[Dados sobre esta edição: Ed. eletrônica baseada na 1ª ed. impressa - Texto integral. Sem imagens.]
O AVESSO DO IMAGINÁRIO ARTE CONTEMPORÂNEA E PSICANÁLISE
TANIA RIVERA
É sempre contra a corrente que a arte tenta operar de novo seu milagre. milagre. JACQUES LACAN O espaço não existe, é apenas uma metáfora para a estrutura de nossa existência. LOUISE BOURGEOIS
[…] sempre procura: alguém, O olhar […] alguma coisa. ROLAND BARTHES
INTRODUÇÃO Gosto de pensar na relação entre arte e psicanálise como uma fita de Moebius – figura topológica que surgirá muitas vezes ao longo deste livro. Assim como posso, passeando o dedo por sua superfície, passar de dentro para fora e logo, em continuidade, de fora para dentro, tento deslizar entre os dois campos de modo a dar voz ora a um, ora ao outro, pondo em prática uma torção que talvez defina a ambos. Mais do que forçar um um diálogo entre dois campos bem delimitados culturalmente, trata-se aqui da tentativa de explicitar algo que ambos exploram de modos diferentes: uma reversão do eu e do mundo, uma “cambalhota no cosmos sobre si mesmo” – como dizia Mário Pedrosa – [1] que nos convida a reconfigurar a relação com nós mesmos e com o outro. Tal convite, como uma mensagem de náufrago jogada ao mar, é um gesto efêmero que pode nunca chegar a seu destino, mas repete-se como endereçamento e assim pode se transmitir, de modo sempre imprevisível. Esse gesto vai (re)construindo, assim, a cultura como “raiz aberta”, para usar a expressão de Hélio Oiticica:[2] algo que já está lá mas deve ser reinventado, em um incessante apelo ao outro. Essa reconstrução da cultura e do sujeito é necessariamente polifônica, implicando, é claro, outros campos do saber que tentamos aqui convocar, especialmente com alguns autores da filosofia. Conto que essa polifonia possa incorporar cada vez mais vozes, outros timbres, novas línguas. Os textos aqui reunidos transitam entre o ensaio mais livre e aquele mais conceitual. Trata-se sempre de confrontar trabalhos artísticos e problemas teóricos, algumas vezes v ezes partindo dos trabalhos (ou de um artista em particular), outras tomando o
primeiro elã de questões conceituais. Os capítulos esboçam uma vaga progressão, mas podem ser lidos de maneira independente. A primeira parte pretende abordar ao mesmo tempo as principais vias pelas quais a psicanálise tenta se aproximar da arte e algumas das principais questões a partir das quais reflete a própria produção artística: o corpo, a imagem e a palavra, em manifestações tão diversas quanto a performance, a videoarte e a arte dita conceitual. A segunda parte traz uma conceitualização mais densa, em textos cujas primeiras versões foram destinadas ao leitor familiarizado com a teoria psicanalítica, e abordam aprofundadamente as relações entre sublimação, imaginário e fantasia. Mas eles também permitem, espero, uma leitura mais solta, em torno do mal-estar na cultura e da questão do espaço, ressaltando alguns pontos da reflexão artística de Hélio Oiticica, Lygia Clark e Cildo Meireles. Os ensaios que compõem a terceira parte delineiam questões mais amplas e menos diretamente ligadas à teoria psicanalítica, em uma abordagem que não deixa, contudo, de ser por ela marcada. O papel da crítica de arte é questionado em sua relação com a produção artística contemporânea, especialmente em diálogo com través, de Cildo Meireles. Apresenta-se uma contribuição para a reflexão sobre o objeto de arte e sua “aura”, a partir de Walter Benjamin e em confronto com trabalhos de Waltercio Caldas e, mais uma vez, Cildo Meireles. Além disso, o conceito de arte pósmoderna segundo Mário Pedrosa é ressaltado em sua dimensão ética, para a qual a psicanálise revela-se uma importante influência. radical abertura ao outro implicada nessa dimensão é rapidamente explorada em Hélio Oiticica, na proposta do parangolé, e em Lygia Clark com o trabalho que ela considerava “terapêutico”. Na última parte, mais próxima do que convencionalmente se chama crítica de arte, cada ensaio refere-se à obra de um artista,
explorando as reflexões poéticas realizadas pelo próprio trabalho na tentativa de retransmiti-las em múltipla polifonia. Acompanha este volume, em dvd, o vídeo Ensaio sobre o sujeito na arte contemporânea brasileira . A partir de entrevistas com os artistas Cildo Meireles, Ernesto Neto e Ricardo Basbaum e com os teóricos e críticos Glória Ferreira, Paulo Herkenhoff, Vladimir Safatle, Marília Panitz, Frederico Morais, ele visa explorar a sofisticada reflexão sobre o sujeito em sua relação com o outro realizada pela arte contemporânea brasileira. Este trabalho conta com inserções sonoras de Rodolfo Caesar, trechos de vídeos de Ernesto Neto e de participantes do projeto Novas Bases para a Personalidade (NBP) de Ricardo Basbaum, fragmentos de trabalhos sonoros de Cildo Meireles e do vídeo que acompanhou a exposição de Obscura luz (em Paris, 2005), excertos do filme Cildo Meireles, de Wilson Coutinho, e imagens do Divisor de Lygia Pape (em sua remontagem de 2010). Busca-se, nesta polifonia, uma releitura plural da noção de participação do espectador, da presença do corpo e da incidência da arte no social. Agradeço muito a todos esses participantes e também a Waltercio Caldas, Milton Machado, Umberto Costa Barros, Paula Pape, Ana Coutinho, Cesar Oiticica Filho e à família Oiticica. Sou extremamente grata, ainda, a Evandro Salles, Maria Cristina Poli, Izabela Pucu, Jeanne-Marie Gagnebin e Marcos Bonisson (além de nita e Isadora, sempre). A investigação que deu origem a este trabalho contou com o apoio do CNPQ e da Funarte (MinC), sob forma de uma Bolsa de Apoio à Produção Crítica em Artes Visuais (Edital de 2008) que tornou possível, especialmente, a realização de uma primeira versão do videoensaio. Para a publicação deste livro e a reconfiguração final do DVD foi decisivo o auxílio da Secretaria de Estado de Cultura do Rio de Janeiro. —
Citando um dito do arqueólogo alemão Alfred Schuler que só seria passado adiante “à boca pequena”, Walter Benjamin afirma que todo conhecimento “deve conter um grão de contrassenso”. Assim como a pequena irregularidade em um tapete antigo, residiria nisso sua “imperceptível marca de autenticidade”.[3] Mais importante que a progressão de conhecimento em conhecimento, o decisivo seria a rachadura capaz de se revelar no interior de cada um deles. Espero aqui ter dado lugar a brechas desse tipo, e que nelas cada leitor possa brevemente se alojar.
PARTE UM
CORPO, IMAGEM E PALAVRA
O RETORNO DO SUJEITO: SOBRE PERFORMANCE E CORPO Five points make a man (cinco minúsculas gotas d’água) AMES LEE BYARS
Um amigo me contava, outro dia, a trágica história de uma conhecida que ficou tetraplégica após um grave acidente. Falou de sua perturbação diante do primeiro e-mail enviado por ela, do hospital, utilizando algum tipo de instrumento para digitar com a boca: “Estou viva”. Lembrei-me imediatamente de On Kawara e dos cartões-postais que ele enviava a pessoas do meio artístico com a inscrição: “Eu ainda estou vivo – On Kawara”. Mais forte do que a escrita, a presença corporal de alguém, ao se oferecer ao olhar do outro, não seria essencialmente uma declaração inequívoca de que “se está vivo” – o que sempre significa que “ainda” se está vivo? “Na morte”, dizia James Lee Byars em 1978, “anulo todas as minhas obras.” [4] O que a presença do corpo denuncia, para além de qualquer reafirmação de sua existência individual, é sua fugacidade, a condição mortal, passageira, do homem. Como indica o título de um trabalho de Byars, um quadrado de folha de ouro com 3 × 3 metros sobre o chão, no salão de entrada de uma exposição em Berlim em 1989, The Perfect Performance is to Stand Still . Eu gostaria de ressaltar, na performance, mais uma terrível (e por vezes bela) ausência do que a presença mais ou menos espetacular do corpo. CORPO E SUJEITO Emprestar seu corpo à obra, dar à obra um corpo
ou ainda fazer do corpo uma obra – essas expressões não dizem tudo e mostram o jogo mesmo entre corpo e arte, entre corpo e sujeito. Algo se subtrai e nos atinge na presença maciça de um corpo oferecido ao olhar. Nesse jogo, refletir sobre a performance é construir uma reflexão sobre a própria noção de sujeito hoje. Em outras palavras, a performance põe em questão o sujeito – e a arte, talvez seu reduto mais próprio. O sujeito está no centro da questão da arte. Isso poderia parecer um viés subjetivante, ou, pior, psicologizante. Mas não se trata disso. É necessário afirmar hoje que a arte contemporânea é
marcada por um verdadeiro retorno do sujeito, de forma articulada ao que Hal Foster, em um famoso texto, propõe como “retorno do real”.[5] Após a crítica à mímesis realizada pelas vanguardas modernistas, que desmantelou a bem-aventurada e calculada relação entre o sujeito da pintura e a “realidade” representada, o sujeito, assim como o real, se faz valer de fora do espaço da representação, contra, ao mesmo tempo, ilusionismos e formalismos. O real que, segundo Foster, retorna na arte contemporânea, e que ele explora especialmente no que diz respeito à pop art, é o oposto da realidade mimética construída de forma ilusionista. Por uma torção talvez sutil, porém vigorosa, não se trata mais da realidade como janela para o mundo, dada por e para um olho fixo. Trata-se do real do léxico de Lacan, aquele que é uma espécie de fundo último das coisas, destacado da imagem, e que se trata sempre de tentar representar, sem que tal operação amais se cumpra de forma definitiva. Real traumático, terrível, com o qual o sujeito se depara repetida e violentamente. O sujeito de que se trata na arte há muito não é mais aquele olho soberano capaz de ordenar a representação em regras mais ou menos fixas. Ele é outro: descentrado, não coincide mais com um centro organizador da representação. O sujeito que retorna na arte contemporânea se desmaterializou e problematizou suas fronteiras em relação ao outro, no mesmo passo em que se temporalizou e deslocou em uma nova concepção, fragmentada, do espaço. Contudo, uma vez abandonado seu lugar como origem inequívoca da representação, ele volta de fora da representação, como corpo real – o que reconfigura suas relações consigo próprio, com o objeto e com o espaço. O sujeito recusa-se a se assimilar ao olho ideal e, nesse deslocamento, perde seu lugar de direito para retornar como questão, em uma convocação direta do espectador. Se, como dizia Robert Smithson, “a fotografia torna a realidade obsoleta”,[6] o sujeito que zanzou pelo “deserto” de Malevich, sem se encontrar no espelho, veio a esbarrar nas impecáveis ruínas que
são os objetos minimalistas, objetos que parecem recusar o sujeito para se afirmar como entidades autônomas, puros objetos. Para se destacar da representação mimética, é necessário que eles neguem o homem como seu par e se recusem a espelhá-lo. Mas o que alcançam, assim, é convocar o sujeito a uma nova forma de presença. “As três dimensões são principalmente um espaço para mover-se”, já considerava o artista em seu fundamental “Objetos específicos”, de 1965.[7] O minimalismo recoloca a interdependência entre objeto e sujeito em termos não mais complementares, mas alternantes: o objeto, como o cubo de seis palmos de Tony Smith, diz ao sujeito: Die! (“morra”, este é seu título). “Seis palmos”, reflete o próprio Smith, “sugere que se está morto. Uma caixa de seis palmos. Seis palmos sob a terra.” [8] Extraído do campo da representação para se inserir nas coordenadas do espaço circundante, o objeto faz aí um inequívoco apelo ao sujeito, convidando-o a se perceber e se mover nesse espaço real em que, eventualmente, o objeto vem violentamente – ou belamente – atingi-lo. Georges Didi-Huberman já mostrou o quanto as esculturas de Smith são “objetos-questões”, o que podemos entender como objetos que põem radicalmente em questão o eu (diante de Die, diz o autor, “nosso ver é inquietado”,[9] pois somos postos diante daquilo que seria uma espécie de túmulo e aparece em um verso de Mallarmé como um “calmo bloco caído de um desastre obscuro”). [10] Desde o ready-made, o objeto já questionava seu autor e qualquer ideia de autoria, ressaltando o contraste entre as “intenções do artista”, como diz Duchamp, e o produto realizado. Mas, se o autor é desbancado, é para que melhor possa surgir o sujeito, do lugar que lhe seria de direito: “de fora”. São os “olhadores” que “fazem o quadro”, na famosa fórmula de Duchamp.[11] Contra qualquer psicologia a se fazer arauto da “interioridade” do eu e defender sua “exteriorização” em uma ideologia expressionista, a psicanálise é a reflexão que surge na aurora do
século XX para literalmente pôr o sujeito fora de si. O eu, diz a frase lapidar de Freud, “não é mais senhor em sua própria casa”.[12] Talvez ele nem tenha mais casa, uma vez que o inconsciente o desaloja, faz de seu mais íntimo o que Lacan denomina êxtimo, cunhando um neologismo para denominar o que é radicalmente singular, e no entanto vem de fora. Seria seu corpo a sua casa, como parece defender Lygia Clark com seus A casa é o corpo e O corpo é a casa ? Não, no corpo o sujeito está um tanto desconfortável. Não há coincidência entre eu e meu corpo. Isso é o que a linguagem comum acentua todos os dias, quando dizemos “tenho um corpo”, mais do que “sou um corpo”. No espaço, essa “casa” abre-se para uma imprevisibilidade, um nomadismo, um trânsito que é o contrário da ideia de um lócus fixo e assegurador. “O espaço arquitetural me transtorna”, diz Lygia, explicando em seguida o que seria tal espaço: “Pintar um quadro ou fazer uma escultura é tão diferente de viver em termos de arquitetura”.[13] É nesse sentido do “transtorno” que o espaço vivido impinge ao sujeito que deve ser tomada a afirmação de Freud de que a primeira casa do homem, sua única legítima casa, absolutamente asseguradora mas de saída perdida, seria o ventre materno. Não basta uma apresentação do corpo, seja ela orgiástica, dolorosa ou poética, para que se reafirme o sujeito. Ricardo Basbaum denuncia com muita pertinência a existência de uma “anestesia” atual em relação à performance.[14] Não creio que tal anestesia seja devida a condições desfavoráveis de recepção, como desinteresse ou massificação extrema. Talvez ela se deva ao fato de que, hoje, não basta a presença do corpo para que a verdadeira questão do sujeito se coloque. A performance deve explicitar uma reflexão poética que se engate na fugidia condição do sujeito na contemporaneidade. EU E O OUTRO Ainda que diversas manifestações presenciais do
artista possam pretender uma afirmação identitária com, por vezes, ressonâncias políticas, o essencial é que o corpo se dá a ver . “Toda carne”, escreve Merleau-Ponty em 1960, “e mesmo a do mundo, irradia-se fora de si mesma.”[15] O eu apela ao outro, relembrando sua dependência constitutiva, que faz o seu íntimo estar fora, êxtimo. A presença do corpo pode, nesse campo do olhar, incitar a uma subversão do eu que faz surgir o sujeito do inconsciente. A performance mostra, assim, que o sujeito só pode aparecer de forma efêmera, fugaz, como efeito de um ato que se dá entre o eu e o outro. Não se trata, nesse ato, de uma relação simétrica, mero ogo de espelhos. As figuras formadas pelas linhas de Nazca, no Peru, só podem ser vistas de avião, e eram portanto invisíveis para o povo que as construiu. Elas foram feitas para um olhar de fora, um olhar absoluto, Outro. Na performance, trata-se de “dar-se a ver” ao Outro. Nesse apelo além do espelho, há uma tentativa um tanto sacrificial, a bem dizer, de “co-memorar” (relembrar) o próprio surgimento do sujeito, em sua dependência e demanda em relação a um Outro. Marina Abramovic em Rhythm 0, realizada em 1974, entregou-se inteiramente à manipulação dos espectadores, tendo a seu lado objetos como batom, perfume, fósforos, água, uma vela, uma arma, uma bala, uma serra, um machado, agulhas, uma tesoura, mel, uvas e enxofre. “Há 72 objetos sobre a mesa que podem ser usados em mim como desejarem. Eu sou o objeto”, era a declaração da artista. [16] Seis horas mais tarde, após Marina ter sido despida, cortada, pintada, limpa, coroada com espinhos e ter tido a arma, carregada, apontada para sua cabeça, a performance foi interrompida por espectadores preocupados com seu desfecho. Yoko Ono já havia, em sua Cut Piece, de 1964, convidado o público a utilizar uma tesoura afiada para cortar suas roupas, desnudando-a. Nessas ações, as artistas oferecem-se ao outro como objeto de modo a revelar a condição fundamental do objeto para si mesmo e para o outro. É necessário varrer de nossa ideia a
tradicional diferenciação, complementar, entre sujeito e objeto para poder espiar entre eles uma certa vertigem, uma fabulosa e perigosa oscilação. Não se trata de tornar-se outro como em um ogo de espelhos, sem restos e de forma inócua, numa complementar troca de papéis. Trata-se, para o sujeito, de assumir, por um breve instante quase insuportável, sua condição de quaseobjeto, e com isso ver-se quase-sujeito: não propriamente sujeito de seus atos, mas assujeitado a eles. Paradoxalmente, ao assumir diante do outro sua condição de objeto – ao se assujeitar – pode-se engatar a posição de sujeito (e desejar, ou seja, reafirmar seu apetite do objeto). Algo se corta como a roupa de Yoko, algo cai e se perde, nessa arriscada encarnação do sujeito realizada pela performance. Sob o provocativo convite à participação do espectador, o desenrolar da proposta de Abramovic revela uma espécie de armadilha: a oferta de si como objeto proposta pela artista pode engatar no outro o pendor para dela se servir sem o respeito devido a seu semelhante ou até mesmo com crueldade. Nada nisso deve nos surpreender, pois está de acordo com os instrumentos a eles oferecidos e com a declaração-ato da artista (“Eu sou o objeto”). Enlaçando o outro em um circuito quase irresistível, faço-me cortar, faço-me ferir e ameaçar, pois materializo aí um quase-objeto que põe em vertigem seus observadores. Estes podem, então, sentir-se chamados a reduzir esse quase-objeto a um verdadeiro objeto – nem que seja, recurso extremo e infalível, por sua morte. Trata-se de um “ato cujo trajeto de alguma maneira tem que ser cumprido pelo outro”,[17] como diz Lacan a respeito do ato analítico. Tal ato seria a unidade mínima, essencial, de um processo analítico, que resultaria no que o psicanalista chama “efeito de sujeito”. O sujeito não é mais do que um rápido efeito que se perde em seguida, ele não goza de nenhuma constância, ao contrário do eu que é imagem enganosa surgida no espelho com a promessa, nunca inteiramente cumprida, de permanecer sempre a mesma. O sujeito
é efeito de um ato que se dá numa trajetória, num circuito que necessita do outro, o convoca e só com ele se completa. A performance pode assim fazer surgir o sujeito, pondo em jogo o eu e o outro que é seu semelhante, de modo a, em última instância, realizar um apelo ao Outro, à alteridade radical (assim como se endereçam ao Outro as linhas de Nazca). Em Rhythm O, isso se materializa na intervenção de alguns espectadores, que interromperam a performance por temer que participantes chegassem a ferir ou até mesmo matar a artista. O Outro – no caso de algumas performances, a polícia – lhe vem em salvação. Mais do que uma comunicação com o outro, a presença corporal do artista implica, portanto, um oferecimento-apelo ao Olhar Outro. Isso é o que confere a uma ação realizada sem público, e mesmo de forma totalmente privada, a possibilidade de ser tomada como uma performance – não seria tal oferta e apelo ao Olhar, aliás, a radical implicação de todas as formulações defendendo a própria vida como arte? Por vezes, a performance agencia um convite a que o espectador se ofereça também a este Olhar, tornando-se dela verdadeiramente um participante. Assim, Sophie Calle convida pessoas para dormir em sua cama, parecendo dizer: vem, tome meu lugar ( Les Dormeurs, 1979). Nada de ação: apenas durma. A artista fica ali, olhando, velando e, eventualmente, fotografando o sono desses dormidores de empréstimo. Mas e seus sonhos, quem os olharia? ATO E SUJEITO EM LYGIA CLARK E LACAN Mais do que uma
espetacular expressão na presença do corpo, a performance acentua um instante fugidio, na passagem do tempo. Sua definição essencial talvez resida nesse caráter temporal de ação passageira que a impede de ser fixada como objeto ou obra, mesmo que dela se façam eventuais registros em fotografias ou filmes. Ainda quando buscadas e planejadas com cuidado pelo artista, tais imagens são tomadas como distintas da própria performance. Esses produtos
secundários apenas dão notícia da ação, de forma fragmentada e parcial. A crítica e curadora Glória Ferreira defende de forma muito pertinente que o filme e as fotografias concedem à performance uma inscrição no universo da imagem. Mas por mais que façam da ação uma imagem, eles não são, em si, a performance. Essa não se fixa em imagem e dela só restam dejetos, restos, sejam eles textos, vestígios ou fotos. Uma performance, em si mesma, parece sustentar que belo é o que passa, o que termina, o que é efêmero e se apresenta já nos anunciando sua perda – como defende Freud em um passeio com Lou Andreas-Salomé e o poeta Rainer-Maria Rilke, por ele registrado em 1915 no belo texto “Sobre a transitoriedade”: O valor de toda essa beleza e de toda essa perfeição é determinado unicamente por sua significação para nossa vida de sensações, ela nem mesmo necessita durar mais do que esta e é portanto independente da duração temporal absoluta. [18] “vida de sensações” – ou seja, a vida tout court – se dá diante de uma perda iminente. O essencial se passa num átimo para nos deixar na saudade. “O doloroso”, diz Freud ainda neste pequeno ensaio, “também pode ser verdadeiro.”[19] Resistente ao domínio da imagem, denunciadora da falácia do objeto per se, a performance não pode se definir pela presença do corpo, mas sim por uma realização que se inscreve em um momento temporal para, em seguida, se perder. Ela é sobretudo ato. to de perda. Um ato que implica, como vimos com Yoko Ono e Marina Abramovic, um dispositivo capaz de recolocar em jogo as posições de eu e objeto, convocando o Olhar e fazendo surgir, em um átimo, o sujeito. Podemos dizer que a performance realiza um sujeito-ato que não tem lugar fixo, mas se desloca entre eu e outro, dentro e fora. Ele é análogo à fita de Moebius, figura topológica que pode ser construída pela torção de uma tira de papel seguida pela união de
suas duas pontas, tornando-se uma superfície de uma só face contínua. Muito explorada por Lacan em seus seminários a partir de 1962, a superfície da fita, graças à torção que a constitui, não apresenta distinção entre dentro e fora. O sujeito não é mais que tal torção, o caminhar nessa superfície que se dá de forma contínua no tempo, passando por dentro e por fora sem ruptura alguma. Lacan não é o único, naquele momento, a se interessar por essa banda unilateral, que promove uma verdadeira subversão em nosso mundo de representação, implicando uma perturbadora reconfiguração do espaço. Anos antes, o suíço Max Bill havia feito dela uma referência fundamental para a arte brasileira, com a histórica presença da Unidade tripartida (1948-49), na i Bienal de São Paulo (1951). Por sua vez, Escher a apresentara mais diretamente em 1961 com sua Fita de Moebius i, e acrescentaria formigas passeando em sua superfície contínua em 1963, na Fita de Moebius II . Lacan fazia os ouvintes de seu Seminário sentirem ativamente essa figura topológica e ressaltava a importância do corte da fita de ponta a ponta, na linha de seu comprimento, que curiosamente não produz duas bandas moebianas, mas uma só fita bilateral. Para o psicanalista, a fita de Moebius não seria mais do que esse corte, ato que faz nela surgir a diferenciação entre dentro e fora. É provavelmente por isso que Lacan a define como “o suporte estrutural do sujeito como divisível”.[20] Já Lygia Clark, em seu Caminhando, de 1963, faz do ato de cortar a fita unilateral o próprio trabalho artístico. O corte por ela proposto difere do lacaniano por não concluir a cisão ao longo da superfície, mas prosseguir com ela em uma suave espiral, de modo a se tornar virtualmente infinito, gerando uma banda cada vez mais longa, até que a largura da fita não permita mais que a tesoura prossiga. A trajetória do corte acompanha a continuidade dentro-fora dessa figura topológica até encontrar o limite físico de sua largura. Ela produz como objeto remanescente uma fita ainda unilateral, porém mais longa, pendendo em suaves curvas e mais orgânica, por assim
dizer, anunciando os Trepantes. O sujeito, nessa obra, não se divide de uma vez, mas desdobra sua continuidade dentro-fora até o limite. Ele se temporaliza, pondo-se em marcha como nada mais que esse próprio ato e materializando-se como não mais do que um sutil mas poderoso efeito de subversão espacial. O objeto deixa, nessa proposição, de ser o complemento fixo, correlativo do sujeito, para com ele quase coincidir, em um deslocamento continuado. ssim, Caminhando põe radicalmente em questão o estatuto do objeto e do sujeito na arte, em prol de nada além de uma ação no espaço e no tempo. A própria artista comenta: Em seu diálogo com minha obra O dentro é o fora o sujeito atuante reencontra sua própria precariedade. Também ele – como o Bicho – não tem fisionomia estática que o defina. Ele descobre o efêmero por oposição a toda espécie de cristalização. Agora o espaço pertence ao tempo continuamente metamorfoseado pela ação. Sujeito-objeto se identificam essencialmente no ato. Diferente da pessoa que é agente do corte – a artista, no caso – é o sujeito, móvel e precário, que o Caminhando visa fazer surgir em seu convite a um ato temporal e capaz de subverter o espaço. O espaço torna-se assim um campo de metamorfoses no qual o sujeito aparece, lançado fora de si e já destinado a se perder no tempo. “O ato de se fazer é tempo”, sentencia Lygia.[21] Em “Capturar um fragmento de tempo suspenso” – ainda sobre este ponto de virada em sua obra que é o Caminhando, de que ela diz só importar “o ato-vivo-do-fazer” –, Lygia acentua o perigo que o ato põe em jogo, a forma como ele põe em risco o sujeito: O Caminhando me deixava dentro de uma espécie de vazio: a iminência do ato, o abandono da transferência ao objeto, a própria dissolução do conceito de obra e de artista, tudo isso provocava em mim uma grande crise a qual, inconscientemente,
eu já estava buscando há muito tempo.[22] “Através do Caminhando perco a autoria”, constata então a artista, “incorporo o ato como conceito de existência.”[23] Mas o ato subverte a própria noção de “existência”: não sou, propriamente, em mim mesma, mas aconteço, em ato. Com ele, em decorrência dele, uma vez o ato realizado, só depois dele. De produtor do ato, sua origem, o sujeito torna-se caminhante, errático e temporário resultado, efêmero efeito. Lacan fala de “um ato tal que, em seu fim, destitui o próprio sujeito que o instaura”.[24] Lygia: “O depois está implícito no ato se fazendo”.[25] O Caminhando fará Lygia chegar ao “pensamento mudo”: nada além de pensamento, que nem precisa ser falado para o outro, que não é falado nem para si próprio – tal pensamento vai além da ideia de comunicação, ele é quase uma negação total do sujeito em prol do puro silêncio. Nada de narração, nada de espaço. Fragmento de tempo em uma espécie de performance absoluta: pensar mudo. Penso, logo aconteço. Ato invisível, inaudível, incomunicável. Estou viva. POR UM ESPAÇO DO ATO Tal ato – tal ato poético, digamos – é radical e
estranhamente delicado. Lacan refere-se a um “gesto”, como o de passar uma página, que seria capaz de mudar o sujeito.[26] Vibração sutil, oscilação da vida por um fio, que intervém de chofre no espaço comum, comunitário, para lhe mudar as feições. No teatro, digamos, tradicional, a separação entre cena e público assegura a partilha entre ficção e realidade, abrindo o espaço narrativo como uma janela que o espectador não ultrapassa, ou só ultrapassa de maneira pontual. Já a performance nasce misturada à vida, ela é acontecimento e não narração, ela se põe à nossa frente, nos faz esbarrar ou desvia nosso caminho, pretende transformar o espaço cotidiano. O ato de que estamos tratando liga-se, de fato, a uma
configuração instável do espaço, a do sujeito em movimento (caminhando), e não mais olho fixo capaz de centrar e possibilitar uma organização perspectiva. Ao espaço ilusionista substitui-se o espaço real de uma ação entre sujeito e objeto que se marca no tempo. Ou seja, delineia-se aí um espaço de perda, e não mais do espelhamento entre eu e mundo que permite a fixação da imagem. “O homem encontra sua casa”, diz Lacan, “num ponto situado no Outro para além da imagem de que somos feitos.” Ele prossegue, então, em uma caracterização lapidar do lugar do sujeito, ou melhor, de sua falta de lugar e da configuração espacial que isso acarreta, para além da imagem em espelho: “Esse lugar representa a ausência em que estamos”.[27] Deslizante e imprevisível esse espaço, lugar de ausência em vez de imagem, é difícil de conceber e teorizar. No Manifesto Gutai, em 1956, Jiro Yoshihara indica seu caráter perturbador. Quando a qualidade do indivíduo e o material selecionado se fundem no forno do automatismo, ficamos surpresos ao ver a emergência de um espaço desconhecido, não visto e não experimentado. O automatismo transcende inevitavelmente a própria imagem do artista. Nós tentamos realizar nosso próprio método de criar espaço em vez de depender de nossa própria imagem.[28] O “automatismo” do ato quebra a imagem especular e abre este incrível espaço “não visto” que parece ser o próprio espaço do Olhar de que falávamos. A reflexão sobre a percepção realizada por artistas os mais variados, especialmente nas décadas de 1960 e 70, leva, mais do que à identidade do sujeito consigo próprio, a esta vivência do real que não se cristaliza mais na imagem, mas passa pelo ato. Como diz ainda Lygia Clark: “Instável no espaço, parece que estou me desagregando. Viver a percepção, ser a percepção…”. [29]
Nessa busca da percepção vivida talvez haja algo como a possibilidade de que o eu que percebe seja capaz de se perceber ercebendo, em uma coalescência da mão direita tocando a mão esquerda tocando o objeto, na concepção de Merleau-Ponty.[30] Mas, na percepção, o sujeito, em vez de se encontrar enfim consigo mesmo, no mundo, mais parece se perder no espaço, estranhado. A noção merleau-pontyana de uma “carne do mundo” da qual faríamos parte já apontava para essa estranha disseminação do corpo, no campo da percepção. Uma vez perdido o lugar de senhor da percepção, resta a constatação um tanto angustiante de que sou objeto de percepção do outro, misturo-me à cena do mundo para um olhar externo, e não detenho a posição autônoma e imperturbável que asseguraria o mundo da percepção abrindo-se ao mesmo tempo que minhas pálpebras. Sou imagem que não se vê completamente a si própria, e portanto me mimetizo no ambiente – tal é a proposta inovadora que, já na década de 1930, Roger Caillois realizava no contexto da reflexão intelectual ligada ao surrealismo. Em seu seminal “Mimetismo e psicastenia legendária”, Caillois mostra que a magia mimética, tida pelos pesquisadores como uma defesa, pode, na realidade, levar pequenos animais mais diretamente à morte, consistindo em um “luxo” sem finalidade, ou mesmo um “luxo perigoso”.[31] Há pequenas lagartas, por exemplo, que mimetizando jovens arbustos se fazem podar por horticultores; outras simulam folhas tão bem que se roem mutuamente. Além disso, estudos teriam mostrado que animais que se mimetizam são comidos pelos predadores em quantidade semelhante àquela dos que não se mimetizam, o que provaria que o disfarce não tem finalidade de proteção. O fundamental, na argumentação de Caillois, é desmontar a ideia de qualquer funcionalidade do mimetismo para mostrar que os corpos tendem a uma espécie de assimilação imaginária ao espaço, por pura captação na imagem. Mais do que isso: entre o espaço e a “personalidade”, para usar seu
próprio termo, o autor localiza um “distúrbio”.[32] “Parece até”, diz belamente, “que se exerce uma verdadeira tentação do espaço.”[33] Rosalind Krauss aproxima do informe de Georges Bataille o mimetismo, por ela caracterizado como “este espasmo da natureza em que os limites são fragmentados e as distinções realmente apagadas”.[34] Mais do que uma crítica da forma, porém, interessa a Caillois o papel da ação que torna problemática a percepção e tira, literalmente, o homem de seu lugar. A percepção do espaço é, sem dúvida, um fenômeno complexo: o espaço é indissoluvelmente percebido e representado. Desse ponto de vista, é um duplo diedro a todo momento mudando de grandeza e de situação: diedro da ação cujo plano horizontal é formado pelo solo e o plano vertical pelo homem mesmo que anda e que em decorrência desse fato forma o diedro consigo mesmo.[35] Neste primeiro diedro, o homem é a origem da visão. O fato de ele caminhar , se mover, já torna mutável o campo da percepção. Mas é com o segundo diedro que este campo se torna francamente complexo, “mudando de grandeza e situação”, como vimos acima. Diedro da representação determinado pelo mesmo plano horizontal que o precedente (mas representado e não percebido), cortado verticalmente na distância onde o objeto aparece. É com o espaço representado que o drama se precisa, pois o ser vivo, o organismo, não é mais a origem das coordenadas, mas um ponto dentre outros; ele é desapossado de seu privilégio e, no sentido forte da expressão, não sabe mais onde colocar-se .[36] A percepção / representação é um drama que se desenrola entre o domínio da visão de que o homem é o senhor, ocupando o “ponto de vista” central, e o campo do olhar, no qual ele é olhado e assim se torna parte da cena do mundo. É dessa reviravolta de agente da visão em objeto do olhar que se trata no mimetismo. Nele, a
presença do corpo conjuga-se à ação e se submete ao olhar do outro, em uma tentação imagética que faz do sujeito, objeto. Leitor apaixonado do texto de Caillois, Lacan afirmará décadas mais tarde que “o que me determina fundamentalmente no visível é o olhar que está do lado de fora”.[37] Mais do que seduzir ou enganar o outro seu semelhante, trata-se aí do Olhar de que falávamos com as linhas de Nazca, Olhar absoluto que captura o sujeito. Apesar de tratar de pequenos insetos e outros animais, é o homem que a reflexão de Caillois realmente visa. O autor faz menção à loucura, mais especificamente aos esquizofrênicos, como “espíritos desapossados” a quem o espaço apareceria com uma “potência devoradora”. Tais pessoas atravessariam então a fronteira de sua pele e habitariam “do outro lado dos seus sentidos”. É aí que toma sua definição a “psicastenia legendária” do título, referida à teoria de Pierre Janet como uma “despersonalização por assimilação ao espaço”. O sujeito procura se ver de um ponto qualquer do espaço. Ele mesmo se sente virar espaço, espaço negro onde não se pode pôr coisas . Ele é semelhante, não semelhante a alguma coisa, mas simplesmente semelhante. E ele inventa espaços dos quais ele é a “possessão convulsiva”.[38] Homem e espaço convulsionados, despossuídos mutuamente. Seria esta uma definição possível da performance: o sujeito tornado espaço ? Uma vez possuído pelo corpo, o espaço o desaloja e abre-se ao surgimento do sujeito. Correlativamente ao aparecimento disseminado do sujeito fora do corpo, inventam-se espaços, como propõe Caillois na citação acima. O espaço não pode mais ser fixo, ele deve ser inventado, criado em ato na flutuante, movente e estilhaçada medida do sujeito. Lacan afirma que o “mimetismo é, sem dúvida, o equivalente da função que, no homem, se exerce pela pintura”.[39] Mas de que
“pintura” se trata? Se um pássaro pintasse, diz o psicanalista, seria deixando cair suas penas; uma árvore, sua casca e suas folhas. No ato mesmo de se exteriorizar, o sujeito perde algo, de seu corpo caem objetos, dejetos que são uma espécie de materialização de seu próprio descentramento. Apelando ao olhar, a performance deixa vestígios, iscas capazes de nos fisgar neste mesmo gesto transformador. “Não esqueçamos que a pincelada do pintor é alguma coisa em que se termina um movimento”, diz Lacan, dialogando implicitamente com o tachismo e a action painting . Mas não se trata aí de expressão no sentido de dar a ver, no exterior, uma interioridade bem definida. Não se trata de um indivíduo que se manifesta em sua autonomia e indivisibilidade, e sim de um sujeito que recoloca em jogo seus próprios fundamentos, entre imagem e gesto, materializando-se como não mais que um resto. É por esse gesto – acrescenta logo em seguida o psicanalista, após lembrar que o pássaro perderia suas penas ao pintar –, “é por esta dimensão que estamos na criação escópica – o gesto enquanto movimento dado a ver”.[40] O ato que, como já falamos, só se realiza com o outro, mostra na performance sua dimensão de gesto que se suspende ou contém, ao se destinar ao Olhar. “O que é um gesto?”, pergunta Lacan. “Um gesto de ameaça, por exemplo? Não é um golpe que se interrompe. É pura e simplesmente algo que é feito para se conter e se suspender.”[41] Em Rest Energy, de 1980, Marina Abramovic e seu companheiro Ulay encontram-se em um tenso equilíbrio sustentado por um arco e flecha. Ulay segura a base da flecha apoiada no fio do arco em sua máxima extensão, enquanto Marina apoia todo seu corpo na mão que segura o corpo de madeira do arco. A flecha está direcionada para o coração de Abramovic, e bastaria um deslize de Ulay para que ela se desprendesse e a ferisse. Essa ameaça sustém os dois corpos inclinados para trás, estendidos como o fio do arco, suspensos e paralisados graças a essa tensão do fio com a flecha.
Essa performance talvez evoque o risco mortal de uma relação amorosa, a extrema dependência e sujeição a que ela pode levar. Mas esse ato amoroso e ameaçador, realizado a dois, torna-se gesto ao se conter e suspender, oferecendo-se ao Olhar. Há uma parada do ato, essencial porque inscreve o gesto em retrocesso. Trata-se de ameaça, e não de agressão, justamente porque o ato se detém. O gesto implica a presença do corpo, e no entanto aponta para fora dele – para, pelo menos, um outro corpo que o coopta, por uma semelhança empática, amorosa, cuja face escondida é a agressão. Mas é graças ao endereçamento ao Olhar que o gesto se dá como suspensão e perda. Os corpos de Marina Abramovic e Ulay se engancham em uma energia estática graças a um objeto, o arco e flecha, ele mesmo composto de duas partes interdependentes, porém destacáveis, formando um mecanismo de propulsão que as separa justo após ser atingido o máximo de cruzamento entre as duas. Entre os corpos dos dois artistas, um movimento se desenha, uma trajetória que não se cumpre – do corpo parte algo que não se torna propriamente visível, mas atinge seu alvo. Daí a potência da presença do corpo para a convocação do Olhar. “O sujeito do inconsciente”, diz Lacan, “se engancha no corpo” [42] e se propulsiona no corpo do outro, diríamos, para nos atingir no nosso. Portanto, em tal gesto dado a ver, o sujeito não está totalmente presente – ele está, diz Lacan, como “teleguiado”.[43] Pois aí se acentua, mais do que seu desejo, aquele do Outro a quem ele se dá a ver. O Sujeito torna-se aí, em uma vertigem, quase-objeto, objeto do desejo do Outro, que ele busca ativamente atiçar (olhe-me!). O sujeito voa por aí como flecha errática (visando nada menos que o coração). Ele não é mais do que um “sobrevoo”, diz Lacan – [44] e flutua como pássaro, talvez, perdendo suas penas e nos fazendo às vezes olhar para cima. Nada a ver com a perspectiva em voo de pássaro – aqui, o pássaro cai e passa a fazer parte da paisagem e, num clic de fotografia, nela faz mancha, perdendo suas plumas.
— Ricardo Basbaum nota que a performance hoje está em quase toda parte, misturada a outros meios na produção contemporânea. Essa é uma indicação preciosa. Mais do que ao abandono da mesma como objeto de estudo, a performance talvez nos leve à obrigação de recolocarmos hoje a questão: o que ela significa? Mais do que a presença do corpo ou a primazia do comportamento sobre o objeto ou o produto, trata-se de pôr em questão seu dispositivo operante. Fala-se muito em desaparecimento ou desmaterialização do objeto na arte contemporânea, e com isso se perde de vista sua fundamental operação sobre o sujeito: deslocalização e convocação – o sujeito é deslocado, diante do objeto, para aparecer como efeito de sujeito. Tal efeito de sujeito é poderoso – ele nos punge e assujeita, dá limites e ao mesmo tempo, tenho vontade de dizer, nos faz oceano. Tal catarse, verdadeiro acontecimento ( happening ?), o acontecimento humano por excelência (pois é o que nos faz humanos), nos refaz em momentos precisos, preciosos, em que o sujeito é o acontecimento. O sujeito é o acontecimento – o sujeito é ato, é gesto, é movimento que transforma o espaço, mas só depois, nunca antes, só depois que o outro empresta a esse gesto seu olhar, seu corpo. Caminhante, o sujeito é um “itinerário interior fora de mim”, nas palavras, ainda, de Lygia Clark.[45] O teatro perfeito é uma performance concebida em 1975 por Byars e, ao que parece, jamais realizada. Cem pessoas, reunidas em um ardim de uma vila europeia, dirigem seu olhar suavemente para o horizonte. De repente, ouvem um sussurro: “O teatro perfeito é o olhar”. No horizonte, exatamente à distância que o olho pode discernir, um homem vestido de vermelho aparece por apenas um instante.
KOSUTH COM FREUD: A IMAGEM E A PALAVRA O sujeito nunca é, o sujeito é apenas o processo de significação. ULIA KRISTEVA APUD JOSEPH KOSUTH
(À Propos (Reflecteur de Reflecteur) #75, 2004) Eu penso no que sou quando não penso em pensar. ACQUES LACAN APUD JOSEPH KOSUTH
(À Propos (Reflecteur de Reflecteur) #70, 2004)
O primeiro capítulo do imponente livro Art Since 1900 trata, curiosamente, de psicanálise, mostrando que ela compartilha com a arte modernista um mesmo contexto histórico e que entre elas se produzem variadas interseções ao longo do século. Os autores identificam uma influência mais ou menos direta da psicanálise sobre a produção artística, embasada em interesses comuns, como o fascínio pelas origens, o primitivo e a loucura, ou ainda, “mais recentemente”, a subjetividade e a sexualidade. [46] Além disso, notam que termos psicanalíticos entraram no vocabulário de base da arte e da crítica do século XX. Os entrelaçamentos dos dois campos parecem-me, contudo, ir além das conexões históricas que desenham um conjunto de temas comuns e de aplicações de conceitos psicanalíticos como instrumentos críticos. Mais amplamente, devemos conceber, em um contexto histórico-cultural expandido, que a psicanálise partilha com a arte do século XX – e continua hoje compartilhando – questões fundamentais a respeito da própria natureza da imagem. Imagem: adotaremos neste ensaio esse termo vago, sem dúvida polissêmico (para não dizer francamente problemático), para designar o campo do visual que envolve o sujeito e se configura no campo mais amplo das representações – entendidas como produtos de determinadas relações entre sujeito e objeto. No terreno que a psicanálise compartilha com a arte, em diálogos múltiplos e cruzados (e por vezes até cegos, ou surdos, desencontrados), tais relações são postas em crise, constituindo um campo notadamente móvel e sujeito a subversões de um ou outro termo, sujeito ou objeto. O discurso que abre tal crise da imagem talvez seja aquele que a põe radicalmente na berlinda, na trilha indicada por Mallarmé em 1885 ao afirmar que “o moderno desdenha imaginar”. [47]
Desde seu ato de fundação com A interpretação dos sonhos, a psicanálise trata da imagem, recuperando por via insuspeita um dos significados do eidolon grego, o de imagem do sonho, que coexistia
com as conotações de aparição suscitada por um deus e de fantasma de um defunto. Por mais que Lacan tenha, para ressaltar a importância da linguagem na constituição do sujeito, buscado varrer do campo da psicanálise a prepotência da imagem que a obscurecia nos autores pós-freudianos, a imagem não cessa de retornar, repetidamente. O imaginário em Lacan é o registro do engodo, da ilusão que devemos desdenhar (como para Mallarmé), pois encobre o sujeito do inconsciente. No entanto, a imagem é, desde Freud, como veremos neste ensaio, simultaneamente encobrimento e vislumbre do desejo que move o sujeito. Com a invenção freudiana do inconsciente, a noção de imagem se reconfigura segundo algumas linhas de força que nos parecem ressoar na produção artística do século XX e preparar uma nova abordagem do campo disperso em que psicanálise e arte contemporânea se relacionam. Empregaremos, portanto, o termo “imagem” porque vemos nele, ustamente pelas dificuldades que levanta, no que carrega de problemático e impreciso – por vezes sendo aproximado da ideia de figuração, no discurso corrente sendo oposto ao campo da escultura etc. –, uma importante potência crítica. Talvez com ele seja possível pôr em crise, mais uma vez e repetidamente, certas ideias dominantes, como a atual versão de iconoclasmo apontada por rlindo Machado,[48] para recolocar a velha questão da imagem, na contracorrente e em companhia da psicanálise e de alguns trabalhos de Joseph Kosuth sobre a obra de Freud. SONHO, MEMÓRIA E PALAVRA Já em 1899, no precoce texto
“Lembranças encobridoras”, Freud pôs vigorosamente em questão o estatuto da recordação e, com ela, o da imagem. Ele mostrou que nossas lembranças mais vívidas podem não ser mais do que fantasias. Tais imagens fixam uma recordação que não ocorreu na realidade, ou privilegiam um evento totalmente banal. Em seu âmago, porém, há uma terrível verdade que elas escondem,
encobrem: um acontecimento traumático. Assim, por exemplo, Freud nada recorda do nascimento de sua irmã, que, no entanto, lhe trouxe consequências sem dúvida importantes. Em contrapartida, ele guarda a nítida recordação de um incidente banal ocorrido durante a viagem de trem que fez com a família nessa ocasião.[49] O que parece sem importância e corriqueiro toma o lugar de algo fundamental que é a ele contíguo, mas permanece oculto, como um curto fragmento de filme que bruscamente termina e apenas deixa sugerido o que se seguiria como cena principal. Em outra modalidade de lembrança encobridora, temos cenas de grande acuidade perceptiva, mas que não aconteceram factualmente. Trata-se de fantasias que encobrem a cena real, traumática, mas não deixam de apresentá-la de maneira deformada e cifrada. Seja de maneira deslocada ou disfarçada, na lembrança encobridora encontra-se condensado o essencial do conflito que constitui o sujeito. A lembrança encobridora é, neste sentido, uma espécie de enigmática fotografia do infantil. Assim, Freud faz da reprodução reprodução mnêmica uma construção que encobre a verdade, mas de alguma maneira a deixa entrever, e pode portanto ser perscrutada em uma tentativa de desvelamento. Com isso, ele acentua a distância entre vivência e representação. A imagem é obstáculo, é véu sobre o trauma, e podemos chamá-la, nessa vertente, de imagem-muro. Mas por entre sua trama, em suas lacunas, encontra-se, in visível - visível, um acontecimento terrível – em sua vertente, digamos, de imagem-furo.[50] As lembranças são o material privilegiado do inconsciente (chamado por Freud de Outra Cena), exprimem-se “em imagens visuais”[51] e são ávidas por revivescência, levando à alucinação que é o sonho: pensamento tornado imagem. O sonho é também uma cena – a cena por excelência, via real do inconsciente –, que segundo Freud vem substituir uma “cena infantil”, modificando-a. A essa imagem originária, a essa alucinação que constitui o
sonho em si, porém, não se pode ter acesso direto. O sonho que se interpreta é o texto do sonho, aquele que Freud recomenda que seja escrito assim que acordamos e dele nos lembramos, ainda que seja de madrugada – é melhor ter um caderninho na mesa de cabeceira, como fez ele durante vários anos. Ou é o texto-relato do sonho contado e recontado em análise, não importam tanto as inúmeras alterações que ele possa sofrer, o fundamental é que elas levem aos pensamentos oníricos – graças às associações que refazem, no sentido inverso, o trabalho figurativo do sonho, nesta espécie de trabalho de linguagem chamado associação livre. A obra freudiana opera assim uma espécie de desdobramento da imagem, um descolamento de si mesma que lhe confere outra espessura. Nisso, ela é herdeira de uma verdadeira revolução ocorrida nas relações entre sujeito e imagem, várias décadas mais cedo: a invenção da fotografia. Ao cumprir a pauta realista com precisão quase absoluta, a fotografia acaba por abrir uma crise sem precedentes na história da mímesis. Entre a representação e o referente não há mais a distância segura que a pintura tentava ultrapassar. De um só golpe, é a própria realidade que é posta em questão: seria ela apenas imagem? O real se distancia até a té se tornar inatingível, enquanto a imagem assume a dupla e paradoxal função de mostrá-lo e escondê-lo, ao mesmo tempo. Não é abusiva a concepção de Walter Benjamin de um “inconsciente ótico”, marcado pelo surgimento da fotografia e comparável ao inconsciente “pulsional” freudiano.[52] A fotografia inaugura um modo de análise do visual que a cronofotografia, por exemplo, mostra com Muybridge: haveria ou não um momento na corrida de cavalos em que nenhuma das patas do animal se encontraria apoiada no chão? A psicanálise opera no sujeito aquilo que a fotografia realiza no âmbito da realidade: torna-o problemático, opaco, sujeito a análise. Mas dizer que o inconsciente freudiano é “pulsional”, como o caracteriza Benjamin, é uma meia verdade. Freud localiza as
pulsões na fronteira com a biologia, frisando que elas devem, no aparelho psíquico, se fazer representar . O material do psiquismo são as representações, acompanhadas de forma mais ou menos errante por afetos. Para tratar do sujeito desencontrado, descentrado pelo inconsciente, é curioso que Freud lance mão, repetidamente, do modelo de aparelhos óticos, que lhe permitem conceber, a partir da premissa de uma espessura e opacidade fundamentais à construção da realidade, uma estratificação diversamente refratada da representação, correspondendo correspondendo aos diferentes sistemas psíquicos: consciente, pré-consciente e inconsciente. Proponho simplesmente seguir a sugestão de visualizarmos o instrumento que executa nossas funções anímicas como semelhante a um microscópio composto, um aparelho fotográfico ou algo desse tipo. Com base nisso, a localização locali zação psíquica corresponderá a um ponto no interior do aparelho em que se produz um dos estágios preliminares da imagem.[53] Não se trata apenas de fazer da localização psíquica um lugar virtual que se sobreponha às porções porções do cérebro – com as quais, na época de Freud como hoje, alguns cientistas teimam em reduzir a questão do sujeito. O que o psicanalista persistirá em chamar de “aparelho” psíquico produz imagem no sonho prioritariamente, e também na lembrança encobridora, borrando as fronteiras entre sonho e recordação. Tal aparelho também produz piadas, lapsos e sintomas, fazendo da linguagem um sintoma. A imagem também é sintoma: ela cristaliza um conflito entre o que se pode e o que não se pode mostrar, entre o sexual enigmático e o eu, entre a imagemmuro e a imagem-furo. Longe de ser um material inerte que constituiria o inconsciente, a imagem é incerta, cambiante e disfarçada, distorcida pela censura. Os processos pelos quais ela se forma são figuras de linguagem: condensação e deslocamento (que Lacan faz equivaler à metáfora e à metonímia, respectivamente),
pois a imagem está de saída entrelaçada à palavra. O sonho é rébus, enigma em imagens que devem ser (re)transformadas em palavras, ou melhor: palavras que desenham imagens imag ens a serem retraduzidas. O sonho é “linguagem pictórica”, nos termos de Freud.[54] As palavras são plásticas, podem-se com elas fazer imagens – aliás, al iás, pode-se com elas fazer todo tipo de coisas, como diz Freud em seu livro sobre os chistes, as piadas. Os pensamentos que compõem o sonho são abstratos, são palavras, mas devem ser representados visualmente. Não há dificuldade em explicar o constrangimento imposto à forma pela qual os pensamentos oníricos se expressam. O conteúdo dos sonhos consiste, em sua maior mai or parte, em situações visuais, e os pensamentos oníricos, por conseguinte, conseguinte, devem ser submetidos, em primeiro lugar, a um tratamento que os torne adequados a esse tipo de representação.[55] É nesse sentido que Freud afirma que “as palavras são frequentemente tratadas, nos sonhos, como se fossem coisas” [56] como coisas visíveis. O READY-MADE E E O SONHO Em 1989, Joseph Kosuth instalou seu Zero
na Bergasse 19, casa e consultório de Freud durante décadas, & Not na até sua fuga dos nazistas em 1938. O artista cobriu as paredes com uma cuidadosa reprodução de trechos da obra do psicanalista Psicopatologia da vida vida cotidiana e, em seguida, cobriu-os com fita negra, barrando-os de modo a impedir quase totalmente sua leitura – de maneira semelhante ao que Freud caracteriza como o trabalho da censura sobre o material inconsciente. Zero & Not foi foi o primeiro passo para transformar em um espaço de arte contemporânea o imóvel esvaziado dos principais pertences de Freud, que seguiram com ele para Londres e hoje compõem o Museu Freud nessa cidade. Kosuth convenceu artistas como John Baldessari, Jenny Holzer e
Ilya Kabakov, entre outros, a doarem obras suas para o museu, formando a base da coleção da Fundação para as Artes, Museu Sigmund Freud em Viena. Em 1997, a exibição da coleção foi reaberta com novos trabalhos de artistas como Sherrie Levine, Marc Goethals e Jessica Diamond. Kosuth apresentou aí um novo trabalho, intitulado O. & A. / F!D! (to I.K. and J. F.) . Nesta última obra, Kosuth se apropria de uma passagem de “Os chistes e sua relação com o inconsciente”[57] reproduzido sobre uma parede. O trecho de Freud trata dos sonhos e, mais especificamente, da transformação do conceito em imagem, dos pensamentos em “quadro onírico”: O trabalho do sonho – ao qual retorno após essa digressão – submete o material dos pensamentos, apresentados no modo optativo, à mais estranha das revisões. Primeiro, passa do optativo ao presente do indicativo; substitui o “Oh! Se ao menos…” pelo “É”. Confere-se então ao “É” “ É” uma representação alucinatória; aquilo que chamei de “regressão” no trabalho do sonho – o trajeto que leva dos pensamentos às imagens perceptivas, ou, para usar a terminologia da ainda desconhecida topografia do aparato mental (não entendido anatomicamente), da região das estruturas dos pensamentos às percepções sensoriais. Nesse caminho, inverso ao curso tomado pelo desenvolvimento das direções das complicações mentais, os pensamentos oníricos ganham pictorialidade; eventualmente, chega-se a uma situação plástica que é o núcleo do manifesto mani festo “quadro onírico”.[58] Parte do texto citado, que prossegue ainda em algumas frases, é coberto por uma grande fotografia emoldurada que impede parte de sua leitura (lê-se integralmente o trecho que vai até “não entendido anatomicamente”). A imagem (a “pictorialidade”, ou melhor, a visualidade ( Anschaulichkeit Anschaulichkeit ),), no termo usado por Freud) é
aí decomposta em sua relação com o desejo. O sonho transforma o desejo (“ would it were”, na versão em inglês empregada por Kosuth) em imagem (“it is”). Essa obra sublinha e revela o sentido em que o sonho, na fórmula de Freud, é uma “realização de desejo”: ele realiza, põe em cena o desejo, isso que desliza incessantemente na linguagem, nas cadeias do significante. A expressão utilizada por Freud, Wunscherfüllung , não acentua tanto a dimensão de construção de realidade presente na tradução para o português, correspondendo mais à noção de que o desejo seja “cumprido” ou “atendido”. Mas o verbo erfüllen também pode tomar o sentido de aparecer , o que reforça a ideia de que o sonho consiste em uma realização de desejo na medida em que ele torna visual – faz aparecer – o desejo. Talvez se possa generalizar a fórmula e afirmar que a imagem é um trabalho que faz aparecer o desejo . O trabalho de Kosuth faz do próprio texto de Freud, por sua vez, um it is, mostrando-o como uma imagem que escapa em parte à significação, já que uma fotografia – justamente! – vela parte do texto (como um “quadro onírico” velaria o texto do sonho, ao mesmo tempo que o faz ver ),), mostrando uma porta de entrada (de um consultório? Do Museu Freud? Do inconsciente? i nconsciente? Seja como for, ela está fechada). Por sua vez, essa imagem é recortada por um breve texto de Kosuth, uma espécie de slogan que ocupa quase um quarto de sua superfície, cobrindo todo o canto inferior direito: “Uma fronteira aqui se encontra entre uma ‘coisa’ independente e sua seleção e substituição”. A referência a uma coisa e sua seleção evoca o procedimento procedimento de Marcel Duchamp e nos faz perceber que Kosuth faz uma espécie de ready-made com o texto freudiano. “A inicialmente brilhante mudança de paradigma de Duchamp com o ready-made estava, compreensivelmente, situada no mundo de objetos: ela parecia insistir em maior flexibilidade formal, mas ainda assim formal”, nota o artista. Ele realiza então uma torção na noção de ready-made que dá o tom de toda sua obra, na intenção de levar o “conceito de
ready-made ao seu nível estrutural mais profundo no que diz respeito ao processo de significação na arte”.[59] Ele chegará a rebatizá-lo made-ready. O “processo de significação na arte” assim concebido por Kosuth, em companhia de Freud, parece, portanto, jogar com imagem e linguagem, estabelecendo relações e descontinuidades entre eles, marcando zonas de invisibilidade e, por assim dizer, “dessignificação”. As “coisas” (os “it is” que formam o “quadro onírico”), no sonho, são selecionadas e substituídas à exaustão, levadas a remeter sempre a outras “coisas”, e assim se coloca em ogo, repetidamente, a “fronteira” entre “uma coisa” e “sua seleção ou substituição”. Uma “coisa” qualquer, inócua em si mesma, é tornada opaca por sua “seleção” pelo sonho, abrindo infinitas possibilidades de substituição associativa. Tal como Freud o concebe e se propõe a lê-lo, o próprio sonho, por implicar uma espécie de subversão da representação, talvez se aparente a um ready-made: selecionadas e substituídas de maneira múltipla, suas imagens são retomadas nos fios da linguagem, do desejo, para se descolar de referentes concretos em prol de uma opacidade e uma incerteza interpretativa prenhe de sentidos. Se a imagem é apresentação de desejo, como arriscamos dizer acima, isso não significa, portanto, que ela tenha um significado preciso, podendo ser reduzida a um único enunciado. Pelo contrário, a relação entre imagem e desejo põe em xeque a própria linguagem, apontando para zonas nas quais a significação resiste e torna sensível a pulsação do sujeito desejante. O uso da “cosmografia” (ressalte-se aí a grafia) freudiana interessa a Kosuth por prover “uma estrutura de significação mais ampla que pode situar proposições artísticas específicas” e consistir em um “contexto teórico que é não assertivo (uma presença teórica negada) mais do que uma falta ‘a ser’ interpretada”.[60] Ele parece se referir especialmente a Zero & Not , no qual reproduz uma passagem de Freud nas paredes e sobre ela inscreve uma grossa linha que a torna
ilegível. A obra censura ou nega a teoria, impedindo que ela seja “assertiva”, para usar o termo do artista. A tensão assim produzida duplica e reflete a questão da própria natureza da significação, entre palavra e imagem. A teoria, tornada imagem, torna-se opaca e problemática, tanto quanto a arte: ela não interpreta, mas recoloca, com a arte, a questão da significação e de seu sujeito. É em tal contexto de reflexão sobre o processo de significação na arte que o artista “usa” Freud por nove anos, a partir de 1981. Kosuth se apropria e reflete, em seu trabalho, sobre a obra de outros autores, como Kafka, Musil, Joyce e Italo Svevo – além de Walter Benjamin e Wittgenstein, sua influência seminal e mais marcante –, interessado no “amplo campo de pensamento que afetou as ‘margens’ intelectuais do século XX”. Kosuth põe em ato um “serviço filosófico” ou “uma atividade pós-filosófica” que visa reciclar a filosofia com a arte, visto que “de alguma forma, a arte herdou muito do programa da filosofia, sem os riscos de alguns dos aspectos especulativos que trouxeram problemas para esta”. [61] Não é surpreendente que ele avance nessa direção justo com Freud, apesar do antissubjetivismo professado pelo artista. A psicanálise rompe com a filosofia ao se embasar em uma práxis clínica – que herda da tragédia grega sua primeira denominação como “método catártico” – e por ela se livra de certo risco especulativo, sem contudo deixar de retornar a alguma “especulação” na elaboração de sua teoria, que tem como núcleo, diga-se de passagem, ainda outro empréstimo à tragédia grega, o complexo de Édipo. A psicanálise apela para o sujeito, visa nele operar efeitos, assim como Kosuth pretende engajar seu olhador / leitor no processo de significação posto em marcha por suas obras. De fato, o artista parece orgulhoso ao relatar que seu Zero & Not , originalmente realizado no consultório de um psicanalista na cidade belga de Gent, teria, segundo este profissional, se tornado parte da terapia.
