O JOGO DA DETETIVE Tey de Louré Nota da contracapa do livro O Jogo da detetive é um livro em que você irá acompanhar com interesse o poder de raciocínio, a intuição e a lucidez de uma moça, filha de famoso detetive, e que inesperadamente se vê às voltas com situações que a levam a assumir, por natural herança, a vocação do pai. Em cada página você viverá momentos de encadeados impulsos, fortes e convincentes, que o levarão com facilidade ao final da história, porque os pontos de apoio do suspense são agulhas de um tricô de malhas que o envolverão. Fim da nota Copyright - 1971 by Tey de Louré Capa de Ferruccio Verdolin Filho Todos os direitos reservados. Proibida a reprodução parcial ou total desta obra, sem a permissão por escrito da Editora. Rua Felipe dos Santos, 508 - Lourdes 30180-160 - Belo Horizonte - Minas Gerais - Brasil CEP 30161 - CP 1068 - FAX - (031 ) 337-2834 PABX - (031 ) 337-274 Impresso no Brasil Printed in Brazil FICHA CATALOGRÁFICA L 892 Louré, Tey de O jogo da detetive, 2 edição- Belo Horizonte: Vigília, 1996. 214p 1. Romance policial 1 . Título CDD 8o8.83872 CDU 82-312.4 ISBN-85-259-0082-6 869.0(81 )-312.4 In memória de AGATHA CHRISTIE, para mim, a maior escritora de todos os tempos. Uma Homenagem As idéias surgem, motivadas por alguma necessidade dentro de nós. E quando elas são ousadas e difíceis é necessário termos alguém do nosso lado, que participe de nosso propósito, estimulando-nos e encorajando-nos diante das dificuldades . que surgem a todo momento. Tive do meu lado, enquanto escrevia este livro, a companhia de um garotinho maravilhoso, de apenas onze anos de idade, que lia os meus manuscritos e, empolgado, fazia perguntas diversas sobre o enredo e chegava até a corrigir erros! Acredito que ele tenha sido a mola mestra neste trabalho. Sem o incentivo e a atenção que ele me dedicava, talvez não fosse possível este livro acontecer. Por isso, quero prestar uma homenagem especial a este garotinho maravilhoso, chamado Luciano, que, para minha alegria, é meu sobrinho. Obrigada, querido. Cenário
Para orientar o leitor, apresento em planta baixa o cenário usado nesta história. Com ele, será muito oportuno acompanhar a movimentação dos personagens. Nota do corretor nas duas proximas páginas ha um mapa da casa. Fim da nota Capítulo Um Marilu entrou displicentemente na saleta, deixando-se cair numa confortável poltrona. Parecia estar alheia ao mundo. Apenas olhava tudo ã sua volta, como numa inspeção de reconhecimento. Tudo era igual, como há quatro anos atrás. Os móveis, os tapetes, as cortinas, apenas acrescidos de um cheiro de coisas que ficaram guardadas dentro de um baú. Cheiro de coisas que pararam de viver por algum tempo. Fechou os olhos por instantes, como se estivesse vendo o passado, agora tão pungente. Um passado feliz, que fora interromper-se de maneira trágica. Abriu os olhos e eles depararam com o pequeno porta-retrato sobre a lareira, de onde sua mãe sorria. Levantou-se e foi até ele, passando o dedo de leve sobre o rosto alegre de Suzana. Naquela época, a casa fora palpitante, festiva, cheia de vida. Correu a mão pelos cabelos lisos, jogando-os para trás, como se com isso quisesse se libertar do passado. - Como se sente? - perguntou Louise, entrando na saleta e vendo a amiga tão absorta. Marilu voltou-se, tentando sorrir. Ali estava a fiel amiga, no seu porte elegante e discreto, que lhe lembrava nobreza. - Estou bem. Apenas vagando um pouco pelo passado. Marilu viu surgir entre os olhos da amiga um pequeno sulco que ora significava preocupação, ora compenetração. - Ela era muito bonita - disse Louise também admirando a foto. - Você se parece muito com ela. - Mamãe era linda - respondeu Marilu, um tanto séria. Voltou ã poltrona, deixando-se c air. - É uma pena. É uma pena. - Você está triste - disse a amiga, sentando-se ao seu lado, envolvendo-lhe as mãos. Mais triste do que era. Isto é mau. Creio que foi um erro ter voltado. - Mas eu tinha de voltar! - falou Marilu com convicção. - Você não entende, Louise? É como se eu tivesse me perdido aqui naquele dia. - Marilu sacudiu a cabeça com desespero. - Não posso conti nuar fugindo. Não devia ter fugido, quando tudo aconteceu. Devia ter ficado aqui. Nos primeiros meses, s eria um verdadeiro martírio. Lembraria de tudo o tempo todo, mas depois, fatalmente eu iria me acostumar e ho je ja estaria livre desta amargura. - Marilu respirou fundo. Louise fitava-a quase aflita. - Não, não devo mai s fugir. Hoje sei, e como, que devemos encarar tudo de frente. Quer sejam as coisas agradáveis ou desagradaveis. - Tãlvez você tenha razão, minha querida. Não sei ao certo o que possa perturbá-la tanto n a morte de sua mãe, mas se é o que sente... Marilu novamente respirou fundo. Quase um suspiro. - Foi tudo horrível. Tudo horríve l. Um dia, quando puder
Para orientar o leitor, apresento em planta baixa o cenário usado nesta história. Com ele, será muito oportuno acompanhar a movimentação dos personagens. Nota do corretor nas duas proximas páginas ha um mapa da casa. Fim da nota Capítulo Um Marilu entrou displicentemente na saleta, deixando-se cair numa confortável poltrona. Parecia estar alheia ao mundo. Apenas olhava tudo ã sua volta, como numa inspeção de reconhecimento. Tudo era igual, como há quatro anos atrás. Os móveis, os tapetes, as cortinas, apenas acrescidos de um cheiro de coisas que ficaram guardadas dentro de um baú. Cheiro de coisas que pararam de viver por algum tempo. Fechou os olhos por instantes, como se estivesse vendo o passado, agora tão pungente. Um passado feliz, que fora interromper-se de maneira trágica. Abriu os olhos e eles depararam com o pequeno porta-retrato sobre a lareira, de onde sua mãe sorria. Levantou-se e foi até ele, passando o dedo de leve sobre o rosto alegre de Suzana. Naquela época, a casa fora palpitante, festiva, cheia de vida. Correu a mão pelos cabelos lisos, jogando-os para trás, como se com isso quisesse se libertar do passado. - Como se sente? - perguntou Louise, entrando na saleta e vendo a amiga tão absorta. Marilu voltou-se, tentando sorrir. Ali estava a fiel amiga, no seu porte elegante e discreto, que lhe lembrava nobreza. - Estou bem. Apenas vagando um pouco pelo passado. Marilu viu surgir entre os olhos da amiga um pequeno sulco que ora significava preocupação, ora compenetração. - Ela era muito bonita - disse Louise também admirando a foto. - Você se parece muito com ela. - Mamãe era linda - respondeu Marilu, um tanto séria. Voltou ã poltrona, deixando-se c air. - É uma pena. É uma pena. - Você está triste - disse a amiga, sentando-se ao seu lado, envolvendo-lhe as mãos. Mais triste do que era. Isto é mau. Creio que foi um erro ter voltado. - Mas eu tinha de voltar! - falou Marilu com convicção. - Você não entende, Louise? É como se eu tivesse me perdido aqui naquele dia. - Marilu sacudiu a cabeça com desespero. - Não posso conti nuar fugindo. Não devia ter fugido, quando tudo aconteceu. Devia ter ficado aqui. Nos primeiros meses, s eria um verdadeiro martírio. Lembraria de tudo o tempo todo, mas depois, fatalmente eu iria me acostumar e ho je ja estaria livre desta amargura. - Marilu respirou fundo. Louise fitava-a quase aflita. - Não, não devo mai s fugir. Hoje sei, e como, que devemos encarar tudo de frente. Quer sejam as coisas agradáveis ou desagradaveis. - Tãlvez você tenha razão, minha querida. Não sei ao certo o que possa perturbá-la tanto n a morte de sua mãe, mas se é o que sente... Marilu novamente respirou fundo. Quase um suspiro. - Foi tudo horrível. Tudo horríve l. Um dia, quando puder
conviver com esta realidade, contarei tudo a você. Louise tentou sorrir-lhe. Marilu saiu da saleta e seus passos ficaram ecoando pe lo corredor, até se perderem. Louise olhou ã sua volta e sentiu tédio. Foi até ã lareira e ficou olhando a foto que so rria. Os traços do rosto de Suzana eram suaves, seus dentes perfeitos. Cabelos brilhantes, como seu próprio so rriso. Quanta ironia traz a vida, pensou. Uma mulher ainda jovem, muito bonita, rica, feliz, ... e morta. Er a uma estúpida fatalidade. Suzana teve tudo que uma mulher pudesse sonhar e no entanto... Louise apertou os lábios. Como era estranha a vida, pensou. tudo tão vago... Quando conheceu Marilu, jamais pensou que se tornariam tão amigas, que um dia a acompanharia de volta ao passado, apoiando-a numa dor que ainda desconhecia, embora soubesse existir. Deixou fluir em sua mente os vários rostos, quase estranhos, das pessoas com quem iria conviver durante aqueles dias, e mecanicamente somou sete. - Sete - falou alto e sorriu. - Se eu fosse supersticiosa... Um forte estrondo a fez saltar de seus pensamentos, e com tristeza certificou-se de que o barulho fora um trovão. Aproximou-se de uma das portas envidraçadas e olhou para o céu. Havia sol, mas nuven s pesadas de chuva já se aproximavam. Contemplou o jardim com vários matizes colorindo a tarde e, mais adia nte, as árvores que formavam o bosque, tão próximas umas ãs outras, que suas sombras certamente deveriam s e sobrepor, tornando o lugar sombrio e úmido. Louise sentiu o tédio invadi-la, ao concluir que, se o tempo mudasse, não poderia de sfrutar das delicias que o campo oferece. Outro trovão e o sol desapareceu, como se houvesse se assustado com o barulho. Olh ando para aquela tarde lúgubre, sentiu angústia. Talvez até remorsos de ter aceito o convite de Marilu. O que fazer, quando se é hóspede numa casa de campo, e com chuva? Imaginou os dias se arrastando pelas hora s nevoentas... Seria um verdadeiro suplício, pensou. Lembrou de ter colocado um livro e o seu trabalho de tricô em meio ã bagagem e isto a alegrou um pouco. Pelo menos teria uma ocupação. O grupo parecia interessante, mas não o conhecia bem para poder emitir qualquer pa recer, e ela sabia como era difícil para fazer amizades. Sempre achou que deveria ser algo espontâneo e que cres cesse aos poucos. Voltou ã saleta, pois na varanda já soprava um vento forte, cortante, fechando as po rtas envidraçadas. Novamente seus olhos encontraram a foto de Suzana. Era um rosto difícil de esquece r. Sentou-se na poltrona defronte, em contemplação. Ouviu risadas. Certamente era o grupo que regressava de algum passeio, interromp ido pelo mau tempo. Na porta de vidro as primeiras gotas anunciaram a chegada da chuva e, com certez a, do inverno também. Louise viu os pingos vacilarem e depois escorrerem, e logo, logo, a transparência tornouse foscá. A penumbra cobria a saleta. Por alguns momentos as vozes soaram nítidas, mas em seguida foram se dista nciando, até se perderem por completo, misturando-se com o barulho da chuva. Viu o dia agonizando numa pequena réstia de luz e com essa tênue claridade voltou a contemplar a foto de Suzana, que parecia atrair sua
atenção. As formas, até então inertes, de repente criaram vida. Viu quando a boca de Suzana m oveu-se como a falar-lhe algo. Não, não era a foto. Era Suzana que se colocara ã sua frente e, sorrindo-lhe mui to, falava-lhe. Parecia feliz. Louise não conseguia entender Suzana e notou que isto a entristeceu. Viu quando el a apanhou o candelabro sobre a lareira, trazendo a luz até bem próximo do seu rosto, como se para vê-la melho r. Louise contraiu os olhos rapidamente, ofuscados pela luminosidade. Suzana chamava-a baixinho e com doçura tocou-lhe o ombro. Louise estremeceu assustada. A saleta estava iluminada e Marilu segurava-lhe o o mbro. - Estava dormindo, querida? Desculpe-me por tê-la assustado. Louise tentou sorrir. Olhou para a lareira e viu a foto que continuava lá em cima, sempre sorrindo. - O jantar será servido daqui a pouco - falou Marilu. Louise passou a mão pelos cabe los. - Vou aprontar-me, então. Desço logo. Ao alcançar a porta da saleta, encontrou-se com o Sr. Rodolfo Ralph, pai de Marilu , que entrava. - Viu como já esfriou? - falou-lhe. - Vou já acender a lareira. Lá fora a chuva caía forte, e pela porta envidraçada Louise apenas viu a excuridão, que invadira o jardim, apagando suas cores. Capítulo Dois O salão de jogos estava iluminado e, com as cortinas arriadas, ocultava o negrume da noite. Louise observava a todos do grupo com muita atenção. Comportavam-se como se fossem p arentes, com muita intimidade, como se passar uns dias naquela casa fosse um hâbito comum para todos. Marilu falara-lhe muito pouco sobre eles. Apenas que, antes de Suzana morrer, "o grupo" estivera sempre ali, numa visita que parecia não ter fim. Todos bebiam, enquanto, atentos ãs cartas, sorviam a noite. Era nítido o barulho da chuva que persistia em trazer de vez o inverno, mas o aconchego do salão fazia desta idéia uma boa sugestão. - A chuva começou um pouco antecipada este ano, não Rodolfo? - perguntou Ivan, enqua nto embaralhava as cartas. Louise olhou para ele, achando-o simpático. AtE a cicatriz que tinha na fr onte dava-lhe um charme especial. - É, e isto significa que o inverno já está ãs portas. Basta chover nesta época para inici ar o frio - disse o Sr. Ralph, com o cachimbo no canto da boca. - E o que é pior - concluiu Melissa em tom aborrecido, apalpando o coque delicado que sempre usava. - Aqui nesta região, temos o inverno mais rigoroso do paíz. - Gosta de frio, Louise? - perguntou Marilu. - Acho uma estação bonita, mas muito doída - disse sorrindo. - Tenho um pequeno proble ma circulatório que fica evidente nesta estação. - Coisa grave? - perguntou Clara, olhando por sobre os óculos. - Não, não. Um tratamento para dilatação dos vasos sangüineos resolveria, mas acontece que nunca encontro tempo para isso. - Tempo ou coragem? - perguntou sorrindo Ivan. Louise correspondeu-lhe.
- Creio que os dois. - Com a saúde não se brinca. Devemos sempre estar atentos - observou Clara, deixando bem evidente sua experiência de vida. - Estou de acordo com a senhora. Penso inclusive que as medidas de profilaxia são indiscutíveis e devem ser seguidas à regra, mas sempre defendo isto quando se trata da saúde dos outros. - Lou ise pensou um pouco e concluiu: - Não sei bem, mas muitas vezes me comporto como se não fosse perecível. Os outros precisam se cuidar porque podem morrer, mas eu... - Somos todos assim - falou o Sr. Ralph, após ligeira baforada. - Também nunca estam os satisfeitos, e apesar das amarguras, vivemos sempre cheios de sonhos e fantasias. - Sonhos! - exclamou Louise lembrando-se de seu sonho com Suzana. - Às vezes eles nos parecem tão reais. Domingos apareceu a porta, acariciando o bigode bem cuidado. - O tempo enlouqueceu de vez. Venta forte e chove muito. - Onde está Karla? - perg untou Melissa olhando preocupada para ele. - Na saleta, junto a lareira. É a mesma friorenta de sempre. - Não vai jogar conosco ? - perguntou-lhe o Sr. Ralph. - Se estiverem dispostos a perder... Todos sorriram. O silêncio invadiu o ambiente, com o reinício da partida. Fitavam atentos as cartas que tinham às mãos, enquanto em suas mentes o raciocínio fluía na tentativa de uma boa jogada. O barulho da chuva, batendo contra o vidro das janelas, pareceu intensificar. Repentinamente, ouviu-se um ruído de algo quebrando-se, seguido de um grito de mul her. A atenção de todos foi cortada e se olharam assustados. O Sr. Ralph levantou-se rápido. - Veio da cozinha. Violeta! - exclamou. - Deve ter-lhe acontecido algo. - E saiu ligeiro do salão, seguido de Domingos e Ivan. Na mesa, as cartas ficaram abandonadas em desordem, revelando que aquela partida já estava encerrada, e que não haveria vencedor. Clara levantou-se e foi até uma das janelas, afastando a cortina. Louise apenas vi u alguns pontos de luz, vindos do jardim que circundava a casa. Numa noite de luar, aquelas luzes certamente at rapalhariam, pensou. Clara aproximou-se da mesa, visivelmente preocupada. Domingos apareceu à porta e fitaram-no interrogativamente. - Foi um pequeno acidente - explicou. - Violeta cortouse numa vasilha que se que brou e está sangrando muito. - Pobrezinha! - exclamou Melissa. - Vamos ajudá-la. Saíram todos, atravessando o cor redor em direção à cozinha, enquanto, na saleta, Karla tentava concentrar-se na leitura; mas não conseguia des ligar-se dos ruídos externos. O estalar da madeira no fogo ardente da lareira parecia um estranho chamado e el a olhava para as chamas, enquanto em sua mente a voz de Suzana ressoava, repetindo em sua lembrança: " - Gosto de olhar o fogo. Ele traça formas maravilhosas, tingindo-as de cores inc ríveis. Nem na aquarela do
maiór pintor do mundo é possível encontrar os tons que se fundem nos semitons, ou até no s contrastes harmoniosos que faz fluir da madeira. É um quadro vivo. Pena que dure tão pouco. " Tüdo para Suzana durou pouco, pensou Karla. Voltou ao livro, insistindo em concent rar-se na leitura, mas era impossível saber o que estava lendo. O vento lá fora assobiava forte e ela se lembro u de uma certa noite. A noite quando Suzana morreu... Tudo parecia igual. O vento, a chuva, o friozinho começand o... - Não, não. Eu não quero pensar. Não quero me lembrar daquela maldita noite! - gritou Ka rla, passando a mão pela cabeça, num gesto de desespero. Um toque suave no vidro da porta que conduzia à ala norte do jardim fez Karla leva ntar vagarosamente a cabeça. Viu apenas a escuridão. Aguçou os ouvidos e apenas ouviu a chuva, o vento e o crepitar do fogo. Pareceu-lhe estar só naquela casa. Não ouvia ninguém. Karla sentiu medo. Um medo muito grande. Novamente ouviu bater no vidro, como se alguém estivesse lá fora, querendo entrar. Seria ela? - pensou, apavorada. Só podia ser Suzana. Aquela sala era seu lugar preferido na casa. Karla tentava controlar a respiração e afastar o medo, quando viu um vulto que se ap roximava da porta envidraçada. Ocultou o rosto entre as mãos, gritando. Um grito de pavor. Ouviu ainda quando algo chocou-se contra o vidro. Viu o rosto de Domingos, que parecia envolto numa neblina, e ouviu sua voz. - Você está bem, Karla? Beba isso. Vai lhe fazer bem. Domingos ajudou-a a sentar-se no sofá onde estava deitada e ela, depois de sorver algo forte, olhou à volta. - Você se assustou com a luz que apagou, querida, ou com o estampido do trovão? - pe rguntou-lhe Marilu. - Ela olhou para a porta e viu que estava semi-aberta, apesar da chuva intensa. Apontou em direção a ela cheia de medo. - Calma! Rodolfo e Ivan estão lá fora arrastando um galho de jasmineiro que tombou e está forçando a porta. Fique calma. Karla olhou para a lareira. As chamas continuavam ardentes e crepitantes, enquan to lá fora o ronco do vento era incessante. O Sr. Ralph entrou, seguido de Ivan, ambos encharcados. - Como está, K arla? Mais calma? - Não quero ficar aqui - falou ela em resposta. - Quero ir embora. Todos ficaram em silêncio. - Mas que bobagem, minha querida? - perguntou o Sr. Ralph. - Por que quer ir emb ora? Você sempre gostou tanto daqui... Karla sentiu que todos a fitavam. - Não gosto mais - falou ela com olhos cheios de pânico. - Sinto-me vigiada, encurra lada... Novamente os olhares de todos pareceram feri-la, interrogativamente. - ... Eu não sei bem dizer o que sinto. E uma sensação estranha... Só sei que aqui eu não estou bem. E como se alguém estivesse me observando o tempo todo. Alguém que não consigo ver... Houve um instante de perturbação, mas Domingos quebrou-o, inteligentemente. - Não liguem para Karla. Continua melodramática. No tempo de colégio, obrigava-me a ir às representações de teatro de sua turma, e era infalível: lá estava ela nas cenas mais dramáticas. Eu me d ebulhava em lágrimas. - Nunca me falou sobre sua vida artistica - comentou o Sr. Ralph. - Foi só no tempo de colégio, e isto já faz um bom tempo... - Quantos predicados! - ex
clamou Melissa. - Atriz, atleta... - Não considero assim. Jamais fui uma revelação em tudo que fiz. Ivan consolou-a. - Ora, o que é isso, Karla? Quanta modéstia! Afinal, já quase conseguiu classificação para ir às Olimpíadas. Acho isso estupendo! - "Quase" é uma palavra extremamente desagradável para mim. Soa como prêmio de consolação. Violeta entrou trazendo chá para todos. - O que foi isso em sua mão? - perguntou Karla, assustando-se com a faixa que envo lvia a mão da criada, com uma mancha de sangue. - Um pequeno corte, senhorita - respondeu-lhe sem qualquer afetação. - Foi um ferimento aparentemente pequeno, Violeta, mas tudo indica que cortou um vaso sangüineo - advertiu o Sr. Ralph. Ela saiu sem nada dizer. - Há pessoas incríveis! - voltou a falar o Sr. Ralph. Acreditem que Violeta me fez j urar que não vou levá-la ao hospital para úma sutura. Certamente, este ferimento vai voltar a sangrar... E saiu, seguido de Ivan, para trocar-se. Capítulo Três As malas em desordem, com roupas espalhadas pela cama, deixavam Karla desanimada . Tinha quase certeza de que colocara um pijama para inverno na bagagem, mas não conseguia encontrá-lo. A cab eça ainda estava pesada, devido ao pequeno desmaio que tivera instantes antes, o que aumentava o seu desânimo. O mal-estar a fez tirar os óculos redondos, como se a incomodassem. Continuou remexendo a bagage m lentamente, e em meio a uma confusão de roupas encontrou seu álbum de fotografias. Sorriu, sentando-se jun to ao toucador e começou a folheá-lo. Em cada página, ia deparando-se com fotos suas, em várias idades. Como atriz, incorporada a várias personagens que representou, e como atleta. Sempre achou que deveria conquistar Domingos de uma maneira indireta. Supunha qu e seria maravilhoso se atraísse sua atenção, através de atividades que a destacassem, pois automaticamente esta ria também conquistando seu respeito e admiração. Tentou o teatro, mas quando viu que aquilo não era o forte dele, sentiu-se desespe rada. Passou então a observá-lo, tentando saber qual a atividade que ele admirava na mulher. Um dia, no clube, de scobriu que Domingos admirava a mulher desportista, quando o viu deslumbrar-se com a boa forma e grac iosidade de Suzana numa partida de tênis. Suzana! ... Sempre ela. No colégio, fora a melhor em tudo, até mesmo no teatro. Lembrou-se de como lhe apresentara Domingos, um dia, à saída do colégio. " - Este é meu primo, do qual lhe falei. Chama-se Domingos e vai ficar morando aqu i agora, para prosseguir os estudos. " Ele mal a olhara. Dissera-lhe um rápido "muito prazer", voltando a dedicar toda su a atenção a Suzana. Sentiu ódio por ele. Ódio que foi aumentando à medida que foi conhecendo-o melhor. Um ód io estranho... Tinha vontade de vê-lo. Então ia até à casa de Suzana e lá ficava infeliz, pois ele contin
uava em estado de adoração constante à "prima". Aquela foto que tiraram juntos foi o primeiro gesto de atenção que lhe dedicara. Foi numa tarde, em meio a tantos "clics", tendo Suzana como modelo, houve um momento supremo para ela: peq ueno, mas intenso. Ele entregara a câmara à Suzana, pedindo-lhe que os fotografasse; e mesmo apesar de tant o tempo, ainda agora podia sentir-lhe o calor da mão sobre seu ombro. Esta foto, ela guardaria para sem pre, com muito amor. Amor... Que loucura era sua vida. Quantos anos vivendo em função de um amor que mal a reconhecia. Ela queria crer, a princípio, que ele se interessava por Suzana, por causa do seu dinheiro, mas cansou-se de enganar a si mesma. Era paixão mesmo. Uma incrível paixão. Quando Suzana conhecera Rodolfo e ambos se apaixonaram, Domingos desapareceu. Um dia foi procurar Karla, mas a alegria que pareceu rondá-la desmoronou-se. Ele voltara para falar-lh e de Suzana. Era preciso fazer alguma coisa e ela tentou. - Mas vocês são primos, Domingos. Não é recomendável uma união entre parentes. - Primos só na cabeça dela - respondeu ele enfurecido. - Eu sou primo de Clara, que não é irmã dela. O pai de Suzana casou-se com a mãe de Clara em segundas núpcias, apenas isto. Karla sentiu-se perdida. Este era um trunfo, que - pensou - a natureza teria col ocado em suas mãos, mas nem esta estava do seu lado. Começou, então, a dedicar-se avidamente ao esporte, e quand o estava quase conseguindo sobressair-se como uma possivel atleta, ele a criticou, dizendo que o seu corpo estava ficando musculoso, talvez mais forte que o dele. Sentiu vergonha e ódio de si mesma. Passara uma vida, vivendo em função de um amor, e não conseguira nada nem de si, nem para si. A morte de Suzana chegou a trazer-lhe algumas esperanças. Novamente em seus sonhos , Domingos a reconhecia afinal como a mulher de sua vida, falando-lhe de amor, enchendo-a de felicidade. Nos primeiros meses, ela sabia que tudo seria difícil demais para ele. Mas, depois, não conseguiri a sobreviver por muito tempo sendo escravo de uma lembrança, de uma lembrança impossível. E foi acalentando esta il usão, que quatro anos haviam se passado e ele ainda continuava reverenciando Suzana. Ele, Rodolfo e Iv an. E talvez muitos outros. Suzana fora uma mulher incrivelmente fascinante. Todos os homens ficavam deslumb rados com ela. Era uma mulher vibrante, ativa, participante de tudo que estivesse acontecendo. Era horrív el aceitar tal realidade, mas Suzana realmente fora uma mulher diferente, uma mulher sem igual. E por isso, Ka rla a odiava. Odiava e muito. Com todas as suas forças. Mesmo depois de morta, Suzana, eu a odeio, assim pensava. E vou continuar odiand o-a sempre e muito, até que você seja completamente esquecida... Seria isso possível? - insistiu seu pensamento. Somente o tempo poderia dizer. Por enquanto, aquela noite trágica parecia ter sido ontem para ela. Suzana linda e morta. Sangue. Muito sangue. Qualquer um deles no grupo, que tivesse morrido, não teria deixado um vazi o tão grande, como o que
Suzana deixara. Depois de sua morte, um mundo cheio de rotina e de espera. Uma longa e duvidosa espera para que aquele sonho louco se concretizasse. Domingos... Sempre Domingos... A sua juventude já se dissipara e ainda estava à espera do seu momento. Suzana morta, a engrenagem perdera o controle: Marilu fugira de todos, indo mora r no exterior com a madrinha; Domingos também mudara-se do país, indo especializar-se; Ivan refugiara-se em sua ca sa de campo, passando a beber mais do que a convenção social permitia; Rodolfo, sempre se ausentando para ir ter com a filha, único elo entre ele e Suzana; Melissa também esperando. Apenas Clara parecia no seu habitat natural, assumindo, de vez, quase todos os domínios de Suzana. E este tempo vinha se arrastando lentamente há quase quatro anos. Já não tinha esperanças de que alguma coisa mudasse. Era como se o mundo tivesse parado, ocioso de novos acontecimentos. Foi quando Marilu resolveu voltar, cheia de recordações, quere ndo rever tudo e todos, e, para culminar, Domingos também estava de volta e isto a deixava estonteante de fel icidade. Vóltar àquela casa? Não, não era algo de agradável para ela. Mas Domingos iria, e isto já lhe bastava. Tudo estaria acontecendo como antes. Uma sensação antiga, que pensou nunca mais voltar a sentir, estava ali, palpitante, agitando seu sangue, sufocando sua respiração, acelerando seu pulso. E f oi com a ansiedade de uma colegial que ela contara os dias para o grande reencontro. Mas a lembrança de Suzana se fizera presente entre eles, muito forte, mal chegaram ali. Como se não bastasse aquela sensação da sua presença, havia também o imenso retrato, que continuava fazendo f undo às escadas do salão, embora ele fosse um elemento dispensável para ativar a memória de todos naquela casa. Como Karla, os demais sentiam que Suzana continuava ali, subindo escadas, sentad a na saleta, tocando piano, passeando pelo jardim. Como sou tola, pensou. Nada será como antigamente. Eu não devia ter voltado aqui. Tudo isto parece mais um túmulo. O túmulo de Suzana. Sentiu que não iria conseguir dormir tão cedo. Se não tivesse esquecido seu livro na s aleta... Capítulo Quatro Karla entrou na saleta e foi vendo, sobre o assento da poltrona, o livro que tanta falta estava lhe fazendo. Na lareira ardia um fogo pequeno, mas o calor no ambiente era aconchegante. Karla sentou-se, ajeitou os óculos e abriu o livro. Sempre lia quando tinha insônia, para afastar pensamentos desagradáveis. A chuva já era mansa, mas o vento insistia, produzindo sons estranhos, assustadore s, que aos poucos foram se tornando distantes para ela. A leitura a absorveu por completo e logo, logo, seu s ólhos já estavam diminutos de sono. Era hora de dormir, pensou. Era melhor subir. Na penumbra, cruzou o corredor e penetrou no salão. Karla caminhava abafado, evita
ndo fazer ruído. Alcançou a escada e foi deslizando a mão direita pelo corrimão, à proporção que a galgava, até que, d e repente, sentiu-a pegajosa. Parou e olhou-a. Estava suja. Suja de sangue. Karla olhou em volta, as sustada. Ninguém. Apenas o barulho da tempestade que se firmara lá fora. À meia luz, ela, estática na escada, com os olhos cheios de medo, procurava por alguém. Sangue, pensou. De quem será? Continuou a subir e descobriu mais sangue pelo corri mão. Sentiu pavor. A cabeça latejava, impedindo-a de pensar. No alto da escada, o pequeno hall do primeiro pavimento estava tenuemente iluminado pelas arandelas laterais, e as cortinas que cobriam o imenso vitral pareciam balouçar de leve, tornando o ambiente mais misterioso ainda. Karla segurou a cabeça e seu pensamento se agitou. Por que tudo aquilo a assustava tanto? Estaria ela sonhando? Estava sentindo uma estranha sensação, como se já tivesse vivido algo semelh ante. Ouviu um ruído abafado. Aguçou os ouvidos. Pareciam passos. Passos que vinham da ala norte. Karla correu, penetrando pela ala sul e num só fôlego alcançou seu quarto, trancando-se rápido. Apoiad a à porta, permaneceu no escuro, esperando que os passos se aproximassem. Já mais calma, resolveu deitar-se, tentando dormir. Alguns relâmpagos penetravam pel o vidro, iluminando com luz macabra o aposento. Pensou ouvir bater à porta e isto fez novamente seu coração ag itar-se, batendo descontroladamente no peito. Apesar do medo, novamente aguçou os ouvidos, e levantou a cabeça do travesseiro. Res pirou aliviada. Era apenas o vento de encontro à sua janela. No mais, o silêncio era total. Aos poucos, sentiuse vencida pelo sono e o rumor suave dos pingos da chuva contra o vidro pareceram-lhe um tentador convite . Sentiu que o ambiente foi ficando leve, longínquo, mas de maneira lenta, quase imperceptível. Parecia flutuar. O pensamento parou e ela viu apenas cores. Cores que fluíam do chão para o teto, num a rco-íris faiscante. Um ruído numa das janelas apagou as luzes multicores. Seria a chuva certamente, pe nsou, tentando não perder seu mundo colorido, mas outra vez o ruído distraiu-a. Parecia que alguém estava lá fora na chuva, e quisesse entrar. Ela não conseguia ouvir direito e aguardou com ansiedade esperando que tud o não passasse de uma ilusão. Novamente, e desta vez bem nítido, o toque no vidro quebrou sua indiferença, fazendo -a levantar a cabeça do travesseiro, para olhar em direção à janela, mas nada viu. Apenas a escuridão. Acendeu o abajur e caminhou receosa, em direção à janela, erguendo a cortina. Ficou imóvel, sem condições de gritar ou correr. Viu o inconfundível rosto de Suzana, co lado ao vidro, embaçando-o com seu hálito quente, movendo a boca, dizendo-lhe algo que Karla não conseguia compreender. Parecia pedir para deixá-la entrar. Havia sangue, muito s angue pelo corpo de Suzana, que escorria junto com a água da chuva. Era uma imagem horrível de se ver e Karla sentiu muito medo. Precis ava sair dali, correr, gritar pelos outros, mas não conseguia. Sua boca se abria, mas não emi
tia nenhum som e suas pernas pareciam presas ao chão, como se pesassem muito. Karla deixou a cortina cair e foi se afastando, quase se arrastando, sem consegu ir deixar de olhar o vulto de Suzana, que parecia insistir para que a deixasse entrar. Com muito esforço, Karla alcançou a porta, tentando destrancá-la, mas a chave parecia emperrada e não tinha condições de movê-la sequer na fechadura. Suzana batia com força no vidro, insistindo. K arla não queria olhar naquela direção, e na ansia de fugir dali, insistia com desespero em abrir a porta. Foi quando ouviu o barulho da janela abrir-se violentamente e um vento forte inv adir o quarto, agitando com fúria as cortinas, penetrando pela sua roupa, atingindo de maneira cortante o seu corpo. Karla continuava na luta desesperada, tentando abrir a maldita porta, cuja chave não girava na fechadura; mas mal conseguindo manter-se de pé, arrastou-se até à cama, agarrando-se a ela, enquanto olhava para a janela escancarada, esperando Suzana entrar. E viu quando a mão dela, suja de sangue, segurou o parapeito... Não queria ver, mas algo a forçava a continuar olhando. Suzana transpôs a janela e veio arrastando-se pelo quarto, indo em sua direção. Karla encolhia-se junto à cama, tremendo, pálida de espanto e medo, vendo Suzana se aproximando mais e mais, até conseguir alcançá-la. Karla caiu sobre a cama, tentando gritar, mas não conseguiu. Via as mãos sujas de sa ngue de Suzana aproximarem-se de seu pescoço e sua respiração foi ficando sufocada, dificil, e então el a conseguiu gritar. Um grito de horror. Sentou-se na cama, suando frio. Estava gelada e com a respiração ofegante. Passou as mãos pelo pescoço e descobriu que o laçarote do pijama sufocava-a. Levantou-se rápido para fechar a jane la que estava aberta, com a chuva molhando todo o carpete. Voltou à cama, procurando se acalmar. Tudo foi um pesadelo, pensou. A janela abriu -se com o vento forte, perturbando-lhe o sono. Karla, apesar de justificar tudo o que havia lhe acontec ido, concluiu que ainda estava muito impressionada com a morte trágica de Suzana. Tinha medo de enlouquecer com a queles pesadelos horríveis que a atormentavam já há quatro longos anos. E, naquela casa, sabia que seri a muito pior. Certamente, ali, enlouqueceria. Era preciso deixar aquele lugar, urgentemente, mas ao mesmo tempo não queria e nem podia magoar Rodolfo e Marilu. Recordou-se do pesadelo de instantes. Ainda bem que tudo não passava de um sonho m au, pensou. Achou que não resistiria a uma cena desta, na realidade tudo foi um sonho, tentou convencerse mais uma vez, cerrando os olhos, fechando a mão sobre a fonte. Então sentiu-a pegajosa, como há pouco, quando to cara o corrimão da escada, sujo de sangue. Abriu os olhos de repente, sentindo-se gelar. Até onde tudo aquilo seria um sonho mau? Capítulo Cinco Louise despertou e a primeira coisa que ouviu foi o vento. Deixou o leito, camin hando preguiçosamente sobre o tapete felpudo, até uma das janelas, erguendo a cortina. Viu o dia frio que fazia
lá fora. A chuva parecia haver cessado, embora o céu permanecesse encoberto, mas o vento cortante seguramente imp ediria que qualquer um da casa se animasse a sair. Ouviu o carrilhão que lâ do salão anunciava as oito horas da manhã. Era melhor vestir-se e descer. Com certeza, todos já haviam se levantado. - Bom dia! - disse ela entrando na copa, onde já se preparavam para o lanche matin al. Apesar do frio, sentiu animação entre eles. - É uma pena estar um dia assim. Temo que Louise se sinta entediada, sem poder sai r para um passeio. A paisagem aqui é maravilhosa - disse Clara. - Tem razão. Estes dias poderão ser os mais desagradáveis de sua vida, Louise - disse Marilu com preocupação. - Não se preocupem comigo, por favor. - Karla continua a dorminhoca de sempre - observou Marilu. - Dorme mais que a próp ria cama. - Minha fome não permite esperá-la - falou Melissa, colocando-se de pé. - Acho que vou chamá-la. - Pode deixar, Melissa. Preciso mesmo apanhar um trabalho no quarto - interveio Louise, saindo em seguida. Já havia alcançado as escadas, quando encontrou Violeta que cuidadosamente lustrava o corrimão. - Bom dia, Violeta! Está melhor? A moça franzina ergueu os olhos escuros e rápidos, baixando-os logo, de volta ao tra balho. - Sim, senhorita. Obrigada. Louise segurou a mão ferida de Violeta e viu que a bandagem estava com uma mancha de sangue. - Vamos até meu quarto - disse séria. - Precisamos cuidar melhor deste ferimento. Karla tentava, enquanto isso, se convencer de que deveria levantar, mas o barulh o do vento deixava-a desanimada. Seria um dia maçante, embolorado, sem brilho. Ouviu passos no corredor , que se aproximavam. Um leve toque, e a voz de Louise se fez ouvir. - Karla?..: - Sim?... - respondeu ela com preguiça, entrelaçando os dedos na curta cabeleira. - Bom dia! Estamos esperando-a para o café. Tudo bem? - Tudo bem? Impossível! Com es te dia horrível!... resmungou. - Anime-se, Karla - disse Louise sorrindo. - Impossível - repetiu ela, desolada. - Minha vontade é de só acordar quando fizer sol , mas em todo caso... Desço logo. Após ter cuidado do ferimento de Violeta, Luise caminhava já no final do corredor, q uando ouviu a chave do quarto de Karla girar na fechadura e resolveu esperá-la. - Desculpe o meu péssimo humor, - foi falando, assim que viu Louise - mas não imagin a como o mau tempo me deprime. - Isto é natural. Principalmente quando se está no campo - confortou-a Louise. Quando começaram a descer as escadas para o salão, Karla parou, ficando séria. Parecia que alguma coisa a perturbava. Olhou em volta como se procurasse algo. - O que houve? - perguntou-lhe a amiga, notando seu alheamento. Karla não respondeu. Apenas aproximou-se do corrimão, tocando a madeira polida. - Não pode ser... Não pode ter sido um sonho... - disse por fim, vacilante, fechando a mão direita e esfregando os dedos. Louise a olhava de forma interrogativa, já com a pequena ruga entre os olho
s. - Ainda sinto aqui, na minha mão... Sangue! Estava sujo de sangue aqui quando toqu ei ontem à noite. Sujou minha mão. - Você disse ontem à noite? - Sim, quando desci para buscar o livro que esqueci na saleta. - Virou-se brusca mente para Louise. - Eu não sonhei. Juro que não. Todos dizem que tudo que me acontece são pesadelos, mas isto não foi. Estou certa que não. - Calma, querida. Eu acredito que você não tenha sonhado e para tudo existe uma expl icação lógica. É possível que tenha se sujado de sangue ao tocar no corrimão... Karla abriu os olhos de espanto, encarando Louise. - Você acredita em mim? Acha po ssível isto? - Claro que sim. Quando subia para chama-la, encontrei Violeta polindo o corrimão. Você se esqueceu que ela está com um ferimento recente na mão e que sangra constantemente? - Então o sangue com que me sujei ontem era... - ... de Violeta - completou Louise entre um pequeno sorriso. Karla olhou para a enorme tela. - Não era dela? Louise ficou séria. Por que Karla pensava que era o sangue de Suzana que estava no corrimão? - Não era dela! - exclamou Karla num suspiro. - Não. Não era dela - confirmou Louise, tentando ocultar a confusão que a pergunta de Karla criou em sua cabeça. O Sr. Ralph apareceu ao pé da escada, apressando-as para o lanche, ficando assim e ncerrada aquela estranha conversa. O lanche ja estava terminando quando Karla olhou para todos, cheia de mistério. - Eu devo pedir desculpas a você, Rodolfo, e a você, Marilu; mas preciso contar-lhes o pesadelo horrível que tive esta noite. - Abaixou os olhos. - Ela estava como sempre: linda. Linda, apesar da chu va e do sangue que escorria pelo corpo. - Ela? - perguntou Marilu. - Suzana. Ela estava à janela do meu quarto, batendo no vidro, pedindo para entrar . E eu tive medo. Muito medo. Tentei fugir, mas as pernas não se moviam, quis gritar e não tinha voz; tentei abrir a porta, a chave estava emperrada. Foi tudo horrível. - Karla tremia. - Foi horrível, horrível... - dis se já em prantos, saindo quase correndo, deixando todos perplexos. - Como um sonho pode perturbar tanto uma pessoa? perguntou Marilu. - Karla é muito impressionada, querida - respondeu Clara. - Não sei não, mas também não me sinto muito bem aqui. Minha cabeça está pesada, tenho calaf rios... - Olhou para Rodolfo. - Perdoe-me, querido, - continuou Melissa - mas você sabe que acredi to em outra vida após esta. Sabe que sou médium espírita. - Olhou para Marilu um tanto constrangida. Querida, si nto que sua mãe ainda não conseguiu encontrar a paz. Se ela se suicidou mesmo... Marilu interveio com convicção. - Mamãe não se matou. Foi um terrível acidente, veja se se convence disso, por favor. Ela não tinha motivos para querer morrer; e mesmo se tivesse, não o faria nunca. Ela era uma mulher fort
e, muito forte. Sabia enfrentar os problemas de frente. - Perdoe-me - falou Melissa desconcertada. - Você pode estar certa; aliás, também pens o assim. Mas uma morte tão súbita pode ter feito muito mal a sua mãe. Ela era jovem, cheia de vida e de plano s... - Apertou os lábios com os dentes. - Entenda-me, querida... ela pode não ter aceitado a morte... Maril u fechou os olhos engolindo o pranto. - O que você acha disso tudo? - perguntou Ivan a Rodolfo. - Eu não acredito, mas não impeço ninguém de acreditar. - Caso seja isto uma verdade, - falou Domingos - e pode ser, pois há lógica no que Melissa diz, o que podemos fazer por ela? - Precisamos orar, meu amigo. Orar muito, para que ela encontre o seu descanso. Podemos também ir mais além, através de uma sessão, onde ela poderá se comunicar conosco e dizer o que a aflige . Talvez possamos ajudá-la a alcançar a paz . - Não sei, não, mas penso que não devemos nos impressionar com um pesadelo de Karla observou Ivan, desacreditando das convicções de Melissa. - Bem se vê que não conhece Karla, meu querid o. Ela não é de se impressionar com nada. A verdade é que ela é uma pessoa sensitiva, embora não te nha desenvolvido suas potencialidades. - Melissa movimentou a cabeça como se estivesse tensa. - Des de que aqui cheguei, sinto minha cabeça pesada, dores pelo corpo, um mal-estar constante. São sem dúvida alguma, os fluidos negativos que estão dentro desta casa. Capítulo seis Após o almoço, Clara entrou na saleta e atiçou o fogo na lareira. - Que bonito trabalho está fazendo, Louise! - disse aproximando e tomando-o em sua s mãos. - Sempre quis aprender a tricotar, mas confesso que nunca tive oportunidade. - Por que não aproveita então estes dias quando estamos juntas? - perguntou-lhe Loui se. - Não sou professora, mas posso ensinar-lhe o que sei. - Mas não é fácil ensinar-me - observou ela, sentando-se ao lado da amiga. - Uma vez S uzana tentou e logo desistiu, porque sou canhota. - Realmente, fica um pouco mais complicado, mas é só até tomar o jeito. Depois tudo fi cará compreensível. - Arriscaria a ensinar-me? - Arriscaria sim - respondeu Louise sorridente. - Podemos começar agora? Vou busca r o material. Louise deixou a saleta e, quando cruzou o corredor em direção ao seu quarto, ouviu u m barulho. Lembrou-se de Karla, muito abatida pela manhã, e decidiu ir vê-la, entrando sem bater. Karla estava de costas, olhando algo sobre a cômoda e assustou-se, voltando-se rápid o em direção à porta. - Desculpe-me, não devia ter entrado sem bater - falou constrangida. - Assustei vo cê. - Não foi nada - respondeu-lhe, ainda assustada. - Sou mesmo uma tola. Deixo-me impressionar até com um sonho bobo. - Você está bem? Está mais calma? - Sim, claro - respondeu, tentando ocultar seus temores. - Vamos descer? A salet
a está muito agradável, com a lareira acesa. - Mais tarde apareço por lá. Agora pretendo descansar um pouco. Tive um sono muito t umultuado esta noite. - Está bem. Até lá. Fechou a porta atrás de si e encaminhou-se para seu quarto. Quando alcançou a maçaneta , ouviu o barulho de chave girar na fechadura. Voltou-se, olhando para a porta de Karla. Por que ela se fechava a chave? Seria só por medo? Quando Louise voltou à saleta, o Sr. Ralph, que folheava um livro, falou-lhe: - Você está mesmo animada. Ensinar Clara a tricotar! Será uma façanha, se conseguir - di sse rindo, colocando o cachimbo de volta à boca. - Não entendi seu comentário, Sr. Ralph - falou séria. - Clara é muito desatenta para de dicar-se a um tipo de trabalho como este. Imagine que ela saiu daqui muito nervosa, pois não sabe onde d eixou os óculos e, sem eles, não vai conseguir tecer. Ouviram a voz dela, que vinha de longe, falando com Violeta para encontrar-lhe o s óculos, rápido. - Coitada! - disse Louise. - Parece tão aflita! - Ela lhe contou que é canhota? - perguntou o Sr. Ralph, achando graça em tudo aquil o. - Sim - respondeu Louise sem preocupação. - E isto não dificulta? - Vai depender dela. Afinal de contas, ser canhota não é uma deficiência física, não é mesmo ? Um chá, para aquecer o dia nevoento, foi servido na saleta e todos esgotaram seus adjetivos, censurando o tempo que persistia. - Acho que vou fazer como Tia Clara e começar a aprender tricô. Estou vendo que este tempo vai insistir por alguns dias, e é preciso preenchê-lo de algum modo. - Aproveite que temos professora em casa - disse Clara entusiasmada. Após o jantar, enquanto os outros foram para o salão de jogos, Louise e Clara contin uaram tricotando na saleta. - Interessante - disse ela, parando o trabalho e rompendo o silêncio. - Nunca acre ditei que as pessoas, após a morte, tenham condição de voltar; mas hoje, quando ouvi Karla contar aquele pesadelo , confesso que fiquei impressionada. - Fez silêncio, olhando para a foto da lareira com olhar distante. Não gostaria de sonhar com ela. Não gostaria mesmo. Depois Melissa ainda disse aquelas coisas todas. Não sei não, mas também estou sentindo o corpo doído, a cabeça um pouco tonta... Deve ser por causa da queda brusca de temperatura. Isto geralmente causa distúrbio s na pressão arterial ou então provoca resfriados. - Pode ser isto - disse ela após pensar um pouco. Estou me deixando influenciar pe las idéias absurdas de Melissa e Karla. O Sr. Ralph entrou na saleta, entregando a Clara seus óculos. - Você os esqueceu no salão de jogos - disse ele. - Oh, meu Deus! Por isso estou achando esquisito - disse ela, sorrindo. - Devia amarrá-los ao pescoço, minha cara - acrescentou ele em tom de brincadeira. - Não sei por que os perco tanto! Fazem-me tanta falta! - exclamou, voltando novam ente às agulhas. Capítulo Sete
Todos deixaram o salão de jogos comentando a sorte. Karla, que continuava indifere nte, permaneceu à mesa, olhando as cartas, alheia às vozes e risos que se afastavam. Quisera sentir sono, pensou. Lançou um olhar displicente para as cartas espalhadas, sem ter vontade de guardá-las . Afinal, nunca fora uma pessoa organizada, concluiu, num último olhar à mesa. O ruído longínquo de um trovão fez Karla lembrar-se do mau tempo e aproximar-se de uma das janelas. Ergueu a fina cortina e viu o imenso jardim, com algumas luzes filtrando-se em meio às ra magens, e que, ao balouçar do vento, pareciam vultos em constante movimentação. - Noite macabra! - falou para si mesma. - o cenário ideal para um filme de terror. As árvores mais próximas da casa brilhavam com o reflexo das luzes sobre as ramagens molhadas. - Até quando, meu Deus? Até quando? - Suspirou profundamente. - Parece que este temp o não vai mudar nunca. - Mais calma? - perguntou Ivan, tocando-lhe os ombros com delicadeza. Ela se assustou, voltando-se bruscamente, e sufocando um grito. - Perdão! - disse ele se desculpando. - Assustei você. Estava tão distraída!... - Não foi nada - respondeu sorrindo. - Sou uma tola. - Está se sentindo melhor agora ? Karla deixou a janela, dando-lhe as costas. Depois voltou-se, comprimindo os lábios. - Não. Não estou me sentindo bem. É este tempo, esta casa, as recordações... Não sei, Ivan, mas tudo me deprime tanto! Não devia ter vindo. Mas quando soube que Domingos viria, confesso que não resisti. - Evitou olhá-lo nos olhos. - Mas não foi só por isso. Fiquei sabendo que Rodolfo pediu a ele q ue viesse, para fazer companhia a Marilu, e eu não podia ficar de braços cruzados. - Karla suspirou fundo e encarou o rapaz. - Oh, Ivan! - disse, abraçando-o. - Não posso permitir que ela também o roube de mim. Primei ro foi a mãe, depois a filha!... Isto nunca, nunca! - protestou em pranto. - Ora, o que é isso? Esta se comportando como uma colegial. Já não é nenhuma criança! Lemb re-se bem que tanto você como Domingos têm idade para ser os pais de Marilu. - Eu sei, eu sei - disse, ainda chorando. - Mas Rodolfo está pretendendo aproximá-los e isto me deixa muito infeliz. Assim não terei nenhuma chance. - O que Rodolfo disse a Domingos, disse a todos nós. Ele quer que façamos Marilu sen tir-se amada. Você sabe; o amor prende, e esta é a única chance que tem para ter a filha de volta ao seu lado . - Acha mesmo isso? Não está querendo... - Não, não. - interrompeu, enxugando-lhe as lágrimas. - Não existe outra intenção, esteja ce rta. - concluiu sorrindo. Karla tentou corresponder ao sorriso, mas entristeceu-se logo. - Mas ela é tão parecida com a mãe... Eu tenho medo, Ivan. Muito medo. Ele sorriu novamente, com ternura. - Esqueça esses pensamentos tristes e vamos tomar um chá. Sairam do salão de jogos, encontrando Violeta no corredor. - Onde está o pessoal? perguntou Ivan. A criada respondeu, sem fitá-los. - Já subiram, senhor. - Por favor, sirva-nos um chá na saleta - disse ele. O ar aquecido envolveu-os, provocando uma sensação agradável de aconchego. Karla aproximou-se da lareira ainda crepitante e fitou demoradamen te a foto de Suzana.
