pro vem e para onde vai, é necessária a gua que o reflete. Por isso a conversa do Mestre com Nicodemos, à qual já nos referimos, enuncia a condição absoluta da experiência consciente do Sopro Divino - ou do Reino de Deus: "Em verdade, em verdade, te digo: quem não nascer da água e do Espírito não pode entrar no Reino de Deus" (Jo 3,5). "Em verdade, em verdade" - o Mestre repete o termo "verdade" numa fórmula mântrica (isto é, mágica) da realidade da consciência. Com esses termos ele diz que a plena consciência da verdade resulta da verdade insuflada e da verdade refletida. A consciência reintegrada, que é o Reino de Deus, pressupõe duas renovações, de alcance comparável ao nascimento, nos dois elementos constitutivos da consciência - o Espírito ativo e a Água refletora. O Espírito deve tornar-se Sopro divino no lugar da atividade pessoal arbitrária, e a Água deve tornar-se espelho perfeito do Sopro divino, em vez de ser agitada pela perturbação da imaginação, das paixões e dos desejos pessoais. A consciência reintegrada deve nascer da Água e do Espírito, depois que a Água voltar a ser Virgem e que o Espírito voltar a ser o Sopro divino ou o Espírito Santo. A consciência reintegrada nascerá, portanto, no interior da alma humana de maneira análoga ao nascimento ou à encarnação histórica do Verbo: Et incarnatus est de Spiritu Sancto ex Maria Virgine 1• O re-nascimento da Água e do Espírito, que o Mestre ensinou a Nicodemos, é o restabelecimento do estado de consciência não decaída, no qual o Espírito foi o Sopro divino e no qual esse Sopro foi refletido pela Natureza Virginal. Eis a "Ioga" cristã. Sua meta não é a libertação radical ("Mukti"), isto é, o estado de consciência sem sopro e sem reflexão, mas o da reação completa e perfeita à ação divina - o batismo da Água e do Espírito. Essas duas espécies de batismo operam a reintegração dos dois elementos constitutivos da consciência como tal - o elemento ativo e o elemento passivo. Não existe consciência sem esses dois elementos, e a supressão dessa dualidade mediante um método prático qualquer inspirado no ideal da unidade (" Advaita" - não-dualidade) deve necessariamente levar à extinção não do ser, mas da consciência. Verificar-se-ia então não "novo nascimento" da consciência, e sim seu retorno ao estado pré-natal embrionário, cósmico. Em compensação, eis o que diz Plotino sobre a dualidade subjacente a toda forma e a todo grau de consciência, isto é, sobre o princípio ativo e seu espelho: Mas se o espelho está ausente ou não é como deve, a imagem não se produz, embora a ação exista: assim, quando a alma está calma, ela reflete as imagens do pensamento e do intelecto; mas quando ela é agitada pela perturbação produzida na harmonia do corpo, o
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1 "Encarnou-se, por obra do Espírito Santo, de Maria Virgem". (N. do T.)
pensamento e o intelecto pensam sem imagem, e o ato da inteligência se realiza sem se refletir" (Plotino, I, livro IV, cap. X).
É a concepção platônica da consciência; sendo aprofundada, ela pode servir de introdução à conversa noturna do Mestre com Nicodemos sobre a reintegração da consciência ou sobre a meta da "ioga" cristã. A "ioga" cristã não aspira à unidade do todo, mas à unidade de dois. É muito importante ter consciência da atitude tomada a respeito do problema infinitamente grave da unidade e da dualidade. Porque esse problema pode abrir a porta dos mistérios realmente divinos, e também no-la fechar. . . talvez para sempre. Tudo depende de sua compreensão. Podemos decidir-nos pelo monismo e dizer para nós mesmos que só existe - e só pode existir - uma única substância, um único ser. Podemos também decidir-nos -. - apoiandonos numa considerável experiência histórica e pessoal - pelo dualismo e dizer-nos que existem dois princípios no mundo - o bem e o mal, o espírito e a matéria - e que, por mais incompreensível que essa dualidade seja, no fundo, devemos admiti-la como fato incontestável. Podemos ainda decidirnos a favor de terceiro ponto de vista, o do amor como princípio cósmico que pressupõe a dualidade e postula sua unidade não substancial, mas essencial. Esses três pontos de vista se encontram na base do Vedanta (" Advaita") e do espinosismo (monismo), do maniqueísmo e de algumas escolas gnósticas (dualismo) e da corrente judaico-cristã (Amor). Para darmos mais clareza e precisão a esse problema, bem como para o atingirmos mais profundamente - tomaremos como ponto de partida o que diz do' número dois Louis-Claude de Saint-Martin em seu livro Des nombres: "Ora, para mostrarmos que, na base de sua atividade, eles ( os números) estão interligados, comecemos observando o andamento da UNIDADE e do número DOIS. Quando contemplamos uma verdade importante, como o poder universal do Criador, a sua majestade, o seu amor, as suas luzes profundas ou algum outro de