos forma parte orgânica do quadro soviético total, não existem fórmu las para apreciar seus vários aspectos numa ou mesmo em várias conferências. Farei agora uma pausa e tentarei mostrar como o desenvolvimento do sistema de partido único afetou o destino dos judeus. O partido monolítico era inadmissível na época de Lênin. Mas o sistema de partido único já lançava, agoureiramente, sua sombra para o futuro. Até 1924, e mesmo nos dois ou três anos seguintes, havia um franco e aberto debate entre os bolcheviques e a supressão dos outros partidos se processou de modo gradual. Para exemplificar: a esquerda Poaley Zion, o Partido Sionista Socialista, existiu legalmente na Rússia até 1925 ou 1926. Embora os bolcheviques se opusessem ao sio
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nismo, a completa supressão dessa corrente de opinião não estava no seu seu programa. programa. J á discuti em me meus us livros sôbre Stalin Stalin e Trotski, os processos que resultaram no desaparecimento gra dual dual de todos todos os partidos políticos. políticos. Só posso posso acresce acr escenta ntarr que aquêle processo levou automàticamente e logicamente ao es tabelecimento do sistema de um simples partido também entre os judeus. Todos os partidos judaicos judaicos,, o Bund, o PoaJey Zion e outros outros grupamentos grupamentos sionistas foram foram suprimidos. De certo, certo, e com grande dose de justificativa, o sionismo devia ser con siderado uma ideologia estranha ou, pelo menos, desfavorável à revolução: êle colocava tôdas as suas esperanças não no socialismo ou na solidariedade internacional, mas na formação de um estado judaico separado; não desejava a construção de um futuro melhor para todos os povos da URSS, mas, sim o êxodo êxodo de maneira organizada organizada da URSS URSS.. Numa Numa palavra, palavra, o sionismo virou as costas à revolução ou melhor, procurou ignorá-la. norá-la. Não havia uma uma razão objet objetiva, iva, portanto, para se se considerar se o sionismo era doutrina perigosa ou subversiva. O argumento de que o “sionismo ameaçava a revolução russa” era falso e ridículo em vista da completa impotência de todos os agrupamen agrupamentos tos judaicos judaicos na Rússia. O fato fato é que, no no regime regime totalitário, não havia espaço para qualquer heterodoxia, para qualquer qualquer pluralidade pluralidade de opiniõ opiniões es ou ou correntes políti políticas. cas. (C o mo diz um velho ditado judaico: Wie es Christelt sich, asoy yident sich”, que significa: “como as coisas acontecem entre os cristãos, cristãos, assim assim devem devem acontece acont ecerr entre os judeus”) judeus” ). Se apenas um partido se permitia aos não-judeus, apenas uma opinião monolítica monolítica se podia tolerar tolerar entre os judeus. Por consciênci consciência, a, os mais fanáticos defensores da supressão dos partidos judaicos não eram, eram, na verdade, russo russos. s. Eram Eram os próprios judeus, judeus, judeus comunistas, os Yevsektia (seção Judaica do Partido Comunis ta ). Encontrava-me Encontrava-me lá quan quando do se debateu ardorosamen ardorosamente te êsse êsse problema e presenciei, repetidas vêzes, como os bolcheviques russos entre outros Mikhail Kalinin, Presidente da URSS, ar gumentavam com seus camaradas judeus, a fim de acalmá-los na sua feroz hostilidade ao sionismo, aos remanescentes do Bund e mesmo esmo ao clericalismo clericalismo judaico. judaico. Mas, os comunistas comunistas jud judeus eus sent sentira iram m que que tinha tinham m de ser mais ais ortod rtodox oxos os,, mais ais ‘kos her he r e mais determinados determinados do do que seus seus cole colega gass russos. russos. Somos
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freqüentemente mais intolerantes com aquêles que estão perto de nós do que com aquêles aquêles que estão longe. Devemos lem brar, do mesmo modo, que foi o Georgiano Djugashivili”1 e seus conterrâneos que mostraram maior zêlo e paixão na per seguição do nacionalismo local, em Tiflis. Com o sistema de partido único, veio o desenvolvimento e a cri cristal stalizaç ização ão do do stalinismo. Os anos anos de isolamento, de esperanças frustradas de auxílio do exterior, a derrota do co munismo na Europa, tudo isso preparou o terreno no qual a doutrina doutrina de Stal Stalin in deveria deitar deit ar raízes. Ao isolamento da Rússia os bolcheviques responderam com uma ideologia de isolacionism isolacionismo. o. Fizera Fizeram m da necessidade uma uma virtude. virtude. E, uma uma vez desligados do mundo, êles o boicotaram. Sabemos agora que o Partido Bolchevique teve de se desfazer de umas tantas tradições internacionalistas na estrada do socialismo naque naquele le país em que Stalin se projetava. projetava. Na Rússia, assim como no Ocidente, o anti-semitismo, invariàvelmente, rastejava para a superfície nas épocas de reação, ali mentando-se e beneficiando-se das emoções nacionalistas e dos ódios. ódios. Stalin, Stal in, como nunc nuncaa foi exigent exigentee na escolha escolha dos dos me meios, ios, também nunca temeu explorar tendências anti-semitas em suas lutas lutas contra a oposição. oposição. A princípio, princípio, sub-repticiamente, com insinuações veladas, os agitadores stalinistas revolveram os preconceitos anti-semitas, trouxeram-nos à tona, atingindo o seu primeiro clímax no período do Grande Expurgo. As meiasmeiastintas anti-semitas na propaganda assumiram tal violência que Trotski, em geral reticente sôbre o assunto, mal pôde conter-se e escreveu uma carta carta a Bukharin, em março de 1926: . .será .será verdade, será possível que em “nosso partido”, em Moscou, nas células operárias, se leve adiante, impunemente, a agitação anti-semita?” À mesma pergunta, cheia chei a de de indignação, indignação, feita no Bureau Político, quinze dias mais tarde, nenhuma resposta se deu. deu. Houve, Houve, sim, sim, algum mal-es mal-estar tar e uns “dar de ombros”. É bem verdade que, entre os líderes da Oposição, os judeus se sobressaíam bastante bast ante.. E os fiéis serv servos os de Stalin Stalin pintavampintavamnos como “cosmopolitas sem raízes”, como pessoas que, não 1 Verdadeiro sobrenom sobrenomee de Stalin Stalin (N ( N . do T . )
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sendo naturais da Mãe Rússia, certamente não se importavam com o socialismo no país, país, no país país onde viviam. A hipoc hipocris risia ia era tanta que a palavra judeu nem mesmo se murmurava, em bora não deixasse de ter enderêço certo as denúncias contra os “cosmopolitas sem raízes”. Por outro lado, havia, também, grande número de judeus entre os burocratas stalinistas. stalinistas. À frente frente da da coletivização for for çada na Ucrânia, que se levava a efeito da maneira mais sangüinária sangüinária e cruel, estava um judeu, Kaganovich. E eis aí o trágico impasse impasse em em que os judeus se encontraram. Na cidade eram perseguidos como “cosmopolitas sem raízes”, contrários ao progresso do socialismo na Rússia; nos campos eram odia dos pelos camponeses que viam no judeu bolchevique Kagano vich seu seu principa principall carrasco. A essas essas contradições contradições somaram-se somaram-se outras outras não me menos nos espinhosas. espinhosas. O pequeno comercian comer ciante, te, o es peculador, o Luftmensch judeu ainda flutuava sôbre as vagas das tremendas revoltas; e ainda provocava a desconfiança e a mais profunda profunda aversão por parte parte da população população russa. russa. Do outro lado, havia judeus nas Universidades, mestres, professo res, grandes doutores que educavam en masse uma nova ge ração da classe mais abastada e muito contribuíam para o desenvolvün desenvolvünento ento e modernização modernização da Rússia. Rússia. Tudo isto ilustra ilustra como as contradições inerentes à sociedade soviética, então em mudança, tendiam a afetar de modo muito mais duro e cruel os judeus do que qualquer outro grupo racial ou nacional da URSS. Estourou, então, a Segunda Guerra Mundial. Mundial. Sem dúvid dúvida, a, durante o período de breve reconciliação e do pacto entre Stalin e Hitler, os judeus da Rússia viram-se entre fogos cruzad cruzados. os. Sua posição se tomou, no mínimo, basta bastante nte desa gradável. gradável. Foi simbolizada simbolizada pela pela renúncia renúncia do Ministro do Ex terior, Maxim Litvinov e sua substituição por um grão-msso, Vyacheslav Molotov Molotov.. Como Como podia um judeu, como Litvinov, assm assmar um pacto com com Hi Hider der e Ribbentrop? Ribbentr op? Precisava-se, para êsse trabalh trabalho, o, de de um ariano “puro”. Algo como contami contaminaç nação ão racial transbor transbordad dadaa da Alemanha Alemanha para a Rússia. Rússia. Êsses foram os dias em que Stalin e Molotov enviaram a Hider mensagem de amizade amizade germano-russa germano-russa “cimentada pelo pelo sangue”. sangue”. Stalin Stalin proclamou, então, que estava libertando seus “irmãos de san
gue” — os ucranianos — da opressão polonesa. Terminologia racista dêsse tipo aumentou o “enriquecido” idioma stalinista. Êste, bem cedo, foi substituído por outro intensamente nacio nalista — a língua chauvinista da Grande Rússia, quando chegou o 21 de junho de 1941 e o campeão do anti-semitismo novamente se tornou implacável inimigo da União Soviética. Depois de tôdas as tormentas pelas quais passou a Rússia nos anos imediatamente anteriores à guerra, depois das brutalidades da coletivização forçada, depois do drama do Grande Expurgo, da deportação em massa para os campos de concen tração, depois de tudo isto as tensões na União Soviética eram tão agudas e perigosas que, no comêço da guerra, a estrutura inteira — moral, econômica, política — parecia à beira do colapso. Na Ucrânia, a população, a princípio, recebeu Hitler e seu exército de ocupação com alívio e mesmo com alegria. Esta sensação durou até o momento em que os nazistas mos traram aos ucranianos do que eram realmente capazes. Muito, muito cedo mesmo, os ucranianos chegaram à amarga conclu são de que o pior dos Stalins era ainda preferível a Hitler. A invasão da Ucrânia e da Rússia ocidental trouxe, com ela, no entanto, nova e poderosa onda de anti-semitismo. O velho preconceito, sempre aceso, algumas vêzes arrefecido, mas nun ca extinto, irrompeu. E os nazistas transformaram-no em ter ríveis chamas. Stalin e seu govêmo, por sua vez, temiam que os ucranianos e os russos considerassem como em defesa dos judeus uma guerra contra os nazistas. As vozes estridentes da propaganda nazista, o rádio nazista, folhetos e panfletos nazistas proclamavam, insistentemente, à população da União Soviética: “Esta guerra é uma intriga dos judeus! Vocês estão defendendo interêsses judeus nesta guerra!” Êste per verso argumento muita vez pareceu plausível a grande número de ucranianos e russos. Stalin estava ansioso para anular essa propaganda e acabou por conseguir com a sua própria e furtiva maneira de agir. Em vez de atacar abertamente e mostrar a sórdida demagogia, ardilosamente tentava eclipsar a existên cia daquele motivo. Observa-se, então, curioso fenômeno: durante a Segunda Guerra Mundial, a imprensa soviética ja mais comentou o destino dos judeus sob o jugo nazista, nunca mencionou Auschwitz e Majdanek. Apenas raramente, de for
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ma rápida e casual, chegaram ao povo da beligerante URSS notícias fragmentadas sôbre a exterminação dos judeus. Pela natureza desconfiada e desdenhosa de seu povo, Stalin incli nava-se menos do que nunca a abordar essa questão projetanto o aspecto anti-semita do nazismo. Durante meses de derrota, sua propaganda, desajeitadamente manipulada, soava falso. A confusão resultante teve para os judeus, conseqüên cias trágicas que se poderia algumas vêzes evitar. Para dar um exemplo: Taganrog, cidade industrial em expansão, na área do Mar de Asov, tinha grande percentual de judeus em sua população. Quando, em 1942, o govèmo soviético concla mou os judeus de Taganrog a abandonar a cidade antes da chegada do exército nazista, êles se recusaram a fazê-lo: não acreditavam que a nação alemã, a terra de Goethe e de Beethoven, a nação de poetas e pensadores, a nação de. . . Marx e Engels fôsse culpada de tais barbaridades contra os judeus como as autoridades soviéticas somente agora lhes diziam. Os judeus não acreditaram na propaganda de Stalin mesmo quan do era verdadeira; e pereceram todos sob a ocupação alemã. Sobreviveram, apenas, os que fugiram. A despeito de todos os crimes de Stalin, devemos lembrar que, sob suas ordens, dois milhões e meio de judeus receberam auxílio a fim de que fugissem para o interior do país, esca pando dessa forma dos territórios russos invadidos, dos campos de concentração e das câmaras de gás. Eis um fato que tôda a imprensa nacionalista judaica e sionista freqüentemente pro cura esquecer. Aquêles judeus se encontraram numa situação bem estranha: evacuados às pressas para o Kasaquistão, para o Usbequistão, para as Repúblicas da Ásia Central, atônitos e desolados, atirados em ambientes desconhecidos, ficavam, de nôvo, absolutamente deslocados. Tinham de refazer suas vi das numa tremenda pobreza, falta de comida, enfim entre uma verdadeira exaustão e fome. Dominaram o mercado negro, tomaram-se novamente Luftmenschen. (Êsse triste relato me fizeram amigos poloneses deportados para aquelas regiões da Rússia). Seria injusto culpar os refugiados judeus. Êles não eram nem fazendeiros nem camponeses para que pudessem tirar alguma coisa da terra mesmo nas piores condições. Tam bém não eram, na sua maioria, operários capazes. A maioria
dêles era velha demais para alistar-se no exército. Ainda ti nham em si algo da mentalidade de comerciantes, agora au mentada pela profunda sensação de insegurança. Acumulavase um pouco de chá e de açúcar, algumas sacas de trigo e de batatas e se vendia pelo melhor preço que se podia en contrar. Todos em volta, a totalidade dos trabalhadores russos, passavam miséria. E isso deu nôvo ímpeto à onda anti-semita. Êsses dois e meio ou três milhões de judeus, a maioria maciça das comunidades judaicas da Rússia estava, entretanto, a salvo do massacre nazista. E, como resultado da guerra, os nervos do povo afloravam, novamente, à superfície da pele. Ao caos, cansaço e exaustão, juntou-se em 1946, outro desastre: um fracasso nas colheitas como a Rússia não via há mais de meio século. A fome era geral, assim como foi geral o desalento, quando o povo co meçou a contar seus mortos: havia perdido vinte milhões de homens na luta! A consciência dessa tremenda perda veio, a princípio, vagarosamente. Logo, porém, ela chocou a nação de forma irresistível: não se viam homens nos campos e nas fazendas russas; apenas mulheres, velhos e crianças cultivavam a terra e produziam aquelas magras colheitas que mal alimen tavam a nação. Levantaram-se tôdas as restrições ao emprêgo de menores. Trabalho e mais trabalho, eis a ordem do dia. Velhos e novos antagonismos tomaram-se evidentes e do lorosos. E, de nôvo, começou uma luta quase subterrânea entre as duas grandes correntes do pensamento msso e da ideologia da sociedade soviética: a luta entre o nacionalismo e o intemacionalismo. Se não se mantém constantemente na lembrança o fato de que essa luta constitui um fenômeno básico na sociedade soviética, perde-se a chance de compre ender a história do período stalinista, dos acontecimentos que a êle se seguiram e do lugar que o problema judaico ocupa na vida soviética. Veremos nacionalistas e anti-semitas entre os camponeses, operários, burocratas e a classe mais abastada. Veremos intemacionalistas e, por conseguinte, inimigos do anti-semitismo naquelas mesmas camadas sociais.
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Açora, dc passagem, apreciaremos um ato da política externa de Stalin que parece contradizer não apenas sua ati tude para com os judeus, mas, ainda, tôda a política bolche vique a respeito do sionismo. Em 194S. quando Israel se transformava em Estado, pre senciamos uma situação curiosa na qual russos e americanos — os dois superantagonistas — se deram as mãos. Juntos, conseguiram desalojar a Inglaterra do Oriente Médio; e, jun tos agiram como parteiras do nascimento de Israel. Quaisquer que fòssem os cálculos de Stalin, é a êle que, paradoxalmente, Israel deve a sua existência como Estado in dependente. E foi da Tchecoslováquia stalinista, dos arsenais tchecos, que saiu o armamento para o Haganah. Com êsses argumentos “contaminados”, os judeus, na Palestina, derrota ram os ingleses e árabes. A assistência e a efetiva ajuda ma terial. que Stalin dava aos judeus, parecia aos estadistas oci dentais algo sinistro, provocava ressentimento e uma conside rável má-vontade para com èles. Veio. então, a guerra fria. Israel estava abalada nos seus alicerces, rodeada pela hostilidade do mundo árabe, atônita perante o seu futuro, dependendo da ajuda econômica dos ju deus americanos, aliada de fato. ainda que não explicitamente de palavras, dos Estados Unidos. Isto não podia deixar de provocar a hostilidade da Rússia. Quando Golda Meir, o pri meiro embaixador do recém-criado Estado, chegou a Moscou, os judeus russos saldaram-na com júbilo e demonstraram cla ramente sua solidariedade a Israel. Stalin, que certamente presenciou de sua janela do Kremlin essa cena incomum, julgou que os judeus eram instáveis, que Israel lhe pagara com a ingratidão (o que de certo modo era verdade), que os judeus da l ruão Soviética não eram dignos de confiança. Conta\~a com a possibilidade de um conflito com os Estados Unidos, ou mesmo de uma guerra entre a Rússia e o Ocidente, e assim come<Ç©u a perseguir os judeus, denunciando-os como um “pov© sem pátria", sem raizes, e ainda como “cosmopolitas". Cada judeu, murmurava-se, tem um parente 110 Ocidente e quase sempre na America, Como acreditar que fôsse 11111 verdadeiro patriota russo? Quem poderia dizer, se em qualquer emergèu-
cia, a sua lealdade seria para com a União Soviética? Êste era, sem sombra de dúvida, o ponto de vista stalinista. Deve-se admitir, analisando-se fria e objetivamente a si tuação global como se apresentava na atmosfera da guerra fria, que a essa maneira de raciocinar, um tanto estranha para mim, não faltava certa lógica. Os judeus da Rússia tinham um pencliant, por assim dizer, pela América e por seus parentes de lá. Se imaginarmos, por exemplo, o exército americano marchando Rússia a dentro, como fêz o exército germânico, êle, provàvelmente, encontraria muita simpatia e até alguns colaboradores entre os judeus locais. Não há necessidade de negá-lo. O que Stalin, na sua crueza, nunca se perguntou era o mais fundamental da questão: como é que em várias décadas depois da revolução, ainda havia pessoas, na Rússia, de cuja lealdade ao regime soviético se pudesse duvidar? Se fôsse verdade que não merecessem confiança, então, em vez dos judeus, não seria o govèmo soviético o culpado? Mesmo se Stalin tivesse feito essa pergunta a si mesmo, poderia êle jamais admitir que o êrro estava no seu govèmo, no desvirtuamento da revolução? Isso, entretanto, representa intrincado nó de responsabili dades, desconfianças e mêdo. Nas mãos de Stalin, qualquer iniciativa política atingia as raias extremas do absurdo, do brutal, da impetuosidade. E, dêsse modo, o mundo inteiro assistiu um sórdido espetáculo, quando Stalin representou a chamada “conspiração dos médicos”. Anunciou-se, em 3 de janeiro de 1953, a prisão de nove professores de Medicina, contratados como médicos pessoais das altas personalidades do Kremlin. Acusavam-nos de envenenar alguns de seus ilustres pacientes; de planejar mais assassinatos, de atentar contra a vida de marechais e generais soviéticos de modo a enfraquecer as defesas do país; de agir de acôrdo e ao mesmo tempo no interêsse e em benefício dos serviços secretos norte-americanos e inglêses, e da organização internacional judaica, a Joint. Havia pontos obscuros sôbre iminentes revelações dos fins e das ramificações da conspiração e de outras iniquidades dos conspiradores. A campanha desencadeada contra os judeus, de acôrdo com algumas versões, tinha como fim a expulsão de todos os judeus de suas moradias e o seu reagrupamento
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compulsório em qualquer lugar no Extremo Oriente ou em Birobdjan. Assim como vários outros sinistros e malévolos planos, urdidos por Stalin no último ano de sua vida, êste também fracassou por ocasião de sua morte. O processo de desestalinização começou. O primeiro ato do nôvo govêmo de Georgi Malenkov, que era tanto Primeiro-Secretário do Partido e Pri meiro-Ministro, foi declarar que a chamada “conspiração dos médicos” era nula e de nenhum efeito. Com a morte de Stalin, a União Soviética entrou em nova fase. E, mais uma vez a luta constante entre o nacionalismo e o intemacionalismo claramente se manifestou. À morte de Stalin seguiu-se uma reação contra o seu nacionalismo chau vinista e contra a sua linha anti-semita, havendo um ressur gimento do intemacionalismo. Mas não foi a vitória final nem decisiva do intemacionalismo, que poderia ter derrotado todo o nacionalismo de uma vez para sempre. Muito longe disso. Houve na verdade, durante anos, uma espécie de titubeante equilíbrio entre as duas correntes; e a balança, pendendo ora para um lado, ora para outro, produzindo aquelas incongruên cias e ziguezagues, que testemunhamos na conduta da União Soviética. Mesmo o interregno com Kruschev se caracteri zou pela ambigüidade no tratamento do problema judaico. O anti-semitismo dos últimos anos da era stalinista acabou. Man teve-se a igualdade dos judeus. Mas ainda há, de acôrdo com todos os dados, forte sentimento anti-semita. O tratamento verdadeiramente franco do problema judaico ainda não está à vista. Não devemos esperar por isso antes que outros pro blemas do rico, trágico, inspirador e repulsivo passado e pre sente da Rússia se submetam a um exame livre e sincero pelos dirigentes e cidadãos soviéticos e comunistas em geral.