- Uma mulher fascinante! - exclamou. - Uma mulher como outra qualquer - observou Ivan, sentando-se numa poltrona. Karla voltou-se para ele. - Você também sabe que ela era diferente. - Outra vez olhou a fotografia. - Uma mulh er ímpar, como Domingos sempre dizia. Uma mulher sem igual. - Não se deve apegar tanto a uma lembrança, Karla. Suzana está morta; portanto, você não d eve se torturar assim. Deve esquecê-la. - Você sabe que isto é impossível. Às vezes, chego a duvidar de sua morte, tão presente el a se faz em minha lembrança. Não consigo esquecê-la - disse, apertando a cabeça. - Não consigo libertar-me d ela. Violeta entrou trazendo o chá e ficou aguardando as xícaras. Após terminarem, Ivan sug eriu à amiga: - Vamos subir? Já é bastante tarde, e quem sabe, amanhã teremos um dia cheio de sol? - É uma sublime esperança, Ivan. Sem dúvida alguma. Atravessaram abraçados o salão de fest as, subindo as escadas. No hall superior pararam para se despedir, pois os homens ocupavam a ala norte, enquanto que as mulheres ficavam na ala sul, com exceção de Clara. - Se estiver sem sono, conte carneirinhos - disse o amigo, em tom de brincadeira . - Está bem - respondeu-lhe com um leve sorriso, caminhando para o corredor. Parou por alguns momentos em dúvida, enquanto ele a fitava. Os olhos dela se voltaram para a cortina que balançav a suavemente sobre o vitral. Chegou a comprimi-los para ver melhor. - O que foi? Ela ergueu os ombros indecisa. - Não foi nada. Apenas um mal-estar. Boa noite, Ivan. - E afastou-se, entrando pel o corredor escassamente iluminado. Um chuvisqueiro manso começou a bater na sua janela, ressoando um convite ao sono, e Karla se deixou levar por esta doce cantiga da n atureza. Pouco depois, estava flutuando pelo país dos sonhos, mas que foi bruscamente interrompido. Karla acordo u assustada. Pareceu-lhe ouvir passos no corredor. Passos lentos, abafados. Sentiu novamente o medo açoitar -lhe o corpo. Uma sensação estranha a invadiu. Uma sensação que lhe pareceu já ter sentido antes. Os passos continuavam e Karla ficou imóvel, olhando para a porta, como se esperass e que alguém fosse entrar ali a qualquer momento. Sua respiração era curta, ofegante; seu coração palpitava descom passado. Os passos sumiram. Karla ficou por algum tempo com a cabeça erguida, à espera de que recomeçassem. Silêncio profundo. Apenas o ruído abafado do chuvisqueiro persistia. Levantou-se devagar, indo até à porta e ficou com o ouvido colado nela por alguns instantes. Decidida, abriu-a cuidadosa mente, espreitando o corredor. Estava deserto, envolto na penumbra da noite. Cápítulo Oito -Para tudo existem as compensações - falou Domingos. - Imaginem este frio sem uma la reira. - É verdade - concordou Ivan. - Para tudo existem atenuantes. A natureza é mesmo pro digiosa. - Só que desta vez ela não está colaborando conosco - falou Melissa. - Vim para cá quere
ndo rever lugares gravados em minha retina e que me causam profunda saudade. Lugares onde sempre p assava horas, e que me transmitiam paz. Mas para este reencontro é indispensável que faça sol... - Confesso que também queria rever muita coisa. Depois de tanto tempo, é impossível ne gar a saudade - disse Ivan. - Recordar... Pensei que recordar fosse voltar a viver... murmurou Marilu. - E não é, minha filha? - perguntou-lhe Rodolfo, tirando o cachimbo da boca, encaran do-a preocupado. - Hoje estou certa que não - respondeu num sussurro. - Cada momento, é um momento di ferente. Podemos montar todo um cenário, sem esquecer sequer um único detalhe, mas ele não será igual nun ca. Nós não seremos os mesmos. Rodolfo meneou a cabeça em tom de dúvida. - Você tem razão - falou Louise erguendo-se do trabalho. - Mas, mesmo assim, não podem os negar a nostalgia de uma lembrança... É bom recordar. Claro que, com isto, não estou querendo dizer que devemos viver de lembranças. - Cada momento é um novo momento - sintetizou Ivan, acendendo o cigarro. - É isto me smo. - Há pouco vocês falavam sobre a lei da compensação da natureza e fiquei pensando... - m anifestou Clara, tirando os óculos e repousando o trabalho no colo. - Nem tudo na vida é compensado. A juventude, por exemplo. Nunca se pode dizer compensada pela velhice. - Ouvi alguém dizer que cada idade tem seu encanto... - Observou Rodolfo. - Mas cr eio que só vivendo para saber. Após um silêncio repousante, Clara levantou-se, deixando o tricô sobre a poltro na, comentando: - Acho melhor ir ter com Violeta. Talvez esteja precisando de ajuda no Dreparo d o almoço. Com aquele ferimento na mão... Melissa aproximou-se de uma das portas envidraçadas, com os braços cruzados. - Chuva, vento, frio. Que cenário desolador! Sinto-me sufocada aqui dentro. - Calma, querida - falou-lhe Rodolfo. - Este tempo passará. - Mais um dia assim e não sei se vou suportar... - Podemos jogar uma partida de gamão após o almoço - propôs Ivan. - Você sempre gostou. - É o jeito - respondeu ela descontente, e deixou-se cair novamente no sofá. Outra vez o silêncio invadiu a saleta. Melissa, inquieta, puxava o laço que fechava a gola da blusa. - Parece que o almoço não será problema para Violeta - disse Clara, entrando na saleta . - É uma criada bastante eficiente. - E dedicada - completou Melissa. - Coisa rara hoje em dia. Geralmente, elas não q uerem nada e reclamam de tudo. Clara sentou-se, recomeçando o trabalho, mas logo interrompeu-o novamente. - Onde será que deixei os óculos? - perguntou, olhando em volta e saindo á procura del es. - Como tia Clara pode ser tão distraída? - comentou Marilu sorrindo. Logo, ela reapareceu, colocando os óculos. - Estou preocupada com Karla, Rodolfo. Não desceu até agora. Não seria bom saber o que está havendo? perguntou Clara. - Não é necessário - ouviram a moça dizer á porta. Estava abatida, distante, apática. - Até que enfim você apareceu, minha querida! - exclamou o Sr. Ralph de modo afetuos o. Ela caminhou lentamente até o centro da saleta, sem nada dizer, com os olhos parad
os e exibiu um caderno de capa vermelha. Todos olhavam para ela, interrogativamente. - Estava sobre meu toucador hoje pela manhã... - disse respirando fundo, - ... e a berto nesta página - completou, abrindo o caderno e lendo: "Brincando no Infinito" Tudo era lindo. Tudo era azul, muito azul... Azul leve, azul suave, azul bonito. Havia sol, muito sol. Brilhante, quase ardente, dormente. Havia brisa; brisa de vento manso, Que sopra va calmo, Embaraçando meus cabelos, Agitando minha roupa. Havia paz. Paz infinita. Eu não tinha mais que descobrir Qual o "caminho". Eu já havia partido para o meu mundo, E corria leve, Brincando pelo infinito." De novo respirou profundamente, sem tirar os olhos do livro. - Era o caderno de poesia da mamãe - disse Marilu. E este era o seu poema preferid o. - Isto mesmo - concordou Karla. - Todos nós, com exceção de Louise, é claro, sabemos dis to. - Estava em seu quarto? - perguntou Marilu, aproximando-se dela. - Sobre o meu toucador, para ser mais precisa, aberto nesta página. Marilu apanhou o caderno, olhando em seguida para Karla. - Isto é... é sangue? - per guntou assombrada. - Por isso estou tão assustada. Por que esta mancha de sangue, justamente nesta pági na? - indagou Karla com firmeza. - O que é estranho para mim - disse Clara - é este caderno ter ido parar em seu quarto. - Eu não sei o que está acontecendo - disse Karla, mas esta noite, já era bem tarde, q uando acordei ouvindo passos pelo corredor. Passos abafados, furtivos. Levantei e olhei, mas não vi ninguém. Todos ficaram em silêncio olhando para ela. - Vocês não estão pensando que eu sonhei, não é mesmo? Por favor, acreditem em mim - falou implorando. Rodolfo aproximou-se dela, apanhando o caderno e o folheou, colocando-o em seguida sobre a mesa. Deixou escapar um suspiro profundo. Suzana! Era possível ouvir sua voz suave e ritmada, lendo-lhe suas obras, enquanto caminhavam pelo jardim o u pelo bosque, ou mesmo ali, naquela saleta, em dias nevoentos como aquele. - Eu acredito em você, Karla - disse finalmente. - Só que não existe nada de absurdo e m tudo isto. Esta mancha de sangue pode ter sido a própria Suzana que tenha se machucado, algúm ferimento lev e, alguma coisa neste género e manchado o livro; os passos, pode ter sido algum de nós. Tudo tem uma expli cação lógica. É só não ficarmos imaginando coisas. - Concordo - falou Marilu. - Ontem fiquei até bem tarde no quarto de Louise, conve rsando. - E como você explica este caderno ir parar no quarto de Karla, aberto nesta página? - indagou Melissa desafiante. - Não sei. Mas se procurarmos a verdade dentro da lógica, tenho certeza de que encontraremos uma explicação plausível. - Dentro do seu raciocínio, a única explicação lógica que vejo, é que algum de nós fez isto. Talvez para assustar Karla. Digamos, uma
brincadeira. De mau gosto, concordo, mas uma brincadeira; embora dificil de acreditar que algum de nós seja capaz disso - concluiu Melissa. - Eu também não consigo admitir tal idéia - concordou Domingos. - Volto a insistir. Suzana ainda não saiu desta casa. Ela precisa de nós para encont rar o "seu caminho". Apanhou o caderno sobre a mesa, abrindo-o. - Se prestarem bastante atenção no que di z o poema, talvez consigam entender o que estou querendo dizer. Ela precisa encontrar o "seu camin ho". Precisa ficar "leve para correr de encontro ao seu infinito". Precisamos ajudá-la. É tudo que sei. Capítulo Nove Posso entrar? - perguntou Marilu, entreabrindo a porta do quarto. - Claro, querida - respondeu Melissa, recostando-se no leito, pondo-se a ajeitar no alto da cabeça o penteado, que lhe ficava muito bem. - Não há muita opção num dia assim - falou melancólica. Marilu recostou-se aos pés da cama. - Não se torture. Dias maravilhosos virão - falou sorridente. - Este tempo chuvoso é a penas para dar entrada ao inverno. Aí, teremos aqueles dias de sol morno e um friozinho ameno. - Calor ou frio, isto não me importa, mas o sol... Ah, como ele é importante para mi m. Riram. Melissa foi quem ficou séria primeiro. - Não sei por que, mas sempre em dias assim, que se sucedem, sinto-me angustiada, aflita, sem lugar. É como se jamais fosse tornar a ver o sol... - Você propaga tanto esta estrela... Não resta dúvida ser chamado o "rei sol". - E não é mesmo rei? - Sim - respondeu Marilu pensativa. - Rei. Invencível, incrível, soberano e soberbo. Maravilhoso. Ficaram em silêncio por alguns instantes. Melissa fitou-a. - Você está bem? - atreveu-se a perguntar. - Sim - respondeu-lhe séria. - Não me parece - falou-lhe, aproximando mais da amiga, segurando-lhe as mãos. Marilu contemplou aquele gesto carinhoso, depois o rosto de Melissa. Descobriu q ue pela primeira vez via aquele semblante, que sempre lhe pareceu bonito e que, no entanto, já trazia as pr imeiras marcas do tempo. Melissa sentiu-se constrangida com aquele profundo olhar. - Se mamãe estivesse aqui, estaria como você - disse Marilu entristecida. - Como assim? - perguntou Melissa, deixando à vista uma ruga na testa. - Não a estou entendendo. - Quando morreu, ela estava tão linda, parecia tão jovem... - respirou fundo. - É esta a imagem que guardo dela. Jamais pensei que mamãe fosse envelhecer. - Você está querendo dizer que, se Suzana estivesse viva, estaria envelhecida assim, como eu, não é mesmo? perguntoulhe com um sorriso triste. Marilu pensou um pouco, antes de responder. - Sabe Melissa? Para mim, mamãe seria sempre jovem e bonita. Mas agora, olhando pa ra você, deparei-me com a realidade. Sei que são da mesma idade. - Sou um ano e meio mais velha, para ser precisa - consertou Melissa, rapidament e.
- Ela estaria também envelhecida. Linda ainda, acredito eu, mas envelhecida. - Fit ou a amiga com ternura e ao mesmo tempo com tristeza. - Você representa muito para mim. Como eram amigas! - É - concordou. - Amigas... Marílu fitou-a demoradamente. - Você não guarda mágoas dela, não é mesmo? - Não... Não guardo. - Um pequeno sorriso iluminoulhe o rosto. - Não sei por que, mas nunca consegui ser inimiga dê Suzana. Ela era a mulher que conquistara meu noivo e mesmo assim... - r espirou profundamente. - Deve ter sido terrível - observou Marilu. - Pareceme até que o casamento de vocês já e stava marcado... - Estava. Para o dia dezoito de julho. Faltavam três meses, quando tudo aconteceu. - Melissa fechou os olhos como se para recordar melhor. - Naquele dia, pensei que fosse morrer. Marilu guardou silêncio por instantes, enquanto umedecia os lábios. - Tenho observado que você ainda conserva uma esperança... - atreveu-se. - Esperança!... - exclamou com um sorriso irônico. Sinto-me ridícula. Não tenho mais ida de para ter esperanças... - Ora, Melissa! Mas que tolice está dizendo?! Novamente deixou um sorriso irônico aflorar-lhe os lábios. - Tolice!... - Meneou a c abeça num gesto negativo. Claro que não. É impossível negar a realidade, Marilu. Ainda há pouco você descobriu que já envelheci. Esta é a verdade. Não há mais sonhos, mais ilusões, mais esperança. Casamento, vestido branco, mu itas flores, luz, alegria... Tudo isto ficou para trás, com minha juventude. Morreu. Acabou. O que s into por seu pai já não faz mais sentido. - Como está magoada, Melissa! - exclamou surpresa Marilu. - Até ainda há pouco pensava que não guardasse ressentimentos de mamãe. - Firmou os olhos como se procurasse alcançar um ponto imag inário. - Perdoe-me, Melissa! Afinal você é uma vítima. Não poderia ser de outra forma. As duas se abraçaram. - Você é quem deve me perdoar - falou Melissa emocionada. - Ninguém teve culpa de nada , pode acreditar. Amor é algo que acontece sem que possamos evitar. Nem ela, nem Rodolfo tiveram cul pa. Marilu secou as lágrimas inoportunas da amiga, num gesto de profundo carinho. - Como deve ter sofrido, minha querida! Melissa sacudiu a cabeça como se quisesse afastar aquele clima triste que se havia formado. - Mas tudo já passou e não vale a pena ficatmos lembrando de coisas desagradáveis. - S orriu. - Vamos mudar de assunto? O sorriso de Marilu dissipou-se logo, para seu rosto tornarse sério. - Tenho notado que papai anda se sentindo muito só, e também observei que ele gosta de sua companhia. Por favor, Melissa. Não o abandone. Não o deixe sentir solidão. Ele amava muito mamãe, más agora ela já se foi, e não podemos deixálo viver só de le branças. Posso estar sendo egoísta pedindo-lhe isto, mas acredito que aquele amor que sentia por papai ainda não se acabou. Deve estar aí, em seu peito, apenas adormecido. Encontre-o. Já é hora dele despertar. - Confesso que este amor não morreu e muito menos está dormindo dentro de mim. Está vi vo, muito vivo, sangrando até. - Suspirou. - Não posso negar também que continuo esperando, sonhando.. . mas depois que
viemos para cá, as coisas que aconteceram com Karla me pareceram um aviso. Estou c om medo, Marilu. - Não se deixe impressionar com os pesadelos de Karla - disse séria. Tudo isto é apenas uma impressão forte que está nos deixando tensos. - Ficou de pé, com expressão segura. - A forma trágica com o mamãe morreu, a casa abandonada por nós logo em seguida após o seu funeral, tudo isto está mexendo con osco agora. Eu sabia que, mesmo apesar de quatro anos passados, quando chegássemos aqui, teríamos a sensação de que tudo acontecera ontem. Um leve toque á porta fez as duas olharem na mesma direção. O rosto de Louise apareceu sorridente. - Atrapalho? - Claro que não, querida. Vamos, entre! - falou Marilu. - A casa está deserta - diss e Louise entrando e fechando a porta atrás de si. - Parece que todos estão aproveitando para descansar. - Também com este tempo, não resta muito a fazer - lamentou Melissa apontando a jane la. - Veja só que horror! Chuva, vento e frio. Dormir é a única opção. - Estou preocupada com você, Louise - falou Marilu. - Veio acompanhando-me, imagin ando uns dias tranqüilos no campo, e veja só. Deve estar se sentindo numa prisão. - Não se preocupe com isto. Afinal de contas, ninguém tem culpa do tempo estar assim ; e, além do mais, as borrascas não duram eternamente. Um novo toque á porta, e a figura de Clara despontou esfogueante, com o seu trabalho de tricô á mão. - Desculpem se interrompo, mas preciso de você, Louise. Perdi uma malha e não sei co mo fazer - falou inconsolável. - Deixe-me ver - falou a moça, apanhando o trabalho com um bonito sorr iso. - Você está mesmo levando a sério as suas aulas de tricô, titia. Estou encantada! - Por quê? - perguntou desconfiada. - Por acaso pensou que não fosse capaz de aprend er? Marilu ficou com expressão grave. - Ora, que é isso titia? Não é nada disso. Apenas fiz um elogio. A senhora tem tantos afazeres e conseguir conciliar mais um... - Pronto! - disse Louise entregando o trabalho para Clara. - Agora está tudo certo . A senhora é uma ótima aluna - brincou. - Não sei como fui perder aquela malha. Não consigo entender. - Isto é perfeitamente natural - explicou Louise. Melissa suspirou, como se estive sse criando coragem. - Talvez tenha perdido a malha, porque está trabalhando sem os óculos - arriscou. - falou pausado. - Pode ser isto mesmo. Mas acontece que não consigo lembrar-me onde os deixei concluiu, já deixando o quarto. Elas apenas riram. Capítulo Dez A lareira continuou crepitante por mais um dia. Na saleta íntima, o tema discutido continuava sendo o tempo. Violeta entrou trazendo o chá. - Quem diria que estamos em plena lua cheia! - observou Domingos, acariciando o bigode que com certeza agradavalhe muito. - Com tanta chuva, é mais fácil acreditar que estamos em pleno dilúvio - brincou Ivan. - Violeta, minha querida - falou Melissa. - Você precisa ir à cidade cuidar deste fe
rimento. Continua sangrando. Veja como está manchada a atadura! A moça encolheu-se, cheia de medo. - Amanhã vamos levá-la ao hospital - falou Clara categórica. - Isto não pode continuar a ssim. A criada aproximou-se de Rodolfo, apavorada. - O senhor prometeu! - falou alto, quase gritando, saindo em seguida. - Como pode ser tão estúpida, meu Deus? - disse indignado. - Calma, Rodolfo - falou Melissa. - Ela está assustada. Vou tentar convencê-la a se tratar. Os passos de Melissa se perderam no corredor. Rodolfo respirou profundo, sentind o-se mais aliviado. - Melissa! - disse com ternura. - Uma grande mulher, sem dúvida. - Não acredito que ela vá convencer Violeta - observou Clara, levantando os olhos po r sobre os óculos. - Não com esta tática. - A senhora não acredita na linguagem do amor? - perguntou Marilu com desapontamen to. - Você ainda não conhece a vida, minha querida. Tem a cabecinha cheia só de coisas bon itas. Com pessoas ignorantes como Violeta, você tem que ser dura, quase má. Tem de dar ordens, mandar. É só o que sabem fazer: obedecer. Louise parou o trabalho, encarando-a. Estava diante de uma nova Clara, pois até en tão julgara-a diferente. Ivan fitou Louise, notando sua expressão de decepção; e quando esta encarou-o, ele apenas levantou as sobrancelhas, numa expressão de solidariedade. Marilu abriu a boca para dizer algo, mas resolveu calarse. Fechou a revista de m odas, despedindo-se para dormir. Karla resolveu acompanhá-la, acusando dor de cabeça. E quando o carrilhão bate u as vinte e três horas, todos já se haviam recolhido. Karla olhou pela janela e viu só a escuridão. As luzes do jardim estavam apagadas. C errou as cortinas, jogando-se na cama. Folheou um livro, mas não teve disposição para ler. A cabeça estava pesada, com o se fosse apanhar um resfriado, e apoiando-a sobre os braços ficou de bruços, revendo a cena que há pouc o transcorrera na saleta. Clara, prepotente, poderosa, autoritária, menosprezando os criados. Chegou a imagi ná-la com uma enorme coroa, agitando o cetro do poder nas mãos. Era estranho como ela assumira o lugar de Suzana naquela casa, como se julgasse ser a sua substituta. Suzana... Novamente ela. Tão decidida, mas ao mesmo tempo tão ponderada. Exprimia um a ordem em forma de pedido. Tudo tão sutil, tão nobre... Tudo muito característico dela. Uma casa imensa, que conduzia com tranqüilidade, certa do resultado de cada decisão tomada. Ali era seu reino. Desde as hortências que cobriam o imenso jardim, as árvores do bosque, os quadros qu e ornávam as paredes, as cortinas que cobriam as janelas e vitrais. Tudo enfim, naquele pedaço do mundo, era fruto de sua prodigios a imaginação. Quantas vezes imaginou-se no lugar de Suzana, tendo Domingos ao seu lado, a casa repleta de amigos que se maravilhavam com suas habilidades. As pálpebras de Karla estavam pesadas. Precisava desligar o abajur antes de adorme cer, pensou.
Um estranho rumor chegou-lhe até aos ouvidos. Tentou prestar atenção. Pareciam passos. Passos no corredor. Não estava bem certa. Fora fatalmente atingida pelo sono, mas era bem possível que f ossem passos. Alguém que caminhava abafado. Ela deveria ir ver, pois, segundo Rodolfo, era necessário procurar a verdade dentr o da lógica. Ela precisava ir... Saiu pelo corredor vagarosamente, pisando leve, tentando descobrir alguém através da tênue claridade. O corredor pareceulhe mais comprido e estava completamente deserto. Avançou com caut ela, chegando ao hall que dava para as escadas que desciam para o salão de festas. Silêncio profundo. Olho u em volta e sentiu que nem tudo estava igual ali. Parecia que faltava algo. Karla estava com medo. Semp re aquele maldito medo lhe dominava no momento da verdade, e, sentindo-se incapaz de vencê-lo, achou melhor f ugir para o quarto. Mas, quando voltou-se para a porta que dava para o comprido corredor da ala sul, ouvi u um gemido. Parou sem voltar-se, ficando imóvel, com o coração descompassado, sacudindo-lhe o peito. E o que ela não queria ouvir, ouviu. O gemido se repetiu. Karla voltou-se para o hall, olhando para o salão. Seus olhos estatelaram de panic o, a boca abriu sem emitir som algum. Suzana estava caída lá embaixo, ensangüentada. Ela se arrastava, tentando alcança r a escada, lutando contra a morte. Suzana gemia, parecendo pedir socorro, estendendo-lhe a mão suja de sangue. Karla permaneceu no alto da escada, imóvel, sem conseguir gritar ou andar, vendo Suzana arrastando-se, subindo vagarosamente os degraus. Tudo aquilo parecia uma loucura. Karla não conseguia formar um pensamento exato do que estava acontecendo, vendo Suzana, que já parecia exausta, apontar para o vitral da ala norte, balbuciando palavras que não conseguia entender. E Suzana insistia, sempre apontan do naquela direção. Karla olhou para a farta cortina que tremia de leve com um friso de vento. Seus olhos se estarreceram com o que viu. Por baixo da cortina, escapava a ponta felpuda de um par de chinelos. Agora entendia o que Suzana lhe mostrava. Ela sabia que alguém estava oculto ali. Novamente, o medo dominou Karla, mas, não sabendo como, uma força inexplicável impeliu-a, levando-a até á cortina. A respiração estava entrecortada, quase sufocando-a. Num gesto brusco, levantou-a e viu apenas um vazio imenso, uma escuridão total, enquanto uma dor aguda na cabeça obrigou-a a levar as mão s á testa, segurando-a com força. Karla acordou assustada, sentando-se de chofre na cama, e sentindo a cabeça doer t errivelmente. Aos poucos foi se acalmando, tentando conciliar as idéias. - Novamente aquele sonho, pensou. E como sempre, pareceu-lhe tão real. Muito real para ser um simples sonho, concordou consigo mesma. Não deveria dizer nada a ninguém. Certamente, iriam admitir auto-sugestão e até poderiam estar certos, pois lembrava-se de que, antes de adormecer, teve a impre ssão de ouvir passos no corredor, e com certeza adormecera preocupada com aquilo. Por alguns instantes reteve a respiração, tentando ouvir melhor. Nada, além do vento c ortante que continuava
assobiando. Era melhor voltar a dormir, pensou, fechando os olhos. Mas, novament e, os passos misteriosos se fizeram ouvir. Sentou-se na cama, certificando-se de que eles voltaram a ecoar, e estava bem desperta, estava segura disso. Desta vez, eram reais, embora parecessem com os de há pouco, que lhe povoaram os sonhos. Mas estes faziam parte da realidade e eram abafados, cautelosos. Sentiu que se aproximavam de seu quarto, e em pânico ficou encolhida na cama, olha ndo para a porta. - Os passos se aproximaram mais e mais, até alcançarem o quarto, e de repente cessar am. Alguém estava parado ali, pensou com desespero. Com o pavor estampado nos olhos, Karla ficou observando a maçaneta durante longo t empo. Só que ela não se moveu. Capítulo Onze Meio dia já se passara e as esperanças de um dia melhor haviam se perdido no céu nevoe nto, na garoa fria e no vento incessante. Ivan e Domingos contemplavam, pelo vidro da janela, o jardim sem brilho que tent ava resistir ao frio. Um toque suave à porta dá biblioteca, e logo viram Violeta entrar com a bandeja. - Com licença - falou tímida. - O café que pediram. Ivan sentou-se à escrivaninha, esper ando que ela o servisse, enquanto Domingos acomodou-se a uma poltrona defronte à mesa. - Decidiu ir tratar-se, Violeta? - perguntou Domingos apanhando a xícara da bandej a. Ela encolheu os ombros. - A senhorita Melissa conversou comigo e disse que me fará companhia. - E coisa simples, vai ver - falou Ivan, tentando incutirlhe coragem. - A que ho ras vão sair? - Daqui a pouco. Mais alguma coisa? - perguntou, enquanto recolhia as xícaras. Eles agradeceram e ela os deixou. Por algum tempo, ficaram em silêncio, contemplan do o ambiente, como se sentissem ali uma presença. - Nunca imaginei esta casa sem Suzana - falou Domingos perturbado. - Ficou vazia - observou Ivan. - A casa sem Suzana ficou completamente sem vida. Ela era a alma de todos nós. - Marilu! - exclamou Domingos. - Fisicamente é muito parecida com a mãe, mas tenho dúvidas que tenha herdado a personalidade dela. - Só de ser a filha de Suzana, já é um bom começo, meu amigo. Será parecida com a mãe, estej a certo. Esta atitude dela, em querer voltar, é um comportamento parecido com o de Suzana. Sua p ersonalidade está se moldando à da mãe. - Em outros tempos, não perceberíamos estes dias horríveis. Suzana preenchia nossa vid a com atividades diversas, interessantes, inteligentes, que nem notávamos o que acontecia lá fora. - Pensei que as lembranças não seriam tão fortes, depois de tanto tempo - falou Ivan n um lamento. A maçaneta girou e eles olharam para a porta. Clara entrou e percebeu, como numa metamorfose, o rosto de ambos passar a exprim ir decepção. Por um momento, acreditaram que Suzana estivesse à porta. - Desculpem-me se interr ompo - disse ligeiramente constrangida, percebendo o pouco entusiasmo no rosto deles. - Vim avisá-los de que estamos indo até à cidade.
Estou precisando falar com Dr. Nobel, pois Karla, com estas histórias todas, está me deixando muito tensa. Melissa vai ser a dama de companhia de Violeta, o que eu acho um verdadeiro absu rdo, mas que fazer? Depois, ela pretende ir ter com uns amigos, para tentar ajudar o espírito de Suzana. Vocês e ntendem. Coisas de Melissa. - Karla também vai? - perguntou Domingos. - Sim, disse que vai. Precisa falar com seu médico por causa das dores de cabeça que vem sentindo ultimamente. Pobrezinha! Anda tão abatida! Também com tantos pesadelos! Fez uma pequena pausa, en quanto guardava os óculos na bolsa. - E vocês? Desejam alguma coisa da cidade? Eles se olharam desinteressados. - Não. Não precisamos de nada. Obrigado - respondeu Ivan. Clara saiu, e por alguns instantes ouviram a voz dela, um pouco rouca, falando r ispidamente com Violeta. Depois, o silêncio, regado de uma chuvinha fina que escorria pelo vidro da janela. Domingos sentiu que aqueles dias, ali, estavam-lhe sendo nocivos. Já era possível pe rceber que seu organismo estava se acostumando a um novo hábito: o de repousar após o almoço. Isto não era bom, p ensou. Era um sintoma de que ficara ocioso. Olhou para Ivan e sentiu que ele também não tinha nenhum interesse em conversar. Cer tamente estava mergulhado no oceano de suas lembranças. O chá quente, com o dia frio, foi um convite irresistível ao sono. Com este propósito, subiu para seus aposentos, deixando na biblioteca um homem sonhador. Ivan acendeu um cigarro e foi até à janela ao lado, olhando os pingos esparsos da ch uva que batiam na vidraça. Um dia triste, pensou. Mas se estivesse feliz, não sentiria tristeza. Voltou à mesa, sentindo o corpo um pouco solto; e como nada tinha a fazer, abriu g avetas, remexendo seus conteúdos. Era incrível, mas em alguns papéis encontrou a letra inconfundível de Suzana, num traçad o delicado e numa linguagem objetiva. Lembretes sobre datas de aniversário, endereços, enfim, anotações d iversas que sempre acompanham uma mulher versátil. Era inegável ainda sua presença naquela casa. Em meio aos papéis, encontrou uma foto d e Suzana. Uma foto que ele batera. Que época maravilhosa aquela em que viveram lado a lado. Ele a amava muito, e o ca samento já era quase um fato consumado, quando tudo aconteceu. Crispou os lábios. Valia a pena lembrar? Não sabia ao certo, pois, recordando momentos felizes, fatalmente lembraria também que ela o deixara para se casar com Rodolfo, seu melhor amigo..E pensar que fora ele quem apresentara os dois! - pensou, fechando os punhos. Quando Suzana lhe dissera que tudo estava acabado, ele pensou que fosse morrer. Os dias se arrastavam em horas de amargura. O tempo foi passando e uma sensação de perda invadiu-o. Foi procurar Suzana, mas esta já estava à véspera do casamento com Rodolfo, e a felicidade que viu em seus olhos brilhantes, embora tentasse ocultar-lhe perante sua dor, o fez sen tir ódio. ódio de Suzana. Ele que sempre a amara, percebeu então que a odiava. Depois de quatro anos, longe daquela casa, Ivan ainda não havia conseguido definir
ao certo o que sentia por Suzana, após a sua morte. Muitas vezes uma sensação alegre, de amor, o invadia, mas al gumas vezes tinha vontade de sumir dali, tentar apagar da mente o vulto dela. Só ela era capaz de nutrir, em um homem, dois sentimentos extremos: amor e ódio. Sim , ele a amava. Era impossível negar. Era impossível sufocar aquele grito preso na garganta por mais tem po. - Eu a amo, Suzana - disse, olhando com ternura a fotografia. - Sempre a amarei. - Num gesto ríspido, virou a foto sobre a mesa. - Mas eu a odeio também. Você mostrou-me a felicidade e depois jo gou-me num eterno infortúnio, fazendo de mim uma criatura infeliz, amargurada. - Recostou-se na polt rona, num gesto de abandono, olhando fixo para o nada. Capítulo Doze No quarto, Domingos contemplava a natureza acinzentada. Como aqueles dias o ente diavam! Sentia-se sem rumo, sem ter o que fazer para absorver-lhe o tempo. Num ímpeto, decidiu que dever ia ir embora, deixar aquele lugar, aquela casa, que agora mais parecia um mausoléu. Foi até ao armário, apanhou a mala, abrindo-a sobre a cama. Sim, ele queria ir embor a. Não valia a pena ficar a desfiar fibra por fibra as recordações. Mas um outro pensamento veio-lhe à mente: deveria continuar ali. Rodolfo não lhe fiz era um convite, mas um apelo. Marilu finalmente resolvera regressar de seu exílio e pretendia voltar a mo rar ali. Era preciso que todos os amigos se acercassem dela, pelo menos no princípio, para que não se sentisse muit o só e cheia de lembranças trágicas. Uma semana, pensou, correndo os dedos pelo bigode. Rodolfo falara-lhe em apenas uma semana, que já lhe parecia um século. Voltou a guardar a mala, certo de que deveria ficar. Seria descortesia para com Rodolfo e Marilu. Mas o que fazer? Não poderia ficar ali, olhando o tempo passar pelo vidro da janela. Poucas opções restavam: dormir, jogar, ler ou ouvir aquelas mesmas conversas. Ah, como elas o irritavam! Os pesa delos de Karla, que nunca conseguia discernir entre o sonho e a realidade; as opiniões de Melissa, levando t udo para o campo espiritualista, e Clara, agora, dominando um reino que não era dela. Talvez fosse isso que o aborr ecesse mais. Clara, a impostora, tentando substituir Suzana. Uma afronta aos olhos de todos que a conheceram. Suzana: meiga, decidida, ponderada e gentil. Clara: prepotente, arrogante, autor itária e fria. Só agora, quando ela havia assumido o lugar de Suzana, é que a estava conhecendo mel hor. Jamais pensou que fosse assim. Talvez tudo pudesse se resumir numa explicação lógica: Clara era uma mulh er infeliz. Sabia-se lá por quê. Mas o que fazer? Quase todos haviam saído. Estirou-se sobre o leito e sorriu, ouvi ndo o barulho do vento e da chuvinha que trazia o inverno, em contraste com o aconchego do aposento de corti nas abaixadas. Sem dúvida, era um convite excitante ao descanso.