seus atributos, voltamo-nos totalmente para esse modelo supremo de todas as coisas; todas as nossas faculdades suspendem sua atividade, para nos enchermos dele, e assim tornamo-nos realmente um com ele. Eis a imagem ativa da unidade; e o número UM é, em nossas línguas, a expressão dessa unidade ou da união indivisível que, existindo intimamente entre todos os atributos dessa unidade, deveria existir também entre ela e todas as suas criaturas de produção. Mas se, depois de termos dirigido todas as nossas faculdades de contemplação para essa fonte universal, voltarmos nossos olhos para nós mesmos e nos enchermos de nossa própria contemplação, de modo a nos vermos como princípio de algumas das clarezas ou satisfações interiores que essa fonte nos trouxe, nesse momento estabeleceremos dois centros de contemplação, dois princípios separados e rivais, duas bases não
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ligadas; estabeleceremos, enfim, duas UNIDADES, com a diferença de que uma será real e a outra, aparente" (p. 2). Em seguida acrescenta: "Mas dividir o ser pelo meio é diviai-lo em duas partes, é fazer o inteiro passar para a qualidade de metade ou meio; aqui está a verdadeira origem do binário ilegítimo ... " (p. 3) ..• Este exemplo é suficiente para nos mostrar o nascimento do número DOIS, para nos mostrar a origem do mal ... " (p. 3). A dualidade significa, portanto, o estabelecimento de dois centros de contemplação, de dois princípios separados e rivais, um real, o outro aparente; nisso está a origem do mal, que é o binário ilegítimo. É essa a única interpretação possível da dualidade, do binário, do número dois? Não existe um binário legítimo? Um binário que não signifique diminuição da unidade, mas seu enriquecimento qualitativo? Voltando à concepção de Saint-Martin, de "dois centros de contem plação", que são "dois princípios separados e rivais", podemos perguntar-nos se eles devem ser necessariamente separados e rivais. A própria expressão "con-templação " escolhida por Saint-Martin não sugere a idéia de dois centros que contemplam simultaneamente, como o fariam dois olhos colocados um em cima do outro, os dois aspectos da realidade, o aspecto fenomenal e o aspecto numênico? E que é graças a esses dois centros ou "olhos" que somos - ou podemos ser - conscientes "do que está em cima e do que está em baixo"? Poderíamos, por exemplo, enunciar a fórmula principal da Tábua de Esmeralda se tivéssemos um só olho ou centro de contemplação, em lugar de dois? Ora, o Seier Y eçirah diz: "Dois é o sopro do Espírito: nele estão gravadas e esculpidas as vinte e duas cartas, que, não obstante, formam sopro único". Em outros termos, dois é o Sopro e a sua Reflexão, é a origem do "Livro da Revelação", que é o mundo, bem como a Sagrada Escritura. Dois é o número da con-sciência do sopro e de suas cartas "gravadas e esculpidas". É o número da reintegração da consciência, ensinada pelo Mestre a Nicodemos, mediante a Água virginal e o Sopro do Espírito Santo. Dois é tudo isso e mais ainda. O número dois não só não é necessariamente o "binômio ilegítimo" descrito por Saint-Martin, como ainda é o número do amor ou a condição fundamental do amor, que ele pressupõe e postula necessariamente. Porque o amor é inconcebível sem o Amante e o mado, sem o EU e o TU, sem o Um e o Outro. Se Deus fosse só Um e se ele não tivesse criado o Mundo, ele não seria o Deus revelado pelo Mestre, o Deus do qual diz São João: "Deus é amor; aquele que permanece no amor permanece em Deus e Deus permanece nele" (1Jo 4,16). Ele não o seria porque não amaria ninguém, exceto a si mesmo. Como isso é impossível do ponto de vista do Deus de Amor, ele é revelado à consciência humana como a Trindade eterna do Amante que ama,
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E necessário saber, isto é, ver a unidade na diversidade, e é necessário
querer, isto é, cortar a unidade contemplada com a espada afiada, de dois gumes, do "sim" e do "não" da vontade. Tornar-se contemplativo leva à inatividade. Tornar-se ativo leva, em última análise, à ignorância. Pode-se escolher o gênero de vida contemplativo, mas a qual preço? Qual é o preço da contemplação como caminho principal e preocupação central da vida? Um navio leva passageiros e equipagem, composta do capitão, dos oficiais e dos marinheiros. O mesmo se pode dizer do barco da sociedade humana, que viaja de século em século. Ele também leva equipagem e passageiros: a equipagem vela para que o barco siga a sua rota e os passageiros cheguem ao porto sãos e salvos. Escolher o gênero de vida contemplativo implica a decisão de tornar-se passageiro do barco da sociedade humana e de deixar a responsabilidade da rota e do bemestar próprio e dos outros passageiros por conta da equipagem: capitão, oficiais e marinheiros. Tornamo-nos passageiros do barco da história humana quando