REPETIÇÃO, FERIDA E IMAGEM Dizíamos, com Freud, que recordações
de vivências marcantes, que costumam ser visuais, exercem um papel central para qualquer produção de imagem. Elas são uma parte importante dos pensamentos oníricos, sobre a qual o psicanalista afirma: Sempre que surge a possibilidade, essa parte dos pensamentos oníricos exerce uma influência decisiva sobre a forma assumida pelo conteúdo do sonho; constitui, por assim dizer, um núcleo de cristalização que atrai para si o material dos pensamentos oníricos e, desse modo, afeta sua distribuição. A situação do sonho não é, com frequência, outra coisa senão uma repetição modificada, e complicada por interpolações, de uma dessas vivências marcantes; por outro lado, as reproduções fiéis e diretas de cenas reais raramente aparecem nos sonhos. [62] “seleção” e a “substituição” da “coisa” que vimos Kosuth sublinhar não são portanto aleatórias, mas se pautam por um insuspeitado – e in-visível – ponto de atração. É surpreendente que já apareça aqui, como verdadeiro motivo da criação onírica, a repetição, que só vinte anos mais tarde terá, na obra de Freud, reconhecido seu lugar central no funcionamento anímico, com a introdução da pulsão de morte. A “cristalização” é uma questão de “forma” e implica – levando-se em conta a enorme complexidade lógica de todo esse material a que Freud chama “pensamentos oníricos” – um trabalho do sonho que fragmenta, desloca e condensa, seleciona o material adequado para se construírem “situações” e enfim cria nas surpreendentes palavras de Freud “novas superfícies”.[63] As vivências infantis deixam literalmente marcas, mas não são em si cenas reprodutíveis – a recordação já foi conformada pela cena da fantasia e com ela já se tornou cobertura, imagem-muro ou véu sobre essa cena perdida que se tratará, em análise, de construir
(e não recuperar ou descobrir, pois ela só se pode constituir ficcional e retrospectivamente). A vivência em si não é propriamente imagem, ao contrário, é seu oposto (imagem-furo, o furo na imagem), e no entanto incita à sua formação (criando “novas superfícies”). O originário é cena Outra, obscena, por assim dizer, porque põe em xeque a própria possibilidade de encenação, de representação. Sua potência é anticênica, informal, pulsante – igural, se quisermos empregar o termo de Jean-François Lyotard.[64] Ele toma lugar de originário como tal, nuclear para a constituição do sujeito, ao se organizar como cena – mas conformando, paradoxalmente, uma cena ausente (e não apenas escondida), ferida na imagem e no corpo (a palavra grega “traûma” designa ferida, ustamente). Trata-se de uma espécie de sumidouro que suga os pensamentos para o campo do visual, criando, com o sonho, imagens capazes de tornar realidade o desejo ou, ainda, de pôr em xeque o próprio desejo e trair sua escondida e problemática origem, no pesadelo. No aparelho anímico não deixa de se tratar, portanto, de produção de imagem, ainda que de linguagem se entreteça seu trabalho. A natureza da imagem é compósita, como sustenta de forma brilhante Jacques Rancière ao pensar no cinema, mas não apenas nele: as imagens “são em primeiro lugar operações, relações entre o dizível e o visível”.[65] O que a psicanálise vem marcar fortemente, porém, é que a imagem, ao articular o dizível e o visível, delineia também um campo de invisibilidade e inefabilidade que lhe é essencial, e não deixa de através dele se apresentar. Tal campo deixa-se entrever no sonho-modelo apresentado por Freud para introduzir seu método interpretativo, conhecido como “sonho da injeção de Irma”. Trata-se de um sonho do próprio psicanalista no qual ele vê, em um grande salão onde estaria recebendo amigos, uma antiga analisanda a quem dá o nome de Irma. Ela não lhe parece nada bem, e ele a leva até a janela para lhe
examinar a garganta. Irma resiste, mas logo abre “a boca como devia”. Freud vê então, de um lado, uma grande placa branca e, do outro, “extensas crostas cinza-esbranquiçadas sobre algumas notáveis estruturas recurvadas, que tinham evidentemente por modelo os ossos turbinados do nariz”.[66] Em seguida, alguns colegas médicos também examinam a paciente e um deles profere o veredicto absurdo de que se trataria de uma infecção sem importância, pois logo viria uma disenteria, e a toxina seria eliminada. Neste momento, percebe-se que a origem da infecção estaria em uma injeção aplicada por outro médico. Tratava-se de uma injeção, diz Freud, de “um preparado de propil, propilos… ácido propiônico… trimetilamina (e eu via diante de mim a fórmula desse preparado, impressa em grossos caracteres)”.[67] As abundantes associações do sonhador levam à sua interpretação como desejo de ser inocentado de possíveis críticas em relação à sua conscienciosidade médica no tratamento psicanalítico de Irma. Esta não se acharia totalmente curada de sua histeria, pensava Freud, por não ter “aberto a boca como deveria”, ou seja, por não ter aceitado falar tanto quanto seria necessário para ir adiante em seu tratamento. Mas sobre a boca aberta da figura de Irma, que Freud associa a outras mulheres, inclusive sua esposa, ele se recusa a associar mais longamente. A boca aberta dentro da qual se vê algo terrível – tocando no limite último da imagem – dá então lugar ao que Freud curiosamente chama “umbigo do sonho”. Mesmo no sonho mais minuciosamente interpretado, é frequente haver um trecho que tem de ser deixado na obscuridade; é que, durante o trabalho de interpretação, apercebemo-nos de que há nesse ponto um emaranhado de pensamentos oníricos que não se deixa desenredar e que, além disso, nada acrescenta a nosso conhecimento do conteúdo do sonho. Esse é o umbigo do sonho, o ponto onde ele mergulha no
desconhecido. Os pensamentos oníricos a que somos levados pela interpretação não podem, pela natureza das coisas, ter um fim definido; estão fadados a ramificar-se em todas as direções dentro da intricada rede de nosso mundo do pensamento. É de algum ponto em que essa trama é particularmente fechada que brota o desejo do sonho, tal como um cogumelo de seu micélio. [68]
Se a imagem onírica é pictograma, escrita visual, isso não implica tanto a possibilidade de interpretá-la, explicitando aquilo que ela representaria, quanto o fato de que ela contém um ponto de densidade que põe em xeque a interpretação porque desestabiliza qualquer relação representativa, ao disseminar-se em múltiplos referentes. Vai nessa direção a proposta de Georges Didi-Huberman de que se pense a imagem, com Freud, como rasgo, rasgo que é um trabalho, um processo que “abre” a representação.[69] O autor lembra que a mímesis é, já na Poética de Aristóteles, múltipla, podendo seguir meios variados. No sonho abre-se a questão da semelhança e a mímesis se dá por meios curiosos, que mais deformam do que constroem imitações. Pois o sonho mostra algo – mais do que isso, acrescentaríamos, ele faz algo: realiza um desejo, ou seja, torna-o imagem (e texto) –, mas não pode mostrar algo, deve esconder, disfarçar para tornar imagem o que não pode ser visto / dito como tal. Mesmo a condensação, que agrupa conteúdos ou substitui um conteúdo por outro, a partir de alguma semelhança entre eles, tende a deformá-los ao uni-los. E é justo em seu ponto mais denso, ali onde a imagem, plural, resiste a significar algo, que o desejo mostra sua marca. A MÍMESIS E O REAL Não é à toa que Freud ilustra sua concepção da
condensação com os retratos compósitos de Francis Galton (18221911), pesquisador inglês de interesses múltiplos que fundou a teoria da eugenia aplicando as teorias de seu primo Charles Darwin
ao estudo da hereditariedade, além de ser considerado o pai da psicometria, da psicologia diferencial e da técnica de uso de digitais para identificação. Galton trabalha, a partir de 1877, com superposição de fotografias de indivíduos de determinado grupo, gerando retratos compósitos, imagens um tanto embaçadas nas quais se ressaltam os traços fisionômicos comuns. Assim, ele chega, por exemplo, ao retrato do “tipo judeu”. Deixarei de lado as funestas implicações de suas pesquisas para notar que sua técnica põe em relevo algo fundamental à fotografia (e à imagem, segundo a psicanálise): unindo traços de pessoas diferentes, constrói-se uma imagem de ninguém, o retrato de um conceito, seja ele imaginado como traço de personalidade ou de família. Em uma estranha simetria com o que o surgimento da fotografia opera no seio da representação, o inconsciente incide sobre a questão da imagem de maneira a retirar dela a possibilidade de correspondência direta com um referente, e com isso problematiza fortemente seu caráter mimético, o põe em crise e situa a psicanálise como uma verdadeira crítica da imagem. Uma vez afastada a correspondência direta entre imagem e referente, a montagem toma então o primeiro plano, lembrando a contemporaneidade estrita da psicanálise com o principal rebento da fotografia, o cinema. Os procedimentos de representação que Freud identifica no sonho e refaz em sua interpretação abrem uma multiplicidade de relações, uma fuga de associações em que imagem e linguagem se enodam e contrapõem de maneira imprevisível. Em lugar de uma relação mais ou menos estável entre o que é representado e sua representação, a linguagem estabelece aí uma variedade de pontos (e contrapontos) de contato e de distância, fazendo da imagem um rébus, uma imagem-texto espessa, que revela ao mesmo tempo que vela o que representa. Ela deve, portanto, ser vista ou “lida” também de formas infinitas, interpretada sempre de forma limitada e em movimento, já que falta o código capaz de tornar possível uma tradução direta da
imagem à palavra. Nos termos de Didi-Huberman, a imagem está “em processo”: “Então, assemelhar não diz mais de um estado de fato, mas de um processo, uma figuração em ato que vem, pouco a pouco ou de repente, fazer se tocarem dois elementos até então separados (ou separados segundo a ordem do discurso)”.[70] No processo de produção de imagens esse autor concede um importante lugar ao “não saber”, ao desconhecido. É importante ressaltar, contudo, que não se trata tanto do que resiste ao conhecimento, e sim do que, muito mais radicalmente, impossibilita a simbolização – trata-se desse “umbigo” que Freud identifica ao sexual enigmático e Lacan chama de real. Na imagem está em obra um ponto cego, insondável, que resiste à simbolização e insiste em pôr em risco – em rasgo – a representação. JeanFrançois Lyotard, ao longo de seu clássico Discours, figure [Discurso, figura], ressalta do “figural” a natureza pulsional, energética, dessa força capaz de transgredir e mesmo violentar a ordem do discurso. O real é o que “não cessa de não se escrever”, no bordão incessantemente repetido por Lacan. Ele impõe limites à representação e a conduz a sempre se relançar, tornando-a um processo repetido e talvez infinito, pois coincide com sua própria interpretação. Mas isso não é tudo. É desse mesmo ponto de resistência à simbolização que se origina o elã para a criação do sonho, com o desejo a buscar na imagem sua realização, mesmo que seja, como a boca aberta de Irma, para mostrar coisas que mal podem ser inscritas e clamam pela intervenção da linguagem, de um significante como a fórmula da trimetilamina. Essa substância, não por acaso, é um produto da decomposição do esperma. Na borda do abismo onde o coloca o inconsciente e o sexual, Freud apela à química, à ciência bem formalizada, ao simbólico em sua estrutura de linguagem. “Há um trabalho do negativo na imagem”, nota Didi-Huberman em sua leitura de Freud, “uma eficácia ‘sombria’ que, por assim dizer, cava o visível (o ordenamento dos aspectos representados) e
mortifica o legível (o ordenamento dos dispositivos de significação)”.[71] Tal trabalho do negativo será teorizado por Freud mais detidamente na parte final de sua obra, com o conceito de pulsão de morte. Se o umbigo do sonho já designava esse ponto de fuga que marca um esvaziamento da imagem e aponta in extremis para uma destruição de qualquer possibilidade de representação, é ele também que faz apelo à linguagem e incita a seu entrelaçamento com o visível para a produção de imagens – que vêm contornar esse ponto cego. Não se trata, portanto, na reflexão psicanalítica sobre a imagem, de algo que, visível, não se possa mostrar – porque recalcado – mas, mais radicalmente, da existência de uma matéria bruta da imagem que é informe, excrescência terrível, abismo onde nada se vê e diante do qual o homem vacila. Não apenas informe – para aludir ao termo proposto por Georges Bataille para nomear uma indistinção entre figura e fundo, eu e outro –, trata-se aí de algo obsceno no sentido que Hal Foster emprega, ligando-o à noção de abjeção elaborada por Julia Kristeva. Referindo-se a uma obra de Cindy Sherman (Untitled # 153), Foster afirma que “o objeto-olhar é apresentado como se não houvesse cena para representá-lo, não houvesse moldura de representação para contê-lo, não houvesse tela”.[72] ESQUELETOS DE IMAGENS Quando a cena ameaça se romper, vemos
surgir, como no sonho de Irma, um significante, letra quase “pura”, suporte material da linguagem. Nele, a linguagem escancara sua dimensão visual e se aproxima ao máximo da imagem. A essa tensão entre significação e fruição, entre contemplação e leitura, oseph Kosuth dedica grande parte de suas investigações artísticas. Trata diretamente disso a instalação Zeno nas margens do mundo conhecido, apresentada na xlv Bienal de Veneza. O artista apropriouse de um trecho de texto literário, A consciência de Zeno, de Italo Svevo, recortando-o em frases apresentadas em três línguas. Não
por acaso, o romance, de 1923, é o primeiro escrito literário a narrar, de forma um tanto irônica, um tratamento analítico. Zeno encarna um dândi que apresenta sintomas em profusão, confirmando de forma simplista algumas ideias de Freud. Seu analista sugere como parte do tratamento, de modo bastante heterodoxo, que ele escreva sua autobiografia. Apesar de apresentar um discurso cético em relação à psicanálise, a própria construção do romance aponta para uma proximidade entre literatura e psicanálise muito mais fundamental do que a ideia de que o tratamento analítico equivaleria à escrita autobiográfica. Svevo afirmava explicitamente que a literatura é mais “psicanalítica” do que o tratamento a que os médicos restringiriam a psicanálise – ao menos de acordo com a visão francamente caricatural que o romancista apresenta do que seja um tratamento analítico. “Grande homem é nosso Freud”, diz ele em uma de suas cartas, “porém mais para os romancistas do que para os doentes.”[73] De acordo com Kosuth, esse livro aborda vários conceitos que se tornaram depois básicos “para nosso discurso no resto do século”.[74] O artista ressalta a repetição como chave dessa novela. De fato, o narrador afirma: “O tempo para mim não é essa coisa insensata que nunca para. Para mim, só para mim, ele retorna”.[75] O tratamento analítico é uma autobiografia na medida em que obriga a um retorno e a uma construção (ficcional) do passado. Porém, ao contrário de Freud, o analista de Zeno assegura-lhe que sua “lembrança seria nítida e completa”. Zeno retorque de modo eloquente a respeito da questão da imagem e sua relação com a palavra, no trecho reproduzido por Kosuth em sua instalação: Quando atingi o torpor que deveria facilitar a ilusão e que me parecia não ser mais que a associação de um grande esforço a uma grande inércia, acreditei que as imagens fossem verdadeiras reproduções dos dias longínquos. Teria podido suspeitar logo de que não eram assim, pois, mal desvaneciam, eu as recordava, só
que sem nenhuma excitação ou comoção. Recordava-as como nos recordamos dos fatos que nos são contados por alguém que não os tenha presenciado. Se fossem verdadeiras reproduções, teria continuado a rir delas e a chorá-las, como no instante em que as tivera. E o doutor registrava. Dizia: “Conseguimos isto, conseguimos aquilo”. Na verdade, não havíamos obtido mais do que signos gráficos, esqueletos de imagens. Fui levado a crer…[76] última frase abre, no livro de Svevo, um novo parágrafo, e prossegue além das reticências introduzidas por Kosuth: “Fui levado a crer que se tratava de uma reevocação de minha infância…”. Vem então o relato de um sonho mostrando o sofrimento de Zeno quando criança, ao ir à escola enquanto seu irmão mais novo tinha permissão para ficar em casa. O protagonista desacredita seu analista e interrompe sua análise, ao perceber a perturbadora natureza de linguagem que possuem essas imagens e decretá-las “inventadas”. Ele resiste a reconhecer nelas o que, por contraste, delicia Kosuth (e Freud): sua natureza de “signos gráficos, esqueletos de imagens” recusando uma visibilidade plena e segura e desenhando um “in-visível”, perfilando um horizonte incerto. Em uma versão anterior dessa obra, Kosuth fizera um mesmo trecho do livro ser repetido e traduzido, em alemão e inglês. Já em Veneza, o texto contínuo citado acima aparece parte em italiano, parte em húngaro e inglês. Apenas as pessoas que conhecem as três línguas poderiam, para o artista, “ver” a instalação inteira. Em uma fina análise do romance de Svevo, Kosuth nota que o ponto de vista de Zeno é outside, e é nessa posição que o “olhador / leitor” – como ele gosta de chamá-lo – será também engajado no trabalho. O olhador está “fora” de parte do visível, diante de um visível que não é completamente legível. O mais importante, porém, é que Kosuth afirma fazer, desse texto híbrido e estranhado por recortes e trasladações, tornado opaco e inacessível a uma leitura discursiva, um “horizonte”.[77] Esse horizonte desenhado por palavras nas
paredes dessa instalação é acompanhado ainda de reproduções de recortes de jornais, tornando-se polifônico, múltiplo. “Eu uso imagens linguisticamente. A linguagem está sempre lá, quer eu use ou não palavras”, nota Kosuth. Poderíamos afirmar que ele também faz o inverso: usa a linguagem visualmente, imageticamente, quer use ou não imagens. De fato, o artista diz querer nessa obra “fazer um trabalho que seja contemplativo”,[78] o que teria até então evitado. Olhar tal horizonte coincide com estar envolvido no problemático processo de significação a que a obra convida. Dizia acima que a psicanálise concebe a imagem como um certo híbrido entre imagens e palavras, em um regime um tanto caótico do qual é possível se inferir certa retórica – dada pelo deslocamento (metonímia) e pela condensação (metáfora) –, mas que interdita o estabelecimento de uma simbologia estável, uma iconografia. O referente perdeu sua presença tangível com a concepção do inconsciente como locus do trauma, e o tecido da representação se esgarça e expande, tomando lugar ao mesmo tempo daquilo que se trata de representar e do que se representa, em ato. Os meios de representação coincidem com o objeto a ser representado – a linguagem, na obra de Kosuth, é o próprio horizonte –, e vira-se do avesso a afirmação de Aristóteles segundo a qual os homens “se comprazem no imitado” graças ao fato de nele reconhecerem o original. O filósofo afirmava que “se suceder que alguém não tenha visto o original, nenhum prazer [hédones, em grego] lhe advirá da imagem, como imitada, mas tão somente da execução, da cor ou qualquer outra causa da mesma espécie”.[79] A mímesis não é apenas semelhança, mas inclui uma dessemelhança, uma distância em relação ao “original” que, como lembra Jacques Rancière com a expressão “alteração da semelhança”, é a própria condição da arte. Aliás, é no sentido de tal alteração múltipla e infinita “que a arte é feita de imagens, quer seja ou não figurativa”.[80] Do original passamos, com Freud, a um
originário que não se pode ver, mas que constitui o fulcro do visível, sendo o original perdido que se tratará de (re)construir, com imagens, palavras, com palavras tornadas imagens. “Como a palavra sabe atravessar o tempo!”, exclama Zeno. “Ela própria é um acontecimento que se interliga aos acontecimentos!” [81] FORT! DA! Talvez estejamos diante de um novo regime da imagem,
uma redistribuição de suas relações com o visível e com a linguagem. A opacidade, o movimento, a montagem toma a dianteira na produção da imagem sobre o “reconhecimento” de que falava Aristóteles na citação acima. Uma vez retirado o “original” da imagem, seria ela capaz de produzir, nos termos de Aristóteles, algum prazer ? Algum “prazer” poderá vir dos elementos inerentes à própria obra (da “execução”, da “cor” etc.), como atesta – e disso faz profissão de fé – parte da arte modernista. Ou se poderia pensar que, uma vez subvertida a mímesis pelo desaparecimento do referente, a própria noção de prazer deve por sua vez se transformar? É justo de tal transformação do prazer que trata o texto freudiano “Além do princípio de prazer”. O pesadelo, por exemplo, mostra uma primazia do desprazer contradizendo a satisfação que, supõe-se, acompanharia a realização de desejo. No domínio da arte, em especial, o prazer encontra-se francamente problematizado, como nota o próprio Freud. Nos adultos, a atividade artística de jogo e imitação que, diferentemente do comportamento da criança, visa a pessoa do espectador, não poupa a este, por exemplo na tragédia, as mais dolorosas experiências, e, no entanto, pode ser por eles sentida como um prazer superior .[82] Inscrevendo-se de maneira inconteste na tradição estética, Freud revê nesse momento o postulado, vigente desde o início de sua
obra, de que o funcionamento do aparelho psíquico busca obter prazer e evitar o desprazer (segundo o chamado “princípio de prazer”). Ele propõe então a repetição do trauma como regime primordial da psique. A oposição prazer / desprazer é revista em função do gozo (como Lacan propõe chamá-lo) que mescla ambos em uma angústia cheia de volúpia, em um prazer “superior”, porque um tanto terrível. Prazer transformado em angústia, desprazer tornado volúpia: o gozo está ligado à repetição do que não se encena, não se escreve. Mas se joga, repetidamente, o que é capaz de engatar alguma encenação. É justamente um jogo, uma brincadeira infantil que é evocada por Freud a esse respeito. Seu neto de um ano e meio gostava muito de jogar para longe de si todo tipo de objeto. Um dia, esse comportamento se tornou claro como um “jogo completo”. O menino segurava por um barbante um carretel e se pôs a arremessá-lo para dentro de sua caminha, onde ele desaparecia sob o cortinado. A criança emitia então o som “oooo”, reconhecido por seus familiares como o advérbio fort , “longe”. Ao puxar de volta o carretel para si, trazendo-o de volta à visão, o menino dizia “aaaa”, que os outros significavam como da, algo como “aí está!”. Para o psicanalista, trata-se nesse jogo de uma grande realização cultural da criança, uma importante renúncia pulsional. Com o carretel, ela brincaria de fazer sua mãe partir, repetindo essa vivência dolorosa, antes vivida passivamente. Com o jogo, graças à substituição da mãe pelo objeto-carretel, a criança teria inventado um modo de trazê-la simbolicamente de volta, renunciando assim à posse total desse seu objeto primeiro. Os slogans e neons de Kosuth não deixam de ser um modo de compulsivamente retomar esse momento inaugural de significação que é também aquele em que surge um sujeito. Inicialmente, o sujeito não é mais do que a simples oposição entre os fonemas “o” / “a” (de “ fort ” e “da”), mas ao tomar o barbante e, repetidamente, fazer algo desaparecer de sua vista, ele cria um mundo de
opacidade que põe à prova, todo o tempo, a possibilidade de significá-lo. Como formula Lyotard em Discours, figure, “há uma compulsão de opacidade que faz que isso de que se fala seja dado como perdido”.[83] A partir daí o visual, ou o “inconsciente ótico”, na expressão de Benjamin retomada por Rosalind Krauss, “reclama para si essa dimensão de opacidade, de repetição, de tempo”.[84] Em 1985, Kosuth apresentou na galeria Leo Castelli sua exposição Fort! Da!. Ele usava marcas de X, já empregadas na série “Cathexis” (1981), no chão da galeria e em uma fotografia de grandes dimensões onde se lê a seguinte inscrição: “Há um texto perdido e uma tradução, há uma ordem, uma lista, há um quadro e um lugar de onde lê-lo”. Os X marcados no chão do espaço expositivo e no chão que o reproduz, idêntico, na fotografia, fazem um jogo entre o que está fora e dentro da obra, pondo em questão o próprio lugar de seu olhador / leitor. O texto está irremediavelmente perdido ( fort!), o que se apresenta é sempre uma tradução, no da! que anuncia seu aparecimento como imagem. Lyotard põe em relevo o gesto de Kosuth (seus X, suas palavras) como aquele do homem que desenha alguns traços em um suporte, anteriormente à definição de seu produto como pintura ou escrita: “Ele apela, por meio do visível-legível, a uma ‘presença’ que é mais do que o calmo ato de ver e ler”.[85] Tal presença é, contudo, marcada por uma opacidade, ou um jogo de esconde-esconde entre imagem e sujeito. Não se trata apenas, como notava Kosuth a respeito de Zero & Not , de apresentar a ausência, mas da “linguagem reduzida a palavras, fazendo da própria textura do ler uma ‘chegada’ na linguagem, uma chegada que constrói outras ordens, as quais cegam ao se fazer visíveis”.[86] A imagem posta à prova de sua opacidade gera então, em um extremo, o apelo à materialidade da letra. Em outro extremo, ela é capaz de gerar uma busca pelo real além da imagem, realizando o desafio de tornar visível a zona de “dessignificação”, realçar suas cores, por assim dizer, de forma a tirar da total opacidade alguns
elementos. Para Hal Foster, em seu famoso ensaio “The Return of the Real”, algumas obras contemporâneas querem que “o real exista, em toda a glória (ou o horror) de seu desejo pulsátil”.[87] Para esse fim, elas não só atacam a imagem, mas tentam romper a tela, a cena que torna imagem essa opacidade, buscando refazer seu encontro traumático ou materializar o que vimos Freud chamar de “umbigo do sonho”. Por mais que pareçam opostas, essas duas vertentes se situam em um mesmo terreno de jogo entre sujeito e objeto, submetidas a esse estranho funcionamento que Freud denomina “compulsão à repetição”, no regime da pulsão de morte. A linguagem, materializada, apresentada como imagem problemática, distante mil léguas de qualquer ingênuo subjetivismo, não deixa de recolocar subterraneamente em jogo o sujeito em sua complexa articulação com a representação, e o faz talvez de forma mais potente do que ao tomá-lo diretamente como tema. Recoloca-se em ogo também, nesse contexto, o diálogo entre produção artística e psicanálise, de forma insuspeita e mais íntima do que normalmente se supõe. Como afirma Kosuth, a ubíqua influência de Freud continua gerando um efeito em nossa leitura de numerosos códigos culturais. Nós sabemos onde ela se situa, não sabemos dizer onde ela não se situa. “Buscar significados” em um contexto freudiano, fora do contexto, provê uma certa autorreflexividade em um contexto de arte sobre esse próprio processo. [88]
A LETRA, A IMAGEM: GARY HILL O olho está na fala. EAN-FRANÇOIS LYOTARD
Escrever é quebrar o laço que une a palavra a mim mesmo. MAURICE BLANCHOT
“Toda a poesia, todo o inconsciente são uma volta à letra”, diz Roland Barthes em 1970.[89] Comentando uma enciclopédia que traz uma série de letras formadas por desenhos de objetos variados, ele diz que todos os artistas, monges, litógrafos e pintores ali citados fecharam o caminho que parece levar […] da letra à palavra, e tomaram outro caminho, que é o caminho não da linguagem, mas da escrita, não da comunicação, mas da significância: aventura que se situa à margem das pretensas finalidades da linguagem e, justamente por isso, no centro de sua ação.[90] exploração da letra em seu aspecto gráfico, imagético, abre as portas de uma dimensão da linguagem que fica de ordinário submersa, subjugada pelo império do signo. Ao se destacar da significação das palavras e frases que ela compõe, a letra abre para a “significância”: resistência, cheia de emoção, ao sentido, vago erotismo que não se deixa fixar em nenhuma decifração, brecha da linguagem na qual a poesia e a psicanálise não cessam de se aventurar. Nessa aventura que Barthes nomeia “escrita”, compõem-se as letras do alfabeto com elementos variados do mundo – tais como pássaros, cobras, homens, monstros, troncos etc. – de modo a, por exemplo, se ter no “O” dois corpos nus semifletidos, unidos pelas mãos e pelos pés, e cobertos de pequenas estrelas. Os escribas / desenhistas deste modo fariam da letra, imagem; com eles, “a letra torna-se imagem na tela do mundo”.[91] Com a letra, fazer imagem: este é também, para Freud, o trabalho do sonho. O sonho é o domínio das quimeras, do imaginário mais fecundo, é a tela onde se projetariam todas as fantasias. Mas Freud o caracteriza como linguagem – “linguagem pictográfica”, mais precisamente, conjugando imagem e palavra como resultado da transposição de um texto (o dos pensamentos latentes) em cenas visuais (que, por sua vez, são retraduzidas no
relato do sonho). Os pensamentos oníricos podem chegar a constituir uma “situação plástica” que é o núcleo do “quadro onírico”.[92] Nesse contexto que faz do sonho um “quadro”, é surpreendente ver Freud afirmar, apesar de tudo, que “os sonhos constroem-se mesmo com palavras”.[93] A linguagem dos sonhos é pictográfica e suas cenas são construídas com palavras. Contudo, no sonho, entre imagem e palavra a relação não é exatamente contínua e harmoniosa. O pictograma onírico é rébus, é charada: assim como, para significar soldado, podemos desenhar um sol ao lado de um dado. Um rébus simples como esse mostra bem que, para chegar a sua solução, é necessário tornar a imagem palavra. Ou melhor: para reescrever as palavras que compõem o sonho, devemos caminhar letra a letra. O sonho não seria, portanto, tão “linguagem” assim – na direção apontada por Barthes, ele é sobretudo escrita. Aventura que vai além da comunicação, além do sentido, o sonho parece ser o domínio privilegiado da significância. Um sonho não é comunicável como tal, ele deve ser interpretado, ou seja: ele nos convida de saída à aventura de sentidos múltiplos, palavras plurais. Em vez de sofrer duas transposições diretas (a tradução do texto – inconsciente – em imagem e, em seguida, novamente em texto – ao ser relatado), o sonho vai sendo, em cada um desses estágios, transformado de maneira um tanto imprevisível e fragmentária, deixando restos, lacunas, impossibilidades. Mesmo quando o sonho deixa uma lembrança coerente, diz Freud, ele nos confronta com algo estranho. Há sempre algo de perturbador num sonho. Ele nos faz girar infinitamente em torno de um ponto cego, uma obscuridade que Freud curiosamente chama de “umbigo” – como a fazer do sonho um corpo. Sob o véu de suas profusas imagens, o sonho tem como núcleo uma opacidade, um ponto “insondável” que é seu “ponto de contato com o desconhecido”.[94] Nesse ponto de que já tratamos no ensaio anterior, seu “umbigo”, ele mergulha na obscuridade e
encontra o limite à sua interpretação – como acontece a Freud diante da terrível boca aberta de Irma no célebre sonho que lhe abre o caminho da interpretação dos sonhos. Mas é desse mesmo ponto que vem a potência formadora das imagens – que talvez continuem orbitando à sua volta, recobrindo tal ponto cego, mas ao mesmo tempo apontando sempre para ele. Quando se chega muito próximo deste ponto impossível de imaginar, como no sonho de Freud, as imagens são postas em xeque, e a letra deve vir em nosso socorro – pelo súbito aparecimento da fórmula química da trimetilamina. O pictográfico compreende portanto duas possibilidades, dois polos extremos. No primeiro, teríamos uma conivência entre palavra e imagem. O termo “rosa” deveria ter o perfume da rosa, para aludir à célebre questão posta por Shakespeare em Romeu e ulieta. A escrita poderia esposar a forma de seu tema, como faz o caligrama Il Pleut [Chove] de Guillaume Apollinaire, dispondo as letras em linhas verticais descontínuas, de modo a desenhar a queda de suas gotas. Nessa vertente, o signo enviaria diretamente à coisa que ele representa, como os ideogramas chineses faziam em sua origem, ao grafar “cavalo”, por exemplo, com traços que imitam esse animal em movimento. Mas a “linguagem pictográfica” que é o sonho nos aponta o outro polo extremo da articulação entre palavra e imagem, aquele no qual elas se apresentam lado a lado e entre uma e outra há alguma interseção, mas de maneira tensa, conflitante, impossibilitando a direta transposicão de uma a outra e obrigandonos a errar nos limites da significação. Para Lacan, o fato de Freud tomar o sonho como um rébus significa tomá-lo como “uma escrita”.[95] O inconsciente seria, portanto, o que se lê. E o que se lê é equívoco, é o que não envia diretamente a um referente, mas se endereça ao sujeito (sujeitoleitor) como carta / letra (lettre) roubada, e no entanto essencial: “Para cada um a letra / carta é seu inconsciente”.[96]
A letra não permite diretamente a leitura, mas problematiza o sentido e a visualidade. O ponto obscuro que ameaça toda a feérica figuração do sonho, o umbigo que põe em vertigem o sonhador, é nele que vem se inscrever a fórmula da trimetilamina – com a qual Lacan identifica a carta / letra do conto “A carta roubada” de Allan Poe, para dizer que “a carta / letra ( lettre) é aqui sinônimo do sujeito inicial, radical”.[97] Não se trata, porém, de tomar a letra como anterior à linguagem, mas de vê-la como o operador do escrito, que é um “efeito de linguagem”.[98] É com a própria linguagem que se forja algo que traça e força seus limites, desenhando suas bordas. Trata-se aí de uma escrita que não visa diretamente o sentido mas outra coisa, materializando os traços que dão origem ao sujeito. Como caracterizar essa escrita que não reafirmaria a convencional fronteira entre signo linguístico e imagem, mas inscreveria traços que transbordam de um a outro, pondo em questão a representação – e seu sujeito? A VIDEOARTE ENTRE IMAGEM E PALAVRA: AROUND & ABOUT Gary Hill é
um consagrado artista norte-americano, nascido em 1951, cujos vídeos e instalações tecem complexas e sofisticadas relações entre imagem, texto e som. Seu trabalho traz a questão das relações entre visualidade e linguagem para o seio da imagem técnica que poderia parecer a mais distante da escrita, por ser o terreno que afirma a vitória da ilusão da imagem mimética e em movimento. Mas a videoarte realizava, desde seus primórdios na década de 1960, uma vigorosa crítica da imagem técnica disseminada pela televisão, buscando colocar em crise sua dimensão puramente mimética, em prol de uma torção poética de seus meios. Nam June Paik é a principal referência dessa proposta, disseminada em seguida por outros videoartistas. Alinhando-se a ela, Hill afirma que sua posição é a de “questionar o lugar privilegiado que a imagem”, em sua implicação com a visão, possui em nossa “consciência”.[99] A partir
da virada para a década de 1980, a linguagem toma um lugar privilegiado neste questionamento realizado em vários trabalhos do artista. Para Raymond Bellour, Hill busca “ver a linguagem na imagem, na espessura de uma mesma matéria”.[100] Um trabalho como round & About (1980, vídeo em cores, 4 min 45 de duração), porém, mostra uma relação muito mais complexa entre os dois domínios. Ele apresenta uma série de imagens fixas em sucessão rápida, em geral em corte seco, acompanhada por um texto em off com a voz do próprio artista. A montagem segue o ritmo das palavras, cada imagem coincidindo com uma sílaba ou fonema, ou ainda com uma palavra. O ritmo das sequências sonora e imagética é rápido e quase coincidente, não havendo pausa entre as frases. Não se esboça, porém, nenhuma relação ilustrativa entre texto e imagem. Nenhuma narrativa é criada entre os elementos. As imagens são muitas vezes de difícil reconhecimento, pois trazem enquadramentos inusitados ou recortes em close acentuado. Temos, por exemplo, um teclado de computador visto de um ângulo pouco usual, ou parte do braço de uma cadeira, ou ainda parte de uma anela. Outros elementos são evidentes: uma parte da parede com tijolos aparentes, um pedaço de régua, uma maçaneta. Mesmo esses, porém, tornam-se quase abstratos. É necessário um certo tempo para que possamos identificar nessas imagens uma série de recortes de um ambiente, aparentemente um escritório, que jamais nos é trazido de maneira panorâmica ou em um plano ampliado que permitisse a reconstrução imaginária do cômodo. A noção de um espaço unificado por meio da localização dos objetos nos é negada, assim como nos é impedida a percepção de “nossa” localização em tal espaço. O ponto de vista da câmera é tão fragmentado quanto os objetos que ela enfoca. Cada imagem é tratada como uma sílaba, e a montagem vai emparelhando-a a outras em sucessão, formando talvez “palavras” e “frases”. O vídeo pareceria afirmar, portanto, que a imagem se
constrói de forma análoga à linguagem. Parodiando Lacan, poderíamos talvez formulá-lo como: a imagem videográfica se estrutura como uma linguagem. Mas a edição de Around & About não conforma unidades significantes, nem as combina em cenas que se poderiam comparar a frases de um discurso capaz de ser transposto em narrativa verbal. Cada imagem é, nessa obra, apresentada como letra. Hill parece brincar e revirar a lógica da montagem – que, no cinema como no vídeo, costuma estar a serviço da construção de uma narrativa e de um espaço onde esta se desenrola. Em vez de servir à comunicação, aqui o agenciamento de imagens e palavras serve à significância, construindo esse curioso efeito de linguagem que é uma escrita. Ao pôr em paralelo imagem e palavra, esse vídeo não as faz se refletirem em espelho, mas apresenta entre elas uma disjunção fundamental. De uma a outra, faz-se um jogo que o próprio Hill chama de uma espécie de “automação orgânica” que ocorreria “à medida que a fala empurra as imagens para fora e para dentro e para fora da tela”.[101] As palavras não encontram as imagens, mas as “empurram”. E as próprias palavras não se deixam tomar pacificamente como partes de um discurso. Embora as frases sejam compreensíveis, não se sabe bem, do início ao fim, do que trata tal fala, quase logorreica – apesar de consistir em enunciados correntes. O texto começa com: “Tenho certeza de que isso poderia ter tomado um outro caminho, um caminho completamente diferente, um caminho que nunca veio à mente. Mas isso é um dado”. Os “caminhos” do discurso continuam então a se traçar, com palavras, sem que se chegue a lugar nenhum – pois trata-se de nada além do próprio caminho, ou seja, da linguagem levada aos últimos limites. Por vezes, o texto parece ressoar o “caminho” que vão conformando as imagens em sucessão – “às vezes apenas se sai e entra novamente”, diz-se a determinada altura. Em lugar de construir um enredo, a fala apenas se deposita, em sua materialidade audível: “É uma espécie de entulho”. Falando sobre a
própria linguagem, a fala deixa de servir à comunicação, pois, assim como a sequência imagética, ela se fragmenta na materialidade de suas unidades – e assim, apesar de continuar familiar, torna-se estranha no sentido do Unheimliche freudiano. As próprias palavras tornam-se, como as imagens de Around & About , difíceis de reconhecer, elas fogem à maneira do que formula Hill ao dizer que as palavras “estão paradas como veados num campo. Se me aproximo depressa demais, elas desaparecem no movimento rápido das coisas”.[102] A linguagem e o visível são incompatíveis, afirma Foucault em As alavras e as coisas . É certo que a linguagem não pode descrever o quadro As meninas de Velázquez – ou melhor, ela pode fazê-lo, mas deixará de fora muita coisa, pois as palavras jamais poderão substituir a pintura. Mas há muito de linguagem em um quadro como o do pintor espanhol – assim como na montagem de uma cena em vídeo. As meninas traz, como sabemos, uma cena da corte, em uma cuidadosa organização espacial onde as regras da perspectiva e a figuração do próprio artista pintando são genialmente exploradas e convidam a uma “leitura”, digamos, que vai muito além do mero reconhecimento da cena ou do virtuosismo realista do pintor. Se entre pintura e linguagem a relação é, portanto, na palavra de Foucault, “infinita”, isso não significa apenas que a linguagem correrá sempre atrás da pintura, sem conseguir alcançá-la.[103] Podemos dizer que entre o visual e o linguageiro a relação é infinita, excessiva e contaminada, porque eles se entrecruzam sem se encontrar de forma cabal, mas refazendo laços dissonantes que põem em questão a própria natureza da representação (e do sujeito). Ao tensionar a relação entre imagem e palavra, Gary Hill questiona radicalmente, de fato, a posição do sujeito diante da representação. Em Around & About , isso se dá tanto através da imagem quanto do texto. A fala se endereça diretamente ao espectador, tratando-o por “você”, e no entanto deixa-o incerto
quanto à mensagem a ele endereçada. “É fácil ser desviado.” Questionar a imagem e a linguagem é apelar para a letra, é abrir o campo da significância e pôr em movimento (em aventura, como dizia Barthes) o sujeito. Mudar sua posição – pois, como sublinha o artista, “há sempre um outro modo de ver” a partir da posição na qual você se encontra, de seu ponto de vista.[104] Esses múltiplos modos “outros” de ver põem em questão a posição do sujeito e, correlativamente, o espaço à sua volta. O eu não é mais senhor de seu próprio espaço, diríamos, parodiando Freud. Nem de suas costumeiras palavras. O texto de Around & About traz ainda a curiosa afirmação de que “talvez seja minha culpa. Eu vim despreparado. Não estou pronto para ser complexo”. Em torno e a respeito (“ around and about ”) da linguagem, esse trabalho é também sobre o sujeito, girando em volta dele e de sua impossível relação com o outro. “Eu não quero que você esteja envolvido em decifrar nada”, diz ele. Nada se oferece à decifração porque não se trata de enunciados difíceis ou enigmáticos, mas, de saída, de uma comunicação impossível. Em uma entrevista, Hill conta ter feito esse vídeo em um momento de muita ansiedade, no qual passava por problemas conjugais e se mudou para o pequeno escritório usado na filmagem. O texto foi escrito rapidamente, como se ele “estivesse gritando”. [105] Ao editar as imagens, ele queria “abusar” delas, manipulá-las com palavras. Expandir esse pequeno espaço e persuadir a mulher do “paradoxo arte / vida” – tais eram as duas tentativas nas quais o artista afirma ter igualmente falhado. O AVESSO DA IMAGEM, O REVERSO DA PALAVRA: URA ARU A escrita
ideográfica chinesa, apesar de consistir em conjuntos convencionais de traços e apenas em alguns casos manter a semelhança direta com a coisa representada, pode eventualmente ser explorada como materialização do sonho de unir o signo à coisa. É nessa perspectiva que ela aparece no filme O livro de cabeceira , de
Peter Greenaway (1997), ao mesmo tempo que se evidencia sua dimensão corporal como inscrição na pele, à maneira da tatuagem e outras marcas e inscrições no corpo. A cada aniversário, a protagonista recebia, desde muito pequena, a escrita do pai sobre sua nuca e seu rosto, refazendo uma espécie de ritual de nomeação. á adulta, ela buscará repeti-lo em situações claramente eróticas. Em determinado momento, um calígrafo profissional que acaba de cobri-la de ideogramas lhe ensina que a palavra “chuva” deveria cair como chuva, a palavra “fumaça”, flutuar no ar como fumaça. Em seguida, a moça se põe sob a chuva e a tinta escorre sobre sua pele, chegando quase a realizar essa paixão da semelhança. Como Greenaway, Lacan foi profundamente provocado pelo apão, que chegou a visitar em 1971. Para ele a língua japonesa, por ter tomado emprestados os ideogramas da língua chinesa para constituir sua escrita, traz a todo momento “a distância do pensamento, ou seja, do inconsciente, à fala”.[106] O leitor japonês pode ler um ideograma de mais de uma maneira: tomando-o por seu valor semântico, ou seja, pelo sentido que já possuía em chinês, ou por seu valor significante, como um fonema totalmente independente do seu sentido originário. Cada letra tem ao menos duas leituras em japonês, podendo chegar a ter de seis a dez, segundo Jean-Louis Gault. Além disso, a partir do empréstimo inicial dos ideogramas chineses, a escrita japonesa fragmentou-se em vários tipos, que não é o caso aqui de destrinchar. O importante é notar que nela opera uma “generalização do jogo sobre o significante”.[107] Em suma, o ideograma interessa a Lacan para caracterizar a letra, não tanto pelos resquícios da conivência com a coisa que ele representaria em sua origem, quanto pela desnorteadora multiplicidade de leituras a que ele convoca na língua japonesa. Gary Hill morou no Japão em 1984-85 e se impressionou com a existência, na língua japonesa, de uma grande quantidade de palíndromos – palavras que permanecem iguais se lidas de trás para
adiante. A partir dessa constatação ele realiza Ura Aru (the backside exists) (vídeo em cores, 28 min, 1985-86). Ura é avesso, Aru é existência. Hill afirma que existe o backside, há um reverso da linguagem e da imagem. Os palíndromos que ele apresenta, escritos ou acústicos, são significantes que podem ser revertidos, mas tomam então outro sentido. Assim asu (“amanhã” ou “os próximos dias”) torna-se usa, “melancolia”. As palavras são apresentadas por escrito na tela, em nosso alfabeto latino, para aí se reverter e traçar um percurso sobre uma cena que também se reverte. A cena inicial acompanha o movimento preciso, de cima para baixo, de uma faca abrindo a barriga de um peixe. A palavra “hara” aparece sobre o corte, na vertical, ao mesmo tempo que vozes em off a pronunciam, e se rebate sobre seu eixo, para ficar de cabeça para baixo (“arah”), ainda acompanhando o movimento da faca. “Belly”, barriga em inglês, é grafada no canto inferior direito da tela, e logo em seguida aparece a palavra “heart” (coração) usando o h invertido de “hara”. cena recomeça mostrada de trás para frente, com o corte desaparecendo à medida que a faca sobe pelo corpo do peixe. A palavra “arah” é pronunciada de forma praticamente idêntica a “hara”. Os termos “guts” (entranhas) e “mind” (mente) percorrem em seguida o canto inferior da tela, da direita para a esquerda. Mais uma vez a cena é mostrada na direção original e o corte se refaz enquanto “hara” é pronunciada – desta vez, contudo, é a palavra “gate” (portão) que aparece. O vídeo prossegue repetindo com outros termos essa mesma complexa estrutura de reversão da palavra e da imagem. As palavras japonesas são muitas vezes pronunciadas por um homem ou uma mulher (dois atores ocidentais), quando não são ditas por um ator em bem ritualizada cena de teatro nô. As cenas revertidas provocam muitas vezes uma grande estranheza, e não se sabe bem, em muitos casos, qual é o direito e o avesso – ou seja, em que direção elas foram efetivamente filmadas. Os termos em inglês não representam apenas a tradução dos japoneses, mas por vezes
também entram no jogo, revertendo-se por sua vez sob a lógica do palíndromo. Para o crítico John Hanhardt, em Ura Aru a linguagem é tornada “material”.[108] De fato a palavra é, como afirma Freud, um “material plástico que se presta a todo tipo de coisas”.[109] Coisas variadas, em transformação, visto que, como diz Paul-Emmanuel Odin, em Ura Aru “o texto está vivo”.[110] A palavra parece então se relacionar com a imagem em pé de igualdade, com ela tecendo o mundo. Mas o que faz a língua, ao ser apresentada em sua materialidade escrita, é revirar-se para significar outra coisa e lembrar-nos que entre significante e significado a relação é arbitrária e talvez até mesmo móvel. Sem dúvida, Ura Aru me deixa – a mim, ocidental que desconhece a língua japonesa – ao mesmo tempo perdida e encantada com o deslizamento entre significante e significado a me negar qualquer apreensão do jogo da língua (do ogo de alíngua, a lalangue de Lacan: aquilo que escapa à significação para ser puro jogo sensível, ritmo e melodia que convoca o corpo a alguma dança). O fato de Hill trazer para esse jogo palavras em inglês, porém, lembra-nos que tampouco em nossas línguas ocidentais somos mestres desse jogo. Talvez não exista língua materna – somos sempre estrangeiros na linguagem. E na imagem? A incidência desse jogo sobre as imagens que o acompanham em Ura Aru é digna de nota. O vídeo mostra, como formula Odin, que “o problema do sentido concerne as noções de espaço, de tempo, do devir”. No domínio do imaginário, o visível se organizava em prol do sentido para fazer do espaço uma área homogênea e sem falhas, na qual podemos reafirmar nosso lugar de “senhores de nossa própria casa”. Revertendo a cena, a letra rasga o véu da imagem, quebra o espelho e nos faz entrever o estranho ponto em que a imagem se engancha no real. Como já apontava com precisão Arlindo Machado comentando Ura Aru, “o mundo invertido – a reversão de tudo a seu avesso – traz à tona uma outra dimensão de realidade, que jamais imaginaríamos
convivendo lado a lado com o mundo que nos é familiar, uma dimensão que é o outro do mesmo”.[111] Uma cena bastante complexa nos interessa em particular, por tratar direta e explicitamente da problemática do espelho. Apesar de ser difícil descrevê-la, pelo acúmulo de elementos em um tempo reduzido, é fundamental tentar trazê-la para o domínio da escrita. Um homem tem a face muito próxima do espelho. Ele sopra, produzindo o embaçamento de uma pequena área em forma de círculo. Traça com o dedo uma borda para o círculo ao mesmo tempo que pronuncia o termo “omokage”, que aparece na parte superior da tela em letras pouco contrastadas em relação ao fundo. No embaçado aparece o termo “visage” (rosto). O homem passa novamente o dedo no espelho, fazendo o mesmo movimento no sentido inverso: “omokage” se revira, e a ele é acrescida a letra “u”, ao mesmo tempo que é dito egako omou. Aparece a palavra “traces” (traços) sobre o embaçado, em seguida percorrem a tela thought draws breath drawing breath (pensamento desenha sopro desenhando sopro). Nesse momento percebemos que a cena está sendo passada ao revés, pois o homem aspira o vapor que estava condensado sobre o espelho. O ator pronuncia algo repetidamente e o termo “breath” se revira e duplica duas vezes em seu canto inferior. Ele se desloca para trás e nesse momento a câmera, fixa até então, gira noventa graus para a direita de modo a mostrar sua figura de perfil. A montagem é muito sofisticada e a cena é particularmente perturbadora. Não sabemos muito bem onde está a câmera, o jogo de espelhos e de reversão de cenas nos deixa perdidos. As palavras se espelham como as imagens, mas algo quebra este espelho e nos deixa sem lugar, entre estranhas cenas e línguas estrangeiras. Demoramos a perceber que se trata de um espelho de três faces fazendo ângulo entre si, como uma janela com dois batentes abertos em ângulo. A cena prossegue com uma dupla sequência que realiza um vertiginoso percurso da imagem sobre o espelho – levando-nos à
sensação de quase atravessá-lo. Aparece o termo “face” (rosto) revirado no canto da tela. A câmera gira no sentido oposto cerca de 120 graus, mostrando sucessivamente três diferentes reflexos: perfil, frente e outro perfil do homem, que diz algo. No meio desse caminho, reflete-se no fundo do espelho um vulto de mulher, coberto por um véu negro, andando de costas, ao mesmo tempo que uma voz feminina pronuncia algo. Entre a imagem fora do espelho e seu reflexo, um elemento portanto se interpõe, passando tão rapidamente quanto uma palavra sussurrada. A cena é então passada no sentido oposto, trazendo a passagem do vulto andando para frente, enquanto “face” se desdobra em espelho e entre “ecaf” e “face” surge, exatamente no momento em que a mulher sussura algo, o termo “evil” (maldade). “Evil” se reverte então em “live” (vivo). O homem aproxima-se e se distancia do espelho, com ritmo, enquanto “evil” gira sobre seu eixo transformando-se em “devil” (diabo, demoníaco), em seguida “lived” (vivido) e novamente “devil”. Esse vídeo faz palíndromos com imagens, ou seja, as toma de modo “literal”, decompondo-as em letras. A face, o encontro de si mesmo no espelho que organiza num só golpe espaço e sentido, dá lugar a traços, pistas que tentamos seguir, tracejamentos onde a unidade semântica das palavras se dissolve. O sopro, noção central no pensamento taoísta que “engendra a vida, ao mesmo tempo o espírito e a matéria, o Um e o múltiplo, as formas e sua metamorfose”, retoma no espelho o engendramento das coisas e do sujeito.[112] Na superfície vítrea um gesto escreve com o sopro um traço – esse é o estopim para a viravolta vertiginosa que se realiza então, graças ao jogo formado entre os espelhos. Somos postos em movimento, pelo ponto de vista da câmera, de modo a acompanhar a multiplicação do reflexo no espelho. Entre reflexo no espelho e objeto capturado diretamente pela câmera não há distinção nítida, posto que não sabemos onde estamos, de que lado está nosso olhocâmera. Graças à manipulação da cena em sua edição, nos é
apresentado então o vislumbre de um atravessamento do espelho. A “face” se põe pelo avesso de maneira a dar origem a um insuspeitável mal que é a própria vida, seu fulcro no mundo revirado que nos esforçamos em manter encoberto. Um elemento enigmático da cena, em preto, apenas passa, andando para frente ou para trás, enquanto sopra uma palavra estrangeira (“evil”, provavelmente) – como para marcar a importância do aparecimento de algo obscuro e inapreensível, quase demoníaco, cuja sombra fugaz traça no espelho uma brecha, marcando nele uma sutil mas indelével rachadura. “O que sustenta a imagem”, dizia Lacan no Seminário 20, “é um resto.”[113] O backside existe: a imagem traz seu inquietante avesso que nos tira o tapete e nos faz ir além da completude ilusória de nossa imagem no espelho. Ura Aru nos força a abrir os olhos, se consideramos que, como dizia André Breton, “o olho não está aberto enquanto se limita ao papel passivo de espelho”.[114] Os palíndromos demonstram de forma privilegiada a possibilidade de a língua se revirar e mostrar sua literalidade, seu caráter de letra capaz de romper o sentido. A função da letra aparece então como apelo ao corpo, mas não para simplesmente afirmá-lo e defendê-lo, e sim para denunciar sua dimensão imagética, especular, e então evocar sua materialidade sensível, sua presença erótica. Dispositivos artísticos podem assim suscitar o gozo provocado pela escrita, pelas marcas (do outro) no meu corpo – não o corpo que vejo no espelho, domesticado, mas aquele que aparece, em rébus e sensações, no sonho. A letra faz entrever o impossível mundo do espelho revirado – o que podemos chamar de avesso do imaginário . A LETRA E A UTOPIA DO SUJEITO Graças à operação de literalização
da palavra e da imagem, temos em Ura Aru um palimpsesto móvel em que, entre os traços que vão e vêm, desenhando um espaço improvável, se movimenta o sujeito. Talvez este vídeo consiga o
desafio de tornar visível o “bloco mágico”, brinquedo que Freud toma como modelo de nosso aparelho psíquico. No mercado até hoje, com pequenas modificações, ele consiste em uma superfície na qual se pode escrever sem tinta, com um instrumento pontiagudo, graças ao contato que ele promove entre a base de cera e uma camada de celuloide. Uma vez descoladas essas camadas, a inscrição desaparece da superfície, apesar de permanecer sulcada na cera. Para Freud, também a psique seria dividida em diversas camadas por entre as quais pulsam traços que se depositam e podem aparecer e desaparecer, numa dança complexa e descontínua que é a matriz de nosso conceito de tempo.[115] Talvez o jogo de Gary Hill com palíndromos descole camadas e explore o “bloco” que somos nós mesmos. O sujeito pulsa, descontínuo. Ele é temporal – não cronológico, o que lhe daria um sentido evolutivo, mas repetitivo, irrompendo de forma arrítmica. O sujeito é um efeito, consequência de uma escrita espaço-temporal, que se dá só depois – na temporalidade de que trata a psicanálise, aquela que é própria ao inconsciente. Tal efeito de sujeito é convocado pela letra. “ Litura pura, é o literal”, diz Lacan. “Produzi-la é reproduzir esta metade sem par da qual subsiste o sujeito.”[116] O sujeito não se apoia no par, espelhado. Ele é capenga, se sustenta em nada mais que um traço pela metade, desprovido de reversibilidade. Os palíndromos de Hill refazem, pela duplicação, o corte que é uma virada: do espelho para o real que não se deixa ver, que não se deixa significar. “Entre centro e ausência, entre saber e gozo, há litoral que só vira literal quando, essa virada, vocês podem tomá-la, a mesma, a todo instante. É somente a partir daí que podem tomar-se pelo agente que a sustenta.” [117] É nessa virada, vertiginosa, que surge o sujeito, em um momento de gozo que a arte explora. A arte veicula este “um pouco demais” que afeta a língua, especialmente a língua aponesa, como nota Lacan.[118] Se o inconsciente se estrutura como uma linguagem – como diz
o psicanalista –, o sujeito não é linguagem, nem toma na linguagem seu lugar fixo, sua morada. Antes, a letra assinala a materialidade da língua, o ponto em que a linguagem “toma corpo” – pois convoca nosso corpo a comparecer no domínio da representação de maneira a perturbá-lo, acentuando as lacunas e os limites da significação. Abrindo o caminho para uma fulguração do sujeito, nas brechas onde se pode fazer a poesia, a arte. O sujeito é sem lugar, entre linguagem e imagem. Ele surge no instante de quebra do lugar espacial e semântico que vimos em obra nos trabalhos de Gary Hill. Ele é quase distópico, não fosse por apontar um lugar possível, no futuro, mas que só retroativamente se pode assinalar. Há, na afetação da linguagem e da imagem pela letra, um envio ao futuro, porque se trata aí do apelo à potencialidade transformadora do sujeito, a se realizar apenas retroativamente, lançando-o em um devir imprevisível. Utopia, em sua etimologia grega ou-(prefixo de negação) tópos, é um lugar que se define negativamente. Mais do que a promessa ou a esperança de um lugar ideal, saturado imaginariamente, a utopia do sujeito é um não lugar , é uma aventura para longe da “casa” de que o eu é ilusoriamente o senhor. Utopia móvel, perpétua travessia.
PARTE DOIS
SUBLIMAÇÃO, ESPAÇO E FANTASIA
SUBLIMAÇÃO, PARANGOLÉ E CULTURA Sublime é o ponto mais elevado do que está embaixo. ACQUES LACAN
questão da criação artística aparece na teoria freudiana bastante cedo, e já em 1907 configura uma torção fundamental, no texto “O poeta e o fantasiar”.[119] A Dichtung , a criação ficcional ou poética, não é tanto um objeto a ser analisado quanto o modelo sobre o qual Freud se ampara para conceber a fantasia como produção psíquica constituinte do sujeito. O fantasiar faria de cada um de nós um poeta, um artista. A sublimação se articula a esse trabalho ressaltando sua dimensão pulsional ao indicar a possibilidade de substituir o objetivo sexual por outro, eventualmente mais valorizado socialmente. Como o objeto originário da pulsão foi inexoravelmente perdido, a libido é extremamente plástica e pode investir objetos variados e assumir metas diversas, sem nunca se satisfazer inteiramente, mas sempre relançando a deriva que chamamos desejo. Mesmo que Freud ligue por vezes a sublimação à criação artística, podemos dizer que esse destino pulsional indica algo muito mais geral e fundamental: a articulação do desejo à cultura – ou melhor, a constituição do desejo e do sujeito na cultura, de saída e inexoravelmente. A noção de sublimação não é, portanto, específica à questão da arte. Ao contrário, ela relança a aproximação entre psicanálise e arte no campo alargado da cultura no qual a psicanálise é sempre porta-voz do mal-estar e da crise. Em vez de teorizar sobre a criação artística como diante de um objeto bem delimitado e externo ao seu terreno de direito – aquele da clínica –, a psicanálise, com a arte, recoloca portanto a questão da relação entre sujeito e cultura. E para tratar dessa questão, a própria psicanálise põe-se em crise, aceita subverter-se, performa o descentramento que a funda. Faz-se crítica – vendo na sublimação não tanto uma reconciliação com a sociedade, um respeito a seus “valores”, quanto a transformação permanente de uma realidade cambiante. Pois a sublimação, como demonstra particularmente a produção artística, é capaz de agenciar na cultura efêmeras aparições do sujeito do desejo, convidando a uma constante reinvenção da cultura.
A SUBLIMAÇÃO COMO OPERAÇÃO SIGNIFICANTE É necessário ter
cuidado, portanto, para não cair na falácia de tomar a criação como atribuição de alguém – um eu. Somente no século XIV algumas iluminuras começam a ser assinadas por seus autores, e apenas com o Renascimento o artista será visto como criador, e não mais mero veículo do poder divino graças à intervenção do poder, bem mais terreno, da Igreja. Um eu capaz de criar, e mesmo de ser genial, original em sua criação, é aquele que vai se autonomizando em um mundo que se desencanta, ao longo dos séculos, digamos – simplificando ao extremo –, até a passagem para o século XX. Tal eu criador, senhor da criação, é o oposto daquele sujeito que não é mais senhor em sua própria casa. A arte moderna, que nasce ao mesmo tempo que a psicanálise, à primeira vista parece acentuar a figura do gênio, liberando-o da mímesis, da imitação da realidade. Interessando-se pela arte dos povos ditos primitivos, dos loucos ou das crianças, ou mais radicalmente ainda, principalmente com o surrealismo, buscando uma produção “automática”, ditada pelo inconsciente, os artistas modernos não deixam, porém, de maneira talvez menos evidente, de questionar a ideia de autoria. É Marcel Duchamp com seus ready-mades que, em primeiro lugar, põe em xeque a criação ao fazer da autoria não mais que um gesto – o de equilibrar uma roda de bicicleta num banquinho, por exemplo ( Roda de bicicleta, 1913), ou o de girar um mictório para deixá-lo em posição horizontal ( Fonte, 1917). A autoria torna-se não mais que um certo rearranjo de objetos cotidianos, e a produção artística rompe com a posição central do eu criador. A partir do final da década de 1950, tal questionamento da criação e da autoria se dissemina e se radicaliza na arte contemporânea. O campo da criação artística põe-se então a cumprir nele mesmo uma tarefa crítica no sentido forte do termo: ele põe em crise a própria noção de criação, trazendo para seu bojo questões sobre o sujeito, a representação e o objeto. Em 1957, Tony Smith manda fazer, por telefone, um cubo preto de
aproximadamente 1,80 metro de lado ( Die). Em 1960, no mesmo ano em que Lacan profere seu Seminário sobre a sublimação, Ben Vautier, artista ligado ao grupo Fluxus, que dissolvia a autoria entre seus diversos membros, concebe sua Mystery Box. Essa caixa poderia ser reproduzida indefinidamente e traz a inscrição: “Não abra. Esta caixa perde todo seu valor e significação estética como obra de arte (mistério) no instante em que é aberta”. Ela deveria conter poeira em seu interior. Para versões posteriores do mesmo trabalho, Georges Maciunas pensa em preeenchê-la com cascas de ovo, cascas de laranja ou saquinhos de chá usados, e comenta, com ironia, que isso seria muito prático, pois assim eles poderiam livrar-se do lixo e ainda ganhar dinheiro com ele.No início dos anos 1960, Andy Warhol faz quadros que são reproduções serigráficas de fotos publicadas em jornais, enquanto Lygia Clark chega à radicalidade de seu Caminhando: a obra de arte não é mais do que o gesto, desdobrado no tempo, de cortar no sentido longitudinal uma fita de Moebius de papel com uma tesoura. Em 1966, Nelson Leirner envia para o Salão de Brasília um porco empalhado. Em 1970, Antonio Manuel apresenta seu corpo nu como obra na abertura do Salão de rte Moderna no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro. Nessa profusão de práticas díspares, das quais trazemos apenas alguns exemplos dispersos, como conceber uma noção unificada de criação? Não se trata mais propriamente de um objeto – a obra –, feito por um sujeito – o artista – sob o modo da “criação” de algo que antes não existia. A arte põe-se a criticar a si mesma, questionando vigorosamente a posição do sujeito, do objeto e da representação. Ao mesmo tempo que surgia a arte contemporânea, Lacan propunha em seu Seminário que a criação fosse concebida como exnihilo. À primeira vista, essa fórmula pareceria indicar a produção autônoma de uma obra, à maneira de Deus criando o Universo a partir “do nada”. Mas, se a criação divina confirma a onipotência de seu agente, a criação lacaniana, ao contrário, põe radicalmente em
questão a posição do sujeito de tal ato. O uso que faz Lacan da expressão latina indica a prevalência do significante que, sempre como “de fora”, “do nada”, ao se criar introduz no mundo natural a dimensão do vazio e do cheio. É o significante que cria, nessa medida, o nada. Referindo-se à produção de um vaso de argila como significante, em conversa com textos de Heidegger, Lacan afirma que esse nada de particular que o caracteriza em sua função significante é, em sua forma encarnada, o que caracteriza como tal o vaso. É o vazio que ele cria, introduzindo com isso a própria perspectiva de preenchê-lo. O vazio e o cheio são pelo vaso introduzidos em um mundo que, por si mesmo, não conhece nada disso. É a partir desse significante modelado que é o vaso que o vazio e o cheio entram como tais no mundo, nem mais nem menos, e com o mesmo sentido.[120] O acento aí não é dado ao objeto criado, nem ao seu criador, mas a uma operação significante – a de criação do próprio significante, ou seja, sua incidência capaz de gerar, no mundo “natural”, a cultura (e, no mesmo golpe, o sujeito como efeito dessa operação). Tal operação introduz num objeto – ou num ato – um “nada de particular” capaz de comemorar ou “re-suscitar” em nós a origem da cultura. Não se trata necessariamente, portanto, de fazer surgir um objeto tal que jamais tenha antes existido, mas de um agenciamento significante que pode ser como uma bricolagem, uma sutil operação sobre objetos que já estão lá, fora de nós – objetos quaisquer como as caixinhas de fósforo que Lacan encontra durante a guerra na casa de Jacques Prévert (elas eram a única coisa que restava, em tempos de guerra). A tais objetos a dignidade da Coisa perdida só confere um brilho problemático (posto que a Coisa, como diz Lacan, “literalmente não é: ela se distingue como ausente, estrangeira”).[121] A Coisa só se apresenta como fora e em
erda. Em vez de senhor da criação, capaz de produzir a Coisa, o eu se descentra, diante dessa familiar estranheza. Poeira, restos de comida ou o corpo, algo se apresenta de modo a desmontar a pretensa dignidade do objeto primordial. Somos, nessa apresentação da Coisa, tomados e subvertidos como por um lance de dados – jogo simbólico que produz alguma poesia. Nesse golpe, e não antes dele, pode surgir algum sujeito, efemeramente, como seu produto. A miragem da Dignidade da Coisa, assim como a d’O Belo, desfaz-se na própria obra – com minúsculas, pois não é mais possível aí A Obra (assim como não é mais possível O Sujeito, mas apenas o sujeito barrado, dividido, castrado). A ESTRANHA ESTÉTICA FREUDIANA É dessa mesma fratura no Eu pela
qual o sujeito é remetido à Coisa que se trata no único conceito “estético” de Freud: “O Estranho” ( Das Unheimliche). O estranho, Unheimliche, é familiar, heimlich: o íntimo é êxtimo. Há nele uma subversão da ideia de reconhecimento de si em si mesmo e no mundo das representações. Quebra-se o espelho do eu, secreta base da mímesis vigente desde o Renascimento como parâmetro maior das artes. Quando Freud afirma se interessar por um ramo remoto e negligenciado da estética, o campo do estranho, ele está propondo uma espécie de antiestética. A estética normalmente não interessaria ao psicanalista, diz ele, por dizer respeito a impulsos emocionais refreados, “inibidos em seus objetivos” e dependentes de fatores variados.[122] Mas a estética do estranho é justamente o oposto desta idílica e engessada “teoria da beleza”: em lugar de amortecer e esconder o sexual, ela traz à luz o que deveria ter permanecido escondido. O eu representa a si próprio, duplicando-se, e o duplo, de garantia de imortalidade, revira-se em “estranho anunciador da morte”.[123] Algo retorna, repetidamente, em traços (ir)reconhecíveis do que nos é mais familiar. Isso pode ser um pouco inquietante, quase assustador, mas também aponta para uma reviravolta poética na situação do eu, dando notícia do sujeito. E ecoando a vigorosa
subversão da imitação que os artistas modernos realizaram em prol de uma aventura de linhas, cores, do espaço, da linguagem. E do sujeito. É tornado estranho (ou extranho), na imagem, no objeto, na linguagem, que o sujeito pode surgir na cultura. Temos em algumas das pinturas rupestres da gruta de Chauvet um traço desse gesto constitutivo ao mesmo tempo da cultura e do sujeito. O homem pré-histórico pousou a mão sobre a parede de pedra e soprou sobre ela os pigmentos que tinha em sua boca. Ele inscreveu assim sua imagem, em negativo, ao retirar sua mão. “Retrato” deriva de traho, que em latim significa arrastar, levar consigo, cativar, mas também retirar, extrair. É ao se retirar, atuando um estranhamento em relação a si mesmo, que o sujeito pode aparecer como vestígio – e traço que nos é legado por esses tempos imemoriais. Essa imagem “dá aos olhos que a produzem um signo in absentia”, nota finamente a filósofa Marie-José Mondzain. E tal signo “é o primeiro autorretrato, não especular”.[124] Esse “gesto fundador e singular”, que nossas crianças não deixam de repetir em seus primeiros anos de pré-escola, faz da imagem o que a autora belamente chama de “imagem falante”. Ela conclui: “As imagens aqui falam não para dizer alguma coisa, mas para designar aquele por quem elas, de ora em diante, serão faladas”.[125] Um autorretrato não especular é o inverso daquela imagem do eu conformadora, ortopédica e alienante que Lacan tematiza em seu famoso estádio do espelho. Em vez de imagem total, gestáltica, ele não seria mais do que um vestígio da presença do corpo. Ao fazer do vestígio um traço, ele torna-se uma inscrição fundante que se realiza graças a um gesto de alternância entre presença e ausência, à maneira do fort-da do netinho de Freud. Na brincadeira que substitui a mãe por um objeto qualquer, o menino cumpre uma extraordinária realização cultural, renunciando à presença de seu objeto primeiro. O carretel se presta de maneira especial a essa tarefa por ser um artefato que permite uma manipulação também
especial: ele possui um apêndice, o fio que pode ser empunhado de maneira a gerar o gesto que o retira da vista para, em seguida, recolocá-lo em cena. Essa brincadeira encena, com o objeto, aquilo que o menino realizará consigo próprio alguns dias mais tarde: sua própria desaparição no espelho de parede, graças ao gesto corporal de agachar-se para fora do escopo do mesmo. “Bebê óóó” (“fort”, longe), comunicará então o menino à mãe, quando esta retorna. A dialética da ausência / presença na imagem faz falar . Ou melhor, como dizia Mondzain, a imagem designa aquele por quem ela será falada. A imagem aparece como ponto de partida de um endereçamento para o outro que, uma vez reconhecido (ao se ouvir o som óó como sendo a palavra “fort”, por exemplo), ingressa no campo do sentido e da comunicação. Retomar essa cena para evocar sua marca e, com ela, o surgimento de uma outra cena – aquela do sujeito – é uma aspiração central da arte de nosso tempo, desde que um Kasimir Malevich, por exemplo, faz do quadro nada além de um quadrado negro sobre fundo branco (Quadrângulo, 1915), vendo aí a “primeira forma de expressão do sentimento não objetivo”. [126] Ao retirar a pintura da lógica do espelho, da imitação da realidade, Malevich opera uma espécie de inversão do imaginário, rompendo-o de maneira similar ao menino do fort-da ao se subtrair à imagem especular. O que o artista denomina “suprematismo” visa esvaziar o mundo dos objetos miméticos, da figuração, em prol de algo superior, a “representação não objetiva”. “O quadrado do suprematista e as formas que dele se originam devem ser equiparados aos primeiros traços (sinais) do homem primitivo que, em suas combinações, representavam não ornamentos, mas a sensação de ritmo ”, afirma Malevich.[127] Ritmo, alternância do sujeito. Diante do quadrado negro, ou do quadrado branco que quase não se distingue do fundo também branco na tela Branco sobre branco, de 1917, temos uma espécie de antiespelho que nos convida ao descentramento. Um artista norte-americano como Barnett
Newman, com seu expressionismo abstrato cheio de campos de cor, parece tocar em algo próximo ao que Mondzain indica com a mão em negativo da gruta de Chauvet, quando afirma, em 1947, que “sem dúvida o primeiro homem era um artista”. Ele continua: “A primeira expressão do homem, como seu primeiro sonho, foi estética. A fala foi uma explosão poética, e não uma exigência da comunicação”.[128] Mais do que um texto, mais do que uma linguagem pictórica, talvez o sonho seja, primordialmente, cor – largos campos de cor como os do pintor expressionista abstrato. A fala, antes de ser linguagem, talvez seja música, transformando o grito de dor em sinal desejante do sujeito. Newman confirma: “O primeiro grito do homem foi uma canção”.[129] Freud aponta que a ficção oferece mais meios para a evocação do campo do estranho do que a “vida real”.[130] Assim como o eu se constitui numa linha de ficção, sua subversão depende de dispositivos ficcionais(e / ou espaciais: como já dizia Jentsch, o autor que serve de base a Freud para sua reflexão sobre o estranho, o Unheimliche tem a ver com uma “falta de orientação”).[131] Se, como afirma Lacan, “a fantasia é a obra de arte de uso interno do sujeito”, [132] é na medida em que a fantasia aliena o sujeito, mas o fantasiar também pode atuar na contracorrente e levar a uma desestabilização dessa cena em reviramentos parciais que põem o eu em movimento e incitam a algumas pulsações do sujeito. Nas artes visuais como na literatura, o campo da cultura oferece pontos de enganchamento e reviramento da fantasia. A PSICANÁLISE, CRÍTICA DA CULTURA A psicanálise já nasce como
uma crítica cultural. A civilização é vista por Freud como nociva à saúde mental, por se basear em injunções morais que imporiam ao homem uma severa repressão sexual. Em 1908, ele afirma que, apesar de não ser atribuição do psicanalista propor reformas na sociedade, suas considerações a respeito dos efeitos nocivos da “moral sexual civilizada” poderiam servir como defesa da
necessidade de mudanças. A vulgarização da teoria psicanalítica trouxe, sem dúvida, contribuições para a revolução dos costumes realizada no século XX. Em geral, os psicanalistas seguiram, contudo, sem propor reformas na sociedade – apesar de Freud não ter se furtado a exprimir publicamente suas opiniões sobre o antissemitismo e a guerra, por exemplo. Em um espectro mais amplo, podemos considerar o próprio nascimento da psicanálise como produto de uma crise na cultura, e ver em sua trajetória até hoje uma atuação problematizadora do homem e da civilizacão. A psicanálise surge no amplo contexto de crítica da representação da realidade que, desde o Renascimento (e com nuances que não cabe aqui destrinchar), se sustentava em uma racionalidade central e sem falhas. Em fins do século XIX, o equilíbrio entre o sujeito e a representação mostra-se em crise em variados campos da produção cultural, especialmente na literatura e nas artes plásticas. O conceito psicanalítico de inconsciente vem, nesse panorama, denunciar o descentramento do eu e, ao mesmo tempo, a falta de garantias da representação. Ele gerará, nessa dupla empreitada, importantes incidências na cultura. Especialmente nos anos 1920, como sabemos, Freud debruça-se sobre a civilização e delineia sua concepção da formação das massas, fornecendo os fundamentos de uma reflexão política imbricada à subjetividade e abrindo caminho para a teoria crítica da sociedade forjada décadas mais tarde pela chamada Escola de Frankfurt. De posse desses fundamentos, à psicanálise pareceria se abrir a possibilidade de um engajamento social efetivo, para além da denúncia dos efeitos deletérios da excessiva renúncia pulsional exigida socialmente. De maneira análoga ao trabalho clínico analítico, que dissolve sintomas desfazendo idealizações e desmontando identificações, se poderia conceber que a psicanálise teria na cultura o papel de esgarçar as ilusões e expor o mal-estar constitutivo e transformador. Cabe-nos refletir, hoje, sobre em que medida tal papel foi e é efetivamente exercido pelos psicanalistas.