Olhou para o teto e admirou o pequeno lustre. Gostava daquela casa, e tinha algu mas lembranças dali. Quando viera do interior, o pai de Suzana levara-o para morar lá. Já fazia tanto tempo! Suz ana era uma adolescente; uma adolescente linda. Ficaram amigos e sempre percorriam juntos as alamedas do jardim e os diversos caminhos do bosque. Suzana e a natureza: um quadro vivo. Recordou-se do dia em que ela lhe dissera querer sempre viver naquela casa. Foi a partir daquele instante, que ousou sonhar que também ficaria ali, para sempre, ao lado dela. Se tivesse consegu ido o seu amor... Mas Suzana ao mesmo tempo tão amiga, tão companheira, tão humana, parecia-lhe tão distan te, quase um sonho remoto, uma estrela inatingível. Estrela... Fora assim que Karla a denominar a um dia, quando, num ímpeto de desespero, faloulhe de seu amor sufocado. Ela rira breve, dizendo-lhe: " - Você está tentando alcançar uma estrela no céu, e com isto não percebe sequer um vaga-lume na terra. " Sentiu raiva de Karla. Que estrela, que vaga-lume!? Não havia nada disto. Apenas S uzana existia. O tempo foi passando e ela foi se transformando numa mulher fascinante; mas Ivan apareceu, e então, daí para frente, a tristeza foi crescendo cada dia mais. As lembranças já não conseguiam sucumbir à dor que lhe queimava o peito, e deixou que o pensamento continuasse correndo pelo passado. Já então, não havia esperança para suportar a realidade tão contrária aos seus sonhos, quand o Suzana rompeu o noivado com Ivan. Que felicidade sentira naquele dia! Felicidade que durara pouc o, pois logo surgira outra verdade que não a dele: Suzana amava Rodolfo e iria se casar com ele. Novamente a amargura, o desespero e a desilusão invadiram-no, mas bem lá no fundo, u ma chamazinha de esperança queimava: Suzana poderia romper tudo novamente e percebê-lo, sentindo o qu e ele sentia. Seria este um momento supremo, que se estenderia para sempre. Mas isto não aconteceu. A data do casamento estava cada dia mais perto e ela mais e mais feliz. Resolveu deixar aquela casa. Não queria assistir de perto ao seu infortúnio. Suzana! Uma mulher á primeira vista privilegiada, e com uma morte tão estúpida. Morta! Seria mesmo verdade? Era quase possível sentir, mesmo depois de quatro anos, sua presença. Parecia ouvir seus passos pelo corredor, caminhando leve, e seu coração ia se enchendo de alegria, esperando vê-la surgir pela porta. Ele ainda a amava. Era impossível negar tal sentimento. Quando ali entrou e defrontou-se com o enorme retrato no salão, foi o mesmo que tr azê-la de volta á vida. Era uma loucura, mas sentia sua presença em todos os lugares daquela casa. Levantou-se, aproximando da janela, erguendo a cortina. O dia continuava embrulh ado. Foi dali mesmo, daquela janela, que um dia ouvira a voz de Suzana, inconfundível e firme, falando com Karla no jardim. " - Domingos apaixonado por mim? - perguntou rindo. - Ora, mas que tolice! Ele a inda é uma criança, Karla. Somos bons amigos, quase irmãos. " Domingos crispou as mãos, deixando cair a cortina, voltando-se ao leito. Uma criança, pensou. Ela o julgava uma-criança. Talvez uma criança tola. Não era justo c ontinuar amando aquela mulher. Ela fizera pouco de seu amor. Era preciso destruí-la, apagála de sua vida. Não queria mais ouvir
falar seu nome. Era preciso matá-la para sempre. O retrato... Aquele maldito retrato havia ressuscitado todas aquelas lembranças amargas. Era preciso destruí-lo, acabar com aquela casa, o jardim , o bosque, enfim, tudo que respirasse Suzana. Tudo aquilo devia ser destruído para que ela morresse para sempre, pois todas aque las coisas estavam impregnadas pelo seu fascínio. Capítulo Treze A lareira foi atiçada e o fogo cresceu forte e colorido. Marilu ficou ali, agachad a junto dela, contemplando por algum tempo as chamas oscilantes e rápidas. Correu a mão pelos cabelos, jogando-os p ara trás. " - Não existe em nenhuma aquarela, mesmo do maior pintor do mundo, os diferentes tons que colorem as chamas. " - falou Marilu quase para si mesma. - Uma frase de mamãe - concluiu num suspiro triste. Louise levantou a vista do tricô, já com um vinco acentuado entre os olhos, fitando a amiga. Esta deixou de lado o fogo, levantando-se e indo sentar-se numa poltrona. - É impossível, Louise. Impossível. Ela está ainda muito viva em minha lembrança. Consigo senti-la em todos os cantos desta casa. Marilu estava muito tensa. Apoiou o rosto contra as mãos e deixou um pranto resgua rdado sair. Louise aproximou-se da amiga, comovida. - Não acha maravilhoso ela continuar pulsante, como se não tivesse morrido? - Acaric iou-lhe os cabelos, num gesto de ternura e conforto. - Minha querida, se ela era tão especial, será impossível esquecê-la. Marilu ergueu o rosto molhado de lágrimas. - Eu não quero esquecê-la. Só não consigo aceitar sua morte. Não consigo. - Calma, meu bem. Isto não é assim de um momento para o outro. Apenas o tempo poderá a judá-la. Marilu levantou-se, indo até a lareira, apanhando a foto de Suzana, que sorria sem pre para a saleta. - Mamãe... - falou chorando. - Ah, mamãe! Que saudades sinto de você. - Abraçou a fotogr afia em prantos. Louise tentou ocultar uma lágrima indiscreta e não impediu que Marilu deixasse explodir toda sua emoção. Sentada encolhida no tapete, ela conti nuava abraçada ao retrato, ora chorando, ora acariciando o rosto feliz da mãe. Louise ficou ali, num canto, contemplando a cena. Marilu mais parecia-lhe um bichinho acuado, indefeso, cuja mãe havia sido caçada. - Quando mamãe tirou esta foto, não sabia que teria uma morte tão precoce e tão horrível falou soluçando. Por algum tempo, a emoção foi muito forte, mas logo Marilu se acalmou, deixando de c horar. Louise aproximou-se dela e, segurando-lhe as mãos, ergueu-a com carinho. - Não vai ser fácil, querida, mas você conseguirá. Levou-a até ao pequeno sofá, onde se sent aram. - Já estou me sentindo melhor - suspirou. - Não imagina a força que eu estava fazendo para que isto não acontecesse na frente de papai. Seria terrível para ele. - Fez bem em conter-se - concordou Louise. - Tenho observado que todos sentem a falta de sua mãe. Ficam indecisos, não sabem o que fazer. É como se tivessem perdido a líder do grupo. Marilu sorriu triste.
- Isto é verdade. Ela comandava todos nós, preenchia nosso tempo com atividades incrív eis. Uma perfeita anfitriã. - É uma pena - falou Louise. - É uma pena mesmo, que pessoas como Suzana vivam tão pou co. - Obrigada, minha amiga - disse Marilu. - Obrigada mesmo! Não sabe como está me ajud ando. - Posso fazer tão pouco por você... Ouviram passos. Passos apressados e nítidos. As duas olharam para a porta que semp re ficava aberta. Surgindo do corredor, apareceu Violeta. - Aceitam café ou chá? - Violeta? Você não foi à cidade cuidar de sua mão? perguntou surpresa Marilu. - Sim, mas já voltei. Como a senhorita Melissa havia me falado, tudo foi muito rápid o, e assim que deixamos o hospital tomei um táxi e voltei. Podiam precisar de mim. - Sem dúvida, Violeta, você não existe - falou Louise. - E Melissa? - Disse que ia encontrar-se com uns amigos para fazer uma reunião; não sei bem... Po sso trazer o chá? Marilu acenou que sim e, tão logo a criada saiu, falou com aborrecimento: - Melissa envolvida com este tipo de crença. Uma mulher tão culta... Espero que papa i não se aboreça por isto. Voltou-se para a amiga. - Sabia que ela é apaixonada por ele? - Quem? Melissa? - Sim. Eram noivos quando ele conheceu mamãe. Aí, papai e mamãe se apaixonaram e... - Posso concluir o final da história, apesar de não ser muito comum. - Gostaria que papai se interessasse por ela. Será muito difícil viver aqui sozinho. Mas ao mesmo tempo, tenho dúvidas. Acho que nunca irá esquecer mamãe. - Apesar de muitos afirmarem o contrário, acredito que existam pessoas que são mesmo insubstituíveis. Veja outro exemplo: meu pai. - Thomas Colman! O grande Thomas Colman!... - falou Marilu. - Nunca existirá outro igual. - Nunca! - exclamou Louise séria. - E pensar que não desfrutei de sua companhia... Suspirou. - Um homem incrível, sempre à procura da verdade. - Ainda bem que ele nos deixou você. Seria desastroso para o mundo se não tivesse no s deixado uma herdeira. - Não sou como papai, Marilu. Ele é único em toda a história. - Ela olhou distante. - Pa ssei toda minha vida tendo-o distante de mim, fascinada por vê-lo empenhado em casos intrincados e ardi losos. Acredito que, para ele, a busca da verdade era mais um quebra-cabeça excitante, um jogo empolgante. U m novelo de lã, com os fios embaraçados, em que se debruçava, ávido por encontrar as pontas. - Sorriu. - Perd oe-me as reminiscências... é que, num dia como este, sempre recorremos ás lembranças do passado. - Principalmente um passado cheio de nostalgia... - observou Marilu. Louise aproximou os olhos, deixando à vista um sulco entre eles. - Só em saber que ele foi um homem perseguidor da verdade, já é uma doce lembrança. A filha de Colman colocou a mão sobre a testa, num gesto de fadiga, talvez devido á longa espera em que sempre viveu. Seus olhos sonhadores se fecharam, e, ao invés de ver escuridão, viu c ores que se fundiam, e a figura de um homem se formou. Ela, então, mergulhou-se feliz naquela profusão de cor es e sequer percebeu a amiga que delicadamente abandonou a saleta.
Como uma bolha de sabão, a imagem escapou-lhe. Abriu os olhos decepcionada e desco briu-se só. Caminhou até a lareira, recolocou no lugar a foto de Suzana, voltando-se a sentar. - Uma bonita mulher! - falou para si mesma, emitindo um suspiro, enquanto se cur vava para alcançar o trabalho que estava na mesa ao lado. Vários pensamentos cruzavam-lhe a mente, impedindo-a de concentrar-se na contagem de pontos. Vencida por estes constantes lampejos de lembranças, abandonou o tricô, deixando o tempo voltar. Olhava para o fogo crepitante, e teve a sensação de estar no chalé onde vivera a infânci a e a adolescência, ao lado da mãe, onde em dias como aquele encolhia-se no colo materno, ouvindo histórias sobre o pai, enquanto o fogo crepitava na lareira. As pálpebras começaram a pesar e Louise deixou-as cair, para ver melhor o passado. A porta de vidro colorido - que dava para a varanda á frente da casa - se abrindo e sua mãe entrando por ela, sorrindo-lhe. Viu até o fogo da lareira agitar-se, debatendo, açoitado pelo vento lá d e fora que penetrara na sala, invadindo-a pela porta aberta. Louise sentiu o frio tocá-la, tentando gelar seu co rpo. Abriu os olhos. Parecia que por alguns segundos estivera realmente no chalé, pois ainda sentia, no corpo, o frio do vento. Olhou a cortina que pendia da porta envidraçada ao lado e percebeu que tremulava suavemente, quase imperceptível. Um bocejo escapou-lhe e novamente voltou ao chalé, vendo a mãe andando pela casa, atiçando o fogo, sorrindo sempre com doçura, enfim, dando vid a ao seu pequeno mundo. Era bom recordar, embora não conhecesse bem o seu passado. Vivera num mundo pequen o, mas fora muito feliz. Havia os maus momentos, isto sem dúvida alguma, mas condicionavaos ao óbvio, acreditando ser uma forma racional de superá-los. O mundo havia lhe ensinado muito, mas a lição mais sufocante fora a de esperar. Foi o que mais fizera em toda a vida. Passava os dias, sempre atenta à porta de vidro colorido, esperando por um milagre: seu pai entrando, com os braços estendidos para um longo abraço há tanto tempo contido, dizendolhe ter d escoberto a verdade dele, que eram ela e sua mãe. Ah, quantas vezes em sonhos aquela porta se abrira, encheudo seu mundo de alegri as que se misturavam às suas cores! Seu pai, enfim, estava chegando para ela. Agora seria feliz de fato. Nada mais importava. Apesar dos olhos fechados, sua retina projetava-lhe na mente este momento glorio so da infância, que nunca chegou a acontecer: a porta se abrindo vagarosamente, o vento frio sendo o primeiro a entrar, invadindo a sala, agitando as cortinas, fazendo-a encolher-se. O vento frio... Seguido a ele, seu pai entrando, indo-lhe ao encontro, aquecendo -lhe o coraçãozinho cheio de saudades. O frio... Louise abriu os olhos. Novamente conseguira sentir o vento cortante qu e invadia a sala de sua casa, deixando, muito próximo dela, uma doce ilusão de infância. Marilu regressou à saleta e os sonhos de Louise se perderam. - Estava dormindo? perguntou-lhe a amiga. - Não, não. Apenas descansando.
Violeta apareceu à porta, com uma bandeja fumegante. - O Sr. Ralph ainda não voltou? - perguntou, entrando e olhando em volta. - Papai só deve chegar à noitinha. Violeta pareceu indecisa. - Estranho... - disse finalmente. - Ainda há pouco, quando vinha para cá, tive a imp ressão que o Sr. Ralph deixava o salão e entrava no corredor da saleta... - Você sonhou, Violeta. Papai ainda não chegou, como pode ver. - Mas eu vi. Tanto que voltei até à cozinha e apanhei mais uma xícara. Louise e Marilu olharam para a bandeja e viram a terceira xícara. - Você tem certeza que viu papai? - perguntou séria. - Bem... Eu tenho e não tenho. Vi um vulto que passou muito rápido. - Um vulto! - exclamou Marilu depositando a xícara de volta à bandeja. - Você viu Domi ngos ou Ivan, vagando pela casa. Foi isto que viu. Violeta ergueu as sobrancelhas, tombando a cabeça para o lado, deichando bem claro não estar tão segura quanto Marilu. Capítulo Quatorze Um fogo que não queimava... As chamas subiam, envolvendo tudo, mas nada consumiam, como se tudo fosse à prova de fogo; impossível de acabar. Mas era necessário que nada restasse, nem um únic o vestígio sequer. Domingos caminhava em volta do fogo, que a princípio ardia-lhe na pele, mas logo c omeçou a sentir uma sensação agradável, como se o calor se abrandasse. Um fogo gelado, agora penetrando pelo seu corpo, provocava-lhe arrepios de frio. Domingos não conseguia entender. Caminhava em meio às chamas, sentindo-as congelar-lhe a carne. Precisava conseguir. Tinha que acabar com tudo aquilo, mas o próprio fogo negava apagar Suzana de sua vida. O retrato, lembrou, pelo menos o retrato tinha que destruir. Correu atravessando o salão incendiado, alcançando as escadas. Subiu-as tropegamente, e viu-se aos pés do grande quadro. Lá estava ela, sorrindo. Sorrindo para ele ou dele? Não sabia ao certo. Ateou o fogo e viu as chamas imensas encobrirem o bonito sorriso, ocultando-o por instantes. De repente, ouviu um grande riso e estremeceu, pois já não só via o sorriso de Suzana, como a ouvia também, rindo alto, quase gargalhando. Com muita harmonia ela deixou a tela e saiu pisando sobre as chamas, dançando como uma deusa do fogo, sempre sorrindo e dizendo-lhe coisas que ele não queria ouvir. " - Não seja criança, Domingos! Por que ateou fogo ao meu retrato? Não quer lembrar-se de mim? Como pode ser tão tolo? Não lute contra forças maiores que você. Jamais conseguirá esquecer-me. Eu não vou deixar. " Domingos sentia frio, mesmo apesar do fogo. Ouviu batidas no vidro das portas do salão que davam para o jardim. Viu Rodolfo, Ivan, Karla e Clara que gesticulavam, movendo a boca, como a chamá-lo, mas não os entendia. O único som que ouvia eram as batidas insistentes contra o vidro. A princípio, pensou que eles queriam que saísse dali, devido às chamas, mas quando os olhou novamente, percebeu que todos estavam querendo entrar, fustigados pelo vendaval que acontec ia lá fora, assolando
violentamente o jardim. Domingos sentou-se à escada, indiferente a tudo que acontecia. Não os deixaria entra r, pois fatalmente tentariam salvar das chamas a casa, os móveis e o retrato. Ele chorava. Queria tanto destruir aquela mulher, mas sentia-se incapaz diante d e sua força, de seu poder. As batidas contra o vidro continuavam ressoando pelo salão. Viu o rosto de Karla, suplicante, com os cabelos em desalinho, a roupa toda molhada, colada ao corpo, tremendo de frio. Frio... Ele também sentia muito frio... Suzana continuava bailando sobre as chamas , sorrindo sempre. Era preciso acabar com todo aquele barulho horrível, enfim, encontrar o silêncio, a paz, longe dali. Tentou levantar-se e não conseguiu. Tomou um impulso forte e seu corpo projetouse, roland o escada abaixo, mergulhando nas chamas frias... Domingos acordou sobressaltado, tremendo muito. Uma das janelas do quarto estava aberta, batendo violentamente num movimento de fechar e abrir, deixando entrar chuva e vento. Levantou-se rápido, ainda meio tonto, fechando-a logo. Por alguns momentos ficou a poiado no trinco, se refazendo do terrível pesadelo, provavelmente, provocado pelos pensamentos que ant ecederam o sono. Respirou aliviado, sentindo-se mais calmo. A cortina estava com as barras enchar cadas de chuva fria, e ao encostar-se nela, Domingos lembrou-se: - Fogo frio! - exclamou em voz alta. De volta á cama, deitou-se de costas, olhando o teto. - Fogo frio! - voltou a excl amar. Também com o vento que entrava pela janela... Lembrou-se do retrato de Suzana, de suas palavras, e ficou sério. Até em sonhos ela insistia em tratá-lo como a uma criança, pensou irritado. Chegou á conclusão de que seria melhor esquecer aquilo e a primeira coisa que lhe oc orreu, para afastar tais pensamentos, foi ler um pouco. Acendeu o abajur, pois já era quase noite, e alcançou, em seguida, o livro que estav a à cabeceira. A leitura o acalmaria certamente, pensou aliviado. O livro abriu-se espontaneamente em suas mãos, onde havia algo que parecia guardad o dentro dele. Era uma foto. Domingos apanhou-a; seus olhos se espantaram, detidos nela. A boca aberta e sem articular qualquer som, ele ficou ali, por algum tempo, estarrecido com o que via. Fechou os olhos, sacudindo a cabeça. Não seria ainda um pesadelo? - pensou. Lembrou-se de Karla. Sempre a julgara meio louca, m isturando sonhos com realidade; agora ele vivia um momento igual. Não sabia ao certo se ainda estava so nhando. Novamente fixou os olhos na fotografia. Era uma foto de Suzana ao lado dele, no jardim daquela casa, num dia de sol que já se perdia no tempo. Sobre o peito dela, uma mancha vermelha coloria a fotografia em preto e branco. E, o que era mais estranho, quem a colocara ali, tivera o cuidado de ras gá-la até quase soltar-se em duas partes, separando-o de Suzana. Capítulo Quinze A luminária refletia luz sobre a escrivaninha, deixando o restante do ambiente na
penumbra. A chuva havia cessado, avisando com isto a entrada de um inverno rigoroso, de ge adas e até mesmo neve mais para o sul. Ivan ainda ressonava, com a cabeça apoiada nos braços, mas a má posição impedia que aquele repouso perdurasse por mais tempo. Mexeu-se, tentando conseguir ajeitar-se melhor, o que não foi possível. Abriu os olh os devagar, reconhecendo o ambiente, mas eles rejeitaram de imediato a luz, fechando-se rápidos. Novamente, f oram se abrindo lentamente, numa defesa natural do organismo, se acostumando aos poucos com a luz. Sentiu a cabeça doída, pesada, e o pescoço dolorido, pelo mau jeito em que adormecera, forçando os músculos numa posição incômoda. Uma expressão de desânimo figurou no rosto, já um tanto aborrecido nos últimos dias. Ergueu vagarosamente a cabeça, movimentando-a para os lados, num exercício de aquecimento muscular, enquant o massageava o pescoço com a mão direita, num gesto de fricção, sabendo ser aquela a única forma de atenu ar tal incômodo. A cabeça ia da esquerda para a direita em movimentos rápidos, quando parou de repente. Durante alguns momentos Ivan esqueceu-se da dor que o aborrecia e ficou olhando para sua mão esquerda, que permanecia apoiada sobre a mesa. Entre os dedos, cravado na madeira, estava um p unhal. Ivan afastou a mão, aproximando-se mais, os olhos ficaram bem abertos, enquanto sua boca pronunciava um nome: Suzana! Este era o seu estilete de abrir correspondência, com o nome dela gravado. Reconhe cia-o, pois fora um presente dele, quando ainda eram noivos. Olhou à volta, procurando o autor daquela brincadeira, por sinal de péssimo gosto. N ada. Ninguém. Silêncio absoluto. Retirou o punhal da mesa, passando os dedos de leve pela lâmina, e novam ente espantou-se. Eles ficaram manchados de sangue. Aquilo era demais; uma brincadeira mórbida, sem senti do, maldosa. Com o estilete diante dos olhos, o pensamento de Ivan retrocedeu no tempo, traze ndo de volta a imagem viva de Suzana. Naquele dia ela pareceu-lhe infeliz. Alias, já vinha notando isto há algum tempo. Andava silenciosa, evitando os amigos; pareceu-lhe mesmo arre dia. Algo não ia bem com Suzana, mas apenas ele percebera. Sim, apenas ele, porque de todos, era o únic o que a conhecia de fato. Sabia quando ela sorria por dentro e quando apenas sorria por fora. Todos a julg avam uma mulher feliz, realizada, portanto, sem problemas. - Sem problemas! - disse para si mesmo. - Não existe mortal sem problemas. E Suzan a tinha um, o qual não foi possível conhecer. Lembrou-se de quando, entrando na biblioteca, viu-a sentada ´à mesa, com uma carta n a mão, olhando para um ponto qualquer. Sorriu-lhe por fora, guardando o papel no envelope. Ele se aprox imou, perguntando se havia algum problema, porém ela voltara a sorrir dizendo que não, mostrando-lhe em seguida aquele mesmo estilete, dizendo guardá-lo com muito carinho. - Uma forma sutil de dizer: - Vamos mudar de assunto? - falou Ivan, deixando sua voz ecoar pela biblioteca. "A morte é a única saída vitoriosa para nós. " - disse Suzana mais tarde, durante o jantar, quando Melissa, ao condenar o suicídio, pedira a Suz ana sua opinião a
respeito. Rodolfo também parecia distante, um presente-ausente naquele final de semana. Todos perceberam, com certeza. Parecia angustiado. Alguma coisa não ia bem, voltou a pensar. Eles não formavam mais o casal feliz que s empre pareceram ser. A morte como uma saída vitoriosa... Suzana teria coragem de se matar? Qual seria o motivo que a levaria a um ato tão desesperado? Ivan sacudiu a cabeça negativamente. Não havia nenhuma pista, pois Suzana morrera e levara junto toda sua tristeza. Aquela carta, pensou. Poderia ser um princípio. Não... Não podia ser apenas uma simples carta. Ivan deixou um suspiro escapar. - Suzana, Suzana. O que havia com você? Por que não me contou tudo? Eu a ajudaria. Por alguns instantes ficou sem nada pensar, como se procurasse alguma idéia. Ficou sério. Doente! - pensou finalmente. Suzana poderia estar com uma doença grave, incurável. Cobriu o rosto com as mãos. Não conseguia imaginá-la doente, ainda mais com uma doença fatal. Mas esta hipótese era bem plausível para tudo que acontecera. Aí estava também explicada a tristeza de Rodolfo. Apanhou novamente o estilete e viu seus olhos refletidos na lâmina. E agora mais esta, pensou. O que significava tudo aquilo? Quem teria colocado o punhal ali, e com que finalidade? Estaria sofrendo alucinações como Karla? Perguntas, perguntas, mas sem nenhuma resposta. Era preciso fazer alguma coisa. Não lhe agradava ficar à mercê de uma pessoa inescrupulosa. Capítulo Dezesseis Quando Louise entrou na saleta, apenas a lareira crepitante a iluminava, e ao ac ionar o interruptor, assustou-se. O Sr. Rodolfo estava lá, no escuro, admirando o fogo ardente. - Oh, desculpe-me - falou a moça voltando a escurecer o ambiente. - Ora, por favor. Pode deixar a luz acesa. Poderemos conversar enquanto aguardar mos o jantar. - Não quero atrapalhar. - insistiu ela, vacilando em aceitar o convite. - É tão desagradável fazer companhiá á um velho? perguntou-lhe sorrindo. Louise voltou a acionar o interruptor e sentou-se diante dele, que a fitou preoc upado. - Não está se sentindo muito bem aqui, não é mesmo? Creio que esta monotonia está deixando -a entediada. Ela sorriu-lhe amável. - Não se culpe pelos imprevistos do tempo, Sr. Rodolfo. - O sorriso cresceu. - A n atureza é prodigiosa. É só sabermos tirar proveito dela, já que não podemos mudá-la. - E como está conseguindo tirar proveito desses dias? arriscou ele. - Estou tecendo uma écharpe, já li um livro maravilhoso e peço-lhe permissão para invadi r sua biblioteca. Tenho sede de leitura. Faço isto toda noite antes de dormir. - Um hábito muito bom - observou ele. - Conheço várias pessoas que dormem com o livro nas mãos... - Ainda não cheguei a este ponto - explicou sorrindo. - A biblioteca é toda sua. - Obrigada. O diálogo foi interrompido por Clara, que entrou muito agitada, acompanhada de Mar ilu, falando sobre sua consulta ao médico. - Imagine que ele me receitou tranqüilizantes! - falou em tom dramático. Tranqüilizantes! - enfatizou.
Marilu beijou o pai, sentando-se no braço da poltrona, envolvendo-lhe os ombros nu m terno abraço. - Não se desespere, titia. Não deve agitar-se tanto. - E você pensa que é tão simples! - retrucou muito alto a tia. - São tantos problemas. P or exemplo, agora vou verificar se o jantar já está pronto. Está vendo só? - completou, deixando a saleta. Rodolfo ergueu as sobrancelhas, encolhendo os ombros. Marilu sorriu. - Tia Clara consegue fazer drama com tudo. - Ficou séria, olhando para o pai. - Não consigo entender por que ela envelheceu tão rápido. É pouca coisa mais velha que mamãe... - interrompeu-se constr angida. - Não é tão pouco assim. Sua mãe era quase seis anos mais nova que Clara. Uma diferença be m razoável. - Mas mamãe sempre foi tão bonita, tão jovem. - Um sorriso saudoso bailou pelos seus láb ios. Talvez ela tivesse descoberto a fonte da juventude... Melissa e Karla entraram, seguidas por Clara que veio avisar da hora do jantar. - Já estamos prontos, mas vamos aguardar por Domingos e Ivan. - falou o Sr. Ralph. Karla, que mal acabara de sentar-se, levantou. - Vou avisá-los, pois estou faminta - disse, dirigindo-se para a porta, encontrand o Domingos que já chegava. Deu alguns passos de costas, para o interior da saleta, olhando Domingos com pre ocupação. Ele entrou sério, com as mãos juntas nas costas, numa expressão de desconfiança. Olhou p ara todos, um a um, e depois jogou a foto sobre a mesa, próximo a Rodolfo e Marilu. - Esta brincadeira está indo longe demais - falou em tom de desafio. Marilu apanhou a foto, e por alguns momentos ficou imóvel, passando-a em seguida p ara o pai, que também nada disse. Depois de algum tempo de silêncio, Marilu arriscou uma pergunta. - Onde encontrou esta foto, Domingos? - Dentro do livro que estava lendo - explicou. - Agora, o que mais me surpreende u, é que isto foi colocado em meu quarto, enquanto eu dormia. Alguém entrou lá e colocou esta fotografia no livro que deixei sobre o criado. - O que está acontecendo aqui, papai? - perguntou Marilu quase num grito. - Calma, filhinha, calma. Nós vamos saber. - É bom mesmo, caro amigo - disse Ivan entrando. Alguém está querendo brincar conosco. E é uma brincadeira sórdida e macabra. Mostrou o pequeno punhal e todos ficaram olhando sem nada entender. - Este é o estilete de mamãe? - perguntou temerosa Marilu. - Sim - respondeu, aproximando-se dela. - Aqui tem o nome de Suzana gravado, um presente que lhe dei há alguns anos atrás. Adormeci por algum tempo na biblioteca e, quando acordei, encon trei-o cravado sobre o tampo da mesa, entre meus dedos. Marilu levou as mãos á cabeça. - E o que é mais inacreditável - fez uma pausa eloqüente - é que ele estava manchado de sangue. Marilu não conseguiu conter um grito, seguido de um pranto descontrolado, que sacu dia todo o corpo. Louise correu até ela, acalmando-a. Em seguida, fez-se um profundo silêncio, que Karla, tem erosa, quebrou. - Eu tenho medo - falou num fio de voz. - Eu tenho muito medo. Melissa levantou-se enérgica. - Mas não há o que temer - falou bem alto. - É tudo tão simples! Suzana, a quem tanto amáv amos, está presa a
esta casa. Quer se libertar, pois está sofrendo muito e precisa de nós para ajudá-la. - And ou um pouco, voltando a falar em seguida. - Hoje tentamos falar-lhe através de uma sessão, mas ela não se mani festou, pois ainda não conseguiu sair daqui. Teremos que nos reunir nesta casa, se quisermos ajudá-la. - Não gosto disto - falou Ivan aborrecido. - O que acha, Rodolfo? - Por que não vendemos a casa? - interveio Clara receosa. - Nunca! - respondeu categórica Marilu. Rodolfo falou muito calmo, assim que se fez silêncio. - Alguém está querendo brincar c onosco. Apenas isto concluiu. - Se me permite, - interveio Louise pela primeira vez, - o senhor me parece um t anto sereno, quanto a estes estranhos acontecimentos. Acho bom começar a se preocupar. Ele a encarou sério. - Alguém está querendo brincar - continuou ela. - É isto o que o senhor pensa. Mas ago ra eu pergunto: quem é este alguém? - Fez uma pausa. - Só pode ser um de nós. Agora surgem mais duas pergunta s: Por quê? Para quê? Capítulo Dezessete Após um jantar tenso, onde cada qual mergulhou em seus próprios pensamentos, novamen te voltaram à saleta íntima. O silêncio persistiu por alguns momentos. - Eu sei, Rodolfo, - atreveu Melissa a tocar outra vez no assunto, - que tanto v ocê quanto Marilu não acreditam na filosofia espiritualista; mas vou insistir porque temo por coisas piores. - Coisas piores? - perguntou Clara. - O que está querendo dizer? - Estamos apenas recebendo avisos de Suzana, por enquanto. Mas acredito que, se continuarmos inertes aos fatos, estaremos tomando um caminho muito perigoso. - Vamos embora daqui, Rodolfo - falou Clara ficando de pé. - Não sei o que Suzana es ta pretendendo, mas não quero ser alvo de sua ira. - Chega, tia Clara. Chega! A senhora ja está indo longe demais - gritou Marilu bas tante nervosa. Clara correu para ela. - Desculpe-me, querida. Toda esta confusão está mexendo com meus nervos, que nem sei mais o que digo. Vou ter até que fazer uso de tranqüilizantes. A que ponto cheguei, meu Deus! A moça ignorou o dramalhão da tia, aproximando-se de Louise. - Gostaria de ouvir sua opinião a respeito de tudo isso. Não só por estar à parte dos acontecimentos, mas também por ser a filha de Thomas Colman . - Thomas Colman? Acaso não está falando de um detetive famoso? - perguntou Ivan, enq uanto os olhos de Louise se iluminaram de maneira diferente, refletindo vaidade. - Sim - respondeu Marilu. - Louise é filha dele. - Deve ser ótimo ser filha de um detetive, não? - perguntou Domingos com entusiasmo. Louise ficou ligeiramente encabulada. - Para lhe ser sincera, não sei responder. Ele e os outros olharam-na interrogativamente. - Eu não o conheci. Apenas conheço o seu nome e, da sua imagem, sei apenas o que uma precária fotografia pode mostrar. Nada mais que isto. - Desculpe-me. Eu não devia ter... - Não se culpe, por favor. Convivo com esta realidade desde que nasci e já me habitu ei a ela. - Suspirou. É uma
história um tanto obscura também para mim, - disse Louise melancólica, - levando em co nsideração que, quando tudo começou, eu ainda nem existia; e depois, minha mãe quase não falava sobre o passa do. O que sei são fragmentos apenas. Todos olhavam para ela, aguardando que voltasse a falar. - Minha mãe conheceu Thom as Colman em ação. Este tempo, segundo ela, durou apenas alguns meses, mas foi o bastante para apaixonar -se por ele e nunca mais esquecê-lo. Sua missão encerrou e ele partiu. Logo, logo, mamãe descobriu estar grávida, mas jamais o procurou; ela sempre afirmou que, se alguém volta, é porque quer voltar. Esta deve s er sempre a única e exclusiva razão. Mais tarde, ela decidiu mudar-se e atravessou a fronteira, indo m orar com sua antiga professora de piano, Louise Facklan. Lá nasci e herdei o seu primeiro nome. Mamãe nunca me ocul tou nada. Muitas vezes parecia sentir remorsos, alegando não ter o direito de atrapalhar a vida de papai, mas por outro lado, não tinha o direito de negar-me um pai. Fez uma pausa, e prosseguiu. - Eu compreendi mamãe, e nunca me aproximei de Thomas Colman, mesmo depois que ela morreu. Para mim era o bastante saber filha dele, embevecida com sua inteligência e astúcia. O resto ficava em meus sonhos, onde ele sempre vinha ao meu encontro, abraçando-me e chamando-me de filha. Isto ficou na ilusão, e nunca poderá mudar. - Louise suspirou. - Acho que foi melhor assim. Hoje sinto um vazio enorme, mas ao mesmo tempo acredito que, agindo deste modo, posso terlhe poupado alguma situação embaraçosa. Ele poderia estar casado, ter filhos, e uma revelação destas, conseqüentemente, seria desastrosa. - Talvez tenha razão - falou Ivan. - Também acredito ter sido melhor assim... - Lembro-me quando ele morreu. Não faz muito tempo - disse Clara, encarando Louise . - Deve ter sido terrível para você. - Foi terrível. Li a notícia nos jornais, imaginem. Fiquei desesperada, mas tive que me conter e permanecer no meu silêncio. Depois de certo tempo, decidisair do anonimato e assumir minha real filiação. - Sempre ouvi dizer, de Thomas Colman, adjetivos raros hoje em dia. Onde se fala va dele, ouvia-se também dizer de ousadia, astúcia e inteligência. Nunca lhe ocorreu ser herdeira destas capa cidades, já que é filha dele? perguntou Karla com veemência. - Não creio - respondeu Louise séria. - Acredito que seria muita pretensão de minha pa rte, julgar-me tão inteligente quanto ele. Mesmo sendo sua filha. - Estou orgulhoso de ter como hóspede a filha de Thomas Colman e, pelos mesmos mot ivos de Marilu, gostaria muito que respondesse a pergunta que ela há pouco lhe fez: o que acha de tudo isso que está acontecendo? Pensa como Melissa? Louise pensou um pouco, ponderando. - Não, e peço-lhe que me desculpe - disse olhando para ela. - Mas para mim, os morto s não voltam. Eles não querem nos perturbar. Se procurarmos bem, encontraremos uma explicação lógica para ess es... esses fenômenos. - Então acredita ser um de nós? - perguntou Clara surpresa. - Precisamos nos apegar á lógica e apenas a ela. Só assim chegaremos à verdade - enfatiz
ou. Melissa ficou de pé, pensando por um tempo, enquanto caminhava. Parou de repente, voltando-se para os demais, e falou com os olhos brilhando: - Agora vejo melhor. Mas é tudo tão simples. É ele. Só pode ser - concluiu exultante. - O que você está falando? - perguntou Ivan curioso. - É o espírito dele que está aqui, en tre nós - observou ela. Espirito de quem? - Ivan insistiu. - De Thomas Colman! - exclamou. - Só pode ser. Ele está incentivando você, Louise. - Incentivando-me? - perguntou incrédula, com a obstinação de Melissa, em atribuir tud o ao sobrenatural. - Por favor, Melissa. Você já está indo longe demais - falou enérgica. - É isso mesmo - continuou empolgada. - Ele quer induzi-la á profissão que ele tanto a mava. - Isto é um absurdo, Melissa. Não admito que fale assim de papai - disse Louise aind a em tom enérgico. - Ele nem sabia de mim, lembre-se disso, por favor - falou desolada. - Mas tudo isso pode ser verdade - disse Karla. - Do outro lado não existem segred os. Ele já sabe de você, esteja certa. - Fez uma pausa. - Se não acredita, deve pelo menos respeitar a crença dos ou tros. Louise fechou os olhos por alguns instantes. - Não é esta minha intenção, pode estar certa. Apenas exprimi minha opinião. Não podemos atr ibuir tudo que está acontecendo aos espiritos de Suzana ou de meu pai. Isto me parece primário dema is - observou. - Pelo que sei, seu pai morreu assassinado, não é mesmo? - perguntou Domingos, tenta ndo mudar o rumo da conversa. - Assassinado! - exclamou Melissa. - Uma morte pior que a de Suzana - observou q uase exultante. - Também vivendo em meio a tantos assassinatos... ponderou Clara. - Papai não morreu assassinado - disse Louise com voz firme. - Ele apenas deixou q ue a morte viesse ao seu encontro. Domingos constrangeu-se novamente. - Desculpe-me, mas foi o que ouvi dizer. Novamente, ela sentiu que todos a olhavam interrogativamente. - Também li isto nos jornais. Mas não foi verdade, tenho certeza. Ele estava sofrendo do coração. Isto também estava escrito lá. Papai certamente não aceitou este fato e deixou que o acertassem. Da maneira como aconteceu, só encontro esta explicação. - Quer dizer que... suicidou-se - falou Melissa com perplexidade e deslumbramento ao mesmo tempo. - Ele deixou que a morte o levasse - concluiu Louise categórica. - Prefiro ver des te prisma. Os olhos de Melissa tinham expressão obstinada. - Suzana... Thomas Colman... Duas grandes personalidades que se mataram - disse convencida. - Os suicidas geralmente não encontram a paz muito rápido. Eles ficam vagando no meio de nós, ainda por algum tempo... Capitulo Dezoito Melissa revirava-se na cama, tentando dormir, mas era impossível afastar a lembrança da foto suja de sangue. Quem estaria por trás de tudo aquilo? Alguém ali sabia demais. Na escuridão, evitava pensar, procurando dormir, mas sempre conseguir ver, emergin do das sombras, aquela maldita fotografia.