IV
Remanescentes de uma Raça' “O General Sir Frederick Morgan, chefe das operações do UNRRA na Alemanha e exDelegadoChefe do Estado Maior do Gen. Eisenhower, disse em Frankfurt, que presenciara um êxodo de judeus da Polônia: todos estavam bem vestidos, bem alimentados, saudáveis e tinham “os bolsos recheados de dinheiro”. Todos, continuou, contaram a mesma monótona história de ameaças de massacres e atrocidades na Polônia como a razão de sua fuga. Êlé não, sabia quem estava financiando o movimento e recheando os bolsos dos ju deu s... Acreditava que “estava se constituindo uma organização mundial de judeus” e que êstes tinham “planos concretos para um segundo êxoto” — desta vez da Europa”. The Times, 3 de janeiro de 1946.
do Gen. Sir Frederick Morgan converte ram-se no foco de luz sôbre a situação do problema judaico na Europa de hoje. É digno de pena que tanto suas decla rações como as indignadas respostas que recebeu se fizeram em linguagem tão melodramática e sensacional. O Gen. Mor gan teve certamente alguma razão para falar em planos orga nizados para um êxodo judeu. A sua existência evidenciava-se em Berlim, na forma como milhares de judeus chegavam da Europa Oriental. Se êle se restringisse a anunciar o fato e a formular um enfático e urgente aviso sôbre os problemas .A .S d e c la r a ç õ e s
1 The Economist, de 12 de janeiro de 1946.
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que um êxodo criaria aos Governos Militares na Alemanha e para os próprios judeus ninguém objetaria suas declarações. Pode ser que aquelas palavras tivessem a intenção de levar alguma advertência — hipótese esta que seus mais violentos críticos não admitem de modo algum. Mas apesar disso, deve-se convir que a forma do aviso foi a mais desajeitada. Ele sugeria a idéia de que os judeus, com seus bolsos rechea dos de dinheiro, estavam repetindo a peça que uma vez pre garam aos egípcios no seu primeiro grande êxodo, quando, assim se conta, emprestaram cada homem de seu vizinho, cada mulher de sua vizinha, jóias de prata e jóias de ouro. Isso sugere, também, que êles outra vez cruzaram as barreiras normais e as fronteiras — antes com a conivência do TodoPoderoso, ao cruzar o Mar Vermelho, e agora, com a coni vência dos Russos, entrando na Zona Britânica. Numa pala vra, atribuem-se aos judeus os piores motivos numa fuga para a qual se poderia apresentar razões perfeitamente normais. O desejo dos judeus europeus de um nôvo êxodo era in contestável. As organizações sionistas, principalmente as mais extremadas, procuraram estimulá-lo. Tentavam forçar a mar cha nesse sentido, antes que os sobreviventes dos judeus euro peus novamente lançassem raízes em seus velhos países. Essas organizações agiam assim, baseadas na convicção de que os judeus recusariam em qualquer caso voltar e estabelecer-se permanentemente nas suas velhas comunidades. Agiam, em resumo, com base num profundo ceticismo ante a perspectiva de uma Europa tolerante e civilizada, numa descrença enfim, infelizmente confirmada pelas constantes manifestações de vio lento anti-semitismo no continente. Isso não se pode negar, embora fôsse exagerado pelo pânico e o mêdo dos judeus. Viajantes de volta da Polônia e da região do Danúbio, artigos da imprensa daqueles países e declarações oficiais não deixam sombra de dúvida de que a atmosfera da Europa oriental está ainda impregnada de virulento anti-semitismo. O resultado transcende em importância o incidente de Morgan e mesmo as inconveniências administrativas que o
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afluxo de judeus na Alemanha estava causando aos Governos Militares. O anti-semitismo invariavelmente reflete ou indica condições doentias na civilização européia. O seu aumento ou diminuição constituem, talvez, o mais sensível fiel do moral e da sanidade política da Europa. Os judeus foram as pri meiras vítimas da loucura e da destruição nazista que deveria engolfar o continente inteiro. Poder-se-ia pensar que, depois do holocausto dos últimos anos, os judeus poderiam ter o di reito de esperar simpatia e compreensão humana de seus con cidadãos e do mundo em geral. O anti-semitismo, contudo, predomina na Europa oriental e, sem dúvida, aumenta na Europa ocidental, embora ainda em estado latente, o que não deixa de ser um sintoma alarmante de desintegração política e social. À emancipação dos judeus, no século XIX, seguiu-se o liberalismo da classe média na sua expansão através da Eu ropa. A primeira declaração de igualdade para os judeus, a primeira em tôda a história da civilização cristã, ocorreu na França dos jacobinos em 1791. “Deixem os judeus procurar na França a sua Jerusalém” — eis a lúcida máxima de Napoleão. Ele era fortemente sentimentalista quando se tratava dos judeus; e houve mesmo um toque de tirania em sua política a respeito dêles; Napoleão, por exemplo, propôs sèriamente que cada terceiro judeu ou judia fôsse obrigado a casar com um cristão. Mas seu objetivo de desacostumar os judeus da usura e do comércio ilícito, de terminar com o separatismo e de fazê-los mesclar-se com a população não-judia era certa mente sadio. E — quem sabe? — se isso se concretizasse em tôda a Europa já se teria esquecido o problema judaico há muito tempo; e a nossa geração talvez se pouparia da ines quecível vergonha de presenciar a chacina de seis milhões de sêres humanos nos campos de concentração e nas câmaras de gás. A emancipação dos judeus em grande parte da Alemanha constituiu um subproduto das conquistas napoleônicas. O triunfo da reação, no continente, sob a Santa Aliança tirou dos judeus muitos dos seus direitos recém-adquiridos. O ba tismo do judeu tomou-se novamente o passaporte para a civi lização européia, até que a Primavera dos Povos em 1848 che
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gou para dar forte impulso à emancipação dos judeus, pelo menos na Europa Ocidental. Tão fortemente a emancipação dos judeus se vinculava à expansão do liberalismo da classe média (embora não o fôsse com a existência de governos estritamente liberais), que onde sua influência não conseguiu chegar os judeus não obtinham direitos de igualdade. O poder da classe média e de suas idéias liberais diminuía de intensidade do Ocidente para o Oriente da Europa. As clas ses médias não-judaicas da Rússia, Polônia e Romênia (países onde vivia o maior número de judeus) eram por demais fracas e profundamente enredadas no atraso feudal e nos precon ceitos raciais para lutar pela igualdade dos judeus com os quais, freqüentemente, competiam. O que o liberalismo bur guês obteve para os judeus na Europa ocidental somente o bolchevismo foi capaz de conseguir para êles na Europa orien tal. Os comunistas não permitiriam que os judeus continuas sem como capitalistas ou “elementos improdutivos”, mas lhes davam, por outro lado, direitos iguais. Foi na Polônia e na Romênia, com seus quatro milhões de judeus, que a controvérsia judaica mais se aguçou depois da guerra. Muito mais do que em outros países, e mesmo do que na Alemanha, aí o anti-semitismo constituía um mo vimento popular. Encarnava todos os sentimentos e motivos: o ciúme sentido pela subdesenvolvida classe média polonêsa em relação aos rivais e competidores judeus; o socialismo dos ignorantes e em especial dos declassés, que consideravam os judeus uma sinistra e misteriosa fôrça capitalista; no ódio pro fundamente arraigado dos clérigos contra os judeus, “inimigos de Cristo”, e, finalmente, o mêdo dos governos de que o co munismo se espalhasse por entre aquela vasta massa de arte sãos completamente empobrecidos e de outros totalmente na miséria. Os operários e os camponeses não-judeus daqueles países permaneceram imunes à persistente propaganda antisemita. Ainda continuavam afastados dos judeus e, mais ou menos, indiferentes ao seu destino. O abismo, que separava os judeus dos não-judeus era, pelo menos em parte, o respon sável pela fantástica passividade e indiferença com a qual os não-judeus, na sua maioria, assistiam a matança apocalíptica dos judeus.
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O quadro ainda não está de todo pintado. A sepultura da classe média judaica tomou-se o berço da nova classe média não-judaica na Europa oriental. No apogeu da ma tança, um jornal da Polônia escreveu: “Os nazistas estão resolvendo o problema judaico para nós e de uma forma que nunca empregaríamos”. Os negócios, casas, apartamentos, ob jetos pessoais, enfim, tudo, os poloneses, romenos e húngaros seqüestravam. Os aproveitadores eram os mais desmoraliza dos, ávidos e inescrupulosos elementos daquelas nações — um lumpenproletariat que, da noite para o dia, se tomou lum penbourgeoisie. O atestado de óbito dos judeus assassinados era o seu único alvará válido de comércio. Aquela “nova” classe média indubitàvelmente sofre de complexo de culpa, o que faz o seu temperamento extremamente nervoso e brutal. Olha tensa e ansiosamente a face dos judeus que agora querem voltar. O verdadeiro dono do negócio chegou? Ou, por acaso, seu filho ou parente? Quanto maior fôr a pobreza na Europa oriental, quanto mais selvagem fôr a luta por bens materiais, tanto maior será desesperada e inescrupulosa a determinação dessa horrível “classe média” de continuar na sua posse. A posse é, em qualquer caso, nove décimos da lei — o anti-semitismo zoológico fomece o décimo que falta. A única forma dessa nova “classe média” salvar, não apenas a riqueza recémadquirida, mas, seus nervos e pretensa respeitabilidade, é su mindo com os judeus sobreviventes. Talvez seja êsse um perfil mórbido da vida na Europa oriental. Que desgraça para a Europa oriental se êsse tipo de hienas da sociedade tomar-se, algum dia, a classe dirigen te! Os aspectos mais negros dos atuais regimes controlados pelos russos em nada se comparam com os horrores que essa classe ainda pode oferecer, não apenas aos judeus (pois êstes têm muito pouco a perder), mas, aos povos da Europa oriental. Seus elementos compõem a ala mais radical da oposição antisoviética em cada país. Estão agora nas estruturas de várias organizações terroristas e prontos para serem os mais brutais e decididos do que qualquer outro contra-revolucionário da Europa oriental. As recentes explosões anti-semitas advertem que uma violência bem diferente ainda pode ameaçar a paz naquela parte do mundo.
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Enquanto isso, que é que o mundo civilizado tem para ofe recer aos sobreviventes de Belsen, Auschwitz, Dachau e Majdanek? Depois da Primeira Guerra Mundial ofereceram-se aos ju deus duas esperanças: a Declaração de Balfour, prometendo uma pátria aos judeus, na Palestina, e a Proteção das Minorias pela Liga das Nações. A Proteção das Minorias mostrou que não passava de simples pedaço de papel. O projeto de uma pátria para os judeus, como se previa, chocou-se com a inven cível oposição do mundo árabe. Será que as grandes nações democráticas do mundo se tomaram tão fracas que não possam oferecer uma faixa de terra em qualquer canto do mundo aos judeus ou mesmo algumas dezenas de milhares de vistos de entrada em seus países? Ou, por acaso, ficaram pobres demais para um ato de caridade em benefício daqueles desgraçados, daqueles que são as maiores vítimas desta guerra — os rema nescentes de uma raça extraordinária, infeliz e completamente negligenciada?
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V
O Clima Espiritual de Israel'
Q u e É um israelita e que é um judeu? Eis uma pergunta muito discutida em Israel, pois as relações entre Israel e os judeus espalhados no mundo é de óbvia importância para o jovem Estado. Muitos sionistas acreditam no Kibbutz Haga luth, isto é, a volta de todos os judeus dos países da Diáspora. Segundo pensam, os judeus fora de Israel estão virtual mente no exílio; mas têm seus deveres para com Israel e, um dêles, é o de se tornar um cidadão israelense. Os jovens israelenses, por outro lado, especialmente os sabras, nascidos e criados no país, não possuem aquêle sentimento de que “pertencem ao judaísmo internacional” e, conseqüentemente, 1 The Repórter, abril-maio de 1954.
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não consideram o “judaísmo universal” como parte de Israel. Alguns vão ainda mais longe e dizem que são israelenses e, não judeus. Essa diferença é, talvez, um tanto irreal. Há um toque de não-judaísmo em Israel: em seus fazendeiros lutando com o deserto e transformando alguns trechos em vinhedos e oli vais; nos soldados que, com sangue frio, vigiam os árabes através da fronteira; na consciência popular de seu status e na tenacidade com que o povo defende seu Estado contra o mundo exterior. — Você não acha que nós, judeus, temos nossas raízes aqui? — pergunta-se a um visitante. Palavras como “raízes” e “sem raízes” aparecem freqüentemente na conversação. Um ex-prisioneiro dos campos de concentração nazistas, que muito sofreu com o anti-semitismo na velha Polônia e foi vítima dos Guardas de Ferro da Romênia, sente-se finalmente seguro, em casa. E exprime sua satisfação, alívio e orgulho. Com bastante freqüência, entretanto, agudíssimo grito de misticismo nacionalista estoura em nossos tímpanos, misticismo êste não isento daquele velho racismo do Povo Escolhido e que não se coaduna com o elemento do brando racionalismo do intelecto judeu. Mas, apesar de tudo, Israel é o país do Zohar, aquela segunda Bíblia do mundo místico e o paraíso dos Cabalistas, que projetam suas visões sôbre as rochas colo ridas das proximidades de Safed. . . Do mesmo modo, há algo de inquietante na intensidade do sentimento nacionalista que se insinua em qualquer conversa com os israelenses, desde o primeiro-ministro até o mais humilde trabalhador de rua. Ben Gurion, falou-me amargamente dos judeus não-sionistas: “Êles não amam o seu passado, são “cosmopolitas sem raízes” e não pode existir nada pior do que isso”. Ponderei que êle se expressava do mesmo modo como os propagandistas de Stalin se referindo aos judeus em geral até recente mente. Ben Gurion agitou as mãos em sinal de protesto: — Não. Não. Como primeiro-ministro dêste país, sempre o afirmei. Para nosso próprio benefício, os israelenses devem sentir que êles são cidadãos do mundo. Não censuro o “cosmopolitismo sem raízes” como o fêz Moscou.