Seja como for, a imbricação constitutiva entre subjetividade e cultura é essencial à psicanálise, e deve ser levada a sério em sua produção teórica. Essa disciplina não forma com o sujeito um campo totalizante que lhe permita se restringir à clínica analítica e às teorias psicanalíticas. Não é do próprio “discurso do inconsciente que iremos recolher a teoria que dele dê conta”, como nota Lacan. [133] Para falar do sujeito, a psicanálise deve obrigatoriamente se debruçar sobre o que lhe é mais êxtimo, no neologismo forjado pelo psicanalista. É impossível recorrer a uma referência fixa para a apreensão do inconsciente, pois ele não é seu próprio centro, mas remete a um campo Outro. Buscar saber d’ Isso, portanto, nos tira o tapete, nos subverte. Pois o sujeito se constitui em relação a uma “exterioridade íntima”.[134] A Coisa psicanalítica está, portanto, na cultura, e devemos aí buscá-la, para ter notícias do sujeito. Essa seria a exigência metodológica fundamental a que a psicanálise deve se conformar para ser fiel ao seu próprio objeto, o sujeito do inconsciente (ou melhor, o sujeito / a cultura). A psicanálise deve buscar descentrar-se, é imperioso que ela assuma um movimento de reviramento, de subversão, de mal-estar na cultura. Em sua potência crítica, a psicanálise pode acompanhar e acentuar a crise que conforma sujeito e cultura, de modo a assumir um papel na contínua transformação de ambos. Além disso, talvez a psicanálise sempre esteja em uma situação crítica (como se diz de um doente em estado grave), e deva aceitar “re-colocar-se” a cada momento em crise, no confronto com a cultura. Segundo Roland Barthes, a crítica é nada mais, nada menos que a “construção do inteligível do nosso tempo”.[135] A psicanálise pode e deve participar, legitimamente, de tal construção. Nessa empreitada a se realizar em companhia de outras disciplinas nas ciências humanas, sua particularidade talvez resida na tentativa de dar voz ao que parece resistir à inteligibilidade. Resistir a tornar muito rapidamente inteligível “nosso tempo” para fazer ressoar o inatual, o tempo da catástrofe humana que as teorias tendem a logo
encobrir. Nessa resistência, ela pode se associar ao campo da arte, que também parece particularmente afeito a apresentar o que foge à compreensão imediata e convida a uma reflexão mais ampla e sensível. MAL-ESTAR E PARANGOLÉ Entre sujeito e cultura Freud concebe um
mal-estar fundamental, como já lembramos. Na expressão “malestar” há estar : na cultura o sujeito está, ele que nunca é de maneira reificada e constante. Na cultura ele surge, o sujeito do inconsciente, o efêmero testemunho da subversão do eu – este, ilusoriamente fixo, alienado nas formações imaginárias, ou seja, ideológicas, de que se compõe o campo social. Isso nos permite pensar a criação como re-volta nesse sentido forte – e mais fundamental do que o caráter explicitamente político de muitas obras de arte do nosso tempo. Como diz Lacan comentando Sade, a obra de arte pode ser “uma experiência que, por seu processo, arranca o sujeito de suas amarras psicossociais” – e nos impede “toda apreciação psicossocial da sublimação de que se trata”.[136] A arte contemporânea, de fato, agencia intervenções críticas na cultura, convidando a experiências de subversão – e de reflexão sobre o sujeito e o mundo, entrecruzando-se com a psicanálise e a filosofia, entre outros campos do saber. Para se posicionar como crítica da civilização e fazer jus à torção necessária para que o sujeito surja na cultura – para que ele aí possa, em algum lugar, mal-estar –, a psicanálise deve se assumir como ensaística. É na categoria do ensaio que uma teoria assume com mais vigor suas próprias limitações, seu caráter de experimentação sempre fragmentária, delimitando-se radicalmente da ilusão científica de forjar um discurso que veicule a própria realidade. O ensaio é o gênero fiel à concepção fragmentada da realidade, e por isso nele o mal-estar pode ser posto em ação, ou seja, posto a falar, a teorizar a própria incômoda torção na qual se configuram sujeito e cultura. Nós mesmos devemos aceitar nos
colocarmos nesse balanço, ou melhor, nessa verdadeira subversão, para refletir sobre ela. O ensaísta é aquele que sai do centro e arrisca se perder. Na sua própria (ou melhor, imprópria) criação teórica ele performa a crítica à noção de sujeito como origem e centro da criação – ou, como afirma Adorno, a forma do ensaio “acompanha o pensamento crítico de que o homem não é nenhum criador”.[137] Que método deveria então adotar uma crítica psicanalítica? “Contrariamente ao que se crê”, diz Benjamin em 1922, “a tarefa da grande crítica não é nem de ensinar através de explanação histórica, nem formar o espírito por meio da comparação, mas de chegar ao conhecimento se abismando na obra.”[138] Trata-se de se lançar na experiência do Outro, da extimidade. Trata-se de mergulhar na obra como em um abismo (o nosso abismo). Nessa queda, a teoria se põe em atrito e pode sofrer alguns golpes. Ela deve se suspender e surpreender, se deixar ficar abismada com o que a obra lhe traz. Hélio Oiticica busca justamente o ato de olhar para um abismo em seu Mergulho do corpo (Bólide caixa 22, apropriação, poema caixa 4, de 1967). Uma caixa-d’água feita de concreto: o concreto fica aparente, cinza, sem pintura, cheio d’água mas não completamente, quase até em cima: no fundo você pode ver através da água, cortadas em letras de borracha, as palavras mergulho do corpo. A sensação é do ato de olhar para um abismo: talvez a tentação de mergulhar, aqui sintetizada pelas palavras poéticas.[139] Temos aí a concretude de uma simples caixa-d’água – objeto talvez emblemático do trabalho civilizatório, e que não deixa de ser um vaso que pode estar vazio ou ser preenchido, exatamente como aquele tratado por Lacan como modelo de sublimação. O vaso é o objeto capaz de indicar com certeza, em escavações arqueológicas,
a presença longínqua de uma cultura. O objeto capaz de preencher essa função na atualidade talvez seja algo como uma feia caixad’água industrial. Nessa coisa qualquer – resto da civilização e, contudo, ou por isso mesmo, tão radicalmente humana! – o corpo é evocado para, em uma vertigem, convidar ao mergulho de tornar-se outra coisa. Como diz Lacan em seu Seminário sobre a sublimação, o modo de operar da arte consistiria “sempre em inverter a operação ilusória, para retornar para o fim primeiro, que é projetar uma realidade que não é aquela do objeto representado”.[140] Não é propriamente a realidade do objeto que está aí em jogo, mas sim o real do sujeito. Nenhum significante nomeia tão bem a “modelagem do significante”, o mergulho do corpo e a inversão da ilusão implicadas na sublimação quanto o Parangolé de Oiticica. O termo vem da gíria dos morros na época e denota o surgimento de uma situação inesperada entre pessoas, agitação, entusiasmo repentino, alegria. Algo acontece entre pessoas, graças a um objeto que se propõe como “transobjeto”, busca da própria “estrutura do objeto” que se dá entre sujeito e cultura. [141] Tal objeto encarna a própria imbricação entre sujeito e cultura. Os parangolés são estandartes, capas ou túnicas, muitas vezes compostos de planos sobrepostos de tecidos diversos, eventualmente revelando a inscrição de palavras ou frases. São objetos ou vestimentas que seguramos, em continuidade com o corpo, ou vestimos –– e que nos convidam a dançar, experimentando a vertigem de nosso mal-estar na cultura. Mas parangolé é também uma denominação de Oiticica para sua reflexão artística como um todo – trata-se de uma proposição geral, e não apenas de certo conjunto de objetos característicos. O Parangolé P15 Capa 11, de 1967, traz a inscrição “incorporo a revolta”. Os Parangolés nos transformam, estejamos dentro (vestindo, dançando) ou fora deles (olhando e, através do outro, também em movimento, de certa maneira). Aliás, a maioria desses “transobjetos”, para usar o termo de Hélio, tem a estrutura da fita
de Moebius, a fita unilateral que é dentro-fora, materializando o êxtimo, graças a uma torção de sua superfície. Essa mesma fita que Lygia Clark havia empregado, e que Lacan começara, pouco antes, a utilizar em seu Seminário como apoio para as elaborações sobre a estrutura do sujeito. O Parangolé é um acontecimento que põe em ato, através de um objeto, a imbricação constitutiva do sujeito na cultura. Ele pode, então, transtornar um pouco, se não transformar , esse ponto agudo em que o sujeito é cultura. Como diz ainda Hélio, falando do “participador” (e não mais “espectador”) do Parangolé , há uma “violação do seu estar como indivíduo no mundo, diferenciado e ao mesmo tempo ‘coletivo’, para o de ‘participar’ como centro motor, núcleo, mas não só ‘motor’ como principalmente ‘simbólico’, dentro da estrutura-obra”.[142] Se o indivíduo está no mundo – e nele está ao mesmo tempo “diferenciado” e “coletivo”, Oiticica busca uma “violação” desse estar, capaz de transformar o indivíduo em outra coisa: em “motor simbólico”. Como no ato analítico segundo Lacan, há aí um circuito que só se completa com o outro. O Parangolé nomeia tal torção que se dá com o outro – e toma sua origem no Outro, pois já é apropriação da palavra e do ato de um outro anônimo. Em sua última entrevista, apenas uma semana antes de sua morte em 1980, o artista conta, sobre o Parangolé : Isso eu descobri na rua, essa palavra mágica. […] Um dia eu estava no ônibus e na praça da Bandeira havia um mendigo que fez assim uma espécie de coisa mais linda do mundo: uma espécie de construção. No dia seguinte já havia desaparecido. Eram quatro postes, estacas de madeira de uns dois metros de altura, que ele fez como se fossem vértices de retângulo no chão. Era um terreno baldio, com um matinho e tinha essa clareira que o cara estacou e botou as paredes feitas de fio de barbante de cima a baixo. Bem feitíssimo. E havia um pedaço de aniagem
pregado num desses barbantes, que dizia: “aqui é…” e a única coisa que eu entendi, que estava escrito era a palavra “parangolé”. Aí eu disse: “É essa a palavra”.[143] ssim, a formulação do Parangolé , segundo o próprio Hélio, teria sido determinada por “experiências coletivas anônimas”.[144] O trabalho do mendigo descrito pelo artista ressoa claramente em diversas obras do artista, especialmente nas construções que ele chamava “bólides” e “penetráveis”. O significante “modelado”, assim como o objeto “criado”, vêm do Outro, nos ensina Oiticica. Ele não é criado por alguém, mas radicalmente anônimo, comum, contrário à autoria – e votado à transmissão. A apropriação a que ele nos convida é transitória, dirigida a um outro, sempre. Apropriação: tornar próprio o que é do outro, para passá-lo adiante e, nessa passagem, tornar-se outro. A arte é, nesse sentido, marcada pela transitoriedade – como já dizia Freud em 1915 no texto “Sobre a transitoriedade”–, mas não apenas no sentido da limitação de sua duração no tempo. Uma obra seria transitória também no sentido de ser um trânsito entre sujeitos. Tal passagem, que poderíamos tomar como capaz de definir a cultura, não é, porém, certeira, imediata e garantida. Ela é precária e adversa – pois, para lembrar o conhecido lema de Oiticica, “da adversidade vivemos”.[145] Nessa trans-missão, o sujeito não apenas está na cultura, mas se apropria de seu mal-estar nela de modo a transformá-la um tanto. Sem a pretensão de nela “existir”, ele opera uma forma crítica de aparecimento – algo como o que Oiticica nomeia “subsisto”: SUBSISTO – a constatação de uma subsistência que se mantém,
subsistência intelectual, poética e criadora que estabelece posições permanentemente críticas, que colocam em questão o próprio problema da criação artística (eu, particularmente, procuro desintegrá-lo, dissecá-lo, desde o início de toda minha evolução).[146]
Em lugar de “eu sou”, logo “eu existo”, a enunciação “subsisto” indica uma existência dividida, precária e oscilante, uma posição em crise – e crítica, fomentadora da crise. Única enunciação, talvez, capaz de definir o sujeito descentrado, subsisto é ela mesma a apropriação de um significante: Oiticica a toma de Colidouescapo, o livro-poema publicado por Augusto de Campos em 1971. Formado de folhas duplas soltas dobradas ao meio, cada uma com uma inscrição (“suscrevo”, “exispero”, “esisto”, “subscontro”, entre outras), esse livro se transforma segundo a manipulação de seu leitor, convidado a redobrar e / ou misturar as folhas à vontade. Formam-se, nessa transliteração reveladora, palavras como “susto”, “excrevo” e “subsisto”. Subsisto indica a possibilidade, no trânsito entre sujeitos e na remodelagem literal da língua, de alguma recriação do sujeito e da cultura.
A FANTASIA E O ESPAÇO: LYGIA CLARK Parece até que se exerce uma verdadeira tentação do espaço. ROGER CAILLOIS
O homem contemporâneo escapa às leis da gravitação espiritual. Ele aprende a flutuar na realidade cósmica como em sua própria realidade interior. Ele se sente tomado pela vertigem. s muletas que o amparavam caem longe de seus braços. Ele se sente como uma criança que deve aprender a equilibrar-se para sobreviver. É a primeira experiência que começa. LYGIA CLARK
Quando Freud afirma que o “eu não é mais senhor em sua própria casa”,[147] tendemos a sublinhar o “não é mais senhor”: o inconsciente retira do eu a pretensão ao domínio e controle de si mesmo. O resto da frase, porém, coloca questões não menos importantes: de que casa se trata, que seria “própria” ao eu, mesmo que ele não seja dela o “senhor”? E por que Freud lança mão de uma referência arquitetônica para falar do eu em sua relação com o inconsciente? Na verdade, desde muito cedo Freud preocupa-se em formalizar uma concepção tópica do aparelho psíquico, não deixando dúvidas sobre a importância do lugar e do espaço em sua teoria. Em “A interpretação dos sonhos”, de 1900, ele já apresentava seu primeiro diagrama do aparelho psíquico, um compartimento com duas extremidades, uma perceptiva e outra motora. Entre a recepção de percepções e a emissão de atividade motora, situavam-se os sistemas que formam o aparelho psíquico: percepção-consciência, inconsciente e pré-consciente. Trata-se sempre de lugares móveis, que não passam de refrações diferenciadas (nas metáforas óticas caras a Freud) ou de escritas múltiplas a atravessar as diferentes instâncias psíquicas. Enquanto isso, o eu flutua no texto do psicanalista de modo a indicar tanto o indivíduo (ainda que dividido) quanto sua imagem, até chegar em 1923, na chamada segunda tópica, a nomear uma instância psíquica diferenciada, o Eu (ou Ego, seguindo a tradução inglesa para das Ich) ao lado do Id (ou Isso, das Es) e do Supereu ou Superego. “O eu é antes de tudo um eu corporal, não é apenas um ser de superfície, mas é a própria projeção de uma superfície”, afirma Freud. [148] Trata-se, portanto, da superfície (o corpo), ou melhor, do que da superfície faz-se imagem, em um certo jogo de transformação no espaço (uma projeção). Isso deveria talvez ser suficiente para nos fazer compreender a importância do uso da topologia por Jacques Lacan, décadas mais tarde, explícita no uso da preposição de lugar no bordão que parafraseia Descartes: “Penso
onde não sou, logo sou onde não penso”.[149] Nos lugares psíquicos delineados por Freud, vemos que se trata de tomar literalmente o espaço na reflexão sobre o sujeito. A insistência de Lacan no fato de que não se trata de metáfora em seu uso de figuras topológicas não pode significar outra coisa: trata-se também, na reflexão psicanalítica sobre o sujeito, do espaço e de sua configuração. Há, nas palavras do psicanalista francês, um “divórcio existencial onde o corpo desmaia na espacialidade”.[150] O divórcio entre corpo e ser é estrutural e leva à necessidade de uma construção que o remedeie, atando o corpo ao espaço com as firmes coordenadas geométricas que permitem a projeção da imagem do corpo no espelho – e o advento de um espaço organizado ilusoriamente segundo as leis da perspectiva que é correlata à posição do sujeito moderno. Não é por acaso que Lacan se interessa tanto pela anamorfose, que põe a perspectiva a serviço de uma certa torção e já coloca em jogo a posição do sujeito. Ao longo de seu ensino, porém, permanece latente a questão da verdadeira subversão do espaço que acompanharia a subversão do sujeito. Essa é a questão central – e no entanto pouco reconhecida pelos analistas – que me parece fornecer o substrato fundamental à topologia lacaniana. De maneira explícita, ela será efetivamente trabalhada e levada às últimas consequências em outro campo de produção cultural ao longo do século XX: a arte moderna e contemporânea. Reconhecendo ser esta uma questão primordial à arte contemporânea, Georges Didi-Huberman afirma que portamos o espaço diretamente na carne. Espaço que não é uma categoria ideal do entendimento, mas o elemento despercebido, fundamental, de todas as nossas experiências sensoriais ou fantasmáticas . […] As imagens – as coisas visuais – são sempre já lugares: elas só aparecem como paradoxos em ato nos quais as coordenadas espaciais se rompem, se abrem a nós e acabam por se abrir em nós, para nos abrir e com isso nos incorporar.[151]
SUBVERSÃO DO ESPAÇO, SUBVERSÃO DO SUJEITO O uso que Lacan
faz da fita de Moebius, fundamental em seu ensino, é o primeiro marco de uma paixão pelos objetos que subvertem a representação comum do espaço, à maneira como o inconsciente freudiano subverte o sujeito. Ao levar em consideração o espaço, a topologia põe o imaginário pelo avesso. Afinal, de que “superfície” se trata, cuja projeção para Freud seria o eu? Trata-se da projeção do corpo, imagem corporal no espelho, em uma primeira resposta. Mas tal “casa” imaginária, o corpo, não tem senhor: revira-se então a imagem e seu referente, e o eu torna-se fita moebiana: superfície unilateral, sem distinção entre dentro e fora e, portanto, sem projeção. Misteriosa figura, que mostra (mostra, não: realiza) o eu como não mais que o trajeto que desliza pela banda, movimento que passa dentro e fora, subvertendo sua distinção – afinal, como formula Lacan, o mais íntimo é êxtimo. A fita de Moebius concretiza a relação entre o sujeito do inconsciente e o objeto qualquer, o objeto decaído que o psicanalista denomina objeto a. A relação entre sujeito e objeto segue certas coordenadas, certos roteiros fundamentais para a vida de cada um, que Freud nomeia “fantasias”. Para Freud, fantasia é uma narrativa ou uma cena que pode ser ou não inconsciente e mostra que nossa constituição depende de nos tornarmos sujeitos de uma ficção fundamental. Lacan propõe uma formalização, o matema da fantasia, que faz desta uma equação entre sujeito (do inconsciente) e o objeto (perdido), na fórmula S/◊a, que se lê “sujeito barrado punção de a”. A punção indica, diz Lacan, “todas as relações, menos a igualdade”;[152] ela marca um circuito pulsional, uma trajetória entre sujeito e objeto. Se introduzíssemos a terceira dimensão nessa inscrição bidimensional que é o símbolo matemático da punção, ela se torceria, talvez, tornando-se fita moebiana. De fato, a fantasia é o precipitado do desejo do Outro que dá lugar ao sujeito como seu objeto, e portanto ela não é
interna nem externa. Ela inscreve o “objeto causa do desejo” do sujeito, e no entanto tem como ponto de fixação o sujeito no lugar de objeto (do Outro). Na fantasia, o sujeito não é mais senhor de seu próprio objeto, eu diria. Não é de estranhar que a representação do espaço seja contígua à questão do sujeito e torne-se legítimo objeto de estudo da psicanálise. A configuração espacial que tomamos por “natural” é profundamente influenciada pela configuração sistematizada das leis da perspectiva que datam do Renascimento, e tem seu organizador fundamental no gérmen do sujeito moderno: o olho central que guia a geometria descritiva. Fixo e autônomo, por trás desse olho ao qual o mundo se dá a ver sem falhas não deixa de se perfilar ainda Deus, garantia suprema da partilha bem organizada entre entes e objetos. A tal estabilidade do sujeito em sua relação com o mundo, capaz de gerar imagens apaziguadoras e fiéis à realidade, opõe-se à posição instável, móvel e angustiante do sujeito que, dividido, barrado, não tem mais “casa” – e faz jogo, na fórmula da fantasia, com um objeto igualmente problematizado, caído, que marca sua separação com o Outro. Entre sujeito barrado e objeto a, não há espelho capaz de construir uma imagem constante, narcísica, mas perfila-se a angústia, pondo em vertigem a imagem. Não há mais garantia suprema de estabilidade entre os termos da representação, mas reconhecimento de um Olhar Outro que, de fora, faz o sujeito tropeçar e, deixando sua posição de senhor magnânime da representação, ser olhado. Outros pensadores constroem na segunda metade do século XX essa crítica do sujeito no olhar. Principalmente Maurice MerleauPonty, que era amigo de Lacan, dizia, já em 1948, que em vez “deste universo racional aberto, por princípio, às empresas do conhecimento e da ação”, “os modernos” nos apresentam “um saber e uma arte difíceis, cheios de reservas e restrições, uma representação do mundo que não exclui fissuras nem lacunas, uma ação que duvida de si mesma e, em todo caso, não se vangloria de
obter o assentimento de todos os homens”.[153] É a arte moderna que permite ao filósofo entrever esse mundo no qual não podemos mais nos situar como em nossa própria casa, e vislumbrar o espaço dessa ação que escapa e duvida de si mesma, ao mesmo tempo que se afirma como ato descentrado, incapaz de garantir uma comunidade, mas sim de instalar um ineliminável mal-estar na civilização. “Alguma coisa no espaço”, afirma Merleau-Ponty em 1960, “escapa a nossas tentativas de sobrevoo.”[154] Não há mais possibilidade de domínio do sujeito sobre um campo visual: algo escapa e obriga-o a se inscrever no espaço. Decaído, ele perde suas plumas – assim como um pássaro deixaria cair suas penas ao pintar, segundo a curiosa suposição de Lacan em seu Seminário xi. Algo cai, se deposita, se (des)materializa como objeto a, ao mesmo tempo que o sujeito se (re)divide. Entre sujeito e objeto não há a simples distância em duas dimensões que a imagem especular permite fixar, mas uma mobilidade correspondente ao surgimento da terceira dimensão. Não é por acaso que Merleau-Ponty toma o elã de sua reflexão da pintura desse grande contemporâneo de Freud que foi Paul Cézanne. Dos contornos ilusórios que definem a priori a imagem, das coordenadas geométricas que predeterminam o espaço mimético, Cézanne passa, com suas pinceladas de pura cor – seus pequenos azuis, seus pequenos marrons, como ele costumava dizer –, a fazer de um quadro algo diferente de um espelho da realidade. Ele faz da pintura o depósito de algo que convoca o sujeito a se reconstituir, dividido, assujeitado a um espaço não mais pacífico, mas vertiginoso, em que ele próprio se arrisca a cair. Disso trata a arte moderna, que surge no mesmo momento que a psicanálise, e tratará a arte contemporânea, desenvolvendo-se em torno de questões que tangenciam pontos essenciais ao pensamento lacaniano. Lacan alinha-se à posição de Mallarmé ao afirmar que “o
moderno desdenha imaginar”,[155] ou de Tristan Tzara ao declarar que “tudo que olhamos é falso”,[156] fazendo a crítica do imaginário logo após ter se tornado seu maior pensador, com a concepção do estádio do espelho. Ou melhor, ao mesmo tempo que se torna o grande teórico do imaginário. Pois já na primeira página de “O estádio do espelho…” Lacan nota que, ao contrário do que acontece com o macaco, o ato de reconhecimento da imagem de si no espelho não se esgota, na criança, com uma imagem controlada e inerte. Ele dá lugar a gestos no espaço real, a uma série de gestos em que ele experimenta ludicamente a relação dos movimentos assumidos da imagem com seu ambiente refletido, e deste complexo virtual com a realidade que ele duplica, ou seja, com seu próprio corpo e com as pessoas, ou até com os objetos, que estão à sua volta. [157] Dessa espécie de fotografia, instantâneo da imagem do corpo que se fixa neste reconhecimento e no qual se precipita o eu, nasce também, portanto, toda a questão da tridimensionalidade na qual se inscreve o gesto na relação com o outro, com o objeto. A imagem recoloca em questão a “realidade”, assim como o fez a fotografia no século XIX, incitando ao questionamento da representação e à violenta crítica à mímesis que inaugura a arte moderna. Há um ato fundamental e singular, de reconhecimento, a que se seguem gestos múltiplos, no divórcio entre corpo e espaço. Da fixidez necessária ao olho para o instante de reconhecimento seguem-se movimentos variados e imprevisíveis (impossíveis de pre ver), atravessando o espelho e marcando a existência de uma presença além (ou aquém) da imagem. Assim, “a imagem parece ser o umbral do mundo visível”, como diz Lacan, porque ela marca dois lados, aquele da virtualidade especular e outro de outra coisa, outro espaço que não aquele, ilusório, do reflexo sobre a superfície bidimensional do espelho.[158]
Daí vem o interesse do psicanalista francês pela “obsessão pelo espaço” que é o mimetismo segundo Roger Caillois, pensador que também apresenta importantes ligações com o círculo surrealista. Como já vimos no primeiro ensaio deste livro, Caillois introduz o gesto, as ações do homem, no seio dos esquemas geométricos que arbitrariamente compõem a concepção (e, portanto, a percepção) clássica de espaço. Com isso, ele promove um verdadeiro rompimento com o esquema perspectivo, fazendo com que o sujeito fixo, olho central que o organizava, saia de repente a perambular. A percepção do espaço é sem dúvida um fenômeno complexo: o espaço é indissoluvelmente percebido e representado. Desse ponto de vista, é um duplo diedro a todo momento mudando de grandeza e de situação: diedro da ação cujo plano horizontal é formado pelo solo e o plano vertical pelo homem mesmo que anda e que em decorrência desse fato forma o diedro consigo mesmo.[159] Tudo se transforma se o homem está caminhando, movendo-se, produzindo seus gestos descentrados. Além disso, na segunda face do duplo diedro, que Caillois chama “diedro da representação”, “o drama se precisa”, pois nele o ser vivo “não é mais a origem das coordenadas”, como era o caso no diedro da percepção. Ele não passa, no “espaço representado”, de um ponto entre outros. Assim, “é desapossado de seu privilégio e, no sentido forte da expressão, não sabe mais onde colocar-se ”.[160] Divorciado do espaço, o sujeito não tem mais casa. Recolocado no interior da geometria que ele antes sustentava como que de fora, em sobrevoo, ele cambaleia e põe o próprio espaço a oscilar. De sujeito magnânime da representação ele se torna assujeitado a ela, objeto para o olhar. Os animais que se mimetizam, para Caillois, não seguem em absoluto nenhuma finalidade – como a de enganar
seus predadores, como se costuma acreditar. O mimetismo é puro luxo, ele se dá como uma captura do sujeito no espaço circundante. Ele mostra, fundamentalmente, que se está de cara assujeitado a um olhar Outro que, de fora, faz do mundo uma cena na qual devemos nos inserir. As chamadas linhas de Nazca foram realizadas no período précolombiano pelo povo de mesmo nome, compondo enormes desenhos cuidadosamente realizados pela extração e limpeza das pedras e do escuro solo do deserto peruano, deixando ver o subsolo mais claro. Naquela época, ninguém podia ver essas figuras geométricas e de animais que hoje podem ser contempladas ao se sobrevoar a área de avião. Puro luxo: elas foram feitas para o Outro Olhar. LYGIA CLARK E O DESPERTAR NO ESPAÇO Deve-se levar a sério a
afirmação de Lacan de que a fantasia é “a obra de arte de uso interno do sujeito”,[161] e concluir que a arte ensina à psicanálise sobre a fantasia. Isso não significa, contudo, que arte e psicanálise se reflitam mutuamente em espelho. Antes, há entre elas arestas, questões que uma coloca à outra desde que as recoloquemos em diálogo. Elas de fato colocam-se em tensão, no amplo campo cultural em que se inscrevem a arte contemporânea e o pensamento lacaniano. Entre os dois campos há pontos de contato variados que, mais do que influências diretas, delineiam um entrecruzamento complexo de questões. Algumas delas, que o pensamento lacaniano compartilha com a arte contemporânea, são: a do objeto arruinado e inimaginável, a do gesto e do ato que recolocam a questão do corpo para além da imagem especular e, ligada a esta última, a do espaço como imprevisível, não mais organizado pelas linhas de força que compunham, na representação clássica, o ilusionismo tridimensional. Essas três questões acompanham, de fato, a configuração do sujeito dividido em sua relação com o objeto. Começando pela
vertente própria a este último, diríamos que se trata do objeto não como símbolo, mas como fato (como dizia John Cage), objeto que não pode ser imaginado e é uma espécie de ruína, objeto oco que é resto da operação de constituição do sujeito no campo do Outro. Gérard Wajcman traz uma grande contribuição a esse respeito quando situa o objeto a no século que seria o século do objeto, tendo como seu umbigo fundamental o Holocausto.[162] Ou melhor, a Shoah, tal como vem nomeá-lo uma obra de arte, o filme de Claude Lanzmann – filme feito de testemunhos e não de imagens disso que é impossível figurar, impossível imaginar, desse extremo terrível de violência que abre uma ferida no meio do século. O objeto distancia-se da imagem para acentuar seu caráter real, lembrando, com Lacan, que o objeto a nos obriga a conceber (e, portanto, até certo ponto, imaginar) algo que problematiza a imagem e nos impõe o desafio de tentar forjar “um outro modo de imaginarização”.[163] Esse outro modo constitui uma espécie de avesso do imaginário. imagem não é apenas aquela forma que organiza o corpo, fixa o eu numa linha de ficção e desfralda a tela sobre a qual uma ilusória realidade virá se apresentar. O homem também “é desfeito segundo sua imagem”, como diz Maurice Blanchot.[164] O campo da visualidade também dá lugar a operações que visam romper a tela / espelho e fazer entrever o objeto – construindo então um espaço difícil de conceber, que não se deixa restringir às coordenadas da projeção imagística. O espaço real. Boa parte da produção contemporânea compartilha o desafio de assim revirar o imaginário, de modo a convocar o sujeito. No vasto e até indeciso terreno dessa produção, destaca-se a reflexão vigorosa de Lygia Clark sobre o ato, que já evocamos em nosso ensaio sobre a performance. Em 1963, apenas um ano após Lacan começar a fazer uso da fita de Moebius em seu Seminário, Lygia põe-se também a utilizar esse objeto topológico. O psicanalista já havia recortado a fita em todo
seu comprimento, seguindo a linha mediana de sua largura, o que surpreendentemente produz uma banda bilateral, para dizer que o sujeito não é mais do que esse corte que inaugura a distinção entre dentro e fora. Ele a define então, como já citamos, como “o suporte estrutural do sujeito como divisível”.[165] Por sua vez, Lygia Clark, em seu Caminhando, de 1963, faz na fita unilateral, com uma tesoura, um corte transversal que não reencontra seu ponto de partida, mas prossegue sempre em uma nova volta, tornando sua largura cada vez mais fina e seu diâmetro cada vez maior, prolongando e expandindo a torção da banda em direção a uma ruptura final – que virá necessariamente, já que a largura da fita não é infinita, mas se retarda no trajeto repetitivo da tesoura sobre o papel. Caminhando é uma verdadeira revolução na obra da artista: ele lhe permite ultrapassar a distinção sujeito / objeto e portanto recusar radicalmente a noção de objeto de arte, em prol de uma primazia do ato. Ao propor o corte transversal da fita como o próprio trabalho artístico, Lygia desmaterializa de forma revolucionária a obra de arte, introduzindo uma sofisticada reflexão artística acerca das relações entre sujeito e objeto – ou seja, em termos psicanalíticos: sobre a fantasia. Caminhante, o sujeito é um “itinerário interior fora de mim”, escreve Lygia em 1965.[166] Isso permite à artista radicalizar sua proposta de participação do outro, do espectador, na configuração do trabalho artístico. Já com seus Bichos, desde 1960 ela convocava o espectador a ser coautor, podendo manipular essas esculturas de alumínio cheias de dobradiças de modo a provocar nelas movimentos. Privilegiava-se o contato “orgânico” entre o homem e o objeto, fazendo da obra o que se dá entre os dois, no gesto de um que gera em resposta movimento do outro. Quando perguntam à artista quantos movimentos o Bicho pode fazer, ela responde: “Eu não sei, você não sabe, mas ele sabe…”. E prossegue: “O Bicho não tem avesso”.[167]
Ao dissolver o objeto em favor do ato, Caminhando radicaliza ainda mais a proposta de participação do outro na obra. Lygia chega a abandonar os termos “obra” e “objeto” de arte em prol do termo “proposição”, acentuando o seu caráter de apelo ao sujeito. De forma articulada a tal convite, o Caminhando desmaterializa o próprio eu, vem colocá-lo em crise, subvertê-lo e assim propor um despertar do sujeito de sua alienação especular. A fala de Lygia é dramática a esse respeito: “Instável no espaço, parece que estou me desagregando”.[168] “Meu corpo me abandona”, diz, ainda, perguntando em seguida: Onde está o Bicho-eu? Eu me torno uma existência abstrata. Afogo-me em verdadeiras profundezas, sem pontos de referência com meu trabalho – que me olha de muito longe, do exterior de mim mesma. “Fui eu quem fiz aquilo?” Perturbação. Delírio de fuga. Estou presa apenas por um fio. Meu corpo me deixou – “caminhando”. Morta? Viva? Sou atingida pelos cheiros, pelas sensações táteis, pelo calor do sol, os sonhos.[169] Trata-se de um sujeito precário, que retoma em ato a fantasia. E opera nela um reviramento: a fantasia deixa de ser uma tela a encobrir o real, para se afirmar como corte que convoca sujeito e objeto a se (re)desprender, ambos subvertidos, descentrados, decaídos. Lygia anuncia então, em 1968, a respeito da obra de Hélio Oiticica assim como de sua própria obra (e, entenda-se, de si mesma), “o precário como novo conceito, a magia do ato na sua imanência e também a negação do objeto que perdeu toda sua carga poética ainda projetada, para se transformar num poço onde a multidão se debruça para se encontrar na sua essência”.[170] A essência está no fundo do poço, onde o eu não mais se projeta como imagem-objeto no espelho d’água de Narciso, mas se põe em vertigem, diante de uma queda iminente. Sobre a obra O dentro é o fora (1963), uma fita de Moebius
modificada em aço inoxidável, Lygia afirma ainda que o sujeito atuante reencontra sua própria precariedade. […] Ele descobre o efêmero por oposição a toda espécie de cristalização. Agora o espaço pertence ao tempo continuamente metamorfoseado pela ação. Sujeito-objeto se identificam essencialmente no ato.[171] Nisso sua operação é radical e talvez diferente da de Lacan. O corte que define o sujeito, para a artista, não se dá em ato uma vez por todas, mas é o próprio desenrolar temporal de sua tentativa, nunca alcançada e, paradoxalmente, desde o início presente. Caminhando põe radicalmente em questão o estatuto do objeto e do sujeito na arte, em prol de nada além de um simples ato se desenrolando no tempo. O objeto quase desaparece, e deixa de ser o complemento fixo, correlativo do sujeito. Mas o ato promove aí uma espécie de coalescência entre objeto e sujeito que desloca um e outro em favor de um espaço definido pelo movimento. Em vez de fazer cair o objeto e pôr em vertigem o sujeito, o ato artístico clarkiano sustenta no tempo a oscilação entre dentro e fora, tornando-a virtualmente sem fim. “O ato de se fazer é tempo”, sentencia Lygia.[172] “O ato de se fazer”: de fato, o sujeito se faz no ato, de maneira que quase o desfaz, o desmaterializa, por assim dizer, destacando-o de sua imagem corporal para lançá-lo na precariedade, em um súbito despertar. Tal despertar é um ato e, no entanto, não tem início nem fim, não se localiza no tempo mas é o tempo: interminável, talvez como todo processo analítico, segundo Freud. Não se captura, em ato, mais do que um lapso perdido de tempo, no qual se dissolve o corpo e o sujeito em prol da fugidia e poética sensação. Quero viver como o ponteiro do relógio mil vezes segue o mesmo roteiro
momento vivo, ele é num ponto A referência do real.[173] Em 1973, Lygia formula a ideia de que a própria vida (a simples vida, o fazer-se tempo) seria uma proposição, o que a faz ficar quase um ano sem realizar nenhum trabalho de arte. Ela nomeia Pensamento mudo isso que “era o simples viver sem fazer nenhuma proposição, era o reaprender, ou por outro lado, havia, através das outras proposições, reaprendido a viver e estava me expressando através da vida!”.[174] REVIRAVOLTAS DA FANTASIA Em contraste com a mera apresentação
do corpo sem uma real problematização do sujeito, as proposições de Lygia Clark trazem o corpo de maneira a, sutil e efemeramente, capturar o sujeito no cerne de sua problemática constituição. As reflexões de Mário Pedrosa e a leitura de Merleau-Ponty, entre outros, exercem sem dúvida um papel importante na construção do pensamento clarkiano, ao lado da presença crescente da psicanálise, que se torna predominante a partir de 1972-74, período durante o qual a artista faz análise com Pierre Fédida em Paris. A complexa relação de Lygia com a psicanálise necessitaria de uma ampla investigação histórica capaz de mapear suas leituras e seus contatos com psicanalistas, no Rio de Janeiro e em Paris. Mas essa influência mescla-se, sem dúvida, a um espírito da época marcado pela valorização do corpo e o aparecimento de práticas de grupo nas práticas terapêuticas e fronteiriças, o que torna impossível delimitá-la com precisão. O que Lygia chama “Fantasmática do corpo” reúne explicitamente o processo terapêutico que ela vive naquele momento e suas propostas poéticas. Em carta de 1974 a Oiticica, ela afirma que está vivendo em sua análise “o costurar do corpo”. No curso que ministra na Sorbonne nesse período, desenvolve com um grupo de alunos proposições como Baba antropofágica e Canibalismo
(ambos de 1973), passando pela “nostalgia do corpo”, que ela define nesse momento como uma fragmentação corporal, para chegar à reconstrução do mesmo como “corpo coletivo”. No conhecido Baba antropofágica, cada participante vai desenrolando a linha de um carretel que tem dentro da boca e depositando-a, cheia de saliva, sobre uma pessoa deitada. Ele inicialmente sentiria que tira um simples fio da boca, mas em seguida lhe viria a “percepção”, segundo Clark, de que seriam as próprias vísceras que ele estaria pondo para fora. “Aliás”, afirma a artista nesse ponto, “é a fantasmática do corpo que me interessa e não o corpo em si”. [175] O mais importante não é a proposição em si, mas o que cada um faz dela como fantasia ou “fantasma” (o termo comumente empregado na psicanálise francesa para a “fantasia” freudiana é “ fantasme”, que vem do vocabulário psiquiátrico). Para Clark, as fantasias são prioritariamente narrativas corporais, de que os escritos da artista nessa época fornecem vários exemplos, no tom do seguinte trecho: “Receber o pênis, retorno ao útero, a vagina que se abre para fora se revirando pelo avesso”.[176] Independentemente dos limites da influência direta da psicanálise, é importante frisar que o apelo clarkiano ao corpo visa menos à presença dele em si do que à sua apresentação como convite a que o sujeito fale de seu corpo – e com seu corpo, de alguma maneira – na arte. A experiência corporal deve, portanto, dar lugar à fala. Assim, no curso ministrado pela artista na Sorbonne, o grupo de alunos vive com a artista e seus objetos relacionais experiências que só “compreenderão no exercício posterior do relato”. Lygia acrescenta ainda, em entrevista concedida em 1974 a Roberto Pontual: “Como me disse Fédida, era o momento de construir com o corpo um espaço para a palavra”. [177] O espaço se constrói com o corpo, para a palavra. O próprio Fédida, comentando a obra de Lygia em entrevista a Suely Rolnik, fala de uma espécie de “comunicação” que seria “um espaço que só se pode construir com a linguagem e plasticamente”.[178] Entre
corpo e palavra, entre o eu e o outro, pode surgir em um átimo o sujeito. Do Pensamento mudo a um ato falado, Lygia desenha um arco invisível que constrói um imprevisível espaço do sujeito, rompendo em definitivo as fronteiras da arte. A dissolução da própria arte empreendida pela artista acompanha o desmonte das categorias de objeto de arte, de artista e de espectador, e se concluirá na radicalidade da proposta “terapêutica” clarkiana: nem o objeto nem o sujeito têm estatuto independente, e portanto não há mais “arte”. Lygia começa, em 1976, a praticar o que ela nomeia Estruturação do self e consiste em sessões individuais em seu apartamento em Copacabana, promovendo uma experiência corporal de seus “clientes” com seus maravilhosos e precários Objetos relacionais : almofadas, sacos cheios de ar ou isopor, pedras, conchas, meias-calças contendo outros objetos etc. O objeto relacional criaria com o corpo, segundo Lygia, “relações através de textura, peso, tamanho, temperatura, sonoridade e movimento”.[179] As sessões eram regulares, com frequência de até três vezes por semana, e boa parte da sessão parece, pelos relatos da artista, ser ocupada com a verbalização de associações a partir das sensações experimentadas. A partir de 1984, Clark vai deixando esse trabalho, até abandoná-lo totalmente pouco antes de morrer, em 1988. Não me parece que ela tenha deixado de ser artista para tornarse efetivamente terapeuta. Lygia levou às últimas consequências seu projeto artístico – e isso, paradoxalmente, obrigava a um total abandono do circuito de arte, da ideia de exposição de objetos de arte para a contemplação e do próprio estatuto de artista. A Estruturação do self concretiza o que ela já constatava na carta a Oiticica de 1974: nas proposições corporais em grupo, a parte mais “interessante” é o “ vécu”, a fala dos participantes após cada experiência, comunicando o que o trabalho suscitou em cada um. lém de ser singular, a “fantasmática” que então se constrói pode se transformar a cada vez que o participante refaz a experiência. “Já
vi que meu trabalho é para ser feito dessa maneira”, prosseguia Lygia, “e não posso me exprimir mais como num espetáculo em que as pessoas nada vivem.” A experiência estética implica uma “fantasmática” própria a cada um, e a proposição artística não pode, portanto, prescindir do testemunho e da elaboração de cada participante. O artista deve escutar a vivência de cada um, e sua própria experiência é por ela transformada: “Assim vou me elaborando através da elaboração do outro”.[180] Clark põe em prática, dessa maneira, não apenas uma mescla entre arte e vida, mas a proposta (uma proposição maior) de que a arte convide o sujeito a se transformar em ato, poeticamente. A experiência implicaria, nesse sentido, momentos nos quais o eu se subverte e retoma suas condições de constituição – de modo poético porém arriscado, carreando alguma angústia, em um certo deleite, uma mescla de prazer e sofrimento a que Lacan chama gozo. Um processo analítico não deixa de agenciar, também, pelos meios que lhe são próprios, um convite dessa ordem. Caminhando nos ensina que, a partir desses momentos de descentramento, abre-se uma trajetória que pode, em ato, construir um espaço: da “casa” do eu o sujeito se desfaria, despertando para uma caminhada errante pela cena da fantasia. Além de efêmera, tal reviravolta é interminável, ela deve sempre se refazer, sua matéria não é mais do que o próprio tempo. “Tenho medo do espaço”, escreve Lygia em 1965, “mas a partir dele me reconstruo.” [181] Tal reconstrução inclui sujeito e objeto em uma reviravolta do espaço. Nela o sujeito se põe em movimento e pode alterar (pelo menos um pouco) sua posição na cena da fantasia. A fantasia é uma espécie de roteiro repetido à exaustão ou cena que parece imutável, mas em análise, na transferência com um dado analista, ela ganha espessura, por assim dizer, distendendo-se em três dimensões – e portanto nela o sujeito pode se pôr a caminhar. E pode dar lugar a um ato, um gesto capaz de quebrar a imagem especular, rompendo as firmes coordenadas da
imagem-muro, em prol de uma imagem-furo que lança o sujeito no espaço real, imprevisível e mutante, que se conjuga ao tempo. “Agora”, dizia Lygia ainda em 1965, “o espaço pertence ao tempo continuamente metamorfoseado pela ação.” [182] Segundo Lacan, um processo analítico levaria à “travessia da fantasia”. Mas isso não deve ser entendido como a possibilidade de o sujeito subitamente atravessar a fantasia em um sentido único, despontando fora dela como quem fura uma onda. Parece-me, antes, que a travessia nomeia a apresentação das narrativas fantasísticas no espaço que se constrói pela fala e com o corpo. Nesse espaço, o sujeito pode, digamos, dar alguns passos e experimentar gestos que retomam e exploram de forma vívida as coordenadas (os fios de baba, talvez) que o ligam ao outro. Em uma de suas últimas notas, Freud toca, pela única vez em seus escritos, na questão do espaço: “O espaço pode ser a projeção da extensão do aparelho psíquico. Nenhuma outra derivação é provável. […] A psique é estendida; nada sabe a respeito”.[183]
CRUZEIRO DO SUL
E O AVESSO DO IMAGINÁRIO É muito impertinente que o real não se conceba senão por ser impróprio. ACQUES LACAN
Cruzeiro do Sul é um cubo de nove milímetros de lado composto de uma seção de pinho e outra de carvalho. Ele alude à mitologia indígena, na qual o atrito entre os dois tipos de madeira para produzir faísca corresponde a uma espécie de ritual de invocação da divindade do fogo. Nesse trabalho de 1969-70, Cildo Meireles ressalta a poética delicadeza da cosmogonia indígena. Há nele algo fundamental, contudo, que não se esgota nessa referência, mas reside na relação desse objeto com o espaço: ele deve ser colocado em uma sala vazia de pelo menos duzentos metros quadrados. Esse cubo é um objeto mínimo que rompe o espaço circundante e o transforma. A sala torna-se enorme, e nossa própria estatura e lugar oscilam. O cubo, tão pequeno, reveste-se de uma dignidade monumental e parece, em um primeiro momento, excluir-nos. Nele não temos a possibilidade de nos reconhecer, ele não nos estende um espelho – não apenas por não ser figurativo, mas, mais fundamentalmente, porque põe em questão a simetria e a homogeneidade ilusória do espaço onde nos encontramos. A despeito de seu tamanho, Cruzeiro do Sul carrega mesmo uma poderosa centelha: ele tem a potência de suspender a organização imaginária do espaço, sua lógica especular, ameaçando revirar essa malha imagética para nos fazer entrever o espaço real. O espectador oscila, perdendo sua ilusória posição central, sua pretensão de ser senhor do espaço e da imagem. Retirado do espelho, ele não tem mais lugar. Com a linha tênue pela qual se unem os dois retângulos de madeira de cores diferentes, Cruzeiro do Sul mostra que um objeto pode materializar a sentença de Lacan segundo a qual “nada é mais compacto que uma falha”.[184] Chamado objeto a, ele nos obriga, para concebê-lo, a “outro modo de imaginarização”.[185] Encontramo-nos habitualmente em uma construção espacial imaginária, graças ao enodamento fornecido por nossa imagem especular. Rompendo a ilusória complementaridade sujeito-objeto e fazendo oscilar tal montagem imaginária, o objeto engataria uma
espécie de reviramento desse campo, por assim dizer. O eu não tem mais lugar. O pequeno bloco mostra-se capaz de sugar as coordenadas do espaço ilusório e homogêneo, e, tornando-se uma espécie de sumidouro, convida o sujeito a atravessá-lo. Com suas ressonâncias celestes, astronômicas e mitológicas, bem como suas alusões históricas ao massacre e à catequização dos índios, Cruzeiro do Sul nos recoloca a questão de qual seria a “casa” do homem. “O homem encontra sua casa”, diz Lacan, “num ponto situado no Outro para além da imagem de que somos feitos. Esse lugar representa a ausência em que estamos.”[186] Lugar de ausência no Outro, lugar entre significantes: localizações sem consistência imaginária. É impossível fazer desse lugar uma residência segura para o sujeito. Para Cildo Meireles, a palavra mais bonita “é lejos porque pressupõe que seu ser está aqui e lá ao mesmo tempo. O lá é uma constatação do ser”.[187] Menos uma constatação do que uma condição do sujeito, lejos: a de nunca estar aqui, em sua casa, mas sempre deslocado, lá. Onde nem se sabe bem, nesta terra de ninguém que é o inconsciente. Estar lá – Wo Es war, soll Ich werden , na proposta de Freud costumeiramente traduzida por “ali onde isso estava, eu devo advir”.[188] Nessa espécie de programa de uma análise, ao mesmo tempo caracterizada por Freud como um “trabalho de cultura”, é curioso que se trate de uma preposição de lugar, wo: onde isso estava, eu devo advir. Indicação de um lugar do qual é impossível determinar a estrita localização, mas onde vem ocorrer uma passagem ou uma substituição de peso: do Es, d’isso, ao Eu, Ich. Lá onde isso estava, eu devo tornar-me. Lá devo tornar-me – as noções de descentramento do eu e subversão do sujeito explicitam aí seu substrato espacial. Em vez de tomá-la como afirmação de um lugar enfim encontrado para o sujeito do inconsciente, devemos ver na frase de Freud a indicação de uma operação que concerne ao espaço tanto quanto ao sujeito, em um complexo imbricamento.