Como odiava Suzana! - pensou, sentindo medo. - Agora estava á mercê de sua ira e não t inha como enfrentá-la. Não, não deveria pensar assim. Suzana não lhe faria mal algum. Teve a impressão de ouvir passos. Passos abafados, furtivos. Passos que deslizavam pelo corredor. Sentou-se rápido na cama, acendendo o abajur, com o coração batendo descompassado, agi tando-lhe o peito, enquanto, encolhida, olhava apavorada para a porta. Seria Suzana que viera vingar-se dela? - voltou a pensar aturdida. Os minutos se arrastavam e Melissa continuava esperando que ela se manifestasse. Os passos... - pensou. Será que os ouvi realmente ou não seria apenas o vento agitan do as árvores do jardim? Suzana, Suzana... Por que não me deixa? - continuava pensando angustiada. - Você já me fez tanto mal... Por favor, agora deixeme viver em paz... O rosto de Melissa estava repleto de amargura, com lágrimas quentes que corriam, tocando-lhe os lábios, com um gosto forte de sal. - Você roubou minha felicidade, minha juventude, meu grande sonho de amor. Tirou tudo de mim - disse, soluçando. Passou as mãos pela face para secar o pranto e percebeu a pele já flácida, e as primeiras rugas; marco de que a juventude já não imperava mais em seu rosto. - Meus sonhos, minha vida... Tudo se acabou no dia em que nossos caminhos se cruzaram. Melissa não conseguia dominar mais o pensamento, que corria pelo tempo trazendo-lhe de volta toda uma mágoa que ela queria esquecer. Não, não. Não quero pensar mais - dizia para si mesma, forçando a mente, fechando os olhos, como se fosse conseguir, com isto, vedar a corrente de lembranças que fluíam naturalmente. Ela e Rodolfo!... Como foram felizes!... Como se amavam!... Tantos anos estiveram juntos. Lembrou-se de tudo outra vez. Eram crianças ainda quando se conheceram, pois moravam na mesma rua. Desde então, ele se tornara para ela o mais forte, o mais inteligente, o mais bonito. Cresceram juntos e o inevitável aconteceu. Eles se amavam, iam ficar juntos para sempre. Melissa comprimiu os olhos e lágrimas abundantes escaparam. Para sempre, pensou. Quanta ironia! Tudo durara tão pouco após esta descoberta. Conhecera Suzana no clube e ficaram amigas. Chegou até a elogiá-la para Rodolfo, que nem a conhecia, exaltando suas qualidades no tênis. Até que um dia, na saída do clube, eles se defrontaram. Melissa fechou os olhos para rever a cena: Ivan fora buscar Suzana e Rodolfo e ela. Eles se conheciam e, enquanto as aguardavam, ficaram conversando. Após a partida, aproximaram-se deles e Ivan, orgulhoso e visivelmente feliz, apresentou-os. Meu Deus! Se pudesse voltar tudo atrás, começar a viver novamente! Daí por diante, as coisas aconteceram rapidamente, sem a mínima condição de tentar pelo menos entender o que estava se passando. Ao se defrontar com a realidade, Rodolfo já estava apaixonado por Suzana, como um colegial, e nada mais restava a fazer, senão aceitar os fatos. Aceitar! - pensou quase com fúria. Sempre coube a ela aceitar, renunciar. Sentia que Suzana, mesmo depois de morta, continuava sendo a aspiração de Rodolfo, o grande amor de sua vida. Como eram fortes os motivos que a levavam a odiar Suzana. Roubara-lhe tudo: - sua juventude, seu amor, destruindo-lhe
os sonhos de menina adolescente. Aquela imagem de uma igreja florida e iluminada, uma música suave, um vestido branco, tudo ficara apenas no sonho. Um sonho tão bonito, que Suzana não teve dúvidas de roubar-lhe, pois fora ela quem se vestira de branco, entrando numa igreja florida e iluminada, para dizer sim ao seu amor. Com isto, Suzana sugara-lhe a vida, até no último sonho, na última esperança, restando-lhe apenas fingir que aceitava a realidade. Suzana tratava-a com imenso carinho e, com isto, sentia-se tentada a gostar dela. Como era tola! Gostar por quê? Deveria odiá-la. Odiá-la muito, com todas as suas forças, mesmo sabendo-a sincera. Estava certa de que Suzana e Rodolfo não tinham culpa de nada, mas não podia aceitar tudo resignadamente. Precisava sentir algo. Era necessário odiá-la para não inveiá-la. Agora, mesmo depois de morta, Suzana continuava sendo vitoriosa. Sabia que estava ali, vigilante, pronta a reacender em Rodolfo um amor que estava adormecido. Tinha que fazer algo. Não podia deixá-la vencer novamente. Não, isso nunca. Era preciso pensar, pensar rápido. Sacudiu a cabeça com força, como se para afastar aqueles insistentes pensamentos. Alcançou o livro sobre o criado, folheando-o sem interesse; e quando lhe veio o sono, sequer teve tempo para fechá-lo. Adormeceu. Capítulo Dezenove -Sempre ouvi dizer que quanto maior a opção, mais difícil se torna a escolha - disse I van, entrando na biblioteca. Louise voltou-se, sorrindo-lhe. - Sabe que tem razão? - disse, olhando para a enorme estante repleta de livros, e depois para alguns que segurava. Estou tentando decidir qual livro devo ler primeiro e não consigo. Todos me parecem ótimos. - A biblioteca de Rodolfo é fabulosa - observou ele. O que está acontecendo com você é c omum com todos que apreciam uma boa leitura. - Quanta indecisão! - exclamou ela, folheando um volume. - Ficou séria e, após alguns minutos de silêncio, voltou a falar. - Nada melhor que uma boa leitura para chamar o sono. Faz-nos de sprender dos problemas. Ivan encarou-a com admiração, sentando numa poltrona. - Você me lembra Suzana - faloulhe muito calmo. A sua maneira de expressar, talvez; não estou bem certo. - Está tentando ser gentil comigo. - Gentil? Por quê? Louise andou alguns passos. - Pelo pouco que sei a respeito de Suzana, dizer a uma mulher que se parece com ela, só pode ser um elogio. Ele sorriu. - Sabe que tem razão? Talvez seja nisto que se pareça com ela: é espirituosa e inteligente. - Obrigada - respondeu-lhe com uma reverência. Por alguns momentos ouviu-se apenas o vento que batia no vidro das janelas. - Sabia que fomos noivos? - perguntou-lhe Ivan, arriscando-se a perder-se em lem branças. - Você e Suzana? Não sabia. Louise percebeu quando ele se deixou mergulhar no passado e, com frases pausadas
, como se estivesse temeroso, tornou a falar. - Nem sempre nossos sonhos são possíveis, não é mesmo? Um dia, apresentei Rodolfo a ela, e pronto. Eles se apaixonaram e assim eu a perdi para ele. Respirou profundamente, quase um suspiro. - Aí você perdeu seu sonho para Rodolfo, que por sua vez era noivo de Melissa, que t ambém teve seu sonho perdido para Suzana. Ele a encarou sério. - É isto mesmo. Nós dois perdemos nossos sonhos para eles. - O destino! - exclamou Louise. - Há quem não acredite nele. - Hesitou por um moment o. - Por que você e Melissa não tentaram refazer suas vidas? Ele arqueou as sobrancelhas enquanto procurava uma justificativa palpável. - Você mesma disse há pouco: o destino. Eu acredito nele. Esse foi o meu. Quanto a M elissa, não sei, mas acredito ter sido a mesma coisa. - Limpou a garganta; como se algo lhe dificulta sse falar. - Quando tudo se consumou, isto é, quando eles se casaram, resolvi continuar minha vida, da maneira como me era possível viver após ter perdido Suzana. Se tivesse que acontecer alguma coisa, aconteceria. - Mas nada aconteceu - disse ela, séria. - As coisas não acontecem pela nossa simple s vontade, mas porque devem acontecer. - Não vou negar-lhe - falou engolindo em seco - que jamais deixei de amá-la. Tentei odiá-la e ás vezes pensava estar conseguindo, mas uma força estranha fazia-me vir até aqui, para vê-la, ouvi-la e sentir-lhe o perfume quando entrava na sala. Suspirou. - É uma loucura tudo isso. Sei que não é um sentimento normal o que nutri por ela. Vej a bem... Deveria odiá-la, por ter-me trocado por outro, e no entanto... Para mim, o que imp ortava, era sabê-la feliz e ela era feliz com Rodolfo. - Levou a mão à fronte, acariciando a pequena cicatriz. - Se bem que, nas suas últimas semanas de vida, Suzana pareceu-me triste, como se algo a afligisse. Parecia esq uivar-se de todos, principalmente de mim. - Suspirou, sacudindo a cabeça lentamente. - Lembranças!... É melhor parar por aqui - disse colocando-se de pé e olhando para o pulso. - Já é tarde. Não vem dormir? - perguntou à moça. - Daqui a pouco. Ainda tenho que me decidir - respondeu ela, apontando para os l ivros sobre a mesa. Sorriu-lhe em despedida, e logo saiu, fechando a porta atrás de si. Seus passos pe rduraram por algum tempo, ressoando pelo corredor. Ivan e Melissa - pensou Louise. Que sorte a deles, meu Deus! A filha de Colman afastou tais pensamentos e voltou à tarefa de selecionar um bom livro, quando ouviu passos que se aproximavam. Ficou olhando detidamente para a porta, que logo se abriu. - Não está com sono, querida? - perguntou Clara, afetuosa. - Ainda não. Estou procurando um livro, justamente para passar o tempo, enquanto o sono não vem explicou. - Não quer tomar um chá? Está tão frio... - Não esperou resposta. - Vou preparar um bem gostoso para nós duas - disse, saindo rápido. Louise meneou a cabeça com um sorriso breve nos lábios, dirigindo-se em seguida para a estante enorme, fartamente recoberta de livros. - O Tesouro Escondido - leu em voz alta. Deve ser uma história de piratas, conclui
u, apanhando-o para folheá-lo. Quanto sangue deve sair dessas páginas, pensou sorrindo. Alguns papéis dentro do livro cairam ao chão, despertando-lhe a atenção. Louise lembrouse imediatamente do que havia acontecido a Domingos, e sentiu-se tentada a um relance de olhos. Pareciam cartas... Eram cartas... Cartas anônimas, certificou-se boquiaberta. Cart as destinadas a Rodolfo, falando de Suzana. Cartas de alguém sem caráter, pensou indignada. O assunto, era óbvio. A pessoa falava de Suzana, evidentemente, acusando-a de cont inuar encontrando-se com Ivan. Louise se perdeu naquele emaranhado de intrigas, e só percebeu os passos de Clara quando ela estava quase à porta. Mal teve tempo de guardar o li vro no lugar e jogar-se á poltrona. Quando a porta se abriu, Clara despontou sorridente, com a bandeja às mãos . - Foi eu mesma quem preparou - falou exultante. - Violeta já foi se recolher. - Quanto trabalho! - exclamou Louise, enquanto Clara servia-lhe. - Que nada, querida. Confesso que também estava precisando. Ando-me sentindo muito tensa com essas loucuras que estão acontecendo ultimamente, e perco completamente o sono. O chá é bom. Ajuda a acalmar explicou, sentando-se com a xicara às mãos. - Não pensei que ela fosse voltar - falou após algum tempo de silêncio. - Era muito audaciosa quando viva, mas não imaginava que continuasse assim após a morte. - Mudou de assunto outra vez. - Não está aborrecida com as bobagens de Melissa, a respeito d e seu pai, está querida? Louise colocou a xícara no pires, olhando para a mulher à sua frente. - Não, claro que não. Melissa está obcecada pelos fenômenos do além, e cria imagens distor cidas da realidade. Entendo perfeitamente seu estado de alma. - Não sei, não. Às vezes chego a acreditar nela. Suzana era tão poderosa, que tudo pode ser possível. - Falou com amargura. - Quando a vi destruir Ivan e Melissa, sabia que jamais conseguiri a ter paz. - Respirou enquanto colocava a xícara de volta à bandeja. - Cada um traça seu próprio destino, não é mesmo? - di rigiu-se a Louise, recostando-se à poltrona. Com ansiedade, a moça certificou-se de que, tão cedo, Clara não a deixaria só. Parecia q uerer falar, e ela queria tanto voltar às cartas... Olhou para o livro, em meio a tantos outros, na estante imensa que cobria as paredes da biblioteca. De repente, sua mente se iluminou. P or que não? - pensou convencida de ser uma excelente idéia. Olhou para Clara, e com eloqüência, perguntou: - Como era Suzana? Capítulo Vinte - É difícil falarmos das pessoas pessoas que já estão mortas - começou Clara, assumindo pose impo impo nente, característica comum de quando falamos de pessoas importantes. - Muito difícil. Isto porque, para quem falamos, não resta outra alternativa a não ser acreditar ou duvidar, pois está impossibilitado de certificarse do que dizemos. Clara olhou para um ponto qualquer, cruzou as mãos sobre o colo, e começou a falar p ausadamente. - Suzana foi uma mulher que podemos chamar de... afortunada. Filha única de casal milionário, teve vida tranqüila até os dez anos de idade, quando perdeu a mãe, de quem gostava imensamente.
O pai, que adorava a filha, levou-a a grandes viagens pelo exterior, e logo ela se acostumou à nova vid a, isto é: sem a mãe. Alguns anos depois, o pai dela conheceu minha mãe, também viúva, embora pobre. Lembro-me que tínhamos de trabalhar duro para arcar com as despesas da casa, e o que ganhávamos, era a conta para o ex tremamente necessário à sobrevivência. O pai de Suzana, homem muito bom, apaixonou-se por mamãe e, apesar de toda oposição de sua família, se casaram, com separação de bens, é claro. Foi uma exigência de min a mãe. Clara parou por um momento, como se para alcançar algum fato distante. - Foram anos maravilhosos os que se seguiram - continuou. - Suzana era gentil co migo e mamãe, e conseguimos formar uma família feliz, até que, numa tarde de abril - e por isso essas tardes me deprimem tanto! - os dois, mamãe e o pai de Suzana, sofreram um desastre horrível de carro e morreram. Clara fe chou os olhos como se doesse recordar. - O resto da história é até bonita, quase difícil de acreditar. Suzana tornou-se a única h erdeira de tudo, e novamente me senti pobre, já pensando inclusive em voltar ao trabalho e mudarme de sta casa... - Clara sorriu. Você me pediu para falar de Suzana, dizer como era... Pois bem. Era uma mulher sem igual. Não me abandonou naquele momento e nem desamparou Domingos, meu primo, que vivia conosco. Foi de uma grandeza sem igual, e nos deu direitos que legalmente não tínhamos, como se fôssemos parentes de sangue. N unca me esquecerei disso - falou num sopro de voz. - Nunca esquecerei. Louise olhava para Clara, ouvindo-a atentamente. - Se hoje tenho uma família, conforto, amor, devo tudo á generosidade de Suzana. Se bem que, quando ela conheceu Rodolfo, confesso que nos desentendemos; houve até ressentimento entre nós - disse Clara, deixando escapar o lado não muito agradável da questão. - Discutimos muito, pois, como me senti a a irmã mais velha, me vi no direito de censurá-la. Clara encarou Louise, procurando algum sinal de recriminação em seu rosto, mas esta permanecia impassível, recostada à poltrona, ouvindo-a com atenção. - Confesso que achei abominável o que fez - falou explicando. - Jatnais teria cora gem de roubar o noivo de uma amiga. Não que eu seja melhor do que ela, mas por fidelidade, por respeito humano e mesmo por uma questão de dignidade. Melissa sentiu-se traída por Suzana, e nunca a perdoou por isso. Novamente seus olhos procuraram o rosto de Louise e se tranqüilizaram, não percebend o nenhuma censura. - Como sofreu a pobrezinha! - exclamou continuando. - Suzana teve coragem de diz er-me que também estava sofrendo com toda aquela situação... "Não tive culpa, dizia ela. Nem eu nem Rodolfo. Nós nos apaixonamos e nada mais importa" Louise deixou escapar uma expiração. Clara fez silêncio, aguardando que ela dissesse a lgo, mas apenas o silêncio reinou no recinto. Prosseguiu, pois estava precisando falar um pouco do p assado. - Suzana tinha muitas qualidades, e muitos a enaltecem como uma deusa. Eu não a ex alto como a mulher perfeita, como todos fazem, apesar de reconhecer suas inúmeras qualidades. Na real
idade, ela não passava de um ser humano comum. Tinha defeitos, e o pior deles era a falta de escrúpulos. - C lara sentiu que, sem querer, deixara á mostra a sua diferença para com Suzana. Voltou-se rápido, novamente tentando encontrar alguma expressão no rosto de sua ouvinte, mas outra vez viu-a impassível, sem expressar qua lquer emoção. O carrilhão do salão anunciou as vinte e quatro horas, deixando ressoar seu badalar pela casa imensa. Clara levantou-se rápido, apanhando a bandeja. - Nossa, como é tarde! Fiquei falando todo esse tempo, atrapalhando-a de ir deitar -se. - Não se preocupe comigo - falou Louise. - Afinal de contas, fui eu quem a convide i a falar - concluiu sorrindo. Obrigada pelo chá e pela agradável companhia. Clara caminhou para a porta, segurando a rica bandeja, e ao tocar a maçaneta, volt ou-se. - Não vai subir? - perguntou. - Daqui a pouco - respondeu Louise E com um sorriso gentil, completou: - Boa noi te! Clara saiu deixando o eco de seus passos ecoando pelo imenso corredor. Assim que eles se perderam, Louise fechou a porta que ficara aberta, e correu a apanhar o livro com as cartas anônima s. Com elas ás mãos, teve um estranho pensamento, pois, em sua mente, estava bem viva a conversa que tivera c om Clara, ainda há pouco. Clara odeia Suzana, pensou. Por que será? Por ter sido inescrupulosa? Um sorriso a briu-se-lhe nos lábios perfeitos. É claro que não poderia ser apenas por isso. Talvez pela sua beleza, sua riqueza, sua sorte... Clara poderia ser uma pessoa invejosa; e se o fosse, era digna de pena, pois devia ser horrível invejar alguém, ainda mais um alguém já morto. O pensamento voltou ás cartas que segurava. - Quem, além do Sr. Ralph, saberia delas ? - perguntou a si mesma. Quem as escrevera? E com qual intenção? Várias perguntas fervilhavam-lhe a mente, deixando-a agitada e ao mesmo tempo angu stiada. Gostaria de saber tudo sobre a origem daquelas cartas, mas teria esse direito? Louise continuou por mais algum tempo na biblioteca, procurando alguma resposta. Outra vez o carrilhão ressoou, acusando já ter passado meia hora após as vinte e quatro. Ela então decidiu: apanhou um livro qualquer, onde ocultou as cartas dentro, devolvendo O Tesouro Escondido ao mesmo lugar; ma s antes de deixar a biblioteca, olhou demoradamente todo o ambiente, certificando-se de que estava d eixando tudo em ordem. Desligou a luz, puxou a porta, e com passos abafados caminhou para o quarto. Já su bia as escadas, quando divisou um vulto de mulher. Por um momento, Louise acreditou na veracidade da hipótese de Melissa, mas logo re conheceu Karla, de costas para o salão, olhando o retrato de Suzana. Temeu assustá-la. - Não está com sono? - perguntou ainda subindo as escadas. - Não consigo dormir com o vento batendo na janela - respondeu sem voltar-se, olha ndo fixo para a tela. Louise sentiu medo de Karla. Parecia não ser a mesma pessoa. Agora, já perto dela, p ercebia os olhos distantes, sempre fixos no quadro, falando pausado, como se estivesse em transe.
- Não consigo entender, - continuou Karla - mas eu sei que, no meu sonho, alguma c oisa faltava aqui. Alguma coisa que não consigo descobrir o que é. - Teve outro pesadelo? - arriscou perguntar Louise. - Não... - respondeu cadenciado. - Hoje ainda nem dormi... - Foi quando ela morreu... - falou apontando o retrato com um gesto de cabeça. Na mesma noite, tive um sonho horrível. Estava morta, caída lá embaixo no salão, toda ensangüentada, mas aqui não estava a ssim. Faltava alguma coisa. Olhou tudo em volta, depois deixou os olhos se perderem ao pé da escada, no escuro do salão. Em seguida, caminhou em direção ao seu quarto. Louise ficou só. Olhou para o retrato e, no pequeno sorriso de Suzana, percebeu a possibilidade de haver um grande segredo, oculto ali naquele hall. Capítulo Vinte e um O vento soprava forte, mas ninguém se dava conta dele, dormindo profundamente. Mel issa ressonou, virando-se na cama, e foi neste momento que teve a ligeira impressão de ouvir alguém chamá-la. Abriu os olhos procurando tomar consciência da realidade, enquanto apurava os ouvi dos, que apenas captavam o açoite do vento nas árvores do jardim. Seus olhos foram se fechando mansamente, ávid os de sono, quando novamente ouviu seu nome. Sentou-se, olhando ao redor, mas desta vez não precisou esperar muito. Uma voz baixa, sufocada, como se viesse de longe a chamou. Melissa levantou-se, calçando os chinelos enquanto vestia o peignoir, e cautelosa aproximou-se da porta, colando o ouvido nela. Outra vez a voz distante chamou-a. O coração precipitou-se de ntro do peito, cheio de temor. Abriu a porta devagar, olhando para o corredor deserto e quase ás escuras. Ninguém. Nenhum rumor. Melissa aguardou por instantes, e seu coração agitou mais ainda, entrecortando-lhe a respiração. De novo a voz chamou-a. Parecia vir do salão. Fechou a porta de seu quarto e com cuidado, evitando qualquer ruído, penetrou pelo comprido corredor, alcançando o hall da escada. La de cima olhou à volta e não viu ninguém. As sombras da n oite envolviam o ambiente, entrecortado apenas pelas duas pequenas arandelas. O silêncio tinha como fundo o vendaval. Melissa estava trêmula, cheia de medo. Ouviu o barulho de algo que se qu ebrava, vindo do salão, e baixou a vista à procura de sua origem, mas seus olhos se perderam na imensa escur idão, sem conseguir divisar qualquer vulto. - Quem está aí? - perguntou de modo brusco. Silêncio. Ninguém respondeu. Melissa sentiu as pernas trêmulas e temeu não conseguir manter-se de pé por mais tempo. Sua respiração difícil, o coração palpita do acelerado, como se tivesse corrido muito, confundiam-lhe os sentidos. Pareceu novamente ouv ir ruídos no salão. - Quem está aí? - gritou angustiada. - Responda por favor! - ordenou. Ouviu uma gargalhada que, de tão forte, doeu-lhe nos ouvidos. Em seguida, o salão il uminou-se todo, forçandoa a fechar os olhos por momentos. Quando os abriu, sentiu-se invadida por uma es pécie de torpor. Não queria
olhar, e sim fugir dali, mas uma força maior a obrigava a ficar. Melissa estava pa smada, olhando para Suzana, sentada suntuosamente numa bonita poltrona no meio do salão de festas, como uma ve rdadeira rainha. Sem dúvida, ela estava como sempre: magnífica. A cabeça de Melissa girava vertiginosamente , enquanto pensamentos desordenados atravessavam-lhe a mente. Ela voltou, meu Deus! - pensou. - Ela está de volta. Melissa levou as mãos à cabeça, num esforço de coordenar os pensamentos. - Ela se fora mesmo um dia? - perguntou-se. Voltou a olhar para Suzana, e viu quando sua boca abriu-se mansamente, desmanchando-se num amplo sorriso. - Venha! - falou Suzana docemente, numa ordem sutil. - Desça até aqui. Melissa quis falar, mas a língua enrolava-se, não conseguindo articular uma palavra sequer, e seus pés pareciam presos ao chão. - Por que não vem? - ouviu Suzana perguntar séria. Está com medo de mim? - falou já sorr indo. Melissa continuava tentando falar ou mover-se, mas não conseguia, e viu; atônita, Suzana levantar-se so rridente, caminhando para a escada. - A camisola... - reconheceu Melissa. - A camisola que ela usava quando morreu.. . Suzana aproximou-se da escada com um sorriso irônico, que Melissa desconhecia. Vei o andando, leve, como se estivesse flutuando. O medo era imenso, mas não conseguia gritar ou fugir dali. Pr ecisava de ajuda, de socorro, pois agora sabia estar à mercê de Suzana, que conhecia o seu ódio, e, com tristeza, ce rtificou-se de que estava sozinha ali. Só, apenas com Suzana. Sentindo que já não conseguia mais suster-se de pé agarrouse firme à grade, enquanto ela se aproximava, sorrindo sempre, deixando à mostra os dentes perfeitos, com os cabelos brilhantes e esvoaçantes, subindo vagarosamente a escada. A dois passos de Melissa ela parou, e foi neste instante que, num esforço sobre-humano, Melissa encontrou voz. - Você está morta, Suzana. Está morta. Não tente voltar, porque não vou deixá-la viver novam ente. Suzana ficou com expressão grave, e seus lábios perderam o bonito sorriso. Melissa r euniu todas as forças e segurou firme o delicado pescoço da rival, apertando-o com força; uma força que descon hecia ter. Suzana, sufocada, elevou as mãos, tentando libertar-se da fúria de Melissa, que continuava i mplacável, sempre apertando mais e mais. As mãos delicadas de Suzana tocaram as dela, que as sentiu frias, sem vida, mas o anel que lhe adornava o dedo anular esquerdo cegou-a mais ainda, e sua fúria redobrou. Aquele anel fora dela um dia, quando noiva de Rodolfo. Um anel de família, tradicionalmente usado em tais ocasiões, e que, por cau sa dela, deixara de ser seu. Melissa apertou com ódio insaciável o pescoço frágil de Suzana, que se debatia, lutando para libertarse. Suzana ficou imóvel de repente, deixando de lutar pela vida, e seu corpo tombou so bre Melissa, que o deixou cair, rolando escada abaixo. As luzes do salão de súbito se apagaram e Melissa se vi u tragada por uma densa escuridão. O vento que soprava lá fora passava assobiando pelas janelas cerradas, impedido de
entrar. Melissa acordou com um grito de pavor preso à garganta, apertando o travesseiro co m força. - Um pesadelo! - exclamou, sentando-se exausta no leito. - Meu Deus, que coisa t errível. Ainda impressionada, achou melhor acender o abajur até acalmar-se; numa tentativa de dissipar o medo que sentia. A casa estava em silênci o, na madrugada fria, enquanto todos dormiam profundamente. Karla tem razão, pensou. Devemos ir daqui. As lembranças são muito fortes nesta casa e certamente nunca conseguiremos nos libertar delas. Já mais calma, percebeu o sono chegando de mansinho. Levou a mão até o abajur para desligá-lo, quando uma visão a deixou pasmada. Não conseguia agora dizer se vivera um sonho ou mais que um pesadelo. Sobre o seu criado mudo, estava o anel de noivado de Suzana, todo quebrado. Capítulo Vinte e Dois O lanche matinal estava atrasado. Violeta, atendendo ao Sr. Ralph, havia subido para chamar Melissa. - Já não chove mais - disse Ivan com satisfação, olhando por uma janela. É provável que até domingo o tempo melhore e faça sol. - Melissa é quem vai ficar feliz com esta previsão - observou o Sr. Ralph, com um rápido sorriso. - Sinto-me angustiada com este tempo cinzento - disse Marilu triste. - Todos os dias acordo e corro para a janela esperando ver o sol, e nada. Acho que até já me esqueci como ele é - completou num tom melancólico. A porta da copa abriu-se, e apareceu Melissa, com os cabelos em desalinho, fican do estática, olhando para eles, sem entrar. Rodolfo percebeu sua palidez e foi-lhe ao encontro. - O que houve, querida? Não está sentindo-se bem? perguntou preocupado. Fez uma expressão de desânimo, que ele entendeu como resposta. - Venha sentar-se - chamou-a, levando-a para a mesa, onde todos aguardavam em si lêncio. Melissa sentou-se, sem olhar para ninguém. Marilu perguntou-lhe: - O que houve, Melissa? Não respondeu. Apenas elevou a mão até à mesa, deixando nela os pedaços do anel e rompendo-se num pranto descontrolado. - É o anel de mamãe! - exclamou Marilu assombrada. - Mas onde o encontrou e por que está assim, todo quebrado? Aos poucos Melissa conseguiu conter-se, certa de que aguardavam ansiosos por uma explicação. - Eu... tive um pesadelo - disse, ainda soluçando. - Ela me chamava no salão. Estava viva e morta ao mesmo tempo. - Novamente o pranto quis dominá-la, mas controlou-se. Foi horrível - prosseg uiu. - Usava a camisola com a qual morreu, e foi subindo as escadas até me alcançar. Aí, eu... - Melissa volto u a chorar. - Continue - falou Clara em tom de ordem. - Continue, por favor. Melissa controlou-se. - Ela se aproximou de mim e eu a matei. Estrangulei-a. - Fechou os olhos, sentin do que Rodolfo a olhava com hostilidade. - No sonho, eu vi este anel no dedo dela. - Respirou fundo, tentand o acalmar-se. Tudo parecia tão
real, tão presente! Quando acordei, encontrei o anel todo quebrado, sobre o criado . Melissa olhou para a jóia e outra vez rompeu-se a chorar, saindo quase correndo. M arilu a seguiu preocupada, acompanhada por Ivan e Clara. Rodolfo, que evitara olhar para os demais, pediu licença, retirando-se, mas Doming os saiu em seu encalço. Karla ficou a sós com Louise, que a tudo assistiu, silenciosa. Alguém aqui está com más intenções, pensou. Mas quem? E quais serão estas más intenções? Karla, alheia a estes pensamentos, levantou-se, aproximando-se de um bonito móvel, com uma foto de Suzana, abraçada à filha, quando ela era ainda uma garotinha. - Todas estas fotos, tudo aqui, até a casa, deveriam ser queimados - disse com rai va. - Suzana sempre trouxe infelicidade a todos nós. Ninguém aqui conseguiu ser feliz depois que ela apareceu. Ninguém. Nós passamos a viver da felicidade dela, renunciando a tudo que por direito deveria ser nosso. Louise olhou-a com surpresa. - Eu sempre amei Domingos - continuou, agora lívida. - Ela mesma apresentou-me a ele um dia. Isto já faz quase vinte anos. - Karla deix ou um sorriso irônico saltar dos lábios. - Éramos colegas de colégio e amigas. Amigas... - As lembranças afloraram-lh e à mente, e ela falou pausado, como se não tivesse pressa de alcançar o presente. - Eu me apaixonei por el e, e desde então passei a esperar que me enxergasse, me percebesse... Enfim, notasse que eu existia. Mas i sto nunca aconteceu. Prosseguiu, deixando que o passado falasse. - Quando ela morreu, cheguei a ficar triste, mas depois uma esperança muito grande se apossou de mim. Era minha grande chance. Fez uma pausa e loqüente, como para respirar melhor. - Há quatro anos atrás eu voltei a sonhar como uma adolescente tola , suspirando pelos cantos da casa, como se houvesse tempo ainda para um sonho de juventude se concretizar... - Karla estava emocionada, com os olhos cheios d'água, a boca trêmula. Não; não há mais tempo para mim. Além disso, até oje ele cultua a memória de Suzana - disse num sopro de voz. - Aquela foto... a foto que encontrou destruída dentro do livro... Domingos sempre a levou consigo. - Rompeu-se em pranto, deixando um soluço sufocad o explodir. - Eu a odeio. Sempre a odiei - gritou ela. - Ela me privou de viver os melhores anos de minha vida, como se fosse uma feiticeira, que hipnotizasse Domingos, impedindo-o de ver-me, de amar-me... - Se us lábios ficaram crispados, deixando à mostra ódio e indignação. - Eu odeio Suzana, odeio Clara... - Clara? - perguntou Louise surpresa. - Mas por quê? - Eu só tenho que odiá-la - respondeu Karla, com os olhos brilhantes de rancor. - Ela não queria que Suzana se casasse com Rodolfo. Dizia qu e não estava certo magoar Melissa, traindo-a, roubando-lhe o noivo, e para evitar isto, alimentou esse amo r absurdo que Domingos pensava e pensa sentir por Suzana, estimulando-o a insistir. - Tomou fôlego para c ontinuar. - Clara! Que mulher mais estranha! A princípio, cheia de escrúpulos, tentando impedir que Suzana magoasse Melissa, e ao mesmo tempo tão fria, encorajando Domingos a fazer de tudo para separá-la de Rodolfo . E ela sabia que, sem Domingos, eu certamente morreria... Louise abriu a boca, pensando em dizer alguma coisa que a confortasse, mas desis
tiu. Karla estava num estado lastimável, e não haveria palavras que pudessem amenizar-lhe a dor que sentia naquel e momento. - Não posso deixar de odiar Suzana. Odeio-a muito. Mesmo depois de morta, não consigo mudar, mas não posso também negar o grande fascínio que ela sempre exerceu sobre todos nós. Capítulo Vinte e trêS Karla deixou a copa, correndo, e Louise a seguiu, alcançando-a logo após, parada no alto da escada, com as mãos segurando a cabeça, como se sentisse uma dor muito forte. - Karla, minha querida, tente se acalmar. Não fique assim - disse, amparando-a. Ela não se mexeu. Continuou apertando a cabeça, num gesto de desespero. Domingos apa receu no salão, e subiu depressa para ajudá-la. - O que houve? - perguntou aflito, amparando a amiga. - Minha cabeça... Não consigo me lembrar, não consigo... - Acalme-se, Karla. Relaxe o corpo, vamos! - disse ele massageando-lhe os ombros . - Isto, respire fundo. Ela abriu os olhos e afastou-se dele, aproximando-se da mesa ao pé do retrato, e o lhou fixamente para os dois candelabros que a ornamentavam. Em seguida, cruzou os braços, expressando sensação de frio, e foi se afastando de costas, aproximando-se do corredor. - É algo estranho o que sinto - falou em tom baixo. É como se a morte se fizesse pre sente aqui. Domingos e Louise se olharam sem nada dizer. Karla saiu, indo para seu quarto. - É mesmo uma tolinha - falou ele. - Deixa-se impressionar fácil, fácil. - O que acha de tudo isto? - perguntou Louise. Ele olhou para baixo e viu Violeta que limpava o salão. Segurando-a pelo braço, cond uziu-a pelo corredor da ala sul, até alcançarem a última porta. Experimentou o trinco, que cedeu. - Está aberta. Vamos, entre - disse em tom baixo, fechando em seguida a porta. Louise viu-se num pequeno e confortável escritório, que Domingos explicou ter sido d e Suzana. Na parede, fazendo fundo à escrivaninha, uma bonita tela com garças no pântano. O equilíbrio no traço , na harmonia das cores, deixava mais uma vez estampada a percepção excepcional de Suzana. - Que interessante! - disse Louise sorrindo. - Assinatura do lado esquerdo. Conf esso que é a primeira vez que vejo um quadro assinado deste lado. - Suzana era muito especial. Explicava isto de maneira simples, dizendo que pint ava com o coração, por isso assinava deste lado. Domingos sentou-se numa poltrona, enquanto Louise continuava admirando o quadro. - Começo a crer que Suzana tenha sido realmente uma pessoa maravilhosa - comentou, sentando-se defronte a ele. - O que pensa de tudo isso que esta acontecendo? - perguntou sério, ignorando o co mentário. - Ainda há pouco eu lhe fiz esta pergunta. Ele deixou o encosto da poltrona, curvando-se para a frente, unindo as mãos sobre a mesa. - Confesso que nada sei dizer. Acho difícil aceitar a idéia de que algum de nós esteja envolvido nisto, mas, por outro lado, a teoria de Melissa é muito vaga. Você, que não nos conhece, talvez tenha mais condição de chegar à
verdade. - Quer idéias, não quer? Pode-se preparar para a primeira, meu caro. - Assumiu expre ssão séria. - Um de vocês é o culpado. Alguém muito inteligente, sem dúvida. Ele a encarou entre sério e surpreso. - Acha mesmo? Ela respondeu com um expressivo aceno de cabeça. - Mas quem? - voltou a perguntar. - Isso que temos de descobrir. - Não sei... Para ser-lhe sincero, já cheguei a pensar nesta hipótese, e fui eliminand o as pessoas... - E então? De quem você suspeita? - perguntou Louise, forçando-o a prosseguir. Olhou-a temeroso. - Quem é o seu suspeito? - insistiu ela com firmeza. - Posso estar errado, e gostaria muito de estar, mas acho muito estranho o fato de Marilu estar de volta. - Suspeita de Marilu? - perguntou surpresa. - Sim - respondeu sem jeito. Louise levantou-se, encarando-o. - Não pretendo defender minha amiga, mas gostaria que me dissesse o porquê desta sus peita. - Você quer saber por que ela faria isto? Bem, talvez para se vingar de todos nós. - Vingar? Mas vingar por quê? - Eu não sei. Como poderia sabê-lo? Talvez ela nos julgue culpados da morte da mãe, qu em sabe? Louise arqueou as sobrancelhas. Não conhecia bem os fatos e não queria interferir na intimidade dos outros. - Volto a insistir - disse ela, depois de pensar rapidamente. - Não pretendo defen der Marilu, mas gostaria de alertálo para um fato relevante nisto tudo. Se formos olhar bem para cada uma das pessoas deste grupo, chegaremos a uma única conclusão: todos vocês têm um motivo para não querer ficar nesta ca sa - falou com segurança. - Pode ser, até, que para alguns, este motivo esteja oculto no subconscie nte, e nem mesmo se dêem conta dele. Existe uma grande realidade que os une, pois todos vocês estão envolvido s demais com Suzana. Ele a olhou com admiração. - Talvez tenha razão - concordou pensativo. - Lembrome bem quando aqui cheguei - d isse, com os olhos já perdidos no tempo. - Era pouco mais que um garoto. Um adolescente eu era. Suzana recebeu-me com muito carinho e até me ajudava nos estudos. - Parou, procurando palavras. - Eu... apaixo nei-me por ela. Passava os dias sonhando que estávamos nos casando, enfim, tudo com que um rapazola romântico p ode sonhar. O tempo passou, ela se tornou uma linda mulher, mas aí apareceu Ivan. - Domingos respirou angustiado. - Se você soubesse como o detestava e o invejava ao mesmo tempo! - disse, deixando um sorr iso triste brincar no rosto. Lembro-me de uma vez, - continuou fitando um ponto distante, - numa festa de ani versário de Suzana. Aliás, era seu último aniversário de solteira. Ela já era noiva de Rodolfo. Eu não tinha vontade de fic ar na festa e saí para o bosque, para chorar minhas tristezas. Lembro-me bem: Clara foi ,procurar-me preo cupada, animando-me, dizendo para lutar pelo meu amor, pelo menos confessá-lo a Suzana... Pobre Clara! Ela estava com pena de mim. - Sorriu. - Ela me obrigou a voltar para a festa, e me fez beber, mas beber muito mesmo, pensando que assim eu ficaria mais corajoso, mais atrevido, sei lá... - Ele ficou sério de repent
e. - Não consegui ficar de pé, sequer, após dois copos de vodca. No dia seguinte, além de infeliz, amanheci com uma forte dor de cabeça. - É sempre assim que acontece - disse Louise, tentando quebrar um pouco a nostalgi a que o envolvia. - Mais tarde, - prosseguiu - Suzana veio falar comigo, exibindo-me um cartão, dize ndo sentir-se sensibilizada com tudo que eu lhe revelava, mas que estava enganado. Eu não a amava. Apenas pens ava amar. Disse que possivelmente estava confundindo nossa amizade sincera e o carinho fraterno que nos uniam. Domingos sacudiu a cabeça num gesto de repulsa, como se aquela lembrança o magoasse muito. - Confesso que, naquele momento, pensei ter enlouquecido, pois tinha certeza de não lhe ter enviado cartão algum, mas ali estava minha letra, confessando-lhe meu segredo. Diante daquelas palavras, fiquei completamente lívido, e sequer tentei explicar ou entender os fatos. - Respirou pr ofundo, como se aquela lembrança o sufocasse. - Mais tarde, descobri a mão de Clara em tudo aquilo. Ela pen sou que pudesse me ajudar. - Sorriu triste. - Pobre Clara! - Seu rosto iluminou-se por segundos, nu ma expressão que Louise entendeu como gratidão. - Seu esforço de nada adiantou. Foi um esforço em vão. Domingos foi até á janela, elevando a cortina e deixando que uma lágrima indiscreta ro lasse oculta. Ao voltar-se, encarou a tela, indeciso. - Naquele dia, senti que algo havia morrido dentro de mim, e possivelmente fosse a esperança, a ilusão, enfim, os meus sonhos de juventude. E todas as noites, durante muito tempo, como um martírio, revivia aquela cena horrível, que para mim significou a certeza do fim. - Domingos fitava um ponto distante qualquer. - Primeiro, as palavras de Suzana, em tom meigo, dizend o que eu não a amava, apenas pensava amar. - Sacudiu a cabeça quase com fúria. - Mas o que me machucava mais, era recordar como havia sido estúpido e mesquinho para com ela. Ouvindo tudo aquilo, me senti mortalmente ferido, e reagi com furor, com raiva. Senti que precisava magoá-la, ferila também, e assim fiz. - Sacudiu a cab eça novamente, num gesto de total reprovação. - Eu gritei, a plenos pulmões, que ela era uma pretensiosa, uma p repotente, que julgava ser a dona de tudo. Quem pensava ser, para definir meus sentimentos e saber dos meus pensamentos? Disse isso e coisas mais absurdas ainda. - Seus olhos tinham um misto de alegria e tristeza. - E ela permaneceu silenciosa diante de minha explosão. Nem por um momento tentou se explicar ou qualquer outra coisa. Apenas ouviu, com nobreza e soberania. - Domingos ficou profundamente triste e concluiu: - Por fim , gritei que a odiava. Odiava muito, e não queria vê-la nunca mais. Capítulo Vinte e quatro Após o almoço, Louise desceu de seu descanso com um forte propósito: queria conversar com o Sr. Ralph. Ele lhe parecia uma pessoa inteligente e gentil, mas, ao mesmo tempo, distante e des interessado em conversas. Quando chegou ao salão, percebeu barulho na sala de jogos e ficou aborrecida. Ali, seria praticamente
impossível conseguir seu intento. Caminhou desanimada até à biblioteca, talvez com a esperança inconsciente de encontrar mais alguma coisa que a ajudasse a diminuir a estranha sensação de que "algo não estava bem"; sensação esta que estava começando a sentir sem saber explicar por quê. Girou o trinco para abrir e percebeu uma força maior do lado de dentro, que puxou rápido a porta, abrindo-a. Seus olhos assustados depararam-se com Rodolfo que segurava a maçaneta, também surpr eso. - Oh, desculpe-me - falou sorridente. - Assustei você. - Tudo bem - respondeu Loui se, deixando escapar um suspiro de alívio. - Não sabia que era tão dedicada à leitura - disse, ainda à sua frente. - Já é um hábito para mim. - Encontrou algo interessante por aqui? - É quase impossível decidir, tantas são as obras fabulosás que o senhor tem. Confesso que estou indecisa - respondeu, entrando biblioteca a dentro. O Sr. Ralph fechou a porta, voltando-lhe o rosto moreno, muito simpático. - Verdade? - Sim - respôndeu-lhe prontamente. - O senhor tem uma biblioteca magnífica, mas que me deixa completamente confusa - observou sorrindo. Ele lhe retribuiu o sorriso, sentando numa poltrona. Apoiou o cotovelo no braço da cadeira, e recostou a fronte na mão direita. Seus olhos se perderam. - Se Suzana estivesse aqui, lhe agradeceria com mais entusiasmo. Quase todas est as obras foram selecionadas por ela - falou um tanto melancólico. Louise sentou-se aguardando que continuasse. Gostaria imensamente de ouvi-lo. Si m, sem dúvida, seria ótimo o Sr. Rodolfo falar. Afinal, esse era o seu intento. Ele a fitou pensativo por ins tantes. - Você me faz lembrar dela em muitas coisas - disse por fim. Ela fez expressão de admiração. - Sim - continuou ele. - É verdade. Você me lembra muito Suzana. Há pouco, quando diss e que a leitura lhe era quase um hábito... - sorriu.- Uma expressão comum em Suzana. - Pelo que pude perceber até agora, ela era uma mulher muito versátil - observou Lou ise. - Muito - respondeu-lhe rápido. - Era uma mulher incrível. - Respirou fundo, e mudou de assunto. - Posso sugerirlhe uma leitura? - perguntou-lhe, colocando-se de pé, indo até à estante. Louise apenas concordou com a cabeça, deixando um sorriso fraco confirmar. Um sorr iso que terminou numa expressão de aborrecimento. Habilmente ele mudara de assunto, e isso exigia, porta nto, que ela fosse mais hábil ainda, para fazê-lo voltar a falar de Suzana. Aproximou-se dele, que já trazia um li vro às mãos. - Gosto imensamente deste - disse-lhe, estendendo-lhe o volume. Ela o apanhou sem demonstrar qualquer emoção. - Rebecca, a Mulher Inesquecível - leu alto. - É realmente um livro muito bom - afir mou. - Já leu então? - Sim, e como o senhor, gostei muito. É uma história diferente. Um demônio vestido de anjo, foi o que me pareceu. Levantou os olhos procurando o rosto dele, que estava voltado para o ta pete, e árriscou. - Se Rebecca não fosse a mulher vulgar como Daphne Du Maurier apresentou ser no final da história
, poderíamos talvez dizer que ela e Suzana tivessem algo em comum. Ele tentou um sorriso, permanecendo em silêncio. Um silêncio constrangedor. Precisav a agir rápido, pensou Louise, antes que ele mudasse novamente o rumo da conversa. - Acho difícil, impossível mesmo, uma mulher ser tão encantadora aos olhos de todos, q uando no fundo era tão mesquinha. - Outra vez deixou o silêncio falar por instantes e concluiu: - Confess o que não gostei, quando o marido dela a mata, por causa de sua traição. - Sorriu. - Não sou uma femimista, mas acredito que ninguém tem esse direito. - Caminhou para um canto da biblioteca, onde ficou por algum tempo . Em seguida, apanhou um livro com expressão feliz. - Este aqui parece-me excelente - falou. - Deve estar impregnado de mistérios. - L eu alto: O Tesouro Escondido e voltou-se rápido para Rodolfo, procurando-lhe no rosto o efeito que esse título po deria estar-lhe causando. Por instantes ele vacilou; depois, aproximou-se dela calmamente, tirando-o de su as mãos, e caminhou alguns passos para um canto. Folheou-o, encarando-a em seguida. - Um livro digno da filha de Thomas Colman - disse finalmente. - Vai ficar fasci nada com esta leitura - completou, entregando a ela o livro e fazendo menção de sair. - Sr. Rodolfo! - ela o chamou, quando já alcançava a porta, e ele se voltou, aguarda ndo. Louise hesitou, segurando o livro com força. - Posso parecer-lhe atrevida, mas quero que leve em consideração o carinho que tenho por Marilu. - Parou procurando as palavras adequadas. - O senhor amava muito sua esposa, mas não deve anular-se, porque ela morreu. Marilu está muito preocupada com isto. Quer que o senhor se reencontre, en fim, que volte a ser o que era antes... - Sorriu breve. - Inclusive, acha fundamental que volte a se interessar por alguém, porque a solidão não é boa companhia. Rodolfo não deixou transparecer qualquer expressão. - Ela não quer vê-lo transformado nu m ermitão, num homem solitário e amargurado. - Insistiu. - Por que não pensa sobre isto um pouco? Ele olhou para o chão pensativo. Depois, fitou-a. - Confesso que minha única preocupação é Marilu. Jamais pensei que ela estivesse preocup ada comigo também. - Mas está e muito. - Não creio que seja possível recomeçar - disse ele sacudindo a cabeça negativamente. - Mas é claro que é possível. O senhor é jovem e tem muita vida ainda pela frente. - Pen sou por segundos, como se procurasse aprovação para o que pretendia dizer. - Acredito que Suzana, se pudess e se expressar, estaria lhe dizendo o mesmo agora. Ele sorriu um sorriso triste. - Também acredito nisso. - E então? - Melissa! - exclamou ele. - Seria uma escolha acertada? - A escolha deve ser do senhor - respondeu-lhe animada. - Mas penso ser uma boa opção. Ela o ama de verdade, e com amor tudo é possível. - Eu sei, eu sei - disse pensativo. - Talvez tenha razão. Suzana não se importaria n em um pouco - falou com amargura.