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É evidente que êste constitui outro modo de pensar de Ben Gurion. Instintivamente, êle condena e denuncia todos aqueles judeus não-sionistas, para os quais “pertencer ao ju daísmo” não é a idéia central ou a emoção dominante. Mas, quando se lhe chama a atenção para a coincidência de suas palavras com as usadas pela propaganda stalinista (a da era da “conspiração dos médicos”), êle cora com embaraço e cor rige seu pensamento. O povo mais velho do mundo formou em Israel a mais nova nação-Estado e os judeus ali estão ansiosos para recupe rar o tempo perdido. Para todos êles o ideal do indivíduo e da felicidade coletiva é constituir uma concha nacional sólida e protetora. Isto significa esquecer a Diáspora, as lembranças, os hábitos, os gostos, o cheiro do exílio — séculos e séculos de exílio. Também implica no esquecimento dos climas, das paisagens, das melodias e das línguas de tantos países — Polônia, Rússia, Lituânia, Áustria, Marrocos, Turquia e Iraque. Que complexo e multiforme processo psicológico êsse que se segue a um trágico processo de deslocamento físico. Cons trangedora maioria dessa geração de israelitas não tem raízes em Israel, nem sequer pode tê-las: Israel é um Estado for mado por pessoas que para ali se mudaram. Eis a razão do porquê de tanto falar em “criar raízes”. Esforçam-se para esquecer o passado, para banir de suas lembranças as marcas da indignidade, todo estigma da vergo nha, tôda mancha amarela que os seus inimigos nêles enxer gavam. Desejam, sinceramente, esquecer para sempre parte de suas lembranças. Alguns israelenses se sentem neuròticamente envergonhados do iídiche, a língua de suas primeiras cantigas de ninar, das primeiras histórias bíblicas, do “jargon” no qual se desenvolveu uma literatura admiravelmente rica, na Europa oriental, antes da catástrofe que se abateu sôbre os judeus. A bordo de um navio israelense ou em Telavive, quando me aproximo de um estranho e pergunto em que lín gua devo falar-lhe, freqüentemente, esta é a resposta: alemão. Só raramente dizem iídiche. Mas, quando o homem abre a bôca é obviamente em iídiche que fala; do alemão propria mente quase não tem conhecimentos. Mas não o admitirá
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nunca. Iídiche é aquela “mancha amarela” na lingüística que êle está decidido a esquecer. Essa atitude contra o iídiche caracterizou o sionismo muito antes de Hitler. O sionismo, desde o comêço, desejava reviver o hebraico. Há nisso tanto esnobismo quanto haveria em qualquer tentativa dos italianos ou gregos de abandonarem seus atuais idiomas para voltar ao latim e ao grego clássicos. O sionismo sempre viu o judaísmo como um príncipe encan tado, que condenado a viver na miséria por muitos anos, volta ao seu Palácio, liberta-se dos trapos sujos e encardidos dèsse triste disfarce e se veste em ouro e púrpura. Às portas de Israel, abandonaram os trapos do iídiche pelo ouro e púrpura do hebraico. — Quando é que você começará a escrever seus livros em hebraico em lugar do inglês? perguntou-me Ben Gurion, num tom de sugestiva autoconfiança. Estava convencido de que todo escritor de origem judaica se sente moralmente obri gado para com a literatura hebraica de Israel. Essa auto-afirmação visa a fundir os elementos desiguais de Israel numa única nação e dar-lhe unidade espiritual e cultural. Entretanto, por detrás dessa auto-afirmação, há, também, aquela saudade natural dos países e culturas de sua infância e juventude, saudade essa que, às vêzes se expressa na mais nobre das formas. Quase tôdas as vitrinas de livrarias, em Israel, contam a história dessa saudade: compõem uma elegia ao intelecto ju daico. O vendedor de livro é um elemento muito importante na vida de Israel, pois os judeus aqui permaneceram Am Has sefer — o “povo do livro”. O livro é o artigo de primeira necessidade em Israel; em Telavive, Haifa ou Jerusalém pa rece haver tantas livrarias e bibliotecas quanto armazéns e mercados. Nas povoações do campo, existem, também exce lentes livrarias que, dificilmente, se encontram, em condições iguais, em qualquer outro país. Não são os livros de crime-e-sexo, histórias em quadrinhos ou os best~seUers baratos que enchem as prateleiras. São livros sérios de poetas e pensadores, visionários sociais de tô das as nações. Você encontrará seus trabalhos no original e em traduções para o hebraico. Na vitrina de uma livraria,
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numa ruela escondida, achei uma edição bem feita de Goethe em alemão, uma nova tradução para o hebraico do Buch der Lieder, de Heine, novas edições israelenses de Gogol e Pushkin, bem como as traduções para o hebraico das obras de Freud, seleção dos poemas de Walt Whitman e uma nova tra dução do Pan Tadeusz, de Mickiewicz, épico nacional da Polônia, e, ainda, contos húngaros e romenos. Cada grupo de imigrantes parece ansioso para transmitir as emoções ar tísticas e a excitação literária de sua própria infância e ju ventude para as crianças nascidas em Israel. Um ex-advo gado de Leipzig apreciaria ver seu filho ao seu lado, deliciar-se com a riqueza do estilo de Nietzsche; uma judia polonesa não podia conceber que sua filha crescesse sem ler os contos social-patrióticos de Zeromski; e um velho judeu de Odessa discutia com seu neto a profundidade dos Irmãos Karamazov. Heinrich Heine certa vez escreveu que, quando os judeus saíram de sua terra, deixaram atrás de si tôdas as riquezas, mas levaram para o exílio apenas um bem: o livro. Então, através dos séculos, aquêle “fantasma de um povo” montou guarda junto ao livro, a Bíblia, preservando-o do resto da humanidade. Agora, o “fantasma” de nôvo se materializa numa nação; e, como regressa à sua terra, leva para as mar gens do Jordão e para as colinas da Judéia os grandes livros de tôdas as nações. O Estado de Israel foi, bàsicamente, uma obra dos judeus da Europa Oriental, especialmente os da Rússia, Polônia e Lituânia. De suas fileiras vieram quase todos os visionários do sionismo, com excessão de Herzl e Nordau, quase todos os seus primeiros líderes, oradores, estadistas e pioneiros. Quando se proclamou o Estado de Israel, em 1948, judeus da Rússia e da Polônia compunham a metade da população. Foi nos guetos da Europa Oriental que as antigas chamas da vida judaica se avivaram e os judeus sonharam mais ardo rosamente com o sionismo. Saudava-se, na Páscoa, com o tradicional Leshono habo be Yerushalaim — “No próximo ano em Jerusalém”. Mas esta saudação soava de modo completa mente diverso daquela que faziam nos lares da Europa Oci
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dental e da América. Os processos de assimilação pelos quais, antes do aparecimento do nazismo, passaram os judeus fran ceses, ingleses, italianos e alemães, não tiveram o mesmo resul tado na Rússia e na Polônia. Lá os judeus viviam em massas grandes e compactas. Tinham um modo de vida próprio e ho mogêneo. E os poderes de absorção das culturas eslavas eram por demais fracos para forçar qualquer assimilação por parte dos judeus. A Europa Oriental era, dêsse modo, a terra do judaísmo par excellence (não é à-toa que Vilna se chamava a “Jerusalém da Lituânia”). É de admirar então que Israel seja, como bem qualificou um judeu da Europa Ocidental, “uma colônia espiritual dos guetos do leste europeu”? Havia nos guetos do leste europeu, não obstante, profun das dissensões internas. Havia revolta no seu meio contra a própria ortodoxia e tradição e contra o mundo exterior. Aque la revolta tomou duas formas rivais: o sionismo e o socialismo revolucionário marxista. Enquanto, no oeste, o socialismo, o liberalismo e o sionis mo eram benèvolamente relacionados entre si, no leste, con corriam exacerbadamente à procura da lealdade das massas. Profundo abismo sempre existiu ali, entre os judeus sionistas e não-sionistas. Os anti-sionistas induziam os judeus a confiar na sua vizinhança não judia, a ajudarem as “fôrças progres sistas” à sua volta, a atingir posições de comando e, dessa maneira, a esperar que essas fôrças pudessem efetivamente defender os judeus dos anti-semitas. “A revolução social dará aos judeus igualdade e liberdade. Não terão, dêsse modo, necessidade de um Messias sionista”. Era êste o argumento básico de gerações de judeus da esquerda. Os sionistas, por outro lado, insistiam no ódio profundamente arraigado nos não-judeu contra os judeus e induziam os judeus a não confiar seu futuro a ninguém, exceto no seu próprio Estado. Com esta controvérsia o sionismo pagou um preço que não pensava nem esperava: seis milhões de judeus foram exter minados nas câmaras de gás de Hitler para que Israel tivesse o primeiro alento. Seria melhor que Israel não nascesse e que vivessem os seis milhões de judeus. Mas, quem pode culpar o sionismo e Israel por êsse resultado diferente? Israel é muito mais que a colônia espiritual dos guetos do leste
europeu. É seu grande, trágico e póstumo destino, lutando pela sobrevivência com imbatível vitalidade. O sionismo da Europa Oriental era implicitamente antirevolucionário. Êle respirava, entretanto, o ar da Rússia re volucionária, o ar daquele vasto movimento de idéias revolu cionárias que precedeu a revolução bolchevique e atingiu com ela sua culminância. Aquêle movimento de idéias deixou mar cas indeléveis no sionismo. O jovem judeu que, em Kíev, Odessa e Varsóvia suspei tava das ideologias revolucionárias russo-polonesas e que an siava em ser pioneiro num Estado judaico, na Palestina, de modo geral estava hipnotizado por elas. Veio para a Pales tina com as migalhas da mesa da revolução russa; e usou essas migalhas como sementes quando lavrou os sagrados desertos da Galiléia, Samaria e Judéia. Nos novos e imponentes prédios da sede do Histadruth1, alguns dos líderes estão mais à vontade quando falam em russo do que quando falam em qualquer outro idioma, embora tenham imigrado da Rússia, há mais de trinta anos. Ben Gurion mal me cumprimentara e se lançava num sermão sôbre a revolução russa — o assunto obviamente o fascinava. — Um homem, dizia êle, podia ter salvo o mundo, mas, infelizmente, perdeu essa oportunidade. Esse homem era Lênin. Ben Gurion é mais judeu polonês do que russo; essa inocente afirmativa, porém, é seu inadvertido tributo à revo lução russa. Mordehai Namir, quando questionado sôbre os princípios que norteavam a organização do Histadruth, do qual é o secretário-geral, respondeu com inquebrantável confiança: — O princípio básico aqui é o centralismo democrático; você sabe o que é isso, não? Centralismo democrático, propriamente, não é uma in venção russa ou bolchevique. Chegou à Rússia e aos bolcheviques através da Europa Ocidental. Mas, tanto Israel como o Histadruth o receberam da Rússia. 1 Assembléia dos Sindicatos Israelenses.
Há, em Israel, alguns contrastes gritantes de riqueza e pobreza. A distância entre as cabanas do Maabara, acampa mento provisório para imigrantes pobres e os luxuosos hotéis e mansões do Monte Carmelo é, na verdade, muito grande. Entretanto, também existe um sentimento de vergonha geral e agudo diante dêsse contraste, um sentido de vergonha como existia na Rússia de Tolstoi e Tchekov. Existe um espírito de igualdade bem vivo entre a classe operária tal como havia na Rússia antes de que o stalinismo o erradicasse. Os sindi catos buscam uma política de quase-igualdade. Os envelopes de pagamentos dos operários capazes e dos não-capazes, dos empregados dos escritórios, do profissional e do funcionário público diferiam, relativamente, muito pouco em tamanho; e as pessoas reclamavam que a falta de um incentivo salarial retardava o progresso econômico de Israel. O kibbutz, a comunidade rural, é o epítome da igualdade israelense. É também a mais importante feição da paisagem moral e intelectual de Israel. O kibbutz é um descendente direto de uma idéia dos narodniks ou populistas russos e é uma visão do socialismo rural narodnik que parece materia lizar-se nos oásis judaicos espalhados no antigo deserto arábico. Os narodniks preconizavam o socialismo agrário na se gunda metade do último século, quando a Rússia ainda não possuía qualquer indústria moderna; e os “amantes do Sion”, os precursores do moderno sionismo, vieram da Rússia para a Palestina antes de ter-se esvaído completamente a utopia dos narodniks. A onda migratória seguinte, Aliyah, chegou depois da derrota da revolução russa de 1905/6; e os homens daquele Aliyah fundaram alguns dos maiores e mais belos kibbutzim na Galiléia, perto de Tiberíades e nas colinas da Judéia, próximos de Jerusalém. A leva seguinte de emigrantes chegou após a revolução bolchevique. Aquêles judeus ricos que, ao emigrar, conseguiam trazer alguns de seus bens, ins talavam-se em Berlim, Paris ou Londres. Os que foram para a Palestina tentaram salvar apenas seu sonho de um Estado Judaico. Na Rússia, sob a Nova Política Econômica (NEP), o govêmo de Lênin encorajou um punhado de camponeses idea listas e grupos de intelectuais a formar, voluntàriamente, co
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munas agrícolas experimentais, que chamavam, carinhosamen te, de “laboratórios do futuro” e que não se deve confundir com as fazendas coletivas da era stalinista. Os novos kibbutzim de Israel inspiraram-se naquelas primeiras comunas rus sas. Construíram-nas rapazes e môças que deixaram as casas de seus pais e se alistaram nas organizações radicais sionistassocialistas, como Hashomer Hatzair, não para lutar contra os problemas de classes, mas para drenar os pântanos de Emek e os de Huleh e cobrir as encostas do Carmelo e Samaria com verdes pomares e vinhedos. Socialmente, o kibbutz é uma instituição única. Seus an tecedentes são ainda mais remotos do que o velho populismo russo. Pode-se buscá-los nos projetos de Fourier para o pha lanstères e nas experiências com cooperativas de Robert Owen e em outros esquemas brilhantemente elaborados do socialismo utópico clássico. Como os socialistas utópicos, os fundadores dos kibbutz esperavam conseguir o socialismo mais pelo exem plo pessoal do que por derrubada revolucionária sistemática de sociedades estabelecidas — e, por acaso, não existia qual quer sociedade estabelecida nos desertos da Palestina. Os castelos levantados no ar pelos socialistas utópicos geralmente desmoronavam logo após' se erguerem. O kibbutz levantou-se na areia mas demonstrou muito mais solidez. O mais velho dos kibbutzim em breve celebrará seu cinqüentenário e exis tem outros com trinta ou vinte anos que cresceram prosperan do e mostrando reais resultados. Quem nunca viu um kibbutz mal pode imaginar a ousadia e a originalidade de sua concepção. Um kibbutz possui geral mente várias centenas de membros, vivendo em pequenos apar tamentos, às vêzes estèticamente construídos e mobiliados. A fileira de bungalows brancos, cercados de canteiros de flo res, contrapõe-se aos refeitórios coletivos, bibliotecas, escolas, locais de atendimento médico e outras construções de utili dade pública, com lojas e os lotes limitando a colônia. A divisão do trabalho entre seus membros é voluntária e êle se toma mais e mais complicado com o progresso da tecnolo gia agrícola. Em alguns kibbutzim existem fábricas de tama nho considerável. A jornada de trabalho é de nove horas para os de menos de cinqüenta anos e de quatro para os mais
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velhos. Se qualquer dos membros do kibbutzim mostrar in clinações artísticas ou científicas, o conselho da comunidade pode diminuir sua jornada de trabalho na fazenda ou dar-lhe um ano sabático. As recompensas são iguais para todos. Comida, roupa, móveis, remédios, cigarros, livros (mesmo pinturas ou repro duções artísticas) — tudo se reparte de um fundo comum — “a cada qual de acôrdo com suas necessidades”. Cada membro tem algum dinheiro, para as suas despesas. O padrão de vida de um kibbutz depende do tamanho do fundo comum, isto é, da riqueza acumulada através dos anos, da produtividade do trabalho e dos lucros produzidos pelas organizações comerciais que vendem o excedente da produção. O princípio comunista estendeu-se ousadamente à educa ção das crianças, que a recebem dentro do kibbutz mas vivem em locais apropriados. Com os pais só passam algumas horas de descanso, à noite. Observei que membros do kibbutz já estão tão acostumados com a educação comunal das crianças que, de forma natural e sem qualquer afetação, falam de tôdas as crianças do seu kibbutz como se se referissem aos próprios filhos. O kibbutz é, em alguns aspectos, a combinação de um acampamento dc escoteiros, com um mosteiro de Beneditinos, engrandecido pela falta da disciplina coercitiva e pela liber dade e motivação nas relações humanas. Os membros dos kibbutz têm tòda razão de sentir orgulho de sua moral e estão conscientes disso. Dizem que, durante a guerra, os diplo matas soviéticos e suas equipes visitaram muitos kibbutzim procurando ver em que se assemelhavam às fazendas coletivas soviéticas. Não sem motivos a comparação foi desfavorável aos colcoscs soviéticos, que dependiam dos atrasados, preguiçosos e intimidados mujiques, enquanto, por outro lado, o kibbutz nasceu do auto-sacrificio e da coragem de intelectuais e tra balhadores idealistas. Num kibbutz, após inspecionar a mo derna manufatura de produtos de laticínios, a escola, a biblio teca da fazenda (composta daquilo que costuma ser a biblio teca de vinte professòres universitários alemães), o grupo teatral, e assim por diante, o enviado soviético pediu que lhe mostrassem a prisão. 92
— Não temos prisões aqui, foi a resposta. — Impossível!, o diplomata exclamou. Que fazem vocês com os criminosos e os transgressores da lei? Os membros do kibbutz tentaram explicar que até então não se defrontaram com nenhuma ofensa suficientemente gra ve que merecesse aquela punição; e que isso era compreensível pois se tratava de homens e mulheres de elevada moral so cialista; os descontentes tinham liberdade de ir embora e, em casos extremos, o kibbutz podia expulsar alguém indesejável. Aquêle kibbutz em questão era dominado por elementos do Mapam, partido pró-Stalin; mas o enviado soviético se recusa va a acreditar no que lhe diziam: —i Na verdade, dizia êle, uma comunidade de várias centenas de pessoas não pode passar sem uma prisão! O russo não disfarçava sua incredulidade e dava a enten der que seria uma boa piada, pelo menos uma vez, os judeus mostrarem aos russos sua própria vila Potemkin. Entretanto, apenas setenta mil pessoas, não mais do que cinco por cento da população de Israel, vivem em kibbutzim. São os pais dos peregrinos de Israel. Sua influência é muito maior do que o seu número. Nas cidades, encontraremos vá rias pessoas que já viveram em kibbutz uma vez ou outra e que ainda se sentem atraídos pelos seus ideais; e muitos habitantes das cidades mal podem esperar o momento de enviar seus filhos para as escolas do kibbutz, famosas por seu método educacional ultramodemo. Sob o Mandato Britânico o pêso dos kibbutz na vida da Palestina era muito maior do que agora. A população era então bem menor. Não existia máquina governamental judai ca, nem exército, polícia ou organização judiciária, e o kibbutz, com a sua sólida organização e seu alto padrão de moral e disciplina, formou como que um Estado Judaico fantasma. Muitos dos atuais funcionários públicos e oficiais vieram dos kibbutz e, em geral, permaneceram integrados na sua comu nidade rural. Alguns tentam combinar o serviço para o Estado com o trabalho para o kibbutz. Isso apenas é possível em virtude do diminuto tamanho do Estado e pela característica um tanto tribal da sociedade israelense. Num kibbutz, por exemplo, descobri que quem dirigia um trator fôra antes em
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baixador de Israel em Praga e em Budapeste. Num outro, mostraram-me um pastor alto, forte, queimado do sol e des calço (com traços familiares do David de Miguel Ângelo), que trazia os carneiros dos campos naquele fim de tarde dourado; disseram-me que fòra um dos comandantes do exér cito israelense durante a “guerra de emancipação” em 1948. O kibbutz permanece a fonte moral de Israel, mas, re centemente, sentiu algumas vezes os problemas de uma crise, logo sobrepujada pelo Estado, que atingia sua maioridade e pelo influxo de novos imigrantes. Os pioneiros do sionismo compartilham do mal bocado de tantos outros pioneiros; foram derrotados pelo seu próprio sucesso. Desde 194S, a população de Israel mais do que dobrou. Os recém-chegados não são como os idealistas dos antigos Aliyahs; são o resto de um campo de concentração, coisas e homens, frutos do naufrágio do judaísmo europeu e de grandes massas de judeus orientais, refugiados do ódio e da vingança dos árabes. Para muitos dos jovens imigrantes, os ideais dos pais do Peregrino Sionista é estranho e incompreensível. Pe quena lojinha de objetos usados ou um balcão para venda de tabaco em qualquer lugar da cidade parece-lhes mil vèzes mais desejável e respeitável do que tòdas as maravilhas eoletivistas do kibbutz e de todo o seu alto padrão de vida. De zenas de milhares desses novos imigrantes ainda vivem às custas da caridade, em quase-cortiços dos locais de trânsito. Muitos recusam mudar-se para os apartamentos construídos, para èles, pelo governo. Preferem continuar vivendo naquelas condições a pagar aluguel pelas suas novas instalações. Pou cos retomam ao Marrocos e à Tunísia. A economia do pais somente pode absorvê-los de forma lenta e um tanto penosa, se bem que seja difícil a todos. O kibbutz em vão os convida para engrossarem suas fileiras corno membros eui igualdade de condições. — Queremos viver nas eidades e não com rústicos no interior!, responde um ex-alfaiate de Bucareste a um vendedor ambulante de \11na. — Queremos; ganhar nosso próprio dinheiro, econooiizar um pouco. Acreditamos na propriedade. E isso de proprie dade comum não nos agrada — direm outros.
— Não queremos comer em refeitórios coletivos a vida inteira, inteira, — dizem, dizem, ainda, alguns, — nem ter nos nosso soss filhos filhos separados de nós. — Empreguem-nos como trabalhadores e assalariados — também pedem — mas nos paguem em dinheiro e não nos peçam que façamos parte de sua comunidade! Isso é muito mais do que um insulto aos ideais do kibbutz — pois cria (ou talvez apenas traga à tona) novo dilema moral. O kibbutz kibbutz vè-se na circunstância de transformar-se num “empregador capitalista”; e, por estranho que pareça, o que força esta transformação são os possíveis operários e em pregados. pregados. Para Para o kibbutz kibbutz contratar trabalho significa aban donar donar e trair seus seus princípios princípios básicos. básicos. Assim Assim o considera mesm mesmoo a grande maioria dos membros daqueles kibbutzim kibbutzim que ade riram ao socialismo socialismo moderado do Mapai. De outro outro lado, o govêmo, encabeçado por líderes Mapai, está ansioso para estabelecer êsses novos imigrantes e forçar o kibbutz kibbutz a esque cer “purismos ideológicos” e a aproveitar a mão-de-obra ociosa dos campos campos de imigrantes. imigrantes. Vozes, pedindo a mesma mesma coisa, levantam-se dentro do kibbutz. A economia economia das comunidades comunidades rurais expandiu-se enormemente nos últimos anos, enquanto o número número de de seus seus membros membros tende a permanecer permane cer imutável. imutável. Tem que se contratar o trabalho de alienígenas para sustentar a expa expansã nsãoo e evitar evitar a estagnação. “Contratar Contratar ou não contratar”, eis eis a questão moral agora debatida debatida apaixonadam apaixonadamente. ente. J á se abriram algumas brechas na fortaleza da propriedade comum: há grupos de trabalhadores contratados dentro dos limites de muitos kibbutzim. Os teóricos trabalha tra balham m àrduamente a fim fim de encontrar fórmulas que restrinjam o número de contratos; kibbutzim, de “Dan até Beersheba”, juraram sole e todos os kibbutzim, nemente nunca se transformar em negócio capitalista, apesar das torrentes capitalistas fora de suas muralhas. Dêsse modo, a história dos pha ph a lan la n stèr st ères es pode repetir-se em Israel. Israel. Tôdas as experiências com negócios negócios no socia socialismo lismo utópico ou fracassaram ou, ainda, se transformaram em efi cientes emprêsas emprêsas capitalista capitalistas. s. Êsses Êsses talvez sejam os últim últimos os grupos de kibbutz kibbutz a menos que alguma transformação social ocorra no Oriente Médio a fim de mudar a vizinhança que os cercam.
