O ÊXTASE DA INTIMIDADE ONTOLOGIA DO AMOR HUMANO EM TOMÁS DE AQUINO
JUAN C RUZ C RUZ
O ÊXTASE DA INTIMIDADE ONTOLOGIA DO AMOR HUMANO EM TOMÁS DE AQUINO
Tradução:
Carlos Nougué
2011 - Rio de Janeiro
© 2011, Sétimo Selo Editora Ltda. www.edsetimoselo.com.br - (21) 2242 7634 Todos os direitos reservados e protegidos pela Lei 9.610 de 19/02/1998. Nenhuma parte deste livro, sem autorização prévia por escrito da editora, poderá ser reproduzida ou transmitida sejamquais forem os meios empregados: eletrônicos, mecânicos, fotográficos, gravação ouquaisquer outros.
Título srcinal El éxtasis de la intimidad : ontología del amor humano en Tomás de Aquino Tradução Carlos Nougué Revisão Sidney Silveira Produção gráfica e design Sol Tavares Coordenação editorial Octacílio Freire e Sidney Silveira ISBN 978-85-99255-12-4
CIP-Brasil. Catalogação-na-fonte. Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ C961e Cruz Cruz, Juan O êxtase da intimidade : ontologia do amor humano em Tómas de Aquino Juan Cruz Cruz ; tradução Carlos Nougué. - Rio de Janeiro : Sétimo Selo, 2011. 250p. Tradução de: El éxtasis de la intimidad : ontología del amor humano en Tomás de Aquino Inclui Bibliografia ISBN 978-85-99255-12-4 1. Tomás, de Aquino, Santo, 1225?-1274. 2. Amor - Filosofia. I. Título.. 11-0330. CDD: 128.46 CDU: 177.61 18.01.11
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SUMÁRIO INTRODUÇÃO .............................................................................................. 1 1. O amor humano como tema de estudo filosófico 2. Inflexões etimológicas e idiomáticas a) Amor b) Intimidade c) Êxtase 3. O realismo do amor
PRIMEIRA PARTE : INTIMIDADE , ÊXTASE E AMOR I. PESSOA E A MOR ...................................................................................... 19 1. Concepção física e concepção personalista do amor 2. Articulação psicológica das tendências “naturais” a) Inclinação, apetite e vontade b) Amor e perfeição própria c) A afetividade e o amor espiritual d) O físico no pessoal 3. Sentido primário do amor: a pessoa 4. Personalidade e intimidade a) A abertura da intimidade b) O amor como união afetiva
II. A MOR E I NTIMIDADE ............................................................................... 55 1. Intimidade e consciência 2. A intimidade na profundidade do amor 3. Intimidade e inconsciente 4. Gratuidade da intimidade como qualidade relacional 5. A ilha da intimidade III. ÊXTASE E A MOR .................................................................................... 89 1. amorperfeito como êxtase 2. O Amor e êxtase perfeito3. O êxtase unificante
4. O amor de si e o êxtase amoroso
IV. O AMOR ÍNTIMO ................................................................................. 105
1. Tipologia do amor perfeito a) Amor benevolente b) Amor íntimo 2. O amor de amizade 3. O amor esponsalício 4. O amor paterno-filial V. DOAÇÃO E POSSE .................................................................................. 137
1. Dialética do amor humano perfeito a) A posse na doação b) Amar e ser amado 2. Os motivos no amor a) A pureza de motivos b) A mescla de motivos c) Hierarquização de motivos 3. Interesse e desinteresse no amor
SEGUNDA PARTE : ESSÊNCIA, CAUSA E EFEITOS DO AMOR VI. O A MOR SENSÍVEL ............................................................................... 161
1. A ordem do apetite sensível: imediatez e mediação 2. Respostas afetivas sensíveis 3. O amor sensível VII. O A MOR ESPIRITUAL ........................................................................... 181
1. 2. 3. 4.
Fenomenologia e ontologia do amor Constituição volitiva do amor espiritual Volições e sentimentos. Meiose fins Retroversão volitivacomo ato para a objetividade
VIII. A C AUSA DO A MOR .......................................................................... 197
1. A distância do outro 2. O bem como causa específica do amor: fim e valor
3. O conhecimento como condição necessária do amor a) Anterioridade principial do conhecimento b) A objetividade do amor 4. A semelhança como raiz do amor a) A semelhança do amado com o amante b) Semelhança perfeita e imperfeita.O amor perfeito ou quiescente. c) A dessemelhança, causa incidental do amor d) A índole absoluta do outro e o amor perfeito 5. Hierarquização causal das respostas afetivas a) Precedência ontológica do amor b) Causas subliminais do amor IX. E FEITOS DO AMOR ............................................................................... 231
1. A união efetiva a) A união no amor quiescente e no itinerante b) Unidade e união amorosa. O amor de si mesmo c) A união amorosa e o conhecimento 2. A interpenetração no amor 3. A alteridade no amor a) Amor quiescente e êxtase perfeito b) Saída de si e amor de si c) Intensificação da alteridade. Os zelos, o zelo 4. O ódio sob o amor a) O amor, causa universal b) A estrutura do ódio c) Há ódio de si absoluto? d) A inveja como raiz do ódio 5. O amor como causa exemplar. Amor e matrimônio a) Etiologia do matrimônio b) O amor esponsalício, causa ou efeito do matrimônio? c) A mais antropológica das causas d) O influxo do amor como causa exemplar
INTRODUÇÃO 1. O amor humano como tema de estudo filosófico 1. Posso descobrir o amor de modos muito diferentes. Primeiro, quando amo alguém: trata-se de uma experiência ativa
e imediata, sendo o objeto diretoo do amor outro. Segundo, quando observo amor empropriamente outras pessoaso que se amam: é uma experiência mediata. Terceiro, quando sou amado: esta é uma experiência passiva e imediata, ainda que especialíssima, porque o objeto do amor sou aqui eu mesmo; ao ser tocado pelo amor de outra pessoa, percebo que o conteúdo do amor se aproxima de mim de modo único; já sinto um sopro alentador pelo simples fato de ser dirigido a mim. Todas essas experiências ajudam a compreender o que é o amor: afirmação afetiva ou comprazida que um ser humano faz da existência de outro. Desde a baixa Idade Média até o Renascimento, foi frequente tratar o tema do amor distinguindo nele três questões: sua essência, sua causa e seus efeitos. Sua essência consiste na afirmação comprazida que o amante faz do amado. Sua causa é a índole boa do amado. Seus efeitos são fundamentalmente a saída de si ou êxtase (do grego, , pôr para fora) e a efetiva união real com o amado. Talvez possa parecer chocante que no título de uma investigação filosófica sobre o amor não figure o nome de sua essência, mas o de um de seus efeitos, a saída de si ou êxtase. Mas há razões de peso — em especial de índole histórica, como as esgrimidas pelo solipsismo, pelo subjetivismo e pelo idealismo — que aconselham este proceder, como se irá vendo. Isso permitirá delinear a essência e as causas do amor; e até o sentido do mesmo amor como causa. Deve ficar claro também se tal saída é apenas uma concomitância acidental ou se, pelo contrário, é um elemento necessário do ato afetivo amoroso. 2. Não é estranho ao clima intelectual contemporâneo o uso do termo êxtase, ou de um sinônimo seu, para ilustrar aspectos fundamentais do ser humano. Por exemplo, Heidegger O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino
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sublinhou com particular acento metafísico a natureza extática do homem: em Was ist Metaphysik?, ele explica que a consciência humana já pressupõe uma existência extática (Eksistenz), que é o modo como o homem desdobra sua essência enquanto homem; estar extático, fora de si, na verdade do ser, é o próprio de um sujeito não puro nem encapsulado em si mesmo.autores Essa idéia heideggeriana assemelha à expostacomo por vários contemporâneos emsechave antropológica, Plessner e Gehlen. Em contraposição à índole fechada do comportamento animal, Plessner indicou a posição excêntrica do homem, e Gehlen a abertura de suas tendências. Exzentrische Position, Offenheit, Ek-sistenz são determinações paralelas à caracterização do comportamento afetivo humano feita pelo Aquinate mediante o termo êxtase, o que indica um traço normal do projeto existencial do homem, da atualização de sua natureza específica. 1
2. Inflexões etimológicas e idiomáticas
a) Amor 1. O amor cumpre o destino, ao mesmo tempo extático e unitivo, marcado em sua srcem etimológica. Para uns deriva do grego , semelhante , pois os que se amam são semelhantes; para outros provém de , desejar vivamente : amar implica um querer intenso e ardente; e para outros de , que significa ligar, conectar, pois o próprio do amor é juntar os amantes. Presente, em todo o caso, está a raiz . O nome do sentimento contraposto ao amor, o ódio , pode vir do verbo grego , que significa ter aversão a ou irritação contra alguém; ou de , que significa afligir e causar dor. Em todo o caso, da raiz grega surge a 1 - S. Th., I-II, 28, 3; II-II, 175, 2; III Sent., d. 27, q. 1 a. 1 ad 4; De div. nom., 4, 10. 2
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idéia de devorar e roer. Todas essas dimensões semânticas estão implicadas no ódio, enquanto resposta afetiva contrária à do amor. Pois, como o mal se contra põe ao bem, sendo este o objeto próprio do amor, o objeto do ódio é o mal. Não é fácil pôr em correspondência a palavra “amor” com um só termo grego que expresse sua riqueza semântica. Para indicar parte de seus conteúdos, dispunham de vários vocábulos: os gregos e Este último termo, que equivale a amar com ternura, é próprio do amor filial, . Referindo-se ao amor passional ou sexual, os latinos antepunham à palavra amor a preposiçãoad para indicar sua incoação (adamare), ou o prefixo de para significar sua intensidade e veemência (deamare). Responde este significado ao grego (donde , , ). O amor erótico ou sexual é, para um latino, deamatorium. Mas acima deste amor, que quer alguém por indigência ou buscando alguma utilidade, ao menos a do prazer, existe outro, que quer para o outro osmaiores bens, ainda que disso não redunde nada em proveito próprio. A significação do termo “amor” não se reduz, pois, srcinariamente aos efeitos lúbricos. Quando o amor sincero e honesto já se tornou hábito em alguém, diz-se que ele ama como amigo. Aamicitia, , é o estado habitual que relaciona osamigos. Um modo de amor não sensitivo e passional, mas com inteligência e juízo, é expresso pelo termo latino dilectio, que traduz o grego, referindo-se ademais não a qualquer bem, mas a bens superiores ou ótimos. 2
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2 - Uma análise detida desses termos pode ser consultada em Carl Abel, Über den Begriff der Liebe in einigen alten und neuen Sprachen. 3 - No que se refere a , Hesíodo explica em sua Teogonia (120) que é “o maisum beloserentre os deusesentre imortais”; mase Platão o concebe como um daimon, intermediário os deuses os homens (Symposium 204 c; Phaidros 250 d), dando-lhe um sentido dinâmico totalizador e, ao mesmo tempo, ascensional: se inflama diante do corporalmente belo, comprometendo a força vital do sujeito, sua paixão, mas ascende em seguida a formas mais puras de beleza, chegando à contemplação do divino. Razão por que reúne o mais baixo e o mais alto, o sensual e o espiritual, o natural e o ético. E, assim, impede a desintegração do homem, o isolamento de suas partes: tudo deve estar unido.
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Amor abarca também o espectro semântico do termo caridade, que significou inicialmente entre os latinos o que o termo espanhol carestía [falta, escassez, carestia] expressa, situação em que se carece de algo necessário. Por metonímia passou caridade, primeiro, a significar as coisas de grande apreço ou estima e depois o mesmo amor por essas coisas e por pessoas 4
muito apreciadas (como os pais,eaisso pátria Deus), estima se antepõe a todas as outras, come um afetocuja máximo que não responde a utilidade própria. Também se aplicou por extensão a seus signos e efeitos, como às obras de beneficência, com que se guarda e aumenta esse amor especial que é a caridade. O idioma espanhol incorporou esse significado em expressões, já em desuso, como “dilecto y caro amigo” [dileto e caro amigo]; e também o utiliza em geral referido a obras humanitárias ou de ajuda ao necessitado. Com só uma palavra, amor, dirigimos de diversas maneiras nosso afeto a Deus, aos homens e ao mundo. 2. Quanto aos termos gregos referentes ao amor, não é uma palavra que se encontre com freqüência no Antigo Testamento; e, naturalmente, não aparece no Novo, que prefere e Pois bem, não se pode amar os inimigos em forma de , mas de , razão por que a Vulgata optou por traduzir por diligere ( por dilectio ou caritas) e (e ) por amare. Por sua vez, o latino caritas não é sinônimo de amor: aos deuses, aos pais, à pátria, aos sábios se professava caritas, porque é um afeto nobre; ao esposo, aos filhos, aos irmãos e familiares se tinha amor, porque implica certa sensualidade. Por isso, tanto os gregos como os latinos possuíam um termo para o, chamemo-lo assim, amor vertical (, dilectio, caritas) e outro para o amor horizontal (, amare). Em arcaica e acadêmica se converte, em castelhano, a palavra dilección [dileção], cujo núcleo significativo entra nos aspectos semânticos de amor, como acontece 5
4 - Será do tradutor tudo quanto no corpo do texto estiver entre chaves. [N. do T.] 5 - C. Spicq, Agape dans le Nouveau Testaments. Analyse des textes. 4
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também no idioma latino usado pelo Aquinate: “O amor é certa quiescência (quietatio); e, assim como o apetite se encontra tanto na parte sensitiva como na intelectiva, assim também o amor. Mas o que pertence ao apetite sensitivo se transfere para o intelectivo, como os nomes das paixões. O próprio do apetite intelectivo não convém ao apetite sensitivo, como o nomededeapetite, vontadena. Dado queemo que amorsese encontra em ambos os tipos medida acha no apetite sensitivo se chama amor em sentido próprio, por comportar paixão; mas enquanto se acha na parte intelectiva se chama dileção (dilectio), que inclui uma escolha (electio) pertencente ao apetite intelectivo. Ademais, o nome amor se transfere ao apetite superior, ainda que o nome dileção jamais se transfira para o apetite inferior. Todos os demais nomes que parecem pertencer ao amor ou são assumidos por estes, ou os incluem como se acrescentassem algo à dileção e ao amor”. 6
b) Intimidade 1. O ato mais alto do amor é a aprovação que uma intimidade faz da intimidade do outro. A análise de sua raiz semânti6 - III Sent., dist. 27, q. II, a. 1. É de lamentar que este enfoque amplo e integrador do Aquinate não tenha sido levado em consideração por muitos tratadistas posteriores. Até o próprio Dictionnaire de spiritualité ascétique et mystique (Paris, 1937-1995) restringe arbitrariamente o amor ao âmbito do apetite sensível. “A amizade e o amor têm algo em comum, a saber, são movimentos afetivos que provêm, ambos, do apetite. Mas diferem em que o amor surge do apetite sensitivo, enquanto a amizade nasce do apetite racional. O amor é, pois, de ordem inferior, orgânica: nasce da sensação e tende aos prazeres sensíveis ou sensuais; em si mesmo é cego, brutal, inquieto, facilmente violento, natural mente egoísta. Quando tem por o bjeto pessoas de sexo diferente e tende à união dos corpos para a conservação da toma a forma de amore,sexual. A amizade,calma como tal, é de ordemespécie, superior, ideal; é espiritual por conseguinte, e serena. A simpatia preside seu nascimento, a razão a fixa e a rege; ela paira sobre o espaço e o tempo. Em uma palavra, o amor é material, a amizade é espirit ual” (t. I, verbete Amitié , p. 507). É verdade que não se podem pedi r aos textos do Aquin ate as matiz ações fenomenológicas que, por exemplo, Scheler (Wesen und Formen der Sympathie ) ou Pfänder ( Zur Psychologie der Gesinnungen) fizeram em torno do fato amoroso; mas tampouco foram escritos com essa intenção.
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ca ajuda a entender o sentido da intimidade. Provém do grego , que significa “dentro”; do qual deriva o latim intus, e daí intimus. Percebe-se em castelhano [como, mutatis mutandis, em português] pelo menos uma dupla dialética no término “íntimo”: 1.ª a de exterior/interior (“estímulos íntimos”), parecida com a de íntimo centro lá superficial/profundo no peito”, teria dito (“amigo Garcilasoíntimo”, em sua “no Égloga segunda); 2.ª a de público/privado (“em defesa do íntimo”, “não publicar coisas tão íntimas”). Nas obras do Aquinate aparece também esta dupla dialética no termo intimus ou, no plural, intima (as profundidades, os interiores, as entranhas de uma coisa), segundo o nível ontológico do que é tratado. Por exemplo, os bens espirituais são o íntimo, intima, em contraposição aos sensíveis. Com freqüência o plural é acompanhado do genitivo de res: intima rerum ou intima rei. No que concerne à vida intelectual, por exemplo, a inteligência conhece intima rei; ou o conhecimento passa ad intima rei. E, no referente à vida afetiva, o 7
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7 - Entre os clássicos castelhanos — assim como em Santo Tomás e São Boaventura — era freqüente designar como “íntimas” aquelas entidades que, por estarem no vértice dos graus do ser, afetam profundamente com sua presença ou ação outros seres. Por exemplo: Deus nas criaturas, o ser no ente, e o espírito na psique humana. Com respeito ao primeiro, expressa-se assim Fray Luis de León: “Escusada coisa foi dar-lhe a Deus nome, o qual está tão presente a todas as coisas, e tão lançado, como diríamos, em suas entranhas, e tão infundido e tão íntimo como está seu ser delas mesmas” (De los nombres de Cristo. De los nomes en general, 28.43. Para estas e outras citações de autoridades, cf. R. J. Cuervo, Diccionario de construcción y régimen de la lengua castellana, T. V, 731-734). Com respeito ao segundo, diz o Padre Granada: “E, porque o ser das coisas é o mais íntimo que há nelas, seguese que ele está mais dentro delas do que elas estão dentro de si mesmas” (Orac. y Consider., 2. 2. §brigava 3). E, com ao terceiro, expressa-se Unamuno: “Sua cabeça comrespeito seu coração, e ambos, coração e assim cabeça, brigavam com ela com algo mais veemente, mais estranho, mais íntimo, com algo que era como a medula dos ossos de seu espírito “ (La tía Tula, 10). 8 - Super ad Hebraeos, 4. 1,115. 9 - De Verit., 1, 12. 10 - III Sent., 35, 2, 2a. 6
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amor perfeito ou de doação vai ad intima amati. Assim, intimus ou íntimo pode ser considerado um termo análogo que se refere a áreas ontológicas que excedem outras em profundidade, ou em elevação, ou em importância ou grandeza, sejam de índole entitativa ou operativa. Também intimus se opõe a público e significa secreto, fe11
chado: por isso nes intimae . os demônios não podem ver nossas cogitatio2. Para o esclarecimento do conceito de intimidade, também é interessante recolher as indicações e sugestões psicológicas transmitidas pela tradição mística ocidental. São pautas que exigem ser sistematizadas. E não é possível fazer aqui um elenco de tais testemunhos. Basta citar um dos mais vibrantes, o das Moradas de Santa Teresa de Jesus: “Considerar nossa alma como um castelo todo de um diamante ou mui claro cristal, onde há muitos aposentos [...]. Mas que bens pode haver nesta alma poucas vezes o consideramos, e assim se tem em tão pouco procurar com todo o cuidado conservar sua beleza; vai-se-nos tudo na grosseria do engaste ou cerca deste castelo, que são estes corpos. Pois consideremos que este castelo tem — como eu disse — muitas moradas, algumas no alto, outras embaixo, outras dos lados, e no centro e meio de todas estas tem a principalíssima, que é onde acontecem as coisas de muito segredo entre Deus e a alma [...]. Pois, tornando a nosso belo e deleitoso castelo, devemos ver como poderemos entrar nele. Parece que digo um disparate; porque, se este castelo é a alma, é claro que não há por que entrar, já que é ele mesmo; como 12
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11 - S. Th., II, 28, 2. Para outras questões relacionadas com o tema na Idade Média, podem ver-se as seguintes obras: Roberto Busa, La terminologia tomistica della interiorità; Carlo Giacon, Interiorità e metafisica: Aristotele, Plotino, Agostino, Bonaventura, Rosmini. há uma abundância de citações a 12 - De Malo, 16, 8. NoTommaso, Index Thomisticus respeito. Não aparece, em contrapartida, o termo intimitas no Aquinate. 13 - Reconhecidas, a esse respeito, são as obras de A. Gardeil, La structure de l’âme et l’expérience mystique; M. Schmaus, Die Psychologische Trinitätslehre des Hl. Augustinus; L. Malevez, La doctrine de l’image et de la connaissance mystique chez Guillaume de Saint-Thierry; O. Karrer, Meister Eckehart, das System seiner religiösem Lehre und Lebens-weisheit; H. Kunisch, Das Wort “Grund” in der Sprache der deutschen Mystik des 13. und 14. Jahrhunderts.
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pareceria desatino dizer a alguém que entrasse numa peça estando já dentro dela. Mas deveis entender que há muito de estar a estar; que há muitas almas que ficam à volta do castelo — que é onde estão os que o guardam — e que não se decidem nunca a entrar nele nem sabem o que há naquele tão precioso lugar nem quem está dentro dele nem ainda que peças tem”. 14
Vertido num, esquema o queque se expressa nessaspsicolólinhas das Moradas conclui-seteórico em síntese os elementos gicos com que se configura a “alma” são hierarquizados — há diferentes níveis — e orientados a um centro. Se se integram essas indicações — que na perspectiva dos teólogos expressam fenômenos influídos pela graça sobrenatural — num enfoque filosófico e sistemático do homem, podese dizer que tais elementos psicológicos não são propriamente “aposentos” ou “partes” da alma, mas atividades ou faculdades orientadas ao ato. Razão por que a intimidade não é uma determinação da substância da alma, mas das faculdades que surgem naturalmente de sua essência. Há aqui um problema ontológico que não deve passar despercebido — e é importante inclusive para o teólogo —, a saber: a distinção realentre a essência da alma e suas potências de entender e querer. No ser finito, a substância não é imediatamente operativa, mas atua através de suas potências ou faculdades. O homem não conhece suaessência senão refletindo sobre os próprios atos. Pois bem, nas mesmas manifestações conscientes dessas potências se deixa entrever o fundo de que nascem: fundo que aparece na atualidade mesma da consciência, pois o sujeito, no mesmo ato consciente referido às coisas que o rodeiam, se apercebe concomitantemente de si mesmo. E como essas atividades — segundo o ensinamento 15
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14 - Libro de las Moradas, Moradas Primeras, cap. 1, nn. 1, 3 e 5. 15 - “Ab essentia animae effluunt ejus potentiae, realiter ab ea et inter se distinctae” (S. Th., I-II, 110, 4, ad 1). 16 - Outra coisa pensava São Boaventura, que, embora distinguisse as potências da essência da alma, não as determinava como acidentes, como o tinha feito Santo Tomás, mas as fazia pertencer redutivamente ao gênero da substância: “istae potentiae sunt animae consubstantiales et su nt in eodem genere per reductionem” (I Sent., 3, 2, 1, 3, Concl., t. I, 86). 8
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dos filósofos antigos recolhido pelos místicos — têm duas direções gerais, para as coisas temporais e para as eternas, o fundo do sujeito ( , segundo a expressão de Diádoco de Fotiqué) pode aparecer sob dupla matização: quer presidindo ou ordenando o multifacetado edifício psicológico vertido para as coisas temporais, quer olhando 17
com olho espiritual simples as coisas, ponta invisíveis, sendo nes-de te caso denominado acies mentis mental, capaz captar dados espirituais puros. Esta acies mentis , ponta espiritual, corresponde ao dos gregos. Só da realidade dessa ponta ou fundura pode o sujeito afirmar outros sujeitos em sua mesma categoria de seres pessoais. E, como o fundo da alma é também um cimo, só subindo na intimidade até essa ponta espiritual e abrindo-se dela ao outro pode o sujeito transformar-se no amado e participar de sua excelência. A intimidade estréia como autoposse consciente e se coroa como amor . Esse fundo da intimidade surpreendida em seus atos, ao mesmo tempo profundos e elevados, de entender e querer foi chamado também scintilla , chispa, centelha espiritual, rápida e certeira ao 18
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17 - Cem Capítulos sobre a Perfeição, PG., 65, c. 1175; texto grego editado em Florença em 1572. 18 - Santo Agostinho, De Trin., 12, c. 14, n. 23;Conf., 7, c. 17, m. 23;Enarr. in Ps. 41, n. 10. 19 - Este é outro modo de indicar a potência espiritual que também foi chamada, às vezes, de animus, justamente quando se queria sublinhar seu elemento afet ivo; daí que fosse traduzida pela pal avra alemã Gemüt, que indica não só uma emoção passageira e superficial, mas um sentimento profundo e permanente. 20 - Assim o reconheceu São Boaventura: “In anima humana idem est intimum et suprem um, et hoc patet quia s ecundum supremum suum, anima a nimae approximat Deo, s imil iter secundum intimus; unde quanto magis redit ad interiora, tanto magis ascendit et unitur aeternis. Et quia solus Deus superior est mente huma na, secu ndum sui supremum solus Deus potest mente esse intimus, et ideo illabi spiritui rationalis est divinae substantiae proprium” (II Sent., dist. 8, t. II, 226, b). 21 - Martin Marti n Grabmann, “Die Lehre des hl. Thomas von der scintilla animae in ihrer Bedeutung für die deutschem Mystik im Predigerorden”, Jahrb. Phil. und spek. Theologie, 24 (1900), 413-427.
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mesmo tempo. Santa Teresa se refer ia a essa aguçada r ealidade como “uma coisa muito profunda”, cujos conteúdos “estão no interior de sua alma, no mui muito interior”; palavras que rematam a expressão paulina “homem interior”, , que significa o eu ou a mente, o . 22
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ditodedepreende-se paraopenetrar na interiointimidadeDose acima necessita uma prática, que a saber, método da ridade. Os autores medievais inspirados em Santo Agostinho, como Hugo de São Vítor, não deixaram de indicá-lo: o supremo não está no vértice do céu, mas no íntimo do homem mesmo; a realidade mais alta não é visualizada se o sujeito não entra em si mesmo (intrare ad semetipsum) e, depois de entrar, se transpassa a si mesmo de modo inefável no interior da alma; não se alcança a verdade senão entrando no próprio interior e penetrando-se intrinsecamente. Pouco ou nada tem que ver esta determinação da interioridade humana, como intimidade, com as predisposições caracteriais ou temperamentais que um indivíduo tem para a introversão em face das disposições de outro sujeito para a extroversão. Jung e Rorschach, por exemplo, estudaram detidamente essas disposições. Mas a intimidade é própria de todo e qualquer indivíduo, seja introvertido, seja extrovertido. O mesmo se deve dizer, a propósito da caracterologia de G. Heymans, sobre a diferença 25
22 - “Raptim et quasi sub quodam coruscaminhe scintillulae transeuntis” (São Bernardo, Cant., 18, 6. PL., 183, c. 862). Também se pode ver esta terminologia em Eckehart, Sermão 8 sobre o castelo da alma (edição de Pfeiffer, t. II, 42-47; corrigido por Quint em Die Überlieferung der Deutschem Predigtem Meister Eckeharts, Bonn, 1932, 160). Igualmente em Tauler (Predigten, ed. Vetter, 347, 9). Moradas Moradas 23 Libro de . 4, 16-18;séptimas, 24 - Rom., 7, las 17-25;II Cor., Eph., 3, 16.cap. 1, n. 7. 25 - “In spiritualibus ergo et invisibilibus, cum aliquid supremum dicitur, non quasi localiter supra culmen aut verticem coeli constitutum, sed intimum omnium significatur. Ascendere ergo ad Deum hoc est intrare ad semetipsum, et non solum ad se intrare, sed ineffabili quodam modo in intimis etiam seipsum transire. Qui ergo seipsum, ut ita dicam interius intrans et i ntrinse cus penetrans t ranscendit, ille veraciter ad Deum ascendit” (De vanitate mundi, 2. PL. 176, c. 715, B-C).
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entre caracteres primários, que se desligam facilmente de seu passado, e caracteres secundários, que retêm por longo tempo os sentimentos que os paralisam. Não se deveria dizer que estes têm intimidade e aqueles não. A intimidade não é questão apenas de natureza, mas também de hábito ou atividade livre estabilizada, como veremos. se deve confundir abusca, intimidade que,Tampouco por exemplo, um misantropo quandocom fogeodoreduto orbe social e do mundo exterior. A isenção do mundo exterior não é uma garantia absoluta para a floração e o alargamento da intimidade. E o mesmo se teria de dizer dos comportamentos que, por princípio, pretendem desligar-se do próprio corpo com fins típicos de um espiritualismo exagerado ou de uma adesão ao nirvana. Nem o vazio nem o nada são as contrapartidas ao mundo externo e ao corpo próprio. Uma coisa é a aniquilação, e outra a superação de obstáculos que perturbam a existência superior. A intimidade implica certa espessura de conteúdos, próprios da realidade e da vida. 3. Precisamente a primeira acepção de “intimidade” oferecida por nossos dicionários a apresentam não como reserva encapsulada em si mesma, mas como interioridade relacionada, “íntima amizade”, sendo íntimo “o mais interior ou interno”; de modo que, nesta acepção, intimidade equivale ao âmbito operativo do que Santo Tomás chama “amor perfeito” ou de doação, o de uma amizade referida a pessoas, em contraposição ao amor imperfeito ou de posse, que, referido a coisas, pode obstruir a relação pessoal com o outro. Alguns de nossos clássicos, quando têm de comparar as mais altas atividades intelectuais com as volitivas ou afetivas, reservam o termo “íntimo” para designar o lado afetivo, ao passo que preferem o termo “profundo” para o lado teórico; e assim lemos no Padre Granada: “Mas esta graça mais se alcança com íntima compunção que com pro26
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26 - H. de de Lubac, Lubac, Aspects du bouddhisme, 156. 27 - W. R. Inge, The Philosophy of Plotinus, t. 2, 159.
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funda especulação”. Ou na expressão de Santa Teresa: “É no mais íntimo da alma esta satisfação, e não sabe por onde nem como lhe veio”. Daí que, neste sentido, “íntimo” se aplique à amizade muito estreita e ao amigo com que há profunda “relação” ou “familiaridade”. Portanto, em sua primeira acepção, não parece que se deva desvincular a intimidade das respostas 28
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afetivas. Umasegunda coisa é acepção, dar-se bem, outra amistar-se. Em uma os edicionários circunscrevem a intimidade à “parte personalíssima, comumente reservada, das questões, desígnios ou afecções de um sujeito ou de uma família”: trata-se também de um âmbito operativo de índole intelectual (desígnios) ou volitiva (afecções), tanto teórica como prática (questões), âmbito reservado e muito peculiar , que distingue a vida privada da vida pública. 4. Integrando as indicações filológicas e históricas num contexto antropológico sistemático, a intimidade deve ser definida do ângulo do processo de autoconstituição da personalidade, pois a personalidade se constrói, sendo a intimidade recorrência da personalidade; e, como a intimidade é uma dimensão própria e formal de um ser racional, sua recorrência acontece conforme a atividade formal da razão humana, que é ordenar e centrar : o irracional carece de centro e de ordem. O mais íntimo é a ordem centrada da personalidade em suas atividades mais elevadas e profundas, as de entender — intuindo e raciocinando — e querer — amando e desejando. Quem abre sua intimidade para outro no amor se auto-explica como ser racional. Uma personalidade descentrada e desordenada em suas atividades específicas mal possui intimidade, e pouco tem que comunicar no amor. Mas, por sua vez, na medida em que o outro me ama verdadeiramente, me ajuda a me centrar e a me ordenar. E sem amor tampouco conseguiria eu uma centração ordenada. O amor que o outro verte para mim me desperta para o meu melhor eu. E vice-versa. 28 - Mem. vida crist., 7.1, § 3. 29 - Vida, 14. 12
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Na intimidade as atividades se ordenam em torno de um centro, o eu, conforme a índole da pessoa. Mas não se deve confundir a intimidade com o eu. Pode haver um centro, um eu, com pouca intimidade.
c) Êxtase 1. O êxtase é entendido por Santo Tomás em seu sentido etimológico, como saída de si (excessum a seipso) ou alienação (quamdam alienationem), êxodo para o outro (extra se positionem), para o amado (ponit amantem extra seipsum). Nesta caracterização — que converte em análogo o termo êxtase — entra uma multidão de fenômenos que, partindo do sensível, culminam em certa elevação acima deste, seja mística ou não. Desse modo, o Aquinate se distancia de um conceito unívoco de êxtase. Quando o Aquinate usa a palavra êxtase para indicar esse efeito do amor, assume no plano filosófico o núcleo do que na tradição religiosa de alguns povos, e especialmente no cristianismo, se entendeu substancialmente por tal fenômeno psíquico: a saída das faculdades superiores do homem — inteligência e vontade — para uma realidade boa extra-subjetiva. O Aquinate fala como teólogo ao dizer que há êxtase quando “alguém é elevado pelo espírito divino a uma esfera sobrenatural, não se misturando nisso os sentidos”. Por um lado, negativamente a alma fica separada dos sentidos, sem entrar em relação com o mundo exterior; e, por outro lado, positivamente é elevada por 30
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30 - S. Th., II-II, 175, 2 ad 1. 31 - S. Th., I-II, 28, 3 ad 1. 32 - III Sent., d. 27, q. 1, a. 1 ad 4. 33 - In De divinis nominibus, 4, lect. 10. 34 - Como o de São Boaventura, que designa um fenômeno essencialmente místico: “Ecstasis... est al ienatio a sensibus et ab omni eo quod est extra, et conversio ad Deum qui est intra” (São Boaventura, Sermo de Sabbato Sancto, 1, 2, t. 9, p. 269a). 35 - “Aliquis spiritu divino elevatur ad aliqua supernaturalia, cum abstractione a sensibus” ( S. Th., II-II, 65, 1).
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uma força divina aos bens superiores. O êxtase não é uma simples morte dos sentidos, mas uma vida mais intensa no bem. O êxtase tampouco é o mero rapto ou concentração da atenção ou o alheamento num tema importante ou subjugante; porque nestes casos o sujeito está perto de um objeto sublime ou importante — o foco da consciência não é constituído por objetos triviais, sejamouexternos ou internos mas não num plano transobjetivo transcendente, como —, acontece no êxtase. Se deixarmos de lado os efeitos “negativos” sobre o corpo que proverbialmente foram atribuídos ao êxtase (v.g., a imobilidade marmórea dos membros, a insensibilidade dos órgãos perceptivos, a comoção alegre ou temerosa do rosto alucinado, os eflúvios luminosos no rosto e nas mãos, o calor interior, a leveza ou levitação corporal e, em outros casos, a peso dos membros), fixando-nos nos efeitos que produz sobre a alma, que são os mais importantes no nosso caso, havemos de dizer que, segundo a tradição ocidental, o êxtase provoca um aguçamento da faculdade intelectual e da volitiva para penetrar numa realidade mais elevada. Aguça-se a inteligência para chegar, mediante uma simples visão e com evidência cabal, sem necessidade de fatigantes raciocínios, a uma realidade extramental inaudita — passada, presente ou futura — mas verdadeira, adquirindo inclusive idéias antes inexistentes na alma. Oferece-se a própria vontade à nova realidade, que se apresenta iluminada e sustida pela inteligência. Ainda que essa oferta seja uma obediência à idéia intuída, trata-se sempre de um ato espiritual pelo qual a alma se eleva acima de suas 36
36 - Entre a extensa bibliografia sobre o fenômeno do êxtase, limito-me a citar algumas obras fu ndamentais que, por sua vez, contêm amplas referências bibliográficas: W. R. Inge,1902; Christian Mysticism; Die Ekstase in ihrer kulturellen Bedeutung, A. Saudreau, LesTh. faitsAchelis, extraordinaires de la vie spirituelle; R. A. Nicholson, Studies in Islamic Mysticism; J. Maréchal, Études sur la psychologie des mystiques; A. Mager, Mystik als seelische Wirklichkeit; Ph. de Félice, Foules en délire. Extases collectives. Essai sur quelques formes inférieures de la mystique; M. Eliade, Le chamanisme et les techniques archaïques de l’extase; J. Lhermitte, Mystiques et faux mystiques, Paris; L. Gardet, Expériences mystiques en terres non chrétiennes; E. Arbman, Ecstasy of religious trance; H. Cancik (ed.), Rausch-Ekstase-Mystik. Grenzformen religioser Erfahrung. 14
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limitações para adornar-se de dons superiores, ou seja, para fincar-se firmemente no bem. Dos efeitos espirituais do êxtase, o mais importante, como sublinha o Aquinate, é o concernente à vontade, que é transformada pelo bem que se lhe apresenta. Assim, o êxtase sobrenatural é explicado como um efeito da ação divina que alarga a inteligência e provocaperfeita, o amor da de conhecimenmodo que faz parte da contemplação ou vontade; seja, de um to essencialmente amoroso. Nada tem de estranho que, sendo este o efeito principal do êxtase sobrenatural, também seja assinalado por Santo Tomás para determinar o efeito do amor sobre a vontade, chamando-o igualmente êxtase, mas desta vez filosoficamente, em sentido puramente natural e pessoal, alheio agora a influxos ou repercussões extranaturais. O amor é uma “saída” que o sujeito faz com sua vontade, guiada por sua inteligência — núcleos da intimidade —, para o amado, vislumbrado este como bem perfeito, real. 3. O realismo do amor 1. A determinação do amor como resposta da intimidade sublinha o sentido do realismo clássico em contraposição ao idealismo moderno. O suposto ontológico do amor é a realidade do outro. Se o sujeito amante fosse pura liberdade de criar ou fingir a consistência do outro, careceria de sentido o amor como êxtase da intimidade. Na pessoa do “outro” está o objeto formal do amor perfeito: ama-se algo porque é bom, porque encarna a índole do bem: “Algo é amado enquanto tem a índole de bem”. O que não equivale a afirmar a prioridade do amor interessado e a subordinação do bem ao sujeito amante. Porque o bem não é bom porque seja apetecível, mas é apetecível porque é bom. Afirmar que o bem é o objeto formal do amor é fundar não só o caráter extático ou desinteressado do amor, mas fundar o amor pura e simplesmente. E, se o suposto 37
37 - S. Th., II-II, 26, 2 ad 1.
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ontológico do amor é a realidade do outro, segue-se que a vontade nunca é criadora de seu objeto, mas somente capacidade de alcançá-lo e de unir-se a ele. Se o bem é um valor em si, exige ser querido como tal, sob pena de já não ser o bem. Mas o bem não se dá verdadeiramente como bem senão quando o amor o toca precisamente sob a índole de bem (sub ratio boni), ou ou compreende: seja, quando há sujeito não inteligente que assim o capta se oumhomem tivesse inteligência (ou razão), jamais saberia o que é o bem, e nunca apeteceria o bem em sua própria natureza, como bem absoluto, não relativo a um sem consciência intelectual. “O que é objeto do apetite sensível imediato é considerado bom porque é desejado. Mas o que é objeto para a vontade, tendência intelectual, é desejado por ser bom em si mesmo.” E isso porque o apetecido sensorialmente é o prazeroso para os sentidos; mas o apetecido pela vontade não é considerado bom porque causa prazer, senão que é apetecido porque é bom (quia bonum), porque é uma realidade objetiva que vale para e por si mesma: “O conhecimento sensível não alcança a razão comum de bem; só alcança um bem particular, que é o deleitável. Também no plano do apetite sensível, tal como se encontra nos animais, as operações são buscadas pelo prazer mesmo. A inteligência, ao contrário, capta a razão universal de bem, cuja obtenção é seguida do gozo; assim busca ela o bem com anterioridade ao gozo”. Tipos do amor despertado na vontade são o amor benevolente e o amor íntimo, este último como amistoso, como esponsalício ou como paterno e filial. 3. Tanto no amor benevolente quanto no amor íntimo o homem encontra seu bem humano e perfeito afirmando o bem; e isso não faz que o bem seja o bem porque é o bem do homem, mas porque simplesmente é o bem, um absoluto, como a verdade e como o ser, convertível inclusive com eles. O fato de o sujeito humano buscar o bem não expressa uma natureza centrípeta, dobrada sobre si mesma. O sujeito ama o bem não 38
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38 - In Metaph, 12, 7, 2522. 39 - S. Th., I-II, 4, 2 ad 2. 16
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por ser “seu” bem (quia suum est), mas por ser “bem” (quia bonum est). Esse é o sentido da tese tomista de que o bem é per se, de si, o objeto da vontade. Qualificar o bem somente em referência ao sujeito humano que o deseja é convertê-lo num valor subjetivo e não num absoluto metafísico. Se a felicidade de um ser consiste na realização de sua natureza, e se o próprio 40
da natureza homemdo é ser referida ao bem como um absoluto,espiritual então a do felicidade homem é conseguida me-a diante o amor ao bem por si mesmo. “O amante se devota por amor a agir conforme a exigência do amado ( per amorem ad operandum secundum exigentiam amati). E esta operação lhe é maximamente prazerosa, como o conveniente à sua forma (maxime delectabilis, quasi formae suae conveniens).” Quando amo verdadeiramente a mim mesmo, ou quando amo outra pessoa, o motivo formal de tal amor é sempre o mesmo: o absoluto do bem que cada um realiza. Eu mesmo posso ser para mim sujeito amante e sujeito amado, olhando-me com amor perfeito como ao melhor bem que sou para mim. Se não fizesse assim, não amaria o verdadeiro bem, nem poderia exercer nunca um amor perfeito pelo bem em si mesmo, ali onde este se desse. É por esta óptica que se deve entender a determinação do amor esponsalício: “O amor que alguém tem a si mesmo é o motivo do amor que se tem à esposa, a saber, segundo a índole de bem” (dilectio quam aliquis habet ad seipsum é ratio dilectionis quae habetur ad uxorem, secundum scilicet rationem boni). No entanto, o bem é apenas a ratio diligendi, a razão de amar, o motivo ou o objeto formal, mas não o termo do amor: esse termo é um sujeito, uma pessoa; há um sujeito que exerce o amor e outro sujeito que o recebe. Não se ama um bem abstrato, mas um bem concreto, com nome e sobrenomes. Nem sequer são amadas primariamente as qualidades boas do outro ou as virtudes louváveis que ele tem: ama-se o“outro” como sujeito de tais qualidades, sujeito que se abre como real intimidade. 41
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40 - II Sent., dist. 3, q. 4, ad 2. 41 - III Sent., dist. 27, q. I, art. 1. 42 - S. Th., II-II, 26, 11 ad 2.
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*** A primeira parte deste livro, e admitido que é o objeto e não o sujeito o que torna ontologicamente extático e desinteressado o amor, desenvolve por um duplo aspecto, feno43
menológico e ontológico, sentido humano da intimidade, do êxtase e do amor perfeito,o explorado este último pelo prisma da tensão entre doação e posse. Esta parte tenta dotar de bases ontológicas clássicas as descrições fenomenológicas do amor realizadas por alguns contemporâneos, como Scheler e Hildebrand. A segunda parte, cingida aos passos do discurso ontológico do Aquinate sobre o amor, volta a esses temas expondo tecnicamente a essência, a causa e os efeitos do amor, tanto do amor sensível como do espiritual. Assunto decisivo é saber, nessas três questões, de que maneira o bem provoca e motiva realmente o amor. Porque um amor que não fosse motivado não seria, em verdade, estimulado por nada, não seria uma resposta e, portanto, seria impossível. Por isso o amor é, de si, um êxtase, um êxodo da vontade para o ser bom existente. Se não o fosse, não haveria amor.
43 - Com o fimdedeíndole centrarmetafísica, a ontologia fenomenológica do Aquinate, amor, deixo lado reflexões próprias também do taisde como as referentes à confluência entre a doutrina do amor e a teoria da participação do ser (esse) e a limitação do ato pela potência na ordem do apetecer humano: desta perspectiva, o amor aparece como força que tende a ultrapassar as limitações da matéria; a união afetiva do amor pode ser explicada metafisicamente como união participativa enraizada numa mesma forma. Este tipo de reflexão metafísica foi estudado, entre outros, por Gilson, Fabro e De Finance, cuja relação bibliográfica não é deste lugar. 18
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PRIMEIRA PARTE
INTIMIDADE, ÊXTASE E AMOR Capítulo I Pessoa e amor
I - Pessoa e Amor
1. Concepção física e concepção personalista do amor
Com freqüência se lê que o Aquinate tinha do amor uma concepção física, afastada de uma visão personalista. Foi Rousselot quem pôs em circulação a tese de que entre os pensadores dos séculos xii e xiii havia duas teorias, opostas, sobre o amor: a física e a extática . Ainda que já tenhamainda ficadodebem trás os motivos desta polêmica, mantém-se pé opara núcleo ontológico que a animava e que percorre continuamente os nossos dias. Por isso não é ocioso recordá-la. 1. A concepção física — chamada greco-tomista e representada, segundo Rousselot, por Hugo de São Vítor, por São Bernardo e pelo próprio Tomás de Aquino — fundaria “todos os amores reais ou possíveis na necessária inclinação que os seres naturais têm a buscar seu próprio bem. Para esses autores, há entre o amor de Deus e o amor de si uma identidade profunda, ainda que secreta, que faz deles a dupla expressão de um mesmo apetite, o mais profundo e o mais natural de todos, ou melhor, o único natural [...]. Santo Tomás, inspirando-se em Aristóteles, extrai daqui o princípio fundamental, mostrando que a unidade (e não tanto a individualidade) é a razão de ser, a medida e o ideal do amor; restabelece, de uma só vez, a continuidade perfeita entre o amor de concupiscência e o amor de amizade”. Tampouco haveria separação entre apetite e amor. O apetite natural de cada ser por seu bem seria a forma fundamental e única do amor, porque é o motor exclusivo da vida afetiva. O apetite natural do homem coincidiria no fundo com o amor desinteressado ao bem de Deus, assim como o amor desinteressado que alguém professa a outra pessoa, ainda que tivesse de sofrer sacrifícios corporais, seria uma forma de amor de si. Não é possível um amor que não seja egocêntrico: o amor de outro se reduz ao amor de si. A concepção física do amor terminaria, pois, numa espécie de ex abrupto antropológico: o amor é a busca de nosso bem, ou seja, o amor é sempre amor de si, pois tem por objeto o 44
44 - P. Rousselot, Pour l’histoire du problème de l’amour au moyen âge, 3. O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino
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bem próprio do sujeito; e, como o bem próprio do sujeito é a felicidade, fim último que especifica a tendência da vontade, então o amor de si é a medida de todos os outros amores e os ultrapassa em tudo. E, quando Santo Tomás “parece às vezes pôr no velle bonum a última palavra do amor, quer afirmar a mesma coisa com outros termos, pois ‘o bem’ não pode ser descrito senão”.como o objeto dos desejos naturais: id quod omnia desiderant 2. Na concepção extática, em contrapartida — representada por alguns místicos dialéticos cistercienses e franciscanos, inspirados em São Vítor e Abelardo —, já não é compatível o amor desinteressado com o apetite do bem do ser amado. Cortam-se todos os laços que parecem unir o amor de outro às inclinações egoístas: o amor é tanto mais perfeito quanto mais fora de si põe o sujeito. Haveria uma dualidade de amores: mas o verdadeiro amor já não é o que todo ser natural refere necessariamente a si mesmo. “O amor é ao mesmo tempo extremamente violento e extremamente livre: livre, porque não tira sua razão de ser senão de si mesmo, pois é independente dos apetites naturais; violento, porque vai ao encontro dos apetites, os tiraniza, e não parece descansar enquanto não destrói o sujeito amante, absorvendo-o no objeto amado. Sendo assim, não tem outro fim além dele mesmo, sacrifica a si tudo no homem, até a felicidade e até a razão.“ O apetite é centrípeto; o amor, centrífugo. Ficariam, pois, separados o âmbito do apetite (pelo qual todo ser é conduzido a seu bem) e o âmbito do amor. Por apetite se designaria então o conjunto de concupiscências que, estando inscritas em nossa natureza e sendo tão necessárias quanto à natureza mesma, nos levariam aos bens que nos faltam, satisfazendo nossas ânsias de bem-estar e felicidade. O amor, em contrapartida, não agiria impelido por uma natureza que, como a nossa, pretende seu acabamento: seria o sentimento que nos invade diante de uma pessoa amada e nos lança para ela, ocupando-se do bem do ser amado, sem ligar45
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45 - P. Rousselot, 9-10. 46 - P. Rousselot, 4. 22
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I - Pessoa e Amor
se à concupiscência de nossa felicidade. Amaríamos por pura gratuidade, livremente, sem outra razão além do nosso mesmo amor. Nossa vida, posta a serviço do amor, deveria ser um luta contra os apetites e o egoísmo. É claro, assim, que a noção de um amor puramente “extático” ou desinteressado, como suscita Rousselot, se choca frontalmente suposta concepção “física” do apetite em Santo Tomás,com paraaquem o amor de si seria o fundo de todas as tendências naturais: um amor desinteressado não poderia ser amor. Os que defendem a concepção extática rejeitam por isso a identificação do amor e do apetite: “o amor vai de uma pessoa para uma pessoa, mas violentando as inclinações inatas e ignorando as distâncias naturais, como uma pura tarefa de liberdade”. A idéia de pessoa domina aqui a idéia de natureza: e o amor começa ali onde termina o apetite (a natureza). Rousselot interpreta que o amor desinteressado a Deus sai, segundo o Aquinate, da concupiscência de nosso bem, a qual, a título de apetite natural, seria nosso primeiro amor, a medida de todos os outros, e dele todos os outros seriam participações e imitações. De modo que “Santo Tomás tenta conciliar essas duas afirmações opostas em aparência: 1.ª o amor desinteressado é possível e até profundamente natural; 2.ª o amor puramente extático, o amor de pura dualidade, é impossível”. 3. Interpretações dicotômicas parecidas com a proposta por Rousselot não foram raras no pensamento contemporâneo. Já Max Scheler, em sua obra Vom Umsturz der Werte, indicava que para os gregos o era como um aspirar e necessitar, um tender o inferior ao superior, o imperfeito ao perfeito; o amor é só um método ou um momento destinado a desaparecer assim que a coisa amada é possuída; de modo que a divindade não ama, mas apenas move o mundo como primeiro motor e o aspira para si assim como o amado move o amante: “O amor é aqui tão-somente o princípio dinâmico do cosmos, que anima 47
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47 - P. Rousselot, 56. 48 - P. Rousselot, 14. O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino
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este vasto Agon das coisas para a divindade.” Mas com o cristianismo se inverte a direção, que agora vai do superior para o inferior, do rico para o pobre, não para receber, mas para dar; e Deus não só não permanece à margem do amor, mas é definido em sua essência pelo amor: “Eis uma inovação: na concepção cristã, o amor é um ato não da sensibilidade, mas do espírito 49
(nãoporumissomero estado ou afetivo, os ainda, modernos), sem ser tendência desejocomo nem, para menos necessidade. Pois, enquanto esses atos se esgotam e se consomem com a realização de sua tendência, o mesmo não acontece com o amor. O amor cresce com sua ação”. Outra obra que defende uma interpretação dicotômica do amor é a já famosa Eros und Agape, de Anders Nygren, que se volta em tom de reprovação para aquele traço de realização própria que, segundo Santo Tomás, o amor implica, argumentando que o Aquinate tinha convertido o amor entregue (Ágape) da mensagem bíblica em amor-próprio, em Eros. Ágape é amor desinteressado e desprendido, pois age sem motivos nem causa, sendo assim independente; Eros é interessado e age por motivações e com causa, sendo por isso dependente e egocêntrico. Ágape parte de uma plenitude, razão por que se dá e exclui todo e qualquer amor-próprio; Eros parte de uma indigência, razão por que se impõe e se move por exigência de felicidade e recompensa. Ágape arrisca e entrega a vida; Eros quer ganhar a vida. Ágape é espontaneidade espiritual; Eros é conveniência e arranjo. Ágape é criador de valores: ama e depois constata existências; Eros pressupõe valores e é determinado pelo bom e pelo belo: primeiro localiza os seres e depois ama. O Aquinate teria introduzido o Ágape no mesmo movimento do Eros, não deixando lugar para o verdadeiro amor. Segundo Nygren, foi Lutero quem poliu a idéia de Ágape e a pôs em circulação dentro de nossa cultura, em contraposição 50
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49 - Max Scheler, Vom Umsturz der Werte, 72. 50 - Max Scheler, Vom Umsturz der Werte, 73. 51 - Anders Nygren, ygren, n, Eros und Agape. Gestaltwandlugen der christlichen Liebe, 2 vols. 52 - Anders Nygren, II, 465. 24
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I - Pessoa e Amor
a toda e qualquer entronização do Eros. Este autor chega até a simplificar a substância do catolicismo e do protestantismo sob os termos respectivos de Eros e Ágape. Nygren se apresentava como um teólogo que se sentia incômodo com os conceitos emprestados por sistemas filosóficos estranhos à teologia, e optou por uma exegese cingida às fontes da Revelação. A seu ver, 53
nãopela é possível integrar a intelectual idéia de Ágape numa metafísica do ser, heterogeneidade em que ambas as funções se encontram. Não estava sozinho Nygren nessa valoração negativa do Eros. Na mesma época, publicaram-se, entre outras, a obra francesa de Rougemont e as alemãs de Scholz, Grünhut e Brunner, que argumentavam em tom parecido. 54
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2. Articulação psicológica das tendências “naturais”
a) Inclinação, apetite e vontade 1. Concorda com a doutrina do Aquinate a interpreta-
ção que Rousselot faz da concepção fí sica do amor, mesmo supondo que esta seja coerente? Não fica de pé, dentro do enfoque histórico, uma questão ontológica, a que concerne à idéia de apetite, tomada por Rousselot como uma noção unívoca e fechada? Este autor deixa de lado as distinções feitas por Santo Tomás entre as diferentes formas de apetite (natural, sensível e espiritual) e entre os tipos de relação que unem o apetite a seu objeto, que é o bem, 53 - Entre as principais réplicas documentadas à obra de Nygre, devem ser citados os seguintes livros: J. Burnaby, Amor Dei; M. C. D’Arcy, The Mind and Heart of Love: A Study in Eros und Agape; V. Warnach, Agape. Die Liebe als Grundmotiv der neutestamentlichen Theologie. 54 - Denis de Rougemont, L’Amour et l’Ocident. 55 - Heinrich Scholz, Eros und Caritas. Die platonische Liebe und die Liebe im Sinne des Christentums. 56 - L. Grünhut, Grünhut, Eros und Agape. Eine metaphysisch-religionsphilosophische Untersuchung. 57 - Emil Brun Brunner, ner, Eros und Liebe. O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino
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tratando como equivalentes as noções de apetite, amor e felicidade. Nem as tendências nem os correspondentes afetos são enfocados por Santo Tomás de uma óptica que hoje chamaríamos psicológica — convertível com o tema do aparecimento fenomênico dos instintos, das emoções, dos sentimentos ou 58
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das paixões, de suas intensidades; seu interessebem por como esses fatos é, correspondentes em primeiro lugar, ontológico: pergunta por sua essência ou natureza, por suas causas e efeitos e por suas divisões categoriais. Traça, pois, uma ontologia regional da tendência humana e seus afetos, como investigação que deve servir necessariamente de suporte à psicologia e à ética. Que tipo de enfoque ontológico é este? Para Tomás de Aquino, o homem é um ser em busca permanente: aspira, pretende, move-se à consecução de algo. De cada uma das camadas de seu ser brota uma correspondente tendência. Esta emite uma resposta, que deve chamar-se afetiva, ocasionada pela repercussão nela de um agente, bom ou mau, externo ao sujeito: o afeto é um ato ou movimento da tendência. As respostas afetivas foram chamadas em geral paixões pelos medievais. A primeira e mais básica resposta afe60
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58 - Louis-B. Geiger, Le problème de l’amour chez Saint Thomas d’Aquin, 28. 59 - Peter Lauster, Die Liebe. Psychologie eines Phänomen; Niklas Luhmann, Liebe als Passion. Zur Codierung von Intimität. 60 - Para uma história filosófica do conceito de amor, pode-se ver: Michael Theunissen, Der Andere. Studien zur Sozialontologie der Gegenwart; Bernhard Welte, Dialektik der Liebe; Helmut Kuhn, “Liebe”. Geschichte eines Begriffs; Georg Gebhardt/Philipp Seif (ed.), Was heißt Liebe?Também devem ser levados em consideração alguns estudos que, com interesse teológico, enfocam historicamente o problema terminológico do amor nos textos das Sagradas Escrituras, como o de M. Paeslack, “Zur Bedeutungsgeschichte der Wörter Philein, Lieben, Philía, Liebe, Freundschaft, Philo, Freund in der Septuaginta und im Neuen Testament unter Berücksichtigung ihrer Beziehungen zu Agapan, Agape, Agapetos”, Theologia Viatorum,torna-se V, 1954,um 51-142. 61 - No pensamento moderno, a “paixão” excesso emocional que absorve em sua manifestação quase todas as forças psíquicas, perturbando até o percurso normal do pensamento. Em contrapartida, para um medieval o nome “passio” vem do fato normal de que o homem (ou o animal), quando apetece uma coisa, se sente atraído por ela, padece um influxo do objeto: nam pati dicitur ex eo quod aliquid trahitur ad agentem (S. Th., I-II, 22, 1). Trata-se de uma resposta psíquica à presença do objeto. No caso de a resposta ser sensível, acompanha-se t ambém de uma especial modificação 26
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I - Pessoa e Amor
tiva é o amor como orientação afirmativa de um sujeito para o objeto. Em verdade, as efetivas tendências do homem para a realidade que o circunda são chamadas por Santo Tomás, de maneira genérica, “apetites”. No uso lingüístico do Aquinate, o termo “apetite” é tomado de três maneiras. Em sentido geral, chama-se “apetite natural” quando expressa a relação complementaridade ontológica que todo ser busca em suadeordem entitativa. Em sentido particular, chama-se “apetite sensível” quando expressa na ordem operativa uma tendência guiada pelo conhecimento sensível; ou “apetite intelectual” quando expressa, também na ordem operativa, a tendência motivada por um conhecimento intelectual. Doravante, usarei preferencialmente o termo “inclinação” para indicar o apetite natural, chamando simplesmente “apetite” ao apetite sensível, e “vontade” ao apetite intelectual. Por sua vez, o amor segue, em Santo Tomás, o mesmo destino lingüístico que o apetite de que é resposta afetiva: haveria, em sentido metafórico e impróprio, um amor natural; em sentido próprio e unívoco, um amor sensível; e em sentido próprio e análogo, um amor espiritual. 2. Como se articula o amor nas tendências humanas, sendo o objeto que as motiva ou excita o bem (ou o mal), em tudo o que elas possuem de movimento e tensão? Em uma tendência qualquer, podem discernir-se três elementos: o sujeito da tendência, o termo como bem ou fim, e a tendência mesma que une dinamicamente o sujeito e seu bem. A existência da tendência manifesta uma relação de complementaridade entre o sujeito e seu fim ou bem, relação fundada no ser de ambos: um é bem do outro porque lhe assegura sua perfeição. O que motiva uma tendência? 62
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orgânica (respiração, movimento do coração, pressão arterial, etc.), o que não acontece necessariamente nas respostas afetivas espirituai s. 62 - S. Th., I, 80-81. 63 - S. Th., I-II, 26, 1. O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino
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a) Há uma tendência que não é motivada pelo conhecimento do sujeito: é espontânea e inconsciente, implícita no dinamismo deste, tendência que se chama natural; pois as coisas naturais tendem ao que lhes convém segundo sua natureza. Tal tendência natural é uma inclinação, e tem, em grande parte, caráter centrípeto e impessoal, por sua índole física ou
natural. impróprio e metafórico uso que de aquiconhecimento se pode fazer do termoÉapetite, porque nos seresoprivados tal apetite ou tendência se identifica com a natureza mesma do ser, com a ordem natural à sua perfeição. Cada ser requer e busca sua complementaridade ontológica, seu fim, seu bem, sua perfeição, expressável ontologicamente nas relações reais da potência ao ato, do perfectível à perfeição. O sentido do ato e da perfeição de cada ser, ademais, não se esgota no ponto de sua individualidade, porque com sua ação concorre para a harmonia do universo. Por isso diz o Aquinate que na inclinação natural há um aspecto centrípeto e outro centrífugo, dimensões ontológicas que não devem ser confundidas com as direções morais do egoísmo e do altruísmo: “A inclinação de uma coisa natural se dirige a dois termos: a mover-se e a agir (moveri et agere). A inclinação natural orientada a mover-se é em si mesma centrípeta (in se ipsa recurva est), assim como o fogo se move para cima para conservar-se. Mas a inclinação natural orientada a agir não é centrípeta em si mesma (non est recurva in se ipsa), pois o fogo não age para gerar fogo para si mesmo, mas para o bem do gerado, que é sua forma, e depois para o bem comum que é a conservação da espécie. Não é verdade universalmente que todo amor natural seja em si mesmo centrípeto”. Os atos que brotam da inclinação, do chamado “apetite natural”, são em parte centrífugos, quando seu objeto é o bem da espécie; e em parte centrípetos, ordenados ao bem da coisa individual mesma. b) Há outra tendência, que, motivada pelo conhecimento do sujeito, se desdobra com necessidade e não com livre juízo; e tal é a tendência sensitiva nos animais, a qual, no en64
64 - Quodl. 1, a. 8, ad 3. 28
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tanto, nos homens participa em algo da liberdade, pois não está aqui fechada sobre si mesma e pode obedecer à razão. Essa tendência motivada pelo conhecimento sensível é um apetite em sentido próprio e unívoco: constitui uma dimensão ontológica não entitativa, mas operativa, diferente da natureza ou da essência. Também neste caso, os atos que brotam do apetite são parcialmente centrípetos — por ordenar-se ao bem do indivíduo — e parcialmente centrífugos — pois têm por objeto o bem da espécie. c) Por fim, há uma terceira forma de tendência, motivada pelo conhecimento do sujeito que tende segundo seu livre juízo. Essa tendência — pertencente também à ordem operativa e não à entitativa — racionalmente motivada se chama vontade, ou apetite em sentido próprio e análogo. Se o apetite sensível se orienta diretamente às coisas boas, como coisas, o apetite intelectual está submetido a uma mediação: passa pela razão, pela ratio boni ou “índole geral de bem”, para chegar às coisas boas como portadoras de uma significação geral de bem. Em verdade, o conhecimento sensível não capta a essência de uma realidade: só pelo conhecimento intelectual, de um lado, conhecemos o que é o bem ou a ordem dos bens objetivos e, de outro lado, tomamos consciência de nós mesmos e de nossos estados psicológicos. “Privados deste conhecimento intelectual, seríamos totalmente prisioneiros de nossa subjetividade, incapazes de nos dar conta de nossa situação, conduzidos por um sentimento confuso de prazer para com os objetos de que necessitamos. Ou seja, estaríamos encerrados num duplo recinto de subjetividade: primeiro, no plano psicológico, pelo prazer; segundo, no plano objetivo, porque o único bem que poderíamos alcançar na realidade seria o bem que esta tem para nós, a utilidade relativa de seres referidos a nosso ser ou a nosso bem-estar, sem alcançar seu bem próprio.” A distinção das duas últimas formas de apetite está direta e essencialmente vinculada aos dois tipos de conhecimento, sensível e intelectual. “O conhecimento não se encarrega sim65
65 - Louis-B. Geiger, 50. O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino
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plesmente de oferecer um objeto de qualidade diferente, sensível ou espiritual, a uma afetividade que fundamentalmente permanece a mesma, por estar sempre orientada formalmente ao bem: modifica-a intrinsecamente, de modo que nos encontramos diante de duas afetividades formalmente diferentes no plano do amor mesmo.” 66
Assim, ounatural faculdade do sujeito tendede a seu próprio bemcada compotência inclinação , a qual não se segue um conhecimento, sensível ou intelectual, da coisa. Mas tender ao bem com propensão despertada pelo conhecimento sensível pertence somente ao apetite; e com propensão suscitada pelo conhecimento intelectual, à vontade. A inclinação ou tendência natural deriva, pois, de uma incitação espontânea; o apetite ou tendência sensitiva pressupõe um conhecimento sensível, uma motivação despertada na consciência sensível; e a vontade, um conhecimento oriundo da consciência intelectual. Nesta articulação de tendências, não cabe o monismo ou a absolutização do apetite natural, da inclinação. A tendência que os seres da natureza têm a buscar seu próprio bem não é a mesma em cada um deles. b) Amor e perfeição própria Tampouco Rousselot indica claramente que, para Santo Tomás, o chamado amor de concupiscência é imperfeito, enquanto o de amizade é um amor perfeito, o qual pode ser referido tanto à própria pessoa como a outra pessoa; e o fato é que a medida exata do amor perfeito é feita com o amor de amizade pela própria pessoa, não com o de concupiscência, que é imperfeito. Por outro lado, e no que concerne à teoria “personalista”, é preciso perguntar se é possível um amor extático sem laço 67
66 - Louis-B. Geiger, 46. 67 - R. Garrigou-Lagrange, “Le problème de l’amour pur et la solution de S. Thomas”, Angelicum, 9, 1929, 83-124. 30
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algum com uma tendência natural à perfeição ou felicidade. Em que condições poderia dar-se tal amor extático? Primeiro, na condição de que o amor fosse um puro capricho, uma invenção gratuita de nosso espírito ou de nossa imaginação, sem laço algum com o ser que somos, e, segundo, na condição de termos nós o poder de fazer brotar os bens como num passe de Só nestas condições — ficcionismo criacionismo — omágica. amor extático seria até o negador de nossa etendência natural à perfeição ou felicidade. Acontece que em Santo Tomás o amor não é uma ficção nem é puramente criador. E isso por duas razões: primeira, porque o amor é sempre uma resposta a um bem real, seja dada de forma natural ou de forma sensível ou espiritual; segunda, porque o bem não é nada mais que a atração que emana desse ser enquanto é perfectivo ou perfeito. Portanto, o amor não poderia consistir senão na resposta de um ser ao ser ou ao bem idêntico ao ser. “Todo movimento para o bem”, diz Geiger interpretando o Aquinate, “é um movimento para o ser, seja para adquiri-lo, seja para conservá-lo ou desenvolvê-lo, seja para amá-lo por si mesmo em razão de sua perfeição manifestada pelo conhecimento intelectual, que capta o ser e sua bondade. É, pois, impossível imaginar que nossa vontade possa amar, mesmo com o amor mais puro, sem realizar ao mesmo tempo sua própria perfeição, ou seja, sem obter pelo exercício do amor do bem, sob sua razão formal de bem último, o acabamento para o qual ela é formalmente feita e para o qual não pode não ser feita”. 68
69
c) A afetividade e o amor espiritual O amor é, pois, uma resposta afetiva; e pode ser tanto sensível como espiritual. Não faltaram vozes indicando o desco68 - Em espanhol, o termo perfectivo também se diz daquilo “que dá ou pode dar perfeição”. [N. do T.] 69 - Louis-B. Geiger, 111-112. O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino
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nhecimento que a filosofia clássica tinha da afetividade e do amor espirituais. A vontade de meios e a inteligência construtiva teriam dividido entre si o domínio espiritual, anulando nele a imediatez dos sentimentos. O “dualismo” medieval teria de ser substituído por um trialismo facultativo: vontade, inteligência e sentimento. Disse-se que aquela filosofia transformou 70
a afetividade em que questão apetites inferiores, de concupiscência, de modo só ade partir da idade contemporânea — com autores como Scheler, Haecker, Hildebrand e outros — a afetividade foi realçada pela análise de sentimentos superiores, espirituais ou pessoais. No entanto, a verdade é que a filosofia clássica não defendeu propriamente uma dualidade de faculdades “reduzidas”, mas — para além do trialismo moderno — um “quarteto” funcional: o de razão e intelecto na esfera da inteligência; e o de vontade de meios e vontade de fins na esfera da vontade. Mediação e mediatez dividem entre si as funções em ambos os casos. O intelecto é imediato, como função não discursiva de princípios; a razão é mediata, dianoética, como teria dito Platão. Mas também a vontade tem uma função de imediatez — a de fins ou telética — e uma função de mediação — a de meios ou bulética. “Na operação do intelecto ( intellectus ) fecha-se um círculo, e o mesmo acontece na operação do afeto ( affectus ). Pois o intelecto parte da certeza dos princípios, que ele afirma quietamente, e procede com o movimento do raciocínio para as conclusões, nas quais se detém quando alcança um conhecimento certo, resolvendo-as nos primeiros princípios que estão virtualmente nelas; de igual maneira, o afeto parte do amor do fim, que é o princípio, e procede com movimento desiderativo para as coisas que se ordenam ao fim, as quais contêm em si mesmas esse fim, e, portanto, repousa ou se aquieta nelas pelo amor. E assim o desejo se segue ao amor do fim, o qual precede ao amor das 70 - “Na filosofia tradicional, o amor foi colocado entre as atitudes volitivas e até foi designado como um ato da vontade [...]. Na filosofia tradicional, não se faz cla ramente a delimitação entre uma atitude voli tiva e uma atitude afetiva que responda ao valor”(D. v. Hildebrand, La esencia del amor, 75). 32
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coisas que se ordenam ao fim.” A modernidade definiu a vontade preponderantemente como função de meios, razão por que teve de reivindicar para o sentimento os dois modos de imediatez que a filosofia clássica assinalava: a imediatez de fins própria da vontade e a imediatez cognoscitiva do intelecto. Pois bem, ainda que a filosofia clássica conhecesse 71
perfeitamente a afetividade inserta naa imediatez atividade imediata da vontade de fins,espiritual, jamais considerou cognoscitiva um sentimento. 72
d) O físico no pessoal 1. Na medida em que o amor não é uma ficção artificiosa nem um fenômeno adquirido pela repetição de atos, parece acertado chamar “física” à teoria tomista do amor, pois ela inscreve este afeto na mesma natureza ( physis ) dos seres, a qual é seu princípio. Um apetite não simulado nem adquirido por repetição de atos é natural . Deste ponto de vista, o amor é um dado natural e não uma fantasia sem relação com o fim natural dos seres; e a vontade mesma é também um apetite natural, pois se dirige naturalmente a seu objeto natural. Sucede que o termo “natural” pode ter dois sentidos: “Em um primeiro sentido, opõe-se a tudo o que é adquirido. Em um segundo sentido, designa, no interior dos apetites dados com a natureza de um ser, este apetite particular que, por um lado, é idêntico à natureza mesma, e que, por outro lado, não exige a intervenção do conhecimento para passar ao ato. Um apetite natural neste segundo sentido é justamente um apetite que não é sensível nem intelectual, ao menos quanto a seu funcionamento“. Trata-se, pois, de uma noção não unívoca, aplicável a todo impulso para o bem, “sempre que se lhe acrescentem imediatamente as di73
71 - In III. Sent., dist. 27, q. 1, art. 3 ad 1. 72 - Juan Cruz Cruz, Intelecto y razón, cap. IV, “Intelecto e sentimiento “. 73 - Louis-B. Geiger, 94. O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino
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ferenças ontológicas que, sustentadas pelos diferentes graus de conhecimento, afetam sua estrutura”. Como Rousselot não faz esta distinção elementar, aplica ao apetite do ser dotado de conhecimento sensível e à vontade dos seres espirituais o que só vale para a inclinação, carente de conhecimento. “O apetite e o amor se encontram então determi74
nados desenvolvimento como um puro dinamismo peloo que qualpode um ser tende a seu pleno e capta tudo favorecê-lo.” Se a vontade é um apetite natural do homem, não porque se identifique com os fatos do mundo inanimado, mas porque se opõe, como fato de natureza, a tudo o que em nós é efeito do hábito adquirido, a que tende ela de modo natural, não simulada nem artificiosamente? Tende à objetividade real das coisas, porque é um apetite intelectual. Só nessa direção alcança sua felicidade. Ademais, não pode tomar uma direção contrária: não pode escolher não ser feliz. “Por sua própria natureza, a natureza espiritual exige ser feliz, e não pode querer não sêlo.” Isso significa também que a ordem natural da vontade a seu objeto, ao bem, passa pelo conhecimento intelectual deste objeto, e isso de maneira tão necessária quanto a vontade é vontade. Mas a vontade não é o único apetite natural (no sentido de não artificioso) que há no homem. Conquanto seja “o único apetite natural propriamente humano. O homem o possui na medida em que faz parte do mundo dos seres espirituais”. Também o apetite sensível é natural, no sentido de não adquirido, dado com a natureza. Essa índole natural a têm não só as tendências operativas chamadas apetite sensível e vontade, mas também as tendências entitativas chamadas “inclinações“, tendências de cada uma de nossas faculdades referidas a seu próprio bem, potências da vida vegetativa e faculdades cognoscitivas. Este apetite natural é “uma pura ordem ontológica referida ao objeto de cada faculdade, idêntica a essa 75
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74 - Louis-B. Geiger, 93. 75 - Louis-B. Geiger, 94-95. 76 - C. G., 4, 92. 77 - Louis-B. Geiger, 95. 34
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faculdade, não um amor que fosse diferente dessa faculdade e que tivesse uma realidade psicológica autônoma”. Em suma, nossa vontade é entitativamente uma potência ou faculdade e tem, como tal, uma ordem natural a seu ato. Deste ponto de vista entitativo, é um apetite natural. “Não só nos apetites dos instintos sensitivos, mas também nos atos 78
espirituais do homem e, portanto, também nospor deforça sua vontade, há sempre um componente que está presente natural, algo que se impõe a nós e se independentiza contravindo nossa liberdade de decisão e que antes de qualquer ato consciente seletivo se antecipou a nós, porque está escrito, decidido e posto como fato consumado. Ser-nos-á difícil compreendê-lo porque estamos acostumados a imaginar o natural e o espiritual como dois conceitos que se excluem mutuamente.” Pois bem, o querer é um ato espiritual e, como tal, não está sujeito a necessidade natural; mas também é um fenômeno não simulado de nossa própria natureza. Um ato pessoal acontecido no espírito é também um ato da natureza. Mas, na ordem operativa, o ato desta faculdade que é o amor espiritual só nos une a nosso bem de certa maneira, a saber, conforme a objetividade que um ser racional pode alcançar. 2. Por último, nos referidos escritos de Nygren, Rougemont, Scholz, Grünhut e Brunner, há um evidente exagero no modo de compreender o ser do homem, como se este não tivesse limites e tivesse de atualizar-se em puro Ágape, como se seu apetite já estivesse pleno de antemão e não tivesse de desdobrar-se em atos, justamente para realizar-se. O ser humano é indigente, sedento de realidades. Por isso, em seu primeiro ato de amor busca para si a perfeição que ele mesmo ainda não tem. A mobilização que nosso ser faz para alcançar sua plenitude já é uma afirmação desse mesmo ser: porque aprovo ou amo meu ser, movo-me a preencher o que lhe falta. O homem “tende por natureza a seu próprio bem e própria per79
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78 - Louis-B. Geiger, 96. 79 - J. Pieper, 144-145. 80 - Louis-B. Geiger, 99. O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino
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feição, o que quer dizer amar a si mesmo”. “O homem quer a felicidade por natureza e necessariamente.” “O querer ser feliz não é objeto de livre decisão.“ Esse apetite natural, ínsito em todas as faculdades, pode chamar-se Eros, ou amor-próprio, que busca sua satisfação natural e, ao fazê-lo, enriquece a existência. “E esta é exatamente a forma como se apresenta o Eros, 81
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desde de que, é claro, por se entenda a exigência de vidae total, consecução de Eros plenitude existencial, de felicidade bem-aventurança. Uma exigência que não pode ser retirada de circulação nem suspensa em seus efeitos, e que domina e penetra toda tendência natural e qualquer decisão consciente, e sobretudo nossa inclinação amorosa para o mundo ou para uma pessoa.” Entendido o Eros como amor natural, não se pode senão considerá-lo como algo em si mesmo bom. Se não o fosse, “tampouco poderia a caritas, e portanto o Ágape, aperfeiçoá-lo; o Ágape teria nesse caso de suprimir o Eros e excluí-lo por si mesmo, que é o que de fato afirma Nygren”. Daí que, conquanto Nygren tenha razão ao afirmar que o amor de Ágape é o que há de srcinal no cristianismo, por nenhum aspecto cabe desconectá-lo do Eros, do amor natural. Todas as nossas faculdades são impelidas por um “apetite natural” que exige a satisfação no objeto amado. Mas o homem não é criador de valores nem torna amável o outro: o valor e o bem são fundados no ser e na verdade do outro. E, no caso, isso é o que o Aquinate sublinha como fundamental em sua teoria do amor. O amor que me realiza e aperfeiçoa como homem não é imotivado, tem causa: o bem objetivo e real da pessoa amada. 84
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81 - S. Th., I, 60, 3. 82 - S. Th., I, 94, 1. 83 - S. Th., I, 19, 10. 84 - J. Pieper, El amor, 146. 85 - J. Pieper, 185. 36
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3. Sentido primário do amor: a pessoa
Quando o Aquinate usa a palavra “amor” para designar um acontecimento existen cial — porque amar é comprazerse no bem que existe no outro —, abrange com um só termo dois aspectos reais. Em primeiro lugar, o ser mesmo da pessoa comseua individualidade queser.a caracteriza na ordem entitativa: ser e seu modo de Quero primariamente que o outro exista, ainda que não seja gracioso nem atraente; quero também que exista como gracioso e atraente, porque é assim e enquanto é assi m. Em segundo lugar, o amor pode penetrar, ademais, no interior operativo dessa individualidade pessoal, afirmando e aprovando sua intimidade, interioridade relacionada. No que se refere ao primeiro aspecto, Santo Tomás indica que no amor está em jogo o sentido do ser pessoal. E sua linguagem, quando fala deste assunto, é personalista: “Dado que o amante toma o amado como idêntico a si mesmo, o amante há de comportar-se como se ele mesmo fosse a pessoa amada (oportet ut quasi personam amati amans gerat) em todas aquelas coisas que dizem respeito ao amado, de modo que de certo modo o amante promove o amado na medida em que se regula pelos mesmos termos do amado”. Mas o que é propriamente a pessoa e que relação tem com a intimidade? É imprescindível, para responder a esta pergunta, repassar brevemente a polêmica suscitada no pensamento contemporâneo acerca da possível distância que a pessoa estabelece com respeito à natureza. 86
a) Pessoa e natureza Na atualidade, o conceito de natureza humana está carregado de graves interrogações, derivadas da revisão que dele 86 - In III Sent., dist. 27, q. I, art. 1. O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino
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fizeram diferentes correntes de pensamento. Poderíamos aludir especialmente ao naturalismo e ao culturalismo. Por um lado, o naturalismo concebe a natureza humana como o conjunto de tendências físicas e biológicas que existem no homem, com a particularidade de que reduz o homem mesmo a esse conjunto de tendências; é, portanto, uma posiçãoPor afimoutro ao materialismo. lado, a posição culturalista — influenciada pelo existencialismo — admite a definição de natureza que o naturalismo oferece, e acrescenta que o homem é mais, a saber, o que culturalmente ele faz, com o que ele não só não se reduz à natureza, mas antes se opõe a ela. Por sua vez, o modernopersonalismo percebe que no debate anterior entre naturalistas e culturalistas se usa um conceito de natureza que não coincide com o da metafísica medieval, a qual inclui na naturezatodas as tendências do homem, as físico-biológicas e as espirituais. Mas também indica que, embora o conceito metafísico de natureza seja, em teoria, suficientemente aberto para escapar às críticas doculturalismo,factualmentenão funcionou como tal, senão que forneceu uma imagem do homem excessivamenterígida e passiva, na qual o dado, a natureza, prevaleceu sobre a liberdade, sobre o eu, sobre a cultura, sobre a história. Para centrar o sentido do homem, esse personalismo propõe que se passe da teleologia de cunho aristotélico àautoteleologia de cariz personalista, entendida esta no sentido de que o homem “é fim para si mesmo”; e, portanto, urge passar do conceito de “natureza” para o de “pessoa”. O problema então reside em entender corretamente, por sua vez, o significado de pessoa. A primeira dificuldade que salta aos olhos é se as doutrinas mencionadas explicaram cabalmente o que a filosofia clássica entendia por natureza e por pessoa. A segunda dificuldade está em saber em que sentido o homem é um fim em si mesmo.
