hoje numerosos e excelentes dicionários e enciclopédias de música com ensinamentos os mais variados, mas sem dúvida mais raramente conduzem-nos a uma verdadeira história dessa arte até os nossos dias, em sua maravilhosa trajetória através dos séculos: seus encontros, desenvolvimentos, o surgimento dos homens que não cessam de inventála e reinventá-la. Quisemos aqui traçar uma história da prática e da estética musicais, de seus instrumentos e regras hoje variáveis, de seus compositores, sobretudo aqueles a quem foram dedicados, em virtude da grandeza de sua genialidade criativa, grandes capítulos. Mas quisemos igualmente que esta
História da música "ocidental" com suas evoluções e mesmo com suas revoluções específicas, não ficasse dissociada da história geral: história política, socioeconómica, cultural e religiosa, preocupando-nos assim em esclarecer as situações sóciohistóricas da música ao longo dos séculos. Destinada a todos os leitores, a todos os apaixonados pela música, os praticantes ou ouvintes, a todos aqueles que querem saber mais, esta história se abre, antes que se comece o seu relato, com um "Léxico musical explicativo", um pouco como se entrega em mãos a chave de uma fábrica.
HISTÓRIA DA MÜSICA OCIDENTAL
JEAN & BRIGITTE
MASSIN
HISTORIA DA MÚSICA OCIDENTAL
Tradução Ângela Ramalho Viana Carlos Sussekind Maria Teresa Resende Costa
EDITORA NOVA FRONTEIRA
Título Original: Histoire de la Musique Occidentale © Messidor - Temps Actuels, 1983 © Fayard/Messidor - Temps Actuels, 1985 para edição n ã o ilustrada. Direitos de edição da obra em língua portuguesa no Brasil adquiridos pela EDITORA NOVA FRONTEIRA S.A. Rua Bambina, 25 - Botafogo C E P : 22251-050 - Rio de Janeiro - R J - Brasil Tel: 537 8770 - Fax: 286 6755 http:://www.novafronteira.com.br Equipe de p r o d u ç ã o
SUMÁRIO
Leila Name Regina Marques Sofia Sousa e Silva Michelle Chao Mareio
Araújo
Edição de originais Antônio
Monteiro César
SOBRE OS COLABORADORES
xiii
PREFÁCIO Brigitte e Jean Massin
xvii
Guimarães
Benjamin
índice onomástico Isabel Grau
LÉXICO MUSICAL EXPLICATIVO
Nana Vaz de Castro Pedro de Moura
Aragão
Os instrumentos, a orquestra, as vozes 3 Philippe Beaussant, com a colaboração de Jean-Yves Bosseur e Jean Massin
Revisão Ana Lúcia
Kronemberger
Ângela Pessoa Marcelo Eufrasia Projeto gráfico e editoração eletrônica Silvia Negreiros CIP - BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES D E LIVROS M371h
Massin, Jean História da m ú s i c a ocidental / Jean 8c Brigitte Massin ; tradução de Maria Teresa Resende Costa, Carlos Sussekind, Angela Ramalho Viana. - Rio de Janeiro : Nova Fronteira,
1997
Tradução de: Histoire de la musique ocidentale I S B N 85-209-0907-8 1. M ú s i c a - História e crítica. I . Massin, Brigitte. I I . Título.
97-1719.
1
C D D 780.9 C D U 78(091)
O solfejo e a harmonia Michèle Reverdy
45
As formas e os gêneros musicais Philippe Beaussant, com a colaboração de Brigitte e Jean Massin e de Marc Vignal
63
A notação e a interpretação Jean-Yves Bosseur
99
Primeira Parte DAS ORIGENS CRISTÃS AO SÉCULO XIV
123
1. Pensar a música na Idade Média Françoise Ferrand
125
2. Os primeiros cânticos da Igreja Françoise Ferrand
135
3. Técnica e notação do canto gregoriano Michel Hugh
141
4. A liberdade e a brecha: tropos, seqüências, dramas litúrgicos Françoise Ferrand
151
Historia da música ocidental
vi
Sumário
vii
5. A música profana nos séculos XII e XIII Françoise Ferrand 6. A polifonia, desde seus primordios até o fim do século XIII Françoise Ferrand
161
20. Antonio Vivaldi (1678-1741) Ivo Supicic
423
185
21. Domenico Scarlatti e a música instrumental italiana Stéphane Golãet
433
7. A Ars Nova e Guillaume de Machaut Françoise Ferrand
195
22. A música vocal italiana de Pergolesi a Cimarosa Jean-Fançois Labie
441
23. Johann Sebastian Bach (1685-1750) Philippe Beaussant
453 477
235
24. Georg Friedrich Haendel (1685-1759) Jean-François Labie 25. Jean-PhiHppe Rameau (1683-1764) Philippe Beaussant
289
26. A Querelle des Boujfons Stéphane Golãet
Segunda Farte OS SÉCULOS XV E XVI
209
8. A música no século XV Bernard Gagnepain 9. A música no século XVI: Europa do Norte, França, Italia, Espanha Jean-Pierre Ouvrard 10. A música luterana no século XVI Marc Vignal
211
11. A música inglesa no tempo dos Tudor e dos primeiros Stuart Jean-François Labié
293
Terceira Parte
493 501
Quinta Parte O SÉCULO XVIII: SEGUNDA METADE
507
27. O nascimento de uma nova linguagem musical Marc Vignal
509
O SÉCULO XVII
313
12. Situação sócio-histórica da música no século XVII Ivo Supicic 13. Claudio Monteverdi (1567-1643) Jean-Ives Bosseur 14. As invenções italianas do espírito barroco Philippe Beaussant 15. A música barroca da França "clássica" Philippe Beaussant
315
28. A formação de um novo público e suas conseqüências musicais Marc Vignal
513
327
29. As novas correntes musicais de 1750 a 1780 Marc Vignal
525
341
30. Caracterização do "classicismo" vienense Marc Vignal 31. Joseph Haydn (1732-1809) Marc Vignal 32. Wolfgang Amadeus Mozart (1756-1791) Brigitte e Jean Massin
545
16. Heinrich Schütz (1585-1672) Marc Vignal 17. A música alemã entre Schütz e Bach Marc Vignal 18. A música inglesa depois de Cromwell: Henry Purcell Jean-François Labié
359 385 393
33. A música da Revolução Francesa Gérard Gefen
557 567 583
399 Sexta Parte
Quarta Parte A PRIMEIRA METADE DO SÉCULO XVIII
409
19. Situação sócio-histórica da música no século XVIII Ivo Supicic
411
NO LIMIAR DO SÉCULO XIX
597
34. Ludwig van Beethoven (1770-1827) Jean Massin 35. Weber e seus contemporâneos germânicos Brigitte Massin
599 623
viü
História da música ocidental
36. Franz Schubert (1797-1828) Brigitte Massin
631
37. A ópera italiana de Cherubini a Rossini Jean-François Labié
647
Sétima Parte OS FILHOS DO SÉCULO
659
38. Situação sócio-histórica da música no século XIX Ivo Supicic
661
39. A ópera italiana: Donizetti, Bellini, Verdi Jean-François Labié 40. A música francesa: o reinado de Eugène Scribe Stéphane Goldet
673
52. A música russa: de Glinka ao "Grupo dos Cinco" Michèle Reverdy 53. Modest Mussorgski (1839-1881) Michèle Reverdy 54. Piotr Tchaikovski ( 1840-1893) Michèle Reverdy 55. A música tcheca: Smetana, Dvorák Michèle Reverdy 56. Grieg e os músicos escandinavos Stéphane Goldet
819 825 831 837 843
Nona Parte 689
41. Hector Berlioz (1803-1869) Brigitte Massin
699
42. Felix Mendelssohn (1809-1847) Brigitte Massin 43. Robert Schumann (1810-1856) Brigitte Massin 44. Frédéric Chopin (1810-1849) Dominique Bosseur
713
45. Franz Liszt (1811-1886) Dominique Bosseur 46. Richard Wagner (1813-1883) Dominique Bosseur
1X1
Sumário
721 737 745 757
Oitava Parte A SEGUNDA METADE DO SÉCULO XLX
771
47. Viena, da valsa à opereta Stéphane Goldet
773
48. Anton Bruckner (1824-1896) Marc Vignal 49. Johannes Brahms (1833-1897) Stéphane Goldet 50. A música francesa: Offenbach, Gounod e Bizet Stéphane Goldet
777
51. César Franck, os "franckistas" e Chabrier Gérard Gefen
805
783 793
A VIRADA DO SÉCULO XX
847
57. Hugo Wolf (1860-1903) Stéphane Goldet 58. Gustav Mahler (1860-1911) Marc Vignal 59. Richard Strauss (1864-1949) Stéphane Goldet 60. Dois antigos e um moderno: Reger, Pfitzner, Busoni Stéphane Goldet 61. A ópera italiana: depois de Verdi, Puccini Jean-François Labié 62. Scriabin e seus contemporâneos russos Michèle Reverdy 63. Jean Sibelius (1865-1957) Marc Vignal 64. Claude Debussy (1862-1918) Michèle Reverdy 65. Os contemporâneos franceses de-Debussy Michèle Reverdy 66. Maurice Ravel (1875-1930) , Michèle Reverdy 67. A música espanhola: Albeniz, Granados, Manuel de Falla Michèle Reverdy 68. A música inglesa Jean-François Labié
849 857 869 879 885 895 901 907 917 925 933 939
Historia da música oádental
X
Décima Parte A PRIMEIRA METADE DO SÉCULO X X
945
69. Erik Satie, o "Grupo dos Seis" Michèle Reverdy 70. Janácek, Martinu, Kodály: a Europa Central Michèle Reverdy
947
71. Bela Bartók (1881-1945) Michèle Reverdy
957 963
72. À maneira de preâmbulo à "Escola de Viena": música atonal, dodecafônica, serial 973 Marc Vignal 73. Arnold Schõnberg (1874-1951) Marc Vignal
979
74. Alban Berg (1885-1935) Michèle Reverdy
987
75. Anton Webern (1883-1945) Jean-Yves Bosseur
995
Sumário
85. Máscaras e pilhagens: os minstrels Jacques B. Hess 86. Um canto de desamparo: o blues Jacques B. Hess 87. Uma música de salão e de saloon: o ragtime Jacques B. Hess 88. Das cidades e dos homens: os avatares de uma grande arte Jacques B. Hess 89. Revoltas e interrogações: o free jazz e agora Jacques B. Hess 90. Pequena história do rock'n'roll Thierry Châtain
A SEGUNDA M E T A D E D O SÉCULO X X
1087 1095 1105 HH
77. Igor Stravinski (1882-1971).... Jean-Yves Bosseur
1011
78. Serguei Prokofiev (1891-1953) Philippe Olivier
1023
91. 92. 93. 94. 95. 96.
79. Dimitri Chostakovitch (1906-1975) Philippe Olivier
1033
I N D I C E ONOMÁSTICO (COMPOSITORES)
80. Os compositores da América Latina Michèle Reverdy
1043
81. Charles Ives e seus contemporâneos norte-americanos Jean-Yves Bosseur 82. Edgar Varèse (1883-1965) Michèle Reverdy
1047 1053
Décima Primeira Parte 1063
83. Pode-se dizer o que é o jazz . Jacques B. Hess
1065
84. Uma poesia épica coletiva: negro spirituals Jacques B. Hess
1071
•
1123
Brigitte Massin, com contribuições de Jean-Yves Bosseur, Michel Chion, Michèle Reverdy e Marc Vignal
1003
7
1081
Décima Segunda Parte
76. A geração de 1900 na Alemanha Stéphane Goldet
O JAZZ
1077
Os iniciadores A nebulosa de Darmstadt A revolução eletroacústica O grande ateliê europeu Os provocadores Prospectiva de um labirinto
H25 143 1165 H83 1201 1215
1
1235
XIU
SOBRE OS COLABORADORES
Philippe Beaussant Diretor do Instituto de Música e Dança Antigas, musicólogo, autor de obras sobre Couperin, Rameau e Lully, bem como de romances e ensaios; produtor da RadioFrance. Dominique Bosseur Doutor em Letras, professor-assistente da Universidade da Córsega; com colaborações em diversas obras e revistas consagradas à estética contemporânea. Jean-Yves Bosseur Doutor em Letras, professor-pesquisador do Centre National de Recherches Scientifiques [Centro Nacional de Pesquisas Científicas], compositor, co-fundador do grupo Intervalles, autor com D. Bosseur de Révolutions musicales. Thierry Châtain Jornalista, colaborador regular da revista Rock and Folk, do Libération e da Année du Rock. Michel Chion Compositor, musicólogo, ensaísta, diretor de filmes, crítico da Cahiers du Cinéma, antigo membro do Groupe de Recherches Musicales [Grupo de Pesquisas Musicais] do INA, autor de diversos livros sobre a música e o cinema. Françoise Ferrand Professor-conferencista da Universidade de Rouen, autor de várias obras e estudos sobre a poesia lírica, a canção e a estética musical da Idade Média e início da Renascença.
xiv
História da música oádental
Bernard Gagnepain Professor de história da música pré-clássica e de paleografía musical do Conservatório Superior de Música de Paris. Diretor do Seminário Europeu de Música Antiga (Bruges). Gérard Gefen Escritor, produtor da Radio-France, colaborador das revistas Compact e La Lettre du musicien. Autor de uma obra sobre Wilhelm Furtwangler. Stéphane Goldet Produtora da France-Musique, colaboradora regular da revista Avant-Scène Opéra. Autora de uma obra consagrada a Hugo Wolf e de outra sobre o Quarteto de cordas no século XX. Jacques B. Hess Responsável pelo curso de história do jazz na UER de Música e Musicología de Paris-Sorbonne (Paris-IVe). Michel Hugh Conferencista sobre paleografía musical na Sorbonne, diretor da seção de musico¬ logia do Instituto de Textos. Jean-François Labié Historiador da música, especialista em historia da arte barroca, produtor da Radio-France, colaborador regular das revistas Avant-Scène Opéra e Diapason. Publicou uma importante obra dedicada a Haendel. Philippe Olivier Crítico musical do Libération, colaborador da Radio-France, autor de La Musique au quotidien. Jean-Pierre Ouvrard Professor da Universidade François Rabelais em Tours, autor de muitas obras e artigos sobre a canção francesa polifónica do século XVI, colaborador regular ou ocasional de diversos conjuntos e instituições de música antiga. Michèle Reverdy Compositora, professora de análise do Conservatório Superior Nacional de Música de Paris, produtora da France-Culture, autora de dois livros sobre a obra de Olivier Messiaen.
Sobre os colaboradores
xv
Ivan Supicic Presidente da Sociedade Internacional de Musicología, redator-chefe da International Review of the Aesthetics and Sociology of Music, professor da Academia Musical de Zagreb e professor-associado da Universidade de Ciências Humanas de Strasbourg. Marc Vignal Crítico musical, produtor da France-Musique; autor de livros sobre Mahler e Sibelius, autor de uma importante obra sobre Haydn.
XVll
PREFÁCIO
Por que e para quem? Por que senão para satisfazer uma necessidade que de início foi nossa (só existe trabalho válido sob essa condição) e que sabemos ser a necessidade de muitos? A de explorar os oceanos da música e conhecê-los melhor, para neles encontrar ainda mais alegria. Uma necessidade de todas as épocas: terá algum dia havido, em milênios, uma sociedade humana sem música? No entanto, de maneira mais premente, uma necessidade de nossa época. Por uma razão capital: a arquitetura, a escultura e a pintura requerem o espaço como dado primordial de sua existência; a música requer o tempo. Numa só olhadela podemos apreender a totalidade do quadro mais vasto, ou até do conjunto dos afrescos do teto da Capela Sistina (uma apreensão muito insuficiente, é claro, e que pede uma contemplação mais longa, com o exame de cada detalhe); mas é impossível que uma só "escutadela" nos forneça a totalidade da mais breve obra musical que se possa imaginar (um único som só poderia constituir um fato musical no seio de praias de silêncio que o cercassem). "A música por vezes se apossa de mim como um mar", dizia Baudelaire. Como o mar, ela solicita nosso embarque para uma navegação, de curso mais longo ou mais curto. Qualquer música (mesmo circular ou repetitiva) exprime, de certo modo, uma história a que devemos estar atentos do começo ao fim. Essa duração necessária da atenção explica por que, dentre todos os mundos da arte, o mundo da música não é o mais imediatamente fácil de penetrar em profundidade. Mas, o fato de a música ser a arte da duração também explica, sem dúvida, por que seu lugar não pára de crescer, nem pára sua necessidade de se afirmar, num universo em que vivemos cada vez mais em função do tempo, dos horários cronometrados e dos relógios de ponto, da duração psicológica e de uma evolução
xvüi
História da música ocidental
acelerada da história. Pouco a pouco, já se vão cerca de dois séculos, nossos valores se inverteram, passando do absoluto em si para o relativo, que exige outros tipos de perfeição, do ser imutável para o tornar-se, da fixidez para o movimento, do estático para o dinâmico, da eternidade para a história. O que cada um de nós atualmente sabe é que, mais ainda do que seu corpo, a matéria primordial do homem é seu tempo. Daí nossas angústias e nossas revoltas; daí também nossas aspirações e as novas formas de nossas sensualidades, nossas ternuras e nossas alegrias. Daí a maior necessidade e a maior presença da música hoje em dia: a um só tempo, ela exorciza e transfigura nossa obsessão com o tempo que escoa. A música está em nossa vida por toda parte (a ponto de, vez por outra, sua presença superar nossa necessidade, nos lugares públicos: quanto mais gostamos de música, mais sentimos necessidade de saborear também o silêncio). Ela vem solicitar-nos através do rádio, da televisão, do cinema, do disco, da fita cassete: uma só exibição da Nona Sinfonia na telinha e um só filme de Bergman sobre A flauta mágica atingem mais ouvintes e conquistam mais apaixonados, talvez, do que 180 anos em todos os teatros de ópera e salões de concerto do mundo: o disco ressuscitou para nós centenas de obras-primas, até então reservadas apenas aos "ratos" de biblioteca e aos ratos propriamente ditos, ou, pelo menos, tão-somente ao prazer de uns raros conhecedores. A esse impulso da difusão musical corresponde um maior desenvolvimento da atividade e da prática musicais. Os malhumorados viviam repetindo que a proliferação do disco fonográfico e, mais especificamente, a revolução do long-play condenariam à extinção a espécie dos instrumentistas não profissionais; foi o contrário que se constatou. O mesmo acontecerá, provavelmente, com o disco a laser e o compact disc. Atendo-nos a isso, o atual avanço da música pareceria estar ainda por demais ligado a motivações socioculturais, se de pronto não acrescentássemos o essencial: a música é uma necessidade do coração e da imaginação e, se é principalmente uma necessidade de nossa época, é porque atende ainda mais às necessidades do coração e da imaginação de nossos contemporâneos. A função sacralizadora da música é algo a que os seres humanos da pré-história já recorriam. Sua função estimulante, nós a conhecemos desde que existem músicas guerreiras. A função erótica da música é encontrada nas festas, nos banquetes e nas bodas de todas as épocas e lugares. Quanto à sua função pacificadora, nós a conhecemos desde os antigos mitos de Orfeu, desarmando as divindades infernais com seu canto, e de Davi, tocando para o rei Saul a fim de acalmar seus acessos de melancolia furiosa. Mas o papel desempenhado pela música em nossa vida vai muito mais longe, quando lhe abrimos nossa mais secreta porta (Beethoven seria o primeiro a proclamá-lo com plena consciência): ela é a mediadora que nos reconcilia com nós mesmos, nos dá acesso àquela região íntima, lá no fundo de nós, onde enfim encontramos nosso eu (consciente e inconsciente, às vezes reconciliados como que por milagre) em plena liberdade.
Prefácio
xix
Na medida em que nossa civilização torna-se mais abstrata, mais funcional, mais coletiva, mais programada (por um processo que seria indispensável aprimorar, sob diversos aspectos, mas que seria inútil rejeitar, a tal ponto a trajetória global é simultaneamente inelutável e válida), mais experimentamos a necessidade de multiplicar e aprofundar os recursos de nossa fantasia e de nossa singularidade. Uma das maravilhas da música é que ela é o poderoso meio de uma comunhão em cujo seio cada um se sente abençoadamente solitário e único. A sensualidade de uma clarineta ou de um violoncelo, a respiração melódica de um canto, o inesperado de uma modulação imprevisível que recria toda a luz da paisagem, o surgimento de um ritmo que nos arranca do desgaste de nossos cansaços, o brilho súbito de um timbre ou o suntuoso adensamento de uma complexidade harmônica, que nos revelam que ainda não havíamos chegado ao fim de nossa emoção ou nossa alegria — como prescindir de tudo isso? A música tem o poder, duplo e singular, de nos desligar de todos os entraves externos e de nos ligar a todo o devir do Universo, através de nosso próprio âmago. Ela não se opõe à nossa civilização; permite-nos viver nela na liberdade, que é sempre preciso reconquistar, de nossas ternuras e nossos sonhos, nossos desejos e nossos ímpetos. Ora, paradoxalmente, enquanto se multiplicam de maneira prodigiosa a escuta e até a prática da música, muitos de seus amantes, sobretudo entre os apaixonados mais recentes, procuram alguém, não raro em vão, a quem se dirigir para melhor conhecer sua história e suas técnicas. O excesso de erudição douta os desanima, o excesso de facilidade dos apanhados superficiais os deixa famintos. Eles querem partir para a descoberta, mas com que mapas podem orientar-se para empreender a exploração da região encantada onde reina essa sereia, a música, ainda por demais desconhecida, embora nos tenha fascinado de passagem? No entanto, quanto mais amamos, mais queremos conhecer, pois pressentimos que, quanto melhor conhecermos, ainda mais profundamente poderemos amar. Por isso, esperamos que este trabalho não seja inteiramente inútil. "Obra de divulgação?" Sim, se fizerem questão, no sentido que o dicionário Robert confere a essa fórmula: "Adaptar um conjunto de conhecimentos técnicos de maneira a torná-los acessíveis ao leitor não especializado." Mas não esconderemos nossa repulsa por tal expressão e pelo ar de condescendência com que ela é acompanhada, quando articulada por bocas elitistas: em "divulgação" persiste o "vulgo", "essa palavra que a língua francesa nos fornece, com tanta felicidade, para exprimir aquela multidão dotada de inúmeras línguas e pouquíssimas cabeças" (d'Alembert). Pois então, deixemos esse termo para os técnicos culturais que lançam um olhar de cima para baixo sobre a pobre humanidade. Não trabalhamos para o vulgo, mas para o público mais valioso que há: os que têm fome e sede de conhecer e de amar.
XX
Historia da música ocidental
Por que e para quem? — perguntávamos no começo. Desde que destinamos nosso primeiro trabalho em comum aos "beethovemanos leigos" — já se vão hoje trinta anos —, nenhum de nós dois parou de trabalhar na mesma direção. Tanto melhor se, nesse percurso, alguns especialistas também puderam encontrar do que se alimentar; quanto a esse aspecto, a competência e a qualidade de nossos colaboradores parecem-nos garantir ainda melhor essas provisões. Mas trata-se, antes de mais nada, de nos preocuparmos com os "peões da música" e de não nos dirigirmos primordialmente aos grandes cavaleiros da equitação musical. Queremos ajudar cada um a encontrar as chaves que lhe permitam entrar em sua casa e sentir-se enfim à vontade dentro da música. A quem Franz Schubert optou por dedicar seu Trio em mi bemol? "Aos que nele encontrarem prazer." Que nos permitam oferecer esta História da música ocidental, antes de mais nada, aos que nela encontrarem o caminho de sua alegria. Uma História da música ocidental. Por que ocidental? Esse adjetivo, naturalmente, não esconde nenhuma segunda intenção política ou ideológica. Se houvéssemos interrompido essa história no século XIX, teríamos falado de música européia; no século XX, porém, a própria música européia tornou-se inseparável das influências que vieram estimulá-la de além-mar, tanto do jazz quanto de um Charles Ives ou um John Cage. Outras interações se exercem, outras aberturas hoje lhe chegam de muitas das tradições musicais asiáticas e africanas. Duas razões nos fizeram decidir não abordar aqui esses estilos musicais magníficos, que nosso etnocentrismo ingênuo teria outrera chamado de "exóticos" e que hoje aprendemos cada vez mais a admirar e amar. A primeira, que já seria suficiente, é que as dimensões deste livro bem poderiam duplicar-se em função disso, além de se decuplicar o número de colaboradores, a tal ponto os trabalhos etnomusicológicos se particularizam ao se aprofundar. A segunda é que a maioria dessas tradições musicais apresenta mais uma continuidade do que uma história, pelo menos até seus contatos (benéficos ou maléficos?) com a Europa. Ao contrário, desde os primeiros cânticos cristãos até a música eletroacústica, há uma perpétua sucessão de combates (não sangrentos, mas amiúde encarniçados) entre um musical "antigo" e um "novo" — onde o "novo" nunca demora muito a se tornar o "antigo" de um "novo" mais recente — através do questionamento teórico e da transformação prática das formas e das intenções da composição e da execução musicais. Fora da música "ocidental", dificilmente encontraríamos tamanha abundância, quase permanente, de peripécias tão significativas, de mutações ou até de revoluções, que, cada qual a seu turno, originaram obras que impuseram a admiração por sua originalidade ainda inédita, e não por suafidelidadeao venerado ensino dos mestres. Uma história só é possível onde a investigação de uma mudança que se pretende um progresso vence uma tradição que se pretende imemorial.
Prefácio
xxi
Um último limite a esclarecer: é comum convencionar-se que a "história" sucede à "proto-história" a ser datada do surgimento de textos escritos. Por isso é que não se falará aqui da música hebraica, da grega e da romana, embora elas estejam nas origens da música medieval. Pedimos ao leitor, com muita insistência, que não tome esse silêncio como um indício de desprezo: os celtas não tinham literatura escrita quando os latinos já a possuíam, mas ninguém jamais nos fará dizer que a civilização gaulesa era inferior à romana! Se a geografia não lhe oferecesse a encarnação indispensável, não haveria história, mas tão-somente uma idéia platônica ou uma ficção romanceada da história. Em contrapartida, o curso da história impõe à geografia inúmeras modificações, que vão desde o cultivo do solo até a urbanização e, vez por outra, ao próprio traçado dos cursos d'água e do litoral. Do mesmo modo, retraçar a história da música exige que falemos daquilo que a condiciona intrínsecamente: seus instrumentos (dentre os quais a voz não é o menos significativo), suas combinações funcionais (como o solfejo), suas técnicas, suas formas e seus gêneros: em suma, sua gramática e seu vocabulário. Pois a música é uma linguagem, e todos os que se servem dela a entendem assim. "A língua que falo é compreendida no mundo inteiro", disse orgulhosamente Haydn a Mozart. Posto que queríamos oferecer este livro, antes de mais nada, aos amantes "leigos" da música,fizemoscom que a história propriamente dita fosse precedida de um léxico musical comentado, mais ou menos como se faz a "entrega das chaves" de uma fábrica a seu destinatário. O leitor, sobretudo se só tiver abordado a música através dos discos e do rádio, talvez não o julgue inútil, por nele encontrar prontamente a definição e a explicação dos termos técnicos mais correntes e mais indispensáveis. Ao longo dos capítulos seguintes, os outros termos técnicos que surgirem (muitas vezes em relação a um período histórico mais restrito, como a Idade Média, por exemplo) serão explicados e definidos quando de sua primeira menção. Tal como a da arquitetura, das artes plásticas ou da literatura, a história da música é indissociável da história geral. Da história política e, mais ainda, da socioeconómica, cultural e religiosa. Que a história da música seja indissociável dela, entretanto, não significa que lhe esteja subordinada. Tal como a linguagem e as outras artes, a música perderia qualquer valor específico, qualquer importância intrínseca, se fosse considerada como a superestrutura de tais ou quais infra-estruturas. Um rio só obedece a suas próprias leis, mas determina seu curso em função das configurações e relevos que encontra. Assim, se ignorássemos tudo o que diz respeito ao luteranismo, um certo aspecto musical de Bach nos escaparia; desconhecendo tudo sobre a ascensão da burguesia no fim do século XVIII, a nova linguagem musical de Haydn, Mozart, Beethoven e Schubert se nos tornaria parcialmente inexplicável; ao ignorarmos tudo sobre o impulso romântico da poesia, as
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História da música ocidental
intenções expressivas de Berlioz, Schumann, Liszt — e até já as de Beethoven e Schubert — permaneceriam inacessíveis. Demos, portanto, muita importância ao esclarecimento das sucessivas situações sócio-históricas da música através dos séculos, quer em capítulos especiais, quer no correr dos outros capítulos. Fizemos tanto maior questão de insistir nessas ligações quanto mais elas nos fazem apreender melhor a realidade humana da música. Na teologia dos clérigos da Idade Média, a música primordial era a dos anjos: ao 1er os comentários extasiados de algumas pessoas sobre o "angelical" Mozart, tem-se a impressão de ainda estar nessa época. No entanto, a música não nos cai do céu nem de sabe-se lá que inspiração quase divina e desencarnada. Ela é feita por seres humanos que vivem sua vida, e que inventam ou executam composições no cerne de uma história em que se acham imersos, querendo ou não, e da qual somente sua genialidade (ou seu talento, pelo menos) consegue emergir, a ponto de nos atingir através das eras. Sempre tendemos, com facilidade, a esquecer a ganga de suores e cansaços, muitas vezes de decepções e humilhações, de incompreensões e também de encontros fraternos, em cujo bojo se formam os diamantes da música. Por isso é que, se um título excessivamente longo não trouxesse o risco de ser um desserviço à difusão de nosso trabalho, teríamos preferido intitular este livro de História da música ocidental e de seus músicos. "Não sei escrever poemas: não sou poeta", escreveu Mozart a seu pai. "Não sei dispor minhas frases de um modo tão artístico que elas disseminem alternadamente sombra e luz: não sou pintor. Não sei exprimir com gestos e pantomimas minhas idéias e meus sentimentos: não sou bailarino. Mas sei fazê-lo através dos sons: sou músico." E Beethoven: "O que trago no coração precisa sair, e é por isso que escrevo!" Ou ainda, a propósito de sua Missa Solemnis: "Vinda do coração, que ela chegue ao coração!" As idéias e sentimentos que Mozart exprime através dos sons não são as idéias e os sentimentos de Bach; o que Beethoven traz no coração e que precisa sair não se encontra no coração de Haydn. Quando se fala em expressivo fala-se, necessariamente, em individual, e se o faz mais e mais à medida que se acentua a evolução histórica na qual a arte se distingue progressivamente do artesanato, de um lado, e da ciência, do outro. Há que ter um senso estético muito arcaico para gostar em bloco dos artistas de uma época inteira ou de toda uma escola, de preferência a qualquer outra. A galáxia da arte constitui-se de tal maneira que nela só importam as primeiras pessoas do singular, podendo ser largadas de mão as obras sem originalidade, repertoriadas pela erudição, mesmo quando o desgaste da memória e a falta de qualquer documentação condenam uma pessoa singular a nos permanecer anônima, como o escultor das grandes estátuas da catedral de Naumburg. Descobrir a música — e, neste ponto, o adjetivo talvez não seja um excesso: a música "ocidental" — é, acima de tudo, reconhecer que cada criador não se parece
Prefácio
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com nenhum outro e é insubstituível, quer pelo que nos diz, quer pela maneira como no-lo diz (coisas que, aliás, são uma só). Posto que a música não é uma entidade abstrata e coletiva, composta e praticada por cérebros e mãos intercambiáveis, optamos deliberadamente, nesta história, por reservar um grande espaço à vida dos músicos. Não é simples a relação entre o que, num outro texto, propusemos chamar de "biografia vivida" e "biografia criadora"; isso se liga fortemente aos dados sócio-históricos e, de maneira ainda mais intensa, às fantasias do inconsciente; mas, seja qual for essa complexidade, parece-nos impossível amar a música, isto é, amar os músicos, sem nada querer saber de sua vida e suas personalidades humanas globais. Ou seja, a importância aqui atribuída às biografias não é imputável à preocupação de distrair o leitor frivolo ou cansado. Por certo haverá outros leitores, mais resistentes e mais vorazes, que lamentarão não encontrar nas páginas seguintes certos nomes, certas listas de obras e certos esclarecimentos instrumentais ou técnicos. Nossa primeira resposta é que os limites necessários de um livro já volumoso exigiam escolhas: porventura causará surpresa, numa "história da literatura ocidental" do mesmo calibre, que não sejam mencionados, ou que sejam simplesmente citados de passagem, autores notórios como Jean-Baptiste Rousseau, tido como o maior poeta do século XVIII, Victor de Laprade, que cedo pertenceu à Academia, enquanto Baudelaire e Nerval nunca fizeram parte dela, ou mesmo Sully Prudhomme, que recebeu um dos primeiros prêmios Nobel de literatura? Insistimos, todavia, sobretudo num ponto: uma "história" não pode e nem pretende ser um "dicionário" ou uma "enciclopédia". Felizmente, não faltam enciclopédias nem dicionários de música, alguns recentes e excelentes — senão exaustivos, ao menos tendendo assintoticamente à exaustividade. Se muitos de nossos leitores se descobrirem com o apetite aberto para neles ir buscar informações complementares, nós nos felicitaremos por isso, como uma prova de que nosso trabalho não foi em vão. A verdade é que temos consciência das orientações e inflexões subjetivas que demos a este livro, ao conceber sua arquitetura, calcular as proporções de suas partes e organizar a sucessão de seus capítulos. Ao se proporem um objetivo análogo, outros organizadores poderiam, com igual legitimidade, conceber outros itinerários, calcular outras proporções e sublinhar outras etapas privilegiadas; reservar duas vezes mais páginas para Donizetti ou Saint-Saëns, por exemplo, e duas vezes menos para Schubert ou Varèse. Esta História leva nossa marca; reivindicamos nossa responsabilidade — e não nos declaramos culpados. Do mesmo modo, fazemos ainda mais questão de reivindicar a escolha e sublinhar a importância da participação dos colaboradores que nos deram a honra e a amizade de nos conceder seu concurso. Elogiá-los seria por demais pretensioso de
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História da música oádental
nossa parte: a qualidade de seus textos parece-nos bastar para isso, mais ainda do que a eminência de seus títulos. Foi de propósito que os desejamos numerosos e quisemos que suas contribuições fossem, muitas vezes, mais consideráveis que a nossa. Não apenas para garantir por toda parte o mais alto nível de competência. Não apenas para evitar, em tantas páginas, a monotonia de uma mesma escrita. Mas também para que nossa inevitável subjetividade fosse temperada pela multiplicidade da subjetividade deles: a imparcialidade de todos nunca pode ser assegurada senão pelas parcialidades sustentadas de cada um. Para haver sucesso e coerência nesse tipo de jogo em equipe, era preciso, é claro, zelar pelas articulações entre os capítulos e os ajustes dos acréscimos, dos esclarecimentos ou das alusões. Agradecemos vivamente a todos por se haverem prestado a isso de tão bom grado. Mas era igualmente preciso zelar para que muitos pudessem falar de tal ou qual aspecto, cada um dentro de sua perspectiva própria: diversas perspectivas de uma mesma estátua ou um mesmo edifício, vistos por diferentes ângulos, não se contradizem, mas se completam. E o que nos importava mais do que tudo era que, ao término da montagem, todos se sentissem na completa liberdade de serem senhores dos textos por eles assumidos através de sua assinatura. "Uma obra-prima é hospitaleira", dizia Victor Hugo: "Nela entro tirando o chapéu, e acho belo o rosto de meu anfitrião." Todo o nosso esforço comum consistiu em balizar percursos, dispor esclarecimentos, desbastar acessos a essa hospitalidade inúmera, para que, entre tantas acolhidas oferecidas, cada um encontre as amizades e até os amores que lhe darão mais alegria de viver. A maravilha da música que amamos está em que, por toda parte, em nosso trabalho, nossos trajetos e nossos sonhos — num leito de hospital, que seja, e até entre os muros de um cárcere —, sempre podemos ouvi-la cantar no fundo do coração. BRIGITTE e JEAN MASSIN
LÉXICO MUSICAL EXPLICATIVO
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OS INSTRUMENTOS, A ORQUESTRA, AS VOZES
OS INSTRUMENTOS DE SOPRO Neste tipo de instrumento, o som resulta da vibração da coluna de ar contida em um tubo. Três fatores intervém: o comprimento do tubo, a forma interior (ou "furo") do tubo e a produção do som. COMPRIMENTO DO TUBO A vibração do ar contido em toda a extensão do tubo produz um som denominado "fundamental". Quando se modifica o comprimento do tubo, são obtidos sons de alturas diferentes, o que se faz com recurso a diversos procedimentos: • Justaposição de tubos de diferentes comprimentos (flauta de Pã, órgão). • Abertura de orifícios ao longo do tubo: quando todos os orificios estão tapados, o tubo produz o som "fundamental"; cada orifício aberto ao longo do tubo, de alto a baixo, equivale a um encurtamento deste. • Vara (trombone): quando puxada, o tubo é alongado; quando recolhida, reduzse o tamanho deste. • Pistões: sistema complexo de derivações que permite a passagem do ar por redes de circuitos de maior ou menor comprimento (trómpete, trompa). "FURO" • Cónico (oboé). • Cilíndrico (flauta). O comportamento da coluna de ar contida no tubo varia de acordo com a forma interior do mesmo. O enrolamento do tubo sobre si mesmo não tem qualquer influência sobre o efeito vibratório.
Léxico musical explicativo
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Os instrumentos, a orquestra, as vozes
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PRODUÇÃO DO SOM
Família das flautas
Talvez seja o mais importante dos três fatores; é o que determina o "timbre" do instrumento. A vibração do ar no tubo é produzida quando o ar que o instrumentista expira entra em choque contra um obstáculo. Desde as origens dos instrumentos de sopro, este fenômeno sempre foi produzido de três maneiras, com variantes:
Flauta. Em francês, flûte; em italiano/Zawto; em inglês,flute;em alemão Flõte. Instrumento de tubo cilíndrico, perfurado por vários orifícios, em que a vibração do som é obtida por um "bisel". Há duas famílias, conforme seja o tipo do bisel.
1.0 bisel: o jato de ar expirado bate contra uma fenda talhada em bisel, aí se rompe e separa-se em dois. (Não é o bisel que vibra, mas apenas o ar que contra ele se choca.) Há duas variantes, que determinam dois tipos de flautas: • a ponta (flauta vertical ouflautadoce, charamela, diversos tipos de tubo de órgão); • a embocadura (flauta transversal ou transversa: neste instrumento, os lábios do exécutante dirigem o jato de ar sobre a borda do orifício feito no tubo). 2. A palheta: é constituída por uma lâmina feita da madeira de cana, que se põe a vibrar sob o efeito do ar expirado. A palheta pode ser: • simples, fixada a uma ponta (clarineta); • dupla, feita de duas lâminas, fixadas contiguamente e que vibram uma contra a outra (oboé). 3. A embocadura: é um pequeno bocal, geralmente metálico, sobre o qual se aplicam os lábios do instrumentista (trompa, trómpete). Neste caso, são os próprios lábios que fazem o papel de uma palheta dupla.
bisel
dupla
simples
X
pistões
X
>
embocadura
PRODUÇÃO DO SOM PALHETA
orificios
Flauta
TUBO cilíndrico
cónico
FURO
X
Oboé Come inglês
X
X
X
Fagote Clarineta
X
X
X
Saxofone
X
Trómpete
X
X
1
X
Trompa
X
X
1
X
Trombone
X
X
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Tuba
X
Corneto
X
Trompa de caça
X
X
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Trómpete natural
X
X
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X
X
X X X
X X
X X
Flauta doce. Flauta inglesa, flauta vertical; em francês, flûte à bec; em inglês, recorder, em alemão, Blockflõte. O som é produzido por uma ponta provida de um diminuto orifício que dirige o fio de ar para o bisel, como num apito. As mais antigas flautas desse tipo remontam ao Magdaleniano (10000 a.C). Da Idade Média até o começo do século XVIII, asflautasdoces, sempre de madeira, gozaram de grande popularidade. A literatura para a flauta doce é muito rica até o início do século XVIII, época em que o instrumento começa a ofuscar-se diante da flauta transversa. A família das flautas doces inclui flautas baixo, tenor, alto, soprano e sopranino, todas com oito orifícios. Flauta transversa ou transversal. Flauta alemã; em francês, flûte traversière; em alemão, Querflõte. O som é produzido pelos lábios doflautista,que dirigem o jato de ar na direção de um orifício feito lateralmente no tubo, que serve de embocadura; o instrumento deve ser colocado transversalmente à boca do instrumentista e mantido em posição horizontal, e disso lhe vem o nome. Flautas deste tipo podem ser vistas em alguns baixos-relevos indianos que datam aproximadamente do século II a.C. Menos utilizada que a flauta doce durante a Idade Média e o Renascimento, a flauta transversa ou transversal desenvolveu-se sobretudo a partir do século XVII, e no século XVIII praticamente eliminou sua rival. Os primeiros aperfeiçoamentos da flauta transversa devem-se à família Hotteterre (ca. 1700). Aos poucos, foi-lhe sendo acrescentada uma série de chaves. Do início do século XTX em diante, asflautastransversas passaram a ser feitas de metal (mas continuaram fazendo parte da família das "madeiras"!) e foram munidas de chaves e anéis que facilitam o dedilhado. Theobald Bõhm foi, por volta de 1830, o grande artesão responsável pela metamorfose deste instrumento, que é, entre todos os outros, a um só tempo o mais antigo e o que mais transformações sofreu em sua estrutura. (Veremos adiante que, ao contrário daflauta,o violino, por exemplo, é um instrumento que há séculos se mantém imutável.) O sistema de Bõhm foi, mais tarde, adaptado a outros instrumentos, particularmente ao oboé. A flauta possui uma sonoridade doce e redonda, ampla no registro grave, pura no médio, luminosa no agudo. É o mais ágil dos instrumentos de sopro.
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O trómpete, a trompa e o trombone têm, em quase toda a extensão de seu comprimento, a forma de um cilindro, que se abre progressivamente até o "pavilhão".
Flautim ou piccolo. Tem a metade do tamanho da flauta de concerto e toca uma oitava acima desta, com sonoridade radiosa e penetrante. É o mais agudo dos instrumentos de sopro e, ao tocar fortissimo, pode dominar toda a orquestra. Seu nome completo em italiano é flauto piccolo (pequena flauta), sendo designado, nessa língua, apenas como piccolo ou como ottavino.
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Léxico musical explicativo
Siringe ou Flauta de Pã. Em francês, syrinx. É aflautade Pã da Grécia antiga, constituída em geral por nove tubos, desiguais em comprimento, unidos uns aos outros e justapostos horizontalmente em ordem decrescente por tamanho. É também chamada de flauta mística ou flauta pastoril. Flajolé. Em francês, flageolet. Pequenaflautadoce, com quatro orifícios ñaparte da frente e dois na de trás, para os polegares. Família dos oboés Oboé. Em francês, hautbois; em italiano, oboe; em inglês, oboe; em alemão, Hoboe. Instrumento de palheta dupla, com tubo cónico provido de orifícios. É muito antigo, conhecido em todo o Oriente, na África e na Antigüidade grega. Na Idade Média, o oboé recebeu na França os nomes de chalumeau (charumela), chalemie, douçaine (dulcina) e bombarde (bombarda). A bombarda bretã (bombarde bretonne) é, pode-se dizer, prima do oboé. Foi na França que este instrumento se desenvolveu e aperfeiçoou-se: por isso, tomou na Europa o nome francês de hautbois ("madeira alta", literalmente), por oposição a grosbois, instrumento grave da mesma família e ancestral do fagote. Como sucedeu com aflauta,foi um membro da família Hotteterre que, por volta de 1700, aperfeiçoou o oboé e lhe deu suas características modernas; contudo, em meados do século XIX, esse instrumento recebeu, adaptados, certos elementos do mecanismo que Bõhm concebera para a flauta. O oboé é um instrumento essencialmente melódico: menos ágil que a flauta, tem um caráter pastoril, por vezes melancólico, mas sabe ser também agreste e jovial. O timbre do oboé impõe-se a qualquer massa sonora de que ele faça parte. Corne inglês. Em inglês, English horn; em alemão Englisches Horn e, às vezes, Altoboe; em italiano, corno inglese. A antiga designação francesa deste instrumento, hautbois de chasse (ou oboe da caccia em italiano, que daria em português "oboé de caça"), era mais exata. O nome atual, traduzido do francês cor anglais (literalmente trompa inglesa), ilude: o instrumento nada tem a ver com a trompa. O corne inglês é um oboé grave, por sinal absolutamente semelhante em aspecto ao oboé comum. É mais longo (um metro em vez de sessenta centímetros) e termina com uma campana ou pavilhão em forma de bulbo. A sonoridade do corne inglês é doce, nostálgica, um tanto velada e muito expressiva. Com palheta dupla e registro uma quinta abaixo do oboé, um parente do corne inglês é o oboé tenor (em francês, taille), muito usado em música militar no passado. Esse tipo de oboé grave foi fabricado na Inglaterra até o século XVIII com o nome de Vaux humane (do latim vox humana). Oboé de amor ou oboe d'amore. Em francês, hautbois d'amour; em alemão, Liebesoboe; em italiano e inglês, oboe d'amore. Instrumento intermediário entre o oboé
Os instrumentos, a orquestra, as vozes
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e o corne inglês, utilizado no século XVIII. Com relação à origem de seu nome, cf. mais adiante viola d'amore. Fagote. Em alemão, Fagott, em italiano, fagotto; em francês antigo, fagot, atualmente em francês basson; em inglês, bassoon. Instrumento de palheta dupla, com tubo cónico, que é o baixo da família dos oboés e, de modo geral, do conjunto das madeiras. O fagote deve seu nome ao comprimento de seu tubo (mais de dois metros). O tamanho levou os fabricantes a dobrá-lo, o que fez com que ele tomasse a forma de duas toras de madeira abraçadas formando um fagot, que em francês significa feixe de lenha. Anteriormente, o fagote chamou-se, em francês, grosbois ("madeira grave") por oposição a hautbois ("madeira alta"). O fagote desenvolveuse durante o século XVII, quando se tornou, juntamente com o oboé, parte integrante da orquestra. A sonoridade do fagote é poderosa, cheia, sobretudo no grave, bem timbrada, mais velada nos registros médio e agudo. É um admirável baixo para o ensemble da família das madeiras, mas pode também mostrar-se encantadoramente melancólico em solos. Contrafagote. Em francês, contrebasson; em italiano, contra fagotto; em inglês, double bassoon; em alemão, Kontra fagott. Instrumento de palheta dupla e furo cónico. Soa na oitava grave do fagote e faz, com relação a este, o papel que tem o contrabaixo em relação ao violoncelo. Cromorno. 1. Em francês, cromóme; em alemão Krumhorn, em italiano, sforta. Instrumento de palheta dupla, parente do oboé, bastante utilizado até o século XVII. A palheta vinha encerrada numa caixa em que o exécutante soprava. O nome cromorno prende-se ao fato do tubo deste instrumento ter sua parte inferior recurva (em inglês antigo, crump-horn, ou seja, trompa retorcida, literalmente). Os cromornos, de timbre suave e anasalado, formavam uma família que ia do soprano ao baixo. 2. Registro de órgão, cujo nome deriva do instrumento acima e que foi utilizado do século XVI ao século XVIII. Clarineta ou clarinete Instrumento de palheta simples e furo cilíndrico, cuja origem pode ser atestada desde 2000 anos a.C. no Egito, nas índias, em todo o mundo árabe e na Grécia, onde era conhecido por aulos. Na Idade Média, denominado charamela ou pelo nome francês chalumeau, tinha a palheta encerrada numa caixa onde o exécutante soprava (cf. cromorno). Contrariamente àflautae ao oboé, a clarineta só começou a desenvolver-se a partir da metade do século XVIII e foi pouco usada até essa data. Por volta de 1700, um alemão de Nuremberg, de nome Johan Christoph 1
Parecida com a clarineta, a salmoa foi um instrumento mais usado que ela antes que Derner a aperfeiçoasse.
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Léxico musical explicativo
Derner, ao pôr a palheta diretamente em contato com a ponta, suprimindo a caixa que a encerrava, criou de fato o instrumento. Vivaldi e Rameau figuram como inovadores, pois foram os primeiros a utilizar a clarineta em sua nova forma. No final do século XVIII, já aperfeiçoada, a clarineta ganhou de Mozart seus foros de nobreza e, no século XIX, o mecanismo concebido por Bõhm para aflautafoi a ela adaptado. A clarineta é o instrumento que possui maior extensão entre as "madeiras". As particularidades de sua concepção fazem com que tenha uma série de registros especiais e que sua sonoridade altere-se sensivelmente com a altura do som (tessitura): charamela (grave), sonoro e caloroso; médio, menos doce, mais desagradável; clarino, luminoso; agudo, brilhante; superagudo, incisivo. O nome clarineta resulta da sonoridade de seu terceiro registro, que fazia lembrar a de um pequeno trómpete, o clarino, instrumento de nome italiano usado no século XVIII, no tempo em que a clarineta estava sendo inventada. A família das clarinetas compreende, além da clarineta comum: no registro agudo, a pequena clarineta ou requinta, e no registro grave, a clarineta alto, a clarineta baixo ou clarone, e a clarineta contrabaixo, todas essas três com forma semelhante à de um saxofone. Há ainda o cor de basset (em francês), corno di basseto (em italiano) ou Bassethorn (em alemão), surgido na Baviera em torno de 1770; este último, pouco empregado hoje em dia, foi usado com freqüência por Mozart, que demonstrou especial predileção por ele, principalmente em suas obras maçônicas, e dele se valeu até em seu Requiem. A clarineta é um instrumento transpositor. Chamam-se assim os instrumentos que, por motivos históricos, fazem soar suas notas diferentemente das que estão escritas na partitura, ou seja, a nota natural e geradora do instrumento soa como o dó notado, que valerá como uma referência para todas as demais. Desde Schõnberg, Prokofiev e outros, a tendência que prevalece atualmente é a de, cada vez mais, escrever os sons tais como são percebidos pelo ouvido. Saxofone Instrumento de palheta simples, furo cónico e construção metálica, o saxofone foi criado pelo belga Adolphe Sax em tomo de 1840. Por sua palheta simples, ele se assemelha à clarineta, e pelo furo cónico, ao oboé, mas o resultado sonoro nada tem a ver com o de qualquer desses dois. Utilizado por Rossini e Berlioz desde sua criação, somente na França o saxofone ganhou lugar nas orquestras, pelo menos até o início do século XX. Mais tarde, a partir de 1920, tornou-se um dos principais instrumentos sofistas da música de jazz. A sonoridade do saxofone é clara e cheia, e sua agilidade pode mostrar-se extraordinária. Há uma família completa de saxofones: sopranino, soprano, alto, tenor, barítono e baixo. É um instrumento transpositor.
Os instrumentos, a orquestra, as vozes
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Saxhorne. Instrumento dotado de pistões inventado por Adolphe Sax em 1843; também ele constitui uma família e deve sua popularidade principalmente às bandas de música (orquestras de metais e percussões que tocam ao ar livre) militares e municipais. Em português é também chamado de fliscorne. FAMÍLIA D O S S O P R O S AGUDO
flautim
MÉDIO
flauta
soprano saxofone oboé
clarineta
saxofone alto
M É D I O GRAVE
oboé d'amore corne inglês
Bassethorn ou cor de basset
saxofone tenor
BAIXO
fagote
clarineta baixo
saxofone baixo
Trompa Em francês, cor, em italiano, corno; em inglês, horn; em alemão, Horn. Instrumento metálico de furo cilindro-cônico, provido de embocadura e pistões. Como indica o nome que se dá em português à versão primitiva desse instrumento, bem como sua designação em francês e em italiano, a trompa tem sua origem em chifres (cornos) e nas presas de elefante (o poema medieval francês La Chanson de Rolland menciona o olifante, trombeta de marfim que os cavaleiros, de modo geral, levavam consigo) e nas grandes conchas de que era feita; esses materiais são utilizados ainda hoje, sobretudo no Oriente. Se aflautasempre foi pastoril ou mágica, a trompa era essencialmente guerreira e aristocrática (e ainda o é na Ásia). Seja ela de madeira, terracota ou metal, é encontrada em todas as civilizações (o cornu romano), sempre com a mesma forma cónica que traz desde a origem. Para que tivesse um som mais profundo, o tubo sofreu diversos alongamentos. Se a trompa de caça (cor de chasse) fosse desenrolada teria 4,50m de comprimento; com seu tubo tantas e tantas vezes recurvado, ela apareceu por volta de 1600 na França. Na trompa natural, quando se modifica a pressão dos lábios sobre a embocadura, obtém-se a série dos harmônicos naturais, vale dizer, uma escala sonora muito imperfeita e muito incompleta. Mas foi desta maneira que a trompa existiu até o século XLX. E foi só em 1760 que um trompista inaugurou a técnica dos "sons fechados", que permitia produzir uma parte dos semitons intermediários. Para que se pudesse tocar em diferentes tonalidades, passou-se, a partir de 1770, a empregar roscas que alongavam (ou encurtavam) o tubo de acordo com a necessidade. Em 1813, o alemão Stõlzel teve a idéia de fixar no instrumento pistões que fecham ou abrem circuitos de diferentes comprimentos, dotando a trompa de roscas permanentes que lhe permitem abordar todas as notas. Daí o nome da trompa moderna: "trompa cromática de pistões".
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Léxico musical explicativo
Além de todas as facetas ligadas a suas antigas funções (evocações de caça, de guerra, daflorestae da vida ao ar livre), a trompa tem um vasto campo expressivo — nobre, poético e mesmo sonhador — bem como um papel preciso na orquestra, onde reforça o registro médio. É um instrumento transpositor. Trómpete Em inglês trumpet; em francês trompette; em italiano, tromba; em alemão, Trompete. Instrumento metálico, com furo cilindro-cônico, munido de embocadura e pistões. Tanto a origem do trómpete, como sua estrutura e os problemas que trouxe aos fabricantes são parecidos com os da trompa. Existe desde os mais remotos tempos da Antigüidade, na Ásia, no Egito, na Grécia e em Roma. Como a trompa, está ligado à guerra, mas tinha uso mais cerimonial do que esta. No entanto, parece ter sofrido uma eclipse não experimentada pela trompa; só vamos reencontrá-lo no Ocidente no século XIII, com o nome de "trómpete sarraceno", que faz supor tratar-se de um caso de importação. Reto no início, tornou-se recurvo no século XVI e, até o século XVIII, participou mais do que a trompa da vida musical, ligado a todas as expressões de glória ou manifestações do poder. Assim como a trompa, por volta de 1770 o trompeté recebeu roscas e, aproximadamente em 1815, ganhou seus pistões, tão característicos dele que, em português, também é conhecido como pistão, sobretudo na música popular. O trómpete não tem a sonoridade da trompa, mas o brilho é uma propriedade sua. Ele é ágil e pode, melhor do que a trompa, executar toda uma sorte de trinados, arpejos e cadências ornamentais. No entanto, é capaz de mostrar grande doçura quando é tocado piano. Também é um instrumento transpositor. Clarino. Pequeno trómpete de nome italiano bastante usado no século XVIII, com sonoridade mais aguda, porém mais doce que a do trompeté. Foi provavelmente para este instrumento que Bach escreveu o Concerto de Brandenburgo n° 2. Cometo 1. Em italiano cornetto; em francês, cornet, em inglês, cometi; em alemão Cornett ou Zink. Instrumento de sopro que esteve em uso até o século XVII. Como o oboé, tinha furo cónico, tubo com orifícios e era de madeira, mas estava provido de uma embocadura, como um trómpete. Com sonoridade doce e clara, foi o instrumento favorito dos italianos no século XVI e no início do século XVII, até o desenvolvimento do violino, que o suplantou em seus empregos. Os cornetos estavam agrupados em família, e os mais longos e graves, por lembrarem a forma da serpente, fizeram com que este nome fosse dado ao baixo do cometo. A serpente — também chamada serpentão — era usada nas igrejas para dobrar a voz dos baixos e, até o século XIX, continuou sendo usada nos meios rurais.
Os instrumentos, a orquestra, as vozes
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2. Registro de órgão: jogo de mutações compostas que comporta cinco tubos por nota e imita a sonoridade do instrumento acima. O registro, destinado a tocar partes de solo, é um dos mais belos do órgão clássico. Cometa de pistões. Instrumento provido de embocadura, furo cónico e pistões, que lembra bastante o trómpete, mas distingue-se deste por ter o furo mais grosso, o tubo mais curto e o pavilhão maior. A sonoridade, um pouco vulgar, está de acordo com as proporções, mas o instrumento é ágil, de fácil emissão, o que explica sua popularidade em todos os orfeões (corais populares mantidos pelas municipalidades ou empresas privadas) no século XIX. De certa forma, caiu em desuso. Trombone Em inglês e italiano, Trompone; em alemão Posaune. Instrumento com embocadura, furo cilindro-cônico e vara, cuja origem é semelhante à da trompa e à do trómpete. A "pré-história" deste instrumento pouco difere da do trómpete, e o próprio nome atesta que têm a mesma filiação (tromba, em italiano). Por sinal, o nome alemão do trombone, Posaune, é também uma deformação de buccina, nome latino do trómpete. Quanto ao seu antigo nome francês, sacqueboute (em português "sacabuxa"), surgiu de sua semelhança com uma arma de assalto que assim era chamada. Na origem, o trombone não passava de uma variante grave do trómpete. Mas, enquanto este último se conservava imutável, o trombone, com a invenção da vara no século XV, recebeu um tipo de aperfeiçoamento que o pôs na dianteira. Daí sua importância em toda a música polifónica que se fez do século XV ao século XVII. Johann Sebastian Bach ainda o utilizava para dobrar vozes em seus corais, mas, ao que tudo indica, tratava-se já de um arcaísmo. O trombone viria a reaparecer com Mozart, Beethoven, Schubert e os românticos. A vara, formada por duas partes que se encaixam, é um recurso que, perrnitindo facilmente o alongamento ou o encolhimento do tubo, dá ao instrumento uma escala cromática, que se interrompe, porém, no meio do seu registro, pela falta de algumas notas. Mas o manejo da vara é mais difícil que o dos pistões que foram acrescentados à trompa e ao trómpete no século XIX. O trombone é o instrumento grave dos metais. Sua sonoridade tem um poderio e uma majestade que dominam toda a orquestra. Tuba Tem o mesmo nome em alemão, inglês, italiano e francês. De furo cónico, com embocadura e pistões, este instrumento grave, cujo nome vem do latim tuba (trómpete), apareceu no século XIX. Aperfeiçoado por Sax, o inventor do saxofone, ele se parece com a trompa, mas o furo é cónico em toda a extensão do tubo. A execução da tuba é relativamente simples, e seu emprego mais habitual é limi-
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Léxico musical explicativo
tado quase só ao papel de baixo da família dos metais, se bem que suas possibilidades sejam mais variadas. Bugie. Em alemão, Flügelhorn; em inglês, flugel horn; em francês, bugie; em italiano, fli corno. Instrumento da família da tuba, que atua no registro médio. Cornamusa ou gaita de foles Em francês, cornemuse; em inglês, bagpipe; em alemão Sackpfeife; em italiano, cornamusa, piva ou zampogna. Instrumento de foles, que se destina a ser tocado ao ar livre. É constituído por vários tubos com palhetas fixados em um saco, em geral feito de pele de carneiro, que armazena o ar. Um dos tubos destina-se ao sopro do exécutante, os outros (prima e bordões) servem para produzir os sons diversificados pelo escapamento do ar.
Os instrumentos, a orquestra, as vozes
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Harmonio ou órgão de sala. Em francês, inglês e alemão, harmonium. Órgão de palhetas livres, com um ou dois teclados e pequeno número de registros, cuja folaria (se não for elétrico) é acionada através de pedáis. O harmonio foi inventado por Alexandre Debain em 1842. Na falta do órgão, é um instrumento comum nas igrejas, e pode também ser visto em algumas residências, mas distingue-se fundamentalmente do órgão pela ausência de tubos.
O ÓRGÃO
Museta. Em francês, musette. Instrumento de foles, de origem francesa, pouco diferente da cornamusa; o tubo da folaria, com embocadura, foi nele substituído por um fole que o tocador aciona com a mão direita. Muito em voga nos séculos XVII e XVIII, foi depois suplantado pelo acordeão. Deu o nome à musette, dança francesa que freqüentemente acompanhava, de caráter pastoril, ritmo variável, sempre em três partes.
Diz-se que o órgão é o rei dos instrumentos. Decerto é o mais polivalente: é a soma de tudo o que se pode fazer com os instrumentos de sopro. Por outro lado, o órgão é o resultado mais refinado da combinação da ciência empírica com a engenhosidade artesanal. Fica-se perplexo quando se constata que, no fim da Idade Média— numa época em que a "mecânica" não existia, em que a ciência acústica estava por nascer, em que o arado ainda era uma ferramenta primitiva, em que nem o papel nem a imprensa sequer tinham sido imaginados, e em que todos os outros instrumentos de música estavam em sua infância —, o órgão já possuía todas as características que tem hoje, com toda sua complexidade!
Regai
DESCRIÇÃO
Em francês, régale. Instrumento de foles e teclado, espécie de órgão portátil, com palhetas metálicas e batentes, e de sonoridade rouca, que caiu em desuso no início do século XVIII. Emprestou seu nome a um registro de órgão. Algumas invenções do início do século XIX Acordeão. Em alemão, Akkordeon ou Ziehharmonika; em francês, accordéon; em inglês, accordion; em italiano, fisarmónica. Instrumento portátil dotado de fole e palhetas livres metálicas, cuja ventilação, proporcionada pelo fole controlado manualmente, produz sons que são selecionados pelo acionamento de um teclado. Posteriormente, o acordeão passou a ter dois teclados, o do acompanhamento e o do solo. Foi inventado por um austríaco de nome Demian, que o patenteou em 1829, depois de muitas pesquisas, realizadas em diferentes países, entre as quais as do alemão Friedrich L. Buschmann. Teve uso mais generalizado na música popular, mas muitos compositores eruditos, entre os quais Jean Wiener, que escreveu um Concerto para acordeão, não desdenharam compor para esse instrumento. Harmônica ou gaita de boca. Em francês, alemão e inglês, harmonica. Pequeno instrumento de sopro, provido de palhetas livres metálicas, que se toca com a boca. Foi inventado por Friedrich L. Buschmann em 1828, um ano antes do acordeão.
Os principais elementos do órgão 1. Afolaría: os pulmões. 2. Os tubos. Não devemos fiar-nos naquilo que vemos: um grande órgão possui, por trás de sua fachada (a mostra) milhares de tubos que medem desde 10,40 metros de altura (32 pés) até um centímetro (3/8 de uma polegada). Os tubos achamse agrupados por famílias, chamadas "registros" ou "jogos", que produzem a extensão de uma escala cromática completa. 3. Os someiros. São um tipo de caixa que fica entre a folaria e os tubos. Os someiros recebem o "vento" (o ar) e o distribuem por canais alongados, ditos gravuras, onde existem furos destinados a receber, em cada um, o pé de um tubo. Estes furos, se a tecla não for tocada, ficam fechados por válvulas (sopapos). 4. A consola, ou console. É a peça que suporta os teclados ou manuais (estes em número de um a cinco, ou, mais habitualmente, dois ou três) e a pedaleira. 5. A transmissão: complexo dispositivo mecânico que sai da consola e põe para funcionar três séries de mecanismos: (a) comandos de registros: ao puxar um "registro" (ou seja, acionar determinado puxador, no console) o organista faz passar o. "vento" pela gravura que corresponde a todos os tubos de uma mesma família;
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(b) comandos que ligam a tecla à abertura dos sopapos: quando um "registro" é puxado e o ar chega à gravura correspondente a uma família de tubos, a tecla que for abaixada fará "soar" o tubo que corresponde à nota escolhida, enquanto os outros tubos permanecem silenciosos; (c) as cópulas dos manuais uns com os outros. A transmissão, feita até o século XX por um prodigioso conjunto de pequenas varetas de madeira leve e fios de metal, é das partes mais complexas desta fábrica de sons que é o órgão. Hoje, é feita por transmissão elétrica, o que permite ao organista manter-se a certa distância dos tubos. Mas a transmissão elétrica, no dizer de alguns, não conserva todas as qualidades da transmissão mecânica.
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3. Jogos de palheta. São aqueles em que uma lingüeta de metal vibra contra uma ponta ou bico no interior do pé do tubo. Possuem sonoridade vigorosa, de timbre alto, e podem ser empregados em solos ou como base para um grande tutti: (a) trompeté; (b) cromorno; (c) museta. A arte do organista consiste, antes de tudo, em saber dosar, na registração (escolha dos registros), a afiança ou oposição dos jogos em função da obra que interpreta. ETAPAS DA HISTÓRIA DO ÓRGÃO
Os diferentes jogos No que diz respeito à produção de sons, vamos reencontrar no órgão as principais características dos instrumentos de sopro. Os registros ou jogos distinguem-se de acordo com: (a) o modo como são produzidos os sons: tubo de palheta (cf. clarinete) e tubos flautados ou tubos de boca (cf.flautadoce); (b) a forma dos tubos: cilíndricos (largos ou estreitos) e cónicos. Os tubos são geralmente de metal (estantío e chumbo), às vezes de madeira. Por pertencer o órgão a esferas extremamente conservadoras, continua-se ainda hoje a medir os tubos em pés e polegadas e a denominar um jogo segundo o comprimento de seu tubo mais alto. Por exemplo: um jogo de 32 pés (10,40m), um jogo de 16 pés, um jogo de 8 pés, um jogo de 4 pés. Um jogo de 8' soa de acordo com a nota escrita; um de 4' soa na oitava acima; um de 16' na oitava abaixo. Assim, se forem puxados os registros de 16' + 8' + 4', serão ouvidas três oitavas tocadas simultaneamente por uma mesma tecla. Os jogos se dividem em três grandes classes, de características bem definidas: 1. Jogos de fundo on fundos do órgão. Tubos de boca de diferentes séries de tamanho, cujos timbres são diferenciados pela maior ou menor largura do tubo, pelo tamanho da abertura de sua extremidade e por diversos artifícios, como pavilhões, "chaminés" etc. Os principais jogos de fundo são: (a) montra (grandes tubos da fachada), (b) flautas (tubos largos, som doce e arredondado), (c) gambas (tubos estreitos, som mais incisivo) e (d) bordões (tubos fechados, som doce e velado). 2. Jogos de mistura. Muitos tubos estão associados a uma mesma nota, que, quando tocada, se faz acompanhar por seus harmônicos, de modo a produzir uma sonoridade mais rica: (a) "cheio" do órgão ou órgão pleno: três a cinco fileiras de tubos para cada nota, acrescidas aos fundos do órgão, é usado para obter-se uma sonoridade rica, poderosa, brilhante; (b) címbala: tutti menor que o anterior; (c) corneta: registro solista que tem de cinco a dez fileiras de tubos para cada nota e possui uma doce e variada gama sonora.
A flauta de Pã, a siringe dos gregos e da América do Sul, sugere que, desde os mais remotos tempos, já se pensava em um alinhamento dos tubos, que permitisse uma emissão sucessiva de diferentes sons. No entanto, o órgão de boca, típico das montanhas do Camboja e do Laos, é uma cabaça munida de vários tubos que soam simultaneamente. Seria esta a origem do órgão ocidental, que nos teria chegado através da China? O instrumento mais antigo mencionado na Bíblia é o órgão, e o primeiro de que há notícia vem do Egito, data do século III a.C. é tinha folaria hidráulica. Em Bizâncio e na parte oriental do Mediterrâneo, desde longa data se tocava órgão, enquanto o Ocidente ainda o desconhecia. No século VIII, o imperador Constantino V ofereceu a Pepino, o Breve, um instrumento que talvez fosse um órgão; posteriormente, Carlos Magno mandou construir um instrumento parecido, que teria sido o primeiro órgão ocidental. Durante a Idade Média, foram usados pequenos órgãos positivos ou portáteis. A evolução se fez no sentido do enriquecimento da sonoridade, quando, para cada nota, começou-se a pôr várias fileiras de tubos para cantar simultaneamente: é o aparecimento do tutti. Com a amplidão das catedrais, o órgão avantajou-se, chegando a ter 32 pés já no século XIV. No Renascimento, a evolução foi inversa: buscaram-se jogos que fossem capazes de expressar o detalhe: veio a invenção dos someiros de registros, que permitem isolar um ou outro jogo, foram criados os jogosflautadose aprimoradas as palhetas. O século XVII é o primeiro grande século do órgão, que alcança então o seu equilíbrio. Os tutti são aperfeiçoados e os jogos de mistura solistas tornam-se mais puros. Diversas tendências surgem. Na França, o órgão é rico de timbres, opondo aos elaborados jogos sofistas o brilho dos "cheios"; seu apogeu se dá por volta de 1670-1700. Na Alemanha, prevalece um instrumento não tão timbrado, porém mais homogêneo e adequado à polifonia, já com uma pedaleira mais desenvolvida. A Itália se mostra mais tímida, com seu órgão ripieno, de um ou dois teclados e sem pedaleira independente. Já a Espanha gosta das palhetas brilhantes, e a Inglaterra segue a França. No século XVIII aperfeiçoou-se o órgão clássico, sem inovações. No século XIX, o advento do romantismo trouxe profunda transformação. Aos registros claros e
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bem timbrados prefere-se uma concepção "orquestral", mais fundida, e, em certos casos, o "colossal". É a época do grande fabricante Cavaillé-Coll (Notre-Dame de Paris, Saint-Sulpice, Sheffield, Amsterdã), mas — fato não tão auspicioso — é também a época em que "voltam à moda" os órgãos clássicos, muitas vezes desfigurados. Com o século XX, vieram numerosos aperfeiçoamentos técnicos (a transmissão eletropneumática, por exemplo). Por outro lado, observa-se uma tendência "neoclássica" bem nítida, restabelecidos os órgãos antigos no estado primitivo, sem transformações. Para concluir, é preciso ter sempre em mente que cada órgão resulta de uma concepção particular e artesanal, e que não há dois instrumentos exatamente iguais, ainda que tenham sido obra de um mesmo fabricante: os órgãos dependem do tamanho do lugar em que estão, de certas técnicas particulares, do número de jogos e do equilíbrio destes. Por isso, um organista deve sempre adaptar-se ao instrumento que vai tocar, mesmo se for executar as mesmas peças.
OS INSTRUMENTOS DE CORDAS TANGIDAS O ancestral comum dos instrumentos de cordas tangidas parece ser o arco musical. No entanto, é na África que se pode seguir com mais clareza o caminho que leva do arco musical à harpa, por um lado, e à guitarra, por outro. O arco musical é encontrado na África negra: a boca do músico ou uma cabaça serve como ressonador. Vários arcos fixados numa mesma cabaça poderiam ser vistos como o embrião da harpa, bem como uma cabaça com uma corda distendida sobre ela poderia ser algo equivalente a uma guitarra elementar (monocórdia). Harpa Em alemão, Harfe; em francês, harpe; em inglês, harp; em italiano, arpa. Desde o terceiro milênio a.C. pode a harpa ser atestada em todo o antigo Oriente, bem como no Egito e na Suméria, ainda na forma de um arco musical de três a sete cordas. Era o instrumento das mulheres e dos cegos no Egito, onde, no Novo Império, já se viam harpas com quatro cordas e medindo dois metros de altura. A harpa do rei hebreu Davi deriva, sem dúvida, da harpa egípcia. Não muito mais tarde, a forma em arco foi substituída pela forma triangular (Fenicia), que subsistiria. Mas o mundo islâmico haveria de abandoná-la. O Extremo Oriente a ignorou. E o Ocidente antigo preferiu a lira. A partir da alta Idade Média, a harpa reapareceu no mundo escandinavo, céltico e germânico. Entre os celtas (os primitivos habitantes da Irlanda e do País de Gales), a harpa jamais chegou a cair em desuso.
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A harpa permaneceu até o século XVIII como um instrumento secundário, limitado ao diatonismo, apesar de alguns esforços no sentido de aperfeiçoá-la. A harpa cromática de pedal, que permite executar sustenidos e bemóis, apareceu no fim do século XVII, mas seu uso só se difundiu na metade do século XVIII. Foi na França que tocar harpa se tornou moda (era o instrumento de Maria Antonieta e de Madame de Genlis, uma virtuose da época). Foi também na França que Sébastien Érard, por volta de 1800, fez o aperfeiçoamento definitivo do instrumento. Teoricamente falando, o sistema da harpa é simples: há sete pedáis que permitem elevar ou abaixar em um semitom cada uma das sete notas da escala, de uma só vez, em todas as oitavas (em todos os dós, todos os rés, etc). Com suas 46 cordas, a harpa tem extensão de seis oitavas e meia (quase tanto quanto o piano). A sonoridade da harpa é quente, aveludada, luminosa; os arpejos, que lhe devem o nome, assentam-lhe particularmente bem, tanto quanto todas as formas de glissando, o que contribui para seu maior encanto e doçura. É, ao que se diz, um instrumento feminino... embora "o Harpista" seja um célebre personagem do Wilhelm Meister, de Goethe. Lira Em italiano lira; em inglês e francês, lyre. Instrumento de cordas tangidas ou dedilhadas, conhecido em toda a alta Antigüidade, na Mesopotamia, no Egito, na Palestina e sobretudo na Grécia, onde adquiriu seu nome. A lira era formada por uma carapaça de tartaruga que funcionava como caixa de ressonância, de onde partiam dois chifres de cabra unidos por uma travessa. Foi feita primeiramente com sete e, mais tarde, com doze cordas. A mitologia atribui a invenção da lira a Apoio (como acontece com a flauta, cuja origem é atribuída ao sátiro Mársias), que a teria transmitido a Orfeu, o qual, por sua vez, teria ensinado os homens a tocá-la. Alaúde Em inglês, lute; em francês, luth; em italiano, liuto; em espanhol, laud; em alemão, Laute. O alaúde e a guitarra estão unidos por uma origem comum, por sinal obscura. Instrumentos arcaicos do gênero do alaúde e da guitarra foram encontrados em todos os continentes, mas é provável que fossem mais cultivados na Ásia (China e India). No Egito, estão representados nos baixos-relevos do Médio Império. O alaúde (de fundo abaulado) e a guitarra (de fundo plano) apareceram na Idade Média mais ou menos na mesma ocasião, mas só o alaúde deixa clara sua origem mourisca (al'ud). Contudo, o desenvolvimento da guitarra na Espanha e seu nome medieval (guitarra moresca) parecem indicar a mesma filiação, apesar de observarse certa conexão com a palavra grega cithare (cítara).
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O alaúde, cuja caixa tem a forma de uma pêra cortada ao meio, é dotado de pares de cordas, que podem ser em número de cinco, seis, dez e até quatorze. Foi um dos favoritos entre os instrumentos do Renascimento e do século XVII. Sua influência sobre o desenvolvimento da música mostrou-se considerável (tomada de consciência da harmonia, desenvolvimento do canto solista acompanhado, nascimento da suíte instrumental). A escrita para o alaúde fazia-se em um tipo especial de notação denominado tablatura. No final do século XVII, o alaúde pouco a pouco entrou em declínio, até que foi suplantado pelo cravo no início do século XVIII. A sonoridade do alaúde é doce, cheia, sonhadora. É, por excelência, o instrumento da música intimista.
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recida com a do alaúde. Mas enquanto este se desenvolveu, principalmente nos séculos XVI e XVII, quando recebeu várias melhorias, a guitarra conservou-se sempre mais simples. Não deixou, porém, de ser tocada por grandes músicos dessa época e foi muito popular em todas as classes sociais {"sitost levé ma guitare je touche", dizia Ronsard). Diferencia-se a guitarra do alaúde pelo fundo plano, a largura da caixa e suas seis cordas simples. Possui sonoridade mais brilhante, é dotada de grande diversidade de timbres e expressões, além de facultar maior velocidade às execuções. É instrumento muito popular na Espanha, de onde saiu, durante o Renascimento, para difundir-se pela França e depois pela Europa. Mas seu repertório é essencialmente espanhol. Paganini tocava guitarra com a mesma mestria que demonstrava ao violino. 1
Tiorba ou arquialaúde É um alaúde de dimensões um pouco maiores, em cujo longo braço se assenta uma dupla série de cordas: as do alaúde e outra série de cordas mais compridas, que permitem a emissão de notas graves. Tais mudanças fizeram-se necessárias por causa do desenvolvimento do baixo contínuo no século XVII.
Vihuela Instrumento intermediário entre o alaúde e a guitarra, com seis fileiras de cordas duplas. Durante o século XVI, antes de ceder lugar à guitarra, foi o mais popular dos instrumentos na Espanha.
Guitarrone Nome italiano de uma grande tiorba, de braço descomunal (dois metros); é uma espécie de alaúde baixo que permitia acompanhamentos tão densos como os do cravo (século XVII). Mandora ou alaudina Em francês, mandore; em italiano, mandola ou pandurina. Pequeno alaúde. Bandolim Em francês, mandoline; em inglês, mandolin; em italiano, mandolino. Instrumento descendente do alaúde, do qual conservou a forma e as cordas dispostas aos pares, que, no bandolim, são metálicas e tangidas com um plectro. Também chamado mandolim ou mandolina, é o único instrumento da família do alaúde que sobreviveu, especialmente na Itália, onde é bastante popular desde o século XVIII. Existem vários tipos, com pequenas diferenças: bandolim napolitano, bandolim português, bandolim americano, etc.
OS INSTRUMENTOS DE CORDAS FRICCIONADAS O princípio da corda friccionada é conhecido há muito tempo em toda a Ásia e no mundo árabe (rebab). Quanto à sua aparição no Ocidente, é difícil saber-se ao certo: supõe-se que não tenha sido posto em prática na Antigüidade greco-romana, no Egito ou no antigo Oriente Próximo. Na lenda, a invenção do arco é atribuída a Ravana, rei de Lanka e um dos heróis do Ramayana, a célebre e lendária epopéia indiana: é, em todo caso, provável que as cordas friccionadas tenham origem asiática. Viela e rabeca É com estes dois nomes que os instrumentos de arco aparecem nas üuminuras e esculturas da Idade Média e, às vezes, também com os nomes de rota (do latim rota) ou giga (do francês gigue). A viela — em francês, vièle ou vielle; em latim medieval vécla; em inglês, tiddle —tem o corpo plano, com o braço feito de uma peça presa a este corpo. É preciso
Guitarra ou violão Em espanhol, guitarra; em francês, guitare; em inglês, guitar, em italiano, chitarra; em alemão, Gitane. Mais conhecido como violão em Portugal e no Brasil, é talvez o principal instrumento da música popular brasileira. A origem da guitarra é pa-
"Logo que me levanto, toco minha guitarra". Poeta renascentista francês do século XVI, Pierre de Ronsard (1524¬ 1585) integrava o grupo dos poetes de La Pléiade, com Joachim Du Bellay e cinco outros. Dito "o príncipe dos poetas", Ronsard influenciou significativamente os rumos da música na Franca em meados do século XVI (Cf. adiante, neste livro, Parte II, "A música no século XVI: Europa do Norte, Franca, Itália e Espanha"). (N. T.)
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não a confundir com a viela de roda, na qual o arco é substituído por uma roda acionada por uma manivela: este, um instrumento bem mais primitivo, é o que é tocado pelo Leiermann — o tocador de viela de roda —, do ciclo de Lieder intitulado Winterreise [Viagem de inverno], de Schubert. A viela era o instrumento usado por pessoas de certa educação musical, pertencentes à sociedade letrada medieval: abades, cavaleiros, trovadores, etc. Já a rabeca (rebab, em árabe) — em francês rebec, em espanhol, rubebe; em italiano ribecche; em alemão, Heine Geigen — é um instrumento sem braço, constituído por uma peça inteiriça em forma de pêra, com três ou quatro cordas. De caráter popular, sobreviveu por muito tempo nos meios interioranos. Em português, o nome rebeca, ou rabeca, designa genericamente os ancestrais medievais do violino, mas também o instrumento do gênero do violino, mas de timbre mais grave, ainda em uso na música popular de diversos países, inclusive o Brasil (congadas, reisados, etc), aproximando-se, neste sentido também, do inglês fiddec. A família das violas Em inglês, viol; em alemão Gamba; em francês, viole. A viola é um instrumento muito mais evoluído do que os dois últimos e só apareceu no século XV. Trata-se, na verdade, de uma família completa: Viola de braço (viola da braccio) • Descante de viola: espécie de viola sopranino, tem praticamente a mesma tessitura do violino (em francês, pardessus de viole) • Viola soprano: uma quarta mais baixo que o violino (em francês, dessus de viole) • Viola alto: tem a mesma tessitura que a viola de orquestra atual (em francês, alto de viole) Viola da gamba (viole de gambe) • Viola tenor: tessitura a meio-caminho entre a viola atual e o violoncelo (em francês, taille de viole) • Viola baixo: tem a mesma tessitura do violoncelo (em francês, basse de viole) Viola contrabaixo ou contrabaixo de viola (violone) As três primeiras violas são tocadas com o instrumento mantido sobre os joelhos do músico. As três outras ficam entre as pernas, sem encostar no chão, menos o violone, que se apóia no chão. As violas têm seis cordas (na França, algumas vezes mais); o braço está dividido em trastes, como o da guitarra; o arco é empunhado com a mão pelo lado de fora dele e voltada para baixo. Este instrumento, sobretudo a viola baixo, tem uma sonoridade doce, delicada e extremamente sutil. Contou com fervorosos adeptos nos séculos XVII e XVIII; por longo
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tempo, essas violas foram preferidas ao violino. A família das violas freqüentemente era usada em consort (conjunto instrumental), um pouco como um quarteto de cordas. Viola d'amore. Nome italiano de uma viola tenor dotada de seis cordas principais, tocadas com arco, e de outras cordas simpáticas que vibram por ressonância; disto resulta uma sonoridade suave e um tanto misteriosa. O nome lhe vem de sua origem mourisca: deformação de viola da more ("de mouros", em italiano). Por analogia, o oboe d'amore, que tem, como a viola d'amore, o registro mediano e uma sonoridade velada, tomou este nome. A família do violino Em inglês, violin; em francês, violon; em italiano, violino; em alemão, Violine ou Geige. O violino apareceu por volta de 1520, mas os mais antigos instrumentos que chegaram até nós datam do fim do século XVI. A ciência empírica dos artesãos de antigamente é motivo de admiração quando se pensa que, após séculos de pesquisa e trabalho que separam o violino assinado por Linardo em 1581 e os de hoje, nada se encontrou que valesse a pena mudar no instrumento: acrescenta-se ou corta-se um centímetro no comprimento, um ou dois milímetros na espessura, melhora-se o verniz e pronto. Qualquer tentativa de inovação mostrou-se inútil: a forma, as dimensões, o peso, a estrutura, a montagem (há, no violino, 71 peças coladas) foram fixadas milimétricamente, em seus mínimos detalhes, há quatro séculos. Os grandes luthiers que asseguraram a predominância do violino foram os artesãos italianos que viveram no século XVII na cidade de Cremona, onde trabalharam Andrea Amati e seus filhos, e depois Stradivari (1644-1737) e os sucessores destes últimos. ELEMENTOS DO VIOLINO • O tampo harmônico, construído com madeira de pinho, tem três milímetros de espessura, um contorno cortado com goiva e dois furos em forma de f, que são os ouvidos. • O fundo é construído em madeira de bordo. • As costilhas são os lados. • A alma é um pequeno cilindro de seis milímetros de diâmetro, não colado, que une a parte interna do tampo ao fundo, e cuja localização tem grande importância para a sonoridade. • O braço, feito de madeira de bordo, é cortado numa peça única em cuja extremidade há um acabamento em forma de voluta, herança do gosto barroco. • O ponto, em madeira de ébano, está colado na parte de cima do braço. • As cravelhas, em ébano, são as peças onde as cordas se enrolam e são afinadas.
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• O cavalete, de madeira de bordo, é a peça onde as cordas se apóiam no centro do tampo: tem dois milímetros de espessura na aresta superior e é talhado à perfeição; sua espessura e dimensões, calculadas milimétricamente, influem de maneira considerável na sonoridade: é o cavalete que comunica as vibrações ao tampo. • As cordas são em número de quatro, das quais uma ou duas feitas de tripa de carneiro ou fio metálico; as cordas suportam uma tensão de trinta quilos e a pressão sobre o cavalete é de doze quilos. • Os filetes decorativos contornam todo o tampo e são formados por 24 peças coladas. • O arco, que há séculos mede exatamente 75 centímetros, tem uma espessura de seis milímetros no talão e 5,3 milímetros na ponta, feito em madeira de Pernambuco. É provido de crina de cavalo (o náilon revelou-se umfiasco...)e pesa 65 gramas. As crinas são recobertas de colofônio, uma resina obtida a partir da essência de terebintina, o que lhes permite aderir às cordas e fazê-las vibrar. 1
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A sonoridade do violino — mais rica e mais brilhante do que a das violas em voga no século XVII — foi não só a causa de seu sucesso (na Itália), como também da desconfiança que, por muito tempo, despertou nos músicos ("Nous appelons violes celles desquelles les Gentil-hommes, Marchantz et autres gens de Vertuzpassent leur temps... et le violon... pour conduire quelques noces ou mômeries", Philibert Jambe de Fer, 1556). Foi na qualidade de instrumento para danças que o violino ingressou na corte, através de "Les 24 Violons du Roi". Depois disso, graças a Lully, o violino se impôs à orquestra por volta de 1660. Foram os italianos que lhe deram foros de nobreza, fazendo dele o instrumento de predileção do concerto. Sua supremacia afirmou-se desde então, mantendo-se já há três séculos, sem dar qualquer mostra de enfraquecimento. O violino se tocava antigamente de maneira bastante livre. A posição do instrumento sob o queixo só se estabeleceu aos poucos. É uma posição racional, mas quantas dificuldades, sobretudo para a mão esquerda! A mão direita está imobilizada pelo manejo do arco, e o pulso da esquerda só serve como suporte; restam quatro dedos, que devem trabalhar numa posição recurvada, antinatural, virados ao contrário, e têm de fazer tudo: "calibrar" a nota, dar-lhe os sons brilhantes dos vibratos, etc.
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Viola. Em inglês, viola; em italiano, viola; em francês, alto; em alemão, Bratsche, de viola da braccio. A viola é um violino mais avantajado e soa uma quinta abaixo do violino. Longe de ser um parente pobre, a viola tem individualidade, com seu timbre caloroso, algo velado, mais terno e mais predisposto à melancolia do que o do violino. Violoncelo. Em italiano e inglês, violoncello, ou o diminutivo "cello"; em francês, violoncelle, em alemão, Violoncell. O violoncelo soa na oitava grave da viola, mas não reproduz em sua forma exatamente as proporções do violino; é seguro verticalmente e apóia-se no chão pelo espigão. Tem menos agilidade que o violino, mas uma grande extensão, e seu som é aveludado, bem timbrado. Apesar destas qualidades, o violoncelo teve dificuldade de destronar a viola baixo: em 1750, ainda não havia sido bem aceito na França. Foi Boccherini (cerca de 1765) que fez do violoncelo um instrumento apreciado e o impôs para sempre. Contrabaixo. Em italiano, contrabasso, em francês, contrebasse, em inglês, doublebass; em alemão Kontrabass. Soa na oitava grave do violoncelo e serve, na orquestra, para reforçar a sonoridade de base. O instrumentista toca de pé, e a extensão considerável dos intervalos que sua mão esquerda tem de abranger ao longo do braço do instrumento não permite grande velocidade. A força e a robustez da sonoridade lhe dão peso e valor.
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No violino e nos instrumentos da mesma família, emprega-se a surdina, pequeno dispositivo de chifre ou metal que se coloca sobre o cavalete para atenuar as vibrações. Por analogia, este nome é também dado ao pedal esquerdo do piano. O pizzicato é o procedimento que consiste em pinçar a corda com os dedos sem o recurso do arco. "Chamamos violas àquelas de que se servem os gentis-homens, mercadores, e toda gente de bem, para passar seu tempo... e o violino... para acompanhar casamentos ou folias" (Philibert Perna de Ferro, 1556). (N. T.) Conjunto de 24 instrumentos da família do violino que existia na corte de Luís XTV, por ocasião da chegada da ópera à França. (N. T.)
Alguns instrumentos mais raros Arpeggione. Nome italiano do instrumento de seis cordas e arco, inventado em 1823 pelo luthier vienense J.G. Staufer, que lhe deu o nome de guitare d'amour. Schubert escreveu para piano e arpeggione a Sonata D 821, que hoje faz parte do repertório dos violoncelistas, já que o arpeggione não se conseguiu impor. É também chamado de guitarra-violoncelo. Viola bastarda ou viola-lira. Instrumento antigo de cordas, parecido com a viola baixo, que possuía de seis a sete cordas de tripa e de nove a 27 de metal, estas últimas ditas "cordas simpáticas". Entre 1766 e 1775, Joseph Haydn escreveu 175 obras para este instrumento, pelo qual se tomara de amores o príncipe Esterhazy, seu patrão. É o barítono da família das violas da gamba, intermediário entre a viola tenor e a viola baixo. Tromba marina. Nome italiano de um instrumento de uma só corda, com aproximadamente dois metros de altura, tocado com arco, que produz somente os sons harmônicos, com timbre brilhante e metálico. Por causa de seu grande tamanho, foi objeto da cobiça do "Bourgeois Gentilhomme", protagonista da comédie-ballet homônima de Molière.
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OS INSTRUMENTOS DE TECLADO É comum, hoje em dia, falar-se do cravo como se ele fosse um "antecessor" do piano. Nada mais falso: são duas filiações distintas em tudo. O próprio princípio do instrumento é inteiramente diferente nos dois casos, como se pode perceber de imediato pelo quadro da página 25.0 piano suplantou o cravo porque correspondia melhor a certo tipo de sensibilidade própria ao final do século XVTJI. Na verdade, os dois coexistiram por algum tempo, mas isto não significa que o piano tenha nascido a partir do cravo. São apenas primos e têm um ancestral comum: um instrumento utilizado até hoje no Oriente e na Grécia, derivado da harpa e formado por uma base de madeira sobre a qual se acham distendidas algumas cordas. Estas podem ser arranhadas com a unha ou com um plectro, que pode ter formas diferentes e ser feito de materiais também diferentes. Trata-se do saltério {psalterion) dos gregos (o nome grego deriva do próprio ato de arranhar). Com este formato e tocado deste modo, passou o saltério ao Ocidente medieval. Entretanto, suas cordas, ao invés de arranhadas, podem ser percutidas com dois pequenos malhos ou maços, produzindo um som mais doce e revelando possibilidades totalmente diferentes. Há referências a este segundo instrumento na Idade Média, tanto com a designação de saltério (fonte de confusões!), como com os nomes de dulcimer (nome inglês, do latim dulce meios), manicórdio (manicordion), timpanão (tympanon) e até mesmo com o de zimbalão ou cimbalom (cymbalum), um instrumento medieval que chegou à idade moderna e é tocado particularmente na Hungria; suas cordas são percutidas por duas baquetas manejadas pelo instrumentista. O cravo deriva do instrumento de cordas arranhadas (impropriamente ditas "pinçadas") a que foram adaptados um mecanismo e um teclado. O piano deriva do instrumento de cordas percutidas, tendo o dulcimer como seu antepassado. Por motivos cronológicos, convém começar pelo cravo. Cravo e espineta Por volta do século XV, o cravo aparece sob uma forma mais reduzida, chamada espineta, cujo primeiro exemplar conhecido data de 1493. Por que este nome? Foi tirado do espinho que arranhava a corda... Em teoria, o princípio é simples, mas a execução é muito delicada. As cordas, como no saltério, estão esticadas horizontalmente. Cada tecla levanta uma pequena peça de madeira disposta na vertical, denominada saltarelo ou lámela, à qual estáfixadauma ponta (o espinho), feita do fragmento de uma pena de corvo, que belisca a corda ao passar por ela. Toda a astúcia está no engenhoso mecanismo que permite à ponta retornar à posição, sem que, na sua descida, volte a beliscar a corda... Tão delicada quanto este mecanismo é a escolha do lugar exato onde a corda deve ser beliscada ou, "pinçada", para melhor soar.
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Os instrumentos, a orquestra, as vozes
Os instrumentos de teclado Cordas distendidas sobre uma caixa de ressonância de madeira As cordas
As cordas
são arranhadas com
são percutidas
a unha ou com um plectro
com pequenos martelos
SALTÉRIO (Bíblia, Oriente, Grécia, Espanha, Idade Média)
DULCIMER (Timpanão, Cimbalom) Idade Média
Introdução do teclado e do mecanismo que arranha as cordas
Introdução do teclado e transmissão direta da tecla ao martelo
ESPINETA
CLAVICORDIO
século XV
século XV
Introdução de um segundo teclado: possibilidade de registro
Invenção do escape
CRAVO
PIANOFORTE
séculos XVI-XVIII
meados do século XVIII
Invenção do duplo escape, introdução de pedáis, etc. PIANO Início do século XIX
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Léxico musical explicativo
A espineta de pequenas dimensões é retangular e colocada sobre uma mesa. Se for de tamanho maior, ela tem forma trapezoide e é provida de pés. Este instrumento teve uma modesta carreira até o século XVIII, paralelamente ao cravo, assim como o piano de armário ou vertical acompanhou a do grande piano de concerto. O cravo surgiu no século XVI, com dimensões maiores que as da espineta: já tinha a forma, embora não tão pesada, do nosso piano de cauda. Porém, diferentemente da espineta, o cravo tem um segundo jogo de cordas, que toca em oitava; por analogia com o órgão, este jogo de cordas denomina-se "quatro pés" para distinguir-se do outro jogo, que é chamado de "oito pés". Os fabricantes Rückers, de Antuérpia, estão na origem deste aperfeiçoamento que, como o órgão, iria permitir ao cravo "registrar". Muito rapidamente, sempre como no órgão, um segundo teclado veio sobrepor-se ao primeiro, ficando então completo o instrumento, no que diz respeito às suas principais possibilidades expressivas. Uma série de sutilezas de fabricação (tipos de material, modo do ataque à corda e certas delicadezas de feitura) fizeram com que, durante o século XVII, o cravo viesse a alcançar sua perfeição. A família Rückers destaca-se entre os fabricantes de cravos, tanto pelos instrumentos dotados de admirável amplitude sonora, como pelo esplendor da fabricação e da parte decorativa, confiada a grandes artistas da época. O século XVIII trouxe poucas melhorias: o som do cravo tornou-se mais límpido e mais fraco. Em todo o caso, este era o gosto da época. Como aconteceu com o órgão, tudo já estava pronto no cravo por volta de 1700. Não é verdade que o cravo tenha uma sonoridade afetada e seca. Ele possui belos baixos profundos e uma admirável riqueza, ou plenitude, de sons... A falha do cravo (que é também a do órgão) está em que não é possível agir diretamente sobre a corda para fazer um crescendo ou um decrescendo. Mas a possibilidade de "registrar", ou seja, de fazer oposições e contrastes de timbres, está mais de acordo com a estética da época que promoveu sua criação. A mudança desta estética e deste gosto, e o desejo de um fraseado provido de nuanças, deslocaram as preferências, cada vez mais, para uma outra família: a das cordas percutidas. Daí a pesquisa que acabou por conduzir ao "pianoforte" (o próprio nome já indica a que ideal o novo instrumento vinha responder) e, em conseqüência, ao abandono do cravo. Após um século e meio de esquecimento, faz-se, em nossos dias, justiça ao cravo e aos numerosos fabricantes que — depois de haverem construído, no início do século, o primeiro cravo moderno — vêm trabalhando para tornar novamente o cravo um instrumento vivo. Graças às numerosas obras que lhe têm sido consagradas por muitos músicos contemporâneos, o cravo passa hoje por um renascimento inesperado, tendo-se elaborado um estilo original de tocá-lo, que não deixa entrever qualquer sombra de arcaísmo.
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Virginal. Pequena espineta usada na Inglaterra, principalmente por moças; daí o seu nome. Mas a palavra quase sempre designa, naquele país, qualquer instrumento de teclado e cordas pinçadas ou beliscadas. Do clavicordio ao piano Do dulcimer de cordas percutidas deriva a família de instrumentos cujo último rebento é o piano. O primeiro membro dessa família foi o clavicordio, que parece ter surgido no século XV (decididamente, de extraordinária riqueza em matéria de construção de instrumentos). Entretanto, o mais antigo clavicordio que se conhece data de 1543. Sobre uma caixa de madeira são fixadas as cordas, paralelamente ao teclado. Na extremidade de cada tecla, uma pequena peça metálica vai percutir a corda. A sonoridade do clavicordio é fraca, mas doce e delicada, além de permitir, até certo ponto, nuanças no "ataque" às cordas. Bach, segundo consta, amava este instrumento e possuía vários deles. Pesquisas feitas simultaneamente na Alemanha, na Inglaterra e na França, no começo do século XVIII, conduziram, pouco depois de 1710, à criação do pianoforte (inicialmente denominado forte-piano). Tais pesquisas foram desenvolvidas na Alemanha por Andreas Silbermann, apesar das reticências por parte dos músicos, entre os quais Johann Sebastian Bach. O instrumento não conseguiu imporse antes de 1770. Foi preciso esperar pelo francês Êrard, no começo do século XIX, para que o pianoforte, progressivamente, se tornasse o piano. O princípio é o do "escape" — e, mais tarde, do "duplo escape" — que, de um lado, permite ao martelo ser solidário com a tecla no momento do ataque à corda (portanto, também solidário com o dedo, que toca "forte" ou "piano") e tornar, logo em seguida, a cair, de maneira a deixar a corda vibrar livremente; de outro lado, permite desprender um abafador de feltro que faz cessar a vibração no instante em que o dedo solta a nota. Pode-se dizer que com esta invenção — e por conseguinte, com Erard — nasceu o piano, a despeito de aperfeiçoamentos introduzidos posteriormente (châssis de ferro, cordas cruzadas, martelos revestidos de feltro, maior extensão do teclado, pedáis, etc.). ELEMENTOS DO PIANO • Teclado: 7 oitavas e 1/4; teclas brancas para a escala diatónica (em marfim) e teclas pretas para os semitons (em ébano). • Mecânica: martelo revestido de feltro, mecânica delicada do "duplo escape", abafador de feltro. • Cordas: três cordas para cada nota, salvo nos graves; cordas de aço revestidas de fio de cobre nos graves. • Caixa harmônica: caixa que, por sua própria ressonância, aumenta a sonoridade.
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• Châssis: feito de madeira nos pianos antigos, cedeu lugar ao châssis de ferro, ou de liga metálica, constituído por uma peça única (a tensão das cordas exerce sobre o châssis uma tração da ordem de vinte toneladas!). • Pedáis: impropriamente chamados "doce" e "forte". O primeiro, o pedal da surdina (esquerdo) desloca a mecânica para direita, de modo que os martelos façam percutir apenas duas cordas, ao invés de três; o segundo (da direita) levanta os abafadores para que as cordas continuem a vibrar depois de a mão ter soltado o teclado. TIPOS DE PIANO • Piano de cauda. O grande piano de concerto chega a ter 2,60m de comprimento: suas dimensões permitem maior ressonância da caixa harmônica e das cordas mais longas. É a disposição mais racional e que melhores resultados dá. • Meia-cauda, quarto-de-cauda, crapaud são designações dadas ao piano de cauda que foi reduzido em seu tamanho por motivo de economia e espaço. • Piano vertical ou piano de armário: as cordas estão dispostas obliquamente no sentido vertical; os martelos também estão em posição vertical e recuam sob a ação de uma mola. • Piano de pedaleira: piano equipado com pedaleira, criado para exercitar os organistas. Schumann e outros compositores escreveram música para esse instrumento. EM TORNO DO PIANO Pianola ou piano mecânico. Instrumento inventado em 1900 pelo norte-americano Votey. Através de uma folaria, acionada por pedáis, passa um rolo de música, perfurado, que recobre uma barra com um número de furos igual ao das notas; a coincidência dos furos da barra com os do rolo produz o som. A pianola pode também ser utilizada como instrumento de teclado normal, munido de registros e pedáis. Os seus fabricantes, a firma yEolian, vendiam aos usuários sinfonias, arranjos de óperas, etc, na forma de rolos perfurados. A aparição do disco fez com que este instrumento entrasse em declínio. Luteal. É um acessório do piano de cauda, ao qual acrescenta possibilidades de jogos ("harpa", "cravo") e timbres, sem impedir a execução normal do instrumento. Inventado em torno de 1920, foi utilizado praticamente só por Ravel para evocar o zimbalão húngaro em Tzigane e o cravo em L'Enfant et les sortilèges [O menino e os sortilégios]. Piano preparado. Os compositores norte-americanos Henry Cowell e Charles Ivés, já no início do século, exploraram os recursos do "piano preparado", que modifica a vibração das cordas pela introdução, entre elas, de uma variedade de materiais (borracha, madeira, metal, etc.). Alguns decênios mais tarde, John Cage deu um impulso decisivo às técnicas do piano preparado, através de obras como as Sonatas
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and interludes [Sonatas e interlúdios, 1945-1948]. Em 1949, por essa iniciativa, Cage recebeu o prêmio da National Academy of Arts and Letters "por ter alargado as fronteiras da arte musical".
AS PERCUSSÕES Depois dos instrumentos soprados, friccionados, arranhados e pinçados (ou beliscados), chegamos aos que são percutidos. Nunca esquecer que o piano é um desses, se bem que a seu modo... Desde a Idade Média, passando pelo Renascimento e até o século XVII, as percussões eram numerosas e variadas nos conjuntos instrumentais destinados à música de dança. Seria um erro esquecer isso e pensar que o emprego maciço de percussões seja uma inovação recente. Elas praticamente desapareceram das orquestras barroca e "clássica" afastadas pela busca cada vez mais intensa do primado da melodia. Excetuando-se algumas pesquisas relacionadas com o exotismo — a música "turca" da ópera de Mozart Die Entführung aus dem Serail [O rapto de serralho], por exemplo —, somente os tímpanos conservaram o direito de ser lembrados na orquestra nobre, onde seu papel permaneceu secundário, salvo em algumas exceções, como a Sinfonia n° 103, chamada Drum roll [Rufo dos tímpanos], que Haydn compôs em Londres. O estatuto das percussões começou a mudar com Beethoven, que, segundo bem disse Bucurechliev, teve a maior importância como promotor do timbre enquanto valor musical essencial: ao uso mais percussivo que fez Beethoven do piano (o papel capital do trinado como timbre, por exemplo), corresponde o papel fundamental dos tímpanos na orquestra beethoveniana: nesse sentido, a Quarta, a Sétima e a Nona Sinfonias são características. Em sua Nona Sinfonia, Beethoven confere foros de nobreza à música "turca" mencionada acima (címbalos, triângulo, bombo) sem que houvesse qualquer necessidade de exotismo. O papel de Berlioz, seja como teórico, seja como compositor, foi ainda mais importante. Berlioz foi até chamado de "artilheiro", pela abundância das percussões que se ouvem em algumas de suas obras. (Chama-se, atualmente, de bateria o conjunto de percussões utilizadas nas formações de jazz, mas o termo nada tem a ver com canhões.) A lição de Berlioz acabou por vencer as delicadas repugnancias do "bom gosto" neoclássico, e, depois disso, desde que Schõnberg instaurou sua "melodia de timbres" (Klangfarbenmelodié), de Stravinski e Bartók a Várese — este último, o terceiro nome capital desta história, depois de Beethoven e de 1
Mais próximo da música militar (ou mesmo do som de uma artilharia), o "ritmo de bateria" é um ritmo persistente, dado quase sempre pelo baixo, cuja pulsação regular pode tornar-se bastante expressiva e, por vezes, inquietante.
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Berlioz —, as percussões passam definitivamente a marcar sua presença na música. Sua presença está cada vez mais forte nas composições contemporâneas e justifica a existência de formações exclusivamente consagradas a elas, como é o caso do conjunto francês intitulado Percussions, de Estrasburgo. Os instrumentos de percussão — não temos intenção de fornecer aqui uma lista exaustiva deles — podem ser classificados de diversas maneiras. Berlioz os dividia em instrumentos que produzem um som definido (portanto, mais suscetíveis de produzirem efeitos melódicos) e instrumentos que produzem um som indeterminado. Na prática atual, prefere-se distinguir três categorias: os que possuem teclado, aqueles em que a superfície sobre a qual se faz a percussão é de pele e os que chamaríamos de "acessórios". OS INSTRUMENTOS D E PERCUSSÃO COM TECLADO Glockenspiel
Nome alemão do instrumento formado por um conjunto de lâminas de aço de dimensões variáveis, movido por intermédio de um teclado; chama-se também "jogo de timbres" (tradução literal do alemão) ou"carrilhão de teclado". Em italiano, campanelli ou campanette; em francês, canillón. Em Die Zauberflóte [A flauta mágica] de Mozart, era o instrumento inseparável da personagem Papageno. Atualmente, existem diferentes tipos de Glockenspiel, tocados com martelo.
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Vibrafone Em inglês, vibes, por abreviatura; em francês, vibraphone. Só apareceu por volta de 1930. Tem teclado metálico e é tocado com baquetas. Possui um motor elétrico que imprime rotação às aselhas dentro dos tubos ressonadores, produzindo um som contínuo, com particular efeito de vibrato. A tessitura é de três oitavas, às vezes de quatro. OS INSTRUMENTOS D E PELE
Tímpanos ou timbales Em francês, timbales; em inglês, timpani ou kettle drums; em italiano, timpani; em alemão, Pauken. Grandes ressonadores de cobre, de forma parabólica quase hemisférica (daí seu apelido, em francês, de bassine à confitures ou seja, "tacho de fazer doce"), cobertos por uma pele ou membrana esticada cuja tensão se pode alterar, afinando assim o instrumento. Os tímpanos são tocados com diversos t i pos de baquetas ou grandes maços, que variam de acordo com o som desejado, mais duro ou mais suave. Em geral, os tímpanos estão agrupados dois a dois, na orquestra, afinados na tônica e na dominante. Pode haver, na orquestra, quatro ou até mais: para a execução do "Tuba miram" do Requiem de Berlioz são necessários dez músicos tocando dezesseis desses instrumentos. Tambor ou caixa
Celesta Em inglês, dulvitone. A feição definitiva adquirida por este instrumento não é anterior a 1886. É uma espécie de piano em que as cordas estão substituídas por lâminas metálicas com ressonadores de madeira. A celesta tem pouca ressonância, mas o som é particularmente cristalino e delicado, como facilmente se pode perceber na peça de Bartók intitulada Música para cordas, percussão e celesta.
Em francês, tambour, em inglês, drum; em alemão, Trommel; em italiano, tamboro. Este instrumento existe desde a pré-história, mas só foi aparecer na música rnilitar ocidental no século XVI. Possui duas peles superpostas: a membrana superior, mais espessa, onde batem as baquetas, e a inferior, à qual é fixada uma corda de tripa animal, cuja maior ou menor tensão permite modificar o "timbre". Bombo
Xilofone Em francês e inglês, xylophone; em alemão, Xylophon ou Strofiedeh em italiano, silofono. Originário provavelmente de Java, seu uso na Europa desde o século XVI pode ser atestado por uma gravura de Holbein (1525). Tem o teclado de lâminas de madeira que são tocadas com baquetas de ebonita e comporta quase sempre duas (às vezes, quatro) fileiras de lâminas. Foi utilizado na orquestra de música erudita pela primeira vez na Danse macabre [Dança macabra] de Saint-Saèns.
Em francês, grosse caisse; em alemão, Grosse Trommel; em inglês bass drum; em italiano grass cassa ou tamburo grande. Enorme tambor tocado com maços forrados de cortiça ou feltro. Tambor de guerra ou caixa clara Em francês, caisse claire, em inglês, side drum ou snare drum; em alemão, Kleine trommel ou Militartrommek em italiano, tamburo siccolo ou militare. Pequeno tambor de membrana dupla usado em orquestras.
Marimba É de origem africana, da mesma família do xilofone. Seu som é mais grave, e as baquetas percutem de modo mais suave; sob as lâminas de madeira, são colocados diversos tipos de ressonadores.
OS "ACESSÓRIOS" (enumerados em ordem alfabética) Bigorna. Em francês, enclume; em inglês, anvih em alemão, Amboss; em italiano, incuáine. Pequena barra de ferro tocada com martelo.
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Bongôs. Em francês, bongóes; em inglês, bongóes. Par de pequenos tambores de som agudo, tocados com baquetas ou com as mãos.
Templeblock (ingl.). Bolas de madeira ocas e esculpidas que se tocam com baqueta de madeira ou revestida de feltro.
Cabaça. Em francês, guerro ou guiro. Instrumento feito da casca de determinados frutos que, depois de vazios, o exécutante usa para produzir sons, fazendo-lhe sulcos e raspando-a com um pedaço de pau.
Triângulo. Em inglês e francês, triangle; em italiano, triangolo; em alemão, Triangle. Barra de metal em forma de triângulo, que é tocada com baqueta de metal e emite uma nota de som cristalino.
Castanholas. Em espanhol, castañuelas; em francês, castagnettes; em alemão Kastagnetten, em inglês, castanets. Instrumento formado por duas peças simétricas de madeira (antigamente, também de marfim), que o exécutante segura numa das mãos, fazendo-as bater uma contra a outra.
Wood-block (ingl.). Toco retangular de madeira, que se toca com baquetas.
Clavas. Em espanhol e francês, claves. Instrumento de percussão de origem cubana formado por duas peças de madeira que, batidas uma contra outra, produzem um som seco. Crótalos ou címbalos antigos. Em latim, crotalum; em francês, crotales; em alemão Zimbeh em inglês, cymbalum. Pequenos discos metálicos que produzem uma nota cristalina, muito aguda. Flauta-jazz. Em inglês, slide flute, Swancefluteou lotusflute;em francês, flûte à coulisse ou jazzo-flûte. Flauta de bisel, mas sem orifícios, que são substituídos por um émbolo de vaivém que dispensa uma das mãos do exécutante. Gongo. Em francês e inglês, gong. Disco metálico, em geral de bronze, ligeiramente abaulado, com uma saliência arredondada no centro, que pode estar em posição horizontal ou suspensa (por uma armação ou pela mão) e, quando tocado por um maço, produz um som determinado e forte. Maracas. Misto de cabaça e matraca, espécie de par de chocalhos de origem ameríndia, providos de contas ou sementes em seu interior. Pandeiro. Em francês, tambourin ou tambour de basque; em inglês, tambourine; em italiano, tamburo basco ou tamburino; em alemão, Schenellentrommel. Pequeno tamborim guarnecido de soalhas, tocado com a mão e não com baquetas. Pratos ou címbalos modernos. Em francês, cymbales; em inglês, cymbals; em italiano cinelli ou piattv, em alemão, Becken. Dois discos metálicos que são batidos um contra o outro. Um só dos pratos pode estar suspenso e ser tocado com uma baqueta. Tanta. Em inglês, francês e italiano, tam-tam. No Extremo Oriente, é constituído por um disco de metal plano, que dá um som de altura mdeterminada e por isto se distingue do gongo. Na África, tem a forma de um grande tambor de madeira cavado no tronco de uma árvore, particularmente sonoro e tocado com um maço resistente. É usado para transmitir mensagens e acompanhar danças.
A extensão contemporânea das percussões Hoje, o campo instrumental praticamente não tem limites estabelecidos. Poderse-ia dizer, parafraseando Berlioz, que qualquer corpo sonoro pode tornar-se instrumento de música, desde que haja a intenção de encará-lo como tal. O potencial instrumental nutriu-se, ao longo deste século, mais de objetos incorporados à execução musical do que propriamente de instrumentos inventados. Só o instrumentarium explorado por Mauricio Kagel já dava para constituir um repertório considerável de instrumentos a serem integrados às categorias existentes, se o próprio Kagel não houvesse antes demonstrado que qualquer ambição de estabelecer uma lista exaustiva no domínio da instrumentação já nasce caduca.
A LUTERIA ELETRÔNICA Os instrumentos eletrônicos constituem uma categoria instrumental nova e totalmente à parte. É neste domínio que as inovações se vêm revelando de forma mais determinante. Entre os numerosos instrumentos inventados e experimentados já há mais de meio século, é preciso citar o trautonium, o melocórdio e as ondas Martenot. Este último, inventado por Maurice Martenot e apresentado em Paris em 1928, é um instrumento de teclado, com extensão de sete oitavas e cujos sons, oriundos das oscilações de lâmpadas eletrônicas, permitem variações de timbre muito sutis, bem como toda sorte de efeitos de vibrato e de glissando, graças a uma fita percorrida digitalmente. As ondas Martenot são mais particularmente apropriadas às músicas microtonais, que executam de maneira muito controlada. Baseados na utilização da corrente elétrica e funcionando a partir de geradores de som sintético, os órgãos elétricos, principalmente o órgão Hammond, há vários anos vêm ganhando um impulso considerável. A automatização de múltiplos efeitos de vibrato, de reverberação, de ataque, bem como das combinações de timbres, inclusive de figuras rítmicas, favorece um acesso relativamente direto à execução instrumental, mas com o risco de limitar-se a um circuito fechado de possibilidades. Um risco de natureza similar parece muitas vezes estar envolvido na utilização do sintetizador, hoje ligado às correntes musicais mais diversas, que abrangem
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desde a música experimental até a música pop, passando pela assim chamada música de variedades, sobretudo pela musak (a música de ambiente, destinada a grandes espaços comerciais, lugares públicos, etc.)- Um sintetizador é um conjunto de elementos eletrônicos destinado à produção de sons (por meio de geradores) e à transformação desses (por meio de filtros, moduladores, etc.). Pode ser utilizado como instrumento autônomo ou transformar fontes sonoras exteriores, o que o aproxima de certas técnicas próprias da música concreta. Tem uma memoria que lhe permite armazenar determinada quantidade de informação, e seu pequeno tamanho torna possível seu manejo até mesmo durante os concertos. É preciso ainda assinalar a importância da eletrificação dos instrumentos tradicionais. Para muitos músicos, a amplificação dos instrumentos por meio de microfones dotados das mais variadas propriedades constitui um verdadeiro prolongamento de seus recursos, cujo domínio tende a tornar-se parte do aprendizado instrumental, quanto mais não fosse pelo incontestável papel do fenômeno da gravação na vida musical. Da eletrificação, surgiu um instrumento que se afastou progressivamente das origens para adquirir certa independência e servir como detonador de novos tipos de efetivos instrumentais: a guitarra elétrica. É inegável que diálogos fecundos podem ser travados entre as fontes instrumentais cuja "sedimentação" de um modo geral se vem fazendo há vários séculos e as técnicas derivadas da eletrônica que se revelaram capazes de multiplicar ao infinito suas potencialidades, facultando o ingresso em dimensões inexploradas, principalmente as microorgânicas. Contudo, a prevalência dos instrumentos sintéticos sobre categorias de instrumentos fundados em princípios físicos elementares, bem como a da música reproduzida mecanicamente sobre a música produzida ao vivo, ameaçaria afastar-nos deste sentimento de mtimidade que existe entre execução e interpretação musical e as faculdades corporais, em qualquer de suas múltiplas relações.
A ORQUESTRA, O REGENTE Qualquer formação instrumental que reúna um número considerável de músicos pode ter pretensões a receber o nome de orquestra. Na música contemporânea, principalmente, a divisão e o número dos músicos variam de acordo com as obras e a vontade expressa do compositor. A orquestra clássica requer certa dosagem das sonoridades, que, com numerosas variantes, habitualmente se busca conservar. Esta dosagem é o resultado de uma longa série de ensaios e tentativas que se sucederam ao longo da história da música ocidental.
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Pode-se dizer, um tanto por alto, que até 1750 não existia uma formação instrumental típica. As formações do Renascimento eram geralmente constituídas por pequenos efetivos, compostos quer por instrumentos de uma mesma família (a das flautas doces, a das violas, a dos cromornos, etc.) tocando em consort, quer por oposições de grupos (cordas contra metais, cordas contra madeiras, etc), quer ainda por pequenas formações em que se mesclavam as famílias de instrumentos. A primeira grande orquestra de que se tem realmente notícia, formada por 33 músicos, é a que foi reunida para a execução da ópera Orfeo [Orfeu] de Monteverdi, em 1607. Era formada por dois cravos, dois violoni, dez violas, dois violinos, duas harpas, dois órgãos, duas violas baixo, quatro trombones, dois cornetos, um flajolé e quatro trompetes. Tratava-se de um conjunto de muitos timbres, mas pouco homogêneo. A orquestra italiana, depois de Monteverdi, reduziu-se quase sempre a um conjunto de cordas acrescido de alguns instrumentos de sopro. A orquestra dos "clássicos" vienenses não se caracterizou pelo aumento dos efetivos: a orquestra de Haydn, quando este começou a trabalhar para o príncipe Esterhazy (23 músicos), não ultrapassava muito a de Bach em Coethen, e as dimensões da sala do palácio Lobkowitz em que foi criada a Sinfonia Heróica, de Beethoven, não permitem supor que lá houvesse mais de trinta músicos. Em outros lugares, porém, como em Paris, no Concert Spirituel, já nos anos que vão de 1770 a 1780, o número de exécutantes estaria entre sessenta e oitenta. Mas a grande novidade não está aí, e sim na promoção dos instrumentos de sopro: na relação numérica entre sopros e cordas, em sua importância qualitativa, na freqüência de suas intervenções capitais, bem como na individualização cada vez mais acentuada do papel específico de cada um deles; e, em conseqüência, na diversificação crescente do naipe dos sopros pela introdução de instrumentos novos. A orquestra romântica haveria de ampliar esta orientação. E o mesmo aconteceria no que diz respeito ao avanço dos instrumentos de percussão. O quadro da página seguinte pode mostrar-se bastante sugestivo se tivermos em conta que na orquestra do jovem Haydn, por volta de 1760-1765, geralmente só havia dois oboés e duas trompas, tocando lado a lado com as cordas e o baixo contínuo, o qual, em breve, iria desaparecer. Na evolução da orquestra romântica, Berlioz ocupa, entre Beethoven e Wagner, um lugar excepcional, talvez mais como teórico, pensador e profeta do que por suas criações, apesar de geniais. Movido pelo senso da desmedida, Berlioz aspira a "execuções monstro", "babilónicas". A orquestra ideal para Berlioz comportaria 467 músicos, distribuídos entre 120 violinos, dezesseis trompas, oito pares de tímpanos e assim por diante. O Requiem de Berlioz exige um enorme efetivo de instrumentistas, porém, o que constitui a característica de sua idéia de orquestra não é tanto o emprego dos instrumentos, mas a escolha deles, além do recurso a certas possibilidades, como, por exemplo, a divisão dos violinos em quatro grupos. É isto que faz de Berlioz o criador da orquestra moderna.