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O kibbutz, por ora, luta para manter seu solo e é ajudado pelo fato de de que serve a importante interesse nacional. Cons titui ainda ainda o principal principal baluarte baluarte das das defesas defesas de Israel. Israel . Suporto Suportou u o esforço da guerra de independência, lutando na vanguarda e na retaguarda das das batalhas. A estrutura de sua organização organização faz do kibbutz uma colônia militar militar ou de mil milíci íciaa ideal. Em cada kibbutz, seus integrantes nos levam para visitar o cemi tério, mostrando os túmulos dos maridos, irmãos, mortos em ação contra os árabes e os inspirados monumentos àqueles que caíram, erigidos pelos escultores locais (às vêzes mundial mente mente famosos). famosos). Se se chegar, por acaso, a um kibbutz, depois do crepúsculo, a sentinela que o fará parar, de arma nas mãos, na estrada, é geralmente uma garôta de dezoito anos. A maior parte dos kibbutzim estão perto das fronteiras e nêles o govêmo govêmo — militar e moralmente moralmente — baseia todos todos os seu seus planos planos de defesa. Os bastiões do socialismo utópico utópic o de Israel Israel mantêm-se alertas com automáticas nas mãos. O perfil cultural de Israel é fortemente afetado pelas mudan mudanças ças na composição do povo. povo. Sob o Mandato Britân Britânic ico, o, os judeus de origem européia formavam incontestável maioria. Agora são minoritários. Imigran Imigrante tess vindo vindoss da Ásia e da África África constituem mais de cinqüenta por cento de sua população. Judeu Judeuss da África África do Norte Norte francesa, francesa, me meio io árabe e mei eioo francês de aspecto, turbulentos e vociferantes, sentam-se com suas famílias em frente das cabanas ou lojas, tomadas aos árabes, falam de negócios e discutem os prós e os contras de um retômo ao Marrocos e à Tunísia; enquanto os filhos lêem e discutem o último número das Nouvelles Littéraires de Paris. Aí, então, vemos os judeus do Irã, com chapéus prêtos de pele de carneiro e os do Iraque e da Turquia, alguns já ocidenta lizados, outros ainda à moda oriental; e os judeus de Bukharam, com seus camisolões de sêda, muito brancos e esvoaçantes, sua barba barba macia e bíblic bíb lica. a. Finalmente, Final mente, os do do Iêmen, com brilhantes olhos negros e encaracolados cachos de cabelo pen durad durados os em cabeça cabeçass raspadas. As môças enchem o mercado mercado de trabalho ao ar livre, procurando serviço como empregadas domésticas.
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Conta-se a história de como a aviação britânica trouxe para Israel cinqüenta e cinco mil homens, mulheres e crianças do Iêmen. Êles Êles lotaram alegremente alegre mente os os aviões, aviões, que, até então, nunca viram, acreditando tratar-se das “asas da águia branca” nas quais, de acôrdo com velha profecia, voltariam para a Terra Santa, quando o Messias Messias chegasse. Ao chegar à terra ficaram petrificados de terror ao saber que tinham de encher os ônibus a fim de sair do aeroporto de Israel para os campos de imigrantes; não havia nada sôbre ônibus na profecia do Messias. Os judeus aqui já não eram somente aquêle refugo da Europa Europa dentro da Ásia, como por tantos anos o foram. O levante e o sul do deserto arábico deram também sua contri buição para Israel. Israel . Mas, como como influirá influirá sôbre o aspecto cultural de Israel Isra el êsse encontro do Oriente e do do Ocidente? Em Jeru Jer u salém e em Tel Telaa vive, ouve-se ouve-se uma série série de profundas teorias e prognósticos. Alguns Alguns sustentam sustentam que em virtude de serem os judeus orientais muito prolíficos haverá uma orientalização de Israel. Israel . Outros prevêem uma “síntese” e uma nova cultura cultura israelense. Creio, Creio, por outro lado, que os os judeus europ europeus eus as as similarão similarão os orientais. Eles Eles representam representam uma civilização mais mais avançada que, comumente, “conquista” a mais atrasada; e essa conquista já se realiza através da escola e do exército, ambos fatores de decisiva importância na unificação de costumes, cúltura e língua de Israel. Nota-se, nesse meio tempo, certo antagonismo entre os jude judeus us orientai orientaiss e ocidentais. ocidentais. Os ocidentai ocidentaiss ocup ocupam am tôda tôdass as posições de influência no serviço público, exército, educação, indústria, indústria, comércio e finanças. finanças . Os orientais sentem-se numa numa posição de segunda classe, vítimas da discriminação e da ar rogância dos europeus (em alguns casos até reclamam contra preconceitos preconceitos de côr) cô r).. Acusações Acusações muitas muitas vêzes vêzes feitas pelos pelos jude judeus us contra os não-jud não-judeus, eus, agora agora partem de judeu judeuss contr contraa jude judeus us.. Al Algu guns ns judeus judeus orientai orientaiss consi consider deram am que o seu seu atual atual status é mais mais baixo baixo do que no seu país de origem origem.. Na África do Norte francesa, por exemplo, um comerciante judeu ficava no meio têrmo entre um colon e o árabe atrasa atrasado do.. Estava em algum algum ponto ponto no meio da escala. escala. Em Israel Isr ael está bem no fundo: visàvis visàvis do judeu europeu êle se encontra numa po
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sição semelhante à do árabe da África do Norte visàvis do francês. O judeu europeu tem consciência do ciúme e do ressen timento dos orientais e, às vêzes, os teme. Houve, mesmo, quem duvidasse de sua lealdade: — Sabe Deus, em caso de encrencas, bem que podem aliar-se aos árabes. Não há muita diferença entre êles e os árabes, não acha? Isto provàvelmente não representa uma tomada de posi ção, mas demonstra a existência de tensão. Outros pensam que alguns, como, por exemplo, os revisionistas, o partido fas cista em potencial, cujo poder por ora é ínfimo, possam acirrar e explorar a animosidade dos judeus orientais. Enquanto isso, todos os partidos e líderes atuam com os olhos fixos nessa metade oriental da nação, tentando sentir sua sensibilidade e influenciar seu moral. Quando altas patentes argumentam que se deve adotar uma política mais dura em relação aos árabes, porque os orientais poderiam julgar qualquer outra política como sinal de fraqueza, não pensam apenas nos árabes propriamente ditos, mas, também, nos judeus orientais de Israel. Os “atos de desagravo” contra os árabes, mesmo o massacre de Kibiya, foram planejados tanto para manter o ânimo dos israelenses orientais como para intimidar os árabes. A maior parte dos judeus orientais são ortodoxos em as suntos religiosos e algumas vêzes seguem a liderança fanática dos rabinos da Europa oriental. Assim foi na estrondosa de monstração contra a introdução do serviço militar para mu lheres. Além disso, a ortodoxia dos judeus africanos e asiáticos inspira-se mais no conservadorismo social do que na devoção religiosa; é, de modo geral, mais branda e tolerante do que a ortodoxia dos judeus europeus. Os rabinos e seus seguidores, tanto da Polônia, Rússia ou Lituânia, estão entre os fanáticos mais ferozes do mundo; e suas aparições no Mea Sliaarim — Os Cem Portões — constituíram verdadeira reserva da Idade Média judaica. Apesar do nome, sugerindo antigüidade oriental român tica, Os Cem Portões datam apenas do século passado. Foi naquele quarteirão de Jerusalém que os velhos e pios judeus se instalaram, quando chegaram à Palestina para morrer na
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Terra Santa. A qualquer hora do dia, nas sujas e superlo tadas vilas de casas ressoavam os cantos oratórios e a leitura do Talmude. Havia tantas sinagogas, escolas talmúdicas e lojas com artigos litúrgicos em Mea Shaarim quantas eram as casas residenciais. Os habitantes, de longas barbas, olhos negros, e rosto pálido, vestiam-se de prêto mesmo no mais violento calor, assim como os meninos, que usufruem das bên çãos de estudar os comentaristas do Talmude a dois passos do Monte Sion. Aqui, ainda vigora, plenamente, a terrível máxima de Mishna, segunda a qual constitui grave pecado para um judeu dizer: — Olhe, como é bonita aquela árvore lá adiante! Isto porque para êles só se deve admirar o Senhor. Os homens e mesmo as crianças do Mea Shaarim têm seus olhos voltados para si ou para baixo; dêsse modo evitam lançar olhares pecaminosos sôbre árvores ou sôbre a mulher que pas sa. Aqui ainda se excomunga o herege na sinagoga, ao soar de cornos de carneiros e à luz de velas de cêra. Onde, pois, deveria aplicar-se as leis rabínicas com tôda a sua rigidez senão nas vizinhanças do Gan Hinom. Cada sexta-feira, depois do crepúsculo, os zeladores do Mea Shaarim ocupavam as ruas principais, que saíam do cen tro da cidade até os quarteirões. Saudavam o Sábado, com danças frenéticas e paravam todo o trânsito das ruas até a noite seguinte. Coitado daquele que num sábado ousasse passar nas tortuosas ruas do Mea Shaarim, com cachimbo na bôca ou segurando môça pelo braço. Uma saraivada de pe dras cairia sôbre êle, pois Mea Shaarim acredita na lapidação bíblica para o pecador. E, se um médico, em seu carro ou na ambulância, se aventurasse por essas ruas, num Sábado, a chuva de pedras também sôbre êle cairia. O Mea Shaarim é importante não por sua exótica “côr local”, mas por causa de sua influência sôbre o clima cultural de Israel. Não se deve subestimar esta influência: o kibbutz e o Mea Shaarim são os dois pólos da vida espiritual de Israel. Os “livres pensadores” e os progressistas militantes”, quando deixados à sós com a ortodoxia judaica, tomam-se muito hu mildes. E, dêsse modo, a lei talmúdica, em Israel, ainda dirige todos os casamentos e as relações familiares, para mencionar apenas algumas áreas da vida judaica que se acham sob seu
domínio. Até recentemente, um antiquado rabino ortodoxo, com quase nenhuma educação secular, era Deão da Faculdade de Direito da Universidade de Jerusalém. Encontra-se a cada passo, alguma evidência que confirma a acusação de que hâ mais do que um simples toque de uma anacrônica teocracia em Israel. Discuti êsse assunto com o editor de um periódico es querdista, um bem dotado escritor e tradutor de Shakespeare para o hebraico. Êle protestou com alguma veemência contra a observação minha de que Israel estava sob a influência es piritual do Mea Shaarim. Mas, derrotado pelos argumentos, admitiu que os israelenses pagavam considerável tributo à or todoxia religiosa. Vejamos êste exemplo tragicômico: êles não criam porcos, embora esta criação pudesse resolver ràpidamente o problema alimentar de Israel e ainda facilitar o balanço de pagamentos. Kerem Kayemeth, o Fundo Nacional, que possui a maior parte das terras, somente as libera na condição expressa de que o ocupante não criará porcos. Dessa maneira, mesmo os kibbutzim ateus da extrema esquerda se conforma ram com a vontade dos rabinos. O editor, primeiramente, tentou descobrir tôda uma série de desculpas “progressistas”, mas, então, o sangue subiu-lhe à cabeça e êle perdeu as estribeiras: — Por acaso você está sugerindo, dizia-me êle, quase gritando, — que para aliviar nosso estado econômico nós deveríamos permitir a criação de porcos nesta Terra Santa? Nuncal Nunca, nunca! Os israelenses, que há muito me conhecem como anti-sionista, devem estar curiosos para escutar o que penso sôbre o sionismo. Na verdade, há muito abandonei minha posição anti-sionista, baseada na confiança que eu depositava no mo vimento operário europeu ou, mais amplamente, na sociedade e na civilização européias, confiança esta que tanto a socie dade como a civilização não justificaram. Se, em vez de bradar contra o sionismo, por volta dos anos de 1920 e 1930, eu estimulasse os judeus europeus a ir para a Palestina, talvez
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ajudasse a salvar as vidas que, mais tarde as câmaras de gás de Hitler extingüiram. Para os remanescentes dos judeus europeus — seria ape nas para êles? — o Estado judaico tomara-se uma necessidade histórica. Qualquer que sejam as penas, aflições e frustrações, os judeus de Israel estão animados por um forte e vivo senti mento de nacionalidade e com uma determinação indomável para consolidar e fortalecer o seu Estado, utilizando para isso os meios que estiverem a seu alcance. Êles também sentem — de forma mais que justificável — que o “mundo civilizado”, cuja memória, de uma forma ou de outra, guarda bem vivo o drama do judaísmo europeu, não possui base moral para apoiar-se quando tenta advertir ou ameaçar Israel por qualquer falha, real ou imaginária, no âmbito internacional. Mesmo agora, entretanto, não sou sionista. Várias vêzes já disse isto, em público ou não. Os israelenses aceitam a afirmação com inesperada tolerância, mas parecem perplexos: — Como é possível não abraçar o sionismo — perguntam — se se reconhece que o Estado de Israel é uma necessidade histórica? Que pergunta penosa e difícil para se responder. De um navio em chamas, ou que se afunda, as pessoas pulam sem saber para onde — ou para um bote, balsa ou bóia. O pular para êles é uma “necessidade histórica”, e a balsa representa, de um modo, a base de tôda a sua existência. Mas, isto significa que se deveria dar o pulo dentro de um programa, ou que se deveria tomar um Estado-Balsa como base para uma orientação política? (Espero que os israelenses ou sionistas não se equivoquem com a expressão EstadoBal?a. A expressão descreve a precariedade de Israel, mas não significa uma depreciação dos seus feitos construtivos). A meu ver o fato de ter o mundo conduzido os judeus a procurar segurança numa nação-estado exatamente no meio dêste século, quando nação-estado está em decadência, repre senta apenas outra tragédia judaica. Através de vários séculos todo o desenvolvimento da vida das nações ocidentais vinculava-se à formação e ao crescimento de nações-estado ou à sua mudança para nações-estado. O judeu não tinha qualquer conexão com aquêle movimento e,
por isso, êle não se beneficiou. Permaneceu fechado em sua sinagoga e em sua lealdade religiosa. O homem ocidental, por outro lado, subordinava a lealdade religiosa à nacional. Situava-se mais dentro de sua nação do que dentro da reli gião. Somente agora, quando o homem já não vê crescer seu status dentro da nação e pode situar-se novamente dentro de uma comunidade supranacional, é que o judeu encontrou sua nação e seu Estado. Que melancólico anacronismo! — Ah! Mas nos mostre a nação que abandonou sua situação de Estado em benefício de um sonho cosmopolita ou intemacionalista — disse meu amigo israelense. Ninguém chegou a tanto, é claro; e não me ocorreu, tam pouco insinuar que os israelenses o fizeram. O problema é que a nação-estado se enfraquece e se desintegra, estejam os povos cientes disso ou não, pouco importando seus esforços para preservá-la. O processo é universal, adaptando-se, entre tanto, às variações locais. Muito da fòrça do bloco soviético consiste 110 seu esforço em unificar economicamente a área que se estende da Europa Central até os Mares da China e os esforços produtivos dos oitocentos milhões de homens que ali habitam. Para consegui-lo, o stalinismo reduziu a soberania nacional a uma farsa, embora os símbolos externos ficassem intactos. As nações-estado do ocidente preservaram muito mais do que simples fachadas simbólicas; mas elas, também, deixaram para trás. bem para trás. sua idade de ouro; e o seu apêgo à soberania é, mais freqüentemente do que aparen ta, a fonte de sua fraqueza. Como qualquer organismo que já viveu todos os seus dias, a nação-estado apenas pode prolongar sua existência pela intensificação de todos os processos da própria degeneração. No Terceiro Reich a nação-estado en controu 0 zênite e o nadir. ambos sua apoteose e sua Missa Negra. Integrando agora as fileiras das nações-estado. Israel não pode deixar de compartilhar, também, de sua decadência. Se alguém quisesse esquematizar uma paródia sòbre uma nação-estado creio que não produziria nada melhor do que o Estado de Israel, com todos os seus grotescos corredores, protuberâneias, pescoços e triângulos, esculpidos pelos mestres escultores das Nações Unidas.
A irracionalidade da nação-estado concentra-se, geral mente, nas suas fronteiras e na barreira dos costumes, onde uma nação se separa da outra. Dentro de uma fronteira, em dezenas, centenas e mesmo milhares de milhas quadradas, milhões de pessoas construíram seus lares e uma vida mais ou menos moral. Somente além daquele espaço, na próxima fronteira, é que a grande loucura da nação-estado, novamente nos salta aos olhos. Em Israel nunca poderemos evitar a visão dessa loucura: para onde quer que sigamos, daremos sempre em uma outra fronteira: “Atenção, lá nas colinas estão os sírios!” “Os árabes jordanianos se infiltram neste vale noite após noite!” “Lá longe, marcham as sentinelas egípcias”. “Cuidado com èste caminho aqui — leva diretamente ao Líbano, a trinta jardas daqui!” “Nós construímos esta estação de fôrça subterrânea, pois de outro modo èles poderiam destruí-la no primeiro dia de hostilidades”. “Aqui nossa estrada de ferro percorre três vèzes o territó rio estrangeiro”. “Não se viaja por esta estrada à noite: é por demais pró xima da fronteira”. Em Jerusalém. Moshe Sharett, o Primeiro-Ministro e Mi nistro das Relações Exteriores, levou-me até a janela do seu escritório e me mostrou uma duna e, atravessando-a, uma cer ca de arame farpado. A fronteira jordano-israelense, ou linha demarcatória, fica a poucos metros daqui. O Primeiro-Ministro tem apenas de levantar sua cabeça, la da escrivaninha, e dar de cara com o “inimigo”. Se a posteridade, por acaso, levantar um Museu dos Absurdos das Nações Unidas, provàvelmente exibirá a vista tirada da janela do Primeiro-Ministro. Deverá, também, exibir a cérca de arame farpado que corta o terreno do Hospital Francês, em Jerusalém; a guarita das sentinelas na Velha Muralha, oposta ao Monte Sion; e fotografias de crianças mortas à bala enquanto brincavam fora de suas casas no meio daquela confusão de arames farpados. A demência da nação-estado chegou à Israel e cortou em dois o berço das religiões do mundo.
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Analisada pelos padrões normais, chega-se à conclusão de que a economia de Israel está na bancarrota. Suas exportações cobrem os custos de apenas uma fração de suas importações. A maior parte do déficit é coberto pelas polpudas somas que saem do judaísmo norte-americano e o govêmo dos Estados Unidos manda como ajuda. Israel compra comidas caras e matérias-primas com libras e dólares e laboriosamente procura encontrar remotos mercados para seus próprios produtos. Nos velhos tempos, as estradas que ligam a Palestina a seus vizi nhos árabes eram cheias de carrêtas transportando comidas para Israel e de lá levando produtos industriais. Agora, êste comércio está em ponto morto porque o govêmo árabe se recusa a reconhecer a existência política de Israel e persiste em boicotá-lo. O Estado de Israel teve os explosivos colocados em suas fundações: o problema de centenas de milhares de árabes desalojados. Ninguém, com eqüidade, pode acusar os judeus por êste fato. Um povo perseguido por um monstro e correndo para salvar sua vida não pode evitar de ferir aquêles que estão no caminho, assim como não pode evitar de invadir proprie dades dos outros. Os judeus sentem que o mal por êles prati cado parece brincadeira de criança comparado com a sua própria tragédia. Isso é verdade, mas não impede que os árabes se sintam agravados e desejem vingança. Para os israe litas a Palestina nunca deixou de ser judaica. Para os árabes, os judeus são e continuarão para sempre invasores e intrusos. Por mais que se procure uma solução para o problema em têrmos nacionalistas, ambos, árabes e judeus, estão conde nados a se movimentar dentro de um círculo maldito, cheio de ódio e vingança. Os árabes assassinam mães e filhos. Os judeus massacram Kibiya. Os árabes esperam apenas uma reviravolta nas questões do Oriente Médio para, então, se permitirem esmagar Israel; enquanto isso, aguardam qualquer passo em falso que Israel possa dar. A esperança de Israel é de que os estados árabes continuem permanentemente tão atrasados, indolentes, corruptos e sem amigos como foram durante o conflito, pois, de outro modo, os israelenses, mesmo que se triplicassem em número, não sustentariam uma luta contra quarenta milhões de árabes. Cada contendor vê sua
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própria segurança e prosperidade na insegurança, privação e miséria do outro. Parece não haver saída imediata para a situação. No longo caminho a percorrer, pode-se encontrar a saída, sobre pujando-se a noção de nação-estado, talvez dentro de ampla esquematização de uma federação do Oriente Médio. Israel poderia então, entre os estados árabes, representar um papel tão modesto quanto o seu número e tão grande quanto seus recursos intelectuais e espirituais. Esta idéia, segundo me disseram, toma corpo entre os jovens políticos e estudiosos da política em ambos os lados, mas não parece muito provável que ganhe terreno num futuro próximo. Os judeus ainda estão por demais intoxicados com a sua recém-adquirida nação-es tado e os árabes excessivamente obcecados com suas queixas para olhar em frente. Qualquer organização supranacional, como uma federação do Oriente Médio, é puro Z ukunftsmuzik para ambos. Muitas vêzes, apenas a música do futuro é digna de se ouvir.