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b) Os elementos essenciais da pessoa Em meio a esse assédio de teorias, é reconfortante voltar a ler o que os medievais entendiam realmente por pessoa humana e por natureza humana. É o que farei a seguir, retomando as explicações que Santo Tomás oferece sobre o conceito de “pessoa”, a definição dadaracional”. por Boécio: “Pessoaem é uma substância segundo individual de natureza A pessoa, seu sentido mais próprio e formal, significa o indivíduo de natureza racional. Apontam-se aí quatro elementos essenciais: 1º a substância; 2º o indivíduo; 3º a natureza. 4º a razão. 1º Substância. — Na definição de pessoa, substância equivale a substância primeira [hipóstase]. Seria suficiente então dizer que pessoa é substância primeira. Da substância primeira é excluída, de um lado, a índole do universal (e, assim, a substância individual não é o homem); e, de outro lado, também é excluída a índole de parte: a substância primeira não é a mão (parte do homem), mas tampouco a alma (parte da espécie humana). 2º Individual. — No que diz respeito ao “indivíduo”, o Aquinate contrapõe o universal e o individual, indicando três pontos. Primeiro, o universal e o particular se encontram em todos os gêneros, mas o indivíduo se encontra de modo espe87
88
87 - III Sent., d. 5, q. 2, a. 1; S. Th., I, q. 29, a. 1; q. 3, a. 4; q. 30, a. 4;De pot. q. 9, a. 2-a. 6. 88 - No contexto dessa definição, substância se divide em primeira e segunda; pessoa é equivalente a substância primeira. A natureza que aqui se nomeia é a substância segunda, o universal como unidade capaz de estender-se a uma pluralidade. O universal, ontologicamente considerado, é referido pela predicação objetiva e constitui a essência de um ser, abstraída as diferenças individuais ; este un iversal é a natureza. Chama-se substância por serprimeira, um princípio da mudança das coisas. Mas não é substância já queexplicativo esta é individual e, portanto, impenetrável pelo entendimento. O universal (substância segunda) só é real no individual (substância primeira), que, por sua vez, é tal porque realiza o universal. A substância segunda é, no intelecto, o universal e, no singula r, a mesma natureza concretizada da coisa. A natureza é, como substância primeira, princípio real que emite (quod) uma operação física; e, como substância segunda, é princípio pelo qual (quo) a operação intelectua l apreende o inteligível das coisas. O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino
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cial no gênero da substância. Pois a substância se individualiza por si mesma, mas os acidentes se individualizam pelo sujeito, que é a substância; exemplo: esta brancura é tal brancura na medida em que está neste sujeito. Por isso também as substâncias individuais têm um nome especial que outras não têm: substâncias primeiras. Segundo, por sua vez, o particular e o indivíduo se encontram de modo muito mais específico perfeito nas substâncias racionais , as que dominam seus atos,e pois não só são movidas, como as demais, mas também agem livremente por si mesmas. Terceiro, as ações estão nos singulares, e por isso, dentre todas as substâncias, os singulares de natureza racional têm um nome especial: este nome é pessoa. Por isso o nome indivíduo entra na definição de pessoa para indicar o modo de subsistir próprio das substâncias particulares. Assim, uma alma humana separada conservaria a capacidade de união com o corpo, mas não poderia ser chamada substância individual, que é a substância primeira, assim como tampouco lhe corresponderia a definição nem o nome de pessoa: poderia chamar-se substância de natureza racional, mas, como é parte da espécie humana, só retém a capacidade de união, e não pode chamar-se substância individual, que é substância primeira. Justifica-se assim que na definição de pessoa dada por Boécio entre a substância individual, precisamente para significar o singular no gênero da substância: a “substância individual” significa aqui a substância primeira subsistente, o concreto. 3º Natureza. — Na definição de pessoa, a singular no gênero de substância se acrescenta “natureza racional” para significar o singular nas substâncias racionais. Que matizes encerra aqui a palavra natureza? Já Aristóteles havia dito que o nome 89
natureza é aplicado para indicar, sobretudo, a geração dos vi89 - O individual, que se opõe ao universal ― porque não é multiplicável , como este, em vários sujeitos ―, significa, no caso do homem, que ademais a pessoa não é parte de um todo, mas é um todo ela mesma ― um todo
absolutamente separado de qualquer outro e cujo ser não é compartilhado por outro ―, razão por que, em seu desenvolvimento, pode manter não só
independência com respeito ao meio, mas controle específico sobre ele. 40
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ventes chamada nascimento. E, porque esta geração brota de um princípio intrínseco, aplica-se também “natureza” para indicar o mesmo princípio intrínseco de qualquer movimento. Pois bem, este princípio é tanto a forma como a matéria, e por isso a matéria e a forma são chamadas natureza. Por sua vez, a forma culmina ou completa a essência de uma coisa; e pornatureza isso a essência de algo, indicada em sua definição, étambém chamada . Diante das críticas do personalismo atual, deve-se indicar que a “natureza” que se põe na definição de pessoa não significa a “geração do vivente”, que certamente se pode chamar natureza; tampouco significa o princípio intrínseco do movimento e do repouso, o qual também se pode chamar natureza; significa tão-somente a essência completa, que é significada pela definição da coisa. Neste sentido, natureza é a diferença específica que informa cada coisa. Pois a função da forma é fornecer a diferença específica — a racionalidade — que completa a definição. Só neste último sentido a definição de pessoa, 90
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que é o singular do gênero determinado de substância, recebe formalmente o nome de natureza . Em certo sentido, natureza e racionalidade coincidem na definição de pessoa. Mas o que é, neste contexto, a racionalidade? 4º Racional. — Certamente o “racional” que se põe na definição de pessoa não é a “diferença” chamada “razão dis92
90 - A natureza é a essência configurada pela forma. O termo da geração natural é a essência da espécie, que depois se expressa na definição. A essência é o que con fere às coisas sua própria natureza, fazendo-as ta mbém sujeitos ativos de movimento. Quando a essência se expressa na definição, então se diz que a natureza é a diferença específica na escala dos seres: o conceito expresso na defin ição. 91 - O sujeito concreto ou individual é princípio constituído (quod); a natureza é princípio ( quo). As ações são da natureza (como universal), mas doconstituinte sujeito individual, que, se énão de natureza inteligente, se chama pessoa. 92 - A natureza é a estrutura racional da realidade, o núcleo inteligível e objetivo das coisas. Está nas coisas e se adéqua à mente humana. Figura como a linha de interseção entre as coisas e o pen samento: é a i nteligibilidade que o entendimento tem de extrair das coisas para comprendê-las. As coisas são cognoscíveis, possuem certa natureza inteligível que permite a adequação objetiva exigida pelo conhecimento real. O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino
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cursiva” — um erro freqüente da apreciação personalista; mas a propriedade que brota da natureza intelectual. A racionalidade não equivale aí somente à índole de um “processo discursivo” ou dianoético, mas à própria faculdade intelectiva, de cuja constituição espiritual pode derivar tanto a ação discursiva própria do raciocínio (a ratio estrita) quanto os atos intuitivos )imediatos de afirmação ouosessencial (o intellectus de princípios e valores,existencial e igualmente sentimentos espirituais de amor, gozo, alegria, esperança e confiança. Conquanto racional em tal sentido, a pessoa não se define então como “consciência atual de si”: porque, se assim fosse, nem os adormecidos, nem os ébrios, nem os recém-nascidos seriam pessoas. A racionalidade não é aqui uma atualidade de consciência, mas uma capacidade de tê-la e exercê-la. Por meio desta capacidade ou “faculdade racional”, a pessoa pode voltar-se completamente para si mesma (reditionem completam), ou seja, é capaz de autoconsciência, razão por que pode, à diferença do animal, chamar-se “eu”. Esta volta para si se encontra também na vontade ou na livre disposição que a pessoa exerce sobre si mesma. Mas o primário na definição de pessoa é a racionalidade assim descrita — ou seja, espiritualidade intelectiva, volitiva e sentimental —, de modo que o ser humano se conhece como sujeito e tem a si mesmo como fim interno de suas próprias ações: só por isso tem qualidade de pessoa, razão por que não deve servir de mero meio para outros seres. Sem despachar a natureza, a pessoa é, nesse sentido, autoteleológica. 93
c) Substantividade e subsistência da pessoa Ao terminar este análise, pode dizer Santo Tomás que “persona significat illud quod est perfectissimum in tota natura, scilicet subsistens in rationali natura”: a pessoa significa o 94
93 - De Ver., q. 1, a. 9. 94 - S. Th., I, q. 29, a. 3. 42
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que há de mais perfeito em toda a natureza, a saber, o subsistente numa natureza racional. O termo “subsistens” desta frase merece um pequeno comentário. a) A esta altura de nossa explicação, é claro que, ao se chamar substância primeira à pessoa, o uso do termo substância não implica uma “coisificação” da que pessoa, comocomo pensam os personalistas modernos. É verdade filósofos Kant, Scheler, Hartmann, Zubiri e Ortega insistiram em que a substância equivale a realidade estática, inerte, uma espécie de substrato, diante de cuja imobilidade se desdobram as peripécias do sujeito; por isso, alguns viram a categoria de “coisa” inequivocamente determinada por esse substrato inerte. Dizer que a pessoa é substância equivaleria a defini-la como coisa inerte (Ding). Esses autores ressaltaram apenas um aspecto da substância primeira — tal como o Aquinate a define —, a saber, que é sujeito — ou substrato — dos acidentes unidos a ela: está por baixo (sub-stat) deles. Mas, conquanto exato, este aspecto de que a substânciatodas é o sujeito último do ser,que sujeito a que se— unem internamente as determinações pertencem a um ser, sem unir-se ele mesmo a nenhum outro — é secundário com respeito à principal determinação da substância humana, o ter como propriedade (per se) o ser, à diferença do acidente, cujo ser é emprestado (in alio). Para estes dois aspectos da substância, os clássicos tinham dois termos parecidos, mas com carga ontológica diferente: subsistere e substare. O segundo indica que a substância primeira não necessita, para existir nem para operar, de nenhum outro ser, nem pode converter-se em natureza de outro ser. Assim como luzir 95
95 - “Uma coisa subsiste quando tem eem si mesma existência, com inteira indepen dência de outro sujeito com absolutasua incomunicabilidade” (De pot., q. 9, a. 2 ad 6). Embora a substância fosse definida por sua oposição ao modo de existir em outro, ao acidente, não é essa determinação a que melhor e mais profundamente a significa. A propriedade de existir em si mesma era entendida pelos clássicos na consideração absoluta da coisa e só em ordem a esta mesma: então aparece a substância como o sub sistente, como o que não tem necessidade de sustentar-se em outra coisa, senão que está em si mesmo, tem o ser em próprio, é per se. Só quando o existir em O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino
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(lucere), ter a luz em próprio, não é iluminarilluminare ( ), assim também existir em si sem necessidade de sustentação é uma consideração primária e diferente desustentar a outro e dar-lhe o ser . Só em ordem à coisa mesma e a seu próprio ser falamos subsistere de ; ao passo que em ordem às demais determinações que ela sustenta falamos desubstare. Na noção de pessoa humana sublinha-se aquele aspecto primário, ea por isso—aparece ontologicamente como substânciaincomunicável outro incomunicabilidade de subsistência —, ainda que social e psicologicamente tenha por necessidade de se relacionar com os outros. A categoria de “relação” não define o ser da pessoa humana, apesar de alguns dos chamados “personalistas” atuais a definirem por essa categoria. Só em Deus, diz Tomás, são subsistentes asrelações; mas no homem não. Em resumo. Quando para definir a pessoa Santo Tomás utiliza o termo substância, ele o faz para referir-se a um ente que é em si mesmo (per se), sem ter um ser alheio in( alio): a atualidade radical da substância é srcinal, independente de outro ser em que se inserisse para existir. A pessoa expressa o modo de ser perfeito da substância completa em si mesma, individual e racional, sendo independente e incomunicável (aspectos todos que convergem na expressão latinagratia sui, “em razão de si mesmo”). Dizer “pessoa” é indicar a totalidade, a plenitude, a independência e a incomunicabilidade noexistir. A expressãogratia sui é muito significativa, e marca o sentido que hão de ter os atos dirigidos propriamente à pessoa: a pessoa deve ser tratada segundo o sentido de sua própria independência e plenitude de existir: por exemplo, “o próprio da amizade é que o amigo seja amado em razão de si mesmo”. 96
si se entende de modo relativo, em referência a outra coisa, diziam que sustenta no ser, é in se: não só é subsistente (subsistens), mas sustentador (substans). De modo que, a propósito da substância, o existir per se deve ser tomado primária e positiva mente como a perfeição entitativa que exclui dependência de outra coisa; embora secundária e negativamente se tome pela mesma negação de dependência e de comunicação com outro. A substância se define melhor na ordem absoluta de existir per se ( subsistere) do que na ordem relativa de existir sustentando (substare). 96 - “De ratione amicitiae est quod amicus sui gratia diligatur” (In III Sent., dist. 29, q. 1, art. 4). 44
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d) Pessoa, personalidade, intimidade 1. Em consonância com a doutrina do Aquinate sobre a pessoa como substância, cabe concluir que, no caso do homem, a substância é um centro dinâmico genuíno, de que brotam as atividades e a que estas refluem uma vez produzidas, justamente para cumprir o destino da ontológico natureza humana, ao mesmo tempo animal e racional: o fim de sua atividade (ou de seus acidentes) é a própria substância. Dito de outro modo: na medida em que as atividades brotam de meu ser pessoal como de uma substância, posso dizer “eu sou eu”; e, na medida em que, uma vez produzidas, tais ações refluem na substância (prescindamos de que me façam bom ou mau), posso dizer “eu sou meu”. Esta consideração fenomenológica responde a dois níveis de apropriação pessoal que seriam ontologicamente impossíveis sem a determinação substancial. Ao dizer “eu sou eu”, afirmo minha identidade na dimensão ontológica de minha srcinalidade. E quando digo “eu sou meu” 97
afirmo minha na dimensão ontológica de minhaa mesmidade . Noidentidade caso do homem, srcinalidade não equivale mesmidade, embora ambas as dimensões se devam à realidade substancial e idêntica da pessoa: a primeira obedece ao caráter fontal ou srcinante da substância; a segunda, à índole includente e receptora ou final da mesma substância com respeito a suas próprias atividades. Em sua identidade substancial como princípio idêntico no tempo, mas nunca estático, adquire sentido a srcinalidade e a mesmidade da pessoa. Mas a srcinalidade e a mesmidade, que são concomitantes, não se forjam ao acaso: são as inflexões primárias da pessoa em sua manifestação livre; e enquanto primárias modulam toda a atividade pessoal, ou seja, cunham a personalidade. A srcina97 - À qualidade de “srcinal” nas ações pontuais ou nas atitu des duradouras chamamos srcinalidade . O “srcinal” implica a novi dade, o fruto da ação espontânea, opondo-se não só ao que é cópia ou imitação de outra coisa — sublinhando assim a idéia de radicalidade e de nascimento —, mas também ao comum e geral — razão por que destaca a idéia de singularidade. O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino
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lidade tem dois momentos estruturais: primeiro, é uma eclosão da pessoa; segundo, infunde caráter e perfil a todas as maneiras da personalidade. Também a mesmidade tem dois momentos constitutivos: primeiro, é um retorno da atividade livre à própria substância pessoal; segundo, encontra-se na pessoa como uma aglutinação crescente de hábitos. De novo convém fazer uma observação nos permita distinguir a pessoa, a personalidade, o eu e a que intimidade. Embora a pessoa seja integrada por determinações ontológicas radicais, como o são a substancialidade, a individualidade, a racionalidade, ela só se constitui em “eu” quando a partir de um momento impreciso de sua primeira idade age desdobrando suas potencialidades: estas se realizam partindo de um foco de emissão radiante e de apropriação crescente: o feito e o por fazer convergem num ponto atematicamente consciente, o “eu”, que governa a conquistada riqueza da personalidade. O núcleo mais primário e profundo dessa riqueza é justamente a intimidade. Esta cresce com a progressão da personalidade; e diminui com o minguamento da personalidade; não assim a pessoa, cujo estatuto ontológico não depende do tempo. 2. A natureza humana é indeterminada, no sentido de que é aberta, de que não “fixa” as atividades concretas da substância primeira em um só objeto. A pessoa tem de fixá-las ou determiná-las. Um estado fixo, uma disposição estável de nossa atividade num objeto só é possível por uma determinação sobreacrescentada, porque, por tender essencialmente à ação, a natureza exige uma determinação. Em virtude de a pessoa ser de “natureza racional”, a tendência à ação que ela possui desde o momento em que é consciente de si mesma deve ter marcados os fins concretos e dirigir-se a eles, mas marcados por escolha, não por unívoca determinação, como ocorre com os animais. Se a natureza não está de posse de um fim concreto, determinado por necessidade vital e moral, então a pessoa é que deve dá-lo, porque precisamente da pessoa se srcinam os atos. Por conseguinte, o estado de hábito estável e fixidez em que se possa encontrar a natureza é um estado pessoal, variável em cada indivíduo segundo a escolha livre de cada pes46
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soa. Para ter um estado de natureza, uma há bito, uma direção concreta, é necessária uma determina ção sobreacrescentada pela pessoa mesma. Ao conjunto de hábitos estáveis ou disposições fixas inseridas na substância humana pode-se chamar “personalidade”. 3. Somos constituídos como “espíritos dotados das forças 98
e danós forma um corpo”; a pessoa uma individual queque é cada um de tem de natureza determinada, essência, participa da existência. Enquanto totalidade, a pessoa diz mais que natureza, porque inclui a natureza e lhe acrescenta alg o; portanto, opõe-se a ela como o todo à parte. Se é isso o que querem dizer os personalistas, já estava dito — e mais bem dito — no século XIII. A natureza é o que especifica este concreto e singular subsistente que é a pessoa, com todas as particularidades próprias dos indivíduos. Em to do o caso, porém, o ser e o agir da pessoa são especificados por sua natureza: a pessoa humana não age com a natureza de um cavalo ou de um gato; a natureza é para o indivíduo um princípio de unidade que o unifica interiormente e que também unifica externamente com todos os seus semelhantes. Dadoo que a natureza determina o ser e o agir da pessoa, é ela que regula e dirige seu comportamento, porque é sua lei, sua lei natural. Na pessoa humana comparece o risco terrível de se subtrair por sua liberdade à natureza, e portanto à consciência das exigências da natureza racional que constitui a obrigação moral. Instalar no seio da consciência o conflito e a divisão entre natureza e liberdade é uma das mais arriscadas aventuras a que o mundo moderno se entregou. 98 - Mesmo em sentido teológico Santo Tomás explicava que a graça é um dom pessoal; porque a natureza “caída” como tal não é reparada, dado que se propaga ainda com o pecado srcinal,dee conseqüentemente apenas as da pessoas são restabelecidas na amizade Deus; depois, por mediação pessoa, participa nisso a natureza do indivíduo. É fácil entender que a pessoa não tem poder sobre a natureza como tal, mas pode indispô-la com respeito à determinação sobrenatural que vem de Deus: a pessoa, dotada da liberdade de escolha, pode voltar sua vontade para as criaturas, em lugar de mantê-la voltada para o criador; e por essa indisposição pôde privar a natureza do dom divino e colocá-la num estado novo, oposto ao antigo, que é precisamente o est ado da natureza caída. O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino
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4. Mas a srcinalidade e a mesmidade são impregnações ontológicas da pessoa na ordem operativa, ainda que sejam sublinhadas para atender às operações que surgem da pessoa. Ambas as dimensões possibilitam, no caso do ser pessoal — inteligente e volente —, o aparecimento da intimidade, que é uma categoria da ordem ontológico-operativa, concretamente
da personalidade. Caberia figurar o dito ontologicamente esboçando uma imagem duplicada: a primeira representaria a ordem entitativa; a segunda, a ordem operativa da pessoa. Ou, se quisermos reservar o termo pessoa para a ordem entitativa e o termo personalidade para a ordem operativa — porque se nasce pessoa, mas dela forjamos uma personalidade —, é claro que a intimidade corresponde ao centro da personalidade, enquanto a mesmidade e a srcinalidade brotam da identidade da pessoa. A categoria de personalidade é de ordem psicológica e pode definir-se como aquela modulação da pessoa que consolida no tempo e na sociedade sua própria ordem operativa em forma de hábitos 99
e tradições, na medida em queante tem consciência do própriodeeusi,e livre disposição de si: estamos um sujeito consciente estruturado em hábitos operativos (bons ou maus). Mas antes de ser consciente de si o sujeito tem de estar ontologicamente constituído: a pessoa é personalidade em potência, a qual tem ser atualizada com atos pessoais; e a persona lidade é a pessoa em ato, um sujeito desdobrado em atos pessoais. Só num ser infinito, cuja operação se identificaria com seu próprio ser, coincidiriam também identidade e intimidade. No ser huma100
99 - Empregado pelos modernos, o termo “personalidade” já é uma categoria imprescindível no acervo antropológico e merece ser situada em seu justo lugar ontológico. Mas nego que a personalidade tenha de ser tomada uma “máscara”, como um fantasma de nós mesmos.necessariamente É uma realidadecomo psicológica em que podem encontrar-se tanto evidentes mascaramentos e ocultações in conscientes como sinceros e lúcidos desvelamentos. 100 - Embora pareça ocioso recordá-lo, aqui só se fala da “pessoa física”, não da “pessoa moral”. Esta última é em verdade impropriamente “pessoa”, pois consiste na união intelectual e volitiva das pessoas: assim, a so ciedade é uma pessoa moral que só por analogia com a pessoa física pode chamar-se sujeito de direitos. 48
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no, a intimidade é configurada pelos modos de srcinalidade e mesmidade, que são impregnações ontológicas da pessoa na ordem operativa. Para salvar a índole necessária, abissal e assinalada da intimidade, não é preciso identificá-la com a pessoa mesma. Basta admitir que não há pessoa “realizada” sem intimidade; ou que a intimidade fluidofontalmente da pessoa. em seja relação pura a essência ser pessoal finito, fazerConverter que a relação um constitutivo necessário da essência pessoal humana, equivale a estirar inabilmente o sujeito e esvaziá-lo de todo e qualquer peso substancial. O sujeito seria o que é o objeto; o eu o que é o não eu. Cada um seria primitivamente o não de si mesmo: pura dialética, primazia da negação sobre a positividade. De resto, é surpreendente a pouca ou nenhuma atenção que os manuais correntes de psicologia prestam à noção de intimidade. 5. E o primeiro escolho que se deve evitar é o confundir “intimidade” com “vida privada”. O âmbito da vida privada é determinado em muito alto grau pelo costume e pelos usos: a vida sexual, o credo político ou o religioso, os ritmos biológicos, o estado da própria economia doméstica, etc., podem ser para algumas pessoas segredos da vida privada, enquanto para outras podem ser matéria de autoexposição normal diante da imprensa. O íntimo não é forçosamente o que temos por guardado ou secreto. “Se o uso pode decidir sobre a vida privada, somente a espiritualidade do indivíduo decide sobre o que será vida íntima. Pode-se suprimir uma vida privada, impedi-la... tornando-a simplesmente pública. Mas não se pode romper o curso de uma vida íntima. Porque, se uma pertence ao reino de César, a outra pertence ao ‘reino do espírito’, radicalmente 101
indiferente tanto às enfim, intrusões quanto à publicidade.” 6. Para indicar, a localização ontológica da intimidade, é conveniente referir-se ao alcance desse efeito do amor que é o êxtase. A saída que de si faz o sujeito no amor é, em 101 - Charles Le Chevalier, La confidence et la personne humaine, 152. O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino
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primeiro lugar, certa divisão no sujeito mesmo. Há de dar-se esta divisão, se o amor tende por natureza à união do amante com o amado. De um lado, o amor busca a união transformante de amante e amado mediante a penetração mútua e íntima. De outro lado, esta união mútua e íntima só se pode realizar se o amante se separa ou divide de si mesmo, distanciando-se de 102
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sua própria forma. O amante realizapara um oêxodo, saída, uma separação de si mesmo tendendo amado,uma e por isso o amor produz êxtase (amans a seipso separatur, in amatum tendens, et secundum hoc dicitur amor ecstasim facere). Mas este êxtase só pode ser o da afetividade em seu modo mais elevado, o da intimidade. Como a forma de que o amante há de se separar não pode ser de ordem entitativa — porque então deixaria de ser —, é claro que o amor busca a transformação na ordem operativa do afeto, que é o manancial imediato da ordem entitativa na intimidade, interioridade relacionada primordialmente através dos hábitos operativos profundos e tensionados pela liberdade. e) O amor como união afetiva O próprio e mais formal do amor não é a participação do amado no amante (esta seria a causa do amor), nem a efetiva e real conjunção do amante com o amado (esta seria o efeito do amor), mas a união afetiva do amante com o amado. No amor é preciso distinguir, pois, a união entitativa ou aptitudinal que é antecedente e causa do amor; e dois tipos de união dinâmica ou operativa, efeitos do amor: uma afetiva e outra efetiva. É que a união do amante e do amado pode ser entendida de três maneiras. Pois “há três classes de união 102 - “Amor transformat amantem in amatum, facit amantem intrare ad interiora amati, et e contra, ut nihil amati amanti remaneat non unitum... et ideo amans quodammodo penetrat in amatum... et similiter amatum penetrat amantem, ad interiora eius perveniens” ( III Sent., d. 27, q. 1, a. 1 ad 4). 103 - “Quia ni hil potest in alterum transformari, ni si secundum quod a sua forma quodammodo recedit” (III Sent., d. 27, q. 1, a. 1 ad 4). 50
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com respeito ao amor. Primeira, a que é causa dele, e é uma união substancial (unio substantialis), quanto ao amor com que alguém ama a si mesmo; mas, quanto ao amor com que alguém ama as outras coisas, é união de semelhança (unio similitudinis). A segunda é essencialmente o amor mesmo (ipse amor), e é união por coadaptação no afeto (secundum coaptationem ), assemelhando-se união substancial na medida em affectus que o amante, no amor de àamizade, se ordena ao amado como a si mesmo (ad seipsum), e, no amor de concupiscência, como a algo próprio (ad aliquid sui). Há uma terceira união, que é efeito do amor: união real (unio realis) que o amante busca com a coisa amada segundo a conveniência do amor; porque, como refere Aristóteles, disse Aristófanes que os amantes desejariam tornar-se de dois um só; mas, como neste caso ou um ou os dois se aniquilariam, aspiram a uma união conveniente e decorosa, quer dizer, tal que eles vivam juntos e se falem e estejam unidos em outras coisas similares”. 1. A união estática ou entitativa e aptitudinal é antecedente, porquanto o amante e o amado têm aptidão para se amarem: trata-se da conveniência de ambos ou na mesma forma substancial (identidade do sujeito consigo mesmo) ou na forma acidental (semelhança de um sujeito com outro); e esta união ou conveniência (coaptação, proporção, unibilidade) é causa formal, não eficiente, do amor: é uma união causal ou causativa: se entre o amante e o amado não houvesse certa proporção, conveniência ou coaptação, nunca se seguiria o amor real. A união entitativa do amante com o amado se dá, 104
104 - S. Th., I-II, 28, 1, ad 2. O expresso neste texto pode traduzir-se num diagrama:
união entitativa 1 amante união operativa afetiva 2 amor amado 3 união operativa efetiva O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino
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pois, em ato primeiro ou aptitudinal, e pode por sua vez assumir três modalidades: as duas primeiras são a união substancial e a união de semelhança perfeita, as quais figuram como causa formal do amor perfeito; e a terceira é a união de semelhança imperfeita, que figura como causa formal do amor imperfeito. Em resumo: a união que é causa do amor, união antecedente, quea)é entitativa ou emque ato existe primeiro, podeidentidade ser dupla: real subsUma, perfeita, ou por tancial — tal como cada um se relaciona consigo mesmo — ou por semelhança perfeita do amante com o amado; e esta união é causa do amor perfeito, que é o íntimo, tanto o amistoso como o esponsalício. b) A outra é imperfeita, união por semelhança imperfeita entre o amante e o amado, porquanto o amante não possui em ato a forma e perfeição do amado; e esta união é causa do amor imperfeito, que foi chamado de concupiscência. 2. Outra união é dinâmica , operativa, atual, porquanto o amante expressamente e com certo conhecimento se orienta para o amado; e esta união pode ser, em primeiro lugar, concomitante . Tal é a união propriamente afetiva , porquanto a unidade entitativa real ou ideal, ou seja, a mesma união aptitudinal, entre o amante e o amado, conhecida e apresentada às tendências do amante, as excita, dispondo-as afetivamente para o amado (intenção unitiva). Esta união, coaptação ou consonância do afeto do amante com o amado, como com algo bom e conveniente para si, é formalmente o próprio amor. A união afetiva é uma conveniência do afeto pela qual o amante se converte afetivamente no próprio objeto ou na pessoa amada. Esta união é efeito formal primário do amor e, por isso, é essencialmente o próprio amor ; dito de outro modo, o próprio amor é tal união ou ne xo. Em suma: a união que é essencialmente o próprio amor se dá por adaptação e conveniência do afeto, assemelhando-se à união substancial, pois o amante, no amor perfeito, se ordena ao amado como a si mesmo, e no amor imperfeito como a algo próprio. Esta união pertence ao amor na medida em que, pela complacência do apetite ou da vontade, o que ama se refere ao objeto 52
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amado como a si mesmo ou como a algo próprio ( sicut ad seipsum vel ad aliquid sui ). Tal união concomitante, que é já dinâmica e constitutiva do amor, que é a própria união afetiva do amante com o amado — essencialmente o próprio amor —, se comporta, pois, de diverso modo, ora como amor perfeito, ora como amor imper105
feito. como amor perfeito, o— amante se torna afetivamente — Pois, no coração, na intimidade o próprio amado de modo completo, segundo todo o seu ser, porque se refere ao amado como ad seipsum totum, à totalidade de si mesmo — é um êxtase da intimidade —, e por isso corresponde e se assemelha à união perfeita substancial — união por identidade — que alguém tem consigo mesmo. Isso explica que o que é amado com amor perfeito se chame “outro eu” (alter ipse, alter ego): pois a alma do amante se encontra mais onde ama que onde anima, conseguindo uma união permanente, habitual, profunda, persistente e íntima. Mas, como amor imperfeito, o amante se torna afetivamente o amado de modo incompleto — não se opera nele um êxtase puro da intimidade —, porquanto se relaciona com o amado como com algo de si mesmo e não como com um todo íntegro, e por essa razão corresponde à união de semelhança imperfeita, que é sua causa: só consegue uma união transitória, frágil, temporal, superficial. Mas em cada categoria de amor perfeito (como veremos: benevolente ou íntimo, amistoso ou esponsalício, paternal ou filial) se encontra a intenção unitiva de determinada forma. 3. A última união, também dinâmica e atual, é conseguinte: união efetiva ou real e exterior, porquanto o amante se dirige ao amado com movimento real para unir-se a ele de maneira 105 - “A união afetiva, pela quale oatéamante é informado pelouma amado e se transforma afetivamente nele, se torna afetivamente mesma coisa com ele, é efeito formal do amor, que é essencialmente o nexo mesmo, o aglutinante, o laço afetivo de ambos, e, portanto, tal união não difere realmente do próprio amor; há somente distinção de razão. Neste sentido, assemelha-se à união substancial do amante consigo mesmo amado, enquanto o amante toma o amado como outro eu ou como algo seu, que pertence a seu bem-estar, e assim se dá ao amado como a si mesmo ou como a algo seu” (Santiago Ramírez, La esencia de la caridad, 360). O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino
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existencial e efetiva, possuindo-o realmente, convivendo com ele, formando uma ativa comunidade de vida com ele; e esta união é efeito do amor. Trata-se do efeito propriamente dito de uma causa eficiente, união real, que se dá com a presença da pessoa amada, e tal união pertence formalmente ao gozo. Essa união real e exterior do amante com o amado é efeito do amor 106
propriamente dito,uma no gênero da unitiva, causa eficiente. nãoa só o amor possui intenção mas nele Porque se realiza união ao menos do lado do amante. A união afetiva, propriamente o amor, é a melhor atalaia para divisar a constituição e o desdobramento da intimidade pessoal, como se irá vendo. 107
106 - “Daí que esta união real e física do amante e do amado seja, com respeito à união afetiva, como o fim na execução com respeito ao fim na intenção. Pois o fim na intenção, que é a própria causalidade da causa final, move o agente a obter e conseguir na realidade o bem mesmo ou a perfeição que, enquanto estava na intenção, o movia a agir e a mover-se para obtê-lo na realidade: e assim o fim na realidade ou consecução real do fim é o último no gênero da causa eficiente, por ser efeito do mesmo agente. E, de modo semelhante, a união real e física do amante e do amado, pela presença real e posse dele, é como a união real ou na execução, e é, portanto, efeito do amor, ou do amante mediante o amor, no gênero da causa eficiente. O amante se refere ao amado como o sujeito ao objeto e como o agente ao fim. É claro que a união efetiva e real está com respeito à união meramente afetiva e cordial na relação do perfeito e consumado ao imperfeito e incoado” (Santiagoquando Ramírez, La esencia de la caridad,e360-361). 107 - “Aunião real só acontece o amor é correspondido o amado se apressa igualmente para mim como eu para ele. Mas, em todo o caso, o meu amor já é um fator essencial na constituição da unidade. O amor não só tem uma intenção unitiva, mas é também uma força unitiva. Aspira à união que só nos pode ser dada pela correspondência ao amor, mas, na medida em que está em seu poder, o amor já constitui algo dessa união. Este duplo aspecto do amor é de grande importancia” (D. von Hildebrand, La esencia del amor, 86). 54
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Capítulo II
Amor e Intensidade
II - Amor e Intensidade
1. Intimidade e consciência 1. O caminho para a intimidade foi conhecido e proposto de diversas maneiras pelos pensadores antigos como um percurso que vai de fora para dentro e de baixo para cima. Por exemplo, Plotino distingue três planos do ser humano: ,
; por sua , níveis, vez, cadahomem um de nós pode estabelecer-se em um desses fazendo-se sensível, homem racional ou psíquico ou homem inteligível ( ). O caminho da interioridade exige superar primeiro o homem sensível, para ultrapassar depois o homem racional e chegar ao que na alma já não é alma, o . A este ponto se chega não tanto pelo esforço psicológico dedicado a consegui-lo quanto pela realidade objetiva que de dentro está convocando o ser humano: esta realidade é um princípio chamado o “uno”, o qual é visto pelo ápice do , pela intuição espiritual, o , a “ponta da inteligência”. A imersão na intimidade não se justifica senão pela realidade que a ultrapassa interiormente ( ). E, por sua vez, o âmbito da intimidade mesma não descerra seu véu se o homem não se aproxima dela com um esforço adequado para alcançá-la: mas ela não aparece como uma conquista, e sim como uma gratuidade que se outorga ao empenho dedicado a consegui-la. A gratuidade da intimidade corresponde à gratuidade da realidade do supremo princípio real e único: o semelhante se une ao semelhante ( ). Este caminho gratificante para a interioridade foi sublinhado por sua vez pelos pensadores cristãos, tendo em Santo Agostinho seu expositor mais insigne, o qual põe na srcem da alma não um princípio impessoal, mas a Deus mesmo. Se a alma não se volta para si mesma, não pode chegar à visão de Deus nem ao conhecimento de sua substância imutável. A alma deve recolher-se a seu fundo inte108
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108 - René Arnou, Le désir de Dieu dans la philosophie de Plotin, 191 ss; 218 ss. 109 - “Nisi ipsa anima super se se effundat, non pervenit ad visionem Dei et ad cognitionem substantiae i llius i ncommutabilis. Nam modo, cum adhuc in carne est, dicitur ei: ubi est Deus tuus? Sed intus est Deus ejus, et spirituO Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino
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rior para conseguir as alturas transcendentes. Este fundo tem o modo da autoconsciência, da autoposse que é habitualmente consciente de si, modo que Santo Agostinho chama memória: “Penetrei no mesmo assento de meu espírito, o que existe em minha memória, porque o espírito tem consciência recordativa de si”. Este fundo íntimo não vive à expensas de nenhum 110
ato ou comportamento, masintimidade do comportamento que assente verdade. Não há autêntica sem a presença da ver-à dade objetiva e, por sua vez, sem o princípio iluminante da verdade no espírito: “Onde encontrei a verdade, ali encontrei a Deus, a própria verdade“. Deus me é o mais interiormente íntimo (interior intimo meo). E o Santo de Hipona não hesita em recorrer às expressões que indicam a auto-referência consciente que preside a intimidade. Essas indicações históricas sobre o caminho da intimidade têm, como no caso de Santo Agostinho, um considerável componente teológico; mas são extraordinariamente ilustrativas e convidam a reelaborá-las num enfoque antropológico sistemático. 2. Ainda que a intimidade não se identifique com os diferentes atos da consciência, ela se forja na direção da consciência. Ademais, a intimidade se sublinha mais na região ontológica do hábito que na do ato. Mas precisamente a consciência é da ordem do ato: tanto do ato da vivência elementar como dos atos da consciência temática e da consciência tética, inseridas as três na autoconsciência concomitante. a) O conceito de vivência ou consciência elementar in111
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aliter intus est, et spiritual iter excelsus est: nec pervenit anima ut contingat eum, nisi tran sierit se” (Enarrationes in Psalmos, In Psal. 130, n. 12). 110 - “Intravi in ipsius animianmei sedem, illi 10, est c.in25, memoria quoniam sui quoque meminit imus” (De quae Trin. 10., n. 36). mea, 111 - “Ubi enim inveni veritatem, ibi inveni Deum meum ipsam veritatem” (Conf., 10, c.24, n. 35). 112 - Conf., 3, c. 6, n. 11. 113 - “Ad interiorem mentis memoriam qua sui meminit, et interiorem intelligentiam qua se intelligit, et interiorem voluntatem qua se diligit” ( De Trin., 14, c. 7, n. 19). 58
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troduz no de “vida” um matiz especial; a vida é uma realidade muito mais ampla que a vivência. Aos signos essenciais da vida (autodesenvolvimento, totalidade, estrutura e integração, auto-sustentação e adaptação), acrescenta-se aqui o fato de que na vivência a vida alcança certo estado de vigília; nela é como se a vida começasse a iluminar-se de dentro, ganhando comPois issobem, uma este nova“dar-se dimensão. conta”, próprio da vivência, já é um conhecimento intencional, ainda que “confuso”, de objetos, uma descoberta de partes difusas do ambiente; pode identificar-se com o conceito de “consciência sensível”, cujos objetos não se acham defrontados com o sujeito com a total precisão de coisas srcinalmente reais: não se mostram como coisas em si reais, mas como coisas para a vida sensível. Esta vivência não é típica apenas do âmbito cognoscitivo elementar, mas também do conativo dos estados sentimentais. Para captar uma coisa com clareza, é preciso estar explicitamente orientado para um objeto; toda consciência clara deve ser necessariamente consciência de uma coisa abertamente defrontada. Pois bem, no plano da vivência, há apenas uma intencionalidade global. Por exemplo, ainda que haja muitos sentimentos claramente intencionais, há outros que só comportam uma orientação vaga a um pólo objetivo: não são consciência-de explícita; referimo-nos aos humores, aos “estados de espírito”. Se me sinto abatido, melancólico ou alegre, posso às vezes dar razões disso, mas outras vezes sou incapaz de fazêlo: este último caso é o dos humores. O humor não me reenvia, enquanto tal, nitidamente a um objeto intencional individual. Minha melancolia não se refere a um acontecimento concreto que a provoque; mas tampouco é exclusivamente “minha” melancolia, porque alguma referência vaga existe a significados do mundo não plenamente definidos; é uma consciência de mim mesmo e do estado em que me encontro, a qual tem algum tipo de relação com algo global. O humor é um estado intencional difuso que não é diferenciado, nem está completamente descolado do sujeito nem tem ainda contorno ou ordem; mas justamente este humor vago e O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino
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impreciso colore ou tinge os diversos atos intencionais nítidos. O humor puro não é ainda uma consciência intencional clara em sentido estrito. Isso não quer dizer que o sentimento do humor coincida simplesmente com meu eu, ou seja, que a vivência intencional confusa se confunda com minha autopresença (ou autoconsciência consectária), que é inobjetiva ou inintencional. b) Podemos falar de consciência “nítida” quando na vivência aparecem separados claramente dois pólos; quer dizer, quando o homem refere suas vivências a essa fonte comum que é seu eu como diferente do mundo, do não-eu. Estamos, pois, no domínio da intencionalidade nítida. “Consciência”, neste aspecto preciso, é ao mesmo tempo consciência do eu e consciência do não-eu. Em contrapartida, falamos de “vivência elementar”, mas não de consciência estrita, na criança recém-nascida: esta vivência é difusamente intencional, porque não contém incisivamente tal separação (entre o eu e o que o cerca). A vivência elementar não é conscientização objetivante disto ou daquilo. Precisamente a esta última consciência identificadora chamamos “consciência temática”. c) Dá-se nítida consciência reflexiva, posicional ou tética (instância ajuizante que toma posições) quando o eu não só identifica suas vivências, mas toma uma posição ou atitude crítica com respeito a elas; nela se manifesta o homem explicitamente relacionado consigo mesmo e com o mundo em volta. Tal é o caso da recordação voluntária, do processo do pensamento consciente e dirigido, da atenção voluntária no autodomínio e da ação dirigida a um fim, do amor em que nos entregamos. A consciência tética se contrapõe à consciência ingênua, que é a que não toma posição, a que não adota uma atitude crítica ante as vivências. De modo que a finalidade da consciência tética é dirigir explicitamente nosso comportamento. A primeira coisa que aparece no homem é a vivência ou consciência elementar; a segunda, a consciência identificadora ou temática; e, por último, a consciência reflexiva ou tética. No entanto, não há um hiato ontológico nesta evolu60
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ção, mas uma progressão de sentido, um desdobramento ou gênese da consciência, em cuja direção se estrutura também a intimidade. Quando dizemos que há consciência tética ? Quando podemos fazer de um objeto, em sua qualidade de “ser”, termo de atos afirmativos explícitos. A orientação para o ser 114
penetra sempre com seusnoraios o nível consciente humana. É consciente, sentido estrito do termo,daovida que assume explicitamente posição com respeito à realidade “sob a razão de ser” . A consciência de ser éconsciência de uma direção. Na medida em que expressamos esta orientação por atos téticos, agimos de modo completamente consciente. Pois a tomada de posição do “assim é“ é parte essencial do juízo, e, se não tem lugar, o juízo não se efetua plenamente. Assim, sempre queum sujeito defronta explicitamente o que é (por juízo ou por amor), manifesta por isso que, estando presente para si mesmo, está diante do ser. Mesmo dormindo e sonhando estou orientado ao ser e presente para mim mesmo: minha espiritualidade primordial está implícita nesses estados. Inversamente, minhas idéias claras e diferentes não são outra coisa senão o último desdobramento da mesma situação ontológica srcinária, o dinamismo do eu. E nesse movimento, que é ao mesmo tempo real e moral, se constitui minha intimidade. Para que a intimidade alcance sua plenitude, tem de realizar-se progressivamente na linha desta direção fundamental da consciência. Pois a consciência sensível, tanto no animal como no homem, jamais toma explicitamente posição em face das realidades como realidades em si mesmas. 115
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114 - Sobre fenomenologia da consciência, cf.: Aron Gurwitsch, Théorie champ de la aconscience, Paris, 1957; H. Ey,La consciencia, Madri, 1967; Igordu A. Caruso, Bios, Psique, Persona, Madri, 1965. 115 - Esta argumentação é a dada por S. Strasser em Seele und Beseeltes, 182-192. 116 - S. Strasser, Seele und Beseeltes, 190. 117 - É o que se pode dizer do “sentire” escolástico: não se pode fazer entrar neste âmbito inferior a captação de entes como entes. O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino
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2. A intimidade é atravessada pelas formas intencionais e pontuais da consciência. Mas ela se constitui a partir daautopresença inintencional ou mera conotação do eu por si mesmo nos hábitos e em todo ato heterorreferencial, seja a intencionalidade deste explícita e clara (como nos sentimentos objetivos) ou implícita e vaga (como no estado sentimental ou humor):
a autopresença inobjetiva concomitante acompanha, como a sombraou ao autoconsciência corpo, tanto os hábitos e os estados quanto a consciência temática e tética. Esta unidade da autoconsciência não tem caracteres de primitividade — como a de um bloco — ou de pobreza — como a de um ponto. Aí está tudo referido a um só ato que se recolhe em si mesmo: trata-se da presença ativa para si mesmo, que é a caracterização do espírito. Enquanto ser espiritual não sou exterior a mim, mas interno a mim, traço essencial da intimidade. Esta autopresença, esta primordial “volta completa” em que se unifica a intimidade, carece de extremos externos e internos: “voltar à própria essência (redire ad essentiam suam) não é nada mais que subsistir em si mesmo (rem subsistere in se ipsam)”. Ou seja, esta “curvatura” não implica um desdobramento de si em sujeito e objeto: não é uma ação de refletir-se ou uma consciência espelho. Santo Tomás diz que a alma, “percebendo seu ato, entende-se a si mesma (se ipsam intelligit) sempre que entende algo (quandocumque aliquid intelligit)”. Trata-se de que em um só ato de apercebimento há dois pólos: por um lado, o ato éautopresença enquanto se refere ao “se ipsam” e, por outro lado, é conhecimento objetivo intencional (tético ou atemático) enquanto se refere ao “aliquid”. O ser consciente de si não se olha num espelho, mas se autopossui. No entender ou quereralgo, pelo contrário, estou orientado como sujeito a um objeto: dá-se a relaçãointencional. A autopresença (ou autoconsciência inobjetiva) não é um ato ulterior fundado num ato precedente; ou seja, não é um ato diferente justaposto ao conhecimento direto; é antes o mesmo conhecimento direto enquanto transparente para si mesmo. 118
118 - À diferença da autoconsciência primordial, o conhecimento reflexivo de si já não tem por objeto o sujeito pensante, mas o sujeito pensado. Ele só 62
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Pois bem, por constituir-se a partir da autoconsciência, a intimidade é interioridade; e, por ficar vertida na intencionalidade de seus atos, hábitos e estados, é uma interioridade relacionada. O ponto para o qual se curvam e convergem todos os processos de minha intimidade jamais se dá a mim como um objeto.não Pode-se sol: eu vejo graçasintimidade à sua luz, mas posso comparar olhá-lo. Acom fonteo espiritual de minha é invisível não porque seja tenebrosa, mas precisamente pelo contrário. Isso não me impede de saber que existe o sol nem de saber sua localização: basta seguir a direção dos raios luminosos; ali onde já não posso ver porque a abundância de luz me cega, ali se encontra o sol. Do mesmo modo, a autoconsciência tem na consciência tética a plenitude finalizante de todo o desenvolvimento humano. Ou seja, ainda que eu não possa conceber-me como a um objeto, posso aperceber-me de mim mesmo como a um centro, do qual irradiam todas as minhas dações de sentido. Nesta consciência de uma direção reside a autopresença envolvida em cada processo da intimidade. 3. A unidade persistente do eu está na base de toda a intimidade, tanto em seus aspectos cognoscitivos quanto em seus aspectos volitivos. Na vida cognoscitiva persiste o eu em meio à mudança de seus estados, atos e conteúdos. Não se dissolve na corrente das vivências, porque se assim fosse não poderiam tais vivências ser atribuídas a um mesmo sujeito. Impõe-se como unidade contra o diluente curso da consciência. A unidade da apercepção — empírica ou transcendental, não importa aqui — é a primeira condição da unidade das representações, as quais abarcam uma multiplicidade de dados submetidos ao tem quando certos atos daobjetivada, consciênciaoupassam do estado de atualidadelugar exercida ao de atualidade seja, mantida e defrontada na consciência. Há, pois, uma consciência intencional (elementar, temática e tética) tanto se se volta objetivamente para si mesma como se se orienta objetivamente para algo exterior. É reflexivamente consciente de si o que volta à sua própria existência, à sua natureza e ao seu estado ou os faz objeto de atos intencionais. Mas também há consciência de objetos reais ou possíveis alheios ao eu. Cf. A. Millán Puelles, La estructura de la subjetividade, 320-377. O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino
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tempo, referidos em seu presente ao experimentado anteriormente. Também a função da memória supõe a permanência do eu idêntico: porque a recordação não é um simples armazenamento, mas é levada por uma tração unitária. Para conceber o eu, é preciso excluir especialmente uma metáfora espacial: a de uma camada profunda. Seria preferível usar a do ponto de referência, de tensões ou contrastes ou a eu do ocentro de raios. O aeudoé polo a unidade que abarca tudo. E pelo todo da consciência permanece idêntico. Especialmente, torna-se lúcido nos graus superiores da consciência, na afirmação e no reconhecimento de si mesmo. Na vida volitiva ou no exercício da liberdade localiza-se também a identidade do eu, ainda que mudem as circunstâncias: aceitando ou renegando a si mesmo, responsabilizandose ou recusando uma obrigação aceita, comprometendo-se ou ficando à margem de exigências pessoais ou sociais. Pelo exercício de sua liberdade vai configurando a “personalidade”, que não é propriamente um estático “identificar-se consigo mesmo”, mas uma obra de auto-identificação, obra que exige ao mesmo tempo desdobramento e brio; é um “ativo fazer-se idêntico”. Nesta dimensão fundamenta-se a intimidade; e destes impulsos vive seu segredo, sendo ela capaz de responder por si e de ser fiadora de si mesma. A intimidade não cai para o homem como um fruto maduro, mas como um poder que se confere ao conquistá-lo. Na medida em que a intimidade é vivida, mediante a força de identificação, como própria e apropriada, não se desfaz na fugacidade dos acontecimentos. Poder-se-ia até pensar numa pessoa plenamente constituída, mas com uma intimidade reduzida. A intimidade é a culminação da identidade. Mediante o amor, a intimidade se abre e se potencia. 4. A intimidade, o mundo interior psíquico e moral do homem, inclui a autoconsciência — em princípio a concomitante —, ainda que nem tudo o que lhe pertence passe à atualidade da consciência de si propriamente reflexiva. Mas mesmo grande parte do que transcorre em suas profundidades pode tornar-se lúcida por meio de uma atitude dinâmica da 64
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consciência reflexiva e mediata. A intimidade inclui o apercebimento consectário do arraigamento das múltiplas relações em que o eu está com o mundo (ou seja, do arraigamento dos hábitos). Tais relações são as de amar e odiar, esperar e temer, querer e obrar, ambicionar e repudiar, gozar e afligir-se, irar-se e enternecer-se; enfim, todas as que se compreendem na vida afetiva.aoNelas se de incluem, lado, e,as por relações adaptação mundo coisas por e deum pessoas outrodelado, as referências ao valor moral que tais relações envolvem. Tanto umas como outras são o modo como a intimidade se constitui a partir do eu. Ou seja, constitui-se relacionando-se fundamentalmente com as pessoas e com o orbe moral: a consciência atualiza-se pelo exterior ao sujeito, pelas pessoas que o cercam e pelos valores que a chamam. Mas, ainda que a consciência humana dependa, em sua atualização, do mundo transcendente a ela, nem por isso cai interiormente no vazio. Desde que nasce, firma-se interiormente nos conteúdos arraigados ou hábitos, vividos todos como fatos de liberdade transcendental (de humana nudez) e experimentados alguns, ademais, como fatos de liberdade de arbítrio. Esta vivência de liberdade, conquanto seja limitada, centra e hierarquiza a intimidade, pois a liberdade tem de decidir nas múltiplas situações da vida pessoal. A intimidade é, assim, uma categoria ao mesmo tempo psicológica e ética. Pois nela se articula a vida psíquica como antecipação (no conhecimento e na vontade) e como resposta a valores individuais ou coletivos. Intimidade que transcende (não se esgota) a si mesma em cada um dos atos, podendo-se oferecer como única, mediante o amor, à resposta do outro. 5. A intimidade, interioridade relacionada, se forma ou forja no curso da vida pessoal — o homem começa a descobrir a intimidade em uma etapa de sua vida —, e podemos con119
119 - J.J. J.J. López LópezIbor, Ibor,El descubrimiento de la intimidad y otros ensayos. Este autor assinala com algumas f rases aparentemente felizes o que poderia ser a intimidade, frases, porém, que em verdade não se referem a nada concreto. Um exemplo: a intimidade, “reduto mais entranhável de nossa existência” (24). John W. Flesey, Intimacy and Spiritual Development: a Study of the Dynamics of Authentic Intimacy. Sobre as modificações contemporâneas do conO Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino
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tribuir para formá-la em outro: mais ainda, ela não se aprofunda nem amplia sem o contato com o outro. 6. Uma intimidade é forte na mesma medida em que tem capacidade de compartilhar e de relacionar-se criativamente. Por esta constituição insondável, a intimidade, embora pertença ao nível operativo, não é completamente reabsorvida 120
na ordem intencional atos, ecostumes menos ainda namoldando daqueles atos que se cristalizaram emdos simples e usos, automaticamente muitos aspectos de nossa vida. A intimidade é a formação operativa que se mantém ligada de maneira imediata e viva ao manancial de onde brotam os atos. Chamamos íntimas às ordens operativas por sua radicação (atos e hábitos) ou por sua difusão (estados sentimentais ou humores) nesse manancial. À intimidade comparecem, por um lado, os estados (v. g., os humores sentimentais), que não dependem em sua constituição de atos intencionais explícitos com referente concreto, e, por outro lado, muito principalmente os hábitos profundos radicados na liberdade, em especial os intelectivos e volitivos (v. g., o amor pessoal), entendidos por certas correntes psicológicas como “inconscientes”. 2. A intimidade na profundidade do amor 1. O hábito que melhor define a intimidade é o amor perfeito. Como aquilo que se ama pode ser ou último ou intermediário, o amor espiritual perfeito se refere ao termo último, que é a pessoa; enquanto o amor espiritual imperfeito só se refere ao termo intermediário. De modo que pode ser duplo o termo do amor espiritual: ou a pessoa própria ou a alheia para a qual queremos algo bom; ou a própria coisa boa que queremos para a pessoa — seja a própria, seja a alheia. Ao bem que se quer para a pessoa tem-se amor imperfeito, e àquele para quem se ceito psicológico de intimidade, ver Anthony Giddens, La transformación de la intimidade. 120 - Jerry Greenwald, Creative Intimacy, 205. 66
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quer o bem tem-se amor perfeito. O termo final e principal é a pessoa; o secundário e intermediário é a coisa medial boa, que é querida para a pessoa, fim último. O amor à coisa medial boa, que é imperfeito, implica movimento e mediação: não é puramente quiescente; em contrapartida, o amor à pessoa (tanto no amor benevolente como no amistoso e no espon121
salício) não é propriamente ato,propriamente mas hábito, quiescente é algo perfeito, final e permanente: é um amor . Este é outro modo de classificar o amor espiritual: não por seu termo ou objeto (pessoas ou coisas), mas pela índole de sua ação (quiescente ou itinerante). O acima expresso é outro modo de dizer que, para o Aquinate, há um “amor de pessoas” e um “amor de coisas“, ou, o que é o mesmo, um amor perfeito ou quiescente e um amor imperfeito ou itinerante. Trata-se de amor espiritual nos dois casos, amor que pode ser ou imperfeito ou perfeito. Buscamos com amor imperfeito o que queremos para nós como puro objeto degozo ou prazer: não buscamos o bem que cremos amar, mas o gozo mesmo, ou melhor, este gozo é o bem que buscamos, porque dele provém a atração que nos seduz. Ao passo que chamamos “amado” àquele para quem queremos algum bem. Não se pense, pois, que o amor imperfeito pertence ao apetite sensível: não é um afeto sensível; tampouco o amor espiritual coincide em sua totalidade com o amor perfeito. Trata-se de fazer uma subdivisão do amor espiritual. “Há um duplo amor: um imperfeito, outro perfei to. No amor imperfeito, não queremos o bem para alguém em si mesmo, mas queremos o bem dele para nós mesmos. E este amor é o que alguns chamam de concupiscência, v. g., amamos o vinho para alcançar suas delícias, ou amamos um homem para nossa utilidade e prazer. O outro, em contrapartida, é o amor perfeito, pelo qual se ama o bem de alguém em si mesmo, v. g., amando uma pessoa quero que ela tenha esse bem, ainda que eu nada ganhe com isso; e assim é o amor 122
121 - S. Th., I-II, 26, 4. 122 - S. Th., I-II, 26, 4, ad 1. O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino
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perfeito, pelo qual alguém ama a outro da mesma maneira que ama a si mesmo.” Vê-se, pois, que os modos de amor espiritual se diversificam não só pela índole dos seres amados (pessoas ou coisas), mas pela direção desse amor (para o outro ou para mim). Pois bem, também se pode dizer que há amor de doação quando se 123
ama a pessoa do outro si mesma; e quenão há por amor posse quando as pessoas e as por coisas são amadas si de mesmas, mas por nosso próprio bem. Esta qualificação de “perfeito” e “imperfeito”, aplicada ao amor, é de índole não só moral, mas ontológica. E tem conexão com as descrições fenomenológicas feitas por autores como Buber, Marcel, Scheler, Hildebrand e outros. 2. Tanto o amor perfeito quanto o imperfeito respondem à índole espiritual e livre da pessoa amante. O primeiro acontece através da objetivação pessoal do outro, dentro da relação livre do “eu ao tu”, onde cada um se afirma no nível mais radical de sua constituição: na intimidade surgida de uma identidade/mesmidade substancial que é ao mesmo tempo inteligente e livre. O segundo surge através da redução que, de maneira também livre, se faz do outro mediante uma objetivação possessiva, na relação do “eu ao ele”. Em verdade, para amar o outro não posso prescindir de minha função cognoscitiva, que se refere a um objeto real: ela realiza objetivações, ou seja, re-(a)presen tações do outro. Acontece porém que a objetivação pode ser redutiva ou unilateral; por meio dela se realiza uma forma de amor imperfeito, só possessivo e itinerante. Essa redução operada na objetivação não é efeito do mero conhecimento, mas da vontade livre que dirige e propicia um enfoque parcial ou unilateral do conhecimento mesmo: não há ninguém mais cego que aquele que não quer ver, diz o provérbio. Em contrapartida, o amor perfeito é levado por uma vontade de conhecimento ampliativo, não redutivo: conhecer tudo o que o sujeito é e sente, e cada vez melhor, define o talante do amor perfeito. 123 - De Spe, a. 3, c. fine. 68
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a) A relação de objetivação “reificante” é impulsionada pela decisão livre de tratar o outro como coisa inerte e quantificável. Inerte, suscetível de ser esgotado por um questionário que abarque todas as suas propriedades e estruturas; nesse sentido é tratado como algo acabado ou sido, de modo que mesmo seu futuro figura como algo incluído no presente, e este
como algo que já não qualitativas dá mais de si.aparecem Quantificável, as próprias estruturas como porquanto dimensões quantitativas, alinhadas em adição numérica: o outro vem a ser um número que internamente se mede com o esquema do mais ou do menos (alto, inteligente, enérgico) e externamente se soma homogeneamente aos demais para fabricar estatísticas de comportamentos econômicos, sexuais ou de outra índole. Por essa óptica, o outro se torna indiferente; e, mesmo quando sua vida se acaba, dizemos que “morre” na indiferença de seu ser, mas não “nos morre”, implicando-nos em sua biografia. Esse amor que só tem a índole do imperfeito e possessivo, do referido unicamente às coisas, vivido como processo itinerante, é chamado pelos medievais amor concupiscentiae. b) A relação de objetivação pessoal ou de intimidade plena é movida pela decisão livre de tratar o outro como pessoa objetiva, sublinhando sua índole dinâmica e qualitativa. Dinâmica significa aberta e inacabada, criadora, projetada para o futuro, tanto para desenvolver suas potências (sua vontade, sua inteligência, sua imaginação, etc.) quanto para desdobrar suas possibilidades históricas (os hábitos adquiridos e as pautas da tradição que o possibilitam). Qualitativa significa inquantificável, expressão de uma interioridade inesgotável, não consignada jamais por um número ou por um índice que expressa o mais e o menos, mas por um nome — o seu próprio nome —, que é o símbolo de uma realidade livre e criadora. Essa realidade pessoal jamais me é revelada na indiferença de uma coisa inerte, mas na convivência de sua liberdade, na afirmação única de sua intimidade. Este amor é um hábito, uma dinâmica quiescente.