escolhemos o gênero de vida contemplativo. Eis o preço moral dessa escolha. Não devemos, contudo, concluir muito fácil e superficialmente que todos os religiosos das ordens contemplativas e os eremitas são passageiros. Porque entre esses "contemplativos" se encontram muitas vezes não só marinheiros e oficiais da equipagem, mas também capitães. É assim porque o seu trabalho e o seu objetivo são essencialmente práticos, embora espirituais. A oração, o serviço divino, o estudo e a vida disciplinada e austera constituem esforço muito ativo e eficaz para se traçar a rota e se fixar o destino do barco da história espiritual humana. Na verdade, são esses "contemplativos" que arcam com a maior parte da responsabilidade no que se refere à rota espiritual do barco e ao bemestar espiritual de sua equipagem e de seus passageiros. Para essas ordens "contemplativo" significa esforço e responsabilidade espirituais, ao passo que no sentido da escolha do pólo do ver a expensas do pólo do querer, "contemplativo" significa que se prefere a alegria do ver ao esforço do querer e da ação (espiritual ou exterior) que ele implica. Pode-se, é certo, encontrar muitas pessoas que usufruem da vida contemplativa. Raramente são religiosos regulares das ordens ditas contemplativas; muitas vezes são amadores leigos. Eles se encontram entre os adeptos da ioga, da Cabala, do sufismo e da metafísica. Por outro lado, podemos decidir-nos pelo pólo do querer do ser humano, e de querermos ocupar-nos só daquilo que tem relação com a ação e com o fim prático. Podemos escolher o gênero de vida ativo, mas a que preço? O preço é inevitável estreiteza de espírito. Para que ocupar-me dos esquimós, com os quais nada tenho a ver, se nem conheço os moradores de minha rua e meus colegas, dirá aquele que escolhe a ação a expensas do saber. Se ele for crente, perguntar-se-á: para que as vãs preocupações do espírito, as filosofias, as ciências e as doutrinas so-
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ciais e políticas. se os santos preceitos do Evangelho (ou da Bíblia, do Corão, da Dhammapada etc.) bastam para a minha salvação e para a da humanidade? A ação exige concentração, e ela acarreta inevitavelmente a limitação do espírito a aspectos particulares da vida e a perda da vista de seu conjunto. Ora, a prudência ensinada pelo Arcano "O Eremita" pode ainda dar a solução para a antinomia prática "saber-querer". O Eremita não está mergulhado na meditação ou no estudo, nem está trabalhando ou agindo. Ele está caminhando. Isso significa que ele manifesta terceiro estado, além da contemplação e da oração. Em relação ao binário "saber-querer" ou "contemplação-ação" ou, enfim, "cabeça-membros", ele representa o termo de síntese, a saber, o do coração. Porque é no coração que a contemplação e a ação estão unidas, que o saber se toma querer e que o querer se torna saber. O coração não precisa esquecer o conjunto contemplado, a fim de agir, e não precisa suprimir toda ação, a fim de contemplar. Ele é simultânea e incansavelmente ativo e contemplativo. Ele caminha. Caminha dia e noite, e nós ouvimos os passos de seu caminhar incessante. Por isso, se quiséssemos representar um homem que vive a lei do coração, que tem seu centro no coração e que é a expressão visível do coração, o "pai bom e sábio" ou "o Eremita", representá-lo-íamos caminhando, sem pressa e sem parar. O Eremita da nona lâmina é o homem do coração, o homem solitário em marcha. Ele é o homem que realizou em si a antinomia "saber-querer" ou "contemplação-ação". Porque o coração é sua solução. O coração do qual falamos não é a emotividade e a faculdade de apaixonar-se que geralmente entendemos por "coração" . É o centro dos sete centros da organização vital e anímica humana. :E: o "lótus de doze pétalas" ou o Anahata da antropologia esotérica da índia. Esse centro é o mais humano de todos os centros ou "flores de lótus". Porque se lótus de oito pétalas ou centro coronal é o da revelação da sabedoria, lótus de duas pétalas é o da iniciativa intelectual, o lótus de dezesseis pétalas (centro laringiano) é o da palavra criadora, o lótus de dez pétalas o da ciência, o lótus de seis pétalas o da harmonia e da saúde, o lótus de quatro pétalas o da força criadora, e o lótus de doze pétalas (centro cardíaco) é o do amor. Por isso ele é o mais humano dos centros e o critério último não do que o homem possui, pode e sabe, mas do que ele é. Porque, no fundo, o homem é o que é o seu coração. :E: nele que a humanidade do ser humano reside e se revela. O coração é o sol do microcosmo. Por isso o Hermetismo cristão - como o cristianismo em geral - é "helicêntrico"; ele atribui ao coração o lugar central de toda a sua prática. A grande obra da alquimia espiritual ou do "Hermetismo ético" é a transmutação das substâncias ("metais") dos outros lótus na substância do coração ("o ouro").