VI
Décimo Aniversário de Israel1
de “Dan até Beersheba” celebram o décimo aniversário da criação do seu Estado. Relembram com intenso orgulho o heroísmo com que, na primavera de 1948, seus homens e mulheres pegaram em armas e lutaram pela independência contra o domínio dos árabes e contra a intrigante e hesitante diplomacia das Grandes Potências. Tam bém recordaram com satisfação e confiança as etapas vencidas por Israel na primeira década, marcos de grandes empreen dimentos na construção da vida e cultura nacionais. O surgimento de Israel é, na verdade, como tôda a longa e dramática história dos judeus, um fenômeno único na sua O
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is r a e l e n s e s
1 The Observer, abril de 1958.
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classe, maravilha e prodígio da história, diante da qual judeus e não-judeus, atônitos e reverentes, perscrutam sua signifi cação. Sôbre temas como êsse foi que se criaram, em épocas remotas, os mitos heróicos e as grandes lendas como a de Termópilas e a dos Macabeus. Não surpreende, por conseguinte, que os israelenses ve jam sua própria experiência com alguma exaltação. “O que é o moderno Israel” — diz, por exemplo, o Sr. Abba Eban, um dos mais eloqüentes estadistas — “senão a união dêsse povo, terra e língua num sublime preenchimento de um ciclo histórico, uma ponte que se projeta ligando continentes, ge rações, simbolizando tôda a experiência histórica?" Não se pode, entretanto, julgar satisfatória essa solene interpretação romântica das origens e do significado de Israel. Ela envolve os fatos, que todos testemunhamos, com uma aura dourada de ficção. Ela recobre com o véu da fantasia as realidades de um passado nada distante; e pode prognosticar perigosa mente perspectivas irreais para Israel. Não mais vivemos nos tempos das lendas heróicas — mitos como êsse, criados em nossa época, desgastaram-se logo e tiveram curta existência. Israel mantém-se ímpar no mundo moderno, mas não deve sua existência a “um sublime preen chimento de um ciclo histórico... para simbolizar a unidade de tôda a experiência histórica”. Não foi o desejo ardente dos judeus por sua Terra Prometida que deu origem a Israel. Quais são, então os fatos? Antes do advento do nazismo, e mesmo depois dêle, inacreditàvelmente, a maioria dos judeus se recusava a responder aos apelos do sionismo. Até na Europa oriental, onde forma vam comunidades grandes e compactas, falando seu próprio idioma, desenvolvendo sua própria cultura e literatura e so frendo selvagem discriminação, êles se consideravam cidadãos do país onde viviam, ligados ao futuro dêsses países e não ao da Pátria Judaica, na Palestina. Considerável parte dos judeus da Europa oriental, principalmente os do grande e vigoroso movimento operário, via aquela idéia de pátria com irredutível e consciente hostilidade. Considerava-se o sionismo a mystique nacionalista da classe média judaica, que, entre tanto, não queria abandonar sua situação já estabilizada e
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tentar adaptar-se em outro lugar pelo bem do sonho sionista. Note-se que os judeus da Europa Oriental formavam a prin cipal reserva de onde os sionistas buscavam tôda a ajuda: de lá vieram a maioria de seus líderes, pioneiros e recrutas. Nos outros lugares a resposta ao chamamento sionista foi incomparàvelmente mais fraca. Os sionistas podem afirmar — e quem poderá negá-lo? — que os judeus europeus sobreviveriam se seguissem o seu apêlo. A verdade é que a hostilidade e a apatia dos judeus europeus para com a idéia de uma pátria judaica emanavam da confiança que tinham nos países onde viviam e da pro funda confiança nos ideais e tradições humanitárias da civi lização européia. O sionismo não via qualquer futuro para os judeus na Europa — êsse era o epítome político da des crença judaica no mundo não-judeu. Para eterna vergonha da Europa, aquela desconfiança provou ser mais do que justificada. Sòmente depois que isso se tomou evidente, depois que seis dos quinze milhões de judeus europeus morreram nas câmaras de gás, depois que os israelenses viram os ingleses caçar nos mares da Palestina os navios-fantasmas carregados de destroços do judaísmo euro peu, o Estado de Israel tomou-se uma realidade. Materiali zou-se não como “um preenchimento sublime de um ciclo his tórico”, mas como um gesto de desespêro e como monumento ao período mais triste da história européia, um período de loucura e decadência. Politicamente falando, Israel deve sua sobrevivência às circunstâncias curiosamente coincidentes que apenas se notam quando se focalizam os acontecimentos pelo prisma de um nacionalismo romântico. Os historiadores israelenses muito compreensivamente exploram a coragem, ingenuidade e faça nhas do Palmach, o pequeno Corpo de Defesa Judaico, que, embora reduzido em número, e sitiado, infligiu derrotas a vários grupos árabes armados. Alguns fatores, porém, favo receram os israelenses. Os árabes eram atrasadíssimos, divididos entre si e sem amigos. A Grã-Bretanha, dissolvendo seu império, retirava-se do Oriente Médio. Os Estados Unidos e a União Soviética, os principais antagonistas da nova era, estavam momentânea-
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mente unidos contra a Grã-Bretanha e obrigavam-na a recuar mais e mais. Os judeus, reduzidos em número, aproveitaramse das vantagens de uma superior organização e treinamento europeus; e traziam dos Estados Unidos e da Europa Ocidental o nervo e as armas com as quais lutavam na sua guerra de independência. O resultado da guerra poderia ser muito diferente se os árabes estivessem menos divididos, melhor ar mados e treinados, se a Grã-Bretanha não batesse em retirada e a União Soviética e os Estados Unidos os apoiassem. Êsse conjunto de fatores favoráveis a Israel era, por sua natureza, transitório. Mas disto parece que os líderes de Israel se esqueceram. Consciente ou inconscientemente êles projetam as circunstâncias de 1948 num futuro indefinido; e nessa pro jeção baseiam sua política. Embora temam um pouco o apoio que os governantes soviéticos deram ao nacionalismo árabe, os líderes israelenses parecem confiantes de que de algum modo sempre encontrarão mais amigos poderosos pelo mundo e acreditam que seus vizinhos árabes continuarão eternamente, ou, pelo menos, por um período bastante extenso, tão atrasados e divididos como há uns dez anos passados. Como que contaminados por um velho preconceito euro peu e desdém pelos asiáticos e africanos (desdém que os eu ropeus estão lenta mas firmemente erradicando através de amarga experiência), os israelenses subestimam as potencia lidades de seus vizinhos e sua capacidade de progresso. Ben Gurion às vêzes aparece como um dos últimos depositários da filosofia da capacidade do homem branco. Não há dúvida de que a aventura de Suez e o triste papel dos egípcios con firmaram nos israelenses êsse conceito. Dêste modo, então, o sucesso do seu exército nos desertos de Sinai poderá ser para Israel, a longo prazo, pior do que uma derrota. Eis que chegamos à encruzilhada das relações de Israel com o mundo: sua atitude diante nas nações que surgem na Ásia e na África. Quando se critica a política de Israel, depara-se-nos a resposta de que se deve considerar o surgimento de Israel como o acordar de um povo colonial ou semicolonial. “Afinal de contas, essa (crítica) se aplica a quase tôda a Ásia e África” — diz um progressista escritor sionista. “Israel não estava sozinho. Havia a Índia, a Birmânia, o Ceilão, Gana,
Nigéria, Marrocos, Tunísia, Líbia, Sudão — e o processo con tinua”. Aqui, novamente, confundem a fantasia com a realidade. O aparecimento da Índia, Birmânia e Gana, etc., livres da sujeição colonial, como estados independentes, constitui um processo orgânico, social e político completamente diverso da quele por que passou Israel. E o que é pior: Israel está em conflito aberto ou latente com muitas das nações que surgem na Ásia e na África. Israel não pode seguir os dois caminhos: apresentar-se como uma dessas nações, reclamar para si os direitos que lhe seriam devidos e, ao mesmo tempo, seguir seus próprios interêsses, reais ou imaginários, em firme oposição a essas nações ou em altivo alheamento. Esta oposição decorre, em parte, das circunstâncias que deram origem ao Estado de Israel: no seu nascedouro não se pôde evitar que se infringissem direitos dos árabes. Mas, em seu próprio interêsse, Israel devia e deveria ter feito todo o possível para abrandar aquêle rancor árabe e mitigar o anta gonismo. Em vez disso, fêz o que estava ao seu alcance para exacerbar e perpetuar o antagonismo — culminando com a invasão do Sinai. No balanço da primeira década de Israel, essa constitui uma falta séria e perigosa que, com o correr do tempo, poderá sobrepujar muitas vantagens importantes. A íongo prazo, Israel não sobreviverá à beira da Ásia e da África e em conflito com elas. Israel tomou-se um refúgio celeste para os judeus sobreviventes da Europa. Não permitamos que se tome para êles a armadilha mortal. O fato de que os judeus só conseguiram sua soberania nos meados dêste século, quando, de ano para ano, a obsoles cência da nação-estado toma-se cada vez mais óbvia, repre senta um triste paradoxo da história. Êles não estavam asso ciados com a nação-estado em seus áureos tempos, quando, para tantas pessoas isto constituía fator de progresso moral e material e marcava um avanço sôbre o particularismo medie val, que, varrendo resquícios do feudalismo, ajudou a libertar os europeus da servidão espiritual da Igreja. O judaísmo modemo, por mais que seu horizonte mental não esteja con finado à Sinagoga e à praça do mercado, deu à Europa os
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maiores expoentes do pensamento universal, de Spinoza e Marx. Os judeus estavam condicionados, pelas circunstâncias de sua existência, a ultrapassar as limitações da visão nacionalis ta, a sobrepujar o fetichismo do estado ou império e a almejar uma forma supranacional de existência social. Agora, entre tanto, quando a nação-estado está em decadência, quando se tomou um anacronismo crasso semelhante a um principado feudal em plena época da revolução industrial e quando a permanente revolução na tecnologia vai ao encontro de uma forma supranacional de existência, que constitui uma questão de vida ou morte para a humanidade, os judeus empregam ilimitado entusiasmo e grandes valores na sua própria naçãoestado, no seu próprio nacionalismo. A culpa não é dos judeus e o mundo não-judeu não tem autoridade moral para acusá-los. Mas o paradoxo aí está; e os judeus bem podiam ser mais conscientes disso do que o são. Na verdade, não se pode esperar que Israel dê ao mundo o exemplo e lidere o abandono da nação-estado por formas mais altas de organização social; mas, os israelenses podiam, ao menos, ter uma visão mais sensata de seu dilema e de suas responsabilidades e prevenir-se para que o recéminventado e exacerbado nacionalismo não os arraste. Devem, ainda, acostumar-se à idéia de que seu estado não está isento de críticas: que é uma criação terrena e não uma santidade bíblica, uma nação-estado “escolhida”. Uma vez mais os judeus israelenses devem também re cordar o nacionalismo das outras “jovens” nações, dos india nos, dos egípcios, etc. Em nenhum caso, entretanto, a incon sistência é tão evidente, pois nenhum dêsses povos tem a tradição de cosmopolitismo ou intemacionalismo comparável à dos judeus. E, evidentemente, o nacionalismo dêsses povos é passível das mesmas críticas e objeções. O entusiasmo de um povo lutando para emancipar-se de um domínio estrangeiro merece respeito e admiração. Mas, freqüentemente, acontece que, depois de conseguir a emanciação continua a decantar-se e a abusar do entusiasmo, inuenciando atitudes políticas que não merecem qualquer res peito. Para um povo subjugado, a independência constitui
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necessidade vital e progresso; uma vez, porém, que êsse povo atingiu o estágio da independência, nada pode ser mais re trógrado para êle do que acomodar-se nessa condição e recusar-se a evoluir. O nacionalismo de um povo soberano não pode reclamar para si as mesmas justificativas do nacionalismo de um povo oprimido. Não se trata apenas de princípios abstratos. O futuro de Israel pode muito bem depender de que os israelenses se defendam do conceito de nacionalismo ou de que sejam ca pazes de achar uma linguagem comum com os povos que os rodeiam. Conseguirão encontrá-la na segunda década de sua existência? É o que ardentemente lhes deseja um amigo do povo de Israel.
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VII
A Guerra / Entre Arabes e Judeus de Junho de 1967
e R milagrosa vitória de Israel não resolveram nenhum dos problemas existentes entre Israel e os es tados árabes. Agravaram, pelo contrário, tôdas as velhas pen dências e criaram outras, novas e perigosas. Não aumentaram a segurança de Israel e sim o tomaram mais vulnerável do que o era antes de 5 de junho de 1967. Êsses “seis dias mara vilhosos”, êsse último triunfo por demais fácil do exército israelense aparecerá um dia, num futuro não muito remoto, como, na verdade, um verdadeiro desastre para Israel. Analisemos o background internacional do problema. Te mos de relacionar essa guerra com a grande luta de potências e conflitos ideológicos no mundo que forma o seu contexto. Nesses últimos anos, o imperialismo americano, seus associa dos e as fôrças que êle financia, envolveram-se numa tremen guerra
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da ofensiva política, ideológica, econômica e militar sôbre vasta área da Ásia e da África, enquanto as fôrças que se opunham à sua penetração, a União Soviética em primeiro lugar, mal se sustentavam em pé ou tinham de recuar. Esta tendência emerge de uma longa série de acontecimentos: re volta em Gana, quando caiu o govêmo de Nkruma; o cresci mento da reação em várias nações afro-asiáticas; o sangrento triunfo anticomunista na Indonésia, que significou importante vitória da contra-revolução na Ásia; as etapas da guerra ame ricana no Vietnã e o golpe militar da ala direita “marginal” na Grécia. A guerra árabe-israelense não constitui aconteci mento isolado; pertence àquela categoria de acontecimentos. A contra-tendência, manifestou-se numa fermentação revolu cionária em várias partes da índia, na radicalização das táti cas políticas nos países árabes, na luta efetiva da Frente de Libertação Nacional, no Vietnã, e no aparecimento em todo o mundo da oposição à intervenção americana. O avanço do imperialismo americano e da contra-revolução afro-asiática não sem oposição, mas seu sucesso, excluindo o Vietnã, foi evidente. No Oriente Médio o progresso do avanço americano é de data relativamente recente. Durante a guerra de Suez, os Estados Unidos ainda adotavam uma posição de “anticolonialismo” e agiam aparentemente de acôrdo com a União Sovié tica para alcançar a retirada da França e da Grã-Bretanha. A lógica da política americana ainda era a mesma da que desenvolveu, por volta de 1940, quando o Estado de Israel ainda não passava de projeto. Enquanto a classe dominante americana estivesse bàsicamente interessada em expelir da África e da Ásia potências coloniais, a Casa Branca represen tava apoio do “anticolonialismo”. Mas, havendo contribuído para a queda dos velhos impérios, os Estados Unidos ficaram horrorizados ante a possibilidade de que fôrças revolucionárias locais, da União Soviética ou uma combinação de ambas, pre enchessem aquêle vácuo. O anticolonialismo ianque desva neceu-se e, então, “surgiu” a América. No Oriente Médio, isso aconteceu entre o período que vai da crise de Suez à última guerra israelense. Os desembarques de fôrças mili tares americanas no Líbano, em 1958, tinham a intenção de 116
reter a onda de revoluções naquela área, especialmente no Iraque. Desde então, os Estados Unidos, sem dúvida confian do de algum modo na “moderação” soviética, evitou um en volvimento militar, aberto ou velado, no Oriente Médio, e manteve uma posição de quase alheamento. Esta posição, porém, não toma a presença americana menos real. Os israelenses, é claro, agiram e agem segundo seus pró prios interesses e não apenas seguindo as conveniências da política americana. Que seus líderes e a grande massa de israelenses crêem ameaçados pela hostilidade árabe, não há sombra de dúvida. Que algumas “sanguinolentas” declarações árabes, tal como “varrer Israel do mapa”, arrepiaram os israe lenses, também isto é verdade. Os israelenses vivem assom brados pelas lembranças da tragédia judaica na Europa e, agora, sentem-se isolados, envolvidos pelos milhões “formigantes” do mundo árabe hostil. Nada foi mais fácil para os seus propagandistas ajudados pelos excessos verbais característicamente árabes, do que apresentar o temor de uma “solução final” ameaçando os judeus, e desta vez na Ásia. Os propa gandistas, evocando mitos bíblicos e todos os antigos símbolos religioso-nacionais da história judaica, instigaram beligerância frenética, arrogância e fanatismo de que os israelenses deram aquela amostra inicial, ao invadir o Sinai, indo até o Muro das Lamentações, ao Jordão e às Muralhas de Jericó. Por detrás do frenesi e da arrogância esconde-se abafado sentimento de culpa em relação aos árabes, o sentimento de que os árabes não perdoam e jamais esquecerão o golpe que Israel lhes infligiu: a tomada de suas terras, o destino de milhões de re fugiados e as repetidas derrotas militares e humilhações. Le vados a uma quase loucura pelo mêdo de uma vizinhança árabe, os israelenses aceitaram, quase unânimemente, a “dou trina” inspirada na política governamental, segundo a qual a segurança de Israel se baseia em periódicos atos de guerra, que, de tempos em tempos, reduzem os estados árabes à impo tência. Quaisquer que sejam seus motivos e temores, todavia, os israelenses não são e não podem agir independentemente. Os
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fatores da independência de Israel estão de algum modo “em butidos” na sua história destas últimas décadas. Todos os governos israelenses basearam a existência de Israel numa “orientação ocidental”, o que por si só bastaria para torná-lo um pôrto avançado do Ocidente no Oriente Médio e, dêsse modo, envolvê-lo no grande conflito entre o imperialismo (ou neocolonialismo) e a luta dos povos árabes pela sua emanci pação. Outros fatores estiveram em jôgo também. A economia de Israel dependia, para seu sensível equilíbrio e melhoria, da ajuda financeira de sionistas estrangeiros, especialmente de doações americanas. Essas doações constituíram uma disfar çada maldição para o nôvo estado. Permitiram ao govêmo cuidar de seu balanço de pagamentos de forma que país ne nhum do mundo o faria sem ter de negociar com os vizinhos. O afluxo de fundos vindos de fora destorceu a estrutura eco nômica de Israel, encorajando o crescimento de grande e im produtivo setor e proporcionando-lhe um padrão de vida que não tem qualquer relação com a produtividade e renda pró pria do país.1 Isto, é certo, mantém Israel infalivelmente bem dentro da “zona de influência ocidental”. Israel tem, na ver dade, vivido muito além de suas possibilidades. Durante muitos anos, quase a metade da alimentação de Israel consu mida era importada do Ocidente. Como a administração ame ricana isentava de taxação proventos e rendas rotulados como doações para Israel, o Tesouro de Washington tinha sempre as mãos cheias para o que necessitasse a economia daquele país. Washington podia a qualquer tempo atingir Israel, apenas se recusando a conceder isenção de taxas (muito em bora isso causasse a perda de votos de judeus nas eleições). A ameaça de tal sanção, nunca mencionada, mas sempre pre sente, e ocasionalmente insinuada, foi o bastante para ajustar firmemente a política de Israel aos ditames dos Estados Unidos. 1 Nos últimos anos Israel recebeu até duzentos e cinqüenta milhões de dólares anualmente em doações e empréstimos de potências ociden tais, em ajuda dos Estados Unidos e em contribuição de judeus de vários países. Essa quantia dá aproximadamente uma base de 125 dólares anuais para cada cidadão israelense.