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3. Intimidade e inconsciente 1. A caracterização do amor perfeito nos leva a precisar sua índole profunda e permanente, que não é outra senão a de um hábito, ainda que não a de um elemento inconsciente. Por contraposição à zona atual da consciência, é
“inconsciente” tudo ointerior, que nãoseja figura como póloseja deininuma orientação explícita intencional, tencional. Evidentemente, a consciência objetiva e explícita de si é um caso particular da consciência intencional em geral. Pois bem, não conhecemos um objeto chamado “o inconsciente”, nem podemos indicar um objeto chamado “o consciente”; mas percebemos a direção que dá sentido, a partir da plena presença espiri tual de si, tanto a disposições, tendências e instintos estabelecidos no eu quanto às configurações persistentes realizadas pelo eu. As disposições e as tendências, por exemplo, forma m o reino da virtualidade subatual ; as configurações persistentes, a esfera da virtualidade sobreatual , que não é outra senão a dos hábitos. Mas, conquanto não possuídos explicitamente, os h ábitos configuram a grande riqueza da personalidade, vividos pela intimidade (em sua autoconsciência primordial) como poderes apropriados , sendo este tesouro a virtualidade sobreatual. E o primeiro valor deste capital é o amor perfeito. 2. O hábito é primariamente uma qualidade , que, em linguagem clássica, é a atuação ou determinação da potencialidade de uma substância, preenchendo suas virtualidades realizáveis, suas possibi lidades de ser. A qualidade equivale a um ato que determina uma potência. E este ato foi chamado até de “modulação da substância”, determinação intrínseca da substância, promotor da substância. Por esta sua índole realizadora intrínseca, distingue-se das demais determinações ou categorias que afetam a substância. Por exemplo, distingue-se da quantidade, que não informa nem dispõe em si mesma a substância, mas só a estende em suas partes materiais. As demais categorias — como a relação 70
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— tampouco determinam em si mesmas a substância, só em ordem a algo exterior e dependentemente deste. Pois bem, à intimidade pertence de modo muito principal a ordem vivida do hábito, da qualidade. Recordemos tãosomente que o hábito, enquanto determinação acidental, se distingue da forma específica (a racionalidade), que é o que determina o homem seja substância. O hábito qualidade que,que como determinação, dispõe bem ou maléauma substância; trata-se de uma disposição imediata da natureza humana em si mesma. E não se deve confundir o hábito qualidade com o simples adestramento ou o costume que os animais adquirem. Só há hábitos quando o sujeito mostra em suas faculdades uma amplitude transcendental e não está coarctado a um só objeto, ou seja, quando há espírito. Por isso adverte o Aquinate que por três motivos o hábito é necessário a essas faculdades integralmente abertas: para que tenha uniformidade, facilidade e prazer em seus atos. Não é vão, portanto, repisar que o hábito qualitativo não é simplesmente algo que o sujeito tem externamente: só há hábito quando o sujeito “se há” em si mesmo, em seu interior, bem ou mal, do que a intimidade se apercebe. Por sua vez, todos os hábitos são intencionais e implicam uma ordem à ação. Porque, se o ato primeiro da natureza se ordena ao ato segundo (à operação), o mesmo hábito incide para prepará-la para sua atividade posterior. Sucede apenas que a 124
124 - Q. Disp. De Virt. in communi,q. un. a. 1 c. E, conquanto haja dois tipos de hábitos, os entitativos — os propriamente corporais que dispõem a substância em si mesma, como a saúde ou a doença, o vigor ou a fraqueza, a beleza ou a deformidade — e os operativos — que dispõem as faculdades —, em ambos os casos o mais próprio e primário do hábito é determinar imediatamente a natureza humana, seja a natureza da substância, seja a natureza daàfaculdade. ordem à naturezanaé,natureza no hábito,é de mais eminente quesóa ordem operação. A Este arraigamento índole diversa: quando é estável e dificilmente mudável no sujeito se chama hábito ( ). Se, em contrapartida, é instável e muda facilmente, estamos diante de uma mera disposição (). Do enraizamento determinativo na natureza se segue que o hábito é uma disposição boa ou má: por ser uma disposição imediata da natureza, sucede que há de dispô-la ou bem ou mal. Tanto os hábitos entitativos quanto os operativos são realizadores da natureza mesma. E podem ser bons ou maus. O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino
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ordenação à ação é secundária no hábito entitativo (a saúde do corpo dispõe bem ou habilita para o trabalho), mas é primária no hábito operativo, que aparece em faculdades que, como a inteligência e a vontade, são de si princípios de ação. Nesta referência à operação funda-se umarelação interna do hábito a seus objetos ou, em seu caso, às pessoas mesmas. Se aserintimidade vive do hábito, nem por isso3. deve confundida comprincipalmente a esfera psicológica que apsicanálise descreve como “inconsciente”. O inconsciente deve ser definido com respeito ao conjunto do psiquismo. Com efeito, quando falamos de fatos psíquicos, entendemos por tais os atos produzidos por uma das potências psíquicas; mas as realidades que não são nada maisque purasvirtualidades subatuais, inferiores como tais ao nível do fato ou do ato, devem justamente ser chamadasinconscientes em sentido primordial. Aí se encontram astendências, os instintos e as disposições inatas. Quando surgem, podem ser vividos somente como próprios, mas não necessariamente comoapropriados e assumidos por um ato livre; embora esse conjuntopertença à intimidade a título do próprio eapropriável, assumível assim que começa a brotar e dar-se a conhecer no campo da consciência. Há outras virtualidades sobreatuais, como as recordações e os hábitos, que se formaram mediando já os atos e vivem depois no interior destes, potenciando-os. São vividas na consciência atemática como disponibilidades já apropriadas, e não como suportadas. 125
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125 - Este aspecto não foi suficientemente sublinhado por López Ibor em seu livro sobre El descubrimiento de la intimidad. 126 - A este âmbito pertence a maior parte dos conteúdos atribuídos por Freud ao inconsciente. Para Freud o consciente é o conjunto de idéias, noções, imagens, recordações, representações que o indivíduo é capaz de evocar que por issoé — pode controlar, reanimar, aparecervoluntariamente, e desaparecer. Oeinconsciente abaixo das idéias claras efazer dos atos controlados — o mundo de forças obscuras, poderosos in stintos in satisfeitos ou desviados de seu fim, energias fundamentais. Contém as forças que nunca foram conscientes, ou que talvez em certo tempo o tenham sido, mas depois foram empurradas para essa zona. O homem não pode evocar voluntariamente esses conteúdos. Freud considera que a consciência perde importância diante desta grande descoberta. O inconsciente se converte até em gestor da unidade psíquica do homem. 72
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a) As tendências não são atos psicológicos, mas princípios de atividade. Como tais, não têm outra realidade além da virtual e só podem ser conhecidas por seus efeitos, que são ao mesmo tempo os afetos que os manifestam e os atos que os põem em obra. A tendência, como tal, é inconsciente, por estar abaixo do ato.
Também de o instinto é umae de organização inconsciente de imagens, propensões emoções inata que see expressa mediante mecanismos específicos: é e dirige uma organização e se define muito mais por seu caráter formal que por sua matéria; não obstante, é preciso distingui-lo claramente dos fatos de atividade mental, dos quais é apenas o princípio, como forma permanente e inconsciente do psiquismo. No que diz respeito às disposições inatas, ainda não vividas, deve-se aceitar que já se encontram preparadas em nós como possibilidades. A este inconsciente disposicional pode reduzirse o “inconsciente coletivo” de Jung. Quando este autor afirma que a libido submerge no mais profundo do inconsciente 127
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127 - Não é correta a posição de alguns antropólogos, como Gehlen, que postulam a Instinktlosigkeit (ausência de instintos) no homem. Isso é exato somente no nível do ato, mas não no da virtualidade. 128 - Tanto para Freud como para Jung existe um inconsciente e um consciente diferentes e até opostos que se a rticulam num conjunto. A pri meira estrutura da psique é o consciente, que tem como função ajudar o indivíduo a adaptar-se à realidade; o eu se situa em seu centro: é o “sujeito” do consciente. A segunda grande estrutura da psique é o inconsciente, para Jung com duas grandes flexões: o pessoal e o coletivo. O inconsciente pessoal é algo que se faz progressivamente, como aquisição individual. Abarca os conteúdos psíquicos que não puderam ser captados e assimilados pelo sobrecarregado consciente e, ademais, os processos esquecidos ou reprimidos. O inconsciente coletivo contém processos não pessoais do indivíduo e que não foram adquiridos por ele. Provém de uma transmissão herdada, étnica, de recordações e comportamentos típicos. Não se trata de uma herança de idéias como tais, mas de potencialidades dessas idéias. Enquanto o inconsciente pessoal tem caráter ontogenético, o coletivo o tem filogenético. Em Jung, a partedoreprimida perde importância, pois eledo acentua os conteúdos herdados inconsciente coletivo. Os conteúdos inconsciente são indiferenciados e representam potencialidades não estruturadas, reações universais, que correspondem às srcens e à evolução do ser humano e de seu meio. Portanto, a consciência é uma função completamente individualizada, que opera de modo pessoal em cada indivíduo, em sua adaptação ao mundo. Em contrapartida, o inconsciente não está ligado ao mundo exterior e só obedece a suas próprias leis internas. C. G. Jung, El yo y el inconsciente, 70-80. O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino
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e reanima ali o que dormitava desde os tempos mais remotos, está usando uma imagem inadequada e inútil. Em verdade, a libido não dormita em mim, porque evidentemente eu não sou tão antigo: tenho os anos correspondentes à minha idade cronológica. No máximo, Jung poderá dizer que há em mim tensões que atuam hoje exatamente como atuavam nos homens primitivos. Interpretado “arcaico” e o “arquétipo” como virtual humano, evita-se o véu misterioso com que Jung reco-o bre toda a sua psicologia. Nada há de fantástico ou misterioso no fato de muitos processos do homem atual serem como eram em tempos antigos. O “inconsciente coletivo” deve significar unicamente esta igualdade no modo de se realizarem os processos da vida em todos os homens. Mas não é um “estrato” que vive simetricamente sua vida junto a meu eu consciente. Também Karus, Klages e Palagyi coisificaram a dimensão do inconsciente, conferindo-lhe caráter supra-individual, como vida geral que se difunde no cosmos, e no qual deita suas raízes toda vida individual. O individual não seria nada mais que uma manifestação de sua essência; ele é a srcem e o termo onde se submerge definitivamente a vida individual após a morte e, praticamente, no sono. Esta doutrina omite que explicar o comportamento individual tão-somente pelos processos individuais não é uma pauta arbitrária, mas se funda no fato de que a única coisa que se oferece à nossa observação é o indivíduo. Outra explicação é pura fantasia. Este inconsciente existe, mas não em ato, e sim em potência ou de forma virtual. A dificuldade de fazer uma idéia precisa destas virtualidades reside em seu próprio estatuto ontológico potencial: só é possível fazer uma idéia precisa do ato ou do ser. Em razão porém de o virtual não ser ato, mas potência e princípio, ele não pode ser concebido em si mesmo, mas apenas em referência aos efeitos e aos atos que dele dimanam. b) Não se deve confundir o reino do inconsciente ou da virtualidade subatual com o âmbito da virtualidade sobreatual, a que se conserva possibilitando e aperfeiçoando o desenvolvimento dos atos: como as recordações e as atitudes morais básicas. 74
O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino
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No que diz respeito às recordações, o que se conserva não são, propriamente falando, as imagens nem os mecanismos, mas a aptidão ou poder de reproduzir as imagens dos objetos anteriormente percebidos. Não existe uma espécie de “sede das imagens”, porque as imagens não são coisas. As vivências “armazenadas” não são objetos ou seres vivos que, da morada iluminada das vivências conscientes, numo obscuro porão; seriam então vivênciasfossem atuais acantoadas por vivenciar, que é contraditório. Antes, as vivências pretéritas entram a formar parte do homem, entranhadas na vida, temporalizadas com ela. O material recordativo jaz no sujeito assim como a faísca está potencialmente na pedra ou o som no instrumento. Se a imagem não é uma coisa, não existe realmente quando não está formada em ato. Só se pode dizer que está em potência, ou seja, no e pelo poder que temos de formá-la. A conservação das imagens não é nada fora deste poder, de modo que reproduzir uma imagem nunca é fazer renascer uma imagem antiga, existente num obscuro canto do psiquismo, mas formar uma imagem nova e inédita a partir do hábito que a possibilita. Também as atitudes morais básicas pertencem ao âmbito da virtualidade sobreatual, do hábito. Este implica desenvolvimento de atividade e é princípio de atividade, mas não cria uma atividade especial: aplica-se a todas para dar-lhes um funcionamento mais fácil e regular. O hábito é uma estrutura que figura como fator de continuidade, na medida em que por ele o presente está unido ao passado que se incorpora, e prepara o futuro. Sem a estrutura do hábito, a atividade psíquica seria totalmente determinada pelas estimulações do momento e não teria continuidade nem unidade. O hábito funciona como um novo princípio de operação acrescentado às necessidades e tendências naturais. As virtualidades permanentes opõem-se aos atos psíquicos, que são sucessivos e conscientes. Por serem habilidades, não as conhecemos tematicamente, mas por indução a partir dos atos. c) O domínio do inconsciente consta primeiramente de virtualidades subatuais, as quais têm um raio de projeção imenso: O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino
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compreendem, em primeiro lugar, as tendências e disposições inatas, antes aludidas, que formam o inconsciente biológico e o inconsciente psicológico. Mas também inclui o conjunto de estados sentimentais, de fixações no comportamento, de evocações, que, mesmo tendo sido srcinalmente apropriadas (como atos e virtualidades sobreatuais), se foram cristalizando foravirtualidades da direção esubatuais, do domínio da consciência se assimilaram às mantendo-se como epoderes — muitas vezes de repressão e impedimento — à margem da consciência, no domínio do inconsciente psicológico. A atenção ao presente ou a acomodação à vida pode impedir que aflorem diretamente as tensões implícitas dessas virtualidades. O sono ou a hipnose afrouxam esta disciplina de acomodação, de modo que então pode desatar-se o dinamismo próprio de tais energias do inconsciente. Esse inconsciente pertence à intimidade só lateralmente, como possibilidade de apropriação, positiva ou negativa. Um exemplo eloqüente de virtualidade sobreatual é o amor, que, quando não enche tematicamente em certo momento nossa consciência atual, continua a pertencer à virtualidade sobreatual e contrasta com o subconsciente ou reprimido, que joga na penumbra. As vivências sobreatuais funcionam como um fundo completamente aberto. “Enquanto o subconsciente ou o reprimido perturba o curso normalizado das vivências atuais, tornando-o irracional, ou podendo fazê-lo, o sobreatual, em contrapartida, não perturba de modo algum o curso normal das vivências atuais, e nem se oculta atrás nem se mescla em sua própria lógica, senão que, no caso do amor, permanece como fundo benfazejo e vivificante.” A “perturbação” do curso atual das vivências só poderia dever-se à modulação das respostas ao amado, mas não à essência mesma do amor. 4. A intimidade vive em sua mais alta medida do senhorio do hábito. O que não quer dizer que a intimidade seja mais um hábito; é antes a unidade vivida de todos os hábitos, unidade vista de dentro, em próprio e apropriadamente, presidida pelo 129
129 - D. von Hildebrand, La esencia del amor, 81. 76
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eu no modo da consciência concomitante, e já não da objetivamente reflexiva e discursiva. Repitamos que os hábitos não só são vividos como passivamente “próprios” ou tidos pelo sujeito, mas como ativamente “apropriados” ou conseguidos a partir da liberdade do sujeito. Nesta apropriação ativa — nesse ser conseguido por mim — reside o mais secreto da intimidade. Esta que unidade vivida écomo possibilitada pelaeidentidade substância comparece srcinalidade mesmidade.da A intimidade não é precisamente um novo hábito, mas a unidade consciente do arraigamento existencial e da orientação objetiva dos hábitos e de seus respectivos atos na natureza humana, na medida em que a dispõem bem ou mal. Unidade, pois, penetrada pelo eu. A intimidade não é o interior de uma rede que possa ser concebida a partir de seus elementos. Tampouco é a unidade do organismo vivo que se regula por si mesmo. Ainda que a intimidade possua complexidade de atos e autodeterminação ativa, seu interior é uma forma categorial própria que abarca tudo. À diferença da natureza espaciomaterial e das organizações temporais orgânicas, possui a índole do inespacial, imaterial e único: a intimidade de cada ser humano é um “para si” que não se transvasa para a vida psíquica alheia, e que só se deixa descobrir e potenciar através da resposta entrecruzada do amor. 5. O hábito propriamente dito enraíza-se em nossa faculdade, adquirindo uma peculiar forma de persistência. Não a persistência própria de uma verdade objetiva, de uma fórmula matemática, da beleza de uma tela. Mas a persistência da liberdade curtida e consolidada: perduração de modo completamente real do ato mesmo na profundidade da substância. Nesse sentido, o amor quiescente à pessoa, como hábito, possui uma sobreatualidade precisa: tanto acima — por seu referente que é a pessoa — como abaixo, por seu enraizamento substancial. Em outras palavras: “O novo aqui é que não só as ‘palavras’ ditas no amor perduram em sua validade, não só se fixa uma posição permanente diante do outro, mas essa atitude perdura como tal em nossa alma colorindo e modificando todas as nosO Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino
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sas situações. Esta atitude, como concreta realidade psicoespiritual idêntica, continua totalmente viva na alma, e modifica o estado integral de nossas vivências. Se deixa de existir, tudo o que vivenciamos atualmente se modifica completamente [...]. Ademais, mediante esta existência real, completamente sobreatual, tem tal atitude caráter tanto de prelúdio com respeitotudo a todo o realizado de modoOatual de fundo sobre o que o mais se encena”. amorquanto quiescente, em virtude de sua profundidade constitutiva, não só estende sua validade para além da realização atual, mas forma um plano estruturalmente profundo em nossa alma, a intimidade, e ali perdura em plena realidade e identidade, irradiando sobre todo o atualmente vivido. Também pode ser amor perfeito, portanto, o fato de se ter a si mesmo como pessoa, e nunca como coisa. “Pareceme decisivo levar em con ta que, na afirmação amorosa a n ós mesmos, nos estamos vendo antes de tudo como a pessoas, quer dizer, como a seres que têm em si mesm os a justificação de sua própria existência. Mesmo quando estamos repreendendo a nós mesmos, pensamos e valoramos a partir das tendências, temores e finalidades que pertencem à essência de nosso ser mais íntimo. E isso é precisamente o que não estamos fazendo quando, impelidos pelo desejo de possuir, olhamos o outro como a um objeto para satisfazer nosso apetite, como a um simples portador de certos encantos, como a um meio para o fim.” 130
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4. Gratuidade da intimidade como qualidade relacional 1. Ainda que a relacionalidade pura não se conforme bem
com a índole substancial da pessoa, concorda, porém, com a condição da intimidade. Se a pessoa é da ordem da substância, a intimidade é da ordem da qualidade e da relação. A 130 - D. von Hildebrand, La esencia del amor, 80. 131 - J. Pieper, 153. 78
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intimidade, como se disse, é o centro da ordem operativa do ser humano e, portanto, núcleo da personalidade. a) A intimidade não é um “reduto”, um espaço fechado ou um lugar isolado na obscuridade interior, mas um centro de relações, um núcleo qualitativo de referências: une por dentro as pessoas, enquanto estas não se consideram entre si como coisas inertes eaoquantificáveis. na própria não é fechar-se outro pessoal,Entrar mas abrir-se ao seuintimidade nível mais alto. A intimidade não é o que nos fecha, mas o que nos abre como pessoas: não há outro modo de abertura pessoal total além da realizada na intimidade. O que esta expressa é o ser mesmo, em sua identidade e mesmidade, ou seja, no que tem de insubstituível ou próprio. Por isso, é a personalidade mesma — não uma parte sua ou uma dimensão computável — o que se dá e se recebe na relação de amor perfeito. b) Ainda que a intimidade seja o que há de mais interior, centro do autodesdobramento, também é o mais elevadamente relacional, pois se constitui justamente afirmando o ser pessoal do outro: quando a relação entre seres humanos se degrada em meras formas de objetivação itinerante, é anulado o eu pessoal, a intimidade, não só a do amado, mas também a do amante. Poder-se-ia dizer que só na medida em que um ser humano se volta para outro em afirmação pessoal é que a intimidade de um e de outro se faz presente pela vez primeira vez. Sem a afirmação pessoal que o outro faz sobre mim — ao menos a feita inicialmente pela mãe ou pelo pai —, careceria eu de uma intimidade rematada, que cresce na medida em que as relações pessoais depuram as objetivações itinerantes que com freqüência acompanham o nosso trato com os demais. Se a srcinalidade e a mesmidade são perfis que estruturam internamente a personalidade, a intimidade é um centro de relações pessoais que reage à dimensão social e psicológica dos seres humanos. Quantas possibilidades de amor e ternura íntimos permaneceriam em nós inéditas se o outro não viesse despertá-las! A intimidade é feita, não é trazida da srcem: é a refluência psicológica de uma pessoa constituída ontologicamente como srcinalidade e mesmidade. À pessoa não lhe O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino
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cabem os qualificativos morais de bom ou mau; em contrapartida, à personalidade, sim. c) O amor perfeito não se dirige tanto às qualidades, aptidões e funções do outro ser humano quanto à eclosão de seu ser mesmo: à intimidade, expressável ou pelo nome próprio de cada um ou pelos termos eu e tu. Na intimidade os seres hu132
manos se que relacionam de dentro e de totalidade unificada, de modo essa relação interior nãosuatende a perder ou obscurecer a pessoa do outro — mediante uma objetivação aleatória —, mas a salvá-la e enriquecê-la. Os seres humanos que chegam a essa relação interior realizam a forma mais perfeita de coexistência, pois, além de não perderem nada do que são, encontram em sua união o meio exato de realização própria. Dizer, pois, “intimidade” é dizer também relação. O amor, no que tem de mais próprio, é saída, êxtase: a mais alta e, ao mesmo tempo, profunda saída que a personalidade realiza. 2. Se a intimidade é a culminação da identidade, e se, por sua vez, a identidade pessoal se expressa como srcinalidade e mesmidade nos atos que fluem do sujeito, segue-se que a intimidade há de ser um centro vivo de novidade, de distinção e particularidade. Nela se expressa a beleza integral da pessoa. 3. Em virtude de que para entrar na intimidade do outro não posso eu coagi-lo nem tratá-lo mediante uma técnica como a uma coisa numerável e quantificável — nem sequer 133
132 - Quando às vezes dizemos que alguém “é uma má pessoa”, em verdade aplicamos essa expressão à pessoa desdobrada como personalidade, à pessoa enquanto fixou seu comportamento em hábitos moralmente maus, e da qual, pela constância do hábito, devemos esperar maus comportamentos sucessivos. 133 - E, nesse sentido, não só o bem, mas a beleza, é causa do amor. “Porque atos. beleza é a omesma que aapetecem, bondade, odiferindo apenas em seus éconceiSendo bem o coisa que todos próprio de sua natureza que o apetite descanse nele; por sua vez, o próprio da beleza é que, à sua visão ou conhecimento, se aquiete o apetite; razão por que percebem principalmente a beleza aqueles sentidos que são mais cognoscitivos, como a visão e o ouvido a serviço da razão. Dizemos visões belas e belos sons. Fica assim evidente que a beleza acrescenta ao bem certa ordem à faculdade cognoscitiva, de tal modo que se chama bem a tudo o que compraz absolutamente o apetite, e belo àquilo cuja apreensão nos compraz” (S. Th., I-II, 27, 1 ad 3). 80
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mediante uma técnica psicológica —, é preciso advertir a completa gratuidade da intimidade. Não se pode produzir a intimidade por meio de um artifício, nem exigir a penetração nela com atitudes de enervamento psíquico. Ainda que esteja sob o olhar do outro pessoal, a intimidade se produz por si mesma: nela os seres humanos não se relacionam como coisas, masoutro comoépessoas. o único veículoseque nos abre à intimidade do o amor.EEm que relação acham a intimidade eo amor? Daremos resposta a esta pergunta depois de, em outro capítulo, expor os aspectos fundamentais da saída de si (êxtase) que o ato amoroso faz. 5. A ilha da intimidade 1. Falar da “ilha da intimidade” é pôr em circulação uma metáfora inadequada, mas útil. Certamente poderíamos pensar que a esfera da intimidade é como uma ilha que emerge no meio da corrente total das vivências do sujeito. Embora essas vivências estejam impregnadas de alteridade, de afã de contatos sociais, a verdade é que ninguém alheio pode pôr os pés nesta ilha. Pois bem, o campo destas vivências está submetido a dois tipos de influxos: um que vai de baixo para cima — influxo das águas subterrâneas da própria natureza humana que regolfam na terra da ilha; outro que vai de fora para dentro — influxo das correntes de ar que silenciosamente também sopram sobre a esfera íntima da ilha. Lá desta ilha posso falar com outros homens, posso entrar em contato psíquico e espiritual com eles, mas sem nunca poder ir embora da ilha. Do que se acaba de dizer resulta compreensível que eu não possa abandonar a ilha nem possa permitir que ninguém entre nela. Pois bem, eu olho para outros homens e para meus contatos vividos com eles dentro de uma perspectiva própria ou individual, que não compartilho com ninguém. 2. Realmente na intimidade se expressam os traços da “individualidade”: porque todo homem é em si srcinariamente diferente de qualquer outro. Esta tese foi negada sistematicaO Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino
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mente pelas teorias que consideraram o fundo mais próprio do sujeito humano, o eu, como uma alteração pura: esse sujeito viria a ser o que a sociedade faz dele. Mas a verdade é que o eu humano possui uma individualidade que não é meramente impessoal ou física — como pode ser a de uma estátua —, mas pessoal, inderivável sociogênica ou aditivamente: não é uma da soma de explica propriedades caracteres empíricos. “O íntimo alma”, Edith ou Stein, “o que esta tem de mais próprio e de mais espiritual, não é algo incolor e amorfo, mas algo de índole muito particular: a alma o sente quando está ‘consigo mesma’, ‘recolhida em si mesma’. Isto não se deixa apreender de modo que possa ser designado por um nome geral, assim como tampouco pode ser comparado com outros. Não pode ser analisado e dissociado em qualidades, traços de caráter, etc., já que se acha num nível mais profundo: é o como do ser mesmo, que por seu lado imprime seu selo a todo traço de caráter e a todo comportamento do homem.” 134
Mas odamodo individualidade a “srcinalidade”, ou seja, próprio de brota vencertambém os obstáculos, a maneira particular de conter e ultrapassar livremente o princípio material de nosso ser. Assim o explica atinadamente Max Scheler: “Quanto mais conheçamos pessoas em que o princípio espiritual age livre e independentemente de necessidades vitais e de instintos ou, dito com outras palavras, alcança esse excedente de caráter para dominar a vida e suas necessidades que constitui o caráter destacável do gênio, tanto mais individual, singular e característica será nossa imagem do homem […]. Também em cada homem a pessoa espiritual enquanto pessoa espiritual é individual em si mesma, e que para nós apareça como menos individual, como mero exemplar de algo universal, depende unicamente do fato de ficar um tanto presa pela maneira menos livre de atuar, como também por nossa falta de interesse e de amor.” 135
134 - Edith Stein, Stein, Endliches und ewiges Sein, 1950, p. 458. 135 - Max Scheler, Vom Ewigen in Menschen, Berna, 1954, p. 135. 82
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E, com a srcinalidade, expressa-se na intimidade a “inderivabilidade”. Com grande acerto didático indica-o Edith Stein: “Naturalmente, pode haver pessoas tão semelhantes entre si, que constantemente sejam confundidas por outros (por exemplo, os gêmeos). Mas as pessoas que tratam com eles de perto sabem distingui-los muito bem. E eles mesmos se sentem tão diferentes — conquanto ao mesmo se sintam unidos entre si como com ninguém mais notempo mundo —, que mal lhes parece possível a confusão. O que nesse caso importa não é o que de fato haja uma pequena diferença na forma do nariz ou que varie um pouco a cor dos olhos — o que pode ser descoberto por quem observa de fora e pode usá-lo como distintivo —, nem o fato de em um determinada disposição se destaque um pouco mais que no outro: cada um se sente no mais íntimo de seu ser como algo ‘próprio’ e particular, e como tal é considerado por quem o captou realmente”. 3. Mas tão importante quanto a individualidade é também, na intimidade, sua “relação de alteridade”. Em todo 136
ser humano dão-se que de forma primigênia determinadas dências espirituais apontam para outras pessoas,tene que expressam uma consciência de alteridade, em forma de apercebimento imediato do outro. Há que sublinhar isso em face das teorias do ensimesmamento puro: as que afirmam que o homem carece de relações reais com o mundo e com os outros. Sublinhar a relação de alteridade não é afirmar que existe no eu, inicialmente, um atual intercâmbio espiritual com os outros; nem que ele tem uma correlação com seu ambiente físico e humano; nem que por sua indigência ou precariedade orgânica e psíquica depende dos demais e que por isso aérelação um ser de social — como reiteradamente pretada alteridade, com uma falta totalfoi deintercrítica antropológica. O verdadeiramen te radical é que o sujeito humano é chamado em sua interioridade a viver inter pesso136 - Edith Stein, Stein, Endliches und ewiges Sein, Herder, 1950, p. 459. O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino
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almente. As indigênci as, os vínculos orgânicos, etc., devem ser explicados por esta condição ontológica prévia. Ou seja, esta condição interpessoal não exclui a consciência da procedência corporal, nem a consciência da indigência corporal que requer o cuidado de outro sujeito humano, nem a consciência da orientação sexual para outros, nem a consciência outros. do desenvolvimento faculdades espirituais com o auxílio de O que ocorredas é que a relação interpessoal, baseada nas faculdades intelectivas e apetitivas puramente espirituais, congênitas ao homem, se daria sem a consciência da procedência corporal, sem a consciência da indigência física e psíquica. Assim o explica Max Scheler: “Mesmo um serimaginário composto de corpo e alma que nunca nem em nenhum lugar tivesse encontrado um semelhante teria consciência positiva da insatisfação de toda uma série de tendências espirituais pertencentes à sua natureza essencial, como o amor em todas as suas formas fundamentais (amor a Deus, amor ao próximo, etc.), o simpatizar, o prometer, o pedir, o agradecer, o obedecer, o servir, o dominar, etc., ede poruma estacomunidade consciência ededeinsatisfação certeza de ser membro fazer parte teria dela.Assim, tal ser imaginário não diria: ‘Estou sozinho — sozinhono espaço e no tempo sem fim —, estou sozinho no mundo ou sozinho no ser em geral; não pertenço a nenhuma comunidade’, senão que diria simplesmente isto: ‘Não conheço a comunidade factual a que sei que pertenço — tenho de procurá-la; o que, sim, eu sei é que pertenço a alguma’. Isto e não precisamente a trivialidade, que ademais só é verdade em parte, de que os homens costumam viver formando povos, Estados, etc., é o que quer dizer a grande sentença do Estagirita: anthropos zoon politikón (o homem é um animal político). O homem, isto é, osujeito dotado de alma racional, é um ser social. Tão certo como eu sou, somos nós, ou seja, eu faço parte de umnós”. Um nós, é claro, que não é uma substância, mas uma ordem relacional. O sujeito humano é substancialmente pessoa, mas relacionalmente personalidade. Assim o explicamos em páginas anteriores. 137
137 - Max Scheler, Vom Ewigen im Menschen, Berna, 1954, p. 372. 84
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Precisamente, a “intimidade” é a atualização srcinal e constante da pessoa que se desdobra como personalidade. E, mesmo dotada de uma relação interpessoal primária, cada pessoa humana possui, por sua individualidade srcinal, uma esfera absoluta de intimidade que se subtrai a toda intervenção direta de outras pessoas. 4. Sob os traços da individualidade e da interpessoalidade explica-se um caráter especial da intimidade: a incomunicabilidade. Na corrente da atividade psíquica, podemos encontrar vivências comunicáveis e outras que não o são. Comunicáveis podem ser não somente as vivências de alteridade dirigidas a outros sujeitos, mas também as vivências solitárias (não dirigidas conscientemente a outros). Um exemplo de vivências solitárias que por comunicáveis não são íntimas, temo-lo num problema de aritmética: é uma vivência solitária acessível a outros e diretamente contrastável. Mas, ao contrário, há vivências solitárias de alteridade que não são comunicáveis: por exemplo, algumas vivências religiosas, que são especial138
menteque íntimas; e igualmente, odeio uma pessoa de uma forma não posso comunicarseaeu ninguém, é uma vivência de alteridade, mas é uma vivência íntima. Nem por isso, neste último caso, um olhar alheio penetra na esfera da intimidade, nem pode saltar nesta ilha. Posso eu 138 - Certamente, na intimidade encontramos dois tipos de vivências: as de alteridade e as de mesmidade. Por um lado, há ali vivências referidas a outros sujeitos humanos: algumas destas vivências têm necessidade de ser percebidas por outros, como perguntar e aprender; outras vivências, sendo de alteridade, não têm essa necessidade de ser percebidas, como odiar. Por outro lado, há ali vivências não referidas a outros sujeitos humanos: são as vivências solitárias, que não estão orientadas a pessoas e stranhas, e podem referir-se a conteúdos materiais ou mentais, nos quais os outros sujeitos não desempenham nenhum papel (um problema de aritmética, um invento técnico, uma natural), ou ao próprio sujeito (por disposições), ouleitambém a sujeitos não humanos (porexemplo, exemplo,àsàminhas minha relação com Deus). As vivências perceptíveis de alteridade podem ser ou absolutamente comunicáveis a todos os homens (vivências sociais em sentido estrito) ou relativamente comunicáveis, ou seja, adequadamente apenas a determinado círculo de pessoas. Em contrapartida, as vivências de mesmidade estrita são absolutamente íntimas: não são comunicáveis adequadamente a nenhuma pessoa, e são refratárias a todo e qualquer influxo direto vindo de outros; são acessíveis apenas a Deus. O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino
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pensar em outros, e ter uma vivência dirigida a outros sujeitos; e nem por isso aquele âmbito deixa de ser a esfera íntima. Mais ainda, meus atos dirigidos a outros sujeitos levam consigo algo individual meu e têm o caráter de atos meus dirigidos a outros. Todas as vivências estão enraizadas no fundo comum do eu. Osolitários que significa no eu particular há umaentre conexão entre atos e atosque dirigidos a outras pessoas, vivências absolutamente íntimas e vivências comunicáveis; e, por sua vez, há conexão entre as vivências de diferentes pessoas que diretamente ou indiretamente entram em contato psíquico e espiritual. Por isso, todo o eu, com toda a sua vida psíquica e espiritual, até em sua parte mais íntima, está vinculado a um grande complexo de influências e repercussões psíquicas que também constituem um indicativo de deveres morais e de responsabilidade, como direi a seguir. 5. Pelo que foi dito, compreende-se que a “ilha” da intimidade está muito longe de parecer um estrato mais ou menos Melhor seria avaliá-la tomadasespacial. dos sentidos externos: viria a sercom umaqualificações cor, um sabor, um cheiro aderido a meus atos psíquicos e espirituais, incluindo os dirigidos a outros. Mas, uma vez passados os atos, ficam habitualizadas no eu suas intenções, cujo núcleo mais altamente intelectivo e volitivo constitui o ápice da intimidade. Por sua vez, não é possível reduzir o eu a um ponto: ele é um centro referencial, mas não um ponto, pois sempre abarca um “campo”, um “âmbito”. No centro desse campo brilha sempre um núcleo ou conteúdo intencional que dá um sentido único a todo o campo, cruzado continuamente por muitos elementos opacos por alguns conteúdostudo maisisso claros, queponto são objeto da atençãoe atual. Contemplado de um de vista dinâmico, cada ato ou cada vivência é em parte configurada também pelo ato precedente. As vivências da intimidade do eu nunca estão totalmente desconectadas de todo influxo comunitário, em virtude da unidade da corrente vivencial. Há 86
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certamente uma esfera absolutamente intima; mas isso no significa que exista uma vivência absolutamente isenta de toda influência comunitária, como, por exemplo, a pergunta: pois perguntar é um ato de diálogo, o do homem com outros homens, ou do homem consigo mesmo. Ao contrário, nem sequer os contatos sociais que surgemterdocorrespondência: eu em linha retavão ao de eu um particular alheio de eu a outro eu e deixam retornam depois ao primeiro eu. E nesses atos que se dirigem a outros homens entra também, indiretamente, a vivência solitária e absolutamente íntima do eu próprio. De modo que os atos dirigidos a outras pessoas são precisamente influenciados por nossos atos vivenciais não dirigidos a outras pessoas; estes atos dão àqueles certa forma e coloração. Razão por que poderíamos dizer que este fato primitivo de reciprocidade é regido por um “princípio de cofluxão”; em primeiro lugar , de cofluxão interna, pois, como diz Husserl, “as vivências de cada pessoa formam uma corrente vivencial,constantemente cujas interrupções causadas estadosque inconscientes são salvas pela por consciência desperta e serve de enlace ”; de modo que, pela unidade da corrente vivencial, toda vivência de um sujeito é modelada em parte por suas vivências anteriores. E, em segundo lugar, de cofluxão externa, pois um eu, com seu comportamento inteiro, se acha dentro de um complexo de influências psicofísicas, juntamente com incontáveis sujeitos nos quais influi ou pelos quais é influída através de comunicações sociais. Mas a intimidade mesma não é algo totalmente comunicável; e, até, só a mim está reservado isso que faz que minhas vivências sociais sejam precisamente vivências de meu eu. Como diz Litt: “refiro-me a esse indizível algo que é humor, tonalidade, significado especial, graças ao qual também tais vivências, apesar de sua tendência centrífuga, se situam na pe rspecti va de meu e u”. 139
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139 - Husserl, Ideen, 1913, § 81-83. 140 - Thedor Litt, Individuum und Gemeinschaft, Leipzig-Berlim, 1926, p. 213. O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino
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O princípio de cofluxão vivencial também permite ver em perspectiva moral — acabamos de indicá-lo — o campo de todas as vivências. Pois, como notou admiravelmente Scheler, “não há moção moral, por menor que seja, que não vá desenvolvendo em torno de si, qual pedra caída na água, círculos sem fim, os quais acabam por tornar-se imperceptíveis a um olhar comum outros até recursos. O físico já pode segui-los mais desprovido longe, e nãodedigamos onde pode alcançá-los o olhar de Deus onisciente. O amor de A a B não só suscita — se não houver razão que o impeça — uma resposta de amor de B a A, mas, além disso, faz necessariamente que no coração de B, que responde com amor, se intensifique naturalmente sua tendência afetiva a excitar, a suscitar vida, em uma palavra, seu amor a C, a D...; e, assim, no universo moral se propaga a corrente de C a D, de E a F, ao infinito. E o mesmo se pode dizer do ódio, da injustiça, da impureza, de todas as classes de pecado. Cada um de nós participou ativamente de certa quantidade de coisas boas e más das quais não tinha a menor idéia, e nem sequer podia tê-la, e pelas quais, não obstante, é responsável diante de Deus”. A intimidade pode ser efetivamente imaginada como uma ilha, mas ilha situada num imenso arquipélago. 141
141 - Max Scheler, Vom Ewigen im Menschen, Berna, 1954, p. 376. Na mesma página: “De forma totalmente primigênia e srcinária, todos — conquanto não vejamos com clareza a medida e magnitude de nossa cooperação — temos diante do Deus vivo nossa parte de responsabilidade, entendendo-se tal em toda ascensão e queda da situação moral e religiosa do conjunto do mundo moral, como uma unidade solidária.” 88
O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino
Capítulo III
Êxtase e Amor
III - Êxtase e Amor
1. O amor como êxtase 1. O amor sai de si para unir-se à outra pessoa. O êxtase tem uma intenção unitiva. Ter-se-ia de distinguir neste ponto, e no modo do amor perfeito, próprio da tendência chamada vontade, uma intenção unitiva para a pessoa (solidariedade) e
umaa)intenção unitiva para a personalidade (intimidade).com o A primeira é mais ampla e genérica, coincidindo amor de benevolência. “A intenção benevolente consiste no desejo de fazer feliz o outro; é, sobretudo, o interesse real por sua felicidade, por seu bem-estar, por sua saúde. É a peculiaríssima participação na pessoa do outro, em sua felicidade, em seu destino: participação que reside no amor [...]. De alguma forma a intenção benevolente é um traço essencial de todo amor. A solidariedade é um fruto do amor; mas não é algo separado do amor ou produzido pelo amor, mas algo que se constitui no amor, que habita em seu mesmo interior. Justamente este interesse pela felicidade do outro não deve ser separado do amor. Mas a intenção benevolente ainda é algo mais que o desejo de fazer feliz o outro, algo mais que o profundo interesse por seu bem-estar e felicidade. É a boa intenção para com o outro, o sopro da bondade no amor mesmo.” É a solidariedade profunda com o outro, é um interesse profundo pelo outro e seu bem-estar, é uma preocupação por ele, é um como fazê-lo algo nosso. b) Ao reconhecer a beleza integral da pessoa amada, seu ser bom, sou profundamente afetado e dou uma resposta a essa beleza, apressando-me espiritualmente para ela, ansiando participar de sua vida. Se, ademais, não se trata de um mero amor benevolente, mas íntimo, abro minha intimidade para abraçar a intimidade da pessoa amada. Aqui a intenção unitiva — e não meramente a união real nem a felicidade que desta resulta — é um momento essencial do amor mesmo, do caráter que tem de entrega e de presente para a pessoa amada. O amante aspira não só à presença do amado, não só a saber de sua 142
142 - D. von Hildebrand, La esencia del amor, 86-87. O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino
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vida, mas antes de tudo a unir-se cordialmente, intimamente a ele. “O maior presente que uma pessoa pode dar-nos é desejar a união conosco, anelar que seu amor seja correspondido. Enquanto for somente bondosa e benevolente conosco, mas sem dar importância à nossa presença nem desejar a união conosco, não experimentaremos, apesar do agradecimento que sintamos por sua bondade, e insubstituível nos proporciona seu amoroepeculiar a intenção unitiva quegozo neleque se encerra.” O que a intenção unitiva pretende é a união real e o gozo que surge dela. Se a intenção unitiva só aspirasse à união sem felicidade, seria inumana. O amor íntimo se dirige como um dom ao amado, como uma dádiva que de si deseja ser reconhecida e gozada pelo amado. Mas a intenção unitiva não pretende a união como puro meio para o próprio gozo, felicidade egoísta que seria mera satisfação ou mero prazer; nem enfoca o amado como um meio para conseguir o fim do próprio gozo. A felicidade do amado no amor tem aqui primazia sobre o gozo que nos pode proporcionar a união com ele. Isso significa que a união da reciprocidade de amor supõe o gozo da união para os dois amantes; sendo anelada a união essencialmente como fonte tanto da felicidade própria como da alheia, e primordialmente desta. O que comporta necessariamente o êxtase da intimidade. 143
2. Amor perfeito e êxtase perfeito
A união afetiva íntima entre o amante e o amado, que é o amor, supõe a saída do amante de si mesmo e sua persistência afetiva no amado, o êxtase. Este termo — como já se disse — não implica, na linguagem do Aquinate, um movimento excepcional ou estranho, reservado a certos místicos ou a pessoas dotadas de um poder carismático. Significa algo normal e ordinário, que acontece a todo amante. Alguém padece êxtase 143 - D. von Hildebrand, La esencia del amor, 173. 92
O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino
III - Êxtase e Amor
quando se põe fora de si. O amante se põe tanto mais fora de si quanto mais intenso e veemente é o amor. Sempre que algo é amado, diz Scheler, isso “quer dizer que o homem sai de si mesmo, de seu centro pessoal como unidade corpórea, e coopera por meio desta ação para afirmar, para impulsionar, para bendizer esta tendência à sua peculiar perfeição que existe nos 144
145
objetos de quesi para o rodeiam”. Asobjeto faculdades intimidade “saem“ dirigir-se ao amadoque são,dapara o Aquinate, tanto o conhecimento quanto a vontade. Pois para o amor concorrem tanto o conhecimento, de maneira pressupositiva, quanto a vontade, de maneira formal e perfectiva. a) Só de modo dispositivo o amor produz no amante o êxtase da inteligência. Pois, quanto ao conhecimento, “alguém se põe fora de si quando se situa fora do conhecimento que lhe é próprio”, tanto quanto ao objeto do conhecimento como quan to ao modo de conhecer. Quanto ao objeto , pensando de maneira contínua e profunda no amado e não pensando totalmente em si mesm o, absorvendo-se no pensamento intenso do objeto amado. Quanto ao modo , porquanto, impelido pelo amor, ascende a um nível superior ou desce a um nível inferior: ) ou porque “se eleva a um conhecimento superior, e assim um homem em êxtase compreende o que excede o sentido e a razão, na medida em que se encontra fora da conatural apreensão da razão e do sentido”; ) ou porque “se rebaixa a algo que lhe é inferior, e assim alguém sofre êxtase quando cai em frenesi ou mania“. Veremos esse rebaixamento mais adiante, a propósito do êxtase unificante. Estes modos de êxtase são produzidos pelo amor dispositivamente , no sentido de que faz meditar sobre o objeto amado, e de que a meditação intensa de uma coisa prescinde das outras. 146
147
144 - S. Th., I-II, 28, 3. 145 - Max Scheler, Ordo Amoris, 128. 146 - Para perfectiva, cf. nota 68. [N. do T.] 147 - S. Th., I-II, 28, 3. O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino
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b) Quanto à vontade, “alguém padece êxtase quando sua tendência se dirige a outro, saindo de certo modo de si mesma”. Este modo de êxtase é produzido pelo amor direta ou absolutamente, se o amor é perfeito, ou relativamente, se é mero amor imperfeito. No amor perfeito, o afeto sai absolutamente de si, por148
quantonos quer e faz aoe solicitudes amigo o bem, introduzindo-se de algum modo cuidados do amado. Seu movimento de saída termina no amigo amado, sem voltar para si: eu amo então o amigo por ele mesmo. Portanto, o amor perfeito produz o êxtase de maneira perfeita e absoluta, tanto da parte do apetite e vontade como da parte da inteligência; o amor imperfeito, em contrapartida, o produz de maneira imperfeita e relativa nas duas faculdades. Mas o amado com amor perfeito pode ser triplo: ou inferior, ou igual ou superior ao amante. Mais se sai de si quanto mais desigual é o termo a que se chega. Por isso, o êxtase é mais perfeito quando se ama algo desigual e superior. “Quando alguém ama com amor perfeito, então o afeto é levado à coisa amada, mas sem voltar, porque quer o bem para o mesmo amado; este amor põe o amante fora de si mesmo. E isto acontece de três maneiras, de acordo com o bem substancial que o afeto enfoca. Primeira, quando esse bem é mais perfeito que o próprio amante, este se relaciona com aquele como a parte com o todo, porque o perfeito se expressa como totalidade, e o imperfeito como parte; em conformidade com isto, o amante é algo do amado. Segunda, quando o bem amado é da mesma ordem que o amante. Terceira, quando o amante é mais perfeito que a coisa amada, e então o amor do amante se orienta ao amado como a algo seu. E assim, quando o afeto do amante é levado ao amado superior, cujo termo recíproco é o mesmo amante, então o amante ordena ao amado o próprio bem seu; assim como, se a mão amasse o homem de que faz parte, se ordenaria ao todo: por isso se poria totalmente fora de si, porque 149
148 - S. Th., I-II, 28, 3. 149 - S. Th., I-II, 28, 3. 94
O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino
III - Êxtase e Amor
não deixaria nada para si, senão que ordenaria tudo ao amado. Isso não acontece quando alguém ama a quem lhe é igual ou inferior. Se uma mão amasse a outra mão, não se ordenaria em sua totalidade à outra; nem o homem que ama sua mão ordena todo o seu bem ao bem da mão.” No amor imperfeito, o amante é levado de certo modo para 150
fora figura de si, mas paradesse permanecer no outro outro não comonão termo movimento —, e — simpois parao voltar imediatamente para si mesmo como termo: eu amo então o outro não por ele mesmo, mas por mim mesmo como amante, e, não contente com gozar do bem que possuo em mim mesmo, procuro desfrutar para mim do que me é exterior. Mas, porque pretendo ter para mim esse bem extrínseco, não saio de maneira total de mim, senão que tal afecção, em definitivo, me encerra dentro de mim mesmo. “No amor imperfeito, o afeto do amante se dirige à coisa amada por um ato da vontade, mas volta para si mesmo pela intenção do afeto; pois, quando apeteço a justiça ou o vinho, meu afeto se inclina para um dos dois, mas voltando para si mesmo, porque se dirige a essas coisas para alcançar um bem; portanto, este amor, quanto ao fim da intenção, não põe o amante fora de si.” 151
3. O êxtase unificante
Indicou-se que o amor é uma “saída” que o sujeito faz com sua vontade, guiada por sua inteligência, para o amado como bem perfeito e real. Mas o êxtase não foi entendido sempre desta maneira, tanto no uso cotidiano como em certos contextos, filosóficos ou religiosos. Uma das drogas que, como alternativa à cocaína ou à heroína, circulam em certas parcelas de nossa sociedade chama-se precisamente êxtase, nome que certamente lhe foi dado em razão dos efeitos corporais e psíquicos que, em geral, produzem 150 - De div. nom., cap. 4, lect. 10. 151 - De div. nom., cap. 4, lect. 10. O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino
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certas substâncias estimulantes e enervantes: insensibilizam os membros, o cérebro deixa de associar coerentemente os pensamentos, surgem alucinações e fantasias oníricas, a vontade é anulada e cessam os atos de livre escolha; em uma palavra, o núcleo mais pessoal de autodomínio e autoconsciência cai em poder da vida inferior, das paixões e da esfiapada imaginação, queêxodo dançaque de maneiras ou disparatadas; a esta saída ou o sujeito grotescas faz de si mesmo se chamaeêxtase. Não há aqui uma vontade forte, mas uma vontade debilitada, inconstante, fugidia, presa das paixões. Trata-se de uma “saída de si” para baixo, promovida até por idéias filosóficas que não são alheias à idéia de que o êxtase do amor, com sua intenção unitiva, é uma busca de fusão entre amante e amado. Os amantes viriam a ser algo assim como duas bolas de metal que por seu desejo de união se fundiriam numa só peça, com o perigo de cada um perder sua identidade. Na óptica do pensamento clássico, a unidade mais alta não é a da fusão, mas a da dualidade de intimidades que se entregam amorosamente sem se anular. Quanto mais alta é a entrega de uma intimidade a outra, tanto mais alter ipse é cada uma. E, se aqui não há fusão, tampouco há a alteridade de duas coisas errabundas que se unem por uma relação aleatória. Mas há, sim, a alteridade de duas intimidades que por se afirmarem em alteridade se constituem cada vez com mais profundidade e riqueza. Como, ademais, na relação transcendental que as faz conviver cada uma possui consciência dessa união pretendida, sucede que a intenção unitiva, própria do amor, é a mais alta (por consciente) e a mais profunda (por alteridade de intimidades). Cada pessoa continua a ser indivíduo idêntico, mas num sentido completamente novo: ambas não renunciam nem perdem sua própria existência individual, mas fazem destacar-se na intimidade sua plena e autêntica existência de pessoas, vivendo-a, além do mais, conscientemente.