Ou talvez, pensando em Mallarmé, possamos levá-la às últimas consequências para afirmar, sobre o que se passa em uma análise, que “nada terá tido lugar senão o lugar”.[189] UMA BRECHA NO VISÍVEL Como já notamos, em sua reflexão sobre o
sujeito Freud é sempre levado a conceber tópicas do aparelho psíquico, ressaltando sempre que se trata de lugares “virtuais” – e muitas vezes fazendo apelo a modelos óticos para caracterizá-los: microscópios, câmeras fotográficas. O psicanalista não chega, porém, a tomar o próprio espaço como objeto de reflexão. Ele prefere falar de superfície, base de inscrição psíquica. Já em 1901, caracterizando o trabalho do sonho como aquele que fragmenta, desloca, condensa, selecionando o material adequado para se construírem “situações”, Freud acrescentava, enigmaticamente, que esse trabalho seria capaz de criar “novas superfícies”.[190] A superfície desdobra-se em diversos estratos, especialmente quando Freud toma como modelo o bloco mágico, composto de várias camadas de escrita. Nessas superfícies opera a lógica do palimpsesto, no qual as inscrições dos traços mnêmicos são múltiplas e estabelecem entre si uma dinâmica de reinscrição ou retomada. Na inscrição dos traços de memória segundo Freud há, portanto, um jogo entre planos, por entre as sucessivas camadas, no espaço entre elas – implicando, portanto, ainda que de forma rudimentar, uma tridimensionalidade. Já Lacan enxerga sobretudo uma torção da superfície, como na fita de Moebius, no que diz respeito ao sujeito do inconsciente. Trata-se, portanto, de topologia, do estudo da subversão de nosso espaço comum de representação. Na fita de Moebius, como já vimos, não há dentro e fora, não há direito e avesso, não haveria Es e Ich a se substituirem na ocupação de um mesmo lugar. Haveria, entre eles, uma certa travessia, uma torção, uma subversão. Onde estava isso, vem o eu. Onde estava eu, pode vir isso. Heidegger, em conferência sobre a escultura proferida em 1964,
nota que o espaço define-se, desde o pensamento grego, por uma remissão ao corpo. O espaço é a extensio, a dimensão tridimensional onde se movem os corpos. O filósofo busca, porém, caracterizá-lo pelo que lhe seria próprio, desembaraçado da perspectiva corporal. Ele concebe então o espaço como o que “espaça”. Trata-se, então, “de ver como o homem é no espaço. O homem não é no espaço como um corpo. O homem é no espaço, de modo que ele instala o espaço, sempre já instalou espaço”.[191] O homem não está no espaço como um corpo capaz de se localizar em um palco que a ele preexiste. Espaço e homem se instauram, imbricados um ao outro, e tal concepção permite ao filósofo forçar uma brecha no tecido do visível, rompendo a concepção mimética da arte: Quando o artista modela uma cabeça, parece que ele copia apenas a superfície visível; na verdade ele plasma o que é propriamente invisível, a saber, o modo como essa cabeça olha no mundo, como ela detém-se no aberto do espaço no qual ela é solicitada e pelos homens e pelas coisas.[192] Como traçar as linhas de força desse “aberto do espaço”, ou do que preferimos chamar de “avesso do imaginário”? Como caracterizar o “outro modo de imaginarização” de que fala Lacan a respeito do objeto a? Diante dessa questão, podemos renunciar a ir além, reconhecendo no vislumbre do real que aí se dá uma intransponível impossibilidade de simbolização. Ou podemos buscar na topologia as linhas de força do que Lacan chama “trans-espaço”, sublinhando o quanto ele é feito da pura articulação significante, à qual teríamos algum acesso, contudo, graças aos “elementos intuitivos” que esta deixa a nosso alcance.[193] Podemos, ainda, ao lado de trabalhos de arte, tentar ir além desses elementos intuitivos, explorando as estratégias significantes que podem gerar a abertura de tal transespaço. Nessa tentativa, não se trataria de definir ou descobrir de
vez esse avesso do imaginário, o que equivaleria simplesmente a encobri-lo por mais uma construção imaginária, mas de acompanhar algumas de suas desnorteadoras travessias, algumas de suas possíveis travessuras. O ESPAÇAMENTO Die, o cubo que Tony Smith realizou em 1958, tem
seis pés (aproximadamente 1,80 metro) de lado, como vimos no primeiro ensaio deste livro. “Seis pés”, afirma o artista, “sugere que se está morto. Uma caixa de seis pés. Seis pés sob a terra.”[194]Esse marco do surgimento da arte minimalista mostra de forma eloquente o quanto o objeto, por mais que se subtraia da lógica figurativa – ou melhor, quanto mais se subtrai dela, retirando-se da posição de espelho do eu – pode ser um apelo ao sujeito. Especialmente na medida em que o objeto agencia uma configuração espacial que implique e inclua o sujeito, impossibilitando-lhe a apaziguadora posição (egoica) de espectador. Desapossado de sua ilusória posição central e excluído do visível, o sujeito tropeça na rasteira que lhe oferece o espaço tornado moebiano. Duas posições lhe restam, caso essa operação, nunca certeira e completamente previsível, tenha sucesso. A primeira corresponde a aceitar, ao menos por um átimo, perder sua condição de observador ilusoriamente central – o eu chegando quase a aceitar o convite: Die! (Morra!) – e ver-se como ponto entre outros no campo do olhar. Temos aí, nessa reviravolta moebiana, nesse transespaço, um surgimento efêmero do sujeito como efeito. A segunda, sempre possível, recusa tal possibilidade e contrapõe à brecha aí aberta no espaço o campo imaginário de representação ilusória – no qual, a maior parte das vezes, objetos como esse ficam sem lugar, o que pode até gerar uma peremptória negativa de seu caráter artístico. É fundamental, nessa obra de Smith, sua escala humana: seis pés, cerca de 1,80 metro. Impõe-se o objeto em igual medida ao homem, sem porém estender-lhe um espelho, mas afrontando-o no
limite de sua condição. Já o pequeníssimo cubo de Meireles (isso sim é que é minimal art , arte mínima – se o leitor me permite a brincadeira) poderia parecer confirmar a ilusória estatura do eu. Mas Cruzeiro do Sul escancara e leva às últimas consequências o que está implícito no cubo de Smith: sua transformação do espaço visando o sujeito. O pequeno objeto de Cildo espaça, como diria Heidegger. E diante dele devemos ceder espaço à cosmogonia indígena, à história dos vencidos. Entre o pinho e o carvalho, um gesto simples, um atrito repetido deve vir reacender a civilização, a cultura – e com ela o sujeito. Poderosa e delicada centelha. Fulgurante, ela comemora nosso surgimento ardente, também filhos do fogo. Estudo para espaço é um trabalho de Meireles também de 1969, como o Cruzeiro do Sul. Consiste no seguinte texto datilografado sobre papel: Estudo para área: por meios acústicos (sons). Escolha um local (cidade ou campo), pare e concentre-se atentamente nos sons que você percebe, desde os próximos até os longínquos. O sujeito, espaçando, abre mão da visão em prol dos sons que lhe dão notícia do próximo e do distante, sem que possam, contudo, lhe fornecer uma clara localização de si (como seria o caso para alguns animais, como os morcegos). O espaço, liberado da visão, torna-se aí dinâmico, vivo, transformando-se a cada instante de acordo com a distância precariamente estimada entre o objeto que dá notícias de si pelo som e o sujeito-espaço que tenta liberar-se da janela pela qual ele habitualmente confina o espaço na moldura do visível (essa anela pela qual vemos o mundo e que Lacan designa como a fantasia). Apesar de não sermos obrigados a fechar os olhos para fazer análise, Freud nota que para descobrir o segredo dos sonhos teria sido necessário fechar ao menos um olho. É o que um sonho,
ustamente, lhe ensina, na noite que precede o funeral de seu pai. Num grande cartaz estaria impresso “pede-se que você feche os olhos”, ou, relata o sonhador, “pede-se que você feche um olho”. [195] Também na estruturação de uma situação analítica há, como bem se sabe, uma certa operação que concerne à visão, no dispositivo do divã. Analista e analisando não se veem – para que possa então se abrir o espaçamento que define o campo do olhar. Tal montagem não deixa de ser um setting , mas visa romper com o que há nele de cênico para que se entreabra a Outra Cena do inconsciente. Para tanto, é necessário que o analista, um pouco como o Cruzeiro do Sul, seja o suporte do objeto a. O ESPAÇO DA OBRA Em As meninas de Velázquez, obra diante da qual
seríamos “tomados em seu espaço”, Lacan afirma que ficaria claro o quanto uma obra de arte é uma carta roubada, uma carta de baralho virada, que se apresenta a nós como questão. O essencial ao efeito dessa obra residiria na maneira como cada um responderá a tal questão, ou seja, baixará suas cartas, subjugando-se a ela. Tal sujeição tem uma estreita relação com a subversão do sujeito, pois, de fato, a relação com a obra de arte está sempre marcada por essa subversão. Parecemos ter admitido, com o termo de sublimação, algo que, em suma, não é outra coisa, porque se aprofundamos suficientemente o mecanismo da pulsão para ver o que acontece aí, é uma ida e volta do sujeito ao sujeito, sob a condição de se captar que essa volta não é idêntica à ida e que, precisamente, o sujeito, conforme a estrutura da fita de Moebius, se fecha a si mesmo depois de ter logrado essa meia-volta que faz que, partindo de seu anverso, volte a se costurar em seu reverso. Em outras palavras, há que se fazer duas voltas pulsionais para que se logre algo que nos permita captar o que concerne autenticamente à divisão do sujeito.[196]
sublimação concerne ao campo da arte na medida em que anuncia a subversão a que convida o quadro, este objeto que estabelece com o sujeito uma relação “fundamentalmente diferente daquela do espelho”.[197] Como na fita de Moebius, trata-se de ser tomado em uma reviravolta, cumprindo o circuito pulsional. Ordinariamente, segundo Lacan, damos apenas uma volta. É nessa medida que “para o tipo de artista com quem lidamos, ou seja, aqueles que nos consultam, a obra de arte é para uso interno. Ela lhe serve para dar sua própria volta”.[198] Ou seja, há uma dimensão em que a obra de arte coincide com a fantasia – que seria, como já vimos, a obra de arte para uso interno do sujeito. Mas isso não basta para falar do campo da arte, pois esta se define justamente por seu “uso externo”, ou seja, por sua potência de chegar ao outro. É essa a fundamental lição da sublimação, o ponto em que ela não coincide com a fantasia e indica a possibilidade de uma operação sobre a fantasia: é necessária outra volta, um laço, um circuito que enganche o outro. Não se trata, na arte, de “dar sua própria volta”, mas de dar mais uma volta, imprópria (nos dois sentidos do termo: uma volta que não é sua e que não se coaduna inteiramente ao enredo fantasístico no qual este eu toma lugar). As meninas, obra de mestre, nos apresenta uma volta já feita, e assim nos engancha e incita a fazer outra. Mas como ela consegue essa façanha? Em primeiro lugar, parece fundamental ao psicanalista indicar que o quadro se constitui como um Vorstellungsrepräsentanz, o representante da representação do qual fala Freud em “O inconsciente”, de 1915. As meninas não apenas representa uma cena da corte do rei Felipe iv, mas representa a representação dessa cena. Em vez de acentuar a ilusão da cena, esse quadro se assume e se apresenta como representante da cena. O principal responsável por tal arranjo significante é a presença do quadro dentro do quadro, a tela revirada que o próprio Velázquez está pintando e que a maior parte dos comentadores especula ser um retrato do casal real, enquanto Lacan insiste que se trataria da própria cena mostrada em
s meninas, mas ao reverso. A grande obra-prima seria o primeiro quadro da história a mostrar a tela dentro da tela, prefigurando a estratégia de um Magritte, por exemplo. É bem mais comum a presença de espelhos dentro de quadros, refletindo a cena ou o que estaria fora dela, o observador, e disso essa obra também é um exemplo de peso, com o espelho no qual se refletem, debilmente, os personagens do rei e da rainha. Em contraste com o jogo especular reduplicado, a grande tela revirada que toma boa parte de seu primeiro plano nada mostra, ela é a apresentação de uma pura opacidade no seio da cena. Penso que talvez essa opacidade seja constitutiva de qualquer cena, como uma espécie de forro. Mesmo em trabalhos que não figuram explicitamente seu reverso, Lacan nos incita, assim, a conceber uma estrutura de inversão e crítica do imaginário, e nos leva a perguntar se dependeria dela a “segunda volta” a que nos convida uma grande obra de arte. A análise lacaniana ecoa a então recém-publicada leitura desse quadro por Foucault, afirmando que talvez haja nele “como que a representação da representação clássica e a definição de espaço que ela abre”.[199] As meninas constitui uma reflexão, em pintura, sobre o que é a pintura, o que é pintar e como se organiza o próprio domínio da representação no momento histórico que é o seu. A análise foucaultiana retraça cuidadosamente as linhas organizadoras da composição, para acentuar aí, fundamentalmente, a existência de dois pontos. No centro de um X que organiza a posição dos demais personagens, encontra-se a infanta Marguerita. Próximo dela, outro centro possível é ocupado pelo espelho no qual se reflete o casal real, em segundo plano. As linhas que partem destes dois pontos convergem para um ponto situado fora do quadro: o ponto em que nós, espectadores, nos encontramos – tornados assim, à nossa revelia, rei e rainha, e capazes de aparentemente ocupar este “centro simbolicamente soberano”. O princípio de ordenação da representação encontra-se, portanto, fora da representação propriamente dita, fora de cena. O quadro
constitui um jogo de olhares onde nós somos olhados pelo quadro, como notará Lacan, sublinhando o olhar do personagem do pintor diante de sua tela revirada. Por essa volta moebiana somos, portanto, jogados para dentro dele. O que Foucault acentua, porém, é o fato de que o sujeito que funda tal representação estaria aí elidido, vendo nisso a abertura da possibilidade de uma representação se dar como “pura representação”.[200] A SUBVERSÃO DO SUJEITO E A REVIRAVOLTA DA FANTASIA Lacan
insiste que sua leitura confirma aquela de Foucault, trazendo no entanto a particularidade do campo da psicanálise. Mas o próprio filósofo, presente em uma das sessões desse seminário e instado pelo próprio psicanalista a responder se ele o havia lido bem, replica que Lacan teria “reformado” um tanto suas elaborações.[201] De fato, a proposta de Lacan, muito complexa e não isenta de obscuridades, se distingue da de Foucault de forma sutil e no entanto cheia de consequências. Enquanto esta privilegia a localização do objeto, duplicado na tela em um jogo que exclui o sujeito, o psicanalista dedica-se a localizar, na própria estrutura da perspectiva geométrica, o lugar do sujeito, de saída considerando-o interno ao quadro. Ele insiste, assim, na ideia de que “a perspectiva organizada é a entrada do campo do escópico do próprio sujeito”. [202]
Tradicionalmente, concebe-se que a perspectiva artificial estabelece no Renascimento, pela primeira vez na história, um lugar único e fixo ao sujeito, na posição do olho do pintor que organizaria o espaço da representação. Isso é estritamente verdadeiro na chamada perspectiva central, que constrói um único ponto de fuga, correlativo à posição do olho do pintor fora do quadro. Desde o primeiro tratado de perspectiva da história, aquele de Alberti, aparecem contudo técnicas que empregam mais de um ponto de origem (por vezes chamado “o outro olho”) para essa construção geométrica. Lacan se apoia no esquema que utiliza dois
pontos e corresponde grosso modo à combinação entre a vista frontal e a vista de perfil do objeto a ser representado. A perspectiva, modalidade de representação que costuma ser tomada como modelo para a também nascente noção de indivíduo, já estaria assim marcada, segundo o psicanalista, pela divisão do sujeito. Podemos dizer que se marca aí uma distância de si a si mesmo, permitindo, portanto, a construção da cena da fantasia e o estabelecimento de um lugar nela para o eu. De fato, como afirma Lacan, estamos aqui para ver como esse quadro nos inscreve a perspectiva das relações do olhar no que se chama a fantasia ( fantasme) enquanto ela é constitutiva. Há uma grande ambiguidade sobre o termo “fantasia”. Fantasia inconsciente, bem, isso é um objeto. Em primeiro lugar, é um objeto onde perdemos sempre uma das três peças que há aí dentro, a saber, dois sujeitos e um a.[203] Mas, para Lacan, o essencial é a relação que o quadro agencia entre tal sujeito dividido e o objeto a. O sujeito “se sustenta”, diz ele, “em sua própria divisão, em torno deste objeto a presente que é armação (ou engaste, monture)”.[204] Essa fenda corresponde à figura da infanta Marguerita. É interessante notar a natureza espacial dessa relação, marcada pela locução prepositiva “em torno de”. Lacan a confirma em seguida, pondo na boca do personagem Velázquez, presente no quadro, a frase: “Tu não me vês de onde eu te olho”. Este onde não é um ali, ou um aí como aquele do Dasein de Heidegger, não é propriamente um lugar e sim uma fenda, um intervalo no qual algo cai. Assim se define o objeto a cuja posição é assumida pela figura da infanta Marguerita, no centro do quadro. É a presença desse objeto que constituirá um apelo ao sujeito, na medida em que ele engancha a divisão do eu e também evoca uma função do Outro pela qual este é esvaziado, puro reflexo como o
casal real no espelho ao fundo, que o psicanalista chega a comparar à tela de televisão. Encarnando desse modo a presença do objeto a, a obra de arte poria em jogo a própria estrutura da fantasia. O quadro desmonta a cena e põe em jogo seus elementos constitutivos, convidando o sujeito a se redividir em suas relações com o objeto e com o Outro. Essa sofisticada operação depende de um complexo agenciamento significante, na própria composição do quadro e especialmente no que se refere à sua construção perspectiva, capaz de traçar nele um lugar que é de crítica da própria representação. Outras estratégias poderiam ser adotadas para isso, e duas vias são rapidamente mencionadas por Lacan: a da arte moderna, com “suas manchas de cor” (que não são mais que merda, diz ele) ou com os ready-mades de Duchamp. Em jogo com a figura da princesa, é importante notar que temos ainda em As meninas, como aponta o psicanalista, uma janela que representa a janela de nosso próprio olhar, emoldurado pela fantasia. Trata-se de uma porta semiaberta, no plano mais recuado do quadro, na qual encontra-se um homem, identificado como um outro Velázquez, um certo Nieto Velázquez, figura que teria favorecido o pintor junto ao rei. Ele está em movimento, quase saindo da cena. É essa figura quem ocupa, para Lacan, o lugar de outro sujeito na citação acima. O enredo, os personagens do quadro refletem e representam, assim, as próprias condições da fantasia, inclusive o fato de que nela o sujeito se divide de modo a se dirigir a seu umbral, chegando quase a sair de cena. A apresentação na arte desse limiar da posição do sujeito na fantasia é sublinhada pelo psicanalista Marco Antonio Coutinho orge, especialmente a partir de telas de Edward Hopper, nas quais se apresenta uma cena que explicita seu próprio umbral e mostra personagens que por vezes parecem estar prestes a atravessá-lo. Esses quadros explicitariam que a fantasia não deixa de ser uma “janela para o real”, segundo Lacan.[205]
Sua depurada análise de As meninas indica assim, entre os demais elementos da fantasia, a apresentação de uma janela para o real semelhante ao que Freud denomina “umbigo do sonho”: um ponto de opacidade, em geral recôndito, que é uma condição necessária à construção de toda representação. Ao mesmo tempo que a fantasia vem, a serviço do imaginário, cobrir o real como uma tela e fornecer um lugar fixo ao eu, ela agencia pontos de enganchamento da divisão do eu, da subversão do sujeito, convidando a que se ponha pelo avesso o imaginário de modo a que se deixe entrever o real. Vimos que Lacan traça no espaço do quadro um oco no qual vem se situar (como fenda) a infanta Marguerita. Teríamos aí, talvez, a transformação da tela em uma espécie de vaso, como aquele que servia de modelo para a sublimação. Mas ao apresentar criticamente o quadro como uma janela e desmontá-lo nos elementos estruturais da fantasia, essa obra vai além da função do vaso. Ela agencia a abertura de um espaço que não se delimita mais pelas coordenadas imaginárias da geometria, mas revira-se no interior de si mesmo e constitui um trans-espaço difícil de fixar, chegando quase a apresentar um fora da cena, um espaço impossível como aquele obtido pelo que os matemáticos chamam “inversão” e que consistiria em fazer passar o quadro por dentro de sua janela interna como quem o vira pelo avesso. Então seríamos puxados, talvez, junto com nossa cena cotidiana, por essa mesma mão que manipula o quadro – pois tal espaço atrai o sujeito em uma vertigem cheia de gozo. Sem chegar à radicalidade dessa inversão, a arte nos capta em seu espaço de modo a nos incitar a dar alguns passos na cena da fantasia, em atravessamentos pontuais. A travessia da fantasia que, para Lacan, se operaria em uma análise, não deve ser compreendida como uma trajetória pela qual se passa pela cena para deixá-la para trás, tampouco como uma inversão completa da cena capaz de ogar o sujeito para fora dela. A travessia da fantasia é plural,
sempre a se refazer como o passeio do dedo sobre a superfície da fita de Moebius. Ela nomeia a movimentação que o sujeito se põe a realizar nesse espaço de modo a revirar suas coordenadas imaginárias, tomá-las criticamente e assim, em alguma medida, reconfigurar sua montagem. É nessa medida que o quadro constitui uma tela, mostrando que “a tela não é apenas o que oculta o real”, pois ela “ao mesmo tempo o indica”.[206] Essa obra convida o sujeito a se descentrar no espaço para reencontrar a moebiana subversão que é sua dimensão real. Daí vem a necessidade de se considerar, para a própria experiência analítica, a topologia, o rompimento com a geometria tradicional em prol do reviramento do espaço, nos limites do “imaginarizável”. Para um psicanalista, dirá Lacan, a topologia não é um conhecimento suplementar, mas “é o próprio tecido que ele corta, quer o saiba ou não”.[207] Ele deve cortá-lo com o gume da linguagem, desmontando e remontando criticamente sua estrutura cênica. TRANSFERÊNCIAS Tal janela denunciada, tal tela rasgada em As
meninas talvez anunciem algo que só se concretizará posteriormente, especialmente ao longo do século XX: a vigorosa quebra do espelho testemunhada pelo abandono da mímesis, o esgarçamento da tela, a quebra da moldura, o franqueamento do espaço do mundo, a busca de uma apresentação capaz de colocar por terra a lógica da representação. Essas não constituem, propriamente falando, questões e estratégias do tempo de Velázquez, mas configuram o campo que se abre em fins do século XIX e a partir daí toma direções diversas, chegando a um ponto crítico, é o caso de dizer, a partir da passagem para os anos 1960. Ao trazer o objeto a para o primeiro plano, talvez Lacan aplique sobre s meninas, esta obra-prima de 1656, uma leitura contemporânea, uma análise informada pelas questões que guiaram a arte (e também, em certa medida, a psicanálise) no século XX. O quadro a
acolhe, no entanto, mostrando que essas questões não deixam, provavelmente, de se colocar já nele, ao menos em germe. Ou, como diz Lacan a Foucault, as mesmas questões se recolocam sempre, estruturadas da mesma forma, e a elas os homens se recusam, a cada época, segundo determinado repertório de maneiras. O objeto a vem aí espaçar , cortando a tela e impedindo que o sujeito ocupe a posição de olho central, medida e senhor da representação. Um certo arranjo significante é capaz de (re)apresentar o objeto a como causa da divisão do eu e engatar no sujeito sua subversão, que vai de par com uma experiência singular do espaço. Tal estrutura e tal acontecimento não deixam, segundo Lacan, de apresentar uma estranha familiaridade com o processo analítico: Isso não está feito para que nós, analistas, que sabemos que aí está o ponto de encontro do fim de uma análise, nos perguntemos como, para nós, se transfere esta dialética do objeto a, se é neste objeto a que está dado o término e o encontro onde o sujeito deve se reconhecer? Quem deve fornecêlo? Ele ou nós? Não teríamos tanto a fazer quanto Velázquez em sua construção? [208] O objeto a é algo que está em jogo entre o sujeito barrado e o Outro. Mas acho que ele, mais do que ser fornecido, é o que se perde. Só se pode construí-lo no espaço, na cena, ou seja, na fantasia, e talvez se trate aí de uma construção perspectiva como a do quadro de Velázquez, um agenciamento capaz de revirar a cena imaginária para que as relações entre o sujeito, o objeto a e o outro apresentem sua montagem e possam ser matéria de análise, ou seja, quebra. A fantasia já estava lá e no entanto tem que ser construída em análise, como sublinha Freud. Tal construção implica, paradoxalmente, desmontagens e reviramentos da cena, em
pontuais e repetidos atravessamentos que o sujeito nela realiza – como nos ensina a arte. É curioso que Lacan fale de uma “transferência” da dialética do objeto a entre psicanálise e arte. Talvez a psicanálise tenha que aceitar se submeter um tanto à alteridade de um campo outro, o campo da arte, para refletir sobre tal encontro com o objeto a no próprio seio da experiência analítica. Entre elas, algo cai e se perde. Essa relação deve assumir seu caráter histórico, no sentido que a psicanálise nasce num determinado momento e um trabalho artístico se constrói numa complexa relação com sua época. Fundamentalmente, talvez ambos os campos se rocem, por lidarem, por meios próprios a cada um deles, com o trabalho de cultura de que fala Freud, convocando aquele lugar indeterminado, aquela Outra Cena onde d’isso, desta carta escondida, deste objeto qualquer, pode (re)fazer-se o sujeito e seu mundo.
PARTE TRÊS
A CRISE, A ÉTICA E O OBJETO
NADA
da memorável crise ou se houvesse o evento
ARTE É CRÍTICA: SOBRE ATRAVÉS cumprido em vista de todo resultado nulo humano TERÁ TIDO LUGAR uma elevação ordinária verte a ausência SENÃO O LUGAR inferior marulho qualquer como para dispersar o ato vazio […] nessas paragens do vago onde toda realidade se dissolve STÉPHANE MALLARMÉ
(trecho de “Um lance de dados jamais abolirá o acaso”)
Para Walter Benjamin, os poetas encontram “na rua o lixo da sociedade e a partir dele fazem sua crítica heroica”.[209] Seriam como sucateiros, catadores de rua, os artistas. Benjamin os encontra na descrição do chiffonnier feita por Baudelaire: aquele que registra e coleciona o que a grande cidade despreza e destrói. Nada mais distante do herói criador ou do gênio romântico. O herói moderno é decaído, é um operário; sabe-se de antemão que ele jamais triunfará. Ele não cria nada de novo, belo ou sublime; apenas recolhe os dejetos da civilização. Com eles, porém, faz algo extraordinário: em sua arte, em sua poesia, forja uma verdadeira potência crítica da cultura. Tal configuração da arte não é exatamente aquela do tempo de Baudelaire, nem é aquela prevalente na arte produzida até 1940, quando Benjamin percebe que não conseguirá fugir dos nazistas e resolve se suicidar. Ela é a do nosso tempo. Nela, as noções de criação e criador parecem anacrônicas, e a definição de crítica de arte torna-se francamente problemática. “Insensatos os que lamentam o declínio da crítica”, dizia Benjamin já em 1928, “pois sua hora há muito tempo já passou. Crítica é uma questão de correto distanciamento.”[210] Não há mais uma clara distância entre produção e crítica a partir do momento em que a própria produção artística assume como cerne de sua poética uma dimensão crítica, ou seja, põe-se a quebrar (krinein, em grego), a pôr em crise os parâmetros culturais definitórios da arte. A crítica se sentia “em casa”, prossegue o filósofo, “em um mundo em que perspectivas e prospectos vêm ao caso e ainda é possível adotar um ponto de vista”.[211] De fato, não temos mais a nosso dispor um ponto de vista fixo como aquele que sustentava e centralizava, graças a uma implícita ordenação divina, a organização perspectiva da representação renascentista. Se “no século XX os espelhos voaram em pedaços”, como diz Francis Ponge pensando em Picasso,[212] a multiplicidade de pontos de vista nega ao eu qualquer abrigo. Como á vimos dizer Freud, o eu não é mais “senhor em sua própria casa”.
[213] Que
ponto de vista se poderia oferecer, em nossos dias, através dos múltiplos escombros recolhidos e registrados pelo artista? O sujeito vê-se ele mesmo despedaçado, retirado de sua posição central. Ele se extrai diante de objetos, das “coisas” com as quais Benjamin, desiludido, fecha seu comentário: “As coisas nesse meiotempo caíram de maneira demasiado abrasante sobre o corpo da sociedade humana”.[214] A COISA E O OBJETO Na passagem para a década de 1960, Jacques
Lacan nota que nosso objeto primordial, o objeto da pulsão, é desde sempre perdido, é a Coisa (das Ding ) sempre buscada, mas nunca reencontrada como tal. Ela não pode sequer ser imaginada. Em nossa atividade desejante temos acesso apenas a seus substitutos, aos objetos que fugazmente parecem tomar seu lugar, mas não são mais do que ruínas. O psicanalista retoma então a questão da sublimação, definida por Freud justamente por uma substituição, não necessariamente do objeto, mas do objetivo da pulsão: a meta sexual seria trocada por outra, em geral mais valorizada socialmente (o que muitas vezes se acompanha de uma mudança de objeto). A sublimação nomeia, portanto, uma dessexualização necessária à própria constituição da cultura, e diz respeito, de forma geral, à deriva que caracteriza o desejo. Do sexo a outra coisa, toda a atividade humana decorre de um jogo pulsional no qual é impossível chegar a uma satisfação completa. Ainda que Freud mencione a sublimação a respeito da criação artística, dela não resulta, portanto, uma reflexão específica a respeito da arte. Já Lacan, localizando-a claramente no domínio do objeto, a particulariza como uma operação significante pela qual um objeto seria elevado “à dignidade da Coisa”.[215] A um primeiro olhar, essa famosa fórmula pode parecer referir-se à arte clássica e às quimeras estéticas de um Belo harmônico. Se o desejo se origina da perda de um objeto especial e a partir disso se define como uma errância por objetos que jamais serão a Coisa, a sublimação
pareceria enfim lograr o encontro ideal com o objeto perdido. Mas o que o psicanalista aponta é o avesso dessa idealização. A Coisa é pura perda, seu lugar é um vazio, seu modelo é o vaso, objeto que só se define por conformar um oco. Elevar algo a esta (in)dignidade comporta, portanto, uma terrível ameaça. O quadro Os embaixadores de Holbein serve de modelo a Lacan pelo uso da anamorfose, o trompe l’oeil construído pelo uso deformado da perspectiva. Ao lado de elementos representando o mais alto refinamento cultural, achase nessa pintura, se a vemos de frente, um objeto alongado que não deixa de evocar um falo em ereção. Se olharmos para o quadro de viés, porém, ele se transforma em uma caveira. O sublime está portanto ligado a uma pungente revelação e a “dignidade da Coisa” não é em nada apaziguadora, mas nos joga na cara a frágil e violenta condição humana. Lacan acentua, assim, o que a estética do Romantismo já apontava ao mesclar o Belo ao Terrível. Mas é a concepção de objeto implicada na fórmula lacaniana da sublimação que merece especial destaque: trata-se de um objeto qualquer , um objeto decaído. Indigno. Objeto desdenhado, caído, perdido, que o artista não cria, propriamente, mas recolhe como o chiffonier de Benjamin. Objeto capaz de lembrar ao sujeito sua finitude e de retirá-lo da pretensão de se afirmar como dono dos objetos, senhor do espaço e da representação, legítimo criador – ou supremo crítico. Durante a Segunda Guerra Mundial, Lacan vai a Saint-Paul de Vence visitar seu amigo Jacques Prévert e se surpreende com sua coleção de caixas de fósforo. Vazias, elas estavam encaixadas umas nas outras, dispostas de maneira encadeada e, segundo o psicanalista, “extremamente agradável”, formando uma longa fileira que ornamentava parte da casa.[216] Caixas de fósforos vazias eram talvez os únicos objetos sem valor, a única coisa, naquele momento de grande penúria, que se podia colecionar. O RETORNO DO REAL É UM RETORNO DO SUJEITO Inspirado no
pensamento de Lacan, Hal Foster propôs na década de 1990, como á mencionamos, o “retorno do real” como uma noção essencial para a arte contemporânea. Com ele, passaríamos da “realidade como um efeito de representação para o real como uma coisa de trauma”.[217] Para Lacan, real é o registro que se articula ao simbólico e ao imaginário para constituir a complexa e compartilhada realidade humana. O simbólico, domínio da linguagem e das trocas culturais, toma para este autor um papel prevalente na organização da realidade. Ele fornece as linhas de estruturação do imaginário, domínio cujo fulcro é a imagem especular do corpo e que configura a imagem como falaciosa, encobrindo algo que não se pode ver como tal: o real, que resiste a ser simbolizado. Parte da produção contemporânea visaria, para Foster, chegar à repetição de um encontro traumático com o real dessimbolizado e terrível, para além da imagem. Assim, a série “Death in America”, de Andy Warhol, traz uma repetição de imagens de acidentes de carro reproduzidas de fotografias jornalísticas. Está explícita aí uma dimensão da obra de Warhol que pode não estar em primeiro plano nos simulacros que são as imagens de sopas Campbell’s, por exemplo, mas que não deixa de transparecer nos retratos de Marilyn – especialmente quando lembramos que, no momento em que o artista produz essas imagens, ela tinha acabado de se suicidar. Porém, o núcleo trágico da obra desse artista não diz respeito tanto a essa faceta, identificável em alguns de seus trabalhos, quanto a algo mais estrutural: a acentuação a centuação da repetição automática como dispositivo fundamental para a reprodução imagética. A explicitação desse funcionamento é que seria capaz de evocar o trauma. A apresentação de uma mesma fotografia duas ou mais vezes repetida vai nessa direção, assumindo e ressaltando sua condição de reprodução. Mas isso não é tudo: algo acontece e se inscreve na imagem, talvez de maneira fortuita, circunstancial, como a mancha sobre o rosto do cadáver de Ambulance Disaster (1963). É essa marca, esse recobrimento de uma parte da imagem,
que punge e fere Hal Foster neste trabalho de Warhol. Algo acontece e incide sobre a “máquina” warholiana de reprodução de imagens, mostrando que, se o artista afirma querer ser uma máquina, o mais importante será o que excede o automatismo e faz o dispositivo “errar”, por assim dizer. A máquina pode ser humana. De forma similar, Roland Barthes, também influenciado por Lacan, concebe em A câmera clara o punctum como aquele ponto, em uma fotografia, que ameaça lhe furar os olhos.[218] Uma mancha, um detalhe qualquer, algo ex-cêntrico, seria capaz de desestabilizar o enquadramento representativo, de modo imprevisível e radicalmente singular. Algo rompe a cena e acontece, em ato, para determinado olhador, como uma convocação pungente, entre a ameaça e a poesia, a angústia e o prazer. Haveria, para Foster, outras diversas modalidades de retorno do real na arte contemporânea. Pode-se jogar com uma apresentação da ilusão capaz de quebrar a ilusão, em um certo hiper-realismo, por exemplo, ou pode-se tentar chegar a uma “representação sem cena”, sem enquadramento, sem tela, no que o autor chama “arte abjeta”.[219] Essas diferentes estratégias mostram que um importante desafio da arte contemporânea consiste, eu diria, em construir representações capazes de criticar sua sua própria natureza representacional – colocá-la radicalmente em crise, rompê-la, em prol de algo que Foster não ressalta, mas me parece essencial: uma certa presença traumática do sujeito. Isso porque o cerne do trauma não está no fato, apontado pelo crítico, de que nele há uma confusão entre o eu e o mundo, o interior e o exterior. Com efeito, não há aí um “eu” bem delimitado, organizado e unificado pela imagem do corpo. Porém, no que diz respeito ao sujeito – ao sujeito do inconsciente, bem distinto desse eu ilusório –, é justo no trauma que ele se esboça. A estranha força do trauma provém dessa situação de angústia extrema na qual o sujeito se faz valer como não mais que uma erida (traûma, em grego), uma mancha ou um rasgo na tela da
realidade, reabrindo um excesso capaz de, a um só tempo, pôr em xeque tanto a representação quanto a ele mesmo. O sujeito é instável, efêmero, pois não é mais que um certo efeito – precisamente este efeito de ruptura da representação onde o eu perde seu lugar e se dissolve, deixando surgir num átimo o ponto nuclear de nossa constituição. O sujeito não é mais do que uma pulsação imprevisível e impossível de se comunicar mas que, no entanto, como nos mostra a arte, pode se transmitir , ou seja, passar ao outro como uma missão. Há um apelo a pelo ao outro no surgimento deste núcleo incerto de dor e prazer, nesse gozo que comemora nossa frágil constituição como sujeitos. A noção lacaniana de real faz eco ao que Merleau-Ponty, em conferência de 1945, já apontava como um excesso no real, em contraponto com a natureza da representação cinematográfica: Jamais no real a forma percebida é perfeita, há sempre sempre tremidos, rebarbas e uma espécie de excesso de matéria. O drama cinematográfico possui, por assim dizer, um grão mais cerrado que os dramas da vida real, ele se passa em um mundo mais exato que o mundo real.[220] O “drama”, a organização narrativa e espacial da representação, dá ao sujeito um lugar mais ou menos fixo e encobre o perturbador “excesso” do real. Esse regime é o que chamamos “imagem-muro”. Boa parte da produção artística contemporânea visa furar esse muro ou esgarçar esse véu, rompendo tal domínio imaginário apaziguador e ilusório. Ela se alinha à “imagem-furo”, que, através de estratégias variadas, busca quebrar o “drama”, a realidade, em busca de algo para além da representação. Tal potência crítica da representação implica uma alteração fundamental na posição do sujeito. Ele foi retirado de um lugar central no “drama”, na estrutura da representação. Mas ele retorna, agora, de fora do campo da representação. Sob a égide do real, ele é convocado a comparecer
em toda sua potência de disseminação e fugacidade, como efeito poético. O sujeito não é mais que um efeito. Feito de poesia, da ferida imaterial, e tanto mais fundamental, que clama por se transmitir entre nós. O sujeito parece, em algumas facetas fa cetas da produção contemporânea, sair completamente de cena em prol da disseminação crítica dos modos de representação. Um exemplo extremo dessa configuração seria aquele que faz Warhol afirmar “Eu quero ser uma máquina”.[221] Em outra modalidade, o sujeito se veria anulado pela presença maciça do objeto. Para Para se afirmar como entidade autônoma e se destacar da representação mimética, recusando e esgarçando o “drama” da representação, o objeto parece por vezes negar o sujeito como seu par. À primeira vista, os objetos minimalistas operariam tal negação; porém, por mais “específicos” que eles sejam (para usar o termo de Donald Judd), tais objetos formulam, implicitamente, uma convocação à presença do sujeito. O que é negado ao sujeito é a simples confirmação de seu lugar como complemento do objeto no “drama” da representação clássica. Em troca, ele é fortemente convocado a se apresentar no espaço transformado pelo objeto. Como vimos no primeiro ensaio deste livro, happenings e performances parecem, por sua vez, reafirmar a presença do sujeito pela apresentação do corpo do artista, muitas vezes acompanhada de um convite ao ato dirigido ao espectador. Em vez de uma confirmação da identidade do eu graças à inclusão do corpo no campo da representação, opera-se, numa reviravolta crítica, uma quebra desse campo. O corpo, em sua dimensão não imagética, mas real, rompe em ato o drama, tornando-o imprevisível e transformando o espaço à sua volta. Sob modos diversos, o eu aparece numa exploração de sua alteridade constitutiva, o que termina por problematizar fortemente a relação entre corpo e sujeito e acentuar a desmaterialização desse último. O apelo direto ao espectador busca fazer comparecer o sujeito no real, por fora do
enquadramento da representação. O ato é o que permite, aqui, romper esse enquadramento. Em vez de confirmar o lugar daquele que o realiza, trata-se de um ato que o descentra, retirando-o de sua ilusão solipsista. Trata-se de um ato que precisa do outro para fazer apelo ao sujeito – que não está no corpo de ninguém, propriamente, mas em uma passagem de um a outro, convocando o corpo em toda sua potência disruptiva. ATRAVÉS Como dizia Rimbaud, “o eu é um outro”: [222] descentrado
pela arte moderna, ele não está mais no centro organizador da representação. O sujeito que retorna na arte contemporânea se desmaterializou e problematizou suas fronteiras em relação ao outro, no mesmo passo em que se temporalizou e se deslocou em uma nova concepção, fragmentada, do espaço. Em vez de manter o ogo da alteridade que o constitui como alienado de si mesmo, em vez de brincar de ser outro, em em uma mobilidade que pode por vezes fixar por um tempo alguma posição diante do desmantelamento crítico da representação, ele parece dissolver-se a ponto de quase se retirar. Ele diria, em vez de “o eu é um outro”: eu não é . Mas é quando não tem mais lugar na representação, justament justamente, e, que ele pode se apresentar : retornar como convocação direta ao espectador. Com-vocação: convite a tomar a palavra, a ter voz. Convite que é como uma mensagem apagada jogada dentro de uma garrafa ao ao mar, carregando o belo risco de jamais chegar a ninguém. Cildo Meireles situa a concepção de Através (1983-89) no ruído de um papel celofane jogado na lixeira. Quando andamos por suas passagens cobertas de pedaços de vidro, tal ruído talvez se faça ouvir para além do barulho nítido de nossos pés moendo ainda mais os cacos. Por mais que estejamos bem calçados, o caminho é perigoso, nos impede de pisar em terra firme. Caminho crítico: precário e feito de quebras. Devemos passar, caminhar entre os anteparos de materiais ma teriais heterogêneos que nos impedem a visão direta da enorme bola de
celofane amassado que está no centro do espaço. Ela possui, grosso modo, uma escala humana. As cercas de madeira, metal ou arame, os painéis de vidro ou plástico e até os peixes transparentes nadando no aquário retangular mostram essa coisa central de modos diversos e por vezes até parecem aumentar sua luz (e talvez seu mistério). A presença desse grande objeto luminoso pulsa, poderosa, por entre as telas e os véus translúcidos. Mas talvez essa coisa só se deixe entrever , nunca se ofereça diretamente à visão, nem mesmo quando a espiamos pelo intervalo de um anteparo a outro. Um véu semitransparente, como como se sabe, era um importante recurso para a técnica da perspectiva geométrica. Esse “véu interceptor”, criado por Alberti, devia ser colocado entre o olho e o “corpo a ser representado”, para que o pintor pudesse traçar mais facilmente os eixos da pirâmide visual.[223] Tecido de trama aberta, o véu é uma grade que não apenas filtra, fil tra, mas aprisiona o visível. “Saiba”, escreve Alberti, “que se você modifica a distância e a posição do centro, a coisa vista ela mesma parecerá modificada.” Essa é a razão pela qual o véu presta o inestimável serviço de “manter uma coisa sempre idêntica ao olhar”.[224] Os vidros, os véus, as telas e grades de Através não fixam o olhar e a coisa olhada. Em vez de nos posicionar firmemente em relação ao visível, a variedade de painéis multiplica as faces do objeto e cria espaçamentos, intervalos entre os quais devemos – é imperativo – deslocar-nos. Tal deslocamento é essencial a esse trabalho – o olhar é uma travessia múltipla, a se repetir conformando espaços vazios, disseminando a quebra da estrutura da representação. O objeto, ele mesmo feito de nada além da transparência adensada do celofane, é como que jogado no lixo: ele se multiplica e se modifica ao se quebrar em diversas faces, aquelas refletidas pelos diversos anteparos. O olhar denuncia sua condição mediada, sempre através de algo – perspicere quer dizer justamente ver através, em latim. Em pequenas quebras que nossa própria travessia refaz, em ato, algo pode de repente acontecer: como se chamado pelo mísero
pedaço de papel celofane, emerge o sujeito como não mais que uma posição incerta. O ato é aí como o ato analítico de que fala Lacan (e aqui é importante lembrar que “análise” quer dizer “quebra”). O ato quebra e pode suscitar uma trans-missão da quebra. Em vez de um circuito que vai de um ponto de partida a um de chegada de forma invariável, num caminho fechado e pré-fixado, temos uma deriva, uma travessia imprevisível que transforma o espaço e seus componentes. Através é um labirinto onde não corremos o risco de nos perder – mas só porque, de saída, nele já estávamos perdidos. QUEBRAS Como fazer crítica de arte diante de uma obra que já
agencia, em si mesma, a mais sofisticada crítica? Através é uma obra que atravessa as condições da representação e abre espaços insuspeitos para o que fica de fora dela mesma. Talvez por isso o projeto inicial de Cildo Meireles tenha sido de montar essa instalação ao ar livre, antes de confiná-la na grande sala onde ela se encontra hoje, no Instituto Inhotim, em Minas Gerais. pontando para um “fora”, um espaço inimaginável, isso que ela faz surgir é o sujeito contemporâneo, em sua mobilidade, sua ferida, sua poesia. Esse sujeito que a poesia de Stéphane Mallarmé á prenunciava e tentava encarnar no escrito e em seus espaçamentos, denominando-o justamente de poema crítico. As quebras do texto […] observam de concordar, com sentido e não inscrevem espaço nusenão até seus pontos de iluminação: uma forma, talvez, daí saia, atual, permitindo, ao que foi longo tempo o poema em prosa e nossa pesquisa, culminar, enquanto, se juntamos melhor as palavras, poema crítico.[225] “forma” é atual porque atualiza a crise, a cada leitura, com seus espaçamentos. “Um lance de dados jamais abolirá o acaso”, de 1897, visa, como explicita Mallarmé em seu prefácio, fazer o leitor “abrir
os olhos”. Quanto ao futuro desse poema crítico, o poeta presume “nada ou quase uma arte”[226] prevendo, curiosamente, o que podemos dizer muitas vezes ter diante dos olhos na produção contemporânea. Uma vez problematizado o campo da Arte, a produção artística se dissemina e se volta para fora dela mesma, tornando-se quase nada, quase “uma arte”. Alguma arte. Como o poema crítico, talvez nos caiba fazer hoje a crítica crítica. Não para se instalar na pretensão de uma metacrítica que abarque e apresente suas próprias condições, mas para saber-se fundamentalmente atravessada por uma crise permanente e que deve ser constantemente realimentada para que a reflexão crítica mantenha hoje sua pertinência, considerando que sua hora “há muito tempo já passou”, como vimos com Benjamin. Toda análise crítica se vê hoje condenada a denunciar como ilusão sua pretensão de atingir o ponto central de uma obra. Toda aproximação crítica está condenada a uma certa deriva, a um quase. O crítico e teórico do cinema Raymond Bellour propõe que se substitua a ilusória apreensão de um filme ou de parte dele por uma multiplicidade de gestos diante do cinema: gesto de parada da imagem, gestos de passagem de filme em filme, de um conceito a um fotograma etc.[227] Uma dissolução da crítica, uma crítica do próprio propósito crítico talvez deva levar-nos à definitiva substituição do julgamento por nada além de gestos. Limitados gestos girando em torno de algo, como nós no labirinto de Através (os elementos teóricos, assim como os da história da arte, seriam como os diversos anteparos aí existentes, podendo tanto esconder a obra quanto acentuar sua luz). Gestos capazes de quebrar a si mesmos, de se assumir como quebra. Ou melhor: de transmitir as quebras da própria obra e recolocar em marcha a crise que já era sua. Gestos críticos. Renunciando a um discurso totalizante, os escritos críticos flertam com o formato do ensaio. “O ensaio é a forma de categoria crítica do nosso espírito”, já sentenciava Max Bense na década de
1940.[228] O ensaio, como o próprio termo indica, é experimentação. Ele se assume como “interrogação, pensamento vivo”, nas palavras de Jean Durançon.[229] Pensamento movente, fragmentário, mas que não deixa de ser audacioso. Sua lei mais profunda, como diz dorno, “é a heresia”.[230] Porque ele não se inclina diante de dogmas, mas deve fragmentar, quebrar, para fazer jus às quebras sobre as quais reflete. Como também formula Adorno, “o ensaio pensa em fragmentos, uma vez que a própria realidade [e a própria arte, nós diríamos] é fragmentada”.[231] Na tessitura que é o ensaio, o próprio ensaísta aceita sair do centro e arrisca se perder. “O pensador, na verdade”, diz ainda dorno, “nem sequer pensa, mas sim faz de si mesmo o palco da experiência intelectual, sem desemaranhá-la”.[232] Talvez ele não crie nada, ou quase nada. Aliás, sua sina é refletir sobre objetos criados. A forma do ensaio “acompanha o pensamento crítico de que o homem não é nenhum criador”.[233] Ele mesmo se vê como um catador de lixo, buscando coisas e pensamentos, como o artista para Benjamin. Mas nosso chiffonnier não é como o de Baudelaire, que cata o lixo para vendê-lo à fábrica onde será reciclado. Ele não visa retirar de circulação esses trapos da civilização; pelo contrário, ele quer dar-lhes algum arranjo, ele quer mostrá-los. Ele almeja, como Mallarmé com seus espaços em branco, abrir nossos olhos. E o crítico, recolhendo desse catador os produtos, com insistência o coloca diante de nossos olhos. O chiffonnier -crítico recupera o sentido figurado do termo francês: o de fofoqueiro. Pois o escrito crítico deve transmitir, ou seja, tomar para si e passar adiante a crise que é o próprio trabalho artístico. Algo deve guiar profundamente a reflexão crítica, algo de essencial à obra, mas que essa aponta de fora: o acontecimento que ela é. E não será tal acontecimento uma comemoração daquilo mesmo que marca o sujeito e o constitui? Ainda Benjamin: “O olhar é o fundo do copo do ser humano”.[234] través.
MÁRIO PEDROSA, ÉTICA E ARTE PÓS-MODERNA Pois nós não somos, na literatura e na arte. NDRÉ BRETON
Mário Pedrosa, crítico de arte, jornalista e professor, nasceu em Timbaúba, no estado de Pernambuco, em 1900 e foi um comunista militante que amargou, ao sabor da conturbada história política do país entre os anos 1930 e 1970, algumas vezes a prisão, noutras o exílio. Pedrosa cultivava o contato próximo com artistas e exerceu um papel fundamental na incitação à criação de uma linguagem da arte brasileira, rompendo com a tradição do nacionalismo mais ou menos folclórico que a Semana de Arte Moderna havia cristalizado, não sem contradições, em 1922. Sua posição política e seu conhecimento das vanguardas russas foram fundamentais para o rumo tomado para o surgimento, nos anos 1950, de uma vanguarda artística brasileira com o concretismo. E para uma passagem com características próprias à arte contemporânea, com o neoconcretismo, cujo marco fundador é a i Exposição Neoconcreta no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, em março de 1959. pesar de o grupo neoconcreto ter-se, como movimento, rapidamente dissolvido, já em 1961 suas questões centrais deram ensejo a derivações múltiplas que até hoje pautam grande parte da produção artística brasileira. Em 1967, refletindo sobre os desdobramentos desse movimento no trabalho de Hélio Oiticica e Lygia Clark, Pedrosa elabora, de forma precursora, o conceito de “arte pós-moderna”, vários anos antes de o termo pós-modernismo ter sido introduzido por Charles enks em debates a respeito da arquitetura em 1975, de JeanFrançois Lyotard expandir o termo em seu A condição pós-moderna (1979) e de Fredric Jameson explorá-lo, na década de 1980, como a lógica cultural do capitalismo tardio. De saída Pedrosa concebe o pós-moderno como propriamente artístico, em contraste com os diversos autores que a partir daí se dedicam a conceitualizar a sociedade pós-moderna e indicar suas incidências no campo da arte, mas em consonância antecipada com Leo Steinberg – que pouco depois, em 1968, qualificará de pintura pós-moderna o abandono da verticalidade em prol do flatbed, do plano horizontal onde o homem
trabalha (assim como dorme, se reproduz etc.), abrindo a superfície pictórica novamente “ao mundo”. Em outra chave e com diferentes referências, Pedrosa concebe a arte pós-moderna, como veremos, como uma postura fundamentalmente ética. Em tal ética da arte sobre a qual Hélio Oiticica e Lygia Clark oferecem a reflexão e a prática mais contundentes, interessa-nos apontar a presença da psicanálise no pensamento de Pedrosa e sua incidência na produção artística brasileira. NEOCONCRETISMO, TEORIA E ÉTICA As referências teóricas de
Pedrosa são numerosas, homem erudito como ele era, e delinear influências diretas implicaria um artifício duvidoso. Devemos reconhecer que em seus escritos são notórias, entre outras, a referência ao pensamento de Ernst Cassirer e Suzanne Langer e a presença difusa da fenomenologia. Apesar de raramente citar Merleau-Ponty, Pedrosa teria, segundo Otília Arantes, indicado aos neoconcretistas o pensamento do filósofo – que aparece como ponta de lança do Manifesto Neoconcreto, escrito pelo crítico e poeta Ferreira Gullar e assinado por todos os artistas e poetas participantes da exposição (além do próprio Gullar, eram eles: milcar de Castro, Franz Weissmann, Lygia Clark, Lygia Pape, Reynaldo Jardim e Theon Spanudis).[235] Mas tal referência explícita não deve ser tomada como uma influência exclusiva e nem mesmo linear. Para Paulo Herkenhoff, “talvez os neoconcretistas devam mais a Husserl (via seu conhecimento por Pedrosa) que a MerleauPonty”.[236] Lygia Pape conta, em 1995, em um texto curiosamente intitulado “O que eu não sei”, que seria equivocado ver em MerleauPonty o “norteador da produção neoconcreta”. E prossegue: Nada disso aconteceu. Merleau surge quando da finalização das obras e da necessidade de um texto contextualizador […] para uma produção nunca vista antes, carregada de novidades e invenções.
Conceitos novos se insinuavam nas obras como a quebra das categorias, como o abandono de uma posição privilegiada para a chamada escultura, como o uso de linguagens diversas na mesma obra (imagens e palavras inter-relacionadas), o corte e a dobradura da página como expressão (que vai desencadear o surgimento dos primeiros “livros-poemas”), conceitos tão revolucionários que vão desde esse momento libertar o artista para um universo de possibilidades, um novo espaço na arte e o surgimento de um ser plástico sem designação própria, sem escala, indo do mínimo ao tamanho máximo como as instalações (que ainda não tinham esse nome), denominado, para uso convencional: objeto. Pape menciona outras “lembranças filosóficas” que seriam afins à produção neoconcreta: Bergson com sua “durée” e seu princípio de intuição, os pré-socráticos em sua busca do elemento primordial, o tempo segundo Heidegger, formulações de Nietzsche, Kant e “outros ao sabor das direções individuais de membros do grupo, como Freud e as questões psicanalíticas.”[237] Em reação ao que consideram demasiadamente racionalista na produção concreta, os neoconcretistas recolocam com vigor o problema da expressão. O manifesto anuncia justamente uma revisão das posições teóricas da arte concreta, “uma vez que nenhuma delas ‘compreende’ satisfatoriamente as possibilidades expressivas abertas por essas experiências”.[238] Mas não se tratou de adotar outra posição teórica bem definida (a de Merleau-Ponty, por exemplo) que pudesse guiar a produção artística. A experiência neoconcreta não advém de qualquer teoria, justamente porque se baseia na compreensão de que a produção artística é ela mesma reflexão e produção de conhecimento, ao lado – e não em consequência – de elementos teóricos variados, em torno de
questões fundamentais à arte assim como à vida e à filosofia, especialmente aquela do lugar do sujeito e sua relação com o objeto. Tal questionamento toma, no pensamento de Pedrosa, um alcance verdadeiramente revolucionário, recuperando à sua maneira a utopia da vanguarda russa do início do século XX. Ele visa retomar o elã da arte abstrata como intrinsecamente transformador do homem e do mundo. Os artistas abstracionistas teriam como tarefa “ampliar o campo da linguagem humana na pura percepção”. Não se deve portanto confundir, segundo o crítico, revolução política e revolução artística. A primeira estaria a caminho, segundo sua surpreendentemente otimista previsão de 1967 (três anos após a instalação da ditadura militar ultraconservadora no Brasil), e a “revolução social” iria se processando “de qualquer modo”, enquanto a revolução da sensibilidade, a revolução que irá alcançar o âmago do indivíduo, sua alma, não virá senão quando os homens tiverem novos olhos para olhar o mundo, novos sentidos para compreender suas tremendas transformações e intuição para superá-las.[239] Tal transformação revolucionária é intrinsecamente estética – e ética. Após retomar e desenvolver algumas questões a respeito das relações entre a obra e o eu do artista e discuti-las com alguns autores em psicanálise (especialmente Ernst Kris), Pedrosa afirma, à guisa de conclusão do artigo “Arte e Freud”, publicado no Jornal do Brasil em 1958: Eis por que é privilégio da arte nos dar da vida uma imagem muito mais complexa e profunda do que qualquer outro meio de expressão. Suas formas nos revelam virtualidades irrealizáveis ou inconcebíveis pelo nexo causal simples, descobrindo em nós
mesmos novas maneiras de sentir e, portanto, de ser. Uma nova ética. Para essa nova ética o pensamento de Freud nos vem, desde que apareceu, abrindo caminho e nos preparando o advento com força e penetração incomparáveis.[240] Longe de ser uma entre outras disciplinas interessantes para a reflexão sobre arte, a psicanálise mostra-se fundamental, louvada como nada menos do que fundadora do campo no qual se desdobra todo o pensamento do crítico. Se uma comentadora atenta como Otília Arantes afirma que Pedrosa teria se mantido “sempre, apesar de tudo, muito reticente em relação à psicanálise”, é porque confunde a crítica (localizada) de Pedrosa à aplicação interpretativa e subjetivista da psicanálise (de que o famoso ensaio de Freud sobre Leonardo da Vinci apresenta o melhor exemplo) com a consideração mais ampla do crítico acerca desta disciplina.[241] O reconhecimento da contribuição freudiana para a cultura como radicalmente ética e imbricada aos caminhos tomados pela arte ao longo da primeira metade do século XX dá testemunho de uma leitura de Freud sofisticada e potente. Essa imbricação entre psicanálise, ética e arte edifica uma importante plataforma para refletir sobre as propostas neoconcretistas e suas derivações posteriores. ESPAÇO E EXPRESSÃO O neoconcretismo digere o neoplasticismo e
o construtivismo para deles retomar uma aspiração fundamental e especialmente cara aos artistas russos do início do século XX. “Espaço não existe apenas para o olho”, escrevia El Lissitzky em 1923, “ele não é um quadro; quer-se viver nele.”[242] Com a linha orgânica de Lygia Clark e em seguida seus casulos e bichos, com o corpo-cor e a tensão dançante dos metaesquemas de Hélio, e então seus núcleos e penetráveis, o neoconcretismo ganha o espaço como
espaço vivencial. “De nada servirá ver em Mondrian o destruidor da superfície, do plano e da linha, se não atentamos para o novo espaço que essa destruição construiu”, brada o Manifesto Neoconcreto. Ao contrário de acentuar a planaridade da tela, a autonomia ou a autorreflexividade da arte, trata-se de construir um “novo espaço” que designa, de saída e fundamentalmente, a busca de um lugar para o sujeito: “significação existencial”, “emotiva” e “afetiva” são termos correntes no Manifesto Neoconcreto. Espaço e expressão se articulam: “A arte neoconcreta funda um novo ‘espaço’ expressivo”. Se o espaço expressivo é aquele onde pode surgir o sujeito, nesse “novo espaço” o sujeito não coincide com a pessoa do artista, como no tachismo então em voga e violentamente criticado por Pedrosa por nele dominar o plano da “expressão direta”, no qual “o pintor mescla suas afeições e sentimentos pessoais, seus desejos e faniquitos mais explícitos, ao ato de realizar, de modo que a obra resultante é apenas uma projeção afetiva dele”.[243] Apresentando muito pouca “distância psíquica”, o valor das obras tachistas seria o de mero “documento humano”, sem alcançar a “distância psíquica ideal” que, no abstracionismo, determina que haja “de um lado, o artista individual em todo o livre desabrochar de sua personalidade” e, de outro, “a obra falando sozinha uma linguagem própria e, sem apelos diretos a sentimentalidades, a prazeres e sugestões externas, a angústias ou neuroses da vida privada do seu criador”.[244] O principal modelo de sujeito tomado por Pedrosa para repensar a expressão é bem outro: aquele dos loucos artistas do Engenho de Dentro, instituição psiquiátrica onde Nise da Silveira havia fundado em 1946 uma Seção de Terapêutica Ocupacional na qual trabalharam os artistas Ivan Serpa, Abraham Palatnik e Almir Mavignier. “Com os três”, afirma Paulo Herkenhoff, “a matriz da arte geométrica no Rio de Janeiro passa pelo Engenho de Dentro”, o que seria a base para que o neoconcretismo inserisse “radicalmente a subjetividade no universo racional da geometria”.[245]
A Nise da Silveira, apoiada na teoria de Carl G. Jung, interessava identificar nas obras do Engenho de Dentro arquétipos imemoriais e compreendê-las à luz de elementos míticos, no sentido, talvez, em que Pedrosa falava de “documento humano”. Ao crítico, em contraste, interessava identificar nos ditos loucos uma distância de si a si mesmo, uma fenda no eu que favoreceria a construção de uma “obra falando sozinha uma linguagem própria”, como vimos no trecho acima citado, na medida em que a obra seria capaz de fazer-se no artista – mas justo ali onde ele não afirma um eu autor, e sim deixa-se criar, descentrado, por tal fala externa. Rafael, um jovem paciente do Engenho de Dentro, serve de exemplo para que Pedrosa possa formular uma espécie de presença artística do sujeito, justo no ponto em que o eu falha ou se fende. Rafael traçava em segundos seus desenhos, sem nenhum “controle consciente ou intelectual”, diz Pedrosa. O rapaz deixaria de repente seus companheiros de brincadeira para concentrar-se, em relâmpago de tempo, em si mesmo, ou sorrindo misterioso e alegre, não sei para quem, num jogo maravilhoso e autêntico, no curso do qual passava por vezes, pelas costas, o lápis ou o pincel de uma mão para outra, e com o mesmo movimento deixava o outro braço, agora armado, correr livremente pelo painel, conclusão de um gesto que vinha de longe. Nesse momento, sim, tudo era jogo, expressão, autenticidade.[246] Em uma espécie de escrita automática, como aquela sonhada – mais do que efetivamente realizada – pelos surrealistas, o gesto artístico de Rafael não vem dele próprio, mas “de longe”. Não é aleatório que Pedrosa tenha resolvido mostrar os desenhos do jovem ustamente a André Breton – que, segundo ele, os teria considerado superiores aos de Matisse. A expressão autêntica que interessa a Pedrosa é aquela mesma que funda o surrealismo como leitura
poética da psicanálise, mas que às vezes parece submergir no torvelinho de fascinantes figuras oníricas. A loucura aparece no pensamento de Breton como enigma sedutor (em Nadja, modelo da mulher misteriosa e inapreensível) ou como produção acabada (no livro de Hans Prinzhorn, principalmente), não como modelo da falha, da divisão do eu teorizada por Freud. Contudo, o fato de os surrealistas terem reconhecido prontamente a incidência do inconsciente na relação do sujeito com a linguagem mostra que eles compreenderam muito bem a proposta freudiana, melhor mesmo que a medicina da época. Tal apropriação das ideias psicanalíticas no campo da literatura e da arte resultará, diga-se de passagem, em uma base importante para a trajetória de Jacques Lacan, que frequentava esse círculo, foi médico de Picasso e recolheu importantes indicações de Salvador Dalí para a elaboração de sua tese de doutorado em medicina, defendida em 1932. Paulo Herkenhoff salienta que Pedrosa era leitor de Freud e ressalta sua ligação com os surrealistas, especialmente em sua estada em Paris nos anos 1930, mas nota que o crítico teve a clareza, “que outros latino-americanos não haviam tido até aquele momento, de que o surrealismo era a via fácil, mas não era a solução para a América Latina”. “No entanto”, prossegue, “isso não significava descartar a psicanálise, mas evitar sua borda mais banal e trazer a questão da psicanálise para o próprio processo criativo e da percepção.”[247] Na relação da psicanálise com a arte trata-se, muito mais fundamentalmente do que de uma imagética do inconsciente, da reafirmação da divisão do sujeito, do fato de o eu não ser mais “senhor em sua própria casa”, na famosa frase de Freud. Cria-se um novo espaço, na arte, porque lhe falta uma casa própria. Em vez de encontrar aí um lugar, estável, trata-se de pôr em prática, exercitar e comemorar sua condição centrífuga, seu exílio, a fenda que o constitui como outro para si mesmo. É curioso que Lacan, nesse mesmo momento fecundo de passagem para os anos 1960, também
fale, em seu Seminário 7, da arte como ligada à ética, e da própria psicanálise como, acima de tudo, uma ética. A ética / estética delineada por Lacan é a de uma subversão do sujeito: o que o determina mais intimamente está fora, o íntimo é êxtimo. A questão da relação entre arte contemporânea brasileira e surrealismo é complexa e merece um exame mais detido. Talvez o mais importante ponto de convergência resida na sofisticada concepção do objeto e de sua relação com o sujeito existente no pensamento surrealista. Ela aparece principalmente na ideia de objet trouvé , objeto encontrado, e está condensada na seguinte fórmula de Breton: “Nada do que nos cerca nos é objeto, tudo nos é sujeito”.[248] Tal jogo entre sujeito e objeto possibilita que se pense o objeto como sujeito, ou seja, o objeto não como produto de determinado sujeito e capaz de se relacionar com outros sujeitos, mas como espaço de surgimento do sujeito . Só então qualquer objeto pode se tornar tema (que também se diz sujet , em francês). Como ensina a psicanálise, é na relação com um objeto primordial de saída perdido (o seio que nos alimenta, no mito construído por Freud) que o sujeito surge – já apartado de si mesmo – e inicia sua busca desejante por objetos diversos. Temos talvez nesse apontamento surrealista o fundamento da revisão da expressão a que se dedicaram Pedrosa e os neoconcretos. Ressoa a fórmula de Breton na bela frase de Pedrosa em 1951: “A obra de arte vive subjetivamente”.[249] Em 1957, uma formulação aproximada aparece em uma nota, escrita por Gullar, Reynaldo ardim e Oliveira Bastos, que teve importante papel na ruptura com os poetas concretos de São Paulo: “A linguagem não tem nenhuma ação direta sobre o mundo dos objetos a não ser ‘no sujeito’, isto é, na proporção em que o mundo dos objetos, tornado significação, cultura, é já o sujeito”.[250] O objeto de arte é o sujeito. O mais íntimo está fora, no objeto. Esse é o gérmen do conceito de não objeto, desenvolvido posteriormente por Gullar. É por se definir justamente como tal
ogo entre sujeito e objeto que o não objeto, reafirmando “a arte como formulação primeira do mundo”, mantém com o sujeito uma relação, como afirma Gullar, que “dispensa intermediário”.[251] Para o crítico e poeta, graças à estrutura do não objeto, espectador e obra se fundem no espaço, durante a experiência artística. A negação do objeto é afirmação, nele, do sujeito, e é nesse sentido que “o não objeto reclama o espectador (trata-se ainda de espectador?), não como testemunha passiva de sua existência, mas como condição mesma de seu fazer-se”.[252] Em vez de se confirmar como parte de uma obra e pretender completá-la pela afirmação de seu eu, trata-se, na complexa reflexão neoconcreta, de transformar a si próprio através do objeto, na medida em que este apresenta algo fundamental ao humano e no entanto não é atributo de ninguém, mas está entre os humanos, na cultura. O eu se revira poeticamente no espaço, abrindo mão da expressão direta para tornar-se ele mesmo forma sinuosa, forma indefinida. Forma. Como já dizia Malevich, “as sensações de sentar, de levantar ou de andar são sobretudo sensações plásticas”.[253] Trata-se do espaço aberto para o surgimento de um sujeito sem substância e problemático, que não coincide nem com o artista nem exatamente com o espectador, mas aparece entre ambos, sempre outro, nunca idêntico a si mesmo. A participação do espectador, que tomará a linha de frente dos trabalhos de Oiticica e Clark e também de Lygia Pape, refere-se justamente a isso, a tal torção transformadora do sujeito, na maioria das vezes através de um objeto. O sujeito, em vez de reafirmar seu eu por meio da obra de arte, surge partido, dividido, e portanto capaz de se subverter numa sutil – a ao mesmo tempo violenta – partilha do mundo, de si mesmo, do outro (isso, afinal, que costumamos chamar cultura). A ÉTICA DA ARTE PÓS-MODERNA A definição de arte pós-moderna de
Pedrosa é forjada em companhia de Hélio Oiticica, em seu famoso texto de 1967 sobre o artista. Chegamos ao fim da arte moderna,
nota o crítico, e os critérios para apreciação de obras de arte não são mais os mesmos. “Estamos agora em outro ciclo, que não é mais puramente artístico, mas cultural.”[254] Esse ciclo, a “arte pósmoderna”, seria radicalmente diferente do anterior e se caracterizaria como “antiarte”. Nela, a produção contemporânea brasileira tomaria o papel de precursora: A esse novo ciclo de vocação antiarte chamaria de “arte pósmoderna” (De passagem, digamos aqui que desta vez o Brasil participa dele não como modesto seguidor, mas como precursor. Os jovens do antigo concretismo e sobretudo do neoconcretismo, com Lygia Clark à frente, sob muitos aspectos anteciparam-se ao movimento do op e mesmo do pop).[255] Em tal “arte na situação” ou, na expressão que Pedrosa toma emprestada de Oiticica, “arte ambiental”, as “estruturas perceptivas e situacionais” tomam a dianteira em relação aos “valores plásticos”. Ela derrubaria todas as “modalidades de expressão: pintura-quadro, escultura etc.” em prol da proposta de uma “manifestação total, íntegra, do artista nas suas criações”. Em vez de confirmar um solipsismo do eu, tal “manifestação íntegra” do artista é busca do outro – o outro como necessidade absoluta para que a obra se dê. Como frisa Herkenhoff, o neoconcretismo irá gerar sofisticados “diagramas de alteridade”. O crítico e curador ressalta que a proposta artística de obras “abertas”, que necessitam do outro para se completar, consiste em um “ato político” radical, sobretudo no contexto da ditadura militar a partir de 1964. Por isso Herkenhoff discorda fortemente da ideia corrente segundo a qual o neoconcretismo não seria politizado.[256] De fato, a “arte pós-moderna” é antiarte no sentido em que a própria arte dissolve seus contornos, suas delimitações, para se disseminar na cultura, em uma operação que deve ser considerada como intrinsecamente “política”, se considerarmos o termo em seu
sentido alargado como o que se dá na pólis, espaço comum no qual se inscreve a relação com o outro. A presença do artista implica uma torção, uma alteração de sua posição em prol do surgimento de um espaço do outro e para o outro. Nesse sentido, é significativo o uso que Lygia e Hélio fazem da fita de Moebius, objeto topológico que apresenta uma superfície unilateral. Essa fita apresenta uma torção da superfície que anula a distinção fora / dentro, contradizendo nossos hábitos espaciais e nos convidando a realizar com ela uma experiência – um trajeto existencial, no Caminhando de Lygia Clark, em 1963, ou um encontro complexo com o outro, como no Diálogo de mãos, de 1966, única obra realizada pelos dois artistas em conjunto.É curioso que Lacan também faça uso, como sabemos, da fita de Moebius em seu Seminário, tomando-a como “o suporte estrutural do sujeito como divisível”.[257] A ação, a participação, longe de serem meras modalidades de recepção da obra, são frutos da complexa operação que podemos chamar de subversão do sujeito: a ativação de sua divisão em relação a si mesmo, que corresponde a uma abertura ao outro. Ressoando essa autêntica experiência de alteridade, Adorno afirma que as obras de arte, “no instante da expressão”, podem tornar-se “aparições no sentido mais rico do termo, aparições de um outro”.[258] À maneira da fita de Moebius, a arte é antiarte, ambiental, porque está voltada para fora de si mesma. Como afirma Pedrosa, na arte de Oiticica “nada é isolado. Não há uma obra que se aprecie em si mesma, como um quadro”.[259] O PARANGOLÉ E O COLETIVO Oiticica explicita que a arte como
manifestação ambiental inclui outra manifestação, como sua “necessidade ética”: a “social”. O artista as unifica em uma “posição ética” que seria também política, porém destacada de qualquer proposta ideológica ou partidária – ela seria anárquica e radicalmente livre. Mas ele não deixa de alinhá-la à posição de
“todas as autênticas esquerdas no nosso mundo”.[260] Sua aproximação do samba e da favela da Mangueira deve ser vista nessa perspectiva de alargamento do terreno da arte para uma ação ética no campo mais ampliado da cultura. A noção-chave a respeito desse alargamento é o Parangolé . Esse termo nomeia estandartes e capas feitas a partir de 1964 e das quais boa parte apresenta, justamente, uma torção moebiana de tecidos ou outros materiais. É fundamental que ele se apresente em continuidade com o corpo, empunhado ou vestido, mas isso não basta: é necessário que se dance. Mas tampouco basta vesti-lo e dançar: é necessário um outro que olhe e assim participe dessa experiência. Mais fundamentalmente, o Parangolé vem, de saída, do outro. Trata-se, como vimos, de um termo literalmente achado na rua, em uma precária construção feita por um mendigo em um terreno baldio, com estacas entre as quais erguiam-se paredes de barbante. Em um pedaço de aniagem, Oiticica viu uma inscrição na qual constava a palavra “parangolé”, termo que na gíria significa algo como “agitação súbita, animação, alegria e situações inesperadas entre pessoas”.[261] O Parangolé é de ninguém e de todos e por isso o artista faz questão de que se manifestem, na exposição “Nova Objetividade”, em 1967 no Museu de Arte Moderna do Rio de aneiro, as “experiências coletivas anônimas” que teriam determinado sua formulação.[262] Muito mais do que indicar uma série de trabalhos com características próprias, o Parangolé é uma definição propositiva e aberta, como a Merz de Schwitters. O termo nomeia algo fundamental à arte, e que no entanto diz respeito a um campo muito mais amplo que o da produção propriamente artística. Parangolé é algo que se passa entre as pessoas, um acontecimento imprevisível, coletivo e anônimo, que se dá entre, enlaçando o outro e refazendo, nesse compartilhamento, a cultura. Dar voz e lugar a isso, refazê-lo na arte, é uma ação profundamente ética, transformadora e formadora da cultura.