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Há anos, quando visitei Israel, alto oficial israelense enumerou-me a série de indústrias que o seu país não podia construir em virtude de objeção americana — entre elas, usi nas de aço e indústrias para produção de maquinaria agrícola. Por outro lado, havia uma lista de fábricas, pràticamente inú teis, atingindo uma fantástica quantidade de utensílios plás ticos de cozinha, brinquedos, etc. Do mesmo modo, qualquer administração de Israel nunca podia sentir-se bastante livre para considerar a necessidade vital de estreitar laços comer ciais e econômicos com o mundo árabe, de melhorar suas re lações econômicas com a URSS e com a Europa oriental. A dependência econômica afetou a política interna de Israel e a “atmosfera cultural”, de outras formas, também. O doador americano é também o mais importante investigador es trangeiro que opera na Terra Santa. Um rico judeu americano, um “negociante mundano”, entre seus associados não-judeus e seus amigos de New York, Filadélfia ou Detroit é, no fundo, profundamente orgulhoso de ser membro do povo eleito e exerce, em Israel, influência no sentido do obscurantismo reli gioso e da reação. Crente fervoroso da livre empresa, vê com olhos hostis mesmo o mais brando “socialismo” do Histradruth ou dos kibbutzim e faz o que pode para anulá-lo. E, além do mais ajuda os rabinos a manter seu domínio tanto sôbre a le gislação como sôbre a educação e a ter sempre vivos o espírito da exclusividade e superioridade racial talmúdica. Isto tudo alimentou e inflamou as divergências com os árabes. A guerra fria concedeu grande momento às tendências reacionárias em Israel e exacerbou o conflito árabe-israelense. Israel entregava-se firmemente ao anticomunismo. Na verdade, a política dos últimos anos de Stalin, movimentos anti-semitas na URSS, razões antijudaicas nos julgamentos de Slansky, Rajk e Kostov, e o incentivo soviético mesmo às formas mais irra cionais de nacionalismo árabe, tudo tem a sua parte de respon sabilidade na atitude de Israel. Não se deve esquecer, porém, que Stalin foi padrinho de Israel; que foi com munições da Tchecoslováquia, concedidas graças às ordens de Stalin, que os judeus lutaram contra o exército britânico de ocupação — e contra os árabes — em 1947-48; e que o delegado soviético foi o primeiro a votar a favor do reconhecimento do Estado
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de Israel pelas Nações Unidas. Pode-se dizer que a mudança de atitude de Stalin representou, em suma, a reação lógica ao alinhamento de Israel com o Ocidente. E, após Stalin, Israel persistiu nessa mesma posição. A irreconciliável hostilidade às aspirações árabes de uni dade e emancipação nacional tomou-se, entretanto, o axioma da política israelense. Daí o papel de Israel na guerra de Suez, em 1956. Ministros social-democratas de Israel, não menos que os colonialistas ocidentais, abraçaram uma raison cL’état que considera alta sabedoria manter os árabes divididos e atrasados e jogar seus reacionários hashenitas e outros elementos feudais contra os republicanos, fôrças nacional-revolucionárias. Mal começava 1967, quando parecia que um levante republicano ou um golpe poderia depor o Rei Hussein, o govèmo do Sr. Eshkol não fêz segredo de que, em caso de um “golpe nasserista” em Aman, as tropas israelenses marchariam sôbre a Jor dânia. E o prelúdio para os acontecimentos de junho último partiu de Israel ao adotar uma atitude ameaçadora a respeito do nôvo regime da Síria, denunciado como “nasserista” ou mesmo “ultranasserista” (pois o govèmo da Síria parecia ser uma sombra mais antiimperialista e mais radical do que o go verno egípcio). Planejaria, de fato, Israel atacar a Síria a qualquer mo mento, em maio, como acreditava o Serviço Secreto Soviético e Moscou avisou a Nasser? Não sabemos. Foi como resposta a êsse aviso, e com o apoio moral dos soviéticos que Nasser ordenou a mobilização e concentração das tropas na fronteira do Sinai. Se Israel tivesse, na realidade, êsse projeto, a mobili zação de Nasser atrasou o ataque à Síria apenas algumas se manas. Se Israel não o tivesse, seu comportamento daria às ameaças anti-sírias aquela plausibilidade que as ameaças árabes continham aos olhos dos israelenses. Em qualquer caso, os governantes de Israel estavam bastante certos de que sua agressividade vis-à-vis da Síria, ou do Egito encontraria no Ocidente tôda a simpatia e lhes traria alguma recompensa. Essas suposições apoiaram sua decisão de ordenar o inespe rado ataque em 5 de junho. Estavam absolutamente certos do apoio moral, político e econômico americano, e de algum modo, também britânico. Mesmo que se excedessem num ataque
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aos árabes, poderiam contar — e isto o sabiam —, com a proteção diplomática americana ou, pelo menos, com a indul gência americana oficial. E, não erravam. A Casa Branca e o Pentágono não poderiam deixar de apreciar homens que, por suas próprias razões se decidiram a abater árabes, inimigos do neocolonialismo norte-americano. O Gen. Dayan atuou como se fôsse o Gen. Kao Ky do Oriente Médio e apareceu fazendo o seu serviço com fulminante rapidez, eficiência e crueldade. Êle foi —e é —uma figura mais vulgar e um aliado menos em baraçoso do que Ky. O comportamento árabe, especialmente a diversificação de idéias e a hesitação de Nasser nas vésperas das hostilidades apresentam chocante contraste com a determinação e a desi nibida agressividade de Israel. Tendo, com o encorajamento soviético, mobilizado suas tropas para a fronteira do Sinai e, ainda, colocado em posição seus mísseis de fabricação russa, Nasser então, sem consultar Moscou, proclamou o bloqueio do Estreito de Tirã. Foi um ato de provocação, embora, prati camente, de limitada significação. As potências ocidentais não o consideraram suficientemente importante para tentar e “testar” o bloqueio. Nasser sentiu aumentar seu prestígio e se capacitou a proclamar que arrebatara de Israel o último fruto de sua vitória de 1956 (antes da guerra de Suez os navios israelenses não podiam passar por êste Estreito). Os israelenses apresentaram o bloqueio como um perigo mortal para sua eco nomia, o que na realidade não era, e responderam com a mobi lização de suas fôrças, levando-as para as fronteiras. A propaganda soviética ainda continuava, publicamente, a encorajar os árabes. Uma Conferência dos Partidos Comunis tas do Oriente Médio, que teve lugar em maio (e cujas reso luções foram resumidas pelo Pravda), foi, entretanto, estranha mente reticente a respeito da crise e fêz alusões críticas a Nasser. Muito importantes eram as curiosas manobras diplo máticas por detrás dos bastidores. Em 26 de maio, altas horas da madrugada (às 2,30) o embaixador soviético acordou Nasser para avisar-lhe seriamente de que o exército egípcio não devia ser o primeiro a abrir fogo. Nasser concordou. Sua
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concordância foi tão completa que êle não apenas refreou o início das hostilidades, como tampouco tomou qualquer pre caução contra a possibilidade de ataques israelenses: deixou os aeroportos indefesos, e os aviões em terra e sem camufla gem. Não se preocupou sequer em minar o estreito de Tirã ou de colocar alguns canhões em ambas as margens (deixan do-os como os israelenses, para surprêsa sua, os encontraram). Tudo isto sugere irremediável desacêrto por parte de Nasser e por parte do Comando egípcio. Mas, os verdadeiros artífices dêste fiasco estão no Kremlin. A atitude de Bresnev e de Kossiguin, durante os acontecimentos, representam uma reminiscência do comportamento de Kruschev na crise cubana, embora ainda fôsse mentalmente mais confusa. O padrão era o mesmo. Houve, na primeira fase, provocações desnecessá rias de outro lado e impetuosos movimentos militares junto às fronteiras; na outra, pânico súbito e uma retirada apressada; e então seguiram-se atos desarrazoados com o intuito de salvar as aparências e de apagar os rastos. Depois de excitar o mêdo árabe, de encorajá-lo a fazer manobras arriscadas, prometendo estar a seu lado, e de haver mesmo trazido suas próprias uni dades navais para o Mediterrâneo a fim de conter as manobras da VI Frota dos EUA, os russos, então, amarraram os pés e as mãos de Nasser. Por que agiram assim? As pressões aumentavam aumentavam e a “linha quente” entre o Kremlin e a Casa Branca entrou em ação. As duas grandes potências concordaram em evitar qualquer inter venção direta e em tentar refrear as partes em conflito. Se os americanos cumpriram as moções de conter os israelenses, devem tê-lo feito de maneira tão negligente ou com tanto piscar de olhos que os israelenses se sentiram, na realidade, encorajados a prosseguir com seu plano de atacar primeiro. (Não vimos, de modo algum, o embaixador norte-americano acordar o Primeiro-Ministro israelense para admoestá-lo no sentido de que não fôsse o primeiro a abrir fogo). A ação soviética sôbre Nasser foi dura, rude e positiva. Mesmo assim, as falhas de Nasser, não tomando elementares precauções mi litares, permanece sem explicação. Será que o embaixador so viético, quando de sua visita noturna, disse a Nasser que Moscou estava seguro de que Israel não atacaria primeiro?
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Teria Washington dado a Moscou essa certeza? E Moscou foi assim tão crédulo que aceitou a sua palavra como verdade e agiu nessa certeza? Parece quase impossível que os fatos ocor ressem assim. Mas somente essa versão para os acontecimentos explicaria a inatividade de Nasser e a surpresa assombrosa que tomou conta de Moscou ao início das hostilidades. Por trás de tôdas essas falhas surgem as primeiras con tradições da política soviética. Por um lado, os líderes sovié ticos vêem que está na preservação de um status quo inter nacional, incluindo o status quo social, a condição essencial de sua segurança nacional e da “coexistência pacífica”. Estão ansiosos, além disso, de se manterem a uma “distância segura” dos centros tempestuosos dos conflitos de classe no mundo e em evitar perigosas confusões no Exterior. Por outro lado, não podem por motivos ideológicos e de fôrça política evitar, total mente, tais confusões. Não podem manter-se à distância quando o neocolonialismo americano se choca direta ou indiretamente com seus inimigos afro-asiáticos ou latino-americanos, que olham para Moscou como protetor e amigo. Em tempos nor mais, esta contradição é apenas latente, Moscou trabalha para uma détente e aproximação dos EUA e, cautelosamente, ajuda e arma seus amigos afro-asiáticos e cubanos. Mas, cedo ou tarde, o momento da crise chega e a contradição explode no seu rosto. A política soviética deve, então, escolher entre os aliados e protegidos, trabalhando contra o status quo, ou seu próprio empenho para manter o status quo. Quando a esco lha é apressada e inelutável, opta-se pelo status quo. O dilema é real e bastante perigoso nesta era nuclear. Mas, o problema também é igual para os EUA que estão tão inte ressados quanto a URSS em evitar a guerra mundial e o con flito nuclear. Isto, entretanto, limita muito menos a sua liber dade de ação e de ofensiva político-ideológica do que restringe a liberdade soviética. Washington tem muito menos mêdo das possibilidades que, por qualquer atitude de um de seus pro tegidos ou mesmo pela própria intervenção militar, possam levar as superpotências a uma confrontação direta. Depois da crise cubana e da guerra do Vietnã, a guerra árabe-israelense iluminou, mais uma vez e de forma bem clara, a diferença.
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De algum modo as relações árabe-israelenses desde a Se gunda Guerra Mundial e mesmo desde a Primeira determinou a presente situação. Creio, entretanto, que houve algumas opções para os israelenses. Existe uma parábola, que narrei certa vez tentando apresentar êsse problema a uma platéia israelense. Um homem pulou do último andar de uma casa em chamas, na qual muitos membros de sua família pereceram. Conseguiu salvar sua vida; mas, na queda, atingiu uma pessoa que estava próxima, quebrando-lhe a perna e os braços. Para o homem que saltou não havia escolha; porém, para o que teve as pernas e braços quebrados, aquêle homem era a causa de sua desventura. Se os dois agirem com a razão não se tor narão inimigos. O homem que escapou da casa em chamas, ao recobrar-se, poderia tentar socorrer e consolar o outro so fredor; e êste podia perceber que fôra vítima das circunstân cias, que nenhum dos dois controlava. Mas, observem o que acontece quando essas pessoas se comportam irracionalmente. O que ficou ferido culpa o outro pela sua desgraça e jura que o fará pagar por isso. O outro, temendo a vingança do homem que êle aleijou, insulta-o, chuta-o e surra-o tôdas as vêzes que o encontra. O homem pisoteado outra vez jura vingar-se e, de nôvo, é esmurrado e castigado. A inimizade, tão fortuita no comêço, agravou-se e eclipsa a existência inteira daqueles homens e envenena seus espíritos. — Esto Estou u ce cert rtoo de qu que vocês, re remanesce escenntes tes do do jud judaísmo europeu em Israel, se reconheceram naquele homem que pulou da casa em cham chamas as — disse disse à platéia israelense. O outro outro perso nagem representa, òbviamente, os palestinos, que constituem mais de um milhão e que perderam suas terras e seus lares. Êles estão ressentidos: vêem além das fronteiras aquilo que já lhes pertenceu, invadem às escondidas e juram vingança. Vocês lhes batem e chutam impiedosamente; já mostraram que o sabem fazer muito bem. Mas, que sentido isso tem e quais são as perspectivas? A responsabilidade pela tragédia do judaísmo europeu, por Auschwitz, Majdanek e pelos morticínios nos guetos, re pousa inteiramente na “civilização” burguesa ocidental, da qual o nazismo é uma decorrência, se bem que degenerada.
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Porém, parece que os árabes tiveram de pagar o preço pelos crimes que o Ocidente cometeu contra os judeus. E fazem-nos pagar, pois certamente o “sentimento de culpa” do Ocidente é pró-israelenses e antiárabes. E quão fàcilmente Israel permi tiu-se subornar e enganar pela falsa “consciência do dinheiro”. Um relacionamento racional entre israelenses e árabes seria possível se, pelo menos, Israel tentasse estabelecê-lo, se o homem que pulou da casa em chamas tentasse fazer-se amigo da vítima de seu pulo e a recompensasse por êsse motivo. Isso, porém, não aconteceu. Israel nunca reconheceu as queixas árabes Desde o início do sionismo, trabalhou no sentido da criação de um estado puramente judeu e ficou contente de limpar o país de seus habitantes árabes. Nenhum govèmo israelense jamais procurou qualquer oportunidade para remo ver ou aliviar as queixas. Recusaram-se mesmo a considerar aquela grande massa de refugiados árabes a menos que os estados árabes, primeiro, reconhecessem Israel, isto quer dizer, a menos que os árabes se rendam politicamente antes de co meçarem as negociações. Talvez se possa desculpá-lo, por se tratar de barganha tática. O fato que mais agravou as rela ções árabe-israelenses foi a guerra de Suez, quando Israel, de savergonhadamente, agiu como ponta de lança dos velhos e decadentes imperialismos europeus no seu último pôsto comum no Oriente Médio, na sua última tentativa de manter suas garras no Egito. Os israelenses não tinham motivo para se alinharem com os acionistas da Companhia do Canal de Suez. Os prós e os contras eram bem claros; não havia questão de certo ou errado em ambos os lados. Os israelenses puseram-se totalmente, política e moralmente, no lado errado. Aparentemente, o conflito árabe-israelense nada mais é do que o encontro de dois nacionalismos rivais, cada um movimentando-se dentro do vicioso círculo de seus próprios direitos e exageradas ambições. Do ponto de vista de um abstrato intemacionalismo nada seria mais fácil do que repudiar a ambos como igualmente desprovidos de valor e reacionários. Êsse ponto de vista, entretanto, ignoraria as realidades polí ticas e sociais da situação. Não se deve colocar o nacionalismo de povos semicoloniais ou coloniais, lutando por sua indepen dência no mesmo nível moral e político do nacionalismo dos
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conquistadores e dos opressores. O primeiro tem justificativas históricas e aspectos progressistas que o segundo não tem. E, claramente, o nacionalismo árabe pertence à primeira cate goria. Mas o de Israel, não. Mesmo o nacionalismo dos explorados e dos oprimidos não se deve apreciar sem críticas, pois existem várias fases no seu desenvolvimento. Numa fase, prevalecem as aspirações progressistas; em outra, as tendências reacionárias vêm à tona. Desde o momento em que se consegue ou quase se consegue a independência, o nacionalismo tende a aniquilar completa mente os aspectos revolucionários, transformando-se numa ideologia retrógrada. Vimo-lo acontecer na Índia, Indonésia, Israel e, sob certos aspectos, mesmo na China. E, ainda, na fase revolucionária, cada nacionalismo tem suas raias de irra cionalidade, uma inclinação para a exclusividade, para o egoís mo e o racismo nacional. O nacionalismo árabe, a despeito de todos os seus méritos históricos e da sua função progressista, sempre trouxe inerente a si êsses ingredientes reacionários. A crise de junho revelou algumas das fraquezas básicas da ação e do planejamento político árabe: a falta de estratégia política; uma tendência para a auto-intoxicação nacional e excessiva confiança na demagogia nacionalista. Essas fraque zas estão entre as causas decisivas da derrota árabe. Ao per der-se em ameaças de destruição de Israel e mesmo de “exter mínio” — quando o incrível despreparo militar dos árabes provou que não tinham nexo, alguns propagandistas jordanianos e egípcios deram assunto de sobra para o chauvinismo israelense, facilitando ao govêmo daquele país levar o povo até o paroxismo do mêdo e da agressividade, que, em seguida, estourava em cima da cabeça dos árabes. A guerra, na verdade, é a continuação da política. A guerra dos seis dias mostrou a relativa imaturidade dos atuais regi mes árabes. Os israelenses não devem sua vitória única e exclu sivamente ao inesperado ataque, mas a uma organização mais moderna, econômica, política e militar. De certo modo, a guerra trouxe algum equilíbrio ao desenvolvimento árabe nestes dez anos, desde o episódio de Suez, e revelou seus mais graves problemas. A modernização das estruturas sócio-econômicas egípcias e de outros países árabes, bem como do pensamento
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político, processa-se muito mais lentamente do que possam imaginar as pessoas inclinadas a idealizar os atuais estados árabes. O persistente atraso prende-se, como se vê, às condições sócio-econômicas. Mas, as ideologias e os métodos de organi zação dos árabes são em si mesmos fatores de fraqueza. Estou pensando no sistema de partido único, no culto do nasserismo e na ausência de liberdade de discussão. Tudo isso impediu bastante a educação política das massas e o trabalho de escla recimento socialista. Sentiram-se em vários níveis os resulta dos negativos. Quando as decisões mais importantes de polí tica dependem de um líder mais ou menos autocrático, não há, em tempos normais, nenhuma genuína participação popu lar no processo político, nenhuma consciência vigilante e ativa, nenhuma iniciativa vinda de baixo. Daí as diversas conseqüên cias, inclusive militares. O imprevisto ataque de Israel, com as armas convencionais, não teria aquêle impacto devastador se as fôrças do Egito estivessem acostumadas a confiar na iniciativa de seus oficiais e soldados. Os comandantes locais tomariam naturalmente as precauções defensivas elementares sem dependerem de ordens superiores. A ineficiência militar aqui refletia extensa e profunda fraqueza político-social. Os métodos burocráticos do nasserismo também impediam a inte gração política do movimento árabe de libertação. A dema gogia nacionalista floresce fácil demais; mas não o substitui um verdadeiro impulso para a unidade nacional e para a real mobilização das fôrças populares contra os elementos discor dantes, feudais e reacionários. Vimos, agora, durante a emer gência, o quanto a excessiva confiança num só líder faz com que o destino dos árabes dependa, de fato, da intervenção de grande potência e de acidentes de manobras diplomáticas. Os israelenses agora se apresentam, grotesca e paradoxal mente, como os prussianos do Oriente Médio. Já venceram três guerras contra seus vizinhos, os árabes. O mesmo fizeram os prussianos há um século atrás, derrotando, em poucos anos, seus vizinhos: os dinamarqueses, os austríacos e os franceses. A sucessão de vitórias alimentou nêles a absoluta confiança na
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sua eficiência, cega confiança nas suas armas, arrogância chau vinista e desprêzo pelos outros povos. Temo que uma degeneração semelhante — pois isso é degeneração — possa acon tecer com o caráter político de Israel. Mas, como a Prússia do Oriente Médio, Israel pode apenas representar lamentável pa ródia do original. Os prussianos, pelo menos, tiveram a habi lidade de unir no seu Reich todos os povos de língua alemã que viviam fora do Império Austro-húngaro. Os vizinhos da Alemanha estavam divididos entre si pelos interêsses, pela his tória, religião e língua. Bismarck, Guilherme II e Hitler podiam jogá-los uns contra os outros. Os israelenses estão rodeados somente de árabes. Qualquer tentativa de jogar os árabes uns contra os outros está fadada ao fracasso final. Em 1948, quando Israel provocou a primeira guerra, os árabes estavam em de sarmonia entre si; em 1956, quando da segunda guerra de Israel, estavam muito menos divididos e, em 1967, formavam uma frente comum. E podem demonstrar muito maior união em qualquer futura refrega com Israel. Os alemães resumiram sua experiência própria nessa amarga frase: “Man kann sich totsiegen!” (“Vencer, vencer e vencer até cair morto”). Isto é o que os israelenses estão fa zendo. Abocanharam muito mais do que podiam engolir. Nos territórios conquistados e em Israel existem, agora, aproxima damente milhão e meio de árabes, bem mais do que quarenta por cento da população total. Conseguirão os israelenses expulsar essa massa a fim de conservar “seguramente” as terras conquistadas? Isto poderia criar nôvo problema com os refu giados, problema muito mais extenso e perigoso do que o an tigo. Ou desistirão dos territórios conquistados? Não, diz a maioria dos líderes. Ben Gurion, o espírito mau do chauvi nismo israelense, evidencia a necessidade da criação de um “Estado Árabe Palestino” no Jordão, que seria um protetorado israelense. Acredita Israel que os árabes aceitarão tal prote torado? Que não o combaterão com unhas e dentes? Nenhum dos partidos de Israel está preparado para contemplar um estado binacional, árabe-israelense. Muitos árabes, enquanto isso, foram “induzidos” a deixar seus lares no Jordão, mas o tratamento àqueles que ficaram é muito pior do que o da minoria de árabes que, por dezenove anos, viveu sob a lei
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marcial de Israel. Esta vitória é, entretanto, pior do que a derrota para Israel. Longe de dar a Israel a almejada segu rança, isto aumentou a insegurança. Se é o extermínio e a vingança, por parte dos árabes que qs israeflenses temem, êles se comportam como se estivessem prontos a transformar o espectro em ameaça atual. Houve um momento, quando os canhões se calaram, em que pareccu, como conseqüência da derrota do Egito, bastante provável a queda de Nasser e a ruína da política associada com seu nome. Se isto acontecesse, o Oriente Médio se voltaria, quase que certamente para a esfera de influência do Ocidente. O Egito tomar-se-ia outra Gana ou outra Indonésia. Mas, nada disso aconteceu. Evitou-o aquela multidão de árabes que veio às mas e praças do Cairo, Damasco e Beirute, exigindo que Nasser continuasse no comando. Foi êsse um dos raros e his tóricos impulsos populares que aliviam ou transtornam o equi líbrio político em alguns minutos. Desta vez, na hora da der rota, a iniciativa vinda de baixo funcionou com impacto ime diato. Raros são os casos na história em que o povo se mantém fiel ao líder derrotado, como desta vez. A situação continua, na verdade, muito fluida. Influência reacionárias continuarão seu trabalho dentro dos estados árabes para alcançar algo como o golpe da Indonésia ou o de Gana. Mas, atualmente, o neocoloniahsmo negou o fruto da “vitória” de Israel. “Os russos derrubaram-nos!”, foi o amargo grito que, em junho partiu do Cairo, Damasco e Beirute. E, quando viram o representante soviético nas Nações Unidas votar, em unís sono, com os americanos, o cessar-fogo, sem que se fizesse menção à retirada das tropas israelenses, os árabes sentiram-se completamente traídos. “A União Soviética agora se afundará como segunda ou quarta potência” — contam que Nasser assim falou ao embaixador soviético. Os acontecimentos pa recem confirmar as acusações lançadas pelos chineses, de que há um conluio entre a URSS e os EUA. A derrota provocou
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também alarma na Europa oriental. “Se a União Soviética abandonou os egípcios dessa maneira, não poderá fazer a mesma coisa no caso de uma agressão alemã?” — perguntavam-se os poloneses e tchecos. Os iugoslavos, também, sen tiam-se ofendidos. Tito, Gomulka e outros líderes correram a Moscou a pedir explicações e uma operação de socorro para os árabes. Isto foi o mais importante de tudo porque partiu dos “moderados” e dos “revisionistas”, que, normalmente, se levantam pela “coexistência pacífica e o rapprochement com os EUA.” E, agora, êles falavam de “conluio soviético com o imperialismo americano”. Os líderes soviéticos precisam fazer alguma coisa. O fato de que a intervenção das massas árabes salvou o regime de Nasser dava inesperadamente a Moscou nôvo campo de mano bras. Depois do grande abandono, os líderes soviéticos reapa recem como protetores e amigos dos estados árabes. Algumas atitudes espetaculares, — rompimento de relações diplomá ticas com Israel e alguns discursos nas Nações Unidas —, não lhes custam nada. Mesmo a Casa Branca demonstrou “com preensão” pela “situação” de Moscou e pelas “necessidades tá ticas” que, recentemente, trouxeram Kossiguin à Assembléia das Nações Unidas. Algo mais do que simples gesto era, entretanto, necessá rio para restaurar a posição soviética. Os árabes exigiam que a União Soviética imediatamente os ajudasse a reconstruir o seu poderio militar, poderio que perderam ao seguir os con selhos que ela própria lhes deu. Eles queriam novos aviões, novos tanques, nôvo suprimento de munições. Mas, além do custo que isso representava, — avalia-se em bilhões de libras o equipamento militar perdido apenas pelos egípcios — a re constituição das fôrças armadas árabes traria, segundo o ponto de vista de Moscou, grandes riscos políticos. Os árabes recusa ram negociar com Israel; êles podem muito bem fornecer os meios para que Israel se afogue na própria vitória. O Cairo considera o rearmamento com a máxima prioridade. Israel ensinou aos egípcios a lição: na próxima vez a fôrça aérea egípcia desferirá o ataque de surprêsa. E Moscou terá de de cidir se fornecerá ou não as armas para êsse ataque.