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"O Hermetismo ético" ( termo empregado na Rússia para a alquimia espiritual) visa à transformação do sistema dos lótus em sistema de sete cores, isto é, à transformação de todo o ser humano em coração. Na prática isso significa a humanização de todo o ser humano e a transformação do sistema dos lótus em sistema que funcione pelo amor e para o amor. Assim, a sabedoria revelada pelo lótus de oito pétalas cessará de ser abstrata e transcendente: ela se tornará cheia de calor como o fogo de Pentecostes. A iniciativa intelectual do lótus de duas pétalas se tomará o "olhar bondoso" sobre o mundo. A palavra criadora do lótus de dezesseis pétalas tornar-se-á mágica: terá a faculdade de iluminar, de consolar e de curar. O coração como tal, ou o lótus de doze pétalas, o único dos centros que não está preso ao organismo e que pode sair dele e viver - pela exteriorização de suas "pétalas", que podem irradiar-se para fora - com e nos outros, tornarse-á viajante, visitante e companheiro anônimo daqueles que estão na prisão e no exílio e daqueles que carregam pesadas responsabilidades. Ele será o Eremita itinerante que percorre os caminhos da esfera terrestre bem como os do mundo espiritual, que vão do purgatório até aos pés do Pai. Porque não há distância que não possa ser percorrida pelo amor e não há porta que o impeça de entrar, segundo a promessa que diz: "e as portas do Inferno nunca prevalecerão contra ele". E o coração é o órgão maravilhoso chamado a servir ao amor nessas obras. É a estrutura humana e divina do coração, a sua estrutura de amor que, pela analogia, pode pôr ao alcance de nossa compreensão o sentido da palavra do Mestre: "E eis que eu estou convosco todos os dias, até a consumação dos séculos". A ciência do lótus de dez pétalas tornar-se-á então consciência, isto é, serva de Deus e do próximo. O lótus de seis pétalas, o centro da saúde, tornar-se-á o da santidade, isto é, da harmonia entre o espírito, a alma e o corpo. A força criadora do lótus de quatro pétalas servirá então de fonte de energia e de impulso inesgotável para o longo caminho do eremita itinerante, que é o homem do coração, isto e, o homem que readquiriu sua humanidade. O discípulo da Ioga e do Tantra hindus medita ou recita interiormente "rnantras-sementes" (bija mantra), a fim de despertar e promover o desenvolvimento desses centros ou cnakras. Ele faz vibrar interiormente a sílaba OM para o centro situado entre as sobrancelhas (o lótus de duas pétalas), a sílaba HAM para o centro laríngeo (o lótus de dezesseis pétalas), a sílaba YAM para o centro cardíaco (o lótus de doze pétalas), a sílaba RAM para o centro umbilical (o lótus de dez péta las), a sílaba VAM para o centro pélvico (o lótus de seis pétalas) e a sílaba LAM para o centro de base (o lótus de quatro pétalas). Quanto ao centro coronal (o lótus de oito pétalas), não existe bija mantra para ele, sendo ele não o meio, mas o fim do desenvolvimento iogue. Ele é o centro da libertação.
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Eis agora os mantras ou fórmulas cristãs que estão em relação com esses centros: "Eu sou a ressurreição e a vida" "Eu sou a luz do mundo" "Eu sou o bom pastor" "Eu sou o pão da vida" "Eu sou a porta das ovelhas" "Eu sou o caminho, a verdade e a vida" "Eu sou a verdadeira videira"
lótus de oito pétalas; lótus de duas pétalas; lótus de dezesseis pétalas; lótus de doze pétalas; lótus de dez pétalas; lótus de seis pétalas; lótus de quatro pétalas.