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III - Êxtase e Amor
4. O amor de si e o êxtase amoroso 1. Determinadas religiões estimulam entre seus adeptos a observância de um método para chegar a um êxtase que seja anulador da própria pessoa. Por exemplo, o hinduísmo promove um estado extático, chamadonirvana, no qual a pessoa se
concentra em sidemesma e, solitariamente, mente paraimóvel um ponto seu corpo, busca triunfar olhando sobre suafixanatureza inferior, até encontrar os fatos que nenhum sentimento nem inteligência podem conhecer, com prévio despojamento do eu, do desejo, da impaciência, das necessidades corporais e dos objetos cotidianos que entram na vida do homem. Trata-se de uma “saída de si” para uma esfera nebulosa. Outras religiões, como o budismo, promovem também um manual operatório que conduz ao desaparecimento de todo e qualquer afeto — incluído o sentimento íntimo de si mesmo — e à impassibilidade ou indiferença total com respeito a tudo o que cerca o homem, seja externo ou interno — de modo que nem sequer o juízo reflexivo permanece: não existindo sequer a obscura consciência de si mesmo. Há uma “saída de si” sem referencial algum, nem sequer nebuloso. 152
152 - Em certas correntes do islamismo, ensinou-se a praticar metodicamente alguns exercícios corporais — do silêncio ao jejum — que predispõem a conseguir o êxtase da alma; embora alguns pensem que tais exercícios só contribuem para a eclosão desse estado, que se produz realmente mediante uma g raça divina: após repetir incansavelmente a palavra Alá, os lábios deixam de mover-se, perder-se-á a imagem mesma da palavra, e a idéia significada por ela ficará apenas bruxuleando no coração (M. Asín Palacios, “La philosophie de l’extase chez deux grands mystiques musulmans”, em Cultura española, fevereiro, 1906). Trata-se de uma “saída de si” de um eu cotidiano para uma inconsciente inti midade que é o mais sublime da própria pessoa, conquanto alheia à consciência, ao mundo externo, ao mundo psíquico e à própria existência efet iva. Na história religiosa do cristianismo, apareceram individualidades eminentemente tocadas pelo êxtase: Hildegarda, Catarina de Siena, São Pedro de Alcântara, SãoSanta José de Cupertino Santa ou Santa Teresa d’Ávila. Entram num estado que não depende de nenhum tipo de método ou preparação; nele desaparecem as envolturas das coisas externas e se ouvem vozes divinas, misteriosas e sublimes, que nem sequer têm timbre ou entonação humana. Mas não se perde a consciência íntima. Ma is ainda, Santa Teresa d’Ávila observava que não entram em êxtase as pessoas que, entregando-se assiduamente à penitência e à oração ou sendo simplesmente de compleição fraca, perdem a consciência na oração e depois não se O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino
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Acontece justamente o contrário no êxtase do amor: quando eu amo outra pessoa, saio para uma realidade concreta, com nome e sobrenomes. O amor é uma afirmação de si na afirmada intimidade do outro. Mais ainda, o amor perfeito pelo outro tem a mesma envergadura que o “amar a si mesmo”. Não corre esta expressão o risco de ser confundida com o egoísmo ou até comentender o solipsismo? interpretação do amorlembra depende de o ser Ahumano. O Aquinate quedaháforma dois elementos substantivos no homem: o espiritual e o corporal. Pois bem, o homem ama a si mesmo se se ama segundo sua natureza espiritual. Egoísmo refinado, então? Com respeito às coisas que o rodeiam, deve o homem amar mais a si mesmo que a qualquer outro. E isso é assim pelo motivo mesmo do amor. Isso significa que o homem ama autenticamente a si mesmo se tem presente objetivamente, cognoscitivamente, a verdade de seu próprio bem. “Se se quer falar do bem deste ser particular que é o homem dotado de uma vontade, é preciso dizer que esse bem é certamente, como para qualquer outro ser, a existência a título fundamental; mas a título último é sua ação e, por sua ação, a união com seu fim. A ação da vontade, porém, é o amor do bem sob a luz da verdade. Para esse ato se inclina por natureza a nossa vontade. À luz da verdade, amarei o que é bom, incluído eu mesmo em minha própria categoria, como bem. Eu amar a mim mesmo não é, pois, desejar para mim os bens que seriam coisas boas por con seguir. É, principalmente, orientar-me para meu acabamento natural. Mas meu acabamento natural, enquanto homem, enquanto ser dotado de vontade, é amar todas as coisas segundo a verdade do bem. 153
lembram de nada: estas devem ser tratadas mediante uma boa dieta, sendo obrigadas a descan sar e dormir. 153 - II-II, 26, 4. Esse motivo ademais, em Tomás Aquino,doressonâncias teológicas. Pois, ainda tem, que Deus seja amado comodeprincípio bem sobre o qual se funda o amor, o homem ama a si mesmo em razão de ser partícipe de tal bem enquanto ama o próximo por causa de sua associação a este bem. A associação motiva o amor enquanto implica certa união em ordem a Deus. Por isso, assim como a unidade é superior à união, assim também é maior incentivo de amor o homem participar do bem divino do que outro associar-se a ele nessa participação; e, por conseguinte, o homem deve amar mais a si mesmo que ao próximo. 98
O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino
III - Êxtase e Amor
Aí está, pois, o bem para o qual me oriento natura lmente. Amar a si mesmo é, para o homem, essencialmente querer amar segundo a verdade, ou ‘ser segundo a razão’. Toda e qualquer outra maneira de amar-se não só não é natural, mas é contrária à natureza.” Por essa passagem se entende a tese de Santo Tomás segundo a qual o amor de si é a medida de todos os demais amores. 154
“Sejam quaisque forem outras formas de apetite, unicamente pelaasvontade tendemos a nossoisso bemsignifica e nossa perfeição. Mas nossa perfeição natural, enquanto homens, consiste num amor conforme a reta razão. Não podemos, pois, fazer outra coisa senão perseguir naturalmente nossa perfeição ou nosso bem no amor ordenado do bem mesmo. A busca natural de nosso bem e o amor desinteressado do bem se encontram indissoluvelmente ligados. A busca natural de nosso bem não exclui o amor desinteressado e não o torna impossível, porque o compreende naturalmente cada vez que nos encontramos diante de bens que mereçam tal amor. E o amor desinteressado não contradiz a realização de nosso bem, dado que é integralmente o amor que convém ao bem absoluto e a perfeição que nos convém naturalmente como a criaturas espirituais [...]. A vontade se define, segundo sua natureza, como um amor que, graças ao conhecimento intelectual, é um amor objetivo do bem e um amor desinteressado do bem em si mesmo quando se encontra diante de um bem absoluto, finito ou infinito. Então o meu bem, quer dizer, a atividade conforme com a essência da faculdade que a natureza me deu, consiste justamente em amar o bem e em amá-lo em verdade segundo os diferentes valores que implica.” A incapacidade de nos entregarmos ao bem é uma verdadeira doença ontológica da alma. Se alguém amar a si mesmo (amare seipsum), amar o que tem como seu próprio ser (id quod seipsum esse aestimat), é, em um sentido, comum a todos, importa então tornar a perguntar qual é o elemento do próprio ser sobre o qual objetivamente se há de polarizar o amor a si mesmo. 155
154 - Louis-B. Geiger, 96. 155 - Louis-B. Geiger, 102-103. O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino
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a) Porque o homem é, em primeiro lugar, substância e natureza. Quanto a isto, todos se estimam pelo que são, compostos de corpo e alma; assim se amam todos os homens, por desejar a conservação de si mesmos, de sua identidade em srcinalidade e mesmidade. b) Em segundo lugar, o principal da essência humana é a 156
alma racional (o homem interior), e o secundário a natureza sensível e corporal (o homem exterior). Os que principalmente apreciam em si mesmos a natureza racional ou o homem interior, e se estimam por isso, amam-se verdadeiramente, e deste amor surge a intimidade cabal; mas os que têm por principal a natureza sensível e corporal, ou o homem exterior, não se amam verdadeiramente, nem têm uma intimidade plena. Daí que, por não se conhecerem retamente, não amam em verdade a si mesmos, mas amam o que crêem que são, amam aparências. O desinteresse “objetivo” da vontade — desvinculado do interesse subjetivo do apetite sensível — define a índole srcinariamente extática do amor. Não fica deformado o meu amor se eu quero as coisas para mim, para alegrar-me nelas, para enriquecer o meu conteúdo vital com elas. Mais ainda, a raiz de todos os meus amores é eu alcançar uma perfeita existência para mim. O homem não pode querer naturalmente não ser feliz. Não há nada mau nem desordenado em 157
156 - S. Th., II-II, 25, 7. 157 - Com respeito à amizade que a pessoa pode manter consigo mesma, aplica o Aquinate as cinco notas que são próprias da amizade. “Em primeiro lugar, o amigo quer que seu amigo seja e viva (esse et vivere); segundo, quer bens para ele; terceiro, porta-se bem com ele; quarto, convive com ele gozosamente; quinto, coincide com seus sentimentos, contristando-se ou deleitando-se com ele. Conforme isso, os que amam a si mesmos verdadeiramente fazem-no segundo o homem interior, pois o querem conservar em sua inteireza e lhe desejam seus bens, que são os bens espiritua is; e trabalham para alcançá-los e gozosamente se voltam para seu coração, porque ali bonsdos penfuturos, samentos no que presente e a lembrança de bensDo passadosencontram e a esperança com também recebem prazer. mesmo modo, não sofrem as rebeldias da vontade, pois que toda a sua alma tende a só uma coisa. Pelo contrário, os que não se amam verdadeiramente não querem conservar a integridade do homem interior, nem anelam seus bens, nem trabalham por alcançá-los, nem lhes é deleitável conviver consigo, voltando-se para o coração, pois nele acham maldades presentes, passadas e futuras, que aborrecem, e nem sequer consigo mesmos estão em paz por causa dos remorsos da consciência” (S. Th., I-II, 25, 7). 100
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III - Êxtase e Amor
eu amar o meu próprio bem, dado que sou feito naturalmente para amar todo e qualquer bem, incluído o meu. A desordem estaria em preferir o meu bem, enquanto meu, a um bem superior ou mais geral. Só o amor-próprio que se opõe ao bem universal pode ser chamado egoísmo, que é um encerrar-se em si mesmo, em opo158
sição geral. 2.ao Sebem o amor perfeito po de ser tanto por si mesmo como por outro, imediatamente há que perguntar: têm os dois a mesma radicalidade? De modo algum. O amor perfeito por si mesmo é mais radical, e até ontologicamente primário: expressa nada menos que a “unidade” ontológica da pessoa e não meramente, como o amor por outro, união psicológica de afetos. Mas há de fato diferença entre “unidade” e “união” amorosa? Unitas potior est quam unio, diz o Aquinate: a unidade é mais nobre que a união. Considerando o aspecto comum de amizade, lembra o Aquinate a doutrina de Dionísio (em De div. nom., c. 4, § 12) e afirma que ninguém tem amizade consigo mesmo, mas algo mais que amizade: a amizade diz união, pois o amor é força unitiva (vis unitiva); mas cada um tem em si unidade, que é superior à união (unicuique autem ad seipsum est unitas, quae est potior unione). Como a unidade (ontológica) é princípio da união (psicológica), assim o amor com que alguém ama a si mesmo é forma e raiz da amizade (unde sicut unitas est principium unionis, ita amor quo quis diligit seipsum, est forma et radix amicitiae). Isso quer dizer que o amor perfeito por si mesmo é o exemplar metafísico, o modelo objetivo de qualquer forma de amor; pois temos amizade com os demais na medida em que com eles nos relacionamos (psicologicamente) como com nós mesmos (ontologicamente): toda a amizade com outro provém da amizade com nós mesmos. Quem vir nesta afirmação solipsismo ou subjetivismo não compreendeu o sentido ontológico da causa exemplar: quando amo com 159
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158 - S. Th., I, 60, 5; II-II, 19, 6. 159 - S. Th., II-II, 26, 4. 160 - S. Th., II-II, 25, 4. Louis-B. Geiger, 59-60. O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino
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amor perfeito, ponho em dúvida minha própria identidade — minha srcinalidade e mesmidade — se não afirmo com a mesma radicalidade a srcinalidade e mesmidade do outro. O verdadeiro amor a si mesmo não tem nada que ver com a ilusão, nem com a vaidade ou a cobiça. Como diriaMax Scheler, “nele nosso olhar espiritual e o raio de sua intenção estão fixados numdecentro espiritual supramundano. a nós por que uma espécie olho divino, e isso quer dizer, emVemos primeiro lugar, nos vemos de maneira completamente objetiva, e, em segundo lugar, que nos vemos como membros do universo inteiro. Certamente continuamos a nos amar, mas somente na medida em que pudermos existir diante de semelhanteolho onividente”. 3. Na lingua gem de Santo Tomás, a complacentia boni , a aprovação da existência boa, é afirmada primariamente de mim mesmo. O amor que alguém sente por outro “procede do amor que sente pela própria pessoa”. Este amor de si não procede de seres completamente autônomos, independentes e sem indigências: porque, mais que isso, nós, os homens, nos encontramos com nosso ser como com algo dado e não posto livremente por nós. Há em nosso ser um impulso para a felicidade do qual não podemos dispor, precisamente porque não o temos, senão que o somos na ordem entitativa. E, por isso mesmo, o sujeito “ama a si mesmo mais que aos demais”. Porque desde que somos gerados somos lançados à própria plenitude, à realização de tudo o que em germe contemos. Sobre esta raiz do natural que busca sua felicidade, nasce a liberdade de nossas decisões. Esta exigência de plenitude exis tencial que age em nós por natureza — comenta Pieper — é “amor-próprio”, o que significa tão-somente exigência de felicidade, tendência à plenitude própria. É a forma de amor primária, a que fundamenta e torna tudo possível, e, ao mesmo tempo, a que nos é mais familiar e querida. Esse amor com que amamos a nós mes161
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161 - Max Scheler, Ordo Amoris, 123. 162 - S. Th., III, 28, 1, 6. 163 - S. Th., I-II, 27, 3. 102
O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino
III - Êxtase e Amor
mos é a medida de todo amor. No amor a si mesmo pode-se aprender, como num paradigma, o que é todo amor. Não amamos a nós mesmos como amamos o amigo, senão que a amizade é o reflexo e a cópia, enquanto o amor a si mesmo é o modelo primário. O chamado “amor de si” ou “amor-próprio” tem, portan164
uma precedência ontológica. “Oestá amor com queado, amamos ato,nós mesmos”, diz Geige r, “já não subordin ao menos à primeira vista, a ne nhum outro amor. Buscamos nosso bem, quer dizer, nosso ser e nosso completo desenvolvimento, e portanto a felicidade mesma, sem outra razão além de sua mesma bondade, ou seja, porque essas realidades exercem sobre nós uma atração que não parece exigir justificação alguma. O amor que fazemos recair sobre elas se basta a si mesmo. Implica uma misteriosa e, ademais, imperiosa gratuidade, como se em nós um bem mais profundo que nós mesmos pedisse e recebesse um amor que tem todos os traços de puro dom, sem que possamos, por outro lado, distinguir realmente entre o autor e o beneficiário desse dom. Está inscrito em nossa natureza. Não poderíamos suprimi-l o sem nos suprimir a nós mesmos. Não é sua existênc ia o protesto mais eloqüente contra toda tentativa de reduzir nossa existência ao jogo absurdo de um acaso cego? Nosso amor se dirige aqui a um bem por si mesmo . Tem os traços já não da concupiscência, mas da amizade. E esta última, que nos faz amar naturalmen te por si mesmo nosso ser e nosso pleno desenvolvimento, é com efeito o princípio das concupiscências pelas quais amamos para nós o que pode favorecer nosso ser, nosso desenvolvimento e nossa felicidade.” 165
164 - J. Pieper, 147-150. 165 - Louis-B. Geiger, 59-60. O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino
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Capítulo IV
O Amor Íntimo
IV - O Amor Íntimo
1. Tipologia do amor perfeito
a) Amor benevolente Já se indicou que o amor perfeito, enquanto dirigido a pessoas, pode ser ou benevolência à pessoa em seu caráter de tal, ou de íntimo , orientadoordenada à personalidade sua concreção biográfica. Este último foi chamado por Santo Tomás de modo muito geral amor amicitiae, o qual exige intimidade profunda, pois, como explica João de Santo Tomás, “o mais próprio da amizade (amicabilis) acrescenta ao bem considerado absolutamente o mais próprio da comunicação (communicativi); de outro modo, se não fosse comunicativo, o outro não nos amaria em reciprocidade (redamaret nos) e, por conseguinte, não se uniria a nós como amigo”. Neste “amor de amizade” seria preciso incluir diversas categorias de amor, não só o de amigos em sentido estrito, mas o dos pais pelos filhos e o dos esposos entre si. Assim, o amor perfeito — entendido pelos medievais como amor amicitiae em contraposição ao amor concupiscentiae ou itinerante — tem dois modos de se realizar: como amor benevolente à pessoa enquanto tal, ou como amor íntimo à personalidade biográfica do outro. Esse amor íntimo pode desdobrar-se sem exercer tematicamente as exigências da constituição sexual de cada ser humano: é o amor amistoso em sentido estrito, no qual se inclui a categoria do amor paterno e do amor filial; ou com o exercício temático de tal constituição sexuada: é o amor esponsalício. O amor íntimo — sejam quais forem suas categorias — tem a qualidade do perfeito e é vivido como amor quiescente à pessoa, pois, por exemplo, “o próprio da amizade é o amigo ser amado por si mesmo (sui gratia); donde o amigo não ter na amizade caráter de prêmio, falando com propriedade, con166
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166 - João de Santo Tomás,Cursus Theologicus, In II-II, “De caritate”, disp. 14, art. 1, n. 3 (Lugduni, 1663). 167 - III Sent., dist. 27, q. 3, art. 2. O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino
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quanto o que em nós resulta do amigo possa ter essa índole de prêmio ou mercê, como o gozo e as utilidades que dele consiga o amante”. O amor de amizade é sempre íntimo: “Em virtude de o amor transformar o amante no amado, ele faz que o amante entre nas interioridades do amado, e vice-versa; de modo que, com respeito ao amante, nada do amado fique de168
sunido: assim como aoforma chega ao íntimo informado, vice-versa. Portanto, amante penetra de certodomodo no ama-e do, e por isso o amor se chama agudo, pois o próprio do agudo é chegar cortando o íntimo das coisas; e, similarmente, o amado penetra no amante, chegando a suas interioridades”. Do amor perfeito benevolente — ainda não íntimo — fala a parábola do Samaritano, cujo bom coração, ou seja, amor ao homem, salva um desconhecido que, apaleado e ferido, encontrou no caminho, enquanto outros homens que por ali passaram não lhe deram atenção alguma. O que inicialmente o Samaritano ama é a condição humana daquele ser a quem ajuda e alenta. Este amor é merecido por todo homem por ser pessoa, seja bom ou mau em sua personalidade. E todo ser humano, antes de desenvolver uma personalidade, já é pessoa. 169
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168 - III Sent., dist. 29, q. I, art. 4. 169 - “Ex hoc enim quod amor transformat amantem in amatum facit amantem intrare ad interiora amati et e contra; ut nihil amati amanti remaneat non unitum; sicut forma pervenit ad intima formati, et e converso; et ideo amans quodammodo penetrat in amatum, et secundum hoc amor dicitur acutus, acuti en im est dividendo ad intima rei devenire; et simil iter amatum penetrat amantem, ad interiora ejus perveniens” (III Sent., dist. 27, q. 1, art. 1, ad 4). 170 - A benevolência, que comporta uma disposição para socorrer ou prestar ajuda, não tem como referencial a intimidade da personalidade, mas o caráter geral de pessoa que o outro tem: quer um bem para a pessoa sem pretender ter intimidade com ela. 1. Pode referir-se a pessoas que nos são desconhecidas de vista, ainda que sejam conhecidas confusamente e em universal; e não é necessário que elas estejam conscientes de nossa benevolência. 2. Costuma surgir espontânea e repentinamente aoéencontrarmos pessoas que necessitam de socorro ou ajuda. 3. Às vezes despertada como um afeto ligeiro e superficial. 4. Mas não é um afeto sen sitivo: é uma resposta da vontade humana, conquanto possa redundar ou repercutir no apetite sensível. Em todo o caso, a direção racional é nela primária e radical. Deste ponto de vista, difere do amor, que se acha tanto no apetite como na vontade. a) À diferença do amor do apetite, que supõe a visão freqüente e prolongada da coisa amada, razão por que se expressa às vezes de maneira veemente e impetuosa, a benevolência é plácida e tranqüila. b) O ato 108
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O amor benevolente, por ser amor, também inclui uma intenção unitiva, na forma de uma relação peculiar com a pessoa do outro. “Enquanto eu respondo exclusivamente sub specie de valor — dou ao necessitado, por exemplo, uma esmola porque quero obedecer ao mandamento moral ou porque a pobreza extrema de um homem representa um contravalor —, falta um elemento de ocalor, deprecisamente, beleza moral profunda e relevante. Falta amor,essa queforma inclui, considerar algo não só sub specie de valor objetivo, mas também sub specie de bem objetivo para o outro. O amor supõe, igualmente, que o bem objetivo para o outro seja suficiente para nos mover e levar a fazer algo por ele. Este ‘por’ ele — entendido não como ceder ou deixar-se influenciar pelo outro, mas como considerar algo relevante para mim por sê-lo para ele —, o conceder ao outro o papel que cada um desempenha por si mesmo de acordo com sua natureza, é um presente considerável que o amor lhe dá.” E, conquanto no amor benevolente o outro não seja enfocado como fonte de minha felicidade nem objetivo de minha intenção unitiva, não fico indiferente diante do fato de sua saúde ou de seu crescimento moral, bens que considero ubérrimos para ele. A benevolência — a do Bom Samaritano — é o ato da vontade pelo qual queremos um bem para outro. Usando uma comparação ontológica da psicologia clássica, pode-se dizer que, na ordem da vontade, a benevolência está para o amor íntimo assim como, na ordem do entendimento, a simples apreensão está para o juízo: a) assim como a verdade está incoativa e imperfeitamente na simples apreensão, mas formal e perfeitamente no juízo, assim também o amor se encontra de modo incompleto e imperfeito na simples benevolência, mas de maneira perfeita no amor íntimo; b) assim como o juízo inclui a simples apreensão e a aperfeiçoa, acrescentando-lhe a comparação, assim também o amor íntimo inclui a benevolên171
de amor íntimo, que é próprio da vontade, exige desde o princípio a união afetiva com o amado, enquanto a benevolência não requer esta união. 171 - D. von Hildebrand, La esencia del amor, 204. O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino
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cia, acrescentando-lhe a comparação, a seleção e a união afetiva; c) e, assim como o juízo inclui a cópula com que uma coisa é afirmada ou negada de outra, assim também o amor inclui necessariamente a união afetiva com que se unem o amante e o amado. “A simples benevolência surge espontaneamente diante da presença ou noticia da pessoa para a qual queremos o bem, sem supor discernimento comparação comtal nenhuma outra, enquanto a dileção [amorouíntimo] pressupõe comparação ou discrição, como revela seu próprio nome. Daí que a dileção seja um ato psicológico mais perfeito e mais consciente que a mera benevolência, com respeito à qual se comporta como o juízo com respeito à simples apreensão.” A solidariedade do amor benevolente é completamente diferente, por seu fundamento, por sua qualidade e por sua especial singularidade, da solidariedade consigo mesmo, do amorpróprio. “No caso do amor, minha participação no outro não se deve a eu ver nele um prolongamento de meu próprio eu, mas ao contrário: por amá-lo, o outro não é um prolongamento de meu eu, mas outro eu, alter ego. Minha participação nele é conseqüência do amor, não seu fundamento.” Como se pode ver, o amor perfeito — tanto o benevolente como o íntimo — é uma “afirmação” comprazida do bem real que o outro é. É uma afirmação pessoal, livre e presta. Que tal amor seja pessoal significa, em primeiro lugar, que não se dirige a uma coisa, a algumas qualidades ou propriedades de um sujeito, mas à sua dignidade de ser pessoa. Amar é, assim, afirmar o valor absoluto de um sujeito. Mas a linguagem do amor não é, em sentido primordial, da ordem do ser, mas da do bem. Seu tema é teleológico: fala de ternura, de calor, de plenificação, de apoteose. Naturalmente, o amor perfeito é vontade de que o outro seja, mas contribuindo para a realização boa do ser pessoal, próprio e alheio. Esta afirmação pessoal do amor deve ser sublinhada em face da mentalidade que considera o ser humano não como pessoa, mas como coi172
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172 - Santiago Ramírez, La esencia de la caridad, 334. 173 - D. von Hildebrand, La esencia del amor, 205. 110
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sa, como objeto de troca. O Aquinate chama a atenção para a modalização entitativa do amor: “Para a dileção concorrem três coisas, a saber, o amante, o amor e o amado; e a cada uma destas coisas responde seu próprio modo ou medida. A coisa amada tem o modo pelo qual é amável; o amante tem o modo pelo qual é amante, isto é, capaz de amar; mas o modo do amor é atendido pela comparação do amante com odoamado, já quedoo amor medeia entre os dois entes”. O modo ser pessoal homem, o absoluto mundano por excelência, é a medida pela qual cada indivíduo mede seu amor mais profundo. Pode-se dizer que, do ângulo do objeto amado — a pessoa — o amor perfeito não tem essencialmente (per se) medida; ainda que de modo acidental (per accidens), do ângulo das condições do sujeito amante, pode dar-se medida no amor pela maneira de exercer os atos e segundo as circunstâncias da vida. O amor perfeito é, em segundo lugar, livre. Só ama quem é dono de si mesmo e não está dominado por seus próprios caprichos e apetites. O fracasso do amor acontece quando alguém não é livre e se deixa vencer pelo instinto, pelo entusiasmo, pelo orgulho ou pelo egoísmo (pelo prolongamento avassalador do próprio eu). Neste caso, o outro é visto como objeto coisificado, despersonalizado. No livre amor à pessoa, há um “mais” que não se encontra em outras respostas af etivas, dado que pomos em ação não só nossa vontade de meios, mas ta mbém nossa vontade de fins, ou, dito de outro modo, nosso ser pessoal inteiro. O amor perfeito é uma afirmação comprazida e presta da pessoa do outro. Com sua simples presença, o outro nos urge a responder. A atitude de resposta há de ser pronta e rápida. Ainda que a resposta amorosa não seja de índole reativa — como o choque das bolas de bilhar —, o atraso calculado ou a demora indolente em responder são atitudes que não se coadunam com a essência do amor. A demora no amor infecta o amor. O que não significa que o amor tenha de ser cego. Ele 174
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174 - III Sent., dist. 27, q. 3, art. 2. 175 - V. Frankl, 107. O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino
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é guiado a todo o momento pela inteligência. Mas, uma vez vista a realidade do outro, sua dignidade pessoal, já não cabe postergar o afirmá-lo (ampará-lo, acompanhá-lo, cuidar dele). A benevolência, como ato da vontade, difere não só do amor íntimo que radica na vontade, mas do amor que provém do apetite sensitivo. ) A benevolência difere amor íntimo, em qualquer de suasformas, porque este traz do consigo uma união afetuosa do amante e do amado, de modo que o amante considera o amado como um com ele (unum sibi) ou como que lhe pertencendo, razão por que se move para ele. Mas a benevolência é um mero ato da vontade pelo qual desejamos um bem para outro, sem pressupor tal afetuosa união íntima com ele. Não é a mesma coisa amar intimamente a outro e querer o bem para outro, embora esse querer tenha traços da peculiaridade do outro. Ainda que não haja amor íntimo sem querer o bem para outro, pode-se querer o bem para outro sem que haja esse amor íntimo. A simples benevolência tampouco implica redamatio, correspondência amorosa. O que já não cabe no limite mais baixo da benevolência é tratar de um moribundo com os mais sofisticados aparelhos de reanimação e, ao mesmo tempo, com a mais fria assepsia, sob um controle rigorosamente técnico de sua atividade cardíaca e de sua respiração, sem nenhuma palavra de alento. Quando exercemos o amor benevolente, tomamos parte de algum modo da estreita relação do bem e do mal objetivos para o outro, pois sua situação e seu destino nos afetam como se fossem os nossos. E quando amamos intimamente nos comprazemos, naturalm ente, no bem, mas com intenção unitiva, tendo em mira estar e identificar-se com o talante mais profundo do outro. Ainda que a união efetiva não seja a essência desse amor, é, porém, seu efeito necessário. Em suma, o amor íntimo é ato da vontade que tende ao bem, pretendendo certa união íntima com o amado, nota que a benevolência não tem. 176
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176 - S. Th., II-II, 27, 2. 177 - S. Th., II-II, 27, 2, ad 2. 112
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) Do amor sensível, a benevolência difere, ademais, em duas notas fundamentais: 1ª. O amor sensível é uma resposta afetiva que inclina para seu objeto com certo ímpeto (quodam impetu); a benevolência, em contrapartida, carece de convulsão (distensionem) e de apetite; ou seja, não é uma inclinação compulsiva, pois tão-só por juízo da razão o homem deseja um
bem da paraperseverante outro. 2ª. Opermanência amor sensível nasce subitamente, mas nanão coisa amada: brota de um costume (ex quadam consuetudine); e a benevolência, em contrapartida, repentinamente (repentino), como nos acontece com os pugilistas que lutam, quando queremos que um de eles vença. Enfim, não é infreqüente que a atitude ordinária do amor na benevolência se transforme, pelo trato freqüente, em amor íntimo. Aristóteles chamou à benevolência princípio da amizade, , pois “quando o homem perdura na benevolência”, explica o Aquinate, “e se acostuma a querer bem a alguém, seu espírito se reafirma em querer o bem, de modo que sua vontade não permanecerá ociosa, mas se tornará eficaz”. Então quererá para o outro o bem como para si mesmo, fazendo tudo o que estiver ao seu alcance para consegui-lo. 178
b) Amor íntimo O amor íntimo se desdobra propriamente no âmbito da personalidade — suposto sempre aquele amor pessoal benevolente — e pode ser ou amistoso em sentido estrito, sem que medeie relação sexual, ou esponsalício, no qual se entrecruzam os motivos do eros e do enamoramento. O amor íntimo contém os traços gerais do amor perfeito, participados no benevolente (que é pessoal, livre e presto), mas implica outros registros que se dão igualmen te no amor amistoso e no amor esponsalício. 178 - In IX Ethicorum, lec. 5, n. 1825. O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino
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1. O amor íntimo é, como todo amor, uma “afirmação” comprazida do bem real que o outro é: não se trata de mera resposta existencial, de uma afirmação do puro ser fáctico do outro; mas uma resposta ao ser “bom” do amado: não é uma réplica fria e distanciada, unida ao princípio de identidade ou de contradição (“és ou existes assim”), mas uma resposta
cálidadoe amado fervorosa, à perfeição quenão o amante participa (“ésvinculada bom, e sem ti o mundo é totalmente bom”). O bem complexo da personalidade amada, enquanto forma um feixe articulado ou harmônico de relações objetivas, pode chamar-se “beleza integral”. Pois beleza significa ordem, harmonia e perfeição irradiante, vistos como deleitáveis (quae visa placent, segundo a fórmula medieval). Aqui a visão do belo não é puramente de ordem sensorial, mas sobretudo de ordem espiritual. A pessoa é visualizada pelo amante como beleza integral. E, ainda assim, a realidade do amado — com seu encanto e sua bondade — captada pela inteligência será sempre o princípio, e a resposta do amante o principiado. Esta mediação intelectual impede que a “resposta” afetiva do amor se identifique com a do apetite ou amor sensível. A índole objetiva, a realidade supra-sensível da pessoa amada, é sempre o “tema” mesmo do amor íntimo. Tanto na amizade como na esponsalidade, o amor é um êxtase da intimidade e, por isso, afirmativo srcinariamente da pessoa e de sua intimidade. “Dado que nenhum ser pode transformar-se em outro se não se separa antes, de certo modo, de sua própria forma, porque a forma é única em cada um, por isso à divisão de penetração precede outra divisão, por cuja virtude o amante se separa de si mesmo tendendo para o amado; e por este motivo se diz que o amor produz êxtase e ferve (dicitur amor extasim facere, et fervere), pois o que está fervendo ebule e alenta fora de si.” Neste êxtase, o amante não se perde em pura exteriorização; muito pelo contrário: porque nesse perfeito amor ele encontra a si mesmo no outro. Só na auto179
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179 - S. Th., II-II, 27, 1, ad 3. 180 - III Sent., dist. 27, q. I, art. 1 ad 4. 114
O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino
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transcendência no outro, efetuada pelo verdadeiro e perfeito amor, se esclarece para si mesmo o eu como pessoa espiritual. Se o homem não chegasse, sequer por breves lapsos de tempo, a amar perfeitamente a outro, jamais poderia conhecer-se a si mesmo em sua intimidade: especialmente, jamais conheceria o que é capaz de dar de si mesmo. A resposta afirmativa e comprazida outro comporta uma2.“intenção unitiva”, aspecto que não édosublinhado tematicamente no simples amor benevolente (ainda que também neste exista uma ampla intenção unitiva para a pessoa do outro, por sua dignidade de pessoa): pretende temática e concretamente a união real com a pessoa do amado. Recordemos que há três tipos de união. Em primeiro — e um realista terá de levá-lo em conta —, há a união suscitada pelo amado no amante: trata-se da assimilação, da conformação, da adaptação feita pelo amado no amante; é o ferimento de amor produzido pela flecha espontânea que o outro atira num sujeito. Há, em segundo lugar, a união afetiva, própria da resposta que é essencialmente o amor. E há, finalmente, a união efetiva ou gozo com o amado, surgido como efeito da anterior. Esta última não é o amor, mas uma conseqüência sua. O que aqui nos interessa sublinhar é a índole da “intenção unitiva” própria da resposta afetiva que é o amor. a) Deve-se descartar, em primeiro lugar, que essa intenção unitiva provenha de uma necessidade psíquica ou, menos ainda, biológica. Foi Platão quem, em seu diálogo sobre o amor, intitulado O Banquete, pôs em circulação a idéia de que amar é um desejo de crescer mediante a participação nas qualidades boas do outro. O amor nasceria de uma indigência: filho da riqueza (Poros) e da indigência (Penia), supõe em seu início a imperfeição do amante, o qual necessita completar-se participando das qualidades do amado. Aqui o amor é uma resposta, lançada de uma necessidade, à beleza do amado, um desejo de aperfeiçoamento da própria pessoa: aintenção unitiva não surge de uma plenitude espiritual da intimidade, mas de um apetite sensível. O movimento interno do amor não é visto como resposta à realidade objetiva do amado, o qual seria seu verdadeiro princípio, O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino
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nem como uma entrega de si que possui caráter transcendente, “e sim como algo que, efetivamente, acende a beleza, mas no qual o interesse pela pessoa amada se fundamenta, em última instância, no anseio imanente de perfeição”. b) Tampouco é suficiente interpretar essa inten ção unitiva como o interesse que se tem pela outra pessoa como meio 181
para nossa O amormas nãouma seriapergunta. então uma autêntica resposta ao felicidade. reclamo objetivo, O nobre desejo de perfeição e de ser elevado é substituído pelo anseio de felicidade, o qual degrada a outra pessoa à condição de meio para isso. Feita esta substituição, pretendeu-se contrapor a tal amor (Eros), definido como egoísta, o amor desinteressado (Ágape) e de entrega, fruto da intenção meramente benevolente. E até, no caso do amor esponsalíci o, se pretendeu ver essa contraposição na relação que se costuma fazer entre enamoramento e amor, não se reparando em que todo amor traz uma intenção unitiva . c) Tanto num caso como no outro não se viu que a intenção unitiva, longe de ter caráter egoísta ou de ser um simples anseio de felicidade, é um traço orgânico de todo amor que responde à beleza integral da pessoa e vê a união efetiva como especificamente gozosa; mais ainda, vê a pessoa amada como particularmente gozosa diante do amado. A intenção unitiva deixaria de ser uma entrega assim que a pessoa amada fosse vista apenas como meio para a felicidade do amante. d) Tal união pretendida nada tem que ver com a união unilateral que uma pessoa pode estabelecer com uma qualidade ou uma entidade elevada, como a de uma bela paisagem ou a de uma obra de arte. A intenção unitiva do amor pretende a “reciprocidade” de dois sujeitos que se olham na relação de um eu a um tu (e não na de um eu a um ele): então dois atos conscientes se enlaçam e se respondem conscientemente. Só mediante a “mútua resposta“ se pode constituir um amor íntimo. De modo que a profundidade do amor dependerá da qualidade 182
181 - Dietrich von Hildebrand, La esencia del amor, 163. 182 - Dietrich von Hildebrand, La esencia del amor, 164. 116
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das intimidades pessoais que a estabeleçam. “A união que se anseia, a união a que tende a intenção unitiva, só pode realizar-se na reciprocidade do amor ou, o que é o mesmo: o amor recíproco é o único caminho possível para a união de duas pessoas. Enquanto a pessoa amada não corresponder a nosso amor, não poderemos alcançar jamais a união ansiada.” Na 183
resposta do amor, em primeiro lugar,mas, a face meu serlue, em segundo lugar,abro, viro-me para o outro; emdeterceiro gar, só alcanço a pessoa amada se ela corresponde a meu amor. Pelos dois primeiros aspectos eu só preparo um âmbito de encontro; mas, ao responder-me, ela realiza ou torna consistente esse âmbito: só então nós dois nos encontramos num âmbito comum, tornado possível por nossas livres e pessoais respostas. A resposta que a outra pessoa me dirige tem por sua vez dois momentos: no primeiro, faz-me sentir que meu amor penetra gozosamente em sua intimidade; no segundo, ela corresponde a meu amor afluindo em minha intimidade. Todos estes momentos se apresentam em qualquer categoria de amor íntimo; embora, no caso do amor esponsalício, se anseie uma união que excede à pretendida nas demais categorias de amor. 3. A resposta que o amante dá ao amado não é uma simples ação reflexa ou reativa à beleza integral do amado, pois encerra um “dom” muito especial, a saber, “o melhor” de nós mesmos orientado ao amado: por não surgir exclusivamente da beleza da pessoa amada, em muitos aspectos depende mais danatureza do amante que da do amado. Encerra uma decisão, uma espécie de entrega que não é exigida no âmbito de outras respostas afetivas: a dádiva da intimidade. E, conquanto eu possa conhecer muitas pessoas que estão num nível superior, só com algumas poucas me relaciono com amor íntimo, estando consciente de que essas pessoas merecem ainda mais do que meu amor lhes dá como amor. “A dádiva do amor só vai além da resposta espiritual devida ou exigida quando subjetivamente existe a consciência de que não correspondemos à exigência.” 184
183 - Dietrich von Hildebrand, La esencia del amor, 168. 184 - Dietrich von Hildebrand, La esencia del amor, 118. O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino
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4. A intenção do amor se dirige sempre a uma pessoa individual considerada como totalidade. Ainda que as belas e harmônicas qualidades desta individualidade tenham acendido o amor, no ato do amor estou completamente dirigido à pessoa mesma como totalidade. Amo a pessoa mesma através de sua harmonia e beleza.
Portanto, devea distinguir-se o que(amotiva o amor (as qualidades) daquilo que ele se dirige pessoa). Em primeiro lugar, o amor se dirige certamente a algumas qualidades, mas enquanto realizadas numa pessoa: só à pessoa, em sua beleza integral e individual, oferecemos nosso amor. Mas não só isso. Em segundo lugar, não amo essa pessoa enquanto portadora e sustentadora de tais qualidades boas, mas enquanto centro dinâmico prévio que as totaliza. “O amor responde não somente ao amado em razão de sua beleza integral: abarca sua pessoa real como tal. O amante entrega à pessoa amada seu coração, decide-se por ela como um todo. A dádiva de calor, de bondade, de interesse último, de solidariedade refere-se completamente a esta pessoa real; aqui seria impossível ver essa pessoa somente como portadora de valores típicos, como o valor moral, o estético, o vital; seria impossível alegrar-se primariamente com a realização desses valores.” Não a amo porque ela encarna uma qualidade valiosa, mas porque é centro totalizante dessa e de outras qualidades ainda não realizadas; e porque igualmente é centro subjetivo que responde, um sujeito que, à diferença de qualquer outro ente do mundo, pode acolher e compreender por princípio nossa resposta a seu ser pessoal, pode ser afetado pelo conteúdo dessa resposta. A “dádiva” do amor, o dom da 185
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185 - Dietrich von Hildebrand, La esencia del amor, 113. 186 - “Esta tematicidade da pessoa como algo único, irrepetível, aparece de maneira nítida quando refletimos no ,seguinte. Suponhamos que duas pessoasmuito tivessem valores muito parecidos possuíssem a mesma bondade e pureza. Começamos primeiro a por conhecer uma dessas pessoas; e sua bondade e pureza inf lamam nosso coração. Amamo-la e entregamoslhe nosso coração. Depois começamos a conhecer a segunda pessoa e cons tatamos que é muito semelhante à amada e ficamos impressionados com sua bondade e pureza. Mas só amamos a primeira com amor esponsalício: amamos esse indivíduo único, determinado, inintercambiável. Não nos ocorre pensar que pudéssemos amar igualmente a outra porque se asse118
O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino
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intimidade, transcende tudo o que é devido como resposta a qualidades. E este dom se cumpre como tal quando o amante tem consciência de que a pessoa amada merece ainda mais do que nosso amor lhe dá, e de que não correspondemos nunca devidamente à exigência de seu ser pessoal. 5. Se a beleza integral e irradiante do amado acende emnós o amor, individual, é porque o feixe dessaantes beleza estruturação já se de estárelações realizando detotal, nossosua amor. Mas na afirmação do amante está contida umaco-realização pessoal dessa estruturação. O amor perfeito, como diria MaxScheler, “é o ato que tenta levar cada coisa à perfeição de valor que lhe é peculiar — e a leva efetivamente, desde não seinterponha nada que o impeça”. O amor não cria os valores, mas os promove. Essa co-realização se manifesta como uma entronização do amado, em sua índole integral de pessoa, “independentemente das faltas que possa ter; no amor ele não só éachado valioso como totalidade, mas também éexplicado como valioso”. Explicado não principalmente na ordem teórica, mas na da ação prática relacionada com o afeto: se a palavra latina “plica” dá lugar ao castelhano “plegar” [dobrar], o amor dá lugar ao “despliegue” [desdobramento] de faculdades e relações contidas ou implicadas na riqueza pessoal do outro. O amante introduz-se emtodos “os pliegues” [pregas, dobras] ou recônditos do outro. Não através de um juízo teórico, mas de um acolhimento afetivo. Pois bem, este não faz que otrono em que o amado é posto seja arbitrário, pois a “beleza integral da outra pessoa há de irradiar para mim para despertar em mim a resposta do amor; e esta beleza não é somente um valor expresso, mas também um valor especificamente deleitável, um valor que me arrebata”. O amor se caracteriza essencialmente pelo fato de que a beleza integral de uma individualidade é expressa e especificamente regalada, 187
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melha muito a ela, ou porque possui a mesma bondade e pureza” (Dietrich von Hildebrand, La esencia del amor, 115). 187 - Max Scheler, Ordo Amoris, 127. 188 - Dietrich von Hildebrand, La esencia del amor, 103. 189 - Dietrich von Hildebrand, La esencia del amor, 103. O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino
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gozosa. A beleza integral conhecida é “confirmada” pelo amor: o outro fica numa relação pessoal comigo que afeta a mim e à minha vida íntima biograficamente. 6. Esta afirmação amorosa é, de si, inadequada . O amor, como “expressão” ou “resposta” pessoal ao amado, encerra um conteúdo próprio e de novidade que não se deve exclusivamentesupra-sensível à presença participada amado no no amante. À realidade do amadodoparticipada amante, acrescenta o sujeito uma configuração categorialmente diferente: seu peculiar desdobramento para o amado, seu próprio florescer pessoal no ato de “responder“. Tal específica contribuição do sujeito na resposta surge de um nível antropológico elevado: o da “intimidade”, e desdobra-se como uma “dádiva” do amante. Na “dádiva” amorosa está implicada a personalidade integral do amante, com seus elementos temperamentais, “caracteriais”, intelectuais e volitivos, fazendo unidade biográfica na forma da intimidade. O amor pressupõe não só a orientação à pessoa amada, mas a profundidade biográfica do amante, qualidade que o capacita tan to para ser afetado por essa pessoa e não por outra quanto para responder a ela e não a outra. Supostas a qualidade da intimidade, a realidade do amado e a resposta afirmativa do amante, pode-se observar no ato de amar a “inadequação” da resposta amorosa. Isto não acontece em outras respostas de índole pessoal. Por exemplo, quando alguém se entusiasma por algo que não merece objetivamente arrebatamento algum, não só não responde autenticamente a um valor objetivo, senão que o valor da atitude própria é prejudicado, dado que não foi realmente visto e acolhido o bem em questão, sua importância e seu valor objetivo. Mas o amor inadequado não suprime necessariamente , ou seja, pela inadequação mesma, o valor do amor e sua autenticidade, mesmo no caso de poderem darse erros, enganos ou equivocações com o amado. Quando uma pessoa ama profundamente outra, ainda que em muitos traços biográficos esta outra se ache abaixo daquela, pode-se dizer que o amado não vale este amor, mas o amor mesmo não 120
O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino
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perde elevação por isso. Também há, é verdade, casos em que a inadequação do amor lesa a qualidade do amor mesmo, a saber, quando esse amor coisifica a si mesmo ou coisifica a pessoa do outro como no orgulho, na amplificação do eu e na servidão ou escravização. Mas o amor ultrapassa a mera resposta factual ou suscitada reativamente, e a contribuição do amante supera a motivação primeiro, entronizando amado; segundo, dando-lheobjetiva: um crédito fiduciário; terceiro, ointerpretando-o na alta. 7. Efetivamente, no amor se expressa o crédito que o amante dá ao amado, pelas qualidades que seu ser tem e que ainda não foram vistas em sua totalidade e potencialidades. O amor divisa, em primeiro lugar, a linha da beleza e riqueza do ser individual em todos os seus traços individuais observados; e vislumbra também a linha daquelas qualidades que, estando no reino da virtualidade, ainda não puderam ser comprovadas como tais. “O amor crê também no melhor do amado; e, quando ouve contar algo negativo dele, de saída não crerá imediatamente que isso seja verdade, ou pelo menos que seja interpretado adequadamente. É a fé n o outro, a interpretação positiva e a aceitação de que todo ele é bom, enquanto não se constate inequivocamente uma falta.” De modo que o encadeamento de fatores relativos ao amor é o seguinte: há primeiro no amado, e anteriormente ao amor mesmo, um feixe objetivo de valores constituintes da beleza de sua individualidade, o que é afirmado comprazidamente pelo amante; há,em segundo lugar, pelo lado do amante, umaconfirmação subjetiva dessa ordem relacional, a entronização, pela qual o amor nota a linha de beleza atual. E há, em terceiro lugar, o crédito que se dá ao amado, crédito que transcende o que se possa constatar nele, dirigindo-se ao virtual em todos os seus pormenores e situações. “Por isso, há em todo amor um elemento de fé. Até o que ainda não se viu em sua beleza é crido em virtude da beleza que já se conhece .” 190
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190 - Dietrich von Hildebrand, La esencia del amor, 103-109. 191 - Dietrich von Hildebrand, La esencia del amor, 104. 192 - Dietrich von Hildebrand, La esencia del amor, 105. O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino
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8. O amor, igualmente, realiza uma “interpretação na alta” do amado: não só penetra na existência atual do outro confirmando-a, não só entroniza o outro, não só lhe dá um crédito como puro presente de amor, mas interpreta na alta e positivamente tudo o que há no amado: “tudo, enquanto não se mostre inequivocamente como negativo”. 193
Que o amante dê ao um crédito confiança, interpretando-o inclusive naamado alta, nada tem quedever com a atitude idealizante do homem exaltado, do visionário que confunde com o amor a necessidade de experimentar o prazer de encontrar gente maravilhosa, entregando-se a este gozo mediante uma idealização infundada e degustando o próprio delírio como tal, sendo a pessoa idealizada somente uma ocasião de poder delirar e não uma realidade temática. No amoroso crédito de confiança pressupõe-se, sempre, um bem real correspondente, a pessoa efetiva do amado, a qual dá sentido a todos os registros do amor. Se a realidade da pessoa amada é vista em sua integridade, então não pode senão ser reconhecida sua “fragilidade”, o risco que corre até em sua nobreza. O crédito de confiança “conta com a possibilidade de que, ali onde se supõe que tudo seja positivo, também haja um defeito; defeito que não muda nada no amor e que é visto como algo inautêntico e passageiro”. 9. Conseqüência do crédito fiduciário é a invalidação psicológica — conquanto não moral — dos defeitos do amado. Só as qualidades valiosas são tratadas como algo autêntico. Não são negados os defeitos, mas são considerados como deslealdade ou traição ao próprio ser autêntico. Só quem não ama vê os defeitos do outro no mesmo nível de autenticidade que as boas qualidades; mais ainda, tais defeitos o irritam e revoltam, porque são vistos isoladamente, fora de sua referência à beleza integral da pessoa. Mas o amor enfoca o negativo do amado como algo não característico, e o desvio como ato provisório; o amor não se irrita com os defeitos do outro, ainda que não o 194
193 - Dietrich von Hildebrand, La esencia del amor, 105. 194 - Dietrich von Hildebrand, La esencia del amor, 106. 122
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façam feliz; e expressa-se da seguinte maneira: “mas ele não é assim”, “não é essa a sua essência”. O amor não é neutro. Toma sempre parte decisiva na promoção positiva do amado, ainda que veja com clareza todos os seus defeitos e nem sequer tente dissimulá-los. O amor não é cego, mas vidente. “O que nos faz cegos é o orgulho que às vezes se une ao amor. A mãe que considera o filho comoOseu ampliado não crê que oseu filho possa ter defeitos.” queego o amor pretende é que amado seja fiel a seu autêntico ser, que o desdobre em seus melhores valores e qualidades. 195
2. O amor de amizade
Para esclarecer a essência do amor amistoso em sentido estrito, Santo Tomás se vale da doutrina aristotélica e distingue três espécies de amizade, segundo os três tipos de bens que podem ser queridos: o honesto, o útil e o deleitável. O bem honesto é considerado perfeito, completo e absoluto; o útil e o deleitável, em contrapartida, são considerados meios ou termos secundários. Na amizade útil e deleitável, quer-se um bem para o amigo, e por este aspecto se salva aqui o próprio da amizade. Mas, como em definitivo esse bem se refere ao deleite e à utilidade própria, a amizade útil e deleitável, enquanto está ordenada ao gozo próprio, é um amor imperfeito ou itinerante, não uma verdadeira amizade, que só se realiza na amizade honesta, aquela que se dirige ao outro como a uma pessoa racional e só por ser tal. Assim, se o amor espiritual recai preferencialmente sobre o objeto material do amor sensível — que é o bem deleitável e útil —, chama-se amor imperfeito, sempre itinerante; mas, quando se eleva ao bem honesto e próprio da pessoa enquanto tal, chama-se amor perfeito (ou de amizade perfeita). O amor perfeito deseja o bem para o amigo pelo amigo mesmo: trata-se do surgimento conjugado de duas 196
195 - Dietrich von Hildebrand, La esencia del amor, 108. 196 - S. Th., I-II, 26, 4, ad 2. O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino
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liberdades pessoais que se afirmam a si mesmas afirmando-se reciprocamente. De fato, Santo Tomás indica que não se pode ter amizade senão com os seres racionais, os únicos em que pode haver correspondência ao amor e comunicação nas obras de vida, e os únicos também que os acasos da fortuna podem fazer ditosos ou desventurados, razão por que, a rigor, em só com respeito a eles a ser amizade. Os seres irracionais, contrapartida, nãocabe podem elevados ao amor estrito; não é possível amar as coisas irracionais com amor perfeito, mas apenas com amor imperfeito, porquanto elas são subordinadas aos seres racionais e também à própria pessoa. Enquanto prolongada, fixa e estável, a amizade não é um simples ato pontual, mas uma atitude ou hábito que tem por objeto as ações para com os demais, ainda que por uma perspectiva diferente da justiça, já que esta as vê pelo aspecto de débito legal, e a amizade sob o signo de uma gratuidade. Enquanto hábito humano, não se trata de uma afecção passiva, mas de uma dimensão operativa da alma, que exige escolha e, ademais, firmeza e continuidade. O amigo quer que o outro seja ou viva e, além disso, alcance seu bem (ordem do ser); e, ademais, o amigo faz o que é bom para o outro, criando com ele um âmbito de diálogo e compreensão (ordem do operar). Não se ama intimamente outra pessoa por nada que se lhe deva, mas porque é pessoa: um novum ontológico irredutível a tudo o mais e, portanto, sempre aberto: o amigo descobre o outro para além do que este conta de si mesmo, a partir de sua vocação. A primeira nota da amizade é que se trata de um amor que entranha benevolência, isto é, amamos alguém de tal maneira, que queremos para ele o bem. Se, pois, para as coisas amadas não queremos o bem, mas apetecemos seu bem em ordem a nós, assim como dizemos que gostamos de chocolate, do cão, etc., já não há amor perfeito, mas certo 197
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197 - S. Th., I, 20, 2 ad 3. 198 - S. Th., II-II, 23, 3. 124
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amor de concupiscência. E não cabe, em sentido estrito, falar de amizade com os animais ou com os doces. Mas, para que exista amizade, não basta a benevolência. Precisa-se de uma segunda nota: um ato recíproco de amor (mutua amatio), pois o amigo é amigo para o amigo. Esta benevolência correspondida se funda em alguma comunicação 199
de um comseo outro. Assim compreende que as criaturas irracionais não sejam objeto de amor perfeito, porquanto neste comparecem tanto o amor do amigo (fator pessoal) com quem se tem amizade quanto os bens desejados para o amigo (fator eudemonológico). Pelo fator pessoal, não se pode amar nenhuma criatura irracional. Em primeiro lugar, porque a amizade é entabulada com aquele para quem queremos o bem, sabendo que fará um uso raciona l dele; e não podemos propriamente querer o bem para a criatura irracional, pois não é peculiar desta possuí-lo, sendo-o somente da criatura racional, enquanto esta é senhora de usar o bem que tem pelo livre-arbítrio. Só por uma vaga analogia ou metaforicamente podemos dizer que a tais seres irracionais sucede algo bom ou mau. Em segundo lugar, porque toda amizade se funda numa comunicação de vida: o próprio da amizade é conviver; e as criaturas irracionais não podem ter comunicação na vida humana, que é conforme a razão. Portanto, não se pode ter nenhuma amizade com ela senão metaforicamente. As criaturas irracionais, não obstante, podem ser amadas pela amizade com que queremos o bem para os demais, porquanto desejamos que se conservem para o bem e utilidade dos homens. 200
199 - S. Th., II-II, 23, 1. “Ainda que para a simples benevolência, pela qual desejamos o bem para uma pessoa por simples complacência para com ela, baste a bondade da pessoa que nos é grata por si mesma, para a amizade, porém, a qual é benevolência mútua e não simples, requer-se que se veja a pessoa não precisamente como boa e complacente em si mesma, mas também como boa e complacente na comunicação” (João de Santo Tomás, Cursus Theologicus, In II-II, “De caritate”, disp. 14, art. 1, n. 3 [Lugduni 1663]). 200 - S. Th., II-II, 25, 3. O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino
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3. O amor esponsalício
O amor esponsalício — algumas vezes súbita e fervente flechada, outras lento e pacífico enamoramento — acontece entre seres sexuados. O sexo, além de garantir a função biológica generativa, impregna e qualifica muitas das atividades do ser humano, orgânicas e inorgânicas, sejam estassurge sensíveis, sejam intelectuais ou volitivas. O enamoramento às vezes de uma sentida indigência ou precariedade corporal e psicológica que busca plenificar-se com outra pessoa sexuada em união espiritual e física, de modo que a biografia de um indivíduo fique enlaçada também com a presença física e espiritual de outro. Vários traços definem este amor. Coincide com todo amor íntimo em ser pessoal e livre. Tal amor é, em primeiro lugar, pessoal. Não se dirige a uma coisa, a algumas qualidades ou propriedades de um sujeito, mas à intimidade, expressão do ser mesmo desse sujeito. Nisso se distingue da simples flechada, que permanece presa às qualidades (rosto, figura, graça) do outro. No amor esponsalício, amamos também as qualidades do outro, mas passando por sua pessoa. Desejamos que ele tenha qualidades, no caso de não possuí-las, e na medida em que as puder ter. Amar é, assim, afirmar o valor absoluto de um sujeito. Valor que, entre outros, Kant indicou ao dizer que “a pessoa humana jamais deve ser tratada, nem em ti nem em outro, como simples meio, mas como fim em si”. Trato ou afirmação pessoal que há de cumprir-se também no amor esponsalício. Enquanto valor absoluto, o outro é, para o amante, insubstituível: ninguém pode suplantá-lo. Afirmá-lo como valor absoluto significa considerálo bom, pois é bom que exista. Para o amante, o mundo seria inimaginável, não seria bom, sem a existência do outro. No caso do amor erótico, a união buscada não deve deixar separados aqueles aspectos que em cada um dos amantes fazem parte 201
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201 - G. Marcel, 1957: “Nada mais falso que identificar o tu com um conteúdo limitado, circunscrito, esgotável” (161). 202 - J. Pieper, 59. Sobre o caráter existencial do amor, ver: D. Wilhelmsen, 108. 126
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necessariamente de seu perfil pessoal psíquico e biológico; caso contrário, objetivamente não haveria união, mas contato, por mais profunda que fosse a satisfação subjetiva que tal contato produzisse. Se, por exemplo, a sexualidade é exercida no puro isolamento genital, forçosamente há de bloquear o amor, pois coisificará a pessoa. Dito de outra maneira: as pessoas exercem então umaexige atividade pela qual se que rebaixam aode estado A união totalidade do ser se une, corpodeecoisas. alma. Este amor requer duas coisas: primeira, que as qualidades do amado (v. g., beleza, graça e vida exuberante) não sejam reduzidas a mero objeto deleitável ou de agrado para o amante, mas sejam reconhecidas como valiosas em si mesmas; segunda, que tais qualidades objetivas estejam reunidas em torno de um núcleo pessoal, justamente o da intimidade, de modo que o amor se dirija a esse núcleo interior, mas objetivo, através também das qualidades objetivas do outro. Ambos os requisitos são marginalizados por um Don Juan: “O tipo dom-juanesco não entende como valor a beleza da graça, do encanto feminino. Vê-a tão-somente como algo que o atrai e de que gosta, como algo que lhe apraz subjetivamente. Por isso, sua resposta é um querer-possuir, um querer-gozar, sem entrega alguma de si. Não olha para o outro como para algo valioso em si mesmo, não compreende que a beleza, a graça e o encanto feminino são valores. Ademais, este tipo isola tais qualidades. Estas não são para ele expressões de uma personalidade integral; ele não vê a mulher como nobre, boa, mas como algo excitante por sua beleza física e por sua graça: a pessoa não desempenha, em sua totalidade, papel algum para ele”. O amor esponsalício é, em segundo lugar, livre. Só ama quem é dono de si mesmo, quem não está, como sujeito, dominado por um objeto, nem sequer pelo âmbito objetivo de seus próprios instintos. Um sujeito só pode ser afirmado por outro sujeito que se autopossua. Autopossuir-se é condição de dar: só quem se possui livremente ama, porque é plenamente sujeito. O amor fracassa quando não é livre, quando, por exemplo, se 203
203 - Dietrich von Hildebrand, La esencia del amor, 84. O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino
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deixa vencer pelo sexo, desarraigando a sexualidade humana de sua referência à pessoa. Neste caso, o outro é visto como objeto de prazer, é coisificado, despersonalizado. É então que o amor se torna intolerável, vazio e frustrante. Que o amor seja livre significa, ademais, que seja objetivo, que responda tanto às estruturas subjetivas do outro como aos fins objetivos 204
que suas reclamam.seNa relaçãodeesponsalícia, basta quetendências dois seres humanos ponham acordo, semnão se referirem a um bem comum; os contraentes não se comportam como contratantes, como comprador e vendedor de um produto. As duas pessoas se subordinam a um bem comum, a uma idéia que se pretende realizar. Os contraentes não desejam compensar o bem de cada um numa tensão: eu te dou para que tu me dês, eu te dou algo para que tu me dês mais; tensão entre rivais, entre dois negócios, que seria equilibrada por meio de um laço jurídico entre os contratantes. No amor esponsalício não há tensão de rivalidade: não é o caso de um jogar na baixa e o outro na alta, não há dois rivais nem dois seres que façam cada um seu negócio; porque os dois fazem juntos uma mesma coisa: há um consórcio de vida, uma comunidade de destino, onde o primário não é o acordo de vontades, mas o fim comum pelo qual que se unem livremente. Este é pleno se é recíproco. “Por mais importante que possam ser para a união muitas outras coisas — a presença da pessoa amada, a possibilidade de falar com ela de viva voz, a participação em seu pensamento e em sua vida —, nada disso conduz à unidade ansiada, à verdadeira união, se a pessoa amada não corresponde ao nosso amor. A identificação da vida exterior no matrimônio, as carícias, a mesma união corporal, nada disso constitui a verdadeira união pessoal íntima quando falta o olhar entrelaçado do amor.” Este amor é, em terceiro lugar, sexuado, não meramente genital. A correspondência no amor é mútua doação biográfica, na qual o elemento sexual tonaliza a intimidade de cada 205
204 - V. Frankl, 107. 205 - Dietrich von Hildebrand, La esencia del amor, 172. 128
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um. O tom erótico é integrado no amor abarcador. 1.º Entre duas pessoas de sexo oposto há esta característica especial: sua constituição sexuada tem uma finalidade objetiva que o amante não pode eliminar angelicamente nem subverter bestialmente. Este respeito à própria natureza é essencial no amor esponsalício. Porque o amor humano dirigido à pessoa do outromas sexoafeta não oé puramente espiritual nem puramente biológico, núcleo íntimo da personalidade humana enquanto tal. 2.º Na união amorosa entre homem e mulher “vê-se, da forma mais autêntica e legítima de quantas possam dar-se no mundo, que o ser humano não quer ser amado desinteressadamente. É natural que não queira ver-se desejado como portador de determinadas faculdades ou aptidões, mas ser afirmado e amado como pessoa: como o que é. Mas também se trata nele de que o outro tenha seu proveito, de que se sirva dele; e ademais ele deseja muito seriamente aparecer como desejável e apetecível, e em nenhum caso como o objeto de um amor ‘imotivado’, ‘indiferenciado’, ou como que dado de presente, que são as características, segundo Nygren, do amor de Ágape”. A doação física total significa então signo e fruto de uma doação em que está presente a pessoa toda, inclusive em sua dimensão temporal. Este amor é expressão da unidade de corpo e espírito: é entrega a um ser, a um sujeito, mas a um sujeito sexuado. 3.º Por amor, dois realizam uma mesma obra, uma idéia, um projeto de vida. Dizia Saint-Exupéry que tal amor não consiste tanto em se olharem um ao outro quanto em olharem os dois juntos em uma direção. Esse projeto de vida não é arbitrário, senão que se funda na constituição humana de que brota o amor. Nós não nos fazemos sexualmente complementares; e, por já sermos sexualmente complementares, podemos livremente projetar uma comunidade de ajuda mútua; este é um elemento integrante desse projeto de vida. Ademais, nós não nos fizemos fisicamente aptos para procriar; 206
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206 - J. Pieper, 168. 207 - B. Welte, Auf der Spur des Ewigen, 93-94; e H. E. Henstenberg, Philosophische Anthropologie, 76-77. O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino
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por isso assumimos o projeto, desenhado pela natureza, de fecundidade nos filhos. 4.º O matrimônio aparece então como uma idéia organizada por um amor esponsalício, ou seja, livre e fundado na constituição humana. Esse amor é, em quarto lugar, total. Não é um acesso quantitativo a outro, não vai ao outro pouco a pouco, escalando 208
cada umaa de É um acesso qualitativo e ontológico umsuas tu, épropriedades. afirmação absoluta do sujeito: é uma entrada imediata no sujeito; ou se dá ou não se dá. Isto exige que o valor absoluto do outro seja respondido com o valor absoluto do próprio ser pessoal. Absoluto, quer dizer, não repartido, exclusivo. Assim o exige o ser pessoal do amor: um com uma. O amor esponsalício ou é um ou não é amor. Repartir esse amor com várias pessoas equivale a tratar o sujeito como a um objeto, é coisificá-lo, quantificá-lo, dando só uma parte ali onde se demanda um todo. O núcleo desta idéia é recolhido por Santo Tomás nestas palavras: “Amizade consiste em certa igualdade (amicitia in quadam aequalitate consistit). Se fosse permitido ao homem ter muitas mulheres, não caberia amizade liberal entre mulher e homem, mas servil (non esset liberalis amicitia uxoris ad virum, sed quasi servilis ). Não se tem amizade intensa com muitos. De modo que, se a mulher tem um só homem e este tem muitas mulheres, não é igual a amizade das duas partes (non erit aqualis amicitia ex utraque parte). Nem haveria amizade liberal, mas de certa maneira servil (quodammodo servilis)”. Esse amor é, em quinto lugar, incondicional. Precisamente porque não se dirige a um objeto, a uma coisa, mas a um sujeito, não pode estar submetido a condições coisificantes, como, por exemplo, os limites temporais. O sujeito é eterno por seu espírito. Sua entrega exige duração e, do ponto de vista temporal, indissolubilidade. A união é marcada, também em seu aspecto temporal, pela qualidade ontológica dos seres que se 209
210
208 - E. De Lestapis, 81-87. 209 - M. Nédoncelle, 15-21, 41-48. 210 - C. G., III, 124. 130
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unem. No caso do amor erótico, há no homem uma qualidade espiritual (supramaterial e supratemporal) que exige a perenidade da entrega. Uma aventura passageira, tomada como objetivo de vida, desintegra a estrutura psicológica da pessoa. Daí que o divórcio seja a subordinação da pessoa à coisa, às qualidades ou propriedades que se têm, mas não ao ser que se é. Por uns isso,emuitas vezesNesta a “questão dosó divórcio” maltema: enfocada por por outros. questão se debatefoium se o homem é pessoa espiritual ou se é um simples primata evoluído. Se é um sujeito espiritual ou se é um objeto refinado. Se é capaz de amor e entrega incondicional ou se é condicionado completamente por seus instintos. Brevemente, se é homem ou não. Refutar o divórcio apenas por razões utilitárias — com o argumento de que o divórcio é um transtorno para a sociedade ou de que cria dificuldades para a educação dos filhos — é cair numa armadilha: porque assim se perde o que é substantivo na questão. Tal amor é, em sexto lugar, leal. Precisamente porque o amor não brota de uma coisa quantitativa ou de um objeto ferreamente construído, não perdura por simples inércia: e o tempo pode ser seu aliado ou seu inimigo. Há estados espontâneos que o podem fazer perigar, do ponto de vista subjetivo, e condições externas que o podem asfixiar, do ponto de vista objetivo e social. A vontade deve conduzi-lo, ratificá-lo, não só num contrato público, mas em sinais tangíveis de enamoramento permanente. A fidelidade é a arte de enamorar o outro ao longo do tempo. A fidelidade não é apenas de ordem 211
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211 - A indissolubilidade deve-se a razões supra-utilitárias, a motivos ontológicos, ou seja, deve-se à natureza da comunhão de amor. Somente por este enfoque se compreende que as dificuldades que ameaçam a convivência conjugal, por mais fortes que só podem ser motivos de separação temporal, nunca de divórcio, ousejam, seja, de rompimento do vínculo. Nunca podem ser causa de destruição do homem como pessoa. 212 - Desse modo, subjetivamente o amor se consolida no vínculo do contrato, e objetivamente a sociedade responde a esse amor com uma vontade de proteção, oferecendo as condições para que os esposos possam reiterar o amor e fomentá-lo. Uma legislação social que não inclua a proteção e defesa do contrato matrimonial indissolúvel não terá alcançado o nível do autenticamente pessoal. O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino
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sexual: a que guarda o corpo e o coração para o cônjuge. Pois não basta não entregar o coração a uma terceira pessoa. Em verdade, há dos tipos de fidelidade: a estática ou mumificada, e a dinâmica e imaginativa. A primeira é ancilosada, esclerosada, atrofiada, raquítica. A segunda é viva, diligente e enérgica. A fidelidade imaginativa é uma arteque há de atender, por exemplo, à necessidade de ternura sentida esposa. Carece de arte e de talento a ternura que brota apenaspela em manifestaçõescircunstanciais (no momento da união),estereotipadas(frases feitas),distraídas (deixando passar ocasiões propícias) eobrigatórias(como uma concessão ao dever). Aesposa sentir-se-á ignorada. O homem e a mulher que deixam dormir seu coração já estão muito perto da infidelidade. Em contrapartida, transborda de gênio e finura a ternura que brota para o companheiro de maneiraespontânea (sem estereótipos da palavra, do gesto e do olhar), gratuita (como uma dádiva, nunca como um prêmio),imprevista (com surpresa, quando menos se espera). Se a fidelidade é a rte de enamorar, a união esponsalícia não acaba com o enamoramento: ela o institui. Porque ser fiel ao amado significa, em primeiro lugar, não traí-lo; mas isto éo mínimo: significa, emsegundo lugar, cumular o coração; e, em terceiro lugar, amá-lo cada vez mais. Para isso é preciso não só velar pelo amor, mas renovar o amor: fazer renascer a cada instante o que nasceu um dia, fazer quefrutifique no tempo a semente de eternidade. Ser fiel ao amor notempo é justamente a arte de enamorar. Enfim, este amor é, em sétimo lugar, criador . Criador porque colabora no sentido esponsalício de entrega, cuja finalidade objetiva está no filho. Criador também porque colabora no conhecimento paulatino do outro e em sua realização progressiva, abrindo um âmbito adequado onde o amado possa fazer progredir suas melhores virtualidades. O amor mesmo não varia; ou se dá ou não se dá: só varia a descoberta crescente da intimidade do outro. O amor esponsalício se mostra, assim, como amor perfeito que, com uma riqueza de valores, repleta a intimidade de exigências de totalidade, unicidade, fidelidade e criatividade. Só do ângulo desta estrutura ideal personalista do 132
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amor é possível compreender o grau de “satisfação” ontológica que cada matrimônio pode ter. 213
4. O amor paterno-filial
intenção própria do antemão amor paterno do si, filial atrásAde si outraunitiva unidade, dada de e que,e de nãotem se constitui pelo amor recíproco, mas pelo fato de os pais terem gerado o filho. Já durante a gravidez, aguardam a chegada do filho, independentemente da resposta que dêem a seu valor como pessoa individual. O fato da simples paternidade biológica não prova que o pai tenha unidade com o filho porque o ama e porque este amor é uma resposta a seu valor (até há pais que não querem ter filhos e aguardam contrariados o nascimento). O problema do fundamento do amor paterno e do filial é mais complexo. Neste aspecto, distingue-se das outras categorias de amor íntimo, como o de amizade ou o esponsalício. Os pais são objetivamente os pais do filho — seja qual for a atitude e a consciência deste —, e o filho é objetivamente o filho dos pais, à margem da resposta que estes dêem a seu valor e independentemente do amor que lhe professem. A intenção unitiva dos pais supõe, assim, uma prévia coordenação objetiva ou natural, paralela ao amor, mas não fundada nele, 213 - Por esta óptica, aclara-se a distinção que se pode fazer entre união esponsalícia e união conjugal. Esta última resulta do consenso no matr imônio e é chamada em si mesma a ser uma reali zação da união esponsalícia; mas também pode seguir existindo limitadamente quando falta a união esponsalícia; então não se fundamenta na mútua resposta do amor, na intenção unitiva recíproca, mas em algum ponto de vista prático, derivado de um ato social. Quando o consenso, como simples ato social, não realiza a união pretendida no amor esponsalício — como no chamado matrimônio de —,ainda nem por o matrimônio sua validade nem suaconveniência eficácia formal, que isso fiqueperde desprovido de interioridade. Também essa mera união conjugal implica, por exemplo na mulher, obrigações para com o compaheiro, responsabilidade por seu bem-estar, e respeito a seus direitos: compaheiro com que tem uma vida em comum e com que mantém obrigacões; e reciprocamente. Pode-se compreender, assim, por que mesmo o homem que não ama sua mulher com o requerido para a plena união esponsal ícia se sinta ofendido quando outro se conduz com ela sem a devida consideração. O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino
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ainda que se una organicamente a ele e tenda a uma realização através do amor. O que, sim, se pode dizer é que o amor íntimo dos pais pelo filho é vivido como um prolongamento do mesmo amor que os pais se professam entre si. Mas esse prolongamento se alimenta também de outros motivos, como o respeito à coordenação objetiva dos processos biológicos naturais, confiança essencial na própria natureza, a homenagem ao avalor da humanidade nua do filho. Como quer que seja, o amor dos esposos arde como uma só chama dentro do lar. Ele luz como um fogo com dois pavios. É uma chama que ilumina e se estende com exigência de fecundidade, destinada a dar vida pessoal, a do filho. Desde a sua geração, o filho tem um direito inalienável a esse lar que vive com uma só e potenciada luz. O lar, que não é toca nem cova, afigura-se para o filho como um âmbito de amor pessoal que lhe oferece segurança e equilíbrio individual. Se se rompe a unidade do amor, a unidade desse fogo, rompese também a unidade do lar, desse espaço em que o filho tem o direito de nascer, crescer e educar-se. O amor ao filho e o amor ao cônjuge formam, assim, uma misteriosa unidade. Por isso, quem diz amar o filho enquanto é infiel ao cônjuge tem a dupla condição de falaz e de espoliador. Falaz porque representa diante dos filhos uma comédia de amor. Espoliador porque subtrai a paz a seu lar, às crianças, que mais cedo ou mais tarde assistirão impotentes ao drama da infidelidade. O amor que aparece normalmente nos pais assim que esperam ter um filho é a resposta a um triplo fato: a estarem constituídos para participar na procriação de um novo ser; a ele ter-lhes sido confiado de modo tão misterioso; e a ser ele o fruto do amor recíproco. E, uma vez acontecido o nascimento, o amor antecipado se converte em resposta ao valor da beleza integral do recém-nascido. “A preciosidade de um ser humano, ainda em branco e ‘nu’, o valor de sua vida é ‘dirigido’, por assim dizer, de modo especial aos pais. Quando se percebe que o filho vê a luz do mundo por meio deles, que ele lhes foi confiado de modo misterioso, que lhe abriu um espaço no coração, a preciosidade da pessoa humana resplandece de modo espe134
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IV - O Amor Íntimo
cial. Daí que este amor, já antes de converter-se em resposta de valor à peculiar beleza da individualidade do filho, desde o princípio seja uma resposta ao valor.” O sentido objetivo da vinculação natural é diferente também do sentido da união fundada no amor, o que já se pode perceber no fato de que continua mesmo quando não se dê 214
nenhuma espécie amor. Pode especialmente quan-e do os filhos já sãodemaiores, que suceder, não exista amor entre pais filhos. Contudo, continua a ser uma vivência de união que é expressão da vinculação objetiva. E, ainda que o sentido da vinculação paterno-filial fundada na coordenação natural objetiva não seja o fundamento do amor dos pais, e ainda que tampouco o verdadeiro amor íntimo filial seja motivado pelo sentido objetivo dessa vinculação natural, sucede que no amor paterno-filial o sentido objetivo da união natural e o sentido objetivo da união fundamentada no amor estão srcinariamente entrelaçados, correm parelhos desde o princípio, à diferença do que sucede com o sentido da união real dos esposos, nos quais o prévio sentido esponsalício da união fundada no amor é o que conduz, no caso do matrimônio, ao sentido da vinculação conjugal; ou seja, o sentido conjugal da vinculação do matrimônio é uma realização do sentido esponsalício da união do amor.