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Moscou não pode favorecer a idéia de uma desforra árabe, mas, também, não pode negar-se a rearmar o Egito. O arma mento árabe certamente determinará, porém, que Israel inter rompa o processo e desfeche nôvo ataque. E, nesse caso, a União Soviética terá de enfrentar, mais uma vez, o dilema que já a levou de vencida em maio e junho. Se o Egito atacar primeiro, os Estados Unidos certamente intervirão. Sua Sexta Frota não ficaria apenas olhando do Mediterrâneo, se a fôrça aérea israelense perdesse a batalha e os árabes chegassem às portas de Jerusalém e Telavive. Se a URSS fugisse ao conflito, sua posição como potência internacional estaria irremediàvelmente destruída. Na semana seguinte ao cessar-fogo, o chefe da equipe so viética estava no Cairo; conselheiros e experts soviéticos lota vam os hotéis, começando a reconstrução das fôrças armadas egípcias. Moscou, porém, não podia enfrentar com ânimo igual as perspectivas de uma competição árabe-israelense em futuros ataques e suas amplas complicações. Os experts soviéticos no Cairo provàvelmente faziam vagarosa diligência, a fim de dar tempo à diplomacia soviética de “vencer a paz” para os árabes uma vez que os levou a perder a guerra. Mesmo o mais hábil “ganha-tempo”, contudo, não resolverá os principais propósitos da política soviética. Até quando poderá a União Soviética adaptar-se ao avanço americano? Até onde recuará diante das ofensivas econômicas, políticas e militares americanas na área afro-asiática? Não foi à-toa que em junho Krasnaya Zvezda já sugeria a necessidade de se rever a atual concepção soviética de coexistência pacífica. Os militares, e não apenas êles, temem que o recuo soviético incentive a dinâmica do avanço ameri cano; e que, se isso continuar, pode tomar inevitável o choque entre soviéticos e americanos. Se Bresnev e Kossiguin não con seguiram contornar êsses problemas é bem possível que haja mudanças na liderança soviética. As crises de Cuba e do Viet nã contribuíram para a queda de Kruschev. As conseqüências totais da crise no Oriente Médio ainda não se apresentaram em tôda a sua plenitude.
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Não creio que se possa resolver por meios militares o con flito entre árabes e israelenses. Na verdade, ninguém pode negar aos estados árabes o direito de reconstruir de algum modo suas fôrças armadas. O que êles necessitam, porém, com mais urgência é de estratégia política e social e de novos mé todos para sua luta pela emancipação. Essa luta não pode basear-se numa estratégia puramente negativa dominada pela obsessão antiisraelense. Os árabes podem recusar-se a nego ciar com os israelenses enquanto êstes não desistirem de suas conquistas. E resistirão, necessàriamente, ao regime de ocupação impôsto ao Jordão e à faixa de Gaza. Mas isso não significa o reinicio da guerra. A estratégia pode dar aos árabes maiores proveitos do que obteriam através de qualquer Guerra Santa ou através de qual quer ataque de surprêsa, a estratégia que lhes dará realmente vitórias, uma vitória civilizada, deve concentrar-se nas urgen tes e imperativas necessidades de modernização da estrutura da economia e da política árabes e na necessidade de genuína integração na vida nacional árabe, que ainda permanece sepa rada pelas velhas fronteiras e divisões herdadas e impostas pelos imperialismos. Êsses propósitos somente se promoverão se as tendências socialistas e revolucionárias da política árabe se fortalecerem e se desenvolverem. Finalmente, o nacionalismo árabe será incomparàvelmente mais efetivo como fôrça de libertação se se racionalizar e se disciplinar por um elemento de intemacionalismo, que habili tará os árabes a apreciar o problema de Israel de modo mais realista do que fizeram até agora. Os árabes não podem con tinuar negando a Israel o direito de existir e desculpando sua retórica sangüinária. Crescimento econômico, industrialização, educação, organização mais eficiente e política mais sóbria destinam-se a dar aos árabes o que apenas puros números e a fúria antiisraelense não foram capazes, ou sejam, uma real pre ponderância que, automàticamente, reduziria Israel às suas modestas proporções e ao seu verdadeiro papel no Oriente Médio. Isto, evidentemente, não é um programa para curto prazo. Sua realização, no entanto, não levaria tempo demais e não há caminho mais curto para a emancipação. Os clichês da demagogia, da vingança e da guerra já provaram ser de
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masiadamente desastrosos. Enquanto isso, a política árabe poderia basear-se num apêlo direto ao povo israelense, passan do por cima do govèmo, um apêlo aos trabalhadores e ao kibbutzim. O último se libertaria de seus temores, através de claras garantias e de promessas de que se respeitariam os le gítimos interêsses de Israel e de que êste país, até mesmo po deria tomar-se benvindo como integrante da futura Federa ção do Oriente Médio. Isso abrandaria a orgia do chauvinismo israelense e estimularia uma oposição à política de conquista e domínio de Eshlcol e de Dayan. Não se deve subestimar a capacidade dos trabalhadores israelenses a tal apêlo. Maior independência do jôgo das grandes potências tam bém é necessário. Êste jôgo destorceu o desenvolvimento po lítico-social do Oriente Médio. Já mostrei o quanto o impe rialismo norte-americano fêz para dar à política de Israel seu atual caráter repulsivo e reacionário. Mas, a influência mssa também fêz alguma coisa para perverter o sentimento árabe, seja por meio de áridos slogans, pelo encorajamento da dema gogia, enquanto o egoísmo e o oportunismo de Moscou pro vocavam desencanto e cinismo. Se a política no Oriente Médio continuar como simples jôgo das grandes potências, as perspec tivas serão absolutamente estéreis. Nem árabes nem judeus conseguirão desvencilhar-se do círculo vicioso. Eis o que nós, da esquerda, deveríamos dizer a ambos, árabes e judeus, da maneira mais clara e evidente possível. A confusão da esquerda internacional foi inegável e geral. Não devo aqui falar dos “amigos de Israel”, a exemplo de Guy Mollet1 & Cia., que com Lord Avon e Selwyn Lloyd viram nesta guerra a continuação da campanha de Suez a sua vin gança pelas frustrações de 1956. Da mesma forma não gastarei palavras com a ala direita, facção sionista do Partido Traba lhista. Porém, mesmo na “extrema esquerda” daquele partido homens como Sidney Silverman comportavam-se de modo que 1 Premier da França, que, juntamente com a Inglaterra, promoveu em 1956, o ataque a Suez (N. do T.)
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serve para ilustrar o que alguém disse: “esfole um judeu es querdista e debaixo você encontrará somente o sionista”. Mas, a confusão se mostrava ainda mais intensa na esquer da e nas pessoas com irrepreensível passado de lutas contra o imperialismo. Um escritor francês conhecido por seus cora josos pronunciamentos contra a guerra na Argélia e no Vietnã, agora proclamava solidariedade a Israel, declarando que, se a sobrevivência de Israel necessitasse de intervenção americana, êle não só seria a favor como daria um “Vive le Président Johnson”. “Não lhe ocorria, porém, a incongruência de um “A bas Jonhson!” no Vietnã e o “Vive" em Israel? Jean-Paul Sartre também pediu solidariedade a Israel de forma reservada, mas depois falou francamente da confusão de suas idéias e de suas razões. Explicou que, durante a Segunda Guerra Mundial aprendeu, como membro da Resistência, a olhar os judeus como se olha um irmão que se deve defender em tôdas as cir cunstâncias. Durante o conflito na Argélia, os árabes eram seus irmãos e êle ficou a seu lado. O presente conflito, por isto, era, para êle, uma luta fratricida da qual se achava incapaz de jul gar friamente, oprimido que estava por emoções conflitantes. Não obstante, devemos saber julgar e não podemos per mitir que emoções ou lembranças, por mais profundas ou fre qüentes turvem nosso raciocínio. Não devemos mesmo permitir que alusões a Auschwitz nos suborne a razão, levando-nos a apoiar a causa errada. Estou falando como marxista de origem judaica, que teve seus parentes sacrificados em Auschwitz e que tem outros que vivem em Israel. Justificar ou condenar as guerras de Israel contra os árabes é na verdade prestar-lhe péssimo serviço e prejudicar seus interêsses a longo prazo. A se gurança de Israel, permitam-me repetir, não se garantiu com as guerras de 1956 e 1967, pelo contrário, estas guerras a mi naram e comprometeram. Os “amigos” de Israel, na verdade, incitaram-no a uma aventura perigosa. Eles, também, de forma irresponsável, excitaram os ânimos reacionários que tomaram conta de Israel durante a crise. Foi com desprazer que vi, pela televisão, cenas de Israel naqueles dias; as demonstrações de orgulho e da brutalidade do con quistador; a explosão do chauvinismo; e as selvagens comemo rações do inglório triunfo, tudo num gritante contraste com a
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imagem do sofrimento e a desolação dos árabes, as carroças dos refugiados jordanianos e os corpos de soldados egípcios mortos pela sêde no deserto. Assisti as figuras medievais dos rabinos e khassidim saltitantes de alegria no Muro das La mentações; e assisti como os fantasmas do obscurantismo talmúdico — e os conheço muito bem — se amontoavam e como a atmosfera de Israel se tomara densa e sufocante. Depois, as entrevistas com o Gen. Dayan, herói e salvador, com a men talidade política de um sargento, esbravejando sôbre anexa ções e expelindo escandalosa ignorância sôbre o destino dos árabes nas áreas conquistadas. (“Que é que eu tenho com isso? Quanto a mim, êles podem ficar ou podem ir-:se”.) Uma vez envolvida na pretensiosa lenda militar — a lenda é preten siosa pois Dayan não planejou nem conduziu a campanha dos seis dias — a figura de Dayan delineou-se bastante sinistra, insinuando-se como candidato ao pôsto de ditador: a insinua ção era a de que se os partidos civis fôssem muito “brandos” com os árabes, êsse nôvo Joshua, um mini-De Gaulle, tomaria o poder e elevaria ainda mais alto a “glória” de Israel. Atrás de Dayan, estava Beigin, ministro e líder da ala sionista da extrema direita, que já de há muito reivindica a Transjordânia como parte do Israel “histórico”. Uma guerra reacionária cria, inevitàvelmente, os heróis, os ânimos e as conseqüências nas quais seus caracteres e fins fielmente se refletem. Sôbre um nível histórico mais profundo, a tragédia judaica encontrou em Israel deprimente resultado. Seus líderes reali zam façanhas autojustificando-se e supervalorizando Auschwitz e Treblinka; mas as suas ações escarnecem do verdadeiro sen tido da tragédia judaica. Os judeus europeus pagam incrível preço pelo papel que representaram em épocas passadas, embora não o escolhessem, como representantes da economia de mercado, do “dinheiro”, entre pessoas que viviam numa economia agrícola natural, sem dinheiro. Foram como comerciantes e agiotas, os veículos evidentes do primeiro capitalismo na sociedade pré-capitalista. A imagem do rico mercador judeu e usurário vivia no folclore não-judeu e ainda permanece gravado na lembrança dos povos, provocando mêdo e desconfiança. Os nazistas apossa ram-se dessa imagem ( aumentaram-na para dimensões colos
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sais e constantemente a levantaram perante os olhos das grandes massas). , August Babel disse certa vez que o anti-semitismo é o “socialismo dos tolos”. Houve muito dêsse tipo de “socialismo” e muito pouco do genuíno socialismo na era da grande de pressão, quando multidões de desempregados, por volta de 1930, amargavam sua desesperança. As massas trabalhadoras, na Europa, mostravam-se incapazes de derrubar a burguesia; mas, o ódio ao capitalismo era em geral suficientemente intenso para forçar uma saída e arranjar um bode expiatório. Entre a baixa classe média, a lumpenbourgeoisie e o lumpenproletariat, um anticapitalismo frustrado misturava-se com o mêdo do co munismo e neurótica xenofobia. O impacto da perseguição nazista aos judeus foi em parte tão forte porque a imagem dos judeus como “sanguessuga” estrangeiro e malicioso era ainda muito atual para tôdas as pessoas. Isso também explica a rela tiva indiferença com que muitos não-alemães testemunharam o massacre dos judeus. O socialismo dos tolos olhava com alegria o Shylock seguir para a câmara de gás. Israel prometeu dar aos sobreviventes das comunidades judaicas européias não apenas uma “pátria”, como ainda liber tá-lo dêsse estigma fatal. Essa era a mensagem do Kibbutzim, do Histradruth e mesmo do sionismo de modo geral. Os judeus cessariam de ser elementos improdutivos, comerciantes, intrusos econômica e culturalmente, elementos do capitalismo. Fixarse-iam na “terra dêles” como “trabalhadores produtivos”. Todavia, agora, no Oriente Médio, êles aparecem uma vez mais no invejável papel não tanto de agentes de seu rela tivamente débil capitalismo como de agentes de poderosos e disfarçados interêsses ocidentais, como protégés do neocolonialismo. É assim que o mundo árabe os vê, e não sem razão. Os judeus, uma vez mais, provocam amargura e ódio em seus vizinhos, em todos aquêles que sempre foram e ainda são vítimas do imperialismo. Que destino o dos judeus de ter sempre de representar êsse papel! Como agentes do impe rialismo nascente, êles ainda foram os pioneiros do progresso na sociedade feudal; como agentes do capitalismo imperialista tardio dos dias atuais, seu papel é por demais lamentável, e êles se encontram, novamente, na posição de bode expiatório
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em potencial. Será que a história judaica vai transformar-se nesse tipo de rotina? Isto bem que pode resultar das “vitórias” de Israel; e os seus verdadeiros amigos devem preveni-lo. Os árabes, por outro lado, precisam precaver-se contra o socialismo ou o antiimperialismo dos tolos. Acreditamos que não sucumbam a êle e que tirem lições de suas derrotas e se recuperem, lançando as bases de um Oriente Médio verda deiramente progressista.
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VIII
Marc Chagall e a Imaginação Judaica'
de que o livro de Franz Meyer, Marc Chagall, é dos mais expressivos estudos sôbre o artista. Li as seiscentas páginas do seu texto com atenção e contemplei du rante horas as suas maravilhosas reproduções. O livro informa tanto sôbre as últimas fases de Chagall como sôbre as primeiras; e o que o autor diz sôbre as primeiras pinturas de Chagall bem como o que o próprio artista diz a respeito em Minha Vida, relembraram-me a fascinação que experimentava por Chagall, por volta de 1920. Franz Meyer é genro de Chagall e sua monografia é clara mente um trabalho de amor filial e devoção, assim como de reflexão e análise. E
stou
certo
1 BBC — Terceiro programa, 12 de agôsto de 1965.
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Meyer reflexiona, como êle mesmo pondera, sôbre o “signi ficado das pinturas de Chagall” e sôbre “seu lugar na arte contemporânea”. Chagall, observa ainda, “mantém-se em opo sição a muito daquilo que caracteriza nosso tempo: a raciona lidade da ciência, o utilitarismo e o efeito anônimo do pro gresso técnico”. O pintor considera sua “missão” lutar contra o “mal da racionalização” e manter-nos cônscios da realidade íntima de nossas almas”. Talvez seja injusto fazer em favor do artista a reivindicação de uma filosofia tão absoluta e edifi cante ou tomar literalmente essa reivindicação como se fôsse do artista. Outra crítica, feita por Meyer, chega bem perto da ver dade, quando, contrastando Chagall com Picasso, êle demonstra que, enquanto Picasso representa o supremo triunfo do intelecto analítico da arte, a pintura de Chagall constitui a apoteose do sentimento e da emoção. A objetividade é o ideal artístico de Picasso; o de Chagall a subjetividade. Isso é o que Meyer tentou dizer, mas deixou obscuro pelo exagêro. Chagall nos seus trabalhos de juventude, os de antes de 1910, mostrava-se um precursor do Surrealismo; historiadores alemães da arte citam-no como o iniciador do expressionismo. Com Chagall, diz André Breton, o sonho e a metáfora con quistaram a pintura moderna. Fixaram-se, desde o princípio, os motivos de suas visões oníricas; o mesmo fragmento da realidade externa apresenta-se, incessantemente, na corrente de sua fantasia; e é uma única cor rente de fantasia que percorre todos os quadros — um único sonho, sonhado e pintado, numa quantidade imensa de va riações. Através de seu estudo, Meyer ressalta o Background religioso-judaico de Chagall (embora na sua conclusão diga que esse é apenas um dos elementos determinantes do perfil de Chagall). Afirma que as “águas do misticismo judaico sempre nutriam as raízes do mundo espiritual de seus antepassados e, desta maneira, as fontes de sua arte” e que o “anti-realismo de suas obras concorda com o iconoclasmo do judaísmo”. Meyer, aqui e ah, refere-se ao khassidismo, o romanticismo religioso dos judeus da Europa oriental e até à medieval Cab bala , como fontes de inspiração do pintor.