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A nova orientação do século XX esboça-se com Debussy, que busca individualizar os timbres e divide forças anteriormente coligadas. A predominancia das cordas não se faz sentir, para maior brilho das alianças de timbres. Foi depois da Segunda Guerra Mundial que surgiram, com toda a força, as formações novas. Começa a manifestar-se uma estética completamente diversa, que já estava em germe na obra de Stravinski. A questão dos equilibrios sonoros é recolocada em cada obra tomada particularmente: tanto em seu tratamento como em sua composição haverá, daqui por diante, tantas orquestras quanto obras.
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Em sua obra fundamental Über das Dirigieren [Sobre a regência], Richard Wagner resume toda a regência da orquestra em duas funções: saber onde está a melodia e dar à orquestra o andamento justo. De fato, a história da regência orquestral varia ao sabor da importância que se dá a um ou a outro desses dois aspectos. Hoje em dia não é tão fácil descobrir o fio melódico numa partitura sinfônica fervilhando de notas e fazer com que uma formação orquestral complexa a ponha em relevo; e certamente também não é fácil manter (ou modificar, se for o caso) o tempo de uma cena de ópera. Daí a importância assumida pela presença e a atuação do regente. Mas, as duas funções assinaladas por Wagner sempre existiram, e sua relativa importância nas diferentes culturas musicais determina as características do papel assumido pelo "maestro". Na música tradicional, o regente em geral não é mais do que um dos músicos, que recebe por tradição essa autoridade: é interessante notar a quem se confere tal autoridade. Na maior parte das culturas, é ao percussionista, o que implica a preeminência do elemento rítmico sobre o melódico. No Camboja, entretanto, em sua orquestra tradicional, dita Pin Peat, a direção pertence ao oboé solista, portanto à melodia: os xilofones e as percussões só fazem acompanhar. Em outros casos, a hesitação, ou mesmo a divisão, entre duas autoridades é ainda mais característica. No gamelão de Bali, a autoridade é manifestamente atribuída ao percussionista, que impõe e controla as inúmeras mudanças de andamento características da música balinesa. É contudo ao gangsa (xilofone melódico) que estão reservadas iniciativas como a de dar a entrada e a de controlar o andamento geral, dividindo com o percussionista a autoridade sobre o resto da orquestra, de maneira complexa e sutil, mas sem ambigüidades aparentes. Estas mesmas mdefinições encontram-se no decorrer da história da música ocidental. Na Antigüidade, a existência do "batedor" de compasso está perfeitamente atestada tanto no teatro grego como no de Roma. Os poãeptupoi na Grécia e os pedarii em Roma dirigiam o coro batendo no chão com o pé calçado com 1
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Léxico musical explicativo
sandália de madeira (pedicula, sacabeUd). Já o manuductor conduzia batendo as palmas das mãos. "Direção" rítmica, tanto num caso como no outro. Na Capela Sistina, no século XV, o costume era reger com um rolo de papel na mão, chamado sol-fá (origem do termo "solfejo"). Esta prática tornara-se necessária pela complexidade melódica da música polifónica e está atestada em numerosos textos da época renascentista. No século XVII, a regência da orquestra evoluiu e transformou-se nos sentidos os mais diversos, segundo a orientação tomada pela música. Tradições divergentes se constituíram, segundo as regiões e os tipos de música. Na Italia, a passagem da arte polifónica à melodia acompanhada (stilo recitativo), que coincide com o surgimento da ópera, praticamente elimina o papel do regente: ele só é necessário nas grandes formações vocais e instrumentais, ou seja, na música sacra. E esta é a origem da figura do Kapellmeister, do maître de chapelle, na época barroca, no momento em que o regente desaparece da ópera. As formações orquestrais e mesmo as orquestras de ópera eram, nessa época, conjuntos geralmente pouco numerosos. Por outro lado, a aparição do baixo contínuo, nesse período, implica a presença, em caráter permanente, de um instrumento de teclado: confia-se o papel de "maestro" ao cravista que, na maior parte das vezes, era também o compositor. O cravista tanto acompanha o recitativo do solista como, do seu cravo, rege a orquestra. Tal procedimento difundiu-se por toda a Europa com a música italiana, seja em espetáculos de ópera, seja em concertos, tornando-se uma tradição: Haendel em Londres, Hasse em Dresden, Scarlatti em Madri não tinham outra maneira de se apresentar em público. Foi este o procedimento habitual durante todo o século XVIII. Na França, entretanto, formou-se outra tradição, provavelmente por causa da importância que tinha a dança na ópera de Lully, originária do ballet de cour. O ofício do "batedor de compasso" era fundamental na ópera francesa. Convém lembrar que Lully regia de frente para o público (e para o rei!), com as costas voltadas para sua orquestra. O famoso bâton que causou sua morte, ele o batia sobre a estante. Rousseau ainda faz menção, em vários verbetes de seu dicionário, a esta estranha prática de regência "audível": "Na Ópera de Paris, não se usa um rolo de papel, mas um bom bastão de pau bem grosso e bem duro, que o maestro bate com força para ser ouvido de longe" (verbete Bâton). E, no verbete Opéra: "... o barulho insuportável de seu bastão cobre e amortece qualquer efeito da sinfonia..." Na Alemanha, tendências diversas parecem coexistir. Hasse e os italianizados regiam a partir do cravo, e é provável que todas as formações orquestrais de 1
1
O título de Kapellmeister ainda equivale ao de regente de orquestra nos países germânicos. Não confundir o papel do Kapellmeister barroco com o do Cantor, que era o de Bach na Thomasschule de Leipzig. Na organização luterana, o Cantaré o responsável musical pelo conjunto escola-igreja: ele é, ao mesmo tempo, organista, regente de coro, professor de canto, encarregado do ensino musical e inspetor-geral do ensino ministrado aos alunos.
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Os instrumentos, a orquestra, as vozes
dimensões modestas fossem regidas desse modo. Já um texto bem conhecido de Gesner descreve Bach regendo, enquanto fazia o acompanhamento no órgão. No fim do século XVIII, e sobretudo no começo do século XLX, a regência de orquestra evoluiu bastante na Alemanha, assim como a técnica que lhe corresponde. Mendelssohn fez com que ela desse um passo decisivo em seus concertos da Gewandhaus, por volta de 1840. Por essa época, na França, Berlioz realiza um trabalho que, com algum retardo, revelar-se-ia igualmente decisivo. Mas foi na metade do século e sob a influência de Wagner que os maestros alemães que o cercavam, Hans von Bülow, Hans Richter e Hermann Levi, criaram o verdadeiro conceito do que seja o "regente de orquestra", tal como o entendemos hoje. As turnês de Hans von Bülow com a famosa orquestra da corte de Meiningen haveriam de consagrar definitivamente a concepção de que o maestro "toca a orquestra" tanto quanto um violinista toca violino. Assim, depois do star system constituído pelas vedetes do virtuosismo instrumental (Paganini, Liszt ou... Thalberg), não foi preciso mais do que uma geração para que se firmasse o star system dos virtuoses da regência. Malgrado os excessos, às vezes lamentáveis, de todo esse vedetismo, seria injusto esquecer com que refinamento de execução e profundidade de compreensão os grandes maestros do século XX elevaram a regência à dignidade de uma arte verdadeiramente nova, da qual até então mal se suspeitara. E é preciso também não esquecer que, de Mahler a Boulez, uma linhagem de autênticos criadores demonstrou o quanto a sua arte de regentes de orquestra revelou-se fecunda ao contribuir para suas composições pessoais.
AS VOZES Ao passo que um violinista faz soar seu violino, o pianista um piano, o flautista umaflauta,todos eles instrumentos construídos com o propósito de produzir sons musicais, o cantor, paradoxalmente, não conta com um órgão predestinado a tal fim. Ele dispõe de um "complexo" que se destina a coisa totalmente diversa e do qual fazem parte: • o aparelho digestivo (lábios, boca, palato, língua, dentes); • o aparelho respiratório (laringe, fossas nasais, pulmões, caixa toráxica, diafragma); • o aparelho muscular em geral e o sistema nervoso. Daí a extraordinária complexidade dos fenômenos que estão em jogo quando se trata de cantar. Mas, simplificando enormemente tudo isso, pode-se dizer que o canto é produzido pelo ar expirado que bate nas cordas vocais e as faz vibrar. A altura do som é determinada no cérebro, segundo a rapidez da propagação do influxo nervoso.
40
Léxico musical explicativo
A intensidade do som depende da pressão do ar expirado e do tônus das cordas vocais. O timbre depende da forma da cavidade faringobucal e dos ressonadores cranianos, bem como de numerosos fatores endocrinos. A voz das crianças transforma-se na puberdade: nos meninos, as modificações do equilíbrio endocrino fazem com que a voz de "peito" (monofásica) substitua a voz de falsete (bifásica). As mulheres conservam sua voz bifásica, até que a menopausa as faça passar por uma transfomação notável, equivalente, em princípio (ou, pelo menos, nos efeitos), à mudança de voz dos meninos de quinze anos. A voz do cantor nada tem de natural. É o resultado de um longo trabalho, que tem, por trás de si, toda uma evolução histórica. CLASSIFICAÇÃO DAS VOZES
Atualmente, a classificação das vozes (um pouco arbitrária, mas resultante de longa experiência) é a seguinte: VOZES FEMININAS 1. Soprano Soprano coloratura (palavra italiana), ou soprano ligeiro. O termo coloratura significava, na origem, "virtuosismo" e se aplicava a todas as vozes. Hoje, aplica-se a um tipo de soprano dotado de grande extensão no registro agudo, capaz de efeitos velozes e brilhantes. Exemplo: a personagem da Rainha da Noite, em Die Zauberflóte [A flauta mágica], de Mozart. Soprano lírico.Voz brilhante e extensa. Exemplo: Marguerite, na ópera Faust [Fausto], de Gounod. Soprano dramático. É a voz feminina que, além de sua extensão de soprano, pode emitir notas graves sonoras e sombrias. Exemplo: Isolde, em Tristan und Isolde [Tristão e Isolda], de Wagner. Mezzo-soprano (palavra italiana). Voz intermediária entre o soprano e o contralto. Exemplo: Cherubino, em Le nozze di Figaro [As bodas de Figaro], de Mozart. 2. Contralto Muitas vezes abreviada para alto, a voz de contralto prolonga o registro médio em direção ao grave, graças ao registro "de peito". Exemplo: Ortrude, na ópera Lohengrin, de Wagner.
Os instrumentos, a orquestra, as vozes
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ópera antiga francesa (Lully, Campra, Rameau), de uma parte das óperas italianas, do contralto das cantatas de Bach, etc. Quanto aos sopranistas e castrati, cf. adiante. 2. Tenor Tenor ligeiro. Voz brilhante, que emite notas agudas com facilidade, ou, nas óperas de Mozart e de Rossini, por exemplo, voz ligeira e suave. Exemplo: Almaviva, em II barbiere di Siviglia [O barbeiro de Sevilha], de Rossini; Tamino, em Die Zauberflõte [A flauta mágica], de Mozart. Tenor lírico. Tipo de voz bem próxima da anterior, só que mais cheia e mais timbrada. Tenor dramático. Com relação à anterior, mais luminosa nos agudos e ainda mais cheia no registro médio. Exemplo: Lohengrin, protagonista da ópera homônima de Wagner. Tenor heróico. Voz de volume sonoro considerável, menos rica de agudos, embora mais ampla no registro grave. Exemplo: Tannhãuser, protagonista da ópera homônima de Wagner. 3. Barítono Barítono "Martin", ou barítono francês. Voz clara e flexível, próxima da voz de tenor. Exemplo: Pelléas, na ópera Pelléas et Mélisande, de Debussy. Barítono verdiano. Exemplo: o protagonista da ópera Rigoletto, de Verdi. Baixo-barítono. Mais à vontade nos graves e capaz de efeitos dramáticos. Exemplo: Wotan, em Die Walküre [A Valquíria], de Wagner. 4. Baixo Baixo cantante. Voz próxima à do barítono, mais naturalmente lírica do que dramática. Exemplo: Boris Godunov, protagonista da ópera de mesmo nome, de Mussorgski. Baixo profundo. Voz de grande extensão e amplitude no registro grave. Exemplo: Sarastro em Die Zauberflõte [A flauta mágica], de Mozart. HISTÓRIA DO CANTO
VOZES MASCULINAS
O canto é a expressão mais direta e mais espontânea do sentimento musical no homem e do sentimento tout court. Nenhuma raça e nenhuma cultura o desconhece ou deixa de praticá-lo. Mas, quaisquer que sejam as culturas, observam-se por toda parte duas tendências contrárias, que se apresentam tanto sob as formas mais primitivas e espontâneas, como sob as mais elaboradas e refinadas.
1. Contratenor (em francês Haute-contre) Voz de homem muito aguda, que iguala ou mesmo ultrapassa em extensão a de um contralto. Muito apreciada antes de 1800, esta é a voz dos principais personagens da
1. O canto é uma codificação ou uma ampliação da palavra. Da litania ao recitativo, do canto silábico dos trágicos gregos às salmodias dos monjes budistas, da canção de gesta ao evangelista das Paixões de Bach.
Léxico musical explicativo
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2. O canto vale por si mesmo, o prazer de cantar e de ouvir cantar independe da palavra ou do verso; os melismas, os ornamentos, o bel canto são encontrados sob diversas formas, tanto num Aleluia gregoriano e numa melopéia árabe ou espanhola, como numa ária italiana ou numa ária de Haendel. 1
Estas duas tendências opostas encontram-se na música ocidental de todas as épocas, mais ou menos isoladas uma da outra ou unidas numa síntese geralmente feliz. A ópera italiana dos séculos XVII e XVIII, por exemplo, maravilhava-se com as roulades e vocalises; já a ópera francesa, na mesma época, era mais intelectual e mais calcada na palavra. A Itália e o bel canto. O canto desenvolveu-se particularmente na Itália a partir de 1600, quando a monodia acompanhada suplantou a polifonia. As duas tendências, que coexistiram desde a origem, eram perfeitamente dominadas por Monteverdi. Mas, no século XVII, o amor pelo belo canto (buon canto, depois bel canto) acabou por triunfar, fazendo com que os os cantores alcançassem total domínio dos ornamentos vocais (vibrato, trinados, roulade e coloratura). A ópera napolitana, exportada para toda a Europa,firmou-see assegurou por longo tempo o triunfo do virtuosismo vocal. O reinado dos castrati. O gosto pelo virtuosismo chegou ao seu ponto extremo com o fenômeno do castrato, indivíduo que, por meios cirúrgicos que o tornam eunuco, conserva, depois de adulto, sua voz de criança, acrescida de tudo quanto pode proporcionar a cultura e a arte de um adulto. Os castrati reinaram na Europa do século XVIII. Formados em escolas especiais, adquiriam um virtuosismo inigualável (capacidade de sustentar a respiração, velocidade, domínio do timbre, extensão de três oitavas, expressividade, etc.). A ópera italiana era escrita para eles, na qual tanto faziam papéis masculinos como femininos. A questão da verossimilhança em nada incomodava a platéia da época (imaginem um Júlio César com voz de soprano!). Os castrati de sucesso foram as vedetes da época barroca, ganhando fortunas que fariam nossos grandes astros do cinema parecerem reles amadores. Farinelli cantava 150 notas de um só fôlego. Era um homem sério e um grande artista, que percorria a Europa disputado a peso de ouro. Tendo cantado para Luís XV e recebido, a título de agradecimento, um cofre de ouro constelado de diamantes, cheio de moedas de ouro, declarou, indignado, que jamais voltaria a pôr os pés naquele país de mendigos... Este fenômeno a um só tempo sociológico e artístico torna bem difícil, ou mesmo impossível, a execução de boa parte do repertório vocal do século XVIII. A instituição dos castrati estaria, de certo modo, ligada à proibição eclesiástica do canto das mulheres nas igrejas. Mas o fato de que os castrati tenham sido tão nu1
Uma única sílaba prolongada pelo canto de várias notas. O melisma gregoriano resultará no vocalise italiano, diferente do canto silábico, no qual cada sílaba corresponde a uma nota.
Os instrumentos, a orquestra, as vozes
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merosos e tão apreciados — no reino laico de Nápoles como nos Estados pontificáis, na música profana como na música sacra—sugere uma estética bem própria da época e ligada a uma concepção específica da sexualidade (cf., a esse respeito, Porporino, de Dorninique Fernandez). O último castrato famoso, Moreschi, morto em 1922, gravou em 1902 alguns preciosos registros. Mozart. No final do século XVIII, os excessos do virtuosismo vocal provocaram uma reação. Mozart devolveu à voz feniinina toda a sua dignidade, integrou o canto ao drama e fez do cantor uma "personagem". Daí, a maravilhosa plenitude de suas obras, admirável síntese entre o bel canto, reduzido a suas justas proporções, e a expressão lírica e poética. No apagar das luzes do romantismo, três gênios—Verdi, Wagner e Debussy— iriam, cada um à sua maneira, revolucionar a arte do canto, graças às novas exigências que suas estéticas vieram impor a cantores e cantoras. No mundo contemporâneo, produziu-se com o canto a mesma mudança que se deu com a orquestra: haverá necessidade de tantas técnicas e estéticas do canto quantas forem as novas obras para ele escritas. A VOZ NA MÚSICA D E HOJE
O bel canto perdeu nitidamente sua supremacia. Certos recursos de técnicas vocais, que até então se haviam mantido à distância da música erudita, foram progressivamente sendo introduzidos na arte vocal de nosso século. Foi o que aconteceu com o Sprechsgesang que, transgredindo os limites entre o falar e o cantar, tornou-se um dos modos de expressão vocal a ser privilegiado por Schõnberg em sua obra Pierrot lunaire [Pierrô lunar]. A descoberta de músicas produzidas fora do meio europeu e o estudo das tradições populares contribuíram para enriquecer os modos de expressão vocal, cujo alcance foi, aos poucos, rompendo qualquer tipo de censura. Esta vontade de tirar partido das mais amplas possibilidades da voz também se encontra nas pesquisas teatrais, sobretudo nas realizadas por Antonin Artaud, que serviram de estímulo para alguns músicos da atualidade. As obras de Kagel, Schnebel, Berio, Ligeti e outros dão testemunho do profundo interesse por um potencial expressivo da voz, há vários séculos excluído da arte lírica, e, nesse sentido, convergem com propostas encaminhadas em outros campos da criação artística, como é o caso da poesia sonora pesquisada por Henri Chopin, Bernard Heidsieck, etc.
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O SOLFEJO E A HARMONIA
A música é uma linguagem. E, como todas as demais, é uma linguagem organizada. A "gramática" musical, da mesma forma que a das línguas faladas, evoluiu muito desde os primeiros balbucios do homem pré-histórico. Mas é preciso lembrar sempre que o código sempre sucedeu a experiência; tal como no domínio da ciência, também aqui só se estabelece a lei depois de observado o fenômeno. Na música, a intuição dos compositores e suas descobertas sempre precederam a codificação da linguagem. Esta é a razão por que a "gramática" musical está continuamente mudando. Abordaremos, neste capítulo, aquilo que concerne à música escrita, dita "música erudita", por oposição à música popular, transmitida pela tradição oral. O solfejo não é uma disciplina esotérica. Para 1er música, necessita-se, é claro, de um certo aprendizado. Mas ele não é mais penoso do que aquele por que passam as crianças quando estão aprendendo a 1er em sua própria língua. Quando se escreve uma melodia, o desenho formado pela posição das notas na pauta corresponde ao desenho descrito pela melodia, isto é, se a melodia subir, o desenho também subirá e vice-versa. A música que se escreveu desde o Renascimento está notada em pautas. No começo de cada pauta, há uma clave, que muda de acordo com a tessitura — quer dizer, com a altura das notas — da música escrita. Há sete claves, mas as mais comuns são a clave de sol, para as notas agudas, e a clave de já, para as notas graves. Quando se conhece o lugar do sol ou do fá nas claves de mesmo nome, é fácil 1er as outras notas, que se sucedem de acordo com a ordem estabelecida. 1
O conjunto formado peías cinco linhas horizontais, paralelas e equidistantes usadas na notação musical.
Léxico musical explicativo
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Exemplo 1 Nota comum às duas claves
O solfejo e a harmonia
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Um trecho de cantochão escrito no modo de ré, ou seja, utilizando os sons deste modo, terá um certo "colorido", por causa desta disposição de tons e semitons. Além disso, este trecho musical irá apoiar-se essencialmente no ré, que será a sua nota mais importante e a final. Um trecho escrito no modo de mi terá outro "colorido", pois a disposição de intervalos será diversa:
1
Exemplo 4 Modo de m i
etc fá sol la si dó ré mi fá sol lá si dfl i/2
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MODOS E ESCALAS A música ocidental foi monódica até o século LX. O termo monodia designa urna linha melódica — urna única voz — sem acompanhamento. Isto não impede que, na música vocal, esta voz única possa ser executada por um grupo de cantores: dizse, então, que eles cantam em uníssono. As primeiras peças musicais escritas foram religiosas. Eram peças do canto gregoriano, ou cantochão, que veio das igrejas orientais e está ligado à liturgia cristã. O cantochão é uma música modal. Um modo nada mais é do que a sucessão de todas as notas "naturais" — as teclas brancas do teclado do piano, por exemplo — a partir de uma dada nota.
Na época clássica, a linguagem musical empobreceu-se, pois conservou apenas dois modos: o modo maior e o modo menor. O modelo do modo maior é a escala de dó, conforme o exemplo:
2
Exemplo 2 Modo de ré
Exemplo 5
Constatamos que os semitons estão situados entre o terceiro e o quarto graus, e entre o sétimo e o oitavo graus. A escala de lá menor serve de modelo para todas as escalas menores. Mas, como esta escala conservava um caráter profundamente modal — o modo de lá era um dos modos mais usados no cantochão —, esta prática corrente levou os compositores a outorgar-lhe uma característica suplementar: pouco a pouco, eles foram sentindo a necessidade de aproximar o sol do lá — no movimento ascendente — elevando o sol de um semitom por meio de um sinal chamado sustenido. Este sol sustenido, que provoca um sentimento de irresistível atração na direção do lá, é dito nota sensível. A nova escala assim obtida denomina-se escala menor harmônica. 1
ré
mi
fá
sol
dó
lá
ré
Quando se toca no piano estas notas naturais, uma depois da outra, constatase que elas estão separadas por dois tipos de intervalos: os de tons e os de semitons. Os semitons estão situados, na seqüência "natural" das notas, entre mi-fá e si-dó. As outras notas estão sempre separadas por tons. Se retomarmos o nosso modo de ré, vamos constatar que os semitons estão entre a segunda e a terceira nota e, depois, entre a sexta e a sétima: 1/2
Exemplo 6 Escala de lá menor h a r m ô n i c a
Exemplo 3 1/2
lá
' A nota comum é o dó. Na França, desde a alta Idade Média até o século XVll, esta nota era chamada ut Atualmente, usam-se indiferentemente na França as duas denominações. Mais tarde, a palavra uníssono seria aplicada, com o mesmo sentido, à música instrumental.
2
si
dó
ré
mi
Tá
sol
lá
Todas as escalas vão aos pares: há sempre um tom e meio de distância entre a escala relativa maior (a mais alta) e a escala relativa menor (a mais baixa); por exemplo: dó maior e lá menor; sol maior e mi menor; fá maior e ré menor; lá maior e fá sustenido menor, mi bemol maior e dó menor, etc.
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Léxico musical explicativo
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O solfejo e a harmonia
Entretanto, a introdução desta nota sensível no modo menor produziu um intervalo difícil de ser cantado por nós, ocidentais: trata-se da segunda aumentada, situada entre o fá natural e o sol sustenido. Por isso, particularmente nos movimentos melódicos, os compositores clássicos adotaram uma escala menor "melódica", que se apresenta de duas formas: a ascendente e a descendente.
Exemplo 8 Escala de fá maior (é a escala de d ó maior transposta para fá)
Escala menor m e l ó d i c a ascendente
1
2
3
4
5
6
7
8
(com o fá tornado sustenido, desaparece o intervalo de segunda aumentada)
O procedimento é o mesmo para as escalas menores. A música escrita com recurso a estas escalas chama-se música tonal. A tonalidade designa a escala utilizada na obra. No entanto, quando você vir escrito na capa de um disco sinfonia em ré maior, isto não quer dizer que toda a obra esteja escrita com as notas dessa escala. No caso, ré maior indica apenas a tonalidade principal da sinfonia. Seria bem monótona a música que ficasse amarrada a este tipo de coleira. O compositor, por isso, muda muitas vezes de tonalidade no decorrer da peça, ou, melhor dizendo, modula. Muito curiosamente, modulação não designa uma mudança de modo, mas uma mudança de tonalidade. Se você escutar com atenção, não terá dificuldades em perceber as modulações, que atuam sobre a percepção como se fossem mudanças de cores sonoras. 1
Escala menor m e l ó d i c a descendente (é simplesmente o antigo modo de lá)
Cada uma dessas escalas pode ser transposta. A transposição consiste em tomar como modelo, por exemplo, a escala de dó e aplicar este modelo a uma seqüência de notas que partem de outro som. Os tons e semitons estarão sempre distribuídos da mesma maneira; no caso, os semitons situam-se entre o terceiro e o quarto graus e entre o sétimo e o oitavo graus. Fica-se, então, obrigado a elevar ou abaixar certas notas de um semitom por meio de sustenido ou bemol. O sustenido (S) é um sinal que, colocado antes de uma nota, eleva-a de um semitom. O bemol (i?) abaixa de um semitom a nota antes da qual está colocado. Quando se deseja anular a alteração (f ou !>) da nota, utiliza-se o bequadro (!]), com o que ela volta à sua condição "natural". É fácil perceber que o fá sustenido tem o mesmo som que o sol bemol, pois, embora entre o fá e o sol haja um tom, quando o fá é elevado de um semitom e o sol abaixado de um semitom, as duas notas passam a designar o mesmo som. 1
Exemplo 7 Escala de ré maior (é a escala de d ó maior transposta para ré)
NOTAS OU GRAUS IMPORTANTES DA TONALIDADE. CADÊNCIAS Quando se compõe uma obra em ré maior, certas notas desta escala terão papel mais importante que outras: tais notas funcionarão, de algum modo, como os sons pivots da melodia. Na música tonai uma obra que seja em ré maior termina sempre com a nota ré. É esta nota que dá seu nome à tonalidade — diz-se que a peça está escrita na tonalidade de ré maior — e dá uma sensação de estabilidade, de conclusão. Esta primeira nota (ou primeiro "grau") da escala recebe o nome de tônica. Ao fim de uma obra tonai, são geralmente ouvidos dois acordes conclusivos, e o último será o da tônica. O acorde precedente apóia-se, quase sempre, no quinto grau dá escala, dito dominante. Tal conclusão tem o nome de cadência. Há vários tipos de cadências. A mais "quadrada" de todas é a que acabamos de descrever: quinto grau 2
1
Pelo menos no sistema de "temperamento" igual (cf. adiante).
2
Para facilitar a leitura, o número de sustenidos e bemóis relativos a uma dada escala está notado junto à clave, no começo de cada pauta: é o que se chama armadura. Se a tonalidade mudar no decorrer da música, a armadura também pode mudar, comportando, nesse caso, bequadros. A armadura é idêntica nas escalas relativas maior e menor: por exemplo, tanto a escala de mi bemol maior como a de dó menor têm uma armadura formada por três bemóis. Usualmente chamada de "diatónica", por oposição à "cromática" (cf. adiante).
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O solfejo e a harmonia
primeiro grau, isto é, dominante-tónica, a chamada cadência perfeita. No final do minueto da Sinfonia Júpiter, de Mozart, ouve-se uma cadência perfeita em dó maior. A parte do baixo — violoncelos e contrabaixos — faz soarem as notas soldo, vale dizer, faz com que sejam ouvidas primeiro a dominante e depois a tônica da tonalidade de dó. O primeiro e o quarto movimentos dessa sinfonia também terminam com uma cadência perfeita, que intervém, contudo, um pouco antes do final de cada um desses movimentos, seguida por uma espécie de peroração, a que se dá o nome de coda e que os conclui. Se o compositor desejar um final menos categórico, pode valer-se da cadência plagal, em que a tônica é precedida por um outro grau que não o da dominante: quase sempre pelo quarto grau, dito subdominante. Um exemplo de cadência plagal encontra-se no final de La Flûte de Pan [Aflautade Pã], uma das Chansons de Bilitis [Canções de Bilitis] de Debussy. Atenção! A palavra cadência tem outra significação: em um concerto, a cadência do solista é uma parte brilhante e improvisada, que precede o fim da obra. Quanto mais avançou a história da música, mais os compositores sentiram necessidade de estar constantemente modulando, até que, com Wagner, a mudança
O Círculo das Quintas para a sucessão das tonalidades
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R)f<6if> SolbloM As tonalidades maiores estão no círculo exterior; as tonalidades menores, no círculo interior. A progressão por quintas efetua-se, a partir do d ó , no sentido dos ponteiros do relógio ( d ó - s o l - r é [etc]-si [>- fá-dó).
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Léxico musical explicativo
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O solfejo e a harmonia
de tonalidade passou a fazer-se, às vezes, a cada novo acorde. Assim, pouco a pouco, o ouvinte foi deixando de perceber a tonalidade principal: era o advento da música atonal e da música cromática, já no século XX. A música cromática utiliza todos os sons da escala cromática, quer dizer, a sucessão completa de todos os semitons, que correspondem, no teclado de um piano, a todas as teclas brancas e pretas. Na música cromática, não há mais notas preponderantes que façam o papel de tônica ou de dominante, como acontece na música tonai. Foi tal o desconforto dos compositores neste estágio evolutivo da linguagem musical, que um deles, Arnold Schõnberg, sentindo a necessidade de buscar um novo código, concebeu o que ficou conhecido como sistema serial. Uma série é a escolha— feita antes da composição da obra — de uma determinada ordem de desenvolvimento dos doze graus da escala cromática.
A escala pentatônica — ou modo pentafônico —, característica da música chinesa, é uma série de cinco sons, de cujo efeito se pode ter idéia tocando apenas as teclas pretas do piano (exemplo: Debussy, Pagodes, da série Estampes). Na escala de tons — como o nome indica —, as notas estão todas separadas por um tom, como por exemplo Prélude, da suíte Pour le piano [Para o piano] de Debussy. Alguns compositores chegaram ao ponto de superpor tonalidades diferentes, como é o caso de Darius Milhaud, que fez uso, às vezes abusivamente, da politonaliãade.
Exemplo 9
Chama-se contraponto à arte de combinar entre si as linhas melódicas. O primeiro "gesto contrapontístico" esboçou-se na Idade Média, ao que tudo indica no século IX, quando os monges tiveram a idéia de acompanhar o cantochão com uma segunda voz que seguia a melodia gregoriana, em paralelo, à distância de um intervalo de quarta. Esta primeira polifonia (música a várias vozes) denominava-se, em latim, organum. A cada nota do cantochão correspondia uma nota do acompanhamento: punctum contra punctum [ponto contra ponto]. Essa a gênese do termo contraponto. No século XI, o contraponto enriqueceu-se: as vozes que acompanhavam o cantochão já não eram paralelas a ele: movimentavam-se mais livremente, não mais nota contra nota. O apogeu da arte contrapontística é a obra de Johann Sebastian Bach, que, de forma maravilhosa, extrai todas as possibilidades do contraponto, como por exemplo: • o cânone: a conhecida canção infantil francesa Frère Jacques é de hábito cantada como um cânone, no qual a mesma melodia é retomada sucessivamente por diferentes vozes, que se acompanham umas às outras; • o movimento contrário: consiste em tocar ou cantar todos os intervalos "ao inverso" (uma terça ascendente torna-se descendente, e assim por diante).
Escala c r o m á t i c a
(É possível substituir notas sustenido por bemol: dó sustenido = ré bemol, ré sustenido = mi bemol, etc.). Um exemplo é a série da Sinfonia opus 21, de Webern: Exemplo 10
\
'
1
»
Como se pode observar, os doze sons da escala cromática estão todos aí, e nenhum é repetido. Numa obra serial, as notas da série sempre são tocadas de acordo com a estrita ordem estabelecida de antemão. Elas também podem estar agrupadas em acordes. Por outro lado, a série pode sofrer todos os tipos de tratamento próprios do contraponto (cf. adiante). Finalmente, a série pode ser transposta: pode começar por outra nota, desde que conserve a mesma estrutura melódica, isto é, que mantenha os mesmos intervalos nos devidos lugares. Nem todos os compositores do início do século XX adotaram o sistema serial. Mas todos se mostravam insatisfeitos com o sistema tonai, tornado caduco, e procuraram fugir dele. Alguns, como Ravel e Debussy, voltaram-se para os modos antigos, misturando-os, em suas obras, com passagens escritas no sistema tonai, só que tudo muito "adaptado" pela intervenção de acordes cada vez mais complexos e pela introdução de "notas estranhas" (cf., adiante, Harmonia). Exemplos disso podem ser encontrados em Fêtes [Festas] ou no primeiro movimento de La Mer [O mar], de Debussy. Ravel e Debussy valeram-se igualmente da escala pentatônica e da escala de tons, também chamadas, impropriamente, de escalas defectivas ou modos defectivos.
O CONTRAPONTO
Exemplo 11 Frère Jacques em movimento paralelo (normal) e em movimento contrário
i» i f
1111
f--t=f
1~
\ r
r
f A
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Léxico musical explicativo
• o movimento retrógrado: consiste em começar a melodia pelo fim e terminá-la no que seria o seu começo. Exemplo 12 Frère Jacques em movimento retrógrado
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O solfejo e a harmonia
Depois da oitava, os intervalos passam a ser a duplicação de todos os que acabamos de descrever: • a nona é formada por uma oitava mais uma segunda e, como a segunda, pode ser maior ou menor. Exemplo 14 Segunda maior
N o n a maior
m
• também é possível combinar o movimento contrário com o movimento retrógrado:.
d ó
dó ré
rt
Exemplo 13 Frère Jacques em movimentos retrógrado e contrário
A HARMONIA
OS INTERVALOS Um intervalo é a distância que separa duas notas. O intervalo é melódico se as notas são ouvidas uma depois da outra e harmônico quando são ouvidas simultaneamente. (Todos os exemplos mostrados adiante são no sentido ascendente.) A segunda é o intervalo que separa duas notas vizinhas: dó-ré é um intervalo de segunda. A segunda é dita segunda maior quando as duas notas estão separadas por um tom e menor quando um semitom separa as notas. Em ordem crescente, relacionam-se a seguir, acompanhados de exemplos, os outros intervalos. • terça menor, por exemplo: ré-fá, um tom e meio; • terça maior: dó-mi, dois tons; • quarta justa: dó-fá, dois tons e um semitom; • quarta aumentada, também chamada trítono, pois é formada de três tons; a quarta aumentada foi banida da música religiosa na Idade Média, época em que a chamavam de diabolus in musica ("o diabo na música"): por exemplo, fá-si; • quinta diminuta: si-fá, dois tons e dois semitons; • quinta justa: dó-sol, três tons e um semitom; • quinta aumentada: dó-sol sustenido, quatro tons; a quinta aumentada é um intervalo produzido pelo emprego da escala de tons; • sexta menor: mi-dó; • sexta maior: dó-la; • sétima diminuta: si-lá bemol; • sétima menor: si-lá; • sétima maior: si-lá sustenido; • oitava: dó-dó. A oitava é a duplicação da mesma nota, no intervalo do primeiro som harmônico.
A harmonia é a ciência dos acordes. Um acorde é uma superposição de vários sons ou de vários intervalos. A harmonia decorre diretamente do modo, da escala ou do sistema empregado. O acorde mais característico do sistema tonal é o acorde perfeito. Ele é formado por três sons superpostos — duas terças "empilhadas" uma sobre a outra. É maior o acorde quando sua primeira terça — a mais grave — for maior, e menor quando sua primeira terça for menor. (Exemplo: no começo da Sinfonia Júpiter, de Mozart, a orquestra dá um acorde perfeito maior de dó J 1
Exemplo 15 Acorde perfeito
Acorde perfeito
menor
maior
O acorde perfeito formado a partir da tônica de uma tonalidade maior é maior, e o acorde perfeito formado a partir da tônica de uma tonalidade menor é menor. Para escrever-se um acorde de sétima, "empilha-se" uma terça suplementar: Exemplo 16 Acorde de s é t i m a
Dá-se o nome de homófono ao canto harmonizado simplesmente, em que todas as vozes seguem um ritual igual.
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Léxico musical explicativo
Esses acordes podem ser invertidos, isto é, a nota mais grave de todas passa a ocupar a posição mais aguda, e vice-versa. Exemplo 17
Exemplo 19 Acorde perfeito
Éft
-J-mi
Inversões de u m acorde perfeito Primeira inversão
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O solfejo e a harmonia
Segunda inversão
Apojatura superior do m i
Em nossa época, a complexidade sempre crescente dos acordes acabou por transformá-los em clusters. Esta palavra inglesa, que significa grupo ou cacho, é suficientemente explícita: um cluster musical é uma agregação extremamente cerrada de sons. No fim da peça de Varèse intitulada Ionisation, ouvem-se clusters tocados no piano: todas as notas compreendidas entre os dois sons escritos na partitura são tocadas simultaneamente.
Apojatura inferior do m i
Exemplo 18 Cluster de
Ionisation
5»a
I Este sinal indica que a nota é tocada uma oitava abaixo. O pianista, aliás, deve tocar as notas com os antebraços. Um acorde pode ser plaqué, isto é, com as notas tocadas todas juntas, ou arpejado, com as notas sucedendo-se uma após outra. Mas nem tudo é assim tão simples! Os compositores não se contentam — e não se contentavam mesmo na época "clássica", quando o reino da tonalidade estava firmemente estabelecido — em apenas enfileirar acordes. É comum que estes sejam ornamentados com notas estranhas ou não harmônicas, que acrescentam um "algo a mais" ao acorde, em geral uma dissonância. Tais notas são: • o retardo: uma nota do acorde precedente que "atrasa" até a entrada do acorde seguinte; • a apojatura (do italiano appoggiatura) longa ou breve: uma das notas do acorde, em vez de ser tocada ao mesmo tempo que as outras, é precedida por uma nota que é estranha ao acorde. 1
2
1
2
Um acorde dissonante (por oposição a consonante) é aquele que se mostra desagradável ao ouvido e à sensibilidade, segundo os limites e as convenções de uma época e de uma cultura determinadas. Certas apojaturas breves são ditas acciacatura.
No final do segundo movimento da Sinfonia Júpiter, de Mozart, ouve-se uma cadência perfeita cujo último acorde está apojaturado. • nota de passagem: aquela que liga um acorde a outro; • notas ornamentais: aquelas que cercam a nota principal, adornando-a.
O RITMO O ritmo é primordial na música, pois comanda as estruturas temporais, e uma das dimensões do espaço musical depende precisamente das relações de duração. Isto em todos os níveis: relações de duração entre as diferentes partes da obra — e aqui nos aproximamos do conceito de forma —, bem como relações da frase musical com sua vizinha, ou mesmo de cada som com os que o sucedem ou precedem. Antes de falar de ritmos precisos, é preciso saber que os ritmos estão inscritos num andamento. O andamento indica a velocidade geral de uma peça musical; muitas vezes, é também designado pela palavra italiana tempo. Com freqüência, para obter maior precisão na interpretação de sua música, o compositor escreve, no alto da partitura, o andamento metronômico. O metrónomo, um objeto bastante conhecido, é um pequeno instrumento, baseado no sistema do pêndulo, dotado de uma haste cuja oscilação produz um tic-tac ritmado que o músico pode ter como referência enquanto toca, com vistas a dar regularidade à sua interpretação. Fazendo-se correr um peso colocado sobre esta haste, ela oscilará
Léxico musical explicativo
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O soifejo e a harmonia
mais rápido ou mais devagar, na velocidade do andamento desejado. A graduação do metrónomo pode ser feita segundo urna escala que indica o número de batidas por minuto, o que lhe permite assinalar o andamento que está notado na partitura. Exemplo: J = 60: significa que sessenta seminimas são tocadas em um minuto; portanto, uma seminima por segundo. J = 80: significa que oitenta mínimas são tocadas em um minuto. Os andamentos estão geralmente indicados na partitura por termos e expressões em italiano. Do andamento mais lento ao mais rápido, a progressão é aproximadamente a seguinte (nunca esquecendo que certas indicações podem variar de acordo com as épocas ou se superpor, em alguma medida, umas às outras): • Largo (muito lento) • Larghetto • Lento • Adagio (calmo) • Adagietto • Andante (em passo tranqüilo, andando); de certo modo equivalente a Tempo di mareia (tempo de marcha) • Andantino: o menos vagoroso dos andamentos lentos • Allegretto: o mais vagoroso dos andamentos rápidos; equivalente de certo modo aTempo di minuetto ("tempo de minueto") • Allegro: quando não houver em seguida a marcação de um tempo preciso, equivale mais ou menos ao Scherzo (brincadeira, divertimento) • Vivace (quase igual ao precedente, embora algo mais rápido) • Presto (rápido) • Prestissimo (muito rápido) Algumas indicações podem ser acrescidas aos andamentos: • Molto (muito) • Assai (bastante) • Moderato (moderadamente, com comedimento) • Ma non troppo (mas não demais), etc. 1
Conforme acompanhem andamentos lentos ou rápidos, estas indicações produzem efeito inverso. Por exemplo: adagio molto produz o efeito de tomar mais
1
Note-se que o sentido inicial de tais termos e expressões na língua italiana raramente se conservou no que diz respeito ao andamento musical: allegro comumente significa "jovial, divertido" (como alegre em português). Mas quem iria pensar em alegria ao ver a palavra Allegro marcada no alto do primeiro movimento da Quinta Sinfonia de Beethoven?
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lento; adagio ma non troppo, de certo modo, o de acelerar; allegro ma non troppo, por sua vez, torna mais lento, ao passo que allegro molto acelera. Há outras indicações que, a rigor, não impõem um andamento, mas —• por exemplo, Maestoso ("majestoso") ou Grave ("grave") — sugerem um andamento lento. Já Con brio ("com brio" ou "com ímpeto") ou Confuoco ("com fogo") forçosamente acentuarão a vivacidade do tempo. Indicações como Moderato (isoladamente) ou Tempo giusto servem como uma chamada para o equilíbrio entre o lento e o rápido, algo como um andamento que está entre o Andantino e o Allegretto. Para comodidade de leitura, os ritmos propriamente ditos distribuem-se em compassos de dois, três, quatro, cinco ou seis tempos, etc, compassos esses sempre limitados por barras verticais na pauta musical. No interior do compasso, os tempos não são acentuados igualmente. O primeiro tempo é sempre forte, o segundo e o terceiro fracos, salvo no compasso de quatro tempos, em que o terceiro tempo é forte. A síncope é um deslocamento do acento, que passa a incidir sobre um tempo fraco, prolongado pelo tempo ou por parte do tempo forte que a ele se segue, tornando forte o tempo que seria normalmente fraco. O contratempo é a acentuação de um tempo fraco, mas sem o prolongamento para além desse tempo. Na chamada "música erudita", os ritmos inscritos nos compassos podem ser binarios ou ternarios. São ditos binarios os compassos quando cada tempo é divisível por dois, quatro, oito, etc., e ternarios quando cada tempo é divisível por três, seis, nove, etc. Pode-se, no entanto, excepcionalmente, inserir um ritmo ternario num compasso binário. Este ritmo é chamado tresquiáltera, ou tercina. O inverso é igualmente possível: no caso, diríamos duasquiálteras ou bisina. 1
Exemplo 20
Compasso binário 2/4 barra de compasso ou travessão
I I* compasso ;¡ 2* compas»
¡] 3* compuso y 4* compasso ;
Neste exemplo, o primeiro compasso tem uma nota para cada tempo, isto é, uma seminima para cada tempo. No segundo compasso, cada tempo comporta duas notas: duas cólchelas que são tocadas duas vezes mais rapidamente que as seminimas. No terceiro compasso, o primeiro tempo apresenta quatro semicolcheias (duas vezes mais rápidas que as colcheias). Por fim, o primeiro tempo do quarto compasso está preenchido por um ritmo ternário: é uma tercina.
Existem também as possibilidades de quatrina, quintina, seisquiáltera ou sextina, etc., de uso análogo.
Léxico musical explicativo
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O solfejo e a harmonia
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A DINÂMICA
Exemplo 21 Compasso b i n á r i o 6/8 r-f-s
v
]
r r1 CLfLXT
1
Este é também um compasso de dois tempos, em que cada tempo é divisível por três (segundo compasso do exemplo 21). No terceiro compasso, lê-se um ritmo binário formado por duas quiálteras. Existem possibilidades de variações rítmicas, tanto quanto de variações melódicas ou harmônicas. Alguns exemplos: • a diminuição rítmica: uma mesma fórmula é repetida em execução mais rápida; • o aumentorítmico:uma mesma fórmula é repetida mais lentamente; • a polirritmia: várias frases de ritmos muito diversificados são executadas simultaneamente; é freqüente, por exemplo, ouvirmos um ritmo binário sobrepondose a um ritmo ternario; • o perpetuum mobile é um movimento perpétuo que faz desfilar durante certo tempo sempre os mesmos valores rítmicos, como semicolcheias, por exemplo; • o ostinato rítmico é a adoção de uma fórmula rítmica que se repete incansavelmente; • o cânone rítmico envolve procedimento similar ao do cânone melódico. O ritmo seguiu a mesma evolução que os outros elementos da linguagem musical. Como a harmonia ou o contraponto, o ritmo tornou-se, gradativamente, cada vez mais complexo. Aos poucos, terminou prevalecendo o encanto pelos compassos desiguais (como em Bartók), sem falar do enriquecimento proporcionado pelo conhecimento da música produzida fora do mundo europeu. Na música atual, a noção de compasso tende a desaparecer para dar lugar, na maior parte das vezes, a uma notação proporcional às durações. Nas obras contemporâneas, é freqüente "contar" segundos e não "batidas". É um erro acreditar que uma música ritmada seja uma música escandida. Nada mais pobre, do ponto de vista do ritmo, do que uma marcha militar! O ritmo musical é uma pulsação, uma respiração que corresponde a estruturas humanas. E por isso que o compasso não passa de uma prática de notação. Na verdade, o ritmo está ligado a toda uma frase, um período, e até mesmo à obra inteira. Um dos compositores que mais ativamente participou da evolução do ritmo na música moderna foi Claude Debussy: basta ouvir a música de Debussy e sentir como ela se desloca livremente no espaço-tempo, dando ao ouvinte uma percepção muito elástica da duração, sem jamais imprimir divisões arbitrárias a esta.
Fonte de vida indispensável à obra musical, a dinâmica designa as flutuações de intensidade. Não se pode executar um obra sem fazer variações de dinâmica. Seria insuportável, tanto para o músico como para quem ouve, ter de agüentar uma peça musical executada uniformemente forte ou uniformemente piano. A exemplo do que aconteceu com os outros parâmetros musicais, a concepção da dinâmica se aperfeiçoou ao longo dos séculos. Até a época de Mozart, as notações de nuances na partitura eram em geral negligenciadas, deixando-se ao intérprete a liberdade de escolher, de acordo com a percepção que ele mesmo tinha da obra. Entretanto, quanto mais a música escrita tornava-se complexa, menos o compositor confiava a dinâmica ao instrumentista. Cada vez mais exigentes e precisos, os compositores passaram a multiplicar, na partitura, indicações relativas à interpretação. Na música contemporânea, é comum ver indicada na partitura uma nuance para cada nota (como, por exemplo, nas composições de Boulez). As variações de dinâmica mais comuns são: • pianissimo: muito suave (notação pp); • piano: doce, suave (notação p); • mezzo-forte: mais ou menos forte, é a nuança mediana (notação mf); • forte: forte (notação / ) ; • fortissimo: muito forte (notação ff); • sforzando: reforço brusco da intensidade (notação szf); ' crescendo: aumento progressivo da intensidade; pode também ser notado com o sinal • diminuendo: diminuindo; também notado com o sinal • mezzo voce: à meia voz; • sotto voce: murmurado, em voz baixa.
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AS FORMAS E OS GÊNEROS MUSICAIS
A música é uma linguagem, e seus elementos constitutivos foram apresentados organizadamente no capítulo precedente. Desses elementos, a linguagem musical — como, aliás, todas as demais linguagens — retira as formas que lhe são próprias. E as formas de qualquer linguagem organizam-se em vários e diferentes níveis. 1. Primeiramente, há a forma gramatical, por assim dizer "morfológica" no sentido próprio do termo. Tal palavra tem tal forma,flexiona-sede tal maneira, assume tal forma no plural e tal outra no feminino. As palavras concordam umas com as outras, produzindo-se a forma que indica a função relativa de umas para com as outras. Do mesmo modo se faz o encadeamento dos acordes e do mesmo modo se constrói a linguagem usada pelo músico, não importa se harmônica, polifónica, em imitação, etc. A isto chamamos formas elementares da gramática musical. 2. Há, em seguida, uma organização das estruturas elementares da linguagem: eu organizo orações, conecto umas às outras, introduzo relações lógicas, expresso relações de causa, de conseqüência e de simultaneidade, estabeleço comparações. Esta é a vida da linguagem. Assim também procede o músico quando emprega as complexas estruturas que relacionam as idéias musicais umas às outras: ele se vale de uma forma rondó, de uma forma Lied, de uma forma da capo, de uma forma sonata... A estas, chamamos formas musicais propriamente ditas. 3. Finalmente, o escritor que procura passar uma mensagem o faz de um modo que lhe é particular: adota um gênero, determinado ou livre, que corresponde a seu estado de espírito, à sua maneira de ser, à sua sensibilidade, ao seu gosto e também ao gosto do público. E escreverá um romance ou uma biografia, um ensaio ou uma tragédia, uma comédia ou um poema épico. Cada um desses gêneros tem seu tom próprio: leve ou grave, narrativo ou lírico, dialogado ou impessoal, etc. Cada
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Léxico musical explicativo
gênero possui suas próprias leis, que não são necessariamente arbitrárias, mas destinadas a lhe reforçar os efeitos. E assim também procede o músico quando decide escrever um concerto — cujas leis são diferentes das que regem uma sinfonia—ou resolve compor uma sonata, que obedece outras leis que não são as da suíte, e assim por diante. A isto chamamos gêneros musicais. 4. A partir do romantismo até nossos dias, a literatura e a música, numa evolução análoga, foram cada vez mais se mostrando tendentes a afastar-se das leis estritas dos gêneros, que os doutos tantas vezes buscam conservar rígidos e que, com isso, acabam por se esclerosar. A que gênero, por exemplo, poderia pertencer o "poema em prosa" de Baudelaire Une Mort héroïque [Uma morte heróica] que diríamos quase um conto? E o Ulysses, de Joyce, que se apresenta como uma nova Odisséia, é um romance ou uma epopéia? O mesmo aconteceu com a música. Inicialmente, com o romantismo, compuseram-se certos tipos de obras que não podiam ser definidas como pertencentes a um gênero estritamente estruturado (poema sinfônico, noturno, estudo, rapsódia, etc). Mais recentemente, cada obra específica da música moderna e contemporânea vem tendendo a criar sua própria forma singular, não menos estrita talvez, mas determinada em função do objetivo preciso por ela visado. O que se deve deixar bem claro, seja no caso da música, seja no da literatura, é que tal emancipação não é de modo algum uma regressão dos gêneros, mas antes uma transgressão deles rumo ao seu progresso. Os compositores contemporâneos podem ainda compor sinfonias, concertos e quartetos, sem por isso se mostrarem retrógrados. E mesmo quando formulam uma obra regida apenas pela singularidade, esta formulação continua sendo determinada por um conhecimento assumido — e ultrapassado, com conhecimento de causa — dos gêneros tradicionais e de suas estruturas. Não se trata de uma volta à selva, mas das aventuras lúcidas de uma liberdade altamente civilizada. "No mundo da arte, como em tudo que diz respeito à criação, o objetivo é a liberdade e a força de ir sempre mais além", dizia Beethoven, o que não o impediu de estudar minuciosamente as fugas de Bach e de Haendel antes de escrever as fugas gigantescas de algumas de suas últimas obras, dentro de um espírito completamente novo, com aquela liberdade soberana que levou os sabichões da época a acusálo de irregularidade e de desconhecimento das regras. A gramática foi feita para servir à expressão e não o contrário, mas sempre é vantajoso conhecê-la bem para poder transgredi-la quando for preciso, por necessidade íntima e não por ignorância, depois de haver exaurido todos os seus recursos.
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As formas e os gêneros musicais
AS FORMAS ELEMENTARES Baixo contínuo (ou simplesmente contínuo)
1
2
Procedimento comum nos séculos XVII e XVIII, o baixo contínuo (em italiano basso continuo) consistia em escrever na partitura somente a melodia (vocal ou instrumental) e a parte do baixo acompanhada por algarismos. Esses últimos formavam um código que permitia ao cravista ou ao organista improvisar "à primeira vista" um acompanhamento completo no teclado. Trata-se, portanto, de uma espécie de estenografía musical, em que os algarismos sugerem os possíveis acordes a serem executados. Este procedimento — que exige do intérprete iniciativa, intuição, conhecimento do estilo do autor e do período em que a obra foi escrita, além, naturalmente, de um perfeito domínio da harmonia — era designado pela expressão "fazer o baixo contínuo". Quase sempre o baixo contínuo era feito por um instrumento de teclado que, no baixo, era dobrado por uma viola, um violoncelo ou um fagote. Às vezes, um alaúde ou uma tiorba podia substituir o instrumento de teclado. Qualquer cravista daqueles tempos sabia tocar o baixo contínuo à primeira vista. Um bom exemplo é o acompanhamento de cravo ouvido no segundo movimento do Concerto de Brandenburgo n° 2, de Johann Sebastian Bach. Este costume particular é uma das características fundamentais da música barroca dos séculos XVII e XVIII: a monodia acompanhada substituía a polifonia, em que todas as vozes têm igual importância. O interesse, então, passou a concentrarse, por um lado, na melodia e, por outro, no baixo que dava a base dos acordes; as "vozes intermediárias" tornaram-se secundárias. Foi a prática do baixo contínuo que permitiu, durante dois séculos, a lenta maturação da consciência harmônica, até que, já no primeiro terço do século XVIII, essa consciência tornou-se tão forte que levou Rameau a julgar a melodia como mera emanação da harmonia (ver esta palavra supra). Baixo obstinado ou ostínato (em inglês, ground) Procedimento muito utilizado nos séculos XVII e XVIII, o baixo obstinado (em italiano basso ostinato) caracteriza-se por um motivo que se repete, de forma insistente e mdefinida, na parte do baixo, sobre a qual as outras vozes se desenvolvem e constróem diversos tipos de variações. O célebre Canon de Pachelbel está construído sobre um baixo obstinado. Monteverdi escreveu um moteto inteiro, para seis vozes solistas, coro e orquestra, es-
1
2
Seguimos aqui a ordem alfabética. O leitor não há de surpreender-se ao encontrar novamente, nesta parte do livro, certas noções já estudadas no capítulo precedente; o contexto agora é diferente, e elas estão ligadas a outras formas. Muitas vezes também chamado "baixo cifrado"; já a denominação "baixo geral" é a tradução literal de seu nome alemão Generalbass.
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Léxico musical explicativo
truturado totalmente sobre um basso ostinato de quatro notas, que se repete mais de duzentas vezes sem que isto o torne enfadonho. A chacona e a passacalha são geralmente escritas sobre um baixo obstinado, embora Bach não tenha recorrido a esse procedimento em sua Chaconne para violino solo. Cânone Recurso de escrita polifónica segundo o qual duas ou mais vozes vão "entrando" sucessivamente, retomando sempre o mesmo tema melódico e guardando até o fim o mesmo intervalo de tempo que as separa. O exemplo mais simples de cânone é a canção infantil francesa, universalmente conhecida, Frère Jacques. O cânone é a forma mais estrita de imitação. E a fuga é um desenvolvimento e uma ampliação do princípio do cânone. Cantus firmus
Melodia, geralmente tomada da liturgia, expressa em valores longos, que serve de coluna vertebral para um desenvolvimento polifónico. Este procedimento de escrita, muito freqüente durante a Idade Média, é característico do estilo de Johann Sebastian Bach, em cuja obra vamos encontrar os melhores e mais clássicos exemplos: os Seis corais Schübler e o primeiro e o terceiro coros da Cantata n° 80. Contraponto Técnica de escrita musical que consiste na superposição de várias "vozes", as quais, conservando sua autonomia melódica, resultam num conjunto harmonioso. Dizse, metaforicamente, que o contraponto é uma música "horizontal", enquanto a harmonia seria^ ao contrário, uma música "vertical". De maneira mais precisa, pode-se dizer que o contraponto estimula o ouvinte a pôr sua atenção no encaminhamento simultâneo das diferentes linhas melódicas, ao passo que a harmonia, ao contrário, está presa à sucessão, no tempo, de "massas" sonoras constituídas pela soma das notas emitidas, no mesmo instante, por diferentes "vozes". Na Tocata e fuga em mi maior de Johann Sebastian Bach, por exemplo, alternam-se, logo no início, três tipos de escrita claramente distintos: (a) longas passagens monódicas (a uma só voz), em que o organista faz brilhar, por toda a extensão do teclado e da pedaleira, uma profusão de fogos de artifício sonoros; (b) sucessões de acordes tocados fortemente (= escrita harmônica); (c) passagens polifónicas nas quais cada voz guarda sua independência (= contraponto). A fuga que vem depois da primeira parte é evidentemente, por definição, um exemplo de contraponto. O contraponto é a principal técnica de escrita musical da Idade Média e do Renascimento, períodos que poderiam ser denominados de "era polifónica". A escrita harmônica desenvolveu-se sobretudo a partir do século XVII, sem que, por isso, tenha feito desaparecer o contraponto. O estilo da imitação tem seu funda-
A s formas e os gêneros musicais
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mento no contraponto; o cânone, o ricercare e a. fuga são codificações particulares desse estilo. Fuga Composição de estilo contrapontístico (ver contraponto), que desenvolve ao máximo todas as possibilidades da escrita de imitação e que tem sua origem no cânone. A fuga obedece a regras muito estritas, que fazem dela um gênero bastante difícil. Mas nada seria tão falso quanto ver na fuga um gênero acadêmico. A extrema precisão e o grande rigor de suas regras, que fazem da fuga a "forma" por excelência, não são arbitrários e jamais constituíram empecilho à liberdade de invenção de um Johann Sebastian Bach. É na fuga que "forma" (em todos os sentidos da palavra) e "conteúdo" coincidem mais exatamente: quanto mais a "forma" lato sensu identifica-se com uma estrutura (e, portanto, com uma "forma" musical no sentido preciso da palavra), mais denso poderá tornar-se o conteúdo. É difícil descrever em detalhes a estrutura da fuga sem entrar em considerações técnicas. Simplificadamente, poderíamos dizer que a fuga compõe-se de diversas partes: 1. Exposição: o tema da fuga é exposto sucessivamente por todas a vozes (em geral, as fugas são a três ou quatro vozes, algumas vezes a cinco). Na primeira vez que aparece, o tema é exposto sozinho por uma das vozes: é o enunciado. Logo uma segunda voz o expõe novamente no tom da dominante: é a resposta; enquanto a primeira voz continua o seu caminho, agora trabalhando o contratema. A terceira voz, por sua vez, "entra" quando a segunda voz já expõe o contratema, ao passo que a primeira prossegue em sua trilha; em seguida, se for o caso, entrará uma quarta voz. 2. Desenvolvimento: depois da exposição, inicia-se um passeio pelos tons vizinhos (modulações), durante o qual se pode ouvir uma ou diversas reexposições totais ou parciais, digressões sobre o tema ou o contratema e, entre as modulações, um desenvolvimento contrapontístico livre, chamado episódio. O desenvolvimento culmina quase sempre numa longa nota pedal (ou seja, nota sustentada por uma das partes, enquanto as outras fazem ouvir um encadeamento de acordes mais ou menos livres com relação a essa nota) da dominante. 3. Stretto: exposição em que as sucessivas "entradas" se vão precipitando cada vez mais,ficandomais próximas umas das outras, de tal modo que o tema e o contratema sempre venham entrelaçados. 4. Conclusão: é geralmente precedida de uma nota pedal da tônica. O grande mestre da fuga foi Johann Sebastian Bach, autor de Die Kunst der Fuge [A arte da fuga]. Exemplos da arte da fuga em sua obra são Das wohltemperierte Klavier [O cravo bem temperado] e a Fuga sobre um tema de Legrenzi.
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Léxico musical explicativo
O terceiro movimento do Concerto de Brandenburgo n° 4 é um exemplo de fuga bastante livre, conciliada com o estilo concertante. Harmonia Em sentido estrito, é o conjunto de regras que regem a formação e o encadeamento dos acordes. Em sentido amplo, a harmonia opõe-se ao contraponto. Enquanto este último considera a superposição das "vozes" no sentido de seu desdobramento melódico no tempo, a harmonia, ao contrário, prende-se ao efeito produzido pela emissão simultânea dos diferentes sons das diversas "vozes". Na prática, harmonia e contraponto coexistem em qualquer composição. Mas, em certas épocas os compositores deram preferência à perspectiva temporal do desdobramento e, portanto, à beleza proveniente do encaminhamento paralelo de várias melodias (Idade Média, Renascimento, Johann Sebastian Bach), ao passo que, em outras, enfatizou-se o efeito produzido, de momento a momento, pela superposição dos sons emitidos simultaneamente. Imitação É um dos casos particulares do contraponto. A imitação consiste em reproduzir, numa das vozes, um desenho melódico anteriormente ouvido em outra voz. Um bom exemplo é o início da Cantata n° 80 de Johann Sebastian Bach, em que a entrada das diferentes vozes do coro se faz em imitação. A imitação é, na verdade, um dos fundamentos da escrita polifónica. O cânone, o ricercare e a fuga são modalidades específicas de imitação. Leitmotiv (motivo condutor) Motivo melódico, rítmico ou harmônico que reaparece diversas vezes no decorrer de uma mesma obra, sempre ligado a uma mesma situação, a uma mesma idéia, a um mesmo sentimento ou a uma mesma personagem. O retorno do motivo tem o efeito de suscitar, no ouvinte, a evocação mental da situação, idéia, sentimento ou personagem a que o motivo foi previamente associado: é um pouco o fenômeno da "associação de idéias". Wagner valeu-se sistematicamente deste recurso, e foi por sua causa que a palavra alemã Leitmotiv entrou no vocabulário musical. Mas, antes dele, Johann Sebastian Bach — com os corais das Paixões — e sobretudo Mozart já o haviam espontaneamente utilizado. Pode-se dizer que o emprego do coral "Ein feste Burg" na Cantata n° 80 de Johann Sebastian Bach prende-se à idéia do Leitmotiv. Melodia Sucessão de diferentes sons ligados por relações que lhes permitem ser percebidos por um ouvinte como um conjunto coerente. É esta "lógica" na sucessão de sons,
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inconscientemente reconhecida como tal pelo ouvinte, que consitui a melodia. Au Clair de la lune [À luz da lua] é uma melodia, ao passo que os sons produzidos por um gato andando sobre as teclas de um piano, mesmo que ele o faça com todo o cuidado, não constituirão uma melodia, a não ser que o acaso reunisse os sons produzidos segundo uma espécie de lógica acidental. A melodia é sentida espontaneamente como uma linha sinuosa, o que quer dizer que todos os pontos que a constituem estão ligados entre si por uma "lógica" que se percebe inconscientemente. Esta linha tem uma direção geral percebida como horizontal (desdobramento no tempo). Nada impede imaginarmos — e criarmos—uma melodia em que a sucessão dos sons que estão organizados segundo suas alturas seja substituída por uma sucessão dos timbres (de instrumentos diferentes ou diferentemente associados) relativos a um mesmo som ou a um mesmo acorde ou agregado de sons; donde o termo Klangfarbenmelodie ("melodia de timbres"), criado por Schõnberg em 1911, uma inovação que viria a exercer grande influência sobre a composição musical. Não confundir melodia, no sentido de forma da gramática musical, com melodia enquanto gênero musical, tipo de composição para solo vocal e acompanhamento instrumental característico da música francesa (as mélodies de Duparc, Fauré, Debussy, etc.). Modulação A palavra muitas vezes é empregada erradamente, com o sentido de uma "modificação na intensidade do som" (piano-forte). Mas, em música, modular significa nada mais que passar de uma tonalidade para outra. A modulação é um dos fundamentos da composição. Uma obra em que não existissem modulações seria de uma monotonia insuportável, a menos que fosse o caso de uma monotonia proposital. Exemplo: o Bolero, de Maurice Ravel. A obra inteira permanece na obsessiva tonalidade de dó maior, sem modulação e sem mudança rítmica. A diversidade é obtida apenas pela orquestração, ou seja, o emprego dos timbres instrumentais. Mas, de repente, no final, intervém uma brusca modulação para mi maior, cujo efeito é tanto mais surpreendente por haver a música permanecido estacionária tanto tempo, até aquele momento, na mesma tonalidade. Ornamento Procedimento de escrita musical usado pelo compositor, ou eventualmente pelo intérprete em sua execução, que consiste em ornamentar, embelezar, variar uma nota ou linha musical, particularmente fazendo acompanhar certas notas de fugitivas passagens para notas que lhes são vizinhas. O ornamento (abbellimento, em italiano) existe na música ocidental desde o canto gregoriano e desenvolveu-se entre os séculos XTV e XVI. Na época barroca,
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o ornamento era regra de execução obrigatória: os cravistas costumavam acrescentar grande quantidade de ornamentos ao texto escrito, e os cantores freqüentemente improvisavam passagens inteiras, com grande virtuosismo. Os hábitos musicais de hoje muitas vezes fazem esquecer o quanto, antigamente, era importante a iniciativa pessoal na execução das obras. A ornamentação improvisada sempre foi um dos procedimentos essenciais, através dos quais se manifestava a liberdade deixada ao intérprete (ver também baixo contínuo). Muito numerosos no início, e diferentes em cada país, os ornamentos não poderiam ser todos relacionados aqui. Rossini foi dos primeiros a escrever, nota por nota, os ornamentos que aparecem em suas óperas e a exigir que fosse cantado aquilo que estava escrito, codificando, dessa forma, o bel canto. Com isso, Rossini fez da coloratura —trecho de virtuosismo feito de trinados, escalas, arpejos, grandes saltos, etc., que se articulavam sob a forjna de vocalises nas árias de bravura cantadas nas óperas, como as duas árias da Rainha da Noite em Die Zauberflõte [A flauta mágica], de Mozart, por exemplo — um verdadeiro condensado dos ornamentos usuais. A partir do século XIX, os ornamentos mais usados são a apojatura (do italiano appoggiatura), o grupeto (do italiano gruppetto), o mordente (do italiano mordente) e o trinado, trino ou ainda trilo (do italiano trillo). A apojatura, nota dissonante com relação a determinado acorde, precede de um intervalo de segunda e prepara a nota esperada pela harmonia, fazendo com que esta nota, desse modo, ganhe relevo.
O coulé, termo francês que designa um ornamento da música antiga próximo da apojatura, permitia reunir dois sons separados por uma terça. O grupeto (em francês doublé ou tour de gosier) é um ornamento rápido, em que a nota principal está rodeada por três ou quatro notas conjuntas superiores e inferiores.
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O trinado, trino ou trilo (também dito groppo ou gruppo; em francês trille) é a alternância rápida da nota principal com a nota imediatamente superior. O trinado comporta certa liberdade de execução.
O trinado passou a ter grande importância a partir de Beethoven, quando deixou de ser ornamental para tornar-se prâticamente temático, impondo uma concepção totalmente nova do timbre, como nos finali das sonatas para piano opus 109 e opus 111, de Beethoven. (Na música antiga, a suspensão — em francês suspension — partia de princípio similar, mas produzia um efeito de surpresa ao atrasar, por meio de ligeira síncope, o início do ornamento.) O trêmulo (do italiano tremolo), próximo do trinado, consiste em repetir a nota principal em um movimento rápido e regular.
Ao inverso do trêmulo, a aspiration ou accent, ornamento usado pelos cravistas franceses, consistia em acrescentar, no fim de uma nota sustentada, uma apojatura que lhe cortava o som, abreviando-a, mas de modo a conferir-lhe destaque. Polifonia Em sentido estrito, é a combinação de diversas "vozes" simultâneas que guardam certa autonomia melódica (ver contraponto e voz). Em sentido amplo, diz-se de qualquer música escrita para mais de uma voz ou mais de um instrumento.
Grupeto inferior ou invertido
ll=p-ii¡|p Grupeto superior ou normal
O mordente (em francês mordant pu pincé) é um ornamento rápido em que a nota principal, depois de alternar-se com a nota que está imediatamente meio tom abaixo (ou acima), volta a ser tocada ou cantada.
Ricercare
Peça polifónica escrita em estilo de imitação. A fuga é uma forma codificada do ricercare, que desapareceu no século XVII, cedendo o lugar àquela que foi sua herdeira. A palavra italiana ricercare, entretanto, continuou sendo usada durante o século XVIII para designar uma fuga irregular. Temperamento Sistema de equalização dos semitons da escala cromática, destinado a remediar a diferença existente entre os valores acústicos puros (determinados matemática-
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mente) e aqueles utilizáveis na prática musical (ver, na Parte IV deste livro, o que se diz sobre Das wohltemperierte Klavier [O cravo bem temperado], de Bach). O temperamento permite a prática da "modulação enarmônica" entre as notas representadas nos instrumentos de som fixo por meio de um único som intermediário, como é caso de um dó sustenido ou de um ré bemol.
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primeira, podendo ou não apresentar ornamentos improvisados, como nas árias italianas de opera seria. É a forma por excelência das árias de óperas italianas do início do século XVIII, bem como das que são ouvidas nas cantatas de Johann Sebastian Bach. Forma Lied
Voz Na escrita musical, chama-se voz qualquer parte vocal ou instrumental que tenha autonomia melódica e se desenvolva no seio de um conjunto polifónico. Assim, tanto se pode falar de um coro a quatro vozes como de um quarteto instrumental escrito para quatro vozes.
AS FORMAS MUSICAIS PROPRIAMENTE DITAS Forma é a estrutura interna que determina o curso de um movimento musical. Não se deve confundir forma neste sentido com as formas externas (ou concretas), que é mais adequado chamar de gêneros musicais (sinfonia, suíte, concerto, cantata, ópera, etc). As formas musicais propriamente ditas são: Forma binária Estrutura de uma peça dividida em duas partes perfeitamente distintas. É a forma habitual das danças da antiga suíte, bem como da "forma sonata" rudimentar do jovem Haydn ou do jovem Mozart, quando ainda não cuidavam das partes de desenvolvimento. Rondó Alternância de episódios com refrão, sendo a peça iniciada pelo refrão. Exemplos: La Livri no Concerto n" 1, de Rameau. A forma rondó (do francês rondeau) está presente na maior parte dos últimos movimentos dos concertos da época clássica, bem como em muitos dos últimos movimentos das sinfonias, quartetos e sonatas da mesma época, em geral com a designação italiana de rondó. Fala-se de "rondósonata", em referência à forma sonata quando os refrões, por sua natureza e relações mútuas, dão a nítida impressão de uma forma constituída por exposição, desenvolvimento e reexposição, como nos finali das Sinfonias n° 97, n° 99 e n° 102, de Haydn, ou ainda da Sinfonia n° 2, de Beethoven. Forma "da capo" (ou forma ternária: A-B-A) A primeira parte termina na tônica; a segunda parte apresenta-se contrastada, principalmente no plano da tonalidade, e a terceira é a reexposição na íntegra da
Forma tripartida, aparentada com a forma da capo no piano tonal (o fim da primeira parte se faz na tônica, e não na dominante, como acontece na forma sonata), mas que se aplica essencialmente à música instrumental, quase sempre aos movimentos lentos, com a repetição da primeira parte escrita na íntegra. Um exemplo típico é o segundo movimento do quarteto A cotovia opus 64 n" 5, de Haydn. Com relação ao Lied como gênero vocal, ver adiante. Forma "tema e variações" É constituída por um tema, ou antes, por uma melodia que, depois de exposta, é apresentada seguidas vezes modificada por variações rítmicas, melódicas, instrumentais, de modulação, etc. Essa forma era usada com freqüência nos movimentos lentos (Concerto para piano n" 15 K 450, de Mozart; Sinfonia n° 85, conhecida como La Reine [A rainha], de Haydn;Trio para piano e cordas opus 97, dito Trio Erzherzogs [Arquiduque], de Beethoven; Quarteto Der Tod und das Mãdchen [A morte e a donzela], de Schubert, nos movimentos finais (Sonata opus 109e Sonata opus 111, de Beethoven) e, mais raramente, em alguns primeiros movimentos, entre os quais o do Quarteto opus 76 n° 6, de Haydn, e o da'Sonata opus 26, de Beethoven. A forma variação, em muitos casos, deu origem a um gênero musical além da obra independente enquanto tal. O tema da obra pode ser proposto ao compositor como um jogo de salão, ou ser tomado de empréstimo a outro músico, ou ainda ser originalmente criado pelo próprio compositor. As obras-primas do gênero produziram-se quando o compositor, por meio de uma série de elaborações e utilizando geralmente em cada variação apenas um aspecto ou fragmento do tema, fez surgir um mundo tão denso e diverso quanto homogêneo. Estão neste caso as Variações Goldberg, de Johann Sebastian Bach e as Variações Diabelli opus 120, de Beethoven. Quando se limita a dar diferentes roupagens ao corpo do tema, a variação pode constituir mero exercício de virtuosidade, uma espécie de alta costura musical. Quando, no entanto, ela se exerce em profundidade sobre um esquema temático dissecado, transmudado, revela-se como uma das atividades essenciais da criação musical. Ficamos perplexos com a plenitude cósmica obtida por Beethoven a partir do tema aparentemente anodino proposto por Diabelli, mas esta operação não é, no fundo, distinta do trabalho temático que faz geniais as outras obras de Beetho-
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ven. Não seria, no essencial, um paradoxo definir a Quinta Sinfonia de Beethoven como uma arquitetura toda construída a partir de variações sobre urna célula rítmica de quatro notas ainda mais anodina: uma simples letra do alfabeto morse! Forma sonata A forma sonata surgiu por volta de 1740 e teve entre seus primeiros grandes representantes Cari Philipp Emanuel Bach. Mas só foi elevada à perfeição com Haydn, Mozart e, pouco mais tarde, Beethoven. Como maneira de pensar, a forma sonata praticamente se aplica a qualquer peça musical de Haydn, Mozart, Beethoven e de grande parte de seus sucessores, não importa qual seja a "forma" dessa peça musical no sentido mais estrito, ou seja, rondó, tema e variações, etc. Enquanto estrutura com exposição, desenvolvimento e reexposição bem definidos, a forma sonata vale para a maior parte dos primeiros movimentos de sinfonias, concertos, quartetos, sonatas, etc, da época clássico-romântica, mas também para muitos movimentos lentos e muitos finali, bem como para determinados minuetes particularmente desenvolvidos. 1
OS GÊNEROS MUSICAIS (MÚSICA VOCAL) PEÇAS E BREVES PEQUENAS OBRAS
Madrigal. Com relação aos gêneros da Idade Média, o madrigal (em francês e inglês, madrigal; em italiano madrigalé) é o primeiro que pode ser considerado verdadeiramente moderno. (Quanto à sua origem, desenvolvimento e diversificação, cf. a segunda parte deste volume.) O madrigal chegou ao seu apogeu com Monteverdi, na época em que também tem início seu declínio histórico. Ária. Melodia extremamente desenvolvida, em geral acompanhada por orquestra, escrita para um cantor ou cantora sofista cujo virtuosismo tende, de hábito, a valorizar a peça. A ária (do italiano aria; em inglês e francês, air) tem seu lugar em obras vocais, como óperas, oratórios e cantatas, mas pode também constituir uma peça separada, como as "árias de concerto" que Mozart escreveu para suas cantoras preferidas e que estão entre as mais belas composições no gênero. Sobre o surgimento e desenvolvimento da ária na ópera italiana e, em especial, na ópera napolitana do final do século XVII, ver adiante.
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A reexposição está muitas vezes ligada a uma coda, que termina a peça: peroração do discurso musical, a coda explora freqüentemente um dos temas principais que sustentaram este discurso; geralmente brilhante e triunfal, muitas vezes é inquieta, sobretudo em Beethoven, como se trouxesse um novo matiz de mistério; também pode concluir abruptamente, ou por uma intervenção violenta ou por uma citação mutilada. As peças da música dita "clássica" não se encerram obrigatoriamente com fanfarras, tão razoáveis quanto tranquilizadoras.
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A ária pode adotar as mais variadas formas: ostinato, binaria, mas tem principalmente a forma da capo desde Alessandra Scarlatti. O que caracteriza a ária é o fato de ser nitidamente distinta do recitativo: a ária é o must do espetáculo lírico, a parte que se aplaude, que se bisa... É o manjar dos gourmets do canto lírico. Uma das maiores críticas feitas a Mozart por seus contemporâneos foi a de que o número de árias (apesar da incomparável beleza delas) em suas óperas era muito pequeno com relação à quantidade de recitativos acompanhados e de conjuntos vocais (duos, trios, quartetos, quintetos e sextetos). O século XIX italiano e italianizante manteve vivo o culto da ária, mas a concepção romântica do drama lírico — sobretudo a partir de Wagner e também, até certo ponto, de Verdi em sua última fase — acabou por suprimir da ópera a "ária de bravura", bem como a fronteira entre a ária e o recitativo. Arieta. Pequena ária, muitas vezes de virtuosismo (como as de Rameau), mas que expressa sentimentos simples. Por isso, foi bastante comum na opéra comique francesa. O nome (em francês ariette, em italiano arietta) passou à música instrumental com duas peças curtas de Joseph Haydn para depois, estranhamente, vir a designar uma obra-prima, a Arietta que finaliza a Sonata opus 111, de Beethoven. Na música vocal, a designação reapareceu com as Ariettes oubliées [Arietas esquecidas], de Debussy. Arioso. Forma menos rígida, que fica a meio caminho entre a ária e o recitativo acompanhado, sobretudo quando é narrativo. O arioso (termo italiano) aparece já com Monteverdi, Handel e Bach (nas Paixões) e abre o caminho para a fusão entre recitativo e ária que caracteriza o drama musical moderno. O termo foi retomado por Beethoven na Sonata opus 110, em que há um Arioso dolente. Cantilena. Na Idade Média, peça que pertencia ao canto litúrgico ou ao canto épico profano (evolução da cantilena para a canção de gesta). O termo cantilena (em italiano cantilena; em francês cantilène) foi também aplicado a peças instrumentais, designando sempre uma pequena música construída em torno de uma melodia muito legato e muito cantabile, para uma ou várias vozes, que podia ser tanto vocal como instrumental. Cavatina (do latim "cavare", cavar). Na origem um prolongamento melódico do recitativo acompanhado, a cavatina precedia a ária e comportava uma única seção sem repetição; mais tarde, tornou-se um tipo distinto de peça musical de caráter simples e expressivo, como por exemplo a Cavatina de Barbarina em Le Nozze di Figaro [As bodas de Figaro], de Mozart. Passou igualmente a designar, por extensão, uma composição instrumental muito melódica e de sentido lírico, destituída do desenvolvimento central, como a sublime Cavatina do Quarteto n° 13, de Beethoven. Recitativo. Forma em que a frase musical procura adaptar-se aos ritmos, aos impulsos de ritmo ou de intensidade, bem como às intenções do texto literário. Ao
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contrário da ária, o recitativo (do italiano recitativo) não possui uma forma propriamente dita: tudo será determinado pela palavra, pelo verso e pelo sentido. Na ópera italiana, a função do recitativo é a de relacionar as árias urnas com as outras, expondo as peripécias da ação sob a forma de monólogo ou diálogo. Em sua forma primitiva, é dito recitativo secco (recitativo seco), geralmente acompanhado apenas por um cravo, e subsistiu sob esta forma na opera buffa. O recitativo accompagnato (recitativo acompanhado) por toda a orquestra — pois era às vezes acompanhado pelas cordas apenas ou, já pouco mais tarde, só por sopros ou por um instrumento solista concertante—veio aparecer tardiamente na opera seria e depois no Sz'tt£5pz'e/mozartiano na ópera de Beethoven; cada vez mais rico e aperfeiçoado, viria a resultar na melodia contínua wagneriana. e
Lied. Peça vocal para uma só voz, em geral com acompanhamento de piano, cuja construção está baseada num poema. O Lied (plural: Lieder) é essencialmente alemão e, até certo ponto, opõe-se à mélodie, seu equivalente francês. O Lied remonta à tradição popular medieval (Volkslied), organizada e elaborada artisticamente no decorrer do século XVII (Kunstlied), mas foi no final do século XVIII, no momento em que se deu a tomada de consciência da música (e da sociedade) alemã, que o Lied tornou-se um dos gêneros favoritos dos músicos germânicos. Logo de saída — apesar de já existirem alguns belos Lieder compostos por Mozart e Beethoven — o jovem Schubert, com dezessete anos, levou o Lied ao ponto máximo da perfeição. Schumann, Brahms, Hugo Wolf e alguns outros, cada qual a seu modo, conceberam as mais variadas modalidades de encontro do texto poético com o texto musical, mas não chegaram a superar essa perfeição em suas obras-primas. O Lied pode apresentar-se sob diferentes formas: construção estrófica pura ou variada — esta última é a de algumas das maravilhas de Schubert, que ganharam grande popularidade: Heidenrõslein [Pequena rosa das urzes], Die Forelle [A truta], Der Lindenbaum [Atília]; recitativo livre ao estilo Durchkomponiert, em que a expressão do texto poético e o sentido das palavras e das frases é que criam, a cada vez, a forma musical apropriada. Não há lugar, no Lied, para façanhas de virtuosismo dos intérpretes. Primordial é o papel do piano, que vai muito além de um instrumento "acompanhador". Trata-se de verdadeiro diálogo e mesmo de uma música a três vozes: a humana e as das duas mãos do pianista. A passagem do piano para a orquestra irá, desse modo, operar-se naturalmente. Os Wesendonck-Lieder, de Wagner, abriram caminho para os grandes ciclos de Mahler, e o exemplo foi com freqüência seguido no século XX, desde os Gurrelieder de Schõnberg. Outra transformação do Lied que não se pode esquecer é o fato de que, originalmente escrito para uma só voz, ele se estendeu a pequenas formações de exécutantes: os quartetos e quintetos vocais de Schubert, freqüentemente tão belos quanto seus mais belos Lieder, são
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muitas vezes compostos sobre os mesmos textos literários que alguns de seus Lieder para uma só voz. Por fim, o termo Lied foi aplicado a uma composição puramente instrumental: a série de peças para piano Lieder ohne Worte [Canções sem palavras], de Mendelssohn, que, numa tradução errônea e forçada por certa afetação, recebeu em francês o deplorável nome de Romances sans paroles [Romances sem palavras]. Romanza. Canto o mais das vezes amoroso, sempre sentimental, muito em voga no fim do século XVIII na França. A mais célebre das romanzas (em francês romance), para não falar das compostas por Gossec, Méhul e Grétry, é Plaisir d'amour ne dure qu'un moment [Prazer de amor só dura um momento]. Por ser um gênero fácil, quase banal mesmo, a romanza foi cultivada durante todo o século XIX com incrível fecundidade. Já no século XVIII, contudo, essa palavra italiana passou também a ser usada na música instrumental, designando uma peça particularmente melodiosa, que fala ao coração, no verdadeiro sentido da indicação cantabile empregado por Mozart e Beethoven. A obra-prima, neste caso, é a Romanza que constitui o movimento lento do Concerto em ré menor para piano e orquestra K 466, de Mozart, ainda mais primorosa que a Romanza n° 1 em sol maior para violino e orquestra opus 40, e a Romanza para violino e orquestra n° 2 em fá maior opus 50, do jovem Beethoven. Balada. 1. Na Idade Média: forma literária e musical (em francês ballade, em inglês ballad, em alemão Ballade) com regras precisas, cuja característica principal é o retomo de um refrão. O exemplo literário marcante é a Ballade des pendus [Balada dos enforcados], do poeta medieval francês François Villon. 2. A partir do século XVIII na Alemanha: poesia de caráter ao mesmo tempo narrativo e lírico, encontrada com freqüência nas obras de Goethe, Schiller, Bürger e outros, sobre a qual se compunha música vocal com grande liberdade, geralmente ao estilo Durchkomponiert, com grandes passagens quase recitativas e estrofes de feitios os mais variados. Muitos dos Lieder de Schubert são, na verdade, baladas: algumas são muito longas e outras bem mais curtas. Entre essas últimas, estão alguns dos pontos altos de sua obra: Erlkónig [O rei dos elfos] e Der Zwerg [O anão]. 3. Na música instrumental: peça composta para piano, cuja única coisa em comum com a balada vocal é o seu caráter dramático e, por vezes, a evocação de determinado poema. Mélodie. A definição geral é exatamente a do Lied: peça vocal para uma voz, geralmente com acompanhamento de piano, cuja letra é um poema, em geral previamente escrito. O Lied é essencialmente alemão. A mélodie é sobretudo francesa. A diferença essencial reside no fato de que, pela simplicidade de sua estrutura e de seu desenvolvimento melódico, o Lied está em geral próximo de suas origens po-
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pulares (Volkslied), enquanto a mélodie é uma peça erudita ou, pelo menos, sempre refinada na linguagem e nos propósitos. As mélodies de Berlioz transcendem, pela qualidade, qualquer produção francesa anterior. Mas foi principalmente com Duparc, Fauré, Chabrier e Chausson, entre 1875 e 1900, que a mélodieteve seus melhores momentos,bem como, decerto, com Debussy, que renovou o gênero. Vaudeville (voix-de-ville, "vozes da cidade"). Antes de vir a designar uma comédia bufa cuja intriga é tão complicada quanto burlesca, o vaudeville era, desde o século XV, uma canção formada de quadras que são todas cantadas com a mesma melodia. E neste sentido, o finale da ópera de Mozart Die Entführung aus dem Serail [O rapto do serralho] é um vaudeville. Nos séculos seguintes, o vaudeville transformou-se numa canção satírica, de troça e chistes políticos, bem mais popular que as airs de cour. A "comédia de vaudeville" foi uma das fontes da opéra comique (ópera cômica) francesa. OBRAS D E ESTRUTURA COMPLEXA
Música lírica Uma tradição bem enraizada reserva o epíteto de "lírica" à música de ópera. No século XX, contudo, a designação da ópera como "drama lírico" tornou-se cada vez mais comum desde Pelléas etMélisande, de Debussy. O que caracteriza a música "lírica", no sentido em que é-aqui entendida, é não apenas o fato de estar ligada a um espetáculo cênico, mas o de haver sido composta para um libreto (do italiano libretto) que, ou foi escrito especialmente para ela (caso mais comum) ou é uma adaptação muito precisa, com vistas à obra musical, de um texto literário, geralmente uma peça de teatro, como, por exemplo, as que foram feitas da peça de Maeterlinck para Pelléas et Mélisande ou do drama de Büchner para Wozzeck. Como a música lírica está ligada à ação dramatúrgica, a qualidade do libreto e o peso da colaboração entre libretista e músico são importantes para assegurar a coesão arquitetura! da obra lírica. A debilidade ou fraqueza de um libreto pode condenar uma ópera a não passar de trechos musicais justapostos, mesmo que, muitas vezes, individualmente admiráveis. Certas colaborações, por outro lado, mostraram-se exemplares: neste caso estão a de Mozart com Lorenzo Da Ponte e a de Strauss com Hofmannsthal. Situação ideal é, por exemplo, a de Wagner: um músico que, reunindo as qualidades de autêntico poeta, compunha os próprios libretos. 1
À parte este último caso, certos comentadores de obras líricas teriam evitado uma série de tolices se houvessem mostrado maior interesse pela própria música, ao invés de dirigi-lo tão vivamente para o libreto. Um esboço psicanalítico do texto de Maeterlinck, bom ou mau, só de forma reflexa esclarece as intenções psicológicas e a dramaturgia propriamente musical de Debussy.
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Ópera, opera seria, opera buffa, opéra comique, opereta. Com relação às origens, características e evolução destes gêneros ver infra: os capítulos 13, 14, 15, 22, 25, 26, 29, 37, 39, 40, 47, 50, 59, 61, entre outros. Pastoral. Obra de dimensão pequena e inspiração bucólica que guarda mais semelhança com a opéra comique do que com a grande ópera. Por exemplo: Acis et Galatée [Acis e Galatéia] de Lully, Daphnis et Eglé [Dafne e Egle] de Rameau, Le Devin du village [O adivinho da aldeia] de Jean-Jacques Rousseau, Ascanio in Alba [Ascânio em Alba] de Mozart... O nome pastoral (em francês, pastorale) estendese a obras instrumentais que pretendem evocar a vida no campo e a bucólica felicidade pastoril, valendo-se de tonalidades muito simples, adaptadas aos instrumentos dos pastores. Quase sempre a tonalidade usada é fá maior que, inclusive, é a principal tonalidade da Pastoral Symphonie [Sinfonia pastoral], de Beethoven. Singspiel. Na Alemanha, originalmente espetáculo de teatro em que se achavam incluídas peças musicais. No século XVIII, o Singspiel tornou-se o equivalente tipicamente germânico (mais natural e bem comportado, apenas mais feérico) da opera buffa italiana. No Singspiel o recitativo secco é substituído por diálogos simplesmente falados. Com Die Entführung aus dem Serail [O rapto do serralho], Mozart compôs a obra-prima do gênero, e com Die Zauberflõte [Aflautamágica] levou a termo a trajetória do mesmo, transcendendo-o. Melodrama. Obra dramática que comporta um texto declamado (não cantado) com acompanhamento de instrumentos de música (e que nada tem a ver com o "melodrama romântico"). Jean-Jacques Rousseau foi um dos precursores do gênero com o seu Pygmalion [Pigmalião]. Depois dele, o melodrama tomou-se mais propriamente germânico, procedendo, como o Singspiel da mesma repugnância pelos virtuosismos do bel canto italiano. Os melodramas de Benda apaixonavam Mozart, que escreveu uma composição no gênero chamada Semiramis, infelizmente perdida. Beethoven empregou magnificamente o melodrama tanto em Egmont, como na última versão de Fidelio, e também Schubert fez uso do melodrama em suas óperas. No século XX, o melodrama teve sua última e renovada expressão no Sprechsgesang de Schõnberg — Pierrot lunaire [Pierrô lunar] — e de alguns dos seguidores deste, bem como com Stravinski, em Histoire du soldat [História do soldado], por exemplo. Música de cena. Dá-se este nome à música escrita para uma obra cênica (tragédia, comédia, drama, etc.) cujo texto literário, preexistente à música (seja de que época for), não foi destinado, pelo menos na totalidade, a ser cantado, mas a ser falado pelos atores. Libertada das amarras do libreto, a música de cena não é de forma alguma uma parente pobre da ópera. Nos melhores casos, apresenta uma coesão musical tão harmoniosa quanto a da melhor das óperas, embora as peças que a compõem sejam separadas umas das outras pelos atos ou cenas da peça que é
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encenada. Como gênero, existe desde o século XVII. Estão nesta categoria a música de Marc-Antoine Charpentier para Andromède [Andrómeda] de Corneille e as de Purcell para as tragédias de Dryden. Menos praticada no século XVIII — embora a esse gênero esteja ligado, por exemplo, Thamos in kõing in Aegypten [Tamos, rei no Egito] de Mozart —, a música de cena viria aflorescerno século XIX com as obras compostas por: Beethoven para Egmont, de Goethe; Schubert para Rosamunda, de Helmina von Chézy; Mendelssohn para A Midsummer-Night's Dream [Sonho de uma noite de verão], de Shakespeare; Schumann para Manfred, de Byron; e ainda por Fauré para Pelléas etMélisande, de Maeterlinck; Debussy para Le Martyre de Saint Sébastien [O martírio de São Sebastião], de D'Annunzio; Milhaud para Protée [Proteu], de Claudel, entre outras. Nessas composições, em geral são mais numerosas as peças puramente instrumentais: abertura ou prelúdio, entreatos ou interlúdios (estes podem situar-se entre duas cenas ou mesmo no decorrer de uma cena, como é o caso do interlúdio que acompanha a morte de Clãrchen em Egmont), balés, etc. Mas as peças vocais não deixam de ser importantes. Por exemplo: em Egmont, os dois Lieder de Clãrchen (talvez os primeiros Lieder a contarem com acompanhamento de orquestra) e o melodrama final; e, em Rosamunda, uma romanza, uma "melodia pastoril" e três coros. Tais peças podem, inclusive, ter um papel predominante com relação às peças instrumentais, como acontece em Le Martyre de Saint Sébastien [O martírio de São Sebastião]. Nesta obra, os coros ganham particular destaque, e o mesmo se pode dizer com relação a obras de Schubert, Mendelssohn, Schumann, etc. A música de cena é um dos domínios da composição musical em que o autor da música, por não estar obrigado a acompanhar palavra por palavra um longo texto ou a comentar as peripécias de uma intriga, sente-se mais livre para dar o melhor de si e fazer com que sua música rivalize com um texto literário de que ele gosta, ao invés de simplesmente ilustrar esse texto ou fornecer-lhe mero cenário sonoro. Deve-se associar a música de cena, mais talvez que a música de balé (de hábito puramente instrumental), à música de filme, cada vez mais importante, que tem em Alexander Nevski, de Prokofiev, um dos seus pontos altos. Musica de igreja. Não seria de todo paradoxal defini-la como uma música de cena a serviço de uma ação (litúrgica e não teatral) e composta para textos não especificamente escritos para ela. Uma vez que esta música é comandada pelas formas litúrgicas e paralitúrgicas das cerimônias religiosas (no caso, cristãs e, na maior parte das vezes, católicas), limitar-nos-emos a lembrar algumas definições para os leitores não cristãos ou pouco interessados em religiões e ritos. A missa é o ato essencial da liturgia cristã. As partes não cantadas (sobretudo o canon, cujo texto gira em torno da "consagração" do pão e do vinho) são as mais numerosas. As cantadas podem ser: o Introito (muitas vezes omitido), o Kyrie (sú-
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plica à Santíssima Trindade), o Gloria (glorificação da Santíssima Trindade), o Credo (resumo dos dogmas), o Ofertorio (muitas vezes omitido), o Sanctus (proclamação da santidade divina), seguido do Benedictus (reconhecimento do Messias) e do Agnus Dei (súplica ao Cristo antes da comunhão), cujas últimas palavras são Dona nobis pace ("Dá-nos a paz"). O Sanctus e o Benedictus, o Agnus Dei e o Dona nobis são freqüentemente cindidos em duas peças musicais distintas. O Introito da missa dos mortos começa pelas palavras Requiem aeternam dona eis ("Dê-lhes repouso eterno"), e daí o nome de Requiem dado à missa dos mortos posta em música. Em certas missas para celebrações específicas é costume inserir certos textos poéticos — hinos, seqüências, prosas, antífonas, etc. —, que podem ser compostos para serem incluídos no curso da própria missa {Dies trae, nas missas de Requiem), ou constituir peças separadas, como o Stabat mater (A mãe de Jesus ao pé da cruz) de Pergolesi. Outros hinos, como o Te Deum (agradecimento a Deus por uma vitória, uma sagração, uma cura, etc), são sempre peças musicais à parte. Por fim, a aclamação hebraica de louvor, Alleluia, seguida ou não de um versículo, tantas vezes musicada, sugere tradicionalmente melismas e vocalises. As Vésperas (em latim, Vesperae), que são as preces litúrgicas ao entardecer, seguidas das Completas, rezadas ao cair da noite, consistem, em essência, no canto de salmos, cuja escolha depende do dia ou da festa, e do Magnificat, canto de agradecimento a Maria, grávida de Jesus. O único gênero de música de igreja que não é determinado por imperativos litúrgicos ou paralitúrgicos é o moteto, sobre o qual é forçoso discorrer mais longamente. Moteto. Peça vocal exclusivamente destinada à igreja e, no início, reservada ao coro, mas que depois passou a incluir um ou mais solistas e orquestra. Na Idade Média (século XIII), o moteto (do latim motetus) consistia na superposição de diversas melodias com textos diferentes. Sobre as origens do moteto (em italiano moteto, em francês motet), ver adiante. A um cantus firmus constituído por melodia litúrgica sobrepunha-se uma melodia independente, com texto muitas vezes profano. No princípio, só ela era chamada pelo nome de moteto. Posteriormente, a palavra passou a designar uma peça polifónica, composta geralmente em estilo de imitação: Dufay, Ockeghem, Josquin Des Prés (século XV); depois Orlando de Lassus, Palestrina e Victoria (século XVI) foram os grandes mestres do moteto polifónico. No século XVII, a aparição da monodia acompanhada e do baixo contínuo transformaram o desenvolvimento do moteto. O nome passou a designar uma peça, geralmente de grandes dimensões, para um ou mais solistas, com coro e quase sempre orquestra. O moteto, a essa altura, mal se distinguía da cantata. Mas, pouco usada na Itália e na Alemanha, esta palavra era, no século XVII, o nome que se dava na França a qualquer
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composição religiosa sem função Mtúrgica precisa (motets a uma ou duas vozes de Lully e Couperin, bem como os grandes motets ainda de Lully, de Charpentier, de Delalande e de Campra). O anthem é o equivalente inglês do moteto-cantata. Neste contexto, os grandes motetos polifónicos a capella (sem qualquer acompanhamento instrumental) de Bach constituem exceções. Ulteriormente, a designação de moteto serviria para qualquer peça religiosa que não fosse inspirada nem na missa, nem no oratório (Brahms, Bruckner, Liszt). Da igreja ao concerto Cantata. Peça vocal composta de várias partes, para uma ou mais vozes, incluindo, por vezes, um coro e acompanhamento de cravo ou orquestra, que se destinava a concertos ou à igreja, mas jamais ao teatro. Na realidade, a cantata (em francês cantate, em alemão Kantate e, em italiano, cantata) é difícil de ser definida, pois apresenta formas muito diversas. Não é fácil distingui-la do oratório. Seu nome significa simplesmente peça cantada (cantata) por oposição à peça que é "soada" (sonata), num instrumento de sopro ou de cordas, e também à que é "tocada" (toccata) num instrumento de teclado. A cantata apareceu no começo do século XVII com a monodia acompanhada, e seu desenvolvimento corresponde ao do baixo contínuo. A cantata nasceu em Florença no círculo do conde Bardi: as Nuove musiche, de Caccini (1617), foram as primeiras cantatas, e o gênero se difundiu rapidamente com os mestres italianos Luigi Rossi, Carissimi, Cavalli, depois com Stradella, mas principalmente com Alessandro Scarlatti, que deixou mais de quinhentas cantatas. Na Alemanha, a cantata revelou-se, antes de tudo, um gênero religioso, que se desenvolveu particularmente graças à introdução do coro, e não raro da música orquestral. Tornou-se parte essencial do culto luterano no final do século XVII e na primeira metade do século XVIII, quando foi cultivada, inicialmente por Schütz, Buxtehude, Pachelbel, Kuhnau e depois por Mattheson e Telemann, mas sobretudo por Johann Sebastian Bach. Na França, com a introdução de um elemento dramático na cantata profana, a cantate française tornou-se uma ópera em miniatura (Campra, Bernier, Rameau), ao passo que os grandes motets de Charpentier e Delalande constituíam formidáveis cantatas sacras para vários solistas, coro e orquestra. Johann Sebastian Bach também escreveu certo número de cantatas profanas, como a Kaffee-Kantate [Cantata do café] BWV211, musicalmente muito parecidas com suas obras sacras, a ponto de algumas vezes compreenderem trechos idênticos: o coro inicial da Cantata BWV214, por exemplo, composta para o aniversário da rainha da Polônia é o mesmo que o do Weinachts Oratorium [Oratório de Natal]. A cantata "patriótica" apareceu com os músicos da Revolução Francesa (Gossec, Cherubini, Méhul). De 1803 a 1969, um tipo de cantata que consistia numa cena para três personagens e música orquestral, mas sem coro, serviu como peça
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de concurso para o famoso Prix de Rome, na França. Menos oficialmente, a cantata continua sendo composta por numerosos músicos, em dimensões e com estruturas tão variadas quanto permite a plasticidade do gênero. É interessante notar que a música composta por Prokofiev para o filme Alexander Nevski, de Serguei Eiseinstein, pôde ter como subtítulo a palavra "cantata". Mas a obra mais significativa deste gênero no século XX é a Cantata profana, de Bartók, uma de suas obras capitais. Oratório. Cantata de vastas dimensões, com muitos personagens, sobre um tema sacro (pelo menos na origem). A diferença essencial entre o oratório (em italiano e francês oratorio, em latim e alemão oratorium, em inglês oratory) e a cantata (cf. supra) é o caráter mais dramático deste último, que o torna uma espécie de ópera sacra sem encenação, ao passo que a cantata se mostra mais lírica. Desde a Idade Média, certas cenas da Bíblia eram representadas, recitadas e cantadas nas igrejas. Destes dramas litúrgicos resultaram, no século XV, os mistérios e as paixões. No século XVI, São Filipe de Néri retomou a idéia destas encenações no Oratório de Santa Maria in Vallicella, em Roma (essa é a origem da designação oratório paia esse gênero de música). Com o surgimento da monodia acompanhada e da ópera, o oratório encontrou seu caminho definitivo: Rappresentazione di anima e di corpo [Representação da alma e do corpo], de Cavalieri (1600), é o primeiro oratório propriamente dito. Carissimi, no século XVII, deu ao oratório uma dimensão dramática com a introdução da parte recitante en Jephte [ Jefté]. Os grandes mestres do oratório foram Charpentier, na França, com suas Histoires sacrées [Histórias sagradas], Alessandro Scarlatti, na Italia, e sobretudo Haendel. O Messiah [Messias], que reproduz dramaticamente os grandes episodios da vida do Cristo, Israel in Egypt [Israel no Egito], Belshazzar [Baltasar] e Judas Maccabaeus são modelos no gênero. As Paixões de Johann Sebastian Bach também são oratorios, embora a introdução do coral lhes dê um caráter mais litúrgico. Nos séculos seguintes, o oratório permaneceu preso à temática religiosa: Die Schõpfung [A Criação], de Haydn; Christus am Olberge [Cristo no monte das Oliveiras], de Beethoven; Die Legende von der heilige Elisabeth [A lenda de Santa Elisabeth], de Liszt; Le Roi David [O rei David] de Honegger; Job, de Dallapiccola. Mas, com Die Jahreszeiten [As estações], de Haydn, inaugurou-se a possibilidade do oratorio corn tema profano, embora geralmente exaltando valores que o compositor, mesmo se for ateu, considera essenciais: A survivor from Warsaw [Um sobrevivente de Varsóvia], de Schõnberg; La Garde de la Paix [Em defesa da paz], de Prokofiev; Il canto sospeso [O canto suspenso], de Luigi Nono.
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Prêmio de composição conferido anualmente, entre as datas indicadas no texto, pela Academia de Belas Artes de Paris, a um estudante do Conservatório de Paris, que passava quatro anos na VUla Mediei, em Roma. Berlioz (1830), Bizet (1875) e Debussy (1884) receberam essa láurea, entre outros. (N. T.)
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Sucede ainda que o oratorio pode apresentar-se muitas vezes como uma "ópera de concerto". Muitos deles foram depois levados à cena e passaram a compartilhar da mesma sorte que as óperas e os espetáculos de balé. Quase já não nos lembramos mais de que oratório foi o título original de obras como La Damnation de Faust [A danação de Fausto], de Berlioz, Œdipus Rex [Édipo rei], de Stravinski, Jeanne d'Arc au boucher [Joana d'Arc na fogueira], de Honegger, e Moses undAron [Moisés e Aarão], de Schõnberg.
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A variação ou double. Uma peça pode ser seguida por uma variação que consiste em ornamentar o material já apresentado. No barroco francês, tem o nome de double. 1
DIFERENTES DANÇAS
Allemande. É o primeiro movimento da suíte. De andamento moderado ou lento, a allemande (em italiano, allemanda) desenvolve-se com regularidade, algo pomposamente. Foi sempre de forma binária (séculos XVII e XVIII), tendo desaparecido por volta de 1750. Exemplos: o n° 2 da Suíte para violoncelo n° 6e o n° 1 da Partita para violino solo, de Bach. 2
OS GÊNEROS MUSICAIS (MÚSICA INSTRUMENTAL) Suíte Seqüência de movimentos de dança, com ritmos, características e tempos diversos, a suíte é a mais antiga das formas de composição musical. Existe desde a Idade Média, quando já se tinha o costume de agrupar as danças aos pares (uma dança lenta sucedida por outra geralmente viva, como o par pavana/galharda). A suíte desenvolveu-se sobretudo no século XVII, graças à influência dos alaudistas, mas foi um cravista alemão, Froberger, que, por volta de 1650, codificou a sucessão dos movimentos: um prelúdio facultativo (muitas vezes substituído por uma abertura "à francesa"), seguido de uma allemande (em italiano allemanda), uma courante, uma sarabanda (em espanhol zarabanda, em francês sarabande) e uma giga (em italiano giga, em francês gigue, em inglês jig), ou seja, lento - vivo - lento - vivo. Entre a sarabanda e a giga, eram eventualmente intercaladas outras danças em número variável, bem como peças livres Carias" ou "airs", "divertimentos", etc). Por conseguinte, a suíte pode comportâr de quatro a oito movimentos, e às vezes mais. A suíte (suite) é um gênero essencialmente francês ou de inspiração francesa. Os alemães lhe dão o nome de partita. Couperin, que imprimiu à suíte uma forma muito livre, chamava-a ordre. Movimentos de dança da suíte ESTRUTURA GERAL
O rondó. Forma que tem sua origem, ao que tudo indica, em uma forma poética medieval do mesmo nome, o rondó (em francês rondeau) é constituído pela alternância de um refrão com episódios musicais. Tornou-se uma das formas favoritas dos músicos franceses, sobretudo depois de Couperin. A forma binaria. A maior parte das danças apresenta esta forma, em especial as quatro danças fundamentais da suíte: a allemande, a courante, a sarabanda e a giga. A peça se divide em duas partes. A primeira expõe o tema e modula para o tom da dominante. Esta primeira parte é repetida integralmente antes de se passar à segunda, que retoma, na dominante, o material temático da primeira parte. A segunda parte, por sua vez, deverá modular para retornar à tônica, antes de ser repetida.
Bourrée (séculos XVII e XVIII). Dança francesa, geralmente a dois tempos e de andamento rápido, a bourrée começa num tempo fraco, o que lhe dá um caráter particular. Sempre teve forma binária. Chacona. Em espanhol chacona, em francês chaconne, em italiano ciaccona e em inglês chacony. É uma dança lenta, de origem espanhola, decerto importada da América, que lembra muito a passacale. Courante e corrente. A courantefrancesaera uma dança bastante viva e animada em sua origem, mas que se tornou nobre e circunspecta a partir do século XVII. De ritmo ternario (3/2), por vezes binário (6/4), caracteriza-se pelo ataque sobre uma colcheia em tempo fraco. A forma da courante é sempre binária. A corrente italiana, provavelmente uma deformação da precedente, é mais viva que esta e escrita no compasso de 3/8, com suas colcheias iguais. Exemplos: Suíte para violoncelo e Partita em ré menor para violino, de Bach. Forlana. Dança italiana (Veneza) nos ritmos de 6/4 e 6/8, a forlana (em francês forlane) tinha andamento moderado e esteve bastante em voga no século XVIII. Galharda. Dança de passos saltitados e ritmo ternário, a galharda (em italiano gagliarda, em inglês gaillard, em francês gaillarde) é originária da Itália. No século XVI, vinha normalmente após a pavana, à qual se achava acoplada. Gavota. Dança de origem francesa (da região do Gap, cujos habitantes são ditos gavots) de ritmo binário (2/2), andamento moderado, mas alegre e ligeira. Algumas vezes, a gavota (em francês gavotte, em inglês gavot, em italiano gavotta) é seguida por uma segunda gavota, apresentada como trio, à maneira do minueto. Exemplo: Suíte n" 6 para violoncelo, de Bach. Giga oujiga. Ultima peça da suíte, a giga (em italiano giga e em francês gigue) é, ao que tudo indica, uma dança de origem escocesa (em inglês, jig). Seu ritmo pode
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A ordem seguida aqui é alfabética. - Um outro tipo de dança, também chamada de allemande, próxima da valsa, surgiu no final do século XVIII. É também conhecida como detacher Tanz.
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A passacale e a chacona constituem, a partir de Lully, a grande peça final da ópera à francesa (até Rameau, inclusive). Na Inglaterra, o tema "obstinado" da passacale chama-se ground. O célebre Bolero de Ravel assemelha-se à passacale e retoma sua origem espanhola.
ser binário ou ternario, mas sua característica nos dois casos é a escrita em tercinas de colcheias iguais (Itália) ou pontuadas (França). A giga italiana é composta em imitação ou emfugato. Sempre teve forma binária (séculos XVII e XVIII). Minueto. Dança de origem francesa (província de Poitou), muito rápida e viva na origem (menuet em francês significa: a pequenos passos). No século XVIII, o andamento do minueto (menuet em francês, minuetto em italiano), que já era moderado durante o século XVII, tornou-se muito lento, "de uma nobre simplicidade", no dizer de Rousseau. O minueto tem ritmo ternário, com os tempos um tanto acentuados a partir de 1720, e sua forma sempre foi binária. Quase sempre é seguido por um segundo minueto na forma de írio e constitui, em geral, a penúltima peça da suíte (antes da giga final). O minueto, com o seu trio, é a única dança da suíte que passou à sinfonia (Haydn e Mozart), antes de ceder lugar ao scherzo. É muitas vezes substituído também pela simples indicação "tempo di minuetto" no alto da página de uma peça (Sonata opus 49n°2e Sonata opus 54, de Beethoven), vale dizer, um andamento entre allegreto e allegro.
Passepied. Dança vivaz e alegre no compasso de 3/4 ou 3/8, o passepiedfrancês,de origem bretã, é semelhante ao minueto; seu ataque, no entanto, se faz num tempo fraco (século XVIII). Pavana. Danse de cour, lenta, nobre e cerimoniosa, de origem italiana (em italiano pavana ou padovana, em francês pavane, em inglês pavan), é geralmente seguida por uma vivaz galharda (século XVI).
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Passacale oupassacalhe (séculos XVII e XVIII). Ao lado da chacona, com a qual se parece muito, a passacale (em espanhol pasacalle, em italiano passacaglia, em francês passacaille ou passecaille) é, de todas as danças, a mais extensa e a que mais longamente foi desenvolvida. Sua origem é espanhola, mas, segundo parece, teria vindo das índias, sendo introduzida na Espanha por marinheiros, no século XVI, como sucedeu com a chacona. Era, então, uma dança viva e licenciosa, que consistia na repetição infindável de um mesmo motivo à maneira da farândola. Dessa sua forma original, conservou duas características: a repetição e o baixo ostinato. Da Espanha passou à França, onde a passacaille tornou-se, pouco a pouco, uma dança lenta e nobre. Pode mostrar-se sob dois aspectos: 1. Variação: o tema é anunciado pelo baixo e durante a obra inteira será retomado indefinidamente, sempre igual, sem qualquer alteração. As outras vozes fazem variações sobre esse baixo. Exemplo: Grande passacale em dó menor para órgão, de Bach. Há uma variante desta fórmula: o tema não está presente em todas as variações, onde aparece apenas subentendido. Exemplo: a chacona da Partita em ré menor para violino solo, de Bach. 2. Rondó: o tema retorna periodicamente, sob forma de um refrão, intercalado por vários episódios. É a forma da passacaille (ou da chaconne) àfrancesa.Exemplo: Grande passacale em si menor, de Couperin.
Ern Mozart, Beethoven e Schubert, o frio normalmente nada tem que lembre um segundo minueto e faz, às vezes, vivo contraste (poesia sonhadora e terna) com o minueto que o precede e é repetido depois dele. Não confundir sobretudo o trio intercalado num minueto (ou num scherzo, ou em qualquer outra peça do mesmo tipo) com o trio, obra de câmara para três instrumentos. Uma coisa é o trio do minueto do Quarteto opus 1S n" 4, de Beethoven, e outra o Trio opus 70 n° 2, do mesmo autor, para piano, violino e violoncelo.
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Sarabanda. Dança grave e lenta, talvez importada do Oriente, que apareceu na Espanha no século XVI. Na origem muito lasciva, a sarabanda (em espanhol zarabanda, em francês sarabande, em italiano sarabanda) marcou presença no século XVII em toda a música européia, como uma forma nobre e em geral ricamente ornamentada. Escrita em três tempos, caracteriza-se por fazer a acentuação incidir no segundo tempo. Tem lugar logo depois da courante na suíte tradicional, onde é um dos movimentos principais, e prefigura o movimento lento da sonata (séculos XVI a XVIII). Exemplo: Partita para violino solo, de Bach. Algumas outras danças, que não pertencem à suíte
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Allemande. Dança da época de Schubert, mas já conhecida no tempo de Haydn e Mozart, a allemande (allemanda em italiano) ou deutscher Tanz tem compasso ternário, iniciado no terceiro tempo, e caráter popular. É uma das ancestrais da valsa. Barcarola. Canção de barqueiros (em francês barcarolle), especialmente dos gondoleiros venezianos. Por extensão, peça musical de ritmo análogo (geralmente nos compassos de 6/4 ou 9/8), caráter nostálgico e um tanto indolente. Basse-danse. Nome genérico que se dá em francês às danças em que os pés deslizam ou levantam pouco do chão (branle, pavana, allemande, tordion, sarabanda, gavota, minueto, etc.). Bolero. Dança popular espanhola, originária da seguidilha, cujo compasso de 3/4 é formado por seis colcheias, com a segunda delas dividida em duas semicolcheias; em geral, é acompanhada por castanholas. Branle. Dança de origem francesa, normalmente em compasso binário, mas às vezes também ternário, que era quase sempre cantada; desapareceu no final do século XVII. 1
Também aqui, a ordem seguida é alfabética.
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Czarda ou csarda. Dança húngara em compasso de 2/4, que tem a primeira parte lenta (denominada lassu) e a segunda incisivamente ritmada (chamada frisca).
Tarantela. Dança saltitada, de andamento muito rápido em compasso de 3/8 ou 6/8, cujo nome está ligado à cidade italiana de Tarento (em italiano, tarantella).
Escocesa. Dança nacional de caráter sério com efeitos de museta, em compasso ternário (mais raramente binário). Também tipo de dança derivada da polca (valsa escocesa).
Tordion ou tourãion. Dança francesa do século XVI, rápida e em três tempos.
Fox-trot. Dança de salão com ritmo de marcha, bastante rápida e originária do ragtime. Habanera. Dança íbero-cubana, de preferência lenta, em compasso de 2/4 ou 4/8, antecessora do tango. Laendler. Dança de roda, em compasso ternário, de caráter popular, originária da alta Áustria. É uma das ancestrais da valsa. Mazurca. Dança nacional polonesa em compasso ternário, com uma primeira seminima pontuada. Paso-doble. Dança latino-americana, muito rápida, de origem africana. Passamezzo. Dança de ritmo binário, bailada com passos curtos e regulares, muito apreciada na Itália do século XVI. Poica. Segundo Maurice Tassart, "na origem, dança camponesa tcheca (e não polonesa), em dois tempos, caracterizada pelo meio passo que lhe inspirou o nome (pulka = metade)." Acolhida por volta de 1837 pela alta sociedade de Praga, entrou na moda de maneira avassaladora e teve seu apogeu com as composições de Johann Strauss filho. Polonaise. Nome francês de uma antiga dança solene polonesa em três tempos, cujo ritmo se parece com o do bolero. Ragtime. Literalmente, "tempo rasgado": estilo pianístico da época que precede o jazz (Scott Joplin), exclui o improviso e tem a acentuação mcidindo sobre o primeiro e o terceiro tempos, no baixo, e sobre o segundo e quarto na parte da melodia (off-beat). Exemplos de ragtime podem ser encontrados inclusive em Debussy, que o emprega em algumas de suas peças para piano, bem como em Stravinski. Rigodão. Antiga dança provençal, o rigodão (em francês rigaudon) tem ritmo binário e caráter arrebatador. Saltarelo. Dança saltitada, de origem italiana (em italiano saltarello, em francês saltarelle), de andamento rápido, em compasso de 6/8, cujas colcheias (primeira e quarta) são pontuadas. Tango. Dança originária da Argentina, importada pela Europa depois da Primeira Guerra Mundial; é aparentada com a habanera por seu ritmo binário e sua pulsação lenta.
Valsa. Dança de origem alemã e austríaca (em alemão Walzer, em francês valse, em inglês waltz), em três tempos, que data do início no século XIX. Os pares volteiam de duas maneiras simultâneas: em torno de si mesmos e ao redor da sala. Concerto Composição instrumental em que um instrumento solista ou um grupo de instrumentos opõem-se a uma formação orquestral. (A indicação tutti, palavra italiana que significa todos, refere-se ao conjunto dos instrumentos que estão em jogo.) O concerto (do italiano concerto) apareceu na Itália no século XVII. Em sua forma antiga, apresenta-se sob dois tipos: • o concerto grosso, no qual um grupo de instrumentos (concertino) opõe-se individualmente à orquestra (ripieno); • o concerto para um ou mais solistas. Os Concertos de Brandenburgo, de Bach, constituem um gênero misto, pois estão a meio caminho entre os dois tipos: o quinto deles encaminha-se na direção do concerto para instrumento sofista. O Concerto para dois oboés, de Vivaldi, está mais próximo do concerto grosso, enquanto seu Concerto para violino, violoncelo e cordas é nitidamente um concerto para vários solistas individualizados. O Concerto para oboé e cordas, também de Vivaldi, é um típico exemplo do concerto para instrumento solista, tal como este apareceu no começo do século XVIII. Coube a Mozart dar ao concerto sua forma clássica, que pode ser analisada do seguinte modo: • Primeiro movimento: allegro, na forma sonata. • Segundo movimento: lento (andante ou adagio), geralmente na forma tema e variações, ou na forma Lied. • Terceiro movimento: vivo (allegro), sempre na forma rondó. No final do primeiro movimento (às vezes do último e raramente do segundo), a orquestra dá livre curso ao instrumento solista para que este execute a cadência, uma seção de grande virtuosismo, construída a partir de um tema musical da obra. Em princípio, a cadência teria de ser tocada de improviso pelo exécutante. O compositor não a escrevia, deixando-a a cargo da fantasia do intérprete. Mas se fosse ele o próprio intérprete, podia fazer um esboço de suas cadências e, ciumentamente, guardá-las consigo. Algumas delas chegaram até nós, vindas das mãos de Mozart. A surdez progressiva de Beethoven fez com que se processasse uma mudança na situação: já que ele teria de renunciar a esta prática e aos aplausos devidos ao virtuosismo, passou a escrever inteiramente suas cadências e inclusive publicou-as. Dessa forma, ele as propunha (de fato, chega quase a impô-las) a seus
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Czarda ou csarda. Dança húngara em compasso de 2/4, que tem a primeira parte lenta (denominada lassu) e a segunda incisivamente ritmada (chamada frisca).