Eis a diferença e a escolha entre dois métodos. Trata-se, caro Amigo Desconhecido, da escolha entre o método que faz vibrar os sons particulares das sílabas Om, Ham, Yam, Ram, Vam e Lam, e o método que visa à comunhão espiritual com os sete raios do Eu sou ou com os sete aspectos do EU perfeito, que é Jesus CRISTO. O primeiro método visa o despertar dos centros como eles são; o segundo visa à cristianização de todos os centros, isto é, à sua transformação conforme seus protótipos divino-humanos. Aqui se trata da realização da palavra do apóstolo Paulo: "Se alguém está em Cristo, é nova criatura" (2Cor 5,17). A obra de cristianização da organização humana, vale dizer, de transformação do homem em homem de coração, se efetua na vida interior do homem, sendo as flores de lótus somente o campo no qual se manifestam os efeitos da obra puramente interior. Ora, o domínio no qual essa transformação é imediatamente efetuada é composto de três pares de contrários ("antinomias" práticas) e de três "neutralizações" desses "binários", nove fatores ao todo. Ei-los. Quando falamos da antinomia prática "saber-querer" e de sua solução, o coração, trata-se apenas de vista geral da tarefa de integração do homem. Na rática, é mais precisamente "o querer e o coração do saber", "o saber e o querer do coração" e "o saber e o coração do querer", porque existem sentimento e vontade no domínio do pensamento, pensamento e vontade no domínio do sentimento, e pensamento e sentimento no domínio da vontade. Existem, pois, três triângulos do "sabercoração-querer" na prática da obra interior da integração do homem. Ora, o ensinamento claramente prático do nono Arcano é que é necessário subordinar tanto o movimento que decorre espontaneamente do pensamento como a iniciativa intelectual que ordena ao "coração do pensamento", isto é, ao sentimento profundo que surge no fundo do pensamento, chamado às vezes "intuição intelectual", o qual é o "sentimento da verdade". É necessário também subordinar "a imaginação espontânea e a imaginação ativa e orientada" para a direção do coração, isto é, para o sentimento profundo de calor moral, chamado às vezes "intuição moral", o qual é o "sentimento do belo". É necessário, enfim, subordinar os impulsos espontâneos e os desígnios ordenados da vontade ao sentimento profundo que os acompanha, chamado às vezes "intuição prática", o qual é o "sentimento do bem". 237
O que é próprio do autor desses exercícios é o papel que ele atribui, no conjunto de nossa vida espiritual, à tradição hermética da Sabedoria. Ele a destaca do papel hermético tradicional e se eleva acima da ciência e da Igreja. Para ele o hermetismo não funda uma nova ciência, nem uma nova Igreja, mas está a serviço da ciência e da fé, como uma ponte entre as duas. Ele se considera o fermento de nossa cultura espiritual. Assim, por exemplo, a sua surpreendente explicação platônica da teoria da evolução não faz concorrência com esse paradigma científico, mas, ao contrário, permite combinar a teoria da evolução com a verdade fundamental e evidente segundo a qual o mais perfeito não pode ser tirado do menos perfeito. O que o autor mais deseja é mostrar a todos os que procuram a Sabedoria, aos herméticos, aos teósofos e aos antropósofos, que a única Igreja, a Igreja dos Apóstolos, a Igreja do Deus feito homem, é o seu verdadeiro lugar espiritual, sua pátria espiritual, da qual eles vivem todos os dias - queiram ou não - e que, sem suas preces e seus sacramentos, as realidades às quais eles dão importância deveriam desaparecer completamente de nosso mundo. O seu reconhecimento por esse espaço dado por Deus é comovente por seu calor e sua profundidade. Ele espera da Igreja católica não uma gratidão recíproca para com o pesquisador hermético da Sabedoria e o iniciado, mas somente que ela lhe conceda um lugar modesto, o último, a ele que, em virtude de uma vocação particular, não pode deixar de pesquisar, no caminho das analogias e das semelhanças, o grande e simples segredo da realidade e de fazer assim descobertas surpreendentes. Que desse último lugar que, segundo a palavra de Cristo, é o lugar privilegiado, venha reciprocamente para a Igreja um novo impulso, um impulso que a obrigue ao reconhecimento, não depende dos homens. Mas parece cada vez mais que será assim. Os cristãos do futuro deverão ser "cristãos gnósticos, amadurecidos e esclarecidos", aos quais, segundo a palavra do Cardeal Martini, arcebispo de Milão, "é dirigido todo o anúncio do Novo Testamento". E quando o papa João Paulo II, em Paris, perguntou à nação francesa: "França, ainda és fiel à Sabedoria Eterna?", não foi por acaso que ele usou esse termo e não um outro como "fé". Segundo o ensinamento cristão, a fé é um dom que ninguém dá a si mesmo. Mas a sabedoria humana, participação da Sabedoria eterna, é uma disposição do espírito que pode ser adquirida por exercícios como os apresentados nessas vinte e duas cartas. Na Igreja oriental, o diácono, antes de ler o Evangelho, exclama: "Sabedoria! De pé! ", e antes do começo da celebração do Mistério propriamente dito: "De pé, com respeito!" Esses dois convites supõem que os presentes saibam que certas disposições do espírito e do corpo são condições necessárias para ouvirem o Logos divino e para que ele se lhes torne presente. São essas mesmas condições que salvam uma civilização da ruína.