Porque a cultura para Hélio não é um dado que herdamos da história, mas uma “raiz aberta”, a se refazer e inventar a cada momento em que a partilha de algo coletivo e anônimo nos oferece um ethos, morada efêmera e que só se delimita pela presença de outros que dela se avizinham. LYGIA CLARK E O SINGULAR Em carta de 1974, Clark conta a Hélio
várias fantasias tratadas em sua análise com Pierre Fédida em Paris, referindo-se a elas como “descobertas”, e afirma: “Um dia terei que escrever um livro onde essa análise unifique arte, criação e vida numa só experiência”.[263] Ela nota que seu trabalho se “encaixa” totalmente em sua análise, e isso a espanta. É, sem dúvida, uma radical concepção da arte como experiência fundamental vivida por cada um, de modo singular, que guiará sua decisão de receber pessoas individualmente para tratamento com seus “objetos relacionais”. Aproximando seu trabalho do processo por ela experienciado em análise, Lygia consegue, de fato, unificar arte, criação e vida. E assim alarga o campo artístico de modo a romper com as fronteiras tradicionais do campo da arte (o museu, o ateliê) para atingir o mais fundamental na relação com o outro. Ao conhecer Tunga, Lygia teria dito que não fazia arte. Segundo o artista, tal rompimento teria se dado porque “no espaço da arte já não cabia seu pensamento”.[264] Mas não se deve pensar que sua reflexão caberia bem e se resolveria no espaço clínico psicanalítico. artista se apropria de elementos da teoria psicanalítica para propor uma prática concebida por ela mesma e em total coerência com sua trajetória artística. O encaminhamento de Lygia para o trabalho “terapêutico” que ela chama Estruturação do Self (empregando a expressão do psicanalista inglês Donald Winnicott), a partir de 1976 até perto de sua morte, em 1988, é um alargamento das fronteiras da arte, em busca do outro e de uma apreensão extrema do acontecimento entre sujeitos de que se trata na arte – como na vida.
Esse trabalho se fazia com múltiplos objetos relacionais, que podiam ser conchas a se colocar nas orelhas ou nos olhos, almofadas, leves ou pesadas, recheadas de materiais diversos como isopor, areia, seixos, ou ainda objetos mais elaborados, proposições realizadas anteriormente pela artista, como a Máscara abismo de 1968, entre outras. Sua concepção aparenta-se à dos “objetos transicionais” de Winnicott: objetos em posição de trânsito entre sujeitos, objetos que substituem alguém (como, por exemplo, o cobertorzinho pode estar no lugar da mãe e ser absolutamente necessário para que a criança se tranquilize e adormeça). Com os objetos relacionais, Lygia põe o objeto em segundo plano, para acentuar a relação com o outro (não por acaso, Oiticica também gostava de chamar seus objetos – os “bólides” – de transobjetos). O objeto deixa de ter nele mesmo um fim e se transforma, assim, em um apelo, um convite ao outro e à construção de sua fala, de suas fantasias. É importante notar que eventuais objetos trazidos pelos seus “clientes” eram também incorporados ao trabalho. Em nota sobre seu trabalho “terapêutico”, Lygia afirma: “Dissolvo-me no coletivo”.[265] Se no Caminhando teria se despojado com nunca, diz ela, de sua individualidade, já a respeito de seu curso na Sorbonne, intitulado “O corpo e o espaço”, ela afirma, em 1974: “Vou me elaborando através da elaboração do outro”.[266] Se aí acontece algo como uma “estruturação do eu”, é graças à convocação de algo comum a duas pessoas, algo anônimo que se reativa graças às proposições da artista. Como ela dizia, de maneira antecipadora, já em 1963, a obra de arte toma novamente o sentido do anonimato. Todos terão a possibilidade de criar seu vir-a-ser. Com isso, ela perde realmente o conceito antigo de obra de arte, pois os museus serão laboratórios para que se encontrem novos “caminhando” para o indivíduo, tendendo a se fundir mesmo com o consultório do analista.[267]
Na busca absoluta, radical, do íntimo em Lygia Clark, temos também um alargamento “pós-moderno”: a arte rompe seus limites para se propor como aposta ético-estética fora do terreno da arte. Procura a morada do homem – sem centro, anônima porém coletiva – e dá lugar, em acontecimentos pontuais e efêmeros, a um sujeito sempre em transformação, com o outro.
A AURA E O SUJEITO EM WALTERCIO CALDAS E CILDO MEIRELES Conta-se à boca pequena um dito de Schuler, segundo o qual todo conhecimento deve conter um grão de contrassenso, assim como os tapetes ou risas ornamentais da Antiguidade sempre apresentavam em algum lugar uma ligeira irregularidade em seu desenho. Dito de outro modo, o decisivo não é a progressão de conhecimento em conhecimento, mas a rachadura no interior de cada um deles. Imperceptível marca de autenticidade, que a distingue de toda mercadoria feita em série, a artir de um modelo. WALTER BENJAMIN
Em Los Velázquez (1993), reproduzido posteriormente no Livro Velázquez (1996), Waltercio Caldas “apaga” as personagens do grande clássico da história da arte As meninas (1656), apresentando, em pequeno quadro a óleo, apenas a sala do palácio que abriga a cena da corte. O quadro não tem, é claro, a intenção de fazer-se passar pelo original – bem maior do que ele, inclusive –, mas se afirma como reprodução assumida ou, antes, mero lembrete daquela cena que se reconhece de saída, apesar da estranheza de sua “manipulação”. Ele coloca a questão do que é um quadro, um grande quadro, uma obra-prima como As meninas. Se não consiste nas personagens e no arranjo cênico entre elas, residirá ele em uma certa composição de luz? Uma arquitetura? Para completar, uma placa de vidro semiopaca interpõe-se entre o pequeno quadro e nosso olhar, tornando-o embaçado, um tanto desfocado. Como se tivéssemos fechado um pouco os olhos, para ver melhor (ou pior) – ou seja, para ver nele o que ali não está. Curiosamente, algo dessa obra-prima então se apresenta, se transmite, apesar de toda a limitação em sua reprodução. Ou melhor, algo traz de volta a aura do grande quadro do pintor espanhol, graças, justamente, ao fato de sua reprodução assumir-se como limitada e manipulada, além de um pouco borrada. A aura está fora do quadro. AURA E O INSTANTE A aura não é simplesmente, para Walter
Benjamin, a tradição, a autenticidade assinalando em uma obra seu pertencimento histórico. Ela marca “o aqui e agora da obra de arte, sua existência única, no lugar em que ela se encontra”.[268] Esse aqui e agora não é mais, obviamente, aquele do ritual, cujos resquícios ainda dariam à obra um caráter mágico no qual o valor de existência conta mais do que de exposição. Ele tampouco é aquele da exposição de As meninas no Museu do Prado, no lugar onde ela se encontra, em sala adequada à sua grandeza. Esse “aqui e agora” da aura designa um momento preciso e, no entanto,
imprevisível: o do olhar. Ele se demarca da contemplação prevista institucionalmente, indicando que a experiência estética não se restringe aos lugares que a cultura lhe assinala. No campo do olhar, a encenação se assume em uma autocrítica: não se trata mais de quadro, mas de ganhar o espaço, de tornar-se arquitetura (a arte por excelência, a única que sempre existiu, como nota o filósofo). O olhar dissemina-se no mundo, enquanto a contemplação estava confinada a lugares: a igreja, o museu. E no mundo, o olhar é móvel, incerto. As formulações benjaminianas em torno da aura, como afirma o início do célebre “A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica”, “põem de lado numerosos conceitos tradicionais – como criatividade e gênio, validade eterna e estilo, forma e conteúdo”, que poderiam, segundo ele, ser utilizados com fins “fascistas”. Os conceitos concebidos pelo filósofo, em contraponto, “podem ser utilizados para a formulação de exigências revolucionárias na política artística”, porque são dialéticos.[269] Da arte, pode-se então pretender retirar uma reflexão que vá além dela e além do princípio, reacionário segundo Benjamin, da “arte pela arte”, para atingir elaborações sobre o homem e a sociedade. Nesse sentido ampliado, o estético é sempre político, e é a aura – em sua crítica, ou na medida em que ela é pensada já em crise, só é identificada durante seu ocaso – que permite tal articulação fundamental. Mas devemos ir mais devagar, e voltar à própria definição desse conceito por Benjamin. Em suma, o que é a aura? É uma figura singular, composta de elementos espaciais e temporais: a aparição única de uma coisa distante, por mais perto que ela esteja. Observar, em repouso, numa tarde de verão, uma cadeia de montanhas no horizonte, ou um galho, que projeta sua sombra sobre nós, significa respirar a aura dessas montanhas, desse galho.[270]
reprodutibilidade, expandida e bem-acabada graças à invenção da fotografia e do cinema, põe em declínio a aura como “existência única” e garantia de autenticidade da obra de arte. Isso é fato e constitui a leitura mais disseminada a respeito da aura, sublinhando um aspecto fundamental a toda produção artística do século XX até os dias atuais. Mas isso não é tudo. A sofisticada dialética benjaminiana aponta como fundamental à aura, como vemos no trecho acima, um caráter de “aparição”, implicando uma temporalidade própria: à aparição deve-se suceder um desaparecimento. Ou talvez haja um desaparecimento anterior à aparição, e esta seja sempre, mais rigorosamente falando, uma reaparição (apesar de única, a cada vez). A cadeia de montanhas que se observa em repouso, numa tarde de verão, já estava, sem dúvida, à nossa vista. Mas é de súbito que ela aparece, em sua qualidade aurática, ao nosso olhar. O instante em que isso se dá desdobra-se em um passado. Por mais perto que esteja, a coisa olhada faz-se distante, porque é perdida no momento mesmo de sua aparição. É essa a sutil dialética convocada por Waltercio: ele opera sobre uma obra de “existência única”, aurática no sentido da tradição, para fazer dela uma ausência. A reprodução serve, mais do que ao propósito de “re-apresentar” a obra, para que ela seja evocada como perda. Reproduzir é fazer perder e, no entanto, no instante dessa subtração – ou um instante antes dela –, dá-se uma aparição única. Só em perda algo pode apresentar-se ao olhar; apenas à distância uma mera visão pode tornar-se aparição única. Essa é a temporalidade do olhar: só retroativamente, após o desaparecimento, uma vez estabelecida uma certa distância, acontece o instante aurático. A referência a uma cadeia de montanhas é, a esse respeito, eloquente: em se tratando de arte, de representação, essa aura que respiraríamos na paisagem está, desde o início, perdida. Mas algo na representação deve ser capaz de “projetar sua sombra sobre nós”, como o galho de Benjamin. A aura nomeia esse momento em
que estamos na representação , como em repouso em uma paisagem. Habitar a representação é torná-la uma apresentação, ou seja, é vivê-la como uma aparição. O jogo perto / longe da dialética benjaminiana implica, de fato, uma localização do sujeito. Ele talvez encontre um modelo no jogo do fort / da, a célebre brincadeira do netinho de Freud exposta em 1920 no texto “Para além do princípio de prazer”. O menino de dezoito meses jogava seu carretel para dentro do cortinado onde ele desaparecia (acompanhado da vocalização “oooo”, entendida por seus familiares como fort , algo como “longe”) e, então puxava o barbante para si, de modo a saldá-lo com um sonoro “aaaa”: da, aí está. Essa alternância é o marco zero da aquisição da linguagem pela criança e indica, segundo o psicanalista, uma grande realização cultural efetuada pelo menino: ele substituiria a mãe pelo carretel e, assim, se separaria dela ao mesmo tempo que criaria, a partir desse primeiro objeto, um mundo plural de objetos referidos a ele mesmo – perto ou longe, perdidos ou achados pelo olhar. A aura parece nomear o ponto de congelamento, cristalização desse movimento, dessa alternância, pondo à distância o objeto, por mais perto que ele esteja. Nesse instante, mais importante do que o carretel – suas propriedades, suas características – é o fio que o liga à mão do menino. Fora de cena, ele não é parte da imagem, do objeto, mas não deixa de ser a condição fundamental para que algo se ofereça ao olhar. CHOQUE E REPRODUÇÃO Talvez a aura possa ser aproximada da
efêmera beleza de que fala Freud em seu texto “A transitoriedade”, de 1915. Para o psicanalista, é justamente o caráter passageiro do belo que aumenta seu valor. “O valor da transitoriedade”, diz ele, “é o valor de escassez no tempo.” E prossegue: “A limitação da possibilidade de uma fruição eleva o valor dessa fruição”.[271] Fruir a beleza de uma paisagem, assim como das mais elevadas obras da civilização, implica, portanto, um luto antecipado por elas. Só é
belo o que está fadado à destruição, logo posto à distância de nós, mesmo quando se encontra muito próximo. Se a técnica de reprodução retira a obra do domínio da tradição, aquele da “unidade” e da “durabilidade” (para usar os termos de Benjamin), lançando-a no terreno mais incerto da “transitoriedade” e da “repetibilidade”, seu caráter de aparição súbita já o indicava, de modo fundamental. A aura coincide, nesse sentido, com seu declínio. Esse não indica exclusivamente que a obra perdeu sua ligação com a tradição e a história e, com isso, abriram-se as portas para sua utilização política como meio de controle das massas (o que o cinema viria realizar como nenhum outro meio, graças a seu caráter intrinsecamente coletivo e a seu alcance em escala industrial). Mais sutil, porém poderosamente, a reprodutibilidade põe em crise as noções de gênio, criação, estilo etc., de modo a reconfigurar o próprio campo da produção artística, pois marca uma transformação radical do campo da mímesis. À primeira vista, a reprodução reforça a representação mimética, à maneira como a fotografia e o cinema refletiriam o real. Mas “retirar o objeto de seu invólucro, destruir sua aura, é a característica de uma forma de percepção cuja capacidade de captar ‘o semelhante no mundo’ é tão aguda, que graças à reprodução ela consegue captá-lo até no fenômeno único”.[272] O “original” não é mais que um “semelhante”, e ali onde tudo é semelhante, não pode mais se tratar de produzir semelhança. Quando não há mais distância entre o referente, autêntico, e sua reprodução, é a própria lógica da cópia que se revira, revelando a quebra do laço entre signo e coisa, e marcando o colapso de qualquer garantia no campo da representação. A reprodução toma o lugar da mímesis e configura um território de dessemelhança e de distância entre signo e coisa, campo aberto para operações cruzadas e horizontais, em vez da rígida verticalidade hierárquica entre o original e a cópia, o referente e sua representação. Por isso “a arte contemporânea será tanto mais eficaz quanto
mais se orientar em função da reprodutibilidade”, ou seja, “quanto menos colocar em seu centro a obra original”.[273] A reprodutibilidade não diz respeito apenas à possibilidade de copiar uma obra, mas desestabiliza a própria ideia de um original a se representar. De fato, a reprodutibilidade técnica é uma operação que ganha um alcance político, nesse sentido: ela desdobra-se em gesto transformador da realidade, ao questionar o fundamento mimético da arte. Deixando definitivamente para trás o uso ritual ou mágico dos seus primórdios, ela alcança outra esfera fundamental. Como diz Benjamin, “em vez de fundar-se no ritual, ela passa a fundar-se em outra práxis: a política”.[274] A crítica da aura, e sua transformação em aparição para um olhar implicado num campo incerto de representação, já era perceptível nos dadaístas que, mesmo sem fazer uso de técnicas de reprodução, “aniquilavam impiedosamente a aura de suas criações”,[275] ao fazerem seus poemas fonéticos ou “saladas de palavras” ou ao misturarem em seus quadros ou colagens elementos díspares, usando materiais pouco nobres como botões ou tíquetes de trem. “De espetáculo atraente para o olhar e sedutor para o ouvido, a obra convertia-se num tiro”, diz Benjamin sobre tais manifestações. A obra não se coaduna mais à lógica da contemplação, ela implica aquilo que o filósofo, profundamente influenciado pela teoria freudiana do trauma, chama de “choque”. O choque pode ser “moral”, nas agressões dos dadaístas, ou “físico”, perceptivo, como nas bruscas mudanças de ponto de vista exigidas pelo cinema; o ponto fundamental é que ele corresponde às metamorfoses pelas quais passa o homem contemporâneo. Ou seja, o choque nomeia a falta de lugar estável para o sujeito, sua condição errante. Em vez de contemplar em repouso a cadeia de montanhas no horizonte, o homem moderno põe-se a praticar – nos parques de diversão, por exemplo – o que Benjamin chama “a arte de ser excêntrico”. [276] A aparição súbita que define a aura segue a lógica do choque e é,
portanto, retroativa, só-depois, submetida à temporalidade do trauma segundo Freud: apenas um instante mais tarde ela pode ter acontecido (Benjamin fala, a respeito da fotografia, de um “choque póstumo”). Essa operação temporal revira-se ainda, contudo, para visar o futuro. Também sobre a fotografia, Benjamin já falava de uma centelha de acaso, de “aqui e agora”, com a qual “a realidade chamuscou a imagem”. O espectador o procura, esse “lugar imperceptível em que o futuro se aninha ainda hoje em minutos únicos, há muito extintos, e com tanta eloquência que podemos descobri-lo, olhando para trás”.[277] O “aqui e agora” continua pulsando, há nele uma promessa de futuro localizada no passado. lgo virá, numa “aura” como aquela que o vocabulário médico conjuga à epilepsia: discretos sinais anunciando a crise declarada. E é esse o fulcro do “inconsciente ótico”: algo já aconteceu, deu-se uma aparição e, no entanto, ela vai se reproduzir, deve se repetir e por isso nos mantém diante desse objeto, dessa imagem, em uma suspensão tão angustiosa quanto gozosa. DESEJO E DISSOLUÇÃO DA AURA Em outro ensaio deste livro já falei
de Através, uma instalação de Cildo Meireles que tem quinze metros de lado e, em seu centro, uma grande bola de papel celofane de cerca de três metros de diâmetro. O artista localiza a origem da concepção desse trabalho no fato de um dia, em seu ateliê, ter chamado sua atenção um ruído vindo da cesta de lixo. Era um papel de presente, uma folha de celofane amassada que ali ainda se expandia. A bola ao centro da instalação não se expande, mas irradia luz própria, fazendo, tal como a folha descartada, com que se levante o olhar, ou se movimente o sujeito. Um barulho semelhante ao de sua expansão é assumido por nós, espectadores, convidados a caminhar sobre dezesseis toneladas de vidro quebrado que vão se partindo e reacomodando sob o peso de nossas passadas. Em volta da esfera, andamos por entre planos retangulares de superfícies diversas: tela de náilon, grade, cerca de madeira, aquário
de vidro onde nadam peixinhos transparentes, em uma espécie de labirinto cujas paredes o olhar pode atravessar quase totalmente. Os anteparos translúcidos ou vazados fazem da bola de luz algo distante, por mais perto que ela esteja. Através desses materiais diversos, a bola pode de repente aparecer, graças a essa modulação entre distância e presença que agencia nosso olhar sobre a esfera de celofane amassado, matizando sua luminosidade e, ao mesmo tempo, construindo um espaço ordenado para nossa movimentação. Ordenado e um tanto violento: as grades nos detêm, algumas barreiras nos limitam, ainda que translúcidas ou parciais. É essa a violência do deslocamento, da falta de lugar fixo e garantido para o homem – sob seus pés o solo não é firme, mas instável e quase perigoso. Sujeito a choques, condenado a flâner (o lâneur , para Benjamin, é o homem que saiu do enquadramento), esse passante não deixa pistas, não imprime pegadas nesse chão móvel. Cada passada dissemina-se em mil pequenos choques entre os mínimos pedaços de vidro, na ameaça talvez de que toda a cena se rompa em pedaços. A “sensação de modernidade” conquista-se ao preço da “dissolução da aura através da experiência do choque”, diz Benjamin.[278] Sua dissolução talvez não seja, porém, um aniquilamento, mas uma disseminação. A aura não está mais circunscrita à posição tradicional do espectador diante da obra, ela dissemina-se no mundo e derruba as fronteiras da arte. Aliás, ela denomina algo que de saída não era específico à arte, como mostra Benjamin ao vinculá-la ao amor, em rápida menção a versos de Goethe que seriam “a descrição clássica do amor, saturado da experiência da aura”: Nenhuma distância te faz difícil Vir voando e apaixonada [279] De fato, a aura é “manifestação irrepetível de uma distância”, na
medida em que sua complexa estrutura de proximidade e distância (como já vimos, ela é “a aparição única de uma coisa distante, por mais perto que ela esteja”) é aquela do desejo. Um verso de Baudelaire, citado logo a seguir por Benjamin, traz à luz essa posição do objeto de desejo perdido para sempre, e sempre a reencontrar: “E te amo tanto mais, bela, que tu de mim foges”.[280] Em sonho, Benjamin estava na rive gauche, diante da catedral de Notre-Dame. Mas não havia Notre-Dame, e ele fica transtornado de nostalgia: A extraordinária nostalgia que, no seio do objeto desejado, me assaltara, não era aquela que, de longe, tende à imagem. Era a bem-aventurada nostalgia que já franqueou o limiar da imagem e da posse, e só tem consciência da força do nome do qual vive a coisa amada, no qual ela se transforma, envelhece, rejuvenesce e, ela mesma sem imagem, é o refúgio de toda imagem.[281] Há uma nostalgia, portanto, que “tende à imagem”, “de longe”: o desejo encheria de aura, então, o objeto, tornando-o uma verdadeira imagem (ou seja, um objeto para o olhar). Mas algo acontece e leva a um “além” da imagem. Uma vez que a potência significante ou literal toma a dianteira sobre a “posse” que é a imagem, esta se transforma e dissemina, “assaltando” o observador. Qualquer ilusão de habitar a cena é perdida junto com o objeto desejado, provocando uma nostalgia que não é apenas sofrimento, mas também bem-aventurança. Talvez nosso termo “saudade” seja perfeito para denominar tal deleite da perda. O OBJETO OLHA Como em Através, entre sujeito e obra de arte não
há transparência e imediatez, mas alguma distância, anteparos, véus, grades diversas e superfícies translúcidas. Imagens, reproduções. Não se trata, no campo do olhar, de uma simples equação entre o olho e o objeto. Trata-se de uma cena montada no
espaço, em três dimensões, na qual o sujeito é convocado a se inserir de modo a se tornar também objeto do olhar: “Quem é olhado ou se crê olhado levanta os olhos. Experimentar a aura de um fenômeno significa dotá-lo da capacidade de fazer com que se levante o olhar”, afirma Benjamin. Algo chama o sujeito, numa caracterização do campo do olhar que se revela precursora das análises de Maurice Merleau-Ponty e Jacques Lacan. Benjamin prossegue citando Proust: “Certos amantes do mistério querem acreditar que nos objetos fica algo dos olhares que os roçam”.[282] A célebre experiência da madeleine, a sublime memória involuntária do escritor, teria a ver com a aura: capacidade de o objeto reacender sensivelmente o desejo no sujeito. Para Benjamin, Paul Valéry fala da percepção no sonho como “caracterizada pela aura”. “Quando digo: vejo esta coisa, não interponho uma equação entre mim mesmo e a coisa. […] No sonho, em troca, subsiste uma equação. As coisas que vejo me veem como eu as vejo”.[283] O olhar revira-se entre sujeito e objeto, e é então este último que parece olhar o sujeito, retirando-o do lugar de senhor da representação e brincando com sua ex-centricidade. Mas tal jogo de olhares não é recíproco como quer Valéry (ou talvez só no sonho ele possa apresentar uma perfeita reversibilidade). Assim como dizem do amor, o olhar costuma ser cego. Quando sou olhado, deixo de ver. Enquanto sou visto por alguém que também vejo, não estou no campo do olhar. Sou olhado, tomado pelo olhar capaz de dotar algo de aura, quando sou observado como se através de um buraco de fechadura, por um olho fora de cena (trata-se então de um olharem off , como se diz de uma voz em off ). “Poder-se-ia dizer”, escreve Benjamin, “que é tanto mais subjugante um olhar quanto mais profunda é a ausência de quem olha.” [284] Quem olha se ausenta, não é mais um sujeito em pé de igualdade com aquele que é olhado. Mostrando como esse jogo do olhar se dá no campo da linguagem e, portanto, comanda também
a literatura, o filósofo afirma: “Mesmo as palavras podem ter sua aura”. Como disse Karl Krauss, “quanto mais perto se olha uma palavra, mais longe a palavra olha”.[285] A palavra nos olha, subjugando-nos em sua poesia; ela estará, portanto, distante, quanto mais perto estiver. E a palavra “tem” ou “pode ter” aura, porque a aura não é atributo de qualquer imagem ou palavra, em si mesma, mas se define como uma certa relação entre objeto (imagem, palavra…) e sujeito, na qual o objeto é dotado da capacidade de olhar o sujeito, de chamá-lo, de fazer com que se levante seu olhar. Benjamin cita ainda os versos de Baudelaire, “O homem aí passa através florestas de símbolos / Que o observam com olhares familiares”. Em seguida, o filósofo comenta: “Quanto mais se dá conta Baudelaire deste fato, mais claramente se percebe a decadência da aura em sua poesia”.[286] Os símbolos formam florestas pelas quais o homem apenas passa, flâneur , incapaz de dominá-las e domesticá-las. Não é ele quem vê e emprega símbolos; ao contrário, ele é por eles observado. O familiar torna-se inquietante, seguindo a oscilação que define o estranho (Unheimliche) para Freud, no conhecido texto de 1919. Essa noção nomeia uma reviravolta entre familiaridade e estranheza que define o campo do olhar. O estranho diz respeito a “tudo que deveria ter permanecido secreto e oculto mas veio à luz”, na definição que o psicanalista vai buscar em Schelling.[287] O caráter de aparecimento da aura não deixa de se conjugar a essa pulsação entre o que se vê e o que se oculta, ressaltando a noção também benjaminiana de “inconsciente ótico”. Entre as coisas nos vendo como nós as vemos, no sonho de Valéry, e a inquietante floresta de Baudelaire há uma diferença sutil, porém importante: na segunda, a aura só se apresenta ao decair. Uma palavra pode então desmoronar sobre si mesma, como aconteceria na poesia de Baudelaire, segundo Benjamin. Em vez de roçar nossa pele como a sombra do galho na cena campestre da
aura, a palavra cairia sobre nossas cabeças como o céu dos gauleses, derrubando-nos, sem dúvida. Ou apenas desestabilizando, com esse choque, a posição do sujeito, e ao mesmo tempo disseminando a cena de modo a – como em Através – fazer dela inúmeros planos entre os quais ele deve se mover. Tudo é semelhança, mas não há “original” a que se assemelhar. O centro da representação não é mais que lixo, mas pode-se, não sem ironia, dotá-lo de alguma luz, para fazê-lo trazer à tona outra coisa que não ele mesmo. O desencontro entre homem e símbolo, entre sujeito e signo, reflete-se em nossa relação com os aparatos, a técnica e a tecnologia. “Uma das funções sociais mais importantes do cinema é criar um equilíbrio entre o homem e o aparelho.”[288] Esse equilíbrio parece perigoso, ele pode ser o das massas, da propaganda, da ideologia disseminada graças à distração. Mas Benjamin não deixa de apontar outra possibilidade: “Fazer do gigantesco aparelho técnico do nosso tempo o objeto das inervações humanas – é essa a tarefa histórica cuja realização dá ao cinema o seu verdadeiro sentido”.[289] Fazer da técnica um objeto humano. O aparelho técnico do nosso tempo não seria mais do que algo intermediário entre eu e o outro, não para que formemos, a partir daí, uma massa coesa e compacta, sempre em torno de um líder, como na célebre descrição feita por Freud em 1921 no ensaio “Psicologia das massas e análise do eu”. Mas um meio no qual se pode introduzir desvios, brechas onde o desejo possa fugidiamente aparecer, e o sujeito se apresente numa aura incerta e bruxuleante, disseminado por entre imagens, reproduções sem fim. Através do mundo. Na arte, o homem não se apresenta completamente, maciçamente, mas, na lição fundamental deixada por Freud, ele mal-está. De banda, meio atravessado, é aí o lugar privilegiado de sua súbita aparição – nessa morada da qual ele não é o senhor. É na cultura que surge, efêmero e disseminado, o que há de mais íntimo e singular – um pouco como Benjamin faz dizer um “poeta
contemporâneo”: “Para cada homem existe uma imagem que faz o mundo inteiro desaparecer”.[290] A imagem não está no mundo como a paisagem diante de nós, mas dele se exclui, se destaca, no momento agudo em que o sujeito nela se dissemina. Na decadência do mundo, a poesia então triunfa, pois ela divisa “espaços vazios” e neles se insere (como teria feito Baudelaire, ainda e sempre Baudelaire, segundo Benjamin). No desconforto, no deslocamento, pulsa e se dissemina uma centelha, no lugar da aura perene e bem estabelecida. Nossa tarefa histórica é com ela acender a técnica, refazendo espaços vazios e neles inserindo poesia. Mas já não seria esta a tarefa de um Velázquez, ou, na verdade, de todos os artistas? Baudelaire, visionário, concebia como tarefa artística em geral “que toda modernidade deva ter valor para se tornar futuramente antiguidade”.[291]
PARTE QUATRO
TRANSMISSÕES
ERNESTO NETO: A PELE E O ESPAÇO geometria nasce do reflexo do corpo rojetado na minha mente. LYGIA CLARK
pele é fora. Ela me delimita, traçando bordas e marcando fendas, passagens para o mundo. Espera-se que eu fique “dentro” de minha própria pele, encarnando uma unidade localizável em um dado local. Mas algo pode vir me revirar no espaço, tirando-me subitamente do lugar e apresentando a pele fora de mim, im-própria – e no entanto tão profundamente íntima. Os objetos e ambientes de Ernesto Neto convidam a essa reviravolta poética – essa “cambalhota no cosmos” que é, para Mário Pedrosa, o destino do homem.[292] Fora, encontro-me estranhada e ganho mobilidade. Ou melhor: devo redesenhar o próprio espaço, suas linhas e volumes, sua espessura, sua fina matéria. Pele e espaço brincam – como as crianças – com os limites, as margens, atravessando fronteiras e traçando curvas, pontuadas por frágeis ou firmes costuras. De repente, pende um volume, numa parábola abrupta, porém gentil. Em delicada tensão, tudo está, na verdade, prestes a cair. Diz: A gente está sempre caindo, o mundo está sempre caindo. O giro que o planeta dá em torno do Sol é uma queda constante, só que ao mesmo tempo que há queda, a velocidade mantém você nessa órbita. A gente está sempre caindo no chão, caindo na cama. O nosso corpo vai caindo, né? [293] Homem cadente: ele não está em si, mas no espaço – não tanto em ilimitada expansão quanto em tensão permanente. No espaço, ele não tem lugar fixo, esse herdeiro decaído das utopias nas quais floresceu o século XX. Fora encontra-se seu íntimo. — Malevich dizia que o crânio do homem é também cosmos. Neto
diria que a pele do homem é talvez o universo – ou melhor, universos múltiplos e cheios de dobras, de torções, improváveis paisagens que não conseguimos sequer imaginar, pois obrigam corpo e pensamento a uma louca cambalhota. Isso que a matemática concebe com números e fórmulas, Neto concretiza com lycra e sutileza. A ação da gravidade traçaria em suas instalações as únicas retas ali existentes. A natureza, lembra o artista, não apresenta reta perfeita, a não ser na linha virtual da queda do corpo no espaço. As gotas esguias formadas por algum peso – especiarias, plástico, isopor, lantejoulas – encarnam no tecido fino e flexível a queda, essa fundamental condição humana. Ela é revelada, porém contida, ou melhor: suspensa. Para de repente se apresentar, lúdica, na queda de um corpo (o meu, talvez) sobre um volume macio. Não há reta – aquela resultante da ação da força da gravidade está balanceada, modulada, e pode apenas ser intuída das linhas curvas formadas nas paredes elásticas de seus pendentes em forma de gota alongada. O cubo branco da tradicional sala de exposição transforma-se, sutil mas poderosamente, graças a essa arquitetura mole. Não se trata aí de coordenadas, de paralelas, mas de um espaço talvez hiperbólico, espaço curvo. Louco e lírico espaço. O espaço que não obedece à geometria euclidiana, esse impensável da matemática e da física, fascina os artistas desde o início do século XX. A quebra do protocolo de representação da perspectiva artificial empreendida por Cézanne e pelos cubistas tira o homem do lugar central que ocupava desde o Renascimento. Era essa sua maior ilusão. Rompida, ela cede lugar a uma mescla da arte com o mundo, seja em uma intenção iconoclasta, seja em uma utopia revolucionária (ou em ambas). E onde está o homem, nos novos “sistemas de representação” (para falar como Malevich) postos em ação na arte? Ele quer espaço. “Espaço não existe apenas para o olho”, escreve El Lissitzky em 1923, “ele não é um quadro; se quer viver nele.” [294] Não se trata,
porém, de nele viver como em um cubículo feito na medida exata do homem. Não se trata de tentar recuperar sua velha casa. No suprematismo, trata-se de abri-la ao infinito. Trata-se, é certo, de conceber um espaço sem centro, espaço excêntrico no qual o homem ganha em mobilidade o que perde em segurança. “O espaço existe para o homem”, sublinha El Lissitzky, “o homem não existe para o espaço.”[295] (Olho para a janela e me surpreende uma forma suspensa, curva recortada no céu azul de inverno, não muito acima da corcova de um morro carioca. Bem próximo – mas talvez por ilusão de ótica –, parado no ar, enquanto pássaros pretos passam rápidos e indiferentes entre mim e ela, parece estar uma pessoa num parapente, súbito surfista num céu sem ondas. Me encanta a duradoura suspensão, a paralisia que contradiz, de pé, a lei da gravidade. E contradiz o artista russo: o homem parece existir para o espaço.) Por um infeliz acaso ele teria os pés na Terra, na terra. Neto lhe restitui a suspensão. — O trabalho de Ernesto Neto mostra que não é necessário usar objetos topológicos ou complicadas fórmulas matemáticas para subverter nosso lugar no mundo. Sua lida com o espaço toma como evidência a sofisticada concepção de Heidegger: o espaço espaça. Ele é o que “recebe, abarca e guarda”, mas também espaça desbravando, libertando, liberando um “âmbito livre”, um “aberto”. [296] A escultura é uma confrontação com o espaço. Em um enfrentamento transformador, ela exploraria a relação indissociável entre homem e espaço: “O homem não faz o espaço; o espaço também não é nenhum modo subjetivo da intuição; ele também não é nada objetivo como um objeto. O espaço precisa, antes, do
homem para espaçar como espaço”. [297] “Homem?”, pergunta o filósofo. E responde: “Espaço”.[298] A geometria hipersensível de Neto segue e desenvolve a lição de Lygia Clark com a “linha orgânica”: a linha não é contorno, não é delimitação imposta pelo artista, ela deve surgir do delicado confronto entre duas cores, dois campos de pintura. Ela sobressai da superfície, linha-escultura, linha-espaço. A linha já é o sujeito. Com seu famoso Caminhando (1963), Lygia usa a fita de Moebius, o mais conhecido dos objetos topológicos, aquele que contraria nossos hábitos espaciais em suas fundamentais delimitações entre dentro e fora, direito e avesso. Não que lhe interessasse a topologia em si mesma. Trata-se de nela caminhar , rasgando-a com a tesoura, com ritmo e método, em um ato transformador do sujeito. Nessa ação, espaço e tempo se expandiriam e fundiriam, até o momento – crucial, apesar de menos ressaltado pela artista – em que a superfície da fita, delgada demais, em definitivo se romperia. É talvez esse rompimento que Neto toma num lance rápido da mão, para logo dispersá-lo, em gesto largo, no espaço. Ele não precisa de objetos para demonstrar a topologia, ele prescinde da própria geometria para ir além dela. Ele nem mesmo precisa da pangeometria de El Lissitzky; a matemática e a física já não nos parecem tão promissoras. Hoje, o artista recolhe e concretiza os precipitados daquele gesto subversivo de torção do espaço e do homem. Basta-lhe a força gravitacional – que Einstein toma, ustamente, como consequência da estrutura geométrica do espaçotempo. À geo-metria, medida da Terra, ele responde com a desmedida do gesto. Daí a enormidade de seu mais singelo objeto (uma bola de borracha, uma esfera de plástico, por exemplo). Daí sua menor tenda – penso na Fluência topológica em um campo estrutural para um onto de alta densidade, yeah! (1992) – construir uma catedral. Esse espaço desmedido, modulado em suaves curvas, passagens e gretas, nos oferece uma casa mole e que parece prestes a se
distorcer, obedecendo à lógica da topologia – essa espécie de delírio da geometria. Se topos é lugar, em grego, a topologia não é a ciência da localização, mas o estudo do fato, desnorteador, da falta de um lugar predeterminado para o sujeito. Poderia ter ele ainda alguma casa? Talvez a arte seja sua casa, só ela, efêmera em suas ações. Não o museu, em sua concretude arquitetônica e institucional, mas, às vezes, o que se passa ali (e pode se passar em qualquer parte). O espaço desmedido tem a ver com o vazio-pleno de Clark, mas deve ser modulado por superfícies curvas de maneira a nos convidar a nele deambular, a traçar uma trajetória, como no labirinto de Hélio Oiticica. “Quero que as pessoas se percam dentro deste labirinto transparente, um labirinto de tempo”, diz Neto.[299] O labirinto de Oiticica é, de saída, busca do corpo-cor. Na cor se encontraria o sujeito, adentrando o penetrável e fazendo dele, por menor que seja, um labirinto infinito graças ao gesto de mover suas placas, graças à andança dentro dele. O espaço se faz com o tempo, ambos se definem apenas por seu encontro nas trilhas do homem. Não é necessário recorrer à geometria, as paredes são discretas e não temos que encontrar o caminho certo, como nos labirintos antigos. Pois, no espaço, estamos de saída em um labirinto sem centro e sem saída. Ou seja, o labirinto é o mundo – e especialmente a favela, suspensa e precária construção do homem labiríntico. O espaço deve ser recortado por curvas, como nesses grandes tecidos suspensos estendidos a meia altura da sala de exposição (penso na exposição “From Sebastian to Olivia”, montada em Berlim, em 2007, mas há muitos outros exemplos recentes). Eles impedem uma visão total da altura do ambiente, contudo apresentam passagens por onde podemos subir (uma pequena torre nos convida a isso) e contemplar o “teto” tornado “chão”. Labirinto aéreo. Não seria o espaço multidimensional um labirinto complexíssimo, justamente? O traçado mais simplório de um
labirinto sobre uma superfície bidimensional cresce nos ares, transformando-se em um incrível emaranhado de passagens curvas que desembocam uma dentro da outra, e por vezes uma desemboca dentro de si mesma, sem que saibamos dizer, malgrado a extensão, a enormidade de alguns de seus vãos, se estamos em um espaço finito ou sem fim. Nessa travessia perpétua, cada compartimento é semelhante, porém diferente dos anteriores (e dele mesmo). E em cada um desses moles compartimentos de Neto – fato fundamental que ainda não levamos aqui em consideração – encontra-se gente. Gente caindo, gente andando, espaço-gente. Objetos para a gente: as pequenas torres de observação, algumas lúdicas peças de encaixar, piscinas de bolas de plástico ou água. Colchões com formato orgânico onde podemos exercer nossa queda e nossa suspensão. Formas infantis nas quais pulsa algo de abissal, préhistórico. Cheiros. Cores suaves dispersas pelos véus, ou cores que explodem em trabalhos bem recentes, lembrando que cromo-somos, somos cor, para além da biologia (ou, ainda, não somos mais do que cor, na grafia cromossomos). Corpo-cor, na expressão de Oiticica. Corespaço. Cor-vida. “A vida tem cor, ela bate, ela é crua”, diz Neto. Ela bate como o coração escarlate da exposição “The Edges of the World”, na Hayward Gallery (Londres, 2010), no qual se entra para fazer vibrar o tambor do peito. “Agora eu estou querendo a cor com volúpia.” O espaço necessita de recorte, de cor, de paredes (ainda que curvas e transparentes): ele só espaça, com o homem, quando partido. O espaço é partilha: partilha do sensível, como quer acques Rancière, repartição do campo perceptivo entre os sujeitos. Volúpia na qual cada um toma parte. Divisão na qual nasce o sujeito e o mundo, graças ao compartilhamento fundamental desses recortes. O espaço deve ser seccionado, eventualmente quadriculado como na geometria que a perspectiva artificial dos artistas renascentistas ajudou a forjar. Mas essa grade pode ser rompida.
Uma outra grelha pode interceptá-la de modo a criar uma fuga, um outro plano sutilmente perpendicular a ela (nas Malhas da liberdade de Cildo Meireles, 1976-77). Mas a lógica da grade pode também ser rompida por sua transformação em algo maleável, fino e colorido bordado a nos abrigar e suspender. O espaço já era de saída, como nota Ernesto, recortado em rede – em nível quase imperceptível, na malha do tecido transparente. A malha se define como um entrelinhas, algo composto de intervalos, de buracos regulares. Ela é capaz, graças a suas fendas, justamente, de capturar (peixes, animais ou, no caso que nos interessa, o olhar). Aquele que espaça é um espaço-entre, e não um espaço em si – o trabalho de Neto parece ensinar a Heidegger. À afirmação “O homem – espaço”, Neto retrucaria: “Entre os homens: espaço”. O Diálogo de mãos (1966) traz precisamente uma cinta elástica moebiana enlaçando os pulsos de Lygia Clark e Hélio Oiticica, como vimos. Apesar de Lygia sonhar com um “corpo coletivo”, ela sabe que a relação com o outro supõe o giro da fita, a torção topológica que põe meu íntimo fora de mim. Esse mesmo giro que Oiticica localiza no samba, e denomina Parangolé (não por acaso, boa parte de seus estandartes e capas têm uma estrutura moebiana). Esse termo, como já vimos, foi encontrado na rua, inscrito em uma efêmera construção de um sem-teto, de um andarilho, precário labirinto que prefigura alguns dos penetráveis e dos bólides do artista. Na gíria carioca da época, parangolé significava acontecimento súbito, agitação coletiva. Ele nomeia algo que se dá entre as pessoas, e define para o artista não apenas alguns objetos em continuidade com o corpo e que convidam a uma dança que envolve aquele que contempla, mas uma proposição maior e capaz de rebatizar, de modo um tanto enigmático, aberto, a própria arte. —
O homem cadente é o equilibrista que aceita sua queda, mas a transforma em dança. À seriedade concentrada, apesar de lúdica, do equilibrista de circo, Neto substitui o camelô, o vendedor ambulante sempre em movimento na grande cidade. Homem que gravita pelo incrível labirinto urbano. Essa figura retoma, implicitamente, o marginal / herói de Hélio Oiticica (“Seja marginal, seja herói”), aquele que vive da adversidade, construindo seu parangolé e nos convidando a com ele dançar. E dialoga com o camelô de Cildo Meireles, pequeno boneco de borracha que dança atrás de seus inúmeros e pequenos objetos – mil alfinetes, mil barbatanas de colarinho – que fascinam o artista por sua duvidosa utilidade, seu caráter de resto sensível da produção industrial em larga escala (Camelô, 1998). O camelô de Neto carrega um volume impressionante de objetos de pouco valor, equilibrando os ícones decaídos do capitalismo tardio. Homem cadente, ele se sustenta de maneira insegura, porém cheia de ginga, de “jogo de cintura”, como se diz. Novo Macunaíma – para retomar o personagem de Mário de Andrade que se tornou emblemático de certa concepção crítica de brasilidade, no contexto de nosso modernismo –, ele não se balança mais na rede, com preguiça, mas se pendura nos ônibus e se instala provisoriamente nas calçadas, sempre atento à aproximação dos fiscais da prefeitura, que lhe dará poucos segundos para juntar suas bugigangas e fugir. Ágil e um tanto ardiloso, ele é, ao mesmo tempo, “mole”, como a casa-arte de Neto. Ele tem dengo. O camelô é, na verdade, uma multidão: milhões de pessoas que inventam, nos países ditos periféricos, um meio de integração ao bruto sistema de consumo do qual foram excluídos, graças à chamada “economia informal”. Mas ele não constitui uma massa coesa, submetida ao poder do Estado ou da economia. Sua aceitação da lógica do capital tem fins mutualistas; ele se pendura nela para seu próprio bem, mas ao fazê-lo a subverte um tanto, flexibilizandoa criativamente e com prazer, com dengo. Dessa turba também faz
parte o malabarista de Cildo: ele realiza a façanha de materializar um objeto sem lugar no espaço, objeto-tempo que dança, lúdico gozo desafiando a queda inevitável (“O malabarista encontra um lugar no tempo”, diz o artista).[300] — Em 2005, Neto foi convidado a expor no Museu Freud, na histórica residência do psicanalista na Bergasse 19. No momento em que o curador lhe fez o convite, por telefone, o artista dirigia a certa velocidade; logo que disse “sim, claro”, entrou no túnel Rebouças, o mais longo do Rio de Janeiro, que o fascina. “As pedras têm peso”, diz ele, referindo-se às enormes rochas que formam os morros da cidade. “Há uma energia lá dentro” e há algo de escultórico nos túneis, nos morros, nesta cidade. A ideia de expor na casa de Freud não lhe era indiferente. Sua mãe fez muitos anos de análise, e durante sua infância e adolescência, nos anos 1970-80, era quase obrigatório fazê-lo, no meio carioca mais intelectualizado. “A psicanálise foi muito importante para mim. Eu mesmo fiz análise, obviamente”, afirma o artista, localizando o início desse tratamento em sua passagem para a idade adulta, antes de começar sua carreira. Para realizar Tractatus I Deuses, ele juntou vários elementos a respeito da psicanálise, de Viena e de sua proposta poética, em uma espécie de “coquetel” que compõe o que ele considera ser o trabalho de narrativa mais explícita e controlada de sua trajetória. Há um divã – mais precisamente, uma cadeira Thonet, remetendo ao célebre móvel austríaco de madeira em formas curvas que teve seu primeiro modelo fabricado em meados do século XIX. Ernesto tinha em casa uma Thonet, quando criança, e ressalta o fato de ela ter sido a primeira cadeira a ser exportada em larga escala, devido à praticidade de ser desmontável – o que o artista conecta ao “pensamento camelô”, tão importante em sua
poética. Quanto a Viena, chama-lhe a atenção ser a cidade natal de Ludwig Wittgenstein, a quem ele homenageia citando em seu título o Tractatus Logico-Philosophicus . O imponente tratado é ironicamente remetido aos deuses por Neto. Entre filosofia e religião, entre razão e transcendência, o artista faz do Id freudiano (o Isso, das Es, em alemão) um conectivo. Trata-se de uma montagem cênica pouco usual nos trabalhos do artista e que não pode ser penetrada, pois a galeria consiste em uma espécie de vitrine. Uma armação tubular de cobre delimita um espaço cúbico que é recoberto de tule de poliamida semitransparente rosada em algumas de suas faces. Dele se projetam sustentáculos do mesmo tecido suportando em seu interior em cubo menor também formado desse material. No interior do espaço assim delimitado, sobre uma pilha de livros, a cadeira equilibra-se precariamente, com suas belas curvas de madeira e seu encosto de palhinha. Nela recosta-se uma figura de tecido rústico inspirada na Vênus de Willendorf, a mais famosa peça antropomórfica pré-histórica, descoberta na Áustria em 1908. Ela tem costura aparente e apresenta diversos “umbigos”, por assim dizer, pontos que sobressaem da superfície formando nós. Da zona genital e do alto da cabeça partem meias de poliamida que vão sendo costuradas em bifurcações, formando uma estrutura orgânica e ramificada que toca as paredes do cubo em alguns pontos. Um dos pontos de sustentação para essa delicada estrutura que pende dentro do cubo é um balão cheio de bolas de plástico – localizado fora da cena, sobre o “teto” – que Neto diz ser o Id. O cubo mais externo seria o Superego e o interno, o Ego. “A gente está ali, dentro desse ego-nave”, diz ele. A meia que parte da cabeça liga-se diretamente à parede mais externa que representa o Superego. Mas uma bifurcação corta essa trajetória conectando-a aos tubos que vêm do Id e do sexo. Nesse ponto de conexão há um volume dentro da meia, marcando um encontro que o artista chama de “sinapse-cópula”. No chão, ao lado
da pilha de livros, um círculo de pequenas pedras remete a algo como Stonehenge, diz Neto. Recobertas pelo tule, as pedras formam um relevo sutil. O artista volta então a tocar na questão da concentração de energia, da densidade da pedra, de que falava a respeito dos túneis cariocas. Neto realiza com esse trabalho uma construção tópica própria, a partir daquelas que Freud fez questão de edificar. Ele materializa uma delicada e ramificada trajetória entre sexo e mente que vai delimitando lugares específicos, ao mesmo tempo que remete a uma narrativa virtual, à maneira de Duchamp com seu Grande vidro (ou A noiva despida por seus celibatários, mesmo , 1915-23). Sua visualidade é problemática, ela dá a ver algo que é um dispositivo, mais do que um objeto a contemplar. Os elementos estão ali, explícitos, mas é necessário que o olhador ponha algo de seu para que a máquina possa funcionar. Em sua transparência e suspensão, essa “casa” do homem psicanalítico tem algo de onírico. Ela flutua, desenhando um acontecimento, um frágil encontro que definiria o sujeito. — Enquanto preparava a exposição “Dengo” (no Museu de Arte Moderna de São Paulo, em 2010), Neto me falava dessa palavra tão brasileira e que compõe esse vocabulário íntimo, e um pouco infantil, que usamos nas relações amorosas. Subitamente ele fixou o olhar na sua frente, e me perguntou: “Você vê?”. Me fez, então, sentar em sua cadeira, para que dali eu pudesse contemplar um pequeno emaranhado de fios pendendo na lateral de uma mesa de computador. Um cabo curto e desligado estava caído sobre outro cabo, mais firme, e nele se sustentava delicadamente, quase tocando o chão, arqueando-se no ar. No mecânico circuito de cabos interconectados, na teia desumana do mundo dito globalizado, o
dengo desenha pontos sinuosos, moles tentáculos. Do diagrama ortogonal nasce uma topologia dançante. Da grade brota um colorido crochê, caprichosa e sinuosa costura. “Dengo” é essa suave e imprevista curvatura pela qual um fio, uma reta, cai sem chegar ao chão, pendendo belamente, vitoriosa porém frágil, aguardando que nosso olhar a descubra no meio do burburinho, das bugigangas do nosso mundo. Dengo é o gesto pelo qual troco de lugar com o outro, que oferece seu olhar dengoso a um compartilhamento. Com seu dengo, o camelô encarna o giro de que falávamos, acentuando a gentileza dessa torção pela qual estamos fora de nós e aí encontramos o outro, reconhecendo um comum a nós (rede colorida? véu transparente?) – que nunca está já dado, mas necessita ser a cada momento reinventado. Sabemos que o artista seria uma espécie de catador de lixo, para Walter Benjamin. Ele juntaria aquilo que a sociedade despreza e desdenha, para mostrá-lo transformado. Esse trabalho poético é, de saída, comum, nos dois sentidos do termo. Ele trata das coisas mais corriqueiras de modo a fazer delas um convite ao olhar (ou seja, ao afeto e ao pensamento, a um pensamento sensível, por assim dizer). E ele se dá naquilo que, impalpável, é de saída comum aos homens, coletivo e contudo radicalmente singular. Impróprio, próprio de cada um e propriedade de ninguém. O catador torna-se astronauta ou cientista louco e faz, de cada pequena coisa comum e desprezível, o cosmos (“Eu amo a ideia de meu trabalho parecer um big bang ”, diz Neto).[301] Tornado camelô, o que ele faz é pouco, é pendurar os restos da sociedade, expondo-os. Mas ele o faz com dengo, o que muda tudo. O dengo não é atributo de ninguém, ele é sempre um chamado, um apelo ao outro. Ninguém faz dengo sozinho. A criança ou o amante, com seu dengo, convida o outro. Neto faz disso que é tão íntimo, e no entanto nos revira para fora, em busca do outro, um espaço compartilhado. Nossa única casa possível. Nossa sensível habitação, dengosa, sempre em queda iminente: a arte.
LOUISE BOURGEOIS E O HETERORRETRATO autoexpressão é uma defesa. LOUISE BOURGEOIS
O quadro, seja qual for, e mesmo o autorretrato, não é miragem do pintor e sim armadilha para o olhar. ACQUES LACAN
Para Freud, a psicanálise poderia “pôr em evidência novas correlações nesta obra-prima de tecelagem que se desenvolve entre as predisposições pulsionais, as experiências vividas e as obras de um artista”.[302] Louise Bourgeois, falecida em 2010 aos 98 anos, parece ter tomado literalmente a metáfora freudiana, tornando-se uma grande tecelã que se referia insistentemente a sua própria vida, especialmente a certas vivências de sua infância. Para que seja possível tecer relações entre os três planos apontados por Freud (pulsão, vida e obra), pressupõe-se, contudo, que haja de um a outro diferença e distância. Em contraponto, a artista francesa radicada nos Estados Unidos parece ter dedicado uma parte de sua longa existência a misturá-los. Ao tentar tornar indiscerníveis vida e arte, ela se alinhava a uma importante preocupação das vanguardas da primeira metade do século XX e tornava-se, na década de 1980, um dos mais importantes nomes do chamado “novo subjetivismo” na arte contemporânea. A exposição itinerante “Louise Bourgeois: O retorno do desejo proibido”, vista em 2011 em São Paulo e no Rio de Janeiro, tem como eixo central a tese de que boa parte da produção da artista decorre diretamente de sua análise pessoal. A publicação, como um dos volumes do catálogo dessa exposição, de anotações variadas feitas ao longo de décadas, com o título Escritos psicanalíticos , é o ato final dessa mistura arte / vida. Esse ato é tanto mais significativo por se realizar praticamente no momento de sua morte. Isso sugere que Louise se ausenta, sempre, de alguma maneira – como ela anotava em 1957, “nós existimos principalmente por nossa ausência”.[303] ESCRITOS “PSICANALÍTICOS” A concepção curatorial dessa
retrospectiva baseia-se na tese de que existe uma relação direta e unívoca entre a obra de Bourgeois e o campo da psicanálise. Os trabalhos nela apresentados, segundo o curador Phillip LarratSmith, deveriam ser vistos como “formas simbólicas” com “raízes
psicanalíticas”.[304] Disso seus “escritos psicanalíticos” forneceriam supostamente a prova. As notas soltas da artista que compõem tais “Escritos” foram encontradas por seu assistente em duas levas, em 2004 e em 2010, aos milhares, dentro de caixas. A seleção agora publicada põe em evidência a análise pessoal da artista, até então ausente de seus escritos e declarações. As anotações presentes no catálogo por vezes mencionam – mas nem sempre – seu analista e seu processo analítico, ao lado de reflexões diversas, lembranças fragmentárias, relatos de sonhos e rápidas menções a Melanie Klein, Freud e Marie Bonaparte. Há trechos como “em que consiste uma inveja do pênis (?) Como prová-la (?)”,[305] mas também falas prosaicas como “gostaria de ser como todos os outros adultos”.[306] Essas notas estão longe de constituir o corpus imponente de Escritos psicanalíticos sugerido pelo título. As notas intercalam observações sobre a vida e o trabalho da artista, mas raramente estabelecem relações diretas entre o processo analítico pelo qual passava e o que produzia como arte. Quando alguma relação é esboçada, ela parece pobre, capenga, diante dos elementos em jogo. “A escultura pode integrar muita agressão cega”, porém isso não basta, a escultura “exige mais que isso”, reconhece a artista em nota de 1962, por exemplo.[307] Ou a ligação é rápida demais, e a interpretação se esvazia: “Os dois desenhos que representam as mamas da mãe podem ser o refúgio na mãe depois da decepção provocada pelo pai. Digo isso racionalmente, não por percepção”.[308] A própria Bourgeois não parece dar muito crédito a esse tipo de relação simbólica, portanto. Sem deixar de evocar simbolismos desse tipo ao longo de sua obra, ela afirma desconfiar das palavras. Eu suspeito das palavras. Elas não me interessam, elas não me satisfazem. Sofro por causa do modo como as palavras esgotam a si mesmas.
Suspeito dos Lacans e Bossuets porque eles gargarejam com suas próprias palavras. Sou uma mulher muito concreta. As formas são tudo… Com palavras pode-se dizer qualquer coisa. Pode-se mentir por um dia inteiro, porém não se pode mentir quando se recria a experiência…[309] Mas, se “as formas são tudo”, a artista não deixa de empregar palavras em seu trabalho – não só em títulos, como em comentários e fabulações autobiográficas que devem ser considerados parte de sua obra, e não algo exterior a ela e capaz de decifrá-la. Além de suspeitar de Lacan, Louise Bourgeois também se declara decepcionada com ele, bem como com Freud e André Breton, pois eles lhe “prometeram a verdade e só mostraram teorias”. Ela declara ainda que os dois grandes psicanalistas nada teriam feito pelos artistas, e que ela simplesmente não poderia “usá-los”.[310] Se ela “usa” muito a psicanálise, não é, portanto, por devoção ou homenagem. A menção ao bispo e teólogo do século XVII JacquesBénigne Bossuet, por sua vez, parece feita para que não restem dúvidas a respeito do quanto a artista põe em questão suas próprias falas e reconhece não deter, em suas palavras, o saber sobre sua obra (e si mesma), como vemos no famoso trecho do grande orador católico: amiúde o que tu sabes, não o sabes; o que está em ti, está longe de ti; tu não tens o que possuis. Portanto, não concordo em absoluto com Larrat-Smith quando ele – após ter dito que os “escritos psicanalíticos” de Bourgeois são “herméticos e patológicos”– afirma que “os textos psicanalíticos de Louise Bourgeois elucidam as interconexões entre sua própria análise, suas leituras de literatura psicanalítica, sua excêntrica
produção artística, sua relação simbólica com os materiais e sua invenção formal”.[311] Parece-me, antes, que esse material, que possui frequentemente o tom de relatos de sonhos, faz com que nos percamos em fluxos de escrita, em evocações múltiplas, com frequência impossíveis de localizar, em detalhes, sofrimentos, sintomas e fragmentos de sonhos que são os restos, as ruínas de uma vida. Entre essas relíquias por vezes parecem se projetar efemeramente – apenas por um segundo – um ou outro trabalho plástico de Bourgeois, em um vago e plural palimpsesto impossível de decifrar. Tanto melhor. DESIDENTIDADES Como sempre – quando se trata de análise, e
também de arte – os diversos elementos de que se compõem esses escritos mostram-se lacunares e multívocos. Disso decorre seu interesse: eles entram no jogo complexo já existente entre as obras e as declarações da artista, podendo eventualmente levar a novas ideias a respeito de seu trabalho. A obra de Bourgeois continua viva, pulsante, à espera não só de nossos olhos mas também de nossa fala, de nossos escritos. Nessa perspectiva, porém, é importante insistir que as anotações da artista devem ser tomadas não como algo que, de fora, viria esclarecer o significado de um ou outro de seus trabalhos artísticos, mas como parte de sua obra, assim como os diários que ela manteve ao longo da vida e preservou para a posteridade. E entre os diversos elementos que constituem esse conjunto talvez não haja homogeneidade e identidade. Na “obraprima de tecelagem” evocada por Freud, talvez alguns fios estejam rompidos e outros acabem estranhamente revelando-se como pedaços de um tecido diferente. Tomar como um dado a identidade entre os elementos do trabalho da artista e a psicanálise é, por um lado, levar a sério – ou tomar de forma literal – a clara presença de elementos de psicanálise nas falas e escritos da artista a respeito de algumas obras. Por outro lado, é ignorar a reflexão que seu trabalho artístico
realiza, nele mesmo, a respeito da questão da identidade. Esta é desfeita e explorada como múltipla e distorcida, como por exemplo em Cell xxiv (retrato, 2001), presente nessa exposição. Nessa “célula”, rostos duplos são costurados em trio e disseminam-se em inúmeros pontos de vista graças a dois espelhos duplos fazendo ângulo na parte inferior da caixa. Onde está a imagem, o reflexo “correto”? Onde localizar aí alguma identidade? Não se trata de subjetivismo acrítico em Louise Bourgeois. Ela recusa-se a falar diretamente de sua vida pessoal (“Não gosto disso”, diz em entrevista de 1976).[312] Sua obra não é seu retrato fiel, mas distorção, “reconstrução de um passado”, exploração da linguagem, do objeto e da imagem de modo a fazer outra coisa, fora dela mesma. Entre sua vida, suas “disposições pulsionais” e suas obras, não se trata de encontrar fortes fios à espera de serem trançados em um tecido resistente (e capaz de tudo encobrir). Mesmo o que se apresenta como clara declaração pode se revelar um fio roído. A tessitura talvez esteja prestes a se desfazer, sua trama não é linear e mostra buracos, rasgos e remendos. Em vez de confirmar o papel da psicanálise como instrumento de decifração de “formas simbólicas”, o trabalho desta artista, ao referir-se literalmente à psicanálise, desloca e torna vã qualquer possibilidade de decifração. O que haveria a decifrar diante do já mencionado trabalho A destruição do pai (1974), objeto tridimensional que se apresenta como uma espécie de palco reduzido, em cuja superfície interna inferior e superior brotam formas orgânicas em borracha cujos moldes eram órgãos de animais, como coxas de galinha e pernil de cordeiro? Para Larrat-Smith, a “realização catártica” desse trabalho fecharia o “período psicanalítico” de Bourgeois, iniciado ao mesmo tempo que sua análise, em 1952. As obras mais tardias teriam, segundo ele, “mais um caráter de crítica: o par de células Red Room (Quarto vermelho) critica a cena originária, o Arch of Hysteria (Arco da histeria) critica Charcot etc”. [313]
Sobre A destruição do pai, a artista declara: Há uma mesa de jantar e pode-se ver que acontecem vários tipos de coisas. O pai está se pronunciando, dizendo à plateia cativa como ele é ótimo, todas as coisas maravilhosas que fez, todas as más pessoas que prendeu hoje. Mas isso acontece dia após dia. Uma espécie de ressentimento cresce nas crianças. Chega o dia em que elas se irritam. Há tragédia no ar. Ele já fez demais esse discurso. As crianças o agarram e o põem sobre a mesa. E ele se torna a comida. Elas o dividem, o desmembram e o comem. E assim ele é liquidado.[314] Esse comentário não é um elemento constituinte do trabalho, mas não deixa de fazer parte dele. Trata-se, é óbvio, de uma versão ficcional do mito elaborado por Freud em “Totem e tabu” – que por sua vez já era uma ficção necessária para que se conceba a organização estrutural do sujeito. Ficção sobre ficção, fabulação sobre mito, a referência da artista à psicanálise se dá menos como apresentação simbólica de conceitos psicanalíticos do que como citação quase literal. Em vez de se deixar interpretar ou decifrar pela teoria psicanalítica, trabalhos como esse assumem a psicanálise como terreno de diálogo ou apropriação – trazendo-a para dentro do campo da arte, ao mesmo tempo que problematizam o próprio domínio artístico em prol de um alargamento de seu campo de ação e de relação com teorias sobre o homem e o mundo. Não há nada a ser descoberto porque tudo já é encobrimento. Tecido sobre tecido. (Seria toda imagem, toda arte sempre lembrança encobridora? – nos faz perguntar Bourgeois.) Tratar-se-ia então, nos seus trabalhos artísticos, do retorno de “desejos proibidos”, ou melhor, para ser fiel ao título da exposição em inglês (“The Return of the Repressed”), de retorno do recalcado?