Tarantela. Dança saltitada, de andamento muito rápido em compasso de 3/8 ou 6/8, cujo nome está ligado à cidade italiana de Tarento (em italiano, tarantella).
Escocesa. Dança nacional de caráter sério com efeitos de museta, em compasso ternário (mais raramente binário). Também tipo de dança derivada da polca (valsa escocesa).
Tordion ou tourdion. Dança francesa do século XVI, rápida e em três tempos.
Fox-trot. Dança de salão com ritmo de marcha, bastante rápida e originária do ragtime. Habanera. Dança íbero-cubana, de preferência lenta, em compasso de 2/4 ou 4/8, antecessora do tango. Laendler. Dança de roda, em compasso ternário, de caráter popular, originária da alta Áustria. É uma das ancestrais da valsa. Mazurca. Dança nacional polonesa em compasso ternário, com uma primeira seminima pontuada. Paso-doble. Dança latino-americana, muito rápida, de origem africana. Passamezzo. Dança de ritmo binário, bailada com passos curtos e regulares, muito apreciada na Itália do século XVI. Polca. Segundo Maurice Tassart, "na origem, dança camponesa tcheca (e não polonesa), em dois tempos, caracterizada pelo meio passo que lhe inspirou o nome (pulka = metade)." Acolhida por volta de 1837 pela alta sociedade de Praga, entrou na moda de maneira avassaladora e teve seu apogeu com as composições de Johann Strauss filho. Polonaise. Nome francês de uma antiga dança solene polonesa em três tempos, cujo ritmo se parece com o do bolero. Ragtime. Literalmente, "tempo rasgado": estilo pianístico da época que precede o jazz (Scott Joplin), exclui o improviso e tem a acentuação mcidindo sobre o primeiro e o terceiro tempos, no baixo, e sobre o segundo e quarto na parte da melodia (off-beat). Exemplos de ragtime podem ser encontrados inclusive em Debussy, que o emprega em algumas de suas peças para piano, bem como em Stravinski. Rigodão. Antiga dança provençal, o rigodão (em francês rigaudon) tem ritmo binário e caráter arrebatador. Saltarelo. Dança saltitada, de origem italiana (em italiano saltarello, em francês saltarelle), de andamento rápido, em compasso de 6/8, cujas colcheias (primeira e quarta) são pontuadas. Tango. Dança originária da Argentina, importada pela Europa depois da Primeira Guerra Mundial; é aparentada com a habanera por seu ritmo binário e sua pulsação lenta.
Valsa. Dança de origem alemã e austríaca (em alemão Walzer, em francês valse, em inglês waltz), em três tempos, que data do início no século XIX. Os pares volteiam de duas maneiras simultâneas: em torno de si mesmos e ao redor da sala. Concerto Composição instrumental em que um instrumento solista ou um grupo de instrumentos opõem-se a uma formação orquestral. (A indicação tutti, palavra italiana que significa todos, refere-se ao conjunto dos instrumentos que estão em jogo.) O concerto (do italiano concerto) apareceu na Itália no século XVII. Em sua forma antiga, apresenta-se sob dois tipos: • o concerto grosso, no qual um grupo de instrumentos (concertino) opõe-se individualmente à orquestra (ripieno); • o concerto para um ou mais solistas. Os Concertos de Brandenburgo, de Bach, constituem um gênero misto, pois estão a meio caminho entre os dois tipos: o quinto deles encaminha-se na direção do concerto para instrumento solista. O Concerto para dois oboés, de Vivaldi, está mais próximo do concerto grosso, enquanto seu Concerto para violino, violoncelo e cordas é nitidamente um concerto para vários solistas individualizados. O Concerto para oboé e cordas, também de Vivaldi, é um típico exemplo do concerto para instrumento solista, tal como este apareceu no começo do século XVIII. Coube a Mozart dar ao concerto sua forma clássica, que pode ser analisada do seguinte modo: • Primeiro movimento: allegro, na forma sonata. • Segundo movimento: lento (andante ou adagio), geralmente na forma tema e variações, ou na forma Lied. • Terceiro movimento: vivo (allegro), sempre na forma rondó. No final do primeiro movimento (às vezes do último e raramente do segundo), a orquestra dá livre curso ao instrumento solista para que este execute a cadência, uma seção de grande virtuosismo, construída a partir de um tema musical da obra. Em princípio, a cadência teria de ser tocada de improviso pelo exécutante. O compositor não a escrevia, deixando-a a cargo da fantasia do intérprete. Mas se fosse ele o próprio intérprete, podia fazer um esboço de suas cadências e, ciumentamente, guardá-las consigo. Algumas delas chegaram até nós, vindas das mãos de Mozart. A surdez progressiva de Beethoven fez com que se processasse uma mudança na situação: já que ele teria de renunciar a esta prática e aos aplausos devidos ao virtuosismo, passou a escrever inteiramente suas cadências e inclusive publicou-as. Dessa forma, ele as propunha (de fato, chega quase a impô-las) a seus
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futuros intérpretes, como um elemento indissociável da arquitetura dos seus concertos para piano. Seu exemplo foi seguido, às vezes de modo discutível, por compositores menos geniais na arte de associar improvisação e arquitetura. Mozart e Beethoven marcaram não somente a forma, mas o espírito do gênero concertante. Nos seus concertos, todos obras-primas, o indivíduo (solista) dialoga com a comunidade (tutti) de maneira tão antagônica quanto fraterna, havendo mesmo um tipo de diálogo no qual se tece uma sucessão de perguntas e respostas que vão, por exemplo, da angústia à exultação (Andante con moto do Concerto para piano e orquestra n" 4, em sol maior, opus 58, de Beethoven). Mas, tais culminâncias só podem ser atingidas mediante duas condições: quando se consegue apreender as relações singular-plural, ou individual-universal, e quando se verifica uma situação sócio-histórica propícia. No caso de uma dessas duas condições faltar, o concerto estará correndo risco de rebaixar-se ao nível de uma proeza fútil, escrita para um solista vedete. Foi por isso que Schubert — numa sociedade fechada, sufocado por sua solidão e de gênio profundamente avesso ao virtuosismo — permitiu-se, no gênero concertante, apenas quatro obras não muito extensas, mais condescendentes que convictas.
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príncipe Ccethen). As serenatas escritas por Mozart em Salzburgo para o príncipearcebispo e outras, como a dedicada ao burgomestre Haffher, são grandes composições orquestrais (mais extensas que qualquer uma das suas sinfonias!), de espírito semelhante ao divertimento, embora mais mundano e afetado, numa sucessão de diversas peças (oito na Serenata K250 e sete na Serenata K320), que têm intercalados em meió a elas todo um concerto para violino (Serenata Haffher K250) ou uma sinfonia concertante para sopros (Posthornserenade K 320) em três breves movimentos. Assim, por volta de 1773-1779, pôde a serenata aparecer como a majestosa rainha das composições orquestrais. Mas a sinfonia viria barrar o caminho deste gênero, estruturalmente vago e socialmente elitista. Com o Mozart dos anos vienenses — Eine Kleine Nachtmusik [Pequena música noturna], para quinteto de cordas —, bem como com o jovem Beethoven (Opus 8, para trio de cordas, Opus 25, para flauta, violino e viola) e os sucessores de ambos, a serenata instrumental estava destinada a tornar-se uma obra de música de câmara suave e intimista. Sonata
Divertimento Típico da época clássica (Haydn, Mozart), o divertimento (do italiano divertimento) é um gênero de composição que dá uma impressão mais leve do que as sinfonias ou quartetos, seja pela sucessão menos rígida de seus numerosos movimentos (vestígio da antiga suíte), seja pelo uso de instrumentos solistas, seja como resultado de sua destinação social, etc. Serenata Música do anoitecer, por oposição à "alvorada", "alborada" ou "aubade", que é a música do amanhecer, matinatta, em italiano. Em sentido estrito, a serenata — do italiano serenata, em francês sérénade, em inglês serenade, em alemão Serenade ou Stãndchen — é um concerto de vozes e instrumentos, dado à noite, ao ar livre, sob as janelas de alguém (normalmente alguém do sexo feminino!) para render-lhe homenagem. No caso da serenata da ópera Don Giovanni, de Mozart, há um cantor e um bandolim. Em Schubert, com o nome alemão Stãndchen, encontramos este mesmo tipo de serenata: para voz e piano, com letra de Rellstab, como a célebre Serenata D 957 n° 4, ou para voz feminina e quarteto vocal, como é a D 920, com letra de Grillparzer. Nos tempos do estilo galante, outro tipo de obra completamente diferente chegou ao seu auge com este mesmo nome graças à "serenata" barroca, que evoluiu gradualmente para o instrumental puro e para uma composição destinada a celebrações solenes (Serenata BWV173 A, de Bach, comemorativa do aniversário do
Composição que compreende vários movimentos, destinada a um reduzido número de instrumentos, geralmente dois ou três e, mais tarde, a apenas um ou dois. 1. A sonata pré-clássica. A sonata teve origem no século XVII, na Itália. Do ponto de vista da sua construção, distinguem-se, por volta de 1700, dois tipos de sonata cultivados na Itália, ou, sob influência italiana, em outros países: • a sonata da chiesa (de igreja), em quatro movimentos: grave ou adagio - allegro - adagio - allegro; • a sonata da camera (de câmara) em três movimentos: allegro - adagio - allegro. A primeira dessas duas modalidades foi mais difundida na Alemanha, Inglaterra e França, onde era grande a influência dos músicos italianos. Do ponto de vista do efetivo instrumental, distinguem-se igualmente dois tipos: • a sonata a tre (sonata a três), em que as duas vozes superiores estavam em condições de igualdade, isto é, tinham o mesmo desenho e tocavam na mesma altura, e a terceira voz fazia o papel de baixo contínuo, sendo executada, de fato, por dois instrumentos, um baixo e um teclado (em geral de cordas) ou um alaúde; é a sonata-trio ou trio-sonata, o gênero mais importante da música de câmara barroca. • a sonata para solo, que era composta para um instrumento e baixo contínuo, ou simplesmente para cravo. As 550 sonatas de Domenico Scarlatti devem ser postas à parte, pois não têm as mesmas características das sonatas que lhes são contemporâneas, nem das que são posteriores a elas. São pequenas peças, de um só movimento, que o autor chamava essercizi (exercícios) e não pertencem a qualquer gênero.
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2. A sonata clássica firma-se como gênero por volta de 1760 e tem seus movimentos planejados em allegro (movimento lento) — minueto —finale, sendo adotada, para o primeiro desses movimentos, a chamada forma sonata, à qual já nos referimos. Por agum tempo, a palavra sonata (do italiano sonata, música para ser tocada, "soada", por oposição a cantata, música cantada) continuou a ser utilizada para designar obras escritas para um, dois ou três instrumentos. Na terminologia moderna, entretanto, designa exclusivamente as obras compostas para um instrumento (sonata para piano) ou para dois instrumentos (sonata para piano e violino ou para piano e violoncelo). As obras para três instrumentos são chamadas trios (piano, violino e violoncelo, por exemplo); para quatro, quarteto; para cinco, quinteto, e assim por diante. Antes de Beethoven, e contrariamente à sinfonia, a sonata clássica só raramente tinha quatro movimentos. As sonatas de Mozart têm quase todas três, e as de Haydn, dois ou três. Em Mozart, a sonata é geralmente constituída por dois movimentos bem vivos que enquadram um movimento lento (mais raramente, um minueto). Nas sonatas de Haydn, a natureza e a ordem dos movimentos diferem mais; o minueto, contudo, nunca vem em primeiro lugar, como acontecerá com a Sonata para piano n°22, emfá maior, opus 54, de Beethoven. As sonatas de Beethoven são escritas em dois, três ou quatro movimentos, diversidade que, no caso de Beethoven, mais do que no de seus predecessores, visa a fins expressivos os mais variados. Como em suas outras obras, Beethoven substituiu, em muitas de suas sonatas, o minueto pelo scherzo. 1
3. Na época romântica, as sonatas de Schubert, Schumann, Brahms, Chopin e Liszt retomam, por motivos diversos, a herança clássica, refletindo-se nelas as novas preocupações da época. A sonata de Liszt, por sua estrutura feita de um só movimento que sintetiza os diversos movimentos tradicionais, abriu uma via que somente no século XX seria novamente palmilhada (Sinfonia de câmara opus 9, de Arnold Schõnberg, Sinfonia n° 7 opus 105, de Jean Sibelius). 4. No século XX, as três sonatas de Debussy — para piano e violino; para piano e violoncelo e para flauta, viola e harpa — ou as três sonatas para piano de Pierre Boulez rompem com a forma sonata, embora conservando o espírito do gênero, ao passo que as sonatas de outros compositores, como Serguei Prokofiev, permanecem mais fiéis aos ideais clássico-românticos.
Constitui exceção, entre algumas obras de qualidade extraordinária, a Sonata para dois pianos e percussão, de Bartók.
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Sinfonia Vasta composição instrumental de vários movimentos, que exige o concurso de orquestras sinfônicas ou, mais raramente, de formações orquestrais menores (sinfonia para cordas, sinfonia para orquestra de câmara etc). Após uma evolução gradual, a estrutura da sinfonia fixou-se por volta de 1770. 1
1. A sinfonia primitiva é uma peça de forma mal definida, composta para um grupo de instrumentos. Executada antes do início das óperas italianas, confunde-se com a abertura e tem uma estrutura tripartida: vivo-lento-vivo. Na obra de Mozart, certas sinfonias de sua juventude não se distinguem de aberturas de óperas. 2. Na época clássica, a sinfonia separou-se da abertura de ópera e tornou-se um gênero musical independente. Os pioneiros desta tendência foram Carl Philipp Emanuel Bach (sinfonias em três movimentos), alguns compositores italianos como Sammartini, Johann Stamitz e os músicos da Escola de Mannheim. Por volta de 1770, o quadro da sinfonia já estava fixado até certo ponto, graças sobretudo a Haydn. O gênero adotava então, de hábito, uma estrutura de quatro movimentos: • primeiro movimento: rápido (algumas vezes, precedido por uma introdução lenta); • segundo movimento: lento; • minueto; • quarto movimento: rápido. Em cada um dos movimentos, como maneira de pensar, reina a forma sonata; aliás, esta forma, em sentido estrito, não estava excluída a priori de qualquer deles. A forma "variações" e a forma Lied estão presentes com freqüência nos movimentos lentos, ao passo que a forma rondó — de espírito menos tenso e relativamente mais fácil de ser seguida por causa de seu refrão — prevalece nos últimos movimentos. Note-se que Mozart — nisso seguindo uma tradição de Salzburgo — escreveu em 1786 uma sinfonia em três movimentos, sem o minueto (Sinfonia n° 38, denominada Praga). Com Beethoven, a ordem e a natureza dos movimentos não mudam: a subversão tem lugar no interior deles. Na sua Sinfonia n° 9, contudo, o scherzo vem em segundo lugar e o movimento lento em terceiro; já a execução do quarto movimento exige um grande coro.
No final do século XVIII, desenvolveu-se também a sinfonia concertante, um gênero então muito apreciado, que aliava a estrutura sinfônica ao concerto (geralmente para vários solistas). Estão neste caso as duas sinfonias concertantes de Mozart, uma para sopros e outra para violino e viola, que são verdadeiras obras-primas. O gênero, logo em seguida, veio a desaparecer, embora não se tenha deixado de buscar inserir a forma concertante numa sinfonia, como é o caso do solo de viola em Harold en Italie [Haroldo na Itália], de Berlioz, do solo de piano na Symphonie sur un chant montagnard français [Sinfonia sobre um canto francês das montanhas], de Vincent d'Indy, e principalmente da obra de Bartok, Concerto para orquestra.
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3. Depois de Beethoven, compositores como Schubert, Mendelssohn, Schumann, Bruckner ou Brahms modificaram bem pouco o aspecto externo da sinfonia. Mas a orquestra foi aumentada, os desenvolvimentos adquiriram outra amplitude (Bruckner) e as intenções descritivas ou filosóficas fazem-se perceber mais claramente (Berlioz, Liszt). Com Mahler, uma etapa essencial foi vencida: Mahler não apenas alterou o número de movimentos (em sua Sinfonia n° 3 há seis movimentos, na Sinfonia n° 8, apenas dois), como também subverteu a natureza e a ordem de sucessão deles (na sua Sinfonia n° 9 há dois movimentos lentos que enquadram dois outros, rápidos, com caráter de scherzo), além de ter conferido a suas obras sinfônicas dimensões consideráveis: a execução da Sinfonia n° 3 de Mahler dura uma hora e quarenta e cinco minutos. Pouco depois de Mahler, as sinfonias de Sibelius orientaram-se no sentido de uma concentração do pensamento, praticamente desconhecida desde a época de Beethoven, contribuindo desse modo para a liquidação da forma sonata.
por argumentos exteriores que lhes determinam até certo ponto a estrutura; que não basta uma partitura ter um título ou caráter evocativo para que a composição seja um poema sinfônico; que as estruturas das grandes obras de música "pura" (concertos de Mozart, sinfonias de Haydn) são tão diversas quanto as dos poemas sinfônicos de Liszt ou de Richard Strauss; por fim, que, por melhor que seja o "tema" ou o argumento, ele jamais poderá garantir sozinho a coesão e o valor musicais: um poema sinfônico é, antes de tudo, também feito de notas. O interesse de um número cada vez maior de compositores pelo poema sinfônico não deve ser relacionado à tola querela "música de programa contra música pura": a Pastoral Symphonie [Sinfonia pastoral], de Beethoven, a Symphonie Fantastique [Sinfonia fantástica], de Berlioz, e a Faust-Symphonie [Sinfonia Fausto], de Liszt, são tão "de programa" quanto Mazeppa, poema sinfônico do próprio Liszt. A idéia do poema sinfônico prende-se, antes, à tomada de consciência cada vez maior das afinidades entre conhecimento poético e expressão musical, de uma parte, e, de outra, à necessidade crescente dos compositores de se libertar do modelo tirânico da sinfonia clássica e das receitas fabricadas por uma classe de falsos eruditos com base nas criações geniais dos grandes vienenses.
PARA ALÉM DOS GÊNEROS PROPRIAMENTE DITOS
Fantasia. Em sua acepção mais geral, o termo fantasia (em alemão, Fantasie; em francês, fantaisie; em inglês, fantasy ou fancy; em italiano, fantasia) designa uma peça instrumental de forma bastante livre, próxima da improvisação, mas que não deixa de estar relacionada com outras formas mais estritas já em uso. Concretamente, a fantasia evoluiu entre dois pólos que se relacionam por meio dela: de um lado, a liberdade — ou, melhor dizendo, a desconsideração pelas normas — e, de outro, o rigor (Fantasia para piano em dó menor K 475, de Mozart).
Abertura. Em sua acepção mais geral, o termo (em francês ouverture, em inglês overture, em alemão Ouverture) designa uma peça orquestral tocada ainda com a cortina cerrada, antes de uma representação operística ou mesmo de qualquer espetáculo. Durante a primeira metade do século XVIII (Rameau, Gluck), começou-se a levantar o problema das relações musicais e dramáticas entre a abertura e a obra que ela antecede. Esse problema tem sido resolvido, até os dias de hoje, de maneiras as mais diversas, muitas vezes pela substituição da "abertura" por um "prelúdio", como se deu no Lohengrin, de Wagner. Com Leonora III (1805), Beethoven escreveu menos uma abertura do que uma peça de concerto independente. Em 1807, Beethoven deu mais um passo com Coriolano, abertura de concerto, que não era mais seguida por ópera alguma. Em 1822, fez o mesmo com a Consagração da casa. Mendelssohn, com Fingals Hõhle [A gruta de Fingal] e Mélusine, seguiu-lhe o exemplo e foi, por sua vez, seguido por outros. Dali por diante, não se pode mais discernir qual linha divisória separa a abertura de concerto e o poema sinfônico. Poema sinfônico. Gênero musical assim denominado pela primeira vez por Franz Liszt, que corresponde a uma obra orquestral determinada, quanto à sua concepção e estrutura, por um argumento exterior, de ordem poética, descritiva, pictórica, lendária, filosófica, etc. O poema sinfônico engloba praticamente tudo quanto permite a imaginação, seja no plano da estrutura, seja no da inspiração. Observese, entretanto, que bem antes do século XIX existiram peças musicais inspiradas
Prelúdio. Por oposição à introdução, teoricamente ligada ao que a segue, o prelúdio (em alemão, Vorspiel ou Prãludium; em francês, prélude; em inglês, prelude; em italiano, preludio) é uma peça autônoma que serve para introduzir o corpo principal de uma obra de que faz parte, ou mesmo uma outra obra, ou ainda um grupo de obras sem relações diretas com ele. Por exemplo: breves intervenções de órgão antes das diversas partes da missa; ou, nas Suítes inglesas de Bach, os prelúdios que se distinguem das danças propriamente ditas. Por extensão, peça que introduz uma fuga, uma cantata, uma ópera, o que faz do termo, de certo modo, sinônimo de introdução ou abertura. Com seus prelúdios para piano, Chopin escreveu uma série de peças curtas que nada introduzem a não ser o silêncio ou a peça seguinte, mas cuja origem é possível buscar, em parte, no hábito dos pianistas improvisarem brevemente antes de tocarem. O único grande sucessor de Chopin na composição de prelúdios para piano foi Debussy. Rapsódia. O termo rapsódia (em alemão, Rhapsodie; em francês, rhapsodie ou rapsodie; em inglês, rhapsody; em italiano, rapsodia) designa geralmente, desde o
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século XIX, uma peça instrumental de essência romântica ou pictórica, com um só movimento e de forma livre (guardando certa proximidade com a improvisação) e caráter contrastado. Estudo. Os estudos (em alemão, Etüden ou, antigo, Übung; em francês, étude) são peças centradas em determinado problema técnico de execução, como os estudos de Czerny, mas não necessariamente incompatíveis com os mais elevados valores musicais, como os estudos para piano de Liszt, Chopin e Debussy. Impromptu. Peça de caráter lírico ou virtuosístico, de estilo improvisado, escrita quase sempre para piano (Schubert, Chopin). Na verdade, com diversas denominações — Bagatelles [Bagatelas], de Beethoven; Impromptus [Improvisos], Moments musicaux [Momentos musicais] ou simplesmente Klavierstücke [Peças para piano] de Schubert, etc. — muitas vezes escolhidas pelos editores e não pelos autores, o impromptu (palavra francesa) expressa a reivindicação pelas pequenas formas livres, impressionistas ou sonhadoras, face às grandes estruturas da sonata ou mesmo da fantasia. Mas esta liberdade não exclui a busca de uma arquitetura musical: as peças de Schubert, por exemplo, comportam quase sempre uma parte central análoga ao trio de um minueto ou de um scherzo; e muitas das obras de Schumann (Carnaval, Kreisleriana, etc.) são feitas de uma sucessão de pequenas peças cujo conjunto não é de forma alguma fruto do acaso. Está neste caso em ação a mesma estética romântica que substitui o longo poema épico, como a Henriade, de Voltaire, ou didático, como Les jardins [Os jardins], do abade Delille, por uma coletânea de poemas rigorosamente reunidos, como Les contemplations [As contemplações], de Victor Hugo.
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po di minuetto, intencionalmente arcaizante, mas onde a admirável frase confiada às trompas no trio atinge, talvez, o mais alto vôo poético em toda a obra. Música de câmara. Em sentido moderno, o termo aplica-se a composições para pequeno número de instrumentos solistas (de dois a nove, ou mesmo dez). Até mais ou menos 1740, antes da aparição dos concertos públicos, a expressão designava a música própria para ser tocada em residências particulares (mesmo que fosse a do rei), por oposição à música tocada em igrejas e teatros. Ainda bastante vaga até a metade do século XVIII, a distinção entre música de câmara, no sentido moderno, e música sinfônica ou para orquestra tornou-se clara com Haydn e Mozart. Do ano de 1770 até a morte de Beethoven e de Schubert, música de câmara designava exclusivamente o quarteto para cordas, apesar da existência dos quintetos de Mozart e de Schubert ou dos trios de Haydn e de Beethoven. Durante todo o século XIX, a música de câmara permaneceu como domínio privilegiado dos amadores; só depois, principalmente com Schõnberg, é que penetraria no campo do poema sinfônico e se encontraria com a orquestra num terreno completamente novo (a música "sinfônica" do século XX tende, volta e meia, a tratar como solista cada membro da orquestra, apesar do grande número de músicos). Atualmente, as fronteiras voltaram a ser bem delimitadas, e seria lícito perguntar se o fenômeno "música de câmara" não corresponderia definitivamente a uma atitude em face do fenômeno sonoro: a capacidade de alguém não só tocar e ouvir-se, mas também de recolher-se e ouvir os outros. A música de câmara, no sentido moderno, nascida pouco antes de 1789, seria ao mesmo tempo competição e dialogo. 1
Noturno. Em sua origem, espécie de serenata vesperal (notturno, em italiano), escrita para sopros ou cordas (Mozart). Durante o romantismo, peça de caráter elegíaco, em um só movimento, geralmente para piano. O pianista e compositor irlandês John Field (1782-1837) foi quem abriu caminho para os Nocturnes de Chopin, os Nachstücke de Schumann e os Nocturnes de Fauré, entre outros. Scherzo. Peça de forma análoga à do minueto (com trio central), só que mais rápida, mais tensa e mais expressiva. Tomou o lugar do minueto em alguns quartetos tardios de Haydn, antes que Beethoven e seus sucessoresfizessemdisso um procedimento corrente. Devem-se a Chopin quatro Scherzi para piano, todos peças independentes. Em italiano, a palavra significa "brincadeira" ou "diversão", mas o caráter humorístico aos poucos desapareceu. A expressividade do scherzo é quase sempre dramática, ou mesmo trágica, em Beethoven e nos românticos em geral. O sentido humorístico, entretanto, permanece ligado à indicação sherzando aposta a um andamento. Uma demonstração disso bastante interessante pode ser encontrada na Sinfonia n° 8, de Beethoven, cujos movimentos centrais são um Allegretto scherzando (uma brincadeira com o metrónomo de Maelzel) e um Tem-
É significativo que o quarteto para cordas tenha aparecido em torno de 1760, seguido logo depois do quinteto para cordas. Em Haydn, Mozart, Beethoven e Schubert, os quartetos e quintetos para cordas acompanham a divisão sinfônica em quatro movimentos, que progressivamente se foi impondo. O mesmo aconteceu com os trios para piano, violino e violoncelo, que constituem, em menor grau, um gênero maior. Já no que diz respeito aos divertimentos e serenatas executados por trios para cordas, ao quinteto para piano e cordas Die Forelle [A truta] de Schubert, ao septeto para sopros e cordas de Beethoven, ao octeto para sopros e cordas de Schubert, o número de movimentos pode ir de cinco a oito, conservando-se a antiga divisão da suíte. Alguns dos últimos quartetos de Beethoven chegam a ter de seis a sete movimentos, mas num sentido absolutamente contrário ao de um arcaísmo!
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A NOTAÇÃO E A INTERPRETAÇÃO I
Observar as transformações da notação ao longo das sucessivas épocas da escrita musical permite apreender as características que os músicos esforçaram-se por privilegiar no mundo sonoro, considerando-se as mutações do pensamento estético. Seria imprudência admitir como o mais adequado o sistema atual de notação, que tende a universalizar o resultado de muitos séculos de tentativas. Nosso solfejo corresponde a uma concepção da música orientada para a fixação de certas propriedades do som: prioritariamente, a altura e a duração. Este mesmo solfejo, entretanto, pode revelar-se muito impreciso quando estão em jogo características como timbre e intensidade. Outras civilizações deram maior importância a qualidades deixadas em segundo plano por nosso sistema de notação. Arioja^ãrj^chi^ nesa, por exemplo, destinada a instrumentos de cordas pinçadas, revela-se de uma minúcia preciosa quando se trata de precisar o modo de ataque e de sustentação do som (existem inventariadas 26 variedades de vibrato para diversificar a execução instrumental). Querer um sistema de notação generalizável, que pudesse abranger todas as músicas, seria tentar impor um único sistema de pensamento e análise.
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Na verdade, pensamento musical e notação musical influenciam-se mutuamente, e a evolução da escrita depende muito das tensões e interações que têm lugar entre ambos. Movido pelas necessidades de uma estética sempre em evolução, o compositor é levado continuamente a transgredir as regras da notação vigente em sua época. Assim, ele contribui para criar uma notação musical que lhe faculta imaginar múltiplas extensões de seu pensamento. A ambigüidade dos signos de que o compositor se serve para transmitir suas idéias musicais dá à notação uma flexibilidade que lhe permite adaptar-se a diferentes contextos estilísticos e pessoais. Com isso, a notação cobre diversas funções: orienta a execução do intérprete, proporciona um repertório em que o compositor vai buscar as ferramentas necessárias para comunicar o que ainda está só em pro-
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jeto, conserva o que deve aparecer como o arcabouço da obra e, dessa forma, possibilita analisá-la, classificá-la. Contudo, a confiança no escrito parece-nos às vezes por demais presente, pois a notação só nos dá um quadro teórico abstrato, que ganhará corpo com a intervenção do intérprete. Já em 1741, declarava Depuits em seus Principes pour toucher de la vièle [Princípios para tocar viela] : "Não importa que nos afastemos um pouco da regra, contanto que interpretemos a peça de maneira tão sensível e perfeita como se a estivéssemos seguindo." De fato, a notação só funciona em sua relação com os subentendidos, cuja descrição dificilmente será bastante exaustiva, implícitos na prática de uma época. O compositor dispõe atualmente de um amplo leque de sistemas de transmissão, como se lhe fosse dado escolher entre diversos "tons de voz", desde os mais autoritários, até os mais tolerantes: uma vista de olhos sobre os vários séculos de notação deveria permitir-nos abordá-la de maneira relativizadora, como uma problemática essencialmente flutuante. Nenhuma notação pode pretender assegurar-nos um controle absoluto sobre uma obra, ou indicar-nos em que latitude deve o intérprete situar-se em face do que está escrito e qual a proporção de iniciativa pessoal lhe cabe. Os compositores, por sinal, jamais deixaram de jogar com a atração psicológica da notação, com o impacto que ela exerce sobre a interpretação. Basta citar as "notações para o olho" desenvolvidas no Renascimento por um músico italiano como Luca Marenzio, ou ainda a escolha de valores rítmicos tão breves por Beethoven para expressar certas passagens lentas de sua música, como o Adagio da sua Sonata para piano opus 111.
IDADE MÉDIA E RENASCIMENTO Os primeiros documentos que podemos consultar sobre a notação musical no Ocidente datam aproximadamente do século III a.C, originários da Grécia: é uma notação que se mostra essencialmente alfabética, ou seja, as notas da escala estão associadas a letras do alfabeto, em diferentes posições. Na Grécia antiga, sem dúvida, conviveram muitos sistemas de notação, destinados tanto à voz como aos instrumentos então usados (na forma de tablatura ). Na época alexandrina (século IV d.C), por influência de Aristóxeno, a oitava era dividida em 24 partes, o que inclui intervalos de quarto de tom. Entretanto, tais sistemas parecem mais ligados à teoria que à prática: é como se devessem, antes de tudo, corresponder a uma ordem ideal abstrata, capaz de revelar as conexões profundas da música com as ciências da matemática e da astronomia. No século IV, contam-se no mínimo 1.260 sinais ou interpretações desses sinais. 1
Notação da música polifónica por meio de letras, algarismos e diferentes símbolos dispostos em tabelas, como as tabelas matemáticas.
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A notação e a interpretação
Boécio (475-526), o último teórico da música antiga, nos transmitiu, em caracteres latinos, a notação alfabética da Grécia, associando quinze notas correspondentes a uma extensão de duas oitavas às quinze primeiras letras do alfabeto. Pouco mais tarde, esta classificação iria limitar-se às notas compreendidas no interior de uma oitava, de A a G, e foi justamente este o sistema alfabético de correspondência que se difundiu nos países anglo-saxônicos e na Alemanha. Sem dúvida, mais até que as teorias da Grécia, a cantilação hebraica e a recitação litúrgica bizantina exerceram influência decisiva sobre as primeiras músicas da cristandade e sobre a futura notação neumática. A etimologia da palavra "neuma" é discutível: tanto pode proceder de pneuma (sopro), quanto de neuma (sinal). Como sinal, o neuma poderia estar ligado ao sistema de gestos que se encontra na cantilação bizantina sob o nome de "quironomia": gestos indicativos de uma elevação, um abaixamento ou uma inflexão da voz, feitos pelo regente do coro, o Domestikos, sempre situado em relação aos cantores de maneira que todos estes pudessem seguir os movimentos de suas mãos. Os contornos da linha melódica eram, portanto, espacialmente representados de maneira analógica, bastando apenas um passo para que se realizasse a transição do gesto à inscrição gráfica. Aliás, este destaque "espacializado" que se confere às inflexões vocais nas formas de notação neumáticas está presente em outras culturas que não a nossa (cf. a salmodia budista, o nó japonês, etc). Bem entendido, as fórmulas neumáticas, para os cantores, constituem apenas pontos de referência, e o papel da notação é essencialmente o de um lembrete, um apoio para a memória, por assim dizer. A notação ocidental visivelmente instaurou-se em função da voz e de seus registros, bem como das propriedades gramaticais das línguas grega e latina. Desde o século II a.C, Aristófano de Bizâncio havia concebido um sistema de notação para a língua grega em que o acento agudo indicava a elevação da voz, o acento grave sugeria o seu abaixamento, o acento cincunflexo sinalizava uma elevação suave e um ponto marcava a queda, seguida da interrupção da voz, no fim da frase. O próprio termo acento (accentus - ad cantus) nos faz mergulhar na origem da constituição melódica. Os primeiros neumas derivam espontaneamente destas regras prosódicas pelo fato de a Igreja do Oriente recorrer à língua grega para 1er as Sagradas Escrituras: os neumas, de certo modo, vieram ampliar as implicações musicais do texto declamado. Esta a razão por que estão inscritos, sobre as palavras destinadas a serem cantadas, sinais que, ao invés de indicarem um determinado som, como em nossa notação simbólica, abrangem várias notas de maneira aproximada. Os neumas, cuja criação data do século VII, não foram utilizados apenas na música reli1
Do latim cantillare (cantarolar). Forma de melodia religiosa mais próxima da declamação do que do canto propriamente dito. Trata-se, por conseguinte, de um recitativo litúrgico, inicialmente usado nas sinagogas para a leitura de textos da Bíblia.
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Léxico musical explicativo
giosa; ainda vamos encontrá-los, por exemplo, no século XIV, na arte dos mestrescantores na Alemanha. Estes sinais "estenográficos" conferem grande flexibilidade ao canto: os Aleluias, por exemplo, em geral dão oportunidade a todo tipo de extravasamentos melódicos, que concretizam de certa forma o fervor da fé. Cada neuma corresponde a uma sílaba do texto, mas, no caso da última sílaba do Aleluia, é uma verdadeira ramificação de natureza melódica que se projeta da escritura. Certo número de efeitos, que os neumas por si só não poderiam traduzir, são expressos por sinais anexos, como o apóstrofo para indicar uma repercussão da voz (o strophicus), ou um Vpara o vinnula (literalmente, "que relincha"). Já alguns efeitos, como os "neumas liquescentes", evocam técnicas de canto praticadas no * Oriente. Estes primeiros ornamentos eram muito considerados por sua difícil execução, e Guido d'Arezzo aconselhava que, caso não se conseguisse introduzir no canto esses sons "produzidos naturalmente pelos italianos", as notas fossem cantadas de maneira plana^como sucede geralmente com a interpretação do canto gregoriano nos dias de hoje. Nesse tipo de notação, não estão fixados os intervalos e as alturas dos sons. Quando ela se organiza em função de uma linha ideal, traçada depois com uma ponta seca, que situa a nota fá, a notação é dita diastemática (diastema = intervalo). Nesse caso, a superposição dos grafismos no sentido vertical sugere, de modo relativo, as alturas dos sons. A notação diastemática difundiu-se durante os séculos X e XI; nela encontramos a inscrição de letras ao lado dos neumas, para maior precisão. As indicações rítmicas permanecem mais incertas; entretanto, os episemas, pequenos traços colocados em cima ou embaixo do acento grave, que implicam o prolongamento de um som, e abreviações como í (tenere = manter) ou x (expectare = esperar) prenunciam já os sinais de accelerando e rallentando. Com Hucbald, o presumido autor do manual intitulado Musica enchiriadis, que data aproximadamente do fim do século IX, a notação alfabética associou-se aos neumas para fornecer pontos de referência mais estáveis no que diz respeito à altura. Hucbald desenhou pautas de linhas paralelas (que chegavam até dezoito em certos casos), com abreviações colocadas antes de cada linha indicando o intervalo (se de tom ou de semitom) que deveria ser transposto de uma linha para outra, e "decupou" o texto pelas Unhas da pauta de modo a casar as linhas do texto com a da curva melódica. A forma gráfica do neuma foi aos poucos se desagregando, até se decompor em pontos isolados ou unidos por "ligaduras", no caso dos melismas cantados numa única sílaba. A notação quadrada posta em uso na França depois do século XII, principalmente pelos trovadores (troubadours) e pelos troveiros (trouvères), foi de certo modo deduzida dos primitivos neumas, e a evolução que teve lugar a partir dela até se chegar à notação mensurada mostrar-se-á de uma lógica implacável. As ligaduras implicam, com efeito, considerações rítmicas entre as notas que consti-
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tuem uma fórmula melódica: sua interpretação depende do contexto musical, e a noção de modo rítmico, por isso mesmo, não tardaria a impor-se. Em 1025, Guido d'Arezzo (995-1050) enfatizava a importância das linhas na leitura e, para facilitá-la, estabeleceu diferentes cores — amarelo para o ut, vermelho para o fá —, que passaram a ser usadas freqüentemente com este propósito. Para evitar confusão, letras (à guisa de claves) foram colocadas antes das linhas. As formas das claves atuais derivam das formas dessas letras: F (clave de fá), C (clave de dó) e G (clave de sol). Ao que tudo indica, também teve origem com Guido d'Arezzo a denominação das notas ainda hoje usadas, sobretudo na França, na Itália e nos países de cultura e língua latinas — a qual teria provindo de um hino muito conhecido na época: "UT queant Iaxis I REsonare fibris I Mira gestorum I FAmuli tuorum I SOLve polluti I LAbii reatum I Sánete Johannes" (o S e o J=I são as iniciais que dão o SI). O nome da sétima nota, si, levou muito mais tempo para se impor. De fato, em decorrência de sua situação na escala, esta nota pode ser "bemolizada" ou natural; era, então, assinalada por um b de forma redonda se estivesse colocada um semitom acima do lá, ou por um b de forma quadrada no caso de estar situada um tom acima do lá. Disso resulta a forma atual do bequadro, saída diretamente da notação dessa época. A partir do século XII, o sinal de bemol passou a ser colocado diante do signo do sétimo grau da escala para indicar que o si está separado do lá por um semitom; mas, pouco a pouco, as letras foram-se desprendendo da nota si para adaptaremse indiferentemente aos outros graus da escala. O bemol já abaixa o mi no século XIV, ao passo que o bequadro podia elevar o fá, o dó e o sol. Na época do Roman de Fauvel [Romance de Fauvel], apareceu o sustenido, cuja forma advém do b cortado por uma barra. Desse momento em diante, as funções destes sinais não tardarão a ser regulamentadas. A partir do século X, começou a aumentar o interesse pela precisão de uma escrita que expressasse as relações de duração, o que coincide com a aparição da polifonia. No século XI, as "simples", punctum et virga, tinham sensivelmente a mesma duração, enquanto uma clivis — duas notas unidas por uma ligadura — ou um poãatus valiam duas "simples". No final do século XII, a "simples" deixou de ser considerada indivisível, para tornar-se uma "longa" que podia decomporse em "breves". Delineia-se, assim, uma concepção proporcional dos valores de duração. Em resposta às necessidades do moteto, a "notação quadrada" adaptou-se, de certo modo, à concepção modal do ritmo, codificada no século XIII por teóricos 1
Poema medieval francês de Gervais du Bus. Um dos manuscritos do Roman de Fauvel comporta numerosos elementos musicais monofônicos e polifónicos, formando 167 números, numa das mais vastas coletâneas da música francesa do século XIV. (N. T.)
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SINAIS NEUMÁTICOS
NOTAÇÃO
NOTAÇÃO
QUADRADA
MODERNA
virga
punctum
podatus
torculus
porrectus
como Francon de Colonia, para atingir seu pleno desenvolvimento no século XIV, com a Ars Nova. A passagem para a notação mensurada, acrescida de novos valores como o da semibreve por volta de 1250, constitui uma mutação de suma importancia no pensamento musical. Dali por diante, os valores de ritmo iriam organizar-se segundo modos, como disso dão testemunho os escritos teóricos de Johannes de Garlândia, que definiu, por volta de 1240, seis modos principais. Assim, a "música mensurada" dá os meios para m^tmguir nitidamente duas categorias de canto: um marcado pela "rítmica", outro pela "métrica". Se o primeiro depende fundamentalmente do ritmo interno de cada verso (o que, no "cantochão" Htúrgico, implica precisamente um modo de canto muito ligado e contínuo), o segundo insinua relações entre notas longas e breves ligadas a uma concepção mais puramente musical do tempo. "O que distingue o ritmo e o metro", declarava Rémi d'Auxerre no século EK, "é o fato de o ritmo ser apenas uma sucessão livre e harmoniosa de palavras, sem proporção, nem sistema, mdefinida, isenta de qualquer lei, além de não ter pés métricos organizados; o metro, ao contrário, é uma sucessão de pés determinados e definidos." Os valores do ritmo são teoricamente divisíveis em três partes (divisão perfeita) ou duas (divisão imperfeita). No século XIII, a divisão ternária parece prevale-
A notação e a interpretação
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cer largamente, pois o algarismo três reflete a perfeição da Santíssima Trindade. "A música começa com o número 3" escreveu Johannes de Mûris, "este número elevado ao quadrado produz 9, e o 9 contém os elementos de todos os outros números, pois com ele temos de retornar à unidade." Na prática, as divisões dependem do contexto no qual se encontra inscrita cada figura de nota. Assim, no sistema de notação concebido por Petrus de Cruce mais ou menos no final do século XIII — a notação dita petroniana —, a breve pode valer de duas a sete semibreves, e, mais tarde, de duas a doze. A complexidade de tais sistemas é grande, o que não deixa de causar certa confusão. Entretanto, as "ligaduras", cujas funções haviam se tornado menos equívocas a partir da segunda metade do século XIII, serviam com freqüência para garantir a unidade de cada grupo de notas. Esta complexidade foi motivo de descontentamento para um bom número de músicos. O teórico inglês Walter Odington (século XTV) lamentava que se houvessem inventado quase tantos novos sinais, quantos eram os copistas de música existentes no mundo. O século XIII, com efeito, revelou-se particularmente fértil em invenções e aperfeiçoamentos no que diz respeito à notação:figurasde silêncio ou pausa (pequenas barras verticais) que se vão tornando cada vez mais precisas, barras de separação, que deixam já pressentir o papel das futuras barras de compasso, como as de certas partituras de Pérotin, separando as cláusulas nas obras polifónicas, e finalmente as letras f,ceg, estilizadas, que se colocam no começo das pautas, como claves indicadoras do registro vocal. A partir do fim do século XIII, "modo" passou a designar a maneira de dividir a longa; "tempo", a forma de divisão da breve; e "prolação", a divisão da semibreve; por exemplo, a "prolação maior" corresponderá a uma divisão da semibreve em três mínimas e a "prolação menor" corresponderá a uma divisão em duas mínimas. Em seu tratado Ars Nova, escrito em torno de 1320, Philippe de Vitry estende as divisões binária e ternária a todos os valores rítmicos, pondo desse modo em questão a supremacia do "modo" ternario, que prevalecera durante o século precedente: os modos ternários são ditos "perfeitos" e os binários "imperfeitos". Para indicar as passagens do ternário ao binário, tornou-se necessário inventar sinais capazes de dar conta da natureza da divisão e do valor a ser dividido; essa a razão por que Philippe de Vitry designou o "tempo perfeito" por um círculo (a imagem da perfeição) e o "tempo imperfeito" por um semicírculo, do que derivam os sinais C e (p para indicar respectivamente os compassos de quatro e dois tempos. Também a mudança de cor servia para indicar a passagem de um modo de divisão a outro: por exemplo, o vermelho para indicar a passagem do perfeito ao imperfeito. Embora os sistemas de notação variassem muito de país para país, os princípios definidos em Paris pelos adeptos da Ars Nova se foram gradativamente impondo e tornaram possível canalizar aquilo que tendia a dispersar-se. Novos valores rítmicos foram introduzidos, e o músico passou a dispor de um sistema que se aproximava visivelmente daquele que iria constituir a notação atual. O "ponto",
Léxico musical explicativo
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A notação e a interpretação
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contudo, ainda continuava a ter funções diferentes de acordo com o contexto em que era usado: tanto aumentava a duração da nota em metade de seu valor (a função que hoje lhe damos), como servia de sinal de separação colocado depois de um grupo de notas que formavam um tempo completo. Com a Ars Nova, a escala de cinco gradi (graus) destinada a determinar o valor do "tempo primeiro" (a unidade mais longa a ser fracionada) leva-nos diretamente à noção de "tempo". Tal preocupação, que concerne à duração absoluta e não mais apenas às proporções entre os valores relativos das notas, parece ser própria dos séculos XIII e XTV. Johannes Verulus de Agnania (século XIV) tentou estimar o valor exato da breve em relação ao instans ("instante"), considerado a menor unidade sideral. Todas estas pesquisas, decerto, mantinham estreita relação com os desenvolvimentos da ciência e da astronomia. A partir do século XV, com Dufay e seus contemporâneos da Escola da Borgonha, um movimento de simplificação e esclarecimento parece operar-se; a única diferença notável é a importância crescente das notações "brancas", em que as figuras de notas aparecem vazias. Por volta de 1400, tais notas "vazias", que haviam começado a ser usadas na metade do século XIV, vieram ocupar o lugar das "pretas" para assinalar a passagem a outro modo de divisão, como sucedia com a cor vermelha, preconizada por outros sistemas de notação com este propósito. Tais distinções, todavia, tornam-se logo caducas com o desenvolvimento subseqüente. O acontecimento que influiu decisivamente na transformação da escrita musical foi a imprensa, inventada durante a segunda metade do século XV. O testemunho mais antigo a esse respeito é dado pelo Saltério de Mogúncia, datado de 1457. A imprensa conduzirá irreversivelmente à padronização da escrita musical, inclusive reduzindo e depois suprimindo as ligaduras, relacionadas em demasia com a grafia manuscrita. Os procedimentos de gravação (a imprensa musical veio a adotar a tipografia somente quando o século já estava para acabar) influiriam, de então por diante, sobre o formato das figuras das notas: de quadradas ou em forma de losango, passam a arredondadas; as variantes individuais tendem a desaparecer para dar lugar a normas que haveriam defirmar-secada vez mais até chegarem ao ponto em que hoje se encontram. Se a notação tem incontestavelmente tendência a uniformizar-se, por outro lado ela é fartamente nutrida pela inventividade e o talento improvisador dos músicos, que muitas vezes exercem, nessa época, o triplo papel de compositor, instrumentista e cantor. A este propósito, bastaria citar as obras vocais de Dunstable ou as da Escola da Borgonha, que deixam ao cantor da parte superior a possibilidade de variar a linha melódica e ornamentá-la com cadências que realcem suas qualidades de solista. Assim é que as peças renascentistas estão repletas de "diminuições" (a fragmentação das notas longas para inserir toda sorte de melismas, escalas e ornamentos) e passaggi, fórmulas melódicas que eram aprendidas de cor para serem usadas no interior dos intervalos melódicos escritos. Exis-
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Léxico musical explicativo
tem obras didáticas sobre o assunto, que são verdadeiros repertórios de efeitos a serem enxertados num texto fixado pela escrita e ajudam os cantores a adaptá-los às obras de Willaert, Lassus e outros. O crescimento do papel do virtuose profissional, a partir do último quartel do século XVI, com mestres do porte dos Gabrieli, Merulo ou Cabezón, só faz confirmar a importância da contribuição individual no que diz respeito à interpretação. Não seria o caso de nos alongarmos aqui na descrição dos múltiplos efeitos (tremoli, tremoletti, groppi, mordentes...) que só muito esquemáticamente apareciam marcados nas partituras, pois dependiam antes de mais nada da personalidade do exécutante. Basta uma olhada nos testemunhos da época para sabermos que a interpretação não devia qualquer obediência à partitura fornecida pelo compositor, a qual representava nada mais que um pretexto para excursões de toda sorte da parte do músico. "O caráter da coloratura depende da habilidade e da individualidade do exécutante: a minha opinião é que todas as vozes devem ser ornamentadas, mas não simultaneamente; dessa maneira, cada uma delas sobressairá por sua vez" (Hermann Finck, Practica musica, 1556). Os ornamentos constituem a parte decorativa com relação à estrutura de base da obra que se encontra fixada pela notação. As diferentes maneiras de representar os sinais que correspondem aos ornamentos, as quais variam de acordo com os compositores, com os países, etc, marcam bem esta distinção de estatuto entre aquilo que deve ser considerado como arquitetura determinante da obra e aquilo que está apenas florindo nos arredores. Certos sinais gráficos ligados a ornamentos, como os trinados, parecem sair naturalmente dasfigurasneumáticas e sugerir, como no passado faziam os neumas, o contorno aproximativo de um melisma decorativo. Assim, "transcrever os ornamentos equivale" — segundo o musicólogo Charles Burney—"a repetir o nonsense e a impertinência de uma conversa que, se já inicialmente era aborrecida, mais insípida ainda irá tornar-se à medida que o tempo e as maneiras que a engendraram vão ficando cada vez mais distantes". Durante o Renascimento, coexistiram vários sistemas de notação por conta da própria natureza dos instrumentos. A "tablatura", cuja origem remonta à Idade Média, teve notável progresso, talvez porque refletisse, com particular acuidade, o aspecto visualizado da interpretação em certos instrumentos, como os de teclado J? os de cordas pinçadas. A partir do século XIV, o deslocamento da atividade musical da Igreja para a Corte favoreceu a expansão da prática instrumental e de sua aprendizagem. Com o aumento do número de instrumentistas amadores, apareceu a necessidade de se inventarem notações mais diretamente ligadas a certos instrumentos do que ao solfejo, definido em função das limitações vocais. Através das informações que proporciona com relação ao dedilhado, a tablatura, utilizada até o século XVIII, mostrava como tocar, ao invés de pôr a ênfase naquilo que devia ser tocado, como é o caso da notação convencional, a qual, em compensação, tem a vantagem de aplicar-se a qualquer instrumento, seja qual for.
A notação e a interpretação
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Os séculos XVll e XVIII O sistema de notação só haveria de estabilizar-se de maneira clara a partir do século XVII. Numerosas variantes podem, entretanto, ser assinaladas, principalmente no que diz respeito ao número de linhas da pauta musical (por exemplo, seis para a mão direita, oito para a esquerda, na música de órgão de Frescobaldi), embora a pauta de cinco linhas viesse cada vez mais se generalizando, salvo no caso do cantochão, tradicionalmente escrito em quatro linhas. Na virada do século XVI para o século XVII, a barra de compasso, muito utilizada nos movimentos de dança, tornou-se mais freqüente e ganhou as funções que lhe damos hoje. Em vez de servir de ponto de referência para a leitura, como nas polifonias primitivas, a barra começou a servir também para dividir as seqüências musicais em compassos iguais e para sugerir o lugar do acento, o que de certa forma vem demonstrar que, não muito antes, na época em que o madrigal estava em seu apogeu, o acento devia ser relativamente livre, ou melhor dizendo, deveria estar ligado à estrutura poética. De fato, até o século XVIII não há como questionar a flexibilidade da notação e, por conseguinte, também da interpretação musical. Isso é plenamente confirmado pela importância dos ornamentos, de um modo de escrita como o baixo cifrado e de um modo de expressão vocal como o recitativo. O mesmo poderíamos dizer desta surpreendente declaração de Couperin: "Nós escrevemos uma coisa e tocamos outra." O artigo "Interpretation" da Enciclopédie Fasquelle, redigido por Marc Pincherle, está repleto de testemunhos sobre a tolerância para com o intérprete. Nos séculos XVII e XVIII, os tratados escritos sobre como interpretar a notação (os quais não são de natureza muito diversa das introduções que costumam preceder certas partituras atuais) sublinham a marcante variabilidade dos sistemas de notação. É claro que não poderia deixar de haver abusos na arte de ornamentar, e o aspecto "decorativo" acabava, algumas vezes, por importar mais que a própria obra, arriscando prejudicar a inteligibüidade do texto musical. Era o que denunciavam, no começo do século XVII, os adeptos da Escola Florentina, como Galilei, Peri e Caccini, entre outros. Isso os levou a reduzir os ornamentos a efeitos (affetti) mais expressivos e mais concisos que as passagi. Este interesse pela expressividade fará com que tais compositores introduzam efeitos como a esclamazione (o decrescendo e crescendo de uma nota) e o rubato (literalmente, "roubado"), que consiste em relaxar a rigidez do tempo: o rubato viria a mfluir consideravelmente sobre a interpretação durante o romantismo, em particular sobre a interpretação pianística. Estes "efeitos", de acordo com os compositores e os países, recebiam diferentes nomes; poderíamos citar os agréments do estilo francês (de 1650 a 1750), ou o que 1
Atualmente, a barra dupla marca o fim de uma seção ou da peça. No interior da música, pode também indicar uma mudança de armadura ou de compasso. Precedida por dois pontos verticais, a barra dupla passa a indicar que se deve repetir a seção ou a peça.
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Léxico musical explicativo
Designação verbal das notas e das escalas (como indicação, por exemplo, para discos provenientes de países estrangeiros)
Português
Francês
Inglês
Alemão
Lá dobrado bemol
La double bémol
A double flat
Asas
Lá bemol
La bémol
Aflat
As
Lá
La
A
A
Lá sustenido Lá dobrado sustenido
La dièse
A sharp
Ais
La double dièse
A double sharp
Aisis
Si dobrado bemol
Si double bémol
B double flat
Heses
Si bemol
Bflat B
B
Última sonata, de Schubert: B-dur
Si
Si bémol Si
H
Sinfonía Inacabada, de Schubert:
Si sustenido
Si dièse
SÍ dobrado sustenido
Si double dièse Ut double bémol
B sharp B double sharp
His Hisis
Exercícios práticos
Sonata opus 110, de Beethoven: As-dur
H-nwll
Dó dobrado bemol
C double flat
Ceses
Cflat
Ces
Dó
Ut bémol Ut ( = Dó)
C
C
Sinfonía n° 5, de Beethoven: C-moll
Dó sustenido
Ut dièse
C sharp
Cis
Quarteto n° 14, de Beethoven: Cis-moll
Dó dobrado sustenido
Ut double dièse
C double sharp
Cisis
Ré dobrado bemol
Ré double bémol
D double flat
Deses
Ré bemol Ré
Ré bémol
Des
Ré
D flat D
Ré dobrado sustenido
Ré dièse
D sharp
Dis
Mi dobrado bemol Mí bemol
Ré double dièse
D double sharp
Disis
Mi double bémol
Eses
Mi
Mi bémol
E double flat Eflat
Mi sustenido Mi dobrado sustenido
Mi Mí dièse
E sharp
Eis
Fá dobrado bemol
Mi double dièse
E double sharp
Eisis
Fá bemol Fá
Fá double bémol
F double flat
Feses
Fá bémol
F flat
Fes
Fá sustenido Fá dobrado sustenido
Fá
F
F
Fa dièse
F sharp
Fis
Sol dobrado bemol
Fa double dièse Sol double bémol
F double sharp
Fisis Geses
Dó bemol
E
D
Es E
Sinfonia n° 9 de Beethoven: D-matt
Sinfonia Heróica, de Beethoven: Es-dur
Adagio da Sonata opus 116, de Beethoven: Fis-moll
Sol bemol Sol Sol sustenido
Sol bémol Sol
Sol dobrado sustenido
G double flat G flat G
Ges G
Sol dièse
G sharp
Gis
Sol double dièse
G double sharp
Gisis
maior
majeur
major
dur
menor
mineur
minor
moll
Sinfonia K 500, de Mozart: G-mall
0 dó só foi introduzido no século XVII pelos italianos, que achavam difícil pronunciar ut.
A notação e a interpretação
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os ingleses denominam grace e os alemães Manieren e Verziehungen. Uma das qualidades da arte francesa foi precisamente a diversidade dos agréments, que eram inscritos levando-se em conta o contexto musical. A ornamentação, além de ser uma brecha por onde se podia contemplar a invenção do músico solista, era também uma maneira de "embelezar" notas longas, impossíveis de serem sustentadas por certos instrumentos, como o cravo, e de fazer com que uma obra estivesse sempre apresentando novas facetas, conforme a orientação que lhe dava o intérprete. Alguns compositores definiram seus repertórios de ornamentos fazendo uma "tabela" para eles (Carl Philipp Emanuel Bach, Couperin, Chambonnières, Rameau, Anglebert, Tartini, etc); outros deixavam os ornamentos a critério do intérprete. Mais tarde, determinados ornamentos vieram a ser transcritos, isto é, passaram definitivamente a fazer parte do discurso musical. Mas a tendência que se foi firmando entre os compositores (Leopold Mozart e Carl Philipp Emanuel Bach, por exemplo) era a de ter sob controle o uso que se fazia dos ornamentos em suas músicas. Em muitos casos, estará inclusive explicitado que os intérpretes deveriam abster-se de ornar as notas escritas, ou então limitar-se ao emprego de alguns agréments. Certas edições, por exemplo das Sonatas opus 5 de Arcangelo Corelli (1700), apresentavam simultaneamente uma versão simples, despojada de qualquer artifício, e outra na qual todas as obras estão ornamentadas. O ornamento mais freqüentemente usado era o trinado que, duzentos anos depois, no século XLX, junto com a apojatura, permaneceria como um dos últimos vestígios de uma prática que, até o século XVIII, teve um papel incontestável e persistiu nas óperas, particularmente nos recitativos, de Gluck e de Mozart. Muito mais que hoje em dia, o músico instrumentista (ou cantor) era como que um cúmplice do compositor, que — como Corelli, Haendel ou Tartini — transmitia-lhe algumas vezes apenas as "grandes Unhas" da obra, um esboço que só ganharia corpo através do talento pessoal do intérprete. As repetições da capo das árias da época barroca tornaram-se, para os cantores, pretextos para demonstrações de virtuosismo: era uma maneira de escapar do jugo da obra, fazendo com que o intérprete se destacasse diante do auditório. A arte do acompanhamento estava naturalmente orientada para uma prática em que a interpretação participava da responsabüidade composicional, já que fre¬ qüentemente apenas se lhe fornecia um esboço dos acordes que deviam ser executados com relação à parte soUsta. Por exemplo, em seu Nouveau traité de l'accompagnement au clavencin [Novo tratado de acompanhamento ao cravo], de 1707, Saint-Lambert admitiaque os acordes pudessem ser substituidos por outros e que era necessário adornar a Unha do baixo, estando ela insuficientemente preenchida, com toda a sorte de enfeites. Um acompanhador deveria compreender por meias palavras aquilo que o compositor deixava subentendido. Para tanto, mais do que de sua técnica instrumental, ele devia estar nutrido dos princípios essenciais da composição musical, da ciência da harmonia e do contraponto. Em 1752, por
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Léxico musical explicativo
exemplo, Quantz prevenia que era melhor, para um estudante, que ele se abstivesse de tocar um solo ao estilo italiano enquanto não possuísse conhecimentos de harmonia. A improvisação recebera considerável impulso desde o século XIV. O contraponto improvisado, vocal ou instrumentalmente, a partir de melodias do cantochão, sobretudo o contrapunto alla mente, que fez grandes progressos na Itália do século XVI, caminhou lado a lado com a improvisação poética, vindo ambos a constituir procedimentos que fizeram grande sucesso nas cortes principescas da Europa. Formas como a toccata, o ricercare, o prelúdio ou a fantasia convinham particularmente ao improviso, bem como as suítes de danças, que permitiam aos músicos pôr à mostra o seu sentido da variação, pois em certos casos era indicada uma única linha melódica, vindo as outras enxertadas ao sabor da interpretação. A técnica do baixo contínuo (cifrado), que se perpetuou por quase urn século e meio, era explicitamente dirigida à capacidade de improvisação do instrumentista, que contava assim com a possibilidade de harmonizar a linha do baixo prescrita ao seu instrumento particular. Com efeito, a formulação do baixo contínuo era suficientemente "geral" para admitir a realização do acompanhamento por diferentes instrumentos, como a tiorba, o cravo, o órgão, etc, levando-se em conta as circunstancias que presidiam à execução, as condições acústicas do lugar, etc. Na época barroca, em que era assegurado ao intérprete um lugar central, grande parte da interpretação musical continuava impregnada da viva relação para com "mestres" que inculcavam o "bom gosto" na arte de interpretar. É que, até o fim do século XVIII, os intérpretes pareciam essencialmente preocupados com o estado da linguagem musical, e não com a notação de suas técnicas. À medida que a atividade do intérprete distinguia-se da do compositor, que as técnicas de um e de outro foram ganhando em especificidade, começou a diminuir a parcela de liberdade que tocava ao intérprete, que se foi tornando cada vez mais submisso àfidelidadeao texto escrito. Esta tendência — que, historicamente, começou a ampliar-se no final do século XVIII — coincide com a afirmação do direito moral do compositor sobre sua obra, do sentimento de propriedade artística. Em 1791, por exemplo, Grétry expressou sua esperança de que "em breve haverá leis que farão respeitar as propriedades artísticas". Se observarmos as características da atividade musical nos séculos XVII e XVIII, é forçoso notar que as licenças eram inumeráveis e que o sacrossanto respeito que certos músicos e musicólogos preconizam hoje para com as obras do passado era totalmente estranho à atitude então adotada. A obra, portanto, parecia infinitamente menos protegida. A noção de plágio só apareceu um tanto tardiamente. As próprias editoras nem sempre mostravam-se muito preocupadas com seus produtos. O jornal L'Avant Coureur, por exemplo, noticiava em 1769: "Os duos de violino de de Machi, já anunciados, não serão vendidos com este nome, porque sucede tratar-se dos mesmos anteriormente publicados por Domenico Wateski..." Obras que nos parecem
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hoje objetos culturais que merecem ser tratados com infinita deferência e cuidados foram manipuladas em sua época com a mais desenvolta indiferença. Era freqüente intercalar, em uma dada obra, o fragmento de outra obra, de compositor diferente: "Este trecho pode servir de andante numa sinfonia caso se reforme alguma delas; ele ficaria muito bem antes do Allegro da sinfonia do outro caderno", escrevia Gossec em 1768, referindo-se a uma peça para duas trompas, duas clarinetas e dois fagotes. Assim é que as primeiras representações do Orfeo [Orfeu], de Gluck, inclusive a sua estréia em 1762, estavam "trufadas" com inserções de obras de Johann Christian Bach, Haendel, Mazzinghi e outros. Em certos casos, os acréscimos podiam ser integrados de acordo com o gosto do exécutante: "Aqui, toca-se qualquer moteto que se deseje", indicava Charpentier em muitas de suas obras.
Indicações escritas para a execução e a interpretação Estas indicações são geralmente dadas em italiano, poucas em latim. Traduziram-se apenas as que possam provocar dúvidas no leitor. Parece inútil lembrar que affettuoso quer dizer afetuoso, agitato agitado, grave grave, grazioso gracioso, moderato moderado, etc. Para as indicações relativas a andamentos, cf. supra p. 58; para as que dizem respeito às variações de dinâmica, cf. supra p. 61. ADVÉRBIOS, GERUNDIOS E PARTICIPIOS QUE MODIFICAM O ANDAMENTO ( O U A EXPRESSÃO) Poco, Poco apoco, Un pocopiù,
Più, Molto più: pouco, pouco a pouco, u m pouco mais,
mais, muito mais. Molto, Non molto, Non tanto, Non troppo: muito, n ã o muito, n ã o tanto, n ã o demais. Assai: bastante, tanto quanto necessário. Quasi: quase (Andantino quasi allegretto). Mosso, Più mosso, Stretto: animado, mais animado, cerrado ou apressado. Accelerando. Rallentando, Ritardando, Ritenuto, Slargando: alargando. Ad libitum (latim), A piacere, Rubato, Senza tempo: à vontade, ao bel-prazer, n ã o rigorosamente (falando-se do tempo), sem compasso. TERMOS RELATIVOS À EXPRESSÃO Affettuoso. Agitato. Appassionato. Cantabile (cantante, falando ao coração). Con anima (com alma). Con brio (com í m p e t o ) . Confiwco. Con moto (com movimento). Dolente (doloroso). Espressivo ou Con espressione. Grave. Grazioso. Maestoso
(majestoso).
Moderato. Mosso (animado). Risoluto (com decisão). Scherzando (brincando com humor). Serioso. Sostenuto (sustentado, com firmeza). Spiritoso ou Con spirito. Vivace ou Vivo (com vida, vivaz). TERMOS RELATIVOS À EXECUÇÃO Legato (notas ligadas), que é o oposto de Staccato (notas bem destacadas umas das outras). Tenuto, Sostenuto (som sustentado, muito sustentado). Leggiero (ligeiro, com leveza). Manato (com o ritmo bem marcado). Pesante (pesadamente, com insistência).
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As adaptações geralmente admitidas eram dos mais diferentes tipos: • redução, como no caso das Indes galantes, [Indias galantes], obra publicada em 1735 por Rameau com o subtítulo de Ballet réduit à quatre grands concerts [Balé reduzido a quatro grandes concertos]; • corte, como acontecia com Frescobaldi, que admitia serem as seções de suas obras tocadas na íntegra ou em parte: "Nas canzone, pode-se terminar nas cadências, e do mesmo modo nos ricercari, sempre que estas peças parecerem muito longas"; ou com Rameau, que indicou: "Pode-se, falando em geral, dispensar os doubles (variações) e as repetições num rondó que se mostre muito difícil", em suas Pièces de clavecin [Peças para cravo], publicada em 1724; • deslocamento: "Além do mais, embora tenham estes versículos sido escritos para o Kyrie, alguns poderão servir, caso se julgue oportuno, a outros usos", assinalava Frescobaldi, em suas Fiori musicali [Flores musicais]. Tais prescrições provam incontestavelmente que o discurso musical admitia enorme diversidade e que o compositor não julgava os múltiplos desvios dos intérpretes como um atentado à personalidade de sua obra. A redução do número de vozes, por exemplo, era muitas vezes tolerada, até pelo próprio Mozart. Em 1783, por ocasião de vários concertos, ele insistiu para que "fosse dada aos exécutantes a faculdade de escolher entre tocá-los com a orquestra completa, em que se incluiriam oboé e trompa, ou somente a quattro". Havia ainda o costume nada incomum de transformar certas partes vocais em partes instrumentais. Por outro lado, o efetivo vocal ou instrumental para uma mesma obra podia aumentar ou diminuir (por exemplo: fazia-se, de um concertino para três solistas e grande orquestra, um trio de solistas), sem que a identidade da obra fosse por isso afetada. Mas, além da flexibilidade de que as obras compostas até o século XVIII dão testemunho, é preciso chamar a atenção para a relativa indiferença de que eram objeto determinadas propriedades da execução musical, como o ritmo e a altura das notas, que aparecem hoje em algumas partituras tão precisamente notadas. Pode-se ver nisso a vontade de preservar a parcela de iniciativa pessoal que cabia ao intérprete? Ou trata-se, antes, de uma "neutralidade" do compositor face a certas decisões, sobretudo aquelas referentes às variações de dinâmicas, que, até o fim do século XVI, estavam em geral reduzidas a forte e piano, modos de ataque e andamentos? É neste sentido que Marin Marais (1656-1728) deixaria, no seu segundo livro de Pièces pour viole [Peças para viola] a indicação: "Rondó metade picado e metade tocado à arcada, e caso se preferir, picado do começo ao fim e o mesmo para a arcada". As indicações de andamento estão também sujeitas a grandes variações, a ponto de não causar espanto uma prescrição como essa de Demachy em suas Pièces de viole [Peças para viola], de 1685: "Pode-se tocar os prelúdios como se queira, lentamente ou depressa". Outro exemplo, ainda das Fiori musicali de Frescobaldi: "Al-
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guns Kyrie poderão ser tocados num movimento vivo, outros num movimento lento, conforme o julgamento do exécutante." Os compositores pareciam, por outro lado, dar grande atenção às dificuldades técnicas de suas obras e fazer com que o acesso a elas não ficasse restrito aos virtuoses. Era dentro desse espírito que faziam certas concessões às normas da partitura (transposições, supressões parciais), as quais muito bem demonstram como os compositores facultavam ao intérprete bastante mais do que simples obediência ao que estava estipulado: "Quando a mão não conseguir alcançar facilmente duas teclas ao mesmo tempo", declarava Rameau referindo-se às suas Pièces de clavecin, de 1724, "pode-se abandonar aquela que não faz falta ao canto, pois não se deve querer o impossível". Com esta mesma intenção, Frescobaldi escreveria, ao fim do seu prefácio para as Fiori musicali: "Fiz tudo o mais fácil que podia", depois de haver admitido que "embora os Cantifermi devam ser tocados ligados, se isso for impossível para as mãos, pode-se soltar as notas para maior comodidade". Do mesmo modo, a atenção concedida ao gosto do público mostra-se diretamente assinalada na interpretação, quando Johann Joachim Quantz escreve, em 1752 , em seu Versuch einer Anweisung die Flote traversiere zu spielen [Ensaio de um método para aprender a tocar a flauta transversa]: "Quando uma peça é repetida uma ou várias vezes, principalmente se for ela rápida, por exemplo um allegro de concerto ou de sinfonia, toca-se sempre a segunda vez um pouco mais depressa que a primeira, para não adormecer os ouvintes." A "cadência" de concerto, essa "composição dentro da composição", constituía certamente um dos terrenos de predileção para o intérprete. Haendel foi particularmente celebrado pelos ritornelli para cravo ou órgão que ele próprio introduzia em seus oratórios. Na Sonata para dois violinos e viola da gamba de Mattheson, contemporâneo e amigo de Haendel, cada músico dispunha de oito compassos para tocar de acordo com sua imaginação in stylo phantastico: um princípio como este não deixa de evocar o dos breaks na música de jazz. Século XIX e século XX As cadências dos instrumentos solistas nos concertos ou nas trio-sonatas raramente eram estipuladas pelo compositor. A cadência ganhava, então, um aspecto de cappricio, que às vezes mal tinha relações temáticas com a obra que a acolhia. Entretanto, a partir de Beethoven, os compositores ou alguns grandes virtuoses passaram a escrever as cadências. É preciso observar, por sinal, que, à medida que avançava o século XIX, a improvisação e todos os floreados que o intérprete acrescentava ao que estava escrito começaram a ser postos de lado: Rossini, por exemplo, desde 1815, excluía da ópera qualquer coisa improvisada. Numerosos, porém, foram os compositores que, como Beethoven, Schumann, Mendelssohn ou Liszt, entregavam-se, a um só tempo, à obra escrita e à arte de improvisar sobre temas
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dados e disso tiraram um ensinamento precioso — porque baseado na força do instante — no que diz respeito à relação com o público. A improvisação impregnou profundamente a escrita musical destes compositores, embora Beethoven tenha declarado em 1808: "A bem dizer, só se improvisa quando não se presta atenção ao que se toca, e esta é a melhor e única maneira de improvisar." O impulso romântico do século XIX engendrou certo número de crenças, como a elevação do artista à categoria de herói-criador, o culto da obra de arte, a necessidade de sua preservação, etc. A partir do momento em que Mendelssohn conseguiu reanimar o interesse pelas obras do passado — ou seja, em 1829, com a execução da Mathauspassion [Paixão segundo São Mateus], de Johann Sebastian Bach —, o espirito de conservação "museográfico" não mais cessou de desenvolver-se até resultar, em nossos dias, numa mentalidade radicalmente oposta ao espírito que prevalecia na vida musical anterior ao século XVIII: quer dizer, marcada pelo predomínio do que é conservado sobre o que é criado, do passado sobre o presente. No século XIX, o número de ouvintes de música aumentou de maneira inconteste. Na formação da orquestra sinfônica, este interesse encontrou um instrumento privilegiado, que convinha particularmente a salas de concerto destinadas ao grande público. Tecnicamente, o século XIX ofereceu aos compositores a possibilidade de precisão no que se refere ao andamento e à altura absoluta dos sons. No primeiro caso, o metrónomo, inventado por Maelzel e utilizado já por Beethoven, veio permitir que o andamento fosse marcado com muitíssimo mais rigor do que no passado, pois passou a existir, como referência, uma norma numericamente controlável. Contudo, as indicações numéricas do andamento jamais chegaram a substítuir completamente a floração de sugestões verbais de origem italiana. Quanto à altura absoluta dos sons, o diapasão, usado a partir de 1859, proporcionou um ponto de referência estável para a afinação dos instrumentos, o que pôs fim a especulações que, por muitos séculos, variavam de acordo com épocas e lugares. Já no século X, o monje Notker, da abadia de Sankt-Gallen, indicava que o tubo mais grave do órgão, que correspondia a um ut, deveria medir uma vara e meia e servir de padrão aos outros sons da escala. Quando, já no início do século XX, alguns compositores sentiram a necessidade de integrar, em suas pesquisas, materiais sonoros inusitados na música tradicional, as carências de uma notação que, por mais de um século, muito pouco havia evoluído não podiam deixar de ser sentidas. Basta citar as partituras e projetos dos futuristas italianos, concebidos para objetos cujo resultado não podia ser tão controlável como aquele que asseguram os intrumentos musicais propriamente ditos. Certas observações de Bartók no que concerne à transcrição das músicas de transmissão oral dão testemunho de como tais dificuldades eram sentidas. Numa carta de 1913, Bartók escreve: "Nas melodias populares (...) há muitos sons estra-
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nhos, determinados deslizamentos de voz, sons cuja altura não pode ser exatamente precisada." Dessa forma o compositor será levado a acrescentar, ao repertório existente, sinais para indicar, por exemplo, um efeito de deslizamento:
IÉÜH Tais efeitos não podem, na verdade, ser comunicados por meio dos sinais convencionais. "Do contrário", declara Bartók em outra carta, "será necessário substituí-los por grande número de explicações em cada página." Tornou-se evidente que, na medida em que se desenvolveu a experiência com novos recursos sonoros, principalmente com a obra de Varèse, revelou-se indispensável que a notação convencional sofresse extensões. Para indicar, por exemplo, intervalos de altura menores que o semitom (microtonalidade), vários sistemas de sinais foram adaptados às convenções existentes por compositores como Alois Haba e Ivan Wyschnegradsky. Mais recentemente, os efeitos vocais — e mesmo corporais — explorados por Stockhausen em Momente ou por Ligeti em Aventures, nouvelles aventures fizeram com que houvesse um aumento considerável no repertório dos diversos sinais e símbolos destinados à interpretação musical, com risco até do intérprete ver-se confundido pelo acúmulo das informações a serem assimiladas. O problema reside justamente na função que o compositor deseja conferir à notação. Para uma boa parte dos compositores, a música do século XX tenta reduzir ao máximo as incertezas, os imponderáveis da interpretação. "Eu vivo dizendo que minha música devia ser lida, executada, mas não interpretada", declarou francamente Stravinski. Apesar de representar uma estética muito divergente, Schõnberg, neste aspecto, aproxima-se da tomada de posição de Stravinski quando escreve: "A peça é orquestrada de tal sorte (pelo menos esta foi minha intenção) que o som dependa dos intérpretes tocarem ou não exatamente o que escrevi." Mas o estado presente da notação estaria em condições de pernritir-lhe isso? O próprio Schõnberg esforçou-se para pôr em dia um sistema de notação que fosse mais apropriado à sua concepção de harmonia do que este que conhecemos, o qual reflete prioritariamente a ordem tonai, justamente o ponto questionado pelo fundador do dodecafonismo. Schõnberg sonhava com um sistema de notação que assegurasse lugar igual a cada um dos doze sons da escala cromática, o que não poderia deixar de ter influência decisiva sobre a própria percepção. Arthur Honegger, por sua vez, previa uma mecanização progressiva da interpretação musical, até que uma orquestra totalmente mecanizada viesse substituir a existente. Os recentes desenvolvimentos das técnicas da escrita e da própria produção do fenômeno musical por meio de computadores têm confirmado incontestavelmente as intuições de Honegger. Mas, é claro, trata-se aqui apenas de uma das tendências do pensamento musical.
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Hoje, contamos com varios sistemas de notação cujo desenvolvimento se dá de forma autônoma, desde os mais estritos aos mais abertos. A experiência da eletrônica, não resta dúvida, contou muito para a precisão que exigem algumas partituras elaboradas a partir dos anos 1950. Através da notação, o som parece cerceado em função de suas múltiplas propriedades, o que faz, às vezes, com que a leitura fique extremamente complexa. Neste caso, a única coisa que se pede do intérprete é que ele seja tão fiel quanto possível. Naturalmente, é difícil avaliar em que momento o acúmulo de informações não poderá mais ser assimilado pelo intérprete: as partituras de música serialista regurgitam destes casos limites, para não dizer de impasses para a leitura, como algumas vezes sucede. O trabalho a partir de novas fontes acústicas, como a eletrônica, fez com que surgissem técnicas de notação a ele apropriadas. Em certos casos (por exemplo, os Studie, de Stockhausen) a notação inventada mostrou-se suficientemente precisa para que a experiência eletrônica pudesse ser repetida por outro músico. Tais casos, porém, continuam a ser muito raros, pois a ramificação das técnicas eletroacústicas é tal, após uma vintena de anos, que a notação das operações efetuadas em laboratório (por exemplo, no caso de Telemusik, de Stockhausen) está longe de permitir que uma obra possa ter sempre execuções que se assemelhem. Contudo, a inevitável degradação do suporte sobre o qual está inscrita a obra eletrônica faz com que a problemática da notação não possa ser totalmente posta de lado. Determinados efeitos sonoros, ainda que puramente instrumentais, engendraram alguns conjuntos de sinais que dispensam um certo tipo de precisão, tornada inútil para enfatizar os aspectos mais determinantes da interpretação. Depois de Penderecki, numerosos compositores esforçaram-se, principalmente na Polônia, para, de maneira esquemática, reduzir a notação a sinais capazes de dar conta das características mais gerais do resultado que desejavam obter. (No caso da partitura, extraída da obra Anaklasis, de Penderecki, aqui reproduzida, vêem-se clusters densos e estáticos.) Tal notação, destinada a facilitar a decifração, de modo que a concentração possa recair principalmente sobre a produção do som, possui preciosas qualidades em termos de eficácia. Além destas formas de notação — que prolongam e completam o sistema existente, mais do que põem em questão a própria natureza da relação do intérprete com o texto escrito pelo compositor —, outras mais deliberadamente "subversivas" apareceram, e é em parte por intermédio delas que o compositor procura abolir a hierarquia, ou a cesura, entre o amador e o profissional, entre o criador e o exécutante e até mesmo as clivagens que persistem entre as diversas disciplinas artísticas. Alguns compositores julgam que, ao invés de esforçar-se para "conservar" as características de uma obra, das quais hoje se podem encarregar os meios de reprodução mecânica mais minuciosamente do que qualquer sistema de notação (Bartók observou que "as únicas notações verdadeiras são os sulcos marcados no
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disco"), a notação deveria antes constituir um catalizador para a interpretação musical. E é por isso que compositores como Earle Brown puderam, em seu trabalho de notação e comunicação com os intérpretes, sentir-se mais próximos das práticas vigentes no Renascimento ou na época barroca do que do modo de interpretar do Romantismo, tendente a sacralizar a criação do compositor.
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Esse é o caso principalmente das partituras "gráficas", em cuja origem encontram-se Earle Brown, John Cage ou ainda Morton Feldman. Em algumas destas partituras (por exemplo, December 52, de Earle Brown), o músico se vê confrontado com uma escrita em que não existe qualquer sinal convencional. E se elas são complementadas — o que quase sempre acontece — por prescrições verbais que visam a dar indicações para decifrar o fenômeno gráfico elaborado pelo compositor, tais prescrições não são, todavia, concebidas de modo a trazer respostas unilaterais às questões levantadas pelas notações e, se ofizessem,acabariam resultando num novo código, que apenas estaria substituindo outro. Neste caso, as notações constituem por si mesmas verdadeiros stimuli para que os músicos possam exprimir-se através de seu mundo sonoro, o que implica tocarem — sozinhos ou em grupo — seus instrumentos sem que estejam subordinados a um estilo de música imposta ou tenham que recair em clichês formados pelo hábito. Tais notações podem então ser consideradas como "mapas" que permitem estabelecer novas estratégias de interpretação e estimulam a criatividade. Neste sentido, são "experimentais", na acepção que John Cage dá ao termo: aquilo que é produzido na execução, como resultado efetivo, não é predeterminado pela natureza dos sinais inscritos na partitura. Mais indagações que ordens, assimiladas a um processo e não a obrasobjetos, tais notações encontrarão tantos modos de abordagem quantos sejam os indivíduos ou os processos. "Uma indagação, não um objeto, mas de preferência um processo e,finalmente,este processo deve ser considerado como próprio de cada indivíduo" (John Cage). Além do sistema de notação gráfica, apareceram, um decêncio mais tarde, as partituras ditas "verbais". Estão neste caso muitas das obras de Christian Wolff, Karlheinz Stockhausen, Luc Ferrari e Jean-Yves Bosseur, em que a partitura, escrita com palavras, vale como um "roteiro" que os músicos memorizam e tomam como base de seu ato musical. A importancia conferida à palavra na partitura revelou uma nova maneira de encarar a escrita musical, provocando entre os intérpretes um tipo de comunicação original, menos formalizado, vez que, sendo menos codificado, estimula muito mais a personalidade musical do intérprete do que a escrita tradicional o fazia. A partitura verbal torna-se simplesmente uma instigação à produção do ato musical, fornece indicações, informações sobre um itinerário possível apresentado ao indivíduo, além de colocar em questão o estatuto do compositor, que só aparece aqui na qualidade de "regulador" da performance. A independência do escrever, do tocar e do escutar parece bem ser o traço dominante das partituras que estamos considerando: cada modo de atividade deve poder desenvolver-se no sentido que lhe é próprio, sem querer justificar-se através de qualquer outro. A questão, por isso, não é saber se a escuta de tal ou qual fenômeno sonoro permitirá pressentir as propriedades de sua notação original, pois a validade do fenômeno musical não está em atingirmos o que estivesse além
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de sua "evidência", quer dizer, da maneira pela qual ele se apresenta a nós. É nesta senda que, segundo Dieter Schnebel por exemplo, a música poderá talvez reencontrar "algo daquele caráter imediato que uma vez já teve". As modalidades divergentes de experiência do som na escrita, na interpretação e na escuta levaram compositores como Dieter Schnebel ou Mauricio Kagel a reavaliar seus suportes: a partitura, que quase sempre não passava de um intermediário destinado a ofuscar-se por trás do fenômeno musical por excelência, que é a apresentação e execução em concertos, tornou-se para eles um elemento inseparável da performance. Nada daquilo que se manifesta durante o ato de escrever é para passar em silêncio, para ficar esquecido por negligência ou automatismo, não tanto pela preocupação com um determinismo expresso de maneira renovada, mas pelo desejo de deixar atuar uma pluralidade de determinações em que "uma coisa tenha todos os efeitos" (J. Cage), influindo sobre o que, no resultado final, aparece como partitura, como se nenhum elemento devesse ser considerado "dado de antemão", ou pudesse ser logo de saída aceito sem estar sujeito à questão de que também ele faz parte do processo de notação com todas suas implicações: qualidade do material utilizado, formato, tipografia etc. Tudo que possa penetrar no campo de estímulos do intérprete — como alguns caracteres que já aparecem em várias partituras de Erik Satie, entre as quais Sports et divertissements [Esportes e divertimentos] — deve ser interrogado, como suscetível de informá-lo sobre sua futura interpretação e de diversificar sua abordagem de um texto que ele, o intérprete, subscreverá. Mas também é possível detectar nesta démarche uma nova forma de desmembrar o fenômeno da escrita com seu mundo de determinações e sua tendência ao maneirismo, ao "grafismo artístico". Neste tipo de notação, com efeito, volta a impor-se a figura do autor, com seus gostos e estilo pessoal. É de um maneirismo desse tipo que, a nosso ver, dão testemunho particularmente os grafismos de Sylvano Bussotti, que "sublimam" de certo modo as notações musicais no interior de partituras revalorizadas enquanto objeto. As notações convencionais aparecem descontextualizadas, dissipam qualquer aspecto de compreensão unívoca e se transformam em motivos para extrapolações interpretativas propostas à imaginação lúdica dos exécutantes. Sylvano Bussotti escreveu: U m a vez vencido (...) o choque da primeira visão desconcertante, suscetível unicamente de engendrar encantamento e dúvida, a dupla intenção torna-se clara: por u m lado, a utilização do repertório de s í m b o l o s tradicionais n u m contexto inédito, o que provoca polivalências de significações, forçando o sentido habitual e sobretudo orientando a escrita da página segundo os princípios de um uso corrente ultrapassado como a dec o m p o s i ç ã o temporal subdividida em valores aritméticos, à qual se substitui uma livre apreciação óptica das durações no espaço da página. Por outro lado, nasce (...) a invenção a u t ô n o m a de sinais totalmente novos, que m a n t ê m com o sinal escolástico apenas
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uma relação alusiva que, nos casos extremos, é reabsorvida e acaba desaparecendo por trás das aparências musicalmente indecifráveis das pictografías autênticas.
A um só tempo, os centros de interesse que apresenta o livro/partitura são deslocados e desacelerados, e defasadas as relações entre o olho e o ouvido no que concerne à escrita do texto. Em todos estes casos, por meio de alusões indiretas e tomadas de empréstimo, seria possível inventar sinais que, por si mesmos, não admitem nem correspondências "alusivas" entre o óptico e o sonoro, nem sentido privilegiado de leitura, que estejam livres de apreciações visuais para favorecer o acesso à definição de uma situação sonora que não remete a nada, a não ser a ela mesma? Seria possível ao vocabulário sonoro ilimitado de que hoje dispomos satisfazerse com um sistema de escrita comum a todos, com um solfejo uniforme? A variabilidade de implicações do fenômeno sonoro que estamos em condições de viver ativamente, desde que nos coloquemos a salvo dos dogmas restritivos, das interdições acadêmicas e dos anátemas, poderia responder qualquer outra coisa que não uma pluralidade de modos de transmissão de uma atividade musical recolhida em sua polivalência? Se for este o caso, compor tornou-se inventar uma escrita.
PRIMEIRA PARTE
DAS ORIGENS CRISTÃS AO SÉCULO X I V
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PENSAR A MÚSICA NA IDADE MÉDIA
Os mistérios elementares, absolutos, incorruptíveis, da ciência de Deus revelam-se na treva mais que luminosa do süêncio. DIONISIO, O AREOPAGITA
O termo Idade Média, que devemos aos historiadores românticos e que designa o período compreendido entre a Antigüidade e os tempos modernos, tem pouco valor operacional. Na verdade, reúne em um mesmo bloco os sete primeiros séculos do cristianismo, a Renascença carolíngia, que a eles sucede no século VIII, o período do ano mil, em que se multiplicam centros de pensamento e de criação nas escolas monásticas como nas cortes reais, e que conduz à segunda Renascença, talvez a mais brilhante, a do século XII, assinalada pelo aparecimento das línguas vernáculas nas diferentes culturas da Europa. Em seguida vem finalmente o que se pode chamar, com Georges Duby, de o "tempo das catedrais", que aos poucos se foi tornando, no transcorrer dos séculos XIV e XV, o das cidades, dos mercadores e do primeiro humanismo. Não se deve pensar a Idade Média como idade das transições, segundo a crença tantas vezes reiterada, mas como idade da gênese das formas da arte no Ocidente, essas formas que, em todos os domínios, tão logo aparecem, impõem-se com a força de obras-primas consumadas, escapando às vicissitudes da História e triunfando sobre a precariedade das técnicas graças à força unificadora de algumas grandes correntes de pensamento.
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Primeira parte: das origens cristãs ao século XIV
Desde os primeiros tempos, as obras de beleza, sejam elas oferecidas por soberanos ou por bispos, à glória de Deus ou à edificação de seu povo, constituem — como acontece igualmente em relação ao conjunto do saber — o fruto da reflexão dos clérigos. A música segundo Boécio E a música é, sem dúvida alguma, o domínio em que as teorias podem justificar a organização das formas com o máximo de precisão. Desde o século VI, ocupar-se de música era essencialmente elaborar uma filosofia musical, refletir sobre a função dos sons — e, num plano secundário, compor melodias ou executá-las. A própria noção de música tem abrangência muito mais vasta do que em nossos dias, compreendendo os dados metafísicos que se acham em seus fundamentos tanto quanto a matemática que a organiza. É, portanto, antes de mais nada, objeto de considerações teóricas. Na origem dessas concepções, está a obra de um filósofo latino, Boécio, lida e relida incansavelmente durante dez séculos, fonte e fermento unificador a que sempre voltavam os teólogos das diferentes escolas. Anicius Manlius Tbrquatus Severinus Boetius (480-524) pertencia a uma família cristã. Era homem de ciência, dotado de tão vasto saber que houve quem sobre ele levantasse suspeitas de magia. Filho de um cônsul romano, chegou a assumir a direção dos negócios do Estado, tornando-se, ele próprio, cônsul em 510. Mas, injustamente acusado de participar numa conspiração tramada pelo imperador de Bizâncio contra Teodorico, o Grande, foi exilado para Pavia, onde ficou preso, foi submetido a torturas e morto. Sabendo-se condenado, escreveu durante seu cativeiro o De consolatione philosophiae, [Sobre a consolação da filosofia], obra em que a herança da sabedoria dos antigos (Platão, Aristóteles) alia-se à reflexão religiosa. Se não foi canonizado, como há quem afirme ter sido, pelo menos seu culto instaurou-se desde o século VIII na diocese de Pavia. O conjunto dos escritos de Boécio era fartamente comentado nas escolas, tornou-se objeto de reflexão nos mosteiros e alimentou o pensamento de um Roscelin, de um Anselmo de Cantuária, de um Guillaume de Champeaux, dos filósofos da Escola de Chartres e dos monges da abadia de Saint Victor. Santo Tomás de Aquino valeu-se, em grande medida, do tratado De Trinitate [Sobre a Trindade] de Boécio, na Summa theologica [Suma teológica], ao discorrer sobre a pessoa divina. O livro de Boécio De institutione musica [Sobre a formação da música] foi uma fonte importante para todos os teóricos da música, desde a época carolíngia até o Quattrocento italiano e o século XVI francês. No século X, oflamengoHucbald refere-se a Boécio como Doctor Mirabilis [Doutor Admirável], e no famoso trata-
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do Musica enchiriadis [Manual da música] ele é mencionado como Doctor Magnificus [Doutor Magnífico]. Por sua vez, Guido d'Arezzo, cujo tratado musical intitulado Micrologus é o fundamento do saber musical da Idade Média, recomenda a todos a leitura de Boécio. Nos séculos subseqüentes, os teóricos Jean de Murs (século XIII), Jacques de Liège (século XIV) e Tinctoris (século XV) retomam as teorias de Boécio na parte de seus tratados reservada à música especulativa. O pensamento de Boécio organiza-se em torno da idéia de que, por obra da razão divina, estabeleceu-se a harmonia de todas as coisas segundo a ordem dos números. Essa ordem figurava na inteligência do Criador e foi a partir dela que nasceram os elementos em sua multidão, a sucessão das estações, o curso dos astros celestes. No princípio de tudo está, portanto, o número. E a música, segundo Boécio, outra coisa não é senão a ciência dos números que governam o mundo. Sobre essa base e inspirado em Quintiliano e em Macrobio, o filósofo distingue três grandes categorias na música, em que vê a fonte da harmonia universal. Em primeiro lugar, a Musica mundana, a música do mundo, isto é, a harmonia fundamental que preside ao deslocamento dos astros, ao movimento dos elementos, à sucessão das estações e também à música das esferas, ou seja, à música produzida pelas esferas no movimento concéntrico que realizam em volta da Terra e que, por força do hábito, cessamos de perceber. Em segundo lugar, a Musica humana, a harmonia entre corpo e alma do ser humano, entre sua sensibilidade e sua razão, entre o sujeito cognoscente e o objeto conhecido — enfim, a tomada de consciência, por esse sujeito, de estar em harmonia com o mundo. Finalmente, a Musica instrumentons, que, por meio da arte, imita a natureza. Os espíritos medievais do período románico e do período gótico retomam essa definição da música, partindo sempre do princípio de que tudo é governado pela harmonia; e, como tudo o que é belo inscreve-se numa relação harmoniosa de ordem divina, o caráter transcendental do Belo se depreende de sua própria natureza. Recorrendo, ao mesmo tempo que às teorias de Boécio, à doutrina de Santo Agostinho, estendem esses conceitos de consonância e de justas proporções ao domínio das ciências, da moral, da política e da economia, coisas que, todas elas, devem estebelecer-se, com referência ao modelo proposto por Deus no mundo invisível, numa relação de conformidade e de harmonia no mundo visível. Vê-se, assim, que o vasto domínio da música não está longe de cobrir inteiramente o campo das analogias que organizaram o saber ocidental até o século XVI. Para dar uma idéia da amplitude desse domínio, reproduzimos aqui o esquema construído por Edgar de Bruyne, em seus Études d'esthétique médiévale [Estudos de estética medieval], tomando como base a reflexão dos principais teóricos.
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"Música: ciência de toda e qualquer proporção. 1. Música sobrenatural ou espiritual: harmonia dos coros angélicos e dos santos (musica coelestis: Jacques de Liège). 2. Música puramente matemática: proporções em si. 3. Música metafísica: harmonia realizada no mundo material e considerada como objeto de especulação filosófica "eorum quae harmonia quadam reguntur rationalis consideratio". a. Harmonia dos princípios metafísicos: proportio materiae ad formam (ver Alberto Magno e seus contemporâneos). b. Harmonia do universo. Por exemplo: das estações, das transformações elementares (musica mundana: Boécio). c. Harmonia fisiológica, psicológica, moral do homem (musica humana em sentido amplo: Boécio). 4. Música sensível: harmonia perceptível pelos sentidos. a. no mundo visível: dança plástica; b. no mundo sonoro: 1. Harmonia das esferas (musica mundana: Reginon; coelestis: Zamora) 2. Harmonia dos sons, produzida por instrumentos (musica instrumentons: Reginon). 1. produzidos pela natureza. Por exemplo: a voz humana (musica humana: Reginon; musica vocalis: Renascença). 2. produzidos pela arte: os instrumentos musicais (musica artificialisr. Reginon; musica instrumentalis: Renascença)." Mesmo com o risco de nos tornarmos um tanto fastidiosos, passemos agora à música enquanto ciência matemática, pois é nela que se encontra a chave das escolhas estéticas medievais, tanto na arquitetura como na escrita musical. Segundo Boécio — como vimos -—-, a música seria a "ciência dos números". É pelo número e pela relação numérica que devemos compreender as grandezas espaciais estudadas na geometria e os movimentos temporais que a música estuda. Sem a aritmética, nenhuma das duas poderia subsistir. Fica estabelecido, antes de mais nada, que o princípio de todos os números é "a Unidade", e que a mãe de toda proporção é "a Igualdade". Por outro lado, as coisas criadas obedecem a dois princípios: o da Unidade, pelo qual elas permanecem imutáveis e idênticas a si próprias (princípio masculino simbolizado pela mónada); e o da Multiplicidade, da variação, da instabilidade e da mudança (princípio feminino simbolizado pela díade). Da mónada derivam todos os números ímpares, assim como os quadrados dos números; da díade, derivam os números pares. Por intermédio da aritmética, Boécio estabelece uma equivalência entre os números musicais e os números correspondentes àsfigurasgeométri-
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cas, ou seja: para começar, uma equivalência entre o quadrado dos números e o quadrado, etc. Ao domínio do Mesmo pertencem: As figuras quadradas 2x2 3x3 4x4 Os quadrados dos números 4 9 16 As relações de igualdade 2/2 3/3 4/4 Ao domínio do Outro, pertencem: Os retângulos p.a.l. Os números p.a.l. As relações de desigualdade 1
1x2 2 1/2
2x3 6 2/3
3x4 12 3/4
Uma vez estabelecidos tais princípios, Boécio afirma que as figuras mais belas e mais deleitáveis obedecem às proporções mais simples, e é aí que se fundam as relações entre a arquitetura e a música. No que concerne à arquitetura, Boécio retoma as idéias de Vitrúvio, a saber, que as mais belas proporções são as do quadrado e as do retângulo. Os retângulos mais simples são os que se encontram numa relação de 2/1, proportio dupla (proporção dupla), ou de 3/2 (a unidade mais a metade), sesquiáltera, e de 4/3 (a unidade mais 1/3), dita sesquitertia. Ora, no que diz respeito à música, as relações mais simples — portanto, as que se deve utilizar, por serem as mais belas — são a oitava (de 2/1), a quinta (de 3/2) e a quarta (de 4/3). Essas considerações foram aplicadas, não ficaram no terreno da pura especulação intelectual. Assim, no século XIII, o grande arquiteto Vülard de Honnecourt deixou-nos um álbum de plantas e desenhos de uma inteligência e de uma qualidade que forçosamente nos fazem pensar nos de Leonardo da Vinci. Um dos projetos é a planta de uma igreja cisterciense ideal. Traçada ad quadratum (o que significa que o quadrado é a unidade de base), ela se inscreve num retângulo de proporção 3/2, isto é, um triplo duplo quadrado, que é também a relação da quinta musical; o coro tem a proporção 4/3 (a relação da quarta); cada transepto representa a relação da oitava, 4/2 ou 2/1; o cruzamento da nave com o transepto forma o quadrado, 4/4. A música a ser ouvida nessa nave tão admirável, de proporções tão simples quanto perfeitas, deveria fundar-se nas mesmas proporções que aquelas utilizadas pela arquitetura — as mesmas, por sinal, que regem o universo. Ou seja: a metafísica matemática de Boécio cria uma estética capaz de materializar, através da beleza, no templo de Deus e na música que o celebra, a idéia de que a arte e a música se fazem segundo justas proporções, imitando o modelo p.a.l. = parte altera longior (outra parte rnais longa):figuracujo lado comprido supera em uma unidade o lado curto. (N. T.)
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pode fazer mal à saúde do corpo, ao passo que a bela música eleva à contemplação do divino. Entende-se porque a música ocupou espaço tão importante no ensino medie¬ val: ela não apenas tem um valor intelectual, como também um valor moral, pois ajuda o homem a elevar-se, a aproximar-se da verdade e a recriar sua unidade interior no seio da paz, longe da agitação e da instabilidade deste mundo, tão freqüentemente denunciadas em De consolatione philosophial. Por todos esses motivos, mais vale dedicar-se à reflexão teórica sobre a música, já que ela aproveita ao espírito e fortifica a alma, dando ao homem o governo dos seus sentidos, ao passo que a música sonora, em que estes se deleitam, pode deixar a alma amolecida. Diz Boécio à Fortuna, em sua consolatione. Admito que tuas palavras são especiosas e como que impregnadas do doce mel da retórica e da música; enquanto se as ouve, n ã o cessa o efeito do encantamento. Mas, para u m infeliz, o sentimento de sua infelicidade é mais penetrante ainda.
Album de Villard de Honnecourt, meados do século XIII: Planta para u m a igreja ad quadratum. (Roger-Viollet)
divino. O espírito ascende da beleza das qualidades móveis àquela das proporções imutáveis; em seguida, da beleza das relações simples realizadas no mundo e na ordem matemática, ele se eleva à beleza do arquiteto divino, em cuja inteligência vive o modelo do universo. Assim como a harmonia governa a beleza do céu, da mesma forma deve ela governar a música, para que esta se encontre numa relação de concordância com o universo e com o homem, tal como o amor de Deus faz com que todas as coisas se ordenem com perfeição e se ponham de acordo entre si. Por outro lado, e sempre dentro de uma perspectiva platônica, Boécio desenvolve a idéia de que a unidade da alma do universo reside numa concórdia musical e de que a combinação harmoniosa dos sons nos faz tomar consciência de nossa própria unidade, da ordem interior que nos governa. A música permite à alma humana pôr-se em relação harmoniosa com a alma do Universo, o que nos leva, muito naturalmente, à teoria dos efeitos da música: a que é mal composta, de maneira puramente instintiva e sem respeitar os números, corrompe a alma e
Entretanto, a ser o caso de estabelecer-se uma hierarquia entre os sentidos, Boécio e os teóricos medievais reconhecem à audição uma superioridade em relação à visão. Efetivamente, por via do ouvido, a emoção e a ciência penetram ao mesmo tempo na alma e no espírito. v Essa filosofia musical comporta dois corolários: o primeiro é que os teóricos hão de estabelecer doravante uma distinção entre música especulativa e música prática (o que entendemos hoje por música), e o segundo (decorrência do primeiro) é que o termo musicus designa funções bem diferenciadas: em primeiro lugar, o teórico que reflete de maneira puramente abstrata sobre a organização e a função da música; depois, o compositor e, em seguida a este, o crítico que julga, segundo critérios científicos, o valor das composições. Em último lugar vêm o instrumentista ignorante e o cantor, que executam a música sem compreendê-la. A Idade Média só sente desprezo por esses últimos, que não passam de intérpretes, uma atitude radicalmente oposta à do Baixo Império, em que um bom flautista era pago a peso de ouro. O conjunto das teorias de Boécio e de seus sucessores vai não apenas impor-se durante séculos ao Ocidente: servirá, ademais, de ponte entre a época medieval e as "renascenças" italiana e francesa. Assim é que o gosto pelas teorias neoplatônicas de Boécio se manifesta largamente entre os humanistas e os artistas italianos do século XV, que retomam por sua conta a idéia do Timeu, segundo a qual as artes devem sua perfeição à ciência matemática. "Os inovadores de Florença", nos diz André Chastel, haviam proclamado com convicção, como u m a profissão de fé, a necessidade de haver referência, nas artes visuais, ao Ordo mathematicus. Assim aconteceu com Alberti... e Brunelleschi.
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A propósito, não é indiferente observar que o compositor Guillaume Dufay escreveu o moteto Nuper rosarum flores para a inaguração da cúpula de Brunelleschi, na catedral de Florença, em 15 de agosto de 1436. Os presentes acreditaram estar ouvindo coros angélicos, tal o encantamento que a música neles provocou. Ora, as proporções desse moteto, o número e a repartição dos valores de duração correspondem exatamente às medidas das diferentes partes do edifício, inclusive às da cúpula. A voz tenor chega a ser duplicada na quinta para criar-se uma relação igual à das nervuras com seu reforço interno. Piero delia Francesca publica o tratado De corporis regularibus [Sobre as regras do corpo]. Seu amigo Luca Pacioli, que freqüenta todas as cortes de Florença, de Urbino, de Roma, publica De divina proportione [Sobre a proporção divina] em 1509, em Veneza, mesma cidade onde a edição princeps da obra de Boécio já havia sido publicada em 1492, quando os cálculos matemáticos e o simbolismo dos números ocupavam todos os espíritos. E sabe-se a tempestade que provocara o andaluz Ramos de Pareja ao publicar em Bolonha, em 1482, seu De musica tractatus sive musica pratica [Tratado sobre música ou música prática], com o qual em vão tentara introduzir a oitava e o cromatismo. Quanto à teoria dos efeitos da música, é amplamente desenvolvida nos círculosflorentinospor Marcilio Fisino (1433-1499) e impregna todo o pensamento humanista. Na França, um século mais tarde, editam-se e reeditam-se ainda os escritos de Boécio, que permanece como referência obrigatória para todos. Ronsard justifica o desejo de ter seus poemas musicados por compositores contemporâneos — Janequin, Goudimel, Lassus, etc. —, endossando as idéias de Boécio, que ele cita em data bem tardia, 1560, na sua Épître au roi Charles DC [Epístola ao rei Carlos IX], onde, depois de declarar que aquele que não gosta de música é indigno de olhar a luz do sol e se faz semelhante aos porcos, acrescenta: Aquele que a honra e reverencia é de hábito homem de bem, tem a alma sã e galharda, e, por inclinação natural, ama as coisas elevadas, a filosofia, o manejo de assuntos políticos, o trabalho das guerras.
A isto segue-se uma passagem sobre os efeitos da música, que tanto pode impelir a atos de heroísmo quanto — sobretudo se utilizar o modo cromático — arrastar à lascívia e à luxúria. Em suma, os que crêem inovar por um retorno às fontes outra coisa não fazem que seguir a mais imutável das tradições. Se a influência do pensamento de Boécio sobre os espíritos foi tão forte e durou tanto tempo é porque suas teorias sobre a música foram exploradas com exclusividade por clérigos, únicos detentores do saber, e porque estes punham esse saber, antes de tudo, a serviço do poder da Igreja. Ora, o pensamento do filósofo romano inscreve-se perfeitamente na continuidade do pensamento dos padres da Igreja latina e, em particular, no de Santo
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Agostinho, que, sensível até as lágrimas à beleza dos hinos, empenha-se incessantemente em fazer a ligação entre o cristianismo e a herança que ficou dos antigos (Pitágoras e Platão), afirmando que a música é uma ciência e que ela participa da Numerositas divina, isto é, da ordem matemática desejada por Deus. Com o peso de sua autoridade, o ponto de vista de Santo Agostinho vem a calhar para a Igreja. Firmada em tais referências, ser-lhe-ia possível, numa primeira etapa, eliminar aos poucos os velhos cultos pagãos em nome da ciência da Antigüidade pagã. Em seguida, estaria a Igreja em condições de recusar, de sufocar qualquer forma de música que não fosse por ela ensinada no Quadrivium (juntamente com a geometria, a astronomia e a álgebra) e que não tivesse por função edificar a alma dos fiéis — qualquer música, em suma, que, não sendo a um só tempo ciência e recurso a serviço de uma ética, não dependesse diretamente de seu ensino e de sua autoridade, e que não contribuísse para a extensão e a unificação da cristandade.
As funções da música Para chegar à música dita "prática", falta agora examinar qual o lugar que os teóricos estavam dispostos a conceder-lhe. Coerentes consigo mesmos, declaram estes que, ciência por sua natureza, a música tem como função primeira o louvor de Deus. A figura de Davi cantando e acompanhando-se na lira, tão freqüente nos textos como nos portais das catedrais e na iconografia, aí está para lembrar a todos disso e para dar a entender que os cânticos da Igreja imitam os do salmista cantor de Deus. A música deve ser feita, também, à semelhança dos coros angélicos, que celebram, nos orbes eternos, a glória divina que os aureola de luz. Os anjos músicos, inscritos segundo uma ordem precisa nosflancosdo edifício de pedra ou nas enigmáticas iluminuras dos manuscritos, convidam a alma a perceber a imaterial ressonância de seu canto. "Por isso, com todos os anjos e todos os santos", diz o texto do Prefácio da missa, "nós proclamamos tua glória". Guillaume de Machaut, cônego da catedral de Reims, de abobadas povoadas por anjos, repete, fazendo eco aos teóricos, que a música serve para "enaltecer Deus e sua glória", como o fazem os anjos que o vêem face a face. Nesse domínio, o pensamento medieval acha-se bastante impregnado do Liber de coelesti hierarchia [Livro sobre a hierarquia celeste] do Pseudo-Dionísio, o Areopagita, pensador neoplatônico (provavelmente do século V), que contém meditações sobre os nomes divinos e a hierarquia dos seres de luz. Trata esse livro abundantemente dos anjos, dos mensageiros de Deus, esses "pregoeiros do silêncio divino". Põe-lhes na boca o canto do Sanctus, que se segue ao Prefácio:
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A palavra de Deus transmitiu aos habitantes da Terra certos hinos que a primeira hierarquia canta e nos quais se manifesta santamente a e m i n ê n c i a da iluminação, a mais alta dentre todas, que Lhe pertence. Uns, efetivamente, traduzindo essa i l u m i n a ç ã o em termos sensíveis, n u m clamor que faz lembrar o bramido das grandes águas, exclamam: 'Bendita seja a glória do Senhor no lugar de Sua morada!' Outros anunciam esta muito célebre e augusta palavra divina: 'Santo, santo, santo é o Senhor dos Exércitos. D e Sua glória está cheia a Terra inteira!'
As liturgias orientais, fossem elas judias ou cristãs, tiveram seu papel nessa importância que assumiu o canto de louvor no Ocidente. Não demorou muito, porém, para que os Padres da Igreja — a começar por Santo Agostinho, mas também São Basilio, São João Crisóstomo, São Bernardo — denunciassem os "encantamentos" da música, que tão facilmente deleita os sentidos, desse modo enfraquecendo a alma. Os primeiros cristãos não haviam banido de seus cantos todo melisma, todo ornamento? "Deus não escuta a voz, mas o coração", advertiu São Cipriano, e São Jerónimo chega ao ponto de desejar que uma certa cacofonía impeça ao ouvinte uma escuta por demais complacente da beleza das vozes. ^/ De qualquer modo, o chantre formado na Schola Cantorum [Escola de cantos] ^ ) deve cantar docemente, com humildade, sem jamais se pôr em destaque, e atento \ ^ apenas — recomenda São Bento — à edificação dos fiéis. Além de servir ao puro louvor, a outra função da música que justifica sua presença no culto é ser um suporte — e nada mais que um suporte — da palavra, dos textos das Sagradas Escrituras escolhidos para as liturgias. Cada ofício se compõe de uma sucessão de textos tirados tanto do Antigo como do Novo Testamento. Esses textos reúnem os dois aspectos da palavra: do Antigo Testamento, o logos criador, tal como o define o Gênesis e o celebra o Salmo 32: "Por sua palavra foram feitos os céus, e pelo sopro de sua boca todo o seu exército"; do Novo Testamento, o Verbo encarnado para a obra de redenção, Verbo-Cristo, Verbo-vida, tal como o define o Evangelho de São João. Essa palavra é verdade, autoridade e afirma-se como universal. Por outro lado, cada fragmento escolhido e cantado deve ser considerado como um pequeno logoi em si, em que está contido o poder do livro como um todo: "Cada palavra da divina escritura", diz Orígenes, "é como se fosse uma semente... À primeira vista, parece magra... mas, se encontra um jardineiro experiente (...), ganha a dimensão de uma árvore e se expande em galhos e ramagens." A citação bíblica resume o verbo, concentra a potência do logos. Ora, cantar é transmitir, pela harmonia dos sons e por meio de algumas palavras, o sentido eterno do logos sagrado. Não deve ser senão isso.
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OS PRIMEIROS CÂNTICOS DA IGREJA C o m o pregoeiros do silêncio divino DIONISIO, O AEROPAGITA
Até o fim do século XII, o lugar por excelência do cântico de louvor é o mosteiro, longe do mundo. O preparo da terra inculta e a frutificação da alma se fazem simultaneamente no silêncio e na solidão. Dois espaços dão ritmo a esse trabalho: o quadrado do claustro, microcosmo que prefigura a morada paradisíaca, tendo ao centro a fonte ou o poço como signo da graça; e a igreja, com o quadrado como medida e o Cristo na cruz como forma — a igreja, signo material da encarnação e lugar de redenção. Dois tempos diversos dão ritmo à aventura individual e coletiva: aquele que projeta a história individual numa marcha para a eternidade orientada pela história da salvação e aquele que organiza os grandes movimentos cíclicos da natureza, a alternância dos dias e das noites, escalonando-os em orações. Foi São Bento (480-543), o primeiro dos grandes fundadores de ordens religiosas, quem ritmou o percurso das horas, estabelecendo o ofício divino, os oito momentos do dia e da noite em que o monge dedica o melhor de sua energia à prece coletiva e cantada. É em torno das Horas que se organiza, portanto, a vida dos mosteiros, ou seja: oito reuniões de oração ao longo das 24 horas. Matinas Laudes Prima
Noz'fe e alvorada 6h da manhã 7h da manhã
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Terça MISSA Sexta Noa Vésperas Completas
9h da manhã Meio-dia 3h da tarde 6h da tarde Cair da noite
A missa situa-se no centro e no ponto culminante do dia. Distinguem-se comumente as Horas maiores (Marinas, Laudes, Vésperas e Completas) das Horas menores (Prima, Terça, Sexta e Nona). O canto dos salmos é a parte essencial das horas. Nas Matinas, cantam-se o Salmo 94, antifonado (canto de dois coros alternados, por oposição ao canto responsorial, de solista e coro), com refrão, um hino, que varia segundo o calendário Htúrgico, e três noturnos, cada um dos quais é composto de três salmos e enquadrado por um cântico antifonado e três lições ou leituras. Os Laudes e as Vésperas são construídos de maneira similar, com o canto de cinco salmos enquadrado por um cântico antifonado e uma leitura breve, seguida de um hino. Nas Completas, temos novamente três salmos, uma antífona, um hino (Nunc dimittis) e uma antífona mariana (isto é, em honra à Virgem). As Horas menores compreendem apenas um hino e três salmos cada uma e utilizam a mesma antífona como enquadramento. No espaço quadrado, portanto, seguindo o tempo das horas, o homem reencontra sua harmonia na harmonia dos números, por meio do cântico de louvor que dirige ao seu Deus. A liturgia da missa ordena-se em torno da Eucaristia cotidiana, isto é, da reatualização da Ceia e do sacrifício do Cristo. Em torno desse núcleo fixo que constitui o "ordinário da missa", organiza-se o "próprio da missa", que segue ao longo de um ano a história da vida de Cristo, em torno das duas grandes festas, a de seu nascimento, o Natal, fixada em 25 de dezembro no calendário romano, e a de sua morte e de sua ressurreição, a Páscoa — que é uma festa móvel. A esses dois eixos, precedidos pelo Advento, no tocante ao Natal, e pela Quaresma, no que diz respeito à Páscoa — duas ocasiões de penitência —, devem-se acrescentar a festa da Ascensão e, dez dias depois, a de Pentecostés, em comemoração à descida do Espírito Santo (simbolizado por línguas de fogo) sobre os apóstolos. A cada dia, por outro lado, correspondem preces particulares, freqüentemente dirigidas a diversos santos, que integram igualmente o próprio da missa. O conjunto da missa constitui-se de cânticos em alternância com leituras salmódicas: SLNAXE (reunião) Introito (cântico de entrada) Kyrie (ordinário - cantado)
Os primeiros cânticos da Igreja
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Gloria (ordinário - cantado) Coleta (próprio - recitado) Epístola (próprio - recitado) Gradual (próprio - cantado) Aleluia (próprio - cantado) Evangelho (próprio - recitado) Credo (ordinário - cantado) Ofertorio (próprio - cantado) Secreta (próprio - recitada ou cantada) EUCARISTIA Prefácio (próprio - recitado) Sanctus (ordinário - cantado) Canon (ordinário - cantado) Agnus Dei (ordinário - cantado) Comunhão (próprio - cantada) Pós-comunhão (próprio - recitada) Ite Missa est ou Benedicamus Domino (ordinário - cantado) A primeira liturgia cristã nasceu, de certa forma, de uma extensão do culto judaico. De fato, os primeiros cristãos seguiam o culto na sinagoga, a que acrescentavam cerimônias privadas eucarísticas. O primeiro canto cristão teve origem, portanto, no canto hebraico. Comparando-se os cantos da igreja antiga com as melodias hebraicas, é fácil constatar semelhanças evidentes. Por outro lado, o hábito do canto "responsorial", em que um solista canta os textos bíblicos com resposta da congregação, também foi tomado à liturgia judaica. Ainda nos séculos III e IV, no momento em que se fixava o ritual da missa, o ofício compunha-se de duas partes. Em primeiro lugar, a Sinaxe. Um cântico de entrada, entoado pelo fiel mais idoso, era seguido da resposta de toda a comunidade e da leitura de três passagens das Sagradas Escrituras (leitura feita em cantilação, recto tono), cada uma delas alternando com o canto responsorial de um salmo. Depois vinha a Homilia, finda a qual os não-cristãos e os catecúmenos deviam retirar-se. Em seguida, a Eucaristia: a prece dos crentes, a oferenda de objetos postos sobre o altar, a comunhão acompanhada do canto de um salmo e a prece final seguida do despedimento dos fiéis. Estabelecido esse quadro, a liturgia desenvolveu-se rapidamente, sobretudo a partir do momento em que o imperador Constantino reconheceu o cristianismo (ano 313, édito de Milão) e fez da Igreja o que ela passaria a ser daí por diante: uma instituição. A seu sucessor, Teodósio, não restava senão fazer da nova religião uma religião de Estado. Vale notar que, durante esse tempo, por toda parte se desenvolveram liturgias em línguas vernáculas, na igreja siríaca, na igreja copta, e também na Palestina,
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onde se conservou a língua de Cristo, o aramaico, ao passo que, em Roma, a unidade litúrgica se alcançou provisoriamente em torno do grego. O litoral italiano da região de Ravena sofreu fortemente a influência da tradição bizantina. Mas, desde o século IV, o rito conhecido como "romano antigo", que seria suplantado pelo rito dito "gregoriano", utilizava o latim. Observe-se que o termo "canto gregoriano" é aplicado erroneamente, por extensão abusiva, a toda forma de cantochão, quando, na verdade, não passa de um dos ramos de um tronco feito de múltiplas Mturgias, as quais a reforma do papa Gregorio I teve por objetivo afastar, numa tentativa de fazer adotar, pelo conjunto da cristandade, a nova liturgia romana. O mais distante desse novo canto romano é certamente o canto galicano, que, por seu fausto e seus embelezamentos retóricos, estaria mais próximo das cerimônias orientais. O canto galicano foi igualmente sensível a influências dos cantos das judiarías de Marselha e das regiões renanas. Os centros mais importantes foram Lyon, Toulouse, Roma, Paris, Colônia e sobretudo Metz, onde foi considerável o seu desenvolvimento. Em Paris, no século VI, São Germano escreveu em hexámetros a Hturgia de uma missa que era cantada pelo clero, pelo povo e por três crianças (em que figurava o cântico das Três crianças na fornalha) e em três línguas: latim, grego, hebraico. A ordem era muito diferente da ordem romana. Em substituição a essas liturgias, Pepino e Carlos Magno esforçaram-se por impor, vencendo resistências, o rito romano. Este, por sua vez, deixa-se impregnar, às vezes, pelas liturgias que veio substiüiir: é o que acontece nas Improperio, preces da Sexta-feira Santa. As liturgias moçárabes, que os historiadores atuais preferem chamar de hispânicas, desenvolveram-se entre os cristãos que viviam sob a lei islâmica. Na Espanha e em Portugal, continuaram em uso até ofimdo século XI, mas, depois que os mouros foram expulsos do solo espanhol, o rito romano acabou por se impor. Na época, o mais importante centro musical era Córdoba, onde se desenvolvia a brilhante civilização moçárabe; mas Toledo, então capital, Sevilha e Saragoça eram também centros muito ativos. Há quem pense que essas músicas possam ter introduzido elementos orientais nas liturgias galicana e ambrosiana. É difícil pronunciar-se a respeito, tanto mais que os manuscritos remanescentes são ilegíveis, pois a notação não dá indicações sobre os intervalos. Graças a uma autorização especial, Toledo manteve alguns desses cânticos em seus ofícios. A liturgia ambrosiana deve seu nome a Santo Ambrosio, bispo de Milão (374¬ 397). Essa cidade foi, juntamente com Roma, no século IV, um dos grandes centros de renovação e difusão da música. Santo Ambrosio, além de combater a heresia ariana, empreendeu a reforma da liturgia em Milão. É-lhe atribuída a introdução de admiráveis hinos latinos nos ofícios. Com a beleza do canto, queria ele popularizar o dogma recém-promulgado da Santíssima Trindade, e, de fato, tão belas eram essas melodias que produziam um efeito quase mágico sobre a
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multidão. Santo Ambrosio é apontado como autor de quatorze hinos, três dos quais foram introduzidos no breviário romano (Aeterne rerum conditor, Splendor paternae gloriae e Aeterna Christi muñera). Compostos de oito estrofes de quatro octossílabos iâmbicos, esses hinos, por sua magnificência, obtiveram imenso sucesso e foram considerados modelos dignos de imitação ao longo dos séculos. Para São Bento, "ambrosiano" é sinônimo de "hino". Se a fonte dessas músicas é latina ou oriental é questão ainda não elucidada até hoje. O canto, como em toda a tradição latina, ou é silábico, ou semi-silábico, ou melismático, mas apresenta grande flexibilidade na utilização dos intervalos e dos modos (não indicados com precisão), além de uma grande exuberância de melismas. A Itália Setentrional, dependente da igreja siríaca, pode ter recebido influências desta. De qualquer modo, os freqüentes intervalos de quartas ascendentes e descendentes que se encontram nas melodias ambrosianas, seguidos às vezes de uma terça descendente, dão a essas melodias um desenho em que sobressai o parentesco com as melodias orientais. O canto ambrosiano preservou-se e mantém-se ainda, em toda a sua magnificência, em Milão, em certos vales italianos dos Alpes e na diocese de Lugano. Foi ao tempo de um certo Paulo Diácono, nos anos 780 — passados quase dois séculos da morte do papa Gregorio, ocorrida em 604 —, que se começou a atribuir a este último a paternidade do canto que leva o seu nome — lenda à qual vieram acrescentar-se, um século mais tarde, a da pomba que murmurava ao seu ouvido, a da chibata com que ele punia os alunos da Schola, etc. Originário do patriciado romano, de início prefeito de Roma, depois monge beneditino, fundador de sete mosteiros, Gregorio foi eleito papa em 590. Parece que sempre se sentiu saudoso da vida monástica. Moralista, administrador, foi também liturgista. Não tinha, no entanto, a sensibilidade musical de Santo Agostinho. Seu biógrafo lhe atribui um "sacramentário" (coletânea das orações da missa) e o estabelecimento do "antifonário". Difícil afirmá-lo com certeza, uma vez que a transmissão das melodias se fazia oralmente, como observa Michel Huglo, mais adiante, neste livro. Por outro lado, duzentos anos separam da obra atribuída a Gregorio os primeiros testemunhos manuscritos, e mais de trezentos medeiam entre essa obra e os textos das melodias ditas gregorianas. Além do quê, é provável (há quem diga: é certo) que esse rito romano tenha largamente tomado empréstimos à tradição do cantochão de que acabamos de falar, e, em particular, às diversas liturgias galicanas. Não resta dúvida de que, lentamente, no correr dos séculos, o rito romano impôs-se à cristandade ocidental. Mas o que tinha ele de "gregoriano"?