Neste momento, Louise percebeu que a história de um grande amor, como todos pregav am, não era tão verdadeira assim. Aquele desânimo do Sr. Rodolfo afirmava decepção e mágoa. Na mente dela, surgiram as cartas anônimas como possíveis autoras daquela descrença. R estava ainda saber se elas diziam a verdade, mas, no fundo, apostava na lealdade de Suzana, pois perce bia sinceridade no rosto calmo do retrato do salão. O que Louise não percebeu naquele momento, foi alguém, colado à porta, que ouvia com m uita indignação toda aquela conversa. Capítulo Vinte e cinco Um toque leve à porta fez Marilu levantar a cabeça do travesseiro. - Entre - falou, fitando a porta. Melissa despontou e foi logo perguntando: - O que está havendo com você? Não quis descer para o almoço, nem se animou para uma par tida de gamão. A moça não respondeu. Continuou fitando longe, com uma expressão amarga no rosto. - Ora, vamos querida! Não fique assim. Seu pai está tão preocupado com você! Marilu fechou os olhos, apertando-os. - Eu não vou conseguir, não vou conseguir - falou, rompendo-se em lágrimas, que lhe ma rcaram o rosto triste. - Claro que vai. Não se torture assim. As coisas não mudam de repente. Terá que se adaptar, se acostumar... - Acostumar a viver sem mamãe... - Marilu mergulhou o rosto no travesseiro, deixan do o pranto sacudir-lhe o corpo. Era impossível sufocar aquela emoção. - Eu não quero, não quero... - Meu bem, não deixe as coisas tomarem este caminho. Precisa ser forte e lutar con tra esta revolta. - Melissa fez silêncio por instantes. - Você sabe que nada vai mudar. Suzana não voltará a viver. Marilu voltou a chorar, desesperada. - Chore, querida! É bom desabafar. Vai lhe fazer bem. - O pranto, a princípio intens o, foi se transformando em suspiros doídos, que pareciam fluir do fundo de sua alma. Marilu estava se controlando, pen sou Melissa mais animada, enquanto acariciava-lhe os cabelos. - É tão difícil para mim - falou, depois de algum tempo, já mais calma. - Para todos nós, minha querida. Para todos nós. Marilu levantou a cabeça do travesseiro, levando a mão sob ele, e num gesto rápido puxou algo, que deixou Melissa patética. Marilu acariciou a fina peça de lingerie, num bonito tom de azul. - Eu a encontrei... Ficava tão bem em mamãe... - Para que isso, Marilu? Onde a encontrou? - perguntoulhe Melissa quase com seve ridade. Ela não respondeu. Apenas abraçou a camisola que fora de sua mãe, com imenso carinho. Melissa colocou-se de pé, assustada com tal comportamento. - Esta roupa, Marilu, estava toda manchada de sangue, pois sua mãe a usava, quando morreu - disse enérgica. Marilu voltou-lhe a cabeça, olhando com desdém. - Eu sei de tudo a respeito de mamãe, Melissa. Muito mais que você, que qualquer um. Ficou de pé, indo até ao toucador, deixando a camisola abrir diante de si, admirando -se no espelho. Melissa, atônita, olhava estarrecida. - Por quê? Por quê? - perguntou num fio de voz. Marilu abraçava seu corpo, como se est ivesse abraçando a mãe. - Por que se tortura tanto, Marilu? Por acaso, gosta tanto assim de sofrer? Marilu ficou séria, prendendo a camisola apenas pela cintura, deixando a parte sup
erior cair-lhe pelo colo. - Sofrer!... - suspirou ela pensativa. - Como temo o sofrimento! - exclamou. - Não estou conseguindo entendê-la. Juro que não. Esta roupa, enfim, tudo que era do u so pessoal de Suzana, deveria ter sido consumido. Era o melhor que tínhamos a fazer. Agora... - hesitou - você aparece com esta camisola, que antes estava encharcada de sangue, e se abraça a ela, como se abraçasse sua mãe... Marilu encarou Melissa com severidade. - Não é consumindo os pertences dos mortos, que vamos nos esquecer deles, Melissa. S eria necessário muito mais. Teríamos que apagar nosso passado, queimar nossas lembranças. Agora pergunto-l he: isto nos levaria a algum lugar? Não, claro que não. O que nos transporta no tempo, para algum fato real , são as nossas lembranças, a volta ao passado. O futuro é feito apenas de sonhos, e não ha nenhum mérit o em sonhar. Ouviram bater e antes do rosto preocupado de Karla surgir, Marilu ocultou a cami sola atras de si, voltando as costas para o espelho, encarando a porta. - Está melhor? Clara disse que estava com dor de cabeça. - Ainda não estou muito bem. Vou voltar a deitar e ficar no escuro por algum tempo. - Quer alguma coisa? - voltou a perguntar. - Não, não. Obrigada. Preciso apenas dormir um pouco. - Qualquer coisa é só chamar-me - disse já saindo. Vamos, Melissa? A moça se viu pega de surpresa. Queria ficar a sós com Marilu para descobrir o que p retendia com aquela atitude, mas não conseguiu pensar em nada que pudesse retê-la ali. - Sim... Vamos - disse com resignação, olhando detidamente para a filha de Suzana. A porta do quarto fechou-se e Marilu continuou parada, ouvindo os passos vagaros os que se afastavam, até se perderem. Então, voltou-se, sentando na banqueta, e por longo tempo ficou a contem plar, através do espelho, a camisola azul que cobria o tampo do toucador. Capítulo Vinte e seis Mais uma carreira e a écharpe estará pronta, pensou Louise. Aí, restará apenas o toque final, que serão as franjas. Arrematou o trabalho e deixou a vista fugir para o jardim, transpondo o vidro da saleta. A visão que deparou deixou-a triste e a fez sentir f rio. Uma paisagem melancólica: as folhas molhadas, o tempo sem o brilho quente do sol. Encarou a lareira e viu que o fogo precisava ser atiçado. Aquela tarde estava demo rando a passar, e decidiu saborear um chá, enquanto matava o tempo. Saiu pelo corredor, penetrando no imenso salão, e alcançou mais à frente o corredor qu e a levaria à cozinha. Passando pela sala de jogos pensou em convidar Domingos e Ivan a acompanhá-la, mas , ao abrir a porta, descobriu-a vazia e silenciosa. A casa estava deserta no andar térreo, concluiu. Talvez restasse ali, além dela, ape nas Violeta. Atravessou a copa, entrando na cozinha, encontrando-a também abandonada. Uma chale ira borbulhava sobre a chama do fogão, quebrando o silêncio. Louise baixou o fogo, diminuindo a ebulição, quand o ouviu um soluço
distante. Pareceu-lhe que alguém ,estava chorando, e que este choro fora abafado. Por um momento sentiu um calafrio percorrer-lhe o corpo. Lembrou-se de Melissa, com suas teorias sobrenaturais, acusando Suzana de não querer deixar aquela casa, mas, consciente de quão absurdas eram tais suposições, dirigiu-se corajosamente á porta que a conduziria as dependências dos criados. O pátio estava com o piso molhado, embora não chovesse mais, e o frio fez Louise lev antar a gola do agasalho de lã. Uma porta bateu e ela se voltou assustada, mas a atenção foi desviada, pois nov amente voltou a ouvir o choro. Indecisa, aproximou-se do lugar de onde ele vinha, entrando devagar. Viu Violeta, estirada sobre o leito, com o rosto oculto entre as mãos, chorando co piosamente. - O que há com você? - perguntou Louise, sentando-se na cama, e colocando a mão sobre o ombro da criada. Violeta assustou-se, virando-se para ela, mas acalmou-se logo, reconhecendo-a. - O ferimento... Violeta sentou-se rápido, acenando com energia a cabeça, num gesto negativo. - Então, por que está chorando assim? Ela insistia no pranto, mas mesmo assim falou. - É por causa dela... - disse entre um soluço e outro. - Ela está demorando tanto a vo ltar. Eu sinto sua presença; mas, então, por que não fala comigo, não me deixa vê-la? - Você está falando de Suzana? - perguntou-lhe Louise perplexa. Violeta afirmou num gesto de cabeça. A moça respirou fundo, e num gesto de carinho p assou-lhe o braço sobre os ombros, falando-lhe de maneira quase maternal. - Fique calma, querida. Tudo isto não é possível acontecer, não é verdade, compreende? Suz ana está morta e os mortos não voltam mais. A criada tentou falar, mas Louise cortou-a, impedindo que mais idéias absurdas fos sem lançadas. - Nada disso é verdade. Pode acreditar em mim. Se Suzana foi uma mulher tão boa e ma ravilhosa, jamais poderiam pensar que, mesmo sendo possível, ela voltasse para assustar as pessoas q ue mais a amavam. Segurou-lhe a mão ferida. Você devia ter aceitado a proposta de Clara, deixando outr a pessoa ficar em seu lugar. Trabalhando deste jeito, este ferimento vai demorar a cicatrizar. - Não! - respondeu num grito, pondo-se de pé rapidamente. - Eu sempre cuidei desta casa para a Senhora, quando ela vivia. Não posso deixar q ue outra tome o meu lugar. Louise olhou-a surpreendida. Violeta também era uma fanática por Suzana, por aquela casa. - Todas as noites, desde que voltei, sonho com ela - recomeçou a falar. - Vem até aq ui, senta onde a senhorita está, e fala-me com carinho, como sempre costumava fazer. - Seus olhos se iluminar am. - Ela me pediu para cuidar de tudo que é seu, pois vai voltar. Já está quase na hora. Louise concluiu com amargura: sim, Violeta era uma fanática em potencial. Sem dúvida alguma. Olhou para o rosto da criada e percebeu uma expressão de alegria, os olhos perdidos em algum po nto indefinido. Mas logo este sorriso foi se fechando, os olhos escurecendo, deixando-lhe o rosto carrega do. - Ele viu... - disse em seguida, com desalento. - Agora tudo vai complicar. - Ele? Ele quem? Viu o quê? Violeta encarou-a com o rosto muito sério. Segurando-a pela mão, conduziu-a até a última
porta do pavilhão, que abriu com uma chave tirada do bolso do avental. Convidou Louise para entrar. Tudo estava muito escuro, mas logo Violeta acendeu a luz, deixando a moça surpresa com a desordem do lugar. Uma mala enorme, tipo baú, estava aberta, e roupas jogadas pelo chão. Louise olhou p ara Violeta, interrogativamente. - Ele descobriu tudo. Quando a Senhora morreu, ordenou me que destruísse todos os seus pertences, mas eu os guardei, porque sabia que ela voltaria. Agora, veja o que fez com as coisas dela - disse chorando copiosamente, enquanto recolhia as roupa s do chão. - Ele é o Sr. Ralph? - perguntou Louise, tentando certificar-se da realidade, já que Violeta misturava o real com o imaginário. - Sim - respondeu prontamente. - Ele esteve aqui hoje. Vi quando entrou. Louise, naquele momento, ficou certa de uma coisa: Violeta também havia se perdido pelo fanatismo, e não poderia levar em conta nada do que dissesse. - Agora vai querer mandar-me embora, - concluiu a criada, desanimada - por não ter obedecido suas ordens. Ele nunca gostou de mim - afirmou. - Nunca. Ele não queria que ninguém, a não ser ele; gos tasse dela. Louise sentiu a cabeça girar. Precisava sair dali. Aquele cheiro de coisas abandon adas e de lugar fechado a sufocavam, e a absurda conversa de Violeta deixou-a desnorteada. Era necessário ficar só, para pensar melhor. Precisava colocar nos seus devidos lugares aquele amontoado de frases sem nexo. Capítulo Vinte e Sete A chuvinha fina, embora insistente, tornava mais monótono ainda aquele finzinho de tarde. Outra vez o dia finda, sem o brilho do crepúsculo, pensou Louise deprimida, olhand o através do vidro da janela. Lembrou de Marilu, que havia se trancado no quarto durante todo o dia, numa atit ude até então estranha para ela. O que poderia estar acontecendo com sua amiga? Não queria se envolver, mas, ao con vidá-la, Marilu dissera-lhe que precisava de sua ajuda. Seria prudente ir vê-la e tentar ajudá-la. Ouviu passos que cruzavam o corredor. Passos que não pretendiam ser ouvidos. Alguém pisava de leve lá fora. Louise aproximou-se da porta e ficou escutando. Eles se aproximaram de seu quart o com cautela, detendo-se defronte á porta. A filha de Colman sentiu o coração bater acelerado no peito e a resp iração descontrolar-se. Alguém estava ali, numa atitude estranha. Quem seria? O que pretendia? Os passos voltaram a soar, afastando-se. Louise, que estava apoiada á porta, fecho u os olhos numa expressão de alívio, e em seguida abriu-a com cautela, espreitando o corredor, pobre de iluminação. Viu um vulto que entrou cuidadosamente no quarto de Marilu. Um vulto de homem. Ficou aguardando, olhando pela pequena fresta o corredor deserto e quase escuro. Olhou para o relógio e sorriu: faltavam quinze minutos para as dezoito horas. Era muito cedo para sentir medo, pensou. Continuou esperando. Os minutos pareciam se arrastar para a ansiedade dela, que permanecia à espreita do caminhante misterioso. Um homem, pensou. Temos três dentro desta casa.
O pensamento foi interrompido pelo rumor dos passos, que voltaram a soar, como s empre, cautelosos e discretos. Percebeu que se aproximavam e então fechou com cuidado a porta, mantend o-se atrás dela, com os ouvidos bem atentos. Desta vez eles não hesitaram ao passar defronte do seu quarto. Quando os percebeu distante, abriu a porta, e viu apenas o vulto que já desaparecia no hall. Certamente é o Sr. Rodolfo, que veio ver a filha, pensou com os braços cruzados. Sacudiu de leve a cabeça como se para afastar qualquer outro pensamento que pudess e ser rotulado de absurdo; em seguida trancou-se no quarto, cerrou as cortinas e acendeu o abajur. Aproximo u-se do toucador, sentando-se na banqueta aveludada, e fitou uma gaveta. Abriu-a, retirando o livro que oculta va as cartas anônimas. "Creio que Suzana não se importaria. "- lembrou, de repente, da voz melancólica do S r. Ralph, dizendo esta frase, quando conversavam na biblioteca. Sim, ele acreditava naquelas cartas. Aq uele desânimo, aquela apatia, eram sintomas de decepção, desventura, desilusão. - Sorriu. - Ele representava tão bem! Se não tivesse encontrado aquelas cartas dentro do livro O Tesouro Escondido, jamais teria nota do sua ligeira hesitação, quando o viu em suas mãos. Teria falado delas com a esposa? Ivan lhe dissera que Suzana estava muito distan te nas últimas semanas de vida, e este poderia ser o motivo. Sim, fazia sentido, insistiu sua mente, trabalhando vorazmente naquele raciocínio. Fazia sentido e muito. Inclusive, segundo Ivan, ela começara a evitá-lo, e ele afirm ava não saber por quê. Cartas anônimas, pensou Louise com desprezo. Quanta mesquinhez! Olhou novamente para elas, abrindo-as pensativa. Quem as escreveu jamais pensou que um dia iriam parar em suas mãos. Louise ficou séria por instantes e teve um pensamento novo: até que o autor daquelas cartas não era tão covarde como parecia à primeira vista. Ele usara de seu próprio punho para escrevêlas. Isto seria inocência o u uma maldade maior? O pensamento voou para longe, lembrando o pai. Se ele estivesse ali, no seu luga r, descobriria em dois tempos quem estaria fazendo todo aquele jogo maldoso. Em seguida, outro pensamento lhe ocorreu: será que também receberia um "presente" como os demais? Olhou para o espelho e viu, refletido nele, o rosto do pai, com os grandes olhos castanhos, e o bigode alinhado. Um rosto sem movimentos, como sempre conheceu. Aliás, para ela, seu pai nunca pass ou de uma fotografia. Uma fotografia já amarelecida pelo tempo. Thomas Colman, pensou com um sorriso triste, era um pai que, apesar de não tê-lo con hecido, tinha uma lembrança pungente no seu coração de filha. Elevou o rosto com altivez, numa atitude de coragem e decisão. Agora que ele não exi stia mais, o mundo poderia saber dela. Não estaria, assim, traindo a convicção de sua mãe. Sentia-se leve com tal decisão. Era maravilhoso poder dizer a todos que era filha do grande Thomas Colman. Seus olhos outra vez encontraram as cartas que havia espalhado sobre o toucador. Fitou-as através do espelho e surpreendeu-se, de súbito, com um estranho pensamento. O que estou fazendo com estas cartas em meu poder? Por que estou pensando tanto
nesta história toda? Os olhos dela se iluminaram, voltando a sorrir. - Oh, não! - disse alto. - Eu não conseguiria nunca. - Fitou o rosto moreno, ficando triste. - Eu não conseguiria nunca. Seria muita pretensão de minha parte. Dobrou as cartas, colocou-as no envelope, ocultando-as novamente no livro, que v oltou à gaveta, como antes. Apanhou papel e caneta, escrevendo: 1 - Karla = livro de poemas 2 - Domingos fotografia 3 - Ivan punhal 4 - Melissa anel Marilu? Clara? Rodolfo? Ficou indecisa, e em seguida acrescentou: Violeta? Leu o papel e fez uma expressão de desânimo. Aquilo mais parecia a síntese de um relatór io. Ela não tinha capacidade de ler as entrelinhas, como o pai. "Ver além das aparências:" Sim, era isso mesmo. Ela teria que ser mais inteligente e astuta que os demais. Mais esperta que o autor de tudo aquilo . O pensamento voltou às cartas. Elas teriam alguma coisa a ver com tudo aquilo? Ond e entrariam? Quem sabe não fossem o princípio de toda aquela história!... Vasculhou a mente, tentando encontrar algum detalhe, por pequenino que fosse, ma s que pudesse ser um elo com os confusos e intrigantes acontecimentos. Lembrou dos passos furtivos que entraram no quarto de Marilu. Um homem!... - disse para consigo mesma, com ponderação. Se Marilu, mais tarde, acusasse ter recebido também um "presente", ela teria meio caminho andado. Voltou a escrever com rapidez , como se para não deixar fugir-lhe o pensamento: - Rodolfo - Ivan - Domingos Se fosse um homem, teria apenas três suspeitos. Ergueu a vista ao princípio das anot ações e reparou que Ivan e Domingos haviam sido "presenteados" ; e isto mudava o rumo das coisas. Ficou sur presa. Então apenas Rodolfo figuraria como suspeito? Aquilo não tinha graça. Estava fácil demais. Deixou o pensame nto correr para trás e viu que novamente voltava a estaca zero. O Sr. Ralph tinha um álibi muito bom: na tarde em que Ivan e Domingos receberam seus "presentes", ele estivera ausente, pois tinha ido à cidade , e só voltara à hora do jantar. Louise deixou a caneta cair sobre o papel, com o desalento visível nos olhos. Que pretensão a minha, pensou. Não conseguiria nunca. "Ver além das aparências"... Aquil o era só para o grande Thomas Colman. Capítulo Vinte e OitO Louise estava ansiosa à mesa, aguardando Marilu, que nunca descia para o jantar. Quando ela entrou na copa, parecia desanimada, embora aparentasse calma: Ouviu Clara perguntar pelo Sr. Ralph, e Domingos se prontificou a chamá-lo.
A filha de Thomas Colman fitava Marilu, procurando perceber algo de anormal no c omportamento da amiga, na expectativa de estar no caminho certo com suas suposições. - lüdo bem, Marilu? - perguntou, não resistindo. - Sim, estou bem - respondeu-lhe tentando um sorriso. - Apenas a cabeça está um pouco pesada. Com certeza, um resfriado incubado. Por trás do sorriso que Louise lhe dispensou, havia uma ponta de decepção. Por um mome nto, achou que estava fácil demais alcançar a ponta daquele novelo, mas agora percebia como estava emaranh ado. Mais do que podia imaginar. Queria tanto chegar ao X da questão!... Sentiu-se confortada, ao conclui r que devia ser paciente e saber esperar. Sim, paciência deveria ser algo fundamental na busca da verdade; in clusive, sabia que seu pai, em alguns casos, levava até meses para desvendálos; se bem que ele trabalhava em casos complicadíssimos, com assassinatos intrincados e tudo mais. Mas a fórmula deveria servir para qualquer s ituação: paciência! Sim, ela teria. - A semana praticamente terminou e não desfrutamos de nada - falou Melissa, enquanto aguardavam o Sr. Ralph. Poderíamos dizer que tivemo s uma semana de ostracismo. Ivan achou graça, sorrindo, deixando os dentes perfeitos à mostra. - Sou obrigado a concordar com você. Jamais fiquei um único dia sem sair de casa, e agora, uma semana dentro da concha, sem sequer botar a cabeça para fora. - Os ursos hibernam nesta época - observou Louise sorrindo. - Acho melhor aderir à sua idéia - respondeu ele. - Sou um pouco crescido para ser u ma ostra. Domingos voltou à sala de jantar muito sério e visivelmente perturbado, olhando para todos de maneira quase patética. - E Rodolfo? - perguntou Clara em tom imperativo. - Ele... Ele não vem - respondeu Domingos. Rodolfo está transtornado. Todos olharam para ele interrogativamente. - Enquanto dormia, - continuou - deixaram em seu quarto a camisola de Suzana. A mesma que ela usava quando morreu, e estava toda sujá de sangue. Marilu levantou rápido, deixando a copa correndo. - Marilu, volte aqui - gritou Melissa com severidade, colocando-se de pé. - Meu De us! - exclamou, envolvendo o rosto com as mãos. - Jamais pensei que ela fosse capaz disso - concluiu, deixand o a sala quase correndo, com Clara seguindo-a. Domingos pediu a Violeta que providenciasse um calmante para Rodolfo, voltando e m seguida para junto dele. Paciência! - pensou Louise, sentindo-se burlada. Paciência! Ouviu um suspiro entrecortado. Voltou-se para Karla, que, de repente, rompeu-se em soluços. Ivan levantou-se rápido, correndo até à amiga, ao perceber que ela estava tendo um desmaio. Louise pron tificou-se a ajudá-lo. Na saleta, Ivan deitou Karla num sofá, enquanto Louise tentava reanimá-la. - Não consigo entender por que estas coisas estão acontecendo - falou Ivan. - Pensei que fosse só em filmes que coisas absurdas aconteciam. - Coisas absurdas... - disse Louise. - Acho que elas não existem - observou. Tudo que nos parece absurdo, no fundo, tem uma forte razão de ser. Só que, por trás delas, existe uma inteligência e astúc
ia em potencial, para torná-las assim, absurdas: Karla voltou a si, segurando com força a cabeça, gemendo muito. - Minha cabeça... Minha cabeça vai estourar... - falou com voz entrecortada pela dor . - Meu remédio... - Vou buscar - disse Louise, deixando apressada a saleta. No quarto de Karla, sentiu desânimo ao deparar-se com a desordem do aposento. Roup as esparramadas pelo chão, cama e toucador rotulavam sua ocupante como pessoa desorganizada. Com cuidado, retirou as roupas que acumulavam o toucador e logo descobriu um peq ueno frasco de comprimidos. Tão logo Karla ingeriu o sonífero, adormeceu profundamente. Violeta entrou, trazendo uma bandeja fumegante. - Tomei a liberdade de pedir um café para nós, pois o almoço está suspenso por hora, cre io eu - disse Ivan. - Obrigada - respondeu ela, já recebendo a bonita xícara de porcelana das mãos de Viol eta, que parecia alheia a tudo. Violeta! - pensou, enquanto sorvia o café. Ela seria capaz? Seu pensamento f oi interrompido para ouvir Ivan. - Você manchou a manga da blusa. Louise ergueu o braço e viu uma mancha ligeiramente rosada, no antebraço. - Justo numa blusa branca! - comentou. Violeta deixou a saleta e Louise resolveu aproveitar. - Como foi a morte de Suzana? - perguntou, demonstrando naturalidade. - Foi uma morte, digamos assim, trágica. Um acidente horrível e fatal. - Fez silêncio, como se revivesse a cena. Era uma madrugada fria, de uma época como esta; final de outono e princípio de inver no. Suzana caiu das escadas do salão, indo chocar-se com uma das estátuas de porcelana que decorava o pé da escada . A Vênus quebrou-se toda, cortando-lhe a aorta na altura do pescoço. Ela morreu quase que imediatament e, esvaindo em sangue. - Então Suzana caiu daquela escada? - perguntou Louise pensativa. - Uma morte bast ante estúpida - comentou. Estúpida e estranha... - Estranha por quê? A morte é sempre uma estupidez aos nossos olhos, mas estranha?.. . Não, ela não nos é uma estranha. Nós sempre caminhamos junto dela. - Você não entendeu minha observação - respondeu Louise de maneira expressiva. - A morte de Suzana, que foi atribuída a um acidente, poderia ter sido perfeitamente um suicídio, como Melissa af irma, ou até mesmo um assassinato. Ivan encarou-a surpreso. - Ora, que absurdo está dizendo?! - falou patético. Em seguida, sorriu. - Desculpe-m e. Esqueci que estou conversando com a filha de Thomas Colman. - Ficou em silêncio e encarou-a. - Você te m razão. Seria um assassinato perfeito, mas esta suspeita está fora de cogitação. - E por quê? - perguntou Louise, colocando a xícara na bandeja. - Karla viu tudo. Ela ouviu passos no corredor. Abriu a porta do quarto, e viu S uzana sumindo no hall. Então a seguiu, mas quando alcançou as escadas, Suzana já estava rolando por elas. Foi tudo muito rápido. Acordamos com o barulho do corpo dela chocando-se com a estatueta, que se espatifou em mil pedaços. Corremos para baixo e a encontramos já morrendo, inconsciente. Karla estava caída junto à cortina qu e dá para á ala norte. -
Ivan deixou escapar um suspiro de dor. - Pobrezinha! Quando caiu desmaiada, bate u com a cabeça, por isso sente essas dores terríveis. Por outro lado, no campo emocional, ela sofreu um tra uma fortíssimo. Presenciando aquela cena horrível, sem nada poder fazer, começou a Griar imagens, achar que o que viu não era real e sim um pesadelo; enfim, tornou-se uma pessoa completamente confusa e cheia de culpa. Se u médico afirma que ela gostaria de ter segurado Suzana, para que não caísse pelas escadas; e como não consegu iu, se sente culpada. - É por isso que ela diz sentir coisas estranhas quando passa por ali - concluiu L ouise, lembrando-se. - O médico afirma que ela sabe que viu tudo, mas não quer admitir, tentando não se sen tir responsável. Com isto, apega-se à idéia de que tudo foi um pesadelo! - Pesadelo - exclamou Louise olhando Karla, que dormia, sob o efeito do sedativo . Fitou os seus cabelos curtos que cobriam a tumultuada cabeça e concluiu: - Os pesadelos podem ser terríveis, mas sempre são preferíveis a uma dura realidade. Capítulo Vinte e nove De volta ao quarto, Louise trazia uma bagagem de novidades e descobertas. Ela se sentia excitada com a idéia de tentar descobrir a verdade; embora isto a deixasse bastante preocupada, pois estava penetrando por um caminho até então desconhecido e poderia não conseguir voltar, caso necessitasse. Acomodou-se defronte do toucador, apanhando a folha de anotações, lendo-a atentament e. Sem dúvida, havia alguma coisa a acrescentar, e a lista se viu alterada. 1 - Karla livro de poemas 2 - Domingos fotografia 3 - Ivan punhal 4 - Melissa anel 5 - Rodolfo camisola Marilu? Clara? Violeta? Correu os olhos na lista de três nomes que fizera mais abaixo, cobrindo-os com um X bem grande. - domingos - Ivan Não poderia sustentar á idéia de que havia sido um homem, pois ela vira alguém entrar furtivamente no quarto de Marilu, e quem recebeu o "pr esente" foi Rodolfo. Quem estaria fazendo tudo aquilo? Alguém que não quisesse ficar ali? Neste caso só pod eria ser Rodolfo, Clara e Marilu, pois eles é quem iriam morar naquela casa. Começou a analisar um por um. Marilu estava fora de cogitação, pensou com ponderação, pois o seu maior desejo era voltar. Restavam, então, Rodolfo e Clara. Não, não. Era impossível admitir qu e o Sr. Ralph, pai de Marilu, estivesse fazendo uma loucura dessas. Além do mais, ele também havia sido ad vertido, recebendo a camisola de Suzana, e estivera ausente quando Domingos e Ivan foram contemplados . Ele, não poderia ser. Restava Clara. Era bem possível ser ela; aliás, era uma das poucas pessoas que ainda não havia sido "presenteada". Louise deixou o pensamento ir mais além, e concluiu que, quem estivesse fazendo aq
uilo, certamente era muito habilidoso, e iria se presentear também, para evitar suspeitas. Encarou-se no espelho e outra vez se viu tomada pelo medo de estar seguindo o ca minho errado. E se fosse assim, teria que andar duas vezes. O rosto preocupado deixava a ruga vertical vi sível à distancia. A pena da caneta correu sobre o papel, sem contudo marcálo, enquanto relia-o atent amente. - A história está se complicando. Estou me sentindo como um gato boboca, perseguindo um ratinho inteligente e esperto, que brinca de esconde-esconde. Além de tudo isso - voltou a pensar, - ten ho estas cartas anônimas. Aparentemente, elas não se encaixam na história, mas tudo gira em torno de Suzana. Violeta era uma fanática e tinha um corte que sangrava o tempo todo, mas seria ass im tão inteligente e astuta? Sangue! - pensou. Quem estava fazendo aquilo; parecia estar conseguindo sangue n uma torneira. Apoiou o cotovelo sobre o toucador, e viu refletida no espelho a mancha ligeiram ente avermelháda que quebrava o branco da blusa. De onde viera? Louise sentiu cansaço. Estava trabalhando com o cérebro num ritmo acelerado pela pri meira vez, e isto lhe causava um cansaço mental extenuante. Abandonou a lista; caminhando pelo quarto. Todos ali poderiam ter assassinado Su zana, caso tivesse mesmo ocorrido um crime. Sim, todos tinham um motivo, com exceção de Marilu, é claro. Um crime e tanto, pensou. Podia passar despercebido aos olhos de todos. Se alguém com idéias criminosas soubesse disso, estariam sanados os seus problemas. Bastava a vítima estar no alto de uma escada e pronto... Um crime perfeito estaria ocorrendo. Capítulo Trinta Louise sentiu que não conseguiria dormir aquela noite, tão agitada estava com sua in vestigação. Olhou pela janela e viu as luzes do jardim refletir nas alamedas molhadas, e o que poderia até parecer-lhe poético, pareceu-lhe lúgubre. Aquela noite prometia muito, pensou ela, esfregando as mãos. Ficaria atenta às pesso as que porventura circulassem pelo corredor. Perguntou a si mesma se seu pai usaria daquele expedi ente para resolver um caso, mas era-lhe impossível responder tal pergunta. Não sabia como ele agia. Apenas imagi nava. E tudo que podia fazer era ficar atenta, pois precisava de algum fato concreto, visível, palpável, pa ra não se sentir tão perdida e tão incerta. Marilu e Clara, certamente, seriam as próximas a receber o "presente" pensou. Prec isava vigiar seus quartos o tempo todo, mas isto era impossível ao mesmo tempo, pois Clara ocupava a ala norte . Quanto ao aposento de Marilu, era só ficar atenta, pois estava logo no final do corredor, do mesmo lado que o seu. Uma idéia iluminou-lhe o rosto, aliviando a fronte contraída. Se ela montasse guarda do pequeno escritório. .. Sim, aquela era uma excelente idéia, pois as portas se defrontavam; e além desta van tagem havia outra mais
importante, que era o fator surpresa. Ninguém imaginaria que, atrás daquela porta, a lguém pudesse estar em observação, naquela noite. Louise sorriu para o espelho, feliz com sua estratégia, e em seguida tratou de pôr mãos à obra, esgueirando-se silenciosamente até ao final do corred or, entrando no pequeno escritório de Suzana, completamente dominado pela escuridão. Acendeu a luminária, cola ndo o tapete junto à porta para impedir que fugisse claridade, e com o olhar de admiração à sua volta encon trou novamente a tela com as garças que pareciam fita-la. Sentou-se à escrivaninha, pronta para a noite de vigília. O tique-taque do relógio sob re o pequeno móvel a enervava, exibindo cada segundo da longa espera que teria pela frente. Abriu as gavetas procurando algo com que passar o tempo. Na primeira havia um cartão de natal, sem ser sequer destinado ; a segunda, continha papéis de carta, com o nome de Suzana impresso em dourado; e a última, embora estivesse v azia, parecia emperrada. Louise forçou-a com cuidado para não fazer ruído, porém sem resultado. Alguma coisa atra palhava abrir. Com a mão, percorreu-lhe o fundo até tocar num pequeno pacote que não conseguiu retirar, por estar preso. Sem hesitar, soltou a graveta da escrivaninha e levou-a para cima, ficando surpresa ao descobrir um fundo falso. O envelope amarelo, que antes lhe parecera um pacote, estava todo amassado, e cert amente fora guardado às pressas ali. Vacilou antes de abri-lo, e quando percebeu que o conteúdo eram carta s ficou mais indecisa ainda, pois sempre julgara-se discreta. Arriscou um relance de olhos. Eram cartas; cartas para Suzana: Sua respiração ficou rápida e, com avidez, os olhos saltaram para o final da página. Em branco... Cartas anônimas... Todas elas... Louise resolveu ler, podendo já antever o que estaria escrito nelas; e foi com ama rgura que se certificou de estar certa. As cartas falavam de Rodolfo, acusando-o de traí-la com Melissa. O coração se agitou, enquanto na cabeça mil pensamentos fluíam. A letra... Prec isava certificar-se, comparando com as outras, e também as datas... Uma idéia estranha ocorreu-lhe: bastava descobrir quem estava querendo assustá-los, mas sempre aparecia uma força maior que a levava até Suzana. Apagou a luminária e, com o envelope oculto sob a roupa, deixou silenciosamente o posto de observação, retornando ao quarto. Apanhou as outras cartas e começou um estudo detalhado de toda a situação. Eram três cartas, que somadas às de Rodolfo, que eram quatro, ficavam sete. Sete, pensou. Novamente aquele número se repetia! E ela que o achava tão simpático!... Concentrou-se nelas e certificou-se de que, apesar de as letras aparentarem ser diferentes, fatalmente teriam sido escritas pela mesma pessoa, devido ao conteúdo quase igual dos textos. A primeira, de acordo com a data, fora remetida a Rodolfo, e a próxima, a Suzana. Um toque à porta fez com que as ajuntasse todas muito rápido, ocultando-as dentro da gaveta. Outra vez ouviu bater. Louise respirou fundo, indo atender, defrontando-se com Violeta, que traz ia uma bandeja às mãos. - Vim trazer-lhe um cha. A senhorita não quis jantar... Louise olhou-a atentamente . - Chá? - perguntou. - Tudo bem. Coloque sobre o toucador, por favor.