Em seu texto sobre a Gradiva, Freud refere-se a uma gravura de Félicien Rops mostrando um asceta que, tentando expulsar a tentação pela imagem do crucifixo, vê aparecer no lugar do Cristo uma lasciva figura de mulher nua na cruz. Essa seria uma espécie de modelo do recalcamento, capaz de mostrar, como nenhum outro, que “quando o que foi recalcado retorna, emerge do próprio recalcante”.[315] Diante de cada trabalho de Bourgeois, cabe perguntar: o que é a cruz, o que é a mulher nua? Recalcado e recalcante se confundem a ponto de não serem mais identificáveis como esses dois elementos díspares. Pensemos por exemplo em Sleep II (1967), escultura de mármore no formato de um pênis largo e discretamente pendente. Tem-se aí explicitamente um pênis, não se trata de a psicanálise desvendar na obra a presença do pênis como uma significação subtraída ou escondida. Sleep II não simboliza um pênis sob o modo do recalcamento – ou seja, disfarçando, apresentando o elemento recalcado sob um modo alusivo ou enigmático. Não há distância entre o que simboliza e o que seria simbolizado, por isso parece não haver símbolo. Um pênis é um pênis, literalmente. Mas, ao lado da presença material do mármore branco e de algo que não sabemos bem o que é em sua forma, chamá-lo de Sono faz dele outra coisa. Coisa poética. A literalidade pode parecer ingênua. Isso já não é um pênis, mas continua sendo um pênis, claro. E referindo-se explicitamente à teoria psicanalítica. Em outro exemplo importante, as Filletes de Bourgeois apresentam plasticamente a equação girl = phallus estabelecida por Otto Fenichel, psicanalista austríaco que se estabeleceu nos Estados Unidos em 1938. Mas a literalidade não é isenta de operações e agenciamentos simbólicos. Ela consiste em uma sofisticada (e por vezes desnorteadora) rede de operações plástico-linguísticas. A CONSTRUÇÃO DO TRAUMA Essa exposição revela e põe em primeiro
plano um fato até agora tomado como incerto e que havia sido negado pela artista em entrevista de 1993: [316] Louise Bourgeois fez análise durante vários anos. Seu analista foi Henry Lowenfeld, entre 1952 (após algumas sessões com outro analista, Leonard Cammer) e 1966, e ela continuou a vê-lo, de modo esporádico, até 1982. lemão, judeu e marxista, Lowenfeld teve como analista e mentor ustamente Otto Fenichel, que era integrante do primeiro círculo de discípulos de Freud. Lowenfeld chegou a frequentar a Sociedade Psicanalítica de Viena antes de emigrar para os Estados Unidos às vésperas da Segunda Guerra Mundial, e em uma de suas reuniões apresentou um escrito que se tornou um clássico sobre a dinâmica psíquica do artista. É óbvio que essa apresentação de caso não podia se referir a Bourgeois, pois apenas quinze anos mais tarde ele começaria a recebê-la em análise. Estranhamente, porém, ao ler Lowenfeld tem-se a impressão de que poderia se tratar dela. Enquanto a obra artística da paciente, escapando relativamente da inibição, pode constituir um exutório para suas tensões, ela pode se poupar da formação de sintomas neuróticos. Os quadros desse período […] eram uma representação repetitiva das experiências traumáticas de sua infância assim como de traumatismos mais tardios. A compulsão à repetição exige que a ferida seja sempre mais uma vez reparada.[317] Lowenfeld caracteriza o artista como alguém propenso a conflitos neuróticos e situa a produção artística como uma saída sublimatória, fazendo referência à clássica teoria kleiniana da reparação. Mas o principal ponto da reflexão desse psicanalista, sua contribuição original, é a ideia de que o artista seria traumatofílico. O elemento marcante do caso clínico por ele apresentado é a importância dos traumatismos na vida desta paciente. Experiências pouco diferentes nelas mesmas de experiências
vividas por outros sujeitos revestem-se nela de um caráter traumático e vêm se inserir na estrutura traumática da paciente. Mais do que isso, ela provoca ela própria situações que, no seu caso, revelam-se traumáticas.[318] Bougeois parece tomar as ideias de Lowenfeld ao pé da letra. Ela afirma, em nota de 1959: “O menor estímulo me afeta como um acontecimento / da maior importância […] faço de tudo uma história terrível na qual / as coisas vão de mal a pior”.[319] Outra anotação, do mesmo ano, prossegue: “De mal a pior, eu digo – Esse é o / meu bordão”.[320] Dizer que assim ela homenageia seu analista pareceria muito forçado. Bourgeois chega a mencionar a ideia de catarse, afirmando que seu trabalho lhe permitiria livrar-se da raiva e da agressividade ou apaziguar sua angústia, em uma nota ou outra. Mas Arte é uma garantia de sanidade, trabalho de 2000, é uma inscrição deliberadamente precária, em lápis sobre papel – como se as próprias letras imprecisas pudessem questionar tão peremptória afirmativa. Talvez a artista, ao citar afirmações da teoria psicanalítica, introduza uma torção paródica capaz de criticar a posição afirmativa da teoria. Capaz de pôr em questão o reducionismo da ideia de cartarse como libertação de conflitos e a rigidez da equivalência simbólica, para assinalar a complexidade e a multivocidade do inconsciente (ou seja: da vida). FICÇŌES A mais insistente referência de Bourgeois a suas vivências
de infância é apresentada em Abuso infantil, narrativa acompanhada de fotografias de época e de obras da artista publicada em 1982 na revista Artforum, da qual reproduzimos parte do texto: Alguns de nós somos tão obcecados pelo passado que morremos disso. É a atitude do poeta que nunca encontra o paraíso perdido e é de fato a situação dos artistas que trabalham por um motivo que ninguém consegue apreender. Talvez queiram reconstruir
algo do passado para exorcizá-lo. É que, para certas pessoas, o passado tem tal atração e tal beleza… Tudo que faço é inspirado no início de minha vida. À esquerda, a mulher de branco é A Mestra. Ela veio para a família, mas dormia com meu pai e ficou dez anos. Então você vai me perguntar: Como é que numa família de classe média uma professora era uma peça do mobiliário-padrão? Bem, o motivo é que minha mãe a tolerava e é esse o mistério. Por que o fazia? [321] pós mencionar o fato de que a mãe a usava para vigiar seu marido e que isso é “abuso infantil”, além de lamentar a traição que teria sofrido por parte de seu pai e também de sua professora, Bourgeois conclui: “Todo dia você tem de abandonar seu passado ou aceitá-lo, e se não conseguir aceitá-lo torna-se uma escultora”.[322] Referências como essa talvez possam, sim, ser tomadas em Bourgeois como construções em análise, ou seja, recriações, fabulações. Elas se apresentam como evidência (e podem apresentar fotografias como uma espécie de “prova”), mas são assumidamente “reconstruções” do passado, na tentativa de “exorcizá-lo”. O trabalho artístico seria homólogo ao trabalho analítico, nesse sentido. Suas construções correm o risco, porém, de se tornarem lembranças encobridoras. Elas recobrem o trauma e mais escondem do que mostram o recalcado. A fixidez e a insistência nessa narrativa apontam notadamente para essa possibilidade, que a própria artista evoca várias vezes através de uma citação de La Rochefoucauld: “Como disse La Rochefoucauld, ‘Por que vocês falam tanto? O que é que têm a esconder?’. O objetivo das palavras muitas vezes é esconder as coisas. Eu quero ter uma lembrança total e um controle total do passado. Então, que sentido teria mentir?”.[323] A narrativa de Abuso infantil é uma variante edípica, é claro, mas
isso não faz dela um trauma, propriamente. Independentemente da vida de Louise, contudo, se definirmos o trauma (lembrando-nos que o termo significa ferida, em grego) como aquilo que se repete, causando sofrimento e demandando elaboração, percebemos que seu funcionamento fornece os fundamentos da proposta de Bourgeois, seu tema preferido e a própria estrutura de seu trabalho, que repete incessantemente certas recordações quase anedóticas. O trabalho artístico mimetiza a estrutura do trauma e o reconstrói ficcionalmente, poeticamente. A teoria de Lowenfeld parece, assim, ser confirmada por sua mais famosa paciente, que se apresenta como uma traumatofílica empedernida (como ironiza um blog a respeito da artista, “a dor é o meu negócio”). Mas ali onde esse psicanalista pressupõe absoluta identidade entre a pessoa e o que ela produz, a artista introduz uma torção: para ela como para algumas outras pessoas, “o passado tem tal atração e tal beleza…”, como vimos em Abuso infantil. No que seria trauma, a artista aponta beleza. E atração: inclusive para um outro, para outros. Há um claro endereçamento ao outro, na apresentação de tais elementos supostamente biográficos e íntimos. Para Freud, boa parte de nossa atividade psíquica consiste na produção de fantasias análogas àquelas criadas pelo escritor ou artista em suas ficções. O eu é formado ficcionalmente, como ressalta Lacan, e não bastam os fatos em si: os acontecimentos de nossa vida devem formar uma espécie de romance. Nossas fantasias são realizações de desejo, mas nos outros provocariam repulsa ou indiferença. No domínio da arte, esse terreno de jogo e brincadeira, as fantasias do artista seriam capazes, contudo, de enganchar as nossas próprias fantasias, levando-nos assim a extrair delas algum deleite. Para chegar a tal efeito, segundo Freud, o poeta ou artista deveria suavizar e disfarçar o caráter egoísta de seus devaneios, além de seduzir com um “prazer puramente formal, isto é, estético”.[324] Louise Bourgeois parece contradizer o psicanalista, ao assumir
suas fantasias e traumas como radicalmente pessoais. Ela ensina que é justo ao apresentar a intimidade de modo extremo que se alcança algo universal, algo que está entre os humanos. É o radicalmente “pessoal” que toca o outro, é o singular que chega a tocar o que é comum a todos. Para alcançar o universal, dedique-se a pintar sua aldeia, como se sabe desde Tolstói. Mas a estratégia da escultora não é tão simples e merece mais atenção. Não se trata da fantasia ou do trauma brutos, neles próprios, e sim de engatar o processo de (re)construção do trauma, assumindo-o como largamente estruturado pela ficção, pois há nele algo – que é o que realmente interessa evocar – que só pode ficar “escondido”, porque, a bem dizer, é impossível de apresentar como tal. Ao mesmo tempo que parece apresentar literalmente sua própria vida, a artista afirma: “Jamais falo literalmente; para compreender-me é preciso usar analogia e interpretação, saltos de todo tipo…”.[325] Essa afirmação é um tanto irônica, pois um trabalho como Abuso infantil impede qualquer interpretação no sentido de uma decifração de algo que ali estaria disfarçado. Mas ao negar a literalidade a artista aponta que um trabalho como este já é interpretação, e não mais propriamente memória, nem muito menos fato ocorrido. Quando algo é aí apresentado como uma lembrança, é na medida em que esta se assume como ficção, em sua própria apresentação – seja qual for o seu grau de fidelidade em relação às vivências factuais da artista. Se todo dia tem-se que abandonar o passado ou aceitá-lo, e quem não consegue aceitá-lo torna-se uma escultora, como vimos afirmar Bourgeois, essa recusa a aceitar implica não simplesmente repeti-lo literalmente, mas dele fazer algo, com ele construir outra coisa – uma escultura, eventualmente. Ela não abandona o passado, tampouco chega a esquecê-lo, mas dele forma “sedimentos”, como indica em uma de suas notas: “Que os sedimentos se formem selados pela / paz da desmemória”.[326] Segundo Larrat-Smith, os escritos recém-revelados de Louise
Bourgeois “certamente confirmam a centralidade da memória em seu processo criativo”.[327] Isso é verdade, mas apenas na medida em que a artista faz da memória uma desmemória. Isso não parece corresponder exatamente à ausência de memória, mas sim à lembrança de algo que se assume como não recordação. “Tive um lashback de algo que nunca existiu”,[328] diz Bourgeois em um livro feito artesanalmente em tecido e sugestivamente chamado Ode à l’Oubli (Ode ao esquecimento), de 2002. Além dessa frase, a única inscrição ali presente é “The Return of the Repressed” (O retorno do recalcado). Isso sugere que para a artista o recalcado tem a ver com o retorno, a recordação de algo que não houve, mas é um importante acontecimento humano. O passado pulsa, fragmentário, demandando reconstrução, e as esculturas formam dele sedimentos, precipitados que são testemunhos do acontecido, mas também são dele uma desmemória, ou seja, marcam a impossibilidade de total revivescência. Não é o estudo da psicanálise, mas sim, provavelmente, sua própria experiência em análise que mostra a Louise que o inconsciente não é um baú de imagens maravilhosas ou terríveis que podemos recuperar, mas uma escrita fragmentária, uma inscrição intermitente de traços de memória, o encontro fortuito com cacos de palavras e imagens multívocas e em fuga. Na recordação trata-se de cenas, sejam elas vagas ou bem construídas, que com frequência escondem outras cenas. A lembrança é fragmentária ou até mesmo inexistente (habitando aquilo que Freud chama de Outra Cena), ou é lembrança encobridora, véu sobre outra coisa que não se deixa lembrar, mas deve ser construída ficcionalmente para que se tenha algum acesso à verdade do sujeito. AUTORRETRATOS >Afirmei acima que não se trata de autorretrato
na obra de Bourgeois. Não se trata de clara e direta remissão a sua autobiografia, mas de fabulações – de fabulações psicanalíticas , eu
diria – que realizam uma espécie de paródia da psicanálise, sem deixar de homenageá-la e talvez, até certo ponto, sem querer contradizê-la. Mais do que usar a psicanálise como referência cabal, Bourgeois mimetiza, em seu trabalho, isso de que se trata em uma análise. Mas talvez devêssemos considerar os trabalhos de Louise Bourgeois, sim, como autorretratos – posto que de alguma maneira ela neles se apresenta. Ainda que nem todos sejam acompanhados de uma narrativa autobiográfica, eles se referem fortemente a ela e a tornam presente como uma espécie de aura. Louise está em cada uma de suas peças no sentido em que Freud diz que no sonho estamos em toda parte, podemos ser qualquer um dos personagens (e talvez – por que não? – mesmo dos objetos materiais aí presentes). A respeito de Janus florido (1968), ela afirma: É simétrico como o corpo humano e possui a escala daquelas diversas partes do corpo a qual, talvez, se refira: uma máscara facial dupla, dois seios, dois joelhos. A sua posição dependurada indica passividade, mas sua massa atraída para baixo expressa resistência e duração. Talvez seja um autorretrato – um entre muitos.[329] Essa indicação não nos habilita a interpretar a escultura como se se tratasse de um sintoma histérico, como tenta, sem nenhum pudor, fazer Larrat-Smith. Ele ignora a principal objeção a esse tipo de aventureira explicação: apenas as associações da própria analisanda poderiam, se fosse o caso, trazer os elementos para uma interpretação. Mesmo que Louise o tivesse feito com Lowenfeld, porém, seria questionável a pertinência de tal trabalho – sempre incompleto, como toda interpretação – para o estudo de sua obra. Parece-me muito mais interessante refletir sobre o modo de construção de um retrato de si realizado pelas esculturas de Bourgeois. Há algo dela neste objeto por ela construído. Mas ela
mesma não sabe bem do que se trata: há algo que se apresenta como busca, hesitação, porque é impossível chegar a uma verdade cabal a respeito de si próprio. Em um dos primeiros ditos Escritos psicanalíticos , em 1951, ao relatar um sonho, a artista nota: Talvez não seja a verdade mas pode ser uma forma de verdade, você sabe tão pouco, tem de tentar fazer o possível para aprender a ler o que a rodeia! […] Vou perder minha verdade agora que a tenho, vou perdê-la.[330] Na boca de uma escultora, a expressão “uma forma de verdade” toma outro relevo. A “verdade” se apresenta como formas diversas. O que nos rodeia deve ser “lido”, pois suas formas podem revelar alguma verdade. Mas esta não é única, e talvez se perca assim que cremos obtê-la, pois essa verdade faz desse eu um outro. Todo autorretrato, toda autorreferência carrega a declaração de Rimbaud de que “o Eu é um outro”, [331] explicitando um abalo, fundamental ao século XIX, cujo tremor atinge ainda os dias de hoje. Seu epicentro foi o surgimento da fotografia, capaz de realizar com precisão extrema a pauta mimética prevalente nas artes plásticas até então e deslocá-la para dar origem à arte moderna. Os retratos pintados, que antes eram caras e demoradas aquisições burguesas, em poucas décadas se tornaram fotografias populares a ponto de servirem ao objetivo de identificação policial, e por fim geraram as pobres fotos 3 × 4 de nossos documentos de identidade. Porém, como bem nota Guimarães Rosa, os retratos fotográficos são enganadores, as fotografias, mesmo tiradas em sucessão, podem ser bem diferentes umas das outras e nisso apenas refletem nossa problemática relação com o espelho – “O espelho, são muitos”, diz o escritor.[332] Na busca de minha verdadeira forma, fixo alguma imagem capaz de ancorar meu eu e fazer-me esquecer da sentença de Rimbaud. Mas não por muito tempo. Alguma estranheza está
sempre à espreita e me assalta, em instantes fugidios que a arte do século XX muitas vezes buscou suscitar. “Tudo isso deve ser considerado como dito por um personagem de romance”, diz Barthes na epígrafe de sua autobiografia.[333] Esse trecho está reproduzido, no livro, em letra cursiva. Se a frase nega a aderência do sujeito a sua obra, a letra – seu traço, rastro de sua presença corporal – a ressalta. Ou seria de outro que não Barthes essa caligrafia? HETERORRETRATOS Bourgeois afirma que “toda a obra de um artista
é a realização de um autorretrato”.[334] Em vez de uma ficção onde se afirme um eu, trata-se, nesse retrato, de problematizar a natureza do eu, mais do que de lhe restituir um lugar de direito. O moderno quer ver-se outro, ou quer ver a si mesmo para além do retrato. Essa talvez seja ainda a grande paixão de nossos tempos. Ela emerge de uma catástrofe, ou melhor, de um naufrágio – aquele do poema “Um lance de dados jamais abolirá o acaso”, de Stéphane Mallarmé.[335] Nem mesmo no fundo do naufrágio o eu encontrará alguma morada, este eu que está sendo, no exato momento em que Mallarmé escreve esse poema de 1897, desalojado por Freud da consciência de si. Nem mesmo o acontecimento tenebroso podia lhe fornecer alguma âncora, na vertigem do poeta. “Nada terá tido lugar senão o lugar.” Mas algum lugar paradoxal parece então restar ao eu, um espaço que anula todo acontecimento mas se afirma como lugar (de anulação). Espaço revirado de vagas, ossos, onde alguma “elevação ordinária” não faz mais do que verter “a ausência”. Espaço escultórico, talvez. O sujeito não é, aí, mais do que o lugar de uma “memorável crise”. Espaço informe, perigosa e múltipla travessia – “nessas paragens do vago onde toda realidade se dissolve”. Mallarmé “escava o verso”, como diz ele mesmo, de modo a atingir um espaço inimaginável onde a realidade já se dissolveu e, diante e contra ela, o homem se dispersou. “Quem escava o verso”,
analisa Maurice Blanchot, “escapa ao ser como certeza.” Tal experiência marcante de incerteza “do ser” faz do eu um lugar móvel e vertiginoso, girando em torno de um sumidouro. “Quem escava o verso morre”, chega a dizer Blanchot, “reencontra sua morte como abismo.”[336] Bourgeois repete sempre o mesmo gesto de autorreferência, literalmente, para designar a frase de Rimbaud: Eu é um outro (já que a “a repetição do retrato”, como diz Barthes, “leva a uma alteração da pessoa”).[337] Ou, pior: Bourgeois repete e repete a autobiografia, para da alteração tentar fazer uma anulação, chegando quase a enunciar: eu não é . “A larva tira a seda da boca, constrói o casulo e quando termina ela morre. O casulo exauriu o animal. Eu sou o casulo. Não tenho ego. Sou meu trabalho”, declara a artista em 1988.[338] Em vez de um espelho capaz de fixar o eu, o trabalho anula o eu. Entre o eu e o sujeito do inconsciente a obra cava uma distância, uma diferença fundamental. Quando a artista declara, em 1993, “eu sou meu trabalho”, ela acrescenta em seguida: “Não sou o que sou como pessoa”.[339] Algo dela mesma só pode surgir em seu trabalho com a condição de se diferenciar do que ela seria “como pessoa”. Não se trata de confirmar, na obra, o que a artista já era como “eu”, mas de colocar a tônica em algo que escapa nela mesma e no entanto lhe é fundamental – e só surge como obra. Há aí uma alteração, uma torção fundamental, perceptível também na frase: “Na verdade, minha obra é mais eu que minha presença física”.[340] Compondo um certo personagem-artista, um certo alterego que não só se relaciona com o ego, mas o anula e substitui, Louise assim se retira, mas, ao mesmo tempo, não deixa de apresentar algo muito íntimo – a ela e também a nós todos. Isso não quer dizer, porém, que a obra artística se limite a construir um alter ego capaz de se oferecer como “a verdadeira” Louise, em uma espécie de revelador alterretrato. Trata-se de criticar a própria ideia de unidade de si e dispersar o sujeito nos objetos,
nas esculturas ou na paisagem. Referindo-se a esculturas de mármore branco feitas no final da década de 1960, mas falando de boa parte de sua obra – ou talvez, em um certo sentido, de toda sua obra –, Bourgeois diz: “Bem, estou em todas essas paisagens, paisagens inconscientes, suaves, o máximo da suavidade – até os Cumuls (Cúmulos) pertencem todos ao mesmo grupo. São antropomórficos e também são paisagens”. [341] Na arte, o sujeito está disperso. Não é possível apresentar dele um retrato – a não ser que se trate de um heterorretrato: retrato díspar e opaco, que não reflete uma coisa ou alguém que estaria fora dele, mas se compõe como heterogeneidade assumida e buscada como tal. No final dos anos 1940, Bourgeois realiza uma série de figuras em escala humana, de madeira, que expõe na Galeria Peridot. Entre elas está Sleeping Figure (Figura adormecida). Ela afirmava se tratar da criação de um ambiente no qual o espectador pudesse caminhar entre as esculturas, a disposição de cada uma e a distância entre elas sendo fundamental. Estava em jogo a necessidade de tornar presentes figuras de que ela tinha muita saudade, e dessa forma ela reconstruía um “passado indispensável”.[342] A peça One and Others, de 1955, tem um título que “poderia ser o mesmo de muitas a vir”, diz a artista.[343] Nela as figuras em escala humana dão lugar a formas pequenas no mesmo material, e o espaço que havia buscado entre as peças se retrai: “Toda a distância foi reduzida a zero. As formas se tocam e funcionam exclusivamente ao se tocarem, ao se relacionarem”. Graças a isso a artista teria entrado no “espaço abstrato”.[344] Bourgeois não diria, parodiando Rimbaud, que a escultura é um outro, mas afirma, peremptória, que “a escultura são os outros”.[345] Mais do que significar que ela em seu trabalho destrói e reconstrói simbolicamente os personagens de sua vida, essa frase enuncia que sua escultura não é ela mesma – mas são os outros (nós) nos quais cada um se reencontra um pouco, singular, e no entanto diferente de si
próprio. Trata-se assim, no trabalho de Louise Bourgeois, fundamentalmente, da relação entre o eu e os demais, de modo a deslocar o sujeito do seu próprio eu e recolocá-lo em jogo com os outros. Diz-se que boas cercas fazem bons vizinhos, mas Bourgeois replica, categórica, que “boas cercas são obsoletas”.[346] Ela conta que seus vizinhos derrubaram uma cerca para fazer outra muito maior e ela então teria utilizado os esteios da velha cerca para fazer uma escultura, embalando-os em grupos unidos por uma fita metálica. A arte pareceria, dessa maneira, se revoltar contra a cerca que nos separa – aquela mesma barreira existente entre cada eu e os demais, e capaz de gerar em mim, como afirma Freud, uma reação de repulsa ou indiferença em relação às fantasias do outro. Para destruir essa cerca e permitir que algo se passe entre os eus, Bourgeois não disfarça o que há de pessoal na sua fantasia, nem se ocupa em seduzir o espectador por seu aspecto meramente formal, como faria o artista segundo Freud. Sua obra constrói uma intimidade que denuncia e põe em xeque a própria estrutura da cerca, mostrando a falácia de tal delimitação estrita para cada eu. Assumindo e pondo em ato a ideia de que a própria figura do artista tem algo de ficcional, ela denuncia, de forma paródica e não destituída de humor, o fato de que todo eu é construído ficcionalmente. Com isso, como quem dá uma rápida piscadela para seu interlocutor, ela revira sua obra em apelo ao outro, em convite a que ele entre em sua suposta intimidade para que aí, por debaixo da cerca, nesse “espaço abstrato” que é o da arte, algo se transmita que é singular, mas comum (pois construído com os outros, de saída). O sujeito: heterorretrato de todos e de ninguém. Como diz Louise Bourgeois em uma entrevista de 1997, “a beleza é a busca do ‘outro’”.[347]
MILTON MACHADO E A ARQUITETURA DO PENSAMENTO Mais filosófica que a ciência e mais rigorosa, ou seja, mais próxima da essência da coisa − é a arte. MARTIN HEIDEGGER
rte é um troço mole, por isso são necessários fios flexíveis para tirar suas medidas. MILTON MACHADO
Milton Machado é um arquiteto sem medidas e um historiador do futuro. Em seu trabalho parece se condensar, em um pulsante e heterogêneo caos, nada menos que o mundo (um pouco como o aleph de Borges: tudo estaria ali, ao mesmo tempo). Quando nos aproximamos um pouco mais, porém, percebemos o rigor do traçado lógico e a ousadia da construção poética. “A expressão do que existe é uma tarefa infinita”, como dizia Merleau-Ponty.[348] Mas ao arquiteto não basta exprimir o que já existe. Exprimir o que existe é, obrigatoriamente, construir o mundo (e seu tempo), incessantemente e de forma plural. Não se trata, portanto, de tecer sobre a realidade uma malha de ficção, como talvez tenha feito até hoje boa parte da literatura e da arte. Trata-se de revelar a própria estrutura que sustenta a relação entre coisa e linguagem e embasa nossa ilusão de realidade homogênea. Trata-se, como na música, de um trabalho de significantes, reordenando domínios como o do ritmo, da harmonia, da melodia. Talvez isso tenha alguma relação com a paixão foliã de Milton ao tocar tamborim na bateria Tsunami do tradicional bloco carnavalesco das Carmelitas, e com sua prática solitária de improviso no violão. Menos especulativamente, pode-se supor ligada a isso a importante presença da música em vários de seus trabalhos, em geral em parceria com seu grande amigo Rodolfo Caesar (mas também com Alexandre Fenerich e Vania Dantas Leite, mais pontualmente). Nas cogitações poéticas de Milton, trata-se de tocar o mundo, refazê-lo. Redesenhá-lo. presentar suas tripas, ou seja: a estrutura simbólica que coincide em parte com o sistema da linguagem, mas em outra grande parte o transforma, obrigando-o a ir além dele mesmo, apontando para os restos que o transbordam e põem em xeque. Porque tal estrutura é precária, fragmentada, está puída como tecido velho. É necessário reinventá-la. Como na máquina do mundo de Carlos Drummond de Andrade, estamos diante de uma revelação. Mas ela não vem de repente,
como no poema, brotada da terra pedregosa de Minas durante uma perambulação do poeta. Seu aparecimento é laborioso, pois coincide com uma verdadeira reconstrução do dispositivo criador do mundo. Diante da possibilidade de sua súbita revelação, o artista não renuncia e parte, mãos pensas, deixando que se reencerre a resposta final que ali se oferecia. Ele sabe, de saída, que não há resposta, e por isso põe a mão na massa; o pensamento força o sulco do chão de barro e revira-lhe os torrões, refaz o mundo e pergunta, sabendo que terá que repetir mil vezes essa operação, cada vez um pouco diferente. O artista é a própria máquina do mundo. Para assim revirar o mundo, é necessário ao mesmo tempo construir uma narrativa e ir além de qualquer narrativa, subvertendo-a. É impossível e sem interesse retomar a velha manta da modernidade com suas grandes e unívocas narrativas. E já que não há uma História, mas muitas histórias, variadas e sempre parciais, toda história, em vez de narrar fatos, ao se desdobrar revela sua própria potência de gerar mundo (o que ecoa a ideia de mundo erigindo mundo de Hélio Oiticica, sem, contudo, que se possa identificar aí uma influência direta para História do futuro). O simbólico é um jogo, uma aposta. A partir de sua leitura de Lévi-Strauss, Lacan anuncia que “o inconsciente é estruturado como uma linguagem” porque estamos tomados em um jogo de significantes que produz intersubjetividade. Assim se constrói nossa realidade, como num jogo de par ou ímpar. A estrutura é jogo imprevisível, e não sistema imutável. A estrutura é máquina: ela gera mundo e portanto está voltada para o futuro, só se realiza depois, assim como o significado de uma frase se oferece após o fim de sua enunciação, retroativamente. O inconsciente, da mesma forma, ignora a passagem do tempo cronológico – sob seu domínio o passado não ficou para trás, mas continua pulsando no presente, traçando narrativas futuras (que Freud chama de fantasias). A temporalidade do inconsciente é aquela do só depois, da retroação. O
passado lateja e demanda (re)construção, ele não cessa de retomar sentidos, retroativamente, e de apontar sua seta para o futuro. Diariamente, reinventamos nossas histórias do futuro. E sem a garantia do fato anterior e já dado de modo definitivo, toda história torna-se paródia de si mesma. O TRUQUE “A graça do mágico está no truque, não na levitação”,
afirma Machado. O truque é subitamente revelado, e o grande mágico torna-se voluntariamente um farsante, um manipulador. O artista muitas vezes parodia a mágica alheia, os ilusionismos consagrados, para neles revelar o truque. No recente vídeo Vermelho (2009), uma placa de metal vermelha é reinserida na linha de pintura de uma fábrica de móveis de escritório. Ali onde circulam, em um sistema fechado e perfeito, peças ainda não pintadas, o monocromo abre subitamente uma brecha e faz da indústria, pintura, dialogando ironicamente com a história da arte. A tradição pictórica assim se conjuga à indústria formando com ela dois lados de uma mesma moeda. E o agenciamento poético revira as condições de produção e recepção, ogando com as relações entre sujeito e objeto. A peça vermelha, que já havia passado pelo processo de pintura, volta ao circuito de modo a se reinserir nele como uma espécie de observador. O que era objeto inerte e industrial, fruto de uma linha de produção, torna-se outra coisa, torna-se um sujeito-pintura. Na exposição de 2009 na galeria Nara Roesler que tinha como título, justamente, “Produção”, a placa era exposta como uma tela, ao lado de uma montagem de gaveteiros da mesma cor, empilhados e com gavetas semiabertas, formando uma espécie de escada ( Pilha). “Havia a placa como elemento de produção e o móvel como produto”, diz o artista. “Um espionando o outro.” Ao artista não interessa produzir objetos − nem mesmo objetos potentes como os ready-mades, capazes de questionar o estatuto da arte ante a indústria. Interessa a ele introduzir fissuras, pequenas
perturbações capazes de revelar todo o sistema. Da mesma fábrica vieram estantes e praticáveis que, montados no salão, receberam então as obras do acervo da galeria, antes guardadas em sua reserva técnica (na qual, em troca, foram dispostas placas de metal). Ao longo da exposição, compradores ou visitantes eram recebidos no próprio espaço expositivo, não em escritório reservado, e os funcionários eventualmente precisavam aí manipular as obras de outros artistas representados pela galeria. Tudo o que normalmente está fora e fornece o enquadramento socioeconômico que sustenta uma exposição – o armazenamento, a comercialização, as negociacões entre os atores desse jogo – tornou-se parte da “produção” do próprio artista. Tratava-se, nas palavras de Machado, de “um modo de reagitar o objeto da circulação trazendo-o de volta para a produção”. A inserção de um elemento dissonante no circuito de produção industrial parece dialogar com as Inserções em circuitos ideológicos de Cildo Meireles. A mensagem “Yankees go home” decalcada na garrafa de Coca-Cola ou o carimbo “quem matou Herzog” nas cédulas de cruzeiros são elementos estranhos ao processo de produção desses suportes, mas que mantinham com eles, naquele momento histórico do país, uma evidente relação ideológica de oposição. Já o circuito trabalhado por Machado, décadas mais tarde, parece despido de qualquer ideologia. Não se trata tanto de inserção quanto de distorção: elementos internos são utilizados de modo a revirar o próprio circuito, forçando-o a funcionar contra ele mesmo, ou melhor, levando-o a mostrar o sistema que normalmente fica oculto sob a primazia do resultado, de seu produto final. Trata-se, para usar o termo do artista, de reagitar objeto e sistema de produção e de consumo de arte. Reagitar um sistema é investigá-lo e explorá-lo, performando ou mimetizando suas operações para revirá-las de modo a mostrar o truque, revelar o engodo no qual nos encontramos imersos a ponto de naturalizá-lo ou de a ele ficarmos cegos. Todo sistema, como os
de produção industrial ou artística, configuram-se em relação à ordem do simbólico, o domínio da linguagem ao qual estamos de saída e inexoravelmente submetidos. Machado trabalha a linguagem e a realidade por ela conformada, de modo a, ao mesmo tempo, refletir sobre a arte, o homem, o mundo. Nisso ele parece se alinhar a Joseph Kosuth, para quem a arte teria tomado para si, na contemporaneidade, as questões sobre o homem e o mundo nas quais a filosofia teria fracassado. Machado é um dos raros artistas no mundo que de fato performam tal tarefa filosófica, que o próprio Kosuth acabou evitando em prol de uma reflexão mais sobre a própria arte e menos sobre o sujeito e o mundo. O artista não compartilha a crença, que em sua opinião sustentaria a proposta de Kosuth, de ser possível investigar a própria “natureza” da arte para chegar a sua “verdade”. Não há verdade da arte. A própria arte não pode, portanto, ser capaz de chegar a uma meta-arte, tampouco poderia alguma teoria filosófica fornecer sua explicação última. Desse modo, Machado coloca as mãos na massa, por assim dizer, das teorias, não para adotá-las e aplicá-las, mas para fazer com elas outra coisa, coisa de pensamento divertido e, muitas vezes, plástico. Ele de fato apaga as delimitações, invade fronteiras e perturba tanto a expectativa de uma obra de artista quanto de uma reflexão de filósofo. Sua atividade como professor universitário, PhD em fine arts e pesquisador do CNPQ não é, em absoluto, secundária ou contingencial, mas manifesta tal hibridismo fundamental a sua proposta. A DIVERSÃO A arte não é uma evidência, não é um dado, uma
imagem ou um objeto. É uma busca, ou melhor: uma investigação. Mas trata-se de As férias do investigador , como afirma o título do trabalho de 1981, e o pensamento torna-se uma diversão: o que retorce, mostra o verso e desvia da versão consagrada. Assim, Machado mistura erudição e gíria, rigor investigativo e improviso jazzístico, lógica irrepreensível e batucada. O artista-
investigador de férias “dá um tempo em seu compromisso com a verdade e faz dela arremedos suspeitos”. Ele cria paralogias malandras, explorando as possibilidades de subversão da linguagem. Entre essas, o dispositivo da diáfora assinala em seu pensamento a preocupação com questões que marcaram a arte desde que Raymond Roussel encena, em 1919, suas Impressões da frica, influenciando toda uma geração de escritores e artistas, e notadamente Marcel Duchamp. Diáfora é a figura de linguagem presente em construções como, em Camões, “novos mundos ao mundo irão mostrando”. Roussel a radicaliza, no início de sua obra, tomando como regra usar termos multívocos como “bande” (indicando a lateral de uma mesa de bilhar x um bando de criminosos), nas frases quase homófonas “les lettres du blanc sur les bandes du vieux billard ” e “les lettres du blanc sur les bandes du vieux pillard ”, para a partir delas construir uma narrativa iniciando-se com a primeira e se concluindo com a segunda. Apesar de as duas frases serem quase idênticas, a distância semântica entre elas é enorme: a primeira refere-se a letras escritas com o giz de bilhar nas laterais de uma velha mesa do jogo; e a segunda, a cartas de um homem branco sobre os bandos do velho pilhador. Tal diferença assinala que é apenas retroativamente, ao final de cada frase, em sua última palavra, que se precipita o sentido. A língua não está inteiramente submetida à significação, mas é primordialmente material de jogo, de brincadeira, de deslizamento. Pela homofonia, o significante toma a dianteira sobre o significado, introduzindo descontinuidades no campo do sentido e construindo um imaginário realmente fantástico porque quase impossível, nos limites da linguagem. O próprio Roussel revela, pouco antes de se suicidar, o método que teria guiado a construção de parte de sua obra, caracterizando-o como “essencialmente um procedimento poético” que seria, inclusive, parente da rima.[349] Após um curto período de aplicação literal, o procedimento teria evoluído de maneira a levar o escritor
a extrair uma série de imagens do deslocamento de um texto qualquer. Um texto, para tornar-se escrita, deve ser objeto de distanciamento e desvio, gerando imagens no limite do imaginável. Para Michel Foucault, Roussel “não quer duplicar o real com um outro mundo, mas, nos redobramentos espontâneos da linguagem, descobrir um espaço insuspeitado e recobrir coisas ainda nunca ditas”.[350] A revelação do procedimento é curiosa e um tanto perturbadora. O escritor evoca o objetivo de apresentar o método para que outros possam dele tirar proveito, mas isso não convence. O discurso de Como escrevi alguns de meus livros não é exterior a sua obra, mas faz nela uma espécie de dobra, tornando-a por assim dizer mais espessa, dotada de verso e reverso. Mas ele não nos permite de fato interpretar ou compreender a obra. Creio que a revelação adensa e refaz o enigma, porque convoca a própria opacidade da linguagem, o ponto no qual ela não significa nada – que é justamente aquele do qual pode provir sua força poética de dizer sempre outra coisa. Duchamp, em nota a respeito de O grande vidro , afirma: “O desvio (l’écart ) é uma operação”.[351] Uma operação de diferenciação mínima (infra mince, diria ele) que lhe permite fazer jogos de palavras como “un mot de reine / des maux de reins ” (uma palavra de rainha / dores nos rins).[352] E o leva a aplicar desvios a imagens e objetos assim como a palavras, em boa parte de sua obra. Por “traços diafóricos” Milton Machado denomina “semelhanças marotas”, construídas como “aproximação e identidade por distanciamento e diferenciação”. Diáfora é o título de uma série de esculturas que se inicia em 1990 com um retângulo de ferro perfurado por pregos apenas em parte de sua superfície, formando um padrão quadriculado. Na versão feita para a exposição em Roma também em 1990, o mesmo procedimento é realizado em duas chapas de aço, repetindo o padrão do piso quadriculado da galeria. “Os quadrados das cerâmicas do chão da versão romana produzem diáfora em relação aos quadrados formados pelos pregos nas
chapas”, nota o artista. Não é o objeto criado por ele que é concebido como uma diáfora em relação ao padrão do piso, mas o contrário: retroativamente, as cerâmicas lá existentes formam com o objeto uma relação diafórica. Machado prossegue: Furos preenchidos × furos vazios. Quadrados preenchidos por pregos × quadrados vazios de pregos. Chapa apoiada × chapa pendurada. Chapa chapa, prego prego, furo furo, funcionam como a frase exemplar: Il sogno della mia vita è perdere la mia vita . Vita vita, vida cintura, prego furo, e por aí vai. Por coincidência, as cerâmicas romanas tinham as mesmas dimensões dos quadrados da chapa de ferro, o que o artista marotamente atribui a “intervenções divinas”. Uma terceira Diáfora, apresentada em São Paulo em 1993, “incorpora” a geometria dos elementos já presentes: uma mesa, uma chapa, módulos, sugerindo uma irônica retomada da herança concretista na arte brasileira. Machado afirma ainda: “Mas gosto também de olhar essas esculturas como o que são, objetos plásticos de fazer barulhinhos. Diáfora é um barulhinho”. A um “filósofo do desmesurado” é necessária a viagem, a diáfora (que em grego significa diferença e dispersão e também pode tomar a conotação de exílio). Ele força as medidas, as fronteiras de dado território, instaura a diferença e inventa outro lugar onde se está de passagem, se é estrangeiro (um lugar do futuro, talvez). O real apresenta-se, retroativamente, como algo produzido pela linguagem, pelo simbólico, mas que no entanto, em uma espécie de quiasma, já estava lá. A evidência não está no passado ao qual se opõe um presente, mas em um futuro anterior: uma vez construída ficcionalmente pelo artista, ela terá sido o real. A diáfora denuncia nossa condição de estrangeiros à linguagem, passageiros das palavras (como de um ônibus ou barco). Por um segundo esse reviramento da língua nos põe fora da palavra e talvez
por um instante nos aproxime do real, em seu excesso inominável. diáfora faz do mesmo outra coisa, faz do dentro do enunciado um ora e depois o integra novamente – mas pagando o preço de tornarse ela mesma um fora. Transformando-se. Irmanada à alegoria, ela faz dizer mais do que está dito, convocando o fundo de excesso que o sentido encobre e limita. Por isso, provavelmente, ao “Investigador em férias que só perfaz horas extras” interessa, como diz Machado, “mais o excesso de resultados e de respostas do que as ustas medidas”. O artista afirma que o poético é sempre over . Talvez haja, de fato, algo de excessivo em seu trabalho – isso mesmo que o faz caracterizar-se como “filósofo do desmesurado”. Tal excesso vai no sentido da alegoria para Walter Benjamin: é desmesurado o que implica dispersão e fragmentação. Não se trata nunca de representação simbólica, em suas fabulações, em suas ficções, mas de operações poéticas que põem em xeque qualquer possibilidade de decifração. Diferentemente da metáfora, na qual o nome de alguma coisa é transportado para outra coisa – segundo a clássica definição de Aristóteles –, a alegoria consistiria no trânsito do nome de outra coisa para outra coisa, em um jogo que põe em questão o próprio processo de significação (assim, o artista pode escrever que “todos os mundos de HF [ História do futuro] são metafóricos; mas sem o Mundo Imperfeito e o Mundo Perfeito como metáforas, não seria possível dizer de que o Mundo-Mais-que-Perfeito é uma metáfora”). Metáfora da metáfora: a palavra desliza e é impossível tocar a coisa de que se trata. Sem referentes fora dela mesma, a história nasce de uma catástrofe e só se pode contar como história do futuro. O sentido é nômade. A representação só se refere a si mesma e portanto qualquer investigação sobre a significação deve ser uma diversão – não existe versão certa. O imóvel (de Edifício Galaxie , vídeo que possui várias versões entre 1975 e 2003) torna-se móvel e vice-versa, desde que eu lhes dê o mesmo nome. A própria linguagem é lugar de
torção, de dispersão, de diáfora. HISTÓRIA DO FUTURO, OU O MUNDO: MODO DE USAR História do futuro
não é um de seus ensaios experimentais, de seus “ensaios satíricos”, como Milton Machado os nomeia, mas a magnum opus que de alguma maneira tudo perpassa. Nela, o dispositivo satírico revestese de discurso científico, ou melhor, de ficção científica. O artista se encanta com a possibilidade, aventada por um especialista, de que ele venha a se materializar em um game. Um psiquiatra à la Machado de Assis em seu O alienista poderia ver aí um delírio, mas se espantaria com a precisão de sua sistematização e concluiria talvez tratar-se de um delírio bem-sucedido, ou seja, de um arremedo perfeito para a realidade esburacada vivida na loucura. Um delírio capaz de tirar seu autor da loucura e trancafiar todos aqueles que continuam acreditando no pouco de realidade (como diria Breton) que sustenta a precária empiria de nosso dia a dia. Um trabalho de 1978, concebido enquanto o artista frequentava um curso de especialização em urbanismo (antes de seu mestrado, iniciado em 1980), tem como ponto de partida a localização, no mapa do centro do Rio de Janeiro, de uma espécie de furo no espaço urbano: as enormes fundações abandonadas de um edifício na avenida Nilo Peçanha, um arranha-céu anunciado, na época, como o maior prédio da América Latina. Essas ruínas subterrâneas foram tomadas por Milton Machado como centro de rotação de uma régua, que foi então acionada por um peleteco, até parar e determinar uma direção – em referência ao caráter arbitrário de muitas decisões do planejamento urbano. A reta assim obtida apontava cinco construções que o artista propõe serem destruídas: parte dos armazéns do porto, o Viaduto da Perimetral, a Igreja da Candelária, o Palácio Gustavo Capanema e o Museu de Arte Moderna. Essa espécie de “utopia negativa” constitui a Fábrica utópica de realidades objetivas (F.U.R.O. ). A realidade seria, assim, fabricada graças à construção de furos; ela é objetiva apenas na
medida em que o objeto é perda e ruína (ecoando, em uma direção insuspeitada, o não objeto de Ferreira Gullar). As fundações do “Buraco do Lume” – como ficou popularmente conhecido o local – seriam como os “pilares do novo mundo” de História do futuro. Milton Machado considera uma espécie de “exemplo de uma história do futuro” o fato de que todos os pontos marcados viriam a sofrer radicais transformações, e em alguns casos verdadeiras destruições, como é o caso do MAM incendiado, e em breve, conforme projeto já em andamento, para a Perimetral e o Cais do Porto. A Candelária foi objeto de um projeto (abandonado) de deslocamento; o Palácio Gustavo Capanema mudou várias vezes de função e de identidade. Algo perfura o tempo e transforma o espaço urbano: de proposição fictícia, a destruição torna-se real. lgo se repete, sempre atual e capaz de produzir passado e futuro. final, como diz Lyotard em uma lição exemplar para qualquer reflexão sobre a contemporaneidade e o pós-moderno, “devemos admitir uma multiplicidade de tempos atuais”.[353] A história não é um acúmulo e uma sistematização de fatos, mas o movimento de apropriação de uma reminiscência, o relampejo de uma catástrofe passada, como dizia Walter Benjamin. A história (re)cria furos, catástrofes, ruínas. E um fato só se torna fato histórico “postumamente, graças a acontecimentos que podem estar dele separados por milênios”. [354] A tarefa do historiador é, portanto, a de captar e mostrar a configuração desse momento em que sua própria época entra assim em contato com uma época anterior. Enquanto isso, o futuro, como aponta o filósofo, seria o tempo em que permaneceria entreaberta a porta para o Messias. Já a reflexão de História do futuro quebra qualquer lógica messiânica, revelando que não há mais salvação no horizonte dos tempos. A catástrofe passada continuará a se reproduzir no futuro, indefinidamente, gerando a cada vez, novamente, um mundo. A história é um jogo, quase um videogame, no qual arriscamos a vida e devemos fazer algumas escolhas – poucas, dentro de um leque
prefixado. Pode-se sucumbir ingenuamente, simplesmente esperar a morte, como é o caso do personagem Morto Vulgar. Ou fugir em desespero, como o Sedentário, realizando o movimento contrário àquele da máquina simbólica: descer para as profundezas, acreditando em um solo seguro, em uma realidade independente do jogo e capaz de subsistir a seus efeitos. Ou ainda pode-se tomar a saída marota de acompanhar o próprio jogo, seguindo o ritmo de seus movimentos. Rolando como uma pequena esfera, temos aí a figura do Nômade, emblema do artista. História do futuro é mostrada em Gibellina, na Sicília, em 1991, quando, segundo o artista, “as ficções de HF são mais uma vez submetidas a testes nos laboratórios de produtividade do real”. Repete-se então a estranha experiência de imbricação entre ficção e realidade e de reversão temporal. Por coincidência, a cidade havia sido totalmente destruída por um terremoto, em 1968. “Se minhas ficções passarem no teste, e se minhas analogias provarem ser produtivas, os bravos habitantes da grande Cidade-Mais-que-Perfeita de Gibellina poderão muito bem exemplificar os meus Nômades”, diz Machado. Longe de ser o campo de partida da ficção, o real é o terreno no qual se dá a confirmação da operatividade do funcionamento simbólico que só se pode reconstruir com ficções plurais. Não há recobrimento total entre real e simbólico, entre mundo e linguagem. Como diz Lyotard, “deve enfim ficar claro que não nos cabe fornecer realidade, mas inventar alusões ao concebível que não pode ser apresentado”.[355] O inventor do concebível, ou o Investigador (em férias) de Milton Machado, não acredita, como o cientista, poder chegar a um real último graças à validação experimental de suas hipóteses. Ele desconfia que não haja referência última à qual as hipóteses devam ser ajustadas. Portanto, o cientista-sátiro faz do laboratório o próprio real, na medida (sem medidas, claro) de sua “produtividade” ficcional. CQD: a ficção faz o real.
São e não são fortuitas, portanto, as coincidências entre as invenções ficcionais e o real. Há relampejos (para falar como Benjamin) que se dão pelo aparecimento de semelhanças ocasionais, reativando o passado e retransformando o presente (a partir do futuro, ou seja, da ficção). Mas tais lampejos são faíscas que não chegam a queimar. Elas não permitem a elaboração de um discurso capaz de organizá-las em um sentido coerente (à maneira do que faz há milênios a astrologia a partir das cintilâncias que nos lançam as estrelas). Elas não autorizam uma doutrina como a da mímeses ou a da metáfora. Tais coincidências são como piscadelas que subitamente nos lança o mágico, mostrando o artifício de suas façanhas. Elas revelam pontualmente a estrutura, não pela demonstração de um todo unificado, mas pelo fragmento, pelo arbitrário. Não se pode laçar o simbólico e estendê-lo sobre a mesa; resta apenas nele inventar caminhos nômades − para, aqui e ali, escorregar em seus furos, como em falhas geológicas. O simbólico é esburacado, e entre suas malhas se cai às vezes em outro tempo, num vislumbre instantâneo de outro mundo. “Para lidar com a perplexidade contemporânea, só um projeto que seja flexível, moldável, adaptativo. Plástico, enfim”, afirma Machado. E arremata: “Com a plasticidade da sátira, como sugerido por Lyotard”. A sátira é instrumento de esferidade, de nomadismo. O procedimento satírico torna maleável (plástico) o próprio mundo. De acordo com a lógica da sátira segundo o filósofo francês, para falar do que é pretensamente preciso e imutável seria preciso adaptar-se a ele, no sentido de adotar seu próprio estilo rígido e estável – mas sem nele acreditar. Ou seja, alguma torção, algum desvio se realiza de modo a denunciar no discurso a falha, a inconsistência – do simbólico, do mundo, da arte. O termo (arte) deve para Milton Machado ser grafado assim, entre parênteses, para “afirmar a relatividade, a contingência, a natureza intervalar, modular, o caráter insular do território”, como afirma em resposta a Guilherme Bueno em entrevista recente. Uma ilha deve lançar
pontes e eventualmente sonhar com a junção completa afirmada pela Pangeia sobre a qual o artista leu em 1978 – quando ela não passava de uma hipótese – e que ele situa como marco inicial da construção de História do futuro. Mas ela também deve assumir seu caráter insular e precário, atendo-se aos parênteses que a colocam em suspenso: longe do mundo, fora – apenas por um instante – do sentido, pronta para a catástrofe que rompe todos os diques e a separa de vez do continente, para que em seguida seja repetida a construção de pontes até que venha a destruição do sistema, mais uma vez, e assim repetidamente. História do futuro ensina que o simbólico destrói e constrói, alternadamente. Destrói a perfeição e o ideal, destrói as pontes com o outro e as reconstrói. Nossa “cidade”, a morada do homem, seu ethos, não é fixa e segura. Como já dizia Freud, o homem não é mais senhor em sua própria casa; como dizia Nietzsche, Deus está morto. No simbólico não estamos em terra firme, tampouco voamos graças às mãos hábeis de algum piloto. Na linguagem, não criamos raízes, mas estamos em exílio (em diáfora). Não só porque não temos lugar predeterminado, mas também porque a própria estrutura da linguagem não é imutável: seu motor é um Módulo de Destruição / Construção que executa ciclos sem fim. O Mundo Imperfeito relaciona-se com uma cidade perfeita, mas tal antítese não leva à Cidade-Mais-que-Perfeita como síntese. Não há resolução final que reconcilie os contrários. O mais-que-perfeito é invenção, diz o artista. Uma invenção necessária: “Foi necessário inventá-lo para que eu pudesse falar do Mundo Imperfeito e do Mundo Perfeito. E para poder olhar tais mundos em perspectiva, como que à distância”. O que faz a arte é forçar uma distância, é forjar uma perspectiva que nos permita ver o mundo. Só depois da arte. Depois da arte, o mundo (a arte talvez sempre construa histórias do futuro). Em sua ilimitada abrangência, História do futuro mostra-se também uma história (revirada, é claro) da arte. As esculturas, de formas clássicas e materiais nobres, são deslocadas da tradição
formal para se tornarem personagens: a bela esfera negra é o Nômade, o portentoso cubo vazado, enorme grid de ferro é o Módulo de Destruição. Isso se passa mais ou menos como uma criança que amassa na mão um pedaço de pão e o põe na mesa, dizendo à outra, para começar a brincadeira: este é o super-homem, ou este é o meu cavalo. COM O SUJEITO, E NÃO DIANTE DE SEUS OLHOS “ História do futuro é
sobre sua exterioridade”, afirma Milton Machado. É sobre o mundo. arte é fora dela mesma. Afinal, segundo a leitura feita pelo artista do conceito de Benjamin, “a aura é o dentro que está fora”. A ideia de um exterior que se conjuga ao interior é fundante da arte contemporânea brasileira, com O dentro é o fora (1963) de Lygia Clark. A fita de Moebius, figura topológica unilateral, é por ela utilizada em Caminhando (1963) para permitir um percurso existencial ao longo do tempo (“o ato de se fazer é tempo”, dizia a artista). O único trabalho realizado em parceria por Clark e Hélio Oiticica retoma a fita unilateral colocando-a em torno dos punhos dos dois artistas em um Diálogo de mãos (1966). Os Parangolés de Hélio têm em geral faixas de tecido, ou outros materiais, que se retorcem como a banda de Moebius, realizando seu projeto de se dar como um “transobjeto”, um objeto que está no corpo e está fora, está naquele que veste e naquele que olha. Na obra de Milton Machado o pensamento parece fazer ele mesmo a torção, a subversão da fita de Moebius. A diáfora não deixa de ser uma torção desse tipo, no seio da linguagem. Mas talvez Machado estresse a banda de Moebius de modo a alargar sua exterioridade e tornar um Homem muito abrangente, como afirma o título da bela performance de 2002 na qual um atirador de facas atinge muitas vezes seu alvo dentro do contorno de um corpo desenhado na parede, enquanto o artista, seu assistente, inscreve em carvão na parede: “Um homem tão abrangente que ocupasse o mundo todo menos o próprio espaço de seu corpo poderia sair-se
muito bem como assistente de um mau atirador de facas”. O Homem muito abrangente é quase total. Mas lhe falta algo: sua interioridade, justamente. Ele não possui individualidade e “nem sequer uma aparência”, como afirma o texto do artista a seu respeito. Trata-se de um sujeito impuro, híbrido, plural. Ele está “além dos limites”, e seu “corpo é todo poros”, como afirma o título do texto que transcreve conversa polifônica entre personagens como Plínio o Velho, Leonardo da Vinci, Pico della Mirandola, David Lowe, entre outros “amigos”. O corpo não é interno, ele não deve ser considerado como “entidade fechada e isolada”, mas como “‘coisa’ relacional”, “criada, delimitada, sustentada e finalmente diluída em um fluxo espacial-temporal de múltiplos processos”. O corpo se dissipa de forma a abranger as múltiplas relações com o outro e o mundo. Para acompanhar o movimento do Módulo e assim se salvar da própria destruição, em História do futuro o Nômade deve, na pausa infinitesimal antes de o sistema retomar seu ciclo, “negociar uma posição”. Tal negociação do Nômade com o Módulo de Destruição implica diferença e relação e engloba todo tipo de jogo, como afetar / ser afetado, combater / ser combatido, atravessar / ser atravessado, negociar com etc. Este é nosso ethos, nossa ética: negociar com o simbólico demanda um certo jogo de cintura, demanda esferidade, digamos, e nomadismo (ou seja, implica uma escolha do exílio, uma recusa do sedentarismo). Em uma torção fundamental para HF, o artista indica que não é o Módulo de Destruição o motor de todo esse sistema, como afirmamos acima. É o Nômade o motor do simbólico. “Penetrando (etc. etc.) o Módulo de Destruição, o Nômade coloca o universo inteiro (i.e., o universo fragmentário de HF) em movimento (põe o universo para correr), transformando-o.” E nós somos o Nômade, diante / dentro de História do futuro. Parece referir-se a essa obra a afirmação de Lyotard de que “esses ensaios, assim como essas frases, são feitos ‘dentro do ser’ e não diante de seus olhos. Cada trabalho apresenta um microuniverso; a
cada vez, o ser não é nada senão cada uma dessas apresentações”. [356] Um pouco como Flaubert afirmando “madame Bovary, c’est moi ”, devemos, diante desse trabalho, apostar, um pouco confusos: História do futuro, c’est moi. Estamos “dentro”, porém em exílio, em diáfora. História do futuro nos nega, assim, a posição central – porém desimpedida – necessária para sobre ela fazer um “tratado” (gênero que, segundo Lyotard, “incita a arrogância”,[357] aquela arrogância que, nos filósofos, transforma-se em metafísica). As (re)invenções aqui por mim ensaiadas devem ser tomadas, talvez, como Cidades Mais-quePerfeitas que o Módulo de Destruição já começou a aniquilar. Seja como for, diante da ausência de tratados definitivos sobre a arte e sobre o mundo, resta-nos apontar o artista como, em definitivo, um tratante.