Robert Spaemann
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O Eremita da nona lâmina é o hermetista cristão que representa "a obra
interior do nove", a obra de realização da supremacia do Coração no ser humano ou, em termos familiares e tradicionais, "a obra da salvação", porque a "salvação da alma" é a restauração do reino do coração.
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5.
V O PAPA
O PAPA
O PAPA
At vero Melchisedek, rex Salem, proferens panem et vinum, erat enim sacerdos Dei Altissimi, benedixit ei, et ait: Benedictus Abram Deo excelso ... et benedictus Deus excelsus ... 1 Gn Ego sum via, veritas et vita: nemo venit ad14,18) Patrem, nisi per me2 o 14,6) De cetero nemo mihi molestus sit: ego enim stigmata Domini fesu in corpore meo portos 6,17) Caro Amigo Desconhecido, A lâmina "O .Papa" nos coloca na presença do ato da bênção. : da maior importância tê-la sob os olhos quando nos damos à interpretação tanto da contextura da lâmina toda como de cada um de seus elementos em particular. Por isso nunca devemos perder de vista que, seja qual for a interpretação que dermos do "Papa", dos acólitos ajoelhados diante dele e das duas colunas atrás dele, e seja qual for o simbolismo que vejamos na tiara e nas três cruzes que ele segura - trata-se em primeiro lugar da bênção e dos problemas que ela comporta. Que é bênção? Qual é a sua fonte e qual o seu efeito? Quem tem autoridade para dá-la? Que papel tem ela na vida espiritual da humanidade? A bênçao é mais do que simples voto formulado por outro; é também mais do que a marca mágica do pensamento e da vontade pessoais impressa em alguém - eia é a colocação em ação do poder divino, que transcende o pensamento e a vontade individuais daquele que abençoa e daquele que é abençoado. Em outras palavras, ela é ato essencialmente sacerdotal. 1 "Melquísedec, rei de Salém, trouxe pão e vinho; ele era sacerdote do Deus Altíssimo. 1::,Je pronunciou esta bênção: 'Bendito seja Abrão pelo Deus Altíssimo ... e bend.to seja o Deus Altíssimo ... ' " (N. do T .) 2 "Eu sou o Caminho, a Verdade e a Vida. Ninguém vem ao Pai a não ser por mim". (N. do T.) 3 "Doravante ninguém me moleste. Pois eu trago em meu corpo as marcas (estigmas) de Jesus". (N. do T.)
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A Cabala compara o papel da oração e da bênção a duplo movimento, ascendente e descendente, semelhante à circulação do sangue. As preces da humanidade sobem a Deus, e, depois de "serem divinamente oxidadas", transformam-se em bênçãos gue descem do alto para baixo. Por isso um dos "acólitos" da lâmina está com a mão esquerda para cima, e o outro com a mão direita para baixo . As duas colunas azuis atrás "do Papa" simbolizam em rimeiro lugar essa dupla corrente, ascendente e descendente, das orações e das bênçãos. Ao mesmo tempo, "o Papa" mantém elevadas as três cruzes do lado da "coluna da prece" e do acólito em oração, enquanto do lado da "coluna da bênção" e do acólito que recebe (ou "inspira") a bênção, a sua mão direita está levantada, no gesto de bênção. · Os dois "lados" da Cabala - o "direito" e o "esquerdo" - e as duas "colunas" da Árvore sefirótica, a coluna da Misericórdia e a do Rigor, como as duas colunas do Templo de Salomão, Jakin e Boas, correspondem perfeitamente às colunas da oração e da bênção da lâmina. Porque o Rigor estimula a prece, e a Misericórdia abençoa. O sangue "azul" veno;o de Boas sobe, e o sangue "vermelho" arterial oxidado de Jakin desce. O sangue "vermelho" traz a bênção vivificante do oxigênio; o sangue "azul" livra o organismo do rigor do ácido carbônico. O mesmo sucede na vida espiritual. A asfixia espiritual ameaça aquele que não pratica a oração de modo algum; aquele que a pratica de algum modo recebe, de uma ou outra forma, a bênção vivificante. As duas "colunas" têm, pois, uma significação essencialmente rática - espiritualmente tão prática como a da respiração para a vida do orgamsmo , Ora, o primeiro ensinamento prático - porque os Arcanos Maiores do Tarô são exercícios espirituais - do qumto Arcano se refere à respiração espiritual. Existem duas espécies de respiração: a horizontal, entre o "exterior" e o "interior", e a vertical, entre o "em cima" e o "em baixo". O "aguilhão da morte" ou a crise essencial da agonia suprema é a passagem brusca da respiração horizontal para a respiração vertical. Aqueie, contudo, que, durante sua vida, aprendeu a respiração vertical, será libertado do "aguilhão da morte". Nele a passagem de uma forma de respiração para a outra não será da natureza ele um ângulo reto, mas da de um setor de círculo: _J .J . A transição não será brusca, mas gradual e curvilínea, em vez de ter a forma de linha quebrada. Ora, a essência da respiração vertical é a alternância da prece com a bênção ou a graça. Esses dois elementos da respiração vertical se manifestam em todos os domínios da vida interior - na razão, no coração e na vontade. Assim um problema da razão, não devido à curiosidade ou à compilação intelectual, mas à sede de verdade, é, no fundo, uma oração. E a iluminação que pode segui-lo é a bênção ou a graça correspondente. No fundo, também o verdadeiro sofrimento é sempre uma oração, e a consolação, a paz e a alegria que podem vir depois dele são efeitos da bênção ou da graça correspondentes a ele.