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TÉCNICA E NOTAÇÃO DO CANTO GREGORIANO
Para a transmissão dos cantos litúrgicos, a notação musical não é de modo algum necessária. Deve-se, entretanto, matizar essa declaração de princípio com uma distinção prévia. Em primeiro lugar, o termo "cantos litúrgicos" não abrange as leituras tiradas da Bíblia, que são executadas pelos leitores, pelos subdiáconos e diáconos, cabendo exclusivamente a estes últimos a leitura do Evangelho. Em todas as Hturgias da bacia mediterrânea, as leituras do ofício noturno e da missa são "cantiladas", isto é, lidas recto tono, seguindo pequenas fórmulas de entonação, de meia-cadência para a pontuação "fraca" e de cadência mais ornamentada para a pontuação "forte", ou seja, no fim do período. Esquematizando, podemos assim descrever a cantilação da leitura: dois altos platôs ligados entre si por vale estreito (é a cadência intermediária do ponto e vírgula). De um salto, acede-se à altura (é a fórmula breve de entonação), descendo-se de maneira gradativa (é a fórmula de cadência). Sobre os platôs, a leitura se executa como no Sprechgesang do Pierrot lunaire [Pierrô lunar] de Schõnberg, articulando bem, mas sem variações melódicas... Nisso consiste o recto tono. As cadências e semicadências não se improvisam: as fórmulas melódicas devem ser adaptadas ao texto segundo leis absolutamente precisas que nós, francófonos, concebemos com dificuldade, já que nossa língua francesa atual deixou de levar em conta esse importante elemento lingüístico. O acento tônico, alma da palavra grega ou latina, tem, de fato, posição preponderante na entonação e uma situação menos privilegiada nas cadências. Também nas Bíblias e nos lecionados,
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Primeira parte: das origens cristãs ao século XTV
tanto no Oriente como no Ocidente, é freqüente encontrarmos, mesmo em épocas muito antigas, signos convencionais destinados a lembrar aos leitores as sílabas sobre as quais deviam fazer-se entonações e cadências. Muitas vezes, esses sinais não são traçados pela mão do copista que transcreveu o texto sagrado: são acrescentados pelo clérigo ao preparar este, antecipadamente, a leitura que lhe compete fazer. Semelhantes acréscimos estenográficos são encontrados no Ocidente. Os especialistas chamaram esses signos de notação ecfonética, ou seja, notação dos finais. Na verdade, os sinais convencionais assim acrescentados, que lembram uma pequena fórmula de clausula rítmica, não chegam a constituir uma notação musical propriamente dita. Em uma notação musical, por mais simplificada que seja, a cada nota da melodia corresponde um sinal preciso, seja um ideograma — acento agudo, acento grave, etc. —, seja uma das letras do alfabeto, seja, finalmente, um signo convencional que indica o intervalo a separar cada grau da escala de sons, ou seu lugar no interior do tetracórdio ou grupo de dois tons mais um semitom. As origens da notação musical Mas, e por falar nisso, por que a notação musical? Qual a vantagem de impor um suplemento de trabalho aos copistas? Num mundo em que a transmissão do saber se fazia antes que tudo pela oralidade, num universo em que a assimilação prazerosa da Bíblia pela memória — meãitatio — substituíra a de Virgílio, nesse povo de clérigos, de salmistas e de chantres que passavam dez anos de sua existência ensaiando os cânticos — recorâatio — a serem apresentados de cor durante a celebração litúrgica, é o caso de indagar-se a razão de ser de uma notação musical. O mais curioso, nessa história das origens, é o fato de que duas esferas litúrgicas bem delimitadas tenham sentido a necessidade de fixar no pergaminho a linha melódica dos cantos melismáticos da missa e do oficio: os países de língua grega submetidos ao basileus de Bizâncio, no Oriente; o império carolíngio, no Ocidente, e também a Espanha, que, desde o século VII, possuía um repertório aparentado aos ritos galicanos, diferentes do rito romano pelo estilo de seus cantos. Dessa constatação geográfica à hipótese de uma origem única para as notações musicais bizantinas e latinas, não havia mais que um passo. Esse passo foi dado galhardamente por musicólogos como J. Wolf, J.B. Thibaut, Constantin Floros, etc., que fundamentaram sua hipótese menos sobre semelhanças gráficas do que sobre ressonâncias helénicas na designação de certos neumas latinos: apostropha, quilisma (Kylisma), epiphonus, etc. Ora, esses termos helenizados só aparecem na tradição musical muito tempo depois da invenção e do uso repetido dos sinais neumáticos. Em que época e em que região podemos situar a invenção dos primeiros sinais de notação musical? Os paleógrafos estão de acordo quanto a que os neumas — ou seja, as combinações de acentos e de sinais de pontuação do discurso (pontos,
Técnica e notação do canto gregoriano
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vírgulas, pontos de interrogação, etc.) — foram acrescentados na segunda metade do século IX aos manuscritos anteriores ao ano 800. Por conseguinte, os neumas terão sido inventados por volta de 800-830. Difundiram-se por toda parte, mas diferenciando-se conforme as regiões, um pouco como aconteceu com os estilos da iluminura... Hucbald, teólogo e teórico musical, monge de Saint-Amand, ensinou em seu tratado intitulado De harmonica institutione [Sobre a criação harmônica] que "os neumas, tão úteis para socorrer a memória, diferenciam-se gráficamente em cada região". O primeiro testemunho da notação musical data de 830: conhece-se até mesmo o nome do copista! Trata-se de Engildeu, monge de Santo Emerano de Ratisbona, que acrescentou, sobre meia página deixada em branco ao fim de um tratado de Santo Ambrosio, um tropo com as respectivas notas. Dez anos mais tarde, Aureliano de Réomé, que trata dos tons salmodíeos e dos modos gregorianos, faz três referências às figurae notarum, ou seja, os desenhos das notas, embora admitisse que uma "nota ¡material de música não se pode fixar por escrito..." Tal observação, atribuída a Isidoro de Sevilha no século VII, é muito justa: não é possível fixar os sons por escrito. A própria "figura das notas" indica, quando muito, uma direção da melodia para o agudo (acento agudo / ) ou para o grave (acento grave \ ou ponto.) ou combinações desses movimentos [A VA/], mas não a altura relativa ou absoluta dos intervalos que separam cada nota de outras. Era preciso, portanto, continuar a aprender de cor as melodias: os neumas ajudavam a memória, fazendo lembrar o desenho melódico das fórmulas de entoação e de cadências que são características de cada modo.
A estrutura da modalidade gregoriana Acontece, de fato, que o canto gregoriano não é composto de maneira espontânea, ao sabor da inspiração genial do compositor. Cada peça, seja uma antífona ou um responso, é "centonizada", ou seja, é formada por fórmulas já prontas que, escolhidas em função do modo da peça, costuram-se umas nas outras por recitativos de ligação, com ornamentos no grave ou no agudo... O chantre que abria um antifonario com notação em neumas reconhecia instantaneamente essas fórmulas, pois sabia em qual modo a peça estava composta. E sabia porque aprendia a reconhecer os modos valendo-se de um livro que continha todos os cânticos do repertório, classificados não segundo a ordem das festas litúrgicas (Natal, Epifanía, Quaresma, Páscoa, etc), mas segundo a ordem dos oito tons salmodíeos que se encadeiam com essas antífonas. Para apreciar a disposição muito estruturada da modalidade gregoriana, é preciso compreender bem o mecanismo da salmodia. Nos outros repertórios latinos anteriores ao canto gregoriano, a salmodia não é montada em "esquemas" previamente definidos: ela adere à estrutura da antífona para melhor ser enquadrada
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por esta. Pois, no fundo, uma antífona é exatamente isto: um quadro, um módulo no qual flui o recitativo salmódico. Um salmo, na liturgia cristã, não se canta isolado, não se executa independentemente. É a antífona, no plano doutrinário, que lhe dá um significado neotestamentário, mas é também a antífona que o introduz numa das oito partes preestabelecidas que melhor lhe convém. Eis como: No sistema diatónico da monodia gregoriana -— as teclas brancas do piano — só há quatro maneiras de terminar um canto: em ré (ou lá, por transposição), em mi (ou si), em fá (ou dó), ou em sol. As antífonas, destinadas aos fiéis, não são compostas num âmbito muito extenso: uma quinta, uma sexta, raramente mais que isso... Por outro lado, a alegria e o entusiasmo se exprimem melhor subindo em direção aos agudos, ao passo que a tristeza ou o respeito se fazem assinalar de preferência baixando aos graves da escala. Para cada peça, portanto, será escolhida uma salmodia "mais no alto" ou uma "mais no baixo" — aquela que melhor convirá a seu ambitus (espaço compreendido entre a nota mais baixa e a nota mais alta) e a seu ethos (caráter, disposição de humor). Todos os cantosfinalizadosem ré, classificados no tonário, serão subclassificados no "escaninho" do primeiro tom (ré agudo) ou no do plagal ré grave. A diferença não é enorme, sem dúvida, mas é suficiente para justificar essa triagem. Temos, assim, quatro modos possíveis, isto é, quatro maneiras de dispor tons e semitons em relação a uma tônica (no caso, a final), mas oito tons, porque a antífona de um determinado modo deve harmonizar-se com um dos dois tons salmodíeos, agudo ou grave, comandados por seu final: Antífona com final ré
com recitação do salmo em lá com recitação do salmo em lá
= 1° tom = 2° tom
Antífona com final mi
com recitação do salmo em si (ou em dó) com recitação do salmo em lá
= 3° tom = 40 tom
Antífona com final fá
com recitação do salmo em dó com recitação do salmo em lá
= 5° tom = 6° tom
Antífona com final sol
com recitação do salmo em ré com recitação do salmo em dó
= 7° tom = 8° tom
É digno de nota que os tons salmodíeos do agudo (1, 3, 5, 7) escolhem uma corda recitativa na quinta da final, enquanto os outros tomam a quarta (4, 8) ou a terça (2, 6). Essa arquitetura básica, que dá preferência a duas estruturas musicais — a quinta e a quarta — definidas pelos músicos da Antigüidade grega como "consonâncias
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Técnica e notação do canto gregoriano
perfeitas", constitui o próprio fundamento da modalidade gregoriana. Na verdade, em toda peça ornamentada com melismas, as fórmulas de entoação, as pausas cadenciáis, os neumas "pesados" e apoiados — em suma, o arcabouço da peça — acham-se ligados à tônica final do modo por meio de qualquer uma das quatro consonâncias estabelecidas sobre proporções numéricas simples: quarta (4: 3), quinta (3 :2), oitava (2 :1) e tom (9 : 8). Mas também — como se viu na salmodia (2 e 4 tons) — por meio da terça maior ou menor. Jamais por meio de semitom (a sensível) ou por meio de quarta aumentada (o "trítono" ou "tritom", chamado no século XVI de diabolus in musica [o diabo na música]). Para evitar o trítono (fá - si), basta utilizar a única nota "móvel" da escala diatónica antiga, o si bemol. Na realidade, durante três séculos na França e na Itália, e durante quatro ou cinco na Baviera e na Áustria, não se colocou o problema da escrita musical... A tradição oral transmitia de boca a ouvido, de mestre a discípulo, tanto as melodias mais simples do ofício feriai hebdomadário, como as mais melismáticas com todo o detalhe de seus ornamentos. o
o
As tentativas Os problemas de escrita vieram a ser colocados no dia em que alguém procurou fixar a linha melódica em todos os seus detalhes. Mas por que essa escrita da melodia? Por que tantas minúcias? A tradição oral, sustentada pela memória coletiva de milhares de chantres distribuídos pela Europa, ter-se-ia estiolado? Certamente que não: mas era preciso acelerar a formação dos chantres, que tomava tempo demais — pelo menos dez anos, declara Guido d'Arezzo. Já desde a época de Hucbald, no final do século IX, evidenciara-se a insuficiência dos neumas sem pauta para assinalar o valor exato dos intervalos melódicos. Nas obras de teoria musical, fazia-se necessário, para fins de demonstração, dar exemplos precisos... Como proceder? A engenhosidade dos sábios da Idade Média é inversamente proporcional à modicidade dos meios de que dispunham... Hucbald, que vira nos velhos tratados de música greco-romana os graus do grande sistema perfeito — a escala da música antiga, que compreendia quinze graus de lá a lá — serem designados pelas letras do alfabeto, propôs acrescentar essas letras ao lado de cada nota da notação neumática sem pauta: desse modo, o cantor poderia reconhecer com certeza a melodia que por acaso houvesse perdido nitidez em sua memória, ou, melhor ainda, poderia decifrar à primeira vista uma peça de canto recém-registrada nessa nova notação e que ele jamais houvesse ouvido antes (ignotum cantum). Esse problema do "branco" na memória ou da decifração à primeira vista de composições novas pela leitura sempre preocupou os chantres e os maîtres ès arts que ensinavam música entre ofimdo século LX e meados do século XI, pelo menos nas regiões de línguas románicas, porque, nas de língua "tudesca", isto é, para leste do Reno, a rotina e o conservadorismo prolongaram o uso da notação neumática 1
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Primeira parte: das origens cristãs ao século XXV
até 1350 e, em certos casos, além dessa data. O paradoxo chegava ao ponto de composições feitas na França e na Itália, ao tempo em que a pauta já se generalizara, serem transcritas em espessos e angulosos neumas nos mosteiros da Baviera e da Áustria. Para precisar os intervalos melódicos do canto, lançou-se mão de diversos procedimentos: em primeiro lugar, a notação alfabética boeciana, substituída na Itália por uma notação alfabética contínua de a a p: a (lá), b (si bemol), c (dó),... m (mi), n (fá), o (sol), p (lá). Essa notação, importada por Guilherme de Volpiano, que se tornou em 990 abade de Sainte-Bénigne de Dijon, foi aplicada na prática para notar os cânticos da missa de um gradual hoje conservado em Montpellier, e difundiu-se na Normandia, chegando a Fécamp, a Saint-Évroult e ao Mont-SaintMichel durante a reforma das instituições monásticas empreendida por este abade. Na Itália, um outro sistema foi inventado no século X: a notação alfabética de A a G para a parte grave da escala e de a até a (dois a minúsculos superpostos) para a oitava dos agudos. Como era preciso notar também o sol grave que aparece em algumas peças do modo de ré que alcança sons gravíssimos na escala, recorreu-se à utilização do T (gama) do alfabeto grego, uma vez que o G maiúsculo e o g minúsculo já haviam sido empregados. Daí provém a designação de "gama" aplicada ao conjunto. Conservou-se uma única folha do antifonário de San Michèle di Murano notado segundo os princípios desse sistema: o que mais chama a atenção nesse precioso remanescente é que as letras da notação não se acham escritas horizontalmente alguns milímetros acima do texto litúrgico: sobem e descem em função da progressão melódica que evolui para o ápice da melodia e em função da descida progressiva em direção à tônica final. Por exemplo, numa antífona do 8 tom: o
e d c h 8 entonação
d
A invenção de Guido d'Arezzo Quando, por volta de 1000-1050, Guido d'Arezzo iniciou sua carreira de mestre da escola claustral de Pomposa, admirável mosteiro de estilo románico na costa baixa do Adriático, ele ensinava às crianças as letras do alfabeto que representavam as notas... Mas procurava, ao mesmo tempo, um sistema que fosse mais "falante" — mais "cantante" seria, no caso, o termo apropriado... Conhecia o tratado de Hucbald e um outro tratado anônimo a que já se fez referência e que se intitula Musica enchiriadis, nos quais, para explicar os diversos intervalos às crianças e aos adolescentes, seus autores desenham no pergaminho as seis cordas da citara. Um dos manuscritos do Enrichiadis do século XI descreve a bratsche ou viola di braccio e, no correr da descrição, explica que o semitom situa-se entre a terceira e a quarta corda, o que confere ao instrumento os graus do-ré-mi/fá-sol-lá (claro que não se atribuíam então tais nomes aos graus desse hexacórdio!)... E de fato, no capitei do terceiro tom, conservado no Museu do Farinier, em Cluny, vê-se um menino aprendiz de música que pousa o dedo na terceira corda de uma lira-cítara apoiada em seu joelho esquerdo. Essas seis linhas constituem, sem dúvida, uma pauta, com a diferença que, em lugar de claves, indica-se, no princípio de cada entrelinha, se o intervalo é um T (tom) ou um S (semitonus, semitom). Pois aí está, fundamentalmente, o ponto importante do "solfejo": não cantar um tom onde deveria soar o semitom. Para chamar a atenção dos meninos, Guido d'Arezzo valia-se de cores: o vermelho para a linha do fá, o amarelo para a linha do dó e, além disso, uma letra-chave no início de cada linha: começando de baixo para cima, D para o ré, F para o fá, A para o lá e finalmente C para o dó. Acima do dó, encontram-se o mi e e em seguida o sol com a letra-chave G, que, na escrita gótica alemã, tornou-se a nossa "clave de sol"... Na pauta primitiva do século IX, não se escreviam notas nem neumas, mas tão somente as sílabas do texto cantado:
c a h g g cadência
Substituam as letras por quadradinhos e materializem o lugar das notas sobre linhas paralelas e entre as linhas: terão redescoberto a pauta musical! Na realidade, a célebre invenção de Guido d'Arezzo não se deu exatamente assim. Uma invenção, por mais genial que seja, é fruto da imaginação criadora. Mas a imaginação jamais parte do nada — ex nihilo — como a criação do TodoPoderoso: procede pela combinação engenhosa e racional de elementos preexistentes.
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Técnica e notação do canto gregoriano
—e De
— um lau — au
—a — da — mus
Te Muito pouco cômodo para registrar um repertório de 2.000 peças! Mas Guido conhecia os neumas, aqueles acentos e aqueles pontos que materializavam cada nota da melodia: em vez de situá-los de forma aproximativa, por que não os dispor sobre a pauta colorida na altura exata indicada pela letra-chave? Estava inventada, a partir daí, e pronta para o uso, a pauta musical. O sucesso foi imediato, mas despertou inveja: Guido teve que deixar Pomposa e atravessar a pé os Apeninos, para ser recolhido pelo bispo de Arezzo, Teobaldo, que lhe confiou os meninos da catedral-escola. Pouco depois, Guido d'Arezzo explicava seu pro-
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cesso de notação ao papa João XIX, que logo o fez aplicar aos livros de canto da Igreja romana. A difusão da pauta colorida consumara-se na Itália desde 1160-1180. Na França, ela se fez mais lentamente, porque as regiões de langue d'oc, ao sul do Poitou, utilizavam um sistema de pontos dispostos em degraus sobre uma pauta "invisível" — na verdade, as linhas pares da pautagem preparada com vistas à escrita dos textos, que o notador aproveitava como eixo para a distribuição desses pontos. A notação preconizada por Guido d'Arezzo penetrou na França pelo vale do Ródano, e chegou a Nîmes, a Valência, a Viena, mas não a Lyon, onde, em pleno século XIII, conservava-se ainda a notação neumática sem pauta! E mais que isso: há o testemunho de dois beneditinos do século XVTI, que registraram por escrito observações sobre os usos htúrgicos vigentes no seu tempo, pelas quais ficamos sabendo que, em Lyon, nessa época, os cônegos da Primacial de Saint-Jean executavam de memória todos os cânticos fitúrgicos. Os livros serviam apenas como meio de controle para o ensaio (recordatio) do sábado. Também aconteceu assim com os cartuxos que, para a notação em seus graduais e antifonarios, adotaram o sistema de Guido d'Arezzo com suas linhas vermelhas, pretas e amarelas. Em Chartres e na Normandia, o verde substituiu o amarelo: tanto faz, de qualquer modo salvou-se o princípio de, por meio de uma cor, assinalar o termo superior do semitom. Não demorou muito e, ainda no correr do século XII, particularmente no norte da França, o sistema foi simplificado, traçando-se pautas de quatro linhas vermelhas com letras de claves de dó, na época ut (C), e de fá; no leste da França, as quatro linhas eram pretas.
Terá sido Guido d'Arezzo o autor dessa melodia-solfejo? Até hoje se discute! Mas pouco importa. O gênio consiste às vezes em adaptar, e não necessariamente em criar. E não há como deixar de reconhecer que esse hino, convidando tão naturalmente ao canto, obteve um tal sucesso na prática em nível escolar que bem depressa entrou nos hinários fitúrgicos — a não ser na Alemanha. Ficou fácil, daí por diante, solfejar (em latim, solfare) e redescobrir, por associação de idéias, a nota musical correspondente a cada sílaba de solmização: ut, ré, mi, fá, sol, lá — um "hexacórdio natural", como se dirá mais tarde. Mas, haverá quem pergunte, e o si? Guido não deu nome a essa letra por causa de sua "mobilidade"; na mesma melodia, ele pode ser "mole", ao subir, e "duro", ao descer, mas não em todos os modos... Não se podia solfejar: lá, b molle, ut, ré, ut, b durum... Ficava comprido demais! Por convenção tácita, faziam-se seguir as mesmas sílabas de solmização acima do lá, exprimindo-se o semitom (si bemol) por lá-fá e o tom pleno (si natural) por lá-mi: lá sol a fá sol G fá mi F (ré) Elá (mi) (ré) (ut) D sol Cfá (ut) B mi A ré ut
A solmização
Esse procedimento da solmização conservar-se-ia em uso até o século XVIII, até a época de J.-J. Rousseau. Mas o si, formado talvez pela reunião das iniciais de São João (Sánete Iohannes) no hino-solfejo de 24 de junho (festa de São João Batista), começou a usar-se desde o século XVI. Deve-se a G. Doni (f 1647) a transformação do ut em dó, designação que tem origem na primeira sílaba de seu próprio sobrenome.
O sistema de Guido d'Arezzo tinha um grande valor para o ensino da música prática às crianças, mas exigia um modo próprio de aplicação: Guido assinalou-o numa carta a seu ex-confrade de Pomposa, Michel. Na verdade, as notas da escala não podiam mais ser designadas por letras, como na notação alfabética, porque a maior parte dos cantos gregorianos não começa do grave da escala antiga, mas das notas compreendidas entre ut (= dó) e sol. Era preciso dar-lhes nomes: mas quais? Guido teve a engenhosa idéia de pegar as sílabas de abertura de cada hemistiquio de um antigo hino a São João Batista, subir um grau na escala a cada corte de sílaba e designar, com as sílabas assim destacadas, as notas correspondentes na pauta: UT RE MI SOL
queant laxis sonare fibris ra gestorum FA muli tuorum ve polluti LA bii reatu (Sánete Iohannes)
O ritmo gregoriano O melhoramento da notação no plano melódico não iria causar alguma perda no plano rítmico e dinâmico? Já no século IX, Hucbald constatara que a precisão melódica das letras apostas aos neumas não devia acarretar a eliminação destes, que exprimiam tantas nuanças agógicas e dinâmicas, hoje perdidas em conseqüência da interrupção da tradição oral do canto a partir do século XVI. Em Sankt Gallen e em Metz, desde o século IX foram acrescentadas, ao lado dos neumas, letras "significativas" — e não melódicas —, ou seja, as iniciais das palavras latinas que
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designavam uma subida ou uma descida dignas de nota, mas expressas "qualitativamente"; por exemplo, "mais agudo", "mais grave" ou "uníssono". Essas indicações também diziam respeito à dinâmica ou à rítmica: "mais depressa" (celeriter), "sustente" (tenete), etc. Na verdade, essas letras, tão numerosas na tradição de Sankt Gallen (no gradual de Einsiedeln, vêem-se mais de 22.000!), não são a rigor necessárias à interpretação do ritmo. Devem ser entendidas como anotações de cantores e de notadores que, durante os ensaios, querem deixar tudo registrado em seus mínimos detalhes. Jamais, entretanto, uma notação musical conseguirá notar tudo em qualquer que seja o repertório: "a música começa além das notas", disse Jacques Challey, acrescentando: "Só de sessenta anos para cá é que, com Debussy e Stravinski, os compositores passaram a pedir aos intérpretes para tocar uma peça como eles a haviam escrito. Os etnomusicólogos, como Simha Arom, enfrentam problemas muito delicados quando pretendem transcrever as músicas étnicas que gravaram em fita: claro que esses problemas não são de melodia nem de ritmo, mas há certas nuanças de expressão, certos ataques da voz, variações e ornamentos mínimos, que é melhor desistir de escrever em uma pauta de cinco linhas... O enciclopedista Isidoro de Sevilha (f 697) tinha razão ao dizer que "a menos que os sons sejam lembrados pelo homem, eles perecem, pois não é possível escrevê-los" (Etymologiarium, capítulo III, 15). Voltando ao ritmo: é preciso resignar-se a ignorar "a" solução. Há cerca de um século e meio admite-se que o ritmo gregoriano é um ritmo oratório, isto é, que se canta como se fosse a declamação de um discurso: prótase < > apodóse. As sílabas todas iguais? Sim, em princípio, mas que a inteligência decida na prática, pois sabe-se que certas sílabas têm articulação mais longa, mais difícil do que outras. Por outro lado, a fonação difere de região para região. Se compreendi bem o capítulo 15 do Micrologus de Guido d'Arezzo, eu diria que as cadências e semicadências dos cantos em prosa é que eram medidas, mas não segundo a "medida" (o compasso) praticada na polifonia desde 1180 (a observação é de Francon, cem anos mais tarde). Nesse domínio é sempre preciso lembrar que estamos diante de um canto sacro tirado dos livros sagrados da Bíblia, e que não são nem as tresquiálteras, nem as síncopes, nem as precipitações intempestivas do movimento que poderão conferir a serenidade necessária ao canto litúrgico, o qual deve, segundo os regulamentos da função de chantre, "edificar os ouvintes". O canto deve elevá-los em direção ao espiritual, ao invés de abaixar-se ao nível dos laicos cantus.
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A LIBERDADE E A BRECHA: TROPOS, SEQÜÊNCIAS, DRAMAS LITÚRGICOS
"Tal como ela se mostra à época do advento dos carolíngios, não resta à música senão morrer" (Jacques Challey). De fato, a reforma romana impusera ao Ocidente uma sujeição que tornava impossível a renovação das formas. E é difícil imaginar como a monodia eclesial, desde então sujeita aos despóticos ne varietur àt São Gregorio, pudesse escapar ao conformismo e à esterilidade. Ora, a renascença carolíngia (exatamente como a do século XII, em grande parte preparada pelos períodos intermediários) assinala-se por um formidável espírito de invenção ao qual não se pôde manter indiferente a música. Além do mais, as exigências tanto musicais como metafísicas de Santo Agostinho a respeito do Jubilus, o cântico de louvor livre e gratuito que se expande no êxtase do amor divino, não se combinam com a estreiteza e a fixidez da liturgia gregoriana. Os ouvidos não eram insensíveis aos cânticos ornamentados da tradição judaica, que os primeiros cristãos recusaram por amor à austeridade, o mesmo acontecendo com os cânticos dos cultos gregos e bizantinos que continuavam a fascinar o Ocidente. Sem falar que é preciso levar em conta uma característica constante do espírito medieval, que é o desenvolvimento dos textos de autoridade por meio da glosa, do comentário exegético, da análise marginal ou intertextual — um espa-
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ço em branco era por vezes reservado a esse fim nas entrelinhas dos manuscritos —, exercícios cotidianos dos clérigos empenhados na busca de sentido e na decifração dos signos. Todas estas razões — ê outras, sem dúvida, que escapam ao historiador — fazem com que, desde o século LX, no Ocidente, seja por efeito de uma tradição reencontrada ou de pura invenção, os tropos surjam na fiturgia, primeiro na da missa, depois na dos ofícios. O período mais fecundo situa-se entre os séculos X e XII, quando o canto eclesiástico monódico atingiu seu apogeu, mas a invenção de novas melodias prosseguiria de maneira mais ou menos regular até o século XVI. A essa altura, o Concilio de Trento (1545-1563) intervém para proibir o uso das formas inovadoras, decretando o retorno com exclusividade aos modelos do canto gregoriano. Somente cinco seqüências sobreviveram às decisões do concilio: Victimae Paschali Laudes, atribuída ao monge Wipo de Borgonha ( t 1048); Veni Sánete Spiritus, que tudo faz crer seja de Stephen Langton, arcebispo de Cantuária (t 1228), a menos que tenha sido escrita pelo papa Inocêncio III (1198-1216); o Stabat Mater, o Dies Irae; e Lauda Sion, cujas palavras são atribuídas a Santo Tomás de Aquino.
Os tropos O termo Troprio (do grego tropos, melodia) designa, desde o século V, hinos breves que se cantavam depois de cada versículo de salmo. Na Idade Média, tropus é o nome dado a uma figura de retórica, e o adjetivo tropológico refere-se, desde São Jerôriimo, ao sentido alegórico de um texto, por oposição ao sentido literal. Na esfera da música monódica, o termo tropo define-se como "o desenvolvimento musical ou literário, ou ainda músico-literário, de uma peça de canto, ou de uma parte de peça de canto, que figura no gradual onde se encontram os cânticos da missa e no antifonário que contém os do ofício" (Michel Huglo). Em dois grandes centros religiosos, durante o século IX, apareceram os tropos: a abadia de Sankt Gallen-Gall, na Suíça, e a abadia de Saint-Martial, de Limoges. Há uma história que se conta de um beneditino de Jumièges que, foragido da invasão dos normandos, refugiou-se em Sankt Gallen. Mostrou aos monges dessa abadia seu antifonário, onde se podia ver que haviam sido inscritas palavras sob os vocalises do Aleluia. O monge Notker, constatando a eficácia mnemotécnica do processo, pôs-se a imitá-lo, com variantes, sob o olhar crítico de seu mestre Iso; depois foi a vez de Tutilon, de Hartmann. Por menor que seja a veracidade dessa história, o fato é que os tropos integraram-se muito rapidamente à liturgia. No que concerne à missa, é preciso distinguir os tropos do próprio da missa — cujo uso se perdeu desde o século XII, mas que foram numerosos — dos tropos do ordinário da missa que ainda são cantados. São eles:
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Tropos do próprio da missa: tropos do Introito, 382; do Gradual, 20; do Aleluia, 53; do Ofertorio, 64; e da Comunhão, 82. Tropos do comum: os do Kyrie, 165; do Gloria, 92; do Hosanna, 45; e do Agnus Dei, 87. Uma total liberdade de invenção caracteriza os tropos do ordinário da missa, ao passo que os do próprio da missa estão submetidos ao quadro musical da peça que serve de base à sua elaboração. Para o Ofício, os principais tropos compostos são os do Deus in adjutorium e do Benedicamus domino. Distinguem-se três tipos de tropos, a maior parte deles bem diferenciados, embora possa acontecer que se desmembrem para combinar-se entre si: o desenvolvimento melismático de uma melodia preexistente; o acréscimo de um texto literário novo a um cântico preexistente; o acréscimo, a um cântico, de um texto literário novo e de uma melodia nova. O primeiro tipo é certamente o mais antigo. O acréscimo melismático recebe o nome de Neuma ou então de Melodia, e, em se tratando do Aleluia, de Sequentia. Lamentavelmente, e talvez por causa da dificuldade de sua execução, esses tropos foram os primeiros a desaparecer. O segundo tipo — acréscimos de textos aos cânticos preexistentes — é utilizado sobretudo para o canto responsorial e para o Aleluia (por exemplo: Dicite in gentibus). São as Prosae ou Prosulae, mesmo quando, no curso de sua evolução, a prosa é substituída pelo verso. Em se tratando dos Kyrie, não é raro encontrar os dois tipos juntos. O terceiro tipo, finalmente — acréscimo, a um só tempo, de um texto e de uma melodia a um cântico —, utilizase no Introito, no Gloria, no Sanctus, no Agnus Dei. Tem uma escrita inteiramente livre, porquanto não precisa prender-se nem a um texto, nem ao modo de uma melodia preexistente, nem ao comprimento de um melisma.
A seqüência Tropo do Aleluia em seus começos, a seqüência não demorou a tornar-se uma composição independente, tanto no plano musical como no plano literário. Foram compostas 4.500 dessas peças até as proibições ditadas pelo Concilio de Trento; isso diz bem da necessidade existente de ampliar o quadro da Hturgia. As seqüências do primeiro período, as de Sankt Gallen e de Saint-Martial de Limoges, adotavam o princípio de um paralelismo entre o texto literário e o texto musical, de acordo com o seguinte esquema: a bb ce dd cc... f, mas muitas outras eram compostas de maneira mais livre. Durante os séculos X e XI, a seqüência evoluiu da prosa para os versos irregulares e terminados por assonâncias, depois para os versos regulares, mais freqüentemente sob a forma de aa, bb, cc, dd... O modelo aperfeiçoou-se no século XII, particularmente com os poemas de
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Adam de Saint-Victor, que alcançam o ápice da elegância e da perfeição formal. Em Paris, a célebre escola de pensamento da abadia de Saint-Victor brilha em todo o seu esplendor no domínio da monodia, enquanto, a pequena distância, floresce a composição das primeiras grandes polifonias da Escola de Notre-Dame. Do ponto de vista da execução das seqüências, não está fora de cogitações a idéia de que uma voz de organum duplicasse a melodia na oitava, na quarta ou na quinta. Nos Analecta hymnica, a palavra organum aparece 71 vezes a propósito dos 265 textos de seqüências da coleção. Mas pode tratar-se igualmente de um órgão (os textos que evocam um acompanhamento instrumental não são raros). E ainda é preciso aclmitir que essas citações remetam a um simbolismo extraído da Bíblia, mais particularmente dos salmos de Davi, que nada tem a ver, como pensa a maioria dos liturgistas, com a realidade das práticas. Permanece sem solução a questão de saber se a proibição dos instrumentos no culto significa que eles de fato até então fossem utilizados. De qualquer forma, os tropos e as seqüências desarrumam consideravelmente a ordem gregoriana, em nome da liberdade de invenção. Para além do embelezamento da liturgia, não há como deixar de ver neles a brecha que, aumentando pouco a pouco, vai terminar por abalar o edifício inteiro da liturgia romana. Ora, não é na parte mais fraca da arquitetura que aparece essa brecha, mas em seu ápice, no lugar em que a palavra de louvor do Aleluia prolonga-se na gratuidade — o dom de graça do Jubilus. Os acréscimos melódicos devidos aos fervores do imaginário vão acarretar um movimento irreprimível de invenção de formas novas, que aos poucos deixa o templo para estender-se à arte profana. Não há dúvida: o teatro e o canto profano, constantemente malditos pela Igreja, têm como fonte os tropos, e desse minguado filete de alguns cânticos de adoração livres haveria de surgir um rio de criações estranhas ao espaço sagrado. Num movimento de retorno, este se verá invadido por formas musicais que nada mais têm a ver com a liturgia gregoriana. As proibições do Concilio de Trento, incapazes de conter essa corrente, apenas servirão para coagular, num isolamento estrito, a música do cantochão. O drama litúrgico Uma ação teatral cantada durante os ofícios — poderíamos tentar definir assim o drama litúrgico. É o único vestígio de teatro que nos resta do período anterior ao fim do século XIII, o que, para muitos, pode ser motivo de surpresa. Continuava vivo, sem dúvida, o interesse pelas peças da Antigüidade latina: as obras de Plauto e de Terêncio eram conhecidas dos alunos das escolas monásticas de Tours, de Orléans, de Fleury-sur-Loire e de Chartres. Os escribas dos scriptoria de Reims, de Limoges, de Fleury copiavam, no século IX, as comédias de Terêncio;
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mas a Igreja via com desconfiança os mimos e os menestréis que, a seus olhos, não faziam senão retomar a tradição dos histriões e exibicionistas do Baixo Império; daí as proibições que pesavam sobre o teatro. Curiosamente, entretanto, é no seio da própria Igreja que o teatro iria renascer, como um desenvolvimento dos tropos dialogados. O teatro medieval nasceu da liturgia como, antes dele, o primeiro teatro grego se havia desenvolvido a partir dos cultos dedicados a Baco. Para compreender bem esse fenômeno, aparentemente paradoxal, é importante analisar as razões que puderam levar os homens de igreja a introduzirem, no meio das preces, uma forma de espetáculo, por mais embrionária que tenha sido. Em primeiro lugar, esses dramas, ou esses autos, reservados aos clérigos, concebidos e executados por eles tão somente, não têm por função o divertimento: pretendem ser um suporte suplementar — por meio da ação e da encenação que se vêm juntar ao canto — oferecido à palavra sagrada. Os primeiros que surgiram situavam-se no momento do Introito da missa e constituíam, de certo modo, uma expansão do ato sacrificial da Eucaristia. Na civilização medieval, que pensa o gesto como o sinal material de uma palavra, introduzir a mimesis na liturgia cantada deriva de uma preocupação com manifestar visualmente a auctoritas, a autoridade da palavra sagrada, isto é, seu caráter de verdade. Ao sinal verbal acrescenta-se assim o sinal visual na representação de cenas com personagens. Tal é a primeira função desses dramas. Por outro lado, sendo uma manifestação da auctoritas, o drama tem igualmente por objetivo sua transmissão com vistas à edificação dos fiéis que assistem aos ofícios. As cenas desenrolam-se em torno do altar, de modo a serem bem percebidas por toda a assistência: ut videat populus ("para que o público veja") repetem incessantemente os textos. E, enfim, os dramas contribuem para enriquecer e embelezar a liturgia. É preciso levar em conta a influência que terão exercido as cerimônias orientais sobre a Igreja do Ocidente. De fato, a Igreja de Jerusalém desde muito cedo introduzira a dramatização dos ritos, muito antes dos desenvolvimentos da liturgia romana, com a dramatização das homílias e dos evangelhos apócrifos. Devemos observar, contudo, que, se por um lado os monges beneditinos, que não receavam dar a suas abadias um brilho esplendoroso, encenaram freqüentemente dramas fitúrgicos, de que dão testemunho seus manuscritos, por outro, os cistercienses, fiéis à austeridade da regra, sempre os excluíram de seus ofícios. OS DRAMAS DO TEMPO PASCAL Tudo começou com o embelezamento da liturgia da mais importante festa do ano, a da Páscoa. O drama da Visitatio sepulchri, tal como aparece no século X, apresenta-se na forma de um tropo dialogado no momento do Introito da missa: as três Marias descobrem que o túmulo de Cristo está vazio e trava-se o diálogo com o anjo:
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Anjo: "Quem quaeritis in sepulchro, (o) Christicolael" Marias: "Jesum Nazarenum crucifixum, o Caelicolae" Anjo: "Non est hic, surrexit sicut praedixerat; ite, nuntiate quia surrexit. de sepulchro'' 1
Esse tropo dialogado encontra-se registrado, com a respectiva notação, na abadia de Sankt Gallen, bem como na de Limoges. É um cântico, ora responsorial, ora antifonado, como é de costume no Introito. O Quem quaeritis rapidamente expandiu-se por toda a Europa. Mas, em pouco tempo, antes do fim do século X, o curto diálogo que o constitui foi deslocado para as Matinas. Pode-se ver no fato a vontade de fazer coincidir o tempo real em que ele se desenvolve com o momento em que as mulheres se dirigiram para o túmulo. Por outro lado, com essa nova localização, o tropo podia ocupar o tempo deixado livre entre Matinas e Laudes pela supressão dos três salmos que não se cantavam antes da festa da Páscoa. A partir desse deslocamento, os diálogos cantados e mimados terão vida independente e desenvolver-se-ão regularmente. O tropário de Winchester, desde 980, dá uma versão completa do Quem quaeritis. A Regularis concordia, [Boa harmonia canónica], redigida por Ethelwood, bispo de Winchester, embora menos completa, fornece, em compensação, numerosos detalhes concernentes à cenografia, aos gestos e aos figurinos dos personagens. Com o correr dos séculos, os dramas do período da Páscoa (há por volta de dois mil) transformaram-se de múltiplas maneiras: depois do Quem quaeritis, que é o mais importante, outros farão intervir as personagens dos apóstolos Pedro e Paulo, especialmente nas versões dos países germânicos, enquanto um terceiro grupo põe em cena o vendedor de aromas abordado pelas santas mulheres. Esses dois últimos tipos afastam-se bem nitidamente do canto gregoriano. Os dramas ditos da Ressurreição representam o reencontro de Cristo com uma das três Marias depois de ter ressuscitado. Os manuscritos de Rouen propõem diversas versões datadas do século XII e que se divulgaram por toda a Europa, tanto assim que ainda foi possível encontrar a tipologia em Praga no século XIV. Quanto maior o avanço no tempo, mais essas representações ganham em r i queza e em complexidade. Do manuscrito de Fleury, copiado no século XIII pelos monges de Saint-Benoît-sur-Loire, constam as versões mais interessantes. O manuscrito de Tours apresenta variantes longas e muito afastadas do canto gregoriano, que datam dos séculos XIII e XTV; já na versão mais tardia, a do drama de São Quintino, originário da abadia de Origny-Sainte-Benoîte, a língua vernácula intervém consideravelmente.
"Quem procurais no túmulo, (ó) fervorosas do Cristo?" — "Jesus de Nazaré, que foi crucificado, ó habitante do Céu." — "Não está aqui, ressuscitou, como ele havia predito; ide e anunciai que ele ressuscitou do túmulo." (N. T.)
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OS AUTOS DE NATAL O outro grande ciclo, que surge no século XI, é o dos autos de Natal, que têm como ponto de partida um tropo do Introito da terceira missa do dia de Natal. Encenase um diálogo em que intervém os pastores a caminho do presépio. O anjo lhes pergunta: "Quem quaeritis in praesepe, pastores, dicite?' "Salvatorem Christum Dominum, infantem pannis involutum, secundum sermonem angelicum." 1
O tropo conclui com o Introito: Puer natus est nobis [Um menino nasceu para nós]. Em pouco tempo esse curto diálogo cantado e mimado foi, como o da Páscoa, deslocado para as Matinas. Note-se que a célula geratriz dessas duas grandes séries de autos Utúrgicos, os da Páscoa e os do Natal, organiza-se em torno da pergunta: Que procurais? Vem à lembrança a recomendação de São Bento: Deum quaerere (procurar Deus). O espírito medieval é o da busca, coletiva e individual, a partir da qual se deterrmnam as escolhas da existência. Esse espírito aflora também e largamente, seja dito de passagem, nos grandes textos da literatura profana, como os romances de Perceval ou le conte du Graal [Parsifal ou o conto do Graal], de Chrétien de Troyes, no fim do século XII, e, no século XIII, a Queste del Saint Graal [Demanda do Santo Graal]. Um dos grandes eixos de reflexão espiritual da Idade Média acha-se assim introduzido no cerne do teatro nascente. Para os autos de Natal, colocava-se o presépio atrás do altar, e as personagens evoluíam nos dois lados deste. O mais desenvolvido desses dramas é, no século XIII, o de Rouen, onde se podia ver e ouvir cinco pastores como tais trajados, um anjo que canta Noli timere, um coro angélico que canta o Gloria in excelsis e muitas outras ampliações da situação inicial. Nessa mesma época litúrgica, encena-se, desde o século XI, a Vtsitatio magi [Visitação dos magos], por ocasião da festa da Epifanía. Uma das versões, em Limoges, no século XII, desenrolava-se durante o ofertorio da missa: os reis magos, suspensos por cordas, desciam em direção ao altar para trazer seus presentes ao Menino Deus. Uma variante dessa representação, o Offtcium stellae [Ofício da estrela], era dada entre a Terça e a Missa, em Rouen, notadamente nos séculos XII e XIII. Os magos celebravam a estrela que os guiava para o presépio. No manuscrito de Fleury, lêem-se indicações de encenação com muitos detalhes sobre o deslocamento da estrela de uma porta à outra do coro e por cima do altar, sobre a cólera de Herodes ou ainda sobre os figurinos dos pastores.
"Dizei-me, quem procurais no presépio, pastores?" — "O Salvador, Nosso Senhor Jesus Cristo, a criança envolta em panos, segundo a palavra do anjo." (N. T.)
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Sempre durante os doze dias das festas de Natal, desenrolava-se também o Ordo prophetarum [Ordem dos profetas], com base num sermão do século VI erroneamente atribuído a Santo Agostinho, em que intervém não somente os profetas da Bíblia, mas também personagens alheios às Sagradas Escrituras tais como Virgílio e a Sibila. A esta última, reservava-se uma melodia especial com que ela anunciava o nascimento de Jesus Cristo. Essa mesma melodia continua a ser cantada, na ilha de Majorca, durante a missa de Natal. E uma lembrança desse drama e do impacto que ele possa ter tido sobre os espíritos subsiste até hoje em Notre-DameLa-Grande de Poitiers, onde as estátuas dos profetas estão colocadas, não na ordem em que figuram no Antigo Testamento, mas exatamente segundo aquela do Ordo prophetarum. Esse auto comporta partes antifonadas, mas afasta-se muito, ele também, da liturgia gregoriana. O AUTO DE DANIEL Além desses dois grandes ciclos que vão progressivamente crescendo em variantes e em complexidade, inventaram-se, nos séculos XII e XIII, cerca de vinte autos cujos temas são tirados ora do Novo Testamento, ora do Antigo, e também da hagiografía. Assim é que, mais uma vez no famoso manuscrito de Fleury, encontramos autos da Ressurreição de Lázaro. Um deles, de autor anônimo, é pobre, sem variedade nas melodias; em compensação, os do clérigo Hilaire, aluno de Abelardo, contêm melodias e ritmos em consonância, como às vezes acontece, com os caracteres das personagens. A música da Conversão de São Paulo é também muito variada. Nessa coleção, figuram ainda diversos autos de São Nicolau, que gozavam de grande popularidade, e um sobre o Filho de Getrão. O afastamento em relação à música litúrgica e mesmo ao texto da Bíblia acentua-se com o Sponsus de Limoges (século XII), que encena a parábola evangélica das virgens sábias e das virgens insensatas à espera da vinda do Esposo. A língua vernácula nele está amplamente representada, de um extremo a outro do texto, em alternância com o latim, até mesmo nos hinos introdutórios. Há um refrão arrematando as melodias das virgens insensatas, o que diz bem da distância a que estamos do canto gregoriano, e mais: pela primeira vez, os diabos fazem sua aparição, no final da representação. Em épocas recentes o Sponsus tem sido encenado na França pelo conjunto musical Organum. Mais favorecido que os outros dramas, o Jeu de Daniel [Auto de Daniel] teve diversas edições e tem sido encenado com grande freqüência (na igreja Saint-Germain-des-Près, em Paris, mas também em 1958 nos Cloisters, dependência em estilo medieval do Metropolitan Museum of Art, no Fort Tryon Park, em Nova York, o que merece ser assinalado; em 1975, estudantes de Oxford vieram montálo no interior da catedral de Beauvais). Há duas versões do Jeu de Daniel no século XII: uma é assinada pelo clérigo Hilaire, e a outra é obra coletiva dos clérigos da catedral de Beauvais, que a representaram. Esse auto, tudo faz crer, era interpre-
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tado nas Matinas do dia I de janeiro, dia da Festa dos Insensatos (Fête des Fous, em latim Officium stultorum) e do Asno (apelido do subdiácono). A história do livro de Daniel é retomada nesta representação, com empréstimos tirados de um texto apócrifo que relata como o profeta Habacuc veio miraculosamente alimentar Daniel em sua prisão. Muitas personagens entram em cena: o rei Baltasar e sua mulher, Dario, os anjos, o profeta Habacuc, personagens da corte da rainha, sátrapas dos reis. A língua vernácula intervém, mas de forma discreta e bizarramente misturada com o latim. Umas cinqüenta melodias, muito simples, sem ornamentos, compõem esse longo drama: litúrgica, há somente uma. A presença de instrumentos, mencionados no texto — órgão, sinos, percussões —, faz ressaltar o seu aspecto espetacular. Com o Jeu de Daniel, consuma-se a independência do drama com relação à liturgia. As partes não litúrgicas desses dramas têm uma escrita que é possível assimilar à do conductus e francamente se emancipam do universo dos modos eclesiásticos. Sem dúvida alguma, esses autos contribuíram para o desenvolvimento da música sacra não litúrgica. Na França, no curso dos séculos seguintes, o teatro religioso ver-se-á impelido para fora da igreja; os mistérios desenrolar-se-ão nos átrios das catedrais, e um espaço rnínimo neles é concedido à música. Na Itália, em contrapartida, mantémse a tradição do teatro sacro no interior do edifício religioso, a qual virá a assumir singular importância na Itália renascentista do Quattrocento; isso, é claro, sobretudo em Florença, onde soberbas sacre rappresentazione aconteceram em Santa Maria dei Fiori, sob a cúpula recém-criada por Brunelleschi. O arquiteto empenha-se de bom grado em utilizar o espaço que concebera e em imaginar, ele próprio, encenações grandiosas para esses espetáculos, com céus abertos, trovões, movimentos de anjos e Deus Pai aparecendo em toda a sua glória por sobre numerosas personagens em trajes de grande aparato. Representações faustosas, cujo dispendioso esplendor chocou o imperador bizantino João VIII Paleólogo quando de sua estada em Florença, em 1439, e que já fazem pressentir a pompa das futuras festas barrocas.
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A MÚSICA PROFANA NOS SÉCULOS X I I e X I I I
A lírica dos trovadores e dos troveiros L a reine chante dulcement, L a voix accorde à Pestrument, Les mainz sunt beles, li lais buons, Dulce la voix, bas li tons.
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THOMAS, Le Roman de Tristan
Até por volta de 1250, a música profana é, toda ela, canto. Por outro lado, não há poesia que não esteja associada a uma melodia. Música e poesia têm assim realizada sua união íntima. Tal como acontece na Uturgia, a função da melodia é ser o suporte necessário de uma palavra, da qual é inseparável. Por sua aliança ao verbo poético, que não se concebe sem ele, o canto participa do sentido, transmite-o na respiração, molda a musculatura dos vocábulos pela articulação, enquanto o verso vive nas vibrações da voz e sua curva se desenha pela da melodia. Música instrumental que independa do canto é inexistente. Só os poderes da palavra contam. Instrumento natural criado por Deus, a voz é considerada superior aos instrumentos feitos pela mão do homem, o que explica também que estes tenham apenas uma função de acompanhamento.
[A rainha canta docemente, / A voz afinada com o instrumento, / As mãos são belas, os lais bons, / Doce a voz, graves os tons.] (N. T.)
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Daí se conclui que o canto profano não resultou de um vago sonho de retorno à Antigüidade, análogo ao que alimentarão os autores do Renascimento, mas de uma extensão, de uma expansão, à língua vulgar e aos temas profanos, da ética e da função do canto no interior da Igreja. Os verbos trabar ("troubadour"= trovador), e trouver ("trouvère" = troveiro) vêm de Tropare e significam inventar, compor tropos. Enquanto o monge, no silêncio e no mundo fechado do mosteiro, celebra a grandeza de Deus com hinos e tropos, o trovador (troubadour) e, depois dele, o troveiro (trouvère) compõem, na intimidade do coração, cantigas de louvação à Dama a quem devotam todo o seu fervor. O amor, o louvor à mulher constituem, de fato, a substância essencial do canto, a motivação mais freqüente da escrita. A repercussão da arte dos trouveurs foi tal, nos séculos que se seguiram, que não há erro em dizer que ela participou da elaboração da cultura ocidental, e essas cantigas, por seu poder de invenção, por seu refinamento, constituíram verdadeiramente o berço da lírica européia. Os trovadores Os trovadores (troubadours) são originários do sul do Loire, das regiões de língua d'oc: Auvergne, Limousin, Périgord, Bordeaux, Toulouse e, do outro lado do Ródano, Marselha e a Provença. Começam a compor por volta dos anos 1100, antecipando-se aos troveiros (trouvères) em mais de meio século. Em sua maioria, são cavaleiros originários da alta, da média e da pequena nobreza. O mais antigo dos trovadores é Guillaume, sétimo conde de Poitiers, nono duque da Aquitânia, amante da dama Maubergeonne, de cuja filha nascerá Eleonora de Aquitânia. Cantor da vida prazerosa, do amor carnal, ele é também, sem dúvida, o primeiro a ter afirmado que o trovador não se propõe de antemão um determinado tema, que o essencial é a própria cantiga, sua elaboração; que fique a cargo de quem o escuta txansmitir-lhe o "contrafecho", o sentido. Ferai tin vers de dreyt rien ("Farei um verso de coisa alguma") escreve Guillaume de Poitiers na canção IV; seu canto não será feito de nada mais... que dele próprio. Guillaume de Poitiers soube, vale notar, impregnar-se da cultura árabe que penetrara as regiões meridionais, pela qual sentia grande admiração. Protegido de Afonso VII de Castela, Marcabru escreveu entre 1130 e 1150, mostrando-se muitas vezes sarcástico e violento. Cercamon era gascão e, talvez, discípulo de Marcabru. A arte de Jaufré Rudel, príncipe de Blaye, atingiu rara perfeição e celebra com melancolia o amor a distância. Outros destacados trovadores foram: Peire Roger, que também freqüentou a corte de Castela, bem como a de Aragão; Rigaut de Barbezieux; Bernard de Ventadour, que, de origem plebéia, foi enobrecido por seu senhor graças à excelência de suas cantigas; Arnaud Daniel, virtuose
A miísica profana nos séculos XII e XIH
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das palavras, admirado por Dante e praticante — mais que qualquer outro — de uma poesia hermética, em que se destaca a célebre Sextina (poema de seis estrofes de seis versos, cada estrofe terminando por uma palavra-chave que reaparece em lugar diferente nos versos de todas as estrofes); Guiraut de Bornelh, cuja obra, escrita entre 1190 e 1240, compõe-se de cantigas difíceis, e de quem Dante celebrou a retidão da vontade; Foulques de Marseille, que declarou que "a poesia sem a música é como um moinho sem água" e que se fez monge na abadia de Thoronet, de onde saiu para tornar-se, em 1205, bispo de Toulouse; o violento guerreiro Bertrand de Bom, cantor dos combates, mas que também se fez monge, vindo a morrer na abadia de Dalon em 1215; Gaulcem Faidit, que percorreu a Europa em todas as direções; Raimbaud de Vaqueiras, amigo de Bonifácio II de Montferrat, que participou da conquista de Constantinopla; Peire Vidal de Toulouse, protegido dos grandes senhores da Europa; Sordel, Guilhem de Montanhagol, que celebra os valores corteses... Não podemos dar aqui os nomes de todos os trovadores, tão numerosos, que cantaram nessas cortes do sul. Sem falar no número mais reduzido, de trobairitz (em francês troubadouresses, "trovadoras") com seus nomes por vezes esplendorosos, como, por exemplo: a condessa de Dié, a mais famosa, mas também Tibor, irmã de Raimbaut d'Orange, Azalais de Porcairages, Maria de Ventadour, Alamanda, Garsenda de Forcalquier, Clara d'Anduze, etc. O refinamento dos versos e a riqueza da melodia fazem das cantigas dos trovadores obras de rara perfeição: por trás dos altos muros dos castelos e independente da cultura dos clérigos, nasce uma cultura cavaleiresca. A elite laica cria desse modo, no momento em que se reforça a ideologia feudal e em que se forjam os valores corteses, uma arte particularmente difícil, que ao mesmo tempo elabora tais valores e os enaltece na beleza do canto. Ricos protetores e mecenas poderosos favorecem as trocas entre as cortes. Mas é preciso entender que são os próprios senhores que fundam a arte destinada a tornar-se o espelho de sua classe: ainda não confiam às penas alheias o encargo de cantar por eles. Cavaleiros afeitos à freqüência e à violência de combates que não se terminam senão para prosseguir em querelas políticas, esses senhores do sul sabem igualmente ser poetas e compositores, e a arte consumada de que dão provas não é como a de artistas que consagrem tempo e energias integralmente a suas obras, mas o produto de homens de poder e de homens de ação. Esses poucos decênios são sem dúvida os únicos momentos da história ocidental em que a elite no poder confunde-se com a elite artística. De tal circunstância resultam traços peculiares a essa arte: cada um, através do eu da ficção poética, acompanhado por seu alaúde ou por sua harpa, canta por si próprio, não resta dúvida, mas também, por meio de um código, contribui para a construção de um sistema de valores fechado e recorrente em que o grupo se reconhece e se encerra, uma ideologia que rejeita com altivez o que lhe é exterior.
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A estética e a ideologia corteses Mais de uma vez afirmou-se que o amor era uma invenção do século XII. Essa fórmula expeditiva, criada pelo historiador Seignobos, significa, na verdade, que, com os trovadores, nasceu uma nova relação para com a mulher amada, ofiríamor. Trata-se de um amor de classe, que pretende, antes de mais nada, ser diferente do amor grosseiro dos plebeus. O imaginário que o fundamenta está em parte calcado nas estruturas religiosas e em parte nas estruturas da sociedade feudal, razão pela qual esse amor instaura relações de submissão do cavaleiro àquela que ele ama. De certo modo, o fin'amor é uma espécie de mística profana paralela ao amor sagrado, que sugere ao amante atitudes mentais moldadas à imagem das atitudes religiosas. Como se fosse uma divindade, a mulher torna-se objeto de adoração, de preces, nesse lugar de culto que é o espaço do poema, da cantiga. O amante a adora, suplica-lhe de joelhos, faz-se, à maneira de Jaufré Rudel, peregrino de seus belos olhos e perde-se em longos momentos de contemplação mística pensando em sua amante. Rigaut de Barbezieux chega ao ponto de comparar o deslumbramento que sente diante de sua dama ao de Parsifal vendo passar, luminoso, o Santo Graal, na corte do rei-pescador: Semblable à Perceval Qui au temps où il vivait Subit une telle fascination Qu'il ne sut demander A quoi servaient la lance, le Graal, je demeure interdit, Mieux-que-Dame, à la vue de votre beauté.
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O coração do amante acha-se üuminado pelo amor, ele vive uma transfiguração que faz, no cantar de Bernard de Ventadour, "que geada lhe pareça flor, e neve, verdura". Alcança, então, esse bem supremo para o qual tende, a alegria. Essa contemplação da dama, essa tensão voltada para a alegria e essa busca do êxtase requerem uma submissão de corpo e alma, para a vida e para a morte, àquela a quem se ama. Já não se trata apenas de uma atitude religiosa, mas da transposição de um modelo de organização da sociedade, o modelo feudal, para o "serviço amoroso": os estreitos laços de dependência de homem para homem, a submissão total do vassalo a seu senhor, que caracterizam o sistema feudal, estão reproduzidos nas relações do amante com sua dama: o trovador consagra-se inteiramente à dama e lhe está inteiramente submetido — presta-lhe homenagem, ou juramento
[Semelhante a Parsifal / Que, no tempo em que viveu, / Sentiu tal fascinação / Que não soube perguntar / Para que serviam / a lança, o Graal, / fico eu perplexo, / Mais-que-dama, à vista de vossa beleza.] (N. T.)
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defidelidade,implora sua piedade, sua graça e declara-se disposto a servi-la e a obedecer a suas ordens com absoluta lealdade. Tais atitudes de humildade implicam que a dama seja considerada superior a seu amante pela beleza, sabedoria e linhagem. Com efeito, a soberana do coração do trovador era também, na realidade, superior a ele em termos hierárquicos, já que freqüentemente ele celebrava em seus versos a mulher de seu senhor — até que, por fim, a idéia da necessidade da superioridade hierárquica impôs-se no código dofin'amor.Eric Koehler detectou nesse traço a aspiração da pequena nobreza a ter acesso à alta, cujo modo de vida compartilhava no seio das cortes senhoriais. De qualquer modo, ofin'amorst dirige a uma dama não apenas superior, mas que guarda suas distâncias e parece ser inacessível. Sua condição habitual de mulher casada vem acrescentar obstáculos à conquista pelo amante. Em outras palavras: nofin''amor,trata-se antes que tudo da exaltação do desejo por meio de um sonho que se alimenta de si mesmo e onde, às vezes, o amante se perde nos olhos amados como o belo Narciso na fonte evocada por Bernard de Ventadour. No curso dessa difícil busca, o amante adquire as virtudes que o tomam digno do objeto amado: a mezura, a medida, o comedimento, em primeiro lugar, depois a paciência, a discrição, a generosidade. Os trovadores, como por exemplo Jaufré Rudel, desenvolvem os temas do amor a distância, o amor de lonh, e também, muito freqüentemente, do desespero que leva à morte por amor. Aí revela-se sem dúvida uma influência da lírica árabe, por sua vez nutrida de cantos persas em que esses temas estão sempre ocorrendo: Lanquan li jorn son lone en mai M'es bèlhs dous chans d'auzèlhs de lonh, E quan me sui partitz de lai Remembra'm d'un'amor de lonh. Vau de talan embroncs e dis Si que chans ni flors d'albespis No'm platz plus que l'iverns gelatz. 1
A Vida — biografia romanceada de Jaufré Rudel — pretende que ele se tenha apaixonado pela princesa de Trípoli simplesmente à vista de um retrato dela: teria feito a viagem para ir ao seu encontro, morrendo nos braços dela ao chegar. Na verdade, a tensão amorosa liga-se àquela que provoca a escrita da cantiga por uma espécie de reciprocidade constante, o que é expresso pelos trovadores ao declararem que somente o amante sincero é capaz de produzir belas cantigas — e o ideal do eu, através da expressão do desejo, escolhe para enunciar-se uma forma [Quando os dias são longos em maio / £ doce ouvir o canto dos pássaros ao longe / E quando de lá parti / Ficoume na lembrança o amor a distância. / Sigo pensativo, triste, de cabeça baixa / E nem cantos nem flores de espinheiro / Me agradam mais que o inverno gelado.] (N. T.)
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rara e difícil. Essa forma é a da Cansó ou cantiga de amor, a mais utilizada pelos trovadores e, em seguida, pelos troveiros. Ela não nasceu do acaso das circunstâncias; reflete, isto sim, uma estética bem determinada, que é importante esclarecer: as noções de harmonia das proporções e de adequação da forma ao tema, chave da estética do século XII, presidem à elaboração da Cansó. Essa teoria da adequação, que encontramos já exposta em Cícero e que será desenvolvida pelas retóricas medievais, Dante a retomará no De vulgari eloquentia [Sobre a eloqüência não erudita] a propósito da Cansó, que ele considera a forma perfeita por excelência: Entre todas, penso que a maneira das canções seja a mais excelente; portanto, se as coisas mais excelentes são dignas da mais excelente solução, as matérias dignas da mais excelente linguagem n ã o erudita são dignas da forma mais excelente e devem, por conseguinte, ser tratadas como canções.
Dante prossegue prestando vibrante homenagem aos trovadores provençais, cuja influência não apenas sobre o canto do próprio florentino, mas sobre todos os poetas líricos que se seguiram, nunca será demais ressaltar: Das coisas feitas pela arte, a mais nobre é aquela que envolve a arte por inteiro; ora, uma vez que o que se canta em versos é sem dúvida obra de arte, e a arte só está envolvida por inteiro na canção, a canção é o mais nobre dos poemas, e sua figura é assim mais nobre do que qualquer outra. E que a canção envolve por inteiro a arte dos cantos p o é t i c o s é algo que está manifesto pelo seguinte: todos os esforços da arte encontráveis nas outras formas encontram-se t a m b é m na canção — e n ã o o contrário. Ao alcance dos olhos, temos u m sinal bem acabado do que digo: somente nas canções que fluem dos lábios dos poetas üustres encontram-se as belezas nascidas dos píncaros de seu gênio. É a confirm a ç ã o do que sustentávamos, ou seja, que as matérias dignas da linguagem n ã o erudita mais elevada requerem que as tratemos como c a n ç õ e s .
Do ponto de vista da forma, a Cansó não se desemola de maneira linear: compõe-se, o mais das vezes, de uma seqüência de cinco a sete estrofes, de oito a dez versos cada, que, nos manuscritos, inscrevem-se nas dimensões do quadrado ou do retângulo ideal. A notação da melodia faz-se acima das palavras da primeira estrofe e deve ser retomada para cada uma das estrofes seguintes. É a estrofe que constitui, portanto, a unidade. A melodia tanto pode se desenrolar de maneira contínua, oda continua, com um segmento melódico por verso — é o caso mais freqüente —, como pode ser composta de segmentos repetidos, seja na primeira parte, seja na segunda (raramente). Obtém-se uma harmonia requintada na forma muito difícil das estrofes de oito a dez decassílabos, em que se utiliza o mesmo jogo de rimas; mas as opções quanto às formas estróficas são numerosas, 1.400 variedades tendo sido computadas. Do ponto de vista temático, é freqüente a primeira estrofe propor-se como uma celebração da beleza e da natureza, do canto dos pássaros a que faz eco a cantiga do trovador.
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Languan lo dous temps s'esclaire Et la novéla flora s'espan, Et aug als auzèls retrain Per los brondels lo dousset chan.
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Bernard Marti Em seguida, as estrofes se desenrolam no espaço abstrato do poema, fora de um espaço determinado e fora do tempo, cantando o desejo do amante, seu desespero, ou sua alegria, sua vontade de amar sempre e seu temor dos ciumentos. Ao lado da Cansó, encontram-se outros gêneros com outras funções. O Sirventès, da mesma forma que a Cansó, trata de maneira satírica a atualidade política (Bertrand de Born), a moral (sátira do clero, do papado), a crítica literária (Pierre Rogier, o monge de Montaudon), ou lança invectivas de caráter pessoal, às vezes de grande baixeza, a senhores rivais. O Planh (pranto), que segue a forma da Cansó, é um canto de deploração, de melodia grave e queixosa, sobre a morte de um amigo ou da dama amada, inspirado tanto na deploração dos antigos como no Planetas em língua latina. A Salut d'amour [Saudação de amor] é uma epístola amorosa em versos octossilábicos, de rimas emparelhadas, em forma de saudação. Sem pretender enumerar todas as formas de que se valeram os trovadores, cabe acrescentar, todavia, que eles cultivaram igualmente gêneros de uma fatura mais livre, menos erudita, nos quais se deixa pressentir a influência da tradição oral popular: em especial, as pastourelles (pastorelas) e as aubes (albas ou alvoradas), por um lado, e, por outro, as canções para dançar, as ballades (baladas), as estampies. Como a tradição dessas formas é muito mais abundante entre os troveiros (trouvères), deixaremos para abordá-las quando tratarmos da lírica da França setentrional. No que concerne às melodias, é de se lamentar que subsistam apenas 350, ao passo que 3.500 poemas chegaram até nós. Muitas dessas melodias precisariam ainda ser transcritas em notação moderna, para que fossem executadas e pudéssemos estudá-las com cuidado, o que permitiria uma melhor apreensão dessa música. A música gregoriana dá o substrato das composições dos trovadores, que utilizam os modos eclesiásticos, com preferência pelos modos de rée de sol, revelando porém uma tendência para a polimodaUdade que torna delicada a busca do modo principal. O ambitus é mais extenso do que no canto gregoriano, chegando por vezes a intervalos de décima segunda.
[Quando o doce tempo se aclara / Desabrocha a nova flor / E ouço os pássaros repetirem / seus doces cantos sob os ramos.] (N. T.)
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Os troveiros Nos anos 1180, aparecem na França setentrional e na língua d'oü\ ancestral do moderno francês, as cantigas dos primeiros trouvères (troveiros). Não há como conceber essas peças líricas fora do contexto das cantigas dos trovadores. Como ter-se-á dado a passagem do sul para o norte? É preciso levar em conta, sem dúvida, o mecenato, o mais brilhante dos quais foi o de Alienor (ou Eleonora) de Aquitânia, a neta do primeiro trovador, Guillaume IX. O mecenato dessa princesa aquinhoou, de início, a corte de Poitiers, mas se exerceu ainda com mais largueza depois do casamento de Alienor, em 1152, com Henrique, duque da Normandia e futuro rei Henrique II da Inglaterra. As filhas que ela teve de seu primeiro casamento com Luís VII, rei de França, Aelis de Blois e Marie de Champagne, tomaram a seu cargo a proteção dos trouvères em suas respectivas cortes. Além do que, os fenômenos de tradição oral, de transmissão boca-a-boca do texto das canções, difusão facilitada pelos freqüentes deslocamentos dos senhores, de uma região para outra, de um castelo para outro, pelas viagens de peregrinação e pelas cruzadas, desempenharam um papel decerto determinante, mas bem difícil de apreciar com exatidão. De qualquer modo, prosseguia na França setentrional o movimento de elaboração de uma lírica erudita, nova e vigorosa, que iria encontrar imitadores por toda a Europa. Tal como no sul, trata-se — pelo menos até os anos 1250 — de uma arte da corte, tendo sido os primeiros grandes poetas e grandes compositores de melodias, cavaleiros da alta e da pequena nobreza. Numa lista que não pode ser exaustiva, como eles bem mereceriam — ao todo, contam-se cerca de quarenta —, é forçoso incluir, para a primeira geração, os nomes de: Blondel de Nesle, nascido por volta de 1155, de origem picarda e que, se for verdade a lenda, teria cantado uma canção de Ricardo Coração de Leão, filho de Alienor, diante da prisão onde Ricardo era mantido cativo; Guillaume de Ferrières, vidama de Chartres, cuja carreira se situa nos anos 1180; Gauthier de Dargies, cujo canto, amplo e grave, é de grande perfeição formal, e seu amigo Gace Brulé {ca. 1160-1213), cavaleiro da Champagne, originário de Nanteuil-les-Meaux, perfeito amante cortês, no dizer de seus contemporâneos, e cujas composições atingiram um tal refinamento, uma tal harmonia que dele fazem não somente o maior dos troveiros — os compiladores da época não se enganaram a respeito, nem o próprio Dante, que o celebra —, mas um dos melhores poetas líricos da língua francesa. Não esqueçamos o irônico e divertido Conon de Béthune que, como cruzado, esteve presente ao cerco de Constantinopla em 1204. Em fins do século XII e princípios do século XIII, surgem Richard de Semilli, de versos variados e, sobretudo, Regnault Coucy, mais conhecido como Châtelain de Coucy ("Castelão de Coucy"), que, antes de partir para a cruzada de que não deveria retornar, escreveu uma bela cantiga de despedida à sua dama e é o autor de versos sempre marcados por uma doce melancolia.
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Finalmente, entre os troveiros que, dessa linhagem, não poderíamos deixar de mencionar, está Thibaut de Champagne, conde de Champagne e de Brie, depois rei de Navarra, neto de Marie de Champagne, o qual alguns pesquisadores precipitados quiseram fazer passar como apaixonado por Branca de Castela, mãe do rei São Luís de França. Em suas composições, amplas e refinadas, Thibaut de Champagne maneja a alegoria com elegância, e consagra suas cantigas tanto à contemplação da dama como à celebração do amor sagrado. AS CANTIGAS DE AMOR Chanter m'estuet, preciso cantar; é assim que muitas vezes começa a cantiga dos troveiros. Necessidade de fazer uma obra, necessidade de cantar o amor. Claro que se trata sempre dessefin'amor,que arde no coração do amante desde o primeiro olhar e que, diferentemente daquele que se apodera de Tristão e Isolda, como o escreveu Chrétien de Troyes numa de suas canções, pretende ser um amor de escolha. Em seu De amore [Sobre o amor], André le Chapelain, clérigo ligado à corte de Marie de Champagne, fixa os seus vinte preceitos e evoca os julgamentos de amor que teriam ocorrido nas diferentes cortes. Fictícios, provavelmente, tais julgamentos, ou cours d'amour, eles revelam o aspecto social e codificado do amor cortês. Mas isso não exclui a paixão, a violência dos sentimentos. Na França setentrional, a joie (júbilo) dos trovadores do sul, o êxtase luminoso para o qual estes tendem, cede, por vezes, à expressão de um sofrimento intenso que, como doença, arrasta o amante para uma morte lenta e voluntária. É que o modelo religioso do canto laudatorio, justificado pelo ato de celebração de uma dama mais ou menos transformada em ícone, é sentido, de qualquer modo, como inadequado a seu objeto, na medida em que exalta o desejo, esse desejo condenado com veemência tanto maior quanto é ele o mais das vezes adúltero. A tomada de consciência do paradoxo dessa escolha é muito mais viva entre os troveiros do que entre seus predecessores meridionais, com o pensamento dos clérigos a fazer sentir todo o seu peso sobre uma sociedade laica que pretende disciplinar e dominar. Assim se explica o aparecimento de atitudes freqüentemente masoquistas, expressão do desejo de uma morte sacrificial, quase à imagem da de Cristo, e do sentimento de estar expiando, numa frustração constante e deliberada, a culpa de ter "ousado amar", como dizem os troveiros. Com esses poetas-músicos, a Cansó toma o nome de Grant Chant. Cantiga de amor absoluto por uma dama única e inacessível. Incapaz de sequer enfrentar o olhar da amada, de lhe falar, sem escapatória entre uma lembrança obsessiva e um futuro em que não há esperança, o troveiro, para libertar-se, só acredita nos poderes da escrita e do canto. Semelhante — como já o cantava tão acertadamente Bernard de Ventadour — ao belo Narciso na fonte, ele contempla a imagem de seu desejo e de seu eu nos versos que sabe forjar, nos ornamentos que inventa, na cantiga que se nutre de seu amor como o amor se nutre da cantiga. A tal ponto que
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cantar e amar tornam-se smônimos, num mesmo elã, numa dor que é uma só e a mesma, numa esperança única, a mesma. E a perfeição da poesia como da melodia fica sendo, a seus olhos, a única medida da verdade desse amor, as curvas do canto, a desenvoltura dos melismas permitindo às vozes trocar as caricias a que os corpos se recusam. Mais próximos da herança celta que os trovadores, os troveiros praticaram antes deles, e com maior freqüência, um outro gênero erudito que tinha por tema o amor cortês: o lai. Não se deve confundir esses lais líricos com os lais narrativos, tais como os de Marie de France — que são novelas curtas versificadas sem qualquer ligação com a música. A palavra lai vem, sem dúvida, do celta hid, que significa o canto do pássaro. O gênero é provavelmente, ele próprio, de origem celta. Umas trinta peças chegaram até nós vindas da França setentrional (do sul, há perto de uma dezena). Os lais se caracterizam pela desenvoltura e pela liberdade; as estrofes, em número indeterminado, são sempre heterométricas, cada uma diferindo das outras não só por sua estrutura métrica como por sua melodia. Será preciso aguardar o surgimento de Guillaume de Machaut para verfixar-seo lai como uma forma de doze estrofes, com a última repetindo as rimas e a melodia da primeira. A alternância freqüente de versos longos e de versos muito curtos dá às estrofes dos lais um aspecto serpentino, um desenho em arabescos que as aproxima das estampies poéticas e mostra certo parentesco com as curvas da escultura gótica. O termo da língua provençal descort— discordância (a da alma torturada por um amor infeliz?) —, utilizado mais pelos trovadores do que pelos troveiros, designa, na verdade, a mesma forma lírica. Existem também lais que, por comodidade, são ditos lais arturianos: seqüências de quadras monorrimas inseridas nos romances em prosa do século XIII, em especial no Roman de Tristã [Romance de Tristão]. Essas cantigas são postas na boca das personagens como se elas mesmas as houvessem composto. Lai deplour [Lai de choro], Lai mortel d'Yseut [Lai da morte de Isolda], um dos mais belos (le soleil luit et clair et beau) [brilha o sol e claro e belo], etc. As melodias, a um só tempo simples, refinadas e repetitivas, têm um perfume de arcaísmo, lembrando os hinos latinos e ambrosianos. OS CANTOS À VIRGEM No século XIII, lado a lado com as cantigas de amor profano, compõem-se também, e sempre com palavras da língua corrente, obras de inspiração religiosa. Com efeito, os troveiros já não mais elevam seus cantos, "como a um alto santuário", exclusivamente à mulher amada, mas escrevem também cantigas para a Virgem e cantigas de cruzada exortando à partida para os lugares santos. Essas cantigas constituem um conjunto de peças que é importante e muitas vezes negligenciado no panorama da lírica francesa.
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Algumas com autor reconhecido, mas também freqüentemente de autores anônimos, as cantigas à Virgem dividem-se em duas categorias. As mais numerosas, ao celebrarem a dama que é mais que todas as damas, substituem o culto à dama pela adoração da Virgem, utilizando as mesmas formas que as cantigas de amor. Às vezes são contrafações (contrafacta), isto é, retomam-se a métrica, as r i mas e as melodias de um grant chant, "colando-se-lhes" em cima novas palavras. É o caso de De bonne amour et de loiale amie, [De bom amor e leal amiga], de Gace Brûlé, que se torna uma canção (anônima) à Virgem, e de Ja pour iver, pour noif, ne pour gélée, do mesmo Gace, transformada numa canção à Virgem por Gauthier de Coincy. Um segundo grupo menos numeroso de peças retoma, em língua profana, a Ave Maria e, com mais freqüência, as litanias à Virgem: celebram o mistério da concepção do Cristo e o papel de Maria que intercede junto a Deus pela salvação dos homens. AS CANTIGAS DE CRUZADA Quanto às cantigas de cruzada, representam, de certo modo, os cantos engajados da lírica do século XIII. Abandonando a ausência de precisão geográfica e temporal da cantiga de amor, os troveiros nelas fazem intervir os detalhes históricos e as alusães autobiográficas, sem deixar de conservar ainda a forma do grant chant. Afirmam os troveiros com vigor, nessas cantigas, sua disposição de arrancar-se à dama para partir em alto mar, rumo aos lugares santos, com o fito de libertá-los dos pagãos e de não servir mais que a Jesus Cristo, seu único Senhor, prontos a morrer por Ele, abandonando — como havia pedido São Bernardo e como fazem os cavaleiros do Santo Graal—a cavalaria terrestre pela cavalaria celestial, que põe as armas a serviço de Deus. Não estamos diante de vãs palavras. Muitos desses homens não retornaram das cruzadas, e o dilaceramento necessário ao esforço de partida, o ardor de sua fé dão à sua emoção acentos de uma força que não engana. Não se pode negar, contudo, que a invenção melódica funciona como um suporte muito apagado para essa grande poesia. Paralelamente a esses cantos de estilo elevado, que pertencem ao que hoje chamamos — e isso, depois dos trabalhos de Pierre Bec — de registro "aristocratizante", os troveiros, bem mais que os trovadores, compõem peças mais leves, mais variadas, mais fáceis de escrever, de executar e de ouvir, e que, para fins de maior clareza, designam-se como pertencentes ao registro dito "popularizante". Nelas se repetem motivos comuns a muitos folclores da Europa e do conjunto da bacia mediterrânea; sem sombra de dúvida, fazem parte de uma herança popular — mas o difícil é apreciar a amplitude dessa contribuição e como se deu a passagem de uma tradição puramente oral a uma tradição erudita, das duas a única que foi transmitida por escrito.
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São cantigas cheias de vivacidade e de uma invenção fascinante, que surpreendem por seu frescor, como acontece com o brilho das miniaturas que a passagem dos séculos não conseguiu esmaecer. Nelas desfila um imaginário de jardins fechados, de fontes e de vergéis à espera dos amantes, aos quais o rouxinol dá conselhos, as mulheres cantam "com vozes de sereia" e, por vezes, entre asflores,passa uma fada e é saudada por um cavaleiro. Não se vá pensar, entretanto, que essas peças tenham sido compostas de maneira livre e espontânea, ao sabor das disposições de cada um. Aí também, estamos diante de gêneros bem definidos, facilmente reconhecíveis por sua forma e seu conteúdo. São, de um lado, os gêneros ditos lírico-narrativos: pastorelas {pastourelles), canções de tela (chansons de toile), albas ou alvoradas (aubes; em provençal, albas), reverdies, para citar apenas os mais importantes; de outro, os gêneros ditos líricocoreográficos, destinados à dança, de que tornaremos a falar mais adiante. AS PASTORELAS O gênero lírico-narrativo que inaugurou a tradição mais duradoura é certamente o da pastorela (pastourelle). São cantigas em estrofes, de comprimento variável, de escrita o mais das vezes fácil, mas sempre perfeita, com um refrão que atesta a influência popular, refrão freqüentemente onomatopaico: "Chiberala, chíbele.." "Dorenlot." "L'autrejour, je chevauchoie" [Outro dia, eu cavalgava], diz o cavaleiro que encontra uma pastora e decide seduzi-la. Todas as variantes são possíveis, desde o estupro até o abandono enternecido da pastora, que então parte para ir ao encontro de seu Robin. Gênero sem exigências, de fácil retenção, que se opõe ao grant chant abstrato e imóvel, da mesma forma como a pastora de imediato possuída opõe-se à dama venerada em segredo. A oposição de classe está marcada na própria elaboração dessa forma. É freqüente introduzir-se na pastoreia uma breve cantiga que a pastora cantarola. Por volta de 1285, o troveiro e clérigo Adam de la Halle, originário da florescente e brilhante cidade de Arras, escreveu para o conde de Artois o Jeu de Robin et Marion [Auto de Robin e Marion], primeira peça — com o Jeu de la feuillée [Auto da folhagem], do mesmo autor —- do teatro profano francês. Trata-se de uma pastoreia dramática com personagens, em que um cavaleiro tenta em vão seduzir a pastora Marion, defendida por seu namorado Robin e por outros pastores, que, após o incidente, comem e se divertem. Orgulhoso de sua condição de clérigo, Adam faz troça do cavaleiro desastrado e do mundo camponês. Achavam-se em moda as inserções líricas nos romances. Adam vale-se desse recurso e, entre as réplicas faladas, insere reffões em voga, fragmentos de seus próprios rondós, melodias de pastorelas (pastorelas dentro da pastoreia, como se fazem filmes dentro do filme, romance dentro do romance), e o conjunto, conduzido com grande habilidade, é uma autêntica pequena obra-prima de teatro musical.
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Poucas foram as pastorelas em que se registrou a notação da parte de música, vez que a produção literária era muito mais abundante que a produção musical. Algumas levam a assinatura de nomes ilustres, como Marcabru, no sul, Guillaume le Vinier, Thibaut de Champagne, Jean Bodel, ao norte. O maior número, entretanto, é de autores anônimos. Se, no domínio literário, a pastoreia evolui para a tradição das pastorais dos séculos XVI e XVII, no plano musical ela vai alimentar a canção popular. Esse fenômeno de folclorização, que aparece desde o século XV, faz-se acompanhar de interferências com outros gêneros — chansons de mal mariées ("cantigas de malcasadas"), etc. AS CHANSONS
DE
TOILE
Também conhecidas como chansons d'histoire ("cantigas de história"), as chansons de toile pertencem, igualmente, ao gênero lírico-narrativo e a um conjunto denominado chansons de femmes ("cantigas de mulheres"), que inclui as chansons d'amis ("cantigas de amigos"), as já mencionadas chansons de mal mariées ("cantigas de malcasadas"), etc., cuja tipologia reproduz-se tanto nos refrões da época románica como nos muwashshahas hispano-árabes do século XI. Um certo aroma de arcaísmo paira em torno delas, e é bem difícil datá-las. Subsistiram até hoje cerca de vinte, mas dessas apenas quatro têm uma melodia. Sete figuram inseridas em romances — no Roman de la rose [Romance da rosa], de Jean Renart, no Roman de la violette [Romance da violeta], de Gerbert de Montreuil —, as outras (inclusive aquelas assinadas por Audefroi le Bastard) constam de coletâneas do século XIII. Compõem-se tais cantigas de uma seqüência de estrofes em que os versos se ligam por assonância ou são rimados, cada estrofe seguida de um refrão. Abre-se o primeiro verso com a alusão a alguma mulher — Belle Aiglantine, Belle Aye, Belle Doette, Belle Erembourg—de cujos padecimentos trata a canção. Suportando o mais das vezes uma mãe autoritária, essa mulher chora o abandono por um amigo, uma gravidez mal disfarçada, a morte do bem-amado. Um universo puramente fenrinino inspira essas peças, que se pretende sejam cantadas por mulheres ocupadas em trabalhos de costura, donde esse nome de chansons de toile ("canções de tela"). As melodias, de difícil execução, ornamentadas com numerosos melismas, revestem-se de um carter litânico que acentua o seu arcaísmo ao mesmo tempo que as envolve em mistério. AS ALBAS Pouco representadas nos documentos, as albas ou alvoradas (aubes), em provençal albas, são cantigas dialogadas, com muitos personagens. Têm como tema a separação dos amantes que, após uma noite de amor ilícito, são alertados para o amanhecer por um amigo ou pelo vigia noturno.
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Primeira parte: das origens cristas ao século XIV
AS REVERDIES Mesmo sendo tão poucos os exemplos que delas nos ficaram, podemos dizer que as révérâtes figuram entre as peças mais atraentes da lírica francesa. Cantigas da renovação, do amor e da beleza, de uma graça como raramente se atingiu na poesia, com melodias simples e luminosas, elas fazem surgir diante de nossos olhos alegorias maravilhosas, como a da moça de Volez-vous que je vous chant [Queréis que vos cante?], filha da sereia e do rouxinol, moça-flor, moça-canto, alegorias que transpõem em êxtase as portas de marfim do imaginário medieval. A transmissão e a interpretação das cantigas dos trovadores e dos troveiros Para os 3.500 poemas que nos ficaram dos trovadores, subsistem apenas 350 melodias; o legado musical dos troveiros é muito mais rico: 4.000 textos melódicos (se incluirmos variantes) para 2.500 poemas. Hoje se conhece bem o repertório da lírica dos trovadores e dos troveiros, mas, bem menos, a maneira como eles cantavam suas obras. A restauração de suas melodias por parte do intérprete moderno continua problemática, com múltiplas incertezas quanto às escolhas a serem feitas. Na verdade, as antologias de suas canções — os manuscritos por isso mesmo denominados cancioneiros—não contêm mais que a linha melódica da cantiga, sem nenhuma outra indicação sobre o acompanhamento instrumental. Ora, é freqüente a letra ornada que compõe a inicial de uma peça da lírica do Sul figurar um trovador em longos e ricos trajes, empunhando um instrumento de música. Esse instrumento não está ali, certamente, só como um emblema do canto, mas significa que os poetas-compositores cantavam, eles próprios, suas obras, e mesmo as de seus amigos, como o dão a entender certos textos. Eles se acompanhavam com a viela, com a pequena harpa ou ainda com um alaúde. Qual era então o lugar reservado ao instrumento? Admite-se em geral que seu papel era de interpretar a linha melódica em uníssono com a voz, e que o exécutante, antes e depois de seu canto, incluía um prelúdio e um poslúdio instrumentais improvisados, de que não ficou vestígio algum nos manuscritos. Mas pode-se aceitar igualmente a teoria recente do musicólogo Hendrick Van der Werf, segundo a qual o instrumento não era tocado durante o canto. Como se vê, os conhecimentos a respeito são de tal modo flutuantes que bem demonstram quanto se deve proceder com circunspeção ao reconstituírem-se essas melodias. Por outro lado, se a transcrição dos textos literários passou a ser feita de maneira satisfatória, esse está longe de ser o caso no que se refere às melodias. Com efeito, a maior parte dos manuscritos que as consignaram data da segunda metade do século XIII, momento de completa mutação do signo musical; são manuscritos que, inclusive, apresentam uma defasagem de vários decênios, e até mesmo de um
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século, em relação ao manuscrito original que se perdeu. As melodias revelam, o mais das vezes, grandes divergências entre si, e, sobretudo no tocante à transcrição do ritmo, as incertezas que subsistem são consideráveis. Apenas dois manuscritos do conjunto do repertório existente propõem uma notação mensurada, ou seja, dão indicações dos valores de tempo segundo o sistema adotado para a música polifónica (o que não impede que uma mesma peça possa ser medida diferentemente de uma cópia para outra). Em todos os demais manuscritos, as melodias estão escritas na notação quadrada, que determina tão somente a altura das notas na pauta musical. Por muito tempo, entretanto, os musicólogos empenharam-se em fazer entrar as melodias de trovadores e troveiros no sistema mensurado dito sistema modal. Pierre Aubry, Jean Beck e seus émulos procuraram dar a essas melodias valores de tempo correspondentes aos seis modos rítmicos utilizados pela música polifónica muito depois dessas peças terem sido compostas. A escolha desses modos se faria supostamente em função da alternância de sílabas acentuadas e sílabas não acentuadas do texto poético sobre o qual eram cantadas as melodias, o que criava as seguintes possibilidades: o
I modo: 1 longa + 1 breve, ^ • ou seja: em notação moderna: 3/4, J J o
2 modo: 1 breve + 1 longa, m ^ ou sej a: 3/4, JJ o
3 modo: 1 longa + 1 breve + 1 breve valendo duas unidades (brevis altera), p m m ou seja: 3/4 J J J ou 6/8 J.JJ Esses três modos, sobretudo os dois primeiros, eram os mais freqüentemente utilizados. Vêm em seguida: o
4 modo: duas breves, uma longa, • • • ou sej a: 3/4 J J J- ou 6/8 JJJ. o
5 modo: três longas perfeitas: ^ • ^ ou seja: 3/4 o
6 modo: três breves, • • • ou sej a: 3/4 JJJ No espírito desses musicólogos, estabeleceu-se uma confusão entre os acentos da língua vulgar e os valores longos e breves da escansão latina. As contrafacta que volta e meia se faziam, e que consistiam em adaptar novas letras a melodias já existentes, bem demonstram que o ritmo não era pensado de acordo com esses critérios. Por outro lado, encerrar as frases musicais em compasso rigoroso significava quebrar-lhes o ritmo, falsificar-lhes o desenho. Mais uma vez é preciso lembrar o caráter livre dessas melodias, a maleabilidade de seus melismas; o que não exclui, é claro, um certo ritmo, sob a condição de que não seja predeterminado, de fora, pela aplicação de um sistema rígido de medidas. É preciso que ele se module
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verso após verso, em conformidade com o peso, a posição de certas palavras e a curva da voz. Deve ser concebido de maneira flexível, poder variar de uma estrofe para outra e — por que não? — de uma dada circunstância de execução para uma circunstância de execução diversa. Deve ser-lhe possível evoluir segundo a natureza e o papel do instrumento acompanhador. É por isso que certos musicólogos contemporâneos — Hendrik Van der Werf nos Estados Unidos, Gérard Le Vot na França — adotam, para suas transcrições, um sistema que consiste em indicar na pauta apenas a altura das notas e os agrupamentos melismáticos, o único que permite respeitar o caráter dessas melodias. Que fique por conta do restaurador exécutante da melodia inventar o ritmo que melhor se adapte a ela. Há alguns que captam esse ritmo muito bem, sobretudo aqueles impregnados tanto das melodias gregorianas como das músicas da bacia mediterrânea. O que é preciso é reencontrar a sutileza da invenção num tempo musical perpetuamente aberto. Além do mais, não há por que ter receio de reconstituir a canção em sua integralidade. É comum não se cantarem senão duas estrofes, a fim de que o ouvinte moderno não se canse com fenômenos de repetição. Estes, entretanto, fazem parte da escrita, e não se pode retomar o caminho dessa grande arte seguindo por atalhos que a deformam e prejudicam. O canto da dança e as primeiras danças O gesto, por sua função simbólica, desempenha um papel essencial na civilização medieval, na qualidade de expressão mimética da palavra diante do grupo, pelo grupo e para ele. A dança participa dessa função, inseparável do canto, de que ela determina as formas e que contribui para moldar intrínsecamente. De resto, segundo o teórico do século XIII, Jacques de Liège, não somente a dança não se separa da música, como faz parte do grande conjunto que constitui a Musica. É a música sensível à vista. O movimento da dança nasce do mesmo impulso que produz as cantigas, nas mesmas circunstâncias e com as mesmas funções: celebração religiosa, celebração do amor, reforço ideológico do grupo social envolvido. A dança é designada em latim pela palavra Chorea, em francês pelo termo Carole (verossimilmente de choraula,flautistade coro, donde chorolare, em francês caroler). As carolas são danças coletivas em que os dançarinos, de mãos dadas, formam correntes que se fecham em círculos. Na gestualidade jubilatória dessas formas circulares, o imaginário medieval encontra sua lógica interna. Efetivamente, o círculo simboliza, em primeiro lugar, a unidade e a perfeição, divina, como nas rosáceas das abadias e das catedrais; e simboliza igualmente o mundo, como na Távola Redonda dos cavaleiros do Rei Artur. Por outro lado, cada dançarino, quando estende os braços, inscreve seu corpo num círculo, como o homem representado no centro do mundo na miniatura de um manuscrito de Hildegarde de Bingen.
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De um ponto de vista sociológico, os gestos da carola são os mesmos, quaisquer que sejam os grupos sociais que a executam — os clérigos, os cavaleiros, o povo. Mas cada um permanece, por assim dizer, em seu círculo de origem, o grupo se fecha sobre si mesmo nessas ondas cerradas, sem possibilidade de troca ou de fusão. Em que circunstâncias é dançada a carola? Antes de mais nada, deve-se mencionar o lugar das danças religiosas, que é o interior das abadias e das igrejas, por ocasião de certas festas. Ela é então manifestação de louvor pelo movimento. Assim como a música religiosa pretende ser imitação dos cantos laudatorios angélicos, também os movimentos dos dançarinos imitam as danças dos serafins em volta do trono de Deus. Havia ocasiões, não resta a menor dúvida, em que se dançava no interior das igrejas, mas somente aos clérigos, em princípio, admitia-se que executassem os movimentos (como, ainda em nossos dias, na Etiópia, os diáconos dançam no fundo da igreja). Citemos alguns exemplos: no fim do século XII, após as vésperas da solenidade de Natal, os diáconos da catedral de Amiens reuniam-se para martelar o chão com os passos de um tripudium antes de começar a cantar o Magnificat. Em 1215, no momento da partida para a quinta cruzada, uma chorea é dançada na prestigiosa abadia de Saint-Martial de Limoges antes que os assistentes peguem a cruz para partir. Pierre de Corbeil, arcebispo de Sens, introduziu um rondó no ofício; e, na noite da Páscoa, cônegos e meninos do coro dançavam juntos uma carola em torno do poço do claustro da catedral. Virelais com a respectiva notação musical encontram-se nos manuscritos da abadia beneditina de Rippoli; na de Montserrat, o famoso Libbre Vermeil contém um rondó ad trepidum rotandum (para ser rodado batendo com os pés no chão); e o antifonário dos Médicis, belo manuscrito florentino, comporta toda uma seqüência de rondos. O padre Ménestrier observa, em pleno século XVII, que os cônegos e os meninos do coro dançam ainda hinos nas igrejas, cantando e de mãos dadas. E parece que o rondó ainda era dançado na igreja de Besançon no século XVIII. Entretanto, do concilio de Vannes (465) ao concilio de Trento (1562), passando pelo de Toledo (599) e o de Avignon (1209), a Igreja não cessa de condenar as danças em geral e as que se realizavam dentro das igrejas em particular, por temor aos excessos e à lascívia que se poderiam introduzir com elas, mormente com a participação eventual de mulheres e menestréis. "Chorea, corona diaboli!" ("Dança, coroa do diabo!") exclama, no século XII, Maurice de Sully, arcebispo de Paris, e a ameaça de excomunhão pesa sobre os padres que participam da dança ou a ela assistem. Tais proibições, repetidas mas vãs, provam a presença e a freqüência da dança nas festas religiosas medievais. Por outro lado, a carola faz parte dos divertimentos da classe cavaleiresca, durante as festas luxuosas que esta promove para ornamentar seu poder. O local em
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que se dança pode ser o interior de um castelo, como no Tournoi de Chauvency [Torneio de Chauvency] de Jehan Bretel, mas o mais freqüente é desenrolarem-se as danças nos vergéis, em prados cobertos de violetas, onde correm as fontes, perto das barracas levantadas para o repouso, juncadas de ervas aromatizantes e de flores. Um ménestrel pode lá estar com sua viela, mas são os cavaleiros e as damas que cantam e dançam. Está dito no apatronante romance de Guillaume de Dole, de Jean Renart, em que essas festas e essas danças são evocadas de maneira tão viva, que uma dama de grande beleza se pôs a cantar "com as mãos e os braços", ou seja, dançando. Os integrantes da nobreza, muito ligados à beleza dos corpos e à suntuosidade das roupas, signos de sua inserção na elite social, encontram, nos círculos da carola, uma oportunidade de se colocarem em evidência pelo movimento, cada um saboreando o prazer narcísico de sentir-se olhado pelos outros enquanto dança e de os ver dançando como outras tantas projeções de si próprio. "Essas mãos brancas que tanto lhes agradava ver", lê-se no Roman de Guillaume de Dole, de Jean Renart... ou ainda: "e as belas damas puseram os mantos sobre seus belos corpos"... Razão pela qual não é de surpreender que o tema do olhar apareça tão freqüentemente nas canções de dança e nos jogos mimados que as acompanham, como neste rondei : S'on m'y regarde, prenez-y garde S'on m'y regarde, dites-le moi. 1
Ou neste: Dames, regardez vos bras! Qui suis-je donc, regardez-moi!
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A dança inscreve-se no prolongamento dos divertimentos da vida cavaleiresca, quais sejam a caça e os torneios. É comum serem as carolas formadas exclusivamente por mulheres, objeto do olhar dos homens enquanto estes travam suas justas. Já então os cantos, a música e a dança tornaram-se para a nobreza um meio de embelezar sua vida com festas luxuosas e com a arte, de manifestar sua despreocupação, sua felicidade de colher o momento que passa num sonho concretizado de juventude e de refinamento. Enquanto forma correntes fechadas, ao pé dos castelos cingidos por altas muralhas, a nobreza se isola, tanto do plebeu, que ignora, como da burguesia, que despreza. 1
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[Se alguém olha para mim, estai atentos / Se alguém olha para mim, contai-me.] (N. T.) [Damas, olhai os vossos braços! / Eu? Quem sou? Olhai para mim!] (N. T.)
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O camponês, por seu lado, também se diverte. Dentro da tradição popular das festas de maio, as antigas danças da fecundidade em torno do mastro florido são atestadas e — também elas — condenadas pela Igreja. É claro que todo esse folclore foi confiado à tradição oral, com raros vestígios deixados nos manuscritos. E mesmo esses raros vestígios devem ser interpretados com cautela, como é o caso das cantigas da pastora Marion no Jeu de Robin et Marion, de Adam de la Halle, que nada têm de popular, ou com a dança de seu Robin, que não passa de uma caricatura das danças da nobreza, em que Adam faz troça da tendência à insensatez e do amor grosseiro, com um tiquinho de nada de lubricidade, comumente atribuído aos camponeses. Dança-se ao som de canções e a carola engendra formas musicais de estrutura circular: surgem em primeiro lugar os rondets de carole, peças breves de uns poucos versos, enquadradas por um refrão, de que irão nascer três formas: • o rondeau (rondó): AB aAab AB Refrão Refrão • a bailete, mais tarde a ballade (balada): três estrofes + Refrão • o virelai Aba A Refrão Refrão As estrofes são cantadas por um corifeu, ou chante-avant, uma espécie de "puxador"; o refrão, pelo coro dos dançarinos. Essas peças breves e encantadoras jogam com a circularidade, com o constante retorno dos refrões. É também graças à dança que a música instrumental independente do canto faz uma tímida aparição, com a estampe, a ductia e a nota. A estampie, que tira seu nome de stampare, "bater no chão com os pés" (e que não se deve confundir com a estampie literária), é formada por seções curtas que se repetem, AA, BB..., chamadas puncta. A mais antiga de que se tem registro é aquela para a qual o trovador Raimbaud de Vaqueiras, segundo se conta, escreveu, espontaneamente, assim que acabou de ouvi-la, as palavras "Kalenda Maya, Ni fuelles de faya". Oito delas figuram num cancioneiro da Bibliothèque Nationale. São os primeiros exemplos de música instrumental. Jean de Grouchy considera-as danças difíceis no tocante à escrita e à execução. As ductiae e as notae são menos elaboradas, simples, nitidamente compassadas. A lírica na Europa nos séculos XII e XIII As composições dos trovadores e dos troveiros constituem verdadeiramente o crisol da lírica da Europa medieval. As formas poéticas e musicais inventadas a partir de meados do século XII até ofimdo século XIII, na França meridional inicialmen-
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te, e depois na França setentrional, haveriam de irradiar-se pelos países vizinhos, Itália, Alemanha, Espanha. A ITÁLIA A influência revelou-se marcante, em primeiro lugar, na Itália. Infelizmente não ficou vestígio algum da música de um Cigada, de um Malaspina, de um Sordel, nem de todas aquelas cantigas corteses que se davam o prazer de compor os nobres toscanos e umbríos, entre os quais aquele jovem patrício que não tardaria a renunciar a tais práticas, ardente de um outro amor, o futuro São Francisco de Assis, autor, mais tarde, do Hino ao sol. Graças a ele, a cantiga italiana iria tomar uma orientação nova. De fato, o Poverello quis que o louvor a Deus se expressasse fora da música eclesiástica, em cantigas em língua não erudita e que fossem acessíveis a todos, para o que promoveu a fundação das sociedades de "músicos de Deus". Em conseqüência, a Itália possui grande número de hinos admiráveis em língua vulgar, os Lauâi spirituali, compostos pelas companhias religiosas formadas pelos laudesi que cantavam, em torno de seus capitani no final do século XIII e no início do século XIV, nas grandes procissões penitenciais dosflagelantes,sobretudo na Úmbria. Essas peças alimentam-se tanto do canto gregoriano como das melodias dos trovadores e troveiros, e sua estrutura aproxima-se daquela do virelai, com alternância de solista e coro. É sabida a admiração votada por Dante aos trovadores e troveiros da França e com que atenção ele analisa a arte destes no De vulgari eloquentia. Não há a menor dúvida de que, na dimensão monumental assumida pela Divina comédia, a iluminação pelo amor de Beatriz constitua, de certa forma, o remate prodigioso dessa arte. AGERMÂNIA Nas regiões germânicas floresce, por sua vez, a arte do Minnesang, canções que celebram o amor (Minné) por uma dama venerada, mas também as belezas da natureza, os benefícios de Deus, os laços com a terra natal. Por meio dos Minnesanger, a influência de trovadores e troveiros estender-se-ia até à Áustria. Razões políticas favoreceram as trocas culturais: em 1156, Béatrice de Bourgogne, protetora do troveiro Guillot de Provins, casa-se com o imperador Frederico I , o Barba Roxa. Foi na Baviera que a produção dos Minnesanger mostrou-se mais abundante. O famoso manuscrito de Heidelberg inclui nada menos que 7 mil canções, obras de 140 poetas-compositores, entre os quais o célebre Walther von der Vogelweide (ca. 1170-1230), além de Friedrich von Hause, Reinmar der Alte, Heinrich von Mohrungen, etc. A Barform — com sua estrutura constituída por um Aufgesang composto de um Stollen-Stollen, seguido de um Abgesang, ou seja, uma primeira parte de estrofe formada de dois elementos idênticos, a que seguia-se uma segunda parte, tal como
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a descreve com precisão Hans Sachs em Die Meistersinger Von Nürnberg [Os mestres-cantores de Nurenberg], de Richard Wagner — retoma o modelo de um bom número de canções de trovadores e de troveiros. O Leiche, de que se encontram muitos exemplos, é a variante germânica do lai-descort. Os próprios temas também são retomados: o amor cortês, as queixas contra a avareza do senhor, ou ainda a troça com os camponeses nas peças popularizantes. A tradição religiosa tampouco se acha ausente, tal a influência que sobre essa música exercem as melodias gregorianas; algumas canções contêm tantos melismas que houve época em que se chegou a pensar que se tratasse de partes instrumentais. Outros autores, como Neidhart von Reuenthal (1180-1250), sabem também utilizar o velho fundo popular germânico em melodias de uma simplicidade e de um encanto arcaicos, fundo esse que será uma das fontes constantes da lírica alemã, tanto como os Nibelungen que se escrevem paralelamente à epopéia erudita. A ESPANHA A Espanha é o lugar de encontro das músicas ocidentais e daquelas que pertencem à tradição islâmica. A penetração na Europa do üd árabe (instrumento de cordas pinçadas de que se origina o alaúde ocidental) e de outros instrumentos deve-se a esse contato hispano-mourisco. As trocas entre as duas culturas eram freqüentes e frutíferas. O passado da cidade de Poitiers dá testemunho disso: Guillaume, conde de Poitiers e nono duque de Aquitânia teve muito gosto, quando de suas expedições à Palestina e à Espanha, em unir-se por laços de amizade com intelectuais e artistas sarracenos, cuja brilhante civilização o deslumbrava. No século XIII, Afonso X, dito o Sábio (1221-1284), rei de Castela e de Leão, favorecia essa abertura ao mundo islâmico. Ele sabia árabe e mandara bordar versículos do Corão em seu manto real. Um dos manuscritos das Cantigas de Santa Maria mostra, lado a lado, um músico mouro e um músico cristão tocando alaúdes. Os estudos nesse domínio são muito raros e não dá para entender por que misteriosas razões os pesquisadores ocidentais afastam-se de uma literatura e de uma música que não foram ignoradas pelo Ocidente, ao passo que os trabalhos dos epistemólogos e dos filósofos sobre a contribuição considerável dada pelas ciências e pelo pensamento árabe ao mundo ocidental avançaram muito mais. Não há a menor dúvida de que uma abordagem mais precisa dessa tradição seria de muita ajuda para melhor apreender certos aspectos da lírica medieval. O belíssimo conjunto que constituem as Cantigas de Santa Maria é atribuído a Afonso X, autor de pelo menos um certo número delas. São inspiradas nos Miracles de Notre Dame [Milagres de Nossa Senhora] do troveiro Gauthier de Coincy. Sua estrutura reproduz a dos villancicos, por sua vez herdeiros de nosso virelai, ou seja: um estribilho, seguido da primeira parte da estrofe, depois a segunda que retoma a melodia e as rimas do estribilho, e por fim novamente o estribilho.
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Saborosos de cantar, foi o comentário que ficou sobre os villancicos — doce sabor das vozes que nos foi legado por toda a lírica da época. A lírica profana em língua latina Completamente independente da floração de peças líricas nas línguas vernáculas da Europa, cuja influência haveria de ser tão profunda, a lírica profana em língua latina — que é muito mais reduzida — não deve ser esquecida. Foi essa lírica latina profana, durante a Idade Média, uma fonte que jamais se esgotou, desde as composições de Venantius Fortunatus (530-609), influenciadas pelas formas litúrgicas, passando pelas canções de amor da época carolíngia, que foram condenadas no século LX por serem diabólica, amatoria e turpia ("diabólicas, dissolutas e torpes"), e prosseguindo com as transposições para música dos poemas da obra De consolatione philosophiae de Boécio, das Odes de Horácio e da Eneida de Virgílio, hoje indecifráveis, até, no século XII, as cantigas de Abelardo, sobre cuja autoria, no tocante a seis planetas pelo menos, não pairam dúvidas. Mas, de todas as coleções de lírica latina profana, a mais importante e a mais vasta é a dos Carmina Burana [Cantos de Beuron], manuscrito compilado e conservado até 1803 na abadia de Benediktbeuren (mosteiro beneditino de Beuron), na Baviera. Fora algumas peças germânicas, o conjunto contém essencialmente peças líricas de origem parisiense, compostas nos séculos XII e XIII. Se Geoffroy de SaintVictor é um cônego devoto, dos outros autores dos Carmina Burana — como o denominado "arquipoeta", ou Gauthier de Châtillon, ou Philippe de Grève (nascido em 1236 ou 1237), etc. — pode-se dizer que são monges errantes, isto é, monges itinerantes, que vão de uma universidade a outra, beneficiando-se da proteção eclesiástica e dos privilégios dos clérigos. Não devem, porém, esses monges ser confundidos com os goliardos — supostamente uma combinação do latim gula (gula, glutonaria) com Golias —, ex-padres que se entregavam exclusivamente a uma vida regalada e mesmo dissoluta. O compilador do manuscrito de Benediktbeuren organizou-o adotando a seguinte classificação: 1) canções morais e satíricas (55 aproximadamente); 2) canções de amor (130); 3) canções de beber; 4) seis dramas litúrgicos do ciclo da Páscoa. Primeiros entre os poetas malditos, os monges errantes celebram a embriaguez propícia à inspiração poética, o amor brutal, venal, carnal: são violentos na sátira, chegando por vezes à revolta — e a paródia do culto costuma ir além da simples estudantada. A força da invenção, o poder de renovação caracterizam esses versos, a que seus autores dão, por vezes, volteios delicados para cantar um amor "puro",
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de bom grado espalhando em suas composições alusões mitológicas e citações de Ovidio e Virgüio. As formas musicais de que se valem os autores dos Carmina Burana provêm da liturgia pós-carolíngia, demonstrando mais uma vez que o domínio do sagrado e o do profano não são estranhos um ao outro. A escrita da paródia cabe, de resto, conservar um molde formal em cujo interior se introduz com mais propriedade a subversão que o torna absurdo. Essas formas são de dois tipos: o versus com refrão, ou seja, um hino com muitas estrofes seguido por um refrão de estrutura diferente (eventualmente em francês ou em alemão); e a forma sequentia, de estrofes paralelas, AA, BB', próxima da forma do lai francês. Os copistas efetuaram a notação das melodias sem pautas, baseando-se num modelo francês de notação quadrada. Embora não se trate de um fenômeno único, não resta dúvida que o processo dificulta muito a leitura. Certas peças são contrafacta de textos anteriores, outras beneficiaram-se de uma cópia posterior. Graças ao confronto com tais textos, René Clemencic conseguiu transcrever umas cinqüenta dessas melodias, as restantes tendo permanecido, por enquanto, ainda indecifráveis. Estamos, em suma, diante de uma lírica clerical em língua latina, de que ressalta a extraordinária riqueza de invenção e que difere inteiramente da lírica em língua vulgar dos círculos corteses. A música mantém-se próxima dos modelos litúrgicos, do que resulta serem estes veiculados até um período bem avançado do século XIII.
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A POLIFONIA, DESDE SEUS PRIMORDIOS ATÉ O F I M DO SÉCULO X I I I
Os sentidos se comprazem nas coisas bem proporcionadas. SANTO TOMÁS D E A Q U I N O
Os primordios, do século IX a 1140 Toda gênese é cercada de mistério. Quanto à polifonia, pode-se dizer que ela não nasceu, à maneira dessa ou daquela forma musical, num momento determinado da história, num lugar bem definido: Tanto do ponto de vista do etnólogo como do musicólogo, a superposição de duas ou várias linhas melódicas simultâneas que se desenrolam de maneira homogênea — guardando, cada uma delas, seu caráter particular — é vista como uma tendência espontânea a procurar a consonância de duas ou mais vozes. De acordo com as pesquisas e as conclusões de Marius Schneider, a heterofonia por intervalos de quinta —- tal como se define nossa primeira polifonia — é localizável em três regiões muito afastadas umas das outras: na Europa oriental, desde o sul do Cáucaso até a Sicilia, na África meridional e em certas partes da Ásia. Por outro lado, os especialistas da tradição oral européia tiveram ocasião de notar a presença de canções populares a duas vozes, com uso de quintas paralelas, em locais como a Dinamarca, o País de Gales, a França (Córsega) e a Itália (Lácio e Sardenha). Não estamos portanto interessados em fechar um círculo em torno do nascimento da polifonia na música ocidental; importa-nos antes acompanhá-la a partir
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do momento em que surge nas fontes teóricas, depois nos manuscritos com notação registrada — e que fique assinalado, logo de saída, que, até o século XIII (inclusive) o domínio desses textos é exclusivamente o da música sacra. Será preciso esperar a Súmma musicae [Suma da música] do século XTV para encontrar o termo polifonia usado como designação da escrita vertical, uso que só se deverá impor, de fato, no século XVIII. Aparentemente, o princípio da consonância harmônica já era conhecido desde muito. Santo Agostinho faz-lhe alusão em seu Contra acadêmicos [Contra os acadêmicos]; Boécio menciona-o em diversos dos seus escritos. Segundo André Schaeífher, o canto paralelo em intervalos de quarta ou de quinta desenvolveu-se primeiro na Igreja bizantina, para passar em seguida à de Roma, durante os séculos VII e VIII, por intermédio de um dos diversos papas de origem oriental que subiram ao trono de Pedro. Um texto do Ordo Romanus [Ordem romana] faz alusão a isso. Não resta dúvida de que a polifonia só conseguiu se desenvolver verdadeiramente na música erudita ocidental depois de bem assimilado, pelos cantores, o canto gregoriano imposto por Carlos Magno e uma vez criadas as escolas necessárias à aprendizagem do canto a muitas vozes, ou seja, na época de Carlos, o Calvo. Os primeiros testemunhos de utilização da polifonia figuram nos escritos teóricos do século IX: por exemplo, no De institutione musica de Hucbald de SaintAmand, no manuscrito de Reginon de Prüm ( t 915), no De divisione naturae [Sobre a divisão da natureza], de Johannes Scotus Erígena (ca. 876), e sobretudo na Musica enchiriadis, atribuída a Ogier de Laon — textos aos quais é preciso acrescentar um certo número de tratados italianos. O canto polifónico é aí definido, em primeiro lugar, como o acréscimo, à voz principal (vox principalis), de uma segunda voz paralela, no intervalo de quinta do canto litúrgico: a vox organalis ou organum. Esta última palavra designa inicialmente qualquer instrumento de música, para, mais tarde, restringir-se ao instrumento natural que é a voz humana, por oposição aos outros, ditos "artificiais"; e terminar designando o órgão, instrumento de teclado. Tanto é assim que se chegou a fazer uma aproximação entre o organum vocal e instrumentos a duas vozes da Antigüidade tais como o aulo (flauta) duplo; sem falar que, no grego e no latim, uma única e mesma palavra (phone em grego e vox em latim), é usada para designar tanto a voz humana quanto o instrumento que a acompanha. A voz principal pode, de resto, ser igualmente duplicada na quarta ou na oitava. Pouco a pouco, verifica-se que o organum paralelo pode tornar-se livre no princípio e no fim da frase, particularmente quando se trata de evitar a quarta aumentada, o trítono fá-si, o famoso diabolus in musica ("diabo na música"). Mais tarde, o Micrologus de musica de Guido d'Arezzo (1000-1050) fixa com precisão os intervalos que é admissível utilizar, ao mesmo tempo que cogita do cruzamento possível da voz principal com a voz organal.