A ESTÉTICA É SEMPRE POLÍTICA: CILDO MEIRELES arte aqui não é sintoma da crise, ou da época, mas funda o próprio sentido da época, constrói os seus alicerces espirituais. HÉLIO OITICICA
No mundo em que o mercado de arte se internacionalizou a ponto de quase apagar as fronteiras entre países e continentes, não parece fazer sentido buscar caracterizar uma arte “inglesa”, “chinesa” ou “brasileira”. A arte contemporânea poderia, por uma certa vertente, ser de fato tomada como exemplar na defesa da globalização: faz-se arte na América Latina como na Ásia ou na África (ou seja, seguindo os parâmetros já definidos pela Europa e pelos Estados Unidos). No entanto, a um olhar mais atento não escapa o fato de que parte da produção atual em arte recoloca em jogo questões de pertencimento e de marcas culturais e geográficas, muitas vezes economicamente traçadas. É comum, entre críticos estrangeiros, a caracterização da arte brasileira contemporânea por sua abertura à participação sensorial do espectador. Os marcos fundadores dessa preocupação estariam no neoconcretismo e se firmariam especialmente nas derivações deste, realizadas principalmente pelas propostas de Lygia Clark e Hélio Oiticica ao longo das décadas de 1960 e 1970. De forma bem distinta de uma op art, porém, a participação concebida por esses artistas é profundamente conceitual, implicando uma sofisticada reflexão sobre o objeto de arte, o sujeito da arte e a relação entre sujeitos segundo a arte. Essa última questão chega, em Oiticica, a constituir uma verdadeira conceitualização da cultura – assumindoa como cultura brasileira, localizada histórica e socioeconomicamente, especialmente com a proposição do Parangolé . Para refletir sobre a atual produção artística brasileira, é portanto imprescindível recuperar e vivificar a problemática do sujeito, de maneira a ir além do lugar comum da “participação do espectador” e mostrar suas relações com o questionamento do objeto, do espaço e da cultura. Tento neste ensaio recolocar tal problemática em jogo, em movimento, na obra de Cildo Meireles – que a retorce para fazê-la, de saída, uma questão política. Tentando fazer jus à sutileza e ao caráter “encarnado”, por assim dizer, dessa
problemática, tomo como base uma entrevista realizada com o artista em maio de 2009. Busco entrelaçar elementos de filosofia e psicanálise com a fala e os próprios trabalhos de Cildo, na tentativa de criar ressonâncias reveladoras acerca da arte brasileira e transformadoras de temas tradicionais à abordagem da arte contemporânea, como a temporalidade, a aura, a busca do espaço real, o outro e o comum. ENTRE SUJEITO E CULTURA, A HISTÓRIA Talvez nos seja impossível,
como já apontava Freud em 1927, escrever sobre nosso próprio tempo. Seria necessário tomar certa distância para fazer dele um passado, uma história. Impossível fazer disso em que estamos mergulhados um objeto de reflexão rigorosa, de conhecimento imparcial. É des-conhecendo que estamos no mundo, e toda reflexão sobre ele – e o homem – acaba talvez reproduzindo um certo velamento, atualizando uma alienação no sentido forte que lhe dá Lacan: a formação do eu se dá fora, no objeto. Informados sobre o caráter ilusório e parcial de toda abordagem do “presente”, não cessamos, porém, de tentar falar dele. Mesmo quando não tomamos a atualidade como objeto, mesmo quando pretendemos fazer história e nos debruçamos, prudentes, sobre o passado. Não é possível sair de seu tempo para, observador onisciente, percorrer os acontecimentos passados e atuais com um mesmo sábio e soberano distanciamento. Não só estamos implicados nesses acontecimentos, como neles nos formamos e vivemos. O sujeito nunca aparece em si, como entidade deles independente – ao contrário, ele se aninha em alguns objetos singulares, que ocupam um lugar de destaque na cultura: especialmente as obras de arte. Nelas, o sujeito se esconde mas se deixa parcialmente revelar, de acordo com a estrutura de alienação pela qual se constituiu. Tentando talvez dar notícia do fora que nos formou, a crítica de arte sustenta-se como discurso sobre alguns objetos privilegiados na
cultura, os objetos de arte. Mas o mundo dos objetos da cultura é, de saída, o sujeito – nele se passa algo de fundamental que nos faz sujeitos. Toda consideração sobre as relações da arte com a sociedade deve levar em conta o fato de que a arte agencia ações sobre a cultura e o sujeito, sobre seu complexo vínculo constitutivo. Seria muito redutor pensar uma incidência da arte sobre a sociedade que não passasse por uma ação sobre o sujeito. O objeto de arte transmite algo do sujeito, pois ele carrega um testemunho do acontecimento incomparável que nos constitui. A arte projeta às vezes no futuro, como o faz Mário Pedrosa, este acontecimento subversivo, “cambalhota no cosmos”, pela qual o homem se revira em objeto de si mesmo. O homem, objeto de objeto de si mesmo, talvez vá terminar seu ciclo, sem saber mais onde encontrar-se, ou encontrar sua essência ou sua substância. Terá ele feito, então, a cambalhota no cosmos sobre si mesmo, seu destino. Mas saberá, então, naqueles inconcebíveis tempos, que é ele próprio? Isto é, que é nós mesmos, ainda e sempre? [358] Longe de resolvê-la, tal cambalhota relança, sem cessar, a questão do que é o homem – e de suas relações constitutivas com o objeto. Inquirido sobre a questão do sujeito e do objeto em seu trabalho, Cildo Meireles afirma sentir “que eles aparecem em vários momentos, mas não é uma coisa refletida, consciente, uma decisão. É um afloramento”.[359] Na cultura, o sujeito está – ou melhor, ele mal-está, se levarmos a sério a ideia freudiana de que há sempre mal-estar na cultura. Na arte, objeto e sujeito afloram de modo privilegiado, retomando suas condições de origem. O lugar do sujeito é incerto, na medida em que ele de saída está provisoriamente nos objetos, e mesmo naqueles que preexistem a ele. Ele não é mais, de forma estável e bem delimitada, numa relação de independência e
complementaridade em relação ao objeto. O sujeito está lá, em algum lugar, eventualmente em algum objeto, longe – ou, para usar a palavra em língua espanhola: “lejos”. Para o artista, essa seria a palavra mais bonita que existe. Isso que é estranho no “lejos”, é que é um lá, mas que normalmente é povoado por algum ser. Tem alguma coisa de vida, de ser que eu associo a esta palavra. Lembro-me de viagens noturnas por Goiás, quando eu tinha cinco ou seis anos, e de repente via uma luzinha lá longe, podia ser o farol de um carro que daqui a tantos minutos ia cruzar comigo. Ou seja, no “lejos” há uma presença. É claro, tinha esse sujeito que estava experimentando essas coisas [aponta para si com as mãos unidas], mas também eventualmente tinha um sujeito que estaria lá, mesmo. Lá longe, no “lejos”, há uma promessa de cruzamento, de encontro. Haveria uma espécie de “interpenetrabilidade que, na verdade, é uma zona de dissolução dos dois lados, sei lá, desses dois sujeitos”, diz Cildo Meireles. Entre mim e algo que de repente se dá a ver há um poético encontro – mas isso permanece longe, “lejos”. O mal-estar na cultura marca a impossibilidade de um encontro sem falhas entre o sujeito e o outro e entre o sujeito e suas produções culturais. E aponta também que é de forma conflitante e não homogênea que se dá o intrincamento entre sujeito e cultura na história – ou melhor, que é essa complexa imbricação que faz história. A história é feita desse cruzamento entre sujeito e cultura, e carrega portanto suas tensões e contradições. Tomando essa posição em relação à história, podemos afirmar que a produção artística brasileira atual não se mostra como uma decorrência linear de sua história recente, numa lógica evolutiva e mecanicista, mas que nela pulsam, plurais, incertas e por vezes
silenciosamente, as questões que estiveram em primeiro plano décadas atrás. Não há mera continuidade, mas um campo aberto de enorme complexidade entre uma geração e outra. Há questões que, semeadas em determinado momento, voltarão para questionar os homens do futuro – e formá-los como tais. Talvez possamos tomar nesse sentido a afirmação que faz Mário Pedrosa em 1967: “O artista de hoje tenta, sem o saber, em suas pesquisas por vezes tão premonitórias, situar o homem no contexto futuro”.[360] Em contrapartida, o passado continua a pulsar, hoje, de um modo que nos força também à difícil tarefa de tentar situar o homem no contexto passado. Pois, como escrevia Walter Benjamin em 1940, “existe um encontro secreto, marcado entre as gerações precedentes e a nossa. Alguém na terra está à nossa espera”.[361] A AURA E A TRANSITORIEDADE Para Benjamin, como bem se sabe, a
reprodução técnica da imagem generalizada pela fotografia e pelo cinema seria capaz de destacar o objeto reproduzido do domínio da tradição. Viveríamos um declínio da aura, uma certa propriedade do objeto de arte que, em vez de ser simplesmente definida como brilho advindo de sua unicidade ou raridade, recebe do filósofo uma conceituação um tanto rebuscada e contraditória. Em suma, o que é a aura? É uma figura singular, composta de elementos espaciais e temporais: a aparição única de uma coisa distante, por mais perto que ela esteja. Observar, em repouso, numa tarde de verão, uma cadeia de montanhas no horizonte, ou um galho, que projeta sua sombra sobre nós, significa respirar a aura dessas montanhas, desse galho.[362] Não é no domínio específico da arte que Benjamin buscará definir a aura, mas primeiramente no da natureza – no domínio da paisagem, bem ao gosto do Romantismo que ele tão bem estudou. Trata-se da relação do homem com algo um tanto longínquo,
exterior a ele, e que se dá à contemplação – qualquer coisa, talvez, desde que se ofereça ao olhar como uma “aparição”. Nessa “aparição” que é a aura, o fator espacial envolvido parece ser o de uma certa distância: as montanhas estão no horizonte, quanto a isso não resta dúvida. O galho, por sua vez, está acima de nós, distante o suficiente para projetar alguma sombra. Graças a esse espaçamento entre sujeito e objeto algo pode então se transmitir de um a outro: a sombra projeta-se em nós; a aura das montanhas, nós a respiramos. Sua aparição assemelha-se a uma reminiscência: “Numa tarde de verão…” – pois talvez seja necessário, ao falar dela, estabelecer também uma distância temporal. Trata-se de uma aparição no passado: ela é única porque foi perdida, só retrospectivamente pode ser reconhecida como tal. A coisa deve se distanciar tanto espacial quanto temporalmente, “por mais perto que ela esteja”: há que estar de algum modo “perto”, apesar da distância. A sombra do galho deve estar sobre nós, a aura das montanhas deve ser por nós respirada, naquela longínqua e agradável tarde de verão. Foi também num dia de verão que Freud passeava com RainerMaria Rilke e Lou Andreas-Salomé pelos campos, às vésperas da Primeira Guerra Mundial. A beleza do cenário não trazia ao poeta nenhum contentamento, pois lhe perturbava a ideia de que ela estava fadada a desaparecer, quando chegasse o inverno, assim como “toda beleza humana e toda a beleza e esplendor que os homens criaram ou poderão criar”. Para Rilke, a perspectiva de fenecimento retirava daquela beleza qualquer possibilidade de presença, destituindo-a de qualquer potência aurática, poderíamos dizer. Para Freud, porém, é justamente a transitoriedade dessa beleza, seu caráter efêmero, que aumenta seu valor. “O valor da transitoriedade”, diz ele, “é o valor de escassez no tempo.” E prossegue: “A limitação da possibilidade de uma fruição eleva o valor dessa fruição”.[363] Haveria, portanto, uma temporalidade própria à aura. A
distância temporal que ela parece estabelecer é a marca de uma certa perda iminente capaz de contaminar a presença atual da coisa contemplada, de modo a torná-la uma “aparição”. Por isso a aparição é “única” e a “coisa”, “distante”, “por mais perto que ela esteja”. Trata-se de uma “coisa” que, no instante mesmo em que aparece ao olhar, é nele perdida – fazendo-se, portanto, passado. É ustamente essa transitoriedade que pode lhe conferir uma aura, e isso implica uma certa mobilização do sujeito: como mostra Freud, ele deve engatar um trabalho de luto: o trabalho psíquico pelo qual o sujeito refaz ativamente a perda que lhe é imposta e, através dessa perda de algo, transforma-se a si mesmo. A Rilke, naquele momento, a experiência do olhar estava fechada porque ele se revoltava contra a perda e se recusava a tal luto. Uma certa precariedade, uma iminência de queda e perda aparecem como fundamentais no pensamento de Cildo Meireles. Uma das belas experiências que eu tive com arte foi com o Umberto Costa Barros, em 1970 [na montagem da exposição “Do Corpo à Terra”, com curadoria de Frederico Morais]. De manhã ele chegou e ocupou o porão do Palácio das Artes em Belo Horizonte, que estava cheio de tijolos, ripas, sarrafos, caibros, telhas etc., restos da obra que tinha sido ali realizada. No final do dia, quando eu desço no porão, vejo que Umberto pegou tudo que estava no equilíbrio mais instável. Simplesmente pegava uma ripa e botava em pé, no equilíbrio mais precário mesmo. Tijolos, numa linha assim, infinita. Você tinha a impressão de que se respirasse um pouco mais forte ia derrubar tudo. Uma sensação estranha, muito legal. través da arte, caminhamos e refazemos nossa precariedade. Objeto de arte e sujeito são agentes de um mesmo luto. Se o contemplador de Benjamin devia estar “em repouso”, o de Freud passeia pelos campos, móvel, e é convocado a uma
mobilidade mais fundamental: aquela que lhe permite reavaliar sua própria condição, tomando de si mesmo alguma distância. Medindo-se pela transitoriedade que a aura lhe impinge, o homem “não é mais senhor em sua própria casa”, como já afirmamos várias vezes com Freud. O observador, tocado pela aura, não é mais senhor de sua própria paisagem, nem de sua arte. Sem firme lugar de repouso, ele vaga e se divide, ele próprio transitório, marcado pela perda de algo – assinalando o horizonte de sua morte inevitável. Comentando a frase de Freud, Cildo Meireles diz que “pensando bem, o homem não é senhor em lugar nenhum. Essa foi uma espécie de falácia milenar. Mas talvez necessária”. O artista conta sua visita ao célebre políptico A adoração do cordeiro místico (1432), de Jan Van Eyck e seu suposto irmão Hubert, que se encontra numa igreja na cidade belga de Gent e teria sido objeto de peregrinação de grandes pintores dos séculos seguintes: “É realmente deslumbrante. A obra consegue te tirar dali, da frente dela e daquele tempo ali, e te joga em outra… Você não consegue evitar esse sequestro. Sequestro relâmpago”. Em vez de repouso, a contemplação levaria a uma vigorosa movimentação que implica certa despossessão de si, numa perda de lugar que não é sem risco, como indica a brincadeira de Cildo ao falar de “sequestro relâmpago”. Num relâmpago, numa fulguração, algo toma o sujeito e o deixa sem lugar e sem tempo – jogando-o talvez na distância que a aura, apesar de reafirmar um “perto”, não cessa de indicar. Tradicionalmente, na imagem “a unidade e a durabilidade” associam-se intimamente, enquanto na reprodução imbricam-se “a transitoriedade e a repetibilidade”, como nota Benjamin.[364] Na reprodução, mesmo a mais perfeita, perde-se algo: “O aqui e agora da obra de arte, sua existência única, no lugar em que ela se encontra”.[365] A unicidade da obra perde-se ao mesmo tempo que se põe em xeque a unidade e o lugar do sujeito – ao mesmo tempo,
ou seja, no tempo de uma atualidade cheia de dobras onde o passado e o futuro continuam sempre a pulsar. Não se deve interpretar a constatação benjaminiana da perda da autenticidade do objeto de arte, porém, como uma sentença de morte da aura, em prol do frio domínio da reprodução técnica com sua pobre ditadura da semelhança por ela mesma. Em um mundo capaz de gerar imagens em profusão, a aura parece declinar e tornar-se ainda mais efêmera em sua aparição. Mas isso não leva a seu total desaparecimento, uma vez que a existência da aura talvez tenha sempre se devido à sua própria perda, à desaparição súbita que a ela se segue. Por um lado, portanto, ela arriscaria se perder diante dos meios técnicos de reprodução em larga escala, mas, por outro, como sua perda era desde sempre condição de sua possível aparição, ela termina por recuperar seu pulso, mais aparição do que nunca, efêmera centelha. Não faz sentido, como aponta Benjamin, falar em autenticidade de uma fotografia. Não há aí um original gerando cópias, como era o caso das gravuras feitas a partir de grandes chefs-d’œuvre da pintura. Em vez de apoiar nesse fato um questionamento do valor artístico da fotografia, deve-se ver nele uma transformação operada pela invenção da fotografia sobre a natureza da arte. Por isso o filósofo vaticina que “a arte contemporânea será tanto mais eficaz quanto mais se orientar em função da reprodutibilidade”, ou seja, “quanto menos colocar em seu centro a obra original”.[366] Com a reprodutibilidade técnica, a obra de arte se emanciparia radicalmente de seu valor de culto, do uso ritual ou mágico sobre o qual ela teria surgido de modo parasitário, ela deixaria o vasto domínio da religião para alcançar outra esfera humana. “Em vez de fundar-se no ritual, ela passa a fundar-se em outra práxis: a política.”[367] A reprodução fotográfica marca a perda de algo – ela aponta, como escreve Barthes em seu A câmara clara, que isso-foi, algo se passou e a fotografia guarda sua marca, transmite sua aparição.[368]
É justamente ao fazê-lo que ela, em vez de deteriorar-se como mera cópia, pode aceder a alguma aura, ou melhor, pode lograr reconstruir sua lógica de aparição e perda em nós. É notável que Benjamin aponte justamente nessa operação, de forma tão contundente, um alcance político. É certo que isso se refere, em parte, à larga difusão de produções técnicas como os filmes e suas consequências na formação e manejo das massas. Mas não deixa de apontar para outra possibilidade, aquela que, falando do cinema, o filósofo assim caracteriza: “Fazer do gigantesco aparelho técnico do nosso tempo o objeto das inervações humanas – é essa a tarefa histórica cuja realização dá ao cinema o seu verdadeiro sentido”.[369] Fazer da técnica um objeto humano. Forjar no objeto nervos humanos, e assim fazer história, ou seja, aceitar perder-me no momento mesmo em que compareço, num ato fundamentalmente político, ao encontro marcado com esse tal “alguém” que está na Terra, à minha espera. A AURA SE DÁ ATRAVÉS O objeto nos chama, às vezes, em certos
momentos únicos, auráticos talvez. Momentos de um certo afloramento. Cildo Meireles fala, a respeito da concepção de sua instalação Através, de um barulho que subitamente lhe chama a atenção, e que ele descobre vir de sua lixeira. Era uma folha de papel celofane que ele havia amassado e jogado fora. Através, 1989, instalado permanentemente no Instituto Cultural Inhotim, tem em seu centro uma bola de cerca de três metros de diâmetro, feita de papel celofane transparente amassado. À sua volta estão dispostos, em uma área de quinze metros de lado, diversos elementos como cortinas, painéis de plástico e vidro de dimensões variáveis, translúcidos, bem como redes e cercas de todo tipo: barras de ferro, treliças, arame farpado, telas de nylon, madeira, alambrado, cordas. Um aquário retangular abriga pequenos peixes transparentes. A estrutura da obra é a de um
labirinto, mas nele não nos perdemos porque podemos ver através de suas paredes vazadas ou translúcidas, bem como nos intervalos entre elas. E porque a luminosa bola de celofane pulsa em seu centro de modo a nos atrair e deter, em sua escala quase humana, em sua estatura quase monumental. Ela é luz, principalmente, transpassando dezenas de superfícies e nos convidando a contemplá-la, não tanto em si mesma quanto nos reflexos e recortes através de planos diversos que a multiplicam e reproduzem. A aura sempre está através, nunca na coisa mesma. A obra pode não ser mais do que um dejeto, um objeto cotidiano, recuperado da lixeira. A folha plástica que comumente é usada para embalar um objeto especial, um presente, pode tornar-se ela mesma uma obra – desde que ela nos chame, nos lance, de alguma maneira, um apelo. De origem obscura, a obra não encontra mais em si mesma sua garantia – e talvez nunca seja autêntica, na medida em que se perdeu a autoridade, a autoria como firme amarra de seu lugar na cultura. Em ressonância a isso, o sujeito deve se deslocar através da obra, em busca deste algo longínquo (e no entanto perto) que se transmite em pulsos incertos. Sob suas passadas, dezesseis toneladas de cacos de vidro fazem ruídos semelhantes àquele produzido pela folha de celofane na lixeira, quebrando-se ainda mais e obrigando-nos a andar em ritmo lento e a tomar consciência de nossos passos. “O vidro quebrado”, diz Cildo, “faz você ir na velocidade correta do trabalho. De uma certa maneira, ele é uma pulverização deste solo, deste chão.” A aura puxa nosso tapete e nos deixa quase sem chão. O artista comenta ainda que “tem alguma coisa que acaba aparecendo em várias obras como a estrutura de um paradoxo. Uma estrutura labiríntica é sempre um convite a uma certa visitação, por outro lado o vidro funciona de uma maneira oposta a isso”. O vidro deixa de ser o transparente suporte de uma aparição, para tornar-se quebra e opacidade, pondo em desequilíbrio o
próprio lugar do sujeito. Convidado a se movimentar, mas obrigado a certa lentidão: tal seria a paradoxal posição do contemplador. Nessa sutil e complexa montagem do espaço de contemplação que desmonta a construção tridimensional, fazendo dela um labirinto de superfícies bidimensionais, há uma quebra do espaço ilusório. E assim a cena vista pelo sujeito é posta em crise, de modo a revirar a posição que nela ocupa o observador. Tal construção crítica do espaço era já buscada por Cildo nos Cantos (1967-68) e nos Espaços virtuais: Cantos (1968), pela quebra irônica do traçado arquitetônico para indicar um lugar que não poderia estar lá, abrindo uma brecha no encontro entre três retas que costuma constituir, como num ângulo de parede, a estrutura mínima da tradicional construção perspectiva. Forjando uma dobra virtual na superfície representativa, delineia-se um misterioso espaço para além da representação. É através, atravessando a obra, que se abre a brecha onde devemos questionar a arte, o sujeito, o mundo. “Os cantos são como uma cena de Vermeer. Neles acontece de tudo”, diz o artista.[370] Cildo Meireles considera como seu mestre o peruano Felix lejandro Barrenechea, com quem estudou em Brasília. Ele ensinava principalmente os fundamentos do olhar, fazendo com que seus alunos passassem horas olhando uma tela ou um objeto qualquer. “A ideia era olhar mesmo, impregnar-se do objeto observado, transformar-se nele”, diz Cildo.[371] Em entrevista a Frederico Morais, o artista afirma que Barrenechea se interessava especialmente pela questão da quarta dimensão. [372] Questionado a esse respeito, ele comenta que essa era uma preocupação disseminada no espírito da época. Mário Pedrosa já notava que a ciência recente se distancia da concepção racional de um universo em três dimensões para abrir-se “de todos os lados”, fazendo com que “seus espaços” sejam “múltiplos”. Ele conclui então que
neste universo dinâmico, instável, paradoxal, em que as velhas noções geométricas são destruídas, o artista não tem mais pontos de referência para se orientar nem instrumentos de prospecção fáceis e cômodos como, por exemplo, nos tempos clássicos, a perspectiva e o escorço. Logo, não mais pode deixarse levar pelo caminho bem pavimentado da ciência dedutiva e dos espaços euclidianos. A própria intuição não está mais confinada ao sensível imediato. Como o geômetra moderno, cada artista é obrigado a montar sua própria geometria, e é daí, dessa concepção individual mas universal, que ele parte, e nunca do conceito morto.[373] Cildo Meireles dedica-se em larga medida a construir, ao longo de sua produção, uma geometria própria. Em sua obra, fica claro que a geometria é o ponto de partida incerto para uma reflexão sobre o lugar imprevisível do sujeito em um mundo instável, e que ela é capaz de gerar espaços múltiplos e complexos onde o conceito não é “morto”, mas o conceitual se torna vida, numa dimensão ao mesmo tempo singular e universal. Antes de serem incorporados de modo abusivo pelo mundo da tecnologia, especialmente da informática, os espaços impensáveis que os artistas do século XX compartilham com os físicos são profundamente subversivos. Há algo de “anedótico” nos Cantos, diz Cildo. Parodiando o rigor técnico da geometria euclidiana, eles subvertem a própria lógica da representação mimética perspectivista e, com ela, põem em xeque o lugar do sujeito. owhere is My Home, como declara o título dado pelo artista a seus primeiros Espaços virtuais: Cantos para o Salão da Bússola, em 1969. O ESPAÇO E O SUJEITO Em 1925, El Lissitzky analisava a arte
revolucionária baseado numa concepção de plano que deixa de ser uma mera superfície para “incluir o espaço”, ultrapassando a perspectiva em prol de uma “pangeometria” variada que constituía
tentativas plurais de exploração do espaço, em diálogo com a matemática e a física.[374] Ele reconhece um marco dessa invenção do espaço no quadrado negro de Malevich: “Esse quadrado inteiramente cromático, inteiramente saturado de cor em uma superfície branca, engendrou uma nova concepção de espaço”. [375] Em 1919, Malevich já escrevera que “nesse momento, o caminho do homem passa pelo espaço. O suprematismo, semáforo da cor, situase em seu abismo infinito”.[376] Se o homem caminha num espaço dinâmico e complexo, a arte o põe a andar na beira do abismo. Em seu alinhamento com as vanguardas russas do início do século XX, ao lado da influência direta de Pedrosa, o projeto neoconcreto delineava-se como uma tentativa de expansão no espaço, a partir do uso do “vocabulário geométrico” para expressar “realidades humanas complexas”, como explicita Ferreira Gullar no Manifesto Neoconcreto. A arte se daria como “fenômeno que dissolve o espaço e a forma como realidades causalmente determináveis e os dá como tempo – como espacialização da obra”. [377] Gullar precisa: “Entenda-se por espacialização da obra o fato de que ela está sempre se fazendo presente, está sempre recomeçando o impulso que a gerou e de que ela era já a origem . […] A arte neoconcreta funda um novo ‘espaço’ expressivo”. [378] O espaço surge como preocupação expressiva, tanto em Lygia Clark com sua linha orgânica e, em seguida, seus Casulos e seus Bichos, quanto em Hélio Oiticica e seu mergulho na cor (seu “corpocor”) para chegar à arquitetura dos Núcleos e dos Penetráveis. O espaço se distende em dimensões múltiplas e se desmaterializa em tempo e ato, o que levará ao desdobramento das trajetórias de Lygia e Hélio, para além do neoconcretismo, como busca do sujeito no corpo e do ato transformador do sujeito – e do social, explicitamente em Oiticica. A respeito dessas questões, Cildo Meireles refere-se a uma conversa com Guy Brett, anos atrás: Guy via a obra de Lygia Clark como se dando da pele para
dentro, e a de Hélio Oiticica, da pele para fora. Isso batia com uma questão que eu tinha com esses dois artistas. Quando você pega os Bichos da Lygia, ainda se trata de um acesso a uma interioridade, mas conseguida através de um observador externo que se insere na história da escultura. Houve uma época em que eu ficava pensando qual dos dois teria chegado a uma chave mais geral para essa questão do lugar do sujeito, desse novo lugar do sujeito. Num determinado momento eu achei que era essa saída do Bicho, que é um primeiro estágio na Lygia, porque depois ela passou mesmo para uma coisa que era da sensibilidade lá para dentro. E o Hélio, tinha essa coisa que desde o início me impressionou: o fato de que o objeto, esse lá, esse limbo, sei lá, de repente passa a ser o lugar do sujeito. Quer dizer, você está dentro da cor – sempre lembrando que, quando você pensa no El Lissitzky, você vê a origem de tudo, sobretudo do neoconcretismo. Mas eu acho que houve esse avanço, a partir exatamente desse reposicionamento do sujeito em relação a esse tipo de produção. Eu noto que em alguns trabalhos essa é uma preocupação que aparece às vezes, e às vezes até esqueço onde aparece – mas, por exemplo, acho que no Cinza isso é muito claro. À chave mais geral, uma espécie de síntese do “dentro” de Lygia com o “fora” de Hélio, incluindo sua incidência social, talvez seja Cildo que melhor tenha a ela chegado, ecoando, de maneira insuspeitada, a afirmação de Mondrian em 1937: “O único problema na arte é chegar a um equilíbrio entre o subjetivo e o objetivo”.[379] Isso implica, como mostra a obra de Meireles, a construção de um espaço crítico. Cinza (1984-86) consiste em duas cabines de 27 metros cúbicos cada uma. As paredes e o teto são painéis de lona pintada, formando uma base de acrílico sobre tela, inteiramente preta em um compartimento e branca no outro. Sobre a base branca foi
aplicado carvão em quase toda a extensão dos painéis. Um carvão foi posicionado no centro do cubo e iluminado de modo a gerar projeções dele em cada parede e no teto, e somente nas pequenas áreas correspondentes a essas projeções não é aplicado carvão, ficando visível a base branca. Restam em cada painel do cubo, portanto, uma vez subtraído o carvão, pequenos trapezoides brancos marcando sua ausência. No cubo de base preta é feito procedimento análogo, com o giz branco cobrindo tudo, salvo os retângulos e o círculo gerados pela projeção de um pedaço de giz, em seguida retirado. O chão do cubo negro está coberto de carvão, o do cubo branco, de giz. Temos, assim, lado a lado no espaço tridimensional, uma espécie de leitura do quadrado negro e do quadrado branco sobre branco de Malevich, inaugurando um jogo, uma contaminação entre eles marcada pelos materiais utilizados, os clássicos giz e carvão (cujo índice nas telas da parede e do teto tem a cor oposta: branco para o carvão, negro para o giz). Em Cinza, estaríamos talvez “dentro da cor”, como queria Hélio com seus penetráveis. Porém, o uso exclusivo do branco e do preto – que não são exatamente cores, segundo Cildo – faz da cor, signo e da pintura, inscrição. Esse trabalho brinca com a chamada Geração 80, fazendo uma leitura crítica da volta à pintura proposta pelos artistas que dela faziam parte. Nas palavras do artista, trata-se de “uma pintura na qual se pode entrar, pisar, interagir de maneira a ir além da simples posição de espectador diante da tela”. No lugar do giz e do carvão, subtraídos do interior dos cubos, somos convidados a nos colocar. Há uma “migração sujeito / objeto”, na expressão de Meireles. Migração: o objeto ausente que comanda tal arquitetura não garante um lugar para o sujeito, mas obriga a um trânsito, uma passagem. Devemos entrar e sair de um e outro cubículo, passar de um ao outro. Os passos do espectador misturam a partilha entre branco e preto, de maneira a fazer surgir nuances de cinza. Na alternância branco / preto, inscreve-se algo, marcam-se vestígios da passagem do sujeito. Da “impressão” na
superfície, diríamos, faz-se então “expressão” no espaço vivencial. Em tal espaço, o sujeito não encontra enfim sua casa. Ao contrário, tal possibilidade de localização do sujeito no espaço é radicalmente negada, ao mesmo tempo que se indica um jogo, uma alternância necessária entre objeto e sujeito. Talvez nesse jogo possamos ver o “equilíbrio entre subjetivo e objetivo” visado por Mondrian (ou seria antes de um desequilíbrio que se trata?). Seja como for, trata-se de construir um espaço crítico: que põe em crise qualquer estabelecimento de lugares. Nem preto, nem branco: cinza. Nem objeto, nem sujeito. Nem dentro, nem fora: o sujeito, para Cildo Meireles, está de passagem, andarilho. O ESPAÇO DO OUTRO Esse espaço crítico é aquele do sujeito no
mundo – ele tem, portanto, uma inequívoca incidência política. No que Cildo caracteriza como um projeto dos anos 1970, jamais realizado, teríamos um país tão estreito, tão estreito que não coubesse ninguém lá dentro. Todos os seus nacionais seriam necessariamente estrangeiros. Isso é um pouco também uma situação de fronteira que eu acho interessante, onde exatamente esse sujeito da pele para fora, digamos, ele não tem um lugar físico. Isso é a coisa do malabarista, que você só resolveria se introduzisse uma outra variante – o tempo, sei lá. Seria impossível numa coisa meramente espacial. O espacial é levado a seus limites, e a ideia de quarta dimensão aparece na vertente que faz dela o tempo, como postula a teoria da relatividade de Einstein. Privado de um lugar fixo e predeterminado, o homem torna-se o malabarista de Cildo: aquele capaz de manipular objetos no espaço de modo a expandi-lo e movimentá-lo. “O malabarista”, diz o artista, “é uma síntese do conceito de território.” Manipulando três objetos em um território
para apenas dois, ele introduz a questão do tempo. “Na verdade, o malabarista é aquele que encontra um lugar no tempo”, conclui o artista.[380] Um “lugar no tempo”: o sujeito só tem lugar na história. Seu lugar é sempre uma fronteira, ele nunca é parte de um território, mas deve se movimentar para dentro e fora de uma linha precária. genciando objetos de modo a convocar o tempo, o artista estaria continuamente fazendo história. “Muitos dos meus trabalhos”, afirma o artista, “passam por uma noção de território que, nesse exato momento, está em estado de indefinição, de suspensão.”[381] Forçando o espectador a ir além da geometria euclidiana, criticando a ideia de um território do sujeito, o malabarista lhe entreabre um campo quase “mágico”, poético, o do olhar para além da mera visão. A suspensão na qual se encontram os malabares, num átimo, é também convite a uma certa suspensão do observador, colocado em movimento e equilíbrio precário. Em seu projeto inicial para Inhotim, Através deveria ser instalado ao ar livre – talvez para contaminar todo o mundo, o espaço circundante, em uma mesma lógica crítica. Já que, como afirma Cildo, “não há saída fora da lógica do objeto de arte”.[382] As relações do sujeito com o espaço parecem, de fato, íntimas. “O homem-espaço”, anota Heidegger em anexo ao texto de uma conferência proferida em 1964. E, em seguida: “Homem? Espaço”. [383] Mas o que é o espaço? A resposta do filósofo é: “O espaço espaça” (der Raum räumt ).[384] Entre o espaço e o homem haveria uma “misteriosa” relação de constituição mútua. “O homem não faz o espaço; o espaço também não é nenhum modo subjetivo da intuição; ele também não é nada objetivo como um objeto. O espaço precisa, antes, do homem para espaçar como espaço.”[385] Espaçar seria “desbravar”, “libertar”, liberar um “fora”, um “aberto”, abrindo “a possibilidade de ‘regiões de encontro’ (Gegende, em alemão), de pertos e longes, de direções e limites, a
possibilidade de distâncias e grandezas”, prossegue Heidegger. Se o espaço é a instalação de regiões determinadas, ele diferencia o perto e o longe, limitando mas ao mesmo tempo abrindo a possibilidade de encontro entre diferentes. Criar espaço possibilita um encontro tenso, uma certa confrontação – segundo o tradutor deste texto, Gegende é região, bairro, entorno, mas deriva de gegen, que tem sua origem no latim contra.[386] O homem espaça, e ao fazêlo, ele recria espaços em si mesmo, dividindo-se, abrindo em si a brecha, a perda de que falava Freud no seu texto sobre a transitoriedade, ao lado e contra o outro. Como já vimos, Cruzeiro do Sul, de 1969-70, é um cubo de nove milímetros de lado, formado de uma seção de pinho e outra de carvalho. Esses dois tipos de madeira são atritados pelos índios para produzir fogo e isso seria visto na mitologia indígena como uma espécie de poético ritual de invocação da divindade do fogo. Nessa evocação da cultura indígena, temos sem dúvida um ato político no sentido estrito: uma defesa dos índios cuja dominação através da força bruta, mas também da religião, marca nossa história. Sabemos o quanto a história de artista é tocada pela causa indígena pela qual militava seu pai Cildo Meirelles, importante indigenista, bem como seu tio Francisco Meirelles. Mas o fundamental no Cruzeiro do Sul, o que ele tem de político num sentido mais amplo, no sentido estético-político, reside em sua relação com o espaço: ele deve ser colocado em uma sala de pelo menos duzentos metros quadrados, vazia. Cruzeiro do Sul espaça, e para tal ele precisa de nós, do homem, como dizia Heidegger. O espaço se faz em nós, ele nos espaça e, nesse espaço, abre vias de “comunicação” desse incomunicável, desse grande acontecimento entre homens que a centelha provocada pela manipulação da madeira ilustra tão bem. Questionado sobre a reflexão sobre o espaço como central em seu trabalho, Cildo confirma que isso seria reiterado ao longo de sua produção, mas afirma:
À medida que o tempo passa, eu cada vez mais acredito que a única coisa que existe mesmo é o tempo, todo o resto é resíduo. Talvez exista apenas esse único e grande mecanismo que a gente não consegue saber exatamente o que é. […] Às vezes eu me pego pensando assim: mas o que será um planeta? Talvez seja o acúmulo de algum resíduo que só um tempo muito longo permitiria se manifestar como tal. Talvez a Terra não seja grande coisa, talvez ela não seja mais do que um cisquinho de uma bactéria que se reproduziu, agora necessariamente vai chegar um ponto irredutível do que ela é. E é isso que vai constituir todo o resto. O planeta talvez não seja mais do que um acúmulo de tempo. Nesse vertiginoso pensamento, a arte assumiria uma desmaterialização radical do mundo para, em seguida, reconstruir um mundo outro, a partir de algo mínimo, mas capaz de convocar o sujeito em seu jogo com o outro. ESPAÇO SONORO Uma das marcas fundamentais e comuns entre
Lygia Clark e Hélio Oiticica foi a tentativa de ultrapassar a delimitação entre dentro e fora que estabelece a base de nossa corriqueira experiência do espaço, em prol de uma torção entre essas duas noções que seria fundamental para a experiência artística, envolvendo a relação com o objeto e o outro. Como já vimos, o uso que os dois artistas fazem da fita de Moebius tem aí um papel importante, ao materializar tal tentativa. Em Cildo Meireles, a fita de Moebius aparece em Mebs / Caraxia (1970-71), um lp de 33 rotações no qual são registradas conversões sonoras, por oscilação de frequência, dos gráficos de uma fita de Moebius e de uma espiral. O neologismo caraxia é uma palavra valise formada pela contração de caracol com galáxia. Esse trabalho brinca com a ideia de um espaço sonoro, que já aparecera na seguinte proposição, de 1969:
Estudo para área: por meios acústicos (sons). Escolha um local (cidade ou campo), pare e concentre-se atentamente nos sons que você percebe, desde os próximos até os longínquos. Essa área conformada pela audição concede ao homem algum lugar no tempo. Trata-se de um lugar efêmero, sempre em mutação, que faz dele um malabarista, detendo os objetos apenas para rapidamente relançá-los, sem parar, sempre em movimento. Talvez o netinho de Freud que gostava de brincar de jogar seu carretel para longe, para fora do campo de visão, fosse já um aprendiz de malabarista. O artista leva às últimas consequências o projeto neoconcreto que vimos aparecer no Manifesto escrito por Gullar: dissolver o espaço e a forma e apresentá-los como tempo. A área sonora delimitada pela proposição de Cildo é sempre cambiante, é acontecimento no tempo e resiste à cristalização imaginária que faz do espaço um lugar reconhecível à primeira olhadela. Mas talvez essa experiência construa, sim, determinado espaço – e talvez os deficientes visuais cheguem a ter na ambientação sonora uma referência fundamental para sua localização. Seja como for, para aqueles que têm no visual sua principal baliza essa área acústica é um campo de estranheza, uma espécie de forro invisível da cena do mundo. Esse campo “in-visível” se aproxima, provavelmente, daquilo que Freud nomeava como Outra Cena, a cena do inconsciente. O objeto sonoro é quase imediatamente perdido – só podemos ecoar aquilo que chegou aos nossos ouvidos, relançando-o em uma espécie de malabarismo (por isso Lacan faz dele o objeto a por excelência). A memória não costuma permitir a “re-evocação” de frases ouvidas da mesma maneira que permitiria a reprodução de coisas vistas. Mas esse é um domínio que parece escapar a afirmativas tão peremptórias – ouvir vozes é uma experiência radicalmente humana e não é exclusiva à sintomatologia psicótica, apesar de não
fazer parte de nossa experiência cotidiana. Freud salientava que as frases ditas em sonho em geral teriam sido efetivamente ouvidas na vida de vigília, e fazia das coisas ditas pelos pais uma espécie de base do supereu. Mas é sem dúvida o domínio da música aquele que, na cultura, mostra do que se trata, no domínio do som, para o homem. A música é memória. É desnorteador pensar na possibilidade de se ouvir sempre músicas diferentes, sem que nenhuma peça jamais se repita. Ouvimos e reouvimos música: a música é uma experiência que pede repetição, ou seja, ela é claramente uma atividade desejante. Seu objeto é a voz, a que nos submetemos muito precocemente em nossa constituição como sujeitos. A voz do outro entra pelo corpo de modo inescapável, não há como tapar inteiramente as orelhas como quem fecha os olhos. O timbre, o ritmo, as vibrações sonoras atingem meu corpo, ainda que de maneira subliminar, convidando-me a alguma dança (e eu devo, em geral, calá-los, deixar de ouvi-los, para que o eu possa permanecer quieto no seu canto). A voz atinge o corpo e fala dele, antes de falar com ele. Ela veicula a linguagem, a cultura, e delimita o que fica fora desse campo: o ruído, o puro barulho, a natureza. Há vozes não localizáveis em corpo algum, vozes do Outro que a cultura materializa – penso no rádio e na estranheza que deve ter encarnado no momento de sua invenção, mas o fundamental é notar que a música existe para ser cantada por qualquer um, ela não depende de determinado intérprete, como bem mostram as cantigas populares que sequer têm um autor definido. A música é invocação, é convite a que eu cante (ainda que silenciosamente). A música toca e circula entre os homens. Sal sem carne explora essa circulação e a promove, entre sonoridades múltiplas. O lp de 1975 traz uma mixagem entre vários elementos, tais como entrevistas, um canto indígena avá-canoeiro, gravações da festa do Divino Padre Eterno em Trindade de Goiás e
trechos da Rádio Relógio (que até alguns anos atrás, além de dar as horas, trazia informações gerais, de tipo enciclopédico, iniciadas pelo bordão “Você sabia?”). A ideia inicial era trabalhar com os índios kraôs, de grande importância para o artista. Na década de 1940, seu pai foi enviado à região conhecida como Bico do Papagaio, na fronteira entre Maranhão, Piauí e o atual estado do Tocantins, para tratar de um inquérito administrativo a respeito da morte de índios. Ele transformou em inquérito policial o que se revelou um massacre de grandes proporções realizado por um fazendeiro local, e assim contribuiu de forma decisiva para a primeira condenação por assassinato de índios no país. Em retaliação, grupos ligados ao fazendeiro conseguiram fazer com que ele perdesse o emprego, o que trouxe dificuldades para a família Meirelles ao longo de boa parte da década de 1950. Para realizar Sal sem carne, Cildo buscou, sem sucesso, autorização para ir à kraholândia. Optou, então, por entrevistar caboclos, de vaga descendência indígena, alojados em um acampamento que existia em torno de uma instituição psiquiátrica em São Cotolengo, também em Trindade de Goiás. Conversou também com o chamado Zé Nem, um índio xerente (povo próximo dos krahôs) que conheceu em Goiânia. A todos indagava qual seria a diferença entre índios e brancos. Vários dos entrevistados responderam que o índio come carne sem sal. O título Sal sem carne inverte tal resposta e com isso retorce e relança a pergunta sobre a identidade, que sempre pressupõe diferença, demarcação em relação ao outro. Esse trabalho toca, assim, em um ponto de identificação e diferenciação que o Brasil costuma denegar, apesar da miscigenação patente que compõe boa parte de sua população. Sal sem carne mistura índio e branco, sobrepondo-os em uma espécie de palimpsesto e agenciando diálogos – ou melhor, uma polifonia – que constitui um espaço sonoro e político. Esse espaço é aquele, segundo o artista, da terceira margem do rio ,
segundo o título do famoso conto de Guimarães Rosa.Tal seria a posição dos excluídos, daqueles que não pertencem a nenhuma das margens da sociedade. Trata-se de um “lugar que não está”, que não mantém uma posição fixa, que “flutua” (como se diz da movimentação de um jogador de basquete). Entre o índio e o não índio, Meireles agencia uma flutuação, uma mobilidade que bem poderia caracterizar a população brasileira em geral. POLIFONIAS Para a Bienal de Liverpool em 2004, Cildo pretendia
sobrepor todas as canções dos Beatles, alinhando-as por seu ponto mediano de modo a formar uma espécie de pirâmide cuja base é dada pela peça mais longa (“Hey Jude”, com mais de sete minutos). Mas o preço dos direitos autorais que deviam ser pagos a seu detentor, Michael Jackson, era impraticável. Ele optou então por trabalhar com The Beatles One, álbum de 2000 que reúne 27 singles dos rapazes de Liverpool. Liverbeatlespool começa, portanto, com “Hey Jude” e a ela vão se incorporando outras canções, em uma sofisticada mixagem na qual por vezes reconhecemos um trecho de uma ou outra canção (ou dela lembramos?), por vezes ouvimos uma massa sonora que faz da música um ruído estranho, uma massa sonora, uma multidão de canções. Uma vez que se atinge o ponto mediano de todos esses hits, eles passam a ser tocados ao contrário. Isso não faz muita diferença no momento em que há muitos trechos em sobreposição. Quando “Hey Jude” toca sozinha, porém, a inversão da direção de reprodução sonora produz um efeito curioso de familiaridade e estranheza, pois algo se reconhece como próprio da música da banda mas talvez com um toque folk , enquanto a letra faz ouvir uma língua desconhecida (ou melhor: inexistente). Do hit , esse produto extraordinário da cultura de massa, Meireles refaz a voz (de cada um e de todos, de uma multidão, ao mesmo tempo) como apelo que funda o sujeito. Como dizia Barnett Newman, “o primeiro grito do homem foi uma canção”.[387]
A ideia de tocar a música de trás para diante vem de um comentário de Andy Hosey, um matemático e músico brilhante que passou muitos anos em uma instituição psiquiátrica antes de Cildo conhecê-lo em Nova York. Hosey lhe disse que grandes obras-primas da música erudita, especialmente composições de Beethoven, teriam uma estrutura espelhada, de tal modo que se poderia, ao atingir o meio da peça, tocá-la ao contrário. A música teria, assim, uma estrutura topológica. O artista queria que Liverbeatlespool ganhasse o espaço externo, reproduzida por caixas acústicas localizadas em janelas e voltadas para a rua. Para atender às restrições previstas pelas leis locais, porém, ele teve que mudar de planos e optou por adaptar uma caixa de som a uma bicicleta que cruzava as ruas da cidade, conduzida por um estudante de arte. Essa saída parece-me mais fiel à dimensão topológica do trabalho, por fazer o som se movimentar continuamente pelo espaço urbano. Talvez o essencial da topologia, como já nos ensinava Caminhando de Lygia Clark, seja justamente o movimento, o deslocamento – de fato os objetos topológicos são, em geral, espaços que permitem a passsagem dentro-fora, como mostra a fita de Moebius, além de outros objetos que não poderemos aqui explorar, como a garrafa de Klein e o toro. Essa torção, essa operação topológica no campo sonoro, refaz da fala e da canção algo mais fundamental: a voz. Como o primeiro grito de um homem (como dizia Newman), refazendo-se através de vozes plurais, retomando a potência de uma voz que nunca é propriamente a do sujeito (o grito talvez seja justamente a fala que não se reconhece, que dificilmente podemos atribuir a alguém, diferente do que fazemos sem dificuldade ao ouvir uma frase ou uma canção). Grito de ninguém – e de todos, e que não deixa de ser audível talvez em cada palavra que alguém pronuncia (como nos faz ouvir Cildo Meireles). Em vez do grito, podemos propor que o primeiro apelo do homem, sua primeira expressão, tenha sido um riso. Mais do que o
grito, o riso é transmissível e até mesmo contagioso, em alguns casos. Freud já apontava no humor e na piada atividades humanas fundamentais de enlaçamento ao outro e nas quais se manifesta, talvez mais do que em qualquer outra, o fato de que o inconsciente está nos produtos e efeitos que circulam entre as pessoas, e não no interior recôndito de cada indivíduo. Rio oir parte de uma brincadeira com palavras, uma manipulação poética da linguagem, na formação desse palíndromo em língua espanhola. Rio refere-se a curso de água, mas também à cidade do Rio de Janeiro. Esse projeto de 1976 inicialmente visava a apropriação de sons já existentes para fazer “um rio virtual”.[388] Em 2010-11, Meireles o realiza pela captação do ruído das águas das nascentes que dão origem às três bacias hidrográficas do Brasil: Tocantins / Amazonas, São Francisco e Paraná / Prata. Na banda Oir , ele “emenda” essas águas sonoramente, replicando a união que se realiza, de fato, no ponto geográfico chamado Águas Emendadas, próximo de Brasília. No trecho Rio, ele mixa risadas de homens, mulheres e crianças, algumas gravadas para esse fim, outras apropriadas de material já existente. Algo de caudaloso transmite-se entre os homens, e os põe juntos no mesmo barco – como se diz – ou no mesmo leito de rio, na mesma risada, cada um formando parte de um mesmo marulho – e assim formando o espaço improvável da terceira margem do rio. Com as pequenas Cigarras de metal (2010), Cildo imaginava centenas de pessoas na Cinelândia, no Rio de Janeiro, fazendo untas o estalo provocado pela manipulação do objeto – e assim refazendo, podemos pensar, o zumbido que esses insetos produzem nos momentos que antecedem as primeiras chuvas na região Centro-Oeste, parecendo tomar todo o espaço, sem fim, em uma mesma expectativa, uma mesma premente necessidade. Tal polifonia também constitui Babel (2001-06). Trata-se de uma estrutura de metal de cerca de cinco metros de altura e dois metros de diâmetro, na qual estão fixadas dezenas de aparelhos de rádio de
design e idade variáveis. O fundamental dessa escultura é o que ela transmite, literalmente: cada um desses aparelhos de rádio está ligado em uma frequência diferente, veiculando a programação de um dos inúmeros canais de rádio do mundo. Em meio a um chiado indistinto, ao se aproximar de um deles o ouvido descobre-se algo que já estava ali, porém não se podia perceber em sua singularidade. Talvez surja de repente um grito ou um riso – um prazer, uma dor – para além de noticiários e música comercial. Transmite-se aí algo longínquo e, no entanto, humano, familiar. Estranha polifonia. A AURA E O OUTRO Para o filósofo francês Jacques Rancière, o
domínio da estética é aquele de uma “partilha do sensível”: “O sistema de evidências sensíveis que revela, ao mesmo tempo, a existência de um comum e dos recortes que nele definem lugares e partes respectivas”.[389] Ele é de saída, portanto, um campo político, aquele da pólis onde o cidadão toma parte, justamente. Ou, como diz o próprio Rancière: Existe, portanto, na base da política, uma “estética” que não tem nada a ver com a “estetização da política” própria à “era das massas” de que falava Benjamin. Essa estética não deve ser entendida no sentido de uma captura perversa da política por uma vontade de arte, pelo pensamento do povo como obra de arte. Insistindo na analogia, pode-se entendê-la num sentido kantiano – eventualmente revisitado por Foucault – como o sistema das formas a priori determinando o que se dá a sentir. É um recorte dos tempos e dos espaços, do visível e do invisível, da palavra e do ruído que define ao mesmo tempo o lugar e o que está em jogo na política como forma de experiência. A política ocupa-se do que se vê e o que se pode dizer sobre o que é visto, de quem tem competência para ver e qualidade para dizer, das propriedades do espaço e dos possíveis do tempo.[390]
Todo ato artístico seria político, portanto, num sentido muito mais fundamental do que o da intenção de veicular um enunciado ideológico. Podemos dizer que o objeto ou ato artístico seria capaz de evocar o campo sensível que está na base da política e de agir sobre ele de maneira eventualmente transformadora, na medida em que rearranjaria os recortes entre tempos e espaços, visível e invisível, palavra, ruído e melodia. Com isso, a arte incidiria ustamente sobre o “lugar” do sujeito na pólis. Incidir sobre esse campo não significa reafirmar os recortes já estabelecidos entre tempo e espaço, visível e invisível, palavra e ruído, mas introduzir neles um certo desvio, como faz com frequência Cildo Meireles. Desvio para o vermelho (1967-84) é um de seus trabalhos mais conhecidos. Mais que a simbologia introduzida pela cor vermelha ao cobrir todo um espaço doméstico bem arrumado e pequeno-burguês – vermelho comunista, vermelho do sangue, das paixões, da violência – o fundamental parece ser aí o desvio. Subvertendo as categorias do visível e do objeto, esse trabalho nos põe em suspense diante de um espaço estranhado e que tem um canto – onde, como já ouvimos Cildo dizer de seus Cantos, pode acontecer de tudo. Um dos vértices da sala integralmente vermelha abre-se para o escuro no qual podemos acompanhar, após os instantes necessários para a acomodação dos olhos, a grande mancha vermelha, ondulante, que vai se tornando mais fina. O vermelho desvela-se como tinta, como cor de onde parte todo aquele pedaço de mundo, aquela arquitetura tão ordenada. Um ruído de líquido escorrendo ressoa em nós, até que avistamos a fonte de todo o vermelho: uma pia pregada na parede, torta, quase deixando escorrer o líquido vermelho que jorra da torneira, sem parar. É dispensável ressaltar que a pia faz oscilar nosso chão, nosso espaço. Para Marie-José Mondzain, o sujeito é em sua origem um homo spectator , nascendo na imagem que tem como modelo as “mãos em negativo” da gruta de Chauvet – aquelas inscrições rupestres feitas
com pigmentos soprados da boca sobre a mão espalmada na parede da caverna de maneira a se obter, ao retirá-la, o contorno da mão recortado na mancha de cor à sua volta. Tal gesto funda o olhar ao mesmo tempo que funda o sujeito: aquele que não se confunde com sua presença corporal, mas dela se demarca, retirando sua mão para produzir o signo pelo qual ele se inscreveria na cultura. É marcando sua ausência, pela retirada da materialidade de seu corpo, que o homem se inscreve como imagem – que se dá a ver para si e para os outros – e ao mesmo tempo se separa e se diferencia da imagem como sujeito falante. “A imagem da mão é a imagem de um outro com o qual nenhuma relação real é acessível, mas com o qual a ligação imaginária passa pelo reconhecimento do que se assemelha e faz sinal (ou faz signo, signe) desde o distante.”[391] A partir de tal mítico momento originário, o homem se separa de si mesmo e se articula, no campo do olhar, ao outro. Suas marcas, na imagem, dão notícia dele, um pouco como as inscrições em carvão e giz presentes nos painéis de Cinza. Há então que se pensar sobre a “situação política dos laços que se tecem na partilha dos olhares”, como nota Mondzain. Discutindo com Benjamin, a filósofa francesa nota que o primeiro valor de exposição surgiu quando o espectador se expôs ele mesmo, em primeiro lugar, na destreza dos primeiros gestos que o separaram dele para nascer ao olhar dos outros. Não se trata apenas desta aura que é o distante da presença e a prova iluminadora de uma ausência, trata-se também de fundar a condição política da presença com os outros.[392] Se a aura é “o distante da presença”, ela é a marca do acontecimento que faz nascer a imagem ao mesmo tempo que o sujeito falante. E inaugura a possibilidade de uma tessitura de olhares, uma trama na qual cada homem se dá a ver – já signo, e portanto diferente dele mesmo – ao outro. Uma certa “presença
com os outros”, no campo do olhar, é uma condição política, e é nela que a aura pode aflorar. Para prosseguir na questão dessa presença com os outros no campo do olhar, Mondzain convoca Hannah Arendt em sua releitura de Kant. Arendt ressalta que o conceito de juízo é o que permite a Kant ir além do “gosto” individual em prol de um “alargamento do espírito”, pela comparação de nosso juízo com o uízo que os outros poderiam emitir. É pela imaginação que se poderia aceder a tais possíveis juízos outros. O pensamento crítico torna, portanto, “os outros presentes, movendo-se, assim, potencialmente, em um espaço que é público, aberto a todos os lados”, como nota Arendt.[393] É o espírito, o juízo, que capacitaria o artista, com seu gênio, a encontrar para as ideias uma expressão capaz de comunicar aos outros o estado de espírito por elas provocado. Os artistas tornariam comunicável aquilo para o qual não temos palavras. Pela arte, emoções que seríamos incapazes de comunicar a outrem se tornariam comunicáveis, “em geral”. O artista precisa dos outros para exercer seu gênio na criação de obras – e o espectador nunca está sozinho; “espectadores existem somente no plural”, como diz Arendt. “A condição sine qua non para a existência do objeto belo é a sua comunicabilidade; o juízo do espectador cria o espaço sem o qual não seria absolutamente possível a aparição de tais objetos.” [394] O espectador, diante da obra, “cria o espaço” de existência de tais objetos encarregados de passar algo incomunicável. É muito curioso tal deslizamento que Arendt realiza do julgamento ao espaço. A comunicação do incomunicável se daria graças à criação de um espaço. Toda operação sobre o espaço é uma operação que se dá com objetos ou atos, sobre o sujeito – ou melhor, sobre o laço de um sujeito a outro (essa terceira margem). Nessa medida, o espaço seria a região do comum, daquilo que se partilha. Mais do que de uma comunicação direta de alguma ideia ou emoção, trata-se de uma passagem tortuosa que deve refazer tais laços, em torno de
algo quase indizível – pois diz respeito ao que há de mais íntimo ao sujeito. O COMUM: TRANSMISSÃO DA DIFERENÇA Nas famosas Inserções em
circuitos ideológicos, de 1970, há uma explícita motivação ideológica. No Projeto Coca-Cola, Cildo Meireles propõe que sejam colados na garrafa do refrigerante decalques de silk screen com a inscrição “Yankees go home!”. E um pouco abaixo: Inserções em circuitos ideológicos: 1. Projeto Coca-Cola. Gravar nas garrafas opiniões críticas e devolvê-las à circulação . Coladas na garrafa vazia, as frases são quase invisíveis. Mas ficam bem legíveis ao se preencher a garrafa com o líquido escuro na fábrica, para sua distribuição. No Projeto cédula, notas de dinheiro carimbadas com a inscrição “Quem matou Herzog?” têm teor semelhante, remetendo ao assassinato do ornalista durante a ditadura militar, e deveriam ser recolocadas em circulação após receberem tal inscrição. Cildo desdenha esses objetos em si e toma suas fotos como meros registros ou relíquias. Importa, aí, “isolar e fixar a noção de circuito”, como diz o artista, para nele inserir um desvio, uma provocativa subversão.[395] “O trabalho só existe enquanto estiver sendo feito. O seu lugar é um pouco o do terceiro malabar na mão do malabarista. Está ali num processo de passagem.”[396] O fundamental é uma passagem. Muito mais do que um espaço bem estabelecido, trata-se do espaço cambiante e móvel do circuito, onde a posição dos atores e dos objetos estabelecem um jogo dinâmico. Nesse trabalho, tal circuito se materializa graças a uma mensagem de claro cunho político. Mas essas mensagens não fixam um “lugar” para a obra. A arte não tem propriamente lugar, pois ela é a passagem, a circulação entre sujeito e cultura, a tensão que define essa relação. Ela toca, portanto, no mal-estar na cultura, atualizando-o historicamente e fazendo política, ao mesmo tempo que retoma, num malabarismo, a dupla e tensionada constituição do sujeito, na cultura. Por isso Cildo Meireles insiste que em sua
obra, mais do que intervenções políticas no sentido estrito, “prevalecem os aspectos não regionalizáveis; aspectos que são questões do homem”. [397] Trata-se, nas Inserções em circuitos ideológicos, sem dúvida, de comunicação, mas num sentido mais amplo e fundamental do que a emissão e posterior recepção de palavras de ordem. Sob as mensagens ideológicas e seu explícito questionamento de um certo contexto sociopolítico, comunica-se também este incomunicável impulso que faz do sujeito um ponto de um circuito mais amplo, onde dele aos outros algo pode se passar, delimitando tempos e espaços – e subvertendo-os, introduzindo desvios no circuito de modo a, eventualmente, transmitir ao outro um acontecimento profundamente transformador. Para o filósofo francês Jean-Luc Nancy, “nós comparecemos: nós viemos juntos ao mundo”.[398] Não no sentido em que haveria uma produção simultânea de diversas unidades distintas, mas naquele em que não pode haver “vinda ao mundo que não seja radicalmente comum”.[399] “Comum” não designa aí o pertencimento a uma substância única, mas a partilha de uma falta de essência – de uma falta, eu diria, de lugar. É isso que se partilha com o outro: um certo desvio, uma certa oscilação. Em Babel (2001-06), como já mencionei, dezenas de aparelhos de rádio estão ligados e transmitem num volume no limite do audível o programa de alguma estação de rádio do mundo. Impossibilitando qualquer comunicação no sentido estrito, semiótico, Babel concretiza a pluralidade de línguas que a ela é atribuída pela Bíblia. Por isso mesmo, ela é capaz de transmitir notícias do sujeito e do mundo em sua radical heterogeneidade, lembrando a impossibilidade de uma comunidade feita de semelhança e entendimento. Ela ecoa a formulação de Mário Pedrosa, ainda em 1967: O homem moderno se vai transformando numa caixa de
condutos de comunicação cada vez mais complicados, cada vez mais aperfeiçoados. […] Ele é cada vez mais outra coisa que ele próprio, e, na medida dessa progressiva e dialética objetivação, se vai tornando o tema exclusivo ou absorvente de sua própria arte. Assim como seu coração pode ser substituído por outro artificial, que se aperfeiçoa, sua alma vai sendo também reconstituída lá fora na trama das comunicações que recebe e transmite.[400] “alma” do homem está fora: na trama entre os homens, em transmissões por vezes enigmáticas e potencialmente transformadoras. Reagindo à queda do Muro de Berlim, Nancy defende a existência de um “comum” para além do comunismo, baseando-se na evidência de que “não existimos sós. Ou antes, não há só que exista”.[401] Babel mostra que algo se transmite na diferença, no ruído indistinto da mistura de línguas dos rádios. Já em Marulho (1997) ficava claro que o mar se faz, em sua imensidão e seu barulho, das vozes dos homens pronunciando juntas e em ondas a palavra “água” em dezenas de línguas. Suas belas ondas feitas de papel, mar de livros, mar de fotografias, mostram seu caráter humano: fabricado, reproduzido tecnicamente como queria Benjamin. A palavra “marulho” designa o movimento quase imperceptível das ondas do mar, mas também conota agitação, confusão. Algo se passa entre nós, algum marulho que é como a voz anônima de toda a humanidade. Voz de todos e de ninguém. Mensagem numa garrafa de náufrago. Como testemunho de algo incomunicável, algo urge por passar entre os homens, transmitir-se, e transformar poeticamente a realidade. Mas o que pede passagem, de que se deve testemunhar, diante do outro? Maurice Blanchot atribui a Platão a frase “Pois da morte, ninguém tem saber”, e prossegue:
E no entanto, sempre, escolhemos um companheiro: não para nós, mas para alguma coisa em nós, fora de nós, que necessita que nós faltemos a nós mesmos para passar a linha que não atingiremos. Companheiro de saída perdido, a própria perda que está daqui em diante em nosso lugar. Onde buscar o testemunho para o qual não há testemunho? [402]
Comparecemos apelando ao outro, diante disso que é nossa própria perda, como na experiência inaugural do homem que deixa ao outro seu sinal, sua marca em negativo na imagem da mão na gruta de Chauvet. “O primeiro homem é sempre uma multidão”, na frase que Cildo Meireles cita do religioso e cientista evolucionista francês Teilhard de Chardin e usou como epígrafe ao projeto de Eureka Blindhotland para a Sala Experimental, no Museu de Arte Moderna do Rio de aneiro em 1975. PRESENTES E SEQUESTROS Meireles aponta um acontecimento de
sua infância como importante para sua decisão de se tornar artista. Ele viu um homem muito simples passando pela vegetação próxima à casa de sua avó. De casa, à noite, as crianças avistavam a fogueira que o homem havia feito no mato, a cerca de trezentos metros dali. Cildo passou toda a noite imaginando o que ele estaria fazendo. Pela manhã, correu ao local. “Ele já havia partido, mas o que encontrei ali foi talvez a coisa mais decisiva para o caminho que tomei em minha vida.”[403] O andarilho havia construído durante a noite uma casa em miniatura, feita de pequenos pedaços de madeira, com janelas e portas que se abriam. Impressionou muito a Cildo a possibilidade de “se fazer coisas e deixá-las para os demais”. [404] Ele comenta: Isso me marcou muito. É aquela coisa, nunca acontecia nada e
qualquer pequeno evento é algo importante. Toda curiosidade pressupõe uma expectativa. Mas quando você encontra essa coisa esperada é algo que comove, e naquelas circunstâncias aquilo me comoveu. Esse andarilho não aspirava nem mesmo ao desanonimato. […] Isso era uma coisa de um sujeito muito nobre. De um desprendimento total de si. Era um presente. Isso te aponta uma possibilidade de ser. Para Nancy, se existe arte, é em razão de um em-comum, e “a arte detém algo do em-comum que ela talvez seja a única a deter”.[405] A arte vem do outro. Na comparição existe uma dimensão que não é apenas da constatação e defesa do comum, mas é uma verdadeira posição ética: há que comparecer politicamente, ou seja, diante e em relação ao outro. A arte, parece afirmar a produção de Cildo, deve ser um presente que atualiza e materializa este em-comum, com todo o peso de posição ética que isso implica. Seriam os trabalhos de Cildo presentes para o outro? Ele responde: Eu gostaria que fossem. Quero acreditar que sejam presentes. Acho que tem um aspecto em qualquer tipo de produção em que você esteja envolvido, que é este de doação mesmo, você tenta partilhar sua opinião sobre alguma coisa – a maneira como dois elementos se portam, duas linhas etc. Tem alguma coisa ali que você gostaria de partilhar, claro. Mas essa partilha implica uma certa despossessão do sujeito. “O homem encontra sua casa”, diz Lacan, “num ponto situado no Outro para além da imagem de que somos feitos. Esse lugar representa a ausência em que estamos.” [406] A casa do homem está para além da imagem, ela é um lugar de ausência e descentramento, um lugar de perda, como já dizia Blanchot. Lugar paradoxal porque inexistente: nada além de uma certa mobilidade
do sujeito em relação a si mesmo e ao outro. Sujeito andarilho. Esse lugar supõe um outro com o qual ele possa ser partilhado, mas não sob o modo do encontro. Como se encontrar num lugar que é de perda? Sem lugar, algo convoca de um a outro, na passagem de algo que diz radicalmente respeito a eles, mas situa-se fora. Retomando o “sequestro relâmpago” de que falava Cildo, colocase a questão de para onde são levadas as pessoas sequestradas. “Qual o cativeiro?”, brinca o artista. O cativeiro é exatamente isso, o que cada artista acha que pode, que poderia partilhar, e que pudesse ser uma coisa legal para o outro, que fosse uma coisa positiva, que participasse de uma construção desse outro (ideal para ele mesmo). Os votos, os augúrios são os melhores possíveis. Claro que você já fez trabalhos que mudaram as vidas de pessoas. Talvez você nunca venha a saber. Quando você tiver 103 anos, vem alguém te dizer isso. Mas o que se partilha não seria justamente o sequestro? Seria, diz Cildo, algo “que possibilitasse esse sequestro, que seria exatamente um estado de diálogo entre um sujeito qualquer e determinado objeto”. O cativeiro não é nosso lugar, dele devemos sair. Reagindo à pergunta de se tal cativeiro seria uma fronteira, seria seu país tão radicalmente estreito, o artista lembra que se trata de “um país que só pode existir de fora”. Para Jean-Christophe Bailly, a política é um “pensamento de pontes e passarelas, um pensamento do umbral”.[407] O umbral é uma abertura, uma passagem entre o dentro e o fora, uma possibilidade de troca e partilha. Nesse umbral, o modelo do comum abrigando diferenças é o da linguagem, comum entre as diversas línguas como estrutura subjacente a suas diferenças. Entre línguas há traduções possíveis, mesmo que elas sempre impliquem algum resto, apontando impossibilidade de uma tradução perfeita.
Bailly constrói então uma alegoria próxima do estreito país de Cildo Meireles: a da casa feita só de umbrais. O nome dessa casa seria o da “comunidade da existência”,[408] na qual o comum é uma participação do múltiplo no mesmo, abrindo para o surgimento do outro, das diferenças. Tal formulação de uma multiplicidade no mesmo não diz respeito apenas à troca dita intersubjetiva, ao jogo de espelhos entre um e outro onde as semelhanças podem atrair e encantar, mas podem também levar à violência mais pura. Uma comunidade possível é a do país que só existe “de fora”, como dizia o artista: é aquela que reconhece um fora como testemunho do nosso íntimo, e portanto inaugura o umbral por onde algo pode se passar, se transmitir. Um fora nos determina, e dele a arte dá notícias, de forma privilegiada, construindo um incerto e efêmero território onde surgimos, fora de nós. É isso, que Blanchot nomeava “alguma coisa fora de nós”, que é coletivo, levando-nos portanto a buscar o outro para sua transmissão. Só pelo outro pode-se falar disso (d’ Isso, o Id de Freud). Cildo menciona esse “coletivo” ao falar das coincidências que aparecem na produção científica: duas pessoas podem estar trabalhando sem saber, independentemente e geograficamente bem distantes, na mesma hipótese ao mesmo tempo, sem que haja nenhuma comunicação entre elas. Em arte, onde não existe ainda tal instantaneidade na troca de informação – ela começa talvez a aparecer –, isso também acontece o tempo todo. Ou você tem que acreditar numa coisa coletiva que estaria aí, presente sem a gente saber, e que seria uma espécie de isca em direção a alguma coisa que seja comum, que seja a aspiração profunda de cada um, algo assim. arte vem sempre do outro. Até porque, como já afirmava Georges Bataille, “o que eu penso, não o pensei sozinho”.[409]
Eu não sei exatamente como determinados trabalhos, ao longo da história da arte, me ajudaram, mas foram doações essenciais, que me mantiveram e me mantêm vivo, de uma certa maneira. Você recebe de outros. arte é doação, e ela ultrapassa a individualidade do artista em prol de um “comum”. Para Cildo Meireles, é como aquele conceito de livro de Jorge Luis Borges: na verdade não existem livros, existe um único livro que vem sendo escrito pela soma do que produzem todos os escritores. Acho que arte é um pouco assim. E talvez o cativeiro seja a soma de todos esses cativeiros, ainda personalizados, que seriam, talvez, o universo de cada artista. Em muitos casos, eles passam exatamente por essa experiência coletiva, mesmo, de ser partilhado por muito mais gente do que se imagina. arte: experiência coletiva, política, que nos tira do lugar. Não propriamente para nos instalar em outro lugar, mas pelo transporte em si. Pela transitoriedade. Pois não há lugar para onde leve a arte. O cativeiro de todos é o de ninguém: livro que corresponde ao mundo. Nesse sentido a arte pode ser dita utópica: sem lugar. Ou tendo como topos, lugar, não mais do que uma promessa. O território esfacelado e reconstruído a que ela convida é o desejo. Ela é convite, promessa mantida, reiterada, mas nunca inteiramente cumprida. Algo sutil mas poderoso como um sorriso, um efêmero mas aurático presente: Uma vez também em Brasília, era uma da tarde, eu tinha saído do [colégio] Elefante Branco e estava descendo para uma livraria em que às vezes eu passava, era a Dom Bosco, na rua da Igrejinha. Eu estava descendo pela [superquadra] 307, naquele vermelho de Brasília, aquele sol ardido. Aí passa um moleque de
uns dez anos e de repente me dá um sorriso, cara, tão gratuito. Eu nunca consegui esquecer. Tem a ver com o andarilho. Isso deve ter sido em 62, 63. Rápido encontro em que algo se passa – algo que nem se sabe bem o que é. Seu poder transformador pode se limitar a uma promessa, mas com ela talvez já consiga abrir alguma brecha sutil porém vigorosa, algum desvio, se acreditarmos no que formula Bailly pouco após o fim dos regimes comunistas: Abrir no acúmulo dos dias acontecimentos tais que a promessa que eles contêm seja por um instante, por um longo instante mantida, tal é a natureza mais própria das revoluções: elas não revolucionam por realizações, mas porque abrem no acúmulo e na inércia dos dias a fratura de um futuro que não realizam.[410] PÓS-ESCRITO No momento em que eu escrevia a maior parte dessas
linhas, Cildo Meireles estava montando o trabalho While u Weight em uma remota cidade ao norte da Noruega. Esse trabalho vem de um projeto feito para o Paço das Artes em São Paulo em 1976, e depois proposto para o irrealizado Museu de Esculturas em Brasília, em 1998. Ele então receberia o título Chão. Trata-se de uma plataforma de oito metros de diâmetro instalada ao nível do terreno, ao ar livre, e forrada com a vegetação que existe a seu redor. Em função do peso das pessoas que se colocam sobre ela, um mecanismo montado sob a plataforma faz com que ela oscile um pouco, num ângulo que corresponde a, no máximo, onze centímetros de deslocamento de suas bordas. Para Cildo, esse trabalho traz uma “instabilidade”, nos fazendo “perder o chão”. O título atual é um trocadilho com a expressão “ while u wait ” (“ while ou wait ”), comum para indicar serviços rápidos como, por exemplo, o conserto que um sapateiro pode realizar enquanto o cliente espera.