214 - Dietrich von Hildebrand, La esencia del amor, 244. O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino
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Capítulo V
Doação E Posse
V - Doação e Posse
1. Dialética do amor humano perfeito
a) A posse na doação 1. O amor perfeito é, primordialmente, um amor de doação; mas secundariamente pode incluir um amor de posse. “Posse”
e “doação” não expressamsensível aqui uma dos atos respectivos da tendência ou caracterização apetite e da tendência espiritual ou vontade (assunto que se tratou no primeiro capítulo), mas uma caracterização dos atos que podem surgir no seio mesmo da vontade: atos de amor imperfeito e de amor perfeito, de amor concupiscentiae e de amor amicitiae. Igualmente, ao falarmos aqui de “posse”, não nos estamos referindo à conexão que só se pode dar objetivamente entre uma pessoa e um ser não pessoal: neste caso, dizemos que a pessoa é proprietária de algo, e que só uma realidade impessoal pode ser possuída como propriedade: a união que produz tal posse encerra uma posição preeminente do possuidor com respeito ao possuído. Assim, em sentido estrito, a união que o amor pretende essencialmente não pode ser tal “posse” do amado. Nem sequer os filhos pertencem aos pais nesse sentido. Ao amar, entrego-me ao outro, e nesse mesmo ato me oponho terminantemente à propriedade; porque tampouco me entrego 215
215 - A idéia de posse tem, na verdade, um campo de aplicação muito amplo. Enquanto indica de modo geral uma vinc ulação ou pertença, é preciso distingu ir cuidadosamente entre vinculação física, vincu lação psicológica, vinculação moral e vinculação jurídica. Pela primeira indico, por exemplo, que me pertence não só min ha alma ou meu corpo (partes essenciais), minha inteligência e mi nha vontade (faculdades), mas também m inhas idéias e meus quereres (atos). Trata-se, neste caso, de uma relação necessária que estes elementos guardam comigo mesmo, antes até do exercício da liberdade de arbítrio. Pela segunda — que se refere à relação que um objeto ou uma pessoa têm, por exemplo, com a vontade ou com o eu — pode dizer-se que tal objeto a serafinidade ou um prolongamento do eu ou algo um bemo objetivo com vem especial comigo; e assim digo, v. g. que queépossuo amado; e aqui já se exerce a liberdade, como é o caso do amor. Pela terceira — que é uma coordenação hierarquizada entre seres livres — digo que tenho um chefe ou que tenho um subordinado. Aqui aparece a liberdade também com seu campo de ação. Pela quarta, que é um enlace coativo, expresso que possuo coisas impessoais, como casa ou cavalo, e que posso exigi-las diante da lei ou das autoridades: trata-se da relação de propriedade, em sentido jurídico e econômico, com coisas e não com pessoas. O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino
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ao outro para que ele seja proprietário de meu ser. A doação que faço de mim mesmo busca uma relação inteiramente diferente da de ser possuído como algo impessoal. E, no entanto, continuo a expressar com um “sou teu” minha relação com a outra pessoa. Há uma forma, mais profunda que a impessoal, de possuir e de ser possuído, na qual a intenção unitiva flui organicamente da essência amor, da especial da pessoa amada, como entregadoque supera a posse afirmação de uma propriedade e se insere no ponto mais elevado de interesse pelo amado. Por seu valor e sua especial afinidade comigo, o amado transforma-se em bem objetivo para mim e ingressa em minha vida individual. Neste sentido, eu o possuo. Mas o amado não adquire relevância porque eu o possuo, senão que eu o possuo porque, devido a seu valor, eu o amo ou respondo a seu valor. A relação de posse que se estabelece no amor não tem de si determinantes jurídicos nem econômicos, nem psicológicos espontâneos, mas livres. E exibe dois aspectos. Primeiro, mediante o amor íntimo (amistoso ou esponsalício) possuo a pessoa amada, por ter-se convertido ela, justamente por sua qualidade valiosa, num bem real para mim, a cujo valor respondo; e sucede então que, para além de minha resposta ao valor, se estabelece uma relação pessoal, instalando-se a pessoa amada em minha alma: mas eu só a possuo, ela só se converte em “minha” na medida em que eu me entrego dizendo-lhe “sou teu”. E esta posse, que procede da entrega ao outro, nada tem que ver com a posse vivida como prolongamento egoísta do próprio eu, ou como fruto de um ato social, ou da condição de ser parte de algo. Segundo, surge uma nova possibilidade de união entre pessoas assim que se desdobra o amor recíproco. Por esta reciprocidade, posso dizer que possuo a outra pessoa por ter-lhe dito “sou teu”; e, por sua vez, a outra pessoa pode dizer que me possui por ter-me expressado “sou tua”. Só quando a doação se insere no interior da posse é que surge um sentido mútuo de posse inteiramente novo. Porque: a) só existe entre pessoas; b) pode surgir exclusivamente da reciprocidade da resposta amorosa; c) o gozo que produz transcende o âmbito do prolongamento do próprio eu e procede do amor mesmo: a 140
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união é profundamente gozosa porque amo outra pessoa, e só por isso. Agora se trata de dar forma categorial-ontológica a esta relação de posse implicada na doação amorosa. Nem todo amor de posse é imperfeito. No caso do ser humano, não se pode prescindir da necessária e legítima “recompensa“ o bemamorosa. pessoal do outroTomás significa paraque o amante, para sua que vontade Santo afirma “ca da amizade inclui concupiscência ou desejo e acrescenta algo a ela”. De modo que no homem não encontramos um amor quiescente de doação “pura”. E isso é lógico. P orque, estando o espírito humano a informar substancialmente um corpo, não é possível que as tendências de um ser corpóreo-espiritual estejam desagregadas em compartimentos estanques. O que o processo amoroso perfeito exige é que não se chegue à coisificação do outro. A questão está em resolver de modo personalista a implicação da posse na doação, do itinerante no quiescente. O amor de doação puramente gratuita é o principal ato de amor que o homem pode fazer, amando a pessoa por si mesma e acima das coisas que a rodeiam. E, ainda que busque “ter” o outro, ele não põe nisso uma intenção de uso: quer tê-lo presente e conviver com ele, para amá-lo mais e não só para receber prazer, compreensão ou estímulo. Se o motivo principal do amor de doação vem da pessoa amada, o motivo secundário desse mesmo amor procede do sujeito amante. Como em face da pessoa amada o motivo formal e especificativo de meu amor não pode ser mais que um, a saber, o próprio ser pessoal do outro, é claro que o motivo secundário — a tração do amor itinerante ou de posse — há de estar informado ou atuado pelo motivo primário e formal: assim o amor itinerante se incorpora ao quiescente num mesmo amor, e lhe pertence de maneira própria. O amor perfeito não ama à outra pessoa porque dela derive uma felicidade psicológica para o amante; se assim fosse, a pessoa do amado ficaria subordinada 216
216 - III Sent., dist. 27, q. 2, art. 1 ad 1, n. 109;S. Th., II-I, 26, 3 ad 3. O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino
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à do amante: este seria o fim, aquela o meio. Mas, em outro sentido, poder-se-ia dizer perfeitamente: “porque te amo sou feliz”. Aqui, a conjunção “porque” se refere à causa dispositiva que é a aspiração mesma do amante, a tensão de sua vontade; e só neste sentido cabe dizer que o amor perfeito ama à outra pessoa porque esta confere certa felicidade ao amante é boa paraum o amante. Deve-se, pois, edistinguir duplo fim no amor humano perfeito: um referido ao amado; o outro referido ao amante. Em virtude desse duplo fim, a índole formal do objeto de tal amor pode ser considerada de dois modos: um, pelo lado da pessoa que é amada principalmente por tal amor e à qual tende principalmente seu ato; e, desse modo, o caráter formal do objeto do amor é o bem da pessoa amada, ou o bem de sua felicidade ou, se se quiser, sua plenitude existencial pe ssoal; outro, pelo lado da potência volitiva do amante que ama essa pessoa; e, desse modo, o caráter formal do objeto do amor perfeito é o outro como princípio da felicidade do amante, ou o outro na medida em que produz felicidade. “Quando te amo perfeitamente, sou feliz, e isso eu não posso evitar.“ Tal seria a l inguagem do verdadeiro amor h umano. O objeto formal do amor, do ângulo do ser amado, é o bem mesmo deste, sua índole pessoal plena. O aspecto formal do amor do ângulo do amante é que o outro figura como princípio de fe licidade ou comunica felicidade; não no sentido de que o outro seja amado por tal motivo (só porque produz felicidade), como se isso fosse o verdadeiro fim, senão que esse m otivo está antes na faculdade do amante mesmo, causa material ou dispositiva. A índole perfeita de amabilidade do outro, por parte do amado, age no gênero da causa formal ou final, e não é uma comparação do amado com o amante: é a própria perfeição, bondade e plenitude pessoal do amado. Mas a amabilidade do amado, do ângulo do aman te, age no gênero da causa material, na disposição do amante pa ra amar o outro, e inclui a comparação ou relação com o amante: “porque nenhum amante ama senão o que é bom e conveniente 142
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para ele e o aperfeiçoa; e é claro que tudo isso i mplica uma relação comparativa”. Isso explica que todo amor imperfeito e coisificante seja itinerante; ainda que nem todo amor itinerante e possessivo seja coisificante. Amar as coisas da pessoa do outro, seus bens temporais — psíquicos ou corporais —, por amor dessa mesma 217
pessoa de nãofelicidade é um atododeamante, coisificação. E se, as ânsias integra umademais, perfeito satisfaz amor humano. Este amor itinerante, fundado na dignidade da pessoa, não busca o interesse próprio, mas o bem do outro. É errôneo considerar a ausência de intenção unitiva no amor como a fonte de elevação moral e pessoal. “No amor esponsalício, fazer algo exclusivamente ‘pelo outro’ e excluir minha própria pessoa não seria seu cume. Ao contrário, o marido que dissesse à mulher ‘quero casar-me contigo por tua felicidade, para que sejas feliz, minha própria felicidade não influi nem minimamente na decisão’ não a amaria, evidentemente, com amor esponsalício. Com essa atitude, a esposa ficaria privada da singular dádiva do amor, o mais gozoso para o amado. [...] Esta dádiva é, precisamente, a intenção unitiva, o fato de eu não desejar o matrimônio só pelo amado e sua felicidade, mas também por mim mesmo, porque nessa união descubro a fonte maior de minha felicidade na terra. A intenção unitiva e a felicidade que emana dela fazem parte do sentido e do tema do amor esponsalício.” O amor coisificante se curva sobre si mesmo, busca o outro e suas coisas pelo interesse próprio, e só por isso. O amor que coisifica é puramente itinerante: movido de maneira egocêntrica, unicamente pelos bens que se podem receber, não cessa de reclamar a posse. De modo que não é coisificante o amor que busca simultaneamente o interesse próprio e a afirmação da pessoa do outro, mas com uma ordem de prioridade: antes a pessoa do outro e, 218
217 - Capreolo, III Sent., dist. 27-30, q. única, art. 3, ad arg. Scoti contra secundam conclusionem, t. V, pp. 364b-366a. 218 - D. von Hildebrand, La esencia del amor, 182. O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino
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em segundo lugar, o interesse próprio, se é que o proveito próprio aparece sem perturbar ou perverter a relação pessoal srcinal; não põe no proveito próprio o fim do amado nem do amor. Buscar os bens espirituais conaturais ao amor íntimo, não certamente como o mais amado, mas como o mais desejado, não é coisificante, desde que não sejam desejados principalmente e separadamente da pessoa do outro, mas nessa pessoa e pore essa pessoa principalmente, a fim de gozar deles para elevar potenciar o próprio âmbito espiritual, potenciação que por sua vez fará mais fácil e profunda essa relação com o outro. Não estamos diante de dois fins na realidade, mas diante de um mesmo fim considerado em si e aplicado a outro, como um fim sob o fim e com o fim. A pessoa mesma é o fim ultimamente buscado; mas a fruição, o gozo de sua presença, é como a consecução desse fim último. A pessoa do outro e a fruição que dele se tem não são fins diferentes. Outro exemplo. Quando o amor de amizade perfeito é motivado formalmente pela afirmação do outro em seu ser pessoal, o amor de posse itinerante com respeito a esse mesmo bem não só não cessa, mas se aperfeiçoa e é informado pelo amor de doação quiescente, sendo, com respeito a ele, como que uma redundância e como que certa propriedade sua. Nisso consiste o verdadeiro amor de si mesmo, pelo qual alguém quer os bens verdadeiros, os espirituais e eternos, para conseguir um âmbito mais profundo e elevado de relação amorosa; tal amor não se opõe ao amor quiescente e perfeito, senão que é antes exigido por ele e a ele corresponde. “Quem quer para sua alma o que é bom absolutamente, absolutamente a ama [...]. Pois bem, os bens absolutos da alma são aqueles pelos quais a alma se torna boa.” Quem quer para sua alma o bem espiritual a ama absolutamente. “Os bons amam a si mesmos quanto ao homem interior, porque querem que seja conservado em sua integridade, e lhe desejam seus bens, que são os bens espirituais, e trabalham por consegui-los, e retornam gozosamente a seu próprio coração, porque ali encontram os bons pensamen219
219 - In Ioannem, cap. 12, 25, lect. 4. 144
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tos do presente, a memória dos bens passados e a esperança dos bens futuros, donde resulta o gozo; e, de modo semelhante, não toleram em si mesmos a dissensão da vontade, porque sua alma tende toda à unidade.” 2. Recordando os dois planos — o entitativo e o operativo — em que se pode falar da vontade, a saber, como potência e 220
como de ato,amar) convém sublinhar que só no nível do ato ou hábitoe (ação se aplica a denominação de amor imperfeito de amor perfeito, não no plano entitativo da faculdade mesma como potência, a qual não deixa de ser um apetite natural dirigido a seu ato e a seu objeto. Não se pode dizer que o apetite natural, não simulado nem artificioso, da vontade seja um amor imperfeito ou de posse. Porque a tendência natural de uma potência a seu ato último é um amor de benevolência ou de complacência, como todo amor de um ser por seu bem final; o amor imperfeito, a posse, só concerne aos bens que alguém ama visando ao próprio bem. Levando-se em consideração esta precisão, pode-se entender a interpretação que De Finance faz da doutrina do Aquinate sobre o amor imperfeito ou de posse como uma relação da potência ao ato; e sobre o amor de doação como uma relação do ato ao ato. Sem necessidade de identificar o amor de posse com o amor natural ou apetite natural da vontade — que guarda, enquanto faculdade ou potência natural, uma tensão ontológica a seu ato —, De Finance explica que a relação intencional do querer com o fim pode ser entendida de duas maneiras. Primeira : “O sujeito encontra na posse do fim sua perfeição, a satisfação de suas tendências, a atualização de suas virtualidades, etc. Considerado deste ponto de vista, o fim é o objeto [...] de um amor de concupiscência, digamos, num vocabulário ao mesmo tempo mais antigo e mais moderno, de eros. O amor de concupiscência (amor concupiscentiae) não é o desejo: é esta complacência no bem que se desenvolve em desejo quando o bem faz sentir sua ausência. Mas trata-se de uma complacência centrada no sujeito para quem o objeto 220 - S. Th. II-I, 27. O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino
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aparece como a perfeição. A partir daí, o fim projetado só é no fundo a mediação temática de um fim mais secreto: o sujeito mesmo [...]. Esta relação do sujeito com o fim se fundamenta, ontologicamente, na relação da potência com o ato. Pois a potência, como tal, está naturalmente ordenada e como tendida para o ato do qual é sua capacidade e esperança. Chamaremos, g
p a”. para abreviá-la, a estarelaciona-se classe de relação, depara tipo receber Segunda : “O sujeito com orelação fim não dele um enriquecimento, um aperfeiçoamento, uma atuação de suas potencialidades, etc., mas por ele mesmo, por causa de sua excelência e de sua amabilidade intrínsecas. O sujeito já não está na atitude do mendigo [...], simplesmente o ama e se compraz nele, com uma complacência totalmente diferente da que se dá no eros, já que está despojada de toda referência interessada [...]. Por este aspecto, é querido como objeto de amor, no sentido mais puro da palavra: objeto de um amor de amizade. [...]. Ontologicamente, esta relação se funda na semelhança ou, para empregar um termo mais geral, na relação do ato com o ato, que chamaremos relação de tipo a a”. Embora pareça aceitável essa explicação de De Finance, ela obriga a recordar que a distinção entre os dois tipos de amor — de posse e de doação — não se refere à ordem entitativa e à operativa, mas a duas dimensões da mesma ordem operativa. O ato de amor espiritual que é naturalmente um amor objetivo, que tende também naturalmente a ser um amor reto, pode ser ou um amor perfeito e desinteressado, quando se encontra diante de um bem que merece tal amor, ou um amor imperfeito, se se dirige a bens que devem servir efetivamente a um bem querido por si mesmo. Portanto, seria um erro definir a tendência natural da vontade à sua própria plenificação como um amor imperfeito, pois “é um apetite natural num sentido especial, próprio do mundo espiritual. Seu objeto é o bem como tal. Seu ato é o nosso bem, a nossa perfeição ou a nossa felicidade, precisamente porque a ele se deve que nos unamos diretamente ao bem por um amor do bem mesmo, e não por g
221 - Joseph de Finance, Ensayo sobre el obrar humano, 75-76. 146
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uma concupiscência que só poderia alcançar o seu objeto sob a razão formal de meu bem”. Em suma: o objeto direto do amor perfeito é a pessoa amada; o objeto indireto são as coisas desejadas por amor. O ato principal refere-se ao objeto direto, que é a pessoa, sem que se exclua o mesmo ato sobre o objeto direto secundário, enquan222
to referido ao principal. b) Amar e ser amado O que convém primeiro e mais propriamente ao amor é o amar e não o ser amado; questão que Aristóteles já tinha enfocado com respeito ao ato de amizade. Porque ao amor íntimo corresponde tanto amar quanto ser amado, ser sujeito ativo e passivo de amor: por exemplo, os amigos ou os cônjuges amam e são amados. Mas o importante é que são amigos enquanto amantes (cada um deles) ou enquanto princípio de amor, não enquanto são amados, porque então são termo ou objeto de amor. O amor íntimo — tanto o amistoso quanto o esponsalício — é mais hábito que ato, é maisquiescente que itinerante: sendo um hábito operativo, ordena-se imediatament e e de modo essencial à sua operação; em contrapartida, o ser termo ou objeto da operação de outro lhe convém na medida em que éser ou bem. Por outro lado, o querer amar corresponde ao amor de doação quiescente, enquanto o querer ser amado pertence ao amor de posse itinerante. O que não impede que o ser amado por outro seja o indutor mais enérgico da correspondência amorosa, ainda que não seja o motivo formal desta. “Amor atrai amor”, diz acertadamente o provérbio: a alma inativa se excita ao sentir-se amada. Ou “amor com amor se paga”: pois o que já ama se acende mais ao sentir-se correspondido no amor. “Nada há que provoque tanto o amor”, diz Santo Tomás, “quanto o saber-se amado.” 223
222 - Louis-B. Geiger, 100-101. 223 - De rationibus fidei, cap. 5, ed. Vives, t. 27, 132-133. O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino
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Por fim, esse amor de posse referido às coisas, que é o amor itinerante, pode subordinar-se a seu ato principal, ordenandose positivamente a seus objetos diretos, as pessoas. Não se trata então de um amor coisificante, já que subordina o bem natural das coisas à pessoa amada, para a qual deseja finalmente todos os bens. O amor perfeito não se dissolve no ato itinerante para as coisasdoboas, resolveaseste atopara no amor íntimo, em virtude qualsenão desejaque e ordena coisas si e para o outro. No entanto, a subordinação do amor de posse itinerante ao amor de doação quiescente e sua informação por este último não destroem aquele amor nem o absorvem em amor de doação, mas o afirmam, o supõem e o aperfeiçoam. Do contrário, o próprio amor amistoso ou esponsalício seria estéril e se converteria em mera benevolência, ao excluir todo amor de posse itinerante. Porque, como diz Santo Tomás, “as dileções guardam entre si a relação que guardam os bens que são seus objetos”. Se se dá o amor na vontade como vontade, então ele invade, informa, domina e eleva imediatamente sua atividade volitiva e, portanto, é capaz de elevar todos os seus amores moralmente aceitáveis. 224
2. Os motivos no amor
A já indicada distinção — que tem caráter formal ou geral — entre amor de pessoas e amor de coisas (na ordem objetiva), paralela também a outra, a que se dá entre amor de doação quiescente e amor de posse itinerante (na ordem subjetiva), suscitou a questão acerca de qual é o amor humano perfeito, questão que foi enfocada historicamente por duas posições extremas. Para uma, maximalista, tal amor exige um excesso de pureza e altura em seus motivos. A outra, minimalista, consente um defeito de pureza nesses motivos.
224 - De caritate, art. 7. 148
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a) A pureza de motivos 1. Para a primeira teoria — representada entre os medievais por Abelardo —, o motivo formal do amor é unicamente a bondade ontológica da pessoa amada em si mesma (a pessoa considerada como um bem em si e para si), enquanto é própria
dela eouincomunicável, de modo que,também excluindo outro bem interesse do amante, deixa foraqualquer de consideração seu proveito ou utilidade. A pessoa do outro deve ser amada por si mesma, ainda que disso não obtenhamos nenhum bem, ou ainda que dela só recebamos males. O amor perfeito do homem é o amor de doação, sem mescla de intenção de posse. Esse amor tem em seu próprio ato a remuneração: quem assim obra nem sequer o faz com essa intenção se ama perfeitamente; do contrário, buscaria ganhar o seu e seria como um mercenário, ainda que de coisas espirituais. Não é perfeito o meu amor quando amo o outro por mim mesmo, isto é, por minha utilidade e pela felicidade que espero encontrar nele. “Tal é o verdadeiro afeto do amor paterno pelo filho, ou da esposa casta pelo marido, aos quais amam mais, mesmo que lhes sejam inúteis, que a quaisquer outros que lhes pudessem ser mais úteis; ainda que sofram por eles, nenhuma incomodidade pode diminuir o amor, porque subsiste íntegra a causa do amor naqueles a quem amam, enquanto os têm, não nas vantagens que têm por meio deles.” Esta posição extrema — que põe o motivo do amor humano perfeito unicamente na bondade ontológica do amado, como boa somente para o amado, não para mim — foi mitigada por Scot e Suárez, não excluindo positivamente a bondade ontológica relativa, ainda que sem incluí-la formalmente no motivo do amor perfeito, e prescindindo da relação a nós. Duns Scot fez parcialmente sua essa doutrina, explicando que o amor perfeito se ordena ao bem ontológico do outro em si mesmo e por si mesmo, enquanto o amor imperfeito enfoca essa bondade como boa para o que deseja possuí-la. O amor 225
225 - Abelardo, Expositio in Epistolam ad Romanos, lib. II, ML. 178, 891-892B. O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino
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perfeito é como uma doação quiescente; o amor de posse é como um ato imperfeito ou itinerante. De novo comparece aqui a bondade do outro em si mesma, sem referência alguma ao amante, como motivo formal do amor perfeito, amor que tende ao amado enquanto é bem em si: tende ao objeto em si mesmo, ainda que seja despojado de utilidade para o amante. “Há na vontade de retidão e a outra por de utilidade. É mais duas nobreafecções, a afecçãouma de retidão, entendendo tal não só a adquirida e a infusa, mas também a inata, que é a liberdade congênita, segundo a qual alguém pode querer algum bem sem o referir a si mesmo. Em contrapartida, segundo a afecção de utilidade, ninguém pode querer o bem senão em ordem a si mesmo.” O amor perfeito reside na vontade na medida em que é animado por afecção de retidão. Em contrapartida, o amor de posse faz que a vontade deseje o bem alheio para si. Também para Francisco Suárez — que se expressa em termos parecidos — uma coisa é o amor perfeito ao amado e outra o amor com que se ama ao amado como bem do que ama, ou seja, em proveito do próprio amante: só o amor de posse ama o outro como bem do amante, enquanto o amor perfeito ama o outro por si mesmo. Para evitar uma oposição excludente entre estes “dois amores”, Suárez indica que o motivo formal do amor perfeito é a mesma bondade absoluta do amado tomada “precisivamente”, ou seja, sem se enfrentar ao amor interessado, pois não inclui nem exclui a bondade do amado enquanto boa para mim. Além da posição mitigada de Scot e Suárez, apareceram enfoques mais rígidos que excluíam positivamente a bondade relativa a nós. Autores protestantes, por exemplo, excluíram “positivamente” do amor perfeito toda bondade relativa do amado; as226
227
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226 - J. Duns Scot, III Sent., dist. 26, n. 17, ed. Vives, t. 15, p. 340b. 227 - Ibidem, n. 25, p. 348b. 228 - Francisco Suárez, De Caritate, disp. 1, sect. 2, n. 1, ed. Vives, t. 12, p. 637a. 150
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sim, amar o outro porque se obtém uma felicidade ou um gozo é não amá-lo de verdade. Quem ama o outro faz tudo pelo amado mesmo; amor imperfeito e possessivo seria aquele com que amamos a nós mesmos, desejando a felicidade ou uma recompensa gozosa pelo ato de amor. Visar à recompensa não é só uma imperfeição, mas até um ato abjeto. 229
Fénelon formulou — na FrançadedoSaints final do século XVII —, em brilhantemente sua Explication des maximes sur la vie interieure (1697), cinco tipos de amor, segundo os níveis de motivação, simples ou composta: 1. O amor puramente servil, que tem um só motivo: ama o outro pelos bens materiais que dele podem provir. 2. O amor de pura posse, que também tem um só motivo: deseja o bem espiritual que o outro tem enquanto é causa da felicidade do amante. 3. O amor de esperança, que já tem dois motivos: ama o outro primariamen229 - No âmbito religioso, era comum essa doutrina entre os protestantes: “A contrição”, diz Lutero, “torna o homem hipócrita, e mais pecador do que é, porque procede somente pelo temor do preceito e pela dor do dano. Os que assim procedem, indignamente são absolvidos e admitidos na comunhão” (M. Lutero, “Sermão sobre a penitência” (1518), em Werke, ed. Weimar, t. I, p. 1319). Em estrita posição protestante, não haveria meio-termo entre amor de doação e amor imperfeito — meio-termo que poderia ser o amor de felicidade. Tal doutrina do “só é puro amor de doação” — tudo o mais é i mperfeito — aparece também no quietismo, nos movimentos bai xomedievais de beguinos e nos alumbrados renacentistas, os deixados nas mãos do amor divino: quando a alma é absorvida no puro amor, já prescinde das virtudes e das obras, as quais — boas ou más — seriam indiferentes para a perfeição humana. Um expoente espanhol desta postura, no último terço do século XVII, é o Guia Espiritual de Miguel de Molinos, no qual se exige o cessamento total de todas as operações anímicas (entendimento, vontade, memória, imaginação e demais sentidos) que pretendessem representar as coisas divinas, sem o esforço por rejeitar tentações e maus pensamentos: basta o só e contínuo olhar para Deus, ato que é produzido por Deus mesmo em nós, sem esforço algum de nossa parte: “Hás de saber que em só dois princípios está fundada toda esta fábrica de aniquilamento. O primeiro é ter em baixa estima a si mesmo e a todas as coisas do mundo, de onde de nascer o pôrsanta em prática a nudez si mesmo e de todas as há coisas com uma resolução, com eo renúncia afeto e a de obra. O segundo princípio há de ser uma grande estima de Deus para amá-lo, adorá-lo e segui-lo sem nenhum gênero de interesse próprio, ainda que seja o mais santo. Destes dois princípios há de nascer uma plena conformidade com a divina vontade. Esta eficaz e prática conformidade com a divina vontade em todas as coisas conduz a alma à aniquilação e transformação com Deus” (Miguel de Molinos, Guía espiritual, livro II, cap. 19, nn. 179-180, ed. J. de Entrambas asaguas, Madri, Aguilar, s.a., 228). O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino
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te como bem ou felicidade do amante, e secundariamente por ser ele quem é. 4. O amor de doação imperfeita também tem dois motivos: seu motivo primário é a bondade do outro em si mesmo; seu motivo secundário é o interesse próprio na participação dos bens do outro. 5. O amor de doação perfeita ou pur amour, que só tem um motivo — o amor exclusivo do outro porpróprio. si mesmo —,chegar o qualaexclui toda mescla bem ousupõe interesse Para este último ponto, do Fénelon que pode dar-se um estado habitual de amor de doação sem mescla do interesse próprio — un amour independant du motif de la recompense —, sem motivo de temor e esperança, estado em que o sujeito se torna indiferente com respeito a todos os bens e males, e até indiferente com respeito à sua própria perfeição espiritual. O problema ontológico e antropológico suscitado por esta posição — rígida em uns, flexível em outros — é que toma o objeto do amor perfeito como motivo de uma mera benevolência, dado que a bondade do outro é aí considerada e amada como boa apenas para o amado precisiva e exclusivamente, negando qualquer comunicação ou comunicabilidade com o amante. Mas por que é reduzido o amor perfeito a mera benevolência? Por acaso não importa essencialmente, como amor, certa união afetiva do amante com o amado mesmo, em razão da qual a mesma bondade do outro é de algum modo comum a ambos os amigos, quer dizer, ao amado e ao amante? A tese maximalista é contrária à própria índole do amor perfeito como amor, pois elimina o objeto próprio do amor, que é o bem relacionado com o sujeito amante. “Se se considera o movimento da vontade do ângulo do objeto que determina o ato da vontade a querer isto ou aquilo, deve-se levar em conta que o objeto que move a vontade é o bem conveniente conhecido; daí que, se se propuser algum bem que se conhece sob a razão de bem, mas não sob a razão de conveniente, ele não moverá a vontade.” O que significa que o amor não 230
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230 - Santiago Ramírez, La esencia de la caridad, 251. 231 - De Malo, q. 6, art. único, corpus. 152
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pode ser despertado no sujeito se o objeto não for adaptado à sua faculdade ou ato — pela proporção que deve haver entre a causa e o efeito, entre o objeto e o ato. Adaptação que, como já se disse, recebe vários nomes: convenientia, consonantia, connaturalitas, aptitudo, coaptatio,correspondentia, relatio. Donde o Aquinate advertir que, se o outro não fosse umbem para mim, 232
233
nãonão teriaé suficiente eu motivoaduzir para amá-lo. explicar o amordeperfeito, a índolePara abstrata e absoluta bem: é preciso indicar a conveniência ou proporção com o amante. À índole abstrata e absoluta do bem amado, que é bem só do amado, é preciso acrescentar o caráter de bem proporcionado ao nosso amor, de modo que este possa ser movido e aquele bem ser alcançado como objeto próprio e conveniente ànossa vontade de seres que amam. Quando Fénelon afirmava que umamour désintéressé nada tem que ver com aintenção unitivado amor, pensava erroneamente que aintenção unitivaou o anseio de união com a pessoa amada não pertence essencialmente ao amor íntimo. A entrega definitiva, inteiramente pessoal, inclui anelar com toda a alma a unidade com o amado e desejar que esta unidade seja a fonte maior de nossa felicidade. Quando se tentaexcluir do amor íntimo aintenção unitiva, não se alcança o desinteresse do amor ao próximo, mas o tornar errática aprópria pessoa. Umamour désintéressépela pessoa do amado é, na verdade, um déficit de amor, pois a supressão daintenção unitivapelas palavras “não importa a minha felicidade” não significaria somente, como no caso do amor esponsalício, ficar fora com o próprio eu e a vida individual, não dar-se realmente, mas também umaobturação da própria vida. Tratando-se da felicidade profunda, minha indiferença com respeito à união com o outro incluiria a míngua de mim mesmo, o alquebramento de minha própria existência pessoal, sem apreciar sequer a dádiva que o outro me pode fazer de seu amor, máxime se o outro quer essa união comigo. 234
232 - H. D. Simonin, “Autour de la solution thomiste du problème de l’amour”, 191. 233 - S. Th. II-I, 26, 13 ad 3. 234 - D. von Hildebrand, La esencia del amor, 175. O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino
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b) A mescla de motivos Para a segunda posição, minimalista — representada pelo medieval Simon de Tournai —, o motivo formal do amor é a bondade do outro enquanto boa para mim (bondade relativa do outro), participável por mim, da qual posso gozar. Amar o outro significa oquerer dele. Há um só gozar movimento amor perfeito, qual segozar refere ao outro para dele. do Tanto o medieval Simon de Tournai como alguns modernos, entre os quais se encontra Bossuet opondo-se a Fénelon, incluíram o outro enquanto bom e benéfico no motivo necessário e verdadeiro do amor perfeito. O decisivo é que se trata de um motivo necessário desse amor. De modo que, por sua própria natureza, o amor perfeito vê necessariamente o outro como bem do amante, como objeto de amor de posse. O amor perfeito deve consistir no desejo de gozar do amado e de possuí-lo como objeto de felicidade humana permanente do amante. O ato de amor perfeito se expressa dizendo-se ao amado: “eu te amo porque és o meu bem e a minha felicidade”. Que o outro seja bom em si mesmo não é o motivo do amor perfeito. Supõe-se aqui que o único motivo a mover o homem a agir é o amor-próprio, amor de posse, entendido como desejo do próprio bem e da própria felicidade. Os objetos com que depara o homem ou levam à felicidade (e então são apetecidos com um ato chamado amor) ou são contrários a ela (e então são evitados com um ato chamado ódio). Os atos de amor se reduzem ao querer possessivo. O problema ontológico mais grave desta posição é que a comunicação do bem do outro é entendida como participável por nós, de modo que esse bem vem a ser motivo formal de amor de pura posse. Esta posição não torna impossível e absurdo o amor íntimo? Mas por acaso o amor perfeito é mera posse? Não é, em verdade, algo mais alto, isto é, um amar amistoso? 235
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235 - Simon de Tournai, Disputationes, disp. 54, q. 1, ed. J. Varichez, Louvaina, 1932, p. 155. 236 - Vincenzo Bolgeni, S.J., Della carità o amor di Dio, 2 vols., Roma 1788, I P., cap. 1, n. 2. 154
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Não é seu referencial a pessoa, e não as coisas? Não é o amor perfeito pelo outro um amor de intimidade, um amor quiescente, pois quando o outro aparece diante mim como pessoa exige de mim que eu não o coisifique, que o ame por si mesmo em forma de doação? Se tal comunicação deve ser necessariamente íntima, há de sê-lo num objeto e num bem diretamente e de sifonte amável com amorobjetiva, íntimo, eque tal éé uma a bondade do outro como de felicidade e a mesma para ele mesmo e para mim. 237
c) Hierarquização de motivos Acima dos extremos indicados está a posição de Santo Tomás, para quem o motivo do amor humano perfeito é a própria bondade ontológica do outro, na medida em que é boa ao mesmo tempo para ele e para mim, ainda que com certa hierarquia: porque o amor perfeito não é qualquer amor ao outro, mas amor ao outro com que este é amado como objeto de felicidade, ao qual nos ordenamos em nossos atos. Não só significa um amor geral ao homem, mas também certa intimidade com o amado, a qual acrescenta ao amor a correspondência (redamatio) com certa comunicação mútua. Em suma, o motivo formal do amor humano perfeito é a bondade ontológica do outro, que está sendo comum ao amado e ao amante, bondade que é amável por si mesma em relação de intimidade, de união íntima. Esta tese coincide com a de outros pensadores medievais, como Santo Alberto Magno e São Boaventura, para os quais a simples bondade ontológica do outro, enquanto boa ao mesmo tempo para o outro e para mim, é o motivo formal do amor perfeito, não como por justaposição e mera soma dos motivos das outras posições extremas, mas num sentido mais 238
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237 - Santiago Ramírez, La esencia de la caridad, 251. 238 - S. Th. I-I, 65, 5 ad 1. 239 - S. Th. I-I, 65, 5. O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino
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alto, por elevação a um motivo superior. O bem ontológico do outro não é o objeto do amor perfeito se for considerado solitariamente em si e enquanto é bom para ele mesmo somente, mas sim enquanto é objeto de sua felicidade e da minha. A pessoa, como bem ontológico do outro, só entra como motivo formal do amor perfeito enquanto é bem “amoroso”, 240
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na medida queíntimo é um grande paraoobem amante equer paradizer, o amado, pois oem amor tem porbem objeto que é comum ou comunicável a ambos, e não somente o bem que é tal para um e não para o outro. Se o grande bem pessoal é considerado solitariamente em si, independentemente de gerar felicidade e ser objeto de gozo, então é bem unicamente para o próprio amado, não para o amante. Só enquanto objeto da felicidade do amado e do amante é que o bem é comunicável a ambos os amigos. O amor perfeito ama o outro enquanto este é objeto de amor íntimo mútuo: um bem comunicável “ad intra” (para si) e “ad extra” (para mim). O amor íntimo perfeito e verdadeiro é essencialmente meio entre a mera benevolência e a pura posse, ambas as quais 242
240 - Santiago Ramírez, La esencia de la caridad, 250. Assim, o motivo da caridade é “a própria bondade divina, na medida em que é boa ao mesmo tempo para Deus e para nós, ainda que não por igual, mas segundo uma ordem de prioridade e posterioridade, isto é, primeiro e principalmente para Deus mesmo, secundariamente, depois de Deus, para Deus, por Deus e em Deus, para nós, a modo de conotação e de condição indispensável” (Ibidem, 255). 241 - José de Ribas, O.P., Relectiones complutenses de Fide, Spe et Caritate, Compluti 1743, tract. II, disp. 1, dub. 1, § 3, n. 6, p. 363. 242 - Doutrina que é de Santo Tomás, na Suma Teológica, I, 60, 5 ad 2, cujo texto comenta Ribas, aplicado ao amor do homem a Deus: “Quando dizemos que amamos a Deus enquanto Ele é objeto de sua bem-aventurança e da nossa, a expressão ‘enquanto’, com respeito ao nosso amor, não significa fim do amor; pois não amamos a Deus para nosso proveito; senão que expressa a razão do amor por parte do amante, neste sentido: não haveria na natureza do homem possibilidade Deus sesenão fosse porque cada homem depende de do amar sumo abem queamigavelmente é Deus. Daí que, se simulasse o caso h ipotético, como faz Mástrio, de que os bens de natureza e de graça procedessem de um princípio que não fosse Deus, então Deus seria sem dúvida sumamente amável, porque nele se daria o sumo bem, que a vontade ama naturalmente; mas em nós não haveria razão alguma para amá-lo amigavelmente, e então não haveria a mútua comunicação de bens entre Deus e os homens, que a amizade comporta essencialmente” (José de Ribas, O.P.,op. cit., n. 14, pp. 366-367.) 156
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são superadas por ele ao mesmo tempo essencialmente, sendo mais próximo da benevolência que da posse. Se a posição de Abelardo, de Scot, de Suárez e dos quietistas — tanto os rígidos como os moderados — afirmava que a bondade ontológica da pessoa amada deve ser considerada como fechada absolutamente em si mesma e comunicável objetivamente apenas 243
ao próprio ser amado, a posição do Aquinate a considera necessariamente como aberta e comunicável objetivamente ao amante, pois seria contraditório pôr na bondade ontológica do outro o motivo formal objetivo do amor perfeito e negar ao mesmo tempo toda comunicação dela a tal amor e, por conseguinte, ao sujeito que a possui, “dado que precisamente não move quanto à especificação senão comunicando-se objetivamente, pois a causa formal causa imediatamente por si mesma, quer dizer, dando-se ou comunicando-se”. Que produz esta comunicação objetiva e especificativa? Ela enseja a coaptação subjetiva (conveniência, concerto, conformação, conjunção, conaturalidade, complacência) com que o objeto e o sujeito se completam e estreitam mutuamente. No amor de uma pessoa humana por outra, não basta considerar somente o objeto (amado), descuidando da correlação do sujeito (a potência do amante), nem basta atender apenas à potência volitiva do sujeito (amante), descuidando da coordenação com o objeto amado, senão que é preciso ver o objeto e o sujeito em correspondência mútua — porque o objeto é conveniente ao sujeito, e vice-versa: a comunicação objetiva e especificativa do amor na pessoa humana leva consigo “a união afetiva e amistosa do amante e do amado, que é como o efeito formal, ou antes, o mesmo amor essencialmente”. Por aí se vê que na doutrina de Fénelon o amor íntimo careceria de um caráter transcendente de entrega; seria uma mera aspiração imanente a um objeto, o amado, que se abre para mim como mero bem real de que eu posso desfrutar. A 244
245
243 - Santiago Ramírez, La esencia de la caridad, 251. 244 - Santiago Ramírez, La esencia de la caridad, 282. 245 - Santiago Ramírez, La esencia de la caridad, 282. O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino
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pessoa amada não estaria diante mim como alguém objetivamente valioso, precioso e belo, nem sua importância intrínseca fundamentaria e despertaria o amor; acontece tão-somente que a outra pessoa tem para mim o caráter de bem real: de modo que a unidade com a pessoa amada não é bem real para mim por sua preciosidade, mas porque pode aplacar meu apetite. O imanente amor íntimo ao outro ée considerado conseqüência anseio de perfeição prazer; e a intenção unitivadoé privada de sua autêntica natureza, quer dizer, de seu caráter de entrega e de sua transcendência. O que Fénelon nega realmente é a realidade profunda do amor íntimo, substituindo-a pelo mero amor benevolente. Crê erroneamente que a supressão da intenção unitiva empresta ao amor seu caráter elevado e tenta consequentemente alcançar no amor ao outro algo análogo ao amour désintéressé. Mas “isso não conduz à suprema entrega heróica, e sim a um amor internamente contraditório e a um pseudo-heroísmo. Corrigir essa concepção do amor íntimo exige sublinhar a verdadeira natureza da intenção unitiva. E isso não pode ser levado a efeito tentando libertar o amor de uma suposta imanência ou de seus traços egoístas mediante a omissão da intenção unitiva, que é algo que faz parte do tema de todas as categorias de amor”. 246
3. Interesse e desinteresse no amor
O amor espiritual é objetivo quando é especificado pelo conhecimento intelectual: orienta-se então ao bem em si mesmo, seja qual for o modo (deleitável, útil ou honesto) desse bem. Resta ver quando o amor objetivo é, ademais, desinteressado ou interessado, levando-se em conta duas coisas: primeira, a falta de objetividade e verdade não só elimina o interesse ou o desinteresse objetivos do amor, mas faz que o amor não seja espiritual; segunda, o amor interessado não significa, pura e sim246 - D. von Hildebrand, La esencia del amor, 175. 158
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plesmente, amor centrípeto. “Este amor objetivo é ao mesmo tempo verdadeiro quando está ordenado, quer dizer, quando se respeitam, na qualidade de seu movimento para o bem, o peso, o número e a medida que regem e definem de algum modo o bem. Este amor objetivo pode ser desinteressado e verdadeiro quando se encontra diante de um bem verdadeiramente absoluto. E será masum ilegítimo , quando erigeque abusivamente emdesinteressado bem absoluto, ou bem útil ou um bem de si deveria permanecer subordinado a outros bens.” 1º O amor espiritual é objetivo, bom e desinteressado “quando se encontra diante de um bem cujo valor absoluto exige tal amor. Poderá ser verdadeiramente desinteressado não só porque, tomado no interior da concupiscência de nosso próprio bem, podemos ocasionalmente sacrificar este último ao bem do todo ou ao bem de Deus, que, é claro, desejamos igualmente, mas porque o amor em si mesmo, objetivo e verdadeiro, é um amor propriamente dito, que pode dar ao bem, captado em seu valor absoluto, a resposta igualmente absoluta, a pura homenagem de nosso coração que ele merece. Esta homenagem se matizará, não obstante, segundo os bens que lhe é dado encontrar. Será de um modo diante de valores impessoais, tais como a verdade, o bem, a beleza; será de outro modo diante desse bem que é o amor que uma pessoa tem ao nosso verdadeiro bem; e será, enfim, de outro modo e tomará uma forma única diante do bem que não só tem valor absoluto, mas é o mesmo Absoluto do bem, fonte de todo bem e de todo amor, também do nosso”. 2º O amor será objetivo, verdadeiro, bom e centrípeto “quando recair sobre o bem próprio do sujeito, porque este bem é um bem verdadeiro. Ainda que o amor do nosso bem próprio seja, na ordem natural, o amor mais intenso e mais fundamental depois do amor de Deus, seria falso dizer que a vontade tem por objeto o nosso bem próprio, se se deixasse de acrescentar que esse objeto deve ser necessariamente com247
248
247 - Louis-B. Geiger, 87. 248 - Louis-B. Geiger, 90-91. O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino
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preendido sob o objeto formal que é o bem como tal e que naturalmente é conforme com a verdade do bem. É também inexato chamar a este amor uma concupiscência, porque em verdade se trata de um amor de benevolência”. É um amor perfeito ou quiescente. 3º O amor espiritual pode ser objetivo, bom e interessado 249
“quando se encontra de bens porpróprio natureza devem servir a outros bens e,diante claramente, ao que nosso bem. Não se deve confundir o amor interessado, que não pode faltar em nenhuma criatura, e o egoísmo, que é a hipertrofia monstruosa do bem próprio, erigido em bem absoluto. Produz-se quando o homem, em vez de amar-se segundo a verdade, como se exige naturalmente no amor espiritual, identifica inaturalmente o seu bem total e último com um bem finito, ao qual todos os outros bens, compreendidos os que têm valor absoluto, se encontram ordenados a título de meios”. 250
249 - Louis-B. Geiger, 88-89. 250 - Louis-B. Geiger, 89-90. 160
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SEGUNDA PARTE:
ESSÊNCIA, CAUSA E EFEITOS DO AMOR Capítulo VI
O Amor Sensível
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1. A ordem do apetite sensível: imediatez e mediação
Para Tomás de Aquino o amor é um termo análogo, cujo analogado principal ou direto é o amor sensível, sobre cuja estrutura é preciso realizar primeiro o estudo descritivo ou fenomenológico, para entrar depois nos níveis psicológicos que 251
essaAanalogia abrange. tendência humana pode orientar-se ao bem sensível enquanto é bem, independentemente da facilidade ou dificuldade que implique consegui-lo; este é enfocado então absolutamente, simpliciter, mostrando-se como deleitável: e, assim, é objeto de um grupo de apetites que, em virtude da absolutidade com que esse bem se apresenta, podem chamar-se imediatos ou primários — os medievais usavam para eles o nome de concupiscibiles. Mas acontece que o sujeito experimenta às vezes dificuldade e contrariedade em adquirir os bens ou em afastar-se dos males sensíveis, porquanto isso excede ao fácil exercício das faculdades anímicas; por isso, o mesmo bem ou mal, enquanto tem aspecto de árduo ou difícil, é objeto de outro grupo de apetites que podem chamar-se mediatos ou secundários — irascibiles, para os medievais. A determinação do apetite como “imediato” ou como “mediato“ justifica-se tanto do ponto de vista do aspecto subjetivo 252
251 - Que o ato do apetite sensível seja o analogado principal ou direto do amor é uma tese combatida explicitamente por Hildebrand em A Essência do Amor: “Quem capta o amor como um apetite ou um impulso, quem vê nele uma analogía, como se no espiritual houvesse instintos assim como no corporal há sede, absolutamente não conhece a essência do amor” (62). Hildebrand não se refere nesta crítica ao uso técnico da analogia mesma, através da qual aparece o amor espiritual como uma resposta supra-impulsiva. Para o Aquinate, o analogado principal do amor está no apetite sensível — e não na inclinação natural — porque tal apetite expressa patentemente, do homem, a sutura ontológicamas da especialmente alma ao corpo.deA analogia nãono é ucaso ma técnica de meras coincidências, diferenças. 252 - Em seu belo livro sobre o sentimento, Strasser prefere chamá-los, respectivamente, primários e secundários (Stephan Strasser, Das Gemüt. Grundgedanken zu einer phänomenologischen Philosophie und Theorie des menschlichen Gefühlslebens, 128-160). Estou convencido de que a denominação de imediatos e mediatos responde melhor à intenção ontológica da análise feita pelo Aquinate. O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino
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do apetite mesmo quanto do ponto de vista de seu objeto. Segundo a perspectiva do sujeito, o apetite dirige-se ou a receber o que pretende, unindo-se a ele, ou a agir para vencer e superar o que lhe é contrário e nocivo: receber e agir são dimensões ontológicas subjetivas que exigem duas potências ou faculdades apetitivas. Segundo a perspectiva do objeto, há um apetite 253
orientado ao bem em si mesmo , e há um apetite quediferença se dirige ao bem enquanto árduo ou difícil. Trata-se de uma essencial, entre o imediato e o mediato. Uma observação lingüística: a qualificação das tendências sensíveis como “imediatas” e “mediatas” é tão genérica, que se pode aplicar a muitos aspectos da vida individual e coletiva; essa qualificação é necessária, mas também insuficiente. Por isso, exige-se uma qualificação estritamente antropológica: as tendências imediatas são na verdade impulsos de aquisição (expressão que traduz o que os medievais chamavam de appetitus concupiscibilis), enquanto as tendências mediatas são impulsos de resistência (expressão que traduz o appetitus irascibilis). Hoje, os termos “concupiscibilis” e “irascibilis”, tolhidos num contexto cultural já decaído, não significam realmente algo preciso em espanhol nem em nenhum outro idioma. Mas é de admirar a finíssima análise fenomenológica que encerram. Santo Tomás explicava que o apetite sensitivo é uma faculdade genérica dividida em duas faculdades específicas, a saber, o que acabo de chamar impulso de aquisição e impulso de resistência. Verdadeiramente, nos seres naturais afetados de finitude e matéria, não só deve haver tendência a adquirir o conveniente e evitar o prejudicial, mas também deve haver tendência a resistir ao dissolvente e adverso, que são obstáculos para conseguir o conveniente, e também são fonte de danos. Por sua constituição psicobiológica, o homem não só tende por natureza a afastar-se do que lhe é contrário, mas também tende a resistir a tudo o que o altera e obstaculiza. Assim, porque o apetite sensitivo é uma tendência que se segue ao conhecimento sensorial, é necessário que na parte sensiti253 - De Veritate, 25, 2. 164
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va do sujeito haja duas faculdades apetitivas. Uma, pela qual tenda simplesmente ao que na ordem sensível lhe convém e recuse o prejudicial: esta o impulso de aquisição. Outra, pela qual repila tudo o que se opõe a ele na consecução do que lhe convém e que, ademais, lhe causa dano: esta é o impulso de resistência, cujo objeto é o difícil, pois tende a superar o adverso 254
e prevalecer sobre mais ele. elevado, da óptica universal do bem, Em um plano não cabe falar de diversas tendências que a ele se dirijam: basta uma só que, como a vontade, responda com sua amplitude de anseio a essa universalidade objetiva; mas de uma óptica concreta e individual, própria do apetite — dirigido não a um bem universal, mas a um bem sensível —, é preciso indicar essa diversidade de funções. 2. Respostas afetivas sensíveis
De todo o campo tendencial dos apetites humanos brotam respostas ao bem ou ao mal proposto; essas respostas — assinalou-se — podem chamar-se afetivas — paixões, segundo uma terminologia medieval. 1. Para apreciar a diversidade de impulsos, estes devem ser considerados tanto do ângulo da heterogeneidade de seus objetos, que são o bem e o mal, quanto do ângulo da aproximação ou separação com respeito a um mesmo termo. Pode-se até dizer que os impulsos têm direções opostas: algumas, em razão da contrariedade dos objetos, que são o bem e o mal; outras, segundo a aproximação ou separação com respeito a um mesmo termo. A contraposição dos impulsos, marcada pelo sinal do positivo e do negativo, deve-se, no caso de los impulsos de aquisição, à oposição mesma e absoluta dos objetos a que se dirige (o bem ou o mal); nos impulsos de resistência, em contrapartida, deve-se tanto a essa oposição absoluta dos objetos 255
254 - STh I q. 81 a. 2. 255 - S. Th., I-I, 22-23; 25. O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino
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quanto à oposição relativa surgida pela proximidade ou longinqüidade em que se encontram tais objetos com respeito ao sujeito. a) O bem, enquanto é gozável, move o impulso de aquisição; quaisquer tendências que se refiram ao bem ou ao mal em si mesmos (bonum vel malum sensibile absolute et simpliciter ao impulso aquisição : como amor e oacceptum) ódio, ou opertencem gozo e a tristeza. Comdeefeito, o objeto dooimpulso de aquisição é o bem sensível ou o mal sensível considerado em absoluto; e o bem enquanto tal não pode dar-se como termo inicial (a quo), mas só como termo final (ad quem), dado que nenhum ser refoge o bem enquanto bem, senão que todos tendem a ele. Da mesma maneira, nenhum ser tende ao mal considerado como tal, senão que todos o refogem; por isso, o mal não pode comparecer como termo final, mas unicamente como termo inicial (a quo). Assim, no impulso de aquisição há respostas afetivas que se orientam para o bem, como o amor, o desejo e a alegria; e respostas afetivas que se afastam do mal, como o ódio, a aversão e a tristeza. Daí que nas respostas afetivas do impulso de aquisição não haja direções opostas por aproximação ou desvio com respeito a um mesmo objeto. b) Se o bem apresenta alguma dificuldade para sua consecução, por esse mesmo fato tem algo que repugna aos apetites imediatos, fazendo-se assim necessárias outras tendências que se dirijam a esse fim; e igualmente com respeito ao mal; essas tendências configuram o apetite mediato o impulso de resistência; os afetos que têm por objeto o bem ou o mal sob o aspecto de árduo e difícil de adquirir ou evitar (bonum vel malum sensibile sub ratione ardui) pertencem aos impulsos de resistência, como a audácia, o temor e a esperança. O sujeito é provido de impulsos de aquisição justamente para vencer os obstáculos que o impedem de dirigir-se a seu objeto, já pela dificuldade de obter o bem, já pela de superar o mal. Por causa disso, as respostas afetivas do impulso de resistência têm to256
257
256 - S. Th., I-I, 23, 1 ad 3. 257 - S. Th., I-I, 23, 1. 166
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das por termo as respostas afetivas do impulso de aquisição; e, igualmente, também às respostas do impulso de resistência se seguem o gozo e a tristeza, que brotam do impulso de aquisição. Assim, o objeto do impulso de resistência é o bem sensível ou o mal sensível em sentido não absoluto, mas relativo: sob o aspecto de árduo ou difícil, segundo o já dito. No bem ár258
duo ouo que difícil há motivo para que se tenda a ele enquanto é um bem, pertence à resposta afetiva da esperança ; e também para desviar-se dele enquanto árduo e difícil, o que é próprio da resposta afetiva da desesperação. Da mesma maneira, o mal árduo move à repulsa dele como mal, o que pertence à resposta afetiva dotemor; mas apresenta também um motivo para a aproximação, como para uma dificuldade pela qual se elude a sujeição ao mal, e sob este aspecto tende a ele a udácia. Dão-se, portanto, nas respostas afetivas do apetite mediato direções contrárias em razão do bem e do mal, como entre a esperança e o temor; e, ademais, em razão da aproximação ou afastamento com respeito a um mesmo termo, como entre a audácia e o temor. c) Pode acontecer que exista para o impulso de resistência um mal difícil já presente, ao qual se orienta uma resposta afetiva para contra-arrestá-lo: a ira. “O peculiar da resposta afetiva da ira é que não pode ter direções contrárias nem quanto à aproximação e ao afastamento nem quanto ao bem e ao mal. Pois a ira é causada por um mal difícil já presente, diante do qual é preciso ouque sucumbam as tendências, e então não se sai dos limites da tristeza, que é resposta afetiva do impulso de aquisição; ou se move para contra-arrestar o mal que o afeta, o que pertence à ira; não restando lugar para o movimento de fuga, pois se supõe o mal já presente ou passado. Assim, o mal já presente se opõe ao bem conseguido, que já não podeter razão de árduo ou difícil. Nem depois da consecução do bem resta outro movimento além da quietude do apetite no bem alcançado, que pertence ao gozo”, resposta afetiva do impulso de aquisição. 259
260
258 - S. Th., I-I, 23, 1 ad 1. 259 - S. Th., I-I, 23, 2. 260 - S. Th., I-I, 23, 3. O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino
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2. Os afetos diferem também segundo a atualidade motivadora de seu objeto e não só pela espécie ou natureza do mesmo objeto que possui essa atualidade motivadora (assim como o fogo difere da água). A diversidade da atualidade motivadora, quanto a seu poder de excitar ou mover, é estabelecida pelo Aquinate, no caso dos afetos humanos, por semelhança com 261
agentesou naturais. Todo agente move ou para para si oosmovido para rejeitá-lo. Se o atrai, produz neleatrair três efeitos, que são comparados com fenômenos tirados da física antiga: 1º dá-lhe a aptidão e conformação necessária para tender a ele, assim como um corpo leve que tende a elevar-se comunica sua leveza ao corpo que engendra, pela qual tende ou é apto para elevar-se; 2º se o corpo engendrado se encontra fora de seu próprio lugar,impulsiona-o para este; 3º dá-lhe o repouso após ele ter chegado a seu lugar, dado que uma mesma é a causa pela qual uma coisa repousa num lugar e aquela pela qual foi movida a ele. E o mesmo deve entender-se da causa da rejeição. Conformidade e desconformidade, atração e repulsão, quietude positiva e quietude negativa: aí estão as três oposições básicas que configuram fenomenologicamente a tensão ontológica do homem. a) Concretamente, nos apetites imediatos ou de aquisição, o bem tem um poder atraente; o mal, em contrapartida, repulsivo. O bem pode produzir três determinações na tendência: 1ª certa inclinação, aptidão ou conaturalidade para com o bem, o que é próprio da resposta afetiva do amor , à qual corresponde como contrário, pelo lado do mal, o ódio ; 2ª se o bem que se ama ainda não é possuído, dá à tendência o anelo de alcançá-lo, e isto é próprio da resposta afetiva do desejo ; e como oposto pelo lado do mal está a aversão ; 3ª quando já se conseguiu a posse do bem, produz certa quietude da tendência nele, o que é próprio do gozo, ao qual se opõe, pelo lado do mal, a tristeza . b) Por sua vez, os afetos dos apetites mediatos ou de resistência já pressupõem no apetite imediato ou de aquisição 261 - S. Th., I-I, 23, 4. 168
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VI - O Amor Sensível
— que se refere ao bem ou ao mal em sentido absoluto — a aptidão ou inclinação para procurar o bem ou evitar o mal; e daí a esperança e desesperação com respeito ao bem ainda não conseguido, e o temor e a audácia com respeito ao mal ainda não sofrido. Em ordem ao bem obtido, não há resposta afetiva alguma nos apetites mediatos ou de resistência, porque o bem já nãosurge tem caráter de árduo, sente a resposta afetivasegundo da ira. o dito antes; do mal pre3. Os afetos do apetite imediato ou de aquisição têm um campo de atualidade maior que os do mediato ou de resistência; pois neles se apresentam tanto o movimento — assim o desejo —, como o repouso — assim o gozo e a tristeza: são tensões intermitentes; em contrapartida, nos afetos do apetite mediato ou de resistência não se acha coisa alguma no tocante ao repouso, mas só ao movimento: são tensões contínuas. Por exemplo, o possuído no gozo já não é difícil ou árduo, sendo o bem árduo o objeto do apetite mediato. 4. Mas, considerados em sua própria essência, os afetos do apetite mediato ou de resistência são mais elevados e perfeitos que os do imediato ou aquisitivo. Especialmente porque a dignidade e a perfeição do apetite se medem pela altura das fontes cognoscitivas que o suscitam. Tomás considera que as duas faculdades cognoscitivas mais importantes da sensibilidade interna são a imaginação e a estimativa ou cogitativa: 262
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262 - S. Th., I-I, 25,1. 263 - Suárez não admite na parte sensitiva distinção real e especí fica entre o apetite imediato (concupiscível) e o apetite mediato (irascível), considerando que carece de importância no caso a mediação que sua srcem tem, por exemplo, na “arduidade” ou dificuldade apresentada pelo objeto do apetite: “Em nossa opinião, deve-se dizer que o objeto adequado do apetite sensitivo é o bem sensível ou qualquer bem da natureza sensitiva, que pode ser percebido tal pelo sentido será(Francisco única a potência tende ao bemcomo deleitável, seja árduo[...]. ouPortanto, não árduo” Suárez,que De Anima, lib. 5, cap. 4, n. 6.) Por sua vez, esta formulação tende, já no plano espiritual, a reduzir a esperança ao a mor; ou melhor, a esperança se torn a prolongamento do amor, mas na mesma linha ontológica deste; não é que o amor seja mero fundamento ou base da esperança, mas sim que o amor se prolonga entitativamente como esperança, a qual tem o mesmo objeto formal que o amor imperfeito ou de concupiscência. Amor perfeito e esperança não coincidem; mas sim amor imperfeito e esperança. O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino
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a primeira capta as “intenções particulares sentidas (sensatas)”, ou seja, os aspectos mais chamativamente sensíveis das coisas que estão em contato direto com os sentidos externos; enquanto a estimativa ou cogitativa capta as “intenções particulares sobressentidas (insensatas)”, quer dizer, os aspectos cognoscitivos mais elevados das coisas materiais, aspectos que certamente estão incluídos na doação sensível A dasestimativa coisas, masé não são perceptíveis pelos sentidos exteriores. chamada, no homem, cogitativa, que é como um incipiente pensar (cogitare), já que participa da razão: é a razão mesma introduzida na sensibilidade. Pois bem, a imaginação regula o apetite imediato aquisitivo; a estimativa, o apetite mediato de resistência: a imaginação propõe ao apetite a forma do bem (ou do mal) sensível idônea para a sustentação orgânica; a estimativa propõe ao apetite a forma do bem (ou do mal) sensível idônea para defender-se do nocivo e hostil. O que o apetite mediato de resistência pretende não é o conveniente para o prazer sensorial, mas o útil para defender o organismo. 5. Por sua srcem, os afetos se dividem em primitivos, como o amor e o ódio, e derivados, que são todos os demais afetos tanto imediatos como mediatos. a) Os afetos imediatos que implicam movimento para o termo (desejo e aversão) são naturalmente anteriores aos mediatos na ordem da srcinação e no da realização. O que se 264
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264 - III Sent. , dist. 26, q. 2, art. 1: “Que o animal apeteça as coisas que são convenientes ao sentido e lhe causam deleitação é próprio da natureza sensitiva e pertence ao apetite imediato [ potentia concupiscibilis]; mas que tenda a algo bom que não causa deleitação nos sentidos, senão que antes é apto para provocar tristeza em razão de sua dificuldade — por exemplo, que o animal queira a luta com outro animal ou vencer uma dificuldade qualquer —, é próprio do apetite sensitivo enquanto a natureza sensitiva já toca a intelectiva, e isso é próprio do apetite mediato [ potentia irascibilis]. E, assim como a estimativa é uma faculdade imagi nação, assim também o apetite mediato é uma potênciadiferente diferentedado apetite imediato, pois o objeto deste é o bem que é apto para provocar deleitação nos sentidos, enquanto o apetite mediato é um bem que tem dificuldade”. (A mesma doutrina em De Veritate, q. 25, art. 2). Pelo apetite mediato, o animal se inclina a atacar o inimigo, sofrendo dores e ferimentos, o que repugna ao apetite imediato: move-se, pois, contra este. E o pôr em marcha o apetite imediato retrai a atuali zação do mediato. 265 - S. Th., I-I, 25, 1. 170
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deve ao nível de objetos que especificam os afetos, pois os objetos dos afetos imediatos que implicam movimento são mais simples ou puros. É que os afetos mediatos acrescentam ao aspecto do bem o da dificuldade que deve ser vencida; por isso aqueles são naturalmente anteriores na ordem da srcinação e da realização. Ademais, o apetite mediato vem depois, forte e impetuoso, defender o imediato. b) Os afetos imediatos que implicam quietude no termo (gozo e tristeza) são naturalmente anteriores aos mediatos na ordem da intenção, ainda que posteriores na ordem da realização. Especialmente porque os imediatos têm sentido de fim, e o fim é sempre anterior na ordem intencional e posterior na ordem real: a quietude ou descanso possui esse sentido de fim, enquanto o movimento — próprio dos afetos mediatos — tem sentido de meio. 6. Se se comparam entre si os afetos sensíveis imediatos, deve-se observar que, tendo o bem razão de fim — que é anterior na intenção, mas posterior na realização —, tais respostas afetivas podem ser consideradas ou segundo a ordem da intenção ou segundo a ordem da realização. a) Na ordem da realização, é primeiro o que sucede de modo mais imediato ao tender ao fim; e é evidente que tudo o que tende a um fim, em primeiro lugar, há de possuir aptidão ou adequação a esse fim, pois nada tende a um fim que lhe é desproporcionado; em segundo lugar, há de ser movido ao fim; e, em terceiro lugar, há de descansar nele uma vez alcançado. Pois bem, a aptidão ou adequação da dinâmica tendencial ao fim é o amor, que não é senão a complacência do bem (complacentia boni); o movimento para o bem é o desejo; e o descanso no bem é o gozo. Assim, segundo esta ordem, o amor precede ao desejo e este ao gozo. Em suma, o efeito do amor, quando já se possui o objeto amado, é o gozo; enquanto não se possui, é o desejo. b) Mas na ordem da intenção dá-se o contrário; porque o gozo intentado produz o desejo e o amor, dado que o gozo é a 266
266 - S. Th., I-I, 25, 2, ad 1. O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino
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fruição do bem, que é de certo modo fim, como igualmente o é o bem. Em síntese, o gozo causa o amor enquanto é anterior na intenção. Por fim, o ódio tem, em certo aspecto, uma prioridade com respeito ao amor: na ordem da execução é antes o separar-se de um termo que o aproximar-se do outro; mas na ordem da 267
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sucede o contrário, o separar-sedas de tendências um termo éintenção para aproximar-se do outro, pois e o movimento pertence mais à ordem de intenção que à de execução, e por isso o amor é antes que o ódio, por serem ambos movimentos ou respostas tendenciais. 7. Comparados os afetos sensíveis imediatos com os mediatos, e advertindo-se que o repouso é o fim do movimento e, portanto, é anterior na intenção, ainda que posterior na realização, segue-se o seguinte: a) Se se comparam os afetos mediatos com os imediatos que implicam descanso no bem, evidentemente aqueles precedem na ordem de realização aos imediatos; tal como a esperança precede ao gozo e o causa. Mas o afeto imediato que implica quietude no mal, quer dizer, a tristeza, está no meio de dois afetos mediatos : segue-se ao temor, porquanto, chegado o mal que se temia, se produz a tristeza; e precede à ira, porque o apetite de vingança que surge por causa da tristeza anterior pertence ao movimento da ira; e, como se julga que é bom vingar-se do mal, uma vez conseguida a vingança, vem o gozo. Assim, todo afeto mediato tem por termo outro imediato referente à quietude, a saber, o gozo ou a tristeza. b) Se se comparam os afetos mediatos com os imediatos que implicam movimento , então é claro que os últimos são anteriores, pelo fato mesmo de os afetos mediatos acrescentarem algo aos imediatos, assim como, igualmente, o objeto do apetite mediato acrescenta ao do imediato o aspecto 269
267 - S. Th., I-I, 25, 2. 268 - S. Th., I-I, 25, 2, ad 3. 269 - S. Th., I-I, 29, 2, ad 3. 172
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de árduo ou difícil. A esperança acrescenta ao desejo certo conato e elevação de ânimo para conseguir o bem difíci l, e, igualmente, o temor acrescenta à aversão certa depressão do ânimo pela dificuldade do mal. Assim, os afetos mediatos são intermediários entre os imediatos que comportam movimento para o bem ou para o mal e os que implicam repouso notêm bem no mal. Ee seu assim está nos claroimediatos. que os afetos mediatos seuouprincípio termo Em suma, nos apetites imediatos há três grupos de respostas afetivas contrapostas: amor e ódio, desejo e aversão, gozo e tristeza; e também h á três nos apetites mediatos, que são: esperança e desesperação, temor e audácia, e a ira, à qual não se opõe nenhuma resposta afetiva. Há, portanto, onze respostas afetivas diferentes ontologicamente em espécie: seis no apetite imediato e cin co no apetite mediato; e sob elas se compreendem todas as demais respostas afetivas do sujeito . Ainda que esta afirmação possa parecer uma tese dogmática, porque declara “esgotado” com sua análise o âmbito da afetividade, deve-se observar imediatamente que se refere ao fato de que a análise categorialontológica não encontra mais pontos de referência fundamentais — tensões, níveis e respostas objetivas —, mas deixa aberta a possibilidade e necessidade de uma ampla — e talvez inesgotável — descrição psicológica e fenomenológica (intensidades, alterações, concomitâncias, temperamentos, desvios, etc.), tanto na vivência íntima como na vida social do sujeito. 270