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No século XI, o tratado de autoria do compositor John Cotton of AfUighen, nascido na Inglaterra, generalizará o uso do organum livre e introduzirá o movimento contrário para as duas vozes. No que diz respeito à música prática, não chegou até nós nenhuma música polifónica anterior aos raros volumes de tropos que datam do século XI, como a coleção de Winchester, estabelecida, sem dúvida, sobre um modelo de Fleury, que contém cinqüenta organa, ou ainda a dos Aleluias de Chartres, onde se observa o emprego de intervalos de terças, na época considerados dissonantes. Será preciso aguardar o século XII para assistir ao desenvolvimento da escrita dos organa, fundamentalmente na grande escola dita de Saint-Martial de Limoges, o que inclui não apenas a própria abadia mas também as regiões de Toulouse, de Narbonne e do norte da Espanha. Podem-se distinguir, em Saint-Martial de Limoges, dois tipos de organum: em primeiro lugar, o organum melismático, com os melismas aparecendo de fato em grande número (à razão de vinte notas para uma) na voz organal, a tal ponto que a voz principal fica relegada, de certo modo, a um segundo plano e passa a servir apenas de apoio à voz que, tempos antes, era a de acompanhamento. Com o nome de tenor (do latim tenere, sustentar), passa a caber à voz principal o registro grave do canto. Por essa simples denominação da voz que é, na verdade, a voz litúrgica, pode-se compreender que, agora, no espírito dos clérigos músicos, a liturgia importa menos que a função técnica das partes. Com tal mudança, o canto gregoriano se ofusca diante da nova escrita do organum. O outro tipo de polifonia que se encontra em Saint-Martial é o discante, ou seja, o acréscimo, nota contra nota, de uma voz ao canto principal. O discante não demora a perder sua rigidez, e logo iremos topar com quatro notas contra uma, ou três contra duas, ou quatro contra três. Por vezes, também ocorre a troca de motivos entre uma voz e a outra. A Escola de Saint-Martial de Limoges abriu caminho para o amplo movimento musical da Escola de Notre-Dame; por outro lado, como aconteceu com a arte dos trovadores, seus reflexos atingiram fortemente a Inglaterra e sobretudo a Espanha. O que se vê na Espanha é a flexibilidade e a liberdade de invenção prevalecerem sobre a estreiteza dos quadros teóricos, em Santiago de Compostela, cidade que, juntamente com Roma e Jerusalém, constituía um dos três grandes locais de peregrinação da Cristandade. O Liber Sancti Jacobi [Livro de São Tiago], também conhecido como Codex Calixtinus [Código de Calixto, pois sua autoria foi atribuída ao papa Calixto II ( t 1124)], contém, além de diversos conselhos práticos aos peregrinos de Santiago, conducti monofônicos e uns vinte organa em que figuram, pela primeira vez, peças a três vozes.
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Curiosamente, a Igreja, outrora tão ardorosa na imposição do canto gregoriano, deixou que se passasse um século antes de se deixar mobilizar por essas formas de escrita que o relegavam ao segundo plano. Organização da música no período gótico clássico (1140-1280) Tanto na estrutura social como no domínio do pensamento e da arte, o período que corresponde à época gótica clássica é marcado por mutações que contam decerto entre as mais profundas por que passou a Europa ocidental até os tempos modernos. A música, inserida no conjunto dos fenômenos, evolui segundo um movimento sincrónico e paralelo ao da sociedade, das formas de pensamento e das outras artes. A primeira grande mutação — que vai, de certo modo, gerar as outras — é o desenvolvimento rápido das cidades. Desde o fim do século XII, ocorre um deslocamento dos centros de estudo e de saber, mas também de poder e de concentração de riquezas, em direção às cidades, que crescem incessantemente. Daí por diante, o olhar desvia-se dos mosteiros, fermentos do pensamento e da arte precedentes, e volta-se para a cidade. Por um movimento de translatio studii ("deslocamento dos estudos"), pode-se dizer, é para a catedral, igreja do bispo e do clero secular, que vão convergir as forças intelectuais e artísticas. Não mais Cluny, Clairvaux, nem mesmo Saint-Denis, mas Chartres, Soissons, Arras, Laon, Reims e, sobretudo, Paris, com a Notre-Dame em seu centro, e, na outra margem do Sena, a Universidade. Paris, rosa das rosáceas, parisien Paradis ("Paraíso parisiense"), dirão os clérigos, de onde vai irradiar-se para toda a Europa a arte da França—cidade das cidades que, por volta de 1200, tornase a capital de um reino reunificado graças à ação de Filipe Augusto e que, depois de 1200, terá à frente o rei mais prestigioso de seu tempo, São Luís. A bela e inteligente cidade, como também os centros urbanos em seu redor num raio de 150 quilômetros, estavam destinados a viver conjuntamente três grandes surtos de criação: o desenvolvimento do pensamento escolástico, com Alberto Magno, São Boaventura, Guillaume d'Auvergne, Siger de Brabant, Duns Scot e, acima de todos, o autor da Summa theologica, Santo Tomás de Aquino; a construção das catedrais pelos arquitetos Jean de Chelles, Robert de Luzaches, Pierre de Montreuil; e a floração das magníficas polifonias dos dois grandes mestres da Escola de Notre-Dame, Léoriin e Pérotin. Amadurecem as formas paralelamente, em função de disposições mentais comuns, não obstante a diversidade das tarefas, com os estudantes convivendo à sombra da catedral, o arquiteto em tertúlias com o lógico e o compositor, numa época em que o profissionalismo não constitui fator de isolamento e em que o espírito individual pode ainda abraçar a totalidade do saber filosófico e científico.
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A EVOLUÇÃO DAS FORMAS MUSICAIS COM LÉONIN E PÉROTIN Antes de pôr em evidência esses paralelismos e de efetuar as aproximações que se impõem, vejamos o que se passa especificamemnte no domínio da música polifónica. Léonin, primeiro mestre da Escola de Notre-Dame, é reconhecido pelo autor anônimo de um tratado (o Anonymus TV, de Coussemaker) como o melhor compositor de organa de seu tempo. Seu Magnus liber [Livro magno, ca 1180] contém uma série de organa para o Gradual e o Antifonário, 33 para a Missa, 13 para as Horas, com vistas ao embelezamento do serviço divino. Léonin ora pratica a escrita melismática para a voz que ocupa o registro agudo, dando liberdade à voz tenor litúrgica, ora trabalha com o descanto. Foi o primeiro a medir a duração dos valores da voz tenor, de modo a obter um contraponto rigoroso nota-contra-nota, como se vê nitidamente no Audi filia [Ouve filha] do Propter veritatem [Por amor da verdade]. Pérotin, o outro grande mestre de Notre-Dame, retoma a obra de Léonin. Encurta-a — sempre de acordo com o que está escrito no Anonymus TV— para dar às peças polifónicas uma dimensão que convenha ao tempo da liturgia e que seja proporcional ao comprimento das partes de cantochão com as quais elas se alternam. Pérotin escreve de maneira mais breve as velhas seções do descanto e, sobretudo, substitui as cláusulas de organum melismático, longas demais, por cláusulas de descanto necessariamente mais breves. Essas cláusulas (em latim clausulae) constituem autênticas pequenas composições independentes, cujo grande número leva a pensar que devam ter sido executadas fora de um contexto litúrgico definido. Delas nascerá o moteto. Note-se que Pérotin, em seus organa, acrescenta uma ou duas vozes suplementares ao tecido polifónico de Léonin. Seus dois famosos quadrupla (na realidade, três vozes sobre a voz tenor) —Viderunt omnes [Viram todos, 1198], para o Gradual de Natal, e Sederunt principes [Tomaram assento os primeiros, 1199], para a festa de Santo Estêvão, em 26 de dezembro — foram destacados pelos teóricos da época como um acontecimento na evolução da escrita musical. Pérotin dedica toda a sua atenção aos problemas do ritmo. Para a voz tenor, ele utiliza o conjunto dos seis modos rítmicos. Léonin servia-se apenas do quinto modo. A generalização do emprego desses modos na escrita polifónica é resultado da obra de Pérotin. Não há como não admirar a clareza, o vigor quase monumental dessas composições. Até então, o conductus, próprio para "conduzir" o padre ao altar, era uma peça a duas vozes com uma voz tenor não litúrgica, mas sim de composição recente. Pérotin retomou a escrita dos conducti, promovendo, neles também, o acréscimo de uma ou duas vozes. Assumem desse modo os conducti independência cada vez maior em relação à liturgia, tornando-se peças de circunstância para essa ou aque-
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la cerimônia, na oportunidade de acontecimentos religiosos ou políticos. Ainda com relação aos conducti, Pérotin inova, utilizando o sistema modal no que concerne à escrita do ritmo. Em suma, o grande mestre de Notre-Dame dá às formas que herdou uma arquitetura vertical, sólidamente apoiada pela notação do ritmo. Tudo está pronto, a essa altura, para o advento do moteto, o mais complexo, o mais bem resolvido e o mais surpreendente, também, de todos os gêneros polifónicos. Com Pérotin, as clausúlete, como já se disse, assumiram uma vida independente da Uturgia. Não fazia muito sentido cantá-las usando, como únicas palavras, as da voz tenor. Voltou-se, então, a prestigiar o procedimento adotado com êxito nos tropos: encaixar palavras (em francês mot > petit mot > motet) nas melodias preexistentes. Foi assim que nasceu o moteto. Note-se, de passagem, que uma vez mais a palavra serve de apoio à invenção musical. Primeira etapa: a parte ou voz superior é dotada de um texto em latim que comenta as palavras da voz tenor litúrgica. Esta, aliás, tenderá, com freqüência a tornar-se instrumental. Segunda etapa: as vozes superiores têm como texto duas séries diferentes de palavras, ainda em latim e ainda comentando a voz tenor. Terceira etapa: o texto de uma das vozes é de palavras em francês que não comentam mais a voz tenor. Depois, já nenhuma voz comentará a voz tenor, e o moteto terá vida completamente independente da Hturgia. Todo o esforço consistirá em organizar com clareza a escrita do conjunto das vozes. Resolver-se-á a questão diferenciando-se o ritmo de cada uma delas: lento para a voz tenor, mais rápido para o duplum, acelerado para o triplum. A "letra" do triplum é em geral um terço mais longa que a do duplum. "Quem quiser compor um moteto", diz Jean de Grouchy, "deve antes de mais nada dar à voz tenor uma boa ordenação e fixar-lhe o compasso e o modo. Em seguida, sobre essa base, dispor o Motettus, que se manterá em geral à distancia de uma quinta da voz tenor, mas poderá também elevar-se ou baixar. O triplum, acrescentado a essas duas vozes, distará da voz tenor uma oitava, podendo baixar até a quinta... Podese acrescentar-lhes um quadruplum." Escolhe-se um modo rítmico diferente para cada uma das vozes. É freqüente encontrarmos o quinto modo rítmico para a voz tenor, o primeiro para o duplum (ou Motettus), o sexto para o triplum. Naturalmente, esse procedimento, que podia seduzir pela complexidade, não se mostrava capaz, entretanto, de organizar com perfeição a coordenação nota a nota. De 1260 em diante, difunde-se um sistema que fixa os valores respectivos de cada uma delas. É a notação chamada de "franconiana" por associação com o nome 1
Com esta grafia, vale por duplum. (N. T.)
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de Franco de Colônia, que dela expôs os princípios em seu tratado Ars cantus mensurabilis [A arte do canto mensurável]. O sistema compreendia as seguintes divisões e subdivisões: ' máxima ou duplex longa 1 longa •
breve
•
semibreve,
às quais, um pouco mais tarde, Pierre de la Croix acrescentará a mínima. O sistema é ternário: a unidade é constituída pela breve, a que corresponde um tempo. A longa perfeita vale três tempos; a imperfeita, dois — e assim por diante. Enriquecido com todas essas possibilidades, o moteto vai muito rapidamente suplantar os organa e os conducti. Por outro lado, cada vez mais afastado da função fitúrgica, ele vai passar do domínio sacro ao domínio profano, para tornar-se a forma refinada, elaborada, do canto de amor polifónico. O moteto volta-se para os círculos elitistas das cortes e da burguesia cultivada. Jean de Grouchy observa que, enquanto os rondós podem chegar às camadas populares, o mesmo não acontece com os motetos, que apenas os letrados estão em condições de apreciar. As duas ou três vozes acima da voz tenor têm, a essa altura, "letras" em francês, e a voz tenor ora é latina e fitúrgica, ora latina e não fitúrgica, ou pode mesmo ter texto francês, como é o caso da famosa voz tenor de um moteto do manuscrito de Montpellier: "Fraise nouvelle!" [São os primeiros morangos!], que é um pregão de Paris. Adam de la Halle, poeta e compositor originário da cidade de Arras, mas que adquiriu sua "sapiência" em Paris, compôs rondós no estilo do conduetus e foi praticamente o único, em seu tempo, a escrever rondós polifónicos. Deixou ainda onze motetos profanos que são o ponto mais alto de sua obra musical. Para esses motetos, vale-se dos três tipos de combinações, então usuais, com a voz tenor. Por outro lado, de acordo com um procedimento corrente na época, Adam de la Halle insere, no duplum, células de seus próprios rondós, ou dos rondós de compositores como Guillaume d'Amiens, oü ainda refrões anônimos. Ê o princípio do moteto "enxertado". Dir-se-ia que ele brincou com todas as possibilidades que lhe oferecia essa forma. No moteto X, por exemplo: a voz tenor tem texto em francês: "Qui prendroit"; no duplum, encontramos o começo de um de seus rondós: "Hé Dieu, quand verrai." já utilizado no triplum do moteto LX; o triplum (do moteto X) é uma prece à Virgem em latim: Theoteca Virgo yeratica [Relicario da verdadeira Virgem]. As duas grandes coleções de motetos são os manuscritos de Bamberg e de Montpellier. Em pouco tempo, essa forma desenvolveu-se por toda parte na Europa: na Inglaterra, na Alemanha, nas Flandres, na Espanha, com alguns atrasos, às vezes, e com algumas diferenças locais.
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MUSICA, PENSAMENTO ESCOLÁSTICO E ARQUITETURA GÓTICA Dessa evolução das formas musicais até 1280 depreende-se que a organização das obras é preocupação primordial dos compositores do século XIII. Elas se elaboram, como dissemos e como pretendemos agora brevemente demonstrar, num movimento paralelo ao do pensamento escolástico e à elevação da arquitetura gótica, num espaço — a cidade — que é determinante de um habitus mental comum. Alguns traços essenciais, como superposição das vozes, modalidade rítmica e depois compasso, polilingüismo do moteto e secularização da polifonia com usual conservação da voz tenor fitúrgica — se, por um lado, possuem sua lógica interna, por outro, esclarecem-se também uma vez recolocados no contexto do gótico clássico e do pensamento escolástico. Erwin Panofsky, o eminente historiador da imaginação criadora da Idade Média e do Renascimento, demonstrou claramente como a organização tripartida, às vezes quadripartida, torna-se um principo de edificação tanto do pensamento como da arquitetura. Por exemplo: a catedral de Sens (1140) e a basílica de Saint-Denis, tal como foi concebida por Suger (1144), apresentam "um plano rigorosamente longitudinal, com apenas duas torres de fachada e um transepto reduzido ou totalmente ausente". Ora, a organização do gótico clássico prevê "uma nave tripartida, um transepto igualmente tripartido que se funde no antecoro quinquepartido... enquanto, para a nave, estão previstas, no plano, abobadas quadripartidas com o lado mais longo visto de frente e, em elevação, a sucessão triádica das grandes arcadas do trifório e das janelas — e numerosas torres (nove previstas para Chartres, 1194)". Uma evolução paralela das formas produz-se na música a ser tocada nesses novos edifícios. Passa-se do organum a duas vozes (uma das quais se estira em longos melismas) aos organa e aos conducti de Pérotin, em que se encontram superpostas três ou quatro vozes acima da voz tenor, com uma predileção constante pela consonância de quinta. Da mesma forma que, na arquitetura, "conciliavam-se o ideal de uma progressão uniforme de Este para Oeste com os ideais de transparência e de verticalidade" (Panofsky), as polifonias a três e quatro vozes conciliam o antigo desenho melódico com as novas exigências de clareza e de verticalidade. Por outro lado, um dos grandes aspectos do pensamento escolástico, que haveria de constituir uma aquisição duradoura na organização do saber, consiste em reunir todos os elementos de conhecimento sobre um mesmo assunto em sumas e, em seguida, distribuí-los, classificando-os por ordem de importância decrescente em capítulos, subcapítulos, seções, subseções, etc. Esse princípio de clarificação dos dados aparece não somente nos textos, mas também na disposição visual destes nos manuscritos.
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Na arquitetura, o princípio da divisão dos elementos é identificável, por exemplo, na divisão dos suportes em pilares principais, colunetas maiores, colunetas menores — subdivisíveis, por sua vez — ou ainda na divisão dos mainés em perfis primários, secundários, terciários. Ora, na esfera da notação do ritmo musical, a divisão dos valores de duração em longas, breves, semibreves, mínimas, que surge na mesma época, corresponde a uma preocupação semelhante, manifesta um mesmo hábito mental. A escrita do moteto, por sua vez, apresenta semelhanças notáveis com o sistema de pensamento difundido nas escolas. Os filósofos escolásticos não apenas tentaram conciliar a razão com a fé, mas deram um passo com vistas ao que se chamou de "conciliação dos contrários". Abelardo, um século antes, havia percebido na Bíblia e nos textos dos Padres da Igreja — textos ditos de autoridade — um certo número de contradições internas que era importante resolver. Ao ataque dessas contradições, decidiram lançar-se os clérigos do século XIII, armando-se com o seguinte sistema de argumentação: exame da proposição, análise de seu contrário, conciliação conclusiva. Também aí, Panofsky soube perceber como esse habitus mental reproduz-se nas pesquisas dos arquitetos da época gótica. Ficaremos com um único exemplo, o da planta de uma igreja ideal proposta por Villard de Honnecourt em seu álbum de plantas e desenhos. A planta original, proposta por Honnecourt, é revista, após disputatio ("debate"), por dois outros arquitetos, e constatamos que, no tocante à parte do coro, foram "conciliadas" capelas quadradas — segundo o antigo modelo cisterciense — com seu "contrário", as capelas semicirculares góticas. Aqui é preciso lembrar do que disse Jean de Grouchy a propósito do moteto, destinado, segundo ele, a um público letrado (não disse nobre, como se teria dito anteriormente, mas letrado), ou seja, acostumado aos raciocínios escolásticos. De fato, o moteto, em sua elaboração, concilia a antiga voz tenor fitúrgica com uma voz "contra" essa voz tenor, à qual se pode acrescentar uma e até mesmo duas outras vozes. A utilização de três modos diferentes para as três partes soma, ao prazer da exposição tripartida das melodias, o da clara divisão do ritmo segundo três sistemas facilmente identificáveis, não mais à vista, mas à audição. Esse espírito escolástico do moteto fica bem evidenciado naquele que se intitula Bele Ysabelot [Bela Isabelinha], em que uma das vozes expõe uma queixa de amor, enquanto a segunda assume o papel do parceiro amoroso e a terceira comenta o que narram as duas outras. O plurilingüismo,finalmente— cuja freqüência considerável só se explica como uma forma de atender ao gosto desses letrados —, se, por um lado, dificulta a percepção das palavras, por outro, permite diferenciar as vozes diversas, ao mesmo tempo que concilia, pelo uso simultâneo do latim e do francês, a antiga e a nova cultura, o sagrado e o profano. Desse modo, escapa-se a Babel na ocasião mesma em que se poderia julgar que se a está construindo.
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Essa tensão entre o sagrado e o profano nada mais é, no fundo, que o reflexo das tensões que aparecem na sociedade medieval e que encontram, nas polifonias, a conciliação ideal de seus signos de contradição. Tensão entre o poder temporal e o do bispo, que tem sua sede na igreja catedral. Tensão entre uma cavalaria afeiçoada à alegria profana e aos combates, e uma igreja que condena sua frivolidade e sua busca de uma glória vã. Com os pobres e os fracos facilmente excluídos para fora dos muros, a burguesia em ascensão passa também por vivas tensões: de um lado, a tentação de uma felicidade terrestre e de um bem-estar que ela se sente autorizada a fruir em virtude do esforço com que se empenha em conquistá-los pelo trabalho; de outro, a exigência de pobreza e de partilha que vão pregando dominicanos efranciscanos,de que tão magnífico testemunho deu, no início do século XIII, um jovem e rico senhor que veio a tornar-se São Francisco de Assis. O que acontece em termos de espaço repete-se em termos de tempo. A generalização da medida do tempo no fim do século XIII e no século XIV constitui-se numa das mutações essenciais ao Ocidente, e não é por acaso que intervém no exato momento em que se difunde na música o sistema do compasso. Como tão bem o formulou Jacques Le Goff, o tempo de Deus vai ser substituído pelo tempo do mercador. A Igreja compreende o perigo. Ela protesta contra o fato de medir-se o que pertence exclusivamente a Deus, para toda a eternidade: o tempo, esse dom gratuito que Ele faz aos homens enquanto permanecem na Terra. Além disso, a Igreja compreende que logo se estabelecerá a relação entre tempo e dinheiro. Tempo do empréstimo com usura, relação entre o tempo de trabalho do operário e a obra que ele produz e que se compra. Ora, não é possível servir a Deus e ao dinheiro. Substituir a duração indeterminada dos melismas do cantochão por polifonias com tempo contado é introduzir, no templo de Deus, o tempo do mercador. Essa a razão pela qual os cistercienses e os dominicanos rechaçaram energicamente de seus ofícios as polifonias compassadas. Mas não há como voltar atrás. A relação, doravante, está estabelecida entre medida do tempo, valor do homem e valor do objeto. Tudo, agora, há de venderse, trocar-se: o trabalho do operário, que já não se faz humildemente ao ritmo do tempo litúrgico, o do artesão, e também o do professor de universidade. A ciência, fora do mosteiro, se paga. As obras de arte, elas também, são "avaliadas", envolvem negociações. Os monges, em seu anonimato desinteressado, deixam de ter o monopólio da arte sacra, e os cavaleiros já não compõem, eles próprios, as obras que idealizam seu modo de viver. Surge um novo rosto, o do artista pago e disputado por essa ou aquela corte, essa ou aquela capela. É o preciso momento em que a música, de ciência que era, passa a ser uma arte. Herdeira da Ars Antiqua [Arte antiga], aparece a Ars Nova [Arte nóva].
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A ARS NOVA E GUILLAUME DE MACHAUT
O, Guillaume, mondain dieu d'harmonie.
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EUSTACHE DESCHAMPS
A Ars Nova
"Artesão da antiga e da nova forja", tal se pretende Guillaume de Machaut, e assim se pode também definir o século XTV musical durante o quai se generaliza a prática de novos modos de escrita da música a partir de um material antigo. Os teóricos dão ênfase às novas técnicas que elaboram e que as denominações de seus tratados põem em destaque: Ars nove musice [Arte da nova música] de Jean de Murs, Ars Nova de Philippe de Vitry, e este último título terminará designando, por extensão, toda a música do século XTV. Embora retomem em larga escala as formas da música dos séculos precedentes, pretendem esses teóricos que tal música já pertence à Ars Antiqua, também dita Vetus ("velha","anterior"). São autores que devem a celebridade sobrenado a suas obras teóricas. Fato é que nenhuma obra nos resta de Jean de Murs e que apenas uma dezena de motetos do Roman de Fauvel [Romance de Fauvel] e do manuscrito de Ivrea podem ser atribuídos a Philippe de Vitry (1291-1361). Bispo de Meaux, mas também brimante poeta, amigo de Petrarca e dos primeiros humanistas reformadores (como
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[Ó Guillaume, mundano deus da harmonia.) (N. T.)
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Nicole d'Oresme), Philippe de Vitry adquiriu, graças a sua obra teórica, renome europeu. Dele, dizem os contemporâneos que era a "Flos et gemma cantorum" [Flor e jóia dos cantores], ou ainda a "Flos totius mundi musicorum' [Flor dos músicos de todo o mundo]. Seu tratado difundiu-se muito rapidamente por todas as universidades da Europa, até a de Praga. Na verdade, o essencial dos tratados da Ars Nova diz respeito à notação do ritmo. Não que Philippe de Vitry e seus contemporâneos tenham inventado um novo sistema, mas ratificaram e generalizaram os procedimentos existentes, conferindo-lhes maior precisão. Já no fim do século XIII, os velhos modos rítmicos pareciam em grande medida caducos, e, ao sistema ternário que consiste em dividir um valor em três (uma longa igual a três breves), veio acrescentar-se um modo de divisão dos valores binarios, que permitia cfividir essa mesma unidade em duas. Vê-se que o antigo simbolismo religioso do número três ficara esquecido e que as preocupações técnicas suplantavam a busca teológica. Daí por diante, os seis modos rítmicos ficaram reduzidos a dois: o modo perfeito (divisão em três) e o imperfeito (divisão em dois). Ou seja: quando a longa vale três breves, trabalha-se com o modo perfeito; quando ela vale dois breves, com o modo imperfeito; se a breve se divide em três semibreves, é o tempo perfeito; se está dividida em duas semibreves, o tempo imperfeito; finalmente, se a semibreve se divide em três mínimas, estamos diante de uma prolação maior, se em duas, diante de uma prolação menor. Eis as divisões e subdivisões da breve, que passaria a constituir, doravante, a unidade de medida rítmica. Tempo perfeito, prolação perfeita. Tempo perfeito, prolação imperfeita. Tempo imperfeito, prolação maior. Tempo imperfeito, prolação menor.
A Ais Nova e Guillaume de Machaut
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representou, do ponto de vista musical, se não do ponto de vista literário, a forma mais bem resolvida da música do século XIV, Os músicos concentraram seus esforços na busca de uma homogeneidade para as partes. Os empréstimos tomados sob a forma de centonização (introdução de segmentos de melodias preexistentes na melodia nova) desapareceram nas vozes superiores. O trabalho fundamental era feito em cima da voz tenor, à qual se deu uma organização rítmica, singularmente pelo processo da isorritmia. A grande contribuição da Ars Nova foi o moteto isorrítmico. O que era preciso era introduzir valores rítmicos na voz tenor, combinando assim melodia e ritmo. Um modelo rítmico — chamado Talea — foi escolhido, repetindo-se regularmente em toda a extensão da voz tenor. Podia acontecer de o número de notas da melodia não entrosar exatamente com as talea. Nesse caso, recorria-se a certos procedimentos, como retardar as entradas; também havia o recurso de diminuir os valores em fins de frases. Tal emprego de módulos preestabelecidos e repetidos no decorrer da obra faz pensar, de certo modo, no serialismo do século XX. Em todo caso, dois séculos antes do Concilio de Trento, a Igreja já se dava conta de que a música estava se tornando uma arte e já não era a ciência de dar suportes melódicos à Palavra da Verdade. Uma arte que iria proporcionar, no próprio seio da igreja, em plena celebração dos ofícios, prazeres intelectuais aliados aos prazeres dos sentidos, dispersando com isso a atenção dos fiéis e desviando-os dos mistérios divinos. O papa João XXII, que ignorava a isorritmia, mas que mesmo assim estava a par dos progressos recentes da técnica musical, escreveu, em sua decretal Docta Sanctorum Patrum (1324), algumas linhas que manifestam uma admirável compreensão desses fenômenos e que são de grande lucidez com relação a suas conseqüências: Certos discíplos da nova escola, enquanto dedicam toda a sua atenção a medir o tempo, estão empenhados em fazer as notas de uma nova maneira, preferem compor seus p r ó -
O tratado de Philippe de Vitry nomeia também a semi-minime (seminima), mas trata-se decerto de um acréscimo tardio, pois esse valor quase não era empregado antes do fim do século XTV" (uma mínima é divisível em duas seminimas). Para facilitar a distinção entre o ternário e o binário, os músicos empregavam tintas de cores diferentes, o preto para as notas perfeitas e o vermelho para as imperfeitas, mas, a partir de meados do século XTV, os sinais de valores vieram substituir esse procedimento. Felizes por terem à sua disposição um sistema coerente de organização dos ritmos, elegante e novo, os compositores se puseram a utilizá-lo com uma efervescência um tanto febril, com uma embriaguez intelectual que os faz escrever polifonias de rara complexidade. Toda a sua atenção haveria de dirigir-se, dali por diante, para a escrita do moteto, que se prestava às pesquisas intelectuais e que
prios cantos em lugar de cantar os antigos, dividem as peças eclesiásticas em semibreves e m í n i m a s ; estraçalham o canto com notas de curta duração, d e s p e d a ç a m as melodias com soluços, poluem-nas com discantes e chegam ao ponto de entulhá-las com vozes superiores em língua vulgar. Desconsideram, assim, os princípios do antifonário e do gradual, ignoram os tons que já n ã o mais distinguem, que mesmo confundem... Correm sem fazer uma pausa para repousar, inebriam os ouvidos em lugar de acalmá-los, m i mam por gestos o que fazem ouvir. Assim, a devoção que se deveria buscar é ridicularizada, e a lascívia, de que se deveria fugir, é exibida às escancaras.
Duas coleções de manuscritos merecem atenção: pertencente ao mesmo tempo à ArsAntiqua e à Ars Nova, o Roman de Fauvel (1314-1316), longo poema de Gervais du Bus, com acréscimos de Raoul Chaillou du Pestain, propõe-se como uma sátira aos vícios da Igreja e dos poderes temporais, simbolizados na personagem
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principal, Fauvel, um asno alegórico cujo nome é formado em acróstico com as iniciais de Flaterie ("adulação"), Avarice ("avareza"), Vilenie ("vilania"), Variété ("inconstância"), Envie ("inveja"), Lâcheté ("pusüanimidade"). Essa coleção compreende obras monódicas, mas também polifónicas, com motetos isorrítmicos, alguns dos quais atribuídos a Philippe de Vitry. De época mais tardia, o Codex Ivrea (ca. 1360), copiado no ambiente da corte papal de Avignon, comporta 37 motetos — dos quais, mais uma vez, alguns são atribuídos a Philippe de Vitry—, uma missa e peças profanas. Essa vem a ser a coleção mais representativa da Ars Nova, depois, evidentemente, da obra mais importante do século XTV — a de Guillaume de Machaut. Guillaume de Machaut (1300-1377) Muito se tem insistido em fazer de Machaut o último dos troveiros, sob o pretexto de que ele retomou algumas das formas líricas tão características destes, e também porque pôs em música uma parte de sua própria obra poética. É não reconhecer nele o homem dos novos tempos, é ignorar a força e o alcance de sua obra, ignorar também que Machaut teve perfeita consciência de ser o primeiro artista, no moderno sentido da palavra. Uma das constantes do espírito medieval é fundar a evolução do pensamento e das formas na memória do passado sem jamais renegálo. "Somos anões encarapitados nos ombros de gigantes", disse Bernard de Chartres no século XII. Machaut era um gigante encarapitado nos ombros de seus predecessores, "artesão" -— como ele próprio se autodefiniu — "da antiga e da nova forja". A dualidade manifesta-se, nesse espírito excepcional que é o de Machaut, também por outras formas. Foi ele o maior poeta francês de seu século e o primeiro grande compositor, gênio bifronte que une dois ofícios da mesma forma que sabe unir, de maneira coerente, a cultura sacra e a cultura profana — ele que, clérigo tonsurado, cônego da catedral de Reims, passou três quartas partes de sua vida a serviço dos mais notáveis príncipes do mundo. Nessa dualidade, a música profana soube fazer valer seus direitos. Em um texto fundamental que Guillaume de Machaut escreveu quando teve recuo suficiente para fazer uma estimativa de sua obra e, graças a isso, poder aperfeiçoá-la — texto a que deu o título de "Prologue" e que fez editar à frente de seus manuscritos, como uma espécie de arte poética e musical —, ele reivindica para a música essa dupla função, sagrada mas também profana, e isso é algo de inteiramente novo. Declara Machaut:
A Ars Nova e Guillaume de Machaut
...Elle fait toutes les caroles Par bours, par citez, par escoles.
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E emenda com: Où on fait l'office divin Peut-on penser chose plus digne Ne faire plus gracieux signe Comme d'essaucier Dieu et sa gloire..
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Muito embora a música religiosa continue a ser a mais estimável, verdade é que, pela primeira vez, a música profana era aceita e reconhecida por um clérigo nos seus efeitos benéficos sobre a alma humana. Fiel à tradição da música especulativa e metafísica dos séculos precedentes, Machaut abre-se, mesmo assim, às novas funções profanas da música e por aí se caracteriza, com efeito, como o homem da antiga e da nova forja, colocando-se deliberadamente sob o duplo signo de Davi e de Orfeu. De Davi, cantor de Deus, cujos salmos, acompanhados com a harpa, "de Dieu apaisoient l'ire" [de Deus apaziguavam a ira] — e de Orfeu, filho de Apoio, esposo de Eurídice, que tinha o poder de transformar o mundo terrestre. Orpheüs mist hors Erudice D'enfer, la cointe, la faitice, Par sa harpe et par son dous chant. Harpoit si très joliement Et si chantoit si doucement Que les grands arbres s'abaissoient Et les rivières retournoient Pour li oír et escouter; ce sont miracles apertes Que Musique fait. 3
O músico consegue não apenas reunir o divino e o humano, como fez Davi, mas também, agora, como fez Orfeu, transformar o mundo: tornou-se "o mundano deus da harmonia", de que fala Eustache Deschamps. Essa tomada de consciên-
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Et Musique est une science Qui veut qu'on vie, chante et danse Cure n'a de mélancolie...
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[E a música é uma ciência / Que quer que vivamos, cantemos e dancemos / Da melancolia não quer saber... / Ela faz todas as "carolas" [danças de roda] / Nos burgos, nas cidades, nas escolas.] (N. T.) [Onde se faz o ofício divino / Pode-se lá imaginar coisa mais digna / Fazer sinal mais gracioso / Que exalçar Deus e sua glória.] (N. T.) [Orfeu retira Eurídice / do inferno, encanta-a, enfeitiça-a / com sua harpa e com seu doce canto. / Harpejava sim tão lindamente / E sim tão docemente cantava / que as grandes árvores se abaixavam / E os rios voltavam / Para o ouvir e escutar; / ( ) são milagres abertos / que faz a Música.] (N. T.)
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cia dos poderes sobrenaturais concedidos ao artista está reproduzida nas duas magníficas miniaturas que ornamentam o Prólogo, cuja execução foi supervisionada pelo próprio Machaut. São os primeiros retratos de artista de que se tem notícia, e neles vamos nos deter um instante, pois esclarecem o sentido da obra em profundidade. Seu autor é o Maître aux Boqueteaux [mestre dos bosquetes], um dos principais iluminadores da época de Carlos V. O artista é posto em cena numa paisagem que já nada tem de simbólica, mas que antes dá testemunho de sua inserção no mundo. Primeiro quadro: Guillaume, clérigo tonsurado, recebe uma princesa coroada, Natureza, que lhe faz dom de três de seus filhos: Senso ("inteligência"), Retórica e Música. O retrato reproduz traços pessoais — nota-se o estrabismo — de um homem que conversa em pé de igualdade com a filha de Deus (segundo a definição de Santo Tomás) e com os filhos desta, graças aos quais vai engendrar-se a obra. Guillaume decerto não deixa de ser um clérigo tonsurado, mas saiu do anonimato e recebe de Deus dons pessoais, manifestados solenemente por essa visita. Antiga e nova forja. Segundo quadro: o clérigo, sentado em sua morada diante do livro que escreve, é surpreendido pela visita de Amor que, por sua vez, lhe dá três de seus filhos: Doce Pensar, Prazer e Esperança. Não se trata do pequeno deus luxurioso, cúmplice de Eva, mas de um príncipe coroado, portador de asas com as cores do arco-íris, qual um mensageiro de Deus, emanação de Deus, motor da obra por vir: "L'Amor che muove il sole e altre stelle", diz Dante, o amor-iluminação, que faz se moverem o sol e as outras estrelas, vem tocar com suas asas a morada do artista. Este se curva, voltado para o visitante, em sinal de humildade, de submissão medieval. Entre ambos, há uma porta, o espaço vazio da obra por nascer, a distância entre o homem e Deus, que sons e palavras vão tentar preencher. E há o silêncio. É uma anunciação, a que faz o anjo-amor ao artista. Façamos agora o cómputo dos personagens: Natureza e seus três filhos representam um valor longo subdividido em três, ou seja, uma perfeição. Amor e seus três filhos formam uma outra perfeição. Natureza e Amor constituem um conjunto binário — uma imperfeição, portanto, mas, com o artista, somam três, logo, uma Perfeição. Os jogos matemáticos da escrita musical estão aquifiguradosv i sualmente. Graças a esses dois visitantes — feminino-masculino —, a obra é gerada. Nasce o artista, Guillaume. Guillaume de Machaut era originário do povoado de Machault, na Champagne, situado a cinqüenta quilômetros de Châlons-sur-Marne e a quarenta quilômetros de Reims. Um véu de obscuridade estende-se sobre seus estudos. Tê-los-á feito em Reims? Em Paris? O primeiro moteto de Machaut que é possível datar, Bone pastor Guillerme — Bone pastor qui pastores, foi composto em 1324 para a eleição do
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arcebispo de Reims, Guillaume de Trie. Na verdade, o clérigo compositor passou a maior parte de sua vida a serviço dos príncipes mais notáveis da Europa: desde 1323, ele está com o ilustre João de Luxemburgo, depois rei da Boêmia, que veio a morrer em 1346 combatendo cego, a cavalo, sua batalha de Crécy. Tendo seguido esse príncipe em todas as suas campanhas, Machaut percorreu a Polônia, a Sibéria, a Lituânia, a Boêmia, a Itália, passando de quando em quando, sempre com João de Luxemburgo, curtos períodos na França. A partir de 1333, um canonicato em Reims e uma prebenda, obtidos graças a seu protetor, vieram assegurar-lhe uma relativa independência. Com a morte do rei da Boêmia, Machaut entrou para o serviço de Bonne, filha deste, a qual morreria da peste pouco tempo depois. Para evitar a contaminação por uma doença que dizimou a metade da população da Europa, Machaut ficou um ano inteiro fechado dentro de sua casa em Reims, depois do que passou sucessivamente ao serviço de Carlos II, o Mau, rei de Navarra, de Carlos da Normandia, que veio a se tornar o rei Carlos V de França em 1364, de Pedro I de Lusignan, rei de Chipre, do duque de Berry e de Amadeu de Savóia. Terminou seus dias retirado em seu canonicato. O artista sexagenário tinha então um caso com uma admiradora muito jovem, Péronne d'Armentières, que desejava aprender com o mestre a arte dos versos e da composição. O Voir dz'f (1361-1365) — "Dito da verdade" — narra essas trocas intelecuais e amorosas sob a forma de um romance epistolar, o primeiro da literatura francesa. A obra de Machaut é tripla — narrativa, poética e musical. Como narrador, foi ele o autor de urna série de "Dits" [Ditos] dedicados a seus protetores: o Jugement du roi de Bohème [Julgamento do rei da Boêmia, antes de 1346], o Remède de fortune [Remédio de Fortuna, antes de 1357], o Dit de la fontaine amoureuse [Dzf da fonte amorosa, 1361] etc., em que se mostra como conselheiro e confidente dos principes. Por outro lado, Guillaume de Machaut tem em sua bagagem literária cerca de 250 poemas líricos sem música notada: baladas, rondós, virelais, complaintes (queixumes, lamentações), lais, chants royaux (cantos reais). Machaut se entretém nesses trabalhos, como num jogo, com todo tipo de dificuldades formais. Não resta dúvida de que seu ouvido de músico e seu hábito de lidar com as proporções matemáticas serviram para dar-lhe um senso inigualado da aliança dos versos pares e ímpares e do casamento das sonoridades. É poesia doce e transparente que conduz ao jardim fechado do eu, à iluminação pelo amor. A obra musical de Machaut é a um só tempo profana e religiosa. Todas as formas líricas são utilizadas para a música profana: 40 baladas, 20 rondós, 32 virelais ou chansons balladées ("canções em forma de balada"), 18 motetos (sendo dois mistos em latim e em francês), 18 lais; a eles devem-se acrescentar as peças inseridas no Remède de fortune, a saber: um lai, uma complainte, um chant royal, uma baladela, uma balada, um virelai e um rondó.
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Quanto à parte religiosa, está no essencial representada pelo monumento que é a Messe Nostre-Dame [Missa de Nossa Senhora] a que é preciso acrescentar o Hoquet David e seis motetos em latim. O período mais intenso da atividade criadora de Machaut situa-se entre 1349 e 1360; mas, até o fim da vida, à sombra de sua catedral de Reims, ele continuou a compor peças líricas profanas. Uma observação que vale para o conjunto de sua obra: Machaut não inventou nenhuma forma — o que ele fez foi levar à perfeição os gêneros já existentes. OS MOTETOS O compositor tinha predileção por essa forma que oferece ricas possibilidades polifónicas. Deixou 23 motetos, dos quais dezenove a três vozes. Seis são religiosos e inteiramente em latim. Dois têm um duplum em latim e um triplum em francês. Três têm uma voz tenor com texto francês (Fin cuer doulz [Fino e doce coração] n° 11, Pourquoi me bat mes maris [Por que meu marido me bate], lassette n° 16, e Je ne suis mie certein [Não tenho a menor certeza] n° 20). Machaut inovou sem deixar de permanecer fiel a certas modalidades de escrita. Inovou na medida em que introduziu uma quarta parte, a voz contratenor: o moteto não comportava em geral mais que três. Essa parte contratenor está intimamente ligada à parte tenor. Machaut serviu-se largamente da isorritmia, com o sistema das talea na voz tenor, com diminuição dos valores, mas não em excesso. Empregava também a dragma (retomada da mesma melodia com ritmo diferente). Às vezes, as necessidades da isorritmia faziam com que ele recorresse à entrada sucessiva das diferentes vozes, como, por exemplo, no duo do belíssimo moteto Felix Virgo. Fazia ainda preceder certas peças de um introitus, espécie de prelúdio instrumental cujo uso fora instaurado por Philippe de Vitry. Os cálculos rigorosos da isorritmia fascinavam Machaut, que se divertia com multiplicar as dificuldades, escrevendo uma parte contratenor semelhante à parte tenor, só que detrás para diante (n°5),como o fez para o cantuses, tenor do rondó cujo incipit, de resto, alude ao procedimento: "Mafinest mon commencement/Et mon commencement ma fin" [Meu fim é meu começo / E meu começo meu fim]. Claramente se vê que o compositor empenhava-se em seguir o texto literário que escrevera previamente, pelo menos para as vozes superiores — o triplum com freqüência tem escrita silábica—, com valores longos marcando o final das frases. Machaut permaneceu tradicional em suafidelidadeà notação preta e vermelha para m^tinguir ritmo ternário e ritmo binário, embora já existissem os sinais de compasso. Além desta, pode-se-lhe notar outra marca de relativo conservadorismo: as duas partes de cantus são geralmente escritas em tempo perfeito ou imperfeito e prolação maior, a prolação menor só aparecendo em três motetos. No que concerne à execução desses métodos, tudo faz crer que fossem introduzidos instrumentos para a parte tenor. Por exemplo, a voz tenor de Felix Virgo, que
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se apóia nas palavras do Salve Regina, com suas longas notas sustentadas, devia ser executada por um órgão. Em geral, as vozes tenor e contratenor dos motetos profanos podiam ser executadas por sacabuxas, vielas e rabeques. OUTRAS FORMAS LÍRICAS: O RONDÓ Nas festas das cortes, nos concertos e nos banquetes, o rondó e a balada suplantavam o moteto. Nos rondós, Machaut demonstra, com insuperada mestria, sua dupla inteligência da forma poética e da forma musical. O poeta-músico, na maturidade de sua arte, de tal modo articula a adequação da forma e do sentido que, a bem dizer, o sentido cria a forma e a forma o sentido. É o que acontece, por exemplo, nesta peça desprovida de notação musical, em que a forma de rosácea e espelho do rondó (A B a A a b A) é escolhida para descrever o encontro de duas íris, olhos nos olhos, o olhar da bem-amada no olhar do bem-amado — a forma espelho usada para figurar o espelho da contemplação dos dois olhares: De regarder et d'estre regardez Viennent fi bien de l'amoureuse vie Et pour ce, amant n'amie, ne vous gardez De regarder et d'estre regardez. Car en regart amoureux est gardez Don de merci, quant dame est bien servie De regarder et d'estre regardez Viennent l i bien de l'amoureuse vie.
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A mútua adequação entre forma e sentido também é exemplar, como se viu, no rondó Ma fin est mon commencement, ele é musicalmente escrito em movimento retrógrado, cuidando o sentido das palavras tão somente de descrever a forma utilizada. Virtuosismo poético e virtuosismo musical produziram obras-primas como o rondó a quatro vozes Rose, Hz, printemps, verdure [Rosa, lírio, primavera, verdor], obra da maturidade. O cantus é ornamentado muitas vezes com melismas, o que dá maior amplitude a essa forma pouco extensa. Ao inverso de como procedia na escrita de um moteto, Machaut compôs, eventualmente, em seus rondós, as partes tenor e contratenor depois do cantus, como comenta com Péronne d'Armentières no Voir dit. A facilidade com que ele criou obras tão refinadas, enquanto Péronne [De olhar e ser olhado / Vêm todos os bens da vida amorosa. / Amante e amiga, não se ponham em guarda / De olhar e ser olhado. / No olhar amoroso está guardada / A graça da misericórdia, quando a dama é bem servida. / De olhar e ser olhado / Vêm todos os bens da amorosa vida.] (N. T.)
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aprendia os textos lendo por cirna dos seus ombros à medida que o amigo os ia fixando no pergaminho, não deixa de ser surpreendente. ABALADA Machaut manifesta nítida predileção pela balada, seja a balada desprovida de notação musical (de que deixou quase duzentas), seja aquela musicada (22 a três vozes, 16 a duas vozes, 4 a quatro vozes e 1 monódica). Sem mais qualquer traço de canção para dançar, esse poema de amor passava a compor-se, dessa época em diante, de três estrofes. A estrutura de cada estrofe é a seguinte: I ab ab aberto / fechado
+
II + 1 refrão de 1 ou 2 versos
O compositor utilizou na balada todos os recursos do moteto: isorritmia, cânone, combinação de todas as espécies de ritmos ternários e binarios, síncopes. Além disso, com base no modelo do moteto, Machaut compôs baladas duplas e triplas; por exemplo, a balada Ne quier veoir, que faz parte do Voir dit, combinada com a balada Quant Theseus [Quando Teseu], de Thomas Paien, ou ainda a balada a três textos San cuer m'en vois [Sem coração me vou]—Amis, ãolens [Amigos, dolente] — Dame, par vous [Dama, por vós], com seu cânone em uníssono. O Remède de fortune chega a propor uma quádrupla balada: En amer a douce vie, toda em escrita sincopada. São estas peças cujas estrofes são cantadas simultaneamente e que só têm em comum o refrão. Achado curioso, que não teria prosseguimento. OUTROS GÊNEROS LÍRICOS O Remède de fortune propõe também, entre as peças líricas nele inseridas por Machaut, um bom exemplo de chant royal, que vai ainda mais longe que a balada, com cinco estrofes de idêntico esquema métrico, tendo as mesmas rimas e o mesmo esquema melódico, com envoi e sem refrão — gênero difícil, que veio a funcionar como fórmula milagrosa para vencer concursos de poesia e de música no século XV. Como a balada e o rondó, o virelai é uma antiga forma de canção para dançar, com a seguinte estrutura: A
ba
A
refrão
estrofe
refrão
Machaut trata o virelai de maneira mais simples, lembrando-se do caráter popularizante do gênero, que, no século XV, servirá a canções que se aproximam do folclore.
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O Roman de Fauvel apresentava a Machaut modelos de lais com doze estrofes. Ele retomou essa forma (18 vezes), propondo um belo exemplo de lai monódico no Remède de fortune. A forma do lai foi fixada por Machaut em doze estrofes, cada uma delas composta de semi-estrofes, a segunda metade retomando as rimas e a melodia da primeira, todas diferentes em seu esquema e em sua música, com exceção da décima segunda, que reproduz a da primeira, por vezes com um intervalo de quarta ou de quinta. Machaut sentiu-se seduzido justamente por essa variedade, que lhe permitia inventar incessante e livremente, misturar versos pares com ímpares, silabismos e melismas em ornamentos entrelaçados de uma desenvoltura sem igual. Num pólo oposto, a complainte propõe 36 estrofes monódicas sobre uma mesma melodia. Dela, Guillaume de Machaut soube tirar o melhor partido na complainte que começa com o verso "Tel rit au main [matin] qui au soir pleure" [Esse que de manhã ri à noite chora], incluída no Remède de fortune, e que evoca, em sua monotonia e na curva de suas melodias, o movimento da roda da Fortuna, numa bem-sucedida tentativa de figuração. A música religiosa de Machaut compreende, como dissemos, a Messe Nostre Dame, Hoquet David e seis motetos religiosos. Não deixa de ser surpreendente que, ao fim da vida, retirado em seu canonicato, o compositor não tenha voltado a escrever música sacra. As circunstâncias da composição e a data de execução da Messe Nostre Dame permanecem desconhecidas para nós. A ausência de cantochão mariano parece excluir a possibilidade de que ela tenha sido composta por ocasião de uma festa da Virgem, a despeito de seu título (que só figura num único manuscrito), e não há nada que assinale sua destinação a uma festa fitúrgica. (A hipótese da circunstância da sagração do rei Carlos V em Reims está de há muito afastada.) A datação da missa escrita por Machaut também não é fácil de precisar. A opinião de Apel, favorável a uma data mais recuada, com base no argumento de que a missa está escrita em compassos curtos, não pode ser levada em conta. Em contrapartida, é digno de consideração o ponto de vista que sustenta Ursula Günther: a obra seria da maturidade de Machaut, por estar escrita em quatro partes, pela isorritmia recorrente, pela constante utilização do tempo imperfeito e da prolação menor. A data aproximativa de 1364 parece provável. Mas é possível também admitir, em função do aspecto arcaico presente no Gloria e no Credo, que essa missa não tenha sido, de início, concebida como um todo articulado. As missas da época, as Messe ditas de Tournai, de Sorbonne, de Besançon, etc. propõem modelos polifónicos a duas e a três vozes, mas isolados uns dos outros e discordantes. Machaut foi o primeiro a ter composto uma missa completa, inclusive com o Ite missa est, e que é, além do mais, uma missa a quatro vozes, o que constitui outra inovação.
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E, mais uma vez, Machaut estava sendo o artesão da antiga e da nova forja. O Gloria e o Credo estão escritos em estilo de conductus, com um silabismo vertical que, firmado nas quatro vozes e com absoluta segurança de escrita, assume grandeza monumental. Os longos Amen de ambas essas partes apresentam, no entanto, uma isorritmia muito complexa, que contrasta com o silabismo precedente. Em quatro diferentes trechos, a composição introduz realces verbais por efeito de um retardamento nos valores das notas: ao pronunciarem-se as palavras Jesu Christe, no Gloria, que se revestem assim de um fervor particular; nas palavras ex Maria Virgine ("de Maria Virgem"), do Credo, o que indicaria uma devoção particular à "Nostre Damé"; no Homo factus est ("foi feito homem" — onde, depois de assim ter feito o rei São Luís, a assistência se punha de joelhos); e ao se fazerem ouvir as palavras Et in terra pax ("e paz na Terra") — na interpretação de muitos, uma aspiração à paz em pleno desenrolar da Guerra dos Cem Anos. As vozes tenor do Kyrie, do Sanctus e do Agnus Dei são tomadas ao cantochão e são escritas, assim como a voz contratenor e também, em certos momentos, as vozes superiores, no estilo do moteto isorrítmico. O compositor concentrou suas pesquisas principalmente nas talea, em suas justas proporções matemáticas, mesmo que elas não se encaixassem no desenho das melodias preexistentes, assim como na manipulação dos valores das notas para obter silêncios e transições. Tudo brilhantemente enfeitado com os hoquets (em latim hochettusr. frase interrompida bruscamente numa das vozes e que passa a uma das outras) então em moda. Não é difícil compreender que essas pesquisas intelectuais variadas, inseridas num conjunto de grande coerência, possam ter interessado tanto Stravinski quando este escrevia sua própria missa. O leitor que nos perdoe esses saltos no tempo, mas a partitura do Hoquet David, escrita sobre um Alleluia-Nativitas [Aleluia Natividade] de Pérotin, que Machaut talvez tenha desejado completar, com sua voz tenor isorrítmica e suas duas vozes superiores em hoquet, nas quais células de uma passam para a outra, trazem irresistivelmente ao pensamento, por sua economia de meios e sua clareza, a escrita de Anton Webern. A aliança da arte antiga com a arte nova, a clareza das estruturas combinada com a elegância formal, a suavidade das melodias, que se casa com a flexibilidade dos versos enquanto os ritmos novos dão às polifonias toda a sua força de coesão, fazem com que Guillaume de Machaut apareça em seu século como "Vescarboucle qui reluist et esclarcist l'obscure nuit" ("o carbúnculo que reluz e clareia a obscura noite").
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A i4rs Nova na Itália II cantar novo e'l pianger delli augelli...
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PETRARCA
O termo Ars Nova, que designa as formas musicais da Itália do Trecento, poderia fazer-nos pensar numa influência da escrita francesa sobre a que se desenvolvia na península e em qualquer parentesco entre as músicas dos dois países. Não há nada disso: o movimento italiano caracteriza-se por sua independência, afirmada na adoção de uma notação própria, admirável por sua precisão e cujos princípios se acham expostos no Pomerium artis musicae [Limites da arte da música], de Marchetto de Pádua (1321-1326). Se é fato que os papas Bonifácio VIII, em Roma, e Clemente VI, em Avignon, exerceram o mais brilhante mecenato no domínio das artes visuais, estimulando o gênio de um Giotto ou de um Matteo de Viterbo, por outro, foram os príncipes das grandes cidades do norte da Itália que atraíram os músicos e os protegeram: as cortes dos Delia Scala, em Pádua e em Verona; dos Scaligari, também em Verona; dos Visconti, em Milão; e, enfim — e sobretudo — dos notáveis de Florença. Por isso mesmo, fazia-se música quase exclusivamente profana, escrita segundo o apelo das circunstâncias, o mais das vezes para convidar aos prazeres ou cantar-lhes a nostalgia. Subalterno mas familiar dos príncipes, o compositor os inicia numa arte que entra no sistema de educação do homem bem nascido e faz parte do cotidiano de sua vida social — disso dá-nos testemunho o Decamerone de Boccaccio (1355) e o Paradiso degli Alberti de Giovanni da Prato (aproximadamente 1390). Estranhas às complicações e às pesquisas formais da Ars Nova francesa, essas composições caracterizam-se, dir-se-ia, por uma inclinação acentuada para a improvisação melódica. Ao inverso da polifonia francesa que se elaborou a partir da voz tenor, a italiana organizava as vozes com base na voz superior, em que se inscreviam as palavras, cujos autores podiam ser Boccaccio, Petrarca, Sachetti. Três gêneros são cultivados na Itália: o Madrigal, a Caccia (caça) e a Ballata. O madrigal — Francesco da Barberino usa o termo Matricale, que significava escrito na língua materna (vernácula), mas também se diz Mandriale ou Madrialle — é uma composição formada pela seqüência de dois ou três terzetti (tercetos, grupos de três versos) após os quais vem um ritornello com um ou, o mais das vezes, dois versos, freqüente mas não obrigatório, ou seja: a ab ou a a ab. São polifonias a duas vozes, às vezes a três, cuja origem deve ser buscada mais provavelmente na monodia profana do que no conductus, com melismas em fim de frases. A temática dos madrigais é nobre e elevada.
[O canto novo e o pranto dos pássaros.] (N. T.)
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A Caccia (que tem por pendant a. Chasse francesa), mais rara, é uma composição em cânone, para as duas vozes superiores, enquanto a voz tenor faz um contraponto não canónico e sem texto, composto de duas seções, a segunda funcionando como ritornello no estilo do madrigal. A perseguição nas duas vozes superiores presta-se ao tema da caça, mas esse gênero é marcado também pela busca do instante vivo, nos pregões do mercado, nas cenas de pesca, com uma espantosa liberdade de invenção. A Ballata, enfim, em suas origens canção para dançar, na verdade aproxima-se do virelai por sua estrutura, com uma ripresa seguida de uma estrofe cuja segunda parte retoma a música da ripresa, com repetição ou não desta após as estrofes: A bba A bba A bba A — e, na prática, A bba bba bba A. Maestro Piero, Jacopo da Bologna e Giovanni da Firenze (ou da Cascia), a serviço dos príncipes do norte da Itália, escreveram principalmente madrigais e caccie. As composições de Jacopo da Bologna são as mais variadas (madrigais a três vozes), e a ele se deve a primeira transposição para música de um soneto de Petrarca: Non al so amante. Francesco Landim (1325-1397), organista cego, foi o compositor mais importante da Florença do século XIV e o que deixou obra mais abundante (onze madrigais, duas caccie, 141 baladas). Dentro da mais pura tradição italiana, mas também influenciado pela arte de Guillaume de Machaut, seu estilo reveste-se de doçura e elegância. Landim lamentava que a música popular ganhasse terreno em relação ao refinamento da que era composta para os príncipes. O mesmo apego à tradição manifestava-se em Nicolo da Perugia (poemas de Franco Sachetti) e em Bartholino da Padova. Andrea da Firenze ou Andrea dei Servi introduz efeitos dramáticos em suas obras, como na balada Cosa crudel, que deixa pressentir o estilo recitativo do fim do século XTV, ao passo que Paolo Tenorista faz a síntese do passado e do presente, do italiano e do francês, em peças não desprovidas de sutileza e sofisticação. Em verdade, nesse fim de século, a tendência para a ars subtilior ("arte mais sutil") parece irresistível.
SEGUNDA PARTE
OS SÉCULOS X V E X V I
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A MÚSICA NO SÉCULO X V
Per viam subtilitatis EGIDIUS D E M U R I N O
Machaut estava morto havia 33 anos quando o século começou. Para o celebrar, seu discípulo Andrieu optou por exprimir-se sob forma pluritextual, como se fosse esta a técnica que devesse ser considerada a mais promissora na obra de seu mestre. Essa forma, herdada do moteto — do qual constituía a própria essência — e cuja moda entrara em decadência depois de Machaut, transfere-se a outros gêneros profanos, para cujo enriquecimento iria contribuir: este é um dos aspectos daquela acumulação de complexidades que invadem a música da época. E a percepção da obraficavaprejudicada? Pouco importa. A obra de arte não tem porfinalidadeser percebida por um público, mas ser vivida por aqueles que a produzem, com todas as suas imbricações intelectuais e estéticas, com todas as suas exigências racionais: sutis relações semânticas ou alegóricas, por vezes mesmo antinómicas. Muitas provas podem ser encontradas no Manuscrito de Chantilly (Museu Condé), o mais representativo desta arte corretamente chamada de ars subtilior. Não é difícil apreciar, neste rondó pluritextual de Jehan Vaillant, a terna cumplicidade das três vozes, a relação amorosa — poder-se-ia mesmo dizer — dos três textos simultâneos, em que se enlaçam pedidos e promessas:
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Segunda parte: os séculos XV e XVI
Cantus: Tres doulz amis, tout ce que proumis t'ay Est tout certain, ne t'en iray raillant; Mais sans fausser entièrement tendray, Tres doulz amis, tout ce que proumis t'ay: C'est que toudis loyalment t'àmeray Pour ce que t'es en tout noumé vaillant. Tres doulz amis, tout ce que proumis t'ay Est tout certain, ne t'en iray faillant. 1
Segundo Cantus: Ma dame, ce que vous m'avez proumis A vous amer et désirer m'amort, C'est que de vous seray noumé amis, Madame, ce que vous m'avez proumis Si vous supli qu'en oubli ne soye mis, Car pour vray, trop avancerait mã mort.
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A música no século XV
Essa forma de contraponto literário coloca bem em evidência certo gosto por uma riqueza exuberante, em que se identificava certamente um critério de qualidade da obra de arte, mesmo quando lhe sacrificava a compreensão. À exigência de percepção múltipla, podia-se acrescentar — como é o caso nesta peça — um novo empenho em fazer ressurgir, em uma mesma voz (mesmo ao custo de ignorar a habitual especificidade das duas seções do rondó ou do virelai), motivos melódicos já ouvidos, conferindo-lhes, porém, uma contextualização diferente nas outras vozes. Tal procedimento, que a geração de Dufay não irá preservar, concorria de maneira surpreendentemente eficaz para a unificação interna da obra. Todavia, foram os requintes rítmicos que, em todas as épocas, atraíram preferencialmente a atenção dos historiadores: o emprego de valores cada vez mais breves, com grafia bem amarrada, traduzindo de maneira eloqüente a velocidade da voz superior, e principalmente inesperadas superposições de ritmos conflitantes. Por vezes a complexidade é tal, que a realização prática só poderia ser aleatória. W. Apel, um dos mais eminentes estudiosos da música dessa época, limitouse a reproduzir, abaixo da pauta, os valores iniciais, de modo a fazer aparecer o ritmo autêntico, para além da contagem numérica, indispensável segundo nossas exigências.
J. J I j ; j
Ma dame, ce que vous m'avez proumis A vous amer et désirer m'amort.
; r iJ
i j J:
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-4- ~4-^—i-
Tenor (?): Cent mille fois, ma douce dame chière, De vostre humble response vous mercy
Philipactus da Casería
Coume celle que j'ay plus qu'aultre chière, Cent mille fois, ma douce dame chière. Vueillés dont fayre a mon cuer bone chière Quar chascun jour se met en vo mercy. Cent mille fois, ma douce dame chière, De vostre humble response vous mercy. 1
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[Mui doce amigo tudo o que te hei prometido / É tudo seguro, e não te falharei; / E, sem faltar, integralmente manterei, / Mui doce amigo, tudo o que te hei prometido: / Pois que sempre lealmente te amarei / Pelo valor que em tudo te é reconhecido. / Mui doce amigo, tudo o que te hei prometido / É tudo seguro, e não te falharei.] (N. T.) [Minha dama, o que me haveis prometido / A vos amar e desejar me tem comprometido, / Pois, se de vós sou nomeado amigo, / Senhora, o que me tendes prometido, / Sim, vos suplico, não caia no olvido, / Pois tal minha morte apressaria, caso houvesse acontecido. / Minha dama, o que me prometestes / A vos amar e desejar me compromete.] (N. T.) [Cem mil vezes, doce e cara dama, / De vossa humilde resposta vos agradeço / Como aquela, mais que outra qualquer, que me é querida, / Cem mil vezes, minha doce e cara dama. / Dai, portanto, a meu coração boa guarida, / Que, cada dia, submeto ao vosso apreço. / Cem mil vezes, minha doce e cara dama, / De vossa humilde resposta vos agradeço.] (N. T.)
4-4- 9--t
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- Balada: De ma douleur
Entre os compositores cujos nomes nos foram transmitidos pelos manuscritos e cuja atividade — a acreditar-se nas fontes — parece ter tido como cenário as cortes principescas do sul da França, o reino de Aragão e a ilha de Chipre (a corte dos Lusignan era um importante centro de cultura francesa), nenhum deles destaca-se com relação aos outros. Pierre de Molins, Solage, Suzoy, Grimache, Vaillant, Hasprois, Cuvefier, Senleches, Cesaris, Carmen e Tapissier são os representantes dessa arte que, segundo Ch. Van den Borren, perde-se nas "deliqüescências de uma arteflamejante"para as quais a única saída seria um "retorno à simplicidade para sair desse impasse". As premissas do Renascimento "Fiaminghi, Francesi, Oltramontan? na Itália: "Questi sono i veri maestri delia muszca"(Guicciardini). Deixemos a esse italiano do século XVI a tarefa de reconhecer retrospectivamente uma evidência contra a qual ninguém se ergue: o Quattrocento constitui "uma espécie de deserto que os historiadores da música sempre consideraram com
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Segunda parte: os séculos XV e XVI
surpresa e reserva" (N. Bridgman). Depois de um Trecento musicalmente muito ativo — sobretudo na Toscana — e bastante original, graças a sua vocação para uma certa complacência na expressão melódica, a Itália pós-Landini (morto em 1397) parece nutrir certos complexos em relação às realizações francesas. Lança-se até o fundo em uma produção mais intelectual, menos espontânea (muitas vezes sobre textos franceses), até o ponto de perder aquilo que constituía sua especificidade e fundir-se na estética dos que, na corte papal de Avignon, foram os últimos cultores da ars subtilior. A outros caberá retomar o bastão e não haveriam de ser os italianos, mas aqueles estrangeiros que, naquele início de século, atraídos pelo chapéu pontificai tornado agora novamente romano, ganham o proscênio, sobretudo aqueles músicos vindos do norte, de regiões poupadas pelo conflito franco-inglês, como o principado de Liège e o Cambrésis. De fato, são originários de Liège um certo Johannes Ciconia (morto em 1411 ou 1412), em cuja obra são claramente perceptíveis os elementos de uma linguagem nova, bem como todo aquele grupo de compositores notáveis que constituem o ambiente do jovem Dufay: Arnold de Lantins (o primeiro que, em sua missa Verbum incarnatum, parece haver lançado as bases da missa unitária) e seu irmão Hugo, Jehan Brassart, Johannes Franchois (de Gembloux), Bertram Feragut, este último proveniente de Avignon. Uma arte em que o intelectualismo e o maneirismo cedem vez à naturalidade e à graça está presente nos motetos desses compositores que quase já não recorrem aos procedimentos de isorritmia e que, sem ser verdadeiramente fitúrgicos, foram escritos sobre textos latinos e eram destinados a cerimônias (como o faustoso e ainda bitextual Ut te per omnes/Ingens alumnus Paduae, de J. Ciconia, e o terno moteto mariano Tota pulchra es, árnica mea, de A. de Lantins, em que as duas vozes superiores alternam suas invocações em um belo efeito de eco); o mesmo ocorre nas canções a três vozes, por vezes tão graciosas (Pour resjoïr la compagnie [Para alegrar a companhia], de H . de Lantins), por vezes dotadas de intensa expressão (Or voy je bien queje morray mártir [Agora vejo bem que morrerei mártir], ou Se neprenés de moi pitié [Se não tiverdes de mim piedade], de A. de Lantins).
"A contenção inglesa" De hábito, aos músicos ingleses se reconhecem os méritos de haverem feito intervir na linguagem musical uma suavidade toda nova e de terem sido os primeiros a organizar, de modo unitário, algumas das partes do ordinário da missa— Gloria, Credo e Sanctus, por exemplo. Sem querer subtrair-lhes essa dupla paternidade, é preciso pelo menos matizar esta afirmação, que vem de longa data. Já na década de 1440, Martin Le Franc, poeta da corte de Borgonha, afirmava, em seu Champion des dames [Campeão das damas], a superioridade da arte de além-Mancha e a influência decisiva desta sobre a arte do continente. Em vista do que se disse acima, pode-se desde já constatar que, se os ingleses fizeram alguma coisa pela
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elaboração da missa unitária, os liegenses da Itália nãoficaramatrás. Muito pelo contrário. Sem dúvida, produziu-se nesse domínio, como em outros, uma eclosão simultânea, sem que haja necessidade de justificá-la recorrendo a um jogo qualquer de influências ou interferências. Decerto é preciso considerar como mais autêntico o impacto que puderam ter sobre os músicos franceses os novos agregados sonoros em que se consagram terças e sextas, reputadas, desde o início da polifonia, consonâncias de transição, ao passo que os ingleses beneficiaram-se, nesse domínio, de um longo hábito que Martin Le Franc — que decididamente não é insensível ao fato musical — chama de "nova prática de fazer frisque concordance" (isto é, graciosa concordância). Essa prática é mais antiga do que pensa o próprio Martin Le Franc: basta lembrar a maneira rudimentar de enriquecimento espacial da melodia chamada gymel praticada desde o século XII (cantusgemellus, canto duplo na terça ou na sexta inferior), e cujas características podem ser reencontradas no fabordão (faux-bordon), que os contemporâneos de Dufay tanto admiravam. Mesmo que seja preciso descontar o que há de propaganda no que diz o poeta — que provavelmente tinha interesse em exaltar o mérito dos aliados ingleses e em denegrir a rudeza das quartas e quintas praticadas pelos "franceses de França" —, é bastante verossímil que a superioridade dos ingleses, naquele início do século, possa ter levado Martin Le Franc a adotar o ponto de vista do mais forte, até mesmo porque a atividade artística florescia com mais força na corte de Borgonha do que na da França... ou na de Bourges! A presença dos ingleses na França não se limitava a uma ocupação militar, e a presença, em solo francês, de Dunstable, músico do duque de Bedford, não pôde deixar de ser sentida como uma contribuição do mais alto interesse. Podemos ainda mais facilmente admitir o que afirma Martin Le Franc na medida em que a música inglesa — mais bem conhecida desde que as obras contidas no vasto Manuscrito de Old Hall (escritas provavelmente por volta de 1420, em vida do rei inglês Henrique V, o vencedor da batalha de Azincourt) foram postas em partitura — parece ter experimentado, desde o final do século XIV, uma vitalidade muito nova, e também porque, de uma massa considerável de nomes de compositores, destacam-se aqueles dos dois maiores expoentes da época: John Dunstable, morto em 1453, e cuja carreira, em vista das circunstâncias, foi parcialmente francesa; e Leonel Power, morto em 1445, que parece nunca ter deixado Canterbury. Devem-se a um ou ao outro — pois não é fácil distinguir as produções de ambos — os conjuntos unitários a três vozes que são a missa Alma Redemptoris, atribuída a Leonel, ou a missa Rex seculorum, de Dunstable, em que se encontram reagrupadas as outras partes do ordinarium missae (ordinário da missa) que não o Kyrie — não incluído na liturgia inglesa —, pela intermediação de um cantus firmus único. Mais ainda do que nas missas, contudo, é nos motetos de Dunstable que aparece, com toda a evidência, a preocupação com uma eufonía muito nova, produzida pelo uso sustentado de acordes encadeados de sexta, que parecem descartar
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um pouco o interesse que os continentais demonstravam pelo jogo das linhas: a impressão que prevalece é — curiosamente já — a de uma harmonização. Julguese, desse ponto de vista, o belíssimo moteto Quant pulchra es, em que o conjunto da polifonia aceita desenrolar-se com base na declamação da voz superior. Ultrapassado o acimirável desabrochar desses cinqüenta anos, a música inglesa volta à insularidade e abandona o proscênio. Depois de Dunstable, só se pode citar Walter Frye e Robert Morton (morto em 1475), os quais, por sinal, serviram "à muito nobre, resplandescente e opulenta casa dos Borgonheses, cujo renome hoje corre os sete climas" (Jean Molinet); Morton chegou mesmo a ser professor de contraponto do conde de Charoláis, o futuro duque de Borgonha, conhecido como Carlos, o Temerário. O ESTADO BORGONHÊS E SEU IMPULSO CULTURAL [A existência e o progresso do ducado de Borgonha estão, com efeito, entre os dados mais importantes, sem os quais seria incompreensível a história, não apenas política, mas também cultural, do século XV. Sob o reinado dos quatro duques de Borgonha pertencentes à dinastia dos Valois — Filipe, o Audaz, de 1363 a 1404; João Sem Medo, de 1404 a 1419; Filipe, o Bom, de 1419 a 1467, e Carlos, o Temerário, de 1467 a 1477 —, constituiu-se um Estado poderoso que, pela hábil combinação de casamentos, alianças e anexações, reuniu as duas Borgonhas (a ducal e a condal, que é o Franco Condado) ao que os historiadores tendem atualmente a chamar de "os antigos Países Baixos" (atualmente Holanda, Bélgica, Luxemburgo e norte da França até a Somme — menos alguns enclaves, como Utrecht, Cambrai ou Liège, que estavam sob sua esfera de influência). O "Grão-Ducado do Ocidente", como era então, por vezes, designado, acabaria por assegurar a ligação entre os seus dois conjuntos de territórios, ao ocupar o sul da Alsácia e da Lorena. Diante de um Império Germânico a que faltava a mais elementar coesão, de uma França e de uma Inglaterra tornadas exangües pela Guerra dos Cem Anos (e depois, no que diz respeito à Inglaterra, pela Guerra das Rosas), e de uma Espanha que ainda procurava encontrar-se, o Grão-Ducado do Ocidente regurgitava de recursos industriais, comerciais e agrícolas, beneficiando-se sobretudo das suas terras setentrionais, onde se desenvolvia a atividade tão enérgica quanto inteligente de uma burguesia que se igualava à da Itália dividida, ou mesmo a ultrapassava. Não há nada de surpreendente no fato de o Grão-Ducado borgonhês desempenhar, para artistas e músicos, o duplo papel de um centro de atração e de um viveiro de gênios e talentos de primeira ordem. O dinamismo e o poder de irradiação eram tão acentuados que, mesmo depois do deplorável desastre em que vieram a naufragar as grandes ambições do Temerário e da anexação, pelo rei francês Luís XI, da Borgonha propriamente dita, "os antigos Países Baixos", de então em diante súditos'dos Habsburgo, iriam conservar sua espantosa vitalidade humana, não cessando de produzir músicos e pintores extraordinários durante quase todo o século XVI.
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Falou-se amiúde, na história da música, da "escola borgonhesa", ou dos "francoflamengos": denominações bastante impróprias, às quais não se recorrerá neste livro. É bem mais importante lembrar que, na idade de ouro dos "antigos Países Baixos", que vai, grosso modo, da subida ao trono de Filipe, o Bom até a abdicação de Carlos V de Habsburgo (perto de um século e meio), os gênios musicais são precisamente contemporâneos aos da pintura, desde Van Eyck (só um pouco mais velho que Dufay e Binchois), Van der Weyden (contemporâneo destes) e Memling (contemporâneo de Ockeghem), a Hieronymus Bosch (contemporâneo de Josquin Des Prés), PieterBruegel (pouco mais velho que Orlando ãeLassus). Antes falava-se tolamente de "flamengos primitivos", quando inúmeros deles eram valões, renanos ou brabantinos do norte. Em vez de perder tempo com etiquetas nacionalistas (sem sentido nos séculos XV e XVI), mais vale maravilhar-se com a pléiade de músicos que nasceram no território ou nos arredores do Grão-Ducado do Ocidente para logo formarem novos pontos de convergência em toda a Europa, desempenhando um papel capital no Renascimento musical da própria Itália. Para pôr termo, em tom mais humorístico, à irritante confusão das terminologias geográficas, lembremos que, ainda por volta de 1600, o Rei Lear opunha "os vinhedos da França" ao "leite" da "aquática Borgonha". É evidente que, para Shakespeare, bom vinho, na França, só o Bordelais, e que a Borgonha evocava mais as desembocaduras do Escaut e do Meuse que os vinhedos de Vougeot ou de Chambertin. A geografia histórica por vezes pode parecer ridícula. J.M.] Guillaume Dufay (ca. 1400-1474) Nascido em Cambrai e ali formado como mestre de capela da catedral, primeiro por Nicole Malin e depois por Richard de Loqueville, e finalmente cônego de Cambrai, Guillaume Dufay revelar-se-ia o genial herdeiro das diversas influências mencionadas antes. Como outros clérigos de Cambrai, passou uma parte de sua carreira na Italia. Os contatos que pôde fazer durante o Concilio de Constância (1417-1418), de que participou como integrante do séquito de Pierre d'Ailly, bispo de Cambrai, foram sem dúvida determinantes: não é impossível que tenha encontrado ali os Malatesta, a serviço dos quais iria permanecer durante vários anos. Por volta de 1420, teve início sua estada intermitente de cerca de 25 anos na Itália e na Savóia, durante a qual teve postos em várias cortes principescas, entre as quais a capela pontificial, de 1428 a 1433 e de 1435 a 1437, antes de voltar a Cambrai, onde exerceu suas atividades até a morte, em 27 de novembro de 1474. Sem que haja provas de haver pertencido à brilhante corte de Filipe, o Bom, é certo que Dufay manteve relações com ela, mesmo que a título honorífico, pois existe um documento qualificando-o como cantor do duque de Borgonha e outro como cappelanus. A produção de Dufay abrange todos os gêneros de maneira equilibrada e é bem mais importante até mesmo que a do primeiro compositor cujos contornos aca-
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bamos de traçar, Guillaume de Machaut. As oito ou nove missas, os motetos isorrítmicos, as composições religiosas funcionais escritas no estilo de cantilena e finalmente as canções constituem o rundo a partir do qual pôde proliferar o desenvolvimento posterior. AS MISSAS A constituição de um conjunto coerente de peças para formar ciclos é a grande questão do século. Mesmo que tenham existido, no século XIV, alguns conjuntos, dos quais a Messe de Machaut é o exemplo mais famoso, não se pode dizer que o hábito de considerar as peças do ordinário da missa como um todo estivesse definitivamente estabelecido. Ainda prevaleceria por muito tempo o antigo costume de deixar ao mestre de capela a liberdade de escolher a seu gosto esse ou aquele Kyrie, esse ou aquele Sanctus, sem que se considerasse necessário haver, entre essas peças — que permaneciam separadas no tempo —, uma ligação orgânica. É preciso não esquecer que as dezoito missas gregorianas são apenas grupamentos compósitos e aparentemente fortuitos: o mais das vezes, não existem nem retornos temáticos, nem relação de tonalidade. Nada a estranhar, portanto, no fato de que Dufay, como a imensa maioria de seus contemporâneos, tenha composto um número nem um pouco desprezível de fragmentos (37, no total, ou seja, onze Kyrie, quatorze Gloria, quatro Credo, quatro Sanctus, quatro Agnus Dei). Mas não está nisso o espírito essencial da produção deste compositor; por essa razão, pensou-se serem essas peças inevitavelmente anteriores aos conjuntos cíclicos. Hoje em dia, tal classificação simplista não é mais vista como defensável: a evolução rumo à organização dos ciclos não é simples nem súbita. A idéia de ciclo só iria impor-se na época em que Dufay voltou a Cambrai. Chegou a hora de precisar o que se deve entender pelos termos cíclico e unitário. A partir do momento em que se encontram reunidas ordenadamente em um mesmo manuscrito as cinco ou seis peças musicais do ordinário da missa, há fundamento para se falar em ciclo: é neste sentido que a Messe de Tournai, bastante conhecida atualmente, é uma missa cíclica. Dir-se-á que é unitária a missa na qual o compositor tem o cuidado de juntar as diferentes seções por meio de um elemento comum: naquela época, este elemento foi prioritariamente o cantus firmus, cantado pela voz do tenor, elemento melódico litúrgico ou profano que irá servir de estrutura a cada peça e que dará nome à missa. Sem cantus firmus a missa não tem nome — Sine nomine — e mais freqüentemente será apenas cíclica, a menos que o compositor encontre meios de unificá-la através de um ou outro detalhe, de um ou outro artifício. O que há na produção de Dufay para que lhe seja atribuído o grande mérito de ser um dos criadores da missa unitária? Chegaram a nós de oito a dez missas (há dúvidas com relação a pelo menos duas delas). O exame do conjunto das missas de Dufay faz surgir um encaminhamento de grande interesse. Na missa Sine nomine
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para três vozes, incontestavelmente escrita no início da carreira de Dufay, talvez por volta de 1425, ele ainda não se descarta verdadeiramente da maneira de compor características de Avignon no final do século XIV, com suas angulosidades rítmicas, a declamação rápida do texto e os pequenos conducti instrumentais, bastante convencionais desde a época de Machaut, no final de certos versículos do Gloria e do Credo. O único elemento visível de busca de unidade é a progressão descendente de todos os motivos melódicos iniciais das seções, e mesmo da segunda parte do Gloria, em que a semelhança com o conductus instrumental pelo qual se inicia a balada Resvelliés vous etfaites chière lye—escrita para celebrar, no dia 18 de junho de 1423, a escolha de "bela e boa dama" por Charle gentil, don dit de Malateste ("o gentil Carlos dito de Malatesta") — é evidente demais para ser fortuita. A segunda missa em termos cronológicos, a missa Sancti Jacobi, de 1427, é por mais de um motivo famosa, pois dá provas de um esforço de busca sem precedentes, mas — reconheçamos — sem futuro. Dufay trata polifónicamente as peças do "próprio" do ofício de São Tiago, e o faz tão bem que ali encontramos o Introït, o Aleluia, o Ofertorium e a Communio, além das demais seções que iriam tornar-se habituais. A única exceção é o Gradual. Por honestidade intelectual, é preciso contudo assinalar que apenas um único manuscrito compreende o todo e que talvez se trate de um acaso de transmissão: nos outros manuscritos, figuram somente as peças do or
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que ela tenha origem inglesa. Acrescentemos, a título de confirmação, que esta é a única das obras atribuídas a Dufay que figura — sem o Kyrie, é claro — em um manuscrito inglês. Passemos às quatro missas maiores e, em primeiro lugar, às duas escritas em cantusfirmusprofano, a missa Se la face ay pale [Se tenho a face pálida] e a missa L'Homme armé [O homem armado], que podem ser ambas situadas nos anos 1450, época em que Dufay freqüentava a corte da Savóia. A primeira é construída sobre a voz de tenor da balada atípica (pois não comporta a repetição inicial dos dois primeiros versos característica da balada) que lhe dá título, a qual teve um sucesso tão grande que dela encontramos duas versões instrumentais em uma tablatura da época. A partir dessa melodia de feitura muito límpida, claramente organizada em três seções principais, e que se presta tanto à tradução do lirismo cortês quanto à prece, Dufay elabora uma missa de aspecto sereno, de atmosfera elegíaca, cujo caráter unitário impõe-se à audição. Quer isto dizer que o cantusfirmusentoado pelo tenor é perceptível a este ponto? Certamente essa melodia muito longa, longa demais para aparecer mtegralmente em cada peça, do ponto de vista estilístico é bem homogênea; mas a ausência de repetições não favorece a impressão unitária (ainda mais que, tradicionalmente, o cantusfirmusé expresso em valores longos), uma vez que Dufay—ao que parece, seu iniciador — recorre ao curioso procedimento que os musicólogos alemães — os primeiros a observá-lo — chamam de Kopfmotiv, "motivo de cabeça": cada seção ou, às vezes, cada subseção da missa começa por um mesmo elemento melódico no superius, espécie de sinal de reconhecimento que acentua de modo sensível a pertinência a um conjunto, podendo esse elemento receber, como é aqui o caso, um contraponto idêntico a cada apresentação da voz, situada imediatamente abaixo do cantus. Cabe assinalar finalmente a hábil organização rítmica do cantusfirmusnas duas peças mais longas, o Gloria e o Credo, que sempre exigem algum arranjo: o cânon (ou seja, a regra) prescreve três enunciados do cantusfirmus(Tenor ter dicitur), a primeira vez em valores triplos (primo quaelibetfiguracrescit in triplo), a segunda em valores duplos (secundo in duplo), a terceira nos valores de referência, idênticos aos usados na balada (tertio utjacet). Esse modo de proceder modera, na progressão, uma aceleração escrita do mais belo efeito, ao mesmo tempo em que faz desaparecer pouco a pouco a disparidade entre valores rítmicos utilizados pelo cantusfirmuse as outras vozes. A técnica de composição da missa L'Homme armé não é essencialmente diversa. Mais uma vez, encontramos um cantusfirmusprofano — mas com um recorte mais interessante, pois a terceira seção é apenas o da capo da primeira — e um Kopfmotiv que reaparece, no cantus, no início das cinco seções. Esse motivo é mais útil à medida que o cantusfirmus,para se manifestar, espera que duas ou três vozes tenham esboçado o seu discurso — e isso às vezes pode demorar um longo tempo. Este é o caso notadamente do Credo, em que o cantusfirmussó aparece no trigésimo primeiro compasso do tenor. É evidente que, neste caso, o texto integral do
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Credo não poderia ser enunciado por essa voz de tenor. Seria o caso de dar-lhe um texto parcelado ou de fazê-la tocar por um mstrumento? A dúvida é possível. Certo mesmo é que, menos presente o tempo todo, o cantusfirmusperde a importância como estrutura, em proveito de maior iniciativa das vozes superiores. A regra, contudo, não foi abandonada: pode-se mesmo dizer que ela é reforçada diante dos enigmáticos cânones espalhados por essa missa. Tomemos só um deles, o do terceiro Agnus Dei, em que a fórmula "Cancer (caranguejo) eatplenus sed redeat médius" deixa entender que o tema inicialmente enunciado em valores plenos, de forma retrógada, deve ser retomado, em seguida, in directum, em valores diminuídos da metade, maneira de renovar o interesse melódico conservando a pregnância do sistema. É claro que, hoje em dia, explica-se mal essa intrusão do profano no sagrado, e pode-se sentir certo desconforto diante de alguns títulos de missas. Além do fato de que esta ou aquela circunstância particular (diz-se que L'Homme armé poderia ser uma referência a Carlos o Temerário, que freqüentemente guerreava e só pensava em feitos de armas) possam ter contribuído para os títulos, não se deve esquecer que a "vida estava de tal modo saturada de religião que corria-se o risco de perder de vista a qualquer momento a distinção entre o espiritual e o temporal... Passava-se constantemente da terminologia religiosa à terminologia profana" (J. Huizinga). Os dois outros grandes polípticos deixados por Dufay são ambos edificados a partir de cantusfirmireligiosos e inspirados pela devoção à Virgem, que retomava vigor naquela segunda metade do século XV. A missa Ecce ancilla domini, copiada em 1463 nos livros de canto da'catedral de Cambrai, permanece fiel à estética de conjunto da missa unitária. Também ela apresenta uma artística alternância entre os tutti e os bicinia ou tricinia, alternância esta habitualmente explorada em proveito de uma estrutura equilibrada, que fazia claramente transparecer o empenho do compositor em dispor agradáveis oposições de planos sonoros. Isto porque a sonoridade parece ter sido aqui a preocupação essencial de Dufay. Várias provas disso podem ser invocadas: essa missa é a única em que a voz superior, escrita em clave de dó segundo, é muito grave (o sol dois é freqüente e o lá três é, com algumas exceções, a nota mais elevada), ficando o conjunto, por isso mesmo, compacto; é também a única das missas em que as palavras dos dois cantusfirmiestão regularmente dispostas sob as notas, em cada uma de suas intervenções, recriando, de maneira incontestável, aquela pluritextualidade consubstanciai ao antigo moteto e acrescentando ao contraponto musical um contraponto literário que não deixa de ter incidência sobre o efeito sonoro; finalmente, é a única das missas de Dufay em que uma das peças, o Kyrie, termina de maneira estranha, prematuramente harmônica: cada uma das semibreves está, em cada qual das quatro vozes que evoluem de maneira perfeitamente homorrítmica, dominada por um punctus coronatus (ponto de órgão), o que acentua ainda mais a impressão de encadeamento de acordes.
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O modo de compor de Dufay renova-se ainda em sua última missa, ela também sobre cantus firmus litúrgico, ela também dedicada à Virgem, a missa Ave, Regina coelorum. A propósito dessa missa, como das duas precedentes, falou-se de possível influência exercida pela jovem geração, a de Ockeghem, sobre Dufay, que envelhecia (pensa-se que essa missa pode ter sido composta em 1472, dois anos antes, portanto, da morte do mestre, e por ocasião da consagração da catedral de Cambrai). Não há testemunhos a esse respeito. Quando se observa a preocupação de renovação constante de que Dufay sempre deu provas, é lícito pensar que ele pôde encontrar em si mesmo a invenção necessária para não plagiar sem ter que pedir emprestado a outros. Essa missa distingue-se das precedentes por uma busca ainda mais pronunciada daquela unidade então procurada. Talvez levado a isso pela extensão excepcional do cantusfirmusescolhido — a antífona mariana Ave regina, que contém nada menos do que cinco incisos e que evidentemente só pode assegurar uma unidade estrutural e intelectualmente satisfatória —, Dufay imagina estender o sistema do Kopfmotiv não mais a uma só voz, o contratenor, mas ao conjunto das quatro vozes: e o faz tão bem que é possível falar, com relação a essa missa, de um núcleo inicial de nove perfeições (nove compassos ternários que representam a duração de nove breves perfectae), que será reencontrado, sem a menor variante, no início de cada uma das seções, sinal de reconhecimento evidentemente eficaz para soldar o todo, mesmo que ainda não se possa falar de utilização de temas: são muito raras as semelhanças entre os motivos para que se possa ser levado a crer que Dufay tenha pensado nisso. Essa coerência suplementar será obra da geração seguinte, que fará desse Kopfmotiv um elemento temático suscetível, senão de desenvolvimento, pelo menos de reutilização, em geral parafraseada. Certos escritos imprudentes, da pena de autores que esquecem amiúde de mencionar os documentos, tendem a fazer crer que essa missa estaria de tal modo apoiada no moteto do mesmo nome que já se poderia taxá-la de missa-paródia. Ora, esse tipo de missa, que se há de generalizar no século XVI, mas da qual já se tem exemplos desde a época de Ockeghem, repousa sobre todo um conjunto de repetições, não apenas de um mesmo cantus firmus—como é o caso aqui—, mas também de elementos melódicos ou harmônicos tomados de empréstimo ao modelo de referência — o que não é o caso aqui. Certos termos do moteto que são reencontrados na missa, contudo, poderiam ter levado Dufay, nem que fosse por ser mais fácil, a conceder-lhes um tratamento idêntico: mas os in excelsis dos dois Osanna não têm nada a ver com o do moteto. Para os diferentes miserere do Gloria e do Agnus Dei, vale o mesmo, com exceção de um deles, que assume um comportamento de citação: o miserere nobis do segundo Agnus Dei, a três vozes, nada mais é que a reprodução exata, nota por nota, do Miserere supplicandi Dufay, primeiro tropo de interpolação que figura no início da segunda parte do moteto. Parece, pois, totalmente inoportuno falar, nesse caso, de missa-paródia.
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Uma das particularidades mais surpreendentes dessa missa diz respeito ao Kyrie, a três vezes tripla invocação destinada, no introito do sacrificio, a implorar a misericórdia divina. Na maior parte das vezes, o ordinário da missa, seja ele monódico, em cantus planus, ou polifónico, compreende três instâncias: um primeiro Kyrie, o Christe, e uma terceira instância, nova ou idêntica à primeira, para o retorno do Kyrie. É preciso repetir três vezes cada uma dessas três instâncias, ou devese intercalar, nas polifonias, seções em cantus planus . A dúvida é legítima e já fora suscitada pela Messe de Machaut. Os compositores raramente ergueram o véu que oculta suas intenções. Cada qual à sua maneira empenhou-se em propor uma solução. Na missa L'Homme armé a situação não é clara o bastante para que se possam tirar conclusões a respeito. Na missa Ecce ancilla, no entanto, Dufay elabora uma articulação tão notável, que merece que nos debrucemos sobre ela, com¬ parando-a com a da missa Ave Regina. Interrupções simultâneas de todas as vozes só se produzem no final do Kyrie e no final do Christe. O compositor, contudo, faz claramente aparecer três novos momentos dentro de cada uma dessas triplas invocações. O Kyrie articula-se assim: 7
1. "Kyrie eleison": bicínio seguido de tutti por adjunção do primeiro cantus firmus. 2. "Kyrie eleison": novo bicínio das duas vozes superiores. 3. "Kyrie eleison": entrada simultânea das quatro vozes do tutti, entrando então a continuação do cantus firmus. O "Christe eleison" a três vozes apresenta-se de modo totalmente diferente: sucedem-se dois bicínios, de início do cantus e do contra, depois do contra e da voz inferior; finalmente há um tricinium. O segundo Kyrie eleison também compreende três momentos facilmente perceptíveis: 1. "Kyrie eleison": tutti que comporta, na voz tenor, o início do segundo cantus firmus. 2. "Kyrie eleison": bicínio. 3. "Kyrie eleison": tutti compreendendo, na voz tenor, o final do segundo cantus firmus. Uma estrutura tão elaborada não é, decerto, obra do acaso. E a solução totalmente diferente adotada no Kyrie da missa Ave Regina permite afirmar que, se é inegável a necessidade de se organizar a missa como um todo, na obra de Dufay parece que essa preocupação é ainda mais manifesta no Kyrie — e isso é lógico, porque nenhuma interrupção no tempo é de se prever aqui. Produz-se neste caso uma organização bastante nova e sutil, que a posteridade não chegará a conservar. Para as nove seções, são propostas sete polifonias diferentes, embora esse Kyrie compreenda simples repetições:
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"Kyrie eleison": tutti com primeiro inciso do cf. (cantus firmus). "Kyrie eleison": tutti com segundo inciso do cf. "Kyrie eleison": repetição do Kyrie 1. "Christe eleison": tutti com o terceiro inciso do cf. "Christe eleison": tricinium com duas vozes em cânone estrito, ou, caso se prefira, bicínio. "Christe eleison": repetição do Christe 4. "Kyrie eleison": tutti com o quarto inciso do cf. "Kyrie eleison": Bicínio, ao qual é possível acrescentar uma terceira voz: " Concordons si placet". "Kyrie eleison": tutti com o quinto e último inciso do cf.
ou o muito extático Alma redemptoris mater, a três vozes, em que mais uma vez se exprime a tendência mariana do compositor; eram, enfim, motetos de forma livre, que anunciavam, de modo mais evidente ainda, o que a forma iria tornar-se na época de Josquin Des Prés. Parece que Dufay não escreveu um único dos seus quatorze motetos isorrítmicos depois de 1446. Quer isso dizer que o moteto-cantilena situar-se-ia, no tempo, depois dos motetos isorrítmicos? Parece que não, pois precisamente a antífona Alma redemptoris mater, que acabamos de citar, foi composta em Roma, nos anos 1430-1433. Mas é preciso reconhecer que o apego que Dufay demonstrava pela canção, em que o papel da voz superius era primordial, deve tê-lo levado a voltarse para um estilo de moteto em que a noção de melodia encontrava mais facilmente seu lugar.
Raras vezes tal prodigalidade de meios foi oferecida pelos compositores em toda a historia da polifonia: prova, se provas são necessárias, das possibilidades intactas de criatividade neste homem que já envelhecia, mas que era genial, e com o qual a nova geração deveria ter tido aulas. Cumpre fmalmente mencionar, nesta missa, os múltiplos exemplos de evolução da escrita a três e quatro vozes rumo a uma assimilação mais perfeita, bem como os casos, cada vez mais numerosos, de imitações entre duas ou mesmo três vozes (Christe 4). Finalmente, para corroborar a observação feita sobre o término original do Kyrie da missa Ecce ancilla, é preciso assinalar a identidade dos Amen, muito breves, do Gloria e do Credo, que se apresentam, como no Kyrie citado, sob a forma de acordes — tríades completas —, cada qual dominado por um punctus coronatus, os contratenores mVidindo-se para fazer aparecer a terceira.
Isso não significa que os motetos isorrítmicos sejam obras menores, bem ao contrário. São vastas arquiteturas, de construção a mais erudita, em que se exprimem mais claramente as capacidades de organizador daquele que concebe. Para criar um dos mais representativos motetos desse tipo, Nuper rosarumflores,escrito em 1436 para a consagração de Santa Maria dei Fiore, em Florença, Dufay começou por tratar isorritmicamente a melodia do introito da consagração de uma igreja, Terribilis est locus iste; depois, quatro vezes seguidas ele enuncia esse cantus firmus, renovando, a cada vez, sua apresentação: 3/2,2/2,2/4 e, enfim, 3/4, enquanto as duas vozes superiores evocam o donativo de uma rosa de ouro, símbolo da Virgem, presente do papa Eugênio IV. É um verdadeiro requinte composicional o que essas relações numéricas estabelecem, uma vez que refletem as proporções da cúpula edificada por Brunelleschi. Percebe-se nesse procedimento toda a complexidade dessa forma que fizera as delícias do século precedente. Menção muito particular é devida ao moteto de forma livre Ave Regina coelorum, o mesmo que já evocamos a propósito da missa de mesmo nome. Sabemos, pelo testamento que deixou, que Dufay havia pedido que executassem este moteto no momento em que ele entrasse em agonia, o que explica o acréscimo, ao texto da antífona, de frases de tropo que personalizam a prece:
1. 2. 3. 4. 5. 6. 7. 8. 9.
OS MOTETOS Ao lado do "cantus magnus" que é a missa, o moteto, seja qual for o favor de que gozava como forma que voltara a se tornar, senão litúrgica, pelo menos religiosa e festiva, aparece como um "cantus mediocris", para retomar o termo do teórico Johannes Tinctoris. De fato, na época de Dufay, o termo moteto englobava realidades musicais que muito poucas coisas tinham em comum: de um lado, o moteto à antiga, a duas, três ou mesmo quatro vozes, construído sobre um tenor isorrítmico, em que as preocupações de organização racional superavam a espontaneidade da expressão, e em que se perpetuava a pluritextuahdade, que era o próprio fundamento da forma moteto nos séculos XIII e XIV; de outro lado, um moteto de ambição mais modesta, sempre ligado à Hturgia, um moteto que era chamado moteto-cantilena, em que o canto tomado de empréstimo, executado pela voz superior, era, pode-se dizer, harmonizado, acompanhado quase passo a passo, evenmalmente em fabordão, por duas vozes inferiores que não atrapalham a percepção da voz superior. Eram esses últimos hinos, seqüências, salmos, magnificats, cuja versão poMfônica, assim obtida, destinava-se a alternar com o canto tradicional: Vexilla regis prodeunt, em que Dufay recorre a uma técnica próxima à do fabordão,
Ave, Regina coelorum, Ave, domina angelorum, Miserere tui labentis Dufay Ne peccatorum mat in ignem fervorum. "Tem piedade de teu pobre Dufay, que se vai", diz o tropo enunciado por três das vozes, enquanto a voz do tenor prossegue imperturbavelmente o louvor da Virgem Maria... "para que seja aberta à sua fraqueza a porta do céu". Obra tocante, mas também obra de maturidade, escrita em 1464, período em que Dufay dava provas da maior das maestrias no emprego de todos os recursos da escrita; obra bem digna, certamente, de acompanhá-lo em seus últimos instantes.
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AS CANÇÕES No momento em que Dufay abordava a canção, começava a ser menos usual a balada, que o século XIV havia cultivado com paixão como uma forma nobre no domínio profano. No Manuscrito Oxford Canonici 213, nossa principal fonte de informações para o período, os rondós evidentemente prevalecem, e os virelais são pouco numerosos. Acaso de transmissão ou reflexo de uma modificação do gosto? Em geral, opta-se pela segunda hipótese, de vez que, na obra mais considerável que chegou até nossos dias, a de Dufay, o rondó tem a parte do leão: mais ou menos 60 em cerca de 85 peças. Produção multiforme, de uma enorme variedade de inspirações em que se exprimem todos os sentimentos, do mais profundo ao mais leve (Par droit je puis bien complaindre et gémir [Por direito posso queixar-me e gemer], para cuja expressão não é demais uma fuga duorum temporum entre as vozes superiores, mas também Ce jour de Van voudrayjoye mener [Neste dia de ano novo queria ter alegria]), da melancolia à mais louca jovialidade (Adieu m'amour, adieu majoye [Adeus meu amor, adeus minha alegria], de uma plasticidade melancólica bem próxima à de Ockeghem, mas também Hé, compaignons, resvelonsnous [Ei companheiros, despertemos]), da expressão artificial do desejo amoroso à sinceridade mais tocante (Donnez Yassault à lafortresse [Tomai de assalto a fortaleza] ou Navré je suis d'un dart penétratif [Pendo fui por um dardo penetrante], em que se reencontra a linguagem figurada da lírica cortês, tão apreciada pelos admiradores do Roman de la rose, mas também Pour l'amour de ma doulce amye [Pelo amor de minha doce amada]). Até Dufay, a canção não recebera expressão tão profundamente humana. Para atingir essa finalidade, Dufay voltou deliberadamente as costas, praticamente desde o início de sua carreira, àqueles requintes excessivos que a ars subtilior havia praticado. Raras são as canções como Belle, que vous ay ie mesfait [Bela, que eu vos tenha feito mal], em que se encontram superpostos ritmos conflitantes, e aquelas peças cuja execução exige a compreensão de cânones enigmáticos, como Entre vous, gentils amoureux [Entre vós, gentis amantes] , onde a voz tenor é deduzida da voz superius (Iste rondellus de sefacit tenorem), mas deve começar somente depois de duas pausas (fugando duo têmpora) e a uma distância de três tetra-acordes disjuntivos (et accipiendo in tridiezeugmenois)\ O mais das vezes, a impressão da maior facilidade (mesmo nos casos raros de pluralidade de textos, como em Resvelons nous, amoureux /Allons en bien tos au may [Despertemos, amantes/Logo estaremos em maio], em que o texto da canção exprime-se por sobre um duplo convite — em cânone na quinta — a gozar o mês de maio) exala dessas pequenas obras de moldura simples, de aspecto amável, por vezes popular, em que cada verso, dotado de uma melodia, é amiúde separado do seguinte por um ritornelo instrumental. Nunca as palavras se repetem, e a forma fixa é respeitada sem o menor constrangimento aparente. Com estrutura idêntica (A B a A a b A B), os rondós podem ser quadras ou quintas (A = três versos,
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B = dois versos) e, mais raramente, sextas. Como em qualquer canção com estrofes, a melodia de um verso deve adaptar-se a um outro verso, sem que haja preocupação com a conveniência entre o motivo musical e a idéia expressa. Embora sejam os mais numerosos, os rondós não nos podem fazer esquecer a dezena de baladas, todas a três vozes, de expressão antes grave, tratando de temas menos levianos, e às vezes compostas por ocasião de acontecimentos importantes, como Resvellies vous et faites chiere lye, escrita em 1423, para o casamento de "Charle gentil c'on dit de Malateste" ("do gentil, Carlos, dito de Malatesta"), ou ainda C'est bien raison de devoir essaucies [Há boa razão para prestar devoções], de 1433, que celebra a paz em Ferrara. Composta habitualmente de três estrofes idênticas, em que três diferentes e sucessivos pensamentos são desenvolvidos até um mesmo verso refrão que fecha cada estrofe, a balada pode compreender um envoi. Musicalmente, o primeiro elemento (A), em geral dois versos, é repetido pelos dois versos seguintes (A); em seguida, vem um elemento mais longo (B), que segue o verso refrão. Contudo, a balada mais célebre de Dufay, a que se encontra no maior número de manuscritos — e da qual há dois arranjos para cravo na famosa tablatura de órgão dos anos 1470, dita Buxheimer Orgelbuch [Livro de órgão Buxheimer] — é paradoxalmente atípica e não segue esse desenvolvimento, no sentido de que não apresenta repetição musical: ela é durchkomponiert, como dizem os musicólogos alemães. Se la face aypale, la cause est amer... et tant m'est amer amer ("Se a face é pálida, a causa é amarga/amar... tanto amar me é amargo"), diz o texto dessa balada rica de equívocos, cheia de trocaclilhos, vinda diretamente daqueles retóricos que assombravam a corte de Borgonha. O final é bastante original, apresenta-nos uma pequena coda (ritornelo instrumental ou vocalise sobre a última sílaba) em que as vozes trocam entre elas o motivo de fanfarra que haveria de ser tão bem explorado na missa do mesmo nome. Duas outras baladas merecem ser mencionadas: J'ay mis mon coeur et ma pensée [Pus meu coração e meu pensamento], balada de uma só estrofe, gravemente homorrítmica, e aquela consolação dirigida a um amigo que acaba de perder um ente querido, Mon cheri amy, qu'avés vous empensé [Meu querido, que tendes no pensamento], cheia de compunção e de uma intensidade expressiva raramente atingida. Nos quatro virelais que Dufay nos legou,fiquemoscom Hélas mon deuil, a ce cop sui ie mort [Ah, minha dor por este golpe sou morto], cuja expressão está tão longe da estética habitual, por conta de um certo caráter familiar, que parece legítimo já ver aí um esboço do que mais tarde será a bergerette, cuja estrutura será idêntica. Seria muito surpreendente se, durante sua estada na Itália, Dufay não tivesse tido ocasião de compor sobre textos italianos. Vários textos chegaram a nós, rotundelli ligeiros, como Quel fronte signorille [Aquela fronte senhoril], ou baladas mais líricas, como La dolce vista [A doce vista], mas sobretudo — e é com essa
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obra-prima que encerramos o capítulo sobre Dufay — a admirável Vergine bella, sobre um poema de Petrarca, em que a ausência total de repetição permite ao compositor seguir mais de perto o texto. Aqui, mais do que nas outras obras de Dufay, é permitido falar de figurativismo, em vista dos vocalises que evocam a Virgem, "di sol vestita" ("vestida de sol"), e do mergulho no grave que retrata a "miseria estrema dell'humane cose" ("extrema miséria das coisas humanas").
A música na corte de Borgonha Um dos centros privilegiados da atividade musical foi, no século XV, aquela corte da Borgonha, que sonhava impor-se à Europa e que se aproveitava do estado de desamparo da pobre corte da França. Depois de 1420, a situação mostrava-se ainda mais nitidamente definida do que antes, e os músicos afluíram para a roda do duque. O particular brilho da vida de corte e as festas incessantes exerciam um atrativo certo. Tanto em Dijon quanto em Bruges, os dois pólos principais da corte de Borgonha, trabalharam inúmeros músicos, hoje em dia bem conhecidos: Nicolas Grenon, considerado como precursor de Dufay e que se ligara à corte de Filipe, o Audaz, em Dijon, no ano de 1385; Pierre Fontaine, cuja permanência na corte de Borgonha situa-se entre 1428 e 1447; Jacobus Vide, criado de quarto e depois secretário do duque Filipe, o Bom; Robert Morton, aquele capelão inglês que serviu na corte do conde de Charoláis e a quem devemos a primeira apresentação polifónica da canção de L'Homme armé, e Hayne van Ghizeghem (morto depois de 1472), de quem chegaram até nós cerca de vinte canções, das quais a mais bela é De tous biensplayne est ma maistresse [De todos os dotes, rica é minha senhora], que percorreu toda a Europa. Um lugar à parte é devido a Gilles Binchois, originário de Mons (ca. 1400), cuja carreira transcorreu entre 1430 e 1460, data de sua morte, na corte de Filipe, o Bom. Associado a Dufay, em uma homenagem comum, por Martin Le Franc, Gilles Binchois cfistingue-se de Dufay por numerosos aspectos. Contrariamente ao cônego de Cambrai, Binchois pertenceu aó duque e era o típico músico de corte. Talvez deva a essa sua atividade o fato de não se haver dedicado muito à composição de música religiosa (alguns fragmentos de missas, magnificats, hinos). São as suas 57 canções que sustentam a comparação de Binchois com o seu grande contemporâneo. Talvez menos prolífico do que Dufay, mostrou-se tão inspirado quanto este, embora tenha dado provas de menor variedade nessa inspiração. Fineza, fluência de linguagem, graça, elegância e requinte parecem ser suas qualidades mestras. Como Dufay, escreveu poucas baladas, apenas oito, talvez de caráter mais sombrio que seus rondós: por exemplo, Deuil angoisseux, rage démesurée [Dor angustiante, raiva desmedida], sóbre um poema de Christine de Pisan, ou ainda Amours, merchi [Amores, obrigado]. Entre os 48 rondós, vale mencionar o adorável De plus en plus se renouvelle [A cada vez mais se renova], tipo perfeito da
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expressão cortês, mas também a deliciosa declaração de amor, cujas linhas melódicas são de qualidade excepcional, que é Amoureux suy et me vient toute joye [Estou apaixonado e toda a alegria me toma], e,finalmente,o sublime rondó escrito para um poema de Alain Charlier, Triste plaisir et douloureuse joye [Triste prazer e doloroso júbilo], que prova o discernimento de Binchois na escolha dos suportes literários de sua música e a capacidade que tinha de traduzir em música essas contradições do coração humano. De caráter totalmente diverso é a canção Filles à marier, ne vous mariez ja [Moças casadoiras, não vos caseis logo], única de sua espécie a quatro vozes, ao contrário das outras, que são uniformemente a três vozes. Acima das duas vozes instrumentais que evocam uma espécie de bordão, as duas vozes superiores apresentam o diálogo de duas comadres que, instruídas pela vida, aconselham as moças casadouras a se absterem de casar, para não se decepcionarem: "Jamais ne vous ne lui au cuerjoie nara " [Nunca, nem vós, nem ele, tereis alegria no coração]. A estima da qual Gilles Binchois foi objeto era sem dúvida expressiva para que o próprio Ockeghem, em uma balada pluritextual chamada Mort, tu as navré de ton dart/Miserere [Morto, feriste com teu dardo/Miserere], celebrou: "Binchois patron de bonté." Johannes Ockeghem (ca. 1410-1497) A suposta data de nascimento de Ockeghem recua cada vez mais para o início do século. Primeiro, falou-se em 1425; depois, em 1420. Atualmente chega-se a 1410. Seja como for, o primeiro documento que temos em nossa posse menciona-o em 1443-1444, como chantre em Notre-Dame d'Anvers, onde julga-se que possa ter feito seu aprendizado. Depois de uma breve estada, em 1466, na capela de Carlos I , duque de Bourbon, em Moulins, Ockeghem iniciou uma carreira oficial das mais brilhantes na corte da França, tendo servido sucessivamente aos reis Carlos VII, Luís XI e Carlos VIII. Morreu como tesoureiro da rica abadia de Samt-Martin, em Tours, no ano de 1447. A morte de Ockeghem serviu de ocasião para um concerto de lamentações unânime o bastante para que nele se possa identificar propósitos que não os mais convencionais. Desse concerto vale mencionar, portanto, apenas Nymphes des bois/Requiem aeternam, sobre texto de Jean Molinet, peça comovente na qual Josquin Des Prés chora aquele que foi seu mestre e convida os "chantres expers de toutes nations" ("hábeis chantres de todas as nações") a "plorer grosses larmes d'ode" ("chorar grandes lágrimas de luto"), por terem perdido "le vrai tresoir de musique et chef a"œuvré' ("o verdadeiro tesouro e obra-prima da música"). AS MISSAS Mais ainda do que na época de Dufay, a missa era o grande gênero, aquele no qual exercia-se o compositor que, animado por uma ambição sadia, sente em si as possibilidades de levá-la a termo. Restam-nos de Ockeghem treze missas, das quais
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três incompletas, e uma missa de Requiem, que, na ausência daquela de Dufay, dada como perdida, é a primeira do gênero. Não nos vamos demorar sobre as duas únicas missas a três vozes, Quinti toni e Sine nomine, bem pouco representativas da arte de Ockeghem. A primeira parece mesmo um retrocesso com relação a Dufay, tão pouco evidentes são o sentimento unitário e o Kopfmotiv, difilmente reconhecível, se é que chega a existir. Na segunda, o Kopfmotiv, particularmente típico, é reproduzido de maneira idêntica no início das cinco seções, na linhagem das missas que a precederam. Não é de todo impossível considerar essas missas como obras de juventude. Na ausência de um estudo de conjunto sobre Ockeghem — que é, no entanto, um compositor genial — e na ausência de uma tentativa de classificação das obras de acordo com critérios a ela internos, qualquer datação torna-se impossível. Resta apenas classificar as obras por similitude de preocupações, sem pretender com isso fixar qualquer tipo de cronologia. Três missas podem desde logo reivindicar o título de missas paródias, mesmo que ainda se trate apenas de um esboço desse procedimento: o compositor toma para si o dever de explorar todos os recursos da canção de referência (e não apenas do tenor ou do superius), mas não se contenta em fazer dela uma reutilização mais ou menos servil, como irá acontecer na geração seguinte. Este é o caso da belíssima missa incompleta Ma maistresse [Minha senhora], a quatro vozes, construída a partir do superius da canção a três vozes, que serve de base para o tenor do Kyrie e para a voz de contratenor do Gloria; o interesse nessa missa reside no cruzamento bastante sutil de elementos melódicos repartidos, espalhados aqui e ali por uma outra das vozes: trata-se já da "osmose melódica", que a época de Josquin Des Prés iria praticar de maneira sistemática. Este também é o caso da breve missa juvenil Au travail suy, com um contraponto surpreendentemente bem construído: cada uma das vozes nasce do cantus firmus e abole, desse modo, aquela dualidade de interesse que poderia ter sido provocada pelo emprego simultâneo de um cantus firmus e de um Kopfmotiv. A missa Fors seulement [A exceção somente de], para cinco vozes, composta a partir do rondó a três vozes do mesmo nome, compreende apenas Kyrie, Gloria e Credo. Com toda evidência, esta é uma missa paródia, em que a imitação assume uma importância tão acentuada que a entrada retardada do cantus firmus parece ser nada mais que a retomada de um elemento já ouvido — aquele início monocórdio em valores muito longos de um mesmo grau e que se presta tão bem à tradução do sentimento religioso. Essa missa de Ockeghem destaca-se pela grande qualidade de linhas, de uma amplitude até então desconhecida. Arroubos e repousos sucedem-se com quedas progressivas e recuos passageiros, ondas sonoras que levaram um dos mais eminentes conhecedores dessa obra, Charles van den Borren, a falar de "ritmo aéreo, próprio para fazer o espírito vagar nas altas esferas da oração, da contemplação, da adoração".
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A técnica tradicional do cantus firmus religioso e profano certamente não foi esquecida, mas ela tem um lugar modesto na produção de Ockeghem. Quatro missas são fruto dessa estética: a missa De plus en plus se renouvelle [A cada vez mais se renova], que se apóia na voz tenor do rondó de Binchois, sem fazer uso de parodia nem mesmo de Kopfmotiv, e a missa L'Homme armé, de feitura tradicional, em que o cantus firmus, enunciado em valores médios, é facilmente perceptível e jamais recorre a proporções e artifícios notacionais enigmáticos, como Dufay gostava de fazer. As duas outras apóiam-se sobre um cantus firmus religioso. A missa Ecce ancilla domini não apresenta, a despeito do título idêntico, qualquer semelhança com a de Dufay, exceto por ser grandiosa e bela, porque o canto de empréstimo, embora usando as mesmas palavras latinas, é tomado de outra antífona, Missus est ángelus Gabriel. O risco de ausência de sentimento unitário, por causa da duração considerável do cantus, leva Ockeghem a recorrer ao antigo procedimento do Kopfmotiv, como um paliativo para a falta de unidade temática. Nessa missa, Ockeghem dá provas de uma grande mestria na repartição dos planos sonoros, freqüentemente atenuando o peso da polifonia e reservando o tutti para sublinhar palavras ou seqüências de interesse muito particular. A outra missa de cantus firmus religioso é a missa Caput, cujo canto é tomado da antífona Venit ad Petrum, como na missa de mesmo nome, que durante muito tempo foi atribuída a Dufay. Voltemo-nos para as missas pouco conhecidas e que nunca foram gravadas em disco, as quais, paradoxalmente, garantiram a celebridade de um Ockeghem "que entendia do riscado". Os elogios entusiastas de teóricos como Glaréan foram suficientes para fazer com que Ockeghem conquistasse o sufrágio das gerações seguintes e dos historiadores que, muitas vezes sem provas, subscreveram suas conclusões. A intenção de escrever uma missa que pudesse ser cantada em qualquer dos quatro principais tons então em uso é uma performance que não traz forçosamente garantia de qualidade. Essa missa Cujusvis toni, ou Ad omnem tonum, traz em cada pauta, em lugar de claves, o Signum congruentiae, que deixa ao regente a possibilidade de empregar a clave conveniente, de modo a obter a sonoridade desejada. Portanto, conforme o caso, pode-se cantar em dórico, em frigio, em lidio ou em mixolídio. É claro que, segundo o tom, o emprego dos acidentes varia, o que gera sérios problemas de alteração, difíceis de enquadrar com os tons eclesiásticos. A missa Prolationum coloca problemas de outro tipo e figura com justiça no primeiro time das obras que mereceram a estima geral. Surpreendente realização essa missa, evidentemente sem cantus firmus de empréstimo e cuja polifonia a quatro vozes é engendrada por uma dupla leitura rítmica das duas únicas vozes escritas. Cada uma das duas vozes é provida de dois sinais rítmicos diferentes que permitem, portanto, chegar-se, em função das regras do tempo, a durações de diferentes extensões das notas. A isso, somam-se inúmeros cânones enigmáticos, como o do Christe (Pausans ascenditper unum tonum), que convida o cantor que faz pausa a retomar o canto, só que um tom acima daquele do cantor que acaba de
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cantar a frase escrita. O mais surpreendente nesta empreitada é a eminente qualidade de uma polifonia obtida a partir de tanta cerebralidade. A dificuldade é de tal modo transcendida que em parte alguma o esforço transparece. Estamos diante de um poder de concepção fora do comum, que, à parte os séculos de diferença, estranhamente aproxima Ockeghem e Johann Sebastian Bach! Uma fonte única — um manuscrito flamengo atribuído ao copista Martin Bourgeois — transmitiu-nos "a missa originalíssima e muito perfeita" de Requiem, para retomar os próprios termos de Guillaume Crétin. Nessa missa, o que se almeja é essencialmente diferente. Com uma humildade digna de admiração, o compositor põe-se a serviço do canto litúrgico, que destina à voz superius e que trata, pois, à maneira do moteto-cantilena. O efetivo vocal é reduzido. Na maior parte das vezes, três ou mesmo duas vozes; raramente quatro. Segundo o hábito da época, essa missa de Requiem não ultrapassa o responso do Ofertorio, devendo a continuação ser executada em cantus planus. Seria o caso de acreditar, como se supôs, que essa missa teria sido composta para as exéquias de Luís XI, em 1483? Alguns o afirmam. Contentemo-nos em sublinhar o caráter profundamente recolhido e quase místico, bem na linha daquele retorno ao sagrado que se manifestava na segunda metade do século, em parte graças à influência dos "Irmãos da vida comum", herdeiros da Devotio moderna do século precedente. Sob o impulso de grandes potências espirituais, como Jan van Ruysbrock (morto em 1381), Gérard Groóte (morto em 1384), Thomas a Kempis (morto em 1471, autor da Imitação de Jesus Cristo), a "devoção moderna" caracteriza-se por uma afetividade mais expansiva, uma busca mais introspectiva, uma vida interior mais centrada na mtimidade do indivíduo com Deus do que na liturgia e nas práticas exteriores do culto. Nesse sentido, a Devotio moderna convinha maravilhosamente às aspirações artísticas (tanto em pintura como na música) de uma nova modernidade. OS MOTETOS Esse profundo sentimento religioso encontrou um campo de ação bem de acordo com sua medida nessa forma que, graças a Ockeghem sem dúvida, tornou-se totalmente religiosa: o moteto. Chegaram até nossos dias oito ou nove motetos de Ockeghem, quase todos em louvor da Virgem Maria. De obras destinadas ao culto, de dimensão modesta e tessitura homogênea (como a Ave Maria a quatro vozes, aparentemente sem cantus firmus) a composições ambiciosas, de estética já renascentista (como o moteto Intemerata Dei mater, a cinco vozes, sobre texto não fitúrgico, escrito já em hexámetros datílicos e composto de três vastas partes), a variedade é grande. Nesta peça, em que a atenção ao texto é evidente, Ockeghem parece explorar as novas possibilidades de extensão em direção ao grave, graças ao acréscimo de uma voz de profundidade ineomum (ele era famoso pela sua bela voz de baixo). Aparecem novas possibilidades de utilização de semicoros em eco, sem falar dos efeitos de massa devidos ao ordenamento espacial das sonoridades.