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O judaísmo de Chagall é inegável; êle se embebeu do fol clore judaico. Mas mal se pode crer na sua alegada dívida à Cabbala e à herança teológica judaica. Pode-se dizer menos ainda, que o seu surrealismo concorda com o judaísmo dos rabinos. A hostilidade do judaísmo às artes visuais é notória. E, levando ao pé da letra a lei “não farás nenhuma imagem gravada”, a ortodoxia dos rabinos impediu o crescimento das artes visuais de modo muito mais cruel do que os calvinistas. As paredes da Sinagoga são lisas e tristes muito embora ressoe sob seu teto uma poesia sublime e cantos litúrgicos. A pequena cidade, dentro do distrito judaico, na Europa oriental, o Slitetl, tinha seus cantores e músicos, trovadores e poetas, compositores e lendas populares, mas não possuía nem pintores nem escultores. Mesmo a revolta kliassidista contra o escolasticismo talmúdico não conseguiu enfraquecer aquela rejeição milenar à “imagem gravada”; e a revificação khassidista muito cedo se cristalizou em outra ortodoxia rabínica. Foi em desafio à tradição, fora das Sinagogas, e em oposi ção a ela que os russos e poloneses começaram a pintar; e só o fizeram quase no fim do século XIX. Isaak Ilych Levitan, o mestre russo em paisagens, fêz carreira por volta de 1880 e 1890, mas se criou fora do distrito judaico. Dentro do distrito, a primeira geração de pintores judaicos apareceu mais tarde — e se deve considerar Chagall um dêsses pioneiros. Pintar, para um judeu, era revoltar-se, era eman cipar-se. A revolta dirigia-se contra o obscurantismo clerical judaico assim como contra a opressão russa. Por volta de 1905, o Bandeira Vermelha comentou as telas do pintor. Chagall começou a pintar logo depois da derrota da revolução de 1905, quando um sentimento de desesperança e resignação espalhavase dentro do distrito judaico e fora dêle. A intelligentsia ju daica lamentava a “loucura” revolucionária; e com J. L. Peretz, seu líder, retomou o “caminho da Sinagoga”. Entretanto, em Chagall e através dêle, aquela imaginação visual dos judeus há muito recalcada estourou como um vulcão, explodindo em arco-íris. Ainda, por tôda aquela implícita rebeldia contra a cons trangedora tradição do judaísmo, a pintura de Chagall é judaica de uma forma que a pintura cosmopolita de Modigliani ou
Soutine não o é. Na maior parte de suas obras, que é descomprometidamente representativa e simbolista, êle é o pintor de sua nativa Shtetl Vitebsk. Sôbre ela Chagall mantém seus olhos. Pinta suas ruelas curvas e estreitas, suas casas, enquanto viveu ali; mais tarde, quando em Paris, continua a pintá-las, colo cando-as sob os arcos da Tôrre Eiffel; e, novamente as vê nos sanguinolentos pesadelos durante o holocausto dos judeus na Europa Oriental. Pinta o Shtetl dos madeireiros e dos carre gadores de água; não o das classes médias. Seu pai, tão nosso conhecido através de tantos quadros, levou a vida no exaustivo trabalho de carregador, carregando barris de arenque para os comerciantes locais. As multícoloridas aparições de pessoas no mundo surrealista de Chagall faz-se através de mendigos, açougueiros, negociantes de gado, soldados, vendeiros, pregadores itinerantes, violinistas ambu lantes. Algumas vêzes, desenha judeus, que na sua imponente dignidade, parecem descendentes dos rabinos de Rembrandt. Mas, como êle próprio nos conta, êsses são mendigos, os quais vestia antes de fazê-los posar, com o xale de orações de seu pai e amuletos. Mesmo os interiores que pinta, as isbás, a frágil e mal preparada cama, as cadeiras, a manta, tão realista no seu irrealismo onírico, pertencem reconhecidamente à casa de seus pais; êle dá alma à pobreza do Shtetl, transformando-a em poesia. E, quando retrata Bella, sua noiva e mulher, filha de rica fa mília de Vitebsk, a vê à distância, levanta os olhos para ela e acentua seu status social, como se estivesse pintando uma prin cesa espanhola. A revelação precoce de sua personalidade artística surpre ende quando se olha os primeiros trabalhos de Chagall. O principiante autodidata dos anos de 1907 e 1910 já demonstrava originalidade e coragem extasiante, dando forma a suas visões em Os Músicos, O Casamento, O Casal, A Sagrada Família, Circunscisão e A Quermesse. Quase que repentinamente Chagall encontrou sua expres são, seu sentimento pela natureza, sua maneira de ser, seus motivos eternos. Absorveu, bem cedo, a influência de Cézanne, Van Gogh e Gauguin; mas essa influência, depois de enriquecê-lo, dissol
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veu-se dentro de sua constituição artística. Sôbre suas pri meiras reações diante da avantgarde parisiense, Meyer declara: “Chagall tomou dos cubistas... alguns artifícios formais... e a divisão geométrica do espaço. . . a divisão das figuras cubisticamente articuladas”. “Mas”, continua, “o cubismo nunca exerceu influência verdadeiramente preponderante na sua arte e a “cubização” de figuras planas e de sêres representa sempre um fenômeno superficial. . . ” Se a resposta de Chagall a Picasso e ao Cubismo foi ambi valente, sua reação aos primeiros expositores russos de arte abstrata foi de completa hostilidade. Pinturas não represen tativas constituem para êle uma contradição em têrmos; e sua visão do mundo é hermética e intolerante com intromissões estranhas. A espontaneidade do surrealismo de Chagall testemunha, é claro, a universalidade das idéias artísticas. Êsse nôvo “ismo” devia ter ficado no ar se, no quebra-mar de sua Vitebsk, êle o antecipasse antes mesmo que a intelligentsia das principais cidades russas se inclinasse para essa concepção “freudiana” da arte. Só um jovem pintor, completamente desobrigado das ro tinas acadêmicas, talvez pudesse desprezar as convenções na turalistas e realistas que ainda dominavam a pintura na Rússia. Mas, o surrealismo de Chagall originou-se, também, de sua ima ginação judaica. Pode-se muito bem dizer que a existência inteira dos judeus russos dentro de seus distritos representa uma existência “surrealista”. Reduzidos ao nada pela pobreza e pelas perseguições, ater rorizados pelos pogroms, entorpecidos pela fé messiânica ar caica e divididas as esperanças trazidas, de um lado, pelo sionismo e, do outro, pelo socialismo revolucionário, os judeus da Europa Oriental balançavam à beira do precipício. O Luft mensch judaico, economicamente improdutivo e sem base, lutou pela sobrevivência, sem muita esperança, embora com tenaci dade, e escapou como que por milagre. Êle se colocava, na sua fantasia, acima das realidades da vida e escalava, nos sonhos, alturas vertiginosas, apenas para se lançar de lá, outra vez, no áspero despertar. A imaginação judaica procurava escapar da realidade ou fazer a vida fluida,
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brilhante, milagrosa mesmo; o lmmour e a auto-ironia judaicos choravam e riam dos permanentes impactos entre a esperança e a realidade. Sholem Aleikhem criou no seu Menakhen Mendel, o Don Quixote judaico da Europa Oriental, uma figura tão grotesca e sublime quanto a do cavaleiro andante e que também possuía as características de Sancho Pança. Êsse ânimo judaico era uma das fontes de sensibilidade de Chagall. Na sua imagi nação, também, o sonho e a realidade não polarizavam, não se separavam um do outro. Êle olha o mundo com aquêles olhos calmos e fervilhantes da criança judia, do menino do Klieder, para quem a era dos milagres ainda subsiste. Assim, aquêles que amam, voam sôbre os telhados de Vitebsk; o mendigo é ou pode ser um anjo caído, se não outra fôrça mágica ou um bicho encantado; e as estréias acompanham a melodia que o rabequista toca para elas, lá no sótão. Nisto repousa o segrêdo da arte Chagall; aí a imaginação nativa da criança judia luta com o pesadelo da existência judaica. Chagall, entretanto, não é um judeu qualquer; é um judeu russo. Grava, freqüentemente, sua nostalgia na beira de seus quadros; e o faz em russo assim como no alfabeto iídiche-hebraico. O mundo do mujique constantemente se choca com a Vitebsk judaica; e Chagall pinta seguidas variações do Eu e a Aldeia. Embora alguns de seus judeus pareçam descendentes da queles rabinos e mercadores de Amsterdão, no século XVII, que Rembrandt retratou, muitos dêles, inclusive os próprios parentes de Chagall, se assemelham aos camponeses bielo-russos e grego-ortodoxos da vizinhança. Na verdade, existe em Chagall muito do poeta camponês russo. Há estreita afinidade entre seu surrealismo e o “imaginismo” de Sergei Yessenin. Como Yessenin, Chagall recorda o mujique da lenda popular que conseguiu “agarrar o sol e com êle acendeu a sua isbá”. Em ambos é essencial a metáfora. Chagall também “se inclina diante da imagem de um boi no açougue” e está pronto “a levar o rabo de um cavalo russo como se fôsse a cauda de um vestido de noiva”. Também em ambos foi semelhante a reação perante a revolução russa:
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ambos responderam aos primeiros chamamentos heróicos, e ambos sofreram, sucessivamente, desilusões e depressão moral. Na obra de Chagall, Guerra Sôbre Palácios, um gigantesco camponês carrega a mansão do senhor sôbre a cabeça e pisoteia a terra. A revolução, repentinamente, abriu diante de Chagall horizontes não sonhados. Indicaram-no como Comissário da Arte para a Província de Vitebsk; ajudado por Lunacharsky, o grande Comissário da Educação de Lênin, êle abriu a Academia de Artes, onde filhos dos ignorantes mujiques, da Bielo-Rússia e dos lavradores judeus entraram en masse. Esta foi uma experiência emocio nante e sem precedentes: a arte, a ousada arte da avant garde chegava ao povo. Depois, quando abriram o Teatro Estadual Iídiche em Mos cou, Chagall começou sua grande obra para êsse teatro e pintou murais e cenários para as peças de Gogol, Tchekov e Sholem Aleikhem. Para que se possa imaginar o impacto, causado pela abertura do Teatro Estadual Iídiche em Moscou, devemos lem brar que, na época dos Czares, Moscou, Santa das Santas da ortodoxia grega, estava pràticamente fora dos limites para os judeus. Chagall ambicionava “transformar o Teatro Iídiche num teatro mundial”; e o estilo de seus cenários realmente dei xou marcas nos adiantados palcos russos daqueles dias. Foi uma época grandiosa e inspiradora; mas, por volta da década dos vinte, o anticlímax lá estava: Chagall estava cer cado entre os hostis doutrinadores da arte abstrata e do partido oficial, êstes clamando por uma arte útil ao “realismo socialista”. Êle, desencorajado, deixou Moscou e a Rússia em 1932. Por trás do dilema artístico de Chagall havia uma tragédia muito mais importante. A revolução libertara o Shtetl da opres são czarista, mas destruiu sua vida, suas tradições religiosas, seus pequenos artesãos e negociantes, e sua Luftmenschen. Aqui, novamente, há uma analogia entre Chagall e Yessenin, pois a revolução da mesma forma emancipou os mujiques de Yessenin e destruiu sua maneira arcaica de viver. “Eu sou o último poeta do campo”, disse Yessenin. “Como um relógio de madeira, a lua atormentará as minhas últimas horas”. Cha gall seria o último pintor do Shtetl: o relógio de madeira e a
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lua atormentando “suas últimas horas” apareceram em muitas de suas telas. Chagall, mesmo em Berlim, Paris e New York, vivia das recordações da sua Vitebsk, da sua Rússia, — mas agora pro curava refúgio na tradição judaica, nela mergulhando mais e mais fundo. O judeu, enfeixando os sagrados pergaminhos com os bra ços e protegendo-os das chamas, toma-se tema constante nos quadros de Chagall; da mesma forma, O Judeu Errante, que por entre tôdas as agitações do mundo, segue seu predestinado caminho. Pode-se ver êstes dois temas no centro e no fundo de A Revolução , quadro que Chagall pintou em 1937. Ao lado de um judeu que reza, vemos uma figura que muito se assemelha a Lênin, de cabeça para baixo, e as ban deiras vermelhas e cenas da guerra civil russa num fundo de multidões. Essa foi uma composição ambiciosa, porém confusa: falta-lhe definição de formas assim como de idéias; isto ocasionou a frustração de Chagall diante do tema: êle despedaçou a tela. Mas, Chagall não é um artista de temperamento trágico; a tragédia foi que o atingiu. O período que vai de 1923 a 1933, depois de sua volta para o Ocidente, foi de descanso, gôzo e triunfo. Êle nunca teve em si aquela inquietação que constantemente leva Picasso a negar e a repudiar a si mesmo e aquilo que faz. Chagall tende para uma serenidade autoconfiante e mes mo para a complacência. É “otimista”; procura reafirmação e consolação na “permanência biológica da vida”. Daí a pro vação da comunidade judaica européia vir a encher suas telas. Êle pintou seu Guemica1, ou melhor seus Guemicas, a longa série de Crucificações, crucificações em vermelho, branco, azul e amarelo. O Cristo pintado por Chagall, observa Meyer, não é cristão; representa o ( 1 nartírio judaico. Está M ‘estendido, em sua imensa mundo de horrores. 1 Quadro de Picasso sôbre uma das mais cruentas batalhas da guerra civil na Espanha (N. do T.)
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(Em volta dêle) homens são caçados, perseguidos, massa crados”. Sempre enrolado no xale de oração judaico, algumas vê zes usa o barrete de pano e a calça esfarrapada de um pobre judeu de Vitebsk; abaixo dêle, sôbre a terra, estão multidões de judeus que fogem aterrorizados; sinagogas e pergaminhos sagrados consomem-se em fogo e fumaça. E, enquanto nas representações cristãs todo o sofrimento concentra-se no Cris to, cujo sacrifício o sobrepuja, Cristo, nas Crucificações de Chagall, não supera o sofrimento. “A figura de Cristo pintada por Chagall”, escreve Meyer, “não tem aquêle conceito cristão de salvação. Por tôda sua santidade êle é, sem dúvida, divino. (Ele) é um homem, que sofre dores de milhares de formas..., (que) é eternamente queimado pelo fogo do mundo e, todavia..., permanece in destrutível”. Vê-se, finalmente, não apenas uma, mas várias figuras de Cristo, nas roupas de trabalho de pobres judeus, estendidos em cruzes ao longo das ruelas da Vitebsk de Chagall, fami liarmente estreitas e curvas. Chagall traz Cristo de volta para a história judaica; na “Passagem do Mar Vermelho”, pintado nos anos de 1954 a 1955, êle abre uma perspectiva simbólica para o destino dos judeus, com uma gigantesca figura de Moisés, na frente, e o mártir judeu, na cruz, bem distante no fundo. A visão de Chagall aumenta em poder, definição e intensidade. Além disso, para reforçar há sua reconciliação com a história judaica, sua rendição a ela. Não denuncia nem s cinzas de Majdanek e Auschwitz, oração pelos mortos.
IX
A Tragédia Judaica e o Historiador
P a r a o historiador que tentar compreender o holocausto judaico, o maior obstáculo será o fato de que a catás trofe não teve absolutamente precedentes. Não será apenas questão de tempo ou de perspectiva histórica. Tenho dúvidas de que, mesmo daqui a mil anos, as pessoas possam entender Hitler, Auschwitz, Majdanek e Treblinka melhor do que nós, agora. Terão melhor perspectiva histórica? Ao contrário. A posteridade compreenderá muito menos do que nós. Por acaso os judeus e os não-judeus da Idade da Luz e do racionalismo entenderam melhor a Inquisição espanhola do que os judeus que viveram sob as leis de Fernando e Isa bel? E os autos-de-fé da Inquisição não passavam de brinca deiras de crianças comparados com Auschwitz e Majdanek. Havia, ainda, alguma lógica humana na Inquisição, que tra-
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tava os judeus como qualquer infiel ou herege, permitindolhes viver e mesmo recompensando-os se estivessem prontos a capitular espiritualmente. A fúria do nazismo, que pretendia a incondicional exterminação de todo judeu, fôsse homem, mulher ou criança ao seu alcance, foge da compreensão do historiador que tenta descobrir os motivos do comportamento humano e discernir os interêsses por trás dos motivos. Quem pode analisar os motivos e os interêsses que ditaram as atrocidades de Ausch witz? Creio que não é o meu envolvimento pessoal na catás trofe judaica que me impede, mesmo agora, como histonador, de escrever objetivamente sôbre ela. Mas o fato de que se nos defronta um grande e ameaçador mistério da degeneração do caráter humano, que para sempre frustrará e horrorizará a humanidade. Talvez um Ésquilo ou Sófocles moderno pudessem lidar com êsse tema: mas apenas o fariam em diferente nível de explicação e interpretação histórica.
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Não deixe de ler êstes outros admiráveis livros de ISAAC DEUTSCHER: TROTSKI - O PROFETA ARMADO TROTSKI - O PR OFETA DESARMADO e TROTSKI - O PROFETA BANIDO — três volumes que contêm a mais completa biografia política e crítica de uma controvertida personalidade do nosso tempo.
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19 Êste livro foi composto e impresso na GRAFICA URUPÊS Rua Cadiriri, 1161 Fones: 273-4483 273-0905 Caixa Postal 30.174 São Paulo - Brasil 1970
postumamente e coligidos pela sua viúva, era situar com sua autoridade de historia dor emérito, de judeu não-sionista, nãoreligioso, não-sectário, nãojudeu, em su ma, a posição e o destino do “povo eleito” no mundo contemporâneo. Com isenção e profundidade, com gene rosidade e compreensão, Isaac Deutscher demonstra que o judeu não-judeu (Spino za, Heine, Marx, Trotski, Rosa Luxemburg, Freud, para citar alguns nomes respeitados universalmente) seria a mais segura ponte para o estabelecimento de uma perfeita integração do judeu num mundo nôvo, supranacional e reformulado em bases mais justas para o entendimento dos ho mens entre si. Entendendo as premissas emocionais que deram ao judeu a sensação de volta à Terra Prometida, quando se criou o Estado de Israel, Deutscher não aceita, porém, os corolários expansionistas, o tràgicamente irônico lebensraum que os políticos e militares israelenses defendem hoje, com arrogância e punhos fechados para o ataque, como se apenas o judeu judeu, o judeu-israelense tivesse sentido e autoridade moral nos dias de hoje. Identificando-se com o imperialismo nor te-americano, agindo como fantoche que se movimenta sob o impulso de cordéis puxados de longe, Israel pode obter mais algumas vitórias militares como as que já alcançou, mas êsse esfôrço e êsse sacrifício resultarão fúteis, pois marchará para um futuro anacrônico, sem propósito e subs tância. Judeus e árabes —semitas ambos —mui to lucrarão da leitura atenta dêste livro. E todos os demais leitores, brasileiros que não sejam nem judeus nem árabes, também. Nenhum homem é uma ilha. Todos os pro blemas nos interessam. E nos afetam mais do que possamos imaginar. A. Ve i g a F i a l h o