Violeta parecia uma perfeita criada, não deixando transparecer, nem por um momento , seu fanatismo e obsessão que lhe transfiguraram o semblante no dia anterior. Capítulo Trinta e um Ver além das aparências... Este pensamento martelava a mente de Louise, que abriu todas as cartas sobre a c ama, dispostas de acordo com as datas, verificando a seqüência em que foram remetidas. A primeira foi destinada ao Sr. Ralph, no princípio de setembro; a seguinte, para Suzana, já no final deste mês. O autor teve o cuidado de deixar um espaço considerável entre uma e outra, o que dev e ter criado ansiedade, medo e insegurança nos destinatários. Era, sem dúvida, um plano esmagador, pensou Loui se, abismada com tamanha capacidade maléfica. Foi um jogo duplo e perigoso, concluiu. O Sr. Ralph recebeu a primeira carta, falando da traição de Suzana, e o efeito produ zido foi de indiferença para com ela. Em seguida, Suzana recebeu a sua primeira, que dizia também estar sendo t raída; e como já havia notado uma certa distância por parte do marido nos últimos dias, acreditou nesta pos sibilidade, ficando indiferente também. Por sua vez, o Sr. Rodolfo, diante do desligamento dela, passo u a acreditar naquela acusação. Louise sentiu que estava começando a entender toda aquela trama. Um jogo muito eng enhoso, pensou, estarrecida. Será que nem por um momento esta pessoa admitiu a possibilidade de um falar com o outro sobre as cartas? Aí, tudo poderia se esclarecer, e o plano estaria completamente arruinado. O pensamento foi mais além. Quem fez tudo aquilo devia certamente conhecê-los muito bem. Suzana, com certeza, era uma mulher discreta, e jamais faria uma cena de ciúme; e o Sr. Ralph, talvez devid o a esta maneira de ser da esposa, não teria condições de interpelá-la sobre um assunto delicado e ao mesmo tempo tão vulgar. Às vezes, ser discreta demais atrapalha, concluiu Louise, quase em reprimenda a si mesma. Verificou a última carta enviada a Suzana, em princípios de abril, e parou para pens ar: abril... foi no final daquele mês que ela morreu. Estava sofrida, angustiada, infeliz. Possivelmente, te nha chegado à conclusão de que seria melhor morrer. Suicídio? Seria Suzana capaz de matar-se? Tãlvez sim, talve z não. Poderia ter achado ser esta uma saída vitoriosa para a situação; afinal de contas, é necessário muita coragem para matarse. Uma bela saída; quase triunfal. Sem cenas, sem acusações, sem dramas. Apenas uma morte trági ca para os que ficaram. Louise aprofundava-se mais e mais no torvelinho de seus pensamentos, procurando hipóteses, desde as razoáveis às mais absurdas. Num caso como aquele, tudo poderia ser possível. Por outro lado, continuou forçando a mente: Suzana, uma mulher tão atraente, que exercia uma força incrível sobre todos, seria capaz de fugir à realidade? O suicídio era uma fuga, concluiu. Talvez o autor das cartas não te nha pensado nisso. Certamente acreditava que, massacrada por tantas acusações de que o marido, o grande
amor de sua vida, a traía, ela chegasse ao desespero e se matasse. Mas Suzana resistia, e o tempo ia passando. Então, ele se apavorou e resolveu matá-l a. Louise respirou cansada, ao chegar a esta conclusão. Sim, podia ser verdade. Era p lausível, mas muito engenhoso. Seria possível alguém conseguir planejar um assassinato a longo prazo? Lembrou-se de sua mãe, falando com admiração sobre as teorias do pai. Sim, por incrível que parecesse, ela havia aprendido um pouco com ele, através dela. Recordou-se de um ponto fundamenta l, segundo Thomas Colman, para sair-se bem naquela profissão: nunca subestimar o inimigo. Ele era ca paz de tudo. Inimigo! - pensou. Que inimigo? Onde estou querendo chegar, se nem mesmo sei se houve um assassinato? Não houve assassinato algum... Na mente, de novo bailou aquela idéia estranha: o crime perfeito! Sim, era isso me smo. Aos olhos de todos, tudo fora apenas um acidente. Um trágico acidente. Louise juntou as cartas, guardando-as cuidadosamente. Tudo isso parece uma loucu ra, pensou. Devo estar muito sugestionada para pensar assim. Estas cartas... Devo colocá-las de volta aos seus lugares. O que estou querendo provar, agindo desse jeito? Que sou filha de um detetive, e que por isso tenho m ania de investigar? Seu pensamento voltou a repetir a frase lacônica do Sr. Ralph: "Ela não se importari a se eu me casasse novamente". Alguma coisa começou a ativar-se no cérebro de Louise, que começava a despertar para o mundo do mistério e da trama. As peças, lembrou. Todas as peças têm o seu lugar no tabuleiro. Mais uma lição que o pai lhe deixara, através da mãe. Mais uma idéia r eluziu: as cartas anônimas poderiam ter sido escritas pela mesma pessoa que estava brincando de "Pap ai Noel"; embora não fosse Natal. Uma luz parecia surgir, se bem que tênue ainda, mas iria resplandecer. Louise esta va convicta disto. Tinha dois acontecimentos distantes: as "cartas" e os "presentes" ; separados por uma morte . Morte trágica, violenta. Haveria alguma ligação? Um crime! - continuou insistindo a mente. - Haveria alguém ali, naquela casa, com motivos para matar Suzana? Diante dos seus olhos, como se o pensamento estivesse se projetando numa tela, v iu desfilar cada um deles. O Sr. Rodolfo... Sim, ele tinha dois grandes motivos: amor e ciúme. Amava demais a esposa e, com as cartas, transformou-se num homem traído. E de que uma pessoa traída é capaz... O livro... - lembrou-se de repente. - O livro que lhe indicara; Rebecca, a Mulhe r inessquecível... Parecia ter uma predileção especial por ele. Suspirou, recordando-se do enredo: Rebecca, uma mulher deslumbrante, maravilhosa, que trai o marido com um primo dela. O marido, sentindo-se insultad o, mataa. Não foi um crime perfeito o da história. Afinal, atirar numa mulher que está dentro de um barco e, em seguida afundá-lo, deixa muitas marcas, apesar de o autor ter conseguido ludibriar os jurados. Sacudiu a cabeça, como se rejeitasse tal idéia e prosseguiu, mudando o pensamento pa ra Ivan. Amor não
correspondido, ciúme, rejeição... Domingos, com os olhos inseguros e cheios de medo, falava de amor e ciúme, mas par ecia ir mais além. Talvez obsessão. Afinal, Suzana fora o seu primeiro amor. O pensamento continuou e encontrou Melissa. Quantos motivos tinha! paixão, ciúme e t alvez até inveja. Mas seria ela capaz? Teria coragem para matar Suzana? Aquele crime parecialhe um cri me de laboratório, programado a longo prazo. Seria Melissa tão astuciosa? Louise fechou os olhos como se sentisse as idéias queimarlhe o cérebro.Tudo aquilo poderia ser apenas fruto de sua imaginação, mas... O pensamento insistiu, e o rosto de Karla surgiu em sua mente, contraído, confuso, cheio de sombras e pesadelos. Teria ela motivos para escrever aquelas cartas, e assassinar Suzana? Parecia tão tonta, tão tola, cheia de medo. Medo de seus próprios pesadelos. Medo ou remorsos? O que ela realmente se ntia por Suzana? Uma vez confessou odiá-la. Ódio e inveja... Certamente Karla pensou que, agindo daquela forma, destruiria Suzana; e quem odeia só quer ver ruínas... Louise olhou para as cartas com melancolia. Era preciso descobrir. Era preciso d escobrir, e sua mente se agitava diante daqueles papéis misteriosos, soturnos. Mas suas células cinzentas prosseguira m, ávidas da verdade, e o rosto duro de Clara surgiu. Clara!... Uma mulher como outra qualquer, que ficou no poder. Poder! Sim, agora ela se tornara a anfitriã da casa, quem dava as ordens, e parecia sentir-se muito bem naquele papel... Inveja . Ela invejava Suzana. Pelo seu dinheiro, sua sorte, sua beleza. Inveja e ambição. Sem dúvida, dois sentimentos mesqui nhos, que várias vezes levaram o ser humano à própria destruição. E Violeta? Uma mulher que passava despercebida a todos, mas que poderia ter niss o o seu trunfo. Não, talvez não fosse assim. Violeta era apenas uma fanática. Não tinha por que suspeitar-se dela. Estava ali, brigando por seu lugar na casa, esperando que a "Senhora" - a quem devotava toda a confiança, admiração e serventia - revivesse, e tudo voltasse a ser como antes. Violeta se projetava em Suzana, e precisava dela viva para sen tir-se realizada e feliz. Seis suspeitos, concluiu. Todos lesados pela felicidade de Suzana. Qual deles teria coragem para matá-la? Capítulo Trinta e Dois Marilu estava agitada, revirando-se na cama, sem conseguir dormir. O vento sopra va forte lá fora, provocando ruídos que ela não conseguia identificar, deixando-a sobressaltada . O carrilhão já havia anunciado duas horas da manhã, mas Marilu sentia-se agoniada, ans iosa para que o dia clareasse logo. Ouviu passos que avançavam pelo corredor e seus olhos se estatelaram fitando a porta. A respiração alterou-se, sentiu-se sufocada com o ba ter acelerado do coração. A maçaneta girou. Marilu encolheu-se na cama, sem conseguir sequer pensar. - Ainda acordada? - perguntou-lhe Louise, colocando a cabeça para dentro do quarto iluminado. Marilu fechou os olhos, respirando aliviada.
- Que bom ver você! - exclamou num sopro de voz, começando a chorar. - Que é isso? - falou-lhe a amiga. - Não é hora de chorar e sim de dormir. Marilu abraçou-se ao colo da amiga, como se pedisse proteção. - Eu tenho medo, Louise. Muito medo - disse chorando. - Tudo está tão estranho, tão mi sterioso. Nada mais é como antes. Não vou conseguir morar aqui novamente. - Ora, querida! Você nem parece filha de Suzana. Já ouvi dizer que ela tinha uma força sem igual. Vamos, reaja! Marilu levantou o rosto molhado, encarando a amiga. - Será? - perguntou indecisa. - Mamãe teria mesmo esta força que todos dizem? - É claro que sim, e você herdou isto dela. O que a está deixando insegura, assim, é est a brincadeira boba que alguém está fazendo. - Estou com medo, Louise - repetiu, abraçando forte a amiga. - Muito, muito medo. Quando penso que posso abrir os olhos e encontrar algum objeto de mamãe aqui, manchado de sangue, sinto v ontade de abandonar tudo. Louise fez expressão de descoberta. Certamente, suas células cinzentas não iriam se aq uietar nunca mais. - Você ainda não pensou na possibilidade de ser esta a intenção de quem está fazendo tudo isto? Marilu encarou-a em silêncio. - Mas quem será? E por quê? Louise inclinou a cabeça num gesto de dúvida. - Só ficando aqui é que poderemos encontrar respostas para tantas perguntas. - É uma loucura - voltou a falar Marilu, trêmula de medo e indignação. - A camisola de m amãe estava comigo. Encontreia por acaso, no quarto de despejos, ao procurar uma boneca de pano que fiz para ela, quando era ainda uma menina de colégio. Foi sem querer. Nem me lembrava dela, e quando a vi até assus tei, pois pensava que tivesse sido destruída. Como não encontrei o que procurava, resolvi ficar com a cami sola; eu queria ter comigo alguma coisa de mamãe. Louise franziu a testa numa expressão de dúvida. - Então a camisola estava com você? - perguntou, tentando formar uma linha de pensam ento, totalmente nova. - Sim, estava. Alguém tirou-a do meu quarto para assustar papai. - Quem sabia disto? - arriscou Louise. - Melissa - respondeu espontânea. - Apenas ela sabia. - Melissa! - exclamou a filha de Colman, tentando coordenar as idéias que fervilhavam. Marilu ficou preocupada com o silêncio que se fez. - Você não está pensando ser ela, está? - Por que não? - perguntou-lhe Louise. - Ela não seria capaz disso - falou angustiada. Melissa ama papai, gosta de mim... Não, não. Ela não seria capaz. Não posso sequer pensa r numa coisa dessas. Marilu olhou para a porta, com olhar de desalento e lembrou-se do medo que a inv adia. - A qualquer hora esta porta vai se abrir, e vão deixar alguma coisa que foi de ma mãe para mim. Não sei se vou agüentar. - Pense em sua mãe, na força que ela tinha. Isto vai ajudála. - Mamãe... - suspirou. - Às vezes sinto remorsos... Não fui uma boa filha. Louise deixou os olhos expressarem interrogação. - Como fui tola! - sorriu com tristeza. - Uma pobre adolescente tola. Cheguei a pensar que amava Ivan, e sentia ciúmes só de lembrar que eles haviam sido noivos no passado. Dezesseis anos... Uma i dade bonita, mas cheia de absurdos. Imagine que eu achava Ivan o homem mais bonito do mundo e passava hora s imaginando ele dizer
que também me amava, que queria se casar comigo. Marilu tinha os olhos rasos de pranto. - Nos fíns de semana, quando ele aparecia, dispensavame um mundo de carinho e atenção, e meu coração batia rápido e mais forte só de ouvir-lhe a voz. Que tolice, meu Deus! Sequer imaginava mi nha paixão, e eu acreditava ser correspondida. O tempo foi passando e Ivan continuava o mesmo. Ca rinhoso e atencioso, nada mais. Nunca me dizia o que eu tanto esperava ouvir. Uma angústia começou a sufocar-m e, pois no meu inconsciente algo dizia que ele gostava de mim, apenas por ser a filha de Suzana , a mulher de sua vida, para quem só tinha olhos. Marilu fez silêncio, enquanto lágrimas corriam quentes pela sua face. - A partir desse dia, comecei a afastar-me deles. Alguma coisa dentro de mim acu sava mamãe de estar roubando-me o homem que amava. Era algo muito distante, no inconsciente talvez, mas que provocou sérias mudanças em meu comportamento. Mamãe, notando meu afastamento, procurou descobrir o que se passava comigo, tentando romper-me o silêncio. Eu, porém, passava longas horas no quarto, vi vendo enclausurada no meu pequeno mundo, onde apenas "eu" era o centro, e as coisas aconteciam à "minha" maneira. Marilu passou as mãos pelos cabelos. - Lembro-me que, por fim, ela chegou até a implorar-me para dizer-lhe o que se pas sava, e aquilo, até certo ponto, me dava prazer. Muitas vezes, tinha vontade de gritar, jogar em seu rosto toda a verdade, mas ao mesmo tempo sentia uma piedade imensa, ao vê-la tão infeliz, querendo ajudar-me, tentando compreender o que se passava comigo. Aí eu pensava um pouco mais, e chegava à conclusão de que ela não tinha culpa se Ivan a amava e não a mim, e uma vontade enorme de abraçá-la me envolvia. Fez uma pausa, como se procurasse uma melhor forma de explicar-se. - Era uma luta tipo bem e mal, e o pior é que o mal saiu vitorioso. Não voltei a ser o que era com mamãe; e assim eu a perdi. Perdi para sempre. Marilu, depois de mais calma, adormeceu. Louise desligou a luz e saiu de mansinh o para não perturbá-la. Capitulo Trinta e três U ma fumaça inundava o quarto de Marilu, sem contudo sufocá-la. Parecia uma neblina densa, mas não era fria. Sentou-se no leito, com medo de ligar o abajur e descobrir que não estava só. A fumaça circulava em constante movimento, e Marilu teve então uma certeza: alguém que ria matá-la. Sim, havia alguém ali, em seu quarto, que pretendia sufocá-la, envenenando-a com aquele gás . Ela ia morrer. Pensou em reagir, gritar, correr dali, mas em seguida um desânimo dominou-a. Não iria conse guir. Nem adiantava tentar. Não valia a pena. Respirou fundo, procurando perceber o cheiro do gás, mas, ao invés disso, sentiu o p erfume suave da mãe. Um criminoso inteligente, pensou. Sabia matar provocando prazer à vítima. Vou morrer! Vou para junto de mamãe, pensava já com o corpo exangue, caído em abandono sobre a cama. Como a morte era agradável! Parecia leve, calma, em paz: Marilu sorriu feliz: - Vou para junto de mamãe, repetia para si mesma. Preciso enc
ontrá-la para pedir-lhe perdão. Mamãe... Mamãe... Perdoa-me! Sentiu o corpo flutuando, e viu diante de si um corredor comprido, envolto na névo a perfumada, que lhe dava sempre uma estranha sensação de prazer. Seus olhos procuravam avidamente por uma luz , uma pequena claridade que fosse, incertos com tamanha escuridão. - Mamãe, ajude-me - pedia angustiada. - Venha ajudar-me. Venha encontrar-se comigo. Estou sentindo frio e medo. Uma pequena luz despontou ao longe, como o brilho incerto de uma estrela distante. - Mamãe, é você? Mamãe, você veio!? A luz pareceu crescer, como se se aproximasse dela, e derrepente sumiu, deixando-a outra vez na escurídão. - Não, mamãe... Não vá. Vim para ficar com você. Não me deixe - dizia chorando. - Mamãe, por favor, ajude-me. Não me deixe sozinha aqui. Tenho tanto medo... De novo a luz apareceu, tênue, e Marilu deixou um sorriso quebrar as lágrimas que desciam pelo rosto. Não podia perder um minuto sequer. Precisava andar rápido, correr, correr muito para alcançá-la. Sua mãe, uma estrela. Tão brilhante, tão incerta, tão distante. Era necessário andar depressa, pois precisava de ver seu rosto lindo, ouvir sua voz meiga e também pedir-lhe perdão. Seria preciso isso? Ela o faria, embora soubesse que sua mãe não lhe guardava rancor. Suzana a amava muito, estava certa disto. - Mamãe, que falta você me faz! Se soubesse que seria assim, que nós duas ficaríamos juntas, já teria vindo bem antes ao seu encontro. Viria junto com você - continuava falando, temendo que a luz se apagasse novamente, e desta vez para sempre. Marilu caminhava tropegamente, com o corpo semiflutuante, mas não sentia aproximar-se da luz. Isto já a entristecia, mas era preciso continuar, precisava conseguir. - Mamãe?!... Como faço para chegar até você? - perguntou quase chorando. - Você me parece tão distante, tão silenciosa... Rompeu-se em pranto. - É isso mesmo. Você não me quer, não gosta mais de mim. Os olhos dela se embaçaram e não perceberam que a luz se sumira novamente. Quando Marilu conseguiu ver, desesperou-se mais ainda, em um pranto descontrolado. - Perdoe-me, mãezinha. Não se vá. Volte, por favor. Preciso de você. Tenho tanto medo. Está tudo escuro aqui. Com ansiedade os olhos dela esperavam novamente pela pequenina luz, que não voltava nunca a brilhar. - Eu a perdi novamente, mamãe. Morrer! Pensei que seria bom, que ficaríamos juntas, mas as coisas não são assim. Vou ficar só, cheia de medo e frio, vagando por esta escuridão. Marilu recordou-se do poema da mãe. Realmente, Suzana corria livre pelo infinito, como sonhara um dia: "livre e leve". Seria impossível alcançá-la. As estrelas ficam tão altas!... Será que faria dia naquele lugar? Seus olhos já doíam com tamanha escuridão e tinha a mente confusa, cheia de pensamentos que se misturavam. Sempre sentira medo da morte, porque sabia que iria de encontro ao desconhecido, e agora tinha mais uma certeza: estaria sempre só. Ninguém poderia ajudá-la. Nem ao menos sua mãe. Pensou no pai, imaginando-o agora mais sozinho ainda,
e sentiu uma forte dor, que lhe comprimiu o peito. - Dor! ... Pensei que após a morte não a sentíssemos mais. Papai, meu paizinho querido. Sequer pude despedir-me de você. O frio foi se transformando numa sensação agradável de calor. Marilu abriu os olhos e viu o rosto da mãe, bem diante do seu, sorrindo-lhe. Abriu a boca para chamá-la, mas Suzana cobriu-lhe os lábios delicadamente com os dedos, enquanto secava-lhe o pranto. - Vamos? - disse-lhe a mãe com um sorriso, estendendo-lhe a mão. - Você não me deixou?! Você veio me buscar! - gritou a filha abraçando-a com força. Suzana envolveu-a num longo e afetuoso abraço. Abraço de mãe. Marilu sentiu que toda sua amargura desaparecia-lhe da alma, dando lugar a uma grande alegria. Doravante estava certa disto, caminhariam lado a lado, e certamente juntas correriam pelo espaço afora, brincando pelo infinito. Capítulo Trinta e quatro Louise abriu os olhos para a manhã e fez uma careta de desânimo, pois viu que o céu pe rmanecia encoberto, com a chuvinha manhosa que insistia em cair. Aconchegou-se mais às cobertas, num g esto de protesto. Acho que o sol morreu, pensou de mau humor, deitando o olhar para os últimos galho s de um pinheiro que se agitava suave, alcançando a janela. Num bocejo preguiçoso sentou-se na cama, procurando ouvir algum movimento na casa, mas apenas conseguiu captar o silêncio. - Tüdo bem! Não devo estar atrasada - comentou consigo mesma. Os olhos pousaram na gaveta do toucador, preocupados com aquele enigma. Louise r etomou as cartas misteriosas, e ficou por longo tempo folheando-as, como se tentasse familiarizar se com elas, na esperança de conseguir um elo, uma luz. Ela teria que ler nas entrelinhas. Um pensamento, que lutava para se formar, finalmente conseguiu vencer a resistênci a e floresceu. - Melissa! - disse em voz alta, duvidando da própria voz. - É a única pessoa que poder ia tirar um proveito maior com a morte de Suzana, e parecia também ser a única que sabia da camisola no quarto de Marilu. Era tudo tão evidente, que não gostaria de admitir. Uma pergunta a mais surgiu: por que ela estaria assombrando todos? Podia ser par a evitar que o Sr. Ralph voltasse a morar naquela casa, imaginando talvez que as lembranças de Suzana pudes sem afastá-lo dela novamente. Seria tão tola? Não, não poderia ser Melissa. Tal idéia poderia ter sentido antes de a c amisola aparecer; mas agora... Louise sentiu o pensamento disparar. Alguém estaria querendo incriminar Melissa? Mas quem? E por quê? "Ver além das aparências... ". Uma lição perigosa demais para quem estava apenas começando ... A mente fervilhante deteve-se num pequeno detalhe, voltando há alguns dias atrás. Não, não podia ser Melissa. Ela também havia se ausentado quando Domingos e Ivan receberam seus "presentes" : Era, inegavelmente, um ótimo àlibi. Incontestável.
Os olhos diminuíram e a boca deixou escapar um nome: - Marilu! - Envolveu o rosto com as mãos. - Oh, meu Deus, não pode ser verdade! Olhou longe, apática. Não poderia ser sentimental. Apenas a defensora da verdade. Aq uiesceu. - Pode ser. Meu Deus, que loucura! Recordou-se da conversa que tivera durante a madrugada com a amiga, e pensou inc rédula. Marilu tinha ciúmes de Ivan, que gostava de sua mãe; portanto, ela poderia ser, incl usive, a autora das cartas, acreditando que o pai o expulsasse dali, separando-o definitivamente de Suzana. Louise sentiu a cabeça girar. Mas por que as cartas para sua mãe, falando do pai? E por que voltar àquela casa? Por que estaria fazendo aquela brincadeira louca? Para criar uma imagem negativa de Suzana, atribuindo-lhe tudo aquilo? Recostou-se no travesseiro, exausta, deixando os pensamentos escaparem, sem cons eguir contê-los. Sim, Marilu poderia ser a autora de tudo aquilo. Ela não se ausentara da casa naqu ela tarde, e também estava com a camisola... Meu Deus! Se isto for verdade, Marilu enlouqueceu. Lembrou-se, em seguida, da maneira despreocupada como mencionara o nome de Melis sa, quando lhe perguntou sobre quem mais sabia que a camisola estava com ela. Sim, uma atriz. P erfeita, esplêndida. O raciocínio de Louise culminou com uma oportuna lembrança: ela ainda não havia recebi do a "visita". Sacudiu com revolta a cabeça, tentando protestar, ao apalpar a suspeita de que Suz ana havia sido assassinada. - Não, não. Ela não teria coragem de assassinar a própria mãe. Só posso estar ficando louca. Voltou às cartas, procurando outra hipótese, mais forte do que aquela. Em manuscrito! Todas! Ingenuidade ou astúcia? Ingenuidade. Marilu tinha apenas dez esseis anos naquela época. Mas poderia também ser obra de uma pessoa astuta e, neste caso, não conseguiria imaginá-la agindo astuciosamente naquela idade. Tentou esquecer a amiga, repassando os outros suspeitos. - Violeta! - simplória de mais. Não seria capaz de agir com tanta inteligência, se bem que ela havia regressado mais cedo da cidade naquel e dia. Isto era uma lembrança interessante, que não podia ser desconsiderada. Havia também o ferimento que sangrava sempre, mas sangue não era o prohlema. A cabeça de Louise parecia pequena para tantos pensamentos. Violeta!... Ela sabe dos pertences de Suzana... Aquele dia, ao levá-la até ao quarto de despejos, poderia apenas estar preparando seu álibi. Mas por que Violeta estaria agindo assim? Havia alguma ligação com as cartas e com o possível assassinato? E teria mesmo havido um assassinato? Louise deixou-se tombar exausta sobre o leito. O fanatismo de Violeta poderia ser o motivo de tudo, mas ela seria capaz? Fechou os olhos, recordando: "Não podemos menosprezar o inimigo", e esta lembrança t rouxe-lhe novamente a preocupação maior. - Inimigo! Ele existe mesmo? Era preciso pensar, pensar muito, sem desprezar qualquer idéia, por mais absurda q ue fosse. O inimigo existia, mas não era dela e sim de Suzana. A primeira prova de sua existência eram as cartas anônimas, escritas há mais de quatro anos; e a segunda, eram
os "presentes desagradáveis". Bem, o inimigo existe, ponderou. Poderia ser qualquer um deles. Agora percebia que cada qual, ali, tinha um motivo para escrever as carta s, assassinar Suzana e querer afastar da casa os demais. Um motivo inadmissível para as pessoas sensatas e equil ibradas, mas um motivo de honra para uma mente doentia. Foi até à gaveta e apanhou a lista que havia feito, alterando-a. Suspeitos: 1. Ivan 2. Domingos 3. Rodolfo 4. Karla 5. Melissa 6. Clara 7. Violeta 8. Marilu As coisas pareciam que, ao invés de se esclarecerem, mais se complicavam. Louise s entiu medo. Ela estava indo por uma estrada perigosa, e o que era pior: estava só. Só e inexperiente. Foi arrancada subitamente de seus pensamentos, ouvindo gritos desesperados. Leva ntou-se, correndo para o corredor. Os gritos vinham do quarto de Marilu. Capítulo Trinta e cinco O rosto de Louise se enrubesceu, ao entrar no quarto de Marilu. Sentiu uma profu nda piedade de si mesma, lembrando-se do pensamento absurdo que tivera momentos antes. Vendo a amiga ali, sentada no chão, debruçada sobre o leito, chorando convulsivament e, era impossível admitir a idéia estúpida que tivera há pouco. Marilu estava sofrendo. Sofrendo muito. Novamente a viu como um filhotinho indef eso, cuja mãe tivesse sido caçada, deixando-o à mercê dos perigos da selva. Amor! Um profundo amor apossou-se do coração de Louise, como se de repente se tornas se mãe. Aproximou-se dela, sentando-se ao seu lado, abraçando-a com ternura. Um a um, todo s foram chegando, e parando à porta, interrogativos, olhando com ansiedade para as duas. Marilu continuava em pranto, transtornada, infeliz. Karla aproximou-se agitada, tentando descobrir-lhe o rosto, e histérica gritava, pedindo para dizer o que havia acontecido. Louise fez-lhe um sinal, pedindo silêncio, e que a deixasse. Melissa puxou Karla p ara trás, reconhecendo a atitude sensata da filha de Colman. Naquele momento, era necessário esperar. Marilu foi se acalmando lentamente, parando por fim de chorar. Apenas um e outro soluço, entrecortados por um suspiro, escapavam-lhe do peito magoado. Ergueu os olhos, fitando todos que estavam ali, esperando que ela falasse. Senti u que lhe cobravam isto. O rosto, mergulhado em lágrimas, era apenas a conseqüência de algo terrível que lhe havia ocorrido e que todos ansiavam por saber. Baixou os olhos até ao colo e mergulhou nele a mão. Quando voltou, trazia uma boneca de pano, com manchas de sangue pelo pescoço. O Sr. Ralph adiantou-se, apanhando-a e abismado olhandoa durante alguns segundos . - Esta brincadeira maluca está indo longe demais - disse num grito de revolta, jog ando sobre a cama a boneca e deixando o aposento em seguida. Melissa apanhou-a e ficou olhando-a como se o seu pensamento estivesse longe dal i. - É uma loucura, uma loucura! Meu Deus! - exclamou com assombro. - Suzana quer enl ouquecer a todos nós.
Suas palavras perderam-se no ar, pois todos se voltaram para Karla, que caíra desmaiada, devido à forte tensão. Ivan carregou-a nos braços, leva ndo-a para o quarto dela, ajudado por Clara, que tentava reanimá-la. Louise apanhou das mãos de Melissa a boneca e deixou o pensamento correr. Ali esta va o que Marilu disse-lhe procurar no quarto de despejos. Toda aquela história teria sido apenas uma represe ntação? E agora, chorando daquela maneira, seria também mais uma parte de seus planos? Encarou a amiga, que continuava acuada junto à cama, chorando baixinho. Era difícil de aceitar aquela hipótese, vendo-a assim, tão sofrida. Alguma coisa precisava ser feita para cortar as asas d aquele inimigo sem escrúpulos, pensou decidida. Alguma coisa real, que o intimidasse, pelo menos um pouco. Não po deria deixar que tivesse todo o espaço que quisesse. Já era hora de começar a encostá-lo à parede. E se esse inimigo fosse Marilu? O que fazer? - pensou com preocupação, olhando-a com padecida. Não importava agora o que fazer com o inimigo. Isto ficava para depois. O que real mente devia ser feito, era descobrilo e logo. Ivan voltou e Marilu fitou-o com amargura. - Papai... - falou. - Onde está papai? - Voltou-se para Melissa. - Por favor, não o deixe sozinho. Melissa sorriu-lhe breve, deixando o aposento em seguida, determinada a fazer companhia a Rodolfo. Domingos, que até então permanecera em silêncio, tomou a boneca de Louise, olhando-a, perdido nos pensamentos. Sentou-se numa poltrona que ficava num canto, ajeitando-a no colo. - Tudo isto está parecendo uma história do além. Marilu encarou-o com severidade, mas ele manteve o pensamento. - É... Dessas histórias que a gente vê em filme de terror. Só que, no final, tudo que no princípio foi atribuído aos mortos não passa de ser um mortal inescrupuloso o autor de toda a trama. - Não me conformo - falou Ivan. - Não me conformo mesmo. - Fez um gesto rápido com a mão, demonstrando indignação. - Não posso admitir a idéia de que um de nós esteja fazendo isto. É horrível. - Sensato seu raciocínio - observou Domingos. - Também penso desta maneira. Qualquer um de nós seria incapaz de fazer isto; mas digamos que estejamos enganados. Ivan olhou-o incrédulo. - É difícil aceitar isto. Você suspeita de alguém? - Cheguei a suspeitar de você... Ivan assombrou-se. Domingos prosseguiu. - Depois que foi "presenteado" com o estilete de Suzana, vi que estava enganado. Ivan tranqüilizou-se. - Se analisarmos bem os acontecimentos e formos eliminando os suspeitos, de acordo com os fatos, poderemos chegar ao culpado. Estão de acordo? Os três fitavam Domingos com atenção, aguardando que continuasse. - Naquela tarde, quase todos se ausentaram. Ficamos aqui apenas nós quatro: eu, você, Marilu e Louise. Pois bem; naquele dia, nós dois fomos "contemplados" pelo nosso "amigo secreto" e hoje, Marilu. Sobrou Louise.
Olharam-na. Ivan e Marilu a fitaram perplexos. A filha de Colman levantou-se e caminhou até ao centro do quarto, encarando cada um deles. Depois fitou Domingos com simpatia. - E por que faria isto? - perguntou-lhe serena. - Para brincar de detetive. Ela iniciou um sorriso, que logo apagou. - Sim, Srta. Louise. Nós sabemos que gosta disso, não negue. Desta vez ela o encarou com severidade. - Gosto - disse melancólica. - Mas não há lógica no seu raciocínio, Sr. Domingos. Como posso brincar de detetive, sendo a culpada? O prazer desta brincadeira, a meu ver, está na descoberta triunfal; e neste caso, isto não seria possível. Marilu sorriu. Ivan também. Domingos sentiu-se ridículo por dizer tamanho disparate. Não era tão esperto quanto a filha de Colman. Ela lhe sorriu já menos dura: - Quem está fazendo tudo isso é cauteloso demais e já o provou várias vezes. Seguramente se "presenteou", para desviar as atenções, passando também por vítima. Domingos ficou boquiaberto com a idéia tão brilhante. Ivan e Marilu mais uma vez riram, só que, desta vez, do assombro do amigo. Louise concluiu, deixando-os no ar. - Para mim, esta história é antiga. Deve ter começado há mais de cinco anos atrás. Capítulo Trinta e seis A maçaneta girou lentamente. Melissa olhou em direção á porta, que se abriu devagar, sur gindo Louise. - Como está ela? - perguntou, entrando e fechando a porta com cuidado. - Tomou um calmante e agora está dormindo. E Marilu? - Dormindo também. - Isto é bom. Pobrezinha! Está tão confusa! - Todos nós estamos confusos, salvo, é evidente, quem está fazendo tudo isto. - Acredita mesmo ser algum de nós? - Sim. Melissa baixou a cabeça em silêncio. - Perdoe-me, mas não acho correto aceitar tudo isso, como se fosse obra de uma mor ta. É cômodo demais. - E por que não? Só porque está morta? Pois é bom que comece a pensar com mais cuidado s obre o assunto, Louise. Aos mortos são dados poderes que nós não usufruímos. Você quer um culpado, mas um culpado visível, que possa ser visto e tocado. Você não consegue suster-se sobre o invisível, o inatingív el. - Não quero discutir sobre o ponto de vista teológico ou filosófico, Melissa. Agindo a ssim, não estou querendo duvidar ou mesmo zombar dos seus dogmas de fé; mas, por outro lado, não posso admiti r que Suzana seja acusada de uma estupidez dessa. - Também não pretendo discutir. Acho melhor aguardarmos os acontecimentos. - Muito cômoda esta sua decisão - disse Louise de caso pensado. - O que está querendo dizer? - Exatamente o que você entendeu. Karla gemeu, agitando-se no leito. Melissa procurou acalmá-la, mas ela continuou a debater-se, tentando sentar-se, queixando dores na cabeça. - Fique quieta, querida: Relaxe e tente dormir um pouco. Vai lhe fazer bem - fal
ou Melissa com carinho. Louise olhou-a com desconfiança.. Por que ela acusava Suzana de ser a autora de tu do aquilo? Qual seria sua real intenção? Acreditava mesmo, Melissa, nos poderes sobrenaturais? Não estaria ela a penas usando tal teoria, a fim de macular a memória de Suzana diante de Rodolfo e Marilu, forçando-os a não cul tuá-la mais? Havia lógica naquele raciocínio e novamente viu fluir em sua mente uma nítida convicção. Melissa! Podia ser ela a autora de tudo aquilo. Quem mais teria motivos tão fortes como os dela? Ciúme, inveja, ódio. ódio! Ele devia ser tão antigo! Desde o dia em que Rodolfo rompera com ela para casar-se com Suzana. Se Melissa escrevera aquelas cartas anôn imas, poderia também ter assassinado Suzana, e, agora, tinha que fazer algo para afastar Rodolfo daqu ela casa. Todo o seu sacrifício seria em vão, se conseguisse casar-se com ele e tivesse que viver ali. Isto seria demais para ela. Um plano perfeito, concordou Louise em pensamento, contemplando-a, a cuidar da a miga, que continuava agitando-se. - A morte de Suzana acabou com a vida de Karla - falou Melissa olhando para o rosto contraído da enferma. - Ela presenciou o acidente e não resistiu á cena, desmaiando. Na queda, bateu com a cabeça, o que lhe causa estas terríveis dores; acr edito que tenha sofrido também uma amnésia parcial. Karla não se lembra de nada, ou melhor, lembra-se, mas pen sa ter sido um mero pesadelo. - Fez silêncio por instantes e concluiu: - Deve estar sendo horrível, para ela, ficar nesta casa. - Como sabe que Karla presenciou a morte de Suzana, se ela mesma ignora o fato? Alguém mais viu? - indagou Louise maquinando. Sim, porque se Ivan havia lhe contado a verdade, e Melissa lhe fosse sincera, já então conhecia a resposta. - Nós a encontramos caída no hall, logo após ouvirmos o barulho da Vênus se espatifando no salão. - No hall!... - exclamou, representando surpresa. Derrepente, resolveu saber um pouco mais. - Próximo à escada? - Não. Ela estava junto à cortina da ala norte - respondeu com certa displicência. - Ala norte? O quarto dela ficava do outro lado? - insistiu Louise, escondendo ansiedade. - Não. O quarto de Karla é o mesmo de hoje - respondeu Melissa em tom aborrecido. - Todos nós permanecemos no mesmo lugar de sempre, com exceção de Rodolfo, que agora se mudou para a ala norte. - Encarou Louise com hostilidade. - Mas por que tantas perguntas? - Não há motivo especial para elas. Apenas perguntei por curiosidade. É interessante, mas, de acordo com o que acaba de me dizer, os costumes não foram alterados. - Não. Nada mudou. E não vejo nada de mais nisso. - É evidente - respondeu Louise sorrindo. - Você está querendo brincar de detetive? - perguntou irônica. - Vejo que está predisposta a criticar-me e confesso que isto me deixa magoada. Faz-me sentir uma intrusa. Melissa levantou-se, mudando de expressão. - Desculpe-me. Não quis ofendê-la. Estou muito transtornada com tudo e, por isso, faço papel de uma pessoa insensata. Por favor, não me leve a mal. - Tomou-lhe as mãos com carinho. - Vim até aqui cheia de esperança e agora... Louise ficou indecisa. Seria outra representação? Ainda há
pouco ela estava agressiva e de repente... Estaria mudando de tática? Seria melhor não demonstrar desconfiança. Esboçou-lhe um sorriso. - Não perca as esperanças. O sol voltará a brilhar, vai ver. - O sol... - disse, aproximando-se da janela e contemplando o jardim com tristeza. - Uma semana sem vê-lo. Sinto-me sufocada. - Ele vai voltar, esteja certa. Para a alegria de todos nós. Louise saiu, deixando Melissa com um sorriso de esperança tingindo a palidez de seu rosto. Atravessou com passos rápidos o corredor e alcançou o hall, detendo-se diante do sorriso de Suzana. Em seguida, seus olhos pousaram sobre a cortina da ala norte e, neste momento, uma nova pergunta veio à baila. Uma pergunta que, por hora, também ficaria sem resposta. Por que Karla foi encontrada caída do outro lado do hall? Sabia que ela havia seguido Suzana, portanto, ambas saíram da ala sul. Certamente, continuou Louise no seu raciocínio, ao vê-la rolar pelas escadas, pensou chamar alguém, e neste caso, evidentemente, seria Rodolfo. Sendo assim, Karla teria então de voltar, ao invés de cruzar o hall e seguir em direção à ala norte. Outra vez se perguntou: - O que Karla teria ido fazer do outro lado? Com avidez, a vista percorreu a bonita cortina vermelha que caía, cobrindo os vitrais, sem conseguir sequer perceber uma luz. Capítulo Trinta e sete Era preciso sair, respirar um ar puro, pensar muito. Louise, após o almoço, aproveit ou a estiagem, embora o céu permanecesse nublado, e saiu deslizando pelo asfalto molhado. O frio cortante não penetrava no carro, que lhe oferecia um conforto aconchegante, com uma música suave. Lá de dentro, contemplava a s árvores em traje de inverno, com folhas secas se perdendo pelo chão. Uma paisagem melancólica, pensou, pois falta brilho. Tão melancólica quanto seu estádo d e alma. Agora, mais do que nunca, admirava o pai. Ele sempre se emaranhava por caminhos completamente turvos, à procura da verdade, certo de no final encontrá-la. A verdade, pensou. Dizem que ela possui mais de uma face. Onde buscá-la e como rec onhecê-la? Louise gemeu: - Papai... Se ao menos você estivesse aqui para ajudarme... Sinto-me completamente perdida. Para mim, todos podem ser culpados e não sei de onde tirei a idéia de que Suzana foi assassinada. Ja mais imaginei ter tais pensamentos. Deixou a mente trabalhar, ativando toda sua capacidade mental, resumindo os fato s em três itens: 1. - Havia cartas anônimas que pareciam ser o princípio de toda a tragédia; 2. - Havia uma morte acidental, mas que poderia ter sido perfeitamente um assassinato; 3 . - Havia um louco fazendo brincadeiras funestas, quatro anos após aquela morte. Conclusões - O autor das cartas anônimas poderia ser o autor do crime e também o louco que agia, aterrorizando a todos. Qual seria a sua primeira intenção, quando começou a escrever a s cartas? Separar Suzana de Rodolfo, ou vice versa? Então poderia ser um apaixonado dela ou deles, que, ven
do o tempo passar e nada acontecer, se viu obrigado a alterar seus planos e assassinou Suzana, de maneira perfeita, para que todos pensassem ser um acidente. Chegando a este ponto, o raciocínio de Louise se alterou: Se Suzana foi assassinad a, as cartas só poderiam ter sido redigidas por alguém que estivesse interessado nele, no Sr. Ralph. Uma mulher , astuta. Melissa foi a primeira imagem que surgiu diante dos olhos dela, mas em seguida, outras idéias surgiram. Rodolfo poderia ter assassinado Suzana, num acesso de ciúme, já sufocado pelas carta s que falavam de sua traição. Por último, muito a contragosto, admitindo ser uma hipótese absurda mas nem por isso improvável, voltou á idéia de ser Marilu a autora de tudo, mo tivada por um ciume doentio, que emanava de uma paixão de adolescente. O pensamento de Louise corria veloz e outras hipóteses foram despontando: Marilu p oderia ter assassinado Suzana por ciúme, sem ter nada a ver com as cartas, que poderiam ter sido escritas por outra pessoa. Neste caso, voltavam a ser suspeitos os apaixonados de Suzana, ou seja: Ivan, o ex-noivo inc onsolável, Domingos e até mesmo Rodolfo, além de Melissa, eterna apaixonada do Sr. Ralph. Ná mente da filha de Colman, uma nova cena se desenhou: Marilu, vagando pelo corre dor durante a madrugada, cheia de mágoa. Suzana vai ao seu encontro, alcançando-a no hall, a contemplar o ret rato. O que Marilu poderia estar pensando? Era impossível saber, mas, por outro lado, ti nha absoluta certeza do que poderia estar sentindo. Talvez amor, admiração, e o mais provável: inveja, regada de c iúme e ódio. A cena continua. Marilu sente a presença da mãe e viralhe as costas. Suzana, aflita, vai até a ela, imensamente sofrida, e roga-lhe que volte a ser como antes. No alto da escada, Marilu ignora aquele apelo, olhando indiferente para o salão me rgulhado no negrume da noite, quebrado de quando em vez pela luz azulada dos relâmpagos, que atravessa as portas de vidro, invadindo a casa. Suzana insiste, chorando amargurada e tenta quebrar a frieza da filha com um abr aço. Seria tudo tão diferente, se Marilu cedesse, ao sentir o calor daquele carinho sin cero e das lágrimas da mãe, porém ela permanece impassível, para em seguida, num movimento rápido, repeli-la. Louise estacionou o carro no acostamento da estrada deserta, cobrindo o rosto co m as mãos, tentando apagar a cena horrível que se lhe descortinou na mente: Suzana se desequilibrando e rolando escada abaixo. Marilu não teve culpa, pensou. Não teve, não teve. Sentiu a face queimar com as lágrimas que lhe saltaram dos olhos. Foi um acidente. Um trágico e horrível acidente, continuou insistindo consigo mesma, tentando silenciar a certeza de que, mesmo que Suzana não tivesse caído das escadas naquele momento, cert amente ela se sentiria morta para sempre, com o gesto brusco de rejeição que a filha tão amada lhe fizera. As idéias giravam na cabeça de Louise, como num torvelinho louco, confundindo-a. Tin ha impressão de que sua mente não iria parar nunca, vendo vir à tona uma nova possibilidade, que incriminava
Marilu de ser a culpada da morte da mãe. Sim, ela poderia ter mais um motivo, além do ciúme doentio por Ivan, se tivesse desc oberto as cartas que haviam sido destinadas ao pai. Fatalmente se sentiria traída, não só como mulher, mas como filha também. Mas por que então trazer tudo de volta ao presente, através daquela brincadeira horrív el? - perguntou-se intrigada, procurando a resposta. Havia duas hipóteses: a) Não querer voltac àquela casa, para não reativar as lembranças? Aquele não era o caso de Márilu. Ela queria muito voltar. b) Estragar a imagem de mulher perfeita que todos tinham de Suzana, fazendo-os p ensar que ela havia se transformado num espírito maldoso? Respirou com alívio. Nada daquilo se encaixava em Marilu. Mas em Melissa e Rodolfo ... - Verdade! Onde está você? - falou, necessitando ouvir a própria voz. Durante os dias em que estava ali naquela casa, ouvira confidências íntimas de todos , e isto, talvez, por ser a única pessoa que nada tinha em comum com eles, ou seja, não conhecera Suzana. Foram declarações sofridas, vindas bem do fundo da alma, num desabafo de algo retido, comprimido durante mui to tempo. E foram estas confissões que a estavam levando a pensar tanto. Suzana... Tão amada e ao mesmo tempo invejada e tão odiada. Que destino, meu Deus! exclamou em pensamento. Viver entre dois sentimentos extremos, só entre eles. Não devia ter sido nada fácil sua vida. Amor, ódio, admiração, inveja e ambição... Tantos sentimentos desencontrados girando em torno da quela mulher... Louise abriu o vidro do carro, deixando o ventinho frio tocar-lhe o rosto contraíd o de preocupação. Respirou profundamente o ar, sentindo abrandar o calor que lhe percorria o corpo. Que fazer? - pensou. Devo esquecer tudo isso ou devo perseguir a verdade, até enco ntrá-la? Ela existe, eu sei, só me resta descobri-la. Mas onde estará? Louise admitiu como seria bom se nada daquilo estivesse acontecendo com ela, poi s cortava-lhe o coração admitir a idéia de que Marilu pudesse estar implicada; e havia também o medo de erra r, o medo de nada descobrir. Concluiu que Marilu, Ivan e Domingos eram os suspeitos mais evidentes daquela tr ama toda. - E Violeta? Sim, também ela, por que não? Louise ligou o carro, voltando para a estrada lentamente. Era preciso continuar o que há muitos dias havia iniciado sem sequer perceber. Aquelas cartas que vieram ter a suas mãos talvez fossem a origem do que o "Papai Noel Misterioso" estava lhe propondo. Não! Não poderia deixar que alguém brincasse com ela daquela maneira. Afinal, era a filha do grande detetive Thomas Colman. Capítulo Trinta e Oito Louise entrou na saleta, onde todos estavam reunidos em silêncio. Por um momento sentiu vacilar sua intenção, antes tão firme, mas a convicção de an tes invadiu-a, animando-a novamente. Encarou um a um, e em seguida aproximou-se do Sr. Rodolfo.