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Entre esses extremos podem situar-se as "belas e livres fluminuras de cantochão", como escreveu com tanta propriedade A. Pirro: Alma redemptoris màter, cujo vocalise inicial é de tão belo alcance, ou os dois Salve Regina, cujo cantus firmus é distribuído, em um caso, à voz superius, e, no outro, à voz bassus. Finalmente, o mais elaborado e mais avançado desses motetos, o Gaude Maria, a cinco vozes, que é classificado entre as obras que anunciam o pleno Renascimento. Assinalemos ainda uma surpreendente polifonia a quatro vozes, habitualmente classificada entre os motetos de Ockeghem e publicada em 1504, em Veneza, por Petrucci, em seus Motetti C, que tem Ut heremita solus como único incipit: obra muito erudita, voluntariamente hermética, tem base na compreensão de cânones sibilinos, formulados após a indicação das notas de um tenor-enigma em que se encontra um jogo com as sílabas de solmização; em suma, uma bela obra, em que uma hábil progressão é produzida pelo aparecimento de um segunda seção em valores diminuídos. AS CANÇÕES Diz-se amiúde que Ockeghem não tinha predisposição natural para a canção. É certo que o poder de concepção que constatamos nas missas e nos motetos não tem mais razão de ser no plano da miniatura. Mas quer isso dizer que é preciso considerar as 21 canções compostas por Ockeghem como obras menores? A reputação de tais canções tornam infundada a pergunta: nem mesmo o contemporâneo Busnot, com suas quase sessenta canções, teve tanto sucesso. Todos os cancioneiros da época incluem obras de Ockeghem, ao que tudo indica para assegurar a qualidade do manuscrito. Como no tempo de Dufay, a canção requer apenas um efetivo de três vozes, o ideal sonoro parece sempre constituído por um par de vozes cantus e tenor, que podem ter palavras, completado por um contratenor cujo caráter pode ser menos vocal e que serve para completar a sonoridade de conjunto. Na maior parte das vezes sem palavras, essa terceira voz parece estar antes destinada a uma execução instrumental. Rondós de quadras ou estrofes de cinco versos constituem a parte mais importante das canções. Com uma única exceção — L'Autre d'antan l'autrier passa —, esses rondós têm caráter grave e limitam-se, como os poemas, a retratar o langor amoroso {D'ung aultre amer mon cuer s'abbesseroit [A um outro amor meu coração se rebaixaria]), a indiferença da dama (Fors seulement Vacíente queje meure [À exceção apenas da espera de que morro]), o desespero da amante (Je nay dueil que neje suis morte [Não tenho dor de que não morra] ), ou a resignação diante da triste evolução dos costumes, como em Les desleaux ont la saison [Os desleais estão na moda]. Apenas a estrutura distingue esses rondós da outra forma, mais ampla e menos repetitiva, que parece receber os favores do público da corte: trata-se da bergerette, ou, caso se prefira, de um virelai que se interromperia depois do da capo (por essa
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razão, chama-se a bergerette de virelai truncado). Por vezes, contado, tinha-se a consciência, na época, de que nascia uma nova forma, de tanto que o rondó havia eclipsado as outras formas. Devemos a Pierre Fabri essa definição retirada de seu Grand et vrai art de pleine rhétorique [Grande e verdadeira arte de plena retórica]: "Bergerette est en tout semblable à l'espace du rondeau, excepté que le couplet du mielleu est tout entier et d'aultre lizière; et le peult l'en faire d'aultre taille de plus ou moins de lignes que le premier bastón ou semblable a luy. " Isso que significa que a bergerette conta com tantos versos quanto o rondó, mas que a segunda estrofe é dita só uma vez, ao passo que, no rondó, ela compreende a repetição de A. A estrutura musical é comparável à do virelai: A B B ' A', mas sem possibilidade de desenvolvimento ulterior. Não saberíamos escolher um exemplo, pois a qualidade é praticamente uniforme: Ma bouche rit et ma pensée pleure [Ri a minha boca, e meu pensamento chora], em que o amante acusa o "cuerpervers et mensongier" ("coração perverso e mentiroso") de "faulcer" ("falsear, faltar a") o que havia prometido, canção na qual a homogeneidade das vozes, levada ao extremo, convida a uma execução em três partes vocais; ou Presque transi ungpeu moins qu'estre mort [Quase transido, um pouco menos que morto] ; ou, ainda, Ma maîtresse et ma plus grant amye [Minha dama é minha melhor amiga], jóia na qual a voz superius traça no espaço uma dezena de arabescos de suprema elegância. O que ressalta do exame dessas canções de tipo cortês é o desejo que a fixidez rítmica esteja ausente, ou melhor, que a ausência de uma pulsação elementar dê a impressão de inexistência de um quadro estrutural, o que coloca essa forma de expressão entre os antípodas da canção de dança. Sem motivo facilmente perceptível, a melodia interrompe-se por um momento, retoma em seguida seu vôo, desenvolvendo amplas volutas feitas de arroubos e repousos, de arsis e de thésis, e obedecendo somente às exigências de uma pulsão interna. Pode-se então subscrever essa reputação que fez de Ockeghem um cerebrino, um amante de enigmas, de problemas musicais? Decerto, mas é preciso reconhecer nele, além disso, um compositor eminentemente sensível, que sabe emocionar, sem que isso seja feito à custa de lisonjas à platéia. Sua linguagem faz tão pouco caso da ornamentação que se poderia dizê-la gótica, com esses jogos de linhas de contornos caprichosos, angulosos, e que se comprazem com o desabrochar de pequenos motivos sempre renovados, com arestas vivas. Os valores breves escasseiam. A linha melódica avança permitindo-se os sons sustentados, mas não estagnantes; mais do que paradas, há repousos momentâneos que se inscrevem em um movimento de conjunto de amplas curvas. A agógica alarga-se em proporções até então desconhecidas e abre o caminho para a era josquiniana.
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A MÚSICA NO SÉCULO X V I : EUROPA DO NORTE, FRANÇA, ITÁLIA, ESPANHA
A prática musical na sociedade do Renascimento Tentar imaginar as músicas que conhecemos em seu espaço específico, geográfico e social, está longe de ser um esforço vão: é que a música dos antigos, determinada por uma função, está sempre "em situação". Situá-la em seu lugar é, ao mesmo tempo, definir sua natureza, visualizar os exécutantes e os ouvintes, escutar os instrumentos e as sonoridades; concretamente, compreendê-la. Aliás, ao confrontar essa topografia com os monumentos musicais do passado, estaremos em melhor posição para esboçar um inventário de nosso museu sonoro. As lacunas de nosso patrimônio musical aparecem, então, claramente no mapa social do tempo, obrigando-nos a constatar cruelmente o elitismo a que a história nos condena. AS MÜSICAS DO CAMPO Se é fácil imaginar as músicas da igreja e do palácio, e até a dos lares burgueses, as músicas da rua, em contrapartida, resistem singularmente à investigação. Então, que dizer se, subitamente tomados por uma curiosidade etnológica, saímos da paisagem urbana para descobrir as músicas rurais de campos e vilarejos? A margem da cultura escrita, ainda estritamente reservada aos ricos e aos sábios,
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A música no século XVI: Europa do Norte, França, Itália, Espanha
Segunda parte: os séculos XV e XVI
está um pedaço inteiro de nosso patrimônio sonoro, que irremediavelmente nos escapa. Não é, contudo, impossível preencher essas lacunas: sabemos, é claro, que a paisagem rural não é completamente desprovida de música. Algumas fontes indiretas de informação — literárias ou iconográficas, por exemplo — são a base de uma reconstituição imaginária das músicas camponesas. Era ao som de alguns instrumentos ainda hoje familiares que aconteciam as danças e outros &vertimentos campestres: sobretudo as vielas de roda e as cornamusas. Nos Contes et discours d'Eutrapel [Contos e narrativas de Eutrapel], Noël du Fail fala sobre os camponeses: "Eram vistos dançando em círculos, perto da fonte de Cormier, ao som de uma bela vèze coberta de couro vermelho." As estampas, as tapeçarias, os quadros de Brueghel mostram-nos muitas vezes essas cenas campestres. A "vèze" é "a cornamusa rural ou pastoral dos camponeses", como diz, no início do século XVII, o padre Mersenne, segundo o qual os camponeses "usam-na em suas danças, em seus casamentos e em várias outras recreações". Pode-se supor que foi este o instrumento tocado pelos pastores em Tours, em 1483, à cabeceira do moribundo Luís XI. Gaguin, nas Chroniques conta que o rei "pensa quérir allègrement par l'harmonie de musique. Pour raison de quoi commanda appeler les joueurs de tous les instruments de musique, que l'ont tient pour certain avoir été assemblés jusques au nombre de six vingt. Entre lesquels y furent aucuns pasteurs de brebis...". Há de ser este, igualmente, o instrumento mencionado em certos textos de canções eruditas, mesmo quando o sentido destas é manifestamente duplo, como no caso desses versos musicados por Nicolas de Marie, por volta de 1540.
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Une bergère un jour aux champs était, Sous un buisson prenant chemise blanche, Et le berger qui de près la guettait, Qui doucement la tira par la manche, En lui disant: 'Margot, voici mon anche, Jouons nous deux cette cornemuse, Car c'est un jeu où souvent tu t'amuses'. Elle sourit, disant en telle sorte: 'J'ai tambourin joli dont toujours j'use Frappe dessus la peau est assez forte.' 2
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"Pensou buscar alivio pela harmonia da música. E, por essa razão, ordenou que fossem chamados os tocadores de todos os instrumentos de música, os quais — ao que se tem por certo — foram reunidos até o número de cento e vinte, entre os quais estavam alguns pastores de ovelhas." (N. T.) [Estava um dia uma pastora nos campos, / Sob unia moita, de roupa de baixo, / E o pastor que de perto a espiava, / E docemente pela manga a puxava, / Dizendo-lhe: "Margaridinha, olha aqui a minha palheta, / Vamos tocar juntos esta cornamusa, / Pois este é um brinquedo que em geral te diverte." / Ela sorri, dizendo o seguinte: / "Eu tenho um lindo tamborim, que uso sempre / Pode bater nele, a pele é bem resistente."] (N. T.)
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Lrifelizmente, os documentos não dizem quais músicas tocavam pastores e camponeses. Podemos apenas concluir grosso modo algumas informações dos próprios instrumentos e de suas limitações técnicas: não é difícil imaginar quais fossem tais músicas, tendo como modelo certas músicas tradicionais mais próximas de nós. A música erudita, bem antes das musettes (musetas) dos séculos XVII e XVIII, também conservou alguns desses traços: precisamente nesta canção de Marie, em que a polifonia imita realmente a cornamusa e seu bordão, ou ainda em uma dança húngara (ungaresca) publicada por Mainerio, em 1578, e por Phalèse, em 1583. Tais músicas poderiam também ser tocadas na viela de roda, desde então associada aos mendigos. Mersenne nos diz que ela "só é tocada pelos pobres e mais particularmente pelos cegos, que ganham a vida com esse instrumento". Para Noël Du Fail, no século XVI, o tocador de viela é também "um mendigo peidorreiro, sujo, cheio de piolhos e de pulgas". Acrescentemos algumas flautas, flajolés, bombardas, tamborins, e isso é o bastante para "esbaldar-se rústicamente", por ocasião das múltiplas festas que escandan a vida laboriosa do povo dos campos. AS MÚSICAS DA CIDADE Ligada à mendicância, a viela era também um instrumento urbano. Nas cidades, contudo, a atividade musical não se limita às manifestações espontâneas de rua: beneficia-se de uma organização particular que rege principalmente as intervenções oficiais. Viam-se, por exemplo, comerciantes e burgueses contratarem diversos músicos (pífaros, tamborins, violino...), muitas vezes eles próprios organizados em confrarias, para festejar dignamente esta ou aquela comemoração da vida privada ou corporativa. Desse modo, para fazer uma peregrinação ao monte Saint-Michel, em 1577, dois burgueses de Paris contrataram um tocador de tamborim, que devia fazer soar seu instrumento "pelas cidades, vilas, pontes, portos e desfiladeiros" que fossem atravessando. Contratos deste tipo eram bem freqüentes por ocasião das festas familiares e das festas corporativas que marcavam a vida de uma cidade. Não faltavam cerimônias oficiais, civis ou religiosas, nas cidades do Renascimento: as ruas e praças, tomadas pela festa, enchiam-se de música, de canto e de teatro. Gentile Belfini representou, em uma tela célebre, uma dessas procissões que lentamente se deslocavam pela praça de São Marcos, em Veneza: os cantores eclesiásticos delas participavam, mas ouviam-se igualmente as sonoridades radiantes dos hauts instruments ("instrumentos altos"). Não era fenômeno raro as cidades manterem uma trupe de músicos municipais, tocadores de pífaros, clarins, sacabrocas ou bombardas, encarregados de tocar em certas circunstâncias cotidianas e festivas. Entre as ocasiões excepcionais, uma das mais marcantes na vida urbana era a joyeuse entrée ("entrada gloriosa") do monarca, gesto simbólico pelo qual o prínci-
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pe tomava posse de uma cidade. O lugar tornava-se, então, uma imensa cena brilhante em que a ação musical, muitas vezes verdadeiramente teatralizada, desempenhava um papel essencial. Bom exemplo é a narrativa da entrada de Luís XI e da rainha Carlota em Paris, em 1460, que se encontra nas crônicas de Jean de Troyes: ...e u m pouco antes da entrada da referida cidade, estavam, na fonte de Ponceau, homens e mulheres selvagens... e havia ainda três belas m o ç a s , que representavam sereias, completamente nuas, e delas se viam os bonitos seios eretos, separados, redondos e d u ros, o que era coisa bem agradável, e elas cantavam pequenos motetos e bergerettes. E perto delas tocavam-se vários instrumentos baixos, que produziam grandes melodias... E como soubessem que a referida Rainha se pusera nos citados barcos para vir a Paris, vieram antes dela e, para recebê-la, os conselheiros e burgueses da referida cidade... t a m b é m todos em barcos... E dentro deles estavam os meninos do coro da Sainte Chapelle, e cantavam belos virelais, canções e outras bergerettes, muito melodiosamente. E havia t a m b é m grande n ú m e r o de clarins, trombetas, cantores, instrumentos altos e baixos de diversos tipos...
As conhecidas "entradas" do século XVI (Carlos V em Cambrai ou em Antuérpia, Francisco I e Henrique II em Rouen, Henrique IV em Paris...) apenas reproduzem as festividades do mesmo gênero, que rivalizavam no aparato e na fantasia. AS MÚSICAS DE IGREJA Como se vê nessa crônica de Jean de Troyes, tais circunstâncias reuniam os tocadores de instrumentos, menestréis municipais ou independentes, e os músicos de igreja, chantres e meninos de coro. É que as igrejas das cidades, assim como as capelas dos príncipes, lugares privilegiados onde se fazia a música erudita, figuravam entre os principais empregadores de músicos. Com seus mestres de capela, as catedrais eram na época verdadeiros conservatórios de música. No século XV, como no XVI, as catedrais das províncias do Norte (Flandres, Países Baixos) detinham tal fama, que todas as cortes da Europa para lá mandavam enviados em busca de belas vozes. Em 1560, por exemplo, Orlando de Lassus, então mestre de capela do duque da Baviera, em Munique, foi enviado aos Países Baixos, com a missão de "levantar... alguns chantres e meninos de coro para faire chapelle". Diz a lenda, aliás, que o próprio Orlando de Lassus havia sido três vezes "raptado" pela beleza de sua voz... Com efeito, nas maîtrises de chapelle das catedrais, os meninos eram inicialmente formados como cantores. Ali também aprendiam a técnica instrumental, e, caso demonstrassem talento, depois de dominar as técnicas da escrita musical, tornavam-se compositores. Mais tarde, essas crianças podiam ir parar tanto nas fileiras das maîtrises das catedrais e das capelas quanto nas confrarias de tocadores de instrumentos. A composição desses coros profissionais, em que se cantavam diariamente o cantochão litúrgico e a polifonia religiosa, era extremamente variável de um lugar
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para outro, de um momento para outro, em função dos gostos e da fortuna do mestre. No final do século XV, uma capela de 25 cantores, como a de Ercole d'Esté, em Ferrara, significava um luxo bem raro. Em Roma, em 1533, a Capela Sistina contava com 24 cantores. A do rei da França, em 1532, não tinha mais que dezoito. Em 1578, Henrique III tratou de aumentá-la para 37 músicos, quatro dessus adultos, seis pages (meninos), sete hante-contre (contraltos), sete tailles (tenores), onze basse-contre e duasflautase cometas. Os conjuntos de bom tamanho eram excepcionais, como o formado pelos noventa músicos das duas capelas bávaras de Landshut e Munique, reunidos em torno de Lassus, em 1569, para o casamento do duque Guilherme V com Renée de Lorena. Contrariamente ao que muitas vezes se pensou a partir do século XIX, as polifonias religiosas do século XVI, presumidamente a cappella, eram muitas vezes executadas por cantores e instrumentistas reunidos: sacabuxas, cometas e violas eram os instrumentos mais usados para dobrar ou substituir as vozes. O órgão também podia cumprir esse papel, particularmente no final do século, mas era sobretudo empregado como solista, alternado com o canto. A MÚSICA DO PALÁCIO Em um mesmo lugar, os efetivos -— de cantores como de instrumentistas — variavam em função da solenidade das festas e das circunstâncias. Os acontecimentos de que temos descrições precisas são, evidentemente, os mais excepcionais, como o casamento de Guilherme da Baviera, em 1569, no qual a participação da música é de maior alcance do que a habitual. Casamentos e funerais de príncipes eram acontecimentos políticos e diplomáticos de primeira importância: a música, elemento espetacular do fausto e do poder de uma corte, visava a expressar o brilho desta aos olhos do mundo. Compreende-se assim que núpcias principescas tenham servido muitas vezes de ocasião para criações artísticas inesquecíveis. Em Florença, em 1489, no casamento de Ferdinando de Médicis com Cristina de Lorena, La Pellegrina e seus intermezzi musicais reuniram compositores como Peri, Caccini, Cavalieri, Marenzio, Bardi e Malvezzi. Em 1660, a mesma cidade fez encenar a Eurídice, de Peri, para o casamento do rei francês Henrique IV com Maria de Médicis. O Ballet comique de la reine [Balé cômico da rainha] foi executado, em 1581, nas festas de casamento do duque de Joyeuse com Mademoiselle de Vaudémont, irmã da rainha. Com essas circunstâncias — e mesmo que os cantores tragam sua contribuição aos divertimentos profanos — deixamos o doniínio da capela. Como o poeta anônimo de Mots dorés [Palavras douradas], obra publicada em 1533, faz a própria música dizer, também as cortes demandam-lhe sua parcela de decoro. Musique la douce et plaisante Suis de mon propre nom nommée
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Dont Sainte Église triomphante Journellement est décorée. J'ai partout telle renommée Par instruments et belles voix Que suis requise et désirée Es cours des ducs, princes et rois.
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Decerto o célebre teórico conhecia os famosos Entremets da corte de Borgonha, ainda bem próximos dele. Mais de meio século depois, porém, em seu Solitaire second [Solitário segundo], publicado em 1555, Pontus de Thyard dá testemunho da mesma prática, mais espontânea agora: 1
Mons/etírde Vmtimille... fez u m a estada em Milão., foi convidado... para uma festa suntuosa e magnífica, dada em homenagem de uma das mais ilustres companhias da cidade
Lugares privilegiados — se jamais existiu algum —, as cortes empregavam, evidentemente, músicos profissionais. Na França, desde o reinado de Francisco I, os músicos dividiam-se em dois grupos: a Musique de la chambre (música da câmara) e a Musique de l'écurie (música da estrebaria). Nessa época, a écurie era uma Bande de hauts instruments (banda de instrumentos altos), violinos, oboés e sacabuxas. Mais tarde, no reinado de Carlos IX, os violinos foram integrados à chambre, até então composta por cantores, alaudistas, cornetistas, tocadores de pífaro e de tambor. Na corte de Francisco I , por exemplo, o grande alaudista de Mântua, Albert de Rippe,figuravaentre os músicos da chambre. A esse título, ele fazia parte dos familiares do rei e participava cotidianamente dos divertimentos da corte. Em Munique, eram os músicos da capela ducal que tinham ao mesmo tempo esse encargo. Podiam ser vistos participando diariamente das refeições do duque, segundo um ritual quase imutável, a acreditar-se no teste de um deles, o italiano Massimo Troiano, então colega de Lassus:
e em uma casa do mesmo estofo: onde, entre outros prazeres de coisas raras reunidas para o contentamento dessas pessoas escolhidas, encontrava-se Francesco da Milano, homem de quem se diz ter chegado à meta (se é que se pode) da perfeição instrumental quando toca u m alaúde. Quando os convidados retiraram-se da mesa, ele tomou um alaúde e, como que para tatear os acordes, pôs-se, em u m canto da mesa, a executar u m a fantasia...
Sem dúvida privilégio de ricos, "cujos banquetes têm harpas, alaúdes, tamborins", razão suficiente para Calvino condená-los aos suplícios eternos. A burguesia, contudo, logo procurou imitar esses costumes aristocráticos: em 1589, Thoinot Arbeau, em sua Orchésographie, constatava "que não há mais um só burguês que não queira ter tocadores de oboé em suas nupcias". Sempre que se mostrasse necessário, Pierre Phalèse, impressor e músico de Antuérpia, fornecia-lhes uma canção bíblica, citando o Eclesiastes na dedicatória de seu Septième livre de motets [Sétimo livro de motetos]: "Um concerto de músicos em um festim no qual se bebe vinho com alegria e moderação é como um selo de esmeralda engastado no ouro."
Desde que era servido o primeiro prato e que o barulho c o m e ç a v a a diminuir, os instrumentos de sopro, ora as cornamusas, ora as flautas, ora os pífaros, ora sacabuxas e cornetas tocavam canções francesas intercaladas com outras peças leves, até o segundo prato. Cabia, então, a Antonio Morari e a seus colegas, tocar ao violino, ou, às vezes, na viola da gamba, canções francesas, ou motetos de bela feitura, ou madrigais... até o ú l t i m o prato. U m a vez servidas as frutas, o mestre Orlando de Lassus fazia cantar os seus cantores, que, com suas claras e doces vozes, davam a ouvir a nova c o m p o s i ç ã o que todos os dias ele apresentava. Depois disso, muitas vezes, para grande satisfação do duque, os melhores cantores executavam belos quartetos ou trios...
Conforme um bom número de depoimentos, a música parece ter sido muito apreciada durante os banquetes. Como escreve Tinctoris, perto do final do século X V , até essa é p o c a manteve-se o uso de fazer tocar m ú s i c a nos banquetes. Durante as refeições esplêndidas e solenes dos grandes senhores, apelava-se para todos os tipos de m ú sicos, de cantores, de flautistas, organistas, alaudistas, de tocadores de t í m p a n o , de o b o é , de trombeta...
[Música, a doce e agradável, / Sou, de meu próprio nome, nomeada, / Da qual a Santa Igreja triunfante / Diariamente se faz adornada. / Tenho, por toda parte, tal nomeada / Por instrumentos e pelas vozes / Que sou requisitada e desejada / Nas cortes de duques, príncipes e reis.] (N. T.)
A PRÁTICA M U S I C A L A M A D O R A
Todas essas práticas musicais, como outras ligadas à dança da corte, por exemplo, ou como a das maîtrises e capelas, são marcadas pelo profissionalismo. O príncipe e seus cortesãos faziam seus músicos tocar enquanto desfrutavam como consumidores passivos. Esse modelo, totalmente real na sociedade do século X V , e que já era posto em questão desde a segunda metade desse século, em particular na Itália, passou por sérias transformações no século seguinte. Nos palácios da Renascença, a prática musical deixou de ser apenas coisa de profissionais: os próprios cortesãos e até os príncipes começaram a interessar-se por cantar e tocar instrumentos. É que a dimensão musical tornara-se parte integrante da nova arte de viver, tal como se pode descobrir lendo Le Courtisan (1528), de Baldassare Castiglione: "Não me conformo com o cortesão" dizia ele, "que não seja também músico e que, além de ouvir e deter-se nos livros, ainda não saiba tocar diversos instrumentos." No Norte da Itália, no final do Quattrocento, havia inúmeros modelos para Castiglione. Naturalmente pensa-se nas cortes dos Médici, em Florença, dos Este e dos Gonzaga, em Ferrara, Mântua e Urbino. Na corte dos Este, em particular, Ercole I cantava e tocava viola, sua mulher tocava harpa e seusfilhosrivalizavam entre si no canto e no manejo de instrumentos. Sobretudo Isabela, casada com Francesco Gonzaga, que iria fazer da corte de Mântua um centro de irradiação
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musical incomparável. Mesmo em Roma, um papa como Leão X não se contentava em cantar: chegou mesmo a compor, e, segundo diziam, era incomparável no alaúde. Nas cortes francesas, o exemplo italiano foi rapidamente imitado. Ana da Bretanha cantava acompanhando-se à mandora. Margarida de Navarra, como Diana de Poitiers, fazia o mesmo com o alaúde. Segundo Clément Marot, Ana de Alençon também cantava ao som da espineta. Os exemplos são múltiplos e, sinal dos tempos, referem-se também aos homens, pois a música, segundo Castiglione, "permite agradar as damas, cujos espíritos ternos e delicados são facilmente penetrados pela harmonia". Os próprios reis não escapam e mostram suas vozes: Francisco I , ele mesmo um poeta cujos versos não eram desdenhados pelos músicos (Sermisy, Janequin, Sandrin), parece que tocava órgão. Conta-nos Brantôme sobre Carlos LX que, quando este assistia à missa, "muitas vezes levantava-se e ia, como seu falecido pai, o rei Henrique, que fazia o mesmo, até o coro, reunia-se a seus cantores, e punhase no meio deles, e cantava a voz de tenor e a de alto bastante bem..." Ainda mais surpreendente é constatar a que ponto a prática musical amadora expandiu-se até nas camadas burguesas da sociedade. Os inventários feitos depois das mortes bem o atestam: os instrumentos eram numerosos, sobretudo as espinetas, os alaúdes, as guitarras e as cítaras. Havia igualmente algumas violas, mas nunca instrumentos de sopro, reservados aos profissionais. Também se cantava nesses meios burgueses, como demonstra o seguinte diálogo de um manual de conversação holandês (ca. 1540), citado por Wangermée em sua obra La Musique flamande dans la société des 15 et 16 siècles. A cena passa-se em uma família burguesa de Bruxelas, ao final de uma refeição: e
e
Mestre Jacob: — E agora, n ã o vamos cantar uma canção? Wîlleken:
— Que livros queréis, senhor?
Mestre Jacob: — Os livros com canções a quatro e a três vozes... V á buscá-los, Antoine, e escolha-nos algo de belo. Antoine:
— Bem, senhor, queréis escutar uma canção a quatro vozes? Dierick, fica com o superius. É muito alto para ti? As crianças p o d e r ã o te ajudar.
Rombout:
— D ê - m e a parte de baixo.
Antoine:
— E u canto o tenor.
Dierick:
— Q u e m vai cantar contratenor?
Ysaias:
— Eu.
Dierick:
— Q u e m começa? És tu, Ysaias?
Ysaias:
— E u n ã o . Tenho uma pausa de quatro tempos.
Antoine:
— E eu, u m a de seis... C o m e ç a , Rombout.
Rombout:
— Sim, eu tenho s ó u m suspiro. Mas entremos no tom...
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Os pequenos livros individuais de que se servem os membros dessa família para cantar estão rigorosamente conformes aos novos impressos musicais surgidos junto com o século. Em 1501, em Veneza, Petrucci inaugurou a imprensa musical, progressivamente imitada por toda a Europa: em 1527, em Paris, por Pierre Attaingnant; em 1539, por Jacques Moderne, em Lyon; em 1543, por Tielman Susato, em Antuérpia... Todas essas edições, cada vez mais numerosas, foram promotoras fundamentais de uma ampla difusão da prática musical entre os amadores — aristocratas e burgueses. A música profana vocal Nymphes des bois, déesses des fontaines, Chantres experts de toutes nations, Changez vos voix fort claires et hautaines En cris tranchants et lamentations, Car Atropos, très terrible satrape Votre Ockeghem a trappé en sa trappe Accoutrez-vous d'habits de deuil, Josquin, Brumel, Pierchon, Compère, Et pleurez grosses larmes d'oeil, Perdu avec votre bon père. Riquiescat in pace. Amen. 1
Neste lamento pela morte de Johannes Ockeghem, falecido em 6 de fevereiro de 1496, o poeta Jean Molinet associa no luto quatro músicos mais jovens, então ño ápice da glória: Josquin Des Prés (ca. 1440-1521), Antoine Brumel (ca. 1460-1520), Pierre de La Rue (ca. 1450-1518) e Loyset Compère (ca. 1450-1518). JOSQUIN DES PRÉS E O ESTILO FRANCO-FLAMENGO De acordo com a tradição (Ockeghem fizera o mesmo por ocasião da morte de Binchois, em 1460), Josquin Des Prés compôs, para esse texto, um grande lamento a cinco vozes, em que se inscreve emblemáticamente, na voz do tenor, o canto litúrgico do Requiem aeternam, introito da missa dos mortos. Em todas as fontes, manuscritos ou impressos de que dispomos sobre esse lamento, a música é escrita com notas negras, sinal de luto. A homenagem é prestada ao venerável morto, que tão cedo não seria esquecido. Josquin e seus contemporâneos continuaram a construir novas obras sobre os Ninfas dos bosques, deusas das fontes / Hábeis cantores de todas as nações / Mudai vossas vozes tão claras e altivas / Em gritos lancinantes e em lamentações / Que Átropos, tão terrível sátrapa, / O vosso Ockeghem, enlaçou em seu laço. / Envergai hábitos de luto / Josquin, Brumel, Pierchon, Compère / E derramai grandes lágrimas dos olhos, / Perdidos com o vosso bom pai. / Repousa em paz. Amém. (N. T.)
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temas de seu companheiro mais velho: Petite Camusette [Pequena Camusette], Ma bouche rit [Minha boca ri], Fors seulement [ À exceção somente de]. Uma página de nossa história fora, contudo, virada. A canção de tipo borgonhês, a canção de Dufay, Binchois e Ockeghem, com suas formas fixas e sua habitual mistura de vozes e instrumentos, chegara ao fim de sua trajetória. Josquin, novo "príncipe dos músicos", iluminava com seus fogos a nova polifonia flamenga. De maneira geral, as obras de Josquin Des Prés, particularmente a música profana, são difíceis de datar. Dentre as canções, contudo, um certo número ainda apresenta traços característicos do que era a canção polifónica no século XV. Podem-se descobrir nelas vestígios dos velhos modelos poético-formais, como o rondo (Cela sans plus [Isso, e mais nada]), o virelai (Adieu mes amours [Adeus meus amores]) e a balada (Bergerette savoyenne [Pastorinha savoiana], Une musique de Biscaye [Uma música da Biscaia]). Como nas canções dos músicos mais antigos (Ockeghem, Binchois), essas peças, geralmente em quatro partes, ainda mesclam os idiomas vocal e instrumental. É freqüente encontrar nelas partes sem texto, cujo perfil melódico-rítmico acomoda-se melhor a uma execução instrumental. Para além do seu parentesco sonoro com a velha canção da Borgonha, contudo, essas obras de Josquin, que se pode supor contem entre as mais antigas, já afirmavam a originalidade do compositor. Desde logo, pelo tecido contrapontístico de que são feitas, apóiam-se essencialmente no contraponto imitativo, chegando ao uso rigoroso do próprio cânone. Além disso, assim como Jean Mouton e Antoine de Févin, que provavelmente foram seus colegas, durante algum tempo, na corte de Luís XII, Josquin empregava amiúde melodias preexistentes, talvez de fundo mais ou menos popular, cujos traços podem ser encontrados em dois manuscritos monofônicos, atualmente conservados na Biblioteca Nacional francesa. É este um gosto novo, decerto associado a uma moda da corte, que só teve precedentes em raras canções de Dufay (La belle se siet), Binchois (Filles à marier) ou Ockeghem (Petite Camusette). Com tais freqüentações rústicas, vê-se a canção erudita emancipar-se pouco a pouco do registro uniformemente cortês e aristocrático em que o século XV a mantivera aprisionada. Esta é uma etapa essencial rumo aos novos caminhos que os cancioneiros parisienses dos anos 1530 irão trilhar, seguindo os passos de Loyset Compère, Antoine de Févin e outros Ninot le Petit. Na obra de Josquin Des Prés, os temas popularizantes estão, na maior parte das vezes, revestidos de uma roupagem polifónica particularmente trabalhada, que lança mão de todos os recursos do contraponto erudito. Obras como Petite Camusette, a seis vozes, ou Faute d'argent [Falta de dinheiro], a cinco vozes, são reveladoras desse paradoxal confronto cultural, no qual o cunho rústico do timbre original, várias vezes acusado pelo texto, é recuperado pela cultura erudita do músico profissional.
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Nessas canções, como em muitas outras para cinco ou seis vozes, cuja escritura, daí por diante, é totalmente vocal, Josquin demonstra uma certa predileção pelas estruturas canónicas. Ele atinge o auge da virtuosidade em Baisez-moi [Beijai-me], cuja versão a seis vozes, completando o duplo cânone da versão a quatro vozes, produz um triplo cânone, surpreendentemente lúdico em sua concisão. Com esse exemplo, chegamos a tudo o que separa essas músicas de divertimento e as obras religiosas do mesmo mestre, em que se desenvolvem, contudo, as mesmas técnicas contrapontísticas: certamente uma adequação diferente do tempo da obra (de seu tempo .) a seu espaço de eleição, o interior do palácio ou a nave arquitetônica da igreja gótica. Se encontramos, em certos manuscritos, algumas canções com textos religiosos em latim — assim transformadas em motetos —, poderemos indagar se é preciso considerá-las músicas Htúrgicas: não estariam antes destinadas à devoção privada, "pour s'éjouir en Dieu particulièrement ès maisons" ("para alegrar-se em Deus, particularmente, nas casas"), como, mais tarde, diria Goudimel, o huguenote, referindo-se a seus salmos polifónicos? Nas canções de maturidade, a quatro, cinco e seis vozes, a polifonia totalmente vocal, intimamente adaptada a textos curtos, libertos das restrições formais da Urica cortês, está mais próxima do modelo do século XVI do que da canção do século XV. Os músicos das futuras gerações chegaram ao ponto de reeditá-las diversas vezes: em 1545, edição de Susato; em 1549, edição de Attaingnant; e até em 1572, em Mélange de chansons tant des vieux auteurs que des modernes [Miscelánea de canções de autores antigos com modernos], publicada por Le Roy e Ballard. Dentre essas polifonias, as mais atraentes são, inegavelmente, as mais melancólicas, como Mille regrets [Mil lamentos] a canção preferida de Carlos V, Plus nuls regrets [Nenhum lamento mais], ou Pleine de deuil [Cheia de dor]. Compreendese que Margarida d'Áustria — filha de Maximiliano I e princesa governante dos Países Baixos, que, tantas vezes viúva, tornou-se de uma melancolia crônica, a que devemos, aliás, a reluzente obra-prima de Brou — tenhaficadocom algumas delas para seus Albums de chansons [Álbuns de canções], onde figuram lado a lado com obras de seu músico preferido, Pierre de La Rue. Josquin pôde freqüentar a corte de Filipe, o Belo, em Malines, no intervalo entre duas permanências na Itália, no início dos anos 1500. Tinha ele em comum com Pierre de La Rue notadamente alguns textos de Jean Lemaire de Belges, assim como um certo gosto pelas cançõesmoteto: rivalizavam ambos em sutileza musical e simbólica neste gênero ao introduzirem, no contexto da polifonia profana, um cantus firmus de origem fitúrgica. Com composições desse tipo, estamos no âmago do estilo nórdico, dito ffancoflamengo. É esse estilo dominante que se encontrava, na época, em todo o Norte da Europa, principalmente entre os compositores da corte imperial de Maximiliano I , dos quais destacavam-se, incontestavelmente, Heinrich Isaac (morto em 1517) e Ludwig Senfl (1488-1543), de origem suíça. Heinrich Finck (1445-1527), única figura de grande relevo da produção musical germânica, exportou o estilo 7
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para a longínqua Polonia. Além de um conjunto nada desprezível de motetos e missas, dele conservaram-se mais ou menos trinta Lieder polifónicos, que propõem uma síntese original entre melodias de fundo germânico e o contraponto flamengo. Os primeiros músicos da Reforma haveriam encontrar idéias a serem exploradas na obra desse compositor. Mas — e isso também vale para Heinrich Isaac — conhecer apenas esse aspecto de Josquin eqüivaleria a ignorar todos os anos que o músico passou a serviço de diferentes cortes italianas. A RENOVAÇÃO ITALIANA A carreira de Josquin Des Prés, como a de muitos de seus companheiros, desenvolveu-se em parte nas faustosas cortes do Quattrocento italiano. Primeiro, ele viveu em Milão, de 1459 a 1472 aproximadamente, como cantor no Duomo, depois no círculo de Galeazza Maria Sforza, e finalmente serviu ao cardeal Ascanio Sforza, o que lhe valeu algumas vezes o apelido de Josquin d'Ascanio. Entre 1486 e 1494 esteve em Roma, na capela papal e, mais tarde, em Ferrara, nos últimos anos do século XV e início do século seguinte, na corte de Ercole I d'Esté; essa sua última permanência na Itália foi certamente interrompida por algumas visitas à França (ca. 1501). A Itália passava então, depois de várias gerações, por uma situação artística paradoxal: figura de proa em todos os dommios das artes plásticas, a península era, em termos musicais, totalmente colonizada por franceses eflamengos,os "ultramontanos", que influenciaram de todos os modos a música oficial do país. De música autenticamente italiana não se conhece praticamente nada depois dos fogos de artifício da Ars Nova florentina do século XIV. É bem significativo que, em 1501, o primeiro impresso musical da história, o Odhecaton, saído das prensas venezianas de Petrucci, quase só contenha canções francesas. Tal visão da história é bem superficial, vítimas que somos do efitismo das fontes históricas: é certo que uma prática popular musical tenha persistido na Itália durante todo o século XV. Essa corrente popular ressurgiu subitamente nas fontes escritas perto do final do século, no momento em que chegou às camadas eruditas da sociedade. Duas cidades desempenharam o papel primordial nesse despertar dos músicos italianos: Florença, em torno de Lorenzo, o Magnífico, e Mântua, com Isabella d'Esté. Em Florença, o próprio Lorenzo de Médici escreveu cantos de carnaval, transformados em música pelos compositores de sua corte. Essas canções, que se nutriam da tradição popular, eram cantadas durante as festividades do carnaval e também no período que vai de I de maio ao dia de São João, no verão. No final do reinado de Lorenzo, em 1492, Savonarola combateu essas tradições: os livros de canções iam muitas vezes reunir-se a todos os objetos de "vaidade" nas fogueiras o
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purificadoras ateadas pelo monge reformador. Por isso, dispomos hoje de poucos documentos sobre essa música. Entre os raros nomes de músicos que nos chegaram, estão alguns italianos, como Alessandra Coppini {ca. 1465-1527). Mas os músicos mais conhecidos ainda estão entre os alemani: Heinrich Isaac (morto em 1517) e Alexandre Agrícola (ca. 1446-1506). Mas este ressurgimento de uma música autóctone mostrou-se ainda mais acentuado, no último decênio do século XV, com as frotolle. Em toda parte, nas cidades do Norte da Itália, viam-se músicos italianos apropriarem-se do repertório poético popular (strambotti, ode, capitoli, barzalette), habitualmente cantado "de improviso", com acompanhamento de alaúde. Esse renascimento iria cristalizar-se em Mântua, em torno de Isabella d'Esté. De cultura bastante requintada, Isabella aprendera música na corte de seu pai, em Ferrara. Tocava alaúde e cantava. Demonstrou seu gosto pela música consagrando-lhe, no castelo de San Giorgio, em Mântua, seu Studiolo, que fez decorar com temas musicais talhados em marcheteria. Ali Isabella manteve contatos freqüentes com os maiores artistas do tempo, como Ariosto, Castiglione, Leonardo da Vinci e Ticiano. Mais particularmente, levou os poetas (principalmente Serafino dall'Aquila) a praticar uma poesia per musica, isto é, a escrever para o canto. Marco Cara e Bartolomeo Trombocino, seus músicos, apropriaram-se desses poemas, musicando-os. A maior parte do repertório dos frottolisti chegou a nós, por intermédio de alguns manuscritos do início do século XVI, assim como por meio de onze compilações impressas por Petrucci entre 1504 e 1514. Essas canções de andamento popular, escritas em uma polifonia simples, estritamente silábica ou passavelmente melismática, aparecem registradas nessas fontes sob duas formas: alguns livros apresentam-nas para três ou quatro vozes, outros trazem apenas a parte superior em notação figurada e reduzem as outras vozes à tablatura de alaúde. Esta última prática — ao que parece, bastante corriqueira na Itália — era recomendada por Castiglione: Cantar pelo livro... parece-me uma bela música... mais ainda é cantar ao alaúde, porque toda doçura consiste quase em uma s ó voz... Mas, sobretudo, cantar ao alaúde é como recreação, parece-me mais agradável, pois isso dá tanta graça e eficácia às palavras, que é uma grande maravilha...
Os músicosfranceseseflamengos,ainda numerosos na península, não ficaram indiferentes a essa renovação da música italiana. Quase todos fizeram seus ensaios nesse gênero: Jacob Obrecht, em Ferrara, com La Tortorella [A rolinha]; Loyset Compère em Milão (Scaramella fa la galla, Che fa la ramacina); e o próprio Josquin Des Prés, de que se conhece El grillo [O grilo] e Scaramella va alla guerra [Scaramella vai à guerra].
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A CANÇÃO POLIFÓNICA FRANCESA Tão-somente retorno da influência: a música franco-flamenga, embora dominante, iria revivificar-se nas fontes populares da música autóctone, osmose enriquecedora — e como! — que se amplificaria ainda mais na geração seguinte. Nos anos 1520-1530, a influência italiana âasfrottolle combinou-se com outros fatores, nos territórios franceses, contribuindo para modificar sensivelmente o perfil poético e musical da canção polifónica. O caráter popular da corrente italiana encontra um eco bem favorável no gosto popularizante, já então bastante vivo na corte francesa de Luís XII. Esse gosto já manifestava-se, decerto, em Josquin, mas também fazia-se sentir entre os outros músicos, dele contemporâneos ou mais jovens, como Jean Mouton (ca. 1470¬ 1522), Pierre Moulu (ca. 1480-1550) ou Antoine de Févin (ca. 1473-1511). Um texto como este, musicado por Moulu, é um exemplo eloqüente: Au bois, au bois madame, Au joli bois m'en vais. En celui bois madame, Savez-vous qu'il y a? Un nid, un nid madame, Un nid d'oiseaux y a Au bois... En celui nid madame, Savez-vous qu'il y a? 1
Essa inspiração, antípoda do registro da lírica cortês tão característico do século XV, sem dúvida não é estranha a uma profunda renovação da expressão poética, em particular a orquestrada por Clément Marot. Desta vez, acabaram-se as velhas formas fixas da lírica cortês. Mesmo que baladas e rondós ainda deixem vestígios, praticamente não terão mais influência sobre a invenção da forma musical, que deles se libera, em direção a estereótipos a um só tempo mais flexíveis e mais simples. Ao mesmo tempo, a temática dos textos é consideravelmente diversificada. O amor cortês, ainda vivo, mas renovado pela imitação dos italianos seguidores de Petrarca, também se acomoda a uma vizinhança menos discreta. O amor, bem mais sensual e direto, exprime-se em registro gaulois, ou seja, sem papas na língua. O universo das farsas e dos trétaux invade a canção, com seu cortejo de personagens pitorescos, Martin, Alix, Colin, Colette e outros Irmãos Thibaut. 2
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[Ao bosque, ao bosque, senhora, / Ao lindo bosque me vou. / E esse bosque, senhora, / Sabe o que existe lá? / Um ninho, um ninho, senhora, / Um ninho de pássaros tem lá. / Ao bosque... / Neste ninho, senhora, / Sabe o que dentro há?] (N. T.) Tréteaux eram os trabalhos para saltimbancos, armados na feiras e cidades medievais. Por extensão, o termo designa o gênero primitivo de espetáculo teatral e musical que sobre tais trabalhos se encenava. (N. T.)
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Clément Marot e outros poetas "marotos" desfrutavam de grande prestígio junto aos músicos parisienses da corte, como Claudin de Sermisy (ca. 1495-1562) e Pierre Certon (morto em 1572), mas também junto a músicos da província, como Clément Janequin (ca. 1485-1558), que só foi parisiense no último decênio de sua vida. Para todos os músicos de então, mesmo que estivessem a serviço de igrejas ou de capelas, a canção era um gênero maior. E suas obras, muitas vezes abundantes nesse gênero, passaram a ser publicadas, a partir de 1527, pela novíssima imprensa musical da rue de La Harpe, que Pierre Attaingnant acabara de criar. Attaingnant dedicou a parte principal de sua primeira coleção de Chansons nouvelles en musique [Novas canções em música] a Claudin, então chantre da Capela Real, antes de tornar-se seu "submestre". Mas, no ano seguinte, o editor parisiense publicou um volume completo de Chansons de maître Clément Janequin [Canções de Mestre Clément Janequin], compositor que vivia muito longe de Paris, pois diversos cargos o retinham no Bordelais, de onde viria a partir para Anjou alguns anos mais tarde. Os dois compositores conheceram desde logo um sucesso efetivo. Grande parte das cerca de 150 canções de Sermisy foram reeditadas várias vezes, e os pofifonistas e instrumentistas não se fartavam de interpretá-las e reempregá-las. Tant que vivrai [Enquanto eu viver], Dont vient cela [De onde vem isso] Jouissance vous donnerai [Júbilo vos darei]... Essas canções, todas com texto de Marot, são peças características da arte de Sermisy. Attaingnant editou-as para canto e alaúde em 1529, o que atesta a mobilidade desse repertório, passível de ser cantado tanto a quatro vozes, quanto apenas ao alaúde, à moda italiana. Janequin, embora não demonstre sempre a mesma a qualidade melódica de seu contemporâneo parisiense, revela, a um só tempo, mais fantasia e maior vivacidade. Os grandes aíreseos descritivos (Le Chant des oiseaux [O canto dos pássaros], La Guerre [A guerra]), publicados desde 1528, permaneceram como suas obras mais célebres. A justo título, como testemunha Noël du Fail, quando conta que quando se cantava a canção de guerra feita por Janequin diante daquele grande Francisco, pela vitória que obtivera sobre os suíços, n ã o havia quem deixasse de verificar se sua espada estava bem embainhada, e que n ã o ficasse nas pontas dos pés, para parecer mais forte e de maior estatura.
Na época, quase não havia instrumentistas que não houvessem tentado produzir um efeito como esse: durante todo o século XVI, e ainda no século XVII, as Bataille, Battaglia e outras tantas Battel ressoaram por toda a Europa, em todos os tipos de instrumentos. Parece que foram os cantos dos pássaros que inauguraram essa verve descritiva de Janequin, com Le Chant de l'alouette [O canto da cotovia], do qual foi impressa uma primeira versão, anônima, para três vozes, por volta de 1520, em Veneza, pela editora de Andrea Antico. De maneira curiosa, o texto foi tomado de um antigo
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virelai já musicado no século XTV. É difícil afirmar que Janequintivesseconhecimento da música. Mas, de qualquer modo, ele teria podido encontrar nela a idéia geratriz de todas as suas imitações de pássaros: o jogo fónico, rítmico e contrapontístico construído sobre onomatopéias, espécie de linguagem-objeto, "sonoridades selvagens" sutilmente integradas ao desenvolvimento discursivo de um texto que interrompem periodicamente, instaurando assim uma alternância de estilos musicais contrastados com a qual o músico joga valendo-se de mil nuances. É esta mesma técnica que o músico explora em Le Chant des oiseaux (1528) e em Le Chant du rossignol (1537). Mais ou menos adaptada a outros objetivos, como Bataille [Batalhas], Cris de Paris [Pregões de Paris], Caquet des femmes [Cacarejo de mulheres] e Chasse [Caça], essa técnica é incontestavehnente a principal chave do sucesso de Janequin. Pouco depois da morte deste, disse Antoine de Baï'f. ... Soit que représenter le vacarme il ose, Soit qu'il joue en ses chants le caquet féniinin, Soit que des oisillons les voix il représente, L'excellent Janequin, en tout cela qu'il chante N'a rien que soit mortel, mais i l est tout divin.
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Um pássaro, porém, não esconde a floresta: as 250 canções do "compositor habitual do rei" (Janequin recebeu este título no fim da vida) encerram outras riquezas, que lhe facultam ser ora lírico, ora elegíaco (L'Amour, la mort, la vie [O amor, a morte, a vida]), rústico (La Meunière de Vernon [A moleira de Vernon]), gaulois, ou seja, de franqueza quase rude ( Un jour Colin [Certo dia, Colin] ), francamente erótico (Le Blason du beau tétin [O brasão da bela teta]), sem nunca deixar de ser sutil e requintado. As canções polifónicas desse período têm aspectos musicais claramente desenhados: na obra de Sermisy, Janequin, Passereau, Sandrin ou Certon, o quarteto vocal é modelo generalizado. Trata-se, na maior parte das vezes, de uma voz feminina (ou infantil, ou mesmo de haute-contre) e três vozes masculinas mais graves, dois tenores e um baixo. O texto, bastante curto (entre quatro e dez versos), é declamado silábicamente, mas presta-se freqüentemente a inúmeras repetições, seja em razão da escrita polifónica, seja por causa dos fins expressivos. O contraponto, bem variado, vai da homofonia estrita das frottolle italianas à escrita em imitação, de Josquin Des Prés. Na França, Pierre Attaingnant garante a edição da maior parte das canções. Mas, a partir de 1538, ele não detém mais o monopólio: em Lyon, cidade franqueada para a Itália, Jacques Moderne abre uma outra firma de edição e passa a se
[Quer representar o alarido ele ouse, / Quer brinque em seus cantos com o cacarejar feminino / Quer dos passarinhos as vozes represente / O excelente Janequin em tudo o que canta / Nada tem que mortal seja, pois é em tudo divino.] (N. T.)
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interessar, entre outras coisas, pelo repertório profano. A dezena de livros do Paragon des chansons [Modelo das canções] que ele passa a imprimir atestam claramente as condições da prática das canções: as quatro partes da polifonia, dispostas duas a duas, uma ao contrário da outra, eram reunidas em um mesmo volume que os cantores colocavam sobre a mesa em torno da qual se sentavam, um diante do outro, dois a dois.
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CONTRATENOR
TENOR
Desse modo situada, a canção não era percebida como um objeto de concerto, no sentido moderno do termo. Era antes um prazer convivial compartilhado "ès maisons" (nas casas), elemento entre outros de uma arte da conversação amorosa, cuja origem deve ser buscada nos ritos lúdicos e requintados da velha sociedade cortês. É evidente que esse sentido tende a enfraquecer-se no século XVI: dele permaneceram alguns traços, contudo, em particular na prática das "peças ligadas", pelas quais uma canção responde a uma outra que a precede. Assim, a famosa canção Douce mémoire [Doce lembrança], de Pierre Sandrin (morto em 1561), cujo texto atribui-se ao rei Francisco I , é seguida de uma Réponse, que retoma o primeiro verso da outra, "Fini le bien le mal soudain commence" [Findo o bem, o mal então começa], musicada por Pierre Certon. O repertorio publicado em Lyon ou em Paris distingüe-se sensivelmente de seu homólogo das províncias do Norte, difundido pelo impressor de Antuérpia, Tylman Susato, a partir de 1543. Os polifonistasflamengos,como Thomas Créquillon (morto cerca de 1557), Nicolas Gombert (ca. 1500-1556), Clemens Non Papa (ca. 1510-1558), permaneceram ainda excessivamente presos ao modelo de Josquin Des Prés. O contraponto, embora permeável ao exemplo "parisiense", principalmente ao de Janequin, é bem mais prolixo e denso. Apesar de usarem, também eles, o padrão efetivo do quarteto vocal, não hesitam em livrar-se dele para adotar grupos maiores, com cinco, seis, sete ou mesmo mais vozes. A própria escrita canónica, cuja prática fora quase totalmente abandonada pelos parisienses, pois era excessivamente limitadora para a fantasia deles, ainda tinha encantos para os ouvidos provincianos, em particular quando os compositores exploravam temas vindos de outras polifonias, como as Faute d'argent e as Petite Camusette, que Adrien Willaert ou Thomas Créquillon haviam retomado na esteira de Josquin Des Prés. Precisamente nos anos 1545-1555, evidencia-se o contraste entre a canção parisiense e a cançãofranco-flamenga.De fato, na mesma época em que Susato difundia as obras de Gombert, Créquillon e outros, um novo estilo de canção afir-
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mava-se em Paris, fazendo brilhar os nomes de Sandrin, Boyvin, Arcadelt, Mornable e Certon. A influência italiana das frottole tornou-se ainda mais decisiva, ao que tudo indica, juntamente com a da dança e, sem dúvida, com a marca de alguns poetas italianizantes, como Mellin de Saint-Gelais. Os traços característicos dessa canção parisiense estavam claramente definidos: estrita homofonia das quatro vozes, rigoroso silabismo, texto construído em estrofes, que prendem a música que se repete. As canções com esse perfil invadiram pouco a pouco as últimas publicações de Attaingnant, e, em 1552, esse novo estilo encontrou sua verdadeira consagração no Premier livre de chansons [Primeiro livro de canções], de Pierre Certon, publicado pela nova impressora de música parisiense, de Adrian Le Roy e Robert Ballard, os primeiros de uma promissora dinastia. Os timbres melódicos das canções de Certon já eram populares? Ou tornaramse populares mais tarde? A maior parte delas encontra-se no famoso Recueil des plus belles et excellentes chansons en forme de voix de ville [Coletânea das mais belas e excelentes canções em forma de vozes da cidade], reunidas por Jehan Chardavoine, em 1576, única publicação de canções monódicas que nos legou o século XVI na França. Entre 1552 e esta última data, as mesmas melodias haviam sido utilizadas por outros músicos, principalmente pelo próprio Adrian Le Roy, primeiro em 1555, no Second livre de guiterre [Segundo livro de guiterre], depois em 1573, em seu Premier livre de chansons en forme de vau de ville [Primeiro livro de canções em forma de vau de ville]. Seja qual for a origem da expressão vau de ville, ela designa bastante bem, nas palavras de Le Roy, essas "canções da corte, bem mais leves (que antigamente se chamavam 'voix de ville', e atualmente árias de corte)", tal como ele mesmo explica em seu Livre d'airs de cour mis sur le luth [Livro de árias de corte acompanhadas por alaúde]. O Second livre de guitare [Segundo livro de guitare], que apresenta tais canções naquela que seria a sua forma mais apreciada no final do século XVI e durante o século XVII, ou seja, para voz acompanhada {guitare ou alaúde), volta a sugerir o modelo italiano. Desde a época de Francisco I , eram numerosos os instrumentistas italianos na corte francesa: eles puderam contribuir para desenvolver a prática do "canto ao alaúde", cujo hábito jáficaraatestado nas tablaturas de Attaingnant em 1529. Mas os poetas — e bem antes de Ronsard — não ficaram indiferentes à poesia per musica de seus vizinhos de ultramonte. Mellin de Saint-Gelais, por exemplo, adorava declamar ou cantar seus poemas fazendo-se acompanhar do alaúde. Um de seus textos, Hélas, mon dieu [Infelizmente, meu Deus] utilizado por Certon e Le Roy, traz a menção: "Lamento amoroso para dizer-se ao alaúde em canto italiano." Outro, Puisque nouvelle affection [Vez que nova afeição], tinha como subtítulo "nova canção sobre o canto de uma italiana de vida alegre". O já mencionado Livre de guiterre dá igualmente testemunho da aproximação com a dança: cada canção está associada a um tipo de dança — "galharda", "pavana", "branle gay", "branle de Poitou", conforme o caso.
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A hipótese é tentadora: esse repertório de "canções em forma de vau de ville" poderia ser, em grande número de casos, nada mais que a adaptação de novas letras a timbres conhecidos, principalmente oriundos da dança e simplesmente arranjados em quatro partes. É isso que parece significar o título de uma coletânea de textos: Chansons nouvelles composées sur les plaisants chants qu'on chante à present... [Canções novas compostas sobre os mesmos e agradáveis cantos que se cantam amalmente...]. Em todo caso, com essa prática, estava aberto desde os anos 1550 o caminho para um gênero novo, a air de cour ("ária de corte"), que iria atingir o apogeu meio século depois. A ESTÉTICA MADRIGALESCA Na mesma época, contudo, os músicos franceses, como todos os demais músicos europeus, cedo ou tarde deixaram-se seduzir também pelas outras vozes das sereias italianas que, desde os anos 1530, insinuavam-se com crescente ousadia em um novo estilo, o madrigal. Gênero musical próprio do século XVI, este madrigal não tem nada a ver com o seu homônimo do século XIV. De 1504 a 1515, os onze volumes defrottolle ("frotólas") publicados por Petrucci foram revelando uma progressiva mudança na inspiração poética. O caráter claramente popular das primeiras frótolas cede lugar pouco a pouco a poemas de grande qualidade literária, entre os quais destacam-se os de Petrarca e seus então recentes imitadores. As formas mais eruditas e aprimoradas do sonetto e da canzone suplantavam progressivamente o strambotto e afrottolla, como indica a ordem seguida no título dessa coletânea de Antico, em 1517: Canzoni, sonetti, strambotti etfrottolle. Paralelamente, o gênero (canções, sonetos, stramboti e frótolas) torna-se mais flexível, do ponto de vista musical, ao contato com os polifonistas franco-flamengos, sempre muito presentes na península, mas também por influência das canções francesas, pelas quais os novos editores italianos de vez em quando se interessavam. O novo gênero toma-lhes de empréstimo suas técnicas da escrita contrapontística, mais atentas à homogeneidade do tecido polifónico pelo jogo das imitações. A colonização musical franco-flamenga continua, portanto, sempre muito ativa. Foi em 1530 que o antigo termo madrigal reapareceu no título de uma coletânea publicada em Roma: Madrigali de diversi musici: libro primo de la serena. É significativo que essa publicação traga, lado a lado, obras de músicos da Itália (Costanzo e Sebastiano Festa) e da França (Philippe Verdelot). Fato também característico é que nesse livro se encontrem, a um só tempo, madrigais, algumas autênticas frótolas e até mesmo algumas canções francesas. É que, durante todo esse período (1530-1550), marcado sobretudo pelos franco-flamengos Arcadelt (ca. 1514-1557) e Verdelot (morto ca. 1540), o divórcio entre a frótola e o madrigal não estava definitivamente consumado. O contraste só se iria acusar mais tarde,
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quando a corrente popular passou a alimentar as formas mais leves de polifonia profana que são a villanesca, a canzonetta ou o halieto... Foi sobretudo com Adrian Willaert {ca. 1480-1562),flamengoligado à catedral de São Marcos de Veneza, que as duas estéticas ficaram claramente demarcadas. Tardiamente publicada por Gardane, 1559, a grande coleção de madrigais e motetos de Willaert, Musica nova, boa parte dos quais compostos desde 1540, apresenta-se como uma espécie de manifesto. O madrigal de Willaert, de quatro a sete vozes, incontestavelmente afirma-se, nesta coleção, como um parente próximo do moteto. Ao mesmo tempo, com a escrupulosa atenção concedida à declamação do texto poético, Willaert sublinhava o que viria a ser um traço fundamental do gênero, abrindo, desse modo, caminho para os mais jovens. Foi, assim, na entourage de Willaert, à qual se pode associar seu aluno Nicola Vicentino e um outro flamengo, Cyprien de Rore (o "primeiro renovador", como iria chamá-lo Monteverdi), que se realizaram as primeiras pesquisas de expressão "harmônica" e cromática. Importa observar, contudo, que essa maturação do gênero, em curso por volta de 1550, alimentava-se também de uma intensa reflexão teórica e filosófica, que reunia poetas, músicos e humanistas naquelas academias que entãofloresciampor toda a Itália. Estamos já no âmago do século XVI humanista, que significou no pensamento musical da época, antes de mais nada, o retorno ao homem como centro. A questão da harmonia universal (Mersenne tomaria a expressão como título de sua obra teórica) permanece, mas para melhor afirmar que cada homem é um microcosmo e para conferir à música a elevada ambição de pôr a alma humana em relação com a alma universal. Reivindicava-se, para e pela música, o prazer: "Ela tem comofinalidadecomprazer, a despeito dosfilósofos...",estava escrito em 1579, na dedicatória de um livro de madrigais, porque "a música nada mais é do que um remédio verdadeiro e seguro para as perturbações e os mal-estares da alma". Este programa (e como era moderno!) foi inscrito nos cravos da época, em letras de ouro e a título de decoração: "Musica laetitiae comes, medicina dolorum" [Música, companheira da alegria, remédio das dores]. Com estefim,afirmado desde 1528 por Castiglione, passou-se a buscar uma música ativa e eficaz, a mesma que se fazia na ilha de Utopia, garantia da superioridade dos que nela viviam, segundo Thomas Morus: Eles sem dúvida nos superam enormemente em uma coisa: é que toda a música, tocada por órgãos e outros instrumentos e [cantada] pela voz humana, imita e exprime tão bem as paixões naturais, o som está tão bem acomodado à matéria, o tipo e a forma da melodia transmitem tão bem a coisa cantada, que ela comove maravilhosamente, penetra e inflama os corações dos ouvintes.
De maneira curiosa, foi nesta via utópica e premonitória, descrita desde 1516 pelo humanista inglês, que se engajaram os madrigalistas italianos da segunda metade do século. Em 1555, Nicola Vicentino não dizia nada mais do que:
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A m ú s i c a feita sobre u m texto n ã o tem outro p r o p ó s i t o do que expressar o sentido, as paixões e as afeições nele contidos por meio da 'harmonia'. Desse modo, se as letras falam de modéstia, a c o m p o s i ç ã o deverá ser calma, e n ã o furiosa. Se é de alegria, n ã o se fará u m a m ú s i c a triste, e se for de tristeza, n ã o será a m ú s i c a alegre... Quando um compositor quer escrever u m a m ú s i c a triste, usará u m movimento lento e consonâncias menores. Se quer fazer u m a m ú s i c a alegre, h á de fazê-lo com u m movimento rápido e com consonâncias maiores...
A evidência bastante simples, talvez simplista, dessa proposta não nos deve enganar: o que aqui se esboça é nada mais nada menos que a conscientização de um novo sentido musical, revolucionário, o verdadeiro advento da música moderna, a nossa. Para se realizarem, a imitação da natureza e a expressão sensível das idéias e das "afeições", trataram de forjar um verdadeiro arsenal de meios técnicos variados, que se convencionou chamar de madrigalismos. Algumas dessasfigurassimbólicas têm caráter essencialmente visual: deste modo, a noite ou a morte eram representadas por notas negras, as pérolas ou os olhos por notas redondas. É que o madrigal, música da mtimidade doméstica praticada por amadores esclarecidos ("connoisseurs"), que o liam diretamente nos livros, requer como público apenas os próprios cantores e algumas pessoas da fairúlia ao redor. Prazer dos sentidos, mas também do intelecto, enriquecia-se o madrigal desses jogos de correspondência (música visual) que são, para a música, o que o caligrama é para o poema. Se, antes de 1550, os franco-flamengos desempenharam um papel primordial na elaboração dessa nova estética, pouco a pouco foram os italianos apropriandose deste papel. Mas só nos últimos decênios do século, com os grandes virtuosi, é que os italianos passaram definitivamente aos lugares de destaque. A despeito dos Ruffo, Donato, Nasço, Porta, Animuccia, a despeito mesmo de Palestrina, cujos madrigais tiveram real sucesso desde 1555, os italianos, nos anos 1550-1570, não chegaram a relegar para segundo plano dois grandes músicosflamengos:Orlando de Lassus (1532?-1594) e Philippe de Monte (1521-1603). Ambos puderam fazer experiências no estilo madrigalesco quando estiveram na Itália, onde seus primeiros madrigais foram impressos a partir de 1555. Mas, fato altamente significativo: mesmo em Munique, no caso de Lassus (a partir de 1556), e em Viena, no caso de Monte (a partir de 1568), os dois não deixaram de compor madrigais italianos. O mais fértil dos dois era Monte, que deixou cerca de mil peças desse tipo: um livro a três vozes, quatro a quatro vozes, dezenove a cinco vozes, nove a seis vozes e dois a sete vozes. Mesmo nos anos 1580, era ainda de origem flamenga um dos madrigalistas mais surpreendentes, cuja obra foi determinante para a evolução definitiva do gênero: Jacques de Wert (ca. 1526-1596), na época à frente dos músicos da corte de Mântua. Encontram-se, em seus madrigais, um expressionismo exacerbado, já digno de Gesualdo, e, ao mesmo tempo, um refinamento da declamação que, em-
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bora ainda polifónica, não deixava de estar bem próxima já das futuras experiências florentinas. Pelo seu estilo, e também pelos textos que escolheu, de Wert distingue-se nitidamente dos músicos imediatamente anteriores ou contemporâneos, a saber os italianos Andrea Gabrieli (ca. 1510-1586), em Veneza, e Luca Marenzio (ca. 1553¬ 1599), em Roma. Com esses dois músicos, o madrigal conservava algo do descompromentimento dos gêneros mais leves, como a canzona villanesca. Os textos pertenciam à veia pastoral, que o próprio Monteverdi muitas vezes honraria, em seus primeiros livros, na mesma época. Nesse estilo, Luca Marenzio, "o Schubert do madrigal", como disse o musicólogo Denis Arnold, foi incontestavelmente o melhor, com seus doze livros de madrigais publicados nos anos 1580. Nele, esse estilo misto entre a villanella e o madrigal era acompanhado por uma nova estética vocal que exigia dos cantores tessituras mais extensas e, ao mesmo tempo, uma virtuosidade comprovada. Parece que foi principalmente nas requintadas cortes de Ferrara e Mântua que a nova arte do canto se desenvolveu. Nelas, os cantores amadores foram suplantados por profissionais especializados, que rivalizavam em proezas nas técnicas de ornamentação, sobre as quais abundavam tratados na época. O madrigal tornouse, portanto, uma música de especialistas, como as "três damas de Ferrara", para as quais Marenzio e sobreturo Luzzascho Luzzaschi compuseram inúmeras músicas. A presença desses cantores certamente não foi estranha ao surgimento de uma "nova música" nos primeiros anos do século XVII. Mas antes dessa reviravolta decisiva, foi para o madrigal expressionista de Jacques de Wert que se voltaram os últimos mestres do gênero, Luca Marenzio, Cario Gesualdo (ca. 1560-1613), Luzzascho Luzzaschi (ca. 1540-1607) e o próprio Monteverdi. Enquanto Marenzio e Monteverdi foram buscar textos nos poemas de Tasso (Gerusaleme liberata [Jerusalém libertada]) ou de Guarini (II pastor fido [O pastor fiel]), Gesualdo e Luzzaschi preferiram usar textos de poetas menores, cujo estilo, provavelmente um tanto influenciado por eles, adaptava-se à maravilha aos propósitos expressionistas. Cario Gesualdo, príncipe de Venosa, músico e assassino, certamente foi o mais extravagante deles. Depois de seu casamento com a prima Maria d'Avallos (1586), a vida de Gesualdo foi assaltada por uma seqüência de dramas que o levaram a cometer três assassinatos: o de sua mulher e o do amante dela, os quais Gesualdo fez apunhalar, em 1590, depois de os haver surpreendido emflagrantedelito de adultério; e, mais tarde, o do filho, de cuja legitimidade ele duvidava. Do isolamento ao escândalo, do escândalo ao arrependimento, a despeito de um segundo casamento com Leonora d'Esté, Gesualdo ficou profundamente marcado pela morte e pela loucura, das quais sua música traz os traços evidentes: retoma à exasperação o estilo de Jacques de Wert, com cromatismos, dissonâncias intempestivas, rupturas rudes dos fraseados, mudanças abruptas do tempo... O empenho em expressar a intensidade emocional do texto
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levava-o, como a Luzzaschi e Monteverdi, a transgredir as normas tradicionais da escrita polifónica. Ao assim procederem — cada qual à sua maneira —, eles inventaram a Seconda Prattica, de que Monteverdi logo seria o promotor e o defensor, em seu quinto livro de madrigais (1605). Sabe-se como, já no início do século XVII, os defensores do stile nuovo valeramse das várias experiências anteriormente desenvolvidas no contexto do madrigal polifónico. Opuseram-se, é certo, à antiga polifonia que os Bardi, Galilei, Peri (1561-1633) e Caccini (ca. 1545-1618) impuseram à cena florentina, mas o caminho havia sido amplamente preparado para os novos compositores pelas últimas gerações de magrigalistas. Mais fundamental ainda de ser lembrado é que a Itália possuía uma longa tradição de música teatral, que constituía um terreno totalmente favorável às novas preocupações melodramáticas dos anos 1600. As próprias representações sacras, forma tardia dos mistérios medievais, ainda eram encenadas em Florença nos séculos XV e XVI. Sob formas extremamente variáveis, que vão do canto litúrgico (Te Deuni) às canções profanas e às danças, passando pelos laudi spirituals a música conservava uma função efetiva em tais representações. Nessas representações, já se apreciava também o grande espetáculo, como atestam certas colaborações de Brunelleschi e Leonardo da Vinci. A participação da música em tais espetáculos não era decerto muito diferente da que se observa, durante todo o século XVI, nas pastorais, particularmente apreciadas nas cortes e cidades italianas. Um dos modelos do gênero era um Orfeo, o de Poliziano, representado em Mântua, em 1474, que parece ter sido inteiramente cantado com uma música de Germi atualmente desaparecida. Esse gosto pela pastoral não irá esmorecer dessa data até o século XVII. Entre os textos especialmente marcantes, estão a Aminta, de Torquato Tasso, representada em 1573, e II pastor fido, de Battista Guarini. Aminta seria regularmente encenada e musicada: quando, em 1590, foi representada com música, Emilio de Cavalieri (ca. 1550-1602) e Laura Guidicciomi estavam entre os organizadores do espetáculo. Em 1628, em Parma, foi Monteverdi quem compôs os intermezzi. No final do século XVI, a música estava presente nas pastorais, bem como nas peças imitadas e traduzidas do teatro antigo, "seja sob forma de intermezzo entre os Atos, seja no interior dos Atos, quando o tema representado presta-se a isso", segundo um teórico do século XVII (Doni). O fenômeno também pode ser testemunhado por um tratado dramatúrgico do século XVI: Del modo de reppresentare le favole sceniche [Sobre o modo de representar as fábulas cênicas], de Ingegneri. Os músicos em geral eforçavam-se para diferenciar os dois modos de intervenção. Os coros trágicos, estreitamente integrados à ação do Edipo representado no teatro de Vicenza, em 1585, são um exemplo eloqüente. Andrea Gabrieli escolhera intencionalmente um estilo polifónico austero, realmente declamatório, "para que as palavras sejam compreensíveis", segundo o desejo de Ingegnieri.
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Tal opção estilística não está ausente do madrigal, na mesma época, como na obra de Jacques de Wert; mas distinguia-se bem claramente do tom mais ou menos grandiloqüente e definitivamente extrovertido, usado na maior parte dos intermezzi. Cumpre observar que, em geral, a festa teatral inscrevia-se em um conjunto de manifestações excepcionais, por vezes exibidas durante vários meses por ocasião de um evento que marcava a vida da cidade ou da corte. Em 1565, o casamento de Francisco de Médicis com Joana d'Austria motivou uma seqüência de festas, que se estenderam de dezembro a fevereiro. Uma das principais atrações teve lugar na noite de Natal: uma comédia de Francesco d'Ambra, representada na grande sala do Palazzo Vecchio, em Florença. Os intermezzi e madrigais vocais e instrumentais haviam sido compostos por Alessandra Striggio e Francesco Corteccia. Mas foi certamente em 1589 que se chegou ao auge, também em Florença, por ocasião do casamento de Cristina de Lorena com o grão-duque Ferdinando I. Representava-se La Pellegrina [A peregrina], comédia de Girolamo Bargagli. Desde II commotio [O empréstimo], cinqüenta anos antes, os intermezzi não haviam cessado de crescer em número e extensão, chegando a ponto de sufocar a própria peça. Em 1589, o libreto contava com a contribuição de Ottaviano Rinuccini (futuro libretista das primeiras óperas), de Giovan Battista Strozzi e de Laura Guidiccioni, reunidos em torno de Giovanni de Bardi. As músicas eram compostas por Cristofano Malvezzi, Luca Marenzio, Giovanni de Bardi, Emilio de Cavalieri, Giulio Caccini e Jacopo Peri. Na cena, a maquinaria, os efetivos vocais e instrumentais e os demais meios postos em operação eram realmente impressionantes: até sessenta cantores e sessenta instrumentos em um madrigal a trinta vozes, divididas em sete coros. A orquestra, com sua variedade de timbres, faz pensar no Orfeo [Orfeu], de Monteverdi (1607), que poucas vezes é considerado como o que de fato era: uma festa de corte. Em La Pellegrina, o uso simbólico das cores instrumentais segundo a natureza dos intermezzi, fossem eles pastorais, infernais ou olímpicos, em tudo assemelhava-se ao do Orfeo: é que o Orfeu inscreve-se em uma longa tradição teatral, que, corrente acima, chega até o século XV, e, corrente abaixo, prolonga-se até o século XVII, e talvez até mais adiante. A presença, entre os músicos, de Cavalieri, Peri e Caccini, futuros promotores da monodia, do recitar cantado e do melodramma, está longe de ser algo de indiferente: aliás, não há nenhuma surpresa ao se encontrarem, em certos intermezzi, alguns exemplos de monodia acompanhada. É claro que não se trata de recitativo, mas simplesmente de madrigais polifónicos confiados a uma voz solista, acompanhada por mstrumentos (violas, trombones, etc). Em suma, uma prática bastante disseminada na Itália desde o tempo das frottolle. Tais circunstâncias contribuíram para tirar o madrigal do reduto dos "clubes" mais ou menos exclusivos das academias ou dos círculos estritos dos connoisseurs
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aristocratas ou burgueses. E isto — como se viu — não deixaria de modificar consideravelmente as condições de sua prática e, portanto, de sua realidade sonora. Existe todo um mundo entre os cinco cantores ou instrumentistas de uma execução de caráter privado (da camera) e os faustosos efetivos de La Pellegrina. Tem-se, contudo, notícia, na mesma época, de algumas realizações nas quais madrigal e teatro interpenetravam-se, permanecendo no espaço íntimo e familiar das cameras de amadores. Trata-se dos madrigais dramáticos, também denominados comédias madrigalescas (commedia harmonica), cujo período mais fecundo coincide exatamente com a preparação florentina das primeiras experiências melodramáticas (ca. 1590-1608). Os dois fenômenos, do ponto de vista musical, nem por isso deixam de ser diametralmente opostos. Os madrigais dramáticos, de autoria de Alessandra Striggio (ca. 1535-1587, pai do libretista de Monteverdi) e, mais tarde, de Giovanni Croce (1557-1609), Orazio Vecchi (ca. 1550-1605) e Adriano Banchieri (ca. 1567-1634), não se distinguiam fundamentalmente dos demais madrigais polifónicos. Eram, no entanto, o ponto de convergência de um conjunto de tradições musicais e culturais que lhes definem um perfil muito particular. Concentram-se nesses madrigais dramáticos, influências tão diversas quanto a do canto de carnaval, da villota, dos pregões das ruas, da canção de dança, do quodlibet, da paródia, ao mesmo tempo que certos traços da canção francesa narrativa, ou "avec propos" (como dizia Marot) — influências na verdade catalisadas pelo universo tradicional da commedia delVarte. Não parece, todavia, que essas obras tenham dado lugar a verdadeiras representações. No prólogo de seu Amfiparnasso, commedia harmonica [Anfiparnaso, comédia harmônica], que data de 1597, Orazio Vecchi não deixa dúvidas a respeito: Esse espetáculo é ouvido pelo espírito, ao qual ele chega pelos ouvidos, e n ã o pelos olhos. Essa é a razão pela qual deveis fazer s ü ê n c i o : mais do que olhar, é preciso ouvir... Meu objetivo é a variedade, a vida é meu modelo... Por isso prefiro a forma dramática, porque é mais p r ó x i m a da vida. Por isso represento personagens que se exibem em uma cena imaginária e teço ações que s ó podem ser seguidas pelo ouvido.
Ao mesmo modelo também pertencem várias obras de Banchieri, principalmente La pazzia senile [A loucura senil], encenada em 1598, e La prudenza giovenile [A prudência juvenil], de 1607. Outro tipo, simples antologia (Selva) que alterna o cômico e o sério em torno de um argumento principal, mais ou menos dramático, foi igualmente explorado tanto por Vecchi (Convito musicale [Convite musical, 1597], Le veglie di Sienna [As vigílias de Siena, 1604] ), quanto por Croce (Mascarate piacevole e ridicolose per il Carnavale [Mascaradas ridículas e divertidas para o Carnaval, 1509]), e Banchieri (Barca di Venezia per Padova [Barca de Veneza para Pádova, 1605], Festino nella sera del Giovedi grasso avante cena [Pequena festa para a noite de quinta-feira gorda, antes da ceia, 1608]).
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Como no madrigal amoroso a cinco vozes, a expressão individual das personagens acomoda-se a uma linguagem polifónica que não permite isolar uma personagem em uma voz determinada: como nas canções francesas "avec propos", ou como no dialogo italiano, a distinção dos locutores opera-se por contrastes de texturas, em que as vozes se opõem por grupos variados de duas, três ou quatro, segundo as tessituras. Basta aceitar a convenção. Com o enorme sucesso do madrigal entre 1530 e 1600, a Itália passou rapidamente de um estado de sujeição aos franco-flamengos a uma atitude de quem parte para a conquista. Nos últimos decênios do século XVI, os madrigais italianos, ou suas adaptações nacionais, foram compostos e impressos por toda a Europa: que sejam lembrados Orlando de Lassus e Scandello, em Munique, Monte, em Viena, mas também Marenzio, traduzido e publicado em Londres, na Musica transalpina [Música transalpina], de Yonge (1588). Até mesmo a protegida Península Ibérica foi atingida. E, no entanto, desde o último quartel do século XV, o repertório do Cancionero musical de Palacio [Cancioneiro musical do palácio], composto na época dos reis católicos (Fernando e Isabel), já trazia a marca de um acentuado caráter nacional e popular, que a presença dosflamengos(Gombert, Créquillon...) nas cortes de Carlos V e Filipe II não conseguiu alterar. As Ensaiadas [Saladas] de Mateo Flecha, o Velho, espécie de pots-pourris, segundo o modelo do quodlibet ou da fricassée francesa, serviam-se manifestamente de traços populares para chegar, pelo cômico, à lição moral. Embora tenham sido publicadas tardiamente (em Praga, 1581), estavam certamente compostas desde 1540, de vez que uma delas, La Batailla en Spagnol, La Justa (Batalha em espanhol, A justa), foi impressa em Lyon por Jacques Moderne. Mas a simplicidade popular do contraponto e as formas tradicionais dos primeiros villancicos e romanzas do início do século não resistiram totalmente ao italianismo dominante. Desde 1560, estava aberta a brecha, com a Recompilación de sonetos y villancicos [Coletânea de sonetos e villancicos], de Juan Vasquez (ca. 1500-az. 1560). A própria palavra madrigal é usada em espanhol, por escrito, desde 1561, pelo catalão Pedro Alberch Vila, cuja coleção de madrigais (odarium quas vulgo madrigales appellamus... ["canções às quais geralmente chamamos madrigais"]) compreende inclusive algumas peças em língua italiana. Mateo Flecha, o Jovem (1530-1604), sobrinho do Velho, igualmente adaptouse ao estilo italiano: seus madrigais, publicados em Veneza, em 1568, eram quase todos cantados em italiano. O próprio Francisco Guerrero também não escapou ao gênero em suas canções profanas ou sacras, impressas em 1589. Finalmente, não poderíamos esquecer o francês Jean Brudieu (ca. 1520-1591), que passou a vida a serviço de igrejas catalãs e cujos Madrigales [Madrigais], de 1585, eram dedicados ao duque da Savóia, genro de Filipe II. Em contrapartida, não parece que os músicos franceses tenham alguma vez
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utilizado o termo madrigal. Isso não impede que os musicólogos usem o termo "madrigalistas franceses" para designar (corretamente) vários compositores de canções, ativos entre os anos 1560 e 1590. Com efeito, depois de 1550, as novas canções "en forme de voix de villê' ("em forma de vozes da cidade"), embora prometessem um belo futuro, por sinal plenamente realizado na air de cour do primeiro barroco, não seguiam totalmente as formas modernas da canção polifónica. As últimas canções de Janequin, assim como certas obras de Pierre Certon e de Sandrin, já revelavam uma certa evolução abertamente atenta ao gosto italiano, ao mesmo tempo que os próprios poetas do círculo de Ronsard e da Pléiade, também deixavam-se atrair por um italianismo cada vez mais avançado. Depois da influência de Marot, nos anos 1530, a de Ronsard passou a desempenhar papel de primeira importância. O poeta, para quem "os versos sáfícos não são, não foram, nem serão jamais agradáveis caso não sejam cantados a viva voz, ou pelo menos acompanhados por instrumentos, que são a vida e a alma da Poesia", queria fazer reviver, na França, "o uso da lira, atualmente ressuscitada na Itália". Foi esse desejo de "escandir a ode na lira" exigência nada desprezível na definição de certas formas poéticas, que Ronsard tentou realizar, já em 1552, acrescentando aos Amours de Cassandre [Amores de Cassandra] um Supplément musical [Suplemento musical]. Para fazê-lo, contou com o auxílio de quatro músicos, Pierre Certon, Clément Janequin, Marc-Antoine Muret e Claude Goudimel (ca. 1505-1572), então colaborador musical do novo impressor parisiense, Nicolas du Chemin. Com as polifonias desse suplemento, é possível cantar todos os sonetos da coletânea que Ronsard teve o cuidado de conceber observando as formas de quatro esquemas de escrita poética definidos pela disposição das rimas masculinas e femininas. Se é difícil não ver nessa empreitada um quase fracasso, é porque a colaboração certamente não foi efetiva: os músicos parecem não ter compreendido a verdadeira intenção do poeta. Ao mesmo tempo que dispunham, com o vaudeville, de um gênero totalmente adequado às idéias de Ronsard, compuseram, ao contrário, músicas já excessivamente madrigalescas: muito particularmente adaptadas ao conteúdo semântico de um texto específico, suportavam mal a passagem a um outro poema. A polifonia de Certon sobre o soneto J'espère et crains [Temo e tenho esperança], ou a de Janequin sobre Nature ornant [Ornando a natureza] são provas disso. A partir desta data, a estética madrigalesca não deixou mais de ser desenvolvida pelos compositores publicados pela nova firma impressora parisiense de Adrian Le Roy e Robert Ballard, fundada em 1551. Orlando de Lassus, que se tornou ilustre tanto no madrigal italiano quanto na canção francesa, certamente foi um importante promotor desses gêneros. Embora se tenha fixado em Munique a partir de 1556, era muitas vezes solicitado em Paris, onde esteve várias vezes. Freqüentemente denominado "Príncipe dos músicos de nosso tempo", o "mais que divino
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Orlando" quase conseguiu destronar Josquin Des Prés na mitologia musical do século XVI. O próprio rei Carlos IX interessou-se pessoalmente pelas canções de Orlando de Lassus, principalmente por Un jeune moine [Um jovem monge] e por diversas músicas cromáticas; entre as quais Prophéties de la Sybille [Profecias da Sibila], que Adrian Le Roy levara-o a descobrir. Parece mesmo que Carlos LX sentiu-se tentado a atrair definitivamente o músico para Paris. Se Lassus acabou preferindo a corte da Baviera, nem por isso deixou de ser editado em Paris, onde uma numerosa coleção de suas canções a quatro e cinco vozes foi reunida, em 1570, com o nome de Mélange d'Orlando de Lassus [Miscelánea de Orlando de Lassus]. O estilo de Lassus, contado, é sempre variado: desse modo, certas canções inspiravam-se manifestamente em canções parisienses de antes de 1550, outras nas villanelle italianas. Certamente foi nas canções a cinco vozes que ela mais se deixou solicitar pelo texto, compondo verdadeiros madrigais em francês: La nuit froide et sombre [A noite fria e sombria], com texto de Joachim du Bellay, é um belo exemple A preferência pelas polifonias a cinco ou seis vozes, então privilegiadas pelos madrigalistas italianos, já é, por si só, um sinal quase infalível do gosto italiano em compositores como Jean de Castro, Fabrice Marin Caietain (ele próprio italiano) ou Philippe de Monte, bem como igualmente é a tendência a agrupar as peças curtas em "ciclos", à moda das sestine italianas. O quarteto vocal, porém, ainda era bastante corrente, e certos músicos, mesmo madrigalistas, como Guillaume Costeley (ca. 1531-1606), Antoine de Bertrand (morto ca. 1581) e Guillaume Boni (morto ca. 1594) e acomodavam-se perfeitamente a ele. Em seus dois livros dos Amours de Ronsard [Amores de Ronsard, 1576 e 1578], o averno Antoine de Bertrand criou uma música altamente expressiva, que ele se esforçou por adaptar com sutileza aos textos de Ronsard, tanto na forma, no ritmo prosódico do verso, quanto no conteúdo emocional. Depois do italiano Vicentino e do francês Costeley, Antoine de Bertrand chegou até a experimentar os modos cromáticos e enarmônicos dos gregos, utilizando para isso uma forma particular de sustenidos destinados a indicar os quartos de tom. Em Costeley, como em Castro, Caietain ou Boni, o itaHanismo traduz-se antes no uso sistemático de madrigalismos. Sejam quais forem os meios empregados, todos os compositores dessa geração pareciam perseguir o mesmo objetivo que os italianos: restituir à música um poder real que ela detivera, segundo eles, entre os antigos e que se resume em uma palavra (que deve ser entendida em seu sentido mais forte): o arrebatamento. A anedota contada por Pontas de Thiard, na qual descreve o efeito obtido sobre os ouvintes por Francesco da Milano (1497-1543) ao tocar um alaúde no final de uma refeição, é sintomática desse estado divino: Retirada a refeição, ele pegou u m alaúde e, como para testar os acordes, p ô s - s e a u m canto da mesa, buscando u m a fantasia. M a l lançara ao ar três acordes e já interrompia
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as conversas que alguns dos convivas haviam iniciado, obrigando-os a voltar o rosto para onde estava; continuou com tão arrebatadora mestria que, pouco a pouco, com aquele seu divino modo de tocar, fazendo morrerem as cordas sob seus dedos, transportou todos os que o escutavam para t ã o graciosa melancolia que u m sustentava a cabeça com a m ã o , apoiada no cotovelo, outro, relaxadamente estendido em u m a pose descuidada, com a boca entreaberta mantinha os olhos semicerrados, fixos (julgar-se-ia) nas cordas, e outro ainda, o queixo caído sobre o peito, escondia u m rosto da mais triste taciturnidade como jamais se viu — todos enfim privados de qualquer sentimento, fora a audição, como se a alma, tendo abandonado todas as outras sedes dos sentidos, se houvesse concentrado nos ouvidos, para gozar mais facilmente t ã o arrebatadora sinfonia...
Aquilo que nos pode parecer uma situação banal de enlevo produzido pelo prazer estético é percebido, pelos homens da época, em sua novidade, como a concretização rara de uma espécie de êxtase órfico, facultado pelo poder mágico dos sons. Na linguagem do século XVI, "ter a alma arrebatada" era uma expressão forte. Essas são as palavras que Pontas de Thiard emprega para descrever Pásitea cantando "ao som das cordas": "A voz era tão doce e agradável, com que ela escandía tão graciosamente uma ode italiana, que eu me sentia arrebatado como que por uma celeste harmonia." As mesmas palavras ainda, em Ronsard, no prefácio de Mélange de chansons [Miscelánea de canções, 1572], endereçado ao rei Carlos LX, instando para que banisse todos os que pudessem resistir ao encanto: Porque aquele, Sire, que, ouvindo u m doce acorde de instrumentos ou a suavidade da voz natural, n ã o se rejubilar, n ã o se emocionar e n ã o estremecer da cabeça aos pés, como que docemente arrebatado e sem saber como, fora de si — este dá sinais de que tem a alma torta, viciosa e depravada...
Mesmo que os meios empregados fossem fundamentalmente diferentes, seria falso crer que as árias da corte, "que antigamente eram chamadas voix de ville", como diz Le Roy, perseguissem outro propósito. Assegurando uma melhor inteligibilidade das palavras, prestando-se melhor ao canto acompanhado (pela própria pessoa que cantava), respondiam também melhor às exigências humanistas. Foi com o mesmo espírito, portanto, que certos poetas e músicos iriam experimentar a musique mesurée à l'antique ("música escandida à antiga"). Claude Le Jeune diria, no prefácio do Printemps [Primavera, 1603], que não apenas "ela é igual à dos antigos, mas bem mais excelente e mais capaz de produzir belos efeitos, uma vez que faz ouvir o corpo casado com sua alma, que, até então, dela se havia separado". "Porque", acrescenta ele, "somente a Harmonia, com suas agradáveis consonâncias, pode pôr em estado de admiração os espíritos mais sutis; mas a Rítmica, animando-os, pode animar também, mover, conduzir para onde quiser, com a doce violência de seus movimentos regulares, qualquer alma, por mais rude e grosseira que ela seja." Teoria comprovada, se é para crer no seguinte relato do século XVII:
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Tenho às vezes ouvido o senhor Claudin Le Jeune dizer... que fora cantada u m a ária (que
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A música instrumental
ele compusera, com as partes) durante as magnificências que tiveram lugar por ocasião das nupcias do falecido Duque de Joyeuse... a qual, como a executassem em u m concerto particular, fez um cavalheiro que lá estava presente p ô r - s e em armas, que c o m e ç o u a praguejar em voz alta que lhe era impossível conter-se para n ã o se ir bater contra alg u é m ; então, c o m e ç a r a m a cantar uma outra ária que o fez ficar tranqüilo como antes.
Foi em torno do poeta Antoine de Baïf e do músico Thibaut de Courville que essas experiências surgiram, nos anos 1560-1570. Delas participaram Lambert de Beaulieu, Claude Le Jeune (ca. 1525-1601), Jacques Mauduit (1557-1627). Em 1570, foi fundada a Académie de Poésie et de Musique, constituída por profissionais e ouvintes, sob os auspícios reais de Carlos IX. O objetivo era duplo: restaurar "a medida e a regra da música antiga, usada pelos gregos e romanos", inspirada nas métricas latinas e gregas, mas também fundar uma verdadeira "escola para servir de estufa, de onde, um dia, brotariam poetas e músicos, por boa arte instruídos e preparados". Essa dimensão pedagógica foi atestada por Fabrice Marin Caietain, que declarou, na dedicatória de suas Airs mis en musique à quatre parties [Árias postas em música em quatro partes, 1576], ter "freqüentado a escola dos Senhores de Courville e Beaulieu, um o Orfeu, e outro o Arion da França..." Incontestavelmente, é a Claude Le Jeune que se devem as melhores criações nesse caminho efêmero da música escandida à antiga, em particular com o Livre des mélanges [Livro de misceláneas], publicado em 1585, o Printemps, coletânea póstuma impressa em 1603, e as Airs [Árias], de 1594 e 1608. Em Printemps, Claudin musicou 39 cançonetas de Ba'íf, das quais 33 em música "à antiga". As canções aí estavam divididas em estrofes, chamadas "chants", alternadas com um refrão, chamado "rechants" ou "reprises". A maior parte das vezes o número de exécutantes varia de um "chant" para o outro, em oposição ao tutti, utilizado em pelo menos alguns dos "rechants". Esta é uma contribuição, e nada desprezível, em termos de variedade em uma música cujo próprio princípio traduzia-se quase automaticamente pela repetição sistemática de um esquema rítmico único. É verdade que o reagrupamento das breves e longas em diversos metros, alternativamente binários ou ternários, produzia efeitos rítmicos a que não faltavam encantos. Encontram-se, desse modo, algumas criações muito bem-sucedidas entre as Chansonnettes [Pequenas canções] de Jacques Mauduit, assim como nas Meslanges [Misceláneas] de Eustache du Caurroy (1549-1609), "submestre" da Capela Real e "compositor da música da Câmera Real".
Quando se quer explicar o súbitoflorescimentoda música instrumental no século XVI como um dos fenômenos culturais do Renascimento, um problema desde logo se coloca, em tudo similar ao da Itália do Quattrocento. Também aqui é preciso evitar confundir a realidade histórica com a leitura parcial que as fontes nos permitem fazer dela. Antes dos primeiros anos do século XVI, as fontes manuscritas de música instrumental eram extremamente raras, praticamente limitadas a algumas tablaturas de teclado para órgão ou espineta, das quais a mais famosa era o Buxheimer Orgelbuch [Livro de órgão Buxheimer], que continha cerca de 250 peças reunidas por volta de 1460. Seria possível deduzir que a prática instrumental não existia naquela época? Todos os testemunhos, as crônicas, a literatura, os documentos iconográficos provam o contrário. Duas explicações permitem resolver esse paradoxo. Primeiro, parece que, no essencial, comete-se um erro grosseiro de apreciação quando se toma o instrumentista daquela época pelo modelo do músico moderno, cuja atividade essencial resume-se a executar a música dos outros, pela interpretação da escrita musical (a partitura). No século XV, e ainda no século XVI, o "tocador de instrumentos" certamente estava bem mais próximo dos músicos de cultura tradicional. A atividade criadora desse músico não se exercia diante de uma folha de papel, mas no instantâneo do gesto instrumental. Seu repertório e, portanto, sua invenção própria alimentavam-se dos ensinamentos de um mestre ou configuravam-se na apropriação pessoal de um saber coletivo. Alguns exemplos podem ser dados. Que músicas poderiam tocar os grupos de dois ou três instrumentistas que a iconografia mostra empoleirados no balcão dos salões de baile dos palácios borgonheses? Quando se supõe que se trata de bassesdances, sem dúvida as danças de corte mais apreciadas no século XV, pensa-se então na coletânea conservada na Biblioteca Real de Bruxelas, manuscrito dito "Margarida d'Áustria". Sobre as páginas do pergaminho negro, 59 melodias estão escritas em notas de ouro e prata, sem indicação de ritmo ou polifonia. Alguns exemplos tardios, como uma Alta, de Francisco de la Torre, ou diversas Spagna ou Bassa Castiglia, oferecem-nos modelos verossímeis de execução. Essas melodias, tradicionais e conhecidas tanto dos menestréis quanto dos dançarinos, eram em geral tocadas, como cantusfirmus,em valores longos, correspondendo a uma série de passos, por uma sacabuxa (trombone), enquanto um ou dois outros instrumentos, bombardas ou charamelas (oboés), improvisavam um contraponto. Essa técnica não é fundamentalmente diferente de um dos aspectos da prática do organista nas igrejas da época. Segundo o Fundamentum, de Hans Buchner, organista em Constanza no início do século XVI, três tarefas principais eram de sua competência: preludiar de improviso as polifonias vocais, adaptar tais polifo-
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nias a seu instrumento e improvisar um contraponto variado sobre o canto litúrgico. Os sete livros de tablaturas "de órgãos, espinetas e manicórdios", publicados em 1531 pelo parisiense Pierre.Attaingnant, também englobavam esses três aspectos. Neles são encontrados vários Préludes [Prelúdios], misturados a Treize motets musicaux [Treze motetos musicais] e aos Magnificat sur les huit tons avec Te Deum Laudamus [Magnificat sobre os oito tons corn Te Deum Laudamus]. Um dos livros também inclui uma Tablature pour le jeu d'orgues épinettes et manicordios sur le plain chant de Cunctipotens et Kyrie Pons, avec leurs Et in Terra, Patrem, Sanctus et Agnus Dei [Tablatura para a execução de órgão, espinetas e manicordios sobre o cantochão de Cunctipotens e Kyrie Fons, com seus Et in Terra, Patrem, Sanctus e Agnus Dei]. AS TRANSCRIÇÕES Mas, ao lado desse repertório firúrgico, as tablaturas de Attaingnant compreendiam também um livro de danças (Quatorze gaillardes, neuf pavanes, sept branles et deux basses-dances.... [Quatorze galhardas, nove pavanas, sete branles e duas basses-dances}) e dois livros de Chansons musicales réduictes en la tablature des orgues [Canções musicais reduzidas para a tablatura dos órgãos]. Essas "transcrições" de canções polifónicas ilustram um fenômeno importante na prática musical do século XVI: o repertório vocal e o repertório instrumental só muito artificialmente distinguiàm-se um do outro. Chansons convenables tant à la voix comme aux instruments [Canções convenientes tanto à voz quanto aos instrumentos] ou Chansons propices à jouer de tous les instruments musicaux [Canções propícias a serem tocadas por todos os instrumentos musicais] são os títulos das coletâneas de canções. Em contrapartida, pode-se também encontrar um Recueil de danseries, contenant presque toutes sortes de danses... accommodées aussi bien à la voix, comme à tous instruments musicaux.. [Coletânea de danças, contendo quase todos os tipos de danças, que se acomodam tão bem à voz como a todos os instrumentos musicais..., Phalèse, Antuérpia, 1583]. Estas não são figuras de estilo, mas antes o reflexo de uma realidade musical vivida. As mesmas práticas eram constatadas na Itália, onde, em 1517, Andrea Antico publicou um livro de frótolas em tablatura de órgão (Frottole intabulate da sonare organi). Da mesma forma, em 1549, Gardane publicou uma coletânea de ricercari, doflamengoJacques Buus, "da cantare e sonare d'organo e altri stromenti" ("para serem cantados ou tocados em órgão e outros instrumentos"). Os exemplos poderiam multiplicar-se. O repertório instrumental alimentava-se constantemente da música vocal, tanto religiosa quanto profana. Essa prática era a da maior parte dos instrumentistas. Desse modo, na Itália, em 1523, Marc Antonio Cavazzoni, de Bolonha, adaptou para órgão motetti e canzoni, entre as quais encontra-se, por exemplo, uma canção de Josquin Des Prés,
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Plus nuls regrets. O mesmo aconteceu com seu filho, Girolamo, que utilizou principalmente Faute d'argent, de Josquin Des Prés e II est bel et bon [Ele é belo e bom], de Passereau. Em tais "obras", o organista já tomava liberdades com relação a seu modelo, que ele "glosava" bem livremente, conservando embora o esquema formal genérico. Os organistas de São Marcos, de Veneza, em particular Claudio Merulo (1533-1604) e Andrea Gabrieli (ca. 1510-1586), iriam dar continuidade a essa prática, sem mudança notável, até o fim do século XVI. Desse modo, Andrea Gabrieli adaptou algumas canções célebres, como Martin menait [Marfimlevava], de Janequin, Un gai berger [Um alegre pastor], de Créquillon, Suzanne un jour [Certo dia Suzana], de Orlando de Lassus, mas também madrigais italianos, como o famoso Ancor che col partiré [Embora com a partida], de Cyprien de Rore. Os organistas espanhóis dedicaram-se também à arte da transcrição, que chamavam glosas. Duas publicações importantes transmitiram-nos exemplos. A primeira é o Libro de cifra nueva para tecla, harpa y vihuela [Livro de cifra nova para teclado, harpa e vihuela], de Venegas de Henestrosa (1557). Venegas, organista em Toledo, era mais compilador do que compositor. Já se encontravam, nessa coleção, cerca de quarenta peças do grande organista cego, Antonio de Cabezón, cujas obras só seriam reunidas e publicadas mais tarde, doze anos após a sua morte (1566), por seu filho, Hernando, em Obras de musica para tecla, arpa y vihuela [Obras de música para teclado, harpa e vihuela, Madri, 1478]. Como se vê, essas duas coleções tinham em comum o fato de não se destinarem apenas ao órgão, mas também à harpa e à vihuela, este instrumento próximo do alaúde e tão particular à Península Ibérica. As canções ou motetos postos em tablatura por Cabezón, o músico de Carlos V e de Filipe II, eram essencialmente de origem flamenga ou francesa, tomados de empréstimo às obras de Gombert, Clemens Non Papa ou Créquillon, por exemplo. As glosas do livro de Cabezón são mais livremente elaboradas do que as coletadas por Venegas. Entre as canções ou madrigais mais célebres, encontram-se ainda Un gai berger (Créquillon) e Ancor che col partiré (Rore) , assim como a famosa canção de Sandrin, Douce mémoire, glosada por Hernando. Inúmeras transcrições do mesmo tipo também figuram em diversos manuscritos portugueses. Certamente era no repertório dos alaúdes e de outros instrumentos de cordas (guitarra, cítara, vihuela) que as transcrições de música vocal eram mais abundantes. Esses instrumentos, especialmente o alaúde, apresentavam como vantagem, tal como os teclados, permitir ao indivíduo tocar sozinho uma polifonia — mesmo complexa — que normalmente exigia quatro cantores ou instrumentos melódicos; menos caros e mais fáceis de transportar, os instrumentos de corda eram bem mais difundidos do que os teclados e partilhavam do prestígio que lhes conferia o modelo italiano de cortesão (Castiglione). Desde o início do século, na Itália, as primeiras tablaturas para alaúde impressas por Petrucci propunham transcrições de obras vocais. No Premier livre [Livro
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primeiro, 1507], um bom terço das obras de Spinaccino retomavam, em tablatura as polifonias publicadas no Odhecaton, de 1501.0 Quatrième livre [Livro quarto] de Joan Ambrosio Dalza, em contrapartida, interessava-se mais pelo repertório italiano das frótolas. Na verdade, quando se consideram as transcrições só para alaúde e as adaptações para canto e alaúde, constata-se que quase não havia gênero musical que escapasse aos alaudistas. Frótolas e madrigais, em particular, eram postas em tablatura de duas formas. Em 1509 e 1511, dois livros de frótolas adaptadas para canto e alaúde por Francisais Bossinensis foram publicados por Petrucci. Em 1536, foi o próprio Willaert quem transcreveu, da mesma maneira, os madrigais de Verdelot. No mesmo ano, também em Veneza, três grandes alaudistas (Marco dall'Aquila, Francesco da Milano e Albert de Rippe) passaram a se interessar pelos motetos e canções francesas. Francesco da Milano não hesitou em fazer soar em seu instrumento a célebre La guerre, de Janequin. Outros também iriam deixar de lado a desconfiança, e foi por sinal em uma tablatura italiana (ca. 1540) que a canção apareceu, pela primeira vez, com o título tão evocador que a ela ficou associado: La bataille de Marignan [A batalha de Marignan]. Da Milano, assim como Vindella, também transcreveu madrigais, na maior parte das vezes tomados de empréstimo antes aos músicos flamengos do que aos italianos. Até a música religiosa teve esta mesma sorte: os motetos de Josquin Des Prés, por exemplo, mas também as missas, parcial ou mtegralmente, como a Missa super Ave Maria, de Févin, posta em tablatura por Melchior de Barberiis, padre de Pádua. Os vihuelistas espanhóis não procederam de modo diferente quando adaptaram o repertório vocal. Os modelos foram evidentemente tomados aos flamengos, sempre tão influentes na Península Ibérica: tanto em Los seys libros del delphin de musica [Os seis livros de música do delfim], de Luis de Narvaez (1538), como em Silva de sirenas [Floresta de sereias], de Valderrábano (1547). Mas os músicos espanhóis têm igualmente seu lugar em tais publicações: Morales e Vasquez, com Valderrábano, mas também Guerrero e Mateo Flecha, em Orphenica lyra [Lira de Orfeu], de Miguel de Fuentellana (1554). A exemplo dos alaudistas italianos, também os espanhóis praticavam a adaptação para canto e vihuela, como El maestro [O maestro], de Luís Milan (1535), e interessavam-se pelo repertório religioso. Foi assim que Narvaez pôs em tablatura seis missas de Josquin Des Prés, de quem foram encontradas outras oito missas no Libro de musica de vihuela [Livro de música de vihuela], de Diego Pisador (Salamanca, 1522). Em 1576 ainda, as últimas publicações de vihuela incluíam muita música vocal: uma parte tomada de empréstimo de formas mais modernas, como madrigais, villanescas ou villancicos de Guerrero e Vasquez, por exemplo. Era El Parnaso [O Parnaso], de Esteban Daza. Na França, entre 1529 e 1603 (Thesaurus harmonicus, de J.-B. Bésard), os alaudistas não iriam mais parar de transcrever polifonias vocais, na maior parte das vezes canções francesas. Foi Pierre Attaingnant quem abriu o caminho, em 1529,
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com a Très brève et familière introduction pour entendre et apprendre par soi-même à jouer toutes chansons réduites en tablatures de luth [Muito breve e familiar introdução para ouvir e aprender por si mesmo a tocar todas as canções reduzidas à tablatura de alaúde]. Verifica-se, nessa publicação, uma evidente dimensão pedagógica: Attaingnant propunha aos iniciantes do alaúde um método de adaptação, para seu instrumento, de polifonias vocais. Cerca de quarenta anos mais tarde, Adrian Le Roy, editor, mas também alaudista, retomava a mesma proposta em Instruction d'asseoir toute musique des divers tons en tablature de luth [Instrução para assentar toda a música dos diversos tons em tablatura de alaúde, 1570], obra da qual chegou até nós apenas uma tradução inglesa publicada em 1574. Mas, entre 1529 e 1570, mudaram tanto o repertório quanto o estilo de adaptação. Em 1529, Attaingnant trabalhava sobretudo com canções parisienses, em particular as de Sermisy, que transcreveu simplesmente de duas maneiras, "isto é, em duas partes e a música, e em três, sem música", o que quer dizer, para voz (música) e alaúde (tablatura), ou só para alaúde (sem música). Em geral, a polifonia era simplificada pela omissão de uma das quatro vozes (contratenor), e a própria ornamentação ficava totalmente limitada. O tratado de Le Roy está organizado de maneira visivelmente diversa. As onze polifonias escolhidas eram todas tomadas de empréstimo de Mélange d'Orlande de Lassus. Primeiro, eram apresentadas em uma transcrição simples, rigorosamente de acordo com a original música vocal. O alaudista acrescentava amplas explicações para cada uma das onze polifonias, com o cuidado de ilustrar a técnica de transcrição "nos diversos tons". Cada exemplo, no entanto, era seguido de uma outra versão, bem mais elaborada, na qual Adrian Le Roy expunha "toda a fineza da arte". As duas démarches, tanto a de Attaingnant como a de Le Roy, embora aplicadas a repertórios diferentes, ilustram de maneira evidente que, conforme a arte com a qual é feita, a transcrição dos modelos vocais para alaúde pode ser apenas urna simples execução (entre outras possíveis), ou, ao contrário, uma verdadeira recriação, na qual o instrumentista via-se envolvido como criador, tanto quanto o compositor da obra original. Entre os alaudistas mais notáveis, o italiano (de Mântua) Albert de Rippe (ca. 1480-1551), alaudista a serviço da corte da França entre 1528 e 1550, foi incontestavelmente o maior. Se é fato que ele escolhia principalmente canções simples, como as de Sandrin, transformava-as por inteiro, usando procedimentos de ornamentação e de variação de grande diversidade. Trazendo para a França a experiência e a arte dos alaudistas italianos, contribuiu de maneira determinante para a renovação do gênero e exerceu influência profunda sobre a maior parte dos alaudistas mais jovens, como Guillaume Morlaye, Adrian Le Roy e Julien Belin. Nas tablaturas de teclado, como nas de alaúde, observa-se uma tendência constante para ornamentar o original, pelo proceclimento das diminuições, também
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ditas doubles. Poder-se-ia pensar que os instrumentistas buscavam assim compensar a brevidade dos sons, no alaúde como no cravo. Se isso em parte é verdade, também é incontestável que nessas técnicas se via, ao mesmo tempo, a possibilidade de exaltar as qualidades particulares do instrumento e de recriar certos fenômenos próprios à polifonia vocal, para os quais o instrumentista, privado da articulação do texto, deveria buscar um equivalente. Aliás, é um erro crer que alaudistas e cravistas tinham o monopólio do gosto pela decoração. Essa era efetivamente uma tendência bastante generalizada entre os músicos daquela época, tanto instrumentistas quanto cantores. Na prática vocal, a ornamentação permaneceu no domínio da improvisação e, portanto, nunca foi fixada pela notação, exceto em alguns exemplos tardios e, na maior parte das vezes, didático. O mesmo acontecia com relação à maior parte dos instrumentos melódicos, tais como violas,flautas,etc. Sabe-se que o uso desses instrumentos, tanto em músicas estritamente instrumentais como no acompanhamento de partes vocais, nunca esteve precisamente determinado pela partitura: os intérpretes gozavam, portanto, de uma liberdade quase total que, mais tarde, o compositor tratou de monopolizar. Por conseguinte, era apenas em raras obras técnicas e pedagógicas que se encontravam, naquela época, músicas especialmente destinadas a este ou àquele instrumento, que não os que se beneficiavam de um modo de notação específica ou tablatura. Esses métodos instrumentais compreendiam, quase sistematicamente, duas partes consagradas à ornamentação: de um lado, tabelas de diminuição ou passagens, classificadas por intervalos ou por fórmulas (melódicas e cadenciáis); de outro, exemplos de música vocal (motetos, canções ou madrigais) ornados in extenso, espécie de fixação de uma interpretação criada por um instrumentista famoso. Na Espanha do século XVI, tais ornamentações tinham o mesmo nome, glosas, já utilizado para as transcrições para teclado e vihuelas. O Tratado de glosas..., de Diego Ortiz, publicado em Roma em 1553, ilustrava essas técnicas para os instrumentos de arco (violas). Os exemplos eram escolhidos entre madrigais italianos como O felici occhi miei [O felizes olhos meus], de Jacques Arcadelt e canções francesas, com várias versões de Douce mémoire, de Sandrin. Na Itália, Sylvestro di Ganassi compôs duas obras instrumentais, La Fontegara (1535), para flauta doce, e Regola Rubertina (1542-1543), para viola. Mas foi sobretudo nos últimos decênios do século que a Itália viufloresceremtratados de ornamentação que rivalizavam entre si em virtuosidade. Girolamo Dallacasa deu o impulso inicial, em 1584, com II vero modo di diminuir... [O verdadeiro modo de diminuir...] O autor, ele próprio cornetista em Veneza, contemplava todo tipo de instrumento, dirigindo-se inclusive aos cantores. Mas, entre os inúmeros madrigais e canções que "diminuiu", alguns eram especificamente destinados à viola, outros ao canto, acompanhado, ou ao alaúde. Finalmente, Dallacasa também propôs a versão de uma sestina de Cyprien de Rore, Alia dole'ombra [A doce sombra],
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ornada a quatro vozes. Vários outros tratados foram publicados até 1600, e mesmo após, por Giovanni Bassano, Richardo Rogniono, Giovanni Luca Conforto, Giovanni Battista Bovicelli, Aurelio Virgiliano, etc. O DOMÍNIO ESPECIFICAMENTE INSTRUMENTAL Em contato com toda essa parte da literatura instrumental da Renascença, avaliase melhor como eram flexíveis os limites dos gêneros vocais, madrigais e canções. Os instrumentos, no entanto, não se contentaram com a música vocal para constituir seu repertório. Durante o século XVI, criou-se todo um domínio especificamente instrumental, sobre o qual é difícil saber se foi criação original ou simples continuação de tradições anteriores que a ausência de fontes escritas não nos permite conhecer. Desse modo, desde o início do século, o caráter de improvisação era freqüente nas primeiras publicações para alaúde ou teclado, em que cada instrumento afirmava-se com sua individualidade própria. Na Itália, os primeiros livros de alaúde, de Spinaccino e de Dalza, apresentavam algumas peças chamadas ricercare ou tastar de corde, cuja essência não era diversa da dos primeiros prelúdios ou preâmbulos dos organistas alemães. Alternância de acordes quebrados e de traços de virtuosidade, são simples dedilhados (toccata) que podiam ter como função preludiar outra peça, dança ou transcrições de frótolas, por exemplo. O mesmo tipo de peça existia no manuscrito de Capirola, em que não é empregado o termo tostar de corde. A palavra tochate apareceu pela primeira vez em 1536, com Borrono. Encontra-se também esse estilo nas tablaturas de Marc Antonio Cavazzoni, para órgão, com a mesma função de preludiar os motetos. É ainda o mesmo nas Intonationi d'órgano [Entonações de órgão], dos Gabrieli, já no final do século XVI, e mesmo depois, nas toecate de Frescobaldi, passando pelas de Claudio Merulo. Desde 1530, contudo, o termo ricercar também se aplicava a um outro tipo de escrita, que, embora livre na invenção (ricercare, rechercher, "pesquisar"), não era totalmente independente dos modelos contrapontísticos da polifonia vocal: os instrumentistas — alaudistas ou organistas — também adotaram o contraponto de imitação característico do motetoflamengo.Em Marc Antonio da Bologna, os dois estilos às vezes são limítrofes nas mesmas peças, mas o ricercar contrapontístico impôs-se rapidamente, com uma nova ternriinologia, que seria com mais freqüência usada na França: fantasia ou fantaisie. O mestre inconteste desse novo estilo foi certamente Francesco da Milano (1497-1543), "il divino", cujas fantasias, contidas em seus sete livros de alaúde, são de uma riqueza de invenção e de uma variedade polifónica inauditas. Na França, os alaudistas — em particular os italianos Jean-Paul Pdadin e Albert de Rippe — exploraram, a partir dos prelúdios das coletâneas de Attaingnant, o mesmo tipo de fantaisie: sobretudo as 26 fantasias do virtuose mantuano
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(Albert de Rippe) são obras totalmente excepcionais para a época, tanto em proporção quanto em tamanho. Só podem ser comparadas às peças de Francesco da Milano. Os vihuelistas espanhóis Milan (ca. 1490-ca. 1562), Narvaez, Pisador e Fuentellana também praticavam esse tipo de composição. Luís Milan e Luis de Narvaez distinguem-se por indicações de tempo incomuns nas partituras do século XVI. Além do termo fantasia, utilizavam também a palavra tiento, que os organistas empregavam mais freqüentemente para designar as composições livremente imaginadas. Na metade do século, três músicos tornaram-se ilustres neste gênero: De Vila, De Soto e sobretudo Antonio de Cabezón, que supera todos os outros, vihuelistas ou organistas. Na Itália, a música de órgão não era sistematicamente transposta para tablatura. Talvez com a preocupação de atingir uma clientela mais ampla, tinha-se também o hábito de escrevê-la em partes separadas, de acordo com os modelos utilizados na polifonia vocal e na música para conjuntos. Desse modo, essa música também era acessível aos grupos instrumentais diversos ou mesmo aos cantores, como dava a entender Jacques Buus em sua coletânea de Ricercari da cantare e da sonare d'organo e altri stromenti [Ricercari para cantar e tocar ao órgão e outros instrumentos], impressa em Veneza em 1549, antes de ser editada, no mesmo ano, em tablatura. A literatura para órgão confundia-se parcialmente com a que se destinava a conjuntos instrumentais (indeterminados). Isso aconteceu até o século XVII, como se pode observar em Organo suonarino, de Banchieri (1605), ou em Fiori musicali [Flores musicais], de Frescobaldi (1635). O estilo do ricercari imitativo, portanto, também dizia respeito à música de conjunto, mais precisamente — ao que parece — aos grupos variáveis de has instruments, violas ou flautas, que eram tocados habitaalmente por amadores esclarecidos para sua recreação privada. A Musica nova (1540), de Adrian Willaert (ca. 1480-1562) continha uma vintena dessas obras, das quais apenas três eram do próprio Willaert; as outras eram de Julio Segni da Modena, Hieronimo Parabosco e Iherorumo da Bologna (Cavazzoni), músicos venezianos. O conjunto desse repertório seria retomado pelo editor lionês Jacques Moderne, para ser publicado simultaneamente a uma série de danças, em uma coletânea cujo título é todo um programa: Musique de joye. Appropriée tant à la voix humaine que pour apprendre à sonner épinettes, violons et flûtes... [Música de divertimento. Apropriada tanto à voz humana como a aprender a tocar espinetas, violinos e flautas...] Foi principalmente no círculo dos instrumentistas venezianos que esse gênero se desenvolveu, a partir de 1540, com Jacques Buus, Annibale Padovano, Claudio Merulo e, finalmente, Andrea e Giovanni Gabrieli. Progressivamente, tanto nas obras explicitamente destinadas ao órgão quanto nas executadas por um conjunto (seria preciso mesmo distinguir?), a palavra ricercarvmha muitas vezes substituída pelo termo canzone. A relativa confusão dos dois termos, que é uma declaração
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manifesta da importância do modelo vocal, transparece particularmente nas Canzoni francesi, de Andrea Gabrieli, por exemplo, que se inspirou amiúde nas canções então já célebres de Janequin (Martin menait), Créquillon ( Un gai berger) ou Lassus (Suzanne un jour). A Bataille, de Marignan de Janequin, também era um tema muito apreciado: tanto Annibale Padovano quanto Andrea Gabrieli nela se inspiraram para compor suas impressionantes Bataglia em oito partes. A crer em certas testemunhas, a Bataglia de Padovano teria sido interpretada por um conjunto de quarenta músicos, entre tambores, violas, flautas e vozes. Mas foi com Giovanni (1557-1612), sobrinho de Andrea Gabrieli, que a canzone instrumental atingiu o apogeu. Veneza revelou-se o lugar privilegiado desse desenvolvimento da canzone instrumental e teve um papel determinante em tal processo porque Giovanni Gatuieli — a um só tempo organista em São Marcos (capela do Doge e igreja oficial da república veneziana) e na Scuola Grande di San Rocco — tinha, nessas instituições, entre outras atribuições, a de recrutar conjuntos de músicos, por vezes grandes conjuntos, que assegurassem a presença da música nas grandes cerimônias litúrgicas e públicas. Com Giovanni, a canzone atingiu, portanto, proporções grandiosas, muitas vezes a oito, dez ou doze partes, divididas em vários grupos. A base desses conjuntos era composta de cometas à bouquin e sacabuxas (ou trombones), instrumentos que, pensava-se então, deviam estar obrigatoriamente juntos. A tais conjuntos, acrescentavam-se freqüentemente outras sonoridades, cordas da família dos violinos e fagotes. O repertório tocado por tais conjuntos, sempre muito característicos, mas logo imitado por toda parte, foi reunido em duas publicações, as Sacrae symphoniae [Sinfonias sacras], de 1597, e as Canzoni et sonate [Canções e sonatas], de 1615. Nessas publicações, portanto, as canzoni vêm de par com um outro gênero, a sonata, destinada a ser tocada por instrumentos, como indica o seu próprio nome. A virtuosidade dos instrumentos do registro alto (violinos e cometas) era particularmente explorada. Parece que esse repertório era regularmente tocado durante as cerimônias religiosas em São Marcos (missa ou vésperas), fosse como introdução aos motetos, fosse em certos momentos privilegiados do ofício (Ofertorio ou Consagração). Assim, compreendese melhor que os efetivos de que o repertório necessitava estivessem divididos em grupos capazes de distribuir-se nas diversas tribunas da basílica, como era hábito na execução de motetos policorais (cori spezzatti). Em comparação com a abundância que caracterizava a produção instrumental italiana do final do século XVI, a França parece bem mesquinhamente aquinhoada. No domínio da fantaisie, não havia muita coisa além de algumas obras de Claude Le Jeune, Eustache du Caurroy e Charles Guillet, todas publicadas no início do século XVII, em 1610 e 1612. Ao todo, três fantasias em quatro e cinco partes, de Claude Le Jeune, e cerca de quarenta fantasias de Du Caurroy, em estilo razoavelmente arcaico, que inclusive ainda se valiam do velho contraponto sobre cantus
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firmus. Para as composições de Du Caurroy, por exemplo, o canto litúrgico fornece vários temas, como Requiem aeternam ou Ave maris Stella, embora entre elas encontrem-se também canções sacras, ou populares comoUne jeune fillette [Uma menininha] e mesmo a antiga melodia de Je suis déshéritée [Fui deserdada], célebre canção de Pierre Cadéac (às vezes atribuída a J. Lupi). As fantasias de Guillet, mais abstratas e agrupadas de maneira escolar, segundo os tons, são apresentadas para serem tocadas em conjunto: o prefácio, contudo, esclarece que também poderiam ser adaptadas para teclado. Antes dessa data bastante tardia, a música de conjunto, na França, consistia principalmente das danças de corte "harmonizadas" para quatro instrumentos. Isso quer dizer que, de um repertório (fantasias) a outro (danças), muda-se totalmente de universo musical. Porque, se a arte da fantasia manifestava a intrusão da ciência contrapontística dos músicos de igreja na prática instrumental, as danças revelavam a permanência das técnicas rudimentares e tradicionais dos rabequistas populares. Retomando as palavras de Noël du Fail, são coisas "mais de rabequistas que de músicos". Nesse domínio particular das danceries, foram os editores franceses que deram o xeque-mate nos italianos. Enquanto, na Itália, só se haviam feito duas edições de balli (a coletânea de Bendusi, em 1553, e a de Mainerio, em 1578), os franceses publicaram cerca de uma dúzia de coletâneas, às quais se podem acrescentar as edições flamengas de Tielman Susato e de Pierre Phalèse. Era das prensas de Attaingnant que saía a maior parte dessas publicações: depois do surgimento de Six gaillardes et six pavanes [Seis galhardas e seis pavanas] e de Neuf basses-dances [Nove basses-dances], respectivamente em 1529 e 1530, viriam seis outras coletâneas, entre 1547 e 1557. Parece que o próprio Pierre Attaingnant coordenou a realização de três desses livros. Os outros foram preparados sob a responsabilidade musical de diferentes músicos, já conhecidos como compositores de canções: Jean Conseil, Claude Gervaise e Etienne du Tertre. A essa série, é preciso acrescentar a coletânea editada por Susato em 1551, quatro livros preparados por Jean d'Estrées para Nicolas du Chemin em 1559 e 1564, as cerca de trinta "danças musicais" de Musique de joye [Música de alegria] do lionês Jacques Moderne (ca. 1550) e as duas coleções reunidas por Pierre Phalèse em 1571 e 1583. Essas coletâneas misturavam, às danças aristocráticas — como a pavana —, danças de origem popular, como o branle. A Orchésographie, de Thoinot Arbeau (anagrama de Jehan Tabourot), publicado em Langres em 1588, é um pequeno manual que nos traz as indicações mais preciosas sobre a maneira de dançar e tocar esse repertório. Eis, por exemplo, o que se lê sobre a pavana: Ela serve aos Reis, príncipes e senhores graves, para se exibirem, em alguns dias de festividade solene, com suas grandes capas e vestes de aparato. E então, rainhas, princesas e damas acompanham-nos, com as grandes caudas dos vestidos abaixadas e arrastando
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pelo chão, às vezes seguras por demoiselles. E são, as referidas pavanas, tocadas pelos o b o é s e sacabuxas, que eles chamam o grande baile, e fazem-no durar até que os que d a n ç a m tenham feito duas ou três voltas completas na sala.