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O verdadeiro esforço da vontade, isto é, o esforço cem por cento, o verdadeiro trabalho, é também uma oração. Quando o trabalho é intelectual, é a oração "santificado seja o teu nome". Quando se trata de trabalho criativo, a oração é: "venha o teu reino". Quando o trabalho visa a suprir as necessidades materiais da vida, a oração é: "o pão nosso de cada dia dá-nos hoje". Todas essas formas de prece na linguagem do trabalho têm suas bênçãos ou suas graças correspondentes. A lei da correspondência entre a coluna da oração (ou dos sofrimentos, dos esforços) e a da bênção (ou da iluminação, da consolação, dos frutos) está nas bem-aventuranças do Sermão do Mestre na Montanha. As nove (porque são nove, não oito) bem-aventuranças podem ser entendidas como fórmula da respiração vertical. Elas no-la ensinam. Essa respiração é o estado de alma que o apóstolo Paulo designa como "liberdade em Deus", que é nova maneira de respirar. De respirar o sopro divino, que é liberdade. "O Senhor é o Espírito, e onde se acha o Espírito do Senhor aí está a liberdade" (2Cor 3,17). O correspondente espiritual da respiração horizontal é a alternância da "extroversão" e da "introversão" ou a atenção à vida exterior objetiva e à vida interior subjetiva. A lei da respiração horizontal é: "Amarás teu próximo como a ti mesmo". Aqui está o equilíbrio dessas duas direções da atenção. Quanto à respiração vertical, a sua lei é: "Amarás o Senhor, teu Deus, de todo o teu coração, de toda a tua alma, com todo o teu pensamento". Nisso está a relação entre a oração e a bênção ou a graça. Na respiração horizontal existem três planos como existem três estádios na respiração vertical . Os três planos da respiração horizontal são: amor da natureza, amor do próximo, amor dos seres espirituais hierárquicos (anjos etc.). Os três estádios da respiração vertical são: a purificação (pelo sopro divino), a iluminação (pela luz divina), a união mística (no fogo divino). Eis porque o "Papa" segura levantada a tríplice cruz, formada por três traves transversais, que dividem a linha vertical em três partes. É a cruz da ressurreição espiritual completa e per/ eita, horizontal e vertical: :f . É a cruz do tríplice amor ao próximo (próximo inferior - natureza, próximo igual homem, próximo superior - ser hierárquico) e do tríplice amor a Deus (sopro ou fé, luz ou esperança, fogo ou amor). Ela é o "cetro" da autoridade do Papa da lâmina como o globo formado pelas duas taças e encimado pela cruz é o cetro do Imperador.
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Assim como o Imperador, o guarda do "trono de Davi", representa o humano em relação ao céu, isto é, a imagem e a semelhança divinas no homem, do mesmo modo o Papa, o guarda da Porta das Colunas da Bênção e da Oração, representa o Divino transcendente em relação à humanidade. Os dois postos, o do Imperador e o do Papa, são duas realidades espirituais; e são tão reais como o são a "cabeça" e o "coração" na vida do indivíduo. O coração é o centro da respiração e da circulação do sangue; a cabeça é o centro do sistema nervoso e a sede do pensamento. E como nenhum parlamento fará as vezes da realidade espiritual do posto do Imperador, não podendo o "trono de Davi" ser substituído por uma coletividade, do mesmo modo nenhum concílio ecumênico fará as vezes da realidade espiritual do posto do Papa ou do "trono de Melquisedec, rei da Plenitude (Salem)", Seja disparado ou não o "tiro de canhão" predito pelos "círculos esotéricos do Ocidente", continue visível o trono sacerdotal ou seja levado para as catacumbas, ele, apesar dos profetas de sua destruição, permanecerá firme e sempre presente na história futura da humanidade. Porque a história - como aliás a vida do indivíduo - é ritmada pelo dia e pela noite. Ela tem um aspecto diurno e um aspecto noturno. O primeiro é exotérico, o outro, esotérico. O silêncio e a escuridão da noite - e tudo o que é "inconsciente" ou "supraconsciente" no ser humano pertence ao domínio da "noite" - estão sempre carregados de acontecimentos em preparação. É o lado mágico da história "do dia", o lado dos fatos e das obras mágicos agindo atrás da fachada da história. Foi assim que, quando o Evangelho foi pregado à luz do dia nos países do Mediterrâneo, seus raios noturnos efetuaram uma transformação profunda no Budismo. Nele o ideal da libertacão individual mediante a entrada no estado de Nirvana cedeu o lugar ao ideal da renúncia ao Nirvana para a obra da misericórdia em favor da humanidade sofredora. O ideal do Mahaiana, do Grande Veículo, teve então sua aurora resplandecente no céu dos valores morais da Ásia.