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3. O amor sensível 1. Segundo o que foi dito, o amor preside a vida tendencial e afetiva. Em cada uma das formas de tendência humana, dá-se o nome de amor ao que é princípio do movimento orientado a 270 - S. Th., I-I, 25, 1. 271 - S. Th., I-I, 23, 4. O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino
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um fim concreto. O bem é considerado pelo Aquinate como se fosse um agente natural que produz dois efeitos na tendência do sujeito: primeiro lhe dá uma forma e depois o movimento que a ela corresponde. a) E, no que diz respeito aos seres inanimados, a causa geradora dá ao corpo — na terminologia física medieval — a 272
gravidade e o movimento conseguintes a ela;conatural, e a gravidade, que é o princípio do movimento para o lugar pode chamar-se de certo modo amor natural. A tendência natural ou pré-consciente, própria da camada ontológica mais básica de todo ser, é uma inclinação, cujo princípio de movimento é a conaturalidade (connaturalitas) do sujeito com aquilo a que tende; essa tendência “conaturalizada” recebe — com uma denominação metafórica e geral — o nome de amor natural. Por isso, Tomás de Aquino até chama de amor natural a própria conaturalidade que um corpo pesado tem com seu centro em virtude da gravidade. O amor natural não é uma dimensão inferior, mas básica, que se encontra tanto nas forças vegetativas da alma quanto em todas as potências anímicas, em todas as partes do corpo e, em geral, em todas as coisas, dado que cada ser tem uma inclinação conatural (um pondus naturae, na expressiva terminologia escolástica) para o que lhe convém segundo sua natureza. Trata-se da relação transcendental pela qual uma entidade se ordena a outra (a essência à existência, a matéria à forma, a potência ao ato): é algo ontológico e entitativo, prévio à ordem dinâmica ou operativa. Chamar apetite a este peso inato é falar impropriamente. O apetite é movimento para algo; mas uma mera entidade ordenada ou comensurada naturalmente não é um movimento, e sim uma disposição para o movimento: é algo estático, quieto e permanente. Visto do ângulo de sua inclinação, cada ser tem natural conformidade ou aptidão para o que lhe é substantivo, a qual constitui, metaforicamente falando, o amor natural; e, 273
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272 - S. Th., I-I, 26, 1. 273 - S. Th., I-I, 26, 2. É o amor em sentido impróprio e metafórico. 274 - S. Th., I-I, 26, 1 ad 3. 174
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igualmente, tem desconformidade natural com tudo o que lhe é contrário e degenerativo, a qual constitui o ódio natural. Seu sujeito não é uma faculdade ou apetite da coisa, mas a própria essência ou entidade ordenada transcendentalmente a seu complemento. b) A conaturalidade, adaptação ou coaptatio da tendência consciente (sensitiva intelectual) aboni determinado bemamor já é complacência do bemou (complacentia ) e se chama em sentido próprio e psicológico. Ainda não é gozo ou posse alegre da coisa, mas pura complacência em sua existência, afirmação de seu simples ser bom. Os termos mais empregados para descrever este fenômeno são os seguintes: immutatio, intentio, coaptatio e complacentia. O primeiro ressalta o objeto como motor; os outros designam o objeto como termo da tendência do sujeito. Immutatio é a comoção, impressão ou modificação que a tendência sofre pelo objeto de que depende. Intentio expressa a direção para o objeto. Coaptatio define a modulação da tendência que, tendo recebido a atualidade do objeto, é configurada e volta ao objeto. O que no âmbito físico é a gravitação e a atração universal corresponde, no âmbito psicológico, à imantação e atração da tendência pelo objeto. Santo Tomás faz para a descrição do amor um uso constante da metáfora física. Complacentia indica o estado psicológico de gozo intencional em que a tendência fica. O amor pode ser, correlativamente, sensitivo ou racional, de acordo com o nível ontológico da resposta e da fonte de co275
275 - Uso seguidamente um símile da vida an imal. Quando a raposa sente fome, aproxima-se de um cercado de animais; sua estimação instintiva lhe dita a astúcia conveniente para fazer um rodeio e evitar congêneres que por suas capacidades pudessem prejudicá-la. Mas, quando diante dela se apresenta a galinha, sua tendência fica comprazidamente “engalinhada”, alterada, absorvidapor pelaela. ave; dizer que então a raposa sentecoaptada um amoreirresistível É apoder-se-ia mesma realidade objetiva da galinha o que “engalinha” o apetite da raposa: sua tendência, uma vez supreendida, ficou ao mesmo tempo captada e comprazida por seu objeto, conquanto ainda não o tenha devorado. Este símile pode ajudar, de certo modo, a compreender a essência realista do amor. A metáfora da “flechada” também é acertada a este respeito, pois a flecha que o outro lança não só fere a tendência do amante, mas, além disso, identifica-se com ela, fá-la saborosamente conatural, constituindo então o amor em sent ido essencial. O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino
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nhecimento que a provoque. O bem é fim e, como tal, tem poder de despertar e excitar o apetite. O poder excitante do fim ou do bem é diferente segundo esteja realmente presente ou ausente para o apetite; porque, como presente, faz descansar nele; e, estando ausente, faz dirigir-se a ele. O bem sensível pode ser visto ou do ângulo do apetite, considerado este 276
como um móvelcognoscitiva, natural impelido por um agenque te,propõe ou do ângulo da faculdade a imaginação, esse bem. 1º Esse móvel natural que é o apetite recebe do agente três coisas: primeira, a forma, atualidade ou aptidão (coadaptationem) ao movimento; segunda, o movimento conseguinte; terceira, a terminação do movimento, a quietude no termo final. A adaptação, proporção ou hábito do apetite ao bem conhecido é a primeira imutação que o apetite recebe do objeto e se chama amor, que não é outra coisa senão uma resposta de complacência no apetecível; e desta complacência se segue o movimento para o apetecível, que é o desejo, e, por último, a quietude, que é o gozo. 2º O bem sensível, considerado absolutamente, é captado pela imaginação e assim é proposto ao apetite. De três maneiras pode ser captado pela imaginação o bem sensível absolutamente considerado: sob o aspecto de presente ou possuído, sob o aspecto de futuro ou não possuído, e sob o aspecto geral de bem sensível, independentemente do caráter presente ou futuro. E dessas três maneiras pode o bem sensível mover o apetite imediato aquisitivo, provocando três espécies de imutação ou resposta. Quando o apetite se adapta e conforma a esse bem, surge o amor; se o bem está ausente, atrai para si o apetite, dando srcem ao desejo; e, enquanto está presente, aquieta-o em si e causa o gozo. O amor não se dirige ao bem nem essencialmente presente nem essencialmente futuro, 277
276 - S. Th., I-I, 26, 1. 277 - Pois em todo movimento real e efetivo há três elementos. Primeiro, a orientação, adaptação ou direção ao termo final, a qual está unida ao primeiro impulso pelo qual se abandona o termo in icial: a ela responde, no apetite, o amor. Segundo, o movimento mesmo, enquanto é trânsito efetivo do termo inicial ao termo fin al: e a ele responde o desejo. Terceiro, a mesma consecução ou chegada ao termo final, ou seja, a quietude no termo: à qual responde o gozo. 176
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mas ao bem como tal (ut sic), enquanto prescinde da ausência ou da presença. De modo que o amor é uma resposta afetiva especificamente diferente tanto do desejo quanto do gozo. Como no plano da consciência sensível a coisa apetecível dá ao apetite, desde o início, certa adaptação (coaptatio) a ela, que é a complacência na coisa, e como dessa adaptação se depois odo movimento a coisa,circularmente o desejo, é claro que osegue movimento apetite se para desenvolve — afirma Santo Tomás recordando uma tese aristotélica: pois a coisa apetecível move o apetite convertendo-se de algum modo na intenção deste (faciens se quodammodo in eius intentione); e o apetite se orienta a conseguir realmente o objeto apetecido, de modo que o movimento termine ali onde começou. Em suma: o amor, como imutação do apetite pelo objeto apetecível, é uma resposta afetiva, que reside própria e univocamente no apetite imediato aquisitivo e, em sentido próprio e analógico, na vontade. O amor não designa o movimento do apetite tendendo já ao objeto apetecível, e sim a imutação ou o movimento efetuado no apetite pela coisa apetecível, de modo que esta lhe propicia complacência. O amor, como resposta afetiva, implica imutação e movimento, mas não o movimento do apetite, o qual é próprio do desejo, mas o princípio deste mesmo movimento. 2. E, se, para usar uma metáfora musical, o amor é a consonância do apetite com o captado como conveniente, o ódio é a dissonância do apetite com o captado como repugnante ou nocivo. Dado que todo o conveniente, enquanto tal, é algo bom, também todo o nocivo, enquanto tal, é mau. Desse modo, assim como o bem é o objeto do amor, o mal o é do 278
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278 Th., I-I, 26, 2. 2. Em sentido próprio e unívoco o amor se dá no apetite (S. 279 - S. Th., Th., I-I, 26, 1-2); em sentidopróprio e análogo, na vontade (S. Th., I-I, 26, 3-4); e em sentido apenas metafórico, em todas as coisas naturais. 280 - S. Th., I-I, 26, 2, ad 3. E emIII Sent., dist. 27, q. 1, art. 1: “Quando o afeto ou o apetite fica imbuído completamente pela forma do bem, que é seu objeto, compraz-se nele e adere a ele como se estivesse fixo nele, e então dizemos que o ama; portanto, o amor não é outra coisa senão certa transformação do afeto na coisa amada”. O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino
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ódio. Poder-se-ia pensar que, se tudo o que é, enquanto ser, é bom, sendo o mal o objeto do ódio, então não haveria ódio a ser algum, mas só à falta ou ausência de ser. Mas tal modo de pensar é falso. Porque “o ser enquanto ser não implica incompatibilidade, mas conveniência — já que todas as coisas convêm no ser; mas o ser determinado e concreto pode figurar 281
comoumincompatível com outro determinado ser singular: e por isso ser pode mostrar-se como odioso a outro, e mau, ainda que não em si, mas por suas relações com ele”. 3. Não se deve confundir o amor com o desejo nem com o gozo ou alegria. Do amor surge o desejo; e o desejo é, de si, a tendência ao gozo. O gozo é duplo: um, o que se dá no bem inteligível, que é o bem do espírito; outro, o que se acha no bem adequado à sensibilidade. O primeiro compete unicamente à alma espiritual; o segundo, à alma e ao corpo, pelo fato mesmo de os sentidos serem potências em órgãos corporais; daí que o bem adequado ao sentido seja um bem de todo o composto humano. Há, pois, uma tendência a tal gozo, um desejo, comum à alma e ao corpo. Tender a algo como bem prazeroso para os sentidos, internos ou externos, pertence ao apetite imediato adquisitivo: é o campo dos desejos sensíveis. O bem com que se goza e se alegra o sentido é também o objeto do apetite imediato adquisitivo. Também o desejo pode pertencer não só às tendências sensíveis, mas também às espirituais; neste último caso, seu ato não implica associação alguma com a sensibilidade, como o desejo das tendências sensíveis. 282
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281 - S. Th., I-I, 29, 1. 282 - S. Th., I-I, 29, 1, ad 1. 283 - S. Th., I-I, 30, 2. 284 - Sendo o desejocomo a tendência ao ebem deleitável, estecoisas pode convir ou eà natureza do animal, a comida a bebida e outras análogas; a este desejo se chama natural; ou ao conhecimento do animal; assim, quando algo é apreendido como bom e conveniente, ele se compraz nisso. Tal desejo do deleitável se chama não natural. O primeiro modo de desejo, ou seja, o natural, é comum aos homens e aos animais, dado que para uns e para outros há algo conveniente e deleitável segundo sua natureza. Nestas coisas todos os homens estão de acordo: Santo Tomás as chama, em clave aristotélica, comuns e necessárias. O outro modo de desejo é próprio do ho178
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O amor é como um nome comum que abarca, no plano da consciência, tanto a resposta afetiva sensível como a espiritual. O amor espiritual acrescenta ao amor em geral uma escolha prévia; é claro, assim, que o amor espiritual não se encontra nos apetites, mas somente na vontade e unicamente na natureza racional. O amor sensível, por conseguinte, 285
reside naimediato tendência apetite; ao apetite de sensitiva aquisição,oudado que ademais, se refere pertence ao bem em seu aspecto absoluto, não como árduo ou difícil, pois sob esta dimensão o bem cai dentro do objeto do apetite mediato de resistência. Mas o amor sensível é sempre subjetivo, porque “seu objeto é o prazer, ou também um objeto ou uma ação enquanto prazerosos [...]. Por mediação do bem subjetivo que é o gozo ou prazer, as ações conduzem o vivente a seu bem objetivo, individual ou específico, obtido pelo uso de bens úteis”. É um erro considerar o amor que parte da vontade como uma espécie de apetite sensível refinado, como se no espiritual houvesse instintos da mesma maneira como no corporal há sede; e, ainda que a beleza integral do amado não seja vista como simples ilusão, como um prodígio fascinante produzido pelo amor, não pode ser reduzida falsamente à capacidade de aplacar uma necessidade. “Em todas as necessidades [sensíveis] a exigência é o principium e o objeto é o principiatum, enquanto em todas as respostas [espirituais] o objeto é o principium e a atitude do 286
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mem, a quem compete conceber como bom e conveniente algo que está fora do que a natureza requer (S. Th., I-I, 30, 3). O desejo natural é finito em ato, mas infinito em potência. Não pode ser infinito em ato porque tem por objeto o que a natureza requer , e esta se di rige sempre a uma coisa finita e certa: por isso o homem nunca deseja comida nem bebida infinita. Mas, assim como acontece na natu reza que o in finito exi ste em potência por sucessão, assim também o desejo vem a ser infinito por sucessão; isto é, depois de tomado o alimento, deseja-se tornar a tomá-lo; e igualmente nas demais coisas que a natureza o desejo não natural é completamente infinito,deporque se seguenecessita. à razão, eMas a esta compete ir ao infinito. Daí que quem cobiça as riquezas possa desejá-las não até um limite determinado, mas absolutamente, para ser tão rico quanto lhe seja possível (S. Th., I-I, 30, 4). 285 - S. Th., I-I, 26, 3. 286 - S. Th., I-I, 26, 1. 287 - Louis-B. Geiger, 52-53. O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino
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homem é o principiatum. Todas as necessidades se fundam na natureza do homem, e o objeto se torna relevante porque já existe a necessidade, independentemente de qual seja o tipo de relevância que o objeto possui. Sua relevância para o homem funda-se aqui na índole que o objeto tem de poder aplacar a necessidade. Se a necessidade, o instinto, o apetite, carecesse de atrativa vitalidade, mesmo agora possuidiante uma força nãoentão teria oessa forçaobjeto e não que se apresentaria de nós como relevante. Porque temos sede, exigimos água [...]. Na resposta ao valor, o tema é o valor do bem, enquanto no apetite o tema é a satisfação da necessidade, ou o desenvolvimento do sujeito, desenvolvimento que necessita imperiosamente de determinada coisa.” 288
288 - D. von Hildebrand, La esencia del amor, 62-63.
Capítulo VII
O Amor Espiritual
VII - O Amor Espiritual
1. Fenomenologia e ontologia do amor
A filosofia clássica concorda com as correntes fenomenológicas que rejeitam a redução do amor espiritual a uma causação eficiente a partir de planos afetivos inferiores, como são as sensações orgânicas ou as tendências sensíveis. Para compreender o amor, é preciso notar — diz o fenomenologista — a primazia da motivação sobre a mera causação . Fazercausalmenteresponsável pelo amor, por exemplo, a sensação corporal equivale a unificar planosontológicos irredutíveis. Uma sensação corporal, seja pontual (como o gosto do paladar), seja generalizada (como a fadiga que invade todoo corpo), ainda que não se confunda comos processos fisiológicos, sendo como é uma experiência consciente, tem uma relação essencial com nosso corpo. Deixar sem motivação própria a vida afetiva é mutilar seu sentido ontológico. E o fato é que boa parte da psicologia moderna reduziu a afetividade a puroestado subjetivo, fazendo que a “resposta” afetiva ficasse separada do objeto, o qual deveria ter sido seu verdadeiro “motivo”. Nessa perspectiva, afirmou-se que o amor tem um significado em si mesmo, independentemente de seu objeto, de seu “para quê”; ou seja,foi considerado como estado afetivo imotivado. Precisamente afenomenologia contemporânea fez algo que já fizera séculos antes afilosofia clássica, a saber: indicar que os afetos — e o amor entre eles— são respostas essencialmente intencionais. Com a palavra “intencional” indica-se que há uma relação necessária entre ocentro pessoal e seu objeto; dito de outro modo: não há afeto sem objeto; o amor, por exemplo, não é algo flutuante, vazio e semcontrole objetivo. Tanto a fenomenologia contemporânea quanto a filosofia clássica procuraram evitar a este respeito quatro equívocos encadeados: 1º Primeiro, reduzir o objeto ao movimento afetivo. 2º Depois, considerar o movimento afetivo como independente do objeto, como se aquele tivesse um significado em si mesmo. 3º Em seguida, transformar em estado afetivo algo que não está na esfera afetiva; por exemplo, reduzir esse ente moral preO Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino
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ciso que é a responsabilidade surgida do amor a um mero ente psicológico, a saber, a um sentimento de responsabilidade. 4º Finalmente, reconduzir também os sentimentos espirituais — como o respeito, a veneração, o amor, a fidelidade — a uma esfera psíquica mais baixa; com o que se acaba por dessubstancializar tais sentimentos. No caso do amor, tanto seu objeto a responsabilidade mesma (ente moral) que(ente suscitareal) são quanto considerados meramente como fenômenos psíquicos srcinados por processos de estratos inferiores. Algo que é realmente objetivo e exige uma existência independente da função psíquica é substituído por uma experiência subjetiva de grau inferior. Os sentimentos acabam por ser determinados como gesticulações no vazio, desprovidos de significado e de objeto. Nada tem de estranho que, contando com essas circunstâncias teóricas, surja na vida normal o “sentimentalismo”, fenômeno em que o indivíduo se submerge em si mesmo e, sem enfocar o bem objetivo que o afeta ou motiva, desfruta de seu puro estado interior: faz do objeto um instrumento cuja missão consiste em subministrar estados sentimentais. Alguém pode derramar lágrimas não tanto para chorar pelo amigo quanto para dar a si mesmo uma comoção agradável. Acontece então certa perversão antropológica. No caso do amor, a perversão não consiste tanto em que o sentimento amoroso nos deleite e nos faça felizes — esse é um efeito do bom amor — quanto em que o sujeito só desfrute do próprio amor, permaneça apenas no gozo introvertido do sentimento. E acontece às vezes que esse sentimentalismo se converte na forma mental do filósofo, o qual não vê que, quando o sujeito se comove, já está polarizado pelo objeto, enfocado para ele, e não meramente autoexcitado psicologicamente. Quem ama para saborear sua própria capacidade emocional não tem um genuíno amor, pois lhe falta a atmosfera do outro. A filosofia clássica indicara que na experiência afetiva nos deixamos penetrar pelo objeto, por seus valores, abrindonos à sua mensagem. O amor é, assim, uma autêntica resposta, impossível de reduzir a um desfrute introvertido. Em ser 184
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resposta genuína consiste a essência do amor. Mas é possível o encontro com a “realidade“ objetiva do outro para que tal resposta se produza? Já advertimos que na filosofia clássica há uma decidida atitude de realismo, o qual baseia na essência do outro eu real a resposta afetiva de aceitação ou rejeição: sem esse realismo do eu, não seria possível umahão ontologia amor. Por isso, ooutro fio condutor da investigação de ser asdoreais tendências que se cruzam no agir afirmativo e negativo do homem com respeito a outro homem real. 2. Constituição volitiva do amor espiritual
Convém advertir novamente que o objeto sobre o qual recai imediatamente o amor sensível é o gozo sensível, “quer dizer, um estado subjetivo, diferente do bem real ao qual está ordenado o animal por natureza, e que será perseguido por um conjunto de operações destinadas a alcançar realmente a posse de seu bem. Entre o sujeito ordenado a certas realidades, chamadas seu bem — porque são suscetíveis de assegurar sua perfeição —, e estas mesmas realidades, intercala-se um elemento novo. De modo que nos encontramos diante de duas formas de bem, ligadas entre si por um signo e pelo que este significa. De um lado, um bem de ordem psicológica, o gozo; de outro lado, o bem que pode chamar-se objetivo, o alimento, o companheiro, etc. O bem subjetivo é o signo do bem objetivo, assim como a luz verde significa caminho livre. Mas com esta diferença essencial: o gozo também é um bem, e até um bem absoluto em sua ordem, enquanto a luz verde não tem senão um laço convencional com o movimento. O gozo pode assim seduzir por si mesmo o amor sensível e até mascarar o bem que ele deve significar”. O animal não é capaz de discernir os dois momentos do bem e os persegue unitariamente; o homem 289
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289 - In De sensu, 1, n. 12. 290 - Louis-B. Geiger, 47-48. O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino
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pode persegui-los isoladamente, e até propiciar-se o gozo sem se comprometer com as exigências reais do objeto. A verdade é que no nível sensível do amor só é enfocado o gozo, o prazer: se há prazer, há bem. “A afetividade sensível se encontra assim encerrada no mundo subjetivo do prazer. Este último leva o vivente, sem que este o saiba explicitamente, a realizar os atos úteis semseriam os quais tanto sua De existência individual a da espécie impossíveis. modo que o prazerquanto se encontraria ligado sobretudo a ações úteis que, ademais, são em si mesmas prazerosas. A ordem dos valores, no plano psicológico, é o inverso da ordem objetiva. O gozo que biologicamente está a serviço de ações úteis e proveitosas se converte psicologicamente no único bem, como se as ações tivessem por única missão estimulá-lo e mantê-lo.” Nesses afetos sensíveis, é preciso distinguir um elemento material — que é a comoção orgânica — e um formal, que é o ato do apetite. Assim, por exemplo, na ira o material é o afluxo de sangue para o coração, e o formal o desejo de vingança. O motor imediato do corpo animado, em sua constituição psicofísica, é em nós o apetite, e daí que seu ato sempre seja acompanhado de uma comoção orgânica (para os medievais especialmente na região do coração, que para eles era o princípio do movimento no animal); e por isso os atos do apetite, ou seja, suas respostas afetivas, levam anexas certas comoções orgânicas, que não se dão nos atos da vontade. E mesmo por parte do elemento formal há algumas respostas afetivas que incluem algo de imperfeito, como, por exemplo, o desejo, que se refere a um bem ausente, ou a tristeza, que se refere a um mal presente, e diga-se o mesmo da ira, que pressupõe a tristeza. Outras respostas afetivas, em contrapartida, como o amor e o gozo, não envolvem imperfeição alguma. Pois bem, nenhuma das respostas afetivas do apetite, pelo que têm de material, convém à vontade; mas sim, em contrapartida, as que não envolvem imperfeição, como o amor e o gozo — que 291
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291 - Louis-B. Geiger, 49. 292 - S. Th., I, 20, 1, ad 1. 186
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podem significar tanto atos do apetite quanto atos da vontade —, e inclusive as que em sua mesma forma incluem alguma imperfeição, como o desejo e a tristeza. Não é possível em poucas linhas sublinhar a “modernidade” desta doutrina do amor espiritual. Max Scheler, que viu a necessidade de introduzi-la em seu esquema antropológico 293
em contraposição às teorias modernas, indica um ato ou movimento de índole espiritual queque não“oé amor menosé independente, em essência, de nossa constituição corporal e sensível que os atos do pensamento e suas leis”. O amor não pode ser reduzido a uma combinação de sentimentos e tendências sensíveis. O mesmo pensava Santo Tomás. Sucede porém que, para este, o objeto próprio do amor espiritual não é diretamente o ser ou o bem espiritual, mas o bem intelectual e universal captado pela razão, pois sob esse aspecto geral de bem se apresenta tanto o espírito como o corpo. Este amor tem uma conexão muito profunda com o conhecimento intelectual: não porque o conhecimento engendre o amor assim como a faísca acende o corpo inflamável, mas porque o amor espiritual não pode produzir-se se o bem, que é seu objeto, não se faz presente para nosso espírito mediante o conhecimento intelectual. “O próprio deste conhecimento não é que recaia sobre representações gerais e abstratas, enquanto nossa imaginação e nosso conhecimento sensorial recaem sobre representações concretas ou individuais. A diferença que separa radicalmente o conhecimento intelectual, seja qual for seu modo de conhecer, do conhecimento sensível, incluído o esquematizado, é 294
293 - S. Th., I, 20, 1, ad 2. Tal é o resultado diferencial da analogia, empregada em sentido técnico. Pode-se manter que o ato do apetite sensível é o analogado direto do sem incorrer defeito que Hildebrand atribui principal ao uso daou analogia n’ amor A Essência do Amorno : “Se queremos conhecer a essência da vontade, carece de sentido partir de fenômenos análogos, tais como as tendências instintivas do animal ou mesmo as ‘tendências’, ainda mais afastadas e equívocas, do mundo vegetal; há que partir, em contrapartida, do homem, e não precisamente das tendências meramente instintivas, mas da ação em sentido pleno, onde se dá inequivocamente em nós a vontade em sua especificidade” (34-35). 294 - Max Scheler, Vom Umsturz der Werte, 97. O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino
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que por ele conhecemos ou podemos conhecer a essência de cada objeto, enquanto no plano do conhecimento sensível só temos representações cujo valor de ser se oculta de nós. Para o caso do bem, isto quer dizer que sabemos ou podemos saber o que é o bem, qual é sua natureza, em sua unidade analógica e em cada um de seus modos. Conhecer o bem não é representar as realidades de boas: uma boaé pessoa ou um bom alimento, ou qualificadas coisas parecidas. Tampouco ter consciência de um estado psicológico chamado bem-estar ou gozo ou prazer. A bondade se manifesta formalmente pela atração que emana de um ser, e o apetite do bem é a inclinação para o ser de que emana essa atração: conhecer o bem é saber que um objeto possui em si mesmo algo que suscita uma inclinação pela atração que dele emana.” A resposta da vontade a essa atração é o amor espiritual, o qual requer como condição captar intelectualmente no interior das coisas boas a causa e o princípio formal da atração, que é o bem. Mas o amor, apesar da conexão condicionadora que tem com o conhecimento, é obra da vontade. Não de uma vontade que já descansa no gozo ou posse alegre da coisa, mas que se compraz na existência de algo, em seu simples ser bom (complacentia boni). Quer isso dizer que, para Santo Tomás, a atitude srcinária de um ser espiritual para com outro não é de receio ou de estranheza ontológica — como se o outro fosse 295
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295 - Louis-B. Geiger, 56-57. 296 - No que se refere ao objeto do amor, os clássicos consideravam que há em seu âmbito dois tipos: o material e o formal (que não devem ser confundidos com a causa material e formal respectivamente). O objeto material é meramente terminativo (no qual termina o ato), mas não motivo ou suscitador específico de resposta. Eles indicavam, de um lado, um objeto material per se: o que é positivamente amado: tanto o objeto material per se direto, que é a pessoa amada, enquanto pessoa; per se quanto o objetoDe indireto, que são as um coisas amadas paraper a pessoa quem amamos. outro lado, assinalavam objeto material accidens,a que é o rejeitado como mau (males morais ou físicos) pelo amor. O objeto formal pode ser ou simplesmente motivo, o que move essencial e primariamente quanto à especificação do ato, e que só em ordem a ele se constitui em sua espécie ou se define , disting uindo-se essencialmente de tudo o mais; ou formal terminativo e motivo ao mesmo tempo, só que primária e essencialmente terminativo, mas secundária e essencialmente motivo.
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uma ameaça à sua existência —, mas de aprovação ou afirmação. O amor que o outro dirige a mim confirma que minha existência é boa. Por esse amor sinto-me justificado em minha existência. Se ninguém me amasse, ficaria eu por confirmar, por aprovar meu ser. “Amar algo ou alguma pessoa”, comenta Pieper, “significa considerar bom, dizer que é bom esse algo ou esse alguém. Pôr-se frentenopara ele e dizer-lhe: ‘É bom que existas, é bom que de estejas mundo’.“ Esta afirmação de existência não é de índole intelectual — é ocioso dizê-lo —, mas volitiva: não é um acordo razoável, nem uma aprovação feita segundo uma neutralidade teórica, mas um acendimento volitivo (um afeto) que chega ao louvor da coisa amada. Tratase de um ato da vontade que quer que o outro exista. E, como o existir não é um elemento separado do concreto humano, aprovar a existência do outro significa afirmá-la em sua própria unidade natural e com todos os seus planos psicológicos e biológicos naturais, incluído o de sua duração. No mesmo sentido se expressa Max Scheler: “O amor repousa inteiramente no ser e no modo de ser de seu objeto (Sein und Sosein ihres Gegenstandes); não o quer diferente de como é, e cresce à medida que penetra mais profundamente nele”. Não quero apenas que exista o espírito da outra pessoa; quero que exista toda ela em totalidade de corpo e espírito. Ainda que o amado já existisse, só diante do amante floresce e prospera o ser do amado. De modo que “ser como tal” e “ser como afirmado” são dois ingredientes ontológicos do homem, e ambos necessários. E isso não só pela função educativa que o amor desdobra em seu raio de ação — como Pieper recorda acertadamente com as observações de René Spitz sobre as crianças criadas sem amor em orfanatos —, mas pela função metafísica de afirmação cumprida na ordem dos seres espirituais pelo amor: só porque eu sou aprovado em meu ser é que me podem ser reprovadas aquelas propriedades que não têm suficiente altura física ou moral: eu 297
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297 - J. Pieper, 39. 298 - Max Scheler, Liebe und Erkenntnis, Die Weisem Blätter, Jahr. 2. Heft 8, August 1915, 13. O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino
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sou mais que o que tenho. Só quem não me ama confunde minhas propriedades com meu ser, e ao rejeitar aquelas arruína também minha constituição ontológica. Para quem não me ama, eu não valho nada, nem sou nada. O que não significa que quem me ama e me aceita com minhas fraquezas e defeitos tenha de assumir também a responsabilidade que eu tenha neles. Ele mesupere. ama, ainda me ama para que eu as Não que me eu amatenha quemfraquezas; justifica ele minha fraqueza — que é da ordem do ter — como um elemento metafísico fixo — que é da ordem do ser: ao negar minha responsabilidade, torna cego o amor. E um amor cego — não informado pela luz da verdade — já nem sequer é amor. Depois, enquanto a vontade se constitui como tendência peculiar por ser especificada pelo conhecimento intelectual, amar conforme a verdade do bem é o ideal do homem, que deve perguntar em cada caso pelo fundamento de seus juízos de valor. Quem ao negar ceticamente a ordem ontológica do bem deposita seu amor em bens de categoria inferior, deixando preteridos os bens superiores, está muito próximo do subjetivismo; quem não ama o bem do prazer como mero signo de atividades que nos conduzem a fins e bens objetivos se aproxima do hedonismo. A objetividade e a verdade do amor enriquecem nosso ser de homens, pois nos permitem dar respostas livres; de outra maneira, não saberíamos o que temos de amar, nem em que medida fazê-lo. Objetividade e verdade do bem “fazem que o amor possa ser desinteressado, não somente por essa condição exterior do sacrifício de nosso bem, mas em sua tessitura mesma, como impulso que vai para o bem e o ama por si mesmo, sem outra consideração que seu valor próprio. O desinteresse do amor depende, assim, da objetividade como de uma condição de possibilidade, pois somente um espírito que sabe o que é o bem, e o mantém presente para seu olhar tal como é, pode também amá-lo no que é e para o que é “. 299
299 - Louis-B. Geiger, 86. 190
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3. Volições e sentimentos. Meios e fins
Para um filósofo moderno é difícil aceitar que o amor seja uma forma do querer ou da vontade. Ele tem na mente o trialismo psicológico configurado na tradição ocidental a partir de Kant: inteligência, vontade e sentimento. O amor seria de 300
fins, não de meios, e teriaem de contrapartida, ser forçosamente uma questão de sentimento. A vontade, seria faculdade meios, não de fins. Já o dissemos no início do capítulo. Mas, para o Aquinate, só a ordem dos apetites tem dois planos ontológicos diversos (apetite imediato e apetite mediato); a ordem da vontade, em contrapartida, é constituída por uma estrutura ontológica única e simples: não há nela planos, mas momentos: o dos fins e o dos meios. Ela é tanto vontade de fins (poder de amar o fim) quanto vontade de meios (poder de decisão sobre os meios conducentes ao fim). Essa unidade e simplicidade estrutural da vontade ressalta em face do apetite, o qual não se orienta ao aspecto “comum” de bem, pois os sentidos não captam o universal, mas o objeto sob um aspecto particular e concreto de bem (ou de mal); por isso cabe distinguir nele entre o bem e o mal tomados de modo positivo ou simples, e o bem e o mal tomados como árduos e difíceis. De modo que, segundo sejam os diversos aspectos particulares de bens, assim se diversificam as partes do apetite: o imediato se orienta ao aspecto próprio de bem enquanto é deleitável sensorialmente e conveniente naturalmente; o apetite mediato se orienta ao aspecto do bem enquanto é árduo ou difícil de conseguir. Mas a vontade se orienta ao bem sob o aspecto comum ou universal de bem: por isso não se diversifica interiormente, não admite em seu seio uma dupla distinção de tendências, as imediatas e as mediatas, ou seja, as de aquisição e as de resistência: fixa-se no bem (ou no mal) independentemente tanto da doação imediata do bem como de sua doação dificultosa ou 301
300 - Juan Cruz Cruz, “Intelecto y sentimiento”, cap. IV de Intelecto y razón. 301 - S. Th., I, 82, 5. O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino
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mediata. A vontade não tem por objeto um bem particular, nem o bem mesmo do sujeito, mas o bem, de modo que não se dirige “a determinado bem, como o apetite sensível ou o apetite do seres carentes de conhecimento. Afirmar o contrário é arruinar a espiritualidade da vontade”. Não há uma divisão na vontade — nem na inteligência — porque uma potência 302
queestranha tem por objeto o bem o sera ou a verdade poderia ser a nenhum bemounem nenhum ser. não “A ação da vontade é o amor do bem sob a luz da verdade. Para esse ato está inclinada por natureza a nossa vontade.” Sendo o bem espiritual duplo, o do fim e o dos meios, o amor expressa algo simples e absoluto e não pode ser um ato orientado aos meios, que é algo composto: o amor é o momento srcinal da vontade de fins. Para Tomás de Aquino há três atos da vontade de fins: a simplex volitio (velle), a intentio e a fruitio, em correspondência com os três afetos sensíveis imediatos: o amor, o desejo e o gozo. Por sua vez, a vontade de meios se desdobra também em três atos: electio, consensus, usus. Aos atos de fins chamariam os modernos “sentimentos”; aos de meios, “volições”. O amor espiritual é, segundo o Aquinate, um simples querer (velle), embora nem todo simples querer seja um amor. No desejo e no gozo espirituais começa a haver certa composição do ato, na medida em que o amor, como mero querer, é ato simples e puro: neste nível, querer e amar se identificam. O amor é a primeira imutação passiva da vontade provocada pelo bem espiritual conhecido pela razão. Em contrapartida, a fruição 303
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302 - Louis-B. Geiger, 95. 303 - Louis-B. Geiger, 95-96. Diz Santo Tomás: “A vontade, ainda que se dirija às coisas singula res que estão fora da alma, orienta-se a elas segundo quererrazão uma algo universal porque é bom” ( secundum (S. Th.,aliquam I, 80, 2,rationem ad 2). universalem), tal como o 304 - S. Th., I-I, 8-12. 305 - Se por vontade se entende a potência ou faculdade de querer, então ela se estende ao fim e aos meios, pois o bem, objeto da vontade, se encontra no fim e nos meios para o fim. Mas, se por vontade se designa não a potência, mas o ato de querer — o amor —, então só é propriamente do fim. Este ato simples versa sobre o que é por si mesmo objeto da faculdade, ou seja, sobre o que é bom e querido por si mesmo, qual é o fim. Os meios não são 192
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— aparentada com “fruto” — é a última coisa que se espera obter e gozar: trata-se do gozo que se experimenta na última coisa a que se aspirava, o fim. A fruição perfeita corresponde ao fim já possuído realmente, enquanto a imperfeita não é do fim real, mas do possuído apenas na intenção. E, por último, o desejo espiritual — a intentio — significa tender a uma coi306
sa: é ato daparalelo vontade com respeito ao fim.sensível. A intentio é um ato espiritual apenas ao desiderium Queixa-se, com razão, Pieper de estarmos acostumados a limitar a idéia do querer ao momento dos meios, ao “querer fazer algo”, “decidir-se a agir sobre a base de motivações”, reduzindo-o a uma vontade de transformar o mundo, de criar artefatos para nossa subsistência, etc. Trata-se de um apequenamento ativista da vontade. “Dá-se uma forma do querer que não tende a fazer algo ainda à espera de ser consumado numa configuração futura que muda a situação atual das coisas [...]. Além do querer fazer, há o puro assentimento afirmativo ao que já está aí. E este assentir ao que é tampouco tem caráter de tensão futurista. ‘O consentimento não é um futuro’ (Ricoeur). Aprovar e afirmar o que já é realidade, isso é amar.” Os atos volitivos referidos ao fim e aos meios correspondem respectivamente aos atos intelectuais de contemplar (intellectus) os princípios e de discorrer (ratio) sobre as conclusões. “Na rica tradição do pensamento europeu, afirmou-se sempre que, assim como a certeza imediata da contemplação é o fundamento e suposto prévio de toda atividade pensante, assim também o amor é o srcinal e mais autêntico conteúdo de todo querer, o que penetra as criações da vontade da flor à raiz. Toda decisão da potência volitiva tem nessa atuação fun307
tendeeadesejados bons eles senãopor pelosiamor mesmos, do fim mas(I-I, por8, ordem 2-3). Como ao fim, o fim e aévontade querido não por si mesmo e os meios só pelo fim, a vontade pode dirigir-se ao fim — pode amar — sem se mover ao mesmo tempo aos meios; ainda que para querer os meios se tenha de apetecer antes o fim. O ato pelo qual se move ao fim em absoluto (por exemplo, desejar a saúde) às vezes precede no tempo à volição dos meios (por exemplo, chamar ao médico para curar-se). 306 - S. Th., I-I, 11, 3-4. 307 - J. Pieper, 40-42. O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino
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damental sua srcem e seu começo, tanto no sentido temporal como no qualitativo. Por sua mesma natureza, o amor não só é a primeira coisa que a vontade produz quando atua, e não só ela extrai dele todos os demais momentos característicos de seu impulso, mas também alenta, como princípio, quer dizer, como inesgotável fonte criadora, toda decisão concreta, e a 308
sustentaabsolutamente, dando-lhe vida.” A vontade fim de três modos: e então seu ato se refere chamaaoamor espiritual, pelo qual, por exemplo, absolutamente queremos algo; o segundo, pelo qual se considera o fim como objeto de quietude, e desse modo o gozo espiritual se orienta ao fim; o terceiro considera o fim como termo dos meios que a ele se ordenam, e assim o desejo espiritual se orienta ao fim. Este desejo se refere ao fim como termo do movimento voluntário. Se o gozo espiritual implica repouso no fim, o desejo espiritual é ainda movimento para o fim, não descanso. O amor, como primeiro e fundamental ato do querer, só afirma, aprova o existir e o viver do outro: Primo vult suum amicum esse et vivere. O amor não é criador da existência do outro — não é um poder de tirar da nada o ser —, mas implica, sim, no amante, a intenção de eliminar qualquer obstáculo que impeça a existência total do amado, pondo para isso as condições adequadas que assegurem um âmbito de encontro e promoção pessoal. Se amar não é criar o ser do amado, ao menos é re-criar sua existência na complacência, na aprovação volitiva que não só se lança inicialmente à afirmação do outro, mas persiste e segue colaborando, único modo de reproduzir o amado em sua duração existencial. Porque o existir humano não é um ato de subsistência pontual, mas um estar presente numa corrente que não se esgota. 309
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308 - J. Pieper, 43-44. 309 - S. Th., I-I, 12, 2. 310 - S. Th., II-I, 25, 7. 194
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VII - O Amor Espiritual
4. Retroversão volitiva como ato para a objetividade
Cabe destacar um traço importante no amor espiritual: sua índole retroversiva . O amor espiritual é ato da vontade e, pela natureza dessa faculdade, pode tornar a si mesmo. “Sendo o objeto da vontade o bem universal, todo o conteúdo aspecto de bem pode caire, sob o ato da vontade. Mas o no mesmo querer é um bem portanto, pode querer querer-se . Isto acontece até com o entendimento, cujo objeto é a verdade: entende que entende, porque também ele é algo verdadeiro. O amor espiritual, em virtude de sua própria índole, pode tornar a si, porque é tendência espontânea do amante para o amado; daí que, pelo fato de alguém amar, ele ama amar-se.” De modo que até nesta dimensão retroversiva do amor se patenteia que o próprio amor é amado como bem em si, não como bem para mim. “Amar nosso amor não rompe o movimento fundamental de nosso ser para o bem. Não põe na raiz de nossa vida afetiva uma concupiscência, um movimen to centrípeto que seria preciso depois neutralizar. O movimento inteiro de nossa vontade gravita naturalmente ao redor do bem, e giramos na mesma órbita quando queremos, natural ou conscientemente, que esse movimento seja. Porque o movimento para o bem é a bondade própria dessa forma de ser que é o apetite sob todas as suas formas. O movimento consciente e livre para o bem conhecido em sua verdade é a bondade própria deste apetite que é a vontade. Amar que o amor se ja é, pois, amar o bem, a saber, esse bem que é o amor do bem. É até a má-lo duplamente, porque é não somente querer que o bem seja, mas também que irradie segundo sua natureza própria ao encontrar o amor do bem. O fato de que aqui se trate de nosso amor, e portanto de nosso bem, não impede que o amor de nosso amor seja objetivo, porque justamente por nosso poder espiritual de amar podemos amar nosso próprio ato como bem, graças ao poder de reflexão que possui 311
311 - S. Th., II-I, 25, 2. O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino
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o ato espiritual. Podemos saber que nosso amor é um bem, e podemos amá-lo objetivamente sob a razão de bem. Ao amarmos nosso próprio amor, não deixamos de fazer uma homenagem ao bem mesmo, ainda que este seja o bem que está em nós, porque sabemos que somos esse modo de bem que é o amor do bem segundo a verdade .“ 312
312 - Louis-B. Geiger, 115-116.
Capítulo VIII A Causa Do Amor
VIII - A Causa do Amor
1. A distância do outro 1. Já é um lugar-comum afirmar que o homem moderno tende a fazer da realidade que o cerca um objeto de domínio: o mundo não seria algo consistente em si mesmo, aceitável em atitude contemplativa, mas uma resistência que deve ser
vencida por um ilimitado trabalho conquista. Sua atitude pensante — como a cartesiana ou a de kantiana — desconfia das certezas oriundas do mundo extramental, impelida por uma atenção ao eu à certeza da percepção interna. Essa atitude teórica se completa com uma atitude prática, estimulada pelo lucro e pelo controle racional. O amor ao mundo se transforma em amor de si mesmo, movido não por uma atitude psicológica efêmera, mas por uma atitude radical e ontológica. Com o lucro do mundo, ganha o homem seu próprio ser. Mas, como o que ganha desse mundo não é a essência de suas coisas, mas as determinações quantitativas ordenáveis, seu próprio ser ganho se converte também numa relação precariamente assegurada. O próprio olhar que um homem lança a outro homem torna-se fria relação mecânica de domínio, desconfiança e competição. O srcinário não é aqui o amor, mas o receio e o cálculo. É verdade que na idade contemporânea não faltaram vozes, como a de Scheler, para alertar para esse fenômeno moderno, exigindo um contato imediato com as coisas mesmas, feito pela inteligência e pela vontade, e reclamando, acima da hostilidade generalizada nas relações com o mundo e com os demais homens, as autênticas atitudes de assombro e de respeito, de entrega amorosa. Mas a reação anti-solipsista de alguns contemporâneos saltou justamente para o polo oposto, afirmando que a posição de um eu exige a posição de outro eu, e isso tão radicalmente que o outro eu vem a ser como que um “constitutivo formal” do 313
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313 - “Um Eu solitário pugna por conseguir a companhia de um mundo e de outros Eu; mas não encontra outro meio de consegui-lo senão criandoos dentro de si” (J. Ortega y Gasset, “Kant. Reflexiones de centenario”, Obras Completas, IV, 35). 314 - Max Scheler, Vom Ewigen im Menschen, I, 180. O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino
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próprio eu. Não é que não exista um eu sem um tu: é que o tu mesmo passa a fazer parte essencial do próprio eu. Não bastava que o outro eu fosse um ser real: havia que fazê-lo, ademais, fator essencial de meu eu. Não seria suficiente então afirmar que, anteriormente às certezas conscientes do eu sobre si mesmo e sobre as demais coisas, seà atividade dão as certezas primigênias contato prévias consciente e lógica.doUm passocom maisoe tu, se afirmaria que tanto o eu como o tu são atualizações de um nós srcinário ou pré-consciente. Por exemplo, algumas expressões de personalistas contemporâneos se aproximam dessa valoração não só co-existencial mas co-essencial da realidade do outro. A filosofia clássica, representada entre outros por Santo Tomás, manifesta uma decidida atitude de realismo, o qual baseia na essência do outro eu real a resposta afetiva de aceitação ou rejeição. E o filósofo deve reconhecer essa anterioridade ontológica de um homem com respeito a outro homem. Sem esse realismo do outro eu, tornar-se-ia impossível uma ontologia completa do amor. 2. Sem a realidade do outro, causante do amor, dilui-se também a realidade do amor. Mas entre alguns modernos não faltou a pergunta de se o outro homem se dá a mim imediatamente. Sobressaltados pela suspeita de um dualismo antropológico entre a alma e o corpo (ou, em termos mais cartesianos, entre a substância pensante e a substância extensa), mantiveram a tese de que o mundo é inacessível à consciência humana diretamente e optaram, para chegar ao outro homem, pelo chamado “raciocínio analógico”, uma inferência causal que começa advertindo a percepção que tenho de alguns movimentos que se dão num corpo exterior ao meu e a similitude que mostram com os que eu faço para alcançar meus fins; e termina concluindo que aqueles movimentos são levados a efeito por um eu análogo ao meu. Recluído o eu na mente, conceberá o corpo do outro como uma máquina semovente, através da qual dificilmente se transluz o outro eu pensante, o qual seria percebido mediante um raciocínio analógico, leva200
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VIII - A Causa do Amor
do a efeito sobre a soma puramente externa de movimentos e gesticulações que do outro se deixam ver. Com a antropologia contemporânea a questão mudou de signo. O outro se dá a mim antes como “mensagem” que como movimento corporal, antes como ser preocupado que como ser que franze a testa. O outro se apresenta a nós de súbito; e em seu olhar o espírito amistoso ou antesantes que apercebo cor de seus olhos. O outro nos manifesta suahostil realidade que suas vivências. E, com sua realidade, os radicais dela. Quando o outro “exibe” sua realidade para mim, a primeira coisa que faz é lançar-se com ela em minha vida mais própria. O golpe inicial do outro em minha intimidade dispara ou acende a afetividade, especialmente o primeiro elemento desta: o amor. 315
2. O bem como causa especificativa do amor: fim e valor
Se no amor a tendência é “movida” pelo objeto, é preciso esclarecer o tipo de moção que ela sofre, porque poderia parecer que se trata da produzida por uma causalidade eficiente do outro em mim; e, se assim fosse, uma tendência como a vontade já não seria autora do movimento, ou seja, do amor mesmo: a tendência não seria nada. Qual é a obra que o objeto realiza sobre a tendência, subentendendo que o exercício do amor só tem por causa eficiente essa tendência? 1. Seja qual fora o tipo de amor — amor de si ou amor de outro, amor itinerante ou amor perfeito —, há duas séries causais do amor. a) Uma série provém do objeto, o qual exerce a causalidade própria de objeto, como causa final e formal. Causa final é o as315 - Se quiséssemos usar neste contexto a nomenclatura clássica com respeito à “causa” do amor, teríamos de recordar o seguinte: sua causa formal é o objeto, o bem; sua causa final interna é o próprio ato de amor; sua causa final externa coincide com o objeto; sua causa material ou receptiva (onde reside) é a faculdade apetitiva ou volitiva; e sua causa eficiente é o sujeito mesmo, o amante. O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino
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pecto objetivo do bem em si mesmo — e note-se que para que o objeto bom exerça sua causalidade deve dar-se uma condição necessária: ser conhecido pelo sujeito. Causa formal é a índole amável do objeto, a qual é uma semelhança (similitudo): é o bem em sentido formal e não só fundamental. O bem desdobra, pois, sobre as tendências (apetite e vontade) uma dupla suscitação final epolarizando-a formal; porque, por um aspecto, atrai para siobjetiva: a tendência, teleologicamente; por outro aspecto, informa o ato da tendência, conferindo-lhe conveniência, conaturalidade: do ponto de vista ontológico, tal causa informa o amante. Ambos os aspectos do bem oferecem um ponto de encontro com a filosofia moderna, especialmente sob o lema dos “valores”. Pois, partindo de que o motivo próprio da vontade é o bem, este apresenta um duplo sentido, como fim e como valor: de um lado, como perfectividade referida a um sujeito que tende para ele ou pretende possuí-lo; de outro lado, como perfeição ou acabamento, referido também a esse mesmo sujeito, mas expressando repouso do ser em sua plenitude. “Sob o aspecto de valor, aparece à maneira de uma qualidade, de uma ‘perfeição’ de que o objeto bom está revestido e penetrado e que se comunica, por contágio, ao querer que a propõe. É honesto querer o honesto; é útil querer o útil. O próprio desta quase qualidade é tornar o objeto digno de amor, de aprovação, de admiração, de desejo, etc. Correspondem-lhe, pois, no sujeito, atos e estados de ordem afetiva. Como fim, o bem se refere ao impulso do sujeito que tende para ele, esforçando-se por alcançá-lo ou realizálo. O que lhe responde no sujeito é, com toda a precisão, o 316
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316 - “O ato de amor tem a vontade por autora, mas com dependência passiva do objeto que a seduz, a magnetiza ou a imanta enquanto é um bem. Só ato permite final. ao objeto fazer sentir ali éseu influxo, que requer é paraeste a causalidade Enquanto esse ato produzido pela se vontade, causado também pelo fim. Uma fórmula parece reunir ao mesmo tempo na simplicidade de um mesmo ato indivisível a ação da vontade e a do objeto: a vontade respira o amor que o objeto lhe inspira ao aspirar a ele. Esse objeto amado não dá à vontade o poder que ela tem por natureza de pôr os atos. Deixa-lhe a iniciativa. Mas a impele a tê-lo: leva-a a exercê-lo” (André Marc, Psicología reflexiva, II, 42). 317 - Para perfectividad, cf nota 68. [N. do T.] 202
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que a psicologia inglesa chama conations. Apreender, projetar o bem como fim é apreendê-lo, projetá-lo como ‘por fazer’, ‘por possuir’, como termo de uma busca e, em geral, de uma atividade dirigida. O valor concerne, pois, à ordem da forma, da especificação, entendida num sentido muito particular, diferente em todo o caso da especificação que vem para o ato do objeto mesmo, através representação. O efim situa, ao menos principalmente, nada ordem do exercício da se existência; ele explica como a causa eficiente, mas no outro extremo, a eclosão da ação. Brevemente, digamos com Maritain, no qual nos inspiramos aqui, que o bem, sob o aspecto de valor, exerce com respeito ao ato humano uma causalidade formal (extrínseca), enquanto sob o aspecto de fim exerce uma causalidade que chamaremos simplesmente final ou, para tornar mais discreta a tautologia, teleológica.” b) Outra série parte do sujeito e exerce causalidade como agente ou eficiente e motor: nesta série encontram-se parcialmente todos os afetos da alma que, à sua maneira, podem provocar o amor. 2. Com respeito à série objetiva, que é a central e decisiva — porque as tendências se especificam por seu objeto —, a causa especificativa do amor é a final, em que devem levar-se em conta dois aspectos: a própria causa em seu próprio ser de causa (o ser real da coisa que é o fim, a bondade real do fim); e sua condição absoluta e necessária, que é o conhecimento do fim pelo agente. Uma coisa é a razão de causar, e outra a condição de causar. Pois bem, a causa final do amor sensível ou espiritual é o bem (sensível ou espiritual) tomado de modo absoluto e simples, prescindindo-se — não positivamente, mas de modo meramente negativo — de sua presença ou ausência, de seu caráter presente ou futuro. O bem é o objeto próprio e formal do amor e, portanto, causa especificativa sua. O peso do objeto no amor é em forma de atração e sedução. O amor 318
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318 - Joseph de Finance, Ensayo sobre el obrar humano, 58-59; Éthique Générale, 44. Ver também Jacques Maritain, La philosophie morale, 39-41. 319 - S. Th., I-I, 27, 1. Isso explica a precendência ontológica do amor sobre o desejo. “O objeto”, diz Roland-Gosselin, “não se acha presente no seio da O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino
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pertence ao apetite e à vontade, que são potências passivas ou receptivas porquanto seu objeto causa aspirativamente o movimento nelas. Como o amor implica certa conaturalidade ou complacência do amante com o amado, e como para cada um é bom o que lhe é conatural e proporcionado, segue-se que o bem é a causa própria do amor. Razão por que a linguagem 320
do ser amor não é(“eu a date efetividade ontológica , as palavras ao efetivo amo porque tu existes”), mas a dareferidas ternura ontológica, a linguagem referida ao bem (“eu te amo porque tua existência é maravilhosa e me arrebata”). Daí se depreende uma diferença fundamental entre vontade e amor. Porque a vontade como faculdade pode ser do bem e do mal; mas como ato de amar não pode ser senão do bem; por sua vez, o que os medievais chamavam noluntas é vontade do mal. Do mesmo modo, e no plano sensível, o apetite imediato de aquisição pode ser do bem e do mal; mas o amor sensível não pode ser senão do bem, porque só pelo amor sensível o apetite imediato aquisitivo é do bem simplesmente como tal (ut sic); pelo ódio é apetite do mal. Mas o mal não pode ser causa positiva. Porque “o mal nunca é amado senão sob o aspecto de bem: é bom só relativamente, mas é captado como absolutamente bom. E, neste sentido, um amor é mau enquanto tende ao que não é um bem absolutamente. E assim o homem ama a iniquidade enquanto por ela alcança algum bem, como o prazer, o dinheiro ou coisas semelhantes”. Também por isso é impossível alguém odiar a si mesmo de maneira substantiva (per se), “pois todo ser tende naturalmente ao bem, e nada pode ser apetecido senão sob o aspecto de bem, já que o mal é estranho à vontade. Amar a alguém é que321
vontade como um duplo dele, mas tal como o termo do movimento está presente na partida do móvel pela atração que exerce e pela direção que imprime. O amor, antes até de ser desejo, é transporte para um objeto real” (M. D. Roland-Gosselin, “Le désir du bonheur et l’existence de Dieu”, Revue des Sciences philosophiques et théologiques, 1924, 164). 320 - S. Th., I-I, 27, 1. 321 - S. Th., I-I, 27, 1 ad 1. 204
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rer o bem para ele. Por conseguinte, é necessário que alguém ame a si mesmo, e é impossível que, em sentido absoluto, alguém odeie a si mesmo”. Ninguém quer e obra para si o mal, senão considerando-o como um bem, “pois mesmo os que se suicidam consideram bom o morrer como término de alguma miséria ou dor”. 322
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Noodiar entanto, maneira (per accidens ) eu posso a mimde mesmo; e istoincidental de dois modos. “Primeiro, por relação ao bem que quero para mim; pois às vezes o que é apetecido como bom relativamente ( secundum quid ) é mau absolutamente ( simpliciter ); e, segundo isto, posso querer para mim incidentalmente o mal, o que é odiarme. Segundo, por parte de mim mesmo, para quem desejo o bem; porque cada coisa consiste antes de tudo no mais principal dela — por exemplo, diz-se que uma cidade faz o que o rei faz, como se o rei fosse a cidade inteira; e o homem é sobretudo seu espírito ( mens ). Alguns, no entanto, se crêem constituídos principalmente pelo que são segundo a natureza corporal e sensitiva; e por isso se amam segundo o que creem que são, e odeiam o que verdadeiramente são, querendo coisas contrárias à razão. Desses dois modos, quem ama a iniqüidade odeia não somente sua alma, mas também a si mesmo.” Os que amam a si mesmos em conformidade com a natureza sensível, à qual obedecem, “não amam verdadeiramente a si mesmos segundo a natureza racional, que determina que amemos para nós os bens tocantes à perfeição da razão”. Enfim, causa do amor pode ser tanto o que é motivo de amor (ratio diligendi ) como o que é via para o amor. “O bem é causa de amor no primeiro sentido, porque é amado o que tem índole de bem. No segundo sentido, pode ser causa de amor, por exemplo, a vista; pois bem, uma coisa 324
325
322 - S. Th., I-I, 29, 4. 323 - S. Th., I-I, 29, 4, ad 2. 324 - S. Th., I-I, 29, 4. 325 - S. Th., II-I, 25, 4 ad 3. O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino
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não é amável por ser visível, mas porque mediante a visão chegamos ao amor.” 3. No amor, o tema do “outro” não deve ser confundido com o tema do “bem” que para ele se quer. Tão decisiva é esta distinção, que Santo Tomás reconhece uma prioridade ontológica do amor perfeito: o que é amado com esta forma de amor 326
é amado e objetivamente de modosubjetivamente absoluto e por de si modo mesmoquiescente (simpliciter et secundum se); enquanto o amado com amor imperfeito não é amado objetivamente de modo absoluto e por si mesmo, senão que é amado por outra coisa, e subjetivamente de modo itinerante. Aplicam-se aqui à pessoa duas teses da metafísica geral: 1ª o ente absoluto é o que tem ser em si mesmo, enquanto o ente relativo é o que tem ser em outro; 2ª o bem que se converte com o ente é o que absolutamente tem bondade, mas o que é bem de outro é bom apenas relativamente. “O amor se subdivide e se ordena como o ser mesmo e seus graus. Ao amor de amizade, que é o amor por excelência, responde o grau de ser supremo, que é em si e para si, e portanto absoluto. Ao amor interior de concupiscência corresponde um grau de ser menor, que está em si, mas não para si, e, portanto, é para outro e essencialmente relativo. Como o ser que não é para si se refere ao ser para si, igualmente o amor de concupiscência busca em sua raiz o amor de amizade. Tudo é amável na medida em que é ser. E, se o ser em si e por si não é mais que outro nome do espírito, o amor parte do espírito para alcançar o espírito [...]. Quaisquer que possam ser as manifestações sensíveis, seria rebaixá-lo, degradá-lo, não ver nele o principal, a saber, o espiritual, que é o que dá um sentido a tudo o mais. Sendo de benevolência, pretende por definição um bem; é uma consagração reflexiva. Amar a alguém com amizade não é usá-lo, servir-se dele; é, pelo contrário, querer que ele seja o que é, quer dizer, espírito, pessoa, que conserve seu valor, sua digni327
326 - S. Th., II-I, 26, 2, ad 3. 327 - S. Th., I-I, 26, 4. 206
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dade, e até que os aumente.” De modo que amar algo para que seja bem de outro provém de um amor relativo, enquanto amar algo para que seja bem de si mesmo procede de um amor absoluto. Desta distinção surge uma hierarquia do amor: pois o amor relativo ou acidental se alimenta de um amor mais profundo: “O amor de bens úteis supõe sempre um amor perfeito, 328
o amor um bem amado por mesmo; edoo amor por um bemdefinito se alimenta emsidefinitivo amor perfeito de um bem como tal, cujo termo verdadeiro é o Bem absoluto, que buscamos em todo amor sem saber”. Resumamos o dito acerca da série objetiva do amor. O bem, como objeto próprio e formal do amor, exerce sobre este uma causalidade final, porque a forma é o fim do agente e do movido: o objeto próprio e formal se comporta como um termo a que tende a potência ou o ato; o bem pode ser considerado como causal final, porque é fim. O bem também desenvolve uma causalidade formal, porque se refere ao apetite e à vontade como a um ato que os informa; o bem, entitativamente considerado, é perfeito, e o perfeito é forma ou ato primeiro. Com respeito ao apetite e à vontade, que são potências passivas, o bem atua como um agente ativo ou motivante; mas obra só enquanto é forma e fim: não age como algo que emite individualmente, ut quod, uma ação (causa eficiente), mas como um motivo, ut quo, que guia (causa formal extrínseca) o sujeito, verdadeira causa eficiente. 329
3. O conhecimento como condição necessária do amor
a) Anterioridade principial do conhecimento 1. A causa universal de todo amor é sempre um bem conhecido (pelos sentidos ou pela razão). Alguns místicos afirmavam que o amor pode dar-se sem conhecimento algum, 328 - André Marc, Psicología reflexiva, II, 48-49. 329 - Louis-B. Geiger, 62. O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino
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porque o amor não surgiria da vontade, mas da essência mesma da alma, de seu espiritual fundo (fundus). Tese similar defendia modernamente Max Scheler, quando afirmava: “Antes que ens cogitans ou que ens volens, o homem é ens amans. A riqueza, as gradações, a diferenciação, a força de seu amor circunscrevem a riqueza, a especificação de funções, a força de seuo possível espírito e de seu possível horizonte ao contato com universo”. Considerada em sentido operativo, esta afirmação não seria sustentável para Santo Tomás; poderia sêlo se por amor se entendesse o “amor natural” que é próprio, em sentido entitativo, de toda faculdade, incluída a intelectual, pois a inteligência seria um amor natural da verdade, assim como a vontade é srcinariamente um amor natural do bem. Porque, segundo o Aquinate, a essência da alma não é imediatamente operativa; e, ademais, nenhuma tendência humana se desdobra sem um prévio conhecimento, do qual depende imediata e essencialmente em seu obrar. Pois bem, o conhecimento não é propriamente causa constitutiva do amor, mas apenas condição necessária dele. Que algo seja visto ou entendido como amável não significa já que seja amado: o amor não é a conclusão de uma premissa nem uma dedução lógica. Mas é somente pelo conhecimento que um ser real adquire o aspecto intencional de objeto apetecível, condição necessária para que a tendência se oriente realmente a ele. Não há amor sem prévio conhecimento, ainda que 330
330 - Ordo Amoris, 130. Apesar de mover-se intelectualmente na órbita de Scheler, afasta-se Hildebrand da tese do mestre: “A primeira afirmação referente à prioridade do amor sobre a apreensão do valor se encontra, de certa maneira, na concepção que Scheler tem do amor. Mas, assim como é verdade que o amor nos faz ver os valores quando vamos ao encontro de alguém com amor, e captamos nele valores que não tínhamos visto antes quando estávamos diante dele com uma atitude indiferente, é falso, em contrapartida, negar que o amor mesmo já implica valores e que responde essencialmente a esses valoresuma ou apreensão é aceso pordeeles. Trata-se de um processo de ação recíproca. Pressupõe-se uma captação do valor para o surgimento do amor. Mas o amor nos capacita para uma nova e mais profunda captação de valor [...]. Quando Romeu vê Julieta no baile e seu coração arde de amor, então lhe é mostrada sua beleza, sua graça, sua pureza e sua excelência; e só então se segue a resposta do amor. Mais ainda, Romeu amava outra moça antes de entrar no baile dos Capuletos” (Hildebrand, La esencia del amor, 57). 208
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mínimo. Porque o bem é a causa do amor ao modo de objeto; mas o bem não é causa da apetição senão quando é captado, e, por isso mesmo, o amor requer uma captação do bem amado. A “ratio boni” é a própria causa final do amor; mas só enquanto conhecida é “ratio boni”, condição necessária para que a tendência se mova para o objeto. “O apetite sensível tende à razão porque inferior não se orienta nemdeà apetibilidade, bondade mesma, nemoàapetite utilidade ou o prazer, mas para uma coisa útil ou deleitável. A vontade, pelo contrário, orienta-se primária e principalmente à bondade ou à utilidade ou a qualquer outro aspecto deste gênero. Só secundariamente se orienta a tal ou qual coisa, mas na medida em que esta participa da razão mencionada. Tende assim, por meio da apreensão disso comum, à coisa apetecível, na qual reconhece a presença do aspecto ou razão que busca.” Por isso a visão corporal é o princípio do amor sensitivo; e igualmente a captação da bondade ou da beleza espiritual é o princípio do amor espiritual. Assim, o conhecimento é causa do amor pelo mesmo motivo por que o é o bem, que não pode ser amado se não é conhecido. Pois, como diz Pieper, “se o que ao final chamamos ‘bom’ não o for realmente, por mais que opinemos, tratar-se-á de uma ilusão, de um erro, de um sonho ou de uma mania. E, neste caso, todo o amor é reduzido a um ilusionismo de cegos movimentos instintivos, um truque da natureza, como o chama Schopenhauer”. Deve-se advertir que o conhecimento que de modo adequado é princípio condicionativo do amor não é o teórico, mas o prático. Da perfeição do conhecimento prático depende a intensidade do amor. O amor não se desdobra necessariamente movido pelo conhecimento especulativo, por silogismos perfeitos, dado que não é causado imediata e adequadamente por ele; mas se desdobra necessariamente pelo conhecimento prático tanto em intensidade como em perfeição, porque de ma331
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331 - De Ver., 25, 1. 332 - S. Th., I-I, 27, 2. 333 - J. Pieper, 92. O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino
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neira imediata e adequada este influi no amor como condição necessária. No conhecimento prático, o objeto captado pelo entendimento se ordena à ação; no conhecimento teórico, o entendimento não ordena o que capta à ação, mas só à contemplação da verdade. Por isso os medievais diziam que o entendimento prático é motivus , motor ou motivador, “não 334
porque exerça movimento, mas modo porquededirige para o movimento, o queolhe compete pelo sua captação”. Não há aqui contradição entre verdade entendida e bem querido, porque “a verdade e o bem se incluem mutuamente, já que a verdade é certo bem, ou do contrário nãoseria apetecível, e o bem é de algum modo verdade, sob pena de não ser inteligível. Depois, assim como o verdadeiro pode ser objeto da vontade sob o aspecto de bom, ao modo como sucede quando alguém quer conhecer a verdade, assim também o bom aplicável à ação é, sob o aspecto de verdadeiro, objeto do entendimento prático. Pois o entendimento prático conhece a verdade como oespeculativo, mas ordenando à ação a verdade conhecida”. 2. Não se deve esquecer que a distinção entre apetite sensível e apetite intelectual se fundamenta na distinção entre dois conhecimentos, o sensível e o intelectual. “O bem não é bem porque é desejado: é desejado porque é bom. Não é amado verdadeiramente como bem, seja qual for seu modo, absoluto ou relativo, se o amor não recai sobre ele no que éem si mesmo. Isto supõe que pode fazer-se presente, em sua própria natureza de bem, para aquele que deve poder amá-lo como bem. Mas esta presença primeira do bem em sua natureza mesma, que fará possível um amor do bem em si mesmo, é por definição o conhecimento intelectual do bem. Graças a esteúltimo, podemos estar presentes não só fisicamente para os efeitos úteis do bem, ou psicologicamente para esses efeitos que são reações afetivas, mas para o bem mesmo em sua própria natureza de bem.” 335
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334 - S. Th., I, 79, 11. 335 - S. Th., I, 79, 11, ad 1. 336 - S. Th., I, 79, 11, ad 2. 337 - Louis-B. Geiger, 65. 210
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3. De certo modo, ou relativamente, o amor precede ao conhecimento. Alguém só busca uma coisa porque a ama, dizse. Há coisas que mesmo sem ser conhecidas perfeitamente são buscadas, como as ciências, já que se fossem bem conhecidas seriam possuídas e não seriam buscadas. Quererá isso dizer que o conhecimento não é princípio condicionativo do amor?