Além das danças monódicas, que menciona com a indicação dos passos, Arbeau ilustra também esse tipo de dança como uma pavana a quatro partes, "com os compassos e batidas do tambor". Quanto ao branle, segundo a Orchésographie, ele "é dançado por valetes e camareiras, e, às vezes, por jovens e demoiselles, quando fazem mascaradas, disfarçados de camponeses e pastores, ou quando querem alegrar-se privadamente". Todas essas danças, a despeito dos moralistas, eram admitidas nos divertimentos aristocráticos e burgueses, e sucediam-se em suites, cujo modelo havia sido dado pelo par pavanagalharda. Começava-se comportadamente por uma dança lenta e deslizante (pavana), mas rapidamente seguiam-se-lhe as danças "saltitantes" (galhardas, tourdions, branles, etc.), em uma movimentação mais turbulentas, como fica claramente indicado nessa crônica de Johan Von Munster (1594), preboste de Pforzheim: U m a vez a dança encomendada aos tocadores de instrumentos de sopro e de cordas, o dançarino avança de maneira arrebatada, cortês, esplêndida e soberba, e escolhe, entre todas as m o ç a s e senhoras presentes, aquela que deseja como par, pela qual nutre particular afeição, e pede-lhe, com reverência, tirando o chapéu, beijando as m ã o s da dama, flexionando o joelho, com palavras amáveis e outras cerimônias, que ela dance com ele, alegre, feliz e honestamente. Mas logo que essa pessoa deu o seu consentimento para dançar, os dois avançam, d ã o as m ã o s , abraçam-se e chegam mesmo a beijar-se na boca, dando testemunhos de amizade um ao outro, com palavras e gestos. E m seguida, quando chegam até a sala de danças, fazem de início a entrada, sempre com u m a certa gravidade. Na entrada, n ã o h á a turbulência inconveniente que se tem o hábito de ver na segunda parte da dança. Nesta entrada da dança, as palavras de conversação dos que se amam podem ser melhor empregadas do que na saída. Nesta última as coisas passam-se da maneira a mais desordenada. Porque, nela, n ã o se poupam as corridas, o tumulto, apertos de m ã o , lances secretos, saltos, gritos campestres e outras coisas inconvenientes. Mas quando a dança termina, o dançarino leva a dama para seu lugar, o mesmo onde fora buscá-la, e, fazendo uma reverência diante dela, despede-se, ou senta-se ao p é de sua dama e conversa com ela.
Naquela época, aliás, as novas danças vindas da Itália, a courante (antigo saltarello) e a volta, já haviam invadido o território francês, para maior prazer de Brantôme e de muitos cortesãos; porque a volta, "fazendo flutuar os vestidos, sempre exibia à vista algo de agradável, pelo qual já vi vários se perderem e se deslumbrarem", contava Brantôme. Essa parte do repertório, posterior às danças de Jean d'Estrées, só nos foi dada a conhecer por fontes tardias, em particular a Terpsichore musarum [Terpsícore das musas], publicado por Michael Praetorius, em Wolfenbüttel, em 1612.
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Entre as danças à moda italiana, estavam também o passamezzo, ou passameze, forma menos solene da pavana. A música, em geral, era composta sobre um tema de baixo estereotipado, usado como ostinato. As fórmulas tradicionais como passamezzo antico ou moderno, romanesca, folia, gamba, ruggiero, etc. constituíam um repertorio de esboços harmônicos simples, sobre os quais os instrumentistas, em solos de alaúde ou de teclado, ou em bandas, improvisavam, tal como faziam no século XV, sobre melodias de basses-dances. Il primo libro de balli [O primeiro livro de danças], de Giorgio Mainerio (1578), continha, assim, um passamezzo antico, em que as quatro partes dedicavam-se alternadamente às diminuições, produzindo uma seqüência de variações sobre um esquema harmônico imutável, às quais veio juntar-se a variação rítmica do saltarello. Em seu Tratado de glosas, de 1553, o violista espanhol Diego Ortiz explicava, com exemplos em apoio, como se podia improvisar sobre esses baixos, que chamava, aliás, de "tenores italianos". A improvisação era, na verdade, uma constante da técnica dos instrumentistas do século XVI. Embora adotada em toda parte — tanto na igreja, sobre o canto litúrgico, quanto na música profana, sobre os baixos obstinados, e, mais geralmente, na arte de ornamentação —, foi na Espanha que a variação deixou os testemunhos mais apreciáveis, nas diferencias dos vihuelistas e organistas. Narvaez compôs, por exemplo, uma série de 22 diferencias sobre o famoso Conde Claros e sete variações sobre Guárdame las vacas [Guarda-me as vacas]. Esse tema, que não passa do desenvolvimento de uma grade harmônica rudimentar, também era muito apreciado pelos organistas: existem sobre ele, por exemplo, três séries de variações elaboradas por Antonio de Cabezón. Mas sem dúvida é Valderrábano que vem à memória; com suas 120 diferencias para vihuela sobre essa célebre canção da tradição popular espanhola. Os instrumentistas da Renascença, mesmo se tomavam de empréstimo aos cantores temas eruditos ou populares, construíram, nesse gênero da variação, uma obra verdadeiramente específica. O repertório que nos deixaram, certamente uma pequena parte da efetiva atividade deles, por essência efêmera, é irredutível aos gêneros eruditos da polifonia vocal. Assim, os instrumentistas do Renascimento abriram uma via completamente original e nova no patrimônio musical do moderno Ocidente. A música religiosa JOSQUIN DES PRÉS A meia centena de canções de Josquin Des Prés, a despeito do inegável interesse que apresentam, correspondem apenas a uma pequena parte da obra do músico, de quem conhecemos cerca de vinte missas e uma centena de motetos. Josquin Des Prés — de quem sabemos que tinha menos facilidade para compor que seu contemporâneo Heinrich Isaac — consagrou, como a maioria dos músicos de seu tem-
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po, o melhor de sua arte à igreja. De modo geral, os compositores formados naqueles centros artísticos e de ensino que eram as maîtrises de chapelle, inicialmente cantores, passavam toda a sua vida na órbita eclesiástica. Mesmo quando — e foi o caso de Josquin Des Prés — estavam a serviço de um príncipe, dedicavam a maior parte de seu tempo a compor música para inúmeras cerimônias religiosas que ritmavam a vida do palácio ou da cidade, e talvez mesmo as devoções particulares de seus patrões. Josquin Des Prés também serviu aos príncipes da Igreja, em Milão, junto ao cardeal Ascanio Sforza, depois em Roma, na própria capela papal. No final da vida, voltou novamente às igrejasflamengas:Sainte-Gudule, de Bruxelas, e depois em Condé sur l'Escaut, onde morreu em 1521. O epitáfio inscrito na pedra tumular de Josquin Des Prés foi conservado em um manuscrito do século XVII: Ci-gît Sire Josse Després Prévôt de céans fut jadis Priez Dieu pour les trépassés Qui leur donne son paradis. Trépassa l'an 1521, le 27 août. Spes mea semper fuisti. 1
Josquin Des Prés deixou cerca de vinte missas, que constituem uma amostra representativa do que era a missa polifónica no limiar entre aqueles dois séculos. Desde Machaut, a missa, que tendia a tornar-se o gênero maior da música erudita, não mais deixou de colocar problemas, estéticos e fitúrgicos, para os músicos. No decorrer do tempo, as respostas que se deram a tais problemas mostravam-se sensivelmente diferentes. Depois que os ingleses John Dunstable (ca. 1380-1453) e Leonel Power (morto em 1445) abriram o caminho, esforçando-se por reunir musicalmente as diferentes partes do ordinário da missa — dissociadas contudo na realidade litúrgica —, a maioria dos polifonistas do século XV não deixou de aperfeiçoar esse método. A maior parte das missas dessa época desenvolvia seus Kyrie, Gloria, Credo, Sanctus e Agnus Dei com base em um tema único, tratado na voz tenor, segundo a técnica do cantusfirmus(originária do moteto medieval), a um só tempo matriz da invenção contrapontística e trama do tecido polifónico. Na obra de Josquin Des Prés, essa escolha estética está ilustrada com grande diversidade. As melodias unificadoras tinham origens as mais variadas: cantos fitúrgicos, como o hino mariano Ave maris Stella ou o introito Gaudeamus, mas também melodias populares, como a famosa L'Homme armé, obras polifónicas religiosas (Mater Patris, de Brumel), ou profanas como a canção Malheur me bat
[Aqui jaz o senhor Josse Després / Que foi outrora preboste dessa igreja. / Rogai a Deus pelos que passaram à outra vida / Para que lhes dê seu paraíso. // Falecido no ano de 1521, a 27 de agosto. / Sempre foste a minha esperança.] (N. T.)
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[A infelicidade me golpeia], de Ockeghem. Mesmo os aparentes temas de "solfejo" revelavam-se verdadeiros criptogramas carregados de referências locais e circunstanciais: La sol fa re mi era uma alusão irônica ao poder do patrão da época, o cardeal Ascanio ("Lasciafare mi.." [Deixa que eu faço...]). A mesma técnica permitia também inscrever musicalmente, no seio da polifonia, em que se via homenageado o nome daquele a quem se dedicava a peça: os poetas não faziam diferente com os acrósticos e outras técnicas similares. "Hercules dux Ferrariae" [Ercole, duque de Ferrara] tornou-se, então, pela transposição em "vogais musicais": RE UT RE "Hér- eu- les
UT RE FA dux Fer- ra-
M I RE r i - ae"
Em Ferrara, tais homenagens logo iriam tornar-se verdadeira tradição: uma missa de J. Lupi, conservada em uma edição de 1532, parece ter o título de Hercules dux erit Ferrariae. O homenageado seria, portanto, Ercole II, que desposara Renée de França (filha de Luís XII), em 1528; e a missa talvez tenha sido escrita para essa circunstância. Foi também em honra do mesmo príncipe que Cyprien de Rore compôs duas missas. Uma, sobre o tema Vivat felix Hercules secundus, dux Ferrariae Quartus. Na segunda, elaborada a partir de um moteto de Josquin Des Prés, encontravam-se quase as mesmas palavras: Hercules secundus dux Ferrariae Quartus vivit et vivet. Na obra de Josquin Des Prés, contudo, mais do que da escolha dos temas, é da maneira como os temas são explorados polifónicamente que vem a variedade das missas polifónicas. Na Missa Hercules, impressa em 1505 — mas decerto composta bem antes —, Josquin recorre estritamente à antiga técnica do cantusfirmus,em valores longos na parte do tenor. O mesmo acontece em uma de suas duas missas L'Homme armé, a missa L'Homme armé super voces musicales. Mas a rigidez da técnica é, nessa obra, parcialmente reequilibrada pelas transposições do tema, sucessivamente enunciado em diferentes graus do hexacórdio, Ré (Kyrie), M i (Gloria), Fá (Credo), Sol (Sanctus) e Lá (Agnus Dei). O cantus firmus ficava, assim, obrigado a escapar à parte do tenor: desse modo, é a voz superius que o canta no Agnus Dei. Aliás, as outras vozes participam com a mesma freqüência da elaboração polifónica sobre o tema, por meio do jogo de imitações e cânones. Essa técnica consideravelmente flexível foi finalmente desenvolvida nas últimas missas de Josquin Des Prés. Em uma escritura polifónica na qual todas as vozes têm a mesma importância, o tema gerador não está mais isolado em uma parte única, que assumiria a função do tenor medieval: ao contrário, esse tema irriga o conjunto do tecido contrapontístico, desenvolvido e ornamentado pelas diferentes vozes. Essa forma polifónica de paráfrase impunha-se nas missas, já no início do século XVI. Um dos melhores exemplos é a missa Fange Lingua, de Josquin Des Prés. Mas muitos outros poderiam ser citados, das obras de Pierre de
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La Rue, Antoine Brumel ou Antoine Févin. Em seu Choralis Constantiuns, vasta coleção de polifonias do próprio da missa para todo o ano litúrgico — que compôs para a capela imperial de Maximiliano —, Heinrich Isaac explora o mesmo tratamento polifónico do cantochão. Inacabada, essa empresa colossal seria completada por Ludwig Senfl, em um estilo que ainda muito deve a Josquin Des Prés. Embora as mesmas técnicas fossem também utilizadas nos motetos construídos sobre temas fitúrgicos, Josquin Des Prés às vezes afastou-se das imposições que elas traziam. A essa autonomia, acrescentava-se uma relativa liberdade na escolha dos textos, de qualquer modo mais variados e ricos de sugestões musicais do que o ordinário da missa. Nessas composições, era somente o texto que regia a música: o músico adaptava a cada grupo sintático uma idéia musical que, em seguida, desenvolvia polifónicamente, antes de passar ao grupo seguinte, com uma idéia nova. Nesse estilo que chamamos "imitativo sintático" (Charles Van Den Borren), os meios de variedade são múltiplos — o número de vozes, o arranjo polifónico, o tratamento do texto silábico ou melismático, as tessituras, a locução rítmica, as articulações de uma seqüência a outra, etc. Desse modo, é freqüente, em Josquin Des Prés, como em seus contemporâneos, que o desenvolvimento contrapontístico das imitações seja subitamente interrompido por uma seção homófona que assume, então, um relevo muito particular. Antes das missas, que alaudistas e vihuelistas transpuseram para tablatura durante todo o século XVI, foram os motetos que fizeram o renome de Josquin Des Prés, que permanecia, aos olhos das novas gerações, como o "príncipe dos músicos". Glaréan, o grande teórico, não se farta de citá-lo em seu Doãécacorâe (1547). Em Veneza, em 1567, Cosimo Bartoli comparou-o a Michelangelo, como um "outro milagre da natureza". A CORRENTE FRANCO-FLAMENGA Depois de 1520, a estética franco-fiamenga ainda produziu obras notáveis. Os mestres mais marcantes foram Nicolas Gombert (ca. 1500-1556), Jacques Clemens Non Papa (ca. 1510-1558), Adrian Willaert (ca. 1490-1562) e o espanhol Cristóbal de Morales (ca. 1500-1563). Gombert, mestre da capela imperial de Carlos V entre 1526 e 1540, aproximadamente, deixou apenas cerca de quinze missas. A parte principal de sua obra é constituida pelos 169 motetos que compôs, dos quais um grande número dedicado à Santa Virgem. Entre estes últimos, há um absolutamente notável, que traz como subtítulo as palavras "diversi diversa orant" (que significam "diversos, fazem eles diversas preces"). A polifonia desse moteto compõe-se de sete cantos litúrgicos diferentes, reunidos pelas diferentes vozes: Alma redemptoris, Inviolata, Ave Regina, Salve Regina, Beata Mater, Ave Maria e Hortus conclusus. De uma maneira geral, os motetos de Gombert não têm a clareza das obras de Josquin Des Prés: a exuberância invasora do contraponto em imitação faz deles música difícil de com-
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preender, tanto mais que o compositor parece empenhar-se em jamais interromper o seu desenrolar, nem pela intervenção de passagens homófonas, nem por meio de pontuações cadenciáis claramente afirmadas. CRISTOBAL DE MORALES A presença de Morales neste grupo de músicos não deve surpreender. Embora seja difícil afirmar que ele conheceu Gombert, é bastante provável que tenha ouvido músicas deste ou de outros compositoresflamengos— Cornelius Canis, Thomas Créquillon ou Pierre de Manchicourt — na corte de Madri. Finalmente, na capela papal, onde esteve entre 1535 e 1540, certamente não pôde ignorar o estilo onipresente dos polifonistasfranco-flamengos.Seria portanto ilusório buscar em Morales um pretenso caráter ibérico. Embora, aqui e ali, as correntes nacionais tivessem começado a se afirmar no século XVI, elas não devem ser buscadas na música das capelas italianas,flamengasou espanholas: a grande maioria dos músicos das capelas era antes favorável à linguagem quase internacional, que, naquela época, constituía o estilo dominante entre os franco-flamengos. Alguns casos particulares, contudo, deveriam ser sublinhados, na obra de Morales, no que diz respeito ao uso de melodias litúrgicas particulares ao rito hispânico (o que acontece também com Guerrero e Victoria), assim como à escolha de certas canções espanholas como temas de duas missas: Tristezas me matan e De zilde al cavallero [Dizei ao cavaleiro]. O emprego simultâneo de temas diferentes também é um dos aspectos particulares dos motetos de Morales. Muitas vezes combinava-se com um efeito de ostinato, com uma das vozes repetindo infatigavelmente a mesma fórmula. Este é o caso de um moteto de circunstância, Jubilate Deo, a seis vozes, escrito em homenagem ao tratado de paz assinado entre Francisco I e Carlos V em 1538: uma das vozes canta sem cessar a entonação do introito gregoriano Gaudeamus. Em um outro moteto, no qual dois textos são cantados simultaneamente, a segunda voz superius repete obstinadamente Sancta Andrea orapro nobis. No responso da Quar¬ ta-Feira de Cinzas, Emendemus in melius, o tenor enuncia seis vezes a frase litúrgica do padre: "Memento homo quia pulvis es et in pulverem revertís" ("Lembra-te, homem, que és pó e ao pó voltarás"). Tais efeitos, tanto pelo ostinato quanto pelos jogos de sentido que emanam da politextualidade, produzem uma real tensão dramática. Mas é no moteto mais célebre, Lamentabatur Jacob, que Morales atinge o máximo de expressividade, sublinhando o significado do texto por meio de rudes dissonâncias. Ao lado dos 24 motetos, das lamentações e de dezesseis magnificats, em que se alternam canto litúrgico e polifonia, Morales deixou também 22 missas polifónicas, entre as quais duas missas de Requiem. Se é fato que ele fez uso, em suas missas, de temas gregorianos (missa Ave Maris Stella e duas missas De beata Virgine), segundo técnicas legadas por Josquin Des Prés, também adota o procedimento mais moderno da paródia. Essa técnica, então de uso muito corrente, consistia em inspirar-se, para
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a criação de uma missa, em outra composição polifónica, moteto, canção ou madrigal. Assim, Morales tomou como modelos os motetos de Gombert, Richafort, Verdelot e Mouton. A extrema piedade de Morales não o impediu de usar também alguns temas profanos, entre os quais L'Homme armé, e sobretudo a célebre canção de Josquin Des Prés, Mille regrets, que, segundo Narvaez, era "a canção do Imperador". A PARÓDIA No século XVI, generalizou-se a paródia como procedimento de composição de missas polifónicas. Embora já fosse utilizada no século precedente, em geral tendo canções como ponto de partida, a paródia permanecia tímida e não se distinguia claramente da utilização de monodias preexistentes. No século XVI, ao contrário, observa-se empenho em explorar os modelos escolhidos em sua estrutura polifónica, como em seus temas melódicos: não se hesita em citar literalmente certas passagens, para melhor desenvolvê-las em novas elaborações contrapontísticas. A palavra paródia, conservada pela musicología recente, raramente era utilizada na época. Dizia-se simplesmente: "Missa sobre..." [Missa super...}, ou ainda "imitação do moteto..." A maior parte das missas de Clemens Non Papa, Créquillon e Gombert pertencem a essa categoria. O mesmo acontece com compositores parisienses, como Sermisy e Certon. As duas missas de Janequin que chegaram até nós, por exemplo, foram compostas a partir de canções dele mesmo: La Bataille, a primeira de uma longa série, e o Aveugle Dieu [Deus cego], que compôs no fim da vida. A julgar pela freqüência da escolha, alguns modelos parecem ter sido particularmente célebres. Entre as canções, por exemplo, Je suis déshéritée, de Cadéac (às vezes atribuída a J. Lupi), foi explorada, entre outros, por Gombert, Guyon, Maillard, De Marie, Orlando de Lassus, e mesmo por Palestrina, em uma Missa sine nomine que não ousa confessar sua origem profana. Entre os motetos, Quem dicunt homines, de Richafort, foi muito usado, principalmente por Divitis, Josquin Des Prés, Mouton, Morales e Palestrina. Enquanto no século XV os modelos eram escolhidos, na maior parte das vezes, entre as canções — ainda freqüentemente exploradas no início do século XVI —, na segunda metade deste século os motetos é que eram "parodiados". Cumpre ver nisso uma das conseqüências da sensibilidade reformadora que se desenvolveu na Igreja depois da crise aberta por Lutero e Calvino. O Concilio de Trento, iniciado em 1545, manifestou concretamente essa reação às músicas ditas "lascivas" por ocasião das suas últimas seções, consagradas às questões musicais e litúrgicas, durante os anos 1563-1564. Mas essa tendência já era, então, uma realidade: certos humanistas simpáticos às idéias dos reformadores não deixaram de exprimi-las abertamente. Em 1519, Erasmo, em suas Paráfrases de São Paulo, investiu com violenta diatribe contra as práticas musicais das igrejas, nas quais,
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segundo ele, "ouvem-se... repugnantes canções de amor, boas para as danças cortesas e para os sdtimbancos." AS PRESCRIÇÕES CONCILIARES E SUAS INFLUÊNCIAS Compreende-se melhor, neste contexto, a posição de Palestrina (1525-1594), cuja atividade desenvolveu-se sob a influência imediata de Roma e do Concilio, na capela papal e nas igrejas de São João de Latrão e Santa Maria Maior. Quando não é construída diretamente sobre temas Htúrgicos, a maior parte das missas de Palestrina "parodia" antes os motetos do que as canções ou madrigais. O mesmo não acontece com as missas de seu contemporâneo, Orlando de Lassus, sobre quem a influência conciliar pareceu se exercer de forma mais discreta. Mas havia um outro problema, certamente mais essencial, pelo qual o Concilio e suas comissões interessavam-se: o da compreensão do texto. Também com relação ao texto, os pontos de vista dos padres conciliares coincidem, aqui e ali, com opiniões que se expressavam, sobretudo nos meios em que circulava o humanismo. Erasmo — ainda ele —já havia vituperado contra "aquela espécie de música que se introduziu no culto divino a tal ponto que não conseguimos perceber nem um único som com limpidez". Os próprios músicos chegavam, por vezes, a adotar idéias similares. Foi em função de uma exigência nova com relação à intehgibilidade das letras — veiculada pelos humanistas — que o contraponto e a própria polifonia tornaram-se o alvo preferido de certos teóricos da música, como Nicola Vicentino ou Vicenzo Galilei. Mas, no que diz respeito às idéias, as diretrizes do Concilio de Trento puderam ser efetivadas por meio de realizações musicais concretas que passam a constituir exemplos a serem seguidos. Na Itália, como na França, certas músicas profanas, frótolas e canções (principalmente "voix de ville") já propunham uma escrita polifónica bastante simplificada, cuja homofonia pudesse facilitar a compreensão do texto. Eram tipos de escrita que os reformadores adotaram para a harmonização dos cantos rituais: coral luterano na Alemanha, salmo huguenote nos territórios de língua francesa. Alguns poetas — como, em primeiro lugar, Théodore de Bèze e Clément Marot — haviam feito a tradução completa do Psautier [Livro dos salmos], e em toda parte haviam surgido melodias concebidas para facilitar a memorização e o canto dos fiéis: movimentos conjuntos, ritmos simples reduzidos a dois valores de duração, esquema rítmico comum à maior parte dos versos, disposição em estrofes — enfim todas as características do "vaudeville" reunidas. Os músicos colaboraram também nesta tarefa, fosse inventando melodias (quando elas não eram tomadas do patrimônio musical comum), fosse elaborando polifonias "em quatro partes, com a voz do contraponto igual, em consonância com o verbo", como diz o subtítulo dos Cinquante psaumes de David [Cinqüenta salmos de David], de Loys Bourgeois, publicados em Lyon em 1547. Goudimel (que iria morrer, em Lyon, vítima da Noite de São Bartolomeu, ordenada por Carlos IX em 1572)
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também compôs várias coleções, escritas em nota contra nota, em contraponto imitativo ou em "forma de moteto". Embora o Concilio tenha rejeitado categoricamente o modelo huguenote no que diz respeito ao uso de língua vernácula, as preocupações que manifestou com relação à inteligibilidade do texto inscreviam-se bem na corrente predominante na época, m^seminada em todos os setores da atividade musical e à qual logo um punhado de músicos e humanistasflorentinosiriam dar a forma mais radical, com o recitar cantando. A influência direta das prescrições conciliares exerceu-se mais precisamente em algumas obras, dentre as quais as Preces spéciales pro salubri generalis concilii, de Jacobus de Kerle, e em algumas coletâneas de missas ("compostas segundo a forma do Concilio de Trento"), de Vincenzo Ruffo, então mestre de capela da catedral de Milão, a igreja de Cario Borromeo, personagens muito ativo na reflexão musical do Concilio. PALESTRINA Que papel pôde então desempenhar, no debate conciliar, a música de Palestrina e, em particular, a famosa Missa do Papa Marcelo? Desde o século XIX, não se consegue desvencilhar essa questão da mitologia relacionada a Palestrina. Não é impossível, contudo, que essa missa tenha sido executada, junto com outras obras (de Ruffo, certamente, mas também de Orlando de Lassus e de Vicentino...?), no dia 28 de abril de 1565, diante da comissão de cardeais: sabe-se, com efeito, que se reuniram determinados cantores na casa de um deles "para cantar algumas missas e verificar se o texto era inteligível, segundo o desejo expresso por Suas Eminências". Embora essa missa e algumas outras de suas missas, em graus diversos (Missa brevis, Missa sine nomine, Missa Hodie Christus), revelassem uma especial atenção à percepção dos textos fitúrgicos (sobretudo do Credo e do Gloria), não se pode dizer o mesmo da maior parte das missas e motetos de Palestrina. O contraponto de nota contra nota, propício à compreensão das letras, acomodava-se muito dificilmente ao estilo do compositor, mais sensível às linhas melódicas sutilmente reunidas em contrapontos muitas vezes complexos. Certamente, o cuidado constante com o equilíbrio das linhas e a acentuação da palavra conseguia transmitir essa impressão de serenidade sublime, e foi isso que fez da música de Palestrina o parâmetro da polifonia vocal, verdadeira idade de ouro do canto coral a cappella. A arte de Palestrina é dotada de uma permanente alegria e criou uma obra religiosa das mais consideráveis, com a qual somente a de Orlando de Lassus poderia rivalizar: 105 missas, 250 motetos, dentre os quais treze lamentações e 35 magnificats. Das missas, a maior parte das quais foi publicada em treze volumes entre 1554 e 1601, apenas sete recorrem à velha técnica do cantusfirmusrígido, fosse esse um canto litúrgico (Ecce sacerdos, decerto escrita para o pontificado de Júlio III), um canto popular (L'Homme armé, 1570) ou um argumento solfegístico
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(missa hexacordal, ut ré mifá sol lá). Essa técnica, decididamente arcaica, foi amplamente suplantada por procedimentos de paráfrase polifónica, empregados desde Josquin Des Prés, certamente mais de acordo com a natureza da polifonia de Palestrina, que emprega a paráfrase polifónica sobre temas gregorianos, como nas missas de Beata Virgine (a seis e a quatro vozes), ou a belíssima missa Aeterna Christi muñera, composta sobre o hino gregoriano homônimo, mas também sobre a melodia de L'Homme armé, na Missa Quarta (1570), que não ousa ostentar no título sua inspiração profana. Finalmente, grande número de obras classifica-se entre as missas paródias. Os modelos eram essencialmente motetos, por vezes muito antigos, como o Benedicta es coelorum Regina, de Josquin Des Prés, ou o célebre Pañis quern ego dabo, de Hellinck. Mas Palestrina muitas vezes escolhia suas próprias obras como modelo, como é o caso das missas Assumpta es Maria, Tu es Petrus, Hodie Christus ou Veni Sponsa Christi. O canto gregoriano também constitui a base de grande número de motetos de Palestrina, declaradamente concebidos para uso litúrgico. A alternância entre polifonia e canto monódico pratica-se freqüentemente nos gêneros que se prestam a divisões em versículos ou em estrofes, como os magnificats, ou os hinos que podiam ser cantados em qualquer época do ano: Hymni totius anni, de 1589. Outros motetos, ao contrário, em particular os 68 ofertorios publicados em 1593 e os 29 textos do Cântico dos cânticos (1584), estão isentos de qualquer referência fitúrgica. São verdadeiros madrigais sacros em latim, em que o músico, atento à qualidade prosódica da palavra, mas também a suas conotações semânticas, entrega-se à ilustração do sentido do texto por meio de imagens musicais, cuidando para jamais alterar a continuidade e a unidade do texto musical. Era exatamente isso que distinguia Palestrina de um bom número de compatriotas seus: a ausência de qualquer ruptura. A preocupação com a atmosfera, em todo caso, é uma constante: nisso Palestrina mostrou-se um grande músico litúrgico. Para constatar, basta comparar o júbilo do moteto de Natal, Hodie Christus natus, à melancolia pungente do canto de exílio do salmista em SuperfluminaBabylonis. No mesmo período pós-tridentino, destacaram-se dois outros grandes músicos de expressão religiosa: Orlando de Lassus (1532-1594), em Munique, e Tomás Luís de Victoria (ca. 1535-1608), em Roma e Madri. TOMÁS LUÍS DE VICTORIA Foi em Roma, no coração da Contra Reforma, que teve início a carreira de Victoria. Antes de ir terminar a vida em um convento para mulheres, em Madri (a partir de 1584), Victoria ocupara a função de mestre de capela sucessivamente em dois grandes colégios — dos quais o Concilio fizera protótipos de seminários —, o Collegium Germanicum e o Collegium Romanum, onde substituiu Palestrina, e em várias igrejas de Roma, principalmente a de São Girolamo delia Caritá, em 1578. Os motetos de Victoria foram publicados pela primeira vez em 1572, em
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Veneza. É significativo que a publicação incluísse a dedicatória a uma influente personalidade do pensamento conciliar sobre a música, o cardeal Otto Truchsess Von Waldburg, bispo de Augsburg. Embora a obra do músico espanhol — com cerca de vinte missas e centenas de motetos (inclusive magnificats, liinos, etc.) — não possa competir em quantidade com a imponente produção de Orlando de Lassus e de Palestrina, a qualidade muito particular do que compôs em nada fica a dever à obra desses dois outros. Com exceção da Missa pro Victoria, que se inspira em idéias de Janequin (La Bataille) no estilo pré-barroco italiano, a expressão religiosa de Victoria permaneceu totalmente impermeável ao universo profano. Apesar de onze das vinte missas serem paródias, a maior parte dos modelos foi tomada de motetos, em geral do próprio Victoria, ou de Palestrina (Surgeprospera), Guerrero (Simile est regnum) e Morales (Jubilate Deo). As demais missas parafraseavam temas gregorianos, tomados do Kyriale (missa De beata Vtrgine) ou do próprio (missa Ave maris Stella). O mesmo acontece com os dois Requiem, que se situam entre as obras mais impressionantes de Victoria: a Missa pro defunctis, a quatro vozes (1583), e o Officium defunctorum, a seis vozes (1605), composto para os funerais da imperatriz Maria. O canto gregoriano subjaz, igualmente, a uma grande parte das outras compaixões litúrgicas de Victoria, em particular aos hinos (Hymni totius anni, 1585) e aos magnificats. Há dezesseis versões do Cântico da Virgem a quatro vozes, nos diversos tons gregorianos, para serem executados em alternância com o canto monódico: em oito deles, os versículos pares são tratados em polifonia; nos outros oito, são os versículos ímpares. Em duas outras versões, Victoria utilizou a escrita policoral dos italianos: o magnificats primi toni, para oito vozes e dois coros, e o magnificats sexti toni, para doze vozes e três coros. Todos os versículos são tratados em polifonia, e os diferentes coros intervém alternadamente antes de se reunirem. Um dos coros é acompanhado por órgão. Mas é certamente no Oficio da Semana Santa (Ojficium Hebdomadae Sanctae) que se revela o polifonista mais pungente, contemporâneo dos grandes místicos espanhóis (São João da Cruz e Santa Teresa de Ávila). Os responsos — principalmente, em que Victoria, liberado das imposições do canto fitúrgico, exprimiu os tormentos da Paixão de Cristo como um "madrigalista" religioso — estão entre os momentos mais altos da expressão musical religiosa: diante deles, as disputas abstratas dos teóricos do Concilio só têm a calar-se. ORLANDO DE LASSUS Orlando de Lassus era um homem em tudo diferente do que sabemos de Palestrina e de Victoria: mais homem da corte, viajante, curioso, não deixava de ter um acentuado temperamento religioso, que podemos surpreender em seus Psaumes de la pénitence [Salmos da penitência] ou em suas Lamentations de Job [Lamentações de Jó], por exemplo. O caráter fantasioso e divertido de Orlando de Lassus,
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manifesto tanto em várias de suas canções como nas cartas que escreveu — em que se expõe francamente sua verve macarrónica —, transformou-se, de súbito, no final da vida, em uma melancolia profunda e definitiva. Conseguiu, contudo, sublimá-la naquela que seria sua última obra: os madrigais sacros das Lagrime di San Pietro [Lágrimas de São Pedro], dedicadas ao papa Clemente V I I I . O afastamento em que se encontrava na Baviera permitia-lhe, no entanto, conservar maior independência com relação às diretrizes romanas. Nas quase sessenta missas que dele nos chegaram, a paródia foi o procedimento dominante de composição. E nisso revela-se, por sinal, toda a arte de Orlando de Lassus, capaz de tirar partido de modelos tão diferentes quanto Josquin Des Prés e Vecchi, Gombert ou Cyprien de Rore. A escolha dos modelos revelava ainda uma vez o ecletismo do músico: encontram-se, em sua obra, tanto motetos quanto madrigais italianos e canções francesas. As edições dessas missas também atestam que foram adotadas em toda a Europa. O primeiro volume de missas de Orlando de Lassus foi editado em 1570, por Claudio Merulo, em Veneza; outras de suas missas seriam incluídas na grande coleção do Patrocinium musices (Munique 1589). Na França, Le Roy e Ballard também publicaram algumas delas em 1577. A técnica da paródia também desempenhou um papel importante na composição dos magnificats, de que Lassus deixou cerca de uma centena, um número particularmente grande. Este é um fenômeno ainda mais excepcional: nos magnificats, Orlando de Lassus amiúde parodiava seus próprios motetos, mas também obras de Josquin Des Prés (Pràeter rerum seriem), ou madrigais, como o bastante célebre Ancor che col partiré, de Cyprien de Rore. A parte mais dfficilmente compreensível da obra de Orlando de Lassus é, no entanto, a constituida pelos seus motetos, principalmente por causa do número deles. No início do século XVII, Joachim Burmeister iria buscar exemplos nos motetos de Orlando de Lassus para estabelecer as bases de uma "retórica musical". Foi aliás na mesma época, em 1604, que os dois filhos de Orlando de Lassus, Rodolfo e Ferdinando, reuniram o essencial da obra do pai em uma imensa publicação póstuma, o Magnun opus musicum. O PROFANO E O SAGRADO Considerando as opções estilísticas que aparecem nos motetos de Orlando de Lassus — como em muitas outras obras contemporâneas dele —, fica claro que a Igreja não teria sido capaz de controlar totalmente as orientações estéticas da música religiosa. No máximo, podia ter a esperança de controlar o uso litúrgico dessa música. E assim, bem antes dos problemas de opção colocados pela nova música dos primeiros anos do século XVII, viu-se a estética do madrigal abrir seu caminho na polifonia religiosa: o homem religioso, para exprimir seus tormentos, sua paixão ou sua fé, servia-se da mesma linguagem do homem apaixonado. Neste sentido, muitos dos motetos de Orlando de Lassus, e mesmo de Victoria, são verdadeiros
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madrigais. E não constituem, por isso, exceções. O mesmo acontece com os motetos de Philippe de Monte e de Jacques de Wert, por exemplo. Essa osmose estilística entre profano e sagrado iria atingir o paroxismo com um homem como Gesualdo, que encontrou, nos atormentados textos dos Responsos da Semana Santa, um universo à altura de sua paixão. Sem dúvida, o caso de Gesualdo é de certo modo marginal; não serão outros, contudo, os caminhos seguidos pela evolução posterior à Contra Reforma em sua fase barroca, mais extrovertida e proselitista, "recuperando", para vantagem sua, a maior parte dos recursos musicais da música "mundana". No século XVI, porém, a atitude da Contra Reforma foi sensivelmente outra: sempre manifestou uma sistemática desconfiança com relação à música, pelo menos no que ela tinha de profano. No espírito da Igreja do Concilio de Trento, os instrumentos estavam muito estreitamente associados à música "mundana"; foi por isso que se proibiu nas igrejas o uso de instrumentos, com exceção do órgão, cujo emprego tentou-se regulamentar com mais severidade. Na verdade, na prática musical do século XVI, os instrumentos misturavam-se freqüentemente às vozes na execução das polifonias religiosas, e não parece que a Contra Reforma tenha realmente conseguido controlar esse hábito no conjunto da Cristandade. Algumas capelas ou igrejas tornaram-se particularmente famosas pela importância dos recursos instrumentais de que dispunham. Na época de Orlando de Lassus, a capela da corte da Baviera era uma delas, com a qual nem mesmo a capela do doge de Veneza poderia competir, pelo menos nos anos 1560-1570. Apesar disso, foi na basílica de São Marcos, em Veneza, nos últimos decênios do século XVI e no início do século XVII, que a prática instrumental na música de igreja ganhou um impulso notável. Insinuava-se a prática instrumental no hábito particular — que ali tinha vigência desde Willaert (ca. 1550:1 salmi appertinenti alii vesperi... a duoi chori [Os salmos pertinentes às vésperas... a dois coros]) — de fazer dialogar dois coros divididos entre as famosas tribunas de São Marcos. Depois de Willaert, a maior parte dos músicos venezianos desenvolveu essa técnica de escrita policoral: entre eles Claudio Merulo, Giovanni Croce, Giovanni Bassano e os Gabrieli, Andrea e Giovanni, ambos os quais haviam conhecido Orlando de Lassus em Munique. Em 1587, Giovanni Gabrielli reuniu as músicas de seu tio Andrea em uma coletânea de Concerti, antes de publicar, dez anos mais tarde, suas próprias Symphoniae sacrae, das quais viria a imprimir uma segunda série em 1615. Em 1608, um viajante inglês, Thomas Coryat, ouviu as músicas de Giovanni Gabrieli em San Rocco. A respeito delas, não se pode dar melhor descrição, nem mais entusiasmada: À s vezes dezesseis ou vinte homens cantavam juntos, tendo u m mestre ou moderador para cuidar da boa ordem; quando cantavam, os instrumentistas t a m b é m tocavam. À s vezes eram dezesseis tocando juntos seus instrumentos, que eram dez sacabuxas, quatro cometas e duas violas de gamba de u m tamanho extraordinário; às vezes eram seis sacabuxas e quatro cometas, às vezes apenas dois instrumentos, uma cometa e u m baixo de viola.
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Coryat teria podido ouvir as mesmas sonoridades em São Marcos, onde os instrumentos — violas, violinos, cometas, sacabuxas, baixos e órgão — misturavam-se habitaalmente às vozes da cappella (coro) ou dos solistas, mais virtuoses, em mesclas de cores cada vez mais variadas. Após a estética madrigalesca, que já invadira a Europa inteira, a escrita concertante dos venezianos também iria, no início do século XVII, difundir-se por toda parte, exportada pelos italianos, mas também imitada pela maioria dos estrangeiros: Praetorius e Schütz, na Alemanha, como Cererols, na Espanha. Em meio a essa profusão de músicas quefloresceudurante o século XVI, duas vertentes principais concentram em si a transformação fundamental por que haveria de passar a música. A primeira dessas vertentes diz respeito ao lugar da música e do músico na sociedade. Pelo jogo conjugado das modificações sociais e técnicas, assistiu-se então a uma vasta difusão da cultura musical emdita, que evidentemente atingiu as camadas burguesas: assim como a aristocracia, também a burguesia teve acesso à prática musical direta. A explosão dos gêneros profanos (canções, madrigais), mas também sua recuperação religiosa (salmos, canções e madrigais sacros), explicam-se desse modo. Mas essa difusão também afetou certas categorias de músicos (tocadores de instrumentos) que começaram a reconciliar os domínios culturais, até então bastante estranhos um ao outro, da execução instrumental e do saber musical. O que descobrimos como um repentino desenvolvimento da literatura instrumental não passa, na verdade, de seu advento na história, indissociável, em todo caso, da conquista de um novo estatuto sociocultural do músico: da tradição à modernidade. Ao mesmo tempo, a própria música é objeto de uma transformação profunda, que haveria de afetá-la em seu sentido e em sua função simbólica. A estética do madrigal (no próprio madrigal, mas também na música religiosa) é a manifestação mais sintomática disso. Do simbolismo medieval do número, evoluiu-se progressivamente, durante o século XVI, até o simbolismo do sensível. E a música engajou-se, desse modo, em uma nova via, a da descoberta da teatralidade.
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A MÚSICA LUTERANA NO SÉCULO X V I
No início do século XVI, a invenção da imprensa assinalou uma etapa fundamental da história da música e, principalmente, da polifonia. No mesmo momento histórico, outro acontecimento veio a favorecer de maneira decisiva a formação de uma arte musical especificamente alemã: a reforma de Martinho Lutero (1483-1546), cuja principal contribuição para a música foi o coral. Essa contribuição foi tanto técnica quanto espiritual, porque o coral apareceu a um tempo como uma forma musical bem definida e como o veículo de uma interioridade, individual e coletiva, completamente nova. A música alemã, em particular a da Alemanha do Norte, iria permanecer, daí por diante, profundamente marcada por tudo isso. No plano estritamente musical, o elemento fundamental dessa comoção representada pela Reforma foi a decisão de Lutero no sentido de generalizar o ofício religioso em língua alemã (e não mais em latim), com a participação ativa da comunidade religiosa; em outras palavras, a decisão de fazer a multidão de fiéis cantar as preces (os cânticos) em língua vulgar — não mais hinos latinos, mas cantos em alemão. É preciso mencionar que, para tornar realidade esse novo culto, Lutero — que, ao contrário do reformador suíço Zwinglio, nunca sonhara em banir definitivamente a música do culto, muito pelo contrário — teve uma intuição genial: transpor os textos para poemas curtos e fixá-los em música a mais simples possível, tão clara, fácil e "memorizáveP' quanto uma canção popular. O coral luterano nada mais é que uma música com essas características, que serve de suporte a esse tipo de texto. E mais: melodia e texto eram indissociáveis, um evocando imediata-
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mente o outro. Impõe-se então a impossibilidade de separar o musical não apenas do religioso, mas também do sociológico e do cultural. Para Lutero, ele próprio músico, a música tinha importancia primordial. Mas dificilmente teria conseguido modelar a espiritualidade alemã somente a partir da música. Levou sua ação a outros domínios, tratando, contudo, de não os desatrelar da música. Na consciência alemã, a música de inspiração luterana deve ter sempre uma inspiração religiosa, é claro, mas também, e em graus diversos, uma dimensão políticonacional. Cumpre acrescentar que essa música haveria de realizar, como poucas, a aliança necessária entre a sensibilidade popular e a ciência propriamente musical. Mas é preciso observar que o progresso da música alemã a partir do século XVI teve outras causas que não a reforma luterana. Poeta e músico, o próprio Lutero escreveu os textos e/ou as melodias (corais) de vários desses cânticos por ele destinados ao culto: parece que 36, ao todo. O mais famoso dos "corais de Lutero" é Ein feste Burg ist unser Gott [É uma muralha o nosso Deus], mais tarde utilizado por Bach em sua Cantata BWV80 (composta por ocasião do aniversário da Reforma), por Mendelssohn, em sua Sinfonia n" 5 em ré maior opus 107, por Meyerbeer, em Os huguenotes, e por Stravinski, em L'Histoire du soldat [A história do soldado]. No caso de Ein feste Burg ist unser Gott, parece que não somente o texto, mas também a melodia é de Lutero. Mas constituir um vasto repertorio de cânticos era tarefa considerável. Para levá-la a bom termo, Lutero partilhou-a com outros compositores, como Martin Agrícola (ca. 1486-1556) e sobretudo seu amigo Johann Walter (1496-1570). A música nem sempre foi especialmente composta para a ocasião. Lutero e os outros músicos beberam de todas as fontes: modernas e antigas, religiosas e profanas, eruditas e populares. Muitas vezes, pois, novas letras foram adaptadas a uma melodia preexistente: o coral de Natal Vom Himmel hoch, da Komm'isch her [Do alto do céu venho até aqui], mais tarde retomado por Bach nas grandiosas variações canónicas, por exemplo, foi retirado da canção, então na moda, Aus Fremden Landen Komm ich her [De um país estrangeiro, venho até aqui]. Assim também o admirável coral Christ lag in Todesbanden [Cristo jazia nos laços da morte], usado por Bach na Cantata BWV4, nada mais é do que o hino Victimaepaschali. O coral Komm, Gott Schôpfer, Heiliger Geist, por sua vez, é tirado do hino Veni Creator Spiritus.
pressas coletâneas de cânticos e livros de salmos: Psautier Lobwasser (1565), Psautier Wolkenstein (1540), Psautier Osiander (1586). A composição de corais prosseguiu ao longo dos séculos XVI e XVII, em particular durante a Guerra dos Trinta Anos, para exaurir-se nos primeiros anos do século XVIII. Depois de Johann Walter e de seu contemporâneo Ludwig Senfl (1488-1543), os principais músicos que se dedicaram ao gênero foram Hermann Finck (1527-1558), Phifipp Nicolai (1556-1608), Hans Leo Hassler (1564-1612) e Michael Praetorius (1571-1621). Por um desenvolvimento de algum modo inverso ao que lhe dera surgimento, o coral tornou-se em pouco tempo — embora permanecendo reconhecível enquanto tal e sem nada perder de seu sabor popular — um elemento da música erudita, segundo um duplo processo de integração harmônica e polifónica que deveria culminar nas peças para órgão e nas cantatas de Bach. Entre Lutero e Bach, quase todos os músicos de igreja alemães valeram-se dos corais — um repertório musical que todo mundo sabia de cor e cujos textos todos conheciam — como matéria-prima para cantatas e obras para órgão, tudo sem que se produzisse a menor impressão de arcaísmo ou de "retorno a". Foi assim que, desde o século XVI, o coral, como o salmo, seu equivalente na igreja cdvinista (encontram-se amiúde as mesmas melodias em uma e em outra), foi objeto de harmonizações para várias vozes, ao passo que, originalmente, era, em princípio, cantado em uníssono. O final da maior parte das cantatas de Bach traz esses corais harmonizados. Como elemento de uma polifonia, em particular como cantus firmus, o coral foi utilizado de maneiras as mais diversas, tanto como peça para órgão quanto nos gêneros cantata, oratório ou paixão, por compositores como Hans Leo Hassler, Michael Praetorius, Melchior Franck (1580-1639), Johann Hermann Schein (1586-1630), Samuel Scheidt (1587-1654), Dietrich Buxtehude (1637-1707), Johann Pachelbel (1653-1716) e,finalmente,Johann Sebastian Bach (1685-1750). O procedimento deveria mesmo ultrapassar o domínio da expressão germânica e da fé protestante, principalmente por causa do valor, a um só tempo simbólico e preciso em sua significação, do coral enquanto tal. Expressivos nesse sentido são o coral recriado do Berliner Requien [Requiem berlinense], de Kurt Weill, ou ainda a utilização de um coral de Bach associado à idéia de morte no Concerto para violino de Alban Berg, "em memória de um anjo."
O estilo musical dos corais luteranos — de caráter popular, entonação fácil e cadência marcada em frases curtas, em geral correspondentes a versos de oito pés — muito contribuiu para o seu sucesso: os corais luteranos serviram como expressão religiosa de todo ou quase todo um povo e passaram a figurar em inúmeras coletâneas impressas. A primeira dessas coletâneas de cânticos luteranos foi o Geistliches Gesangbüchlein [Pequeno livro de cantos espirituais, 1524], publicado por Johann Walther, com prefácio de Lutero, que continha, entre outros, poemas e corais do prefaciador. Lutero iria ainda tornar a prefaciar outras coletâneas de corais, em 1528,1538,1542 e 1545. Depois de sua morte, continuaram a sair im-
Vale ainda observar que, do segundo terço do século XVI à metade do XVIII, a música foi, para a Alemanha do Norte luterana, não somente uma atividade essencial, mas praticamente a única atividade artística digna desse nome. Isto porque Grünewald e Durer morrerem em 1528, Altdorfer em 1538, Holbein, o Jovem, em 1543, Baldung Grien em 1545 e Cranach em 1553. Depois disso, aquela região deixou de produzir grandes pintores, gerando apenas pequeno número de poetas e escritores. No Sul, a situação evoluiu de maneira diversa. A Baviera e a Áustria permaneceram católicas, e é significativo que, em Munique, a Capela Ducal de Guilherme
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V — a qual, no final do século XVI, em parte graças ao ouro dos Fugger, foi para a música alemã o que fora a Capela Imperial de Maximiliano d'Áustria por volta de 1500 — tenha tido em seu comando, durante muito tempo, não um alemão, mas o último representante da grande linhagem franco-flamenga, Orlando de Lassus (1532-1594). Dito isso, entre os centros irradiadores do Norte e do Sul, as pontes jamais se romperam. Lutero estivera em estreito contato com Ludwig Senfl, um dos predecessores de Orlando de Lassus em Munique. E no limiar entre os séculos XVI e XVII, fenômeno muito importante, vários mestres — como Leonhard Lechner (ca. 1553-1606), Johannes Eccard (1553-1611) e Gregor Aichinger (1564-1628) —julgaram que era chegado o momento de fazer uma síntese dos ensinamentos da Reforma, de Orlando de Lassus e das novas correntes que provinham da Itália. Mais importante ainda foram Hassler e Praetorius. Hans Leo Hassler (1564¬ 1612), de Nuremberg, o primeiro grande músico alemão a formar-se ao sul dos Alpes, basicamente em Veneza, fez-se partidário da assimilação italiana. Michael Praetorius (1571-1612), organista, autor de uma monumental obra didática (Syntagma musicam) e de obras tão belas quanto numerosas, situou-se igualmente na fronteira entre o moteto e o madrigal. Ambos os mestres franquearam o caminho para o maior músico alemão do século XVII, Heinrich Schütz.
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A MÚSICA INGLESA NO TEMPO DOS TUDOR E DOS PRIMEIROS STUART
A música religiosa no contexto do Renascimento inglês Pode-se falar de um Século de Ouro da música britânica, da mesma forma que se fala do Século de Ouro ibérico. Os dois fenômenos são estranhamente paralelos. Eclodem em países pouco preparados, revelam-se de grande intensidade, e, quando terminam, deixam as nações que os vivenciaram abertas a uma invasão cultural estrangeira que haverá de durar séculos. A história e a geografia explicam facilmente esse isolamento da cultura musical inglesa. Foi em Paris, na corte do duque de Bedford, irmão do rei inglês Henrique V e regente do reino de França, quase totalmente ocupado pelos ingleses, que John Dunstable (1385-1453), o primeiro grande músico britânico, fez sua aparição. Mas foi em Londres que morreu, depois de encerrada a Guerra dos Cem Anos, com a derrota inglesa. Durante muito tempo, os reis da Inglaterra ainda fizeram a fJor-de-lis figurar em seu brasão, mas isso já não enganava mais ninguém. O país tornara-se novamente uma ilha voltada para si mesma, buscando nela própria a sua felicidade. A insularidade da música britânica é uma constante da história. A frisque contenance anglaise ("graciosa contenção inglesa") terá exercido, durante algum tempo, influência sobre o continente. Os contemporâneos terão podido ver em Dunstable um dos mestres de Dufay e de Binchois. Para nós, Dunstable, um dos protagonistas do movimento europeu, teve a glória de dar novo impulso à polifonia inglesa.
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A história política confere ao período glorioso da música inglesa limites bastante precisos, tanto mais que a Igreja ainda era a maior cliente dos músicos (aquele foi o século da Reforma). O mundo inglês haveria de dar às noções de disciplina eclesiástica prioridade sobre os problemas de teologia: quer quisessem ou não, os músicos, parceiros da liturgia, viram-se na linha de frente da batalha que iria resultar no nascimento de uma Igreja que se pretendia exclusivamente inglesa. A consciência anglicana acabou sendo definida mais pelos compositores do que pelos teólogos. Os atores fundamentais dessa história não foram os servidores, clérigos ou leigos, da Igreja. Foram homens do poder, reis, rainhas, ministros e conselheiros. E esse é o motivo pelo qual cabe esclarecer com alguma precisão cronológica a sucessão dos acontecimentos políticos que constituíram o pano de fundo do longo século em que a música inglesa resplandeceu com um brilho sem precedentes. Em 1484, a Guerra das Duas Rosas terminou, em Bosworth, com a vitória de Henrique Tudor, que se tomou Henrique VII. Os direitos do novo monarca eram muito frágeis, mas a Inglaterra estava muito extenuada para disputá-los com um soberano que trazia paz, ordem e segurança. Dos acontecimentos que precederam sua subida ao trono, o novo rei reteve o que lhe pareceu ser uma regra de ouro: a coroa deveria sempre ter um herdeiro homem em condições de se fazer respeitar pelas armas e cuja legitimidade fosse incontestável. Seu filho, Henrique VIII (1509¬ 1647), preencheu todas essas condições. Mas as preocupações com a estabilidade dinástica, herdadas do pai, contribuíram para que Henrique VIII se lançasse em uma série de aventuras conjugáis que haveriam de inspirar, por muitos e muitos anos, romancistas e produtores de cinema. E que contribuíram para uma ruptura com Roma. Essa ruptura teve como principal agente Thomas Cromwell, perfeito criador de uma administração eficaz. Este, com a dissolução dos conventos, tratou de amealhar somas consideráveis, com as quais enriqueceu a coroa inglesa e foi feito conde de Essex antes de morrer no cadafalso em 1540, sorte comum àqueles que tinham problemas com o rei durante suas crises de humor. A despeito dos seus cinco casamentos, Henrique VIII deixou somente três filhos: um herdeiro doentio e muito jovem, Eduardo, e duasfilhasmais velhas, Maria e Elisabeth, que declarou bastardas. O mais surpreendente é que os três herdeiros de Henrique VIII sucederam um ao outro no trono sem maiores dificuldades, com aceitação quase unânime da nobreza e das comunas da Inglaterra. Esta tranqüilidade é ainda mais surpreendente quando se pensa que cada uma dessas mudanças de reinado se fez acompanhar por uma virada na orientação religiosa do Estado inglês. Se Henrique VIII só tivera a ambição de afirmar sua primazia pessoal e eliminar qualquer traço de tutela romana, o reinado de Eduardo VI (1547-1553) assistiria ao triunfo de um protestantismo bastante marcado pelo espírito de Genebra, a rainha Maria impôs um catolicismo sem compromissos (1553-1558), e
A música inglesa no tempo dos Tudor e dos primeiros Stuart
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sua meia-irmã Elisabeth (1558-1603) buscou trazer a paz ao reino com base em um compromisso estritamente anglicano, via media entre Roma e Genebra. Com Elisabeth, a "rainha virgem", extinguiu-se a dinastia Tudor. Os Stuart, que os sucederam, já eram reis da Escócia, e, por isso mesmo, assombrados pela força política adquirida pelos cdvinistas escoceses. Por reação, o medíocre Jaime I (1603¬ 1625) adorava discutir teologia e tentou fazer de seu reino inglês um império de respeitabilidade episcopal. Carlos I, seu filho e sucessor (1625-1649), prosseguiu no mesmo caminho, intensificando-o, apesar da crescente hostilidade de uma população britânica em que fermentava um sentimento puritano e republicano que só poderia expressar-se pela revolta. Carlos I perdera o reino e a vida no final de uma guerra civil em que os "cabeças redondas" de Olivier Cromwel (um sobrinho distante do ministro de Henrique VIII) trataram de desorganizar a instituição monárquica e o equilíbrio cultural instável criado com tantos esforços por Elisabeth. Com ordem e método, a acüTiinistração cromwefiana eliminou da vida pública o fato musical: com violência e armando desordens, os soldados puritanos do Commonwealth destruíram todos os órgãos do país. Raras vezes um corte cronológico inscreveu-se nos fatos de maneira tão clara. O tecido da música inglesa, nesse período abusivamente chamado de elisabetano, era de uma evidente homogeneidade; os limites de seu desenvolvimento estavam perfeitamente traçados. Tratava-se de um conjunto coerente cujo movimento seguia uma linha diretora facilmente identificável. Não há nada que seja motivo para espanto. Voltada sobre si mesma pelo duplo fracasso da Guerra dos Cem Anos e da Guerra das Duas Rosas, a Inglaterra abordou o problema que iria perturbar toda a Europa—a Reforma— com espírito pragmático. Desconfiando das soluções adotadas no continente, bastante hostil com relação a Roma, cheia de reservas para com Genebra e Wittemberg, acabou por criar suas próprias formas eclesiais, baseando-se mais na disciplina eclesiástica e na liturgia do que na doutrina. No domínio da liturgia, em que o papel da música era essencial, os reformadores enxergariam um meio de mudança desejada, ao mesmo tempo que uma marca da transformação das consciências. Em uma época em que a música religiosa constituía a maior parte da produção dos músicos, na Inglaterra ela esteve no centro do debate político e social, e sua evolução foi um dos fatores decisivos do nascimento da nova Igreja anglicana. Infelizmente, é muito difícil datar com precisão o surgimento da Igreja da Inglaterra. Será o caso de fixar o ano de 1534, data em que Henrique VIII decidiu subtrair seu reinado à autoridade do "bispo de Roma" e reunir na sua própria pessoa toda a autoridade civil e religiosa? Ou seria mais adequado considerar o ano de 1549 e o aparecimento, sancionado pelo selo real, do primeiro Book of Common Praier [Livro de preces para todos], que deu à nova comunidade — Estado e Igreja em um único corpo — sua liturgia própria? Ou dever-se-iam levar em conta as inúmeras vicissitudes por que ainda iria passar a nova organização, e escolher o ano de 1559, em que a rainha Elisabeth, depois de algumas semanas no
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trono, restabeleceu a Igreja da Inglaterra, por meio do Ato de Uniformidade, organizando um sistema de visitas episcopais de modo a garantir que os livros de preces e os usos litúrgicos fossem uniformes de um extremo a outro do reino? A questão em si pode parecer acadêmica. Mas certamente não o foi para os músicos, que tiveram que se defrontar com duros problemas. Vários deles permaneceram pessoalmente fiéis à antiga Igreja, mas a necessidade levou-os a trabalhar para a criação de uma liturgia nova. É interessante observar que, a despeito de todas as dificuldades políticas, entre o poder e a comunidade musical pôde-se estabelecer um modus vivendi que atravessou todos os acontecimentos, sem que nenhum dos membros desta última viesse de fato a sofrer com eles. Para o músico de igreja, pouco importa a escolha das datas. A questão essencial é a divisão do século em duas metades separadas pela subida de Elisabeth ao trono, em 1558. Durante todo o início do século, o grande canto de igreja permaneceu cantado em latim. Sob Henrique V I I I , porque o rei não tinha opiniões sobre o assunto, vez que ele mesmo compusera motetos latinos dos quais muito se orgulhava (sua única intervenção oficial na prática litúrgica em língua vulgar foi a criação de litanias em inglês, destinadas a pedir a benevolência do Senhor para um soberano que, em 1544, estava em guerra ao mesmo tempo contra a França e a Escócia). Sob Eduardo V I , malgrado o vigor de um movimento de reformas muito radicais, cujos inspiradores foram os protetores de um rei muito jovem (tendo subido ao trono aos nove anos, morreu antes de completar dezesseis), por causa da dificuldade de pôr em prática em tão pouco tempo uma liturgia nova. Finalmente, no reinado de Maria, porque a rainha, radicalmente católica, casada com Filipe II da Espanha, lançou-se na empresa de restauração da antiga ordem de coisas, usando tamanha violência que lhe valeu passar à posteridade com o nome de "Bloody Mary", ou seja, Maria, a Sanguinária. No decorrer desses anos de confusão, a ação dos reformadores exerceu-se bem mais no sentido de uma hostilidade com relação à música tradicional do que no sentido de criação de uma música que lhe fosse própria e tivesse algum valor. A Inglaterra não conheceu nada parecido com o formidável impulso espiritual e artístico que a personalidade de Lutero suscitara na Alemanha. Os Salmos divinos e cantos sacros, de Miles Coverdale, publicados em 1539, ou o Book of Common Praier, musicado por John Merbecke (1550), não tiveram sucesso. O primeiro chegou a ser interditado pela autoridade real. De todo modo, seu valor musical era desprezível: eram simples arranjos de cantochão não harmonizado, adaptado a letras em inglês. A única razão de ser deles era responder a uma necessidade geral, expressa em termos bem claros pelo regulamento do capítulo da catedral de Lincoln, em 1548: De agora em diante, n ã o serão mais cantados hinos à Virgem e aos santos, mas somente ao Senhor, e jamais em latim. Serão escolhidos os melhores e que soem da maneira a mais cristã, e serão adaptados à língua inglesa de modo simples e claro, uma nota para cada sílaba. E é isso que deve ser cantado, excluindo-se qualquer outra coisa.
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JOHN TAVERNER E SEUS CONTEMPORÂNEOS Diante dessa busca de austeridade, os compositores da tradição católica haviam erigido um edifício de raro esplendor. Paradoxalmente, o mais célebre compositor do início do século, John Taverner (1495-1545) era um homem que aderira às novas idéias, um luterano de primeira hora. Organista do Cardinal College (atual Christ Church) de Oxford, chegou a ser molestado por haver difundido literatura protestante. Quando a Reforma começou aflorescer,contudo, Taverner, compositor de missas malgré lui, interrompeu toda a sua atividade musical para começar uma nova carreira como agente inquisidor nos conventos, trabalhando para Thomas Cromwell. As oito missas de Taverner estão entre as mais perfeitas produzidas pela escola inglesa tradicional. A arquitetura dessas peças não tem equivalente no continente, mas é encontrada na maior parte das missas inglesas da época. Não há Kyrie; ficando as partes cantadas do ordinário do ofício reduzidas a quatro: Gloria, Credo, Sanctus e Agnus Dei. Essas quatro partes eram trabalhadas de maneira a apresentar aproximadamente a mesma duração: passagens dos textos do Gloria e do Credo são amputadas, enquanto o Sanctus e o Agnus Dei viam-se alongados por um jogo de vocalises e de repetições em eco. Neste quadro de simetria forçada, a complicação da polifonia é levada ao extremo pela subdivisão das vozes, que se tornam totalmente indiferentes a um texto do qual só permanecem inteligíveis algumas palavras que ficam como pontos de referência. Estamos em presença do equivalente musical das grandes abobadas, em que as nervuras desdobram-se ao infinito, evocando a imagem de fogos de artifício de pedra, sem que a estrutura arquitetônica do edifício seja alterada. A comparação entre essa floração de um gótico "perpendicular" e o canto de igreja neste início de século XVI é amplificada, nas interpretações modernas, pelo lugar reservado às vozes de sopranistas que exaltam o impulso vertical e a impressão de imaterialidade. Deve-se observar que há nisso uma deformação do uso antigo, em que abundavam as missas apenas para três vozes, sendo a mais elevada a do contratenor. A nomenclatura fez aparecer um grande número de missas que podiam ser executadas por um coro de homens, com ausência de vozes infantis suficientemente formadas. O tipo de missas que Taverner compunha é encontrado em seus contemporâneos William Cornyshe (1465-1523), Robert Fayrfax (1464-1521) e, na geração imediatamente subseqüente, Christopher Tye (1500-1573) ou Thomas Tallis (1505-1585), embora esses últimos tenham concluído sua carreira já no contexto da quietude elisabetana. Uma polifonia excessivamente decorada e certos hábitos fitúrgicos, tal como a supressão do Kyrie, marcaram as missas criadas por esses compositores, que muitas vezes se construíam sobre um fragmento de cantochão litúrgico ou sobre uma canção profana. O tema do Western Wynd [Vento do oeste] iria adquirir, na Inglaterra, uma popularidade quase igual àquela de que gozou o
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motivo de L'Homme arménas missas francesas ou italianas. Taverner e Tye usaramno, assim como, mais tarde, John Shepperd (1520-1563), cuja composição destinava-se à capela da rainha Maria, múmeros motetos vinham completar esse repertório, que muitas vezes tinha como finaüdade mais a música do que a devoção. AS VICISSITUDES DA MÚSICA NA ÉPOCA DA REFORMA
Essa energia consagrada à ornamentação do canto de igreja não desagradava somente aos reformadores. Um homem tão moderado quanto Erasmo criticou violentamente o clero inglês por ocasião do famoso Comentário sobre o Novo Testamento, que escreveu quando lecionava em Cambridge. Os monges da Inglaterra dedicam-se tanto à música que quase não têm outra atividade. Criaturas que deveriam chorar sobre seus pecados imaginam agradar a Deus com exercícios de garganta. As crianças recolhidas nos monasterios beneditinos neles só são recebidas para que melhor se cante o oficio da Virgem. Se a música lhes é necessária, que cantem salmos; e mais: que não os cantem demais! (...) A música de igreja em nossos dias é feita de tal modo que o povo que a ouve não consegue nela reconhecer qualquer palavra. Os próprios coristas não compreendem o que cantam, e, contudo, quando se pensa que são monges e padres, nisso estaria a essência da religião deles... Colégio ou monastério, em toda parte é a mesma coisa: música, sempre música...
As críticas quanto à impossibilidade de compreender os textos sagrados depois que eles passaram pelas mãos de um músico são tão velhas quanto a música de igreja. Reformadores e católicos uniram-se nessa reprovação. Uns e outros iriam tentar, com maior ou menor sucesso, fazer triunfar o ponto de vista pastoral sobre o ponto de vista puramente estético. O que é particular à Inglaterra era a importância assumida pela instituição monástica como centro de difusão de um canto que de religioso só tinha o lugar em que era entoado. Os ataques de Erasmo se fizeram ouvir em 1516 e acabaram recebendo uma resposta bem mais radical do que aquela que o autor poderia desejar. Subindo ao trono em 1509, o rei Henrique VIII começou como um católico bastante fiel a Roma, embora não muito religioso de espírito. Essafidelidadenão pôde, contudo, resistir à obsessão de assegurar uma sucessão inquestionável, fator político fundamental em uma época em que a lembrança da Guerra das Duas Rosas ainda era muito viva e somava-se à obstinada recusa de Roma a anular o casamento de Henrique VIII com Catarina de Aragão. Fosse tal obstinação motivada por razões de ordem moral ou decorrente do desejo de não descontentar o imperador Carlos V, sobrinho de Catarina e poderoso soberano, o fato é que provocou entre o rei da Inglaterra e o papado um estado de tensão insuportável. Em 1534, o rei declarouse o único chefe da Igreja da Inglaterra, desencadeando com isso um processo político e cultural que haveria de desdobrar-se por mais de um século. Mas já em 1530 havia a coroa inglesa iniciado um procedimento de "reforma" dos conventos. Sob o pretexto de uma medida religiosa, foi este um meio de de-
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sembaraçar-se de eventuais opositores na penosa questão do casamento real, e que deveria custar a vida a certos católicos eminentes, dos quais o mais célebre foi Thomas More, o amigo de Erasmo. Foi este igualmente, e sobretudo, um recurso para enriquecer o Tesouro real às expensas das comunidades religiosas dissolvidas. Do ponto de vista da história da música, a medida deveria ter as mais funestas conseqüências. Os monastérios sempre haviam preenchido a dupla função dos conservatórios: neles mantinha-se uma tradição e um repertório e neles se formavam os músicos. Dispersando-os, Thomas Cromwell e seus agentes privaram o país da estrutura que comportava em si toda a vida musical da nação. Era preciso remediar o mais rapidamente possível esse estado de coisas e suas pesadas conseqüências. Desde 1535, começaram a se formar coros nas grandes catedrais. As novas organizações eram estimuladas pela Coroa:ficavamsob o controle de bispos muitas vezes bem próximos da corte. Constituíam uma ferramenta musical nada desprezível. Os mais pobres desses grupos corais eram formados por cerca de vinte membros, mas somavam-se, desde o começo, mais de sessenta coristas em Wells. Saint Paul, em Londres, podia contar com uma força musical de 120 cantores, padres ou laicos. Havia um único inconveniente nessa nova forma de organização, mas um inconveniente grave: é que eram elas instaladas por bispos que, muitas vezes, não sabiam como e para que utilizá-las. Na mente de seus criadores, a liturgia protestante que se tentou definir não precisava de músicos profissionais. A liturgia católica estava claramente em declínio: só voltou à evidência durante os cinco anos do reinado de Maria, e mesmo assim os membros da capela real tinham que competir com os cantores espanhóis do séquito de Filipe I I . Rica no início do século, exaurida em um período de turbulências, a música de igreja haveria de retomar sua produção sob a proteção declarada da rainha Elisabeth. Havia-se tornado necessária uma intervenção pessoal da rainha: os excessos da reação católica que marcaram o reinado de Maria tinham deixado verdadeira sede de revanche nos reformadores. Na corte anterior, muitos músicos haviam exibido tanto suas habilidades, que se corria o risco de identificar música com prática papista. Uma minoria radical propôs à assembléia do episcopado, em 1559, a interdição de "qualquer canto erudito e da música de órgão". A moção não foi aceita, mas personagens importantes votaram favoravelmente a ela, como o deão de Saint Paul de Londres, que tinha sob suas ordens o coro mais importante da Inglaterra. Elisabeth também considerou necessário fazer promulgar um texto que expressasse o compromisso entre duas tendências aparentemente irreconciliáveis. Pode-se ver nisso a primeira diligência típica dessa via media anglicana, que guardava distância tanto de Roma como de Genebra. Após haver indicado que era preciso "usar um canto simples para todas as orações comuns da Igreja, de maneira que pudessem ser claramente compreendidas como se tivessem sido lidas sem música" — satisfazendo, desse modo, a ala puritana do episcopado —, a rainha decretou:
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Contudo, para conforto dos que amam a música, será permitido que, no c o m e ç o e no fim de cada serviço, de m a n h ã como à tarde, u m hino ou outro cântico possa ser entoado, utilizando-se a m ú s i c a mais harmoniosa que se possa encontrar.
A segunda parte desse texto constitui o porto de ancoragem de toda a música anglicana. Tanto mais que, ao longo de todo o seu reinado, Elisabeth, capaz de se mostrar tão dura e cruel quanto o pai a cada vez que julgava a Coroa ameaçada, deu provas, em questões Utúrgicas e musicais, de extrema largueza de espírito. THOMAS TALLIS E WILLIAM BYRD O espírito de tolerância da rainha iria permitir, estranhamente, que a música de inspiração católica continuasse sua carreira em um país em que as leis penais puniam severamente o exercício do antigo culto. Quando o velho Thomas Tallis e seu glorioso aluno, William Byrd (1543-1623), dedicaram à "majestade real" uma coletânea de Canciones sacrae, em 1575, nenhum dos dois fez mistério de sua filiação religiosa. O conteúdo da coletânea falava por eles: todas elas compostas com textos latinos, as Canciones estavam referidas de modo muito claro à Hturgia católica inglesa. Nesse mesmo ano, a rainha concedeu aos dois músicos o monopólio de toda "impressão de música ou papel para música" por um prazo de 21 anos em toda a extensão do reino. Tallis morreu antes que a concessão expirasse, mas Byrd pôde aproveitar dela até o fim e viu acumularem-se sobre sua pessoa as marcas do favor real. Mas, por seu catolicismo, parece ter-se exasperado com os anos. Quando publicou, por volta de 1595, suas três missas para três, quatro e cinco vozes, respectivamente, tratou de o fazer sem página de título, para não violar abertamente a lei. Mas não ocultou a autoria. Chegou mesmo a exibir suas simpatias: em cada uma das três missas, que eram de tipo continental, com o Kyrie e movimentos de duração desigual, o Catholicam et apostolicam ecclesiam do Credo era vigorosamente sublinhado. Em Psalmes, sings and melancholy sonnets [Salmos, cantos e sonetos de melancolia], de 1588, Byrd publicou uma de suas composições sobre um poema que celebrava o mártir jesuíta Edmund Campion, enforcado em Tyburn em 1581. Era preciso que a tolerância real tivesse seus limites: o autor do texto acabou tendo, em 1596, a mesma sorte de Campion; mas Byrd jamais foi molestado. Várias razões convergem para explicar esse estranho estado de coisas. A primeira é bem banal. Byrd, assim como Tallis, jamais deixara de honrar com cumprimentos musicais uma rainha, e uma mulher, muito sensível. Apresentadas a Elisabeth no décimo sétimo aniversário de seu reinado, as Canciones sacrae compunham-se de 34 peças, dezessete de Byrd e dezessete de Tallis. Assim também, o grande moteto a quatro vozes Spem in alium, de Tallis, parece ter comemorado, em 1573, o quàdragésimo aniversário da rainha. Um espírito tão típico do Renascimento dificilmente poderia permanecer indiferente a esse tipo de homenagem, uma vez que Elisabeth era extremamente musical e tinha grande admiração pelo
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talento de Byrd e de Tallis. A rainha não se podia privar dos serviços de artistas de tal qualidade. Desse modo, estabeleceu-se entre a rainha e aqueles seus dois súditos tun compromisso deveras insólito. A título pessoal, os músicos escreviam e publicavam o que desejavam, mesmo que fosse contrário às leis do reino. Cabialhes tomar as precauções necessárias para não criar um escândalo excessivo. Mas, na qualidade de membros da capela real, era-lhes pedido que compusessem para os cantores dessa capela, de acordo com o rito anglicano. Ambos contribuíram para a nova liturgia com um determinado número de serviços completos (dois de Tallis, três de Byrd, dos quais um particularmente solene), sem contar um grande número de hinos e antífonas. Formado nos primeiros anos do século, Tallis parece ter-se adaptado mal à necessidade que lhe era imposta de respeitar a perfeita compreensão dos textos: o latim lhe era mais familiar do que o inglês. Se é impossível dizer que sua obra culmina com o grandioso Spem in alium, não é por causa do tour de force que representa o emprego de oito coros a cinco vozes, mas porque essa exuberância sonora era o ponto de perfeição com que haviam sonhado um Taverner, um Fairfax ou um Tye, dos quais ele ainda se sentia muito próximo. O estilo de Byrd revela uma gama de recursos bem mais variados. É evidente que Byrd manteve-se inteirado a respeito de tudo o que se fazia no continente. Não é o caso de comparar suas missas com as missas inglesas do começo do século, mas com as de Palestrina. O vigor expressivo de Byrd e o calor com que envolvia o texto valem bem a flexibilidade com a qual o italiano equilibrava os elementos de sua polifonia. Embora nos hinos latinos das Canciones sacrae, de 1575, e das coletâneas posteriores, Byrd permanecesse fiel à tradição da polifonia complexa, rica e muitas vezes pouco inteligível que recebera de Tallis, sente-se o compositor de música anglicana muito preocupado com responder às exigências de uma liturgia que não era a sua. Byrd empenhava-se em combinar a tradição inglesa de riqueza decorativa com a simplicidade do texto. O "grande" serviço anglicano composto por Byrd situa-se no plano de perfeição das suas três missas, com as quais partilha o perfume de tépida ternura. O serviço "curto" é um perfeito exemplo de música que se adapta à piedade cotidiana, sem magnificência, sem acompanhamento instrumental. Byrd, católico militante, viu-se legitimamente consagrado como o pai da música anglicana. Mais do que qualquer outro, ele contribuiu para dar estilo à nova Igreja. No caminho que abriu, foi seguido por uma pléiade de compositores de mérito, que não tinham nem o seu talento nem os seus problemas para resolver. Pouco a pouco, esses compositores foram abandonando o latim, sem pressa, pois, para homens de igreja, o latim ainda era uma língua viva. Este abandono progressivo do latim constitui uma grande linha de clivagem. Os músicos nascidos antes de 1570 compunham ainda nas duas línguas, e sua técnica musical ainda era aparentada com a dos compositores do início do século. Com maior ou menor felicidade, conciliavam o estilo florido, que parecia acompanhar naturalmente a lem-
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brança da liturgia latina, com a linguagem mais simples que receberam como herança de Byrd. Robert White (1535-1574), John Shepperd e o grande Thomas Morley (1557-1603) trafegavam nas duas culturas musicais. Um tardio Richard Dering (1508-1630) preferiu aceitar um posto de organista em um convento de Bruxelas a servir a uma igreja que não sentia como sua: foi no continente que ressoaram os últimos ecos puros da tradição de Taverner. Os outros já estavam do lado inglês da barreira: a geração deles não conhecera o canto complexo e ornamental do início do século. Receberam sua linguagem de Byrd e da adaptação para a igreja da música de madrigal. Adrian Batten (1590¬ 1637), John Milton (1563-1647), cujo renome seria superado pelo de seu filho, Michael East (1580-1648), Thomas Tomkins (1572-1656) e Thomas Weelkes (1575¬ 1623) não eram músicos desprezíveis. Eles e muitos outros constituíram o exército de uma instituição musical que haviafinalmenteencontrado o equilíbrio e a serenidade. Falavam a mesma linguagem, partilhavam os lugares de organistas e mestres de capela das grandes catedrais, e alimentavam a esperança de ter como recompensa um fim de carreira na capela real ou em Westminster. O canto de igreja era apenas uma de suas atividades. ORLANDO GIBBONS Era a este meio que pertencia a tribo dos Gibbons, da qual o maior representante, Orlando (1583-1625), foi filho, sobrinho, irmão e pai de músicos. Nascido em Oxford, fez seus estudos musicais em Cambridge. Tendo ingressado, aos vinte anos, como organista na capela real, ali construiu toda a sua carreira, acumulando títulos sobre títulos, inclusive o de organista da abadia de Westminster. Morreu em Canterbury, em cuja catedral está enterrado. Parece que a vida teve o capricho de inscrever toda a trajetória da existência de Orlando Gibbons no círculo estreito das mais respeitadas instituições britânicas, fazendo dele a figura ideal de músico inglês. Distinguia-se, porém, daqueles que o cercavam, pelo extremo rigor de pensamento. Levando ao limite a lógica de trabalho dos compositores que vieram depois de Byrd, Gibbons veio dar ao anglicanismo a forma musical mais pura. A atividade de Orlando Gibbons tem lugar depois da morte de Elisabeth, naquela cultura que via nascerem os grandes dramas shakespearianos, a poesia exacerbada de um John Done ou de um Marvell. No primeiro ano de reinado de Jaime I, Orlando Gibbons dotou a igreja anglicana com um admirável instrumento de duas partes: o Full Anthem, hino para grande coro em que se reencontra a tradição polifónica inglesa, e o Verse Anthem, hino feito de versículos, em que se alternam coro e sofistas em uma construção bem mais flexível e rica de possibilidades expressivas. Mas o sol da música inglesa começava a declinar. Ao mesmo tempo em que se criava uma liturgia suntuosa na simplicidade, o protesto antimusical puritano se fazia tanto mais violento quanto vão. Não foi apenas uma coincidência banal o fato de que a mais célebre das antífonas de Gibbons, This Is the Record of John
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[Eis a palavra de João], tenha sido escrita a pedido de William Land, um apaixonado pela música e pela liturgia, que se tornou mais tarde arcebispo de Canterbury. A execução dessa antífona, em 1645, polarizou um dos primeiros episódios da grande revolta puritana que Cromwell levaria a termo. Totalmente proibida com o advento dos puritanos ao poder, a música religiosa deveria calar-se em toda a Inglaterra durante cerca de quinze anos. Os cargos de mestre de capela das catedrais foram extintos, os livros de música queimados, os órgãos quebrados. O próprio instrumento da música foi varrido das igrejas naquela grande tempestade que se pretendia purificadora. A iconoclastia musical não iria triunfar por muito tempo, mas parte do mal que fez mostrou-se irreparável. Madrigais e canções O velho texto de elogio a Dunstable que já citamos associa a "contenção inglesa" ao "maravilhoso prazer" que "torna o canto dos ingleses alegre e notável". A imagem assim sugerida é exatamente aquela que os ingleses haveriam de ostentar por muito tempo com evidente auto-satisfação, a de Merry England, a alegre Inglaterra. Hoje, pode parecer duplamente enganoso associar essa noção de alegria a um país que a industrialização nos habituou a ver como cinzento e moroso e a um século ensangüentado pelas disputas religiosas. Mas, na verdade, não se pode negligenciar a força explosiva de alegria resultante de um longo reinado de paz depois de guerras ininterruptas e dolorosas, da subida ao poder de um Henrique VIII jovem, brilhante, poeta e músico, e da descoberta de um "novo saber": o humanismo e a arte italiana. Em 1509, o jovem rei Henrique, que subia ao trono, ainda não era o ogro da lenda que foi se revelando com o tempo. Era um jovem de dezoito anos, belo, esportivo, generoso, dotado para as letras e as artes. Vinte e cinco anos de administração austera, obra de Henrique VII, haviam deixado um reino de pouca densidade populacional, como era a Inglaterra, em um estado de prosperidade raro entre as nações da Europa. O povo inglês comia bem, bebia bastante e cantava assim que aparecia a oportunidade. O século não foi, decerto, uniformemente dourado. Os apetites de Henrique revelaram-se gigantescos e variados, e nenhum escrúpulo viria frear sua carreira em busca de prazeres e de poder. Mas nem mesmo os anos de fogo seriam anos sem música. Mesmo assim, o melhor, a segunda primavera, a mais sofisticada e menos espontânea, iria reflorir com o reinado de Elisabeth. E prolongar-se-ia mais além, pelo século seguinte. AS CANÇÕES A música que Henrique VIII e seus contemporâneos tocavam e ouviam não estava distante das fontes populares. A primeira coletânea de cantos seculares publicada na Inglaterra saiu em 1530, impressa pelo alsaciano, fixado em Londres, Wynken de Worde. Compreendia vinte canções, que ainda pertenciam, pelo tipo de escrita,
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ao primeiro Renascimento europeu. Entre os autores publicados, encontramos os nomes de Fayrfax, Cornyshe, Taverner, bem menos originais neste tipo de repertorio do que na música religiosa. O que distingue tais canções como música inglesa é o aspecto espontâneo, à citação da balada ou do carol (alternancia de um refrão cantado em bordão e de uma parte de solista) populares. Destaca-se, nessas canções, da carapaça da ciência musical, um certo frescor: trata-se da expressão harmoniosa de uma classe de amadores dotados, fervilhantes de canto e ainda próximos da vida rural. O fenômeno tem sua importância: ali estão fincadas as raízes do gosto dos melómanos ingleses pela voz e pelas composições acessíveis a outras pessoas que não os profissionais. Se a atribuição a Henrique VIII da autoria da celebérrima Greenleeves [Folhas verdes] parece pertencer ao domínio da lenda, nem por isso deixou o rei de nos legar algumas composições excelentes: Hélas madame [Infelizmente, senhora], Gentil Prince [Príncipe gentil] e o delicioso Pastyme with Good Companye [Divertimento em boa companhia]. Ritmos de dança, harmonias rigorosamente homofônicas, recurso ao contraponto tradicional, tudo concorria para fazer de tais composições o mais amável dos acompanhamentos para os prazeres de uma jovem corte. OS MADRIGAIS Essa relativa simplicidade prolongou-se até que o século já estivesse bem avançado. Apenas na segunda metade dp reinado de Elisabeth se esboçou uma nova perspectiva musical. As causas foram múltiplas: a influência dos italianos que se fixaram em Londres, como Alfonso Ferrabosco, em 1569; a onda de confiança e o despertar nacionalista provocado pelo fracasso da armada espanhola, em 1588; os progressos que começaram a se fazer sentir no domínio da música de igreja, em que o compromisso elisabetano provocou a criação de obras novas tanto pela forma como pelo espírito; e, sobretudo, o desenvolvimento na Inglaterra de um teatro totalmente novo, do qual Shakespeare foi o maior representante, e que ecoava sem cessar a idéia e o som da música. É inegável que essa renovação musical estava em grande parte relacionada com a descoberta, pelos ingleses, do que faziam os italianos há duas gerações. Entre as primeiras coletâneas de madrigais, contam-se uma Musica transalpina, em 1588, e Italian Magrigalls Englised [Madrigais italianos à inglesa] em 1590. Em 1589, entre essas duas datas, William Byrd estava publicando Song of Sundrie Natures [Canções de todo tipo]. A palavra madrigal ainda não aparecia nessa obra. O uso do contraponto também era muito rígido, a linguagem harmônica bastante severa, e praticamente não se encontrava qualquer traço do vigoroso expressionismo dos contemporâneos italianos. A explosão musical só se iria produzir nos últimos anos do reinado de Elisabeth, tanto mais vigorosa por haver amadurecido durante tanto tempo. Só então a palavra madrigal veio à luz nas obras inglesas. Os três maiores mestres da época
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empregaram-na pela primeira vez em 1594 (Thomas Morley, 1557-1602) e 1597 (John Wilbye, 1574-1638 e Thomas Weelkes, 1575-1623). O que era uma especialidade italiana tornou-se a mais inglesa das formas. Em 1601, Morley pôde oferecer à rainha a homenagem dos músicos de seu país sob a forma dos The Triumphes ofOriana [Os triunfos de Oriana], uma reunião de 25 madrigais, obra coletiva de 23 músicos (Morley figurava com duas composições, assim como Ellis Gibbons, irmão daquele que seria o grande Orlando). Alguns músicos destacados, entre os quais Byrd e Dowland, não participaram da empreitada, cujo caráter italianizante era sublinhado pelo título que plagiava í Trionfi di Dori, publicado em Veneza em 1572. A marca de fábrica dessas duas coletâneas, a inglesa e a italiana é única: a retomada do mesmo verso no final de todos os madrigais. Para os ingleses, "Long live fair Oriana" [Longa vida à bela Oriana] era uma homenagem direta à rainha: na novela de cavalaria Amadis des Gaules, Oriana era a encantadora e virtuosa filha do rei dos ingleses, por quem o herói fica perdidamente apaixonado. O italianismo dos madrigais ingleses era apenas de fachada. Desde os seus primordios, em 1593, com aquelas composições que Morley ainda chamava de suas Canzonettes (pequenos cantos a três vozes), o madrigal inglês já falava a língua dos compositores italianos, mas com um forte sotaque insular. A freqüente alternância de tempos rápidos e lentos, a concisão dos motivos que se faz passar de uma voz à outra, um apego bastante particular à flexibilidade melódica, às vezes em detrimento da força expressiva, tudo isso dá a essas peças uma coloração sentimental muito particular. Esse cheiro britânico distingue-as, embora os compositores se contentassem — o que era bem comum nos primeiros anos — em retomar como matriz uma obra italiana já existente que um novo tratamento tornaria irreconhecível. Thomas Morley foi incontestavelmente o primeiro, em termos de data, e o maior mestre do gênero. A primazia de Morley assinala-se pelo fato de ele ter publicado, em 1597, um dos primeiros tratados teóricos em língua inglesa, intitulado A Plain and Easy Introduction to Practical Music [Uma introdução simples e fácil à prática musical]. Nessa obra, Morley explicava que o madrigal era a forma mais sutil e deliciosa para u m homem de bom entendimento (...). A m ú s i c a deve ser indecisa como o vento, por vezes lasciva e por vezes langorosa, por vezes grave e solene, e, em outros momentos, efeminada (...). Podereis mostrar em m ú s i c a a extrema variedade, e quanto mais variedade mostrardes, maior estima haveis de angariar.
Entre os compositores que cita como exemplo, surpreende que não se encontre, ao lado de um Marenzio ou de um Vecchi, o nome de Monteverdi, de quem mais ou menos quatro coletâneas já haviam sido publicadas. Cumpre considerar essa omissão como um indício do divórcio crescente que iria separar o madrigal inglês e seus descendentes da família monteverdiana, de um expressionismo cada vez mais exacerbado. Lendo-se o texto de Morley, vê-se como os ingleses foram
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seduzidos justamente pela flexibilidade do madrigal, por sua capacidade de adaptar-se aos mais diversos humores e estados de alma. A AYRE INGLESA É neste sentido que se deve compreender o desenvolvimento, entre os mesmos compositores, na mesma época, de uma forma que é específica à Inglaterra e que faculta a uma mobilidade ainda maior. A ayre era, em princípio, destinada a uma única voz, sustentada por um ou mais instrumentos. Nada impedia que esses instrumentos, violas ou virginal, fossem substituídos por outras vozes humanas. Estamos aqui em equilíbrio na corda bamba sobre a linha de demarcação que separa o quarteto vocal e a canção acompanhada, o futuro Lied. A diversidade das soluções deixadas à escolha dos exécutantes implica que essa escrita seja antes de mais nada melódica e privilegie o tenor (no antigo sentido do termo), que será portador daquilo que dá à ayre sua razão de ser, uma mensagem poético-musical. Essa fórmula aparentemente pouco complexa deu à música inglesa um corpus musical surpreendentemente rico. Preferiu-a ao madrigal o mais pessoal e mais comovente dos músicos daquela época: John Dowland. John Dowland (1563-1626) levou uma vida errante durante mais da metade de sua carreira. É em Paris que se tem notícia dele pela primeira vez, no séquito do embaixador da Inglaterra. Tinha dezesseis anos e converteu-se ao catolicismo. Em 1584, mudou de patrão e começou uma curiosa vida de errância: viveu na corte de Brunswick, em Hesse; passou pela Itália e permaneceu algum tempo em Veneza e em Florença, voltou à Alemanha, onde sua presença é assinalada em Nuremberg em 1595. Mais uma vez mudou de religião. Em 1598, aceitou um posto fixo: durante dezoito anos foi alaudista da corte da Dinamarca. A nostalgia levou-o de volta à Inglaterra. Mas só em 1612 ingressou no serviço de Jaime I , onde terminou sua existência de Hamlet musical, cheio de contradições, incapaz de qualquer estabilidade, mordido por uma melancolia aparentemente incurável. Seus contemporâneos admiraram-no como alaudista e cantor. Hoje em dia podemos reconhecer, nas aproximadamente oitenta canções que compõem a obra vocal de Dowland, uma sensibilidade exacerbada, uma fragilidade delicada que se expressa nos acordes mais estranhos. Sem artifícios instrumentais, mas apenas pelo desempenho da voz sustentada por um alaúde, Dowland foi capaz de atingir uma intensidade dramática comparável à dos grandes madrigais para solista de Monteverdi. Um trocadilho que fez com seu próprio nome serviu de lenda autobiográfica a Dowland: Semper Dowland, semper dolens ("sempre Dowland, sempre dolente"). A possibilidade de escolha entre a utilização da voz ou do instrumento era então, já há algum tempo, uma prática comum no continente. O que caracterizava a ayre inglesa era uma propensão cada vez mais marcada para realçar a voz do solista e considerar as partes instrumentais como elementos secundários. Thomas Cam-
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pion (1567-1620), que deixou várias coletâneas de ayres, definiu, no prefácio de seu First Book [Primeiro livro, 1613), o que parecia ter-se tornado uma prática geral: Essas árias foram, na maior parte das vezes, compostas para u m a única voz, com u m alaúde ou u m a viola; mas, sempre que aparecia ocasião, passaram elas a ser recheadas de partes intermediárias, que p o d e r ã o ser usados por todos que o quiserem fazer e que os outros deixarão de lado.
Não se pode dizer que o compositor faça aqui um grande esforço para orientar os músicos amadores para as soluções mais complicadas. Desse modo, foi de maneira bem natural que um canto solista desenvolveu-se a partir de composições que, na maior parte das vezes, eram estróficas, cheias de alusões às pequenas alegrias e dores da vida cotidiana, e que sobretudo não demandavam grandes proezas à voz. Apaixonados por música, Shakespeare e Ben Johnson trataram de aclimatar este canto à cena, quando estavam criando o teatro moderno. O lugar reservado à música nas peças de Shakespeare é imenso. Com exceção dos dramas históricos, praticamente não há uma peça, comédia ou tragédia, que não compreenda passagens em que o canto mostra-se essencial para a ação, desde o Willow Song de Desdêmona até as queixas de Ofélia. A MÁSCARA Na fronteira entre mundo de teatro e mundo real situa-se um tipo de divertimento para o qual a música era fundamental. É da própria natureza da máscara ser indefinível: sua única razão de ser era o prazer; nela, a música associava-se à poesia; a dança era-lhe tão necessária quanto o cenário das arquiteturas provisórias e o esplendor dos figurinos. Na máscara, a desordem era a regra, e a continuidade de um libreto era coisa desconhecida. As barreiras sociais atenuavam-se, quando não caíam de vez, entre os atores e osfidalgos,ou seja, entre os profissionais e os amadores. Grandes poetas e excelentes músicos deram sua contribuição para essas festas de uma só noite, das quais apenas elementos fragmentários poderiam permanecer. Tendo surgido nos últimos anos do reinado de Elisabeth, a máscara triunfou na corte de Jaime I . Sobreviveu a todos os acontecimentos, para resultar, bem mais tarde, em uma forma quase estável, com as semi-óperas de Purcell. A passagem pelo palco contribuiu para familiarizar o inglês médio com sua música e para criar uma multidão de amadores. O rei Henrique cantava à glória de seus vinte anos; a rainha Elisabeth tocava alaúde e tinha uma belíssima voz. O povo da Inglaterra seguiu o exemplo de seus soberanos. Não estava longe a época em que Samuel Pepys nos faria penetrar no interior de um hall de alto funcionário onde todo mundo, família e domésticos, tomava parte em um conjunto vocal e em que as criadas de quarto e os lacaios ganhavam seus empregos depois da audição musical, como se fossem entrar para o teatro, e não trabalhar na cozinha ou no quarto de costura.
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PREGÕES DE LONDRES Ainda uma última aventura esperava a música vocal britânica. Como a Paris de Janequin, Londres teve seus Cries of London [Pregões de Londres]. Tanto Weelkes ou Gibbons, quanto Dering deram-nos sua versão de uma polifonia cujos fragmentos eram pregões de rua. A mais célebre dessas peças de gênero deve-se a Thomas Ravencroft (1590-1633), de quem praticamente esquecemos a abundante música de igreja para guardar apenas a lembrança dessas reuniões de baladas e de cantos populares tratados sob a forma de catches ou de grounds (dois tipos de cânones, dos quais o segundo prevê a utilização de uma única voz a sustentar toda umafrasemelódica). Três coletâneas — Pamelia, Deuteromelia e Melismata, publicadas entre 1609 e 1611 — conservaram, sob a forma de polifonias elementares, uma coleção inestimável de música pré-elisabetana misturada aos pregões do campo e da cidade. Alaúde, virginal e outros Se é impossível superestimar a importância da música vocal na Inglaterra do século XVI, não é preciso, contudo, esquecer o lugar ocupado pela música instrumental. Como todos os povos da Europa, os ingleses daquele tempo tinham uma literatura para alaúde. Nesse domínio, estavam em atraso com relação ao continente. Não se ouve falar de alaudista notável antes da segunda metade do reinado de Elisabeth, e a primeira tablatura conhecida em Londres foi uma tradução de Instruction departir (sic) toute musique facilement en tablature de luth, de Adrian Le Roy, cujo original francês perdeu-se. A primeira edição dessa tradução apareceu em 1563, e seria preciso esperar por 1596 para que uma primeira Tabliture (sic) inglesa surgisse. Foi no meio de coletânea de canções que se encontraram as primeiras peças em que se prevê a execução do alaúde em solo. John Dowland, que transcreveu várias canções para esse instrumento, assinou, em 1610, juntamente com seu filho Robert, uma coletânea de Varietie of Lute Lessons [Variedades de lições de alaúde], acompanhada pela tradução do tratado francês de Bésard e por comentários de autoria do próprio Dowland. Era pouco e era tarde. E, no entanto, peças de origem inglesa já se achavam pubücadas em inúmeras coletâneas francesas e alemãs. Já havia danças, fantasias (fancies) e vários In Nomine, especialidade inglesa de contraponto sobre um fragmento de cantochão. O autor mais notável e mais freqüentemente citado era John Dowland, cujas tensas melodias e bruscas mudanças de tonalidade fazem pensar que ele andara por uns tempos na escola dos italianos. Os contemporâneos de Dowland não viam nele grande mérito e achavam que seu estilo cheirava a "vieille manière". Alaudistas tardios, os ingleses foram, por outro lado, dos primeiros a ter estabelecido uma diferença bastante clara, na música para teclado, entre as composi-
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ções para órgão e as composições para virginal, termo que designava, na época, todos os instrumentos de teclado e de cordas pinçadas. Veja-se nisso a marca evidente de uma afeição particular dos compositores ingleses por instrumentos, geralmente fabricados nos Países Baixos, em cuja execução atingiram um alto nível de virtuosidade, buscando explorar toda a gama de suas possibilidades. Não dispomos, contudo, de qualquer coletânea impressa antes da publicação, em 1611, de Parthenia, coleção de 21 peças de John Bull, Byrd e Gibbons. Até essa data, devemos nos contentar com grandes coleções manuscritas, que são Fitzwilliam Virginal Book, Mulliner Book, My Ladye Nevell's Book (totalmente consagrado a obras de Byrd), Cosyn's Virginal Book e algumas coletâneas de menor importancia. A imensa riqueza do repertorio atesta urna grande vitalidade criadora entre compositores e amadores. Certos nomes merecem ser sublinhados: o de Hugh Aston (morto em 1552), ancestral dos virginalistas ingleses, o de William Byrd, de quem nos restam cerca de 150 composições, o de Morley e o de Gibbons, aos quais cabe acrescentar o de Giles Farnaby (1565-1640). Todos esses músicos têm em comum o fato de terem dedicado o melhor de seu espírito criador à música vocal. As composições para virginal ressentem-se disso: ao lado das danças tradicionais, as transcrições de música cantada predominavam. Mesmo onde não havia transcrição precisa, encontra-se, transparente por sob a notação para teclado, um certo gosto pela alusão intelectual, uma lembrança dos modos de formular sentimentos, que estabelece um parentesco da escritura instrumental com a do madrigal. A permanência da própria idéia de um texto-pretexto de que se valem todos os músicos, impulsiona-os em direção a uma música de programa. E é isso que acontece com a deliciosa série de peças ingenuamente introspectivas criadas por Farnaby e que ele intitulou The Dream of Giles Farnaby, His Rest [O sonho de Giles Farnaby, seu repouso] às quais acrescentou, como precaução, uma Plaisanterie de Farnaby. Deste panorama leve e sedutor escapa aquele que é preciso considerar como o maior virginalista da época: John Buli (1562-1628). Ao mesmo tempo virtuose e compositor, Buli ocupava, na sociedade do século XVI, um lugar que poderia ser comparado ao de um Liszt que houvesse nascido duzentos anos antes. Seus contemporâneos agraciam-no, às vezes, com o epíteto de artificial, o que, na linguagem da época, significa apenas dizer que ele era perfeitamente senhor de sua obra; e talvez pudéssemos achar que uma mestria assim pública demais cheira um pouco a exibicionismo. Certo é que a arte de Buli, apoiada pelo seu virtuosismo pessoal como instrumentista, impressionou bastante seus contemporâneos. O músico não terminaria a carreira na Inglaterra. Em 1613, foi levado a partir para a Bélgica, aparentemente por motivos que dizem mais respeito à polícia do que à música. Organista da catedral de Antuérpia, Buli teve ocasião de encontrar nessa cidade seu quase-gêmeo Jan Pieterszoon Sweelinck: os dois haveriam de trocar juras de amizade e temas musicais.
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Mas aquela Inglaterra que levava tão longe o amor pelo virginal era uma apaixonada por todos os tipos de instrumento. Henrique VIII havia reunido em sua corte uma verdadeira orquestra de câmara (ou de salão de danças), na qual alaúdes e violas faziam eco a pífaros e sacabuxas. Sem ir muito longe no luxo e nas despesas, inúmeras famílias britânicas estimulavam a música in consort. Esse ancestral de nosso atual concerto indica simplesmente que vários instrumentos tocavam juntos, formando um full consort, quando todos pertenciam à mesma família, a das flautas ou a das violas, ou um broken consort, quando reuniam instrumentos de cordas com instrumentos de sopro e, mais eventualmente, um tamborim. O repertório dessa música de conjunto era abundante. Compreendia versões, enriquecidas na mstrumentação, de músicas de dança, elaborações eruditas sobre canções de sucesso, mas também composições originais, que tinham como único propósito pôr em evidência as sutilezas do desempenho de vários instrumentos em tonalidades diferentes. Normal para nós, a prática era audaciosa para a época. Se toda a Europa então preparava, cada país à sua maneira, a futura suíte de danças, as composições de pesquisa formal eram bem mais raras, quer tomassem a forma de construções em torno de temas Utúrgicos, quer renunciassem a qualquer pretexto inicial como muitas vezes acontecia na fancy inglesa. Byrd deixou alguns exemplos admiráveis dessas fantasias. Foi seguido por músicos mais jovens. Thomas Morley, entre outros, publicou, em 1599, uma coletânea de peças destinadas à viola baixo. No curso da variedade das publicações, certas árias e temas são reencontrados com assiduidade significativa. É o caso de Flow My Tears [Corram minhas lágrimas], de Dowland, cujo tema reencontramos nas pavanas de Byrd, de Farnaby e de Morley, as quais, todas, trazem o mesmo nome: Lachrymae. O próprio Dowland retomou o vocábulo latino para designar uma coletânea, cujo título poderia servir de resumo à inspiração de toda uma vida: Lachrymae ou Sete prantos figurados em sete pavanas apaixonadas com algumas outras pavanas galhardas e alemandas, estabelecidas para o alaúde, as violas e os violinos. A formação prevista era o de um consort dos mais clássicos. A coleção, publicada em 1604, era dedicada à rainha Ana da Dinamarca, no serviço da qual encon-^ trava-se então o músico. Esta coletânea é um dos pontos mais altos da música elisabetana (a rainha Elisabeth estava morta havia um ano quando a coleção veio a público). Os nomes de danças indicados por Dowland não devem nos enganar: na Inglaterra, bem adiantada neste aspecto em relação à cronologia internacional, fazia-se já música de câmara, uma música intelectual e marcada por uma sensibilidade não domesticada. Mas este belo edifício não iria sobreviver às crises políticas e à guerra civil. É forçoso, no entanto, reconhecer que os virtuosos guardiães do puritanismo cromweliano mostram-se ainda mais séveros com a música de igreja, que perseguiriam sem piedade, do que com música profana, à qual afinal deixaram um minúsculo lugar ao sol, com a condição de que ela não provocasse nenhum es-
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cándalo. O Lorde Protetor chegou a ter alguns músicos em sua corte e fez com que as filhas aprendessem a tocar o virginal. Foi no domínio da música instrumental que os estragos resultantes de uma política de rigidez moral menos se fizeram sentir. Mas todos os músicos cujos nomes tivemos ocasião de evocar já estavam mortos antes que chegasse a tormenta. Não é certo que restasse grande coisa para destruir em 1640 e que a época elisabetana não houvesse morrido de velhice um quarto de século depois de a rainha lhe emprestar o nome.
TERCEIRA PARTE
O SÉCULO X V I I
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SITUAÇÃO SÓCIO-HISTÓRICA DA MÚSICA NO SÉCULO X V I I
Se, na história da música européia, o período que compreende o século XVII e a primeira metade do século XVIII pode ser chamado de época barroca (se é que não pode ser definido por um estilo barroco, de caráter absolutamente único), isso se deve em parte ao fato de que esse período é marcado por uma unidade mais profunda, que não depende apenas de fatores estritamente técnicos ou artísticos. Uma parte importante das obras criadas nessa época, contudo, guarda toda uma série de características musicais comuns. A unidade profunda da época tem origem, a um só tempo, na unidade social, na mentalidade e nas idéias correntes naquele tempo. Encarar a música da época como parte integrante de um todo cultural e sociológico mais vasto justifica-se completamente, tanto mais que, nas concepções dos contemporâneos e na prática cotidiana de então, a música não gozava de uma independência pronunciada em relação aos outros domínios da cultura e da vida social, mostrando-se, ao contrário, acentuadamente inserida nesses domínios. Para as mentes daquele tempo, a música estava também integrada no mundo cósmico, no universo como um todo. Época de unificação e de absolutismo monárquico, para a era barroca a música devia servir àquele que se situava no ápice da hierarquia social, o monarca. Mas também estava a serviço de Deus: chegava mesmo a existir uma música celeste e angélica. Observa-se inclusive, com muita freqüência, um certo paralelismo de estilo e de caráter entre a música de igreja e
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a música de corte, que estava organizada, hierarquizada, sujeita ao fausto que cercava o rei e a um rigoroso cerimonial, regulamentado nos menores detalhes. Os termos concert, concerto, concerto, concertar, etc. tinham, na época, uma conotação musical que é niais ou menos precisa, mas também encerravam uma significação filosófica e cosmológica que indicava o acordo do múltiplo na unidade (como o concerto de planetas); ou, às vezes, também o contrário: o princípio de contraste, de antítese, de oposição e mesmo de luta. Se, na música, ainda não aparecia no plano temático, este princípio de contraste já se apresentava, na música do barroco, sob outras formas: contraste dinâmico forte-piano, contraste dos efeitos de eco, dualismo e tensão entre consonância e dissonância, polarização cada vez mais clara entre tom maior e tom menor, binaridade ária-recitativo, melodia-baixo contínuo, harmonia-polifonia; ou ainda bipolaridade das massas sonoras (tal como, e mesmo antes, nas obras de cori spezatti [coros dissociados] cantadas na Basílica de São Marcos de Veneza); ou os ataques alternados, quase competitivos, dos soli ou do concertino e do ripieno ou dos tutti; efinalmente,no plano teórico, confronto entre o primado da melodia e o da harmonia. Tais oposições iriam corresponder mais ou menos ao claro-escuro, às visões em profundidade e outras técnicas das artes plásticas. Profundamente inserida na sociedade e nas concepções da época, a música erudita da época barroca voltou-se, de início e principalmente na França, para os meios da corte, em que exercia funções sociais e assumiu um caráter artístico particular. No início do século XVII, no reinado de Luís XIII, o apaziguamento das lutas religiosas e o retorno a um clima social mais favorável às atividades artísticas abriram novas possibilidades para o exercício da música na corte. Se até então a música fizera parte da vida, das festas e dos acontecimentos cotidianos em todas as classes sociais, dali por diante ela ganharia uma orientação diferente. Embora uma parte da vida musical pudesse continuar a se exercer em outras áreas, ela passou a apresentar tendência a separar-se da vida cotidiana. Assiste-se progressivamente à formação de um público restrito de privilegiados, o que explica em parte o desenvolvimento da música de câmara, de início destinada apenas às próprias pessoas que a executavam e tocada por poucos e selecionados músicos em salões privados. Mas a monarquia francesa não era mais itinerante, e a centralização seguia seu curso. Assim, a formação de um público de corte explica o rápido triunfo da air de cour e, sobretudo, o desenvolvimento do ballet de cour. Se, no século XVII, é em função do público que se pode explicar sociologicamente o nascimento do concerto, cuja prática expandiu-se sobretudo a partir dos anos 1620 em Paris, é também pelo público da corte, cujo membro mais distinto era o próprio rei, que se pode explicar á extraordinária importância da música de corte. O século XVII assistiu ao desenvolvimento de uma música de corte que não apenas iria ter parte ativa nos rituais dessa corte, como, em seu próprio estilo,
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daria mostras de um caráter ritual. Os dois aspectos caminhavam juntos: a música participa da ordem cerimonial vigente e, ao mesmo tempo, dela se alimenta no sentido de incorporar algo das características dessa ordem ao seu próprio estilo e caráter, tornando-se ela mesma, até certo ponto, espetáculo e jogo, cerimônia e ritual. Na corte, a música haveria de integrar-se sobretudo aos rituais de prestígio, os mais importantes rituais da época no domínio profano. Institucionalizada, a música de corte representaria o auge da música ritual profana no século XVII: para atingir seus propósitos, o poder político não hesitaria em servir-se de uma música destinada a magnificar a pessoa do rei e seu poderio. Em comparação com os tempos anteriores, o uso de música com fins políticos engendrava, contudo, recolhimento considerável: ela rodeava os soberanos; não se cogitava de disseminá-la entre a população, em busca, por exemplo, de resultados educativos. Pode-se dizer o mesmo e mais ainda da música oficial da centralização monárquica no reinado de Luís XTV, da criação de um Lully e da organização da vida musical da época em Paris. Se é fato que, à "música do rei", tocava uma função política na sociedade, suas fronteiras eram delimitadas pelo soberano e seus fins obedeciam às regras de um cerimonial que servia à glorificação da monarquia e do próprio soberano. Sob Richelieu, Mazarino e Colbert, a música tornou-se, mais do que jamais fora até então, um instrumento político maleável, do qual o regime servia-se segundo propósitos precisos. Com particular habilidade, Mazarino valeu-se da música como ferramenta política. Os desígnios políticos de Mazarino com relação à ópera podem parecer pueris para quem ignora a função da música na sociedade italiana do século XVII. O compositor Kuhnau, predecessor de Johann Sébastian Bach como Kantor em Leipzig, iria constatar o fato mais tarde, em seu livro Le Charlatan musical [O charlatão musical]: "A música diverte o pensamento do povo e impede que se vejam as cartadas dos governantes." A Itália dava bom exemplo disso: seus príncipes e ministros deixavam os músicos atraírem a atenção do povo para deixá-lo maravilhado, de maneira a não serem perturbados em seus negócios. Italiano de origem, Mazarino tinha a ópera na conta de um meio privilegiado de distração, de sedução e de dominação, e produzia cada vez mais óperas e com maior suntuosidade. Mas sobreveio exatamente o efeito contrário: a encenação de Orfeo, de Luigi Rossi, custou tanto dinheiro que os adversários de Mazarino reagiram, valendo-se disso contra ele, e logo vieram somar-se argumentos de ordem patriótica contra os músicos italianos. Estes últimos tornaram-se vítimas de perseguições durante a Fronda, e os «hvertimentos transalpinos acabaram por ser proscritos, tal como os próprios artistas italianos. 1
Nome por que ficou conhecida a última revolta da alta nobreza feudal, aliada ao Parlamento de Paris, contra o processo de centralização monárquica a que dava prosseguimento, nessa fase da história francesa, durante a minoridade do futuro Luís XIV, o cardeal Mazarino, primeiro-ministro da regente Ana d'Àustria, que era de origem italiana. (N. T.)