"O dia transmite a outro dia a 'palavra' ( lllN -'Omer). A noite indica a outra noite a 'ciência' ( tljit - Da'at)" (Salmo 19 da Bíblia hebraica; 18 da Vulgata; seu texto latino é o seguinte: Dies diei eructat verbum et nox nocti indicat scientiam).
Eis a fórmula do duplo ensinamento - pela palavra do dia e pela ciência da noite; da dupla tradição - pelo ensinamento verbal e pela inspiração direta; da dupla magia - pela palavra pronunciada e pela irradiação silenciosa; enfim, da dupla história - da história "visíyel" diurna e da história "invisível" noturna. Ora, os postos do Imperador e do Papa são realidades aquém e além da soleira que separa o "dia" da "noite" . E "o Papa" da quinta lâmina é o guarda dessa soleira. Ele está assentado entre duas colunas - a do dia ou da oração e a da noite ou da bênção. 114
"O Imperador" da quarta lâmina é o Senhor do "dia" e o Guarda do Sangue ou da quintessência da realidade noturna do dia. "O Papa" é o guarda da Respiração ou da realidade da relação entre o dia e a noite. Ele guarda o equilíbrio entre o dia e a noite, entre o esforço humano e a graça divina. O seu posto se funda em fatos cósmicos primordiais. "Deus separou a luz e as trevas. Deus chamou à luz dia e às trevas noite (Gn 1,5) diz o primeiro livro de Moisés. E o ato que separou o Inteligível do Mistério significa a instauração da respiração cósmica, que é uma analogia do "espírito de Deus movendo-se sobre as águas" . Porque o sopro divmo (ruan 'elohim) sobre a profundeza da paz ("as águas" são a realidade tanto cósmica como psicológica do Nirvana) é o protótipo divino da respiração. Então o "Grande Veículo", o "Mahaiana" do Budismo, se elevou para o sopro divino, a Misericórdia, que se move sobre as águas da paz pré-cósmica do Nirvana, enquanto o "Pequeno Veículo", o "Hinaiana ", aspira ao fim da respiração; a sua finalidade é mergulhar nas águas da paz - entrar no Nirvana, onde não existe movimento, nem mudança, nem respiração. Mas o Sopro divino (ruah 'elohim) está sobre o oceano da paz nirvânica; ele o movimenta. E renunciar ao Nirvana, depois de ter chegado à sua soleira, significa elevar-se acima do Nirvana e participar do Sopro divino, que o transcende. Ora, a água primordial, penetrada pelo sopro divino, é a essência do Sangue; o sopro refletido pela água é a Luz; a alternância rítmica da absorção do sopro pela água e de sua reflexão por ela é a Respi. ração. A Luz é o Dia; o Sangue, a Noite, e a Respiração, a Plenitude (Salem). Melquisedec, rei de Salém, sacerdote do Deus Altíssimo (kohen le'el 'elyon - 1i"'7~ '7"K7 lQj ), está, portanto, preposto à Plenitude, à Respiração, enquanto o Rei Ungido, guarda do "trono de Davi" ou o Imperador, está preposto ao Dia. Embora preposto ao Dia, ele foi ungido pela Noite, deve sua autoridade à Noite e é o guarda da presença misteriosa da Noite no Dia - o Sangue. Caro Amigo Desconhecido, perguntar-te-ás provavelmente se existe terceiro posto, o daquele que é o preposto da Noite. Sim, existe o posto do Dono da Noite (chamado também "Senhor da Noite"). Aproximar-nos-emos da ordem de idéias relativas a esse posto na undécima Carta, consagrada ao nono Arcano do Tarô. Baste-nos indicar aqui que em Israel havia três postos superiores, os postos de rei, de sumo sacerdote e de profeta. Devemos observar que se trata de postos, não de pessoas; isso porque, às vezes, pode acontecer de a mesma pessoa ocupar dois e até três postos. Mas voltemos ao posto do Papa, que é o tema do quinto Arcano do Tarô. Ele se refere à Respiração espiritual, como já vimos. Por isso o Papa representa uma ordem de verdade e um critério de ver-
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dade diferente da verdade e do critério científicos. Para ele, é "verdadeiro" o que comporta a