Enquanto você espera, você pesa, e seu peso ( weight ), sua presença transforma algo no mundo, mudando minimamente seu ponto de vista, seu lugar. Utópica transformação.
NOTAS 1 Mário Pedrosa, “Especulações estéticas: Lance final III”, in Mundo, homem, arte em crise. São Paulo: Perspectiva, 1975, p. 139. 2 Hélio Oiticica, “Crelazer”, in Aspiro ao grande labirinto. Rio de Janeiro: Rocco, 1986, p. 116. 3 Walter Benjamin, “Brèves Ombres ii”, in Oeuvres ii. Paris: Gallimard, 2000, p. 349. 4 Citado em Jean F. Grunfeld, “Golddust is my Ex-Libris”, in
. Consultado em 23/12/2006. 5 Hal Foster, The Return of the Real: The Avant-Garde at the End of the Century . Cambridge/ Londres: mit Press, 1996. 6 “Discussões com Heizer, Oppenheim, Smithson” [1970], in G. Ferreira & C. Cotrim (orgs.), Escritos de artistas: Anos 60/70. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2006, p. 280. 7 Donald Judd, “Objetos específicos”, in G. Ferreira & C. Cotrim, op. cit., p. 102. 8 Citado em Georges Didi-Huberman, O que vemos, o que nos olha , trad. Paulo Neves. São Paulo: Editora 34, 1998, p. 91. 9 Id., ibid., p. 95. 10 Id., ibid., p. 116. 11 Marcel Duchamp, “Le Processus créatif”, in Duchamp du Signe. Paris: Flammarion, 1994, p. 247. 12 Sigmund Freud, “Vorlesungen zur Einführung in die Psychoanalyse” [1917], in Gesammelte Werke [GW ], V . XI. Londres: Imago, 1940, p. 295 [ed. bras.: “Conferências introdutórias sobre psicanálise”, in Edição standard brasileiras completas de Sigmund Freud [ ESB], V . XVI. Rio de Janeiro: Imago, 1987, p. 336]. 13 Lygia Clark, “Do ato” [1965], in Lygia Clark (catálogo). Barcelona: Fundació ntoni Tàpies, 1997/99, p. 164.
14 Em mesa-redonda que acompanhou a exposição Jardim das delícias no Museu da República, Rio de Janeiro, em 7/12/2006. 15 Maurice Merleau-Ponty, O olho e o espírito, trad. Maria Ermantina Pereira e Paulo Neves. São Paulo: Cosac Naify, 2004, p. 42. 16 Citado em Tracey Warr & Amelia Jones, The Artist’s Body. Londres: Phaidon, 2000, p. 125. 17 Jacques Lacan, Seminario xv: El ato psicoanalítico , sessão 14 (20/03/1968). Transcrição inédita. 18 S. Freud, “Vergänglichkeit”, in gw, op. cit., V . X, p. 359 [ed. bras.: “Sobre a transitoriedade”, in esb, op. cit., v. xiv, p. 346]. 19 Id., ibid., pp. 358-59. 20 Citado em Pierre Kaufmann, Dicionário enciclopédico de psicanálise: O legado de Freud e Lacan, trad. Maria Luiza X. de A. Borges & Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: orge Zahar, 1996, p. 505. 21 L. Clark, op. cit., p. 165. 22 Id., “Capturar um fragmento de tempo suspenso” [1973], in Lygia Clark , op. cit., p. 187. 23 Id.,“Da supressão do objeto (Anotações)” [1975], in Lygia Clark , op. cit., p. 265. 24 J. Lacan, “L’Acte psychanalytique: Compte rendu du séminaire 1967-1968”, in Autres écrits. Paris: Seuil, 2001, p. 375 [ed. bras.: “O ato psicanalítico: Resumo do seminário de 1967-68”, in Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003, p. 371]. 25 L. Clark, “Do ato”, op. cit., p. 165. 26 J. Lacan, “L’Acte psychanalytique”, op. cit., p. 378 [ed. bras.: p. 374]. 27 Id., Le Séminaire, livre x: L’Angoisse. Paris: Seuil, 2004, p. 60 [ed. bras.: O seminário, livro x: A angústia, trad. Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005, p. 58]. 28 Citado em T. Warr & A. Jones, op. cit., p. 194. 29 L. Clark, “Do ato”, op. cit., p. 164. 30 Ver M. Merleau-Ponty, O visível e o invisível, trad. José Arthur Giannotti & rmando Mora d’Oliveira. São Paulo: Perspectiva, 2000, pp. 131-32. 31 Roger Caillois, “Mimetismo e psicastenia legendária”. Che Vuoi? Psicanálise e
Cultura, n. 0, v. 1, 1986, p. 60. 32 Id., ibid., p. 63. 33 Id., ibid., p. 62. 34 Rosalind Krauss, O fotográfico. Barcelona: Gustavo Gili, 2002, p. 184. 35 R. Caillois, op. cit., p. 62. 36 Id., ibid., pp. 62-63. 37 J. Lacan, O seminário, livro xi: Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise , trad. M. D. Magno. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998, p. 104. 38 R. Caillois, op. cit., p. 63. 39 J. Lacan, O seminário, livro XI , op. cit., p. 106. 40 Id., ibid., p. 111. 41 Id., ibid., p. 113. 42 J. Lacan, “Télévision”, in Autres écrits, op. cit., p. 537 [ed. bras.: “Televisão”, in Outros escritos, op. cit., p. 535]. 43 J. Lacan, O seminário, livro xi, op. cit., p. 111. 44 Id., ibid., p. 95. 45 L. Clark, “Do ato”, op. cit., p. 164. 46 Hal Foster et al., “Psychoanalysis in Modernism and as Method”, in Art Since 1900: Modernism, Antimodernism, Postmodernism. Londres: Thames & Hudson, 2004, p. 1. 47 Stéphane Mallarmé, “Richard Wagner: Rêverie d’un poète français”, in Écrits sur l’art . Paris: Flammarion, 1998, p. 364. 48 Ver Arlindo Machado, O quarto iconoclasmo e outros ensaios hereges . Rio de aneiro: Rios Ambiciosos, 2001. 49 Ver Sigmund Freud, “Lembranças encobridoras”, in Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud [esb], V . III. Rio de Janeiro: Imago, 1987. 50 Ver a respeito dessa distinção meu livro Cinema, imagem e psicanálise. Rio de aneiro: Jorge Zahar, 2008. 51 In visuelle Bilder , no original. Ver S. Freud, “Die Traumdeutung”, in Gesammelte Werke [ gw], V . II/III. Londres: Imago, 1942, p. 551 [ed. bras.: “A interpretação dos
sonhos”, in ESB, op. cit., V . IV / V , p. 500]. 52 Walter Benjamin, “Pequena história da fotografia” [1931], in Obras escolhidas i: Magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense, 1994, p. 94. 53 S. Freud, “A interpretação dos sonhos”, in ESB, op. cit., V . IV / V , p. 491. 54 No original, Bildliche Sprache: linguagem ou língua pictórica. Ver S. Freud, “Die Traumdeutung”, op. cit., V . II/III, p. 323. 55 Id., “Sobre os sonhos”, in ESB, op. cit., V . V , p. 590. Tradução revista de acordo com a edição original. 56 Id., “A interpretação dos sonhos”, op. cit., V . IV / V , p. 286. 57 E não um trecho de “A interpretação dos sonhos”, como afirma equivocadamente o catálogo da exposição Freud and Contemporary Art: The Collection of the Sigmund Freud Museum Vienna . Nova York: Austrian Cultural Forum, 2006, p. 26. 58 S. Freud, “Os chistes e sua relação com o inconsciente”, in esb, op. cit., pp. 186-87. Tradução revista de acordo com a edição original. Ver “Der Witz und Seine Beziehung zum Unbewussten”, in gw, op. cit., V . VI, p. 185. 59 Joseph Kosuth, Zeno at the Edge of the Known World (catálogo). xlv Bienal de Veneza, 1993, p. 104. 60 Id., “Art After Philosophy and After”, in Collected Writings: 1966-1990. Cambridge / Londres: mit Press, 1991, p. 233. 61 Id., Zeno at the Edge of the Known World , op. cit., p. 104. 62 S. Freud, “Sobre os sonhos”, op. cit., V . V , p. 591. Grifos meus. 63 Neue Oberflächen, no original. Ver S. Freud, “Über den Traum”, in gw, op. cit., V . II/III, p. 673 [ed. bras.: “Sobre os sonhos”, in ESB, op. cit., V . V , p. 591]. 64 Jean-François Lyotard, Discours, figure. Paris: Klincksieck, 2002. 65 Jacques Rancière, Le Destin des images. Paris: La Fabrique, 2003, p. 14. 66 S. Freud, “A interpretação dos sonhos”, op. cit., V . IV / V , p. 128. 67 Id., ibid., p. 129. 68 Id., ibid., p. 482. 69 Georges Didi-Huberman, Devant l’Image. Paris: Les Éditions de Minuit, 1990. 70 Id., ibid., 182.
71 Id., ibid., p. 174. 72 H. Foster, The Return of the Real: The Avant-Garde at the End of the Century . Cambridge / Londres: mit Press, 1996, p. 149. 73 Citado em Alfredo Bosi, “Uma cultura doente?”, in I. Svevo, A consciência de Zeno. São Paulo: Nova Fronteira, 2001, p. 409. 74 J. Kosuth, Zeno at the Edge of the Known World, op. cit., p. 153. 75 Italo Svevo, op. cit., p. 17. 76 Id., ibid., pp. 373-74. 77 J. Kosuth, Zeno at the Edge of the Known World, op. cit., p. 152. 78 Id., ibid., p. 156. 79 Aristóteles, Poética, trad. Eudoro de Sousa. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1994, p. 107 (§ 1448 b: 8; 16-19). 80 J. Rancière, op. cit., p. 15. 81 I. Svevo, op. cit., p. 318. 82 Eu assinalo a expressão que corresponde ao original hoher Genuss. Ver S. Freud, “Além do princípio do prazer”, in esb, op. cit., V . XVIII, p. 29. 83 J.-F. Lyotard, op. cit., p. 104. 84 Rosalind Krauss, The Optical Unconscious. Cambridge / Londres: mit Press, 1998, p. 24. 85 J.-F. Lyotard, “Foreword: After the Words”, in J. Kosuth, Collected Writings, op. cit., p. xviii. 86 J. Kosuth, Collected Writings,op. cit., pp. 221-22. 87 H. Foster, The Return of the Real , op. cit., p. 140. 88 J. Kosuth, Collected Writings, op. cit., p. 232. 89 Roland Barthes, “O espírito da letra”, in O óbvio e o obtuso . Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1990, p. 93. 90 Id., ibid., p. 94. 91 Id., “Erté ou ao pé da letra”, in O óbvio e o obtuso , op. cit., p. 114. 92 “Traumbild”, como grafa Freud, entre aspas. Ver S. Freud, “Os chistes e sua relação com o inconsciente” [1905], in Edição standard brasileira das obras sicológicas completas de Sigmund Freud [esb], V . III. Rio de Janeiro: Imago, 1987, p.
187. 93 Id., ibid., p. 43. 94 Id., “A interpretação dos sonhos”, in ESB, op. cit., V . IV , p. 132. 95 Jacques Lacan, “Fonction et champ de la parole et du langage”, in Écrits. Paris: Seuil, 1966, p. 267 [ed. bras.: “Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise”, in Escritos. São Paulo: Perspectiva, 1996, p. 268]. 96 Id., Le Séminaire, livre ii: Le Moi dans la théorie de Freud et dans la technique de la sychanalyse. Paris: Seuil, 1978, p. 231 [ed. bras.: O seminário, livro ii: O eu na teoria de Freud e na técnica da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1995, p. 248]. 97 Id., ibid., p. 231 [ed. bras.: p. 247]. 98 J. Lacan, Le Séminaire, livre XX : Encore. Paris: Seuil, 1975, p. 45 [ed. bras.: O seminário, livro XX : Mais, ainda. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985, p. 63]. 99 Robert Mittenthal, “Standing Still on the Lip of Being: Gary Hill’s Learning Curve”, in Gary Hill (catálogo). Washington, Hirshhorn Museum, 1994, p. 93. 100 Raymond Bellour, L’Entre-images 2: Mots, images. Paris: P.O.L., 1999, p. 37. 101 Gary Hill: O lugar do outro /Where the Other Takes Place (catálogo). Rio de aneiro: CCBB, 1997, p. 70. 102 Id., ibid., p. 72. 103 Michel Foucault, As palavras e as coisas: Uma arqueologia das ciências humanas, trad. Salma Tannus Muchail. São Paulo: Martins Fontes, 1985, p. 25. 104 Gary Hill, op. cit., p. 38. 105 Lucinda Furlong, “A Manner of Speaking: An Interview with Gary Hill”. fterimage, n. 10, 1983. 106 J. Lacan, “Avis au lecteur japonais” [1972], in Autres écrits. Paris: Seuil, 2001, p. 498 [ed. bras.: “Aviso ao leitor japonês”, Outros escritos, trad. Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003, p. 500]. 107 Jean-Louis Gault, “Quelques traits remarquables de la langue japonaise”, in nalytica 55 ( Lacan et la chose japonaise). Paris: Navarin, 1988, p. 25. 108 John G. Hanhardt, “Between Language and the Moving Image: The Art of Gary Hill”, in Gary Hill, op. cit., p. 64. 109 S. Freud, “Os chistes e sua relação com o inconsciente”, in ESB, op. cit., V . III,
p. 49. 110 Paul-Emmanuel Odin, “Ura Aru (The Backside Exists)”, in . Consultado em 06/07/2012. 111 Arlindo Machado, “Por que se desorganizam a linguagem e o sentido?”, in Gary Hill: O lugar do outro/ Where the Other Takes Place (catálogo), op. cit., p. 19. 112 François Cheng, “Lacan et la Pensée chinoise”, in J. Aubert et al., Lacan: L’Écrit, l’image. Paris: Flammarion, 2000, p. 136. 113 J. Lacan, Le séminaire, livre XX : Encore, op. cit., p. 12 [ed. bras.: O seminário, livro xx: Mais, ainda, op. cit., p. 14]. 114 André Breton, Le Surréalisme et la peinture. Paris: Gallimard, 1965, p. 258. 115 Ver S. Freud, “Uma nota sobre o bloco mágico”, in ESB, op. cit., V . XIX. 116 J. Lacan, “Lituraterre” [1971], in Autres écrits. Paris: Seuil, 2001, p. 16 [ed. bras.: “Lituraterra”, in Outros escritos, trad. Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003, p. 21]. 117 Id., ibid., p. 16 [ed. bras.: pp. 21-22]. 118 Id., ibid., p. 15 [ed. bras.: p. 20]. 119 Sigmund Freud, “Escritores criativos e devaneio”, in Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud [ ESB], V . IX. Rio de Janeiro: Imago, 1987. 120 Jacques Lacan, Le Séminaire, livre vii: L’Éthique de la Psychanalyse. Paris: Seuil, 1986, p. 145 [ed. bras.: O seminário, livro vii: A ética da psicanálise, trad. Antônio Quinet. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997, pp. 151-52]. 121 Id., ibid., p. 78 [ed. bras.: 82]. 122 S. Freud, “O estranho” [1919], in ESB, op. cit., V . XVII, p. 275. 123 Id., ibid., p. 294. 124 Marie-José Mondzain, “Les Images parlantes”, in M. Gagnebin (org.), Les Images parlantes. Paris: Champ Vallon, 2005, p. 21. 125 Id., ibid., p. 22. 126 Kasimir Malevich, “Suprematismo”, in H. B. Chipp (org.) , Teorias da arte moderna, trad. Waltensir Dutra. São Paulo: Martins Fontes, 1996, p. 347.
127 Id., ibid, p. 347. 128 Barnett Newman, “O primeiro homem era um artista”, in H. B. Chipp , op. cit., p. 559. 129 Id., ibid., p. 560. 130 S. Freud, “O estranho”, in ESB, op. cit., V . XVII, p. 310. 131 Ernst Jentsch, Zur Psychologie des Unheimlichen, in . Consultado em 1/7/2012. 132 J. Lacan, Le Séminaire, livre XIII : L’Objet de la psychanalyse, sessão de 25/05/1966.Transcrição inédita. 133 J. Lacan, “La Méprise du sujet supposé savoir”, in Autres Écrits. Paris: Seuil, 2001, p. 330 [ed. bras.: “O engano do sujeito suposto saber”, Outros escritos, trad. Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003, p. 330]. 134 Id., Le Séminaire, livre VII : L’Éthique de la Psychanalyse. Paris: Seuil, 1986, p. 167 [ed. bras.: O seminário, livro VII : A ética da psicanálise, trad. Antônio Quinet. Rio de aneiro: Jorge Zahar, 1997, p. 173]. 135 Roland Barthes, “Qu’est-ce que la Critique?”, in Essais critiques. Paris: Seuil, 1964, p. 266 [ed. bras.: “O que é a crítica”, in Crítica e verdade. São Paulo: Perspectiva, 2007]. 136 J. Lacan, Le Séminaire, livre VII : L’Éthique de la Psychanalyse, op. cit., p. 237 [ed. bras.: p. 246]. 137 Theodor W. Adorno, “O ensaio como forma”, in Notas de literatura i. São Paulo: Duas Cidades / Editora 34, 2003, p. 36. 138 Walter Benjamin, “Annonce de la revue Angelus Novus”, in Oeuvres i. Paris: Gallimard, 2000, p. 268. 139 Hélio Oiticica, Aspiro ao grande labirinto. Rio de Janeiro: Rocco, 1986, p. 72. 140 J. Lacan, La Sublimation, op. cit., p. 170 [ed. bras.: p. 176]. 141 H. Oiticica, “Bases fundamentais para uma definição do Parangolé”, in spiro ao grande labirinto, op. cit, pp. 66-67. 142 H. Oiticica, “Anotações sobre o Parangolé”, in Aspiro ao grande labirinto, op. cit., p. 71. 143 Citado em L Figueiredo (org.), Hélio Oiticica: A pintura depois do quadro. Rio de aneiro: Silvia Roesler, 2008, pp. 264-65.
144 H. Oiticica, “Esquema geral da nova objetividade”, in Aspiro ao grande labirinto, op. cit., p. 93. 145 Id., ibid., p. 98. 146 Id., “Anotações para serem traduzidas para inglês: para uma próxima publicação”, in P. Braga (org.), Fios soltos: A arte de Hélio Oiticica. São Paulo: Perspectiva, 2008, p. 318. 147 Sigmund Freud, “Vorlesungen zur Einführung in die Psychoanalyse”, in Gesammelte Werke [GW ], V . XI. Londres: Imago, 1944, p. 295 [ed. bras.: “Conferências introdutórias sobre psicanálise”, in Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud [ ESB], V . XV . Rio de Janeiro: Imago, 1976, p. 336]. 148 Id., “Das Ich und das Es” [1923], in GW , op. cit., V . XIII, p. 253 [ed. bras.: “O ego e o Id”, in esb, op. cit., V . XIX, p. 39] 149 Jacques Lacan, “L’Instance de la lettre ou la raison depuis Freud”, in Écrits. Paris: Seuil, 1966, p. 517 [ed. bras.: “A instância da letra no inconsciente ou a razão desde Freud”, in Escritos. São Paulo: Perspectiva, 1996, p. 521]. 150 Id., “Remarque sur le rapport de Daniel Lagache”, in Écrits, op.cit., p. 681 [ed. bras.: “Obsevações sobre o relatório de Daniel Lagache, in Escritos, op. cit., p. 688]. 151 Georges Didi-Huberman, O que vemos, o que nos olha . São Paulo: Editora 34, 1998, pp. 246-47. Grifos meus. 152 François Baudry, “Fantasia”, in Pierre Kaufmann, Dicionário enciclopédico de sicanálise: O legado de Freud e Lacan, trad. Maria Luiza X. de A. Borges & Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1996, p. 196. 153 Maurice Merleau-Ponty, Causeries. Paris: Seuil, 2002, p. 63. 154 Id., O olho e o espírito , trad. Maria Ermantina Pereira & Paulo Neves. São Paulo: Cosac Naify: 2004, p. 29. 155 Stéphane Mallarmé, “Richard Wagner: Rêverie d’un poète français”, in Écrits sur l’art . Paris: Flammarion, 1998, p. 364. 156 Tristan Tzara, “Manifeste Dada 1918”, in Dada est tatou, tout est Dada. Paris: Flammarion, 1996, p. 208. 157 J. Lacan, “Le Stade du miroir comme formateur de la fonction du Je telle
qu’elle nous est révélée dans l’expérience psychanalytique”, in Écrits, op. cit., p. 93 [ed. bras.: pp. 96-97]. 158 Id., ibid., p. 95 [ed. bras.: p. 98]. 159 Roger Caillois, “Mimetismo e psicastenia legendária”. Che Vuoi? Psicanálise e Cultura, n. 0, V . 1, Porto Alegre, 1986, p. 62. 160 Id., ibid., pp. 62-63. 161 J. Lacan, Séminaire L’Objet de la psychanalyse , sessão de 25/05/1966. Transcrição inédita. 162 Gérard Wajcman, “L’Art, la psychanalyse, le siècle”, in J. Aubertet et al., Lacan: L’Écrit, l’image. Paris: Flammarion, 2000. 163 J. Lacan, Le Séminaire, livre X : L’Angoisse. Paris: Seuil, 2004, p. 51 [ed. bras.: O seminário, livro x: A angústia, trad. Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005, p. 50]. 164 Maurice Blanchot, “Les Deux Versions de l’imaginaire”, in L’Espace littéraire. Paris: Folio, 2000, p. 350 [ed. bras.: “As duas versões do imaginário”, in O espaço literário, trad. Álvaro Cabral. Rio de Janeiro: Rocco, 1987, p. 262]. 165 Citado em P. Kaufmann, op. cit., p. 505. 166 Lygia Clark (catálogo). Barcelona: Fundació Antoni Tàpies, 1997/99, p. 164. 167 Id., ibid., p. 121. 168 Id., ibid, p. 121. 169 Id., ibid., p. 164. 170 Lygia Clark & Hélio Oiticica, Cartas: 1964-1974. Rio de Janeiro: UFRJ, 1998, p. 57. 171 Lygia Clark , op. cit., p. 165. 172 Id., ibid, p. 165. 173 Id., ibid., p. 132. 174 Id., ibid., p. 270. 175 L. Clark & H. Oiticica, op. cit., p. 223. 176 Lygia Clark , op. cit., p. 293. 177 Id., ibid., p. 315. 178 “Não estar em repouso com as palavras (entrevista com Pierre Fédida)”, in
Lygia Clark, da obra ao acontecimento: Somos o molde, a você cabe o sopro (catálogo). São Paulo: Pinacoteca do Estado, 2005/06, p. 69. 179 Lygia Clark , op. cit., p. 319. 180 L. Clark & H. Oiticica, op. cit., pp. 222-23. 181 Lygia Clark , op. cit., p. 164. 182 Id., ibid., p. 165. 183 S. Freud , “Achados, ideias, problemas” [1938], in ESB, op. cit., V . XXIII, p. 336. 184 Jacques Lacan, Le Séminaire, livre XX : Encore. Paris: Seuil, 1975, p. 14 [ed. bras.: O seminário, livro XX : Mais, ainda, trad. M. D. Magno. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985, p. 17]. 185 Id., Le Séminaire, livre x: L’Angoisse. Paris: Seuil, 2004, p. 51 [ed. bras.: O seminário, livro X : A angústia, trad. Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005, p. 50]. 186 Id., ibid., p. 60 [ed. bras.: p. 58] 187 Cildo Meireles: Geografia do Brasil . Rio de Janeiro: Artviva, 2001, p. 20. 188 Sigmund Freud, “Neue Folge der Vorlesungen zur Einführung in die Psychoanalyse”, in Gesammelte Werke [ gw], v. xv. Londres: Imago, 1944, p. 86. 189 Stéphane Mallarmé, “Um lance de dados jamais abolirá o acaso”, in Mallarmé , trad. A. de Campos, D. Pignatari & H. de Campos. São Paulo: Perspectiva, 2006, pp. 170-71. 190 S. Freud, “Über den Traum”, in gw, op. cit., V . II/III, p. 673 [ed. bras.: “Sobre os sonhos”, in ESB, V . V , p. 39]. 191 Martin Heidegger, “Observações sobre arte – escultura – espaço”. rtefilosofia, n. 5, 2008, p. 19. 192 Id., ibid., p. 20. 193 J. Lacan, Le Séminaire, livre X : L’Angoisse, op. cit., p. 51 [ed. bras.: pp. 50-51]. 194 Citado em Georges Didi-Huberman, O que vemos, o que nos olha . São Paulo: Editora 34, 1998, p. 91. 195 S. Freud, “A interpretação dos sonhos”, in ESB, op. cit., V . IV , p. 304. 196 J. Lacan, Le Séminaire, livre XIII : L’Objet de la psychanalyse, sessão de 11/05/1966.
Transcrição inédita. 197 Id., ibid., sessão de 25/05/1966. 198 Id., ibid., sessão de 11/05/1966. 199 Michel Foucault, As palavras e as coisas: Uma arqueologia das ciências humanas, trad. Salma Tannus Muchail. São Paulo: Martins Fontes, 1985, p. 31. 200 Id., ibid., p. 30. 201 J. Lacan, Le Séminaire, livre XIII : L’Objet de la psychanalyse, sessão de 18/05/1966. 202 Id., ibid., sessão de 25/05/1966. 203 Id., ibid., sessão de 18/05/1966. 204 Id., ibid., sessão de 25/05/1966. 205 Ver Marco Antonio Coutinho Jorge, Fundamentos da psicanálise de Freud a Lacan. Rio de Janeiro: Zahar, 2010, p. 251. 206 J. Lacan, Le Séminaire, livre xiii: L’Objet de la psychanalyse, sessão de 18/05/1966. 207 Id., ibid., sessão de 08/06/1966. 208 Id., ibid., sessão de 25/05/1966. 209 Walter Benjamin, A modernidade e os modernos, trad. Heidrun Krieger Mendes da Silva. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2000, p. 15. 210 Id., Obras escolhidas II : Rua de mão única, trad. Rubens Rodrigues Torres Filho & José Carlos Martins Barbosa. São Paulo: Brasiliense, 1995, p. 54. 211 Id., ibid., p. 54. 212 Citado em Murielle Gagnebin, “Picasso, Iconoclaste… ”. L’Arc, n. 82, 1981, p. 39. 213 Sigmund Freud, “Vorlesungen zur Einführung in die Psychoanalyse” [1917], in Gesammelte Werke, V . XI. Londres: Imago, 1944, p. 295. 214 W. Benjamin, Obras escolhidas ii: Rua de mão única, op. cit., p. 54. 215 Jacques Lacan, Le Séminaire, livre vii: L’Éthique de la Psychanalyse. Paris: Seuil, 1986, p. 133 [ed. bras.: O seminário, livro VII : A ética da psicanálise, trad. Antônio Quinet. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997, p. 141]. 216 Id, ibid., p.136 [ed. bras.: p. 143]. 217 Hal Foster, The Return of the Real: The Avant-Garde at the End of the Century . Cambridge / Londres: mit Press, 1996, p. 146.
218 Roland Barthes, A câmara clara, trad. Júlio Castañon Guimarães. Rio de aneiro: Nova Fronteira, 1984. 219 H. Foster, op. cit., p. 153. 220 Maurice Merleau-Ponty, Sens et non-sens. Paris: Gallimard, 1996, p. 73. 221 Citado em H. Foster, op. cit., p. 130. 222 Arthur Rimbaud, “Carta dita do vidente”, in Rimbaud por ele mesmo, trad. lberto Marsicano & Daniel Fresnor . São Paulo: Martin Claret, 2008, p. 109. 223 Leon Battista Alberti, De la peinture,de pictura [1435]. Paris: Macula / Dédale, 1992, p. 147 [ed. bras.: Da pintura, trad. Antonio Silveira Mendonça. Campinas: Editora da Unicamp, 2009, p. 109]. 224 Id., ibid., p. 149 [ed. bras.: p. 110]. 225 Stéphane Mallarmé, Divagações, trad. Fernando Scheibe. Florianópolis: ufsc, 2010, p. 238. Grifos meus. 226 Id., “Um lance de dados jamais abolirá o acaso” in Mallarmé , trad. A. de Campos, D. Pignatari & H. de Campos. São Paulo: Perspectiva, 2006, p. 152. 227 Raymond Bellour, “L’Analyse flambée”, in L’Entre-Images: Photo, cinéma, vidéo. Paris: La Différence, 2002. 228 Citado em Theodor W. Adorno, “O ensaio como forma”, in Notas de Literatura i, trad. Jorge de Almeida. São Paulo: Duas Cidades / Editora 34, 2003, p. 38. 229 Jean Durançon, “Le Droit à l’essai”, in M. Gagnebin & S. Liandrat-Guigues (orgs.), L’Essai et le cinéma. Seyssel: Champ Vallon, 2004, p. 232. 230 T. W. Adorno, op. cit., p. 45. 231 Id., ibid., p. 35. 232 Id., ibid., p. 30. 233 Id., ibid., p. 36. 234 W. Benjamin, Obras escolhidas ii, op. cit., p. 49. 235 Otília Arantes, “Mário Pedrosa, um capítulo brasileiro da teoria da abstração”, in M. Pedrosa, Forma e percepção estética. São Paulo: Edusp, 1996. 236 Paulo Herkenhoff, Poética da percepção: Questões da fenomenologia na arte brasileira. Rio de Janeiro: Museu de Arte Moderna, 2008, p. 61. 237 Lygia Pape, “O que eu não sei”, in Item, n. 1, 1995, p. 17.
238 Ferreira Gullar, Manifesto Neoconcreto, in Experiência neoconcreta. São Paulo: Cosac Naify, 2007. 239 Mário Pedrosa, “Arte e revolução”, in Mundo, homem, arte em crise. São Paulo: Perspectiva, 1975, p. 247. 240 Id., “Arte e Freud”, in Forma e percepção estética, op. cit., p. 230. 241 O. Arantes, op. cit., p. 17. 242 El Lissitzky, “Proun Space”, in Russia: An Architecture for World Revolution. Cambridge / Londres: mit Press, 1989, p. 138. 243 M. Pedrosa, “Da abstração à auto-expressão”, in Mundo, homem, arte em crise, op. cit., p. 37. 244 Id., ibid., p. 40. 245 P. Herkenhoff, “Diagrama da vida (entrevista com Suely Rolnik)”, in Lygia Clark, da obra ao acontecimento: Somos o molde, a você cabe o sopro (catálogo). São Paulo, Pinacoteca do Estado, 2005/06, p. 82. 246 M. Pedrosa, “Da abstração à auto-expressão”, in Forma e percepção estética, op. cit., p. 44. 247 P. Herkenhoff, “Diagrama da vida”, op. cit., p. 81. 248 André Breton, Le Surréalisme et la peinture. Paris: Gallimard, 2006, p. 56. 249 M. Pedrosa, “Forma e personalidade”, in Forma e percepção estética, op. cit., p. 220. 250 F. Gullar, op. cit., p 77. 251 Id., ibid., pp. 94-95. 252 Id., ibid., p. 100. 253 Kasimir Malevich, “Suprematismo”, in H. B. Chipp (org.), Teorias da arte moderna, trad. Waltensir Dutra. São Paulo: Martins Fontes, 1996, pp. 349-50. 254 M. Pedrosa, “Arte ambiental, arte pós-moderna, Hélio Oiticica”, in Dos murais de Portinari aos espaços de Brasília. São Paulo: Perspectiva, 1981, p. 205. 255 Id., ibid., pp. 205-06. 256 Em entrevista concedida em 2009 para a realização do vídeo Ensaio sobre o sujeito na arte contemporânea brasileira, que acompanha este livro. 257 Citado em Pierre Kaufmann, Dicionário enciclopédico de psicanálise: O legado de Freud e Lacan, trad. Maria Luiza X. de A. Borges & Vera Ribeiro. Rio de Janeiro:
orge Zahar, 1996, p. 505. 258 Theodor W. Adorno, Teoria estética, trad. Artur Mourão. Lisboa: Edições 70, 2008, p. 127. 259 M. Pedrosa, “Arte ambiental, arte pós-moderna, Hélio Oiticica”, in Forma e ercepção estética, op. cit., p. 207. 260 Hélio Oiticica, “Programa ambiental”, in Aspiro ao grande labirinto. Rio de aneiro: Rocco, 1986, p. 79. 261 Hélio Oiticica (catálogo). Rio de Janeiro: Centro de Arte Hélio Oiticica, 1996, p. 88. 262 H. Oiticica, “Esquema geral da Nova Objetividade”, in Aspiro ao grande labirinto, op. cit., p. 93. 263 Lygia Clark & Hélio Oiticica, Cartas: 1964-1974. Rio de Janeiro: UFRJ, 1998, p. 248. 264 Tunga, “O sabonete é uma escultura (entrevista a Suely Rolnik)”, in Lygia Clark, da obra ao acontecimento , op. cit., p. 89. 265 Citado em Suely Rolnik, “Uma terapêutica para tempos desprovidos de poesia”, in Lygia Clark, da obra ao acontecimento, op. cit, p. 13. 266 L. Clark & H. Oiticica, op. cit., p. 21. 267 Citado em S. Rolnik, op. cit., p. 24. 268 Walter Benjamin, “A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica” [1935], in Obras escolhidas i: Magia e técnica, arte e política, trad. Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1994, p. 167. 269 Id., ibid., p. 166. 270 Id., ibid., p. 171. 271 Sigmund Freud, “Sobre a transitoriedade” [1915], in Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud . Rio de Janeiro: Imago, 1987, V . XIV , p. 317. 272 W. Benjamin, op. cit., p. 170. 273 Id., ibid., p. 180. 274 Id., bid., pp. 171-72. 275 Id., ibid., p. 191.
276 Id.,“Sobre alguns temas de Baudelaire”, in A modernidade e os modernos, trad. Heidrun Krieger Mendes da Silva. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2000, p. 56. 277 Id., “Pequena história da fotografia” [1931], in Obras escolhidas i: Magia e técnica, arte e política , op. cit., p. 94. 278 Id., “Sobre alguns temas de Baudelaire”, op. cit., p. 70. 279 Id., ibid., p. 67 280 Id., ibid., p. 67. 281 Id., “Brèves Ombres” [1933], in Oeuvres ii. Paris: Gallimard, 2000, p. 343. 282 id., “Sobre alguns temas de Baudelaire”, op. cit., p. 66. 283 Id., ibid, p. 66. 284 Id., ibid., p. 67. 285 Id., ibid., p. 76. 286 Id., bid., p. 66. 287 S. Freud, “O Estranho” [1919], in Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, op. cit., v. xvii, p. 282. 288 W. Benjamin, “A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica”, op. cit., p. 189. 289 Id., ibid., p. 174. 290 Id., “Brinquedo e brincadeira: Observações sobre uma obra monumental” [1928], in Obras escolhidas i: Magia e técnica, arte e política, op. cit., p. 253. 291 Citado em W. Benjamin, “A modernidade”, in A modernidade e os modernos, op. cit., p. 17. 292 Mário Pedrosa, “Especulações estéticas: Lance final iii”, in Mundo, homem, arte em crise. São Paulo: Perspectiva, 1975, p. 139. 293 Em entrevista que concedeu, em abril de 2009, para o vídeo Ensaio sobre o sujeito na arte contemporânea brasileira, que acompanha esse volume. 294 El Lissitzky, “Proun Space”, in Russia: An Architecture for World Revolution. Cambridge/ Londres: mit Press, 1989, p. 138. 295 Id., ibid., p. 140. 296 Martin Heidegger, “Observacões sobre arte – escultura – espaço”. rtefilosofia, n. 5, 2008, pp. 18-19.
297 Id., ibid., p. 20. 298 Id., ibid., p. 21. 299 Citado em Katya Garcia-Anton, “Ernesto Neto: Gramatica Jocosa”, in Ernesto Neto. Londres: Institute of Contemporary Arts, 2000, p. 28. 300 Cildo Meireles: Geografia do Brasil . Rio de Janeiro: Artviva, 2001, p. 21. 301 Id., ibid., p. 30. 302 Sigmund Freud., “Goethe-Preis 1930: Brief an Dr. Alons Paquet” [O prêmio Goethe], Gesammelte Werke [ gw]. Londres: Imago, 1944, v. xiv, p. 550. 303 Louise Bourgeois: O retorno do desejo proibido. São Paulo: Instituto Tomie Ohtake, 2011, p. 49. 304 Ibid., contracapa. 305 Ibid., p. 65. 306 Ibid., p. 85. 307 Ibid., p. 111. 308 Ibid., p. 130. 309 Louise Bourgeois, Marie-Laure Bernadac & Hans-Ulrich Obrist, Louise Bourgeois: Destruição do pai, reconstrução do pai, trad. Álvaro Machado & Luiz Roberto Mendes Gonçalves. São Paulo: Cosac Naify, 2000, p. 16. 310 Id., ibid., p. 229. 311 Philip Larrat-Smith, “Introdução: A escultura como sintoma”, in Louise Bourgeois: O retorno do desejo proibido, op. cit., p. 9. 312 L. Bourgeois, M. L. Bernadac & H. U. Obrist, op. cit., p. 105. 313 P. Larrat-Smith, op. cit., p. 19. 314 L. Bourgeois, M. L. Bernadac & H. U. Obrist, op. cit., p. 115. 315 S. Freud, “Der Wahn und die Träume in W. Jensens Gradiva” [1906], in gw, op. cit., V . VII, p. 61. 316 Ver L. Bourgeois, M. L. Bernadac & H. U. Obrist, op. cit., p. 245. 317 Henry Lowenfeld, “Traumatisme psychique et expérience créatrice chez l’artiste” [1937], in Psychanalyse à L’Université , n. 8, v. 2, 1977, p. 671. 318 Id., ibid., pp. 669-70. 319 L. Bourgeois, M. L. Bernadac & H. U. Obrist, op. cit., p. 54.
320 Id., ibid., p. 86. 321 Id., ibid., p. 133. 322 Id., ibid., p. 134. 323 Citado em P. Larrat-Smith, op. cit., p. 11. 324 S. Freud, “Escritores criativos e devaneios” [1907], in Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1987, V . IX, p. 158. 325 L. Bourgeois, M. L. Bernadac & H. U. Obrist , op. cit., p. 16. 326 Citado em Donald Kuspit, “Louise Bourgeois em análise com Henry Lowenfeld”, in Louise Bourgeois: O retorno do desejo proibido, op. cit, p. 30. 327 P. Larrat-Smith, op. cit., p. 13. 328 Citado em P. Larrat-Smith, ibid., p. 77. 329 L. Bourgeois, M. L. Bernadac & H. U. Obrist , op. cit., p. 91. 330 Louise Bourgeois: O retorno do desejo proibido, op. cit., p. 21. 331 Arthur Rimbaud, “Carta dita do vidente”, in Rimbaud por ele mesmo, trad. lberto Marsicano & Daniel Fresnor. São Paulo: Martin Claret, 2008, p. 109. 332 João Guimarães Rosa, “O espelho”, in Ficção completa i. Rio de Janeiro: Nova guilar, 1995, p. 52. 333 Roland Barthes, Roland Barthes por Roland Barthes, trad. Leyla Perone-Moisés. São Paulo: Estação Liberdade, 2003, p. 11. 334 Louise Bourgeois: Destruição do pai, reconstrução do pai, op. cit., p. 313. 335 Stéphane Mallarmé, “Um lance de dados jamais abolirá o acaso”, trad. Haroldo de Campos, in A. de Campos, D. Pignatari & H. de Campos (orgs.), Mallarmé . São Paulo: Perspectiva, 2006, p. 152. 336 Maurice Blanchot, “L’Expérience de Mallarmé”, in L’Espace littéraire. Paris: Gallimard, 1955, p. 38 [ed. bras.: “A experiência de Mallarmé”, in O espaço literário, trad. Álvaro Cabral. Rio de Janeiro: Rocco, 1987, p. 31]. 337 R. Barthes, O óbvio e o obtuso , trad. Léa Novaes. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1990, p. 183. 338 Louise Bourgeois: Destruição do pai, reconstrução do pai, op. cit., p. 173. 339 Id., ibid., p. 204.
340 Id., ibid., pp. 198-200. 341 Id., ibid., p. 126. 342 Id., ibid., p. 106. 343 Id., ibid., p. 77. 344 Id., ibid, p. 107. 345 Citado em P. Larrat-Smith, op. cit., p. 14. 346 Louise Bourgeois: Destruição do pai, reconstrução do pai, op. cit., p. 111. 347 Ibid., p. 358. 348 Maurice Merleau-Ponty, Sens et non-sens. Paris: Gallimard, 1996, p. 21. 349 Raymond Roussel, Comment j’ai écrit certains de mes livres. Paris: Gallimard, 1995, p. 23. 350 Michel Foucault, Raymond Roussel. Paris: Gallimard, 1992, p. 25. 351 Marcel Duchamp, Duchamp du Signe. Paris: Flammarion, 1994, p. 41. 352 Id., Notes. Paris: Flammarion, 1999, p. 141. 353 Jean-François Lyotard, “Philosophy and Painting in the Age of their Experimentation”, in The Lyotard Reader . Nova York: Wiley-Blackwell, 1989, p. 186. 354 Walter Benjamin, Obras escolhidas i: Magia e técnica, arte e política, trad. Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1994, p. 232. 355 J.-F. Lyotard, Le Post-moderne expliqué aux enfants. Paris: Galilée, 1988, p. 27. 356 Id., “Philosophy and Painting in the Age of their Experimentation”, op. cit., p. 190. 357 Id., ibid., p. 189. 358 Mário Pedrosa, “Especulações estéticas: Lance final iii”, in Mundo, homem, arte em crise. São Paulo: Perspectiva, 1975, pp. 138-39. 359 Esta e as demais citações do artista, salvo indicação explícita, provêm da entrevista que ele concedeu em 2009 para o vídeo Ensaio sobre o sujeito na arte contemporânea brasileira, que acompanha em DVD este livro. 360 M. Pedrosa, op. cit., p. 137. 361 Walter Benjamin, “Sobre o conceito da história”, in Obras escolhidas i: Magia e técnica, arte e política , trad. Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1994, p.
223. 362 Id., “A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica”, in Obras escolhidas i: Magia e técnica, arte e política, op. cit., p. 170. 363 Sigmund Freud, “Sobre a transitoriedade” [1915], in Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud , vol. XIV . Rio de Janeiro: Imago, 1987, p. 317. 364 W. Benjamin, “A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica”, op. cit., p. 170. 365 Id., ibid., p. 167. 366 Id., ibid., p. 180. 367 Id., ibid., pp. 171-72. 368 Roland Barthes, A câmara clara, trad. Júlio Castañon Guimarães. Rio de aneiro: Nova Fronteira, 1984. 369 Id., ibid., p. 174. 370 Cildo Meireles: Geografia do Brasil . Rio de Janeiro: Artviva, 2001, p. 40. 371 Id., ibid., p. 20. 372 Cildo Meireles: Algum desenho (1963-2008) . Curitiba: Museu Oscar Niemeyer, 2008, p. 60. 373 Mário Pedrosa, “As relações entre a ciência e arte” [1953], in Forma e ercepção estética. São Paulo: Edusp, 1996, p. 248. 374 El Lissitzky, “A. and Pangeometry”, in Russia: An Architecture for World Revolution. Cambridge/ Londres: mit Press, 1989, p. 143. 375 Id., ibid., p. 144. 376 Kasimir Malevich, “Le Suprématisme”, in Malevitch Écrits. Paris: Ivrea, 1996, p. 226. 377 Ferreira Gullar, “Manifesto neoconcreto” [1959], in Experiência neoconcreta. São Paulo: Cosac Naify, 2007. 378 Id., ibid. 379 Piet Mondrian, “Arte plástica e arte plástica pura (Arte figurativa e arte não figurativa)”, in H. B. Chipp (org.), Teorias da arte moderna. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 354.
380 Cildo Meireles: Geografia do Brasil , op. cit., p. 21. 381 Id., ibid., p. 20. 382 Id., ibid., p. 72. 383 Martin Heidegger, “Observações sobre arte – escultura – espaço”. rtefilosofia, n. 5, 2008, pp. 19-21. 384 Id., ibid., p. 19. 385 Id., ibid., p. 20. Grifos do autor. 386 Id., ibid., p. 20, n. 11. 387 Barnett Newman, “O primeiro homem era um artista”, in H. B. Chipp (org.), Teorias da arte moderna, op. cit., p. 560. 388 Em entrevista a Camila Molina, “A obra sonora de Cildo Meireles”. O Estado de S. Paulo, 21/08/2011. 389 Jacques Rancière, A partilha do sensível: Estética e política, trad. Mônica Costa Neto. São Paulo: Editora 34 / Exo, 2005, p. 15. 390 Id., ibid., p. 16. 391 Marie-José Mondzain, Homo Spectator . Paris: Bayard, 2007, p. 31. Grifos meus. 392 Id., ibid., p. 203. 393 Hannah Arendt, A vida do espírito, trad. Antônio Abrances et al. Rio de aneiro: Civilização Brasileira, 2008, p. 513. 394 Id., ibid., p. 519. 395 Cildo Meireles: Geografia do Brasil , op. cit., p. 56. 396 Id., ibid, p. 58. 397 Id., ibid., p. 19. 398 Jean-Luc Nancy, “La Comparution”, in J.-L. Nancy & J.-C. Bailly, La Comparution. Paris: Christian Bourgois, 2007, p. 57. 399 Id., ibid., p. 58. 400 M. Pedrosa, op. cit., p. 138. 401 J.-L. Nancy, op. cit., p. 56. 402 Maurice Blanchot, “Le Dernier à parler”, in Une Voix venue d’ailleurs . Paris: Gallimard, 2002, p. 71. 403 Nuria Enguita, “Lugares de divagación: Una entrevista con Cildo Meireles,
in Cildo Meireles. Valencia: ivam Centre del Carme / Generalitat Valenciana, 1995, p. 13. 404 Id., ibid., p. 14. 405 J.-L. Nancy, op. cit., p. 91. 406 Jacques Lacan, Le séminaire, livre x: L’Angoisse. Paris: Seuil, 2004, p. 60 [ed. bras.: O seminário, livro x: A angústia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005, p. 58]. 407 Jean-Christophe Bailly, “Avant Propos”, in J.-L. Nancy & J.-C. Bailly, op. cit., p. 20. 408 Id., ibid., p. 23. 409 Citado em M. Blanchot, La Communauté inavouable. Paris: Les Éditions de Minuit, 1983, p. 16. 410 J.-C. Bailly, “L’Isthme”, in J.-L. Nancy & J.-C. Bailly, op. cit., p. 42.
SOBRE OS TEXTOS Parte dos ensaios deste livro tiveram como ponto de partida, às vezes com muitas modificações e acréscimos, outras com pequenos ajustes, os seguintes textos: O retorno do sujeito: Ensaio sobre a performance e o corpo na arte contemporânea. Polêm!ca, UERJ, n. 18, 2006. Kosuth com Freud: Imagem, psicanálise e arte contemporânea. Arte & Ensaios, EBA / UFRJ, ano XIII, n. 13, 2006. letra e a imagem: Gary Hill, videoarte e psicanálise. Psicologia & Sociedade, V. 21, 2009. criação crítica: Oiticica com Lacan. Trivium: Estudos interdisciplinares, UVA , ano II, edição I, 2010. Ensaio sobre o espaço e o sujeito: Lygia Clark e a psicanálise. Ágora, PPGTP / UFRJ, V. 11, n. 2, 2008. transmissão como uma Torre de Babel: Psicanálise e arte contemporânea, in Fernanda Costa-Moura (org.), Psicanálise e laço social. Rio de Janeiro: 7 letras, 2010. O retorno do sujeito e a crítica na arte contemporânea. Criação e crítica: Seminários Internacionais Museu Vale . Rio de Janeiro: Suzy Muniz, 2009. Ethics, Psychoanalysis and Postmodern Art in Brazil: Mário Pedrosa, Hélio Oiticica and Lygia Clark. Third Text: Critical Perspectives on Contemporary Art &Culture, n. 114, V. 26, 2012. O sujeito e a aura. Marcelina, FASM, ano 3, n. 5, 2010. pele e o espaço. Ernesto Neto: Dengo. São Paulo: MAM, 2010. Nota sobre as fabulações psicanalíticas de Louise Bourgeois. Trivium: Estudos Interdisciplinares , UVA , ano III, edição 2, 2011. arquitetura do pensamento: Milton Machado. História do futuro.
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ÍNDICE DE NOMES[+] A
bramovic, Marina 25, 28, 32, 43-44 dorno, Theodor W . 120, 196-97, 216 lberti, Leon Battista 167, 191 ndrade, Mário de 260 pollinaire, Guillaume 84 rantes, Otília 204, 207 rendt, Hannah 356-66 ristóteles 65, 73, 312 B Bailly, Jean-Christophe 376, 378 Baldessari, John 56 Barrenechea, Alejandro 342 Barros, Umberto Costa 335 Barthes, Roland 7, 81-83, 91, 119, 186, 292, 294, 339 Basbaum, Ricardo 23, 45 Bastos, Oliveira 212 Bataille, Georges 40, 69, 377 Baudelaire, Charles 181, 197, 238, 240-41, 243 Beethoven, Ludwig van 358 Bellour, Raymond 88, 196 Benjamin, Walter 11-12, 53-54, 60, 75, 121, 181-82, 184, 195, 197, 225, 228-29, 231-35, 237-43, 266, 312, 316, 318, 321, 332-33, 335, 337-39, 361, 364, 372 Bense, Max 196 Bergson, Henri 205 Bill, Max 32
Blanchot, Maurice 79, 141, 293-94, 372, 375-76 Bonaparte, Marie 273 Borges, Jorge Luis 301, 377 Bossuets, Jacques-Bénigne 274 Bourgeois, Louise 7, 269, 271-77, 280-83, 285-91, 293-97 Breton, André 99, 199, 210, 212, 274, 313 Brett, Guy 346 Bueno, Guilherme 319 Byars, James Lee 17, 19-20, 45 C Caesar, Rodolfo 302 Cage, John 141 Caillois, Roger 39-42, 129, 138-39 Caldas, Waltercio 11, 227, 231 Calle, Sophie 30 Cammer, Leonard 282 Camões, Luís Vaz de 307 Campos, Augusto de 127 Cassirer, Ernst 204 Castro, Amilcar de 204 Cézanne, Paul 137, 251 Charcot, Jean-Martin 277 Chardin, Teilhard de 373 Clark, Lygia 11, 23, 30, 33, 36-38, 45, 110, 123, 129, 140, 142, 14451, 202, 204, 208, 214-15, 218-19, 222, 247, 253-54, 259, 321, 328, 345-47, 352, 358 D Da Vinci, Leonardo 207, 322 Dalí, Salvador 211 Darwin, Charles 66 della Mirandola, Pico 322
Descartes, René 132 Diamond, Jessica 56 Didi-Huberman, Georges 22, 65, 67-68, 133 Drummond de Andrade, Carlos 302 Duchamp, Marcel 22-23, 58, 109, 169, 264, 307, 309 Durançon, Jean 196 E Einstein, Albert 253, 349 El Lissitzky 208, 251-53, 343, 346 Escher, Maurits Cornelis 32 F Fédida, Pierre 147, 149, 218 Fenerich, Alexandre 302 Fenichel, Otto 281-82 Ferreira, Glória 31 Flaubert, Gustave 323 Foster, Hal 20, 69, 77, 185-87 Foucault, Michel 90-91, 165-66, 172, 308, 361 Freud, Sigmund 23, 31, 50-71, 73-75, 77, 82-84, 90, 92, 95, 100, 10708, 112-14, 116-17, 119, 126, 131-32, 134, 137, 146, 148, 152, 15758, 162, 164, 169, 173, 182-83, 205, 207, 210-12, 232-33, 235, 24142, 261, 263-64, 271, 273-74, 276, 280, 282, 287, 289-90, 293, 296, 303, 320, 329-30, 334-35, 337, 351, 353-54, 359, 376 G Galton, Francis 66 Gault, Jean-Louis 93 Goethals, Marc 56 Goethe, Johann Wolfang von 237 Greenaway, Peter 92-93 Guimarães Rosa, João 292, 356 Gullar, Ferreira 204, 212-13, 316, 345, 353
H Hanhardt, John 95 Heidegger, Martin 111, 159,161, 168, 205, 252, 259, 299, 350-51 Herkenhoff, Paulo 204, 209, 211, 215 Hill, Gary 85, 88-92, 94-95, 100-01 Holbein, Hans 184 Holzer, Jenny 56 Hopper, Edward 169 Hosey, Andy 358 Husserl, Edmund 204 J ackson, Michael 357 ameson, Fredric 202 anet, Pierre 41 ardim, Reynaldo 204, 212 enks, Charles 202 entsch, Ernst 116 orge, Marco Antonio Coutinho 169 oyce, James 60 udd, Donald 189 ung, Carl G. 209 K Kabakov, Ilya 57 Kant, Immanuel 205, 361, 365 Klein, Melanie 273, 282, 358 Kosuth, Joseph 47, 51, 56-62, 69-72, 75-77, 306 Krauss, Karl 240 Krauss, Rosalind 40, 75 Kris, Ernst 206 Kristeva, Julia 47, 69
L La Rochefoucauld, Antoine de (conde) 286 Lacan, Jacques 7, 21, 23, 28, 30, 32-33, 36-38, 41-44, 47, 50, 55, 6768, 74, 84-85, 89, 93, 95, 99-101, 105, 110-12, 114, 116, 118, 12024, 132-34, 136-38, 140-42, 145, 150-51, 153, 156-60, 162-73, 18387, 194, 211-12, 216, 239, 269, 274, 287, 303, 329, 354, 374 Langer, Suzanne 204 Lanzmann, Claude 141 Larrat-Smith, Phillip 275, 272, 277, 289, 291 Leirner, Nelson 110 Leite, Vania Dantas 302 Levine, Sherrie 56 Lévi-Strauss, Claude 303 Lowe, David 322 Lowenfeld, Henry 282-83, 286, 291 Lyotard, Jean-François 62, 67, 75-76, 79, 202, 316, 318-19, 323 M Machado, Arlindo 51, 96 Machado, Milton 299, 301, 304-07, 310-13, 316-19, 321 Machado de Assis, Joaquim Maria 313 Maciunas, Georges 110 Magritte, René 165 Malevich, Kazimir 21, 115, 213, 250-51, 345, 347 Mallarmé, Stéphane 22, 50-51, 137, 158, 177, 195, 197, 293 Manuel, Antonio 110 Matisse, Henri 210 Mavignier, Almir 209 Meireles, Cildo 11, 155, 157, 161-62, 190, 194, 236, 258, 260-61, 305, 328, 330-31, 335, 337, 339, 341-42, 346-50, 352-53, 356-60, 362, 366-67, 373-77, 379 Meirelles, Cildo (pai) 351 Meirelles, Francisco 351
Merleau-Ponty, Maurice 24, 39, 136-37, 147, 187, 204-05, 239, 301 Mondrian, Piet 208, 347-48 Mondzain, Marie-José 114-16, 362, 364-65 Morais, Frederico 335, 342 Musil, Robert 60 Muybridge, Eadweard 54 N Nancy, Jean-Luc 367, 372, 374 Neto, Ernesto 249-50, 252-55, 258-61, 263-66 Newman, Barnett 115-16, 358-59 Nietzsche, Friedrich Wilhelm 205, 320 O Odin, Paul-Emmanuel 95-96 Oiticica, Hélio 10-11, 121-24, 126-27, 145, 147, 150, 202, 208, 214-18, 222, 254, 258-60, 303, 321, 325, 328, 345-48, 352 On Kawara 19 Ono, Yoko 25, 31 P Paik, Nam June 88 Palatnik, Abraham 209 Pape, Lygia 204-05, 214 Pedrosa, Mário 9, 11, 147, 201-02, 204, 206-12, 214, 216, 249, 330, 332, 342, 345, 370 Picasso, Pablo 182, 211 Platão 372 Plínio (o Velho) 322 Poe, Edgar Allan 85 Ponge, Francis 182 Pontual, Roberto 149 Prévert, Jacques 112, 184
Prinzhorn, Hans 210 Proust, Marcel 239 R Rancière, Jacques 63, 73, 258, 361 Rilke, Rainer-Maria 31, 334-35 Rimbaud, Arthur 190, 292, 294, 296 Rolnik, Suely 149 Rops, Félicien 280 Roussel, Raymond 307-08 S Sade, Marquês de 120 ndreas-Salomé, Lou 31, 334 Schelling, Friedrich Wilhelm Joseph von 241 Schuler, Alfred 12, 225 Schwitters, Kurt 218 Serpa, Ivan 209 Shakespeare, William 84 Sherman, Cindy 69 Silveira, Nise da 209 Smith, Tony 110, 160-61 Smithson, Robert 21 Spanudis, Theon 204 Steinberg, Leo 202 Svevo, Italo 60, 69-71 T Tolstói, Liev 288 Tunga 219 Tzara, Tristan 137 U
Ulay 43-44 V Valéry, Paul 239-41 Van Eyck, Hubert 337 Van Eyck, Jan 337 Vautier, Ben 110 Velázquez, Diego 91, 163, 165, 168-69, 171-73, 171-73, 243 Velázquez, Nieto 169 Vermeer, Johannes 342 W Wajcman, Gérard 141 Warhol, Andy 110, 185-86, 188 Weissmann, Franz 204 Winnicott, Donald 219 Wittgenstein, Ludwig 60, 263 Y Yoshihara, Jiro 38
+ A numeração dos links, dos índices, corresponde à paginação da edição impressa do mesmo título. Optamos por mantê-la apenas como referência, já que ela na verdade varia conforme a plataforma digital de leitura que se utilize.
ÍNDICE D ÍNDICE DE E OBRAS A
adoração do cordeiro místico 337 casa é o corpo corpo 23 destruição d destruição doo pai pai 277 277 buso infantil infantil 285-88 85-88 mbulance Disaster 186 rch of Hysteria 277 round & Abou About 85, 88 88-92 -92 rte é uma garantia de sanida sanidade de 283 s férias do investigador 307 s meninas 91, 163-65 163-65,, 169, 171-72, 227-28 través 11, 190-91, 194, 194, 196, 196, 236, 239, 241-42, 339-40, 350 B Baba antropofágica 148 Babel 360, 370, 372 Bicho 33, 144, 345-46 Bólide 126, 222, 259 Branco sobre branco 115 C Camelô 260 Caminhando 33, 36-37, 110, 142, 144, 146, 151, 215, 222, 253, 321, 358 Canibalismo 148 Cantos 341, 343, 362 Casulos 345 Cathexis 76
Cell xxiv (retrato) 276 Chão 379 Cigarras 360 Cinza 346-48, 364 Cruzeiro do Sul 155-57, 161-63, 351 Cumuls 295 Cut Piece 25 D Death in America 185 Dengo 265 Desvio para o vermelho 362 Diáfora 310 Diálogo de mãos 215, 259, 321 Die 110, 160 Do corpo à terra 335 E Edifício Galaxie 312 Escritos psicanalíticos 272-73, 291 Espaços virtuais: Cantos 341, 343 Estruturação do self 149-50, 219 Estudo para espaço 162 Eureka Blindhotland 373 F Fábrica utópica de realidades objetivas (f.u.r.o.) 313 Filletes 271 Fita de Moebius I 32 Fita de Moebius I I 32 Fluência topológica em um campo estrutural para um ponto de alta densidade, yeah 254 Fonte 109
Fort! Da! 73, 76 From Sebastian to Olivia 255 G Grande vidro (ou A noiva despida por seus celibatários, mesmo) 264, 309 H História do futuro 303, 312, 316-17, 319-21, 323 Homem muito abrangente 321-22 I Impressões da África 307 Inserções em circuitos ideológicos 305, 366-67 J anus florido 290 L Les Dormeurs 30 Liverbeatlespool 357-58 Livro Velázquez 227 Los Velázquez 227 M Malhas da liberdade 258 Marulho 372 Máscara abismo 219 Mebs / Caraxia 353 Mergulho do corpo 121 Merz 218 Mystery Box 110
N Nova objetividade 217 Nowhere is my Home 343 Núcleos 345 O O corpo é a casa 23 O dentro é o fora 33, 145, 321 O livro de cabeceira 92 O teatro perfeito 45 O.&A. / F!D! (to I.K. and J. F.) 56 Objetos relacionais 149, 219 Ode à l’Oubli 289 One and Others 295 Os embaixadores 184 P Parangolé 119, 122-24, 217-18, 259-60, 321, 328 Penetráveis 126, 208, 259, 345, 348 Pensamento mudo 147, 149 Pilha 304 Produção 304 Projeto cédula 366 Projeto Coca-Cola 366 Q Quadrângulo 115 R Red Room 277 Rest Energy 43 Rhythm 0 25, 28 Rio oir 359
Roda de bicicleta 109 S Sal sem carne 355-56 Shoah 141 Sleep ii 281 Sleeping Figure 295 T The Edges of the World 258 The Perfect Performance is to Stand Still 20 Tractatus i Deuses 261 Trepantes 33 U Unidade tripartida 32 Untitled #153 69 Ura Aru (the backside exists) 94-96, 99 V Vermelho 304 W While u Wait 379 Z Zeno nas margens do mundo conhecido 69 Zero & Not 59, 60-61, 76
Secretaria de Estado de Cultura (SEC) vem trabalhando desde 2008 para difundir, estimular e fortalecer a cultura do Rio de Janeiro, criando mecanismos de fomento e políticas estruturantes para o setor, em todas suas vertentes, buscando contemplar todos os setores e áreas, desde as manifestações mais tradicionais, e abrangendo agentes culturais de todo o estado. Como parte desse trabalho, a sec criou o edital de Artes Visuais – dentro do pacote de 41 editais lançado em agosto de 2011 –, com a finalidade de incentivar a criação artística, bem como a integração cultural, a pesquisa de novas linguagens, a formação e o aprimoramento de pessoal de sua área de atuação. Balizado por esses parâmetros, o edital proporcionou apoio financeiro a projetos que propunham a circulação, o intercâmbio e a implementação de ações de Artes Visuais no Rio de Janeiro, visando estimular a multiplicidade e a diversidade de tendências e linguagens. Através do edital, a sec contemplou projetos como este, de exposições de arte, intervenções urbanas e publicações de arte. E, assim, reiterou o compromisso do Governo do Rio de Janeiro de oferecer uma programação plural, de qualidade, ampla e diferenciada. Secretaria de Estado de Cultura do Rio de Janeiro
Projeto realizado com o patrocínio do Governo do Rio de Janeiro e da Secretaria de Estado de Cultura – Edital ARTES VISUAIS 2011
© Cosac Naify, 2013, e-book, 2014 © Tania Rivera, 2013 COORDENAÇÃO EDITORIAL Milton Ohata SSISTENTE EDITORIAL Paulo Pirozelli REVISÃO Maria Fernanda Álvares e Ana Tereza Clemente PROJETO GRÁFICO ORIGINAL Gabriela Castro DAPTAÇÃO E COORDENAÇÃO DIGITAL Antonio Hermida PRODUÇÃO DE EPUB Fabian J. Tonack
1ª edição eletrônica, 2014 Nesta edição, respeitou-se o novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa.
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação ( CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
sobrenome, nome [1969-] O avesso do imaginário: Arte contemporânea e psicanálise / Tania Rivera São Paulo: Cosac Naify, 2014 ISBN 978-85-405-0664-0 1. Arte contemporânea 2. Psicanálise
I. Título.
Índices para catálogo sistemático: 1. Arte contemporânea e psicanálise 701.15
COSAC NAIFY rua General Jardim, 770, 2° andar 01223-010 São Paulo SP cosacnaify.com.br [11] 3218 1444 atendimento ao professor [11] 3823 6560 [email protected]
Este e-book foi projetado e desenvolvido em dezembro de 2013, com base na 1ª edição impressa, de 2013. FONTES Swift e Helvetica SOFTWARES Adobe InDesign e Sigil
Capa Introdução PARTE UM O retorno do sujeito: Sobre performance e corpo Kosuth com Freud: A imagem e a palavra A letra, a imagem: Gary Hill PARTE DOIS Sublimação, parangolé e cultura A fantasia e o espaço: Lygia Clark Cruzeiro do Sul e o avesso do imaginário PARTE TR ÊS Arte é crítica: Sobre Através Mário Pedrosa, ética e arte pós-moderna A aura e o sujeito em Waltercio Caldas e Cildo Meireles PARTE QUATRO Ernesto Neto: A pele e o espaço Louise Bourgeois e o heterorretrato Milton Machado e a arquitetura do pensamento A estética é sempre política: Cildo Meireles Notas Sobre os textos Bibliografia Índice de nomes Índice de obras