Não, falando absolutamente. Quem modo buscae aemciência não a ignora completamente, mas de algum algum grau conhece de antemão, seja em geral, seja em algum efeito dela, ou porque ouve falar de sua excelência. 4. Há coisas que podem ser mais amadas que conhecidas. O que não quer dizer que o conhecimento não seja princípio condicionativo do amor. Com efeito, “algo é requerido para a perfeição do conhecimento que não é exigido para a perfeição do amor; o conhecimento pertence à razão, da qual é próprio distinguir o que se encontra unido na realidade e reunir de certo modo o que se encontra separado, comparando algumas coisas com outras. E, por isso, para a perfeição do conhecimento requer-se que o homem conheça singularmente tudo o que há na coisa, como suas partes, virtualidades e propriedades. O amor, em contrapartida, reside na faculdade apetitiva, que vê a coisa como é em si; motivo por que basta para a perfeição do amor que se ame a coisa segundo seja apreendida em si mesma. Daí provém que uma coisa seja mais amada que conhecida, porque pode ser amada perfeitamente ainda que não seja bem conhecida, como se observa principalmente nas ciências, que alguns amam por certo conhecimento geral que têm delas; v.g., porque sabem que a retórica é uma ciência pela qual o homem pode persuadir, e isto é o que amam nela”. 5. Pode-se objetar que, se o conhecimento fosse causa do amor, não se poderia encontrar amor onde não houvesse conhecimento, enquanto é fato que em todos os seres se encontra amor e nem em todos há conhecimento. Mas isto só é verdade no caso do chamado amor natural — movimento da 338
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338 - S. Th., I-I, 27, 2, ad 1. 339 - S. Th., I-I, 27, 2, ad 2. O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino
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inclinação — que se acha em todas as coisas, o qual tem por causa uma motivação inconsciente para o próprio ser, ainda que consciente para o autor da natureza (e neste sentido se usa a palavra amor de modo metafórico e impróprio). 6. É mais nobre amar que entender? À simples vista parece que, quanto mais elevada for uma faculdade, tanto mais altas 340
suas e operações. entendimento oserão reitor da virtualidades vontade, talvez se pudesseSendo pensaro que Santo Tomás considera mais nobre entender que amar. Não se falou à saciedade do “intelectualismo” tomista? Mas Santo Tomás não é deste parecer e, naturalmente, está muito acima de qualquer dicotomia fácil entre intelectualismo e voluntarismo. “A operação intelectual’, diz o Aquinate, “completa-se quando o entendido está em quem entende; a superioridade da operação intelectual só há de ser considerada conforme a medida do entendimento. Em contrapartida, a operação da vontade e o ato de qualquer outra potência apetitiva se aperfeiçoam na tendência do sujeito à coisa real que é seu termo, e assim sua superioridade é tomada da realidade que é objeto da operação. Pois bem, as coisas inferiores ao espírito estão de modo mais nobre nele que em si mesmas; porque o que está em outro se adapta a seu modo de ser. Mas as coisas que estão acima do espírito estão de modo mais nobre em si mesmas que nele. Por conseguinte, o conhecimento das coisas que estão abaixo de nós é mais nobre que seu amor. Mas nas coisas que nos transcendem é preferível o amor ao conhecimento”. E entre o que nos transcende como um absoluto real, ainda que não último, está a pessoa humana. 341
b) A objetividade do amor O amor ou é objetivo ou não é amor. Objetivo significa que se dirige à realidade mesma, e não a uma aparência ou a 340 - S. Th., I-I, 27, 2, ad 3. 341 - S. Th., II-I, 23, 7, ad 1. I, 82, 3;De Veritate, 22, 11; Contra Gentes, 3, 26. 212
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um traço superficial das coisas. O outro não é uma miragem. A inteligência implica, por sua mesma natureza, uma ordem ao verdadeiro; o amor espiritual, por sua própria essência, é consonância com o bem verdadeiro e real. Não se interpreta corretamente o Aquinate quando se diz que a faculdade que alcança a realidade não é propriamente o conhecimento, a vontade. que tal coisanão afirmam desconhecem que mas a imanência do Os conhecimento equivale ao subjetivismo ou ao idealismo. Também a inteligência alcança o real, ainda que sob a forma intencional que as coisas mantêm na mente. A vontade alcança a realidade de seu objeto pelo ato mesmo de amor, sem outro intermediário, enquanto a inteligência alcança a essência da coisa por meio de um produto imanente, o conceito, através do qual se conhece a realidade mesma. Pois bem, para que haja objetividade no amor espiritual, é preciso que antes haja objetividade no conhecimento intelectual, do qual depende. “O que é objeto do apetite, no plano dos impulsos sensíveis, é julgado bom porque é desejado. Mas o que é objeto para a vontade é desejado porque é bom em si mesmo. Porque o princípio de tal vontade é a inteligência, ou seja, o ato do intelecto que de algum modo é movido pelo inteligível.” E o inteligível é a coisa mesma extramental. O apetite sensível busca o bem porque este produz prazer para os sentidos; a vontade o busca primariamente porque é bem e não principalmente porque é desejável ou prazeroso. “O conhecimento sensível não alcança a razão comum de bem; alcança somente um bem particular, que é o deleitável. Assim, no plano do apetite sensível, tal como se encontra nos animais, as operações são buscadas por causa do prazer. Ao contrário, a inteligência capta a razão universal de bem, cuja obtenção é seguida pelo gozo. Assim, ela busca o bem com anterioridade de princípio [principalius] ao gozo.” E jamais se eclipsa com342
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342 - In Met., 12, 7, 2522. 343 - C. G., 1, 44. 344 - S. Th., I-I, 4, 2 ad 2. O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino
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pletamente quando nos deixamos guiar por nossas paixões ou inclinações sensíveis e não pela objetividade do amor. Essa objetividade do amor não é relação de semelhança formal, como a do conceito e de seu objeto, nem conformidade de um juízo com a realidade, mas presença real para o bem que o amor tem; graças a esta presença real, o bem é visualizado e tão-só alcançado bem, e não materialmente, pelosformalmente efeitos que como dele emanam. Portanto, no amor espiritual convergem duas presenças objetivas para o bem, inseparavelmente unidas, e que se requerem a uma à outra: presença no âmbito do conhecimento intelectual, ou seja, conhecimento da natureza do bem; e presença objetiva no domínio do amor, necessariamente fundada na precedente e ininteligível sem ela. A linguagem do amor ou é srcinariamente ontológica (e teleológica), ou não é amor. “O amor se situa no nível do ser e expressa uma complementaridade no ser mesmo entre o sujeito e o bem, diversa segundo os modos do ser. A objetividade do amor não é, pois, outra coisa senão fruto desse poder de reflexão completa sobre seu ser que têm os seres espirituais; esse poder não é uma introspecção trivial, mas a aplicação direta ou indireta, feita nos atos do sujeito e em suas estruturas ontológicas, da faculdade de compreender e de captar a natureza do que é. Ela é função deste recolhimento pelo qual podemos estar presentes aos nossos atos, aos objetos que os especificam, e compreender com a natureza de uns e de outros sua mútua coordenação no plano de nosso próprio ser.” Poderia dar-se então um amor “objetivo” sem um prévio conhecimen to “objetivo”? Suponhamos que o conhecimento intelectual seja negado — como fazem as teses nominalistas — ou reduzido à captação de conceitos imanentes ao sujeito — como faz o subjetivismo idealista. Suponhamos ademais que, ao operar essa negação ou essa redução, ficando sem a fonte do conhecimento intelectual, alguém não queira renunciar ao realismo; então acabaria lançando 345
345 - Louis-B. Geiger, 79. 214
O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino
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sobre o amor o peso da objetividade, responsabilizando-o pela doação real das coisas, quando em verdade o amor é então, sem inteligência prévia , uma energia cega, um apetite análogo a uma força da natureza. “Esse indi víduo poderia fazer duas coisas plenamente justificadas: ou entregar-se ao capricho de seu humor sob pretexto de sinceridade e liberdade; esforçar-se poruma dominá-lo preceitos da razão ou porou purificá-lo com luta s empelos trégua, com uma ascese rigorosa e com o sacrifício de si.” Nem num caso nem no outro, o amor seria objetivo, realista. Talvez a “teoria extática” do amor, indicada por Rousselot, careça de um guia objetivo ou intelectual do amor. Afirmar a objetividade do amor espiritual é afirmar a unidade profunda que, em nós, liga o amor ao conhecimento. Mediante o conhecimento podemos captar a natureza do bem e a natureza de nosso amor; sua objetividade consiste na revelação do que é o bem e do que somos nós diante do bem, do ser do bem mesmo e de n osso ser, que está ordenado ao bem. Só por este conhecimento intelectual é que o amor espiritual é auto-explicativo — ou se explica por si mesmo. Não são auto-explicativas as formas de amor sensível e de apetite natural, as quais se explicam por sua vez pelo conhecimento que podemos ter delas. Quando alguém não é capaz de atravessar a zona das emoções, dos sentimentos ou das simples sensações pelas quais psicologicamente o amor pode manifestar-se para a consciência, tende a imaginar que “amar é tão-somente a arte de variar ou de manter essa s emoções e sua expressão; quando em verdade é deter-se em certas manifestações do amor, que não são todo o amor”. 346
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346 - Louis-B. Geiger, 77. 347 - Louis-B. Geiger, 78. O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino
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4. A semelhança como raiz do amor
a) A semelhança do amado com o amante O bem dá essencialmente conveniência, conaturalidade, proporção, aptidão, consonância entre o amante e o amado: essa conveniência a certa unidade de forma ou perfeição. Por isso, o bem nãoequivale só é causa final do amor, mas também, e prioritariamente, causa formal. A proporção ou aptidão entre o amante e o amado se chama similitudo, semelhança, a qual não é outra coisa que a conveniência ou comunicação na forma. A esta comunidade pôde referir-se Aristóteles quando definia assim o amor de amizade: “ ”. Não talvez apenas uma convivência em comunidade de gostos e ocupações, mas, ademais, uma semelhança na forma. Na medida em que o bem tem perfeição e semelhança com o amante, é causa formal do amor. Pois a convivência é consecutiva ao amor de amizade e não pode constituir seu fundamento. Se no amor cabe distinguir um duplo elemento, a pessoa amada (quod) e o bem querido para ela (cui), ambos supõem em sua complexidade uma só razão de amar que explica a unidade do movimento amoroso: essa razão de amar, motivo formal do amor, é a semelhança na forma. Alguns têm dificuldade para articular conceitualmente a noção de “similitudo”, semelhança, na ontologia do amor. 348
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348 - III Sent. , d. 27, q. 1, ad 3;De Hebdom., lect. 2; Ethic., 8, lect. 1. 349 - Ethic., Q, 14, 1161 b 11. 350 - H.-D. Simonin, “Autour de la solution thomiste du problème de l’amour”,Archives d’histoire doutrinale et littéraire du Moyen Âge, 6, 1931, 174274; Bulletin Thomiste, 3, 1930, 75-79. 351 - R. Egenter, Gottesfreundschaft. Die Lehre von der Gottesfreundschaft in der Scholastik und Mystik des 12 (op. und cit., 13 Jahrhunderts, 60.que, nas primeiras obras 352 - P. Simonin defendia 178, 197-198) de Santo Tomás predomina uma terminologia alusiva à índole estática do amor (v. g., nos Comentários às Sentenças encontram-se termos de aparente estaticidade, como formatio, informatio, transformatio), enquanto nas obras de maturidade ele pro põe termos em consonância com um d inamismo do amor (na Suma aparecem termos que denotam dinamicidade, como convenientia, inclinatio, proportio, coaptatio, aptitudo, connaturalitas, consonantia, complacentia). Vários autores, como André Marc e V. Ferrari, aderiram a 216
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VIII - A Causa do Amor
Simonin e Marc afirmam que o Aquinate, no curso de suas investigações sobre o amor, começa sublinhando que o amor é posse da “similitudo”, para ulteriormente afirmar que é adaptação, “adaptatio” ou “coaptatio”, do sujeito amante pelo objeto amado. “No início”, diz Marc, “ele concebe o amor como a recepção, a posse pelo espírito da forma do objeto amado, tal como ointeligível ato intelectual supõe recepção A e posse pelo intelectual espírito da forma do objeto conhecido. atividade e a vida afetiva, ao menos em seu princípio, que é o amor, são concebidas sob um mesmo tipo estático e formal. A mesma coisa que expressa a informação do entendimento (informatio intellectus) expressa a informação, a transformação do apetite (informatio appetitus). Posteriormente, nas obras seguintes, o amor, enquanto está na srcem de todo movimento afetivo, adquire todo o seu realce. Já não resta vestígio da posse de uma forma do ser amado, imanente no ser amante. É o primeiro desmoronamento afetivo da faculdade em face de seu objeto. O que esta potência recebe já não é uma ‘semelhança’, mas uma adaptação atual, uma proporção ativa com o objeto, o exercício determinado de sua tendência nativa. O amor se converte em empresa ativa do objeto e ao mesmo tempo em reação srcinal da vontade. Enquanto é diferente da inteligência, já não possui ‘inteligivelmente’ o objeto, mas se orienta e se inclina para ele.” Embora efetivamente o Aquinate sublinhe em suas primeiras obras a idéia de semelhança, jamais abandona esta noção, 353
essa tese. Outros autores, como Tomás de la Cruz e José M. Sánchez Ruiz, são da opinião, a meu ver acertada, de que não existem duas concepções incompatíveis, dado que nos Comentários às Sentenças já se encontra substancialmente o material da Suma. O que acontece na terminologia da Suma é que o Aquinate ganha em precisão, mas sem abandonar os pontos de vista a nteriores: poder-se-ia falar, isto sim, de II, uma do conceito de amor. Por exemplo, já In Sent., d. progressiva 27, q. 1, a. 1 clari ad 2 eficação a. 3 ad 2 ele explica o amor de uma perspectiva dinâmica, como vis, virtus, ação transformante. E na Suma reaparecem os mesmos termos (I-I, 25, 2 e 3) que usara no Comentário às Sentenças. Ao longo de sua produção intelectual, o Aquinate defendeu a tese de que o amor não é o movimento do apetite que tende a seu objeto (isto seria o desejo), mas a imutação que sofre o apetite pelo apetecível e pela complacência neste. 353 - André Marc, Psicología reflexiva, II, 38-39. O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino
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considerando-a como raiz do amor. E tampouco é exato dizer que a “informatio” do bem sobre o apetite seja “inteligível”, na mesma linha do ato de conhecimento. Alguma semelhança, naturalmente, há: a da objetivação. Porque o ato de querer é, como o de conhecer, uma constituição ativa de seu objeto, já que o sujeito volente dá a si mesmo a objetividade específica seu objeto: “É preciso ter presente: 1º, queporque ao querido nãoo édepossível dar-me seu ser-querido-por-mim, ele não tem (seu ser-querido-por-mim não é nada nele); 2º, que ao dar-me eu seu querê-lo não ponho sua apetibilidade (em todo o caso, pô-la-ia ao julgá-la; e, ainda assim, é necessário que haja alguma apetibilidade no julgado), de forma que o que ponho é, simplesmente, seu ser-querido-por-mim, que é coisa minha; 3ª, que o puro fato de pôr essa objetividade formal do querido é, de si, uma atividade objetivante, não uma atividade objetivada à maneira como pode ser o querer (como algo por sua vez querido), pois até os atos do querer-querer, que são os atos da liberdade, não são estritamente objetivados”. Seguese então, do ponto de vista causal, que o querer supõe sempre uma unidade entre o ser volente e o querido, “a saber, uma conveniência entre eles, dada ao menos como uma conaturalidade e de tal modo que, conquanto não seja formalmente a volição, constitua, não obstante, uma imprescindível condição dela e algo que se mantenha em seu sujeito enquanto este realiza o próprio ato”. Pois bem, a intencionalidade do querer não é, nem exige, uma posse do objeto — como a intencionalidade cognoscitiva —, embora seja preciso que tal objeto seja imaterialmente possuído, pois nada é querido se não é conhecido. Mas o que se quer através do conhecimento é querido “enquanto formalmente conveniente para o sujeito de sua volição. Quando ambos os seres são em verdade um só ser, a conveniência reside justamente numa identidade. Em contrapartida, se realmente são diferentes, sua conveniência só pode consistir em certa ‘conaturalidade’ entre os dois. Por354
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354 - Antonio Mi llán-Puelles, La estructura de la subjetividad, 206. 355 - Antonio Mil lán-Puelles, La estructura de la subjetividad, 215. 218
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tanto, quando o querer é um acontecimento em seu sujeito, é preciso que neste se dê também como acontecimento essa conaturalidade com o querido; quer dizer, é preciso que ao sujeito a quem sucede tal volição suceda também estar conaturalizado com aquilo que está como objeto dela. Tal sujeito quer então o que quer não por virtude de uma conaturalidade qualquer com seu objeto, por virtudeàde ter um ato de conaturalizar-se com ele, quemas é simultâneo respectiva volição. Tais atos são realmente diferentes. Por mais ligada que esteja a um ato de querer, a conaturalização de um ser com outro não é a tendência ativa posta pela objetividade do querido enquanto tal, mas tão-só um acontecimento formalmente passivo em seu sujeito e que reside em este ficar “coaptado” ou “adaptado” à forma do ser de um ser diferente”. O primeiro influxo que exerce obem como objeto especificativo do amor consiste em informar opróprio ato do apetite (ou da vontade), provocando uma conveniência e proporção essencial entre o amante e o amado, um concerto ou unidade de forma — semelhança — entre os dois. O bem informa —ou é causa formal do amor — enquanto aparece como perfeito e semelhante com respeito ao amante. A semelhança do amado com o amante é a raiz do amor. Raiz não quer dizer causa final, mas formal. 1. Por um lado, esta raiz —convém notá-lo — não é a semelhança do amante com o amado, masa do amado com o amante: o apetecível e amável é um bem para o amante, algo que lhe é adequado e conveniente. A tendência do amante ao amado se orienta ao que lhe é semelhante e conveniente. Só enquanto semelhante o bem é causa formal e especificativa do amor. O amor é entre semelhantes. E, quanto maior a semelhança, mais alto o amor. A semelhança do amado com oamante é de si causaformal do amor na ordem daespecificação: na medida em que o bem ostenta um aspecto de semelhança com o amante, écausa formal do amor. Ninguém ama senão aquilo que lhe é semelhante. 356
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356 - Antonio Millá n-Puelles, La estructura de la subjetividad, 213. 357 - O relato do Gênesis sobre a criação da mulher é um exemplo eloqüente da função da semelhança no amor: “Disse o Senhor Deus: não é bom que O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino
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2. Por outro lado, e no que diz respeito à constituição e função de tal forma, Tomás de Aquino afirma que à forma responde a verdade, enquanto ao fim responde o bem. Portanto, a forma tem seu mais alto grau de expressão no conhecimento; de modo que a semelhança ou assimilação tem, enquanto é causa do amor, uma correspondência necessária e íntima com
o conhecimento. b) Semelhança perfeita e imperfeita. O amor perfeito ou quiescente A semelhança que é causa do amor pode ser entendida de duas maneiras: “1ª quando os dois semelhantes possuem a mesma coisa em ato, como, por exemplo, a brancura, e se dizem semelhantes em razão dela; 2ª quando um tem em potência e com certa inclinação a algo o que o outro possui em ato; por exemplo, o corpo pesado que se encontra fora de seu lugar tem semelhança com o corpo pesado situado em seu lugar próprio; ou, também, a potência tem semelhança com o ato, dado que na mesma potência está de certo modo o ato”. Isso quer dizer que há dois tipos de semelhança: a perfeita e a imperfeita. A semelhança perfeita é uma conveniência que mostra três caracteres: primeiro, é conveniência de dois seres numa mesma forma; segundo, é conveniência num mesmo elemento essencial ou categorial desta forma; terceiro, é conveniência no mesmo grau entitativo dela; ou seja, está em ato por ambos os lados, v. g., dois homens que possuem a sabedoria em ato 358
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o homem esteja só: façamos-lhe um adjutório que lhe seja semelhante [...]. dormindo,pois, Mandou, tirouo uma Senhor de um suasprofundo costelas, esono a encheu a Adão; dee,carne; enquanto e fez oeleSenhor estava da costela que tirou de Adão uma mulher, e a levou a Adão. E disse Adão cheio de entusiasmo: Eis aqui agora o osso de meus ossos e a carne de minha carne; ela se chamará virago, porque do varão foi tomada. Por isso deixará o homem seu pai e sua mãe, e se unirá a sua mulher; e serão dois numa só carne” (Gen., 2, 18, 21-24). 358 - S. Th., I-I, 27, 3. 359 - Santiago Ramírez, De passionibus animae, 116-117. 220
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são perfeitamente semelhantes, máxime se a têm no mesmo grau ou perfeição de atualidade. A semelhança imperfeita é a conveniência de dois seres numa mesma forma, conveniência ademais no mesmo elemento essencial ou categorial desta forma, mas não em seu mesmo modo ou grau entitativo, porque, por exemplo, de um lado está em ato, mas de outro lado está emg.,potência ou, ao menos, em ato menos v. são semelhantes em sabedoria o sábioperfeito em ato eecompleto: o homem engenhoso sem estudo. 1. O primeiro modo de semelhança produz o amor perfeito, “dado que, pelo fato mesmo de serem semelhantes dois seres, por terem de certo modo uma só forma, são como um só naquela forma, à maneira como dois homens são um na espécie de humanidade, e duas coisas brancas na brancura, e por isso o afeto do amante se dirige ao amado como a si mesmo, e para ele quer o bem como para si mesmo”. Nisso reside o amor íntimo perfeito, o qual consiste em que, por exemplo, o amigo seja amado como o próprio amante ama a si mesmo, pois cada um — por sua identidade ontológica ou semelhança substancial consigo mesmo — ama a si mesmo com amor natural perfeito, que é amor íntimo. Quando o amigo tem em ato e no mesmo grau de perfeição a mesma forma que é causa do amor — e tal forma não pode ser outra senão a intimidade expressiva do ser pessoal —, então o amor dimana tanto de um como de outro, porque ambos são idênticos nessa forma. Assim, a semelhança perfeita do amante com o amado é causa do amor perfeito e quiescente, que é o amor íntimo. 2. A semelhança imperfeita causa o amor itinerante ou imperfeito, porque amar para si o ato de outro é amar mais a si mesmo que ao outro, e nisso consiste o amor imperfeito. Quando o amante não tem em ato a forma ou perfeição do amado, apetece naturalmente para si mesmo essa forma e esse ato, e portanto ama mais a si mesmo que a esse ato ou perfeição. O amor imperfeito só é amizade no útil ou no deleitável, não no honesto, no concernente à perfeição da 360
360 - S. Th., I-I, 27, 3. O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino
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pessoa; porque cada ser existente em potência, enquanto tal, tende naturalmente a seu ato e, se possui sensibilidade e conhecimento, se deleita — impulsiva ou volitivame nte — em sua consecução. A semelhança imperfeita do amante com o amado é causa do amor imperfeito ou itinerante, que foi chamado de concupiscência. Neste amor, o amante propriamente ama a siOmesmo ao querer aqueleama bemaque responde à sua aspiração. fato é que todo homem si me smo mais que a qualquer outro, porquanto tem consigo mesmo unidade substancial , enquanto com os demais não tem unidade senão na semelhança de determinada forma participada; “daí que, quando por esta semelhança [que não é de intimidade para intimidade] brota um impedimento para a consecução do bem que ele ama, torna-se-lhe odioso seu semelhante, não como semelhante, mas como obstáculo para seu bem próprio. Por isso diziam os antigos que ‘os oleiros brigam entre si’, já que naturalmente se obstaculizam no lucro; e por isso também se suscitam pendências entre os soberbos, porque usurpam mutuamente a superioridade respectiva que ambicionam”. 361
c) A dessemelhança, causa incidental do amor Embora o amor seja entre semelhantes, e embora quanto maior for a semelhança mais alto será o amor, pode a dessemelhança ser causa de amor, mas só incidentalmente (per accidens), não de modo direto e absoluto (per se ). Esse amor, é claro, só pode ser imperfeito. Por acaso o homem ama sempre em outro o que ele mesmo tem ou quereria ter? Não é freqüente alguém amar em outro o que ele mesmo não tem? Isso não sucederia se a semelhança fosse, em todos os aspectos, causa própria do amor. A multiplicidade de virtualidades que há em cada um é a srcem de os homens poderem ser ao mesmo tempo semelhantes e dessemelhantes, segundo os aspectos ou perfeições que se olhem. Com freqüência um amor influi em 361 - S. Th., I-I, 27, 3. 222
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outro, quer para potenciá-lo, quer para impedi-lo. Daí que incidentalmente a dessemelhança possa ser causa de meu amor (imperfeito), enquanto a semelhança (que não é de intimidade para intimidade) pode provocar-me ódio. Precisamente porque o que eu estimo é aquilo que não possuo (a dessemelhança), mas que o outro tem, posso acabar invejando ou odiando o próximo. Em verdade, o fato mesmo de amar outro o que não se tem mostra uma semelhança segundo certaem proporcionalidade ou analogia; “pois existe proporção entre a perfeição que é amada em outro sujeito e este sujeito que apossui, e entre um sujeito e a perfeição que ele ama em si mesmo. Assim, que um bom cantor ame um bom escritor acontece porque se estabelece uma semelhança de proporçãona medida em que um e outro têm o que convém a cada umsegundo sua arte”. Vale a pena transcrever um longo parágrafo em que o Aquinate matiza esta mesma doutrina da dessemelhança como causa do amor (imperfeito). “A raiz do amor, falando propriamente (per se), é a semelhança do amado com o amante, porque assim lhe é um bem que lhe convém. Mas sucede incidentalmente (per accidens) que a dessemelhança é causa de amor, e a semelhança causa de ódio, e isso de três maneiras. Primeira, quando o afeto do amante não recai nele mesmo, nem descansa em sua própria condição ou em outra propriedade que tenha, como quando alguém odeia algo em si mesmo, e então ama aquilo mesmo que lhe é dessemelhante neste ponto, já que, pelo fato mesmo de lhe ser dessemelhante em condição, se faz semelhante em seu afeto; e, pelo contrário, odeia o que se assemelha a ele mesmo e não se assemelha em seu afeto. Segunda, quando alguém, pela mesma semelhança, impede que o amante goze da coisa amada, e isto sucede com todas as coisas que não podem ser possuídas juntamente por muitos, como são as temporais; e, assim, o que ama ganhar com uma coisa ou deleitar-se nela é impedido no gozo da coisa amada por outro que quer igualmente apropriar-se dela; e daí nasce a zelotipia, que não tolera o consórcio na coisa amada; e 362
362 - S. Th., I-I, 27, 3, ad 2. O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino
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a inveja, enquanto o bem de outro é considerado impedimento do bem próprio. Terceira , enquanto uma dessemelhança prévia faz que seja experimentado (percipi) um amor subseguinte. Por exemplo, percebemos que o sentido se move e que esse movimento cessa após a coisa sensível se ter feito forma daquele que sente; por isso, aquelas coisas a que nos acostumamos não as experimentamos, como claramente cede aos carpinteiros com o barulh o dos martelos, e por suisso o amor é mais experimentado quando o afeto se transforma de novo pelo amor ao objeto. E por isso tam bém, quando alguém não tem presente seu amado, mais arde e se consome por causa do amado, enquanto experimenta mais o amor; ainda que na presença do amado não seja o amor menor, mas menos percebido.” Em verdade, cada homem ama aquilo de que necessita, ainda que não o tenha; assim, o doente ama a saúde, e o pobre as riquezas. Mas, enquanto delas necessita e carece, há nele dessemelhança com respeito a elas. Em síntese: de modo absoluto, só a semelhança é causa do amor. Pois quem ama aquilo de que está necessitado tem semelhança com o objeto que ama, assim como o que está em potência tem semelhança com o ato respectivo. 363
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d) A índole absoluta do outro e o amor perfeito Ficou dito que o outro há de se r amado por si mesmo, por ser pessoa, e acima das coisas que o rodeiam e acima também de nossa utilidade e prazer. Como a preposição “por” indica causa, em que gênero de causa há de ser a pessoa humana amada por si mesma? As coisas são amadas pelas pessoas. Pois bem, a pessoa humana não é totalmente incausada, nem carece de caus a alguma de que derive: ela não é seu próprio ser nem sua própria bondade, nem a bondade 363 - Sent., 3, d. 27, q. I, 1, ad 3. 364 - S. Th., I-I, 27, 3, ad 3. 224
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mesma por essência. No amor que se professa às pe ssoas humanas por si mesmas, há de estar implicada, com respeito a elas, uma causa ulterior ou anterior, na ordem eficiente, final e formal. Na ordem eficiente, porque a bondade da pessoa humana deriva de um princípio anterior: não é ela mesma princípio primeiro e fontal de toda a sua bondade. Na ordem final, bondade se ulterior ordena suprema, metafisicamente, como meioporque a fim, sua a uma bondade pois a pessoa humana não é o primeiro princípio de todas as coisas. E, na ordem formal, porque a bondade da pessoa humana não lhe é substancial e congênita, mas metafisicamente acidental, informada e intrinsecamente aperfeiçoada por outro para ser boa. A absolutidade da pessoa humana deve ser entendida no contexto da criação, pela qual depende exemplarmente de uma bondade superior e mais perfeita, arquétipo de todas as demais. 5. Hierarquização das respostas afetivas
a) Precedência ontológica do amor 1. Há uma ordem de precedência entre as respostas afetivas, tanto no que respeita à índole ontológica dos objetos — o bem e o mal — como no que se refere à função do bem mesmo. a) O bem e o mal são o objeto absoluto do apetite imediato de aquisição, sendo o bem naturalmente anterior ao mal, por ser este privação de bem. Portanto, as respostas afetivas cujo objeto é o bem são naturalmente anteriores às respostas afetivas cujo objeto é o mal e que lhe são respectivamente opostas, pois o buscar o bem é causa do rejeitar o mal, que lhe é oposto. O primeiro movimento da vontade ou do apetite, quer dizer, a primeira resposta afetiva, é o amor. O ato da vontade, tal como o de qualquer apetite, orienta-se ao bem e ao mal como a objetos próprios. 1º Por um lado, o bem é o objeto principal e por si, enquanto o mal é objeto secundário e por outro, enquanto se opõe ao bem. Portanto, as respostas afetivas da vontade e O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino
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do apetite que se referem ao bem precedem naturalmente às que têm por objeto o mal. Sempre o que é por si precede ao que é por outro: o amor precede ao ódio e a alegria à tristeza. 2º Por outro lado, o mais comum é naturalmente o primeiro, e por isso o próprio entendimento se refere antes ao verdadeiro em geral que às verdades particulares. E, conquanto haja cer365
tos apetite atos tendenciais — ou afetivascondição — da vontade do que se referem aorespostas bem sob alguma especiale —v. g., a alegria e o prazer ao bem presente, o desejo e a esperança ao bem ausente —, o objeto do amor, no entanto, é o bem em geral, possuído (presente) ou não possuído (ausente). O amor é naturalmente o primeiro ato, a primeira resposta afetiva, da vontade e do apetite. b) Também com respeito aobem mesmo, tem o movimento tendencial determinada ordem: o movimento começa pelo amor, prossegue com o desejo e termina na esperança; e, com respeito ao mal, começa no ódio, passa à aversão e termina no temor. O amor é o pressuposto e a raiz de todas as outras respostas afetivas. E por isso — quanto aos afetos imediatos chamados ódio, desejo, gozo, alegria e tristeza — ninguém deseja senão o bem que ama, nem goza senão no bem amado, nem odeia senão o oposto do amado, nem se entristece senão com o mal que suplanta o bem: todas essas respostas afetivas, enquanto assentadas na vontade ou no apetite, se referem ao amor como a seu primeiro princípio. 366
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b) Causas subliminares do amor 1. No que se refere à série subjetiva dos demais afetos que, como causas eficientes, podem provocar o amor, deve-se levar em conta que toda resposta afetiva do sujeito pressupõe 365 - S. Th., I, 20, 1. 366 - S. Th., I, 20, 1. 367 - S. Th., I-II, 25, 4. 368 - S. Th., I, 20, 1. 226
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o amor, porquanto essa resposta implica ou movimento para uma coisa ou descanso nela; “e todo movimento para uma coisa ou o descanso em sua posse se baseia previamente em certa conaturalidade ou proporção (coaptatione), a qual é própria da essência do amor. Depois, é impossível que qualquer outro afeto do sujeito seja causa em universal de todo amor”. Se 369
fosse causa, operar sob, onão limite outro psicológico, amor abarcador: seria teria causadesubliminar em de sentido mas ontológico. E, assim, determinado afeto pode ser causa de determinado amor, assim como um bem é causa de outro: um afeto pode causar o amor, já diretamente, como no caso de um amor que se segue de uma série de afetos; já indiretamente, como no caso da redundância de afetos produzida dentro de uma mesma série ou por uma série em outra. Um exemplo de influxo direto, temo-lo no caso do que é amado em razão do prazer ou gozo que provoca: o gozo é aqui a causa do amor. Porque, “quando se ama alguma coisa por prazer, tal amor é efeito evidente deste prazer. Pois bem, em qualquer caso o prazer, por sua vez, é produzido por outro amor anterior, pois ninguém se compraz senão no que de algum modo ama”. Um exemplo de influxo indireto, e como passagem de uma série a outra, temo-lo numa modalidade do desejo : às vezes amamos certas pessoas pelo desejo de algo que delas esperamos, como se percebe em toda amizade que tem por motivo a utilidade. Claramente estamos diante de um afeto, o desejo, que é causa do amor. Conquanto “ o desejo de uma coisa [pressuponha] sempre o amor dela , este desejo, não obstante, pode ser causa de amar outra coisa, assim como quem deseja dinheiro ama por isso aquele de quem o recebe”. Enfim, o mesmo acontece com a esperança , 370
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369 - S. Th., 370 - S. Th., 371 - S. Th., 372 - S. Th.,
I-I, 27, 4. I-I, 27, 4. I-I, 27, 4 ad 1. I-I, 27, 4, ad 2.
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que também pode ser causa do amor, pois, quando não há esperança de obter uma coisa, ou esta é amada tibiamente, ou não é amada de modo algum, ainda que se vejam suas boas qualidades. Mas o que aqui a esperança faz é produzir ou aumentar o amor “tanto por razão do gozo que causa, como por razão do desejo que aumenta, pois não desejamos tão vivamente quebem nãoque esperamos. esperança é de oum se ama ”.No entanto, também a Por redundância, por exemplo, a ira pode aumentar e intensificar o amor: incrementa a audácia, que eleva a esperança, e esta, por sua vez, enerva o desejo; por último, o desejo aguça o amor. Quando os afetos ficam concatena dos, influem-se mutuamente: assim, o desejo do amado ausente aumenta e melhora a força do amor. 2. O amor pode ser produzido por outros afetos não só na linha do exercício ou ato amoroso, mas também na linha do objeto mesmo desse amor. Os afetos, em seu aspecto orgânico ou material, são normalmente acompanhados de uma comoção orgânica. Quando se acende o afeto e se provoca um movimento fisiológico, este repercute nos órgãos cognoscitivos da sensibilidade interna, especialmente na imaginação; por sua vez, a mudança de representações imaginativas traz consigo a transformação da força do apetite, o qual sempre se segue a essas representações. Desse modo, pelo caminho indireto do objeto ou do conhecimento, um afeto qualquer pode influir no amor. O afeto amoroso pode ser transformado pelas diversas disposições emocionais dos que se amam: e os que antes se amavam ardentemente podem depois deixar de faz ê-lo e até odiar um ao outro; out ros podem crescer continuamente no amor, na medida em por sua vontade dominam ou dirigem a série das emoções e de suas repercussões orgânicas. 3. O amor como virtude ou hábito de amar dá seu nome ao desejo e ao gozo. A virtude é um hábito operativo, e por sua essência tem inclinação ao ato. Pois bem, um mesmo 373
373 - S. Th., I-I, 27, 4, ad 3. 228
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hábito pode ser srcem de muitos atos ordenados da mesma espécie e subordinados uns aos outros. O amor é o primeiro afeto (do apetite e da vontade), do qual se segue o desejo e o gozo. Dessa maneira, o mesmo hábito de amar inclina a desejar o bem amado e a gozar-se dele. Mas, porque o amor é o primeiro destes atos, o hábito de amar não se denomina gozo nem pelo desejo, mas pelovirtude, amor. Assim, o gozo épelo virtude diferente do amor como mas certo atonão e efeito dele. 374
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Capítulo IX
Efeitos Do Amor
IX - Efeitos do Amor
No amor, dois se fazem um; mas em nenhum caso deixam de ser dois. Por isso, a união que é efeito do amor deve ser considerada tanto do ângulo da unidade constituída quanto do da alteridade dos amantes. Enfocado o amor do ângulo da unidade constituída, esta pode ser simples (união) ou composta (interpenetração, união correspondida). Mas, se o amor é visto do ângulo da por alteridade , oêxtase amante de si para o amado meio do e doé visto zelo. como saindo 1. A união efetiva
a) A união no amor quiescente e no itinerante Já se disse que havia uma tripla união entre o amante e o amado, a saber, antecedente ou dispositiva, concomitante ou constitutiva (o amor em sentido próprio e essencial) e conseguinte ou consecutiva. Como efeito do amor, a união é o buscado realmente pelo amante com o ser amado segundo a conveniência do amor; e, ainda que “os dois amantes [desejem] fazer-se um só“, isto não é possível, pois “ou um ou os dois se aniquilariam“: eles só aspiram a uma união conveniente para conviver ou coabitar. Quando os amantes desejam fazer-se uma só coisa, são afetivamente uma coisa pelo fato mesmo de o desejarem; mas isto é impossível efetiva e realmente; e, por isso, a unidade afetiva se consuma efetivamente à sua maneira, ou seja, pela união real, salvando sempre a própria unidade real e efetiva de cada um. Por exemplo, a união mais elevada intersexual entre pessoas, a que tem lugar na resposta mútua do amor esponsalício profundo — aquela que quer ser uma mesma carne e identificar-se num projeto de vida —, é união na alteridade e opõe-se radicalmente a que o amado se converta, mesmo afetivamente, em prolongamento do próprio eu: “a expressão fundamental desta identificação da própria vida, ‘tua vida é minha vida’, é a 375
375 - S. Th., I-II, 28, 1, ad 2. O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino
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entrega, a doação de si mesmo, o ‘sou teu’. Neste caso, dar-se é verdadeiramente encontrar-se; a doação, uma conservação. A união não procede somente, como é óbvio, da força que entranha o fato de doar-se: a unidade procede da entrega recíproca. No entanto, sustenta-se na doação recíproca e representa o contrário de qualquer ampliação do próprio eu ou de qualquer 376
forma de apropriar-se de alguém”.que também é dinâmica, seAssim, a união conseguinte, gue-se do amor: união real e efetiva do amante com o amado, e esse, falando propriamente, é o efeito do amor, ainda que de diverso modo no amor perfeito e no imperfeito. Pois no amor perfeito é buscada a união não só como conexão entre duas intimidades íntegras ou segundo todo o seu ser, mas também de maneira contínua e perdurável; en quanto o amor imperfeito não busca a totalidade, mas a parte, e não é contínuo, duradouro e estável, mas móvel, temporário e referido a outra coisa. E assim a união e fetiva produzida pelo amor perfeito é de si permanente, habitual, persistente, irrompível; enquanto a união efetiva causada pelo amor imperfeito é passageira, passional, temporária, facilmente dissolúvel, como a própria concupiscência. A união amorosa íntima, a do amor perfeito ou quiesce nte, não é reificante, não coagula o outro em estado de coisa: a objetivação do outro não cria distâncias existenciais, muito pelo contrário, pois comporta a participação na intimidade, naquilo que como personalidade constitui o outro; uma intimidade só pode ser invocada por outra intimi dade. E, como a intimidade não é estática, mas dinâmica, livre e inventiva, o trato amoroso com ela só pode desdobrar-se em atos práticos que não a instrumentalizem nem a tenham como obstáculo da própria realização. São aqueles atos de “con-vivência” que realizam por apropriação a vida mais secreta e elevada do outro — como se aquele tu fosse eu mesmo. Quando diante do amigo aflito eu me con-tristo e me con-dôo, ou quando diante de seu gozo eu me co-movo de alegria, não só estou 376 - D. von Hildebrand,La esencia del amor, 240. 234
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IX - Efeitos do Amor
pondo na mesma direção de seus atos os meus, mas também promovo sua realização. No mero amor itinerante, o outro é vivido ou como espetáculo ou como instrumento. a) O amante pode comportar-se diante do amado, por exemplo diante de seus belos traços, como se estes fossem um objeto deadmirar espetáculo, uma vitrine qual o passante pára para seus produtos; suadiante atitudedavem a ser também como a do médico que ausculta atentamente o corpo humano; ou como a do psicólogo diante do sujeito analisado. Há em todos estes casos uma distância objetivante que, sem espírito de anular o outro — mas, muito pelo contrário, com intenção de conservá-lo e preservá-lo —, certamente o converte em espetáculo. Daí os sentimentos de atordoamento e irritação que invadem o sujeito que é amado com mero amor itinerante. Se ajudasse a compreender esta relação a distinção que alguns filósofos estabelecem entre “eu empírico” e “eu puro”, poderse-ia dizer que o amor itinerante se dirige ao “eu empírico”, esse eu que pode ser avaliado em seus fatores sociais, estéticos, intelectuais e caracteriais; um eu que não é o centro pessoal. Aquele que só ama com amor itinerante mutila de certo modo sua própria alma e a alma do outro, pois não dá satisfação à tendência profunda de contato íntimo que ambos possuem. O amor itinerante é um amor distanciador. b) Que o amante se comporte diante do amado como se este fosse um instrumento revela uma possibilidade constante de nosso comportamento. Já Sócrates, a propósito dessa nobre relação com o outro que é a atividade educativa, propôs duas metáforas que expressam a aproximação do educador ao educando: a do escultor e a do parteiro. Por um lado, educar é configurar, enformar, dirigir com mão firme as tendências plásticas da criança: simplesmente porque esta não controla desde o princípio suas próprias potencialidades. Mas, por outro lado, a criança é pessoa e, por conseguinte, o trato mais srcinário com ela há de ser o de “deixar nascer e florescer“, sem sufocar a liberdade que significa a novidade ontológica da pessoa. O mero amor itinerante fica travado na atitude instrumentaliO Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino
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zante. Ainda que sobre o ser humano, por sua corporalidade e seus constitutivos potenciais, seja plausível certa forma de instrumentação, nunca se deve anular a hierarquia de relações, cuja principal dimensão é a do amor quiescente. Baste o já dito para entender que o amor não é a relação mesma de união efetiva, senão que esta é conseqüência do amor. Não chegou Platão dizer quee que o amor, é um medianeiro entre o divino e oahumano tudoeros está, unido por ele? A união é obra do amor. 377
378
b) Unidade e união amorosa. O amor de si mesmo
No amor perfeito que alguém professa a si mesmo, há “unidade“ e não mera “união amorosa”. Mas a unidade é melhor que a união. Cada um tem consigo mesmo algo mais que amizade que expressa união; cada um tem em si unidade, a qual supera a união. Para com a própria pessoa, o amor é força unitiva; para com outros, é força congregante, segundo a terminologia de Dionísio, aceita por Santo Tomás. O ato de amor tende a um duplo objeto: ao bem que se quer e ao sujeito para quem se quer tal bem, pois propriamente amar alguém consiste em querer o bem para ele. O sujeito amado pode ser ou o próprio sujeito ou um diferente. Quando alguém ama a si mesmo, quer o bem para si, e, por conseguinte, procura incorporá-lo até onde puder; e por isso o amor é “força unitiva”. Mas, quando alguém ama outro, quer o bem para esse outro, e, por conseguinte, trata-o como se fosse ele mesmo, referindo o bem ao outro como a si mesmo; e por isso se chama ao amor “força congregante”, porque faz alguém associar o outro a si mesmo, relacionandose com ele como consigo mesmo (quando quer bens para o 379
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377 - Symposion, 202 c. 378 - S. Th., I-II, 26, 2, ad 2. 379 - S. Th., II-II, 26, 4. 380 - S. Th., II-II, 25, 4. 236
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IX - Efeitos do Amor
outro). Pode dizer-se assim que o amor auto-referente é uma força unitiva, e o amor hetero-referente uma força congregante. É força unitiva com respeito ao amor de si mesmo, no qual se dá a identidade e a unidade real do amante e do amado; mas é força congregante com respeito ao amor a outras pessoas, que pelo amor se ligam ao amante. 381
Umaque coisa é que o amante torne afetivamente amado, e outra se converta efetivasee realmente no próprioo amado; isto não pode dar-se nem querer-se, porque assim o amante perderia até sua própria forma e, por conseguinte, deixaria de ser amante. Portanto, a união com o amado é querida e causada, mas não a unidade com ele. A união com o amado se concatena com a unidade e com o ser próprio; e por isso o amor de si pode coexistir com o amor do amado; porque amar a conservação ou a unidade do próprio ser é algo natural ou inato, enquanto o outro amor é elícito e posterior e até menos forte. Por isso o homem pode querer ser como o outro; mas não pode querer ser o outro mesmo. “Pois no fundo de cada ente existe o desejo natural de conservar seu ser, e este não se conservaria se se transformasse em outra natureza.” 382
c) A união amorosa e o conhecimento 1. A união deve ser considerada também, como já se explicou, do ângulo do conhecimento que a precede, pois o movimento tendencial do apetite ou da vontade se segue a uma apreensão. E dos dois tipos de amor espiritual que há, a saber, o imperfeito e o perfeito, tanto um quanto outro procedem de certo conhecimento da unidade do objeto amado com o amante. Quando alguém ama outro com mero amor itinerante, apreende-o como pertencente a seu próprio bem-estar 383
381 - S. Th., I, 20, 1, ad 3. 382 - S. Th., I, 63, 3. 383 - S. Th., I-II, 28, 1. O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino
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(ad suum bene esse). Do mesmo modo, quando alguém ama outro com amor quiescente, quer o bem para aquele a quem ama tal como o quer para si mesmo; e daí ele sentir o amigo como outro eu: também neste sentido o amor é um êxtase da intimidade. 2. Que é então mais unitivo, o amor ou o conhecimen384
to? Ooconhecimento aperfeiçoa quando o conhecido se sua; une com cognoscente, se mas só através de uma semelhança em contrapartida, o amor faz a própria coisa amada unir-se de algum modo ao amante. Uma última observação, surgida quando se compara o amor com o conhecimento. a) Se o amor ou união afetiva é considerado formalmente, enquanto afeto, então proporcionalmente convém com a união própria de cognoscente e cognoscível; porque, assim como o cognoscente, tomado formalmente como cognoscente, é um fazer-se cognoscitivamente o próprio conhecido, assim também o amante, tomado formalmente como amante, é um fazer-se ou transformar-se afetivamente no amado. b) Se a união efetiva de duas pessoas é considerada dinamicamente, enquanto efetiva e real, é um efeito próprio do amor e não convém ao conhecimento. O amor tende naturalmente à sua consumação, que consiste na união real e efetiva do amante com o amado: é, pois, essencialmente apetição ou volição, movimento da tendência. Mas o conhecimento não exige isto, porque se aperfeiçoa na união intencional do cognoscível com o cognoscente, a qual não requer aquela união efetiva e física, pois o conhecimento acontece segundo o conhecido estar no cognoscente. Isto acontece no conhecimento especulativo; mas, no conhecimento prático ou afetivo e contemplativo, a união do cognoscente e do conhecido é proporcionalmente igual à união real do amor. 385
384 - S. Th., I-II, 28, 1. 385 - S. Th. I-II, 28, 1, ad 3. 238
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IX - Efeitos do Amor
2. A interpenetração no amor
Se o efeito inicial ou incoativo do amor é a união, sua consumação e perfeição é a interpenetração, a profundidade no amor mútuo: a união do amante e do amado, tanto afetiva como efetiva, não culmina num roçar meramente superficial externo, masunião num— contato mútuo, numasubstancial conexão profunda eouíntima. Esta que não é unidade porque há dois sujeitos que se relacionam —, especialmente a do amor quiescente, não é acidental e parcial (per accidens et secundum quid), mas essencial e absoluta (simpliciter et per se), pois um dos sujeitos está interior e intimamente no outro. Intimidade recíproca que se dá nos dois elementos que confluem no amor: o conhecimento, como condição ou pressuposto, e o afeto, como constitutivo. 1. O efeito que chamamos interpenetração (mutua inhesio), a recíproca união íntima, pode ser entendido primeiramente quanto ao conhecimento. Com respeito a este, diz-se estar o amado no amante na medida em que o amado mora no pensamento do amante (este o traz em sua mente); e o amante no amado, na medida em que o amante não se contenta com uma apreensão superficial do amado, mas se esforça em aprofundar-se em cada uma das coisas que a este pertençam, e assim penetra até o seu interior. Como se relacionam cognoscitivamente o amante e o amado no amor quiescente e no amor itinerante? a) No tocante ao amor quiescente, o amado está no amante de maneira contínua e profunda, não de modo passageiro e superficial. O amado mora ou habita na intimidade do amante; e o amante vai à intimidade do amado e ali permanece 386
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386 - “A união é dupla. Uma que faz ser um parcialmente (secundum quid), como é a união de coisas a ssociadas que se tocam superficialmente, e esta não é a união do amor, dado que o amante se transforma no interior do amado (in interiora amati). Outra é a união que faz ser um totalmente (simpliciter), como é a união dos contínuos, ou da forma e da matéria; e esta é a união do amor, porque o amor faz que o amado seja forma do amante (In III Sent., dist. 27, q. 1, art. 1 ad 5). 387 - S. Th., I-II, 28, 2. O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino
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perscrutando tudo. Aqui o amante — que está no amado por meio do conhecimento — “não se contenta com a apreensão superficial do amado, mas olha inquisitivamente todas as particularidades que pertencem a este, e assim penetra em seus recônditos”. Não simplesmente para torná-lo um espetáculo ou um objeto de curiosidade distante, mas para render-lhe 388
na intimidade oOobséquio de uma lúcidadoreflexão que ajude promovê-lo. maior conhecimento outro sempre traráa melhores oportunidades de ação prática que o alentem em todas as suas possibilidades. Depois o amor abre e aguça os olhos do amante e penetra profundamente os segredos do amado. E, por esta mútua e íntima união do amante e do amado no amor quiescente, e em ordem ao conhecimento, segue-se que entre os amigos não há segredos, pois se comunicam tudo, o grato e o ingrato, o próspero e o adverso: há entre eles uma perfeita comunicação e comunidade de idéias e sentimentos, até os mais próprios e pessoais. b) Também no amor itinerante o amado está cognoscitivamente no amante, mas não de modo permanente, embora, sim, vívida e intensamente, porquanto de maneira passional e veemente se orienta ao amado e pensa nele relativamente; mas o amante não está propriamente na intimidade do amado, porque não revela a este seus segredos mais íntimos, senão que simula uma relação amigável para poder assim gozar dele mais e melhor. A união é aqui imperfeita, regida mais pela sensibilidade que pelo espírito. 2. No que se refere à interpenetração no afeto, assinalemos uma tripla relação: a do amado ao amante; a do amante ao amado; e a mútua ou recíproca de amante e amado. a) O amado está no amante (dicitur esse in amante) “pelo fato mesmo de estar dentro de seu afeto mediante certa com389
388 - S. Th., I-II, 28, 2. 389 - “Não se trata, no entanto, de um conhecimento abstrato e universal, como se dá no conhecimento meramente especulativo, mas de um conhecimento concreto, particular, pessoal; não confuso e obscuro, mas claro e diferente; não superficial e extrínseco, mas profundo e íntimo; não parcial nem mais ou menos conjectural e duvidoso, mas total e certo” (Santiago Ramírez, La esencia de la caridad, 365.) 240
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IX - Efeitos do Amor
placência, 1º já porque se compraz nele ou em seus bens quando os tem presentes; 2º já porque em sua ausência ou tende ao amado mediante o desejo por amor itinerante, ou tende aos bens que para ele quer por amor quiescente, e não por causa alguma extrínseca, como quando se quer uma coisa para outro ou, por qualquer motivo particular, se lhe deseja um bem, mas pela só complacência se chama íntimo”. interior no ser amado. Por isso este amor Em meu amor quiescente, o amado está em minha vontade de amante de maneira profunda e contínua, tanto quanto eu mesmo como amante. Sua alegria é minha alegria: com seus conseguimentos eu vivo alegremente minha vida; e sua tristeza é também a minha: com seus fracassos eu vivo penosamente minha vida. Este amor é proporcional à união íntima do conhecimento correspondente. No amor itinerante, o amado também penetra no coração do amante, mas não permanece tanto nem tão suavemente como no amor quiescente. Costuma sentir muito vividamente este contato e esta penetração, que é menos forte e duradoura, porque responde mais ao apetite sensível que à vontade. b) Igualmente, o amante está no amado tanto pelo amor itinerante quanto pelo amor quiescente, ainda que de maneira diferente. Pois o amor itinerante “não se contenta com qualquer extrínseca ou superficial posse ou gozo do amado, mas tenta possuí-lo perfeitamente, penetrando, por assim dizer, até seu interior. Quer como que extrair dele toda a sua substância. Por sua veemência e impetuosidade, este amor penetra com grande força no amado”. Mas não para permanecer nele, e sim para tornar a si mesmo, e por isso “seu afeto se fecha finalmente em si mesmo”. 390
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390 - S. Th., I-II, 28, 2. 391 - S. Th., I-II, 28, 2. 392 - S. Th., I-II, 28, 3. “A pessoa desejada não é o termo final do amor do concupiscente; é-o o próprio concupiscente. Ao contrário, no amor de amizade o amor termina absolutamente no amigo, sem retornar ao amante. Por isso, no amor de concupiscência não há perfeita saída do amante para O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino
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E, no amor quiescente, “o amante está no amado na medida em que considera como seus os bens ou males do amigo e a vontade deste como sua; de modo que parece sofrer no amigo os mesmos males e possuir os mesmos bens. Por isso, segundo Aristóteles, é próprio dos amigos querer as mesmas coisas e alegrar-se ou entristecer-se com o mesmo. De modo que parece o amante, julgando tudoeleo que ama-e do, estar nele e como formarseucom umapertence mesma ao coisa; ao contrário, enquanto quer e obra pelo amigo como por si mesmo, considerando-o um consigo mesmo, o amado está no amante”. É uma saída para o amado, o êxtase da própria intimidade. c) Pode-se ainda reconhecer no amor quiescente um terceiro modo de união íntima, a mais alta e conseguida, por via de reciprocidade de amor, “na medida em que os amigos mutuamente se amam e se querem e se fazem o bem”. Há entre os que se amam com amor quiescente uma comunicação íntima de vida espiritual, ou seja, de inteligência e vontade, mediante a qual reciprocamente se compenetram interiormente. E, assim como na alma há uma refluência e redundância de algumas faculdades em outras, assim também entre os amigos há refluência e redundância mútua de vida espiritual. “O amor recíproco inclui uma intenção unitiva também recíproca, o que implica, por seu lado, que a união é gozosa por ambas as partes. Se a união não é ansiada de igual modo por ambos, se não é para os dois uma fonte de gozo, não existe amor recíproco nem pode ter lugar a união. A união, certamente, não inclui só o fato de que seja para ambas as partes fonte de felicidade, mas, igualmente, o de que cada um saiba que é uma fonte de felicidade para o outro. Ninguém pode ansiar a união sem estar orientado à felicidade do amado. É essencial que a união seja gozosa para nós mesmos, mas isso não significa, de modo 393
394
o amado nem perfeito repouso no amado e, por conseguinte, tampouco perfeita inesão ou permanência nele” (Santiago Ramírez, La esencia de la caridad, 370). 393 - S. Th., I-II, 28, 2. 394 - S. Th., I-II, 28, 2. 242
O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino
IX - Efeitos do Amor
algum, que ansiemos alcançá-la exclusivamente por causa da felicidade própria. No momento em que nos interessássemos tão-somente pela felicidade que nos proporciona, e não também pela felicidade do outro, deixaríamos de buscar e ansiar a verdadeira união. O anseio de união não se pode separar do desejo de amor recíproco; e a felicidade que propicia a união supõe quee aesta tambémdoseja gozosa para o outro. A essencialmente felicidade própria felicidade amado estão indissoluvelmente entrelaçadas na união.” Observe-se que, por diferentes aspectos, amante e amado intercambiam o papel de continente e conteúdo. “O amado se contém no amante no sentido de que está impresso em seu afeto por certa complacência; e, vice-versa, o amante no amado, na medida em que o amante busca de algum modo o que há de íntimo no amado. Pois nada impede que uma mesma coisa seja em diversos aspectos continente e conteúdo”. 3. A perfeição do amor pode ser entendida de duas maneiras: do ângulo do objeto amado e do ângulo do sujeito amante. Do ângulo do amado, o amor é perfeito se ele é amado tanto quanto é amável; mas o amado não pode ser captado de repente em toda a sua amabilidade, senão pouco a pouco: não há, pois, amor quiescente instantâneo com respeito ao amado. É perfeito o amor do ângulo do amante quando ele ama quanto lhe é possível amar; o que sucede de triplo modo. Primeiro, porque todo o coração do homem está continuamente transportado no amado; esta perfeição do amor não se dá na circunstância temporal do homem, que torna impossível pensar continuamente no amado e mover-se a seu amor. Segundo, se o homem põe seu cuidado em aplicar-se ao amado e a suas coisas, enquanto lho permitam as necessidades da vida presente, esta é a perfeição do amor possível na vida temporal, ainda que não se dê em todos os que têm amor. Por fim, que de tal modo ponha habitualmente todo o seu coração no amado, que nada pense que seja 395
396
395 - D. von Hildebrand, La esencia del amor, 175. 396 - S. Th., I-II, 28, 2, ad 1. O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino
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contrário a seu amor. E esta é a perfeição corrente dos que estão amando. A união a que tende o amor nem sempre é exigida por ambos os amantes com a mesma intensidade e com idêntico grau. De fato, pode-se alcançar uma união ainda que o grau de amor nos dois seja diferente. Pode haver amores íntimos 397
que o altura amor de cadaprofundidade um dos amantes não tenha aemmesma nem e empelo que,outro no entanto, se alcance uma união pessoal. “Quanto mais desigual é o amor recíproco dos amantes, tanto menor é a unidade e tanto menos se consuma a intenção unitiva daquele que mais ama. No entanto, desde que exista algum tipo de amor recíproco, alcança-se, de algum modo, a união . O mesmo se pode dizer no caso do amor conjugal. Ainda que um homem possa amar mais sua mulher, mais profunda e ardorosamente, do que é amado por ela, ou o contrário, pode ter lugar certa união [...]. Mas a comunidade matrimonial, por sua própria essência, converter-se-á numa exigência tremenda quan do o amor está completamente ausente.” Mas o amor não é necessariamente perfectivo em todos os seus planos . Como se disse, o amor indica certa adequação ou aptidão ( coaptationem ) do apetite ou da vontade com o bem. “E nunca o que se adapta a uma coisa que lhe é conveniente se prejudica por isso, mas antes, quanto possível, melhora e se aperfeiçoa, ao passo que o que se une a uma coisa que não lhe é conveniente se prejudica e se dana. Portanto, o amor de um bem conveniente aperfeiçoa e melhora o amante, e o amor de um bem não conveniente o dana e prejudica.” Isto no que se refere ao elemento formal do amor, ao amor do ângulo do apetite e da vontade. Quanto ao que há de material na resposta afetiva do amor, que é a alteração corporal, o amor pode resultar danoso pelo excesso 398
399
400
397 - S. Th., II-II, 24, 8. 398 - D. von Hildebrand, La esencia del amor, 176. 399 - Cf. nota 68. [N. do T.] 400 - S. Th., I-II, 28, 5. 244
O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino
IX - Efeitos do Amor
da alteração, como acontece no sentido e no ato de qualquer potência anímica exercido mediante uma transformação do órgão corporal. 401
3. A alteridade no amor
a) Amor quiescente e êxtase perfeito A condição de possibilidade de o amor ter como efeito formal interno a união íntima e recíproca entre o amante e o amado, a interpenetração, consiste em que haja uma saída do amante de si mesmo para permanecer no amado: que haja êxtase — como se explicou. Como o objeto do amor é motivo ou motivante, assim que o sujeito o conhece, o objeto realiza sua própria formalidade de bem, imprimindo semelhança na vontade do amante ou, para usar uma metáfora clássica, lança suas flechas no coração do amante, que imediatamente se sente ferido por certa simpatia pelo amado. As intensas palpitações do coração, segundo a sístole e a diástole, seriam sintomas orgânicos dessa vulneração. No que se refere ao amor erótico, convém indicar que se acende principalmente diante da beleza, da formosura corporal, que encanta arrebatadoramente. Essas setas ígneas — continuando com a metáfora do fogo — provocam, além da vulneração do coração do a mante, um ardor no coração ferido, mas não só em sua superfície, senão em seu ponto mais central, o qual começa a irromper veementemente como que em chamas. Esse ardor é mais metafórico no amor espiritual que no sensível. Como a metáfora do fogo e do incêndio amoroso é universal, tanto no tempo como no espaço, pode ampl iar-se, sob essa metáfora, o cariz do amor que surge pela inicial motivação que a tendência recebe do bem. 402
401 - S. Th., I-II, 28, 5. 402 - S. Th., I-II, 28, 5, ad 1. O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino
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a) Desse incêndio segue-se a fusão ou dissolução, o derretimento e a ternura — que se opõe a congelação e solidificação — para que o amado possa penetrar facilmente no coração do amante. Esse calor funde o coração. Do amor do bem em si mesmo, que prescinde da ausência ou presença deste bem, segue-se a fusão ou derretimento, e abre-se o coração para que