- Não estou querendo ser o que não sou - começou dizendo pausadamente. - E o que sou? Apenas a filha de um detetive. À primeira vista pode parecer pouco, mas para mim é o bastante. Além disso, e este deve ser o ponto mais importante para vocês, sou aqui a única pessoa que não gira em torno de Suzana. Sentou-se numa poltrona, defronte ao pai de Marilu, que a ouvia atentamente, com o os demais. - Desde o dia em que chegamos nesta casa, - continuou - um de nós se propôs a um jog o perigoso. Alguém aqui está querendo jogar, ou melhor, alguém aqui está jogando sozinho. Acho muito monótono um jogo sem parceiros. - Passou a língua pelo lábio inferior, deixando-o brilhante. - Decidi, en tão, que vou jogar com ele. Fica mais excitante. Sei que tenho pouco tempo e restam-me poucas cartas, mas, q uem sabe, com um pouCO de sorte eu possa ganhar a partida? Todos a fitavam interrogativamente. - Está querendo dizer que pretende descobrir quem anda aprontando estas maluquices ? - perguntou-lhe o Sr. Ralph, ligeiramente surpreso. - Sim - respondeu ela com tranqüilidade. - Acho isto impossível - disse Marilu, quase vencida pela emoção. - Quem está fazendo is to é muito esperto e quer nos levar á loucura - concluiu, rompendo-se em pranto. Louise aproximou-se da amiga, acariciando-lhe os cabelos, num gesto de conforto. - As vezes, o impossível acontece - falou segura. -É tudo uma questão de persistência e inteligência. É necessário, contudo, voltarmos no tempo, analisando tudo e todos. - Andou alguns p assos. - Durante estes dias que passei ao lado de vocês, ouvi de cada um, num momento de nostalgia, relatos qu e muito me impressionaram. Fiquei sabendo que Ivan foi noivo de Suzana e que a ama até hoje; que Domingos também sentia e talvez ainda sinta muito amor por ela; que Melissa foi noiva do Sr. Ral ph e que o ama até hoje.Também fiquei sabendo que Karla sempre amou Domingos; que Violeta tem visses com Suzana e afirma que ela vai voltar, por isso conserva tudo que foi dela. Há, também, o amor de Marilu por Ivan, na sua adolescência. Fez uma pausa para prosseguir. - Em todos esses relatos, pude perceber sentimentos diversos e extremos, como: a mor, ódio, ambição, inveja, dedicação, admiração e até fanatismo. Tudo isso, girando em torno de uma única pessoa, uma m ulher. Uma mulher já morta, mas que continua muito viva dentro de cada um de vocês. Louise tinha a atenção de todos voltada única e exclusivamente para ela. Mal ouvia a r espiração deles. Prosseguiu: - Mas, não foram esses relatos que me fizeram ter certas idéias, ou melhor, uma idéia estranha. Foram as cartas. Percebeu, no olhar de cada um, uma pergunta única; mas apenas Marilu manifestou-se : - Cartas? - Cartas anônimas, Marilu. Alguém, há quase cinco anos atrás, começou um jogo perigoso, co m o Sr. Ralph e com Suzana. Algum de vocês sabia disso? Encarou cada rosto silencioso. Apenas o Sr. Ralph, depois de um longo suspiro, e sem deixar de fitar o chão,
respondeu: - Nunca falei delas a ninguém. - Por um acaso, o senhor sabia das cartas que foram destinadas a sua mulher? - Cartas para Suzana? Mas... - Cartas para Suzana, anônimas como as suas, que acusavam o senhor de traí-la, ao pa sso que as suas acusavam-na do mesmo. - Mas isto é um absurdo! - exclamou Rodolfo, negando-se a crer. Louise voltou até à poltrona, apanhando o envelope amarelo, que estendeu para ele. - Aqui estão todas elas, colecionadas de acordo com as datas. As suas, encontrei-a s dentro do livro O Tesouro Escondido, e sabe bem disso. As da Sra. Ralph estavam dentro de uma gaveta com f undo falso, no gabinete dela. - Olhou em volta, contemplando semblantes apatetados. - Nada disso eu busq uei. Tudo caiu em minhas mãos por mero acaso, e um pensamento estranho, que me surgiu após tudo isto, insiste para que prossiga. .- Não consigo entender... - disse Clara. - Acho um absurdo você entrar em nossa int imidade, mexer em nossas gavetas e até mesmo expor os sentimentos que as pessoas inocentemente lhe confiara m. Você não tem escrúpulos... - concluiu com desprezo e indignação. - Já disse, senhora. Não busquei nada. Tudo veio parar em minhas mãos, e agora estou r esolvida a colocar as peças desse quebra-cabeças nos seus devidos lugares. - Caminhou para a porta, mas an tes de sair, voltou decidida: - É bom que comecem a pensar na possibilidade de Suzana não ter sofrido um mero e simples acidente, e muito menos, como afirma Melissa, cometido um suicídio. - O que está querendo dizer? - perguntou Ivan, perplexo, antevendo a resposta. - Estou querendo dizer que tenho dúvidas quanto à morte de Suzana. Para mim, ela foi cruelmente assassinada. - Que loucura! - exclamou Domingos, ficando de pé num salto. - De onde foi tirar e ste absurdo? Louise respirou fundo, tentando manter-se calma. Aquele momento era decisivo par a ela. Respondeu com frieza: - Uma mulher como Suzana sempre acaba pagando muito caro pelo seu fascínio. Qualqu er um, aqui, poderia tê-la matado. Inclusive você - concluiu fitando Domingos com firmeza. Louise ouviu um protesto g eral. - Estão agindo desta maneira, por serem personagens reais da história - prosseguiu e la. - Mas imaginem pessoas estranhas a vocês, e envolvidas nos mesmos conflitos: amor, ciúme, traição, etc. Não são est es os sentimentos, a mola mestra causadora dos grandes crimes? Deixou que pensassem por momentos, para continuar em seguida: - O crime perfeito! Bastou um empurrão no alto da escada, um pouco de sorte e tudo se resolveu. Todos pensaram ser um horrível acidente. Apenas uma pessoa sabia e sabe que não foi assim. Acredito que, se não tivesse encontrado essas cartas, jamais teria pensado nesta possibilidade. O silêncio que se ouviu no ambiente deixou claro que todos concordavam com ela, e isto deu-lhe forças para continuar: - Outro dia, vi o vulto de um homem entrar no quarto de Marilu, de maneira suspeita, mas a próxima vítima foi o Sr. Ralph, que recebeu a camisola de Suzana. Acontece que a mesma camisola estava com Marilu; isto me leva a crer que a pesso
a entrou no quarto dela para apanhar aquela roupa. Se for um homem o autor desta comédia sinistra, qual de vocês? perguntou de maneira súbita, encarando-os firmemente. - Isto é ridículo - protestou Ivan com indignação. - Não pode pensar assim de Rodolfo - falou Melissa com veemência. - Ele está fora de t udo isso. Aliás, devo lembrarlhe que ele não estava aqui naquela tarde em que Ivan e Domingos foram "con templados" com o estilete e a fotografia de Suzana. Eu sou testemunha disso - concluiu exultante. Louise voltou-se calma para ela. - Quando falei na possibilidade de ser um homem o autor desta brincadeira estúpida , não quis dizer que as demais pessoas não eram suspeitas. Portanto, seu testemunho de nada vale, já que está incluída entre elas. Capítulo Trinta e nove Marilu deixou a saleta quase correndo, passando por Louise sem sequer olhá-la. Mais uma vez, um sentimento de piedade invadiu-a, consciente de haver magoado profundamente a amiga. Afinal a havia acusado de assassinar a própria mãe, e também falara de seu grande segredo: o amor por Ivan na ad olescência. Imaginou como poderia estar se sentindo naquele instante, e decidiu ir procurá-la. Deixou a saleta rapidamente, cruzando o salão e alcançando a escada, decidida a cont inuar na tarefa de descobrir a verdade, sem contudo magoar Marilu. Por um momento parou diante do retrato de Suzana, perdendo-se nele. Uma mão tocou-lhe com força o ombro, e ela voltou-se rápido. Karla fitava-a aflita. - Não estou querendo dizer mais do que vou dizer... falou em tom confidencial. - M as se está empenhada em descobrir a verdade, poderia me responder por que Clara ainda não recebeu a "visit a"? Louise voltou-lhe a frente, tentando ler seus olhos rápidos. - Isto não significa na da - falou séria. - Não significa nada? - Mas então... - parou num gesto de ombros, desapontada. - A pessoa que está fazendo isto é inteligente e possivelmente simulou uma "visita" para si também. - Mas Clara me parece tão estranha, tão misteriosa... falou, tentando justificar a acusação. A cortina da ala norte agitou-se com o vento que vinha do corredor. Karla parou, olhou detidamente, levando as mãos à cabeça, enquanto fechava os olhos, dando a impressão de sentir-se mal. Louise segurou-a com firmeza. - Que sensação estranha tive quando vi a cortina balançar... - falou com a respiração difícil. - Sempre tenho pesadelos horríveis com este maldito lugar, mas falta alguma coisa... Alguma coisa que está aqui, e não aparece no meu sonho... Louise continuou amparando-a, preocupada. - Vamos para seu quarto. Está muito tensa, precisa descansar. A moça deixou-se levar pela filha de Colman, que a acomodou na cama com carinho. - É sempre a mesma coisa - disse Karla pensativa. O hall todo envolto na penumbra, Suzana caída lá embaixo, morrendo, apontando para a cortina. Eu sempre consigo chegar até lá e puxá-la, para saber o que Suzana quer que eu veja; mas
aí, sinto uma dor forte na cabeça, tudo fica escuro, e pronto. Não vejo mais nada. - Agitou a cabeça com força, para afastar o torpor. Louise, num gesto de carinho, acariciava-lhe os cabelos. - Você não quer aceitar a realidade, e tem razão para isto, pois ela é muito cruel - disse Louise. Karla olhou-a desconfiada. - Melissa contou-me que encontraram você desmaiada no hall, instantes após a morte de Suzana - explicou-lhe sorrindo, tentando incutir-lhe calma e confiança. - É mentira! - gritou Karla, sentando-se na cama. Você está querendo dizer que eu a matei, não é verdade? Eu não estava lá, não estava. - Ficou calma de repente, falando baixo. - Apenas sonhei. Um sonho mau, mas um sonho. Voltou a deitar-se, virando-lhe as costas, numa atitude infantil. - Você se lembra de algum detalhe que possa parecer-lhe estranho neste sonho? - arriscou perguntar, voltando a acariciar-lhe os cabelos. - Não - respondeu taxativa. Depois falou, como se estivesse mergulhada em lembranças. - Existe apenas uma coisa que me intriga... Uma coisa que não consigo descobrir... É como um jogo de sete erros: duas gravuras idênticas, mas que, se olharmos detidamente, vamos descobrir diferenças. No meu caso, sei que há uma única, entre a realidade e o sonho. Sei também que já me dei conta dela, mas não consigo trazê-la para o consciente. - Falava devagar, como se revivesse a cena. - O lugar é o hall da escada, mas há alguma coisa diferente. Alguma coisa está faltando no meu sonho. Karla calou-se, confusa com as lembranças. - Onde conseguiu esta cicatriz? - perguntou Louise, percebendo um sinal de ferimento na cabeça dela. Karla afastou-se ofegante, colocando as mãos na cabeça, num gesto de desespero. Louise levantou-se, caminhando em direção ao toucador, que se encontrava em completo desalinho, voltando-se em seguida, num gesto rápido, para ela. - Quando vai aceitar a realidade, Karla? Sabe que viu Suzana morrer e fica brigando consigo mesma, tentando ignorar a verdade, certa de que no final vai perder. A moça encolheu-se no leito, tapando os ouvidos. Louise aproximou-se dela, falando-lhe com energia: - Sim, você vai perder. Vai perder porque os fatos não podem mudar. Tudo já aconteceu. - Falou com ternura. Aceite a realidade, Karla. Só vai lhe fazer bem. A moça escondeu o rosto entre as mãos, enquanto uma luta feroz se travava no seu íntimo. Louise sabia disso e ficou em silêncio por um tempo. A desarrumação do quarto foi como uma janela para o seu pensamento fugir de tudo aquilo, procurando mentalmente um lugar para cada objeto. Suas mãos queimavam, ansiosas por obedecer ao poderoso cérebro que as comandava; e vencida por aquela obstinação de ordem e limpeza, começou a dobrar várias peças de roupa, que estavam amontoadas sobre o toucador. Karla sentou-se na cama de repente. - O que está fazendo? - perguntou com agressividade. Louise assustou-se, mas tentou sorrir. Sentou-se na banqueta, cruzou os braços sobre o tampo da penteadeira; e fitando o rosto contraído de Karla através do espelho,
respondeu-lhe: - Estou arrumando seu toucador. A moça colocou-se de pé agilmente. - Não toque em nada do meu quarto - falou histericamente, e num tom ameaçador. Louise encarou-a perplexa. Aquela atitude infantil de instantes atrás desaparecera , dando lugar a uma mulher agressiva, estúpida e muito doente. - Vamos! - gritou - Saia já do meu quarto. Não quero vê-la mais aqui. Capítulo Quarenta -E inadmissível! - falou Ivan rompendo o silêncio que se formara na saleta. - Não poss o acreditar em tal disparate. Domingos, que estava de pé em frente à porta de vidro, absorto em contemplar o dia n evoento, voltou-se encarando Ivan. - É inadmissível; também concordo, mas não podemos deixar de admitir que ela pode estar certa. - Você está louco! Completamente louco! - observou Ivan, irritado, com os cabelos li sos caindo sobre a testa. No rosto, as faces ruborizadas eram o sinal vivo de sua indignação. - Não, não estou. E você sabe disso. Aliás, todos aqui sabem, e também, no fundo, aceitam como válida a hipótese de Louise. - Uma maluca, isto sim que ela é - protestou Clara. Não podemos deixar que as maluqu ices dela nos perturbem. Domingos ignorou o comentário. - Todos nós tínhamos um motivo forte, que poderia levarnos à completa locura. A verdad e é que somos uns obcecados. - Olhou para os demais num gesto rápido de cabeça. - Eu poderia tê-la matad o. Eu, vocês me entendem? - Ficou com uma expressão grave no rosto. - Era um suplício vê-la todos os d ias, sentir seu perfume, ouvir a sua voz doce e não tê-la para mim, da maneira como sempre sonhei, desde a ad olescência. Suzana era o meu sonho, se bem que um sonho vivo, real. Ela existia, e isto foi muito pior. S eria preferível que tudo tivesse ficado apenas no devaneio. Assim, não haveria manchas de sangue para torná-lo triste , com um gosto amargo de lembranças doídas. Domingos segurava com fúria o espaldar da cadeira. - Sim, eu poderia tê-la matado. Q uantas vezes o meu amor se transformava em ódio, e a maldizia. Não posso negar que por várias vezes tenha sent ido minhas mãos ávidas por apertar aquele delicado pescoço. Domingos deixou-se cair na poltrona, escondendo o rosto entre as mãos. Com o silênci o que voltou ao ambiente, todos se constrangeram, como se ouvissem suas próprias consciências que ta mbém falavam de um possível homicídio. - Sim! - falou Melissa com o pensamento longínquo. - Também não posso negar que mil ve zes desejei que Suzana morresse. Como fui tola! Imaginei que, morta, tudo poderia voltar a ser c omo antes dela aparecer em minha vida. Que loucura! - Suspirou com profunda tristeza. - Nada recomeça na vida da gente. Tudo é um eterno prosseguir, continuar. Não há retrocessos, nem as lembranças tristes é possível apagar. Novamente suspirou. -
Como fui tola! - repetiu com desprezo a si mesma. - Não era difícil concluir que uma Suzana ninguém jamais consegue esquecer, e tentei convencer-me disto tantas vezes... No fundo, bem no fundo, sabia que era em vão, mas precisava iludir-me, sonhar... - Uma lágrima escapou, dando início a um pranto m udo. - Empurrá-la das escadas... Uma morte sem testemunhas, um acidente incontestável aos olhos de todos , enfim, como disse Louise há pouco: o crime perfeito. Suspirou. - De qualquer maneira me sinto culpada de su a morte. Eu a odiava tanto, que de certa forma sinto minha mão pesada, como se a tivesse jogado do alto da esc ada. Melissa chorava um pranto calmo, mas profundo, sentido. Parecia cheia de remorso s. Rodolfo aproximou-se dela, colocando-lhe o braço sobre o ombro, e falou: - Confesso que, à primeira vista, esta idéia da filha de Colman pareceu-me um tremen do absurdo. Mas agora, pensando melhor, vejo que ela tem razão em pensar assim. Havia muito ressentimento em torno de Suzana. Umedeceu os lábios, voltando a falar pausadamente. - Como fui tolo em crer naquela s malditas cartas! Suzana trair-me! Agora vejo que isto era impossível. Como fui ingênuo! Agi como um adolescente! Fechei-me em mim mesmo, senti ndo-me traído, sem nem ao menos falar com ela, ouvir a sua verdade. E essa verdade que não procurei, por medo, era a doce verdade que tanto queria ouvir. Clara levantou-se, apanhando as cartas que Louise deixara sobre a mesa de canto, folheando-as. - Estranho! - disse, após uma observação atenta. - Escritas a mão. - Levantou o rosto mu ito sério, olhando para todos, e finalmente encarou Melissa. - A letra é muito parecida com a sua. Um silêncio de segundos, que pareceu durar uma vida, se fez ouvir na saleta. - Que está querendo insinuar? - perguntou Melissa, com o rosto ainda molhado de lágr imas. Clara voltou os olhos para as cartas, engolindo, sem nada responder. - Não vai responder? - insistiu Melissa, quase gritando. Rodolfo interrompeu. - Calma, meu bem. Não fique assim. Afinal, todos nós estamos sob o efeito de uma gra nde tensão, e não sabemos o que estamos dizendo. Melissa afastou-o de si, erguendo-se desafiante, olhando com firmeza para Clara. - Você está me acusando de ter escrito estas cartas, não está? Clara encarou-a com o rosto cheio de piedade. - Eu apenas disse que a caligrafia é parecida com a sua - respondeu em tom baixo. - Não a acusei de nada. - Acusou sim. Aliás, todos aqui devem estar acusandome. Sinto isto no olhar de cad a um. - Você era noiva de Rodolfo, e o amava... - tentou explicar Clara. - Eu o amo - gritou Melissa interrompendo-a. - Sempre, sempre o amei, e passarei a vida toda esperando por ele, se preciso for. - Fez silêncio, procurando acalmar-se. - Eu poderia ter escrito, s im, estas cartas. Claro que poderia. Mas não seria tão ingênua e tola, ao ponto de usar meu próprio punho. Isto seri a o mesmo que assinálas. Clara jogou as cartas sobre a mesa, enfurecida: - Existem os crimes planejados, minha querida, e eles sempre deixam sinais que e nganam a todos. Essa sua história parece convincente, e certamente agora ninguém aqui aceita a idéia de que você seja culpada, pois está visível demais a semelhança das caligrafias. Mas é bom também lembrarmos que pode ser es
te o seu trunfo, pois tudo que é fácil demais, o ser humano despreza. E assim, devido às evidências dos fatos, ninguém percebe que a sua verdadeira intenção era essa: deixar bem nítida sua marca, para que ninguém pudesse, sequer, admiti-la. - Rodolfo! - gritou Melissa. - Ela está acusando-me de ter escrito as cartas. Esta s malditas cartas... - falou chorando. - Clara tem razão, Melissa. - disse Louise, entrando na saleta. Todos se voltaram, surpresos. - O raciocínio de Clara é perfeito. Mas há uma outra hipótese, muito mais simples, que e la, apesar de ser inteligente, não conseguiu perceber. - Foi às cartas, apanhando-as solenemente. - Tu do pode acontecer com pessoas sem escrúpulos. - Concordo plenamente. - disse Clara entusiasmada. Nunca confiei em pessoas que se deixam passar por vítima. São perigosas e traiçoeiras. - De acordo - voltou a falar Louise. - Mas, como já disse, existe uma outra hipótese , para a qual a senhora ainda não atinou - insistiu ela. - Não consigo mesmo saber... - respondeu, esforçando-se. - Não tenho a cabeça muito boa para estas coisas... - A senhora deixou de ver algo bem mais visível, para apoiar-se numa idéia muito mai s complexa. Isto é realmente incrível. - Você acredita mesmo que eu... - Melissa parou de falar, desolada. - Sim - respondeu rápido Louise. - Poderia ser verdade. Mas não acredito que você seja tão astuciosa quanto Clara descreveu. Para mim, estas cartas foram escritas por alguém que teve a intenção de incriminá-la; por isso, cuidadosamente imitoulhe a letra. É isso que realmente penso e acredito. O silêncio se fez novamente, e só foi quebrado com os passos de Louise, que, após guar dar as cartas de novo no envelope, abandonou a saleta, levando-as consigo. Capítulo Quarenta e um Em frente à porta do quarto de Marilu, Louise ouviu o choro sentido da amiga. Entrou e ficou por instantes fitando o triste quadro que tinha diante dos olhos: Marilu, estirada na cama, chorando copiosamente. Sentou-se no leito, chamando-a com carinho, mas a moça reagiu, erguendo rápido o ros to do travesseiro. - Não posso crer que seu pai, algum dia, tenha sequer suspeitado de que uma filha pudesse ter assassinado sua própria mãe. Não posso crer - disse desolada. - Você é má, Louise. Má e pretensiosa. Pensa qu é esperta como ele, mas não é. Thomas jamais cometeria um disparate desses. Louise deixou um longo suspiro escapar. Como é difícil, meu Deus! Como é difícil! - pens ou. Sentiu um desânimo profundo invadi-la, uma vontade de sair correndo dali, de esquecer tudo, até que era a filha do maravilhoso Thomas. Sim, ela o envergonhava, estava consciente disso, e também a s i. Sentiu uma tristeza imensa. A sua mente não era tão privilegiada quanto a dele. Como fora pretensiosa! Não havia caminho. Estava sem saída, encurralada. Não via mais nenhuma possibilidade de conseguir seu intento. Estava sozinha e perdida, num caminho estranho e escur
o. A voz de Marilu interrompeu-lhe os pensamentos. - Estou acusando-a de pretensão, mas a pretensiosa sou eu. Sim, uma filha pode mat ar a própria mãe. Por que não? É bem possível isto. Aliás, não posso negar que, por várias vezes, cheguei a admitir qu e Ivan só me enxergaria quando mamãe não existisse mais, porque então ele veria em mim a continuação de la. Mamãe morta! Aquela era minha única chance. - Não fale assim. Está sendo injusta com você mesma. - Não havia como fazê-lo me perceber, com mamãe viva, perto de nós. - Você não teria coragem de fazer qualquer coisa contra sua mãe. Mesmo para alcançar, co m isto, a felicidade suprema. - Estou convencida que teria sim, Louise. Eu poderia ter feito uma loucura qualquer. Não se esqueça que uma adolescente apaixonada faz muitas tolices. - Você era ainda uma criança, Marilu, e via em sua mãe uma rival. Se estivesse com alg um problema mental, talvez assim eu admitisse tal possibilidade. - Acredita, então, que em sã consciência eu não poderia ter... - Nunca você deixou de estar em sã consciência, minha querida. Por isso, estou convenc ida de sua inocência. - Estou tão confusa, Louise. - Eu também - respondeu, com um sorriso triste. - Quando começou a dizer aquelas coisas terríveis sobre nós, apontando 0 ódio em cada um para com mamãe... Olhou para a amiga com ternura. - Posso estar errada, mas acredito em você, Louise . Confesso estar com medo e também que me senti traída quando revelou o meu antigo amor por Ivan. Senti vergonha de todos e principalmente dele. Queria que isso ficasse apenas comigo; afinal, foi uma paixão de adolescente, nada mais. - Peço que me perdoe, mas não podia agir de outra forma. Para atingirmos a verdade, não podemos omitir nenhum detalhe. Aquele momento era imprescindível para o prosseguimento normal dos acontecimentos. Era necessário dizer a verdade de todos para todos. - Acredita mesmo que mamãe foi assassinada? - perguntou Marilu infeliz. - Sim - respondeu. - E o pior é que o seu assassino ainda não está satisfeito - concluiu com convicçno. - Por que diz isto? Por causa dos últimos acontecimento>' Louise apenas afirmou nu m aceno de cabeça. - Por quê? Para quê? - São perguntas para as quais ainda não vejo respostas. Mas, no momento em que soube rmos respondê-las, esteja certa de que já teremos alcançado a verdade; e isto só vamos conseguir no insta nte em que descobrirmos o autor de tudo isto. - Não há possibilidade na idéia de Melissa? - perguntou Marilu. - A respeito do espírito de sua mãe e de meu pai? De maneira alguma. Isto é apenas cômod o. Foi a maneira mais prática que ela encontrou para encarar os fatos. - Então você desconfia dela?... - Não disse isso. Apenas afirmei que Melissa quer ver, em Suzana, a eterna responsáv el pelo seu infortúnio. - Nunca pensei que ela odiasse tanto mamãe. Sempre pareceu tão amiga... - Ela se subjugava. Não podia ficar sozinha, longe de seu pai, e para isto submeti a-se a uma falsa resignação. - Pobre Melissa! Como deve ter sofrido! Fingindo o tempo todo uma coisa que sent
ia de maneira contrária. - Escrava de uma paixão. Já ouvi isso antes. Pessoas que esquecem de si mesmas, domi nadas por um amor incrível, arrebatador, perigoso e cheio de controvérsias. Aliás, não é só ela vítima desse ma . Domingos, Ivan e Karla são, nada mais, nada menos, dominados por este mesmo sentimento. Todos parar am suas vidas, para viverem de um amor impossível. Sim, impossível. Afinal, Suzana não poderia ser de todo s. Ela era apenaa uma única mulher. O seu fascínio, que tanto invejava aos outros, foi sua ruína. E que culp a teve ela, de ser uma mulher tão fascinante? Nenhuma. Marilu olhou para o envelope nas mãos da amiga. - As cartas... Falam de quê? - pergu ntou receosa. - Eu as trouxe para você ler. As de seu pai acusam sua mãe de traí-lo com Ivan; e as d e Suzana acusam o Sr. Ralph de traí-la com Melissa. Um jogo duplo e perigoso. - Como alguém pode jogar com a vida das pessoas, assim? - perguntou Marilu indigna da, recebendo o envelope com desprezo. - Infelizmente, querida, existem as pessoas inescrupulosas... Elas não medem esforços, nem sacrifícios para conseguir o que querem. Sem dúvida, são doen tes. - Meu Deus! Que coisa horrível! E mamãe ficou à mercê de um ser como este, até se tornar s ua vítima - disse Marilu com desalento. - É um risco que todos nós corremos. Mas o que fazer, não é mesmo? O mundo não está dividido em bons e maus. Sabemos que ambos existem, mas muitas vezes não sabemos onde cada um deles e stá. Marilu abraçou com força a amiga. - Ah, queria tanto que tudo isso fosse um terrível pesadelo, e que daqui a pouco p udesse despertar e ver mamãe aqui, junto de mim, linda e carinhosa como sempre. - Seria maravilhoso - concordou Louise, confortandoa. - Mas a realidade está aí, e nós sabemos que é impossível mudá-la. - Segurou o rosto sofrido de Marilu entre as mãos. - Você é uma boa menina e te rá forças para suportar o que está por vir. Tenha calma. Depois da tempestade, fatalmente vem a bonança. Capítulo Quarenta e dois Como de costume, o horário do jantar era aguardado na saleta. Louise desceu e encaminhou-se para lá, parando próximo à porta que sempre permanecia a berta, receosa de entrar, pois todos estavam temerosos e desconfiados dela. Ouviu Clara romper o silêncio, e a conversa pareceu-lhe normal, sem a tensão dos últim os dias. - Desta vez, creio que perdi mesmo os óculos - suspirou ela, tentando consolar a s i mesma. - Ando tão desatenta ultimamente! - Ultimamente? Desde que começou a usá-los que a vejo às voltas, procurando por eles disse Karla, aborrecida já com aquela história interminável. - Não é tanto assim - retrucou Clara aborrecida. - Não, claro que não é. Acho que, para a felicidade de todos nós, você deveria amarrá-los ao pescoço - disse o Sr. Ralph, visivelmente irritado. Clara ficou amuada, olhando para o trabalho parado já há alguns dias nas agulhas, gu ardando-o com suspiro de
resignação. Louise decidiu entrar e, ao alcançar o umbral da porta, sentiu os olhares se conve rgirem para ela. Expressões desconfiadas e acuadas. Entrou, aproximando-se da lareira e ficou olhando por instantes o fogo estalando na madeira seca. Em seguida, seus olhos pousaram na imagem feliz de Suzana. Sentiu que todos a observavam, ainda receosos. Voltou-lhes o rosto e falou ponde rada: - Não vejo necessidade alguma de se portarem com temor diante de minha presença. Não s ou a dona da verdade e muito menos pretendo descobrir o que se passou aqui há alguns anos atrás. Pensei muito e acredito que não vai valer a pena pois nada pode trazê-la de volta - disse, mostrando a foto. - O rosto feliz e sorridente de Suzana é uma constante nesta casa, e isto já é o bastante. - Caminhou pa ra a lareira, apa nhando a foto. - Dizem que a verdade sempre aparece, e se ela estiver oculta, um dia, fat almente, virá à tona. Sem Sher Charlock Holmes, sem Thomas Colman, sem mim. Enfim, sem auxílio de ninguém. Aparecerá por si mesma e então a imagem distorcida, que tentaram criar para Suzana, vai voltar a ser o que era antes: magnífica e fascinante. - Você suspeita de mim - falou Melissa, com humildade. - Eu era a única pessoa que s abia da camisola no quarto de Marilu e sempre amei Rodolfo. Sabe que nunca perdoei Su zana por tê-lo t irado de mim. Você sabe de tudo isso. Eu mes ma confessei ingenuamente, num desabafo. - Ela alterou-se, falando de modo altivo, agressivo, com o rosto voltado para cima, num gesto de desafio. - Realmente, Lou ise, você tem bon, e fortes motivos para suspeitar de mim. Existem as cartas, a, malditas cartas com a calig rafia semelhante à minha, o meu ódio, o meu ciúme e a minha inveja. Enfim, você deve estar apostando na minha culpa. Melissa tremia, descontrolada. - Agora, pergunto-lhe: o que vai fazer? Louise sustentou seu olhar sem nada responder e Melissa sentiu-se forte com este silêncio. - Você é bem esperta, Louise. Viu debaixo da água turva que corre dentro de cada um de nós, aproveitando a emoção de estarmos de volta a esta casa, de volta ao passado; e ouvindo nosso sopro de revolta, teve um campo vasto para tecer suas conclusões. Todos nós, sem malícia, deixamos escapar nossas fraquezas, contando-as a você. E foi assim que conseguiu perceber uma pressão então insuspeitável: Suzana assassinada. Não um simples acidente ou até mesmo um suicídio, mas um assassinato - concluiu em tom baixo, como se suas forças estivessem se esvaindo. - Mas por que temos de crer nesta possibilidade? - perguntou Domingos transtorna do. - Por quê? Melissa sorriu. - É tão simples. Tudo é tão visível... As cartas... As cartas dizem tudo. Alguém não queria q e ela vivesse. Talvez a primeira intenção tenha sido pressioná-la, na esperança de, com isso, levá-la ao desespero e a se matar; mas Suzana era forte demais para fugir. - Há lógica neste raciocínio, mas nada vem provar que é o real. Apenas porque passou pel
a cabeça de Louise esta idéia, não podemos aceitá-la assim, de bandeja, como se ela servisse de verdade - disse Ivan, ponderado. - É difícil, para mim, crer que um de nós tenha chegado a este extremo. - Mas as cartas anônimas... - começou a falar Clara. - As cartas anônimas não provam nad a mais, além de que alguém estava interessado em separá-los; e isto não quer dizer que quem escreve cartas , sem se identificar, possa chegar a um crime de assassinato. Além do mais, elas não mencionam, nem por um instante, qualquer tipo de ameaça - concluiu Ivan. - Alguém querendo separá-los! - disse Karla com serenidade. - Pode ter sido mesmo qu alquer um de nós. - Até aí estou de acordo - disse Ivan, continuando seu raciocínio. - Posso aceitar a i déia de que um de nós tenha escrito estas cartas para os dois, mas... - E os "presentes anônimos"? - perguntou Clara. - Qual ceria o objetivo deles? - Afastar-nos daqui, creio eu. É a única possibilidade que me ocorreu e confesso que admito poder, também, ser um de nós o seu autor. Aliás, somos obrigados a isto. - Ivan sentiu-se observado por todos. - Vejam bem: tudo está acontecendo aqui, bem debaixo dos nossos olhos. Não podemos enganar a nós mesmos. Rodolfo se colocou de pé, caminhando em direção à porta, mas antes de sair, voltou-se pa ra falar: - Vamos embora amanhã. - E completou: - Não vale a pena... - Abaixou o rosto, tentando ocultar a dor. - Não vamos chegar a lugar al gum e... Foi interrompido com a chegada de Violeta que entrou trazendo os óculos de Clara. - Que maravilha! - exclamou radiante, colocando-os. Você os encontrou! Onde estava m? - Foi um motorista de táxi que entregou ainda há pouco. Disse que esses dias atrás tro uxe a senhora aqui, e que estava tão nervosa, que os esqueceu no carro. Clara ficou muito pálida e sentiu os olhos de Louise cravarem-se em sua carne como garras. A respiração ficou-lhe difícil, quando percebeu que ela se aproximava. Tirou os óculos, sem olhar para ela. - Como pode ter esquecido seus óculos num táxi, e o motorista afirmar que a trouxe a té aqui, se naquele dia a senhora chegou no carro com o Sr. Ralph e os demais? A esta pergunta, todos se voltaram para ela, surpresos, aguardando resposta. Cla ra ergueu os olhos e viu o rosto duro da filha de Thomas que a interpelava. - Eu não vim... - começou a dizer, num fio de voz, mas em seguida ficou de pé, falando firme. - Está bem, está bem. Eu estive aqui sim, no meio da tarde. Vim de táxi e pedi ao motorista que me esperasse longe, oculto na estrada, e o meu erro foi ter contado a ele que morava aqui. - Suspirou, e fez u ma expressão de reprovação a si mesma. - Pensei entrar por aqui, mas vi você e Marilu que conversavam. Então, entrei pelo salão, já que carrego todas as chaves da casa, e ele estava deserto. - Olhou em volta e viu a ansiedad e estampada no rosto de cada um. Certamente estavam esperando que confessasse ser a "visita", e isto proporcionou -lhe um grande prazer. - Sinto muito decepcioná-los - prosseguiu com um sorriso irônico. - Mas não sou eu o "Papai No el Misterioso". Se voltei, foi justamente para investigar sobre isso, pois pensei que, estando form almente ausente, teria mais chances. - Deixou um suspiro de decepção escapar. - Mas foi em vão. Não descobri nada. É d
esagradável admitir, mas esse "Papai Noel" é bem mais esperto que eu pensava - completou. Melissa colocou-se de pé. - Estranho! - observou com sutileza. - Muito estranho mesmo, seu comportamento. - Sorriu com ironia. - É difícil imaginá-la brincando de She rlock Holmes, Clara. É impossível mesmo. - O que está querendo dizer? - perguntou Clara sem intimidar-se. - Não estou querendo dizer nada. Apenas estou afirmando que você não é tão estúpida quanto p arece. Que belo álibi conseguiu!... Sua desgraça foi ter esquecido os óculos. Sempre eles... Bendito s eja... Graças a eles, descobrimos o nosso "Papai Noel Misterioso", o nosso "Amigo Secreto Indesejável". - Já disse que não fui eu - falou ela pausadamente. Karla deixou escapar uma risada de deboche. - A imponente e poderosa Clara! Quem diria, hem? - Por que fez isto? - interpelo u o Sr. Ralph, enérgico. - Rodolfo! Não fui eu. Já disse que não... - meneou a cabeça, acuada. - Eu sempre tive uma suspeita sobre você, Clara. Nunca consegui atinar bem o que e ra, mas no fundo, não confiava na sua eficiência. Como uma nota que soasse falso. Parecia... Parecia não, parece. Parece que você pretende algo. Há muito tempo sinto isto - falou Melissa, irônica e convencida do qu e dizia. - Não sei de nada. Já disse e repito: não fui eu. Meu erro foi querer ajudar. Não devia me preocupar. Afinal de contas, sou a única, aqui, que nada tinha contra Suzana. Saiu apressada, deixando na saleta a sua voz ecoando por algum tempo, na consciênc ia de cada um: "... sou a única, aqui, que nada tinha contra Suzana...'. Capítulo Quarenta e três Ultima noite, pensou Louise, fitando a mala por fazer sobre o leito. Sentou-se n a banqueta do toucador, dando as costas para o espelho, contemplando o aposento. Que tragédia! Era necessário convir que falara demais. Não devia ter-se empolgado tant o com a sensação de que um assassinato ocorrera naquela casa. Ivan tinha razão. Era uma hipótese possível, mas nada provava ser verdadeira. Nada. Suas convicções não bastavam. Louise respirou, sentiu-se agoniada, como se algo lhe comprimisse o peito, sufoc ando-a. Estava arrasada consigo mesma. Um dia, dissera não ter a pretensão de ser como o pai; mas sem querer , inconscientemente, tentou penetrar pelo mesmo caminho que ele percorrera sabiamente, durante toda a vida. Voltou-se para o espelho e contemplou o rosto abatido, irradiando desilusão. Era p reciso reagir, mas não sabia como. Alcançou a escova e correu-a pelos cabelos. Pelo espelho pôde perceber que hav ia manchado a manga de mais uma blusa, e até isso serviu para aborrecê-la ainda mais. Era uma desastrada, u ma descuidada, que vivia se sujando por toda parte. Respirou com amargura e, sem pressa, levantou-se, começando a fazer as malas. Uma melancolia invadia-lhe a alma, deixando-a sentir-se vazia, sem rumo, sozinha. Um ruído de passos paralisou-lhe o movimento, e o coração bateu mais depressa. Ficou i móvel, aguardando. Um toque À porta e a voz de Violeta ela ouviu em seguida:
- Srta. Louise! Trouxe-lhe chá. Ela suspirou decepcionada, guardando na mala o casaco que dobrava. - Pode entrar - falou desanimada. Violeta entrou, como sempre, ostentando uma bonita bandeja de prata. - Fiquei com medo que já estivesse dormindo - observou. - Estou sem sono - respondeu-lhe indiferente. - Vamos mesmo embora amanhã? - perguntou a criada, vendo-a na arrumação das malas. - Eu vou - disse Louise apanhando a xícara na bandeja. - Obrigada por lembrar-se d e mim - falou sorrindo. Estava mesmo precisando de um bom chá. Violeta retribuiu-lhe o sorriso, mas demonstrava ansiedade. - O que há com você? - p erguntou, percebendo-a inquieta. - Parece agitada. - Sorriu. - Mais do que de costume - observou. Violeta olhou para a cama e em seguida para Louise, que lhe acompanhou o olhar. - Sente-se - falou, percebendo ser esta sua vontade. Violeta obedeceu rapidament e, acomodando-se ao lado dela, que continuou segurando a xícara, observando-a, já intrigada. - Eu queria contar uma coisa para a senhorita, mas não sei... Posso estar enganada ... - Parou de falar e pensou um pouco. - Não. Enganada não estou - disse em seguida, com convicção. - Vamos, Violeta. Pode falar. Do que se trata? - Naquele dia que fomos à cidade... a senhorita lembra-se, não? Louise agitou-se por dentro, mas nada demonstrou. - Sim - respondeu simulando in diferença. - Bem... Naquele dia, não foi só Dona Clara quem voltou escondido. Na fronte de Louise o vinco se formou, numa expressão grave. - Não foi não. Lembro-me que ia levar chá para a senhorita Marilu, quando o vi, entran do pelo corredor em direção à saleta. - Viu quem? - perguntou Louise já desanimada com a forma complicada de narrar de V ioleta. - O Sr. Ralph. Lembra-se que até cheguei à saleta com três xícaras e perguntei por ele? - Sim, eu me lembro. Mas Marilu disse que você havia se enganado. Violeta acenou negativamente com a cabeça. Louise devolveu a xícara à reluzente bandeja e caminhou até o toucador, fitando-se no espelho. O pensamento retrocedia no tempo, tentando lembrar exatamente tudo que acontecera à sua volta n aquela tarde. Violeta recolheu a bandeja e abriu a porta lentamente, observando Louise no seu divagar. Um vento que caminhava displicente pelo corredor invadiu o aposento, agitando a fina cortina. Louise encolheu-se, protegendo-se. - O vento... - disse, olhando para a porta, por onde Violeta já desaparecia, fecha ndo-a com cuidado. A lufada de vento que penetrara na saleta, lembrou, satisfeita. Alguém poderia ter entrado na casa por ali. Duas vezes ela teve a sensação de que a porta foi aberta. Clara disse que entrou pelo salão . Estaria dizendo a verdade? Se estivesse, alguém mais teria voltado até à casa e, sorrateiramente, entrado pela sa leta. Violeta estaria certa? - O Sr. Ralph! - pensou aturdida. - Seria ele capaz de tudo aquilo? Sentou-se, unindo com força as mãos, como para infundirlhe coragem. O marido traído! Sim, havia sentido. O Sr. Rodolfo poderia estar doente, cheio de complexos e vergonha. Para ele, Suzana o traíra com Ivan, e certamente odiava os dois. Teria ele coragem de assassinar a esposa? - pensou Louise com a mente fervilhant e. - Por que não? Mas então por que estaria fazendo aquela brincadeira boba? Para perturbar Marilu e fazê-la m udar de idéia quanto a morar
ali? Fazia sentido. Certamente, não queria ficar naquela casa, para não se lembrar, o tempo todo, de que matara Suzana. Seria um martírio, sem dúvida. O Sr. Ralph realmente era um homem bastante inteligente, concluiu Louise. Com aquela brincadeira estúpida, ele, de certa forma, também tortur ava Ivan e Domingos, que, apesar de aparentarem amizade, no fundo ainda eram rivais. Sim, porque Suza na ainda não havia morrido no coração de nenhum deles. Ela continuava pulsando forte, enchendo o peito de cada um de recordações. Na mente de Louise, surgiu a imagem abatida de Rodolfo, decidindo deixarem aquel e lugar. Finalmente o seu intento foi alcançado, concluiu. Demonstrando uma grande dor, e c omo a maior vítima em toda aquela história, ele encerra o espetáculo, exatamente como havia planejado. Mui to esperto, o Sr. Ralph, e muito astuto também. A filha de Colman mal continha a aflição. Ficou de pé, caminhando pelo aposento. E Violeta? - perguntou-se. O que estaria pretendendo, com aquela atitude? Onde e la entraria naquela história toda? Poderia ser a autora de tudo, e estar desviando as atenções. Louise lembrou-se da tarde no quarto de despejos. Violeta não gostava do Sr. Ralph . Estaria vingando-se dele? Fechou os olhos, num gesto de desalento, quando percebeu outra hipótese surgir: Violeta sabia da verdade, mas ao invés de delatar o culpado, estava acusando o Sr. Ralph, pelo mesmo motivo, ou seja, vingança. Vingança sua ou de mais alguém? Não haveria uma segunda pessoa agindo por trás de Violet a? Sim, poderia haver. Alguém que lhe instruísse como agir, para salvar-lhe as aparências. Sacudiu a c abeça com desespero. - Apenas uma noite! - exclamou, fechando os olhos. É tão pouco tempo, meu Deus! Tenh o uma porção de peças soltas, girando em minha cabeça, e temo não ter tempo para encaixá-las nos seus devido s lugares. Ouviu as pancadas surdas dos últimos galhos de um pinheiro, batendo contra o vidro da janela, agitados pelo vento que voltava a soprar. Olhou para fora, e viu apenas o vulto enegrecido do arvoredo, fustigado pelo ven daval. - Esperar! - exclamou com resignação. Era o que tinha a fazer. Esperar com paciência. Isto era tudo. Capítulo Quarenta e quatro - Infeliz! - sussurrou Melissa, comprimindo as mãos contra o peito. - Sempre serei infeliz. A sombra de Suzana jamais me deixará em paz. Não adianta insistir. Ele nunca será meu. Nunca! Melissa chorava um pranto mudo, deixando as lágrimas quentes molhar o travesseiro. Não adianta continuar lutando por esse amor, dizia para si mesma. Agora, mais do q ue nunca, será em vão. Ele pensa que a matei. Na mente dela foram se desfolhando, um a um, os fatos que a comprometiam. Começava m nas cartas, com a letra bem semelhante à sua; em seguida, o fato de ser a única a saber que a camisola de Suzana estava com Marilu. Havia, também, o seu grande e imorredouro amor por Rodolfo. Sabia que talv ez já nem fizesse sentido mais aquele amor, embora ainda lhe doesse no peito. Passou a mão pelo rosto molhado e sentiu-se mais uma vez envelhecida, já com a pele
ligeiramente flácida. Era impossível negar a proximidade da velhice espreitando-lhe o rosto, o corpo, queren do colorir-lhe os cabelos. Não havia como evitar. Talvez só o coração não tivesse percebido o tempo passar, pois cont inuava cheio de esperança, como quando adolescente. Esperança de finalmente reconquistar o seu amor. Reconquistar Rodolfo! Como consegui-lo, se estava cheio de dúvidas sobre ela? Não, não precisava sequer dizer-lhe uma única palavra sobre isso. Bastava o seu olhar distante e frio para c onfirmar-lhe esta desconfiança. Revirou-se na cama, tentando afastar-se dos pensamentos que a afligiam tanto. Er a preciso parar de pensar, tentar dormir para esquecer, pelo menos por algum tempo, que era tão infeliz. Ouviu a chuva que começava a cair forte, chocando-se contra o vidro da janela, enc hendo-a de temor. Um relâmpago cortou o céu, penetrando no quarto escuro. Melissa encolheu-se. Tudo parecia igual àquela noite: a chuva, o vento e o seu med o. Igual àquela noite, quando Suzana morreu. Cobriu a cabeça tentando sufocar o pânico, mas teve uma estranha impressão. Descobriua e ficou em silêncio, atenta por alguns minutos. Passos. Sim, eram passos. Passos que deslizavam pelo corredor. O medo cresceu dentro de Melissa, que correu a acender o abajur. Sua respiração ofeg ante sufocava-a. Os passos continuavam, cada vez mais próximos. Passos lentos, cautelosos. Os olhos de Melissa prenderam-se com temor à porta, que ficava à sua esquerda, logo abaixo da cama. Os passos cessaram. Cessaram, e com o horror estampado no rosto viu o trinco gir ar lentamente e a porta abrir-se devagar, até quase um palmo, se tanto, e não mais se mover. - Quem está ai? - perguntou cheia de medo, ouvindo apenas o silêncio. Nada. Ninguém respondeu. Continuou fitando a porta, com o coração agitando-lhe o peito violentamente. Novamente os passos se fizeram ouvir. Lentos, abafados, que se afastavam, deixando a porta semi-aberta, como num convite. Ainda cheia de medo, Melissa levantou-se, indo até ao corredor, onde apenas diviso u um vulto que se misturava à penumbra e sumia em direção ao hall. Seria o fantasma de Suzana? Fosse quem fosse, deveria descobrir. Era uma forma d e reabilitar-se perante Rodolfo, já que tantas evidências estavam contra ela. Melissa fechou com cuidado a porta do quarto, penetrando lentamente pelo corredor em direção ao hall; e quando o olhou, encontrou-o deserto, cheio de sombras. Sombras que a intimidavam , ocultando, quem sabe, o assassino de Suzana. No alto da escada, com o coração pulsando descontrola do, sem nem mais perceber a ch uva que desabava lá fora, ape nas um pensamento a dominava: era necessário descobrir tudo. Só assim have ria esperanças para ela. Esperança! - pensou sorrindo com desdém. Seria ainda possível ter esperanças? Voltou-se para o quadro, olhando o rosto confiante de Su zana e estremeceu. Tinh a a sensação de estar roubando-a, quando pensava em reconquistar Rodolfo. Quanta ironia, meu Deus! Eu roubar Suzana! Afinal, foi ela quem o tirou de mim. Um ruído vindo do salão dissipou-lhe o pensamento e seus olhos caminharam rápido para baixo, tentando romper a escuridão. As sombras impenetráveis resistiam, ocultando-lhe a ver dade. Uma verdade que tant
o queria conhecer, mas que ao mesmo tempo a assustava. Em sua mente, deixou florescer um pen samento que a aterrorizava. Rodolfo!... E se a verdade tivesse o seu rosto? Os olhos de Melissa encheram-se de temor. Não! Isto nunca. Duas lágrimas queimaram-lhe a face. Podia sim. Estava certa de que podia. Sacudiu a cabeça com força tentando negar-lhe aquela idéia, porque era impossível aceita r tal verdade. Era cruel demais. O peito doía e sentiu a esperança esvaindo-lhe da alma, abandonando-a. Para sempre, continuou pensando. Se a verdade for esta, minha esperança se foi par a sempre. Adeus Rodolfo. Adeus para sempre. Adeus meu grande amor. Um relâmpago atravessou os vidros do salão, emprestando uma luz sinistra ao ambiente . Os olhos de Melissa recuaram à intensidade do clarão, comprimindo-se rápidos. O estampido forte do trovão qu e se seguiu ressoou por toda a casa, fazendo a estremecer. Contemplou novamente Suzana que continuava no seu sorriso silencioso, mas constante. Sentiu frio. Outra vez olhou para o salão, quando sentiu alguém às suas costas. Pensou em voltar-se, mas uma dor lancinante na cabeça cegou-lhe a vista, e somente viu a escuridão. O corpo de Melissa rolou pelas escadas, ficando a princípio inerte, estendido no s alão. Capítulo Quarenta e cinco Final de outono, sem dúvida alguma. Uma despedida violenta, com um forte vendaval. Karla, em seu quarto, sentia uma estranha agitação, andando de um lado para outro, s em conseguir controlar-se. Aproximou-se da porta, tentando ouvir melhor. Silêncio. Nada ouvia, além da chuva e do vento. Mas estava certa de ter escutado, ainda há pou co, passos furtivos. Alguém cruzara sorrateiramente o corredor. Abriu ligeiramente a porta, olhando para a imensa passarela que cobria o piso, c intilando com o reflexo dos relâmpagos que atravessavam o vitral da pequena varanda. Ninguém. Será que ouvira mesmo aqueles passos, ou mais uma vez fora traída pela sua fért il imaginação. Não saberia responder. Era preciso verificar, para ter certeza. Com cautela, fechou a porta do quarto, e veio-lhe na mente a noite trágica da mort e de Suzana. Tudo era igual: a chuva torrencial que desabava e a noite fria. Quem poderia estar vagando pela casa tão tarde? Começou a avançar devagar, detendo-se à porta do quarto de Melissa. Havia luz que fugia sob a porta. Bateu de leve, imaginando-a acordada, mas não obteve resposta. Dormindo! - pensou. Deixou escapar um suspiro de resignação. Por um momento sentiu-s e aliviada, imaginando Melissa desperta, para fazer-lhe companhia, mas, infelizmente... Olhou para a fr ente e imaginou-se já no final do corredor. O que estaria acontecendo no hall da escada? Certamente nada, àquela hora da noite, ponderou. Lançou um último olhar para o fiozinho de luz qu e filtrava sob a porta e continuou a avançar. A fúria do temporal, açoitando as árvores do jardim, produzia ruídos que a assustavam, d eixando-a temerosa. Pensou em Louise, lembrando-se de sua coragem e determinação. Deveria tê-la chamado, c oncluiu com tristeza.
Certamente, àquela altura, ela já teria alcançado o hall, iluminado o salão e desfeito t odos os seus temores. Temores! Quantos tinha! Por um momento estacou, voltando-se atrás, pensando em chamar a filha do destemido detetive, mas conteve-se. Não deveria dar mais asas à imaginação de Louise, pois ela já estava indo longe demais, im aginando coisas absurdas e, o que era pior, possíveis. Com alívio, lembrou que aquela noite era a última naquela casa; e feliz, ganhou o ha ll, apenas iluminado de leve pelas duas arandelas que pendiam próximas do retrato, quebrando a monotonia das tr evas. Tudo estava deserto. Viu os clarões dos relâmpagos que invadiam o salão, dando aos con tornos formas sinistras e instantâneas. Olhou em volta, encontrando-se com o rosto moreno de Suzana que pairava sobre a tela imensa; e perdeu-se por algum tempo no seu sorriso. Karla sentiu uma estranha sensação de medo. Alguma coisa estava faltando ali. Algo q ue sempre estivera naquele lugar e que não aparecia em seus pesadelos com a noite fatídica. Embora não at inasse o que fosse, desta vez estava convencida de não estar sonhando. Sim, agora tinha certeza. Certeza absoluta. O sonho tornara-se real. Tornara-se mesmo, ou não seria novamente um pesadelo? Sabia que seus pesadelos se misturavam com a realidade, e isto a af ligia muito naquele instante. Queria tanto ter certeza de estar vivendo este momento! - pensou angustiada. - A cortina - lembrou. - A cortina da ala norte - repetiu para si mesma, voltando a vista para ela, que balouçava sua ve. Seria o vento? - Novamente a dúvida atormentou-lhe. - O que estará faltando aqui? - pensou. - É estranho. Um espaço relativamente pequeno, com tão poucos objetos, e no entanto, não consigo saber... Os olhos percorreram avidamente ao redor, novamente pousaram sobre a cortina e f icaram paralisados, quando perceberam as pontas de um par de chinelos que apareciam sob ela. O pensamento agitou-se, certa agora de que alguém estava oculto ali. Karla sentiu medo. Era tudo muito igual aquela noite. Pensou em gritar, correr, fugir dali, mas antes era preciso saber. A custo conteve o pânico que a dominava, entrecortando-lhe a respiração. Agora, iria a té ao fim. Não podia retroceder. Era preciso tirar a limpo tudo aquilo. Não poderia viver sempre perdid a no mundo da fantasia. Segurou com força a grade do hall; e dominando o medo, seus olhos desceram até ao sa lão. Real ou novamente um pesadelo? - Sua mente pressionava-a nesta pergunta. Sim, pa recia real. Karla sentiu o horror saltar-lhe dos olhos, ao ver um corpo estirado ao pé da esca da. Novamente ela? Seria novamente Suzana, revivendo toda aquela tragédia? Olhou para as cortinas, que pare ciam mover-se quase imperceptível, certamente ocultando a respiração de alguém. Alguém que não queria ser descob erto, e que, como naquela noite, no seu sonho, usaria de qualquer recurso para impedi-la de v er-lhe o rosto. Um rosto que conhecia muito bem, e que, por isso mesmo, deveria ignorar. Vendo os segundos deslizarem rapidamente, Karla pressentiu que a qualquer moment o seria o alvo da mão criminosa, que se ocultava por trás da farta cortina. Dominada pelo medo, rompeu o
silêncio, deixando um grito forte saltar-lhe da garganta, e continuou gritando e chorando, histericamente. D esmaiou em seguida, vencida pelo pavor. Capítulo Quarenta e seis E ainda houve alguém que disse: " - Há sempre uma esperança em cada manhã". - pensou Mar ilu, fitando o rosto pálido de Melissa. Já passava das duas horas da madrugada, e as perspectivas p ara sua amiga eram obscuras. Acariciou-lhe os cabelos com ternura. - Por um momento imaginei-a morta. Morta como mamãe. Meu Deus! Faça com que Melissa viva. Não a deixe morrer. Seus pensamentos correram através das lembranças. Talvez também mamãe sobrevives se, se não fosse aquela maldita estatueta ao pé da escada. O destino é mesmo inexorável. Não nos deixa nenhuma a lternativa. A mente de Marilu revolvia-se com retalhos do drama passado, misturando-se com o presente. Era-lhe difícil imaginar Melissa morta, mas tinha receio de que não resistisse até pela manhã. Estaria a estrada realmente transitável até lá? Marilu sacudiu a cabeça, sem esperança. Nunca havia acontecido, antes, de a rodovia romper-se com as chuvas, abrindo uma verdadeira cratera, separando-os da civilização. Melissa precisava urgente de cuidados especiais, e a assistência do médico por telef one era muito vaga para eles, que nada entendiam de medicina. Quem sabe ela se recobraria em tempo hábil, consciente e com grandes chances de se recuperar? - pensou Marilu, tentando ser otimista. Ilusão ou realidade, olhando para as mãos de Melissa que ainda tinham alguns sinais de sangue entre os dedos. Clara apareceu à porta, com o rosto sério e preocupado. - Vá descansar, querida. Eu fi co com ela. Marilu sentiu-se aliviada. Tinha medo de que Melissa morresse e isto ela não queri a presenciar. À porta, deitou um olhar cheio de súplica para o semblante indiferente da amiga e saiu para o corr edor. A chuva forte já havia amainado, mas o mau tempo persistia. Caminhou para o quarto , tropegamente, como se se sentisse velha. Um vislumbre de luz sob a porta do quarto de Louise despertou-a de sua apatia. B ateu de leve e ouviu de imediato o "entre" simpático da amiga. - Algum problema com Melissa? - foi logo perguntando Louise, vestindo o peignoir . - Não, nada de novo. Continua inconsciente - falou desanimada. A filha de Colman aproximou-se de Marilu, e segurando-lhe as mãos fez com que se s entasse ao seu lado. - Fique calma, querida. Tudo vai acabar bem. Marilu olhou-a com tristeza. - Você tinha razão - falou com amargura. - Você é quem sempre esteve certa. Mamãe foi mesm o assassinada, e agora tentaram fazer o mesmo com Melissa. - Deixou uma lágrima correr silenciosa. - Esta idéia de que Melissa tentou matarse, por sentir-se culpada pelas cartas e por esta brincadeira tola d
os objetos que foram deixados conosco, é absurda. Ela jamais se mataria. - Com fúria e revolta confirmou: - Mamãe fo i morta! - e jogou-se nos braços da amiga, soluçando amargamente. Louise fez silêncio e a sua mente voltou um pensamento que havia nascido logo após a tragédia com Melissa. Oh, Deus ! - pensou ela, angustiada. - Faça com que eu esteja enganada. É horrível est a dúvida. Como foi imprudente! Suzana pode ter mesmo sofrido um acidente e eu, estúpida, dei a fórmula para alguém cometer o crime perfeito. Sacudiu a cabeça, tentando afastar tal idéia. - Melissa ficou só? - perguntou, tentando fugir de sua consciência. - Clara está com ela. - Marilu fechou os olhos, numa atitude de completo abandono. - Não vejo a hora de ir embora daqui. Odeio esta casa. - Você está muito tensa, minha amiga. Precisa descansar, dormir um pouco. Venha, dei te-se aqui - falou Louise com carinho maternal. - Mas e você? - perguntou, cedendo. - Não se preocupe comigo. Apenas descanse. Louise ajeitou-lhe o cobertor aconchegante e deixou apenas a luz cálida do abajur interrompendo a turva madrugada. Logo percebeu a respiração cadenciada de Marilu, que adormecera vencida p elo cansaço e pelas fortes emoções. Acomodou-se então na confortável poltrona, e se preparou para uma madrug ada de vigílha. Sua mente trazia insistente a cena trágica de horas antes: Karla caída no hall, e lá e mbaixo o corpo de Melissa. O cérebro formigava-lhe dentro da cabeça, fabricando raciocínios. Karla caída próximo à escada, junto às grades, e Melissa estirada no abismo negro do salão . A cena se repetia, pensou, porém com nuances diferentes. Sabia que era impossível fa zer duas coisas idênticas; mas semelhantes, era plausível. Lembrou-se de quando fazia teatro, no tempo de colég io, que a reprise nunca saía idêntica à estréia. Sempre havia alguma pequena diferença. Na morte de Suzana, continuou pensando, Ivan e Melissa disseram-lhe que Karla caír a próximo à cortina da ala norte, e desta vez ela estava desmaiada junto à grade da escada, na ala sul. Porta nto, ela não cruzara o hall daquela vez, e isto era uma diferença considerável. Havia também, no caso, as vítimas qu e eram pessoas diferentes, mas que certamente representavam o mesmo perigo para o assassino. Al go em comum as duas vítimas possuíam, que incomodava demais a alguém. O ferimento, continou, era outra alt eração no desenrolar da tragédia. Louise interrompeu os pensamentos para fixar-se nos passos que cruzavam o corred or. Furtivos e cautelosos. Abriu uma pequena fresta na porta e viu o vulto de um homem que desaparecia no h all. - Será o Sr. Ralph? - perguntou-se. Olhou para o leito e viu Marilu que dormia calma; decidida, descalçou os chinelos e penetrou correndo pelo corredor. Alcançou o hall que estava deserto, e olhou para o salão que continuava oculto pela escuridão. Caminhou para a ala norte, já que vira o vulto de um homem, e eles ficavam daquele lado. Ganhou o corredor e viu quando o vulto sorrateiramente abr
iu a última porta, desaparecendo por trás dela. Louise aproximou-se. O quarto de Clara! - reconheceu. O que o Sr. Ralph estaria fazendo ali? Marilu d isse-lhe que Clara estava cuidando de Melissa... Será que ele havia ido buscar-lhe algo? Os óculos, talvez, co ncluiu sorrindo. Os passos pareceram-lhe aproximar da porta, e Louise não teve dúvida: correu atraves sando novamente o corredor, ocultando-se atrás da farta cortina do hall. Uma dúvida agitoulhe o peito, enquanto aguardava. Se o Sr. Dalph tivesse algo com Clara e ela não estivesse mais com Melissa e sim em seu qua rto? Neste caso, concluiu, estaria entrando num terreno perigosíssimo. Este pensamento se desfez, ao ouvir os passos que se aproximavam, vendo em seguida o vulto que cruzara o hall penetrando no corredor da ala sul. Louise saiu das cortinas, pronta para segui-lo, mas uma idéia brilhou-lhe na mente , ofuscando as demais, e correndo voltou ao corredor da ala norte, entrando rápido no quarto de Clara, que encontrou deserto. Certamente, ela continuava ao lado de Melissa. Sentiu a cabeça queimar com tantos pensamentos loucos, mas com probabilidade de se rem reais. E se foi Clara quem esteve aqui há pouco? - perguntou-se confusa, perdida num mar de idéias. Um hom em! Era tão fácil passar-se por um homem em meio às trevas, concluiu pasmada. Olhou à volta, procurando pelo "presente", pois estava certa de uma coisa: quem es tivera ali, fora o "Amigo Secreto", e Clara ainda não havia sido merecedora de sua cortesia. Acendeu o abajur e seus olhos ávidos varreram o aposento, para de repente pararem, surpresos, diante do que viam. Abaixou-se até ao tapete e alcançou um par de chinelos felpudos, manchados de sangue . Louise fechou os olhos confiante: foram de Suzana, sem dúvida, concluiu. O "Amigo Secreto" havia agido com Clara também. Abaixou-se para depositá-los no lugar, quando percebeu algo oculto sob a cama. Ajo elhou-se no tapete de desenhos geométricos, puxando em seguida uma peça de roupa, que envolvia um candelab ro. Louise ficou de pé, abrindo-a diante de si, reconhecendo ser uma camisola; mas o que a deixou perp lexa foram as manchas de sangue, por toda a barra, que davam a nítida impressão de que alguém ferido havia se a garrado nela, com força e desespero. Viu suas mãos tocarem aquele sangue e não se sujarem, e com avidez voltou aos chinel os. - Estão úmidos! - exclamou aturdida, e em sua cabeça, naquele momento, as peças foram se movendo e caindo cada uma no seu devido lugar, num processo veloz, como um computador processando dados. Com o candelabro na mão, Luise preparou-se para enfrentar uma corrida louca contra o tempo; mas ao levantar-se, chocou-se contra uma cadeira, que caiu, provocando um barulho enorm e. Louise fechou os olhos com fúria. Naquele momento chegou à conclusão de que o seu temp o, antes tão pequeno, possivelmente agora seria menor ainda.
Capítulo Quarenta e sete Quando saiu para o corredor, Louise encontrou o Sr. Ralph que já saía de seu quarto, seguido de Ivan e Domingos; olharam-na surpresos. - Não pensem nada ainda - disse ela, erguendo a mão num pedido de calma. - Venham co migo, rápido - falou, saindo correndo. O Sr. Ralph tentou detê-la, segurando-a pelo braço. - Por favor... - ela implorou. - Melissa pode estar sendo assassinada neste exat o momento. Eles se entreolharam e, em seguida, partiram atrás dela, sem contudo entendê-la. Qua ndo passaram pelo hall, Louise tentou colocar sobre a pequena mesa, aos pés da tela, o outro candelabro qu e havia encontrado no quarto de Clara, mas ouviu o barulho dele chocando-se contra o chão, antes mesmo de alcança r o corredor da ala sul. Entraram de chofre no quarto de Melissa e Louise correu para ela, tentando imobi lizar Clara que a sufocava com um travesseiro. Todos ficaram estupefatos, vendo Clara agitar-se, tentando soltar-se dos braços vi gorosos de Ivan e Domingos, que perceberam logo o que se passava. Marilu surgiu à porta, trêmula, sem nada enten der. - Papai! Melissa está... Ele correu para ela, acalmando-a. - Não, querida. Ela está viva e vai ficar boa, esteja certa. Clara, cansada de debat er-se, aquietou-se e encarou Louise com desprezo. - O demônio de cada um! - exclamou a filha de Thomas Colman, respondendo àquele olha r. Karla surgiu à porta, com os olhos interrogativos. - As cartas anônimas, a morte de Suzana...- disse Louise. Clara sentou-se com imponência e, depois de um silêncio, sorriu com ironia. - Agora suspeita de mim. - Meneou a cabeça. - Pobrezinha! Não vai conseguir nunca de scobrir a verdade. - Tenho pena de você, Clara - respondeu-lhe com estilo. - Muita pena, pois sinto q ue vou decepcioná-la. A mulher encarou-a com desdém. - Há poucas horas atrás, vocês estavam magoados comigo, por terem feito confidências a m im, e eu estar tirando proveito delas. Pois bem; se não fossem estas confidências, nós não poderíamos chegar à verd ade. - Olhou para Domingos. - Uma vez você me disse que Clara escrevera uma carta de amor a Suzana, em seu nome, imitando inclusive sua letra... Domingos olhou surpreso para Louise e depois para Clara. - Então, você acredita que foi ela quem escreveu as... - ... as cartas anônimas para o Sr. Ralph e Suzana. E tem mais: ela imitou a letra de Melissa propositadamente. É como dizem: com aquela s cartas e com a caligrafia de Melissa, estaria matando dois coelhos com um tiro só. Estaria afastando Suzana e Melisa da vida do Sr. Ralph. Louise percebeu que este ficou lívido com tais palavras. - Mas seu plano das cartas falhou: nem Suzana, nem o Sr. Ralph trouxeram o fato à baila. Então, ela resolveu cortar o mal pela raiz, e assassinou Suzana, empurrando-a da escada. Marilu deixou um grito de dor escapar, escondendo o rosto no peito de seu pai.
Louise prosseguiu concisa. - Novamente Clara viu seus planos quase se darem mal, pois Karla ouvira algo e f oi até ao hall, descobrindo que havia alguém oculto por detrás da cortina. Era Clara, já empunhando um candelabro, pronta para atacá-la, e foi o que fez quando Karla puxou a cortina. - Meu Deus! Isto não pode ser possível - disse o Sr. Ralph consternado. - Clara!? - A mão canhota de Clara ajudou-me muito nestas conclusões. Quando descobri que Karl a foi encontrada caída do outro lado do hall, imaginei logo que ela pressentira ou mesmo tinha visto al go ali e que fora verificar, sendo golpeada do lado direito, pois ela recebeu o golpe de frente, ao suspender a cor tina. Só uma pessoa canhota pode agredir alguém, estando de frente, e atingir seu lado direito. - Louise parou, dan do tempo para que todos sentissem o que estava explicando. Mas as evidências não param aí, - prosseguiu ela pois quando Clara golpeou Melissa, o fez por trás, atingindo, portanto, seu lado esquerdo. Clara riu alto. Uma estrondosa gargalhada. - Você certamente fará sucesso como seu pai - zombou. - Diga que é mentira tudo isso, Clara. Diga! - gritou o Sr. Ralph, sacudindo-a. Ela ficou séria, tirando as mãos que ele tinha sobre ela. - É verdade. Tudo isso é verda de. Eu escrevi as cartas, eu a matei... - Não! - gritou Marilu, apoiando-se em Ivan. - Não pode ser, não pode ser... Clara olhava um ponto qualquer do passado. - Eu a odiava. Odiava muito. Ela era a maravilhosa, a milionária, o anjo perfeito de bondade. Seu rosto estava pálido, os olhos brilhantes de ódio e mágoa; os lábios, crispados, fala vam com profundo rancor. - Afortunada, feliz, amada por tantos homens... Enfim, ela era a imagem da perfe ição. Perto dela eu não me sentia... Eu era nada. - Lágrimas corriam quentes, queimando a face fria de Clara. - Eu não tinha direito a nada; apenas às migalhas que ela deixava cair pelo chão. As sobras que ela certamente iria jogar fora. - Não fale assim, Clara! - cortou Domingos. - Suzana amava você como a uma irmã, chega ndo mesmo a lhe dar parte de sua herança. - Para se ver livre de mim! - cortou ela, quase gritando. - É mentira! - gritou ele. - Você é que sempre foi muito ambiciosa. Ambiciosa e invejosa. Clara sorriu com tristeza. - Será sempre assim. A vida toda, você irá cultuá-la, defendê-la, cobrindo-a de virtudes e mais virtudes. - Clara ficou de pé, olhando para o rosto de Melissa, que inconsciente ignorava tudo que a contecia a sua volta. - Queria tanto destruíla também - falou melancólica. - Mas não tive sorte desta vez. Acho que gol peei com pouca força, e ela apenas ficou atordoada, se recuperando logo, tentando subir as escadas e se arrastando, agarrando-se a mim... Rodolfo comprimiu os olhos, imaginando a cena dramática que Melissa havia vivido, lutando contra a mão assassina de Clara. - Eu não podia mais parar. Tinha que acabar logo com tudo, ali mesmo, naquela hora . Mas ela continuava lutando, agarrando-se à minha camisola, impedindo-me de empurrá-la novamente escada abaixo. - Olhou para o Sr. Ralph e para Melissa. - Eu odeio você, Rodolfo. Tantos anos de devotamento e s
equer percebeu que eu sou uma mulher, igual a outra qualquer, com sentimentos, com coração. Foi um movimento brusco, sem ninguém esperar. Clara saiu correndo do quarto, deses perada, entrando pelo comprido corredor, gritando o seu ódio por Suzana, Rodolfo e Melissa. Todos correram atrás, tentando alcançá-la; mas quando chegaram ao hall, pararam estupe fatos. Clara tropeçou no candelabro que Louise deixara cair, rolando escada abaixo. O silêncio seguiu-se ao enorme barulho e vários pares de olhos fitavam do alto da es cada um corpo inerte, perdido em meio ao salão. Da tela, o rosto sereno de Suzana permanecia impassível, com seu sorriso eterno. Capítulo Quarenta e oito O candelabro caído no chão era a causa da última tragédia. Domingos subiu as escadas, ap anhou-o e olhou para os demais. - Está morta - disse com tristeza. O Sr. Ralph soltou um profundo suspiro. - Talvez tenha sido melhor assim - falou em tom amargo. - Melhor para todos nós. Domingos fitou por alguns momentos o candelabro, e aproximou-se em seguida da pe quena mesa, depositandoo ao lado do outro. Num gesto rápido, Karla elevou a mão aberta no ar, gritando para ele. - Espere, Domingos. Os olhos de Louise se iluminaram. Domingos voltou-se surpreso. Karla aproximou-s e dele eufórica. - Era essa a diferença! - falou, tirando novamente o candelabro do lugar. - Alguma coisa estava faltando aqui, tinha certeza. - Foi com ele que Clara golpeou você e Melissa - esclareceu Louise muito sensata. - Ela deve ter ouvido meus passos se aproximando e, apavorada, apanhou-o, para g olpear-me. - Sim, e como podem observar, todas as duas vezes ela retirou o candelabro da es querda, por ser canhota, e ocultou-se atrás daquela cortina. Por isso Karla foi encontrada caída daquele lado, da outra vez. - É isso mesmo! - disse Karla com entusiasmo. - Eu sabia que havia alguém ali, porqu e vi as pontas de um par de chinelos que saíam por baixo; mas quando fui suspender a cortina, senti uma dor muito forte na cabeça e não me lembro de mais nada. - Está convencida que seus pesadelos apenas retratavam uma realidade? - perguntoulhe Domingos. - É... Eu sempre soube, mas tinha medo de encarar a realidade. Talvez não quisesse a ceitar, inconscientemente, a forma cruel como Suzana encontrou a morte. Foi horrível. Jamais conseguirei esqu ecer quando cheguei aqui e a vi caída lá embaixo, esvaindo-se em sangue, morrendo. - Pobre Clara! - exclamou o Sr. Ralph, olhando o corpo estendido no salão. - Estav a realmente louca e tentando enlouquecer-nos também, colocando aqueles objetos de Suzana, sujos de sangue, à noss a vista. - Mas isto não foi obra de Clara - disse Louise muito calma. - Não foi? - perguntou Ivan surpreso. - Não - respondeu ela. - E confesso que isso também descobri por mero acaso, ainda há pouco - disse, levantando a mão direita de Karla, deixando à mostra sua palma, com manchas vermelha s.
A moça ficou séria, ocultando a mão num gesto brusco. - Quando você levantou a mão ainda há pouco, pedindo a Domingos que esperasse, descobri o seu segredo. Reconheço que é uma excelente atri z. - Olhou para os demais. - Também já fiz teatro nos tempos de colégio... - Então era você? - perguntou Marilu, perplexa. - Sim. Karla aprendeu certos truques no teatro - disse séria. - Agora sei onde and ei manchando minhas blusas... Foi em seu quarto - completou olhando firme para ela. - E quanto aos seus inúmeros desmaios, creio que só o primeiro e o último foram verdadeiros. Os demais, aconteceram após suas traquinagens e não passaram de representação, pois serviam para afastá-la de qualquer suspeita. - Espero que tenha uma boa explicação para nós - disse, severo, o Sr. Ralph. Karla encolheu os ombros, olhando para Louise, suplicante, e encontrou nela um sorriso encorajador. - Bem, eu... Eu confesso minha culpa - falou torcendo as mãos, muito agitada. - Fui uma tola, ou melhor eu sou uma tola. Não queria ficar aqui e não queria também que Domingos ficasse, pois pensei que ele e Marilu pudessem vir a... Karla estava confusa e não encontrava palavras adequadas para aquela dolorosa confissão. Louise interveio: - Karla não fugiu ao fanatismo que envolve a todos vocês. Ela também sente uma paixão doentia por Domingos e teve medo de perdê-lo para Marilu. - Você é tão parecida com Suzana, que... - disse ela, tentando justificar-se. Louise prosseguiu: - Foi aí que ela arquitetou este "plano", para assustar a todos, e conseqüentemente pensou que assim estaria afastando os dois. - Olhou para Karla com pena. - O demônio de cada um! - repetiu. - Eu precisava tirar Domingos daqui... - Você foi mesmo diabólica, Karla. Vestia-se de homem para desviar as suspeitas, caso alguém a visse; e com o seu porte atlético, o corte de cabelo, enganaria a qualquer um que a visse no meio da noite. - Sorriu. - Naquela tarde, quando foram à cidade você também voltou aqui, e entrou pela saleta onde eu estava ligeiramente adormecida. Confesso que senti um vento estranho invadir o recinto, mas de nada suspeitei. Você é mesmo muito astuta. Chegou a ter a audácia de entrar pela saleta, mesmo vendo-me lá. - Jamais poderia imaginar... - disse Marilu ainda perplexa. Louise voltou a falar, retrocedendo no tempo. - Foi você quem Violeta viu e até a confundiu com o Sr. Ralph, naquela mesma tarde, quando já estava de saída, entrando pelo corredor em direção à saleta. - Sim. Você tem razão em tudo. Também estive no quarto de despejos onde apanhei a boneca, e mais tarde, passando pelo corredor, ouvi Melissa perguntar a Marilu por que queria guardar aquela roupa, ou coisa assim. Resolvi verificar do que se tratava e, quando entrei no quarto, vi Marilu tentando ocultar a camisola de Suzana às costas. Não foi preciso palavras. Eu estava vendo, com meus próprios olhos, através do espelho. Neste momento, tive uma grande idéia, e não foi difícil entrar lá, sorrateiramente, e apanhá-la. - Só podia ter sido você - disse Louise aborrecida. - Mas por que só podia ter sido ela? - perguntou preocupado o Sr. Ralph.
- Desculpem-me, mas agora é que me ocorreu algo e confesso que estou indignada comigo mesma - explicou Louise. - Eu sabia que Marilu havia ido ao quarto de despejos, mas se tivesse prestado bem atenção nos detalhes, teria concluído de imediato que Karla passara por ali. Viu que eles aguardavam por algo. - Vocês não imaginam a desordem que encontrei lá. Apesar do triste cenário, ninguém conseguiu conter um sorriso. Apenas Karla permaneceu séria, sentindo-se constrangida. Capítulo Quarenta e nove Louise deslizava pelo asfalto, no seu carro azul metálico. - Sol! - exclamou ela f eliz. - Que bom ver você novamente. Após uma semana chuvosa, ela viu outra vez aquele brilho estonteante, e sentiu o s eu calor ameno. Sorriu em pensamento, ao perceber que o sol para ela era sinônimo de vida. Duas gr andezas, mas de força ímpar. Vida! O que era a vida para ela? Um acaso? Não, não poderia ser um mero acaso. A vida era algo muito maior. Um milagre, talvez. Um milagre q ue se repetia a todo instante, e que muitos nem sequer o percebia. Para Louise, a cada nova vida, não só no reino animal, mas vegetal também, era o milagre que estava se repetindo. - Viver! Como é bom sentir essa grandeza. Vale a pena arriscar-se por este milagre . A enorme placa, à frente, acusou já ter chegado ao seu destino e logo conseguiu uma vaga no estacionamento. Atravessou um amplo saguão, dirigindo-se à recepção do hospital, onde Melissa se recuper ava. Sorriu confiante: valia a pena viver, repetiu para si. Penetrou por um comprido corredor, e uma forte emoção invadiu-a. Bateu de leve à porta e em seguida abriu-a, colocando o rosto à mostra. - Posso entrar? - perguntou sorridente. Vários olhos a fitaram surpresos e no rosto de todos estampou-se prazer e admiração. - Louise! - exclamou Marilu indo ao seu encontro, para um grande abraço. - Que bom ver você! - Que bom ver você! - repetiu o Sr. Ralph, levantando-se para um aperto de mão. - Flores para a doente mais bonita deste hospital - disse ela à Melissa, estendend o-lhe um delicado ramalhete. Ivan e Domingos também a cumprimentaram com entusiasmo. Louise percebeu alívio no se mblante de cada um, como se tivessem despertado de um terrível e longo pesadelo. Foi até Karla, que permanecia silenciosa num canto, e abraçou-a com carinho. Depois sorriu, apontando em direção à janela que mostrava um bonito jardim lá fora. - O sol voltou a brilhar. Ele sempre volta; nunca nos abandona. - Deixou um susp iro escapar. - O céu azul, o sol brilhante: nossas maiores riquezas, além da vida, é claro. Marilu fitou-a com um sorriso triste. - Seu tempo aqui... acabou? Ela primeiro retribuiu-lhe o sorriso. - Sim. Tenho que voltar. Mas não vamos ficar tristes. O mundo dá muitas voltas, e nu ma delas, iremos novamente nos encontrar. Eu lhe devo tanto. Devo tudo - falou Marilu emocionada.