o amado possa entrar nele.segue-se o delíquio ou desfalecimenb) Fundido o coração, to: o que já não está duro nem rígido, mas derretido, não se tem por si mesmo, mas se derrama ou desmaia. Esse desfalecimento implica certa tristeza pela ausência do amado. Tender para o amado ausente é justamente odesejo, causado pelo amor. Pois, quando o bem está ausente, se seguem dois afetos: um, a tristeza pela ausência do bem amado — é o desfalecimento ou desmaio; e o outro, o desejo ardente de possuí-lo. c) Quando o amado está presente, sente-se ogozo e a fruição: o amor causa o gozo, que é como certa embriaguez de amor consecutivo ao desmaio, e provoca um desfalecimento mais doce. Portanto, se se acrescenta a condição de presença e posse do bem amado, segue-se o gozo e a embriaguez. b) Saída de si e amor de si Quer isso dizer o que pelo efeito do êxtase o amante ama mais ao outro que a si mesmo? Se o amor une o amado ao amante, e se o amante sai de si para dirigir-se ao amado, por acaso o amante não ama sempre mais o objeto amado que asi mesmo? Certamente, quem ama “sai de si na medida em que quer e faz o bem do amigo. No entanto, não quer o bem do amigo mais que quer o seu próprio (non tamen vult bona amici magis quam sua ), razão por que não se segue que ame o outro mais que a si”. O amante sai de si e se translada ao amado enquanto quer o bem do outro e se esforça por lho proporcionar como se se tratasse de si mesmo. 403
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403 - I-II, 28, 3, ad 3. 404 - I, 20, 2, ad 1 246
O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino
IX - Efeitos do Amor
Há para o Aquinate um enlace indissolúvel entre o amor a nós mesmos e o amor a qualquer outro objeto. Isso significa, no caso da vontade, que “o amor segundo a verdade é o ato natural da nossa vontade e por conseguinte a nossa perfeição, e que não podemos amar nada sem ao mesmo tempo e por um grande crescimento encontrar naturalmente, não psico405
a nossa própria consideram ologicamente, amor desinteressado como perfeição”. algo solitárioOs queque pode realizarse por si mesmo caem numa ilusão, e não compreendem que amar é querer a si mesmo e a todas as coisas para si, desde que o amor seja objetivo, ou seja, reto e ordenado, e neste caso “o amor desinteressado e o amor natural de nós mesmos são somente um único e mesmo amor: enquanto ato, é a nossa perfeição, sem que deva necessariamente tornar-se objeto de outro ato que, psicologicamente, o tomasse por fim e o subordinasse depois ao bem superior: enquanto ato de amor espiritual, está orientado completamente ao bem absoluto, finito ou infinito. A dificuldade do nosso problema consiste mormente na impossibilidade aparente de que um só ato seja integralmente, por um lado, um amor desinteressado ao bem como tal ou ao bem de outro e, por outro lado, a realização da tendência natural à nossa própria perfeição. De um lado, parece haver aí dois objetos, sendo preciso admitir também dois atos com orientações diametralmente opostas: um que teria por objeto o bem em si mesmo ou o bem de outro — estaria centrifugamente voltado para o objeto — e outro que visaria à perfeição própria do sujeito — e seria centrípeto. Eu necessitaria então ou eliminar o amor de mim para permitir a realização do amor desinteressado, ou buscar minha própria perfeição e reduzir o amor desinteressado à categoria de meio em relação ao bem meu, ou seja, sufocar realmente o amor desinteressado, o qual não pode existir senão gratuitamente, sem referência aos interesses do sujeito. De outro lado, é igualmente impossível manter separadas e como que justapostas essas duas formas de amor, porque o amor desinteressado a um bem qualquer, sem 405 - Louis-B. Geiger, 104. O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino
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referência ao verdadeiro bem do sujeito, ou é impossível ou é ilegítimo, porque não seria senão a explosão irreflexiva da paixão, já não um amor propriamente humano. A dificuldade seria insolúvel se o meu bem fosse uma coisa e o bem que é objeto do amor desinteressado fosse outra coisa, diferente. Estaríamos então diante de dois bens absolutos e de dois atos de amornatureza. absolutos, subordinar semnão que éseuma perverta sua Emimpossíveis verdade, adenossa perfeição coisa, mas um ato. O nosso bem não é um tesouro que se anseia com amor itinerante, mas um objeto que há de ser amado por esse ato que é o amor do bem segundo a verdade, quer dizer, um amor desinteressado e absoluto que se encontra diante de um bem absoluto. Um só e mesmo ato é, pois, objetivamente falando, como ato imanente, de um lado o cumprimento da nossa perfeição e, de outro lado, o amor desinteressado do bem. Não se pode dar uma dimensão sem a outra. Ou estão ligadas indissoluvelmente ou não se dão”. O amor puro do bem, especialmente do bem absoluto, constitui nossa perfeição natural. Quando cumprimos as exigências do bem segundo a ordem de sua verdade, realiza-se nossa perfeição diretamente, sem reflexão especial. O esquecimento de si não deve acontecer no plano do apetite natural, mas no da atenção psicológica. “Tender à nossa perfeição não é, pois, preferir o nosso bem a tudo o mais, à maneira como se põe uma coisa acima de todas as outras. É pôr acima de tudo o amor ao bem e a fidelidade em responder às exigências da verdade.“ 406
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c) Intensificação da alteridade. Os zelos [ciúme(s)], o zelo O efeito psíquico que de modo indireto se segue do amor, enquanto o amante deve vencer os impedimentos que encontra para conseguir o amado, é o zelo. “Zelo” provém do grego , que significa arder, ebulir: é ardor, fervor, intensidade e 406 - Louis-B. Geiger, 106-108. 407 - Louis-B. Geiger, 109. 248
O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino
IX - Efeitos do Amor
veemência de amor. O zelo pode ser considerado em dois sentidos: causalmente, e então implica o ardor e a veemência do amor; e formalmente, e expressa assim o amor intenso que não tolera nem o consórcio no amor ao amado (ter zelos de alguém a quem se pretende excluir), nem o mal do amado (ter zelo por alguém que não queremos que seja tocado ou rebaixado). Que significa a intensidade do amor?O amor pode aumentar: somos 1. O amor pode aumentar? sempre viadores que caminhamos para o que amamos. Tanto mais avançamos neste caminho quanto mais nos aproximamos do amado, a quem se chega não tanto por passos corporais quanto pelos afetos da alma (affectibus mentis). O amor faz esta aproximação, porque por ele se une a intimidade ao amado. Razão por que poder crescer é condição do amor humano, sempre a caminho. Crescer, é claro, em intensidade. Porque todo ato — e o amor é um ato da vontade — guarda proporção com o objeto a que tende e com o agente que o produz: pelo objeto se especifica; e pela potência do agente tem a medida de sua intensidade, assim como o movimento se especifica pelo termo e alcança intensidade de aproximação segundo as disposições do móvel e a potência do motor. Assim também, o amor traz sua espécie do objeto, mas a intensidade depende do próprio amante. Como amar é querer o bem para alguém, pode suceder, pois, que uma coisa seja mais ou menos amada por parte do ato da vontade, o qual pode ser mais ou menos intenso: a vontade humana não ama tudo com um só ato invariável. Mas também pelo lado do bem que se quer para o amado pode acontecer que uma coisa seja mais ou menos amada, porque amamos mais aquele para quem queremos maior bem, ainda que a intensidade do querer seja a mesma. 408
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408 - S. Th., II-II, 24, 4. 409 - S. Th., II-II, 26, 7. 410 - S. Th., I, 20, 4. Pode-se dizer também que de duas maneiras podemos ter amor desigual por alguém. Uma, em razão de que uns sejam amados e outros não; tal desigualdade se cumpre na beneficência, já que não podemos socorrer a todos; mas não deve dar-se na benevolência do amor. Outra O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino
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Que o amor seja mais ou menos intenso não provém da quantidade dimensiva (numérica), mas apenas da virtual, que não responde somente ao número de objetos que são amados, sejam poucos ou muitos, mas principalmente à intensidade do ato, de maneira que uma coisa seja mais ou menos amada. Neste sentido, cresce a quantidade virtual do amor. Decisivo que oquanto amor não aumenta pordosoma de,mais O amor não écresce à quantidade objeto senãoamor. que aumenta unicamente pela intensidade radicada no sujeito. a) Em toda soma acrescenta-se uma coisa a outra; portanto, antes do ato de adição supõe-se que as duas coisas sejam diferentes em suas formas. Mas a distinção nas formas é dupla: uma específica e outra numérica. Nos atos e hábitos, a distinção específica provém da diversidade dos objetos, e a numérica, da diversidade do sujeito. Um hábito pode aumentar por adição, ao abarcar objetos a que antes não se estendia; desse modo cresce a ciência da geometria em quem descobre novos teoremas que antes desconhecia. Isto não pode suceder com o amor, porque até o mínimo amor se estende a tudo aquilo que se deve amar com ele; por isso não se dá tal soma no aumento do amor, que teria de supor a distinção específica entre o amor acrescentado e aquele a que se acrescenta. Tampouco há adição de amor a amor na hipótese de uma diversidade numérica dos sujeitos; quando se acrescenta branco a branco, não se faz uma coisa mais branca. Dado que o sujeito do amor é a alma racional, não poderia haver aumento de não somar-se uma alma racional a outra, o que é impossível. E, ainda que fosse possível esse aumento, faria maior o ser amante, mas não mais amador. Conclua-se, pois, que de nenhum modo o amor pode aumentar por adição de amor a amor. b) Por conseguinte, o amor só aumenta por participá-lo cada vez mais o sujeito, ou seja, por ser cada vez mais forçado a agir segundo o amor e por submeter-se a ele com mais docié a desigualdade do amor em razão de uns serem mais amados que outros. S. Th., II-II, 26, 6 ad 1. 250
O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino
IX - Efeitos do Amor
lidade. Esta classe de aumento é própria de toda forma que se intensifica, dado que seu ser consiste em aderir totalmente a seu sujeito. E, assim como a magnitude de uma coisa responde a seu ser, uma forma será maior por unir-se mais ao sujeito e não porque advenha outra forma. Isto se daria se a forma tivesse quantidade de si e não por comparação com o sujeito. Dessa amordizer aumenta por intensificar-se no sujeito; queo émaneira, o mesmoo que que aumenta essencialmente, e não oque amor se some ao amor. 2. Poder-se-ia pensar que uma coisa é o amor crescer em sua essência, e outra ele crescer em sua radicação no sujeito ou no ardor que suscita. Tal distinção é falsa. Pois, ainda que o amor não seja substância, mas ato ou virtualidade de atos (hábito), seu próprio ser de acidente é estar num sujeito; razão porque dizer que o amor cresce em sua essência equivale a dizer queadere mais ao sujeito ou que se enraíza mais no sujeito. Ao mesmo tempo, como todo hábito está essencialmente ordenado ao ato, é a mesma coisa aumentar sua essência e ser capaz de produzir um ato de amor mais ardente. Aumenta, pois, essencialmente; mas não de modo que comece a estar ou deixar de estar no sujeito, senão que começa a estar cada vez maisno sujeito. Nesse sentido, o amor (como hábito) também pode diminuir. A quantidade que o amor tem com respeito ao objeto próprio não pode diminuir nem aumentar. Mas, como aumenta na quantidade que possui relativamente ao sujeito, pode diminuir por este lado. Se diminui, será por algum ato ou por abster-se de um ato. Deste segundo modo diminuem as virtudes adquiridas com atos, e às vezes desaparecem: podem cortar-se muitas amizades simplesmente deixando de freqüentá-las, não recorrendo ao amigo ou não falando com ele. E isso é assim porque a conservação de uma coisa depende de sua causa. A causa da virtude adquirida é o ato humano; donde, cessando os atos, vai minguando a virtude, até, finalmente, desaparecer de todo. 411
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411 - S. Th., II-II, 24, 5. 412 - S. Th., II-II, 24, 4 ad 1. 413 - S. Th., II-II, 24, 10. O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino
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Pois bem, e voltando ao assunto, da intensidade do amor provém o zelo, por qualquer aspecto que seja considerado. Porque, quanto mais intensamente a faculdade se dirige a uma coisa, mais fortemente repele tudo o que a ela é contrário ou que com ela é incompatível; e, como o amor é um movimento para o objeto amado, o amor intenso tenta excluir tudo aquilo queamor se lheitinerante opõe. Isto,e no perfeito. entanto, acontece de modo diferente no a) No amor itinerante , quem deseja intensamente alguma coisa se move contra tudo aquilo que impede a consecução ou gozo pacífico do objeto que ele ama. O zelo causado pelo amor itinerante se orienta a tudo o que se opõe ao prazer e à utilidade do bem amado. O amado é aqui para nossa utilidade e prazer; e o que se opõe assim à nossa utilidade — à sua excelência, à sua singularidade ou ao seu gozo tranqüilo — é combatido ardentemente. Por isso, o homem zela por sua esposa, a fim de que a companhia de outros não altere a exclusividade que quer nela. Igualmente, os que buscam destacar-se se voltam contra os que parecem superá-los, como que impedindo sua preeminência; sendo este o zelo da inveja. Os bens referidos, por sua imperfeição e parcialidade, não podem simultaneamente satisfazer a muitos, nem ser possuídos por muitos: daí o egoísmo, a inveja e a ambição. b) Mas o zelo causado pelo amor quiescente se orienta contra as coisas que se opõem ao bem do amigo. O amor quiescente busca o bem do amigo; razão por que, quando é intenso, impele o homem contra tudo aquilo que é oposto ao bem do amigo ; e neste sentido se diz que alguém tem zelo pelo amigo quando se esforça por rejeitar tudo o que se faz ou diz contra o bem dele, contra sua honra ou vontade. 414
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414 - S. Th., I-II, 28, 4. 415 - S. Th., I-II, 28, 4. 252
O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino
IX - Efeitos do Amor
4. O ódio sob o amor
a) O amor, causa universal 1. Se todo agente obra por algum fim — como se disse — e o fim para cada ser é o bem desejado e amado, resulta
que todo qualquer que seja, executa em todas as suas ações por agente, algum amor — amor considerado geral, que compreende em si o amor espiritual, o sensitivo e o natural. Também o ódio é causado pelo amor. Pois, como se disse, o amor consiste em certa conveniência do amante com o amado, enquanto o ódio consiste em certa repugnância ou dissonância; e em todo ser devemos con siderar o que lhe convém antes do que o contraria, pois o motivo de uma coisa ser contrária a outra é que destrói ou impede o que lhe é conveniente. Portanto, o amor é necessariamente anterior ao ódio, e nenhuma coisa é odiada senão por ser contrária ao objeto que se ama. Por conseguinte, to do ódio é causado por um amor. Pode parecer que o amor não é causa do ódio porque amor e ódio são, em certo aspecto, coexistentes e não consecutivos em linha causal. Mas deve-se notar que, nas coisas opostas, algumas são naturalmente simultân eas tanto na realidade como em seu conceito ; assim, duas espécies de animal ou de cor; outras são simultâneas em seu conceito, mas sucessivas na realidade: uma é na realidade anterior à outra e causa dela, como acontece nas espécies dos números, figuras e movimentos; outras, por fim, não são simultâneas nem na realidade nem em seu conceito, como a substância e o acidente, pois a substância é realmen te causa do acidente, e antes atribuímos o ser à substância que ao acidente, dado que não se atribui o ser ao acidente senão enquanto está na substância. Pois bem, o amor e o ódio são naturalmente 416
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416 - S. Th., I-II, 28, 6. 417 - S. Th., I-II, 29, 2. O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino
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simultâneos no conceito, mas não realmente . Razão por que nada impede que o amor seja causa do ódio. 2. Sendo o amor causa universal, então é mais forte que o ódio. É impossível que o efeito seja mais forte que sua causa. E, como o ódio procede de algum amor como de sua causa, como se disse, é impossível que o ódio seja absoluta e essencialmente 418
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maisMas forte que o amor.ademais, que o amor, absolutamente faé necessário, lando, seja mais forte que o ódio, porquanto uma coisa é movida mais fortemente ao fim que para as coisas conducentes a ele, e o afastamento do mal se ordena, como a seu fim, à consecução do bem. Por conseguinte, falando em absoluto, é mais forte o movimento do sujeito para o bem que para o mal. 3. No entanto, algumas vezes o ódio parece mais forte que o amor, por duas razões. Primeira, porque o ódio é mais sensível que o amor. É que a percepção do sentido se baseia em certa imutação; quando esta alteração já está consumada, não é sentida tão vivamente como quando está em processo de realização; por isso o calor da febre na tuberculose, ainda que maior, não é tão sentido, porém, quanto o calor da gripe, porque o da primeira já se tornou habitual e conatural. Por esse motivo, também o amor é mais sentido na ausência do amado, como diz Santo Agostinho: o amor não é tão sentido enquanto não se apresenta a necessidade. E por isso também a repugnância daquilo que se odeia é mais percebida sensivelmente que a conveniência do que se ama. O homem age mais energicamente para rejeitar o odioso porque o ódio é mais sensível. Segunda, porque não se compara o ódio ao amor correspondente, pois é segundo a diversidade de bens a diversidade em magnitude dos amores, aos quais se proporcionam os ódios 420
421
418 - S. Th., I-II, 29, 2, ad 1. 419 - S. Th., I-II, 29, 3. 420 - S. Th., I-II, 29, 3. 421 - S. Th., I-II, 29, 3, ad 3. 254
O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino
IX - Efeitos do Amor
opostos; de modo que o ódio que corresponde ao maior amor move com mais força que um amor menos intenso. Portanto, o ódio nunca vence o amor a não ser por causa de um maior amor a que corresponde o ódio. 4. Como causa universal, o amor também é causa do gozo e da tristeza. Do amor procedem a alegria e a tristeza, ainda que 422
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maneira diferente. Pois o. Ao gozocontrário, é causadosegue-se pelo amor porque odebem amado está presente tristeza do amor por ausência do amado ou porque o amado, para quem queremos o bem, anda deprimido por um mal. O gozo deve ser considerado em sua essência e em sua causa. No que concerne à sua essência , o gozo não é um movimento, mas um ato consumado. Sendo a causa do prazer a presença do bem conatural, o gozo ou prazer mesmo não é um fieri , uma geração como supôs Platão, mas consiste antes num factum esse , no fato consumado, como diz Aristóteles: quando as coisas se constituem em sua própria operação conatural e não impedida, segue-se o prazer, que consiste no estado perfeito alcançado ( perfectum esse ). Mas, no que se refere à sua causa, o gozo é certo movimento. Pois no ser animado podem considerar-se duas classes de movimentos: uma, quanto à tendência ao fim , que é própria da tendência interna; outra, quanto à execução , que é própria da operação exterior. Portanto, ainda que naquele que já conseguiu o bem que ele goza cesse o movimento de execução pelo qual se dirige a seu fim, não cessa, porém, o movimento da tendência interior, a qual, como antes desejava o que não tinha, assim depois se compraz no possuído. E, ainda que o prazer seja certa quietude da tendência porque está presente o bem que o satisfaz, não obstante permanece 424
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422 - S. Th., I-II, 29, 3. 423 - “Homo magis diligit se quam amicum: et propter hoc quod diligit se, habet odio etiam amicum, si sibi contrarietur” ( S. Th., I-II, 29, 3, ad 2). 424 - S. Th., II-II, 28, 1. 425 - Filebo, c. 32, 33. 426 - S. Th., I-II, 31, 1. 427 - Ethic., 12, 3. O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino
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ainda na tendência a imutação produzida pelo apetecível — a que o amor srcinal provocou —, razão por que o gozo é um movimento. 428
b) A estrutura do ódio À diferença de qualquer amor, o ódio é vontade de que o outro não seja e de que não culmine para o bem suas possibilidades. O ódio tem vários graus, segundo a incidência negativa, mais ou menos profunda, que tenha na pessoa. a) O ódio radical pretende a anulação do outro, anulação que pode apresentar duas modalidades: primeira, a eliminação física da pessoa mediante uma ação transitiva que lhe cause a morte; segunda, e mais refinada, supressão da intimidade pessoal mediante uma ação imanente. Para esta última, são necessárias duas coisas: em primeiro lugar, que o sujeito conviva com os atos com que o outro determina sua mesma intimidade ou o interior de sua personalidade; segunda, que se comporte nessa convivência como o verme que mata a semente deixando a polpa ou a casca: permitindo ao outro viver superficialmente, porque necessita dele para continuar a golpear sua intimidade, mas impedindo que viva por dentro. O ódio mais refinado é o que mantém uma vida pessoal física sem ser íntimo. Provavelmente este viver seja a ante-sala do inferno. b) O ódio limitante se apresenta em muitas atividades humanas, justamente aquelas em que o outro é visto algumas vezes como obstáculo para a realização social própria (por exemplo, no cargo de uma empresa) e outras vezes como simples instrumento (reduzido, por exemplo, ao silêncio social em benefício da atividade própria). 429
428 - S. Th., I-II, 31, 1, ad 2; I-II, 31, 4. 429 - Análises fenomenológicas interessantes sobre este tipo de conduta podem encontrar-se no livro de Pedro Laín Entralgo, Teoría y realidad del otro, 2 vols., Madri, Revista de Occidente, 1961; especialmente no vol. II, 197-225. 256
O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino
IX - Efeitos do Amor
Paralelamente, há um ódio impessoal que se opõe ao amor imperfeito; e um ódio pessoal, oposto ao amor perfeito, tanto ao benevolente como ao íntimo (amistoso e esponsalício). O ódio impessoal não dirige sua aversão à pessoa, mas somente às coisas que são contrárias às queridas com amor itinerante. O ódio pessoal, em contrapartida, dirige sua aversão à pessoa para a qual bem, bem, opondo-lhe ativa uma e positivamente umdesejávamos mal contrárioumàquele ou ao menos privação desse bem que lhe desejaríamos com amor perfeito. Em suma: amor perfeito (às pessoas) e amor imperfeito (às coisas que se querem para as pessoas) contrapõem-se respectivamente a um duplo ódio, um às pessoas, outro às coisas da pessoa. O ódio impessoal se dirige à coisa contrária; o ódio pessoal se dirige à pessoa para quem desejamos o mal. “Esta diferença dos termos”, comenta Caetano “deve ser entendida formalmente; isto é, a pessoa como tal é objeto de ódio pessoal, e a coisa como tal é objeto de ódio impessoal.” De modo que, tanto no amor perfeito como no ódio pessoal, a pessoa é tomada enquanto tal (formalmente), não como uma coisa ou natureza. Os dois tipos de ódio (o impessoal e o pessoal) implicam duas notas: o movimento dirigido à coisa e o dirigido à pessoa, mas de modo inverso: porque o ódio impessoal é um movimento de dissonância com respeito às coisas que se opõem às queridas com amor imperfeito, ainda que simultaneamente seja um movimento de consonância com a própria pessoa. O ódio pessoal — ou melhor, antipessoal — é um movimento de dissonância com respeito à pessoa, mas simultaneamente é um movimento de consonância com as coisas que se opõem às queridas pelo amor pessoal. Nos tipos de amor referidos — o imperfeito e o perfeito — existe um só movimento de consonância com a coisa e a pessoa, ainda que exista uma diferença fundamental: no amor imperfeito a consonância se refere principalmente à coisa e secundariamente à pessoa; enquanto no amor perfeito a consonância se dirige principalmente à pessoa e secundariamente 430
430 - Tomás de Vio Caetano, In II-II , q. 34, art. 2. O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino
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à coisa que a ela convém, coisa que lhe referimos por amor da pessoa mesma. No que concerne paralelamente ao ódio, assim o explica Caetano: “Como amar é querer o bem para alguém, inclui duas notas pelo lado do objeto: o bem e o alguém; assim também no objeto do ódio confluem dois aspectos: o mal e a pessoa. Pois bem, o amor perfeito e o imperfeito se 431
referem deafirmação maneira uniforme aos dois Mas aspectos, sempre eex-o pressando ou consonância. o ódioe pessoal ódio impessoal se comportam de maneira não uniforme com tais aspectos. O ódio pessoal (ou antipessoal) refere-se à pessoa expressando negação e dissonância, embora se refira ao mal expressando afirmação e consonância; enquanto o ódio impessoal se refere à pessoa expressando afirmação e consonância, mas ao mal expressando negação e dissonância. Pois, quando alguém odeia o castigo ou algo parecido, mostra dissonância com respeito a ele, retirando-lhe seu afeto; mas aqueles que ele não quer que sejam castigados, seja ele mesmo ou sejam outros, são afirmados em seu afeto, e ele tem consonância com eles. E, ao contrário, quando alguém odeia um homem, retira-o de seu afeto e tem dissonância com ele; mas afirma em seu afeto e mantém consonância com o mal que acontece ao outro: quer o mal para ele [...]. O que se apresenta como objeto mau e causa do ódio é rejeitado pelo afeto e não tem consonância com ele. Pois no ódio pessoal [ou antipessoal] a pessoa vem a ser objeto mau e causa má; e no ódio impessoal não é a pessoa, mas a coisa má, o que vem a ser objeto mau e causa má; e, assim como no amor pessoal ou perfeito o objeto amado é amigo, no amor imperfeito só é amiga a coisa desejada”. Por último cabe assinalar que são infinitas as formas individuais de ódio impessoal (desde o provocado pelo incômodo barulho de uma serra até o induzido por um gesto altaneiro ou uma voz estridente). 432
431 - Santiago Ramírez, “De odio”, em De passionibus animae, 155-157. 432 - Tomás de Vío Caetano, In II-II , q. 34, art. 1. 258
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IX - Efeitos do Amor
c) Há ódio de si absoluto? A linguagem do ódio é sempre esta: não quero isso, mas por amor daquilo. E “pelo fato mesmo de que se ama uma coisa [é que] se aborrece sua contrária, e assim o amor de uma coisa é causa de que se aborreça sua contrária”. De modo que o ódio 433
é causado pelo amor: amor tem primazia tanto de um volitiponto de vista subjetivo — oomovimento mesmo da faculdade va — como objetivo — o ser a que se dirige essa faculdade. 1. Primazia de um ponto de vista subjetivo, porque “o amor consiste em certa conveniência do amante com o amado, enquanto o ódio consiste em certa contrariedade ou dissonância; e em todo ser a consideração do que lhe convém é anterior à consideração do que o contraria, pois uma coisa é contrária a outra porque destrói ou impede o que lhe é conveniente. Portanto, o amor é necessariamente anterior ao ódio, e nenhuma coisa é aborrecida senão por ser contrária ao objeto que se ama. E, por conseguinte, todo ódio é causado pelo amor”. Do que se disse depreende-se que, se para o amor podem distinguir-se dois tipos, o itinerante e o quiescente, no caso do ódio não cabe fazer uma distinção paralela ou tão categórica: ao menos convém dizer que não há ódio plenamente quiescente. Porque o movimento do amor se dirige ao fim; enquanto o movimento do ódio se afasta do mal, de modo que “o afastamento do mal se ordena à consecução do bem como ao fim”. O “tomara que morras!“ é manifestação de um sujeito que sente em sua vontade repugnância ao que capta como contrário no outro — ou seja, é manifestação de um ódio profundo à pessoa —, mas brota na verdade de certa conformidade dessa vontade com o que o sujeito capta como conveniente e bom para ela, brota de um amor. 2. Primazia do amor de um ponto de vista objetivo, assim como é antes o que é em si que o que é em outro ou em com434
435
433 - S. Th., I-II, 29, 2 ad 2. 434 - S. Th., I-II, 29, 2. 435 - S. Th., I-II, 29, 3. O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino
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paração com outro: porque “o ser enquanto ser não implica incompatibilidade ou repugnância, mas, pelo contrário, conveniência, dado que todas as coisas convêm no ser. Pois bem, só quando o ser é um ser determinado e concreto (hoc ens determinatum) é que se torna incompatível com outro determinado ser singular. Por isso um ser é odioso a outro e mau, ainda que não em si (in se), mas porque é comparado com o outro”. Se distinguirmos o nível ontológico e o nível psicológico do ódio, deve-se destacar um ponto importante sobre o mal, tanto físico como pessoal, que pode ser o objeto do ódio: tal mal não deve ser entendido somente como algo privativo com respeito ao bem oposto (o mal, claro está, é ontologicamente privação do bem), mas como algo contrário, pois ainda que, falando em geral, seja ontologicamente um bem (e é um ente, aliás), psicologicamente, no entanto, é um mal, porque repugna ao apetite, sensitivo ou racional, mostrando dissonância com respeito a este ente determinado espaciotemporalmente que é o sujeito que quer ou apetece. 3. O caráter duplamente relacional que o ódio tem (referese a um bem em torno do qual gravita e afasta-se de um mal contrário a esse bem) faz que o ódio seja, de um ponto de vista entitativo, menos forte que o amor. O exemplo mais próximo que se poderia aduzir para desmontar esta tese é o ódio que um ser humano poderia ter a si mesmo. Mas deve-se recordar que, como o ódio é contrário ao amor, ninguém pode odiar a si mesmo com um ódio inato ou natural, porque por natureza não podem existir dois contrários simultaneamente, cujo proceder seja idêntico e referido ao mesmo. A natureza dotou todos os seres de um amor inato ou natural. Só seria admissível que, embora do ponto de vista entitativo não fosse possível esse ódio autonegador, se desse, do ponto de vista operativo, um ódio radicado na vontade: pois bem, nem sequer neste caso pode de si, per se , o homem odiar a si mesmo, nem do ângulo do objeto nem do ângulo do sujeito. 436
436 - S. Th., I-II, 29, 1 ad 1. 260
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IX - Efeitos do Amor
a) Visto o ódio do ponto de vista do objeto ou da especificação pelo objeto, o amor de si é natural e necessário. De modo que de si, per se, no ato de sua vontade o sujeito ama a si mesmo naturalmente. Mas relativa ou acidentalmente, per accidens, pode alguém odiar a si mesmo. Por exemplo, o objeto ou o bem que alguém quer para si com amor itinerante
não é para o próprio umdebem de maneira absoluta, simpliciter , mas um bemsujeito apenas maneira aparente e relativa, secundum quid, conquanto possa ser um mal de maneira absoluta: e pode o sujeito odiar a si mesmo de maneira absoluta na medida em que se ama de maneira relativa, como aquele que toma uma dose de heroína que de maneira absoluta lhe provoca a morte. “Às vezes o que se apetece como bom é, se visto em particular, mau em absoluto; e, segundo isto, alguém quer para si incidentalmente (per accidens) o mal, o que é odiar-se.” b) Considerado o ódio do ponto de vista dosujeito, cabe dizer que alguém também pode odiar a si mesmo: pois, na medida em que quer para si um bem com amor quiescente, pôde considerar como falso e relativo,per accidens, que ele seja o que realmente não é, a saber, homem pela vida animal ou pelos bens temporais, quando em verdade é um ser humano por sua mente e seu espírito. “Cada coisa consiste antes de tudo no mais principal dela, e por isso se diz que uma cidade faz o que o rei faz,como se o rei fosse a cidade inteira; e o homem é sobretudo seu espírito. Alguns, no entanto, se crêem constituídos principalmente pelo que são segundo a natureza corporal e sensitiva; e por isso se amam segundo o que crêem que são, e odeiam o que verdadeiramente são, querendo coisas contrárias à razão. [...] quem ama a iniqüidade odeia não somente sua alma, mas também asi mesmo.” 437
d) A inveja como raiz do ódio A inveja é considerada pelo Aquinate uma das raízes do ódio. Ela é, do ponto de vista fenomenológico, um “olhar fas437 - S. Th., I-II, 29, 1 ad 1. O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino
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cinante”. Que é a fascinação? É simplesmente, segundo o dicionário, a ação de “aojar” [ou seja, o aojo ou “mau-olhado”], de emitir um mal através dos olhos. Há no ato comunicativo pessoas que emitem maldade através dos olhos? Há pessoas que com um olhar maléfico influem negativamente no próprio ato comunicativo? Este é em síntese o problema da fascinação, 438
no qual ressalta, um lado, o e, “ de aojador [o queo emite mauolhado] ou agentede fascinador outro”lado, que provoca a fascinação. 1. É preciso referir-nos ao fato de que em nossas sociedades aparece com freqüência uma crença inconsciente numa força dispersa que, concentrada em alguns homens, é emitida pelos olhos e prejudica outras pessoas em sua saúde ou em suas propriedades, impedindo-lhe a felicidade nesta vida. Esses homens são os fascinadores ou “aojadores ”, pois emitem uma força que teria a propriedade de danar ou consumir as coisas nas quais se fixa. Considera-se então, também inconscientemente, que a pupila desse fascinador descarrega sobre o que olha uma substância invisível, semelhante ao veneno da serpente. Conta Plutarco que Eutélidas tinha tanto poder negativo nas pupilas, que podia prejudicar a si mesmo apenas olhando-se ao espelho. Esse poder foi chamado pelos latinos fascinum (daí a palavra fascinación), que em castelhano também se chama aojo ou mal de ojo [mau-olhado]. Quando o “aojador ” encontra uma coisa viva e bela, boa, elevada, lança contra ela a luz envenenada de suas pupilas e a faz languescer paulatinamente, ou até a mata. O homem sobre o qual recaiu o mau-olhado já não poderá sair-se bem em nenhum trabalho, em nenhum projeto: o que quer que empreenda ou realize explodirá em mil pedaços; até o futuro que ele estima fica ameaçado. Os fascinadores costumam ter aspecto disforme ou exibir uma feiúra física, especialmente a aparência facial, a que se vê ou que entra pelos olhos. 438 - O verbo português “fascinar”, ao contrário de seu correlato espanhol ( fascinar), não tem entre suas acepções a de “lançar mau-olhado”. [N. do T.] 262
O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino
IX - Efeitos do Amor
O mal proveniente do fascinador é provocado ou induzido pelas “qualidades” de outros homens, consideradas como negativas: por algo apreendido como um mal — teria dito Santo Tomás — e, portanto, motivo de aversão ou ódio. Mas que qualidades são consideradas aqui como “negativas” e provocadoras da reação maléfica da “fascinación”? As boas ou as más? Ainda quenegativo pareça mentira, normalmente são as boas. 2. O e provocador é a inteligência, a beleza, as qualidades, o bem-estar que se vê, por exemplo, numa pessoa. Este ser inteligente, capaz ou cheio de qualidades físicas, psíquicas e sociais é o provocador, o indutor: por seu caráter supostamente negativo, atrai o “mau-olhado” do “fascinador”. Salta aos olhos que o fascinador está atormentado em seu íntimo por um sentimento de ódio especial, provocado pela inveja, a qual não é outra coisa senão a tristeza ou o pesar pelo bem e pela felicidade do outro. Inveja, etimologicamente, vem do verbo latino videre, que indica a ação de ver pelos olhos, e da partícula in; de modo que invidere significa olhar com maus olhos, projetar sobre o outro o mau-olhado. Em nosso caso, dizer invejoso quer dizer fascinador do outro. Desse modo, erige-se a inveja em raiz ou mãe do ódio à pessoa: invidia est mater odii, primo ad proximum, dizia Santo Tomás. O mundo antigo conhecia muitos caracteres da inveja como paixão íntima. Entre os gregos, ela é representada como uma mulher com a cabeça eriçada de serpentes e o olhar oblíquo e sombrio. Seu estranho olhar, com sua cor cetrina, tem uma explicação fisiológica normal, pois, no ato de invejar, o homem sofre uma ação cardiovascular constritiva, que produz lesões viscerais microscópicas e dificulta a irrigação sanguínea e a assimilação normal. A cabeça coroada de serpentes era símbolo de suas perversas idéias; em cada mão levava um réptil: um inoculava o veneno nas pessoas; o outro mordia aprópria cauda, simbolizando com isso o dano que o invejoso faz asi mesmo. 439
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439 - Foi-me de grande utilidade para redigir estes pontos concernentes à inveja o livro de Helmut Schoeck, La envidia y la sociedad. 440 - S. Th. II-II, 34, 6 ad 2. O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino
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3. A filosofia clássica encontrou fenomenologicamente pelo menos seis características no “invejoso”. Primeira, ao “invejoso” causa pesar ou descontentamento o bem-estar e a fortuna dos demais:invidia est tristitia de bono alterius, inquantum aestimatur diminuere gloriam propriam. Por exemplo, ele vê os bensdo outro, mas não as dificuldades ineren441
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tes a de seusuperar comportamento, nem .as privações e desvantagens que teve paraconsegui-los Segunda, o invejoso é uma pessoa próxima do provocador: próxima no espaço e na fortuna. Eu não posso invejar um Rockefeller, mas sim o Seu Próspero, o charcuteiro do meu bairro, que está enriquecendo. E, se Seu Próspero quebrar uma perna, eu me consolarei pensando que agora eu posso andar melhor pela vida. A grande desigualdade provoca admiração, enquanto a desigualdade mínima provoca inveja eojeriza:invidia non est inter multum inaequales, sed ad illostantum, quibus potest quis se aequare vel praeferre. O estudante que se dirige apé de seu bairro à Universidade odeia só um pouquinho o colega que vai nummodesto automóvel; mas o dono desse automóvel morre de inveja ao ser ultrapassado por um veículo deslumbra nte e de marca famosa. Às vezes o que é invejado é igualou parecido ao que o invejoso tem; mas a imaginação inconsciente o deforma e o aumenta. Por isso diz o ditado que “o invejoso fazdos mosquitos elefantes”. Quarta, quanto mais favores, atenções ou mimos faça o provocador ao fascinador, mais forte será neste o desejo de eliminar aquele, pois a dádiva lhe recordará sempre que ele está num grau inferior ou de carência. E, ainda que se alcançasse uma perfeita justiça igualitária, sempre restaria a desigualdade de inteligência e de caráter, a qual seria motivo de inveja. Quinta, como na maioria das vezes o fascinador não pode destruir o outro e, ademais, não pode suportar a idéia de que sobrevivam a ele as pessoas afortunadas, dirige contra si mesmo a outra parte desse ódio agressivo: não só quer destruir o outro, 443
441 - S. Th. II-II, 36. 442 - S. Th. II-II, 36, 4. 443 - S. Th. II-II, 36, 1 ad et ad 3. 264
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mas quer destruir a si mesmo; é autodestrutivo, autodevorador, sendo seu lema: “Prefiro morrer a ver-te feliz!” Ele também é masoquista. Donde dizermos que alguém morre de inveja. Sexta, o fascinador nunca descansa: nem sequer a expropriação forçada da fortuna do outro, em sentido igualitário, consegue eliminar sua inveja. Por isso, “se a inveja fosse febre, todo o mundo teria morrido”, diz o ditado. 5. O amor como causa exemplar. Amor e matrimônio
a) Etiologia do matrimônio Esta parte do livro é suscitada por duas questões relacionadas entre si. Primeira, a fenomenologia e ontologia do amor esponsalício que foram estudadas no capítulo IV, onde se expõe um conceito ou modelo do amor esponsalício, um ideal — estrutura de notas essenciais do amor — que já constitui um núcleo importante de qualquer antropologia personalista. Segunda, a relação que certos círculos de pensamento consideram que esse amor tem com o matrimônio. Poder-se-ia interpretar essa conexão como uma relação de causa a efeito ? O amor esponsalício, em sua fecunda dimensão pessoal de doação e promoção, seria causa do matrimônio? O problema filosófico que se pode suscitar reside em interpretar a índole causal que o amor tem, como realidade srcinária e profunda, na totalidade da pessoa, em seu ser e agir; por conseguinte, na constituição do matrimônio. Advirta-se de início que o amor esponsalício não é propriamente o amor conjugal ou matrim onial, nem o amor de enamorados, mas uma categoria de amor que plenifica e dá sentido pessoal tanto à relação de enamoramento quanto à relação conjugal. Pois poderia haver matrimônio — e até enamoramento — sem autêntico amor esponsalício. Este amor é, como se disse, pessoal, livre sexuado, total, incondicional, fiel e criador. O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino
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Só do ângulo deste valor, desta estrutura categorial pessoal do amor esponsalício, é que se pode compreender o grau de “satisfação“ ontológica que cada matrimônio pode ter. A tradição canônica, filosófica e teológica configurou a etiologia do matrimônio sob as quatro causas seguintes: 1ª Causa eficiente: é a concórdia de vontades, ou melhor, 444
o consentimento dos contraentes expresso num pacto, num contrato feito de modo livre e legítimo entre homem e mulher; ninguém pode adquirir domínio sobre o corpo, que é de livre disposição do outro, senão pelo consentimento deste. Como ao matrimônio ninguém está obrigado individualmente — ainda que o homem se ordene naturalmente à sociedade conjugal, pois o matrimônio é uma união a que inclina a natureza humana —, o vínculo matrimonial só pode surgir por contrato livre e legítimo; não há liberdade num contraente se ele é levado à força a expressar a fórmula do contrato ou se ignora o sentido e o conteúdo do que está pactuando. Pois bem, o pacto conjugal não é o matrimônio, mas sua causa: o consentimento produz o matrimônio; ativamente considerado, o matrimônio é o contrato legítimo entre homem e mulher. Mas a causa — uma das causas — não é a essência mesma do matrimônio. 2ª Causa formal: união e vínculo consistente no direito mútuo, perpétuo e exclusivo ao corpo do outro (viri et mulieris coniunctio). É o matrimônio em sentido essencial. 3ª Causa final : a prole, pois o matrimônio é instituído para gerar filhos e educá-los, o que é seu fim primário; e da união se segue, também naturalmente, a comunhão de leito, mesa e habitação para se ajudarem mutuamente ( individuam vitae consuetudinem retinens ) e exercerem a sexualidade, que são os dois fins secundários do matrimônio: trata-se de um todo teleológico cujas vecções são hierarquicamente ordenadas, ainda que dentro de uma unidade estrutural congruente. 444 - De todo intencionalmente vou dobrar-me não só à terminologia clássica, mas também à explicação que comumente se encontra em textos de fácil acesso. 266
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4ª Causa material: engloba homem e mulher suficientemente dotados sexualmente, na ordem biológica e na ordem psíquica, para levar a efeito a união pactuada; de modo que estão incapacitados para o matrimônio, por exemplo, os afetados por impotência permanente ou os que carecem do uso da razão.
Em entre suma,homem o matrimônio é asurgida união de legítima, estável e exclusiva e mulher, seu mútuo consentimento, e ordenada à procriação e à mútua ajuda dos esposos. Como se pode ver, o matrimônio aparece aqui como um contrato peculiar, pois à diferença dos contratos convencionais, ele dá srcem a direitos imutáveis — por exemplo, a indissolubilidade —, sendo ademais seus efeitos essencialmente independentes do arbítrio das partes. A vontade dos esposos não é absolutamente autônoma e soberana, razão por que produz seu efeito em consonância com um desígnio natural prévio, que é seu fundamento: a complementaridade entre virilidade e feminidade. Ainda que o consentimento seja a causa eficiente do matrimônio, não o é de sua conservação. A liberdade intervém para sujeitar-se ao vínculo. Esta sujeição livre não é uma limitação da liberdade, mas a condição de possibilidade para que se desenvolva como humana e finita. b) O amor esponsalício, causa ou efeito do matrimônio? Visto o objeto de que se fala, o matrimônio, passo a expor as posições suscitadas pela questão da referência etiológica do amor ao matrimônio. a) Boa parte dos intelectuais com formação clássica nega rotundamente a conexão causal entre amor e matrimônio: não haveria relação direta entre pacto conjugal e amor conjugal. Dizem eles: mesmo um matrimônio sem amor é válido; a simples conveniência de costumes, o mero interesse econômico, o puro desejo erótico podem ser os minúsculos acompanhantes do pacto matrimonial; e em nenhum caso devem ser chamados causas dele. Portanto, a essência do matrimônio é o vínculo O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino
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jurídico nascido do consentimento — consentimento que dá lugar a direitos e deveres conjugais —, mas o amor conjugal é, no máximo, um mero requisito para a felicidade matrimonial. As leis que regem a vida matrimonial são de índole natural, inscritas na natureza do homem, e nada devem ao amor. O matrimônio é o dever, não o amor. O vínculo mútuo (a forma) funda-se na (o eficiente). pode matrimônio umlivre ato decisão ou circunstância das Não pessoas quesrcinar não esteja em relação com essa livre decisão. Nem o amor por si mesmo, nem a convivência marital, nem o ato conjugal unem em matrimônio, mas apenas a livre decisão como ato de vontade. Até aqui a argumentação de uma etiologia matrimonial extraamorosa, para dizê-lo de alguma forma. b) Há uma argumentação que desenvolve uma etiologia matrimonial intra-amorosa. Não nega o núcleo interno que estrutura o matrimônio — segundo a ordem da causa eficiente, final, formal e material —, mas pretende enriquecê-lo. Reconhece que homem e mulher, através de suas estruturas complementares de virilidade e feminidade, tendem a unir-se numa unidade primária, a fazer-se dois em um. Mas a união é mais ampla que a concernente a este aspecto natural: no matrimônio dá-se também união de duas pessoas, pelo amor mútuo que se professam. Como não é possível que entre elas exista a unidade substancial, porque então deixariam de ser dois, é preciso que a dualidade se expresse numa relação maximamente próxima da identidade ontológica: e essa relação tem a nota essencial de indissolubilidade e perpetuidade. Os dois formam uma como pessoa. Trata-se de que o amor faz a união, ainda que não em forma de fusão. Mas este amor, que tem as características de ser pessoal, inteiro e promotor dos valores do outro — de corpo e alma —, é algo prévio ao matrimônio: o amor conjugal tende ao matrimônio, mas não é um de seus fins. Nem o matrimônio é um álveo do amor, nem o amor éfim do matrimônio. O matrimônio não é álveo para que homem e mulher se amem licitamente, mas efeito de um amor que tende à união; tampouco é uma estrutura acrescentada para regular o amor, mas fruto deste. Por sua vez, o amor não é fim 268
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do matrimônio, nem a união matrimonial é uma instituição surgida para que os cônjuges se amem. Essa união é sempre um efeito ou fruto do amor, e não é possível que este seja fim do matrimônio. O amor é, assim, causa de causas: causa o pacto conjugal (move à causa eficiente), o qual vem a ser um efeito do amor conjugal. E causa também a união(a causa formal). Portanse o oamor éfator unitivo, não pode ser fim do matrimônio. É oto,amor que inclina os cônjuges à união, a qual é o matrimônio mesmo. O amor mantém unidos os cônjuges, evitando a infidelidade, e propicia a felicidade gozosa pela união realentre o amante e o amado. Em conclusão, não tem sentido dizer que um fim do matrimônio é fomentar o amor: a causa da vida matrimonial não pode ser um fim que seja fomentado de dentro desta mesma vida, porque a causa não é o fim do causado. c) A tese que proponho respeita as duas posições anteriores, no que têm de afirmativo, integrando-as na dimensão etiológica da causa exemplar. As duas últimas frases do parágrafo imediatamente anterior encerram, em negativo, a chave do que quero dizer. Porque aí se diz, segundo a etiologia intraamorosa, que o amor existencialmente vivido é causa da vida matrimonial; em contrapartida, não o é, segundo os defensores da etiologia extra-amorosa. Pois bem, o amor pode edeve ser causa do matrimônio como ideal ou exemplar. Este exemplar vem a coincidir com a “estrutura ideal de amor” que tão finamente foi elaborada pelos defensores da etiologia intra-amorosa, e que expressa a substância de um amor pessoal, inteiro e promotor dos valores espirituais e corporais de dois seres humanos sexualmente diferenciados. Neste caso, a causa exemplar é fim do causado, dado que sua causalidade se identifica em parte com a da causa final. Mas, antes de prosseguir, convém determinar os traços essenciais da causa exemplar, do ângulo da qual cabe dizer que só através do matrimônio o amor esponsalício é capaz de realizarse plenamente. 445
445 - Na doutrina clássica da Igreja, adverte-se que o motivo — fim subjetivo ou intenção — dos agentes para contrair matrimônio deve ser “líO Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino
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A anterior síntese da fenomenologia desse amor só pretendia estabelecer o complexo de notas essenciais que devem entrar na objetivação do amor como causa exemplar do matrimônio, de modo que o amor seja vivido plenamente em sua riqueza de totalidade, unicidade, fidelidade e fecundidade. c) A mais antropológica das causas Etimologicamente, “exemplar” (exemplar em latim) deriva de eximo ou exemo, que significa tomar uma coisa entre muitas para pô-la separada e à vista de todos; de exemo provém também ex-imius (exímio, conspícuo) e ex-emptus (isento). Os clássicos distinguiam entre exemplo e exemplar. O exemplo pertence preferentemente ao âmbito do moral: é proposto para ser seguido ou evitado. O exemplar é principalmente do âmbito da arte: tomando-o como ponto de referência, imita-se ou faz-se algo semelhante. O exemplar é assim “causa exemplar”, e só cabe aplicá-lo propriamente à ordem antropológica, não à dos seres irracionais: é aquilo à imitação do qual se faz algo que é focalizado essencialmente pela intenção de um agente que determina para si mesmo o fim. Esta determinação da “causa exemplar”, cujas notas irei desenvolvendo, é de importância decisiva para descobrir as implicações etiológicas mostradas pelo amor esponsalício. 1. Primeiro, “é aquilo à imitação do qual se faz algo”. O “exemplar de união” — seja de conveniência interessada, seja 446
cito”, razão por que não necessariamente há de ser o amor. No entanto, o amor conjugal é um dos compromissos que se adquire no contrato-aliança matrimonial, o qual é repetido pelo Ritual do Matrimônio em quatro formulacões: “Estais decididos a amar-vos e respeitar-vos mutuamente por toda a vida?” (n.º 93); “N., eu te recebo como esposa(o) e prometo amar-te fielmente por toda a minha vida” (n.º 94); “N., queres receber a N. como esposa(o), e prometes... assim, amá-la(o) e respeitá-la(o) todos os dias de tua vida?”; “N., recebe esta aliança, em sinal de meu amor e fidelidade a ti”. 446 - “Haec ergo videtur esse ratio ideae [formae exemplaris], quod idea sit forma quam aliquid imitatur per se ex intentione agentis qui determinat sibi finem” (Santo Tomás de Aquino, Quodlib. 8, 2c). 270
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de amor total e donal — é um ponto de referência, ao qual se conforma o matrimônio, e à semelhança do qual se constitui este: portanto, o matrimônio vivido o imita. Mas seu desdobramento etiológico no matrimônio não acontece por inerência e composição (como faz a forma intrínseca), mas por imitação, dado que olhando-o realizam os cônjuges, como o artista, sua obra, que esta se assemelhe àquele. Portanto: a) de O modo “exemplar de união” não é um princípio de conhecimento teórico, um meio ou veículo intelectual através do qual se conhece algo, mas um autêntico conceito objetivo, algo terminal que é conhecido e que é visto pelo cônjuge como artista quando põe em obra seu matrimônio. b) Nem todo conceito objetivo é um exemplar, mas só aquele que encerra um aspecto de imitabilidade, segundo o qual o artista pretende formar algo. Deste ponto de vista, o “exemplar de união” pertence à ordem do intelecto prático, e só assim é um princípio de mediação: não de conhecimento, mas de ação, pois mediante ele o cônjuge obra como artista de seu próprio matrimônio. c) O exemplar não pertence diretamente à ordem do aperfeiçoamento ético do homem, próprio da inteligência prática que desenvolve uma atividade prudencial: não é forma agibilium, diziam os clássicos, entendendo-se por agibilia as 447
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447 - A causa exemplar reside na mente como idéia prática. É a idéia ou o ideal que necessariamente acompanha um ser inteligente antes de ele agir, pois contém o plano e o objeto de sua ação: se não estivesse no princípio e no curso de qualquer realização inteligente, seria impossível toda ação subseqüente. Sua causalidade é de tipo intencional, de ordem intelectual, mas não física. O ideal representa o objeto como bom, em qualquer dos aspectos que a bondade expressa. O que atrai a vontade é a força mesma da bondade do objeto conseguível ou da ação realizável. Na medida em que a idéia exerce uma atração sobre a vontade — atrair é a causalidade própria do exemplar — faz-se que um se “ideal”. resultado causalidade, desta atração, é a inclinação produzO na vontade.desta Resumindo, na srcem de toda atividade inteligente está o ideal, o exemplar, primeiro momento da atividade, sendo srcem e fonte desta, pois provoca a série inteira de operações e de fatos nos quais se apresentam também as outras causas intrínsecas e extrínsecas. 448 - Na expressão de Santo Tomás, segundo a qual a forma exemplar “non est mere representativa rei, sed magis praesignativa, sicut exemplar factivum” (In IV Sent., d. 8, 2, 1, qla. 4 ad 1, n.º 170). O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino
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ações humanas imanentes, as que se referem à vida e à moral, reguladas pela prudência. Pertence, pois, à inteligência prática chamada arte, à forma factibilium, entendendo-se por factibilia as ações humanas que saem do sujeito e buscam seu termo no outro, as transitivas. Estas ações, que saem de um cônjuge para outro para realizar o matrimônio, são reguladas por uma forma exemplar, por umamuito formaespecial, intelectual Trata-se de um âmbito ondedeascoisas coisasfactibles agibilia. apresentam também o caráter de factibilia, enquanto estas, ao contrário, se escondem na intimidade da união conjugal, onde a vida e a moral se imbricam e se refletem em todas as suas arestas. A realização do amor no matrimônio é ao mesmo tempo uma obra artística e uma obra prudencial. 2. Segundo, o exemplar “é focado essencialmente pela intenção de um agente”. Em verdade, algo poderia ser feito acidentalmente e fora da intenção do agente, ou seja, ao acaso, e isto acontece, por exemplo, quando um pintor desenha a imagem de um ser que ele não tinha intenção de pintar. Mas algo é feito respondendo à intenção do agente quando, por exemplo, o pintor faz bem o retrato de alguém que ele tem diante dos olhos: diz-se então que o imitado ou exemplarizado é correto. Que ao pintor saia casualmente uma imitação não é suficiente para dizer que esta se conforma ao exemplar, pois, justamente por ter surgido ao acaso, carece de ordem ao fim. Sendo, pois, o “exemplar de união” aquilo a que se conforma o matrimônio, é preciso que seja imitado essencialmente e não casualmente. 3. Terceiro, o exemplar requer “um agente que determine para si mesmo o fim”. De duas maneiras algo pode ser feito por um fim: uma, enquanto o agente determina para si mesmo o fim, que é o que acontece nos seres que têm inteligência; outra, enquanto ao agente se superpõe outro agente principal que lhe determina o fim, que é o que acontece no movimento da flecha que vai para um fim determinado. Quando um agente que não determina para si mesmo o fim faz uma coisa à imitação de algo, a forma imitável não é propriamente um exemplar. Por isso, a forma é exemplar quando o agente obra por um fim que ele mesmo determina para si. Por este requisito 272
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de reflexividade ou auto-referência, própria do homem como ser intelectual, é a causa exemplar a mais antropológica de toda a etiologia clássica. No caso do amor conjugal, o fato de o indivíduo determinar para si mesmo o fim — assumindo a imitabilidade que dimana dessa estrutura eidético-prática que se chama “amor pessoal e total” — não significa que a autodeterminação deva ser e absoluta: justamente a análise fenomenológica, quearbitrária se atém às coisas mesmas, já proporcionou as notas essenciais que constituem a estrutura do amor pessoal. Plasmar esse exemplar dia a dia no matrimônio será uma invenção contínua, na qual a imaginação há de pôr à prova sua própria fecundidade artística. Assim, o “exemplar de união” é a forma que o cônjuge imita em virtude da intenção essencial que tem quando o determina para si mesmo como fim. O exemplar não é causa com respeito a um agente natural irracional; nem sequer com respeito ao homem que desenvolve atividades puramente naturais, como as de metabolismo e crescimento; só se aplica ao homem que obra por meio dessa função intelectual que se assimila à arte. Deste ponto de vista, o cônjuge é um artista que produz determinada forma no matrimônio guiado pelo exemplar para o qual está olhando. Se as coisas naturais obram por sua forma interna, o artista obra, mediante sua inteligência e vontade, por uma forma externa escolhida e assumida por ele — ainda que não inventada a esmo. d) O influxo do amor como causa exemplar Os clássicos chamaram à causa exemplar também formal, por analogia com a causa formal estritamente dita. A causa exemplar é mais afim à causa formal que à eficiente ou à final. Se no exemplar que guia o matrimônio se integraram as notas fundamentais do amor conjugal em perspectiva personalista, pode-se compreender o grau de “satisfação” ontológica que cada matrimônio pode ter de amor. Não é que não possa haver casos de matrimônio em que as considerações relativas O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino
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ao interesse, à propriedade e à conveniência social entrem em jogo; ou que o jugo da propriedade vincule permanentemente os cônjuges ainda que eles não se amem e ainda, até, que cometam adultério. Mas o matrimônio é ontologicamente satisfeito, na plenitude humana que lhe corresponde, quando se introduz na corrente mesma do amor que exemplarmente espera princípio instituição. por A instituição do matrimônio e daserfamília não de se desenvolve graus a partir do zero. Ou existe de todo ou absolutamente não existe. Ela é a base da sociedade política, anterior a esta com uma precedência ontológica, não temporal. Assim como a srcem mesma da humanidade se identifica com a srcem da família. Fundando essa srcem está o amor. A palavra “srcem” tem aqui o sentido da causa exemplar, pois a partir dela se podem articular idiomaticamente, e num preciso sentido, o “srcinal” e o “srcinado”. É verdade que “srcem” pode coincidir também com “princípio” e “causa”. Mas é de todo verdadeiro que a linguagem permite estabelecer a relação de “srcin al a srcinado” no âmbito da causa exem plar. A causa exemplar influi de modo parecido à eficiente e à final: ainda que não imediatamente, como entidade individual, mas mediatamente, quando a vontade a toma como razão de seu causar; comporta-se de modo similar a como o fim move o agente. 1º Move a modo de fim, porquanto o exemplar é mais perfeito que o exemplarizado. O que o cônjuge pretende, como artista de seu próprio matrimônio, é imitar o exemplar de amor e expressá-lo da melhor maneira possível. Por isso, o exemplar comporta propriamente uma causalidade com respeito às coisas exemplarizadas, as quais são “feitas à imitação” do exemplar. Esta preposição “a” [de “à”] implica ordem ao fim: o matrimônio se conforma ao exemplar; à semelhança do exemplar constitui-se o matrimônio. O exemplar é, de certo modo, fim, pois dele toma o artista a forma pela qual obra. Pode-se reduzir a forma exemplar à causa final, porque incide na matéria como um fim pretendido pelo agente. O exemplar é como o fim do 274
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cônjuge como artista, já que o move a produzir o exemplarizado — o matrimônio — segundo o exemplar. O exemplar efetivo ou efetuado é, assim, somente a realização matrimonial mesma — através do pacto de amor conjugal —, dado que a produz em seu ser. 2º Como a causa exemplar participa da final, conseqüentemente participa dado causa eficiente, a qual é movida pelo fim, também que é a razão mesma ato de mover. A “causalidade” do exemplar é a mesma ação do eficiente enquanto dirigida pelo exemplar. A causa exemplar tem um “influxo” específico em seu efeito, produz seu efeito, que não é outra coisa senão a formação do exemplarizado, o matrimônio, mediante a ação do agente no consentimento do pacto conjugal. Por isso, de certo modo a causa exemplar se reduz à eficiente, pois dirige o eficiente e constitui com ele um princípio de operação ou efetuação. 3º Mas, sobretudo, a causa exemplar influi primariamente como forma: é aquilo a que algo se conforma. A forma é de algum modo a causa do que é formado segundo o desenho que ela tem. A causa exemplar se chama “formal” por analogia com a causa formal estritamente dita. Esta, tal como a material a que corresponde, está dentro da coisa causada: por sua própria essência, a forma está no interior daquilo de que é forma. Pois bem, a forma exemplar está fora da coisa exemplarizada. E, ainda que ambas as formas “formem” a coisa, o modode formar é essencialmente diferente: porque a intrínsecain-forma a coisa diretamente, enquanto a extrínseca ou exemplarcon-forma a coisa a algo que está fora desta. A forma desdobra sua causalidade por modo de inerência; o exemplar, por modo de imitação. Pela forma intrínseca forma-se a coisa; em contrapartida, à forma exemplar se conforma a coisa: esta se forma por imitação ou semelhança. Assim, a causa formal se compara de duas maneiras à coisa feita. Uma, como forma intrínseca desta, e assim se dizespécie; outra, como extrínseca, à semelhança da qual se faz a coisa, deste e ponto de vista a forma sechamaexemplar dessa coisa. 449
449 - É interessante observar as várias aplicações destas teses feitas pela antropologia teológica clássica. No concernente ao tema desenvolvido, O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino
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Mas, considerado em si mesmo, o exemplar — a causa formal extrínseca — de uma obra pode ser interno ou externo. O interno encontra-se no interior do artista: é o ideal ou a forma escolhida, preferida ou assumida por ele e que só existe em sua mente. O externo pode ser, por exemplo, uma flor, um animal, um campo, um comportamento humano, postos como modelos diante dosexemplar olhos doque artista que faz o exemplarizado. bem, o único verdadeiramente tem de modoPois essencial razão de causa é o intrínseco — no nosso caso, a estrutura eidética do amor, a idéia exemplar de amor —, e por isso é sempre exigido para realizar o exemplarizado, o matrimônio. Em contrapartida, nem sempre nem necessariamente se requer o exemplar externo (o comportamento matrimonial de duas pessoas proposto como modelo): este só é exigido de maneira contingente e ocasional, só quando dá ocasião a que o cônjuge escolha uma idéia exemplar — interna, íntima — para fazer, como um artista, sua obra matrimonial. Portanto, só por meio do exemplar interno, da estrutura eidética que o cônjuge como artista faz sua para realizar imediatamente a obra matrimonial que o assimila, influi o exemplar externo, o modelo, no cônjuge e no matrimônio. É, pois, este exemplar íntimo o princípio formativo da obra artística matrimonial, a qual se faz por imitação. Por isso, os bons amantes, tal como os grandes artistas, hão de seleci onar e assumir por si mesmos a forma exemplar de amor, ainda que tenham necessidade do estímulo de um modelo externo — também de uma educação para o amor e de uma doutrina sobre o amor. E por isso também é fácil compreender que a estrutura eidética que, como exemplar, guia a edificação do amor matrimonial não é, por sua vez, um amor, porque antes do amor matrimonial real não há outro amor, mas só a forma imaterial que existe como exemplar na mente do cônjuge como artista de sua própria vida matrimonial. mediante o batismo o homem e a mulher se inserem na Aliança esponsalícia de Cristo com a Igreja: o amor conjugal é assumido na caridade esponsalícia de Cristo, exemplar ou ideal da entrega dos cônjuges (Summa Theologiae, III, 24, 3c). 276
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O que não quer dizer, por outro lado, que nos cônjuges não preexista existencialmente um amor vivido, uma união pessoal de vontades e de afetos, tal como se dá nos noivos. Esta realidade existencial, porém, não é causa do matrimônio, mas comportamento amoroso, e até exemplar externo que urge ser elevado a exemplar interno, a ideal que concorra para causar uma aliança, um pacto conjugal, livremente consentido e ontologicamente satisfeito.
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I MPRESSO
EM
10 DE FEVEREIRO DE 2011, DIA DE
SANTA E SCOLÁSTICA