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Na França, na segunda metade do século XVII, intervenções políticas condicionaram a introdução de instrumentòs (além do órgão) na igreja. No uso de motetos instrumentais (ou seja, motetos acompanhados por instrumentos), a Capela Real deu o exemplo: juntaram-se instrumentos às vozes, o que até então era excepcional nas igrejas. Desse modo, os Te Deum, que os acontecimentos públicos obrigavam todas as igrejas de Paris a celebrar — como em 1679 para a ratificação da paz com a Alemanha, ou em 1682 pelo nascimento do duque de Borgonha —, deram ocasião, de bom ou de mau grado, à introdução de instrumentos na igreja. Foi assim que o espírito e o estilo da ópera penetraram também na música religiosa da França, adquirindo esta um aspecto de aparato e de majestade. De modo geral, assistiuse, nesse domínio, a uma forte impregnação do sagrado pelo profano. Se, num primeiro momento, a música barroca pôde ser definida como a da era do baixo contínuo (Riemann), também pôde ser caracterizada como a da representação das "paixões". Desde o início do século XVII, surgiu na Itália o stile rappresentativo, com os madrigais e as óperas de Monteverdi. Por outro lado, o stile recitativo trouxe ênfase à recitação, ao aspecto oratório e textual na música vocal, aproximando-se da linguagem falada e permitindo o bom entendimento do sentido das palavras que eram cantadas. Os dois estilos, cada qual à sua maneira, foram apenas a expressão de uma única tendência fundamental: a de representar o sentido das palavras, um conteúdo extramusical, ou uma idéia poética cujo veículo seria a obra musical vocal ou vocal-instrumental, como a ópera, o madrigal, o oratório, o moteto, a cantata ou a paixão. O recitativo encontrado na maior parte desses gêneros musicais é, na música, o elemento mais próximo do gesto vivo da palavra falada e da eloqüência do orador. Nesse período, por sinal, õ intérprete é muitas vezes encarado como um músico-orador. A música no século XVTI permanecerá, talvez mais do que nunca até então, a serviço da palavra e da compreensão do texto literário. Com o decorrer do tempo, a música barroca encontrou toda uma série de fórmulas melódico-rítmicas ou de "figuras" musicais mais ou menos estereotipadas, aptas a expressar os diferentes tipos de "paixões", de emoções ou de sentimentos, que foram teoricamente codificados e elaborados sobretudo na Alemanha (Affektenlehre). Ao elaborar seu próprio código, que a habilitaria a comunicar idéias e sentimentos determinados, a música barroca foi se tornando, pouco a pouco, cada vez mais simbólica, particularmente com Bach, mais tarde. Mas já os músicos do tempo de Luís XTV obedeciam a um gosto corrente ao indicarem, por meio de títulos, o conteúdo imitativo ou pitoresco de suas composições instrumentais. Os primeiros passos da música "representativa", que precede a música "de programa" do século XIX, coincide, no século XVII, com a emancipação e o desenvolvimento mais acentuado da música instrumental. O núcleo dos futuros concertos públicos era constituído, desde o século XVII, no império germânico e em certos países vizinhos, pelos convivia e collegia musica,
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que já haviam surgido, aqui e ali, em Torgau e em Amsterdã, por exemplo, no século XVI. No século XVII, podiam ser encontrados em Praga, Sankt Gallen, Bremen, Winterthur, Schaffhausen, Basiléia, Halle e outros lugares. Os mais conhecidos desses conjuntos atuavam já em Hamburgo e Leipzig, onde se tornaram célebres no século XVIII, em que chegaram ao auge. Esses convivia e collegia musica eram conjuntos que, compostos essencialmente por amadores, e, mais tarde, atraindo também profissionais, reuniam-se para tocar juntos, principalmente para deleite de seus próprios membros. Os convivia musica, de tradição mais antiga, encerravam suas seções musicais, regra geral, com uma refeição comunal. Os collegia musica — depurados, por assim dizer, desse elemento extramusical — reuniam-se apenas para tocar. De início, não se admitia qualquer audiência, mas pouco a pouco um público restrito de convidados passou a assistir a essas reuniões musicais, que, em seguida, tornaram-se semipúbficas e finalmente públicas. A princípio, não incluíam músicas de cfivertimento, mas peças mais sérias e mais exigentes. Esses conjuntos eram compostos por cidadãos dos burgos e cidades e tocavam, na maior parte das vezes, no meio urbano. Até a metade do século XVII, neles se praticava com mais freqüência música vocal; depois, e cada vez mais, música instrumental ou vocal-instrumental. Na França e na Itália o correspondente até certo ponto dos collegia musica eram as académie di musica, quefizeramsurgir, por volta da metade do século XVII, um certo tipo de concertos mais ou menos regulares e abertos ao público, como os organizados por iniciativa de J. Champion de Chambonnières, em Paris. Esses concertos também se realizavam na Inglaterra. Na França, havia academias em Troyes, Roven, Orléans e Strasburg. Faziam-se, por outro lado, reuniões musicais totalmente privadas, que nada tinham de oficial ou de público, mas que se atribuíam, também elas, o nome de "academia", e que é preciso distinguir das academias propriamente ditas. Essas reuniões musicais tornaram-se pouco a pouco práticas regulares, até passarem a ser, finalmente, execuções musicais públicas diante de um auditório especialmente reunido para escutar, em troca de pagamento, um programa musical previamente organizado. Desse modo, já se constituía então uma nova vida musical — o concerto público e pago, que só iria se desenvolver consideravelmente no século seguinte. Em Londres, no século XVII, o violinista John Banister deu um primeiro impulso a esse tipo de audição, organizando concertos em bases comerciais, como noticiou a London Gazette em 30 de dezembro de 1672. Os concertos de sofistas e virtuoses itinerantes também eram ditos "academias", como os círculos artísticos e musicais na Itália, onde a mais famosa dessas sociedades musicais, chamada Academia dei Filarmonici, funcionou, em Bolonha, desde 1675. Como na Inglaterra, a burguesia italiana inventou, com a aristocracia, uma vida musical pública de bases comerciais. Roma, Veneza, Florença, Nápoles, Bolonha e outras cidades dão exemplos disso. Em vários centros, as academias locais constituíam
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Terceira parte: o século XVII
círculos exclusivos reservados aos membros das classes superiores da sociedade, mas alguns deles evoluíram pouco a pouco na direção de uma forma mais aberta de concerto público. Embora, na França, a parte mais importante da vida musical se desenvolvesse na corte real, em um meio fechado, a sociedade francesa contava já com uma burguesia esclarecida que se interessava pela música e tentava imitar pelo menos um pouco do que se fazia na corte e no meio aristocrático. Para essa burguesia, a música certamente não tinha a importância nem a freqüência daquela que se fazia na corte, mas sua existência no meio burguês indica que essa categoria social tinha necessidade dela. O Mercure Galant de 1688 conta que, em Paris, "nada está mais na moda do que a música; ela é hoje a paixão da maior parte das pessoas de bem e de trato". À medida que aumentavam as facilidades materiais da burguesia, esta tratava de permitir-se diversões em que a música estivesse presente. Na metade do século, Loret relata, por exemplo, um concerto de dois cantores acompanhados "por um cravo e duas violas" que ocorria em uma casa burguesa a cada duas semanas. Quanto ao povo, era-lhe dado assistir a execuções musicais — que, de resto, não apresentavam obras de grande valor artístico — por ocasião de algumas festas em lugares públicos. No século XVII, as festas públicas proporcionavam ao povo oportunidades de ouvir música gratuitamente, como o carrousel da Place Royale, por ocasião do casamento de Luís XIII, em 1612. A igreja era outro lugar em que as pessoas simples podiam ouvir obras musicais, que não compreendiam bem, mas que eram de valor artístico mais elevado. A boa música de igreja conferia tanto prestígio a uma cidade, que as autoridades municipais atribuíam muita importância ao emprego de músicos de destaque, capazes de produzi-la em alto nível. Depois das cortes e das academias, as igrejas foram o terceiro centro mais importante da vida musical do século XVII. Na época barroca pode-se classificar a música em três categorias principais: a de igreja, a de câmara e a de teatro — categorias que correspondem não somente aos lugares em que a música era tocada e cantada, mas também a estilos particulares. Todas as três assumiam funções sociais precisas. E todas tinham uma função na corte, onde o gênero mais representativo foi, sem dúvida, a ópera. Originária dos círculos aristocráticos e concebida inicialmente para eles, a ópera traduzia bastante bem o espírito e a mentalidade desse meio, tanto pela música quanto pelo texto. À ópera de corte só se podia ter acesso por convite, reservada que estava a um público estrito e exclusivo. Os libretos eram compreensíveis por um público cultivado e requintado, conhecedor da história e da mitologia clássicas. Na corte, principalmente na da França, como escreve M . Bukofzer, a ópera empregava vários coros e orquestras, conjuntos enfáticos, o esplendor do contraponto. Heróis da mitologia ou tomados da história antiga eram representados em conflitos estereotipados entre a honra e o amor, tema bastante caro à mentalidade aristocrática. Muitas
vezes o herói principal personificava o monarca, e não faltavam alusões e lisonjas a essa figura de soberano. Para atender à bienséance, a ópera não acabava, nesses casos, tragicamente. As representações de óperas de corte exigiam o emprego de somas às vezes fabulosas, tais como as produções de Ercole [Hércules], de Cavalli, em Paris, ou Pomo a"oro [O pomo de ouro], de Cesti, em Viena. Já se fez referência às imensas somas que Mazarino gastou para montar o Orfeo, de Luigi Rossi. As pesadas cargas financeiras indispensáveis à manutenção de uma companhia de ópera permanente podiam ser aliviadas por um outro tipo de tratamento da questão que veio a responder, no século XVII, à demanda de um público mais vasto, formado principalmente pela pequena nobreza, e que seguia uma fórmula menos onerosa: a ópera suntuosa foi transformada em espetáculo público e pago, aberto a todos, sem exceção, com a condição de pagar a entrada e assistir ao espetáculo convenientemente vestido, o que, evidentemente, não era viável para todos. A ópera paga, comercializada, solicitada pela ampliação de um público interessado, foi criada em Veneza em 1637, no Teatro di San Cassiano. O exemplo foi seguido em Londres, em 1639, por William d'Avenant; em Paris, em 1669, por Cambert e Perrin; e em outras cidades, como Hamburgo (1687) e Nápoles. Essas iniciativas eram apoiadas por burgueses ricos, desejosos também de ir ao espetáculo. Razões econômicas, contudo, impuseram ao gênero uma sobriedade mais ou menos considerável no uso de máquinas de cena e no cenário, e também no número de músicos engajados. Desse modo, as óperas apresentadas em Veneza por vezes admitiam apenas solistas, o que não deixava de ter conseqüências de ordem artística, com a imposição de menos suntuosidade e grandiloqüência. Mas, apesar dos sucessos comerciais do início, esse gênero comercial de ópera não pôde sobreviver às dificuldadesfinanceiras,e a ópera decaiu um pouco por toda parte, na ausência de meios suficientes e estáveis, regularmente proporcionados por um mecenas particular ou coletivo. Isso aconteceu porque não existia um verdadeiro mercado de música no século XVII, e sobretudo não existia um mercado livre. O patrocínio ou o mecenato eram a instituição social que assegurava uma relação estável e relativamente segura entre o músico e seu empregador ou protetor. O músico compunha e tocava para um auditório bem definido, que ele conhecia bastante, em ocasiões que lhe eram familiares e em lugares e conjuntos que conhecia igualmente bem: a corte, a capela, a igreja, o salão, o collegium musicum da sua cidade. Nessas condições, a maior parte de suas composições era de obras de circunstância, compostas para um fim bem determinado e que, em seguida, eram deixadas de lado. Existia uma demanda incessantemente nova de obras musicais e um repertório sempre em perpétua mudança, que, particularmente no que se referia à ópera, devia satisfazer uma avidez e uma curiosidade orientadas principalmente para a novidade. O posto ocupado pelo músico e seu estatuto social estavam indissoluvelmente ligados. Desse modo, a mais alta consideração era concedida aos músicos que t i -
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nham uma posição na corte. Se, no século XVII, a música tornou-se sobretudo uma arte de cortes e de residências aristocráticas, o espírito que reinava em tais ambientes haveria de deixar nela gravado um traço forte e profundo. A identidade social de boa parte da produção musical da época era inevitavelmente principesca e aristocrática, tanto por sua origem, quanto pela destinação ao público da corte e das residências aristocráticas. A quase totalidade dos compositores desse tempo servia a cortes, principalmente os compositores mais importantes, como Monteverdi, Schütz e Lully. Alguns deles vestiam uma libré, o que era regra, e eram assimilados aos empregados domésticos. Um número muito pequeno escapava dessa situação graças a circunstâncias variadas, como o acesso à nobreza, o reconhecimento geral de um talento fora do comum, o encargo de uma importante missão fora da música. Este foi o caso de Able, Hassler, Kerll, Lully, Schütz e Steffani. Quase todas as composições da época, principalmente as mais importantes (as que eram publicadas), traziam a dedicatória a um patrono, a um mecenas, a uma personalidade de quem o músico poderia esperar um favor ou uma recompensa. A demanda social e o apoio financeiro, cultural ou mesmo político à música instrumental ou vocal, profana ou religiosa, vinham sobretudo da parte de patronos ou mecenas nobres, individuais ou coletivos, seculares ou religiosos. Sem essa demanda e esse sustento, a maior parte da música erudita do século XVII jamais teria vindo à luz. Esse apoio implicava, entre outras coisas, o engajamento de um número mais ou menos significativo de músicos a serviço das cortes, das igrejas e das municipalidades. No trabalho, o músico daquela época devia ser ao mesmo tempo compositor, diretor de música, professor, instrumentista, cantor e ainda ter um domínio relativamente amplo de todos os gêneros de música exigidos pelo posto. Mas o século XVll introduziu certa diferenciação na atividade musical; não ainda uma verdadeira especialização nas profissões de músico, mas, em certos casos, uma tendência à especialização. As necessidades ditadas pela emancipação crescente da música instrumental e pelo desenvolvimento da ópera tornaram necessário o aparecimento de instrumentistas e de cantores virtuoses que se orientavam em sua carreira artística quase exclusivamente na busca da mestria em sua arte particular. Embora a maior parte dos compositores continuasse a ser, como antes, composta de músicos mais ou menos universais, havia alguns que se limitavam a ser diretores de música ou optavam por consagrar-se a um campo específico de sua preferência. Foi assim que surgiu o compositor de ópera como uma figura à parte. Igualmente, os músicos que ocupavam um posto, na corte ou na igreja, amiúde eram obrigados a orientar-se para as atividades exigidas por suas funções particulares. Mas os músicos a serviço das cidades deviam, ao contrário, demonstrar habilidade mais variada, exercendo ao mesmo tempo as funções de copista, intérprete, arranjador, etc. A profissão musical, sempre organizada em guildas ou corporações, começou portanto a individualizar-se e a afirmar-se, e continuou a ser regida por toda uma
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série de regulamentações estatutárias, postas em prática por corporações que previam em detalhes todos os direitos e deveres dos músicos profissionais que trabalhassem em tempo integral, exclusivamente como músicos. Porém, havia outros que só parcialmente exerciam a atividade musical nas residências aristocráticas e nas cidades, servindo ao mesmo tempo como auxiliares ou empregados em toda uma outra série de serviços e profissões. Por vezes, as cláusulas dos contratos previam que, na corte ou nas residências, esses músicos se desincumbissem de tarefas outras que não as musicais. Além dos empregos civis e eclesiásticos, os músicos podiam ganhar a vida como itinerantes ou ambulantes, mas sob pena de sofrer todas as conseqüências nefastas dessa opção, entre as quais ficarem sem proteção diante da concorrência, da rivalidade ou da morosidade dos músicos sedentários, ou verem-se relegados, na opinião pública, ao estágio mais baixo de animadores de ocasião, ou mesmo serem expostos a medidas de expulsão, como por exemplo durante os lutos públicos, em que toda atividade musical, exceto a exercida privadamente, era proibida por um período mais ou menos longo. Essa condição de músico itinerante, contudo, oferecia a vantagem de ser livre, o que, para aquele que a escolhia, devia ser um fator determinante. Os músicos de corte estavam, porém, sujeitos às conjunturas da vida política. Durante a Guerra dos Trinta Anos, que arruinou a Alemanha, a situação de muitos músicos tornou-se extremamente adversa. As dificuldades econômicas das cortes às vezes pesavam desde logo sobre os músicos, que começavam a ser licenciados, a ter os salários cortados ou a enfrentar outras privações. Por outro lado, no serviço dos príncipes e aristocratas, os músicos não tinham o direito de deixar o posto quando bem desejassem: dependiam exclusivamente da boa-vontade do patrono para deixá-los partir ou retê-los, às vezes por toda a vida. Os músicos a serviço das cidades podiam, ao contrário, obter a rescisão dos seus contratos com maior facilidade. Para os músicos, as duas modalidades de serviço envolviam, desse modo, vantagens e inconvenientes. Mas a consideração social de que gozava o músico não dependia apenas do status social do seu patrono ou empregador. Dependia também do instrumento que ele tocava. Os tocadores de trompetes e de tímpanos desfrutavam de uma reputação mais considerável, de privilégios particulares e de salários por vezes superiores aos dos colegas. Na França, no século XVII, defendia-se a superioridade do cravo com relação a outros instrumentos. Razões de prestígio social e de interesses profissionais chegaram a opor diferentes instrumentistas até mesmo perante tribunais. Na Alemanha, por exemplo, consideravam-se os sopros mais nobres que as cordas, enquanto na Itália acontecia o inverso. As questões de prestígio e de consideração estendiam-se, contudo, não apenas aos instrumentos, mas também a seus fabricantes. Se a oposição entre "harmonistas" e a corporação de tocadores de
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instrumentos, no final do século, em Paris, envolvia razões econômicas, profissionais e de prestígio social, conflitos fundados em razões da mesma natureza opunham os "facteurs" de órgãos e os "faiseurs" deflautas,oboés e outros intrumentos. Distinções de denominação desses fabricantes de instrumentos musicais chegaram mesmo a ser oficialmente formalizadas na França, em um decreto de 1692. A grande evolução da música instrumental, e particularmente da que era executada por conjuntos musicais, com suas novas formas de concerto, sonata e outras, só teve incício no século XVII, tornada em parte possível pelo desenvolvimento do artesanato ao qual estavam ligadas novas técnicas de produção mais aperfeiçoadas, das quais dependia o fabrico de certos instrumentos. Até então, a música vocal predominava sobre a instrumental, em quantidade e em qualidade; e ainda no século XVI a primeira exercia sobre a segunda uma influência mais ou menos acentuada. Os instrumentos, pouco aperfeiçoados, conservavam uma importância artística apenas secundária e bastante restrita. O fabrico de instrumentos de cordas, assegurado por procedimentos de construção facultados por um artesanato requintado, permitiu que esses instrumentos atingissem mais rapidamente a perfeição e a individualização. Isso pode ser observado tanto pelas obras cada vez mais numerosas escritas para tais instrumentos, quanto pelo exame da formação dos conjuntos instrumentais da época. Os célebres fabricantes de violinos de Cremona, na Itália, entre os quais Amati e Stradivari, contribuíram muito para que as coisas tomassem esse rumo, bem como os melhores fabricantes de cravos do século, os Rückers, de Antuérpia. Seria falso imaginar, contudo, simplificando as coisas, que todas as inovações técnicas referentes aos instrumentos da época encontravam imediata aplicação prática e instrumentistas capazes de tirar partido delas. Às vezes foi necessário longo tempo para que um aperfeiçoamento técnico encontrasse sua utilização artística. É assim, de resto, que se pode explicar, em certos momentos do século XVII, o avanço temporário de formas particulares destinadas aos instrumentos de sopro, em comparação com aquelas reservadas aos instrumentos de corda. Com o tempo, contudo, um novo aperfeiçoamento técnico dos instrumentos terminava por engendrar conseqüências favoráveis para a prática musical. Foi assim que, nos anos 1620-1630, uma estreita colaboração entre alaudistas e fabricantes de alaúde, na França, contribuiu amplamente para o aperfeiçoamento deste instrumento específico e para a grande voga da música para alaúde que viria a se impor no final do século. Nos séculos XV e XVI, a influência mais importante que se exerceu sobre a música européia foi a dos músicos dos "Antigos Países Baixos", "franco-flamengos" ou "borgonheses". Porém, no século XVII predominou a influência italiana, sobretudo através da ópera, aquele novo gênero que em pouco tempo alcançava tanto sucesso junto ao público, mas também através do oratório, da música para violino e por
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diversas formas vocais e instrumentais. Não se tratava apenas, no entanto, de influência da música italiana, mas também e sobretudo da influência dos músicos italianos, que praticamente tomaram a Europa, a partir de 1630. Os italianos ocupavam os melhores postos por toda parte, nas cortes, nas capelas reais e principescas e nas casas de ópera — de Viena a Berlim e a Hanover, de Londres a Copenhague e a Varsóvia. Os italianos eram muito requisitados e mais bem pagos do que os músicos locais. Os únicos postos que lhes escapavam, em regra, eram os de músico de igreja, apesar dos sucessos da Contra-Reforma e das muitas conseqüências que ela acarretou no plano propriamente musical; isso vale, de modo geral, para os países protestantes, em que o papel e a influência dos Kantor locais permaneciam decisivos. A exceção das trupes itinerantes de ópera, quase todas italianas, que iam de cidade em cidade e de corte em corte, a mobilidade dos músicos que vinham da Itália não deve levar a crer que eles buscavam afirmar-se junto ao grande público. No século XVII, os músicos não queriam ampliar o seu público, mas conservar o que já tinham (evidentemente, isso não vale para os músicos itinerantes). No entanto, as relações dos músicos sedentários — empregados de cortes, de igrejas ou de cidades — com seus patronos e seu público eram pessoais e individuais. Tudo se passava em pequenos grupos, quer se tratasse de corte, residência aristocrática ou igreja. Não havia público anônimo. Naquela época, apesar do surgimento dos primeiros indícios de uma vida musical nos meios burgueses e urbanos, essa vida — no que diz respeito à música erudita — permanecia, no essencial, elitista. O século XVII talvez tenha sido, desse ponto de vista, o século mais elitista de toda a história da música européia.
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CLAUDIO MONTEVERDI (1567-1643)
No que diz respeito à música, o início do século XVII foi período tão inovador quanto o início do nosso século. Os aspectos revolucionários podiam já ser amplamente pressentidos no decorrer dos decênios precedentes. O Renascimento esgotara-se. E a era barroca se estabeleceu, assinalada pela definição do sistema tonai, pelo surgimento do estilo monódico, em reação contra os requintes do contraponto e das técnicas escolásticas, pela busca de uma expressão mais natural e pela valorização das vozes solistas. A predominância da Itália parecia incontestável: a arte vocal italiana mostrava-se incomparável. Mas essas transformações profundas produziram igualmente uma simplificação da composição musical, que conseguia tocar mais rápida e diretamente a fibra emocional do público, mas perdia alguma coisa de sua especificidade. Embora facultasse maior maleabilidade à execução musical, a técnica do baixo contínuo revelou-se, em certos casos, parcialmente responsável pelo empobrecimento da escrita musical. O aperfeiçoamento simultâneo da orquestração e da fabricação dos instrumentos de cordas não cessava de avançar. Os instrumentos de teclado substituem progressivamente o alaúde no acompanhamento das obras dramáticas. Multiplicavam-se as danças (emparelhadas de acordo com os seus tempos: pavana/gaIharda, alemanda/saZíareZZo, passamezzolgalharda, passamezzolsaltarello...), apresentadas na forma de suítes, com a composição destinando-se particularmente aos conjuntos instrumentais e aos instrumentos solistas. Formas precipuamente apropriadas à execução instrumental, tais como o ricercare, a fantasia e a canzone,
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permitiam que o músico, segundo a expressão de Praetorius, nelas incluísse a fuga "para seu próprio prazer". A fuga barroca foi pouco a pouco deduzida do ricercare e da canzone para dar origem à sonata e ao concerto. Em Florença, aproximadamente em 1580, formara-se em torno do conde Giovanni di Bardi um grupo de artistas e aristocratas, a "camerata", que se consagrava a pesquisas visando a reforçar o impacto expressivo da palavra. Com tal fim, recorreram a um estilo melódico declamatório que gostaria de aproximar-se da monodia grega e implicava, por conseguinte, a recusa do ideal polifónico do Renascimento. Tratava-se de uma tentativa de retorno à expressão "natural" dos sentimentos humanos; os músicos deste cenáculo, Vincenzo Galilei, Giulio Caccini, Peri, Emilio de Cavalieri, etc, aparentemente influenciados pela estética platônica, esforçaram-se por forjar um estilo "representativo" (sttlo rappresentativo) baseado na utilização do recitativo. Na verdade, era preciso um modo de expressão vocal intermediário entre o falado e o cantado ("aquém da melodia do canto", sugeriu Peri no prefácio de sua Euridice em 1600), que constituísse uma maneira de "falar em música" (in armonía faveïlare), e encontrasse, desse modo, una certa nobile sprezzatura di canto. Para isso, tornava-se necessário renunciar às sutilezas do contraponto herdadas das técnicas medievais, daquele contraponto considerado por Caccini, em Le nuove musiche [A nova música], como q "esquartejamento da poesia". As propostas desse grupo estavam longe de ser unânimes. Nicola Vicentino e Zarlino adotaram uma atitude bastante crítica com relação a essa ilusão de um retorno às fontes, à possibilidade de uma ressurgência das teorias antigas. Mas é inegável que os adeptos da camerata estão na origem de gêneros como afavola, o drama in musica e a pastorale, que anunciavam a ópera do século XVII. A camerata, como já se disse, era atravessada por profundas dissensões. Caccini, por exemplo, deixava imensa liberdade ao cantor, a despeito de certas restrições referentes ao uso de ornamentos, trilos e vocalises, como se vê em Le nuove musiche, enquanto Gagliano mostrava-se bem mais intolerante, insistindo em que os ornamentos, como todo artifício vocal, deviam ser exceção, de modo a não influírem na compreensão do texto, nem na articulação das sílabas, conforme escreve no prefácio de Dafne, de 1608. O certo é que esse cenáculo apresentava um aspecto deliberadamente elitista e que suas criações estavam orientadas no seguinte espírito: "... verdadeiro espetáculo de príncipes", diria Gagliano a respeito de sua Dafne. O final do século caracteriza-se por uma abundância de estilos, uma fusão de idéias por vezes opostas, que coexistiam e freqüentemente confrontavam-se. Em 1590, logo depois da partida do conde Bardi para Roma, a camerata dissolveu-se. Peri, Cavalieri e Caccini tomaram as rédeas do movimento florentino de "humanismo musical". Segundo o desejo expresso por Giulio Caccini em 1610 (Caccini é em geral considerado o fundador do bel canto), é preciso que "a música seja de início letra"
Claudio Monteverdi
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e que "o ritmo e o som venham depois", que a expressão vocal fosse perfeitamente apropriada às emoções e se mostrasse capaz de traduzir a gama dos sentimentos humanos em toda a sua extensão; a tanto aspiravam igualmente Vicentino e Zarlino. A amplificação das entonações, ritmos e características fundamentais do falar deveria revelar-se apta a instaurar essa forma de comunicação mais direta e imediata com a sensibilidade. Monteverdi começou a produzir no cruzamento de dois séculos e de dois mundos musicais: aquele que herdara e que era caracterizado por uma escrita polifónica e contrapontística complexa e aquele que anunciava o surgimento da harmonia tonal e da monodia acompanhada. Mas, contrariamente às posições extremistas de alguns de seus contemporâneos, Monteverdi sabia que se tornara imperioso aliar o rigor do modo antigo de compor às potencialidades de expressão que a forma madrigalesca havia deixado pressentir. Monteverdi foi aquele que não se esquivou das aspirações — e talvez mesmo das modas — de sua época, sem a elas sacrificar um temperamento artístico insaciável e inovador. O conflito entre sagrado e profano resolveu-se na obra de Monteverdi. O aspecto inovador de sua música não reside apenas em seu caráter harmônico, mas fundamentalmente nas dimensões temporais que ela engendra, com suas flutuações de tempos e suas progressões rítmicas que enriquecem consideravelmente a força da expressão, seja ela de natureza religiosa ou profana. Em Monteverdi, a ópera, que não é mais somente alegórica, mas antes voltada a recolher a expressão dos sentimentos humanos em sua variedade, confronta o tempo narrativo da ação com o tempo musical, um "iluminando" o outro. Jogo de timbres instrumentais e vocais, exploração dos registros temporais múltiplos da consciência humana, opções harmônicas em estreita relação com cada situação poética — tudo concorre para a unidade dramática. O sucesso que Monteverdi obteve na época pode ser em parte atribuído ao fato de que, por meio da ópera, ele conseguiu melhor do que ninguém transmitir novas idéias, superando o formalismo esotérico dos antigos sistemas. Claudio Monteverdi nasceu em 15 de maio de 1567, em Cremona. Era o mais velho de cinco filhos de um pai médico. Sua educação musical foi confiada a MarcAntoine Ingegnieri, mestre de capela da catedral de Cremona, que lhe transmitiu a herança da escola franco-flamenga, mas que sobretudo fez seu discípulo descobrir a arte dos madrigalistas (Willaert, Ruffo, Cyprien de Rore, Marenzio). Apesar das influências de seus predecessores imediatos, Monteverdi permaneceu profundamente impregnado do rigor formal e da concisão do estilo dos antigos mestres. Paralelamente aos seus estudos musicais, Monteverdi adquiriu uma brilhante cultura humanista, apaixonando-se por poesia e filosofia. Além das técnicas de notação, estudou órgão, violino e arte vocal. Desde os quinze anos, freqüentou assiduamente a academia degli Animosi, de Cremona, que acolheu suas primeiras
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permitiam que o músico, segundo a expressão de Praetorius, nelas incluísse a fuga "para seu próprio prazer". A fuga barroca foi pouco a pouco deduzida do ricercare e da canzone para dar origem à sonata e ao concerto. Em Florença, aproximadamente em 1580, formara-se em torno do conde Giovanni di Bardi um grupo de artistas e aristocratas, a "camerata", que se consagrava a pesquisas visando a reforçar o impacto expressivo da palavra. Com tal fim, recorreram a um estilo melódico declamatório que gostaria de aproximar-se da monodia grega e implicava, por conseguinte, a recusa do ideal polifónico do Renascimento. Tratava-se de uma tentativa de retorno à expressão "natural" dos sentimentos humanos; os músicos deste cenáculo, Vincenzo Galilei, Giulio Caccini, Peri, Emilio de Cavalieri, etc, aparentemente influenciados pela estética platônica, esforçaram-se por forjar um estilo "representativo" (stilo rappresentativo) baseado na utilização do recitativo. Na verdade, era preciso um modo de expressão vocal intermediário entre o falado e o cantado ("aquém da melodia do canto", sugeriu Peri no prefácio de sua Eurídice em 1600), que constituísse uma maneira de "falar em música" (in armonía favellare), e encontrasse, desse modo, una certa nobile sprezzatura di canto. Para isso, tornava-se necessário renunciar às sutilezas do contraponto herdadas das técnicas medievais, daquele contraponto considerado por Caccini, em Le nuove musiche [A nova música], como o "esquartejamento da poesia". As propostas desse grupo estavam longe de ser unânimes. Nicola Vicentino e Zarlino adotaram uma atitude bastante crítica com relação a essa ilusão de um retorno às fontes, à possibilidade de uma ressurgência das teorias antigas. Mas é inegável que os adeptos da camerata estão na origem de gêneros como afavola, o drama in musica e a pastorale, que anunciavam a ópera do século XVII. A camerata, como já se disse, era atravessada por profundas dissensões. Caccini, por exemplo, deixava imensa liberdade ao cantor, a despeito de certas restrições referentes ao uso de ornamentos, trilos e vocalises, como se vê em Le nuove musiche, enquanto Gagliano mostrava-se bem mais intolerante, insistindo em que os ornamentos, como todo artifício vocal, deviam ser exceção, de modo a não influírem na compreensão do texto, nem na articulação das sílabas, conforme escreve no prefácio de Dafne, de 1608. O certo é que esse cenáculo apresentava um aspecto deliberadamente elitista e que suas criações estavam orientadas no seguinte espírito: "... verdadeiro espetáculo de príncipes", diria Gagliano a respeito de sua Dafne. O final do século caracteriza-se por uma abundância de estilos, uma fusão de idéias por vezes opostas, que coexistiam e freqüentemente confrontavam-se. Em 1590, logo depois da partida do conde Bardi para Roma, a camerata dissolveu-se. Peri, Cavalieri e Caccini tomaram as rédeas do movimento florentino de "humanismo musical". Segundo o desejo expresso por Giulio Caccini em 1610 (Caccini é em geral considerado o fundador do bel canto), é preciso que "a música seja de início letra"
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e que "o ritmo e o som venham depois", que a expressão vocal fosse perfeitamente apropriada às emoções e se mostrasse capaz de traduzir a gama dos sentimentos humanos em toda a sua extensão; a tanto aspiravam igualmente Vicentino e Zarlino. A amplificação das entonações, ritmos e características fundamentais do falar deveria revelar-se apta a instaurar essa forma de comunicação mais direta e imediata com a sensibilidade. Monteverdi começou a produzir no cruzamento de dois séculos e de dois mundos musicais: aquele que herdara e que era caracterizado por uma escrita poHfônica e contrapontística complexa e aquele que anunciava o surgimento da harmonia tonal e da monodia acompanhada. Mas, contrariamente às posições extremistas de alguns de seus contemporâneos, Monteverdi sabia que se tornara imperioso abar o rigor do modo antigo de compor às potencialidades de expressão que a forma madrigalesca havia deixado pressentir. Monteverdi foi aquele que não se esquivou das aspirações — e talvez mesmo das modas — de sua época, sem a elas sacrificar um temperamento artístico insaciável e inovador. O conflito entre sagrado e profano resolveu-se na obra de Monteverdi. O aspecto inovador de sua música não reside apenas em seu caráter harmônico, mas fundamentalmente nas dimensões temporais que ela engendra, com suas flutuações de tempos e suas progressões rítmicas que enriquecem consideravelmente a força da expressão, seja ela de natureza religiosa ou profana. Em Monteverdi, a ópera, que não é mais somente alegórica, mas antes voltada a recolher a expressão dos sentimentos humanos em sua variedade, confronta o tempo narrativo da ação com o tempo musical, um "iluminando" o outro. Jogo de timbres instrumentais e vocais, exploração dos registros temporais múltiplos da consciência humana, opções harmônicas em estreita relação com cada situação poética — tudo concorre para a unidade dramática. O sucesso que Monteverdi obteve na época pode ser em parte atribuído ao fato de que, por meio da ópera, ele conseguiu melhor do que ninguém transmitir novas idéias, superando o formalismo esotérico dos antigos sistemas. Claudio Monteverdi nasceu em 15 de maio de 1567, em Cremona. Era o mais velho de cinco filhos de um pai médico. Sua educação musical foi confiada a MarcAntoine Ingegnieri, mestre de capela da catedral de Cremona, que lhe transmitiu a herança da escolafranco-flamenga,mas que sobretudo fez seu discípulo descobrir a arte dos madrigalistas (Willaert, Ruffo, Cyprien de Rore, Marenzio). Apesar das influências de seus predecessores imediatos, Monteverdi permaneceu profundamente impregnado do rigor formal e da concisão do estilo dos antigos mestres. Paralelamente aos seus estudos musicais, Monteverdi adquiriu uma brilhante cultura humanista, apaixonando-se por poesia e filosofia. Além das técnicas de notação, estudou órgão, violino e arte vocal. Desde os quinze anos, freqüentou assiduamente a academia degli Animosi, de Cremona, que acolheu suas primeiras
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tentativas de composição, apresentando-as à inteligentsia da cidade. A partir de 1582, varias de suas obras foram publicadas (em 1582, em Veneza, os Sacroe cantiunculoe, vinte motetos a três vozes; em 1583, em Brescia, os Madrigali spirituals a quatro vozes; e em 1584, em Veneza, as Canzonette a tre você). Em 1587, foi publicado o seu Libro primo di madrigali [Primeiro livro de madrigais], que apresentava reminiscências das canzonette e no qual predominava uma atmosfera pastoral; esse primeiro livro ainda revela traços claros da influência de Marenzio, Wert e Andrea Gabrieli. O madrigal aparece como o crisol da inventividade de Monteverdi, favorecendo uma notação ora de relativa simplicidade, ora da maior sutileza. Para Monteverdi, como para seus contemporâneos, o gênero madrigalesco permitia, segundo a observação de Roman Roland, "deixar penetrar o espírito novo, sem renunciar às formas do passado", o que era precisamente uma das mais caras aspirações do autor de Orfeo. Como a escolha do poema contribuía significativa e influentemente para a orientação do trabalho musical, toda obediência a princípios formais abstratos via-se irremediavelmente transgredida. Desse modo, a personalidade de Monteverdi jamais deixa de transparecer. Nos nove Hyros de madrigais em que se evidencia de modo particular a evolução do estilo desse compositor, todos os sentimentos humanos encontraram sua modalidade musical, desde os mais leves (por exemplo, os Scherzi musicali) aos mais profundos. Se os madrigais escritos por Monteverdi em Cremona dão testemunho de sua atração por uma determinada "imagética" musical (por exemplo, Ecco mormoral l'onde, sobre um poema de Tasso), os que vieram depois (principalmente os que foram compostos em Mântua) parecem afastar-se disso em proveito de relações menos realistas e mais psicológicas com o texto poético, como se não fosse tanto o mundo exterior que Monteverdi buscasse representar pela música, mas antes uma interpretação mais mtima da expressão poética. Essa tendência parece refletir a evolução quase geral da concepção madrigalesca, de vez que, aproximadamente em 1600, o realismo era também rejeitado pela camerata. As referências "figurativas", contudo, jamais seriam abandonadas por Monteverdi, que conseguiu equilibrar aspectos de imitação realista (por exemplo, nas cenas de guerra) e de interpretação psicológica. Após a publicação do Segundo livro de madrigais, em 1590, o duque de Mântua, Vicenzo I Gonzaga, fez com que o músico ingressasse no seu serviço como cantor e intérprete de viola, sob a direção de Jacques de Wert. Nesse ambiente, Monteverdi encontrou músicos, instrumentistas e compositores de alto valor, porque a vida artística era particularmente prestigiosa na corte de Mântua. Esta cidade, cuja capela ducal recebera os músicos mais renomados — de Palestrina a Marenzio — graças às iniciativas do pai de Vicenzo I, rivalizava em fausto com Veneza, Florença e Ferrara.
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Nessa etapa de sua vida, Monteverdi teve a oportunidade de freqüentar a elite intelectual de seu tempo: V. Galilei, Rubens, O. Vecchi. Encontrou o autor de Gerusalemme liberata, Torquato Tasso, que viera para a corte de Mântua depois de ter passado sete anos em um asilo: um homem dilacerado, que criava entre crises de loucura, um poeta genial a quem Monteverdi deve tantas fontes de inspiração. Os primeiros anos que passou em Mântua, de 1590 a 1592, constituíram para Monteverdi uma espécie de período de transição, durante o qual assimilou as descobertas dos seus antecessores e forjou para si um estilo. Em 1592, o Terceiro livro de madrigais fez bastante sucesso. Monteverdi teve que se desincumbir de um trabalho volumoso, porque eram muitas as festas no palácio ducal, onde havia concertos semanais na Sala dos Espelhos. Como o duque (que ocasionalmente praticava a composição musical), Monteverdi interessava-se pela dquimia e as ciências ocultas. Mais tarde, por ocasião de sua estada na corte imperial de Rodolfo II, Monteverdi ali encontrou o mago M i chel Maier, adepto de Paracelso, o qual, ao que tudo indica, deu-lhe a conhecer seu sistema musical derivado da simbologia alquímica. Em 1595, Monteverdi desposou Claudia Cattaneo, filha de um músico da corte, ela mesma cantora de talento. No próprio ano do casamento, Monteverdi teve que deixar o lar para acompanhar o duque Vicenzo à Hungria, por ocasião de uma campanha em que este último apoiou Rodolfo II, imperador da Alemanha, contra Maomé III. A morte de Jacques de Wert, em 1596, decerto teria feito com que Monteverdi obtivesse o posto de mestre de música da corte, mas, ausente de Mântua, ele teve que deixar passar essa oportunidade. O cargo foi concedido a Pallavicino, um músico cuja envergadura estava bem distante da sua. Nem bem retornara de Praga, Monteverdi teve novamente que deixar a Itália, desta vez para ir a Flandres, onde descobriu a arte de seus confrades flamengos na própria terra deles. Ouviu as obras de Orlando de Lassus, morto havia três anos, de Claude Le Jeune, de Jacques Mauduit, de Du Cauroy, e pôde descobrir algumas afinidades com as obras dos adeptos da camerata Bardi: o profundo interesse que estes demonstravam pelas teorias musicais da Antigüidade encontrava ressonância na aplicação dos ritmos medidos à antiga, segundo os preceitos enunciados pela Pléiade. Em 1599, antes mesmo da publicação do Quarto livro de madrigais de Monteverdi, eclodiu uma áspera polêmica desencadeada por um cônego bolonhês, o teórico Gio Maria Artusi, em conseqüência da execução de alguns madrigais de Monteverdi. No panfleto Overo delle imperfettioni delia moderna musica (Veneza, 1600), o cônego Artusi condenava, em nome dos princípios estabelecidos principalmente por Zarlino, essas obras "insuportáveis ao ouvido", que "o ferem, em lugar de encantá-lo". Sustentava a argumentação em exemplos tomados de vários madrigais de Monteverdi, que só seriam publicados nos quarto e quinto livros —
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por exemplo, Anima mia, perdona [Alma minha, perdoa] e Cruda AmarÜli [Cruel Amarilis], sem citar o autor e abstraindo o contexto poético indissociável do projeto musical de Monteverdi. Artusi julgava antinatural e imprópria à arte vocal a utilização de certos intervalos harmônicos cromáticos: "os sentidos enlouqueceram", declarou. As dissonâncias produzidas pela ornamentação, a independência relativa das vozes, segundo o cônego, violentavam as regras estritas do contraponto, da armonía propria. Por meio de novas combinações harmônicas — a aliança entre diatónico e cromático —, Monteverdi rompia deliberadamente com o princípio de unidade modal que, para Artusi, deveria reinar sobre a composição de uma obra. Ora, o que Monteverdi buscava era exatamente uma harmonia que, combinada com os dois outros elementos da tríade platônica (o ritmo e o texto), fosse capaz de produzir uma melodia cuja expressão desposasse a própria essência de um texto poético. O limiar dos séculos XVI e XVII caracterizou-se por conflitos estéticos que engendraram novas formas. Em 1600, apareceram, precisamente em Roma, o primeiro oratório, Rappresentazione di anima e di corpo, de Cavalieri, e a primeira ópera, Euridice, de Peri, obras que manifestavam inegável parentesco. A Euridice de Peri foi quase imediatamente seguida por uma nova Euridice, desta vez de Caccini, representada com amplo apoio técnico por ocasião do casamento do rei francês Henrique IV com Maria de Médicis, cunhada do duque de Gonzaga. Este, bastante impressionado com o estilo nascente — o stile rappresentativo — passou a esperar por uma réplica pessoal de Monteverdi, e alguns anos mais tarde foi composto Orfeo. O advento do estilo rappresentativo respondia às exigências de fausto e requinte da sociedade florentina, sempre ávida de idéias e modas originais, em oposição à sociedade romana, dominada pela autoridade pontificial, cuja pressão traduzia uma atitude conservadora. O estilo representativo encontrava, na monodia acompanhada, um instrumento de predileção. Esta última baseava-se na técnica do baixo cifrado (as cifras eram inscritas acima das notas do baixo), que se tornou o gerador da harmonia. Enquanto na polifonia tradicional atribuía-se importância quase igual às diferentes vozes, neste caso as duas partes extremas delineavam, de certo modo, um quadro com relação ao qual construíam-se as vozes intermediárias. Essa técnica recupera um pouco da liberdade do intérprete. Desde então, ele tinha como tarefa "fazer" o baixo, sendo-lhe deixada uma certa margem para a escolha dos acordes e da ornamentação. O desenvolvimento do baixo cifrado caminhou paralelo ao desenvolvimento do virtuosismo dos instrumentos e dos cantores, em particular a partir do último quarto do século XVI. Em 1600, com a morte de Pallavicino, Monteverdi obteve finalmente o posto de mestre de música na corte de Mântua, o que intensificou mais ainda a atividade 1
Dita ainda favola drammatica; a expressão opera in musica só apareceu em 1637. (N. T.)
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do compositor. Em 1600, também nasceu seu primeiro filho, Francesco. Em 1612, Artusi reiterou seus ataques contra o uso "insensato" das dissonâncias por Monteverdi, justamente quando este preparava-se para lançar seu Quarto livro de madrigais. Por ocasião da publicação do Quinto livro de madrigais, Monteverdi decidiu responder a Artusi e a todos os que preconizavam a estrita obediência às regras definidas por Zarlino: Que estejam bem persuadidos de que, no que se refere às consonâncias e dissonâncias, há outro ponto de vista a considerar a l é m do já existente, e que esse outro ponto de vista justifica-se pela satisfação que o b t é m do sentido da audição e da razão.
Os Quarto e Quinto livros demonstram bastante bem a distância pessoal que Monteverdi adotou com relação às gerações que o precederam e, mais ainda, com relação à escola franco-flamenga. Se a "primeira prática" — representada por Ockeghem, Josquin Des Prés e mesmo, em certa medida, por Palestrina — parecia ter como tendência fazer da harmonia o fenômeno motor da estrutura da obra, das relações entre a música e o texto poético, a "segunda prática", como a descreve Monteverdi, mudava radicalmente as coisas: a harmonia era posta a serviço da valorização das palavras; a poética e, por meio dela, a melodia que a sustinha tornavam-se senhoras da harmonia, governando-a. Com o recurso ao baixo contínuo, que equivale ao esfacelamento dos modelos anteriores de escrita, o Quinto livro de madrigais (1605) de Monteverdi assinala uma etapa decisiva. A despeito dos incontestáveis sucessos de suas obras mais recentes, Monteverdi não viu melhorar sua situação material. Claudia deu à luz um segundo filho, Massimifiano, mas a saúde dela era das mais precárias. Foi nessas condições que Monteverdi abordou Orfeo, com libreto de Alessandra Striggio. E a lenda quis ver, no destino de Euridice, uma representação do próprio destino de Claudia. Pode-se perguntar até que ponto será legítimo estabelecer vínculos entre essa ópera em elaboração e os acontecimentos da vida do autor. Mas o fato é que a finalização de Orfeo coincidiu com a morte de Claudia. O Orfeo, favola in musica situa-se na confluência de estilos cujas contradições Monteverdi exaltou (sublimou): se o compositor submete-se ao gosto da época pela mitologia grega, não é tanto visando a uma representação histórica como para pôr-se de acordo com uma expressão dramatúrgica de amplo alcance. Em Orfeo, a cisão entre os modos antigos, o stile antico, e o novo estilo tonal que se anunciava, foi momentaneamente apaziguada. Monteverdi conseguiu explorar uma variedade de modos de expressão vocal que permitia escapar das soluções um pouco rígidas do recitativo secco, praticado por Peri e seus émulos, para servir ao drama sem lhe ficar subordinado. Os recitativos de Orfeo são indubitavelmente mais flexíveis e vivos do que os dos florentinos. A ópera incorporava, com um excepcional senso de unidade dramática, sinfonia e intermezzi instrumentais, recitativos, ariosos (de contornos mais amplos e mais líricos do que os recitativos),
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coros, airs de cour e airs de ballets. A instrumentação contribuía para criar contextos sonoros perfeitamente adaptados às situações dramáticas. Para o escritor Maurice Roche, "o Orfeo celebra a felicidade, canta o dilaceramento, vence o inferno e, depois, derrotado pela paixão, aceita sua queda e eleva-se em serenidade sublime". Longe de ficar preso a uma visão realista do drama, Monteverdi avança em direção à quintessência do mito de Orfeu e nos dá acesso a seus arquétipos e símbolos. As propriedades fundamentais daquele século que começava estavam presentes em Orfeo: mutação do sentido harmônico, valorização do timbre instrumental para reforçar a evolução do drama (36 instrumentos na primeira representação em Mântua, em 1607). Esse padrão de qualidade tornou-se determinante para a arte da ópera dali para a frente, até os nossos dias. Segundo Alban Berg, a quem devemos duas das maiores óperas do século XX, Wozzeck e Lulu, "Monteverdi soube articular a música de forma que ela estivesse consciente a cada instante da sua função no interior do drama". Depois da entusiástica acolhida que recebeu com Orfeo, Monteverdi voltou a Cremona, acompanhado pela família. Em conseqüência de novas críticas acerbas de Artusi, decidiu fazer preceder a edição de seus Scherzi musicali, em que se pode perceber a influência de sua estada em Flandres, de uma Dichiaratione, redigida por seu irmão Giulio Cesare, em que este respondia bastante judiciosamente às acusações do seu detrator. A partir daquele momento, Artusi não hesitou em dar uma espetacular reviravolta: tornou-se admirador incondicional do artista que tanto desacreditara. Mas, para além de dificuldades e revanches, 1607 foi sobretudo o ano da morte de Claudia. Mas não foi dado a Monteverdi qualquer tempo para recuperar-se. Ele teve que voltar a Mântua para honrar uma encomenda que lhe havia sido feita: escrever uma obra em intenção do casamento de Francesco, filho mais velho do duque, com a infanta Margarida de Savóia. O prazo de dois meses finalmente revelou-se impossível de respeitar, e, durante esse tempo, outros músicos teceram intrigas para que lhe fosse retirada a encomenda. Gagliano escreveu uma Dafne, que seria representada em dezembro de 1607. Perseguido por pressões e ameaças de todo tipo, nessa atmosfera de febre e perseguição concluiu, em fevereiro de 1608, Arianna, com libreto de Ottavio Rinuccini, que seguia a forma do balé francês. Dessa obra só restou o admirável Lamento, que suscitou inúmeros arranjos e contribuiu bastante para a celebridade do autor. Monteverdi pessoalmente retomou-o em sua Prece à Virgem e publicou um arranjo no Sexto livro de madrigais. Em 1608, esgotado e doente, voltou a Cremona, para ser tratado pelo pai. Apesar dos protestos mal disfarçados ("o destino que tive em Mântua depois de dezenove anos deu-me ocasiões contínuas de designar esta cidade como minha inimiga"), viu-se mtimado a voltar à corte de seu protetor e responder a novas exigências que constituíam entraves à sua liberdade de criação: devia, por exemplo, harmoni-
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zar as tentativas musicais do cardeal Ferdinando; filho caçula do duque de Gonzaga, que se arvorara em compositor. Monteverdi acabou, em 1610, a Missa da cappella a sei voei, sobre um moteto de Nicolas Gombert consagrado à Virgem, com seus anexos, as Vespro delia beata Vergine e a Sonata a otto voei, sobre Santa Maria ora pro nobis, cuja forma deixava pressentir a proximidade da era barroca. No Breve discorso sopra la musica moderna [Breve discurso sobre a música moderna], de 1649, Marco Scacchi, ampliando de certa forma a declaração do irmão de Monteverdi, propunha distinguir a musica antiqua que, segundo ele, mmtinha um mesmo estilo para todos os temas sérios, da musica moderna, que desenvolvia duas práticas e três estilos. O princípio da primeira prática poderia assim definir-se: ut harmonia sit domina orationis ("que a harmonia seja senhora do texto"); enquanto o da segunda prática seria: utoratio sit domina harmoniae ("que o texto seja o senhor da harmonia"). Os três estilos seriam os seguintes: • o estilo de igreja (ecclesiasticus); • o estilo de câmara (cubicularis) nos madrigais e composições para vozes e instrumentos; • o estilo teatral (scenicus ou teatralis). Dessa analise resulta uma distinção entre um contrapunetus gravis (stylus antiquus ou ecclesiasticus), em que a harmonia domina o texto, e o contrapunetus luxurians (stylus modernus) que, segundo o caso, seria qualificado de communis (tanto o texto quanto a harmonia poderiam ser considerados predominantes), ou de scencus ou theatralis, em que o texto domina absolutamente a harmonia: oratio harmoniae domina absolutíssima ("o texto é senhor absolutíssimo da harmonia"). Longe de excluírem-se, tais categorias interpenetravam-se na obra de Monteverdi. As duas práticas coexistiram notadamente, e de maneira excepcional, na primeira publicação de suas músicas de igreja, em 1610. A Missa da cappella demonstra com firmeza que, para Monteverdi, o estilo polifónico permanecia sempre vivo, e que era desejável superar as oposições entre o que ele próprio chamava de primeira e de segunda práticas. A qualidade dramática de seu estilo abordava neste caso a música de inspiração religiosa. Para honrar o rito católico, Monteverdi apelou para uma grande diversidade de meios e pôs a serviço da expressão da força espiritual tanto a herança das técnicas tradicionais (por exemplo, o cantochão usado como material dos salmos e magnificats), quanto suas mais recentes descobertas madrigalescas. Trata-se de música, por excelência, da Contra-Reforma, e que já anuncia o coral tal como este seria desenvolvido por Johann Sébastian Bach. Como decorrência da morte de Vicenzo Gonzaga, em 1612, Monteverdi foi despedido da corte de Mântua. Acompanhado pelos dois filhos, voltou a Cremona e viveu algum tempo de encomendas locais. Em 1613, foi a Veneza para disputar
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o posto de mestre de capela da Basílica de São Marcos. Veneza estava então no auge da prosperidade, no apogeu da sua riqueza material e cultural. Desde o inicio do século XV, nobres e mercadores haviam feito daquela cidade um centro artístico sem par, que acolhera pintores, como Carpaccio, Ticiano, Tintoretto, Veronese, e músicos de grande renome, como Willaert, de Rore, Zarlino. A partir de 1580, Veneza contratara os serviços de Andrea e Giovanni Gabrieli, e de Claudio Merulo (1533-1604), cuja obra para órgão, que deixava pressentir a arte de Frescobaldi, era de alta qualidade. Monteverdi encontrou-se então em uma cidade de vocação artística, em que cada acontecimento era pretexto para procissões, torneios, bailes, ostentação de fausto e cerimônias prestigiosas. Mas a vida musical veneziana, no momento em que Monteverdi lá chegou, mostrava-se conturbada pelas inovações daquele novo "estilo monódico" que revirava os costumes, valorizando as vozes solistas. A função de mestre de capela que Monteverdi obteve em 1614 distanciou-o durante certo tempo da música dramática. As encomendas dos notáveis de Veneza e das cidades vizinhas multiplicavam-se, e Monteverdi deveria, dali por diante, assumir grandes responsabilidades: compor sinfonie, missas e motetos por ocasião de diferentes circunstâncias da vida pública, dirigir os coros, velar pela boa ordem da capela, etc. Data de 1614 o Sexto livro de madrigais. A partir dele, o baixo contínuo tornava-se obrigatório, o que contribuiu para unificar o discurso musical, para tecer na obra laços bastante cerrados. Monteverdi foi muitas vezes obrigado a recusar as ofertas que lhe fizeram Ferdinando Gonzaga e, após a morte deste, seu irmão, Vicenzo II, para voltar a Mântua e restituir à corte o brilho que ela parecia ter perdido. De 1615 a 1628, contudo, Monteverdi continuou a escrever obras para Mântua, talvez porque aquela corte lhe permitisse representar, melhor do que Veneza, suas obras músico-teatrais. Em 1615, escreveu o balé pastoril Tirsi e Clori, para vozes e baixo contínuo. Mas, como as obras escritas posteriormente para a corte de Mântua, Tirsi e Clori perdeu-se depois que as tropas austríacas invadiram a cidade, em 1628. Em 1619, foi precisamente à "ilustre Casa dos Gonzaga" que dedicou o Sétimo livro de madrigais. A partir desse livro, observa-se uma mutação da escrita vocal em Monteverdi, que passaria, dali por diante, a cultivar a arte do madrigal em duos e trios que envolvem a um só tempo as técnicas polifónicas — que os adeptos da camerata haviam posto de lado — e as promessas de expressividade e de comunicação musicais mais diretas contidas na nova arte monódica. O continuo instrumental que sustentava as vozes torna mais leve o discurso musical, liberando de certo modo as partes vocais do peso da harmonia, para destiná-las prioritariamente, por meio dos recursos do estilo representativo e da declamação, à união entre os conteúdos poético e musical da obra. Se Monteverdi orienta-se no sentido da escrita a duas e três vozes, é porque essa dimensão revelava-se capaz de, ao mesmo tempo, valorizar
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mais claramente o texto poético do que a escrita polifónica, praticada pelas gerações precedentes de madrigalistas, deixando curso mais livre à imaginação musical do que a escrita para voz solista. A encomenda de uma ópera de câmara, II combattimento di Tancredi e Clorinda [O combate de Tancredi e Clorinda], sobre um texto poético de Tasso, feita em 1624 pelo o senhor Mocenigo, assinala uma etapa decisiva da arte de Monteverdi, porque engendrou um novo "estilo" de expressão: o stile concitato, que completava os dois estilos adotados até então, o dolce e o moderato. O stile concitato, capaz de traduzir a conturbação e a agitação e de favorecer a expressão dos sentimentos violentos, convinha particularmente a essa obra em que se confrontam duas paixões, em que se afirma "a luta da prece com a morte". Essa busca constante para expressar melhor a emoção eqüivalia ao que, para Monteverdi, era central. Ao poeta Alessandro Striggio, que lhe havia entregue um libreto medíocre e cheio de abstrações personificadas, Monteverdi respondeu: "Como posso produzir emoção para [vossos personagens]?... Arianna levava-me a chorar, Orfeo incitava-me a rezar, mas esta fábula, não sei qual é a intenção dela, não sinto que ela me leve naturalmente a um fim que me comova." A partir de 1620, Monteverdi teve sucesso cada vez maior, com encomendas de Mântua (até que a guerra de sucessão viesse marcar o fim de suas relações com os Gonzaga, por ela arruinados) e de Veneza. Destacam-se, desse período, em particular, Encontro de Renaud eArmida (1627) e a ópera Proserpina rapina, com libreto de Striggio (1630). Em 1631, uma epidemia de peste devastou Veneza: em seis meses, 50 nul habitantes, o que eqüivalia a cerca de 1/3 da população da cidade, foram atingidos. Um dos filhos de Monteverdi, Francesco, morreu. Poupado pela peste, Monteverdi decidiu entrar para uma ordem religiosa, sem renunciar contudo a compor obras de inspiração profana como as canzonette do Nono livro de madrigais, ou a "ópera" LTncoronazione di Poppea [A coroação de Popéia]. Foi nessa época que seu filho Massimiliano caiu nas mãos da Inquisição por ter sido encontrado com "maus livros", mas Monteverdi conseguiu, com muito esforço, libertá-lo. Em 1632, foram publicados os Scherzi musicali in stile recitativo; e Monteverdi propôs-se a redigir uma obra teórica, Seconda prattica, overo perfittioni delia moderna musica. A estética de Monteverdi correspondia de certa maneira à teoria de Platão segundo a qual as emoções humanas podem encontrar sua correspondência por meio dos modos da música (Monteverdi refere-se, a esse respeito, ao Terceiro Livro da República de Platão: "Tome a harmonia que imita a voz e os tons de um guerreiro que parte corajosamente para o combate... sabendo que os contrastes têm o dom de comover nossa alma, como Boécio."). Era essa uma tendência da arte vocal italiana, que Mersenne traduziu nos seguintes termos, referindo-se aos cantores italianos em Harmonie universelle [Harmonia universal]:
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Nossos cantores os superam em graça, mas n ã o em vigor... As paixões mais diversas da alma humana, eles as expressam com u m a violência t ã o estranha que quase julgaríamos que estão tomados pelos mesmos afetos que representam ao cantar.
Sobressai dos Scherzi musicali um cuidado de circunscrever cada parcela de sentido, como se tratasse de pintar musicalmente a palavra, de chegar a uma fusão da imagem poética com a musical. Essa harmonia posta a serviço do temperamento poético dava ao estilo de Monteverdi uma força de liberdade bastante particular; talvez tenha sido nesse sentido que Raguenet procurou estabelecer as diferenças entre o estilo italiano e o francês: Os franceses, nas árias que c o m p õ e m , buscam sempre o doce, o que corre, o que fica ligado; tudo pertence ao mesmo tom. Se, às vezes, muda-se, isso é feito com preparações e a d o ç a m e n t o s que tornam a ária t ã o natural e t ã o c o n t í n u a que é como se ela n ã o tivesse mudado. N ã o h á nada de impulsivo nem de arriscado: tudo é igual e tudo unido. Os italianos, ao contrário, passam toda hora do bequadro ao bemol e do bemol ao bequadro; arriscam as cadências mais forçadas e as dissonâncias mais irregulares; suas árias são de u m canto tão cheio de desvios que em nada se parecem com as que s ã o compostas em todas as outras n a ç õ e s do mundo.
Em 1638, foi publicado o Oitavo livro de madrigais, entre os quais estão os admiráveis Madrigali guerrieri e amorosi [Madrigais guerreiros e amorosos], verdadeiras cantatas avant la lettre, que são antes cenas líricas do que madrigais propriamente ditos, como II combattimento di Tancredi e Clorinda. No prefácio ao Oitavo livro, em que Monteverdi faz sua profissão de fé poética e musical, o compositor define o stile concitato, capaz de enriquecer a gama dos sentimentos traduzíveis musicalmente. O Combattimento di Tancredi ampliou de maneira determinante os recursos do estilo representativo. Para comunicar o ritmo da cólera, Monteverdi introduziu pela primeira vez o tremolo; e os músicos ficaram tão espantados com a irrupção desse novo efeito sonoro que, de início, recusaram-se a experimentá-lo. A obra compreendia também outras inovações, em particular no que se refere à escrita instrumental, dotada de intenções descritivas — talvez realistas —, como os pizzicati dos instrumentos de corda destinados a sugerir o ruído das espadas. Dali por diante, a instrumentação contribuiria para servir ao drama e caracterizar exatamente cada cena. A influência de Monteverdi não cessou de estender-se para além das fronteiras da península italiana. Heinrich Schütz, por exemplo, encontrou-o em 1628, e a influência de Monteverdi sobre o compositor alemão foi decisiva, como revelam as Symphoniae sacrae. Em 1637, no Carnaval, foi inaugurado em Veneza o primeiro teatro lírico público, o teatro San Cassiano, o que modificou de maneira radical a sustentação econômica da produção musical. Foi para esse teatro que Monteverdi escreveu
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suas últimas obras dramáticas, principalmente II ritorno di Ulisse in patria [O retorno de Ulisses à pátria, 1641] e LTncoronazione di Poppea (1642). Em Ii ritorno d'Ulisse, a linguagem musical acompanha os caracteres dos diferentes personagens, e os modos de expressão vocal (recitativo, cantilena, coloratura, parlando, bel canto) são escolhidos em função das situações. Com LTncoronazione di Poppea, mais ainda do que com Orfeo, os princípios da ópera foram definitivamente enunciados. Cenas cômicas, canções populares, duos, tudo dava testemunho, pela diversidade, de um gênero que não mais se pretendia reservado a uma elite, mas tendia a dirigir-se a um público cada vez mais numeroso, que não se satisfazia necessariamente com os artifícios das modas aristocráticas. O princípio de uma série de cenas autônomas que se ligam ao conjunto anunciava a arte de Cavalfi, de Cesti e do futuro movimento da opera seria napolitana, para o qual a decupagem da obra dramática em cenas distintas não deveria necessariamente contrariar sua unidade e mesmo seu monolitismo, o que, segundo René Leibowitz, seria encontrado mais tarde em Gluck e, bem depois, em Wagner. [Há algumas décadas, inúmeros musicólogos italianos puseram em questão a atribuição, em todo ou em parte, de LTncoronazione di Poppea a Monteverdi. A obra só chegou a nós em dois manuscritos bastante dessemelhantes, o de Veneza e o (bem mais extenso) de Nápoles. Muitas vezes sugeriu-se que certas contribuições mais ou menos longas, e sobretudo o duo final entre Poppea e Nero, poderiam ter sido escritos por diversos músicos da roda de Monteverdi, como Cavalfi, Manelfi e Benedetto Ferrari. Somente a descoberta, infelizmente pouco provável, da partitura original poderia esclarecer a controvérsia e encerrá-la. Mas, como disse J.-Cl. Malgoire, "mesmo que as dúvidas subsistam, e verdadeiramente elas nunca serão esclarecidas, a peça nos aparece como a obra-prima absoluta da arte monteverdiana". ] Depois de uma curta temporada que passou em Mântua, Monteverdi voltou a Veneza, onde morreu, no dia 29 de novembro de 1643, de "febre maligna". Seu renome já era imenso, e funerais grandiosos foram organizados em Veneza. Alguns anos mais tarde, um Nono livro de madrigais foi publicado. As primeiras etapas da era barroca já estavam então na maturidade.
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A Itália — mãe das artes depois da Grécia — havia dado ao mundo a pintura. Estava coberta de catedrais, igrejas, palácios, casas (lá as casas, por menos belas que fossem, chamavam-se também "palácios") e monastérios com aíreseos em cada cela. Onde se poderia encontrar o equivalente a uma igreja construída por Brunelleschi, com aíreseos pintados por Ghirlandaio, esculturas de Donatello ou M i chelangelo e ourivesaria de Ghiberti? No início do século XVII, a Itália dormia sobre seus tesouros. O milagre foi que, aoflorescimentodas artes plásticas, que no essencial aconteceu antes de 1600, sucedeu uma repentina apoteose musical. A loucura pela beleza, que osflorentinosdo tempo de Lourenço, o Magnífico, os romanos do tempo de Júlio II, os venezianos dos anos de Ticiano haviam cultivado com uma espécie de embriaguez, desloca-se, muda de objeto e de meio. Veneza e Nápoles puseram-se a construir óperas como haviam construído igrejas. Consumiam-se sonatas como se haviam encomendado quadros. Nós, que há cem anos estudamos um número limitado de óperas clássicas e românticas, poderíamos imaginar que 432 óperas novas foram criadas em Veneza entre 1700 e 1743? E outras tantas em Nápoles? Que Vivaldi criou, no Ospedale delia Pietà, várias centenas de concertos que conhecemos (e quantos se perderam), numa época em que existiam quatro outros centros musicais semelhantes ao Ospedale delia Pietà e tantos outros compositores? A fome musical dos italianos dos séculos XVII e XVIII é de dar vertigem... Mas é preciso compreender, e a própria evolução das artes plásticas entre 1500 e 1700 pode nos ajudar nisso: à arte renascentista sucedeu a arte barroca. A arte
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italiana, de Giotto a Leonardo da Vinci, havia sido uma arte da "presença" no espaço. Uma Madona de Rafael, como a Vénus de Botticeli ou um retrato de Ticiano, sejam quais forem seu mistério e sua distância, são algo cuja imagem nos é dada a ver para não empalidecer jamais. Mesmo a névoa com que Leonardo da Vinci encobria seus personagens não os oculta de nossa contemplação. Ora, pouco a pouco, eis que a pintura se transforma: o movimento nela se instala. Um quadro de Tintorero é uma tragédia que se passa no tempo que foge. Não é mais um dado, uma presença; esquiva-se. Os personagens vão e vêm; o tempo apoderou-se deles, e a morte está no final. A própria arquitetura põe-se em movimento: as fachadas arqueiam-se, enchem-se de fendas. A ilusão óptica torna-se uma arte. É que o barroco não é apenas, como se crê, a arte da curva e da contracurva. É antes a arte do que mexe, do que passa, do que foge. É a arte de uma época que prefere o reflexo à coisa, que ama os jogos de espelhos, o ambíguo, a metamorfose, o múltiplo, o fugidio, o contraste. Ora, tudo o que o barroco ama é melhor dito em música do que nas artes do espaço. A música move-se no tempo. Uma vez apanhada, ela se dissolve — ou antes, não se pode apanhá-la —, aflora ao espírito e desaparece. É uma arte do movimento. O que ela diz não se impõe como figura, mas é sugerido. Desse modo, pode-se dizer que a evolução da sensibilidade desde o final do século XVI e início do XVII privilegiou a música. O herdeiro dessa arte móvel e fugaz de Tintorera só poderia ter sido um músico, assim como o herdeiro do grande espetáculo de Veronese só poderia ter sido um homem de teatro. Não diremos, como tantas vezes se disse, que a arte italiana tornou-se, no início do século XVII, a arte do falso, do trompe-l'oeil, talvez do "tapa no olho". Dizemos que, em lugar da arquitetura, aparece o teatro em tela e cartão; em lugar da plástica, a representação dos atores; em lugar da escultura, a decoração trompe-Yoeih em lugar da poesia, o canto. Foi assim que o século XVII italiano engendrou a ópera. A ópera A ópera nasceu e se desenvolveu na obra genial de Monteverdi. A história da ópera italiana depois de Monteverdi é a história de uma espécie de maré alta musical: a de um gênero que, nem bem surgira, põe-se a proliferar, a invadir e a permear toda a vida cultural de uma sociedade — um pouco como o cinema faria em nosso século XX. Vimos qual foi a produção de óperas em Veneza em alguns poucos anos. Há outros números que são igualmente instrutivos: a "produtividade" de que os compositores deviam dar provas para responder à demanda do público ultrapassa a imaginação. Caldara escreveu noventa óperas no período de 45 anos; Cesti, mais de cem; Alessandra Scarlatti, 115! Porpora compôs cinqüenta, e são conhecidas 42 de Cavalfi...
As invenções italianas do espírito barroco
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Mas o que nos interessa mais ainda do que esses desempenhos é a evolução estilística da ópera. Até Monteverdi (inclusive), a ópera era uma arte de corte, destinada a um público relativamente limitado: sua origem era altamente intelectual, e seu ideal, a ressurreição da tragédia grega. As montagens eram luxuosas, mas não pródigas; o "tom" da ópera era ainda o de uma declamação lírica, por vezes um pouco solene, mas sempre guardando uma espécie de reserva na expressão, mesmo que fosse na expressão do patético. O desenvolvimento da sensibilidade "barroca" (amor pelo contraste, talvez pelo excesso; gosto do fausto, talvez da prodigalidade; e gosto pronunciado pelo romanesco e até pelo extravagante...) iria transformar profundamente o gênero. Era o fim da ação tão sóbria e patética do Orfeo de Monteverdi. O romanesco tragava tudo. A ação cênica tornou-se produto de uma imaginação teatral delirante: peripécias, coups de théâtre, quiproquos, travestimentos, mistérios, disfarces, reconhecimentos, raptos, deus ex machina... tudo era bom para produzir surpresa, espanto, maravilha ou terror. O gosto pelo espetáculo — o "grande espetáculo", os luxos da encenação, as maquinarias e os truques — expande-se sem qualquer constrangimento. Enfim, o gosto pelo virtuosismo vocal (já o bel canto) também desenvolveu-se muito cedo — e não poderia satisfazer-se com a simples declamação musical. Era preciso que o cantor pudesse decolar sem o entrave de um relato. Tudo isso impôs uma orientação decisiva à ópera. A declamação musical contínua, mais ou menos lírica, iria distender-se até cindir-se em dois modos de expressão. De um lado, reduziu-se a uma espécie de recitação musical rápida, não melódica, quasi parlando, sustentada por alguns acordes de cravo: era o recitativo secco. De outro, as passagens líricas emanciparam-se, ampliaram-se, tornando-se unidades musicais completas nelas mesmas, uma ária — un'aria. A oposição ária/recitativo tornou-se característica da ópera italiana tal como esta se definiu, após uma rapidíssima evolução, aproximadamente entre 1650 e 1660. Simultaneamente, a orquestração (tão rica em Monteverdi, que usava um efetivo instrumental bastante colorido) simplificou-se: as cordas tomaram para si a parte do leão, os sopros reduziram-se a algumas flautas, oboés e fagotes, acrescidos dos trompetes nas cenas "gloriosas". A importância da orquestra diminuiu: sua função reduziu-se praticamente ao acompanhamento dos cantores e aos ritornelos da introdução. Chegara a época, pode-se dizer, da ditadura dos cantores. Tudo era sacrificado (tudo, exceto a encenação) aos desejos da prima donna e do grant uomo e à necessidade destes brilharem. Eles não eram mais exécutantes da música: a música estava a seu serviço. E reinaram absolutos os grandes castrati, cuja voz de soprano, tão leve, prestava-se a todos os virtuosismos. Tal era a ópera italiana da era barroca, que envolveu toda a vida cultural de uma Itália verdadeiramente embriagada de canto, de música e de prazer, bastante em Roma, mas principalmente em Veneza e em Nápoles.
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Terceira parte: o século Xvn
PIER FRANCESCO CAVALLI E A ÓPERA VENEZIANA O sinal foi dado em Veneza, em 1637, quando se abriu o primeiro teatro público: a ópera escapava ao mundo aristocrático, e sua popularidade veio precipitar sua evolução. Pier Francesco Cavalli (1602-1676) foi o mais representativo — e também o mais genial — dos compositores venezianos do século XVII. Aluno de Monteverdi, trouxe para a ópera veneziana um impulso característico que não deixou de influenciar as últimas obras atribuídas ao seu mestre, inclusive a LTncoronazione di Poppea. A música de Cavalli tinha qualquer coisa de poderosa, simples e direta: são seus dotes melódicos que de imediato caracterizavam Cavalli e que lhe permitem, sem ter realizado sistematicamente a separação entre aria e recitativo, desenvolver uma forma intermediária que progrediu livremente. Mas a ária de bel canto está já em suas primeiras obras: as Nozze di Teti e di Peleo [Núpcias de Tétis e de Peleu], primeira ópera, ao que se sabe, representada no Teatro San Cassiano, em 1639, La Diáone [Dido, 1641] e L'Egisto [Egisto, 1643], todas anteriores à morte de Monteverdi. O aspecto dramático das personagens e das situações é a tônica da arte de Cavalli, que conseguia esse efeito com meios simples e eficazes. Ormindo [Ormindo], II Giasone [Jasão], Xerse [Xerxes] e Erismena valeriam-lhe o renome europeu que o levou a Viena e a Paris. Chamado por Mazarino para o casamento de Luís XTV, Lavalli permaneceu por dois anos (1660-1662) em Paris, onde teve interpretadas Xerse e Ercole amante [Hércules apaixonado], duas obras que influenciariam os destinos da música francesa e de Lully. Antonio Cesti (1623-1669) tinha um talento menos forte e mais sutil que o de Cavalli. Com Orontea [Orontéia, 1649], La Dori [A Dori, 1661] e II pomo d'oro [O pomo de ouro,1666], apenas uma quinzena de óperas suas chegaram até nós, dentre as cem ou mais que ele parece ter composto. Padre franciscano, teve que deixar Veneza em 1650 porque até os venezianos ficaram chocados com sua conduta, sua participação como cantor nas representações das óperas e sua amizade com Salvator Rosa. A vida de Cesti desenrolou-se entre Innsbruck (1652), Roma (1659) e Viena (1665), até ele retornar a Florença, onde morreu, segundo dizem, envenenado. Foi com Cesti que se tornou mais evidente a separação entre ária e recitativo. A ária organizou-se: se a forma estrófica continuava predominante, desenvolveu-se, contudo, a aria da capo, assim como a ária com variações (ABB'), originária da cantata. A arte de Cesti é toda feita de redução, recorrendo de hábito ao cromatismo, que afiava o voluptuoso com uma gravidade quase religiosa, mais lírica do que dramática. Com Giovanni Legrenzi (1626-169.0) a distinção entre ária e recitativo implantou-se de maneira definitiva: o barroco encontrara sua "forma", a aria da capo, que se imporia à geração seguinte, tanto em Veneza quanto em Nápoles. Legrenzi le-
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gou-nos quatro óperas das vinte que compôs, e sua obra representa o elo entre o "primeiro barroco" (de Monteverdi a Cavalfi e Cesti) ao "segundo barroco" que, a partir de Scarlatti e Vivaldi, germinou por toda a Europa do século XVIII. ALESSANDRO STRADELLA E A ÓPERA ROMANA A ópera romana teve uma existência descontínua: por razões religiosas, foi alvo de oposições por vezes bastante vivazes, e o oratório (o de Carissimi, e mais tarde o de Stradella) competia com ela. Luigi Rossi (1597-1653) foi seu mais destacado representante. Organista da igreja de San Luigi dei Francesi e ligado à família Barberini, suas relações com a França explicam sua ida a Paris e a criação, na capital francesa, do Orfeo (1646), a convite de Mazarino. O barroco romano de Rossi levou, ainda mais adiante que o de Cavalfi e de Cesti, em Veneza, o sentido de fausto e de romanesco, ao qual acrescentavam-se, graças a seu gosto pelo patético, lamenti graves e melancólicos. Rossi foi célebre também pelas aproximadamente trezentas cantatas de câmara que compôs e das quais o cantor francês Pierre de Nyert foi, paradoxalmente, um dos intérpretes preferidos. Alessandra Stradella (1644-1682) trouxe para a música um toque romanesco. A própria vida dele parece ter saído de um romance. Duzentas cantatas, motetos, sonatas, sinfonias, óperas e oratórios disputavam com cem intrigas amorosas, o rapto de uma noviça em um convento de Florença, uma trapaça em Roma, a fuga pela Itália com uma grande dama noiva de um senador, emboscadas de espadachins, maridos ciumentos, uma aluna seduzida e nova emboscada (esta bem-sucedida), em que morreu assassinado, em Gênova. As lendas sobre Stradella multiplicaram-se, mas não exageram: a verdade, que jamais havemos de conhecer, pode ter sido mais pitoresca ainda. Essa existência movimentada, desordenada e genial manifesta um dos aspectos da vida musical italiana no século XVII. Não se deve estranhar que este Dom Juan tenha produzido uma obra religiosa abundante, comovente, incontestavelmente profunda e sincera: o contraste fazia parte daquele homem, daquele país e daquele século. Também não se deve estranhar que a maior parte das obras de Stradella tenha permanecido em forma de manuscrito: onde teria ele encontrado o tempo e a disponibilidade de espírito demandados por uma edição? Nem por isso a obra de Alessandra Stradella deixa de ser considerável. As óperas, Biante il Corispero, Florido overo Moro per amore [Florido, ou O mouro por amor], etc. são de notável riqueza melódica e de um lirismo admirável. Mas talvez seja o oratório o gênero que mais ficou a lhe dever: cantor mirim do Oratorio delia Valficella e do Oratório de Santíssimo Crocifisso, Stradella, que tem em San Giovanni Battista (1675) a sua obra-prima no gênero do oratório dramático, enriqueceu e desenvolveu a herança de Carissimi, clareou e ampliou as formas do oratório e abriu caminho para Haendel, do qual por vezes parece ser uma prefiguração mediterrânea e ensolarada.
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Terceira parte: o século XVH
ALESSANDRO SCARLATTI E A ÓPERA NAPOLITANA Menos precoce que a veneziana, a ópera napolitana adotou as formas desta e levou até as últimas conseqüências as transformações elaboradas em Veneza: a ópera se apresenta doravante como uma série de árias separadas por recitativos. Os napolitanos simplificaram os libretos e estabeleceram uma espécie de "código" de extraordinária precisão, normalizando o arranjo, a divisão e o gênero das árias, que deviam suceder-se ao longo de uma ópera. Métastase (1698-1782) construiu os modelos do libreto clássico da ópera, doravante codificado até os pequenos detalhes. Alessandro Scarlatti (1660-1725), além da glória de haver gerado Domenico Scarlatti, de quem falaremos mais adiante, é o grande "clássico" da escola napolitana. Siciliano de origem, ele se fixou primeiro em Roma, com muitos de seus irmãos e irmãs músicos (a família Scarlatti se deslocava, agia, ocupava os espaços com o esprit de corps e a disciplina de uma verdadeira tribo siciliana...), depois em Nápoles. Graças à intermediação de sua irmã junto a um dos ministros do vice-rei, Scarlatti tornou-se maestro da Capela Real. Tornado rapidamente o músico da moda em Nápoles, ele só deixaria a cidade para algumas viagens e permanências prolongadas em Roma e em Florença. Alessandro Scarlatti praticou todos os gêneros, da sonata ao concerto, da missa ao moteto e ao oratório, o que não o impediu de compor — cifra recorde — 115 óperas, mais de duas por ano. Uma parte de sua produção se ressente dessa ligeireza, da tentação de responder com facilidade às solicitações do público. Mesmo assim, suas melhores obras (Statira, 1690; Mitridate Eupatore, 1707; Telemaco, 1718; Griselda, 1721) fornecem o tipo mais completo da ópera italiana. Com Scarlatti, a aria da capo encontrou a forma definitiva, dada por ele, e que migrou para toda a Europa barroca. Também foi ele que inaugurou a forma de abertura à italiana, ou sinfonia em três movimentos, tornando-se assim o ancestral longínquo da sinfonia. Seu tipo de escrita, homófona, é também o modelo a partir do qual vão se desenvolver a simplicidade e a clareza do estilo italiano do século XVIII. A contribuição de Alessandro Scarlatti, não somente à Itália, mas à Europa, é fundamental. Oratório e música sacra A história da música sacra italiana do século XVII é complexa: na verdade, múltiplas tendências nela se mesclam e se superpõem. Enquanto a história da ópera, apesar de sua riqueza e diversidade, segue uma evolução de conjunto bastante simples, que a leva de Monteverdi às construções barrocas da ópera veneziana e napolitana, a música sacra, sempre mais conservadora, acumula as tradições, modifica-as lentamente a partir de dentro e só aceita novidades com muita prudência. Foi assim que o grande estilo polifónico a capella do século XVI, do qual Palestrina dera o exemplo mais magnífico, teve prosseguimento, durante todo o sé-
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culo XVII, com mestres como Romano Micheli (1575-1659), de estilo severo. O espírito barroco, no entanto, com todo o seu gosto pelo fausto, introduziu-se pouco a pouco no próprio seio desse stile antico. A pureza do estilo de Palestrina foi substituída por construções vocais de porte monumental. As linhas simplificaram-se em proveito de suntuosas arquiteturas com grandes efeitos de massa e contrastes rebuscados. Paolo Agostini (1593-1629) escreveu um Magnificat a vinte vozes: era o sinal de partida do estilo "policoral". Orazio Benevoli (1605-1672) compôs missas, salmos e motetos a dezesseis vozes, e até mesmo uma missa a 52 vozes! Os instrumentos misturavam-se a vários coros de efetivos desiguais, que se respondiam, opunham-se ou aliavam-se em efeitos por vezes um pouco fáceis, mas de magnífica amplitude sonora. Esse estilo policoral floresceu particularmente em Veneza, onde, na Basílica de São Marcos, duas tribunas se defrontavam, cada qual com seu órgão. O gosto por essa música "estereofônica" não deixaria de ter influência, como iremos ver, sobre o aparecimento do estilo concertante. O surgimento, nos últimos anos do século XVI, do stile rappresentativo ou recitativo — que deveria, com Monteverdi, resultar no nascimento da ópera — não podia deixar de influir sobre a música sacra. O próprio Monteverdi usou dois estilos religiosos, a prima prattica e a seconda prattica: a Missa a seis vozes a cappella opõe-se a obras como as Vésperas, de estilo concertante. Il lamento delia Madonna retomava a recitação monódica e lírica que Monteverdi havia escrito para o II lamento d'Arianna. Esse estilo novo iria desenvolver-se e encontrar seu domínio próprio: o oratório. Essa forma musical tem origem em reuniões religiosas e musicais organizadas, no século precedente, por São Filipe Néri na Congregazione delTOratorio (Oratório de Santa Maria, em Valficella). Para atrair os fiéis e tornar menos austeros os exercícios de piedade, São Filipe Néri teve a idéia de neles incluir importantes "concertos sacros" em um estilo, senão mundano, pelo menos mais amável que a estrita música fitúrgica. Mais livre, menos ligado à tradição, o oratorio, como era chamado, rapidamente adotou o stile recitativo. Desde os primeiros anos do século XVII, Emilio de Cavalieri (antes de 1550-1602) compôs, por exemplo, um tipo de pequena ópera sacra, a Rappresentazione di anima e di corpo, a respeito da qual se pode dizer que é significativo que tenha sido criada no mesmo ano em que foi composta a primeira ópera florentina, Euridice, de Peri. Nascia assim um novo gênero, quase semelhante, na origem, ao drama musical, ele mesmo em vias de nascer. O oratório assumia duas formas: a "história sagrada", que contava a vida de um santo ou um episódio da Bíblia com a ajuda de um recitativo e de diversas personagens, ou a "cantata moral" (tal como Anima e corpo, de Cavalieri), que punha em cena personagens alegóricas.
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Terceira parte: o século XVII
GIACOMO CARISSIMI Foi nesse ponto da evolução do oratório que apareceu Giacomo Carissimi (1605¬ 1674), uma das figuras mais marcantes do século XVII e cuja influência foi considerável na Itália e, mais além, na França, na Alemanha e na Inglaterra. MarcAntoine Charpentier entre os franceses, Schütz, na Alemanha, depois Bach e Haendel, foram seus herdeiros de maneira a mais direta. De origem modesta, organista aos vinte anos na catedral de Tivoli, aos 25 anos mestre de capela na igreja de Santo Appolinario e no Oratorio del Sant Crocefics, na igreja de San Marcello, em Roma: postos modestos, que conservou durante cinqüenta anos, a despeito de sua fama internacional e dos prementes apelos do imperador Ferdinando II, que desejava fazê-lo mestre de capela da corte de Viena. A reputação de Carissimi era universal, e sua obra era julgada tão preciosa que, quando morreu, um breve do papa proibiu a alienação e o empréstimo dela. Desastrosa precaução! Hoje em dia, tudo desapareceu, e as raríssimas cópias ou edições que puderam ser feitas são as únicas testemunhas de uma obra tão importante... Carissimi não foi um músico revolucionário, nem um inovador. Seu talento foi tomar a linguagem de seu tempo — a da ópera da tradição recitativa, ainda tão próxima das origens — e infundi-la na música sacra, dando assim, às histórias bíblicas, um impacto e um lirismo excepcionais. Carissimi acentuava, antes de mais nada, o elemento narrativo, o relato, tradicionalmente confiado a um recitante (o historiens). Mas Carissimi introduziu nesse papel impessoal um toque dramático ou lírico. Dava independência aos protagonistas e os fazia dialogar dramaticamente. O coro começava a ação. Às vezes o próprio historicus era personalizado, dialogava com Cristo, com os anjos, com as almas. Os mais notáveis oratórios de Carissimi são Job [Jó], Exechia [Ezequiel] e, sobretudo, Jephte [Jeté]. A arte de Carissimi era feita de uma grande simplicidade e um despojamento profundamente religioso, que ele mesclava a uma riqueza de emoções e a um sentido dramático eminentes. O barroquismo de Carissimi é evidente, mas temperado por um sentido de grandeza e rigor. Faz pensar em Bernini, aquele que sabia tão bem aliar o êxtase das figuras, a exaltação lírica dos movimentos e a calma arquitetura das fachadas colossais. Desse modo, na mesma época em que a ópera se deixava apoderar pelo romanesco dos libretos e pelo gosto do canto, Carissimi continuava no oratório a tradição monteverdiana. E nada menos paradoxal na história da música italiana do que essa dupla evolução. Enquanto seus contemporâneos sacrificavam na ópera o recitativo expressivo às delícias do "bel.canto" avant la lettre, Carissimi trilhava o caminho da ópera primitiva, a ponto de certa página de Jephte parecer próxima do espírito que animava II lamento d'Arianna, de Monteverdi.
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Moderno, contudo, Carissimi revela um sentido completamente novo da tonalidade, que o fez abandonar os últimos arcaísmos que ainda se encontravam no autor de Orfeo e de LTncoronazione di Poppea. Os começos da música instrumental autônoma Nos primordios de sua história, a música instrumental mstingue-se pouco da música vocal. Na Itália, como na França, na Alemanha e alhures, não havia música específica para instrumentos antes do século XVII. A escrita para as "vozes" instrumentais era semelhante à das "vozes" simplesmente. Nenhuma adaptação era feita tendo em vista o timbre particular e até as técnicas, sempre intercambiáveis. No final do século XVI e início do XVII, um passo foi dado graças ao instrumento favorito dessa época, o alaúde. Era possível interpretar uma peça originalmente escrita para quatro vozes com quatro violas, ou com uma flauta, um cromorno, um tenor e um baixo de viola, ou qualquer outra combinação imaginável; com o alaúde, ao contrário, a peça exigiria adaptação. Trata-se de um instrumento polifónico, mas que supõe uma simplificação da escrita. Assim, a prática de um instrumento iria progressivamente levar os intérpretes a tomar consciência do acorde. Foi em grande parte graças ao alaúde que se processou, na Europa, essa transformação radical da consciência musical. A consciência musical contrapontística, isto é, a perseguição, no tempo, de várias vozes que caminham simultaneamente, deu lugar à consciência musical harmônica, ou seja, aquela que considera o "encontro" das notas de cada voz na simultaneidade. Essa verdadeira revolução fez-se com certa lentidão e, no princípio, inconscientemente: não há dúvida de que a mão do alaudista, dedilhando acordes para substituir uma polifonia que ele não podia interpretar textualmente com seu instrumento, foi um elemento decisivo dessa transformação. Mas os grupos instrumentais mais complexos continuavam sua carreira, mais bela do que nunca: porque o barroco nascente amava a riqueza de sonoridades. Os cornetti e os tromboni rnisturavam-se às violas e aos violinos, aos fagotes e às flautas. Giovanni Legrenzi, de quem já falamos, reuniu em São Marcos de Veneza um conjunto de 34 instrumentos: oito violinos, onze violas alto, duas violas da braccio, duas violas da gamba, um contrabaixo, quatro teorbas, duas cometas, um fagote e três trombones: tinham bem as cúpulas por que reluzir. As obras-primas dessa música instrumental eram peças de Andrea e Giovanni Gabrieli, das quais as Sacraesymphoniae (1597), as Canzonie as Sonate(1615), que opunham os grupos de instrumentos, manejavam os efeitos de diálogo e de eco e elaboravam os coloridos instrumentais. Dali a pouco, com o advento dó concerto, essa música abundante, em que o contraste e o diálogo eram cultivados com um prazer até sensual, viria a ser disciplinada.
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Terceira parte: o século XVn
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GIROLAMO FRESCOBALDI
A sonata e o concerto
O teclado — órgão e cravo — pouco a pouco suplantou o alaúde no início do século XVII. Giovanni Gabrieli, inovador também neste domínio, praticava o ricercare e lhe deu sua forma definitiva. Em Nápoles, durante esse tempo, Giovanni Trabaci (1575-1647) publicou notáveis coletâneas para órgão. Mas foi em Roma que Girolamo Frescobaldi (1583-1643) escreveu as obras-primas da música italiana para teclado do século XVII. Organista da Basílica de São Pedro, em Roma, aos 25 anos, posto que ocuparia até a morte, exceto durante algumas viagens curtas a Flandres e um interregno de alguns anos em que esteve na corte da Toscana, Frescobaldi foi uma das figuras mais marcantes da primeira época barroca na Itália. Com a exceção de um livro de Madrigali (1608), de uma coletânea de árias para uma ou duas vozes e teclado (1630), de algumas missas e motetos, a obra de Frescobaldi é instrumental: duas coletâneas de canzoni para grupos de instrumentos (1615-1645), mas sobretudo uma quantidade de coletâneas de ricercari, toccate, caprici e fiori musicali destinadas a teclado (órgão ou cravo, sem distinção). Os próprios títulos dessas obras indicavam que Frescobaldi nada tinha de revolucionário quanto às formas: usava os títulos e enquadramentos de que se serviram todos os seus predecessores do século XVI. O mesmo vale para a técnica instrumental: nada de ginástica de pedáis (os alemães eram mestres nisso há muito tempo), nem de virtuosismo digital nos teclados (como os émulos ingleses de John Bull). A linguagem é que era nova: a gramática, a sintaxe, a estilística e a expressividade. Situado em uma época dividida entre a modalidade e a tonalidade clássica, Frescobaldi recorria a ambas e tirava proveito da ambigüidade que se produz nessa situação de transição. Fez uso freqüente do cromatismo. A liberdade e a sutileza harmônicas de Frescobaldi são extraordinárias. No entanto, nada de confusão, pelo contrário: sua obra é límpida, de uma clareza exemplar. Nas grandes toccate, Frescobaldi encadeava livremente episódios homófonos com passagens em fuga (até quinze episódios sucessivos). A sua tocata é, desse modo, uma forma móbil, cujos fragmentos contrastantes vão da exuberância ao contraponto mais estrito. A arte do contraponto é impressionante em Frescobaldi: a fuga clássica já estava, em sua obra, praticamente constituída. Finalmente, o gênio da variação manifestase nos Caprici sobre temas célebres, às vezes de autoria do próprio compositor.
No mesmo momento em que a Itália criou e desenvolveu a ópera em proveito da Europa como um todo, outro tanto ela fazia no domínio instrumental: o impulso que os italianos deram à criação da sonata e do concerto foi igualmente poderoso e definitivo. Mas o caminho a percorrer era sensivelmente mais longo: depois de uma série de transformações, algumas lentas, outras repentinas, apenas no limiar dos séculos XVII e XVIII iriam aparecer a sonata e o concerto como formas estáveis, dando o tom para o resto da Europa. Nesse caso específico, a França, que graças a Lully havia elaborado sua própria concepção de ópera, não escaparia de uma influência já todo-poderosa na Alemanha e na Inglaterra. Mas as mesmas forças e as mesmas tendências barrocas, que já haviam conduzido à ópera, levariam à sonata e ao concerto. Assim como a voz solista emancipou-se do madrigal polifónico para espraiar sua virtude lírica, o instrumento sofista também destacou-se do grupo de instrumentos. Toda a história da música instrumental na Itália do século XVII pode ser resumida na busca, mais ou menos consciente, de uma forma que prepara o canto para o vôo em espaços livres e, contudo, claramente determinados para que a ordem não fosse rompida. Foi o sentido barroco do contraste, da dualidade — acima sublinhado — que permitiu encontrar essa via. Mas as etapas seriam mais numerosas e mais difíceis do que na constituição da ópera: os diferentes componentes eram mais amplos e os problemas mais complexos. Desde os séculos XV e XVI a Itália havia tido um avanço considerável sobre o resto da Europa no domínio da luteria. Este é um ponto capital: pode-se dizer que, neste capítulo da história musical, foi o "instrumento" que criou a "função". A prosperidade das cidades italianas do Cinquecento facultou à arte de luteria chegar a um ponto de perfeição jamais atingido em outro lugar: em Cremona, por exemplo, os Amati tinham uma habilidade sem igual. E a sorte da Itália foi ter se fixado de uma só vez no violino. Na França e na Alemanha, o alaúde, a flauta, a viola, o cravo e o órgão partilhavam o gosto do público, e o violino ficara relegado a segundo plano. Na França, desde o início do século XVIII, o alaúde e a viola eram os favoritos; mesmo o cravo teve dificuldade para impor-se. Quanto ao violino, era o instrumento de "vadios": bom para acompanhar a dança (e foi como mestre de dança italiana que Lully conseguiu que o aceitassem). Ao contrário, a habilidade dos luthiers italianos fez do violino um instrumento tão perfeito, desde o início do século XVII, que os compositores achavam, ja por volta de 1600, que lhe podia ser confiado um papel paralelo ao das vozes. Foi assim que, nos Madrigali e em Orfeo, Monteverdi confiou aos violinos uma função importante nos ritornelli que alternavam com as vozes. A partir de então, toda uma série de forças e de impulsos, de origens as mais diversas, haveriam de convergir.
Frescobaldi foi reconhecido como mestre por músicos de toda a Europa, inclusive da França e, mais particularmente, da Alemanha. Seu aluno, Johann Jacob Froberger (1616-1667), músico comovente e cativante pela originalidade devida a uma estranha aliança entre vigor e sonho, difundiu o estilo e o pensamento de Frescobaldi no sul da Alemanha, que, desse modo, ficou profundamente marcada pela influência do compositor. Em 1714, Johann Sebastian Bach recopiou piedosamente as Fiori musicali com sua própria mão e rendeu homenagens a Frescobaldi em grande número de suas peças para órgão.
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Nascimento do gênero concertante
A constituição do concerto
A origem das formas instrumentais é muito confusa. Inicialmente elas não se distinguiam das formas vocais. As músicas instrumentais eram, de início, transcrições. Nada as caracterizava particularmente: eram peças per cantare e sonare. Pouco a pouco dislinguiu-se a sonata (peça para "sonare", ou seja, para ser executada por instrumentos de sopro e de corda), da toccata (peça para se "tocada", isto é, executada em um instrumento de teclado, órgão ou cravo) e da cantata (peça para "cantar"). Mas as definições são muito vagas. Os termos musica concertata, concerto, concertato, designavam não importa qual música vocal, sob a condição de que fosse acompanhada por instrumentos. E, no entanto, a origem dessa palavra é por si mesma um programa: ela vem do latim concertare, que quer dizer "lutar um contra o outro", ou do latim consere, que significa "unir-se", e essa ambigüidade é significativa. É um "grupo" de instrumentos {consere) que se divide em elementos "rivais" {concertare), segundo a tendência favorita do barroco. Encontrase o termo concerto desde 1587, no título da obra capital de Andrea e Giovanni Gabrieli: Concertiper voei e stromenti musicali [Concertos para vozes e instrumentos musicais]. É digno de nota, também, que isso tenha se passado em Veneza. Desde a origem do cristianismo apareceu o que chamamos de canto "antifônico", em que dois grupos de cantores respondiam-se. Mas esse estilo desenvolveuse particularmente em Veneza, onde uma estética da composição para dois coros polifónicos alternados tinha a preferência dos músicos. Na Basílica de São Marcos cantavam-se inúmeros ofícios dessa maneira, e há duas tribunas simétricas nessa igreja, dispostas uma diante da outra. Dois órgãos respondiam-se de um e de outro lado, acompanhando os dois coros "rivais" e prosseguindo o diálogo enquanto as vozes calavam-se. Quando a música instrumental instalou-se na igreja, eram "coros" de violas, trombones, cornetti que tomavam parte do diálogo. Essa arte veneziana da alternância desenvolveu-se à medida que o gosto propriamente barroco pelo contraste invadiu a sensibilidade sob todas as suas formas. Contraste pian e forte, contraste das cores instrumentais e vocais (grande coro, pequeno coro, trombones e cometas, violas eflautas,vozes e instrumentos, tudo era possível). E contraste de movimentos: adagio/allegro. E sem esquecer a dimensão "estereofônica", favorecida pela disposição dos lugares. Contraste ainda, este mais delicado, entre diferentes níveis de escrita musical — é aí, finalmente, que tudo acontece: os compositores criaram o hábito de confiar a um pequeno grupo de músicos mais competentes, ou mais hábeis, seqüências mais difíceis e que exigiam maior virtuosismo. Quando a "rivalidade" dos grupos instrumentais estava nesse ponto, pode-se dizer que o concerto estava pronto para fazer sua aparição.
Influência da música vocal SINFONIA, SONATA, CANZONE, etc.
1
VENEZA:
Peças para grupos
Motetos para
de instrumentos
coro duplo
geralmente não especificados
1597: GABRIELI
1607: ROSSI
Canzone para
1 6 5 5 : LEGRENZI
1628: GRANDI 1649:UCELLINI
dois grupos de instrumentos
V Século xvii: Peças instrumentais para dois grupos de instrumentos de importância desigual
ÓPERA:
1 6 7 0 : STRADELLA
Grande ária para
CONCERTO GROSSO
solista com ritornello
1 7 1 4 : CORELLI
instrumental
opus 6
SONATA PARA
BONONCINI
VIOLINO SOLO
1 6 8 1 - 1 6 8 9 : CORELLI
1700: CORELLI
opus 1 a opus 4
opus 5
1698: TORELLI
VIOLINO CHE CONCERTA SOLO
CONCERTO PARA
1 7 0 9 : ALBINONÍ
VARIOS SOLISTAS
CONCERTO
VIVALDI
PARA SOLISTA 1712: VIVALDI
1'
SONATA A TRÊS
CONCERTO A UNO
Estro armónico A verdadeira deriva histórica de certos termos musicais mostra-se, neste caso, bastante sensível: depois dos grandes vienenses, sobretudo de Beethoven e de Schubert, quando falamos de uma sonata, na maior parte das vezes é em uma obra para piano (ou para piano e violino, piano e violoncelo, etc.) que estamos pensando.
1610: PAOLO C I M A
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Terceira parte: o século XVH
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A sonata a três
O concerto grosso
Nascia simiiltaneamente uma forma particular de escrita: a sonata a tre, exatamente em 1607, quando Salomone Rossi publicou, sempre em Veneza, o II primo libro dette sinfonie e galliarãe [O primeiro livro das sinfonias e galhardas], constituído de peças instrumentais a várias vozes, mas das quais a maior parte era escrita para três partes: dois altos (cometas, o instrumento favorito dos italianos ainda nessa época, ou violas) e um baixo. Apareceu desse modo o tipo de escrita instrumental por excelência da Itália no século XVII. A "sonata a três" era tocada na verdade por quatro instrumentos: duas vozes agudas (que logo viraram dois violinos), e à voz baixa juntava-se um instrumento harmônico, chittarone ou geralmente o cravo. É que um novo elemento intervinha nesse início de século XVII: com a tomada de consciência da harmonia, a que já se fez referência, ingressou-se na era do baixo contínuo, e essa também foi uma transformação capital. Até então a massa instrumental era homogênea, puramente polifónica; ainda era assim que se apresentavam as peças de Gabrieli. Uma nova estapa foi franqueada no caminho da emancipação da melodia instrumental quando se impôs a escrita do baixo contínuo, em que um instrumento harmônico vinha preencher, com acordes mais ou menos chapados, o intervalo entre os instrumentos melódicos e o baixo. Na "sonata a três", contudo, os dois instrumentos superiores equivaliam-se, sem qualquer destaque do "primeiro violino" sobre o "segundo violino". Um século e meio depois de seu aparecimento, a regra ainda era fundamental: "Não se deve saber qual das duas vozes superiores é a primeira." As duas vozes dialogavam, uniam-se, respondiam-se por imitações: eram uma espécie de "solista duplo", que às vezes estabelecia um novo tipo de diálogo com o baixo. Giovanni Legrenzi publicou, em 1655, Sonate a due violini e violone [Sonatas para dois violinos e violone], que verdadeiramente assinalam o início do gênero. A "sonata a três" desenvolveu-se com Giovanni Maria Bononcioni (1642-1678), que publicou uma importante coletânea, na qual pela primeira vez m^tinguiam-se dois tipos de sonatas: a sonata da chiesa ("sonata de igreja"), em quatro movimentos, lento-vivo-lento-vivo; e a sonata da camera ("sonata de câmara"), em que os diferentes movimentos eram danças. Mas Arcangelo Corelli (1653-1713) é que deveria levar à perfeição os jogos de vozes da "sonata a três", nas quatro séries de coletâneas que publicou entre 1681 e 1694 (dois livros de sonate da chiesa e dois de sonate da camera). Em todas as obras, são admiráveis a pureza e a perfeição da escrita a três vozes, completamente equilibrada. Foram consideráveis as repercussões dessas sonatas em toda a Europa barroca. Pode-se dizer que toda sonata em trio, até 1760, é filha de Corelli, na França, na Inglaterra, na Alemanha ou nos Países Baixos.
O concerto nasceu da aliança entre as formas instrumentais alternadas, de que tratamos acima, e o estilo de escrita da "sonata a três". De fato, apesar de algumas tentativas isoladas em que se vê um instrumento destacar-se do grupo para um curto divertissement, o concerto apareceu de início sob a forma do concerto grosso. A oposição, o contraste entre dois grupos instrumentais, tende a se manifestar cada vez mais pelo diálogo de um pequeno conjunto, o concertino, mais leve, de maior virtuosismo, com uma massa mais significativa de instrumentos, que chamamos concerto grosso ou ripieno. Foi aproximadamente em 1670-1680 que Alessandro Stradella, cuja importância para a história da ópera já se mencionou, inaugurou esse gênero, sem dar-lhe ainda nome, pois intitulou suas obras de sinfonias. Giuseppe Torelli (1658-1709) publicou, no ano de sua morte, o primeiro livro de Concerti grossi. Como na "sonata a três", a oposição se fazia entre dois blocos: concertino/concerto grosso ou ripieno. Os três instrumentos do concertino (dois violinos e um violoncelo) dialogavam entre si, mas opunham-se em conjunto ao grosso da orquestra. Cabia aos três atuarem como uma espécie de solistas. Foi ainda uma vez Corelli que, em uma coletânea póstuma (1714), deu ao gênero do concerto grosso sua forma perfeita e definitiva. Corelli sabia aliar a escrita polifónica, distribuída com habilidade entre os dois violinos solo aos quais respondia o violoncelo, a uma escrita homófona. Sem explosões, com uma maravilhosa suavidade, mas também com intensidade, e com a mobilidade da melodia confiada aos arcos, os concertos de Corelli foram, como suas sonatas, o modelo com base no qual toda a primeira metade do século XVIII iria estabelecer sua estética. Os italianos Tomaso Albinoni (1671-1750), Francesco Geminiani (1687-1762) e Benedetto Marcello (1686-1739) — e depois Bach, Haendel e Telemann — seguiram a trilha indicada por Corelli. Os concertos de Corelli eram, como as sonatas, da chiesa (em quatro movimentos, ou, por vezes, alternando movimentos curtos adagio-allegro), ou da camera (prelúdio e suíte de danças). O famoso Concerto per la notte di Natale [Concerto para a noite de Natal] é um dos mais bem-acabados, reunindo a perfeição do estilo à poesia mais delicada. O termo concerto grosso é bastante ambíguo, pois tanto indica um "gênero", aquele em que um grupo de instrumentos opõe-se a um segundo grupo mais numeroso, quanto igualmente designa esse o segundo grupo. É preciso não confundir o gênero do concerto grosso com o concerto para vários solistas, tal como será praticado por Vivaldi. Neste caso, os instrumentos solistas mantêm sua individualidade, e tanto "rivalizam" entre si quanto com o conjunto ripieno.
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O concerto grosso e o concerto para solista CONCERTINO
CONCERTO GROSSO OU RIPIENO
2 violinos
Conjunto instrumental
1 violoncelo Concertare "lutar, rivalizar"
1 solista
CONCERTO GROSSO OU RIPIENO
O concerto para vários solistas
A sonata e o concerto para solista Foi bem mais lentamente, bem mais timidamente, que o instrumento solista se foi destacando do grupo mstrumental. Em 1610, observam-se tentativas isoladas nos Concerti ecclesiastici [Concertos eclesiásticos], de Paolo Cima, nas Sonate a violino solo [Sonatas para solo de violino], de Marco Ucellini (1649), muito menos decisivas do que a elaboração, na mesma época, da sonata a tre. Mais uma vez foi Corelli que, em seu opus 5 (1700), publicou doze sonatas (seis da chiesa, seis da camera) em que o violino levanta vôo. A sobriedade da escrita dessas composições talvez dissimule a riqueza ornamental com a qual Corelli adornava seus movimentos lentos ao improvisar. La Follia, longa série de variações sobre um tema de dança espanhola, é de um virtuosismo bem mais exigente: Corelli resume nessa obra a um só tempo sua técnica de violino e sua arte de composição. Em 1698, Giuseppe Torelli, já mencionado por ter composto os primeiros autênticos concerti grossi, inseriu nos seus concerti musicali seis obras em que se en-
As invenções italianas do espírito barroco
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contra un violino che concerta solo. Eram os primeiros concertos, no sentido moderno do termo, que nos dão a medida da importância de Torelli como inovador e iniciador. Torelli forma, junto com Corelli, cujas criações revelam um talento mais brilhante, um par que teve papel fundamental na evolução da música instrumental européia. Mas a forma do concerto para solista ainda não estava madura. Tutti e solo opunham-se, mas seus temas nunca eram comuns, e os adágios eram pouco trabalhados. Seria preciso esperar por Vivaldi para que o concerto para solista viesse realmente a existir.
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A MÚSICA BARROCA DA FRANÇA "CLÁSSICA"
Das músicas populares à música do rei A música francesa do século XVII é, em seu conjunto, pouco conhecida pelo público, e muito pouco executada. Contudo, quando se estuda esse período da história francesa, não há como não admitir que essa foi uma das épocas em que a música desempenhou papel de primeira importância na vida social daquele país. Basta abrir os escritos daquele tempo, interrogar os documentos históricos ou sociológicos, olhar os quadros da admirável escola francesa de pintores da vida cotidiana— tudo nos mostra, em todos os planos, uma sociedade que vivia em meio à música. Louis Le Nain representa as paisagens mais pobres, sem nada esconder: no centro da miséria, uma criança toca um flajolé. O irmão de Louis, Antoine Le Nain, pinta cenas da vida de artesãos prósperos, uma reunião de família em dia de festa: um avô toca alaúde, uma moça canta. Um pintor anônimo faz-nos penetrar no lar de burgueses abastados? Uma espineta, urna viola, mais uma vez um alaúde, com um violinista e um jovem cantor. Estamos em casa nobre? Canta-se e toca-se — e de novo o alaúde, instrumento favorito do século. Lemos Mme. de Sévigné? Ela não pára de falar de música, e como conhecedora que era; é ela quem nos ensina que se cantavam árias de Lully nos salões e nas cozinhas, e também no Pont-Neuf. Abrimos um livro de história? Aprendemos que Luís XIII era compositor, que Ana d'Áustria tocava alaúde, que Luís XTV vivia com música, gostava de ópera a ponto de rever oito vezes seguidas a mesma obra e de cantarolar as árias durante o dia. Mas a melhor testemunha é Molière. A música está presente em todas as suas obras. Será preciso lembrar que o primeiro ato de Le Bourgeois gentilhomme tem como
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únicos personagens, à volta de monsieur Jourdan, um professor de música, um professor de dança, cantores e músicos? Toda a comédia passa-se entre eles. No século XVII, a música era um fato social. Estava presente em toda parte e era ouvida a cada instante durante todo aquele século, não apenas em cada sala e em cada jardim de Versailles, mas na mais humilde das casas, nas praças, nas ruelas — e, é claro, nas igrejas — "sonorizadas" de manhã à noite. MÚSICA POPULAR E MÚSICA ARISTOCRÁTICA Até o século XVII, a música francesa era relativamente homogênea: a música popular e a música erudita, a música das ruas e a música dos castelos ainda não estavam totalmente separadas uma da outra, como iria progressivamente acontecer no decorrer daquele século e do seguinte. Havia poucos músicos profissionais; mas os "mestres tocadores de instrumentos" das aldeias estavam ligados à Confrarie de Saint-Julien des Ménestriers, cujo chefe era um músico do rei. Durante o século XVII produziu-se uma "profissionalização" progressiva, que não se fez sem choques, tal como fica atestado pelo conflito dos músicos do rei (com Couperin no comando) contra a velha estrutura corporativa (Les Fastes de la grande et ancienne menestrandise, peça para cravo de F. Couperin, é a tradução humorística desse conflito). A música francesa, contudo, permaneceria visivelmente ligada a formas de expressão de origem popular: a air de cour ("ária de corte") permanece mais próxima da chanson do que da aria italiana, e a música de dança nunca deixou de alimentar-se das fontes populares (minuetos de Poitou...) e de fazer com que formas oriundas destas últimas penetrassem até mesmo na ópera. UM SÉCULO DIVIDIDO EM DOIS Seja qual for a prudência com que é preciso encarar os "cortes" históricos, a música francesa do século XVII divide-se em dois períodos claramente distintos, contrastados pela escrita, o gosto, o estilo e a expressão: o limite está entre 1660 e 1670 e corresponde ao início do reinado pessoal de Luís XTV. A reforma da música da Capela Real, o novo luxo das diversões da corte, a criação da ópera são bem diretamente imputáveis a Luís XTV, que se imiscuía pessoalmente nos assuntos musicais. Outros domínios, embora demonstrando cesura idêntica aproximadamente na mesma época (música instrumental), evoluíram determinados por outras causas mais difíceis de precisar. Convém, desse modo, estudar gênero por gênero da música francesa do século XVII, assinalando-se, no seio de uma evolução contínua, essa cesura característica. FRANÇA E ITÁLIA As relações entre França e Itália eram então permanentes, e a presença de uma rainha de origemflorentina— Maria de Médicis — e, depois, de um todo-pode¬ roso cardeal romano — Mazarino — no governo do reino influenciaram conside-
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ravelmente os destinos da música francesa. Foi Maria quem atraiu Caccini para Paris, e foi Mazarino quem instalou na corte os "músicos do Gabinete", todos italianos, e que fez encenar em Paris Lafintapazza [A louca fingida, 1645] e o Orfeo [Orfeu] de Luigi Rossi (1647), Serse [Xerxes] e Ercole amante [Hércules apaixonado] de Cavalli (1662), que iriam assinalar o surgimento da ópera; a vinda de Lully para Paris (1646) foi apenas a vinda de mais um italiano entre dezenas de outros. Lazzarini era violinista da "banda" de músicos do rei; Corbetta era um guitarrista. Músicos franceses trouxeram para Paris o que haviam aprendido além-dos-montes: depois de uma permanência na Itália, o cantor Pierre de Nyert transformou o canto à francesa e, mais tarde, Marc-Antoine Charpentier voltaria de Roma impregnado da arte de Carissimi. Sem uma espécie de incessante fecundação por parte da Italia, a música francesa não teria tido o destino que teve. A ária de corte O século XVI assistira aoflorescimentoe ao desabrochar da "canção francesa", tão vigorosamente diversificada. Escrita em geral para quatro ou cinco vozes e valendo-se ora de uma polifonia amiúde requintada, ora de um estilo homófono mais simples e direto, a chansonfrançaiseparecia brotar de uma fonte viva, tão frescas eram as melodias e tão leve sua démarche. Por vezes desenvolvia-se a partir de aíreseos descritivos (Janequin: Chant des oiseaux, a Bataille de Marignan etc.). Os maiores poetas do tempo — particularmente Ronsard — viam na chanson o prolongamento de sua arte. Foi a influência dos poetas que determinou o caminho tomado pela canção francesa. Os humanistas do final do século XVI orientaram os músicos no sentido de urna arte mais requintada, não na escrita, que continuava a ser simples e afável, mas na inspiração e na escolha dos temas. Desse modo, nos últimos anos do século XVI e na primeira metade do século XVII, surgiu o que se chamou de air de cour, que conservava da canção a simplicidade do porte e da melodia, e que, muitas vezes, continuava a ser escrita para quatro ou cinco vozes. A moda do alaúde também modificou profundamente a natureza do canto francês, no mesmo momento em que modificava o canto italiano. A escrita polifónica a quatro ou cinco vozes foi pouco a pouco dando lugar a uma única linha melódica acompanhada pelo alaúde, depois pelo cravo. Mas essa transformação se fez de modo diferente de um lado e de outro dos Alpes, e toda a evolução futura do canto francês e do canto italiano seria governada pela maneira como de início foi abordada a monodia acompanhada. A Itália descobriu quase imediatamente o estilo recitativo, isto é, uma recitação musical ligada ao texto poético, e toda a ópera já estava em germe nessa descoberta. A França, ao contrário, permaneceria fiel ao estilo da canção, em que a melodia independe da acentuação das palavras e a simplicidade prevalece.
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Em 1603, J.-B. Bésard publicou uma coletânea de transcrições para canto e alaúde; em 1604, Caccini, compositor e cantor florentino, veio passar uma temporada na corte francesa: a França descobriu com Caccini simultaneamente a recitação cantada e a arte da ornamentação vocal, duas características que a air de cour adotou e desenvolveu à sua maneira. Os doubles ornamentados apareceram em 1629, com Moulinié. Aproximadamente em 1640, Pierre de Nyert, de volta da Itália, realizou uma verdadeira síntese do canto francês com a "maneira" italiana: a ária de corte atingiu então a perfeição, com Cambefort, Le Camus, J.B. Boesset, Cambert e principalmente Michel Lambert (1610-1696). A arte do canto "ó la française" atingiu, por volta de meados do século XVII, um extraordinário refinamento: "Falta", dizia o compositor italiano Luigi Rossi, "música italiana na boca dos franceses." Bénigne de Bacilly deixou, em Remarques curieuses sur l'art de bien chanter [Curiosas observações sobre a arte de bem cantar], o código dessa arte sutil, preciosa e plena de virtuosismo. A suíte: alaúde e cravo Uma evolução paralela à do canto iria afetar a música instrumental. Enquanto na Itália esboçava-se uma arte autônoma, que iria resultar na elaboração da sonata e do concerto, a música francesa permaneceu fiel às suas origens. Na França, assim como a música vocal deu continuidade à canção, a música instrumental deu continuidade à dança. Os primeiros editores franceses de música instrumental do século XVI deixaram como legado, no essencial, danças: pavanas, basses dances, galhardas, tordilhões e branles, cuja execução era geralmente confiada a grupos de instrumentos diversos:flautas,oboés, cornamusas, violas. Mais uma vez, o alaúde precipitaria a evolução: nunca se dirá o suficiente sobre a importância capital que a moda desse instrumento teve para a história da música. Foi ele que fez nascer a noção de melodia acompanhada. Foi parcialmente dele que veio o sentimento harmônico que pouco a pouco substituiu a prática da polifonia. Foi ele que levou os músicos a estruturarem a sucessão dos movimentos de dança em uma "suíte". Já no século XVI, certas danças apareciam aos pares, e assim uma nobre pavana era geralmente seguida por uma galharda. Mas o alaúde, com suas onze ou quatorze cordas, era demorado e difícil de afinar. Por isso, criouse o hábito, logo adotado por quase todos os alaudistas de, depois de haverem improvisado livremente à guisa de prelúdio, só tocarem em seguida peças de uma mesma tonalidade. Essa necessidade de unidade tonai, em conjunto com a necessidade de uma diversidade na sucessão dos movimentos e dos ritmos, resultou na criação de um gênero bastante flexível, a suíte: um prelúdio muito livre, seguido de um certo número de danças lentas e nobres (allemandes, sarabandas), e de outras vivas e animadas (courantes e gigas), alternadamente.
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No século XVII, praticava-se o alaúde em todos ambientes e meios sociais, mas um certo número de compositores virtuoses deixaram obras escritas sob a forma de tablatura: J.-B. Bésard, Gaultier, o Velho, e sobretudo o sobrinho deste, Denis Gaultier (1603-1672), cuja coletânea intitulada Rhétorique des dieux [Retórica dos deuses] transmite o essencial dessa arte discreta, requintada, medidativa, por vezes melancólica. Foi em parte do alaúde que veio a arte dos cravistas. No início do século, o cravo passou por uma importante mutação técnica, particularmente sob o impulso dos fabricantes Rückers, de Antuérpia. Por volta de 1630, o cravo já atingira todas as suas possibilidades, com os dois teclados e todos os registros. Foi nessa época que o primeiro dos grandes cravistas franceses conferiu a esse instrumento os seus títulos de nobreza: Jacques Champion, que era cravista do rei e cujo pai, Thomas Mithou, havia desposado a filha de um alaudista inglês (e essa filiação é um símbolo...). O filho de Jacques Champion, que se chamou Jacques Champion de Chambonnières (ca. 1601-1672: e também é um símbolo a promoção social representada na partícula de...) sucedeu ao pai de 1638 a 1662. Foi o fundador da escola francesa de teclado, para a qual havia legado novas formas (o prelúdio não compassado, a suíte de danças, a estrutura binária das peças) e o hábito de dar a cada uma delas um título evocador. Todas essas características foram transmitidas por Chambonnières a seus discípulos, entre os quais estava o nome mais ilustre do cravo francês: François Couperin.
O órgão Na França daquela época, o órgão é nitidamente individualizado em relação ao resto da Europa, a começar pela própria fabricação dos instrumentos. É preciso não esquecer nunca, quando se fala de órgãos, que cada um deles tem sua originalidade, sua composição particular, sua dosagem de sonoridades. Um violino, uma viola, uma flauta, sejam quais forem as diferenças de detalhes, sempre serão um violino, uma viola, uma flauta. Mas cada órgão tem uma personalidade, conforme o tipo de registros utilizados, o equilíbrio e a técnica própria do fabricante. É claro que existem tendências gerais, que já se encontravam relativamente definidas nos séculos XVII e XVIII. O órgão italiano era claro, bastante fino, um pouco terno. O órgão alemão do Norte era rico, potente, variado. O órgão francês opunha-se tanto a um como ao outro. Antes de mais nada, era rico em cores. Para ele era preciso haver registros sofistas bem caracterizados, palhetas, intervalos bem marcados e matizados, sem serem agudos. Era preciso um rico e brilhante registro pleno. Só aí a arte dos compositores franceses e os instrumentos que tocavam se corresponderiam e se reforçariam. Essa tendência, manifesta desde o início do século XVII, não deixaria de se desenvolver em uma evolução contínua até a Revolução, com os grandes fabricantes franceses — os Clicquot, os Thierry, os Isnard
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— caminhando em direção a uma progressiva clareza, a um maior colorido e a um mais fantástico brilho. O primeiro grande organista francês foi um cônego de Rouen, Jean Titelouze (1563-1633), cuja obra, um pouco severa mas de sonoridade suntuosa, deu o tom a um século e meio de música. Seus "registros plenos", sobre temas de cantochão, que soavam sobre os "registros de palheta" em tenor ou em baixo, eram modelos que seriam usados por todos os seus sucessores. Roberday, na metade do século, tinha maior flexibilidade. Nivers (1632-1714), Nicolas Lebègue (1631-1702), Raison, d'Anglebert iriam diversificar a arte dos organistas, tornando-a mais leve, e adotariam uma quadratura próxima da suíte, em que faziam alternar grandes páginas confiadas ao "registro pleno" e movimentos mais livres, freqüentemente confiados a um solista: récita de cromorno ou de cometo, baixo de trómpete etc. O ritmo da dança acompanhava a influência do recitativo da ópera. Enquanto a liturgia quase não dava aos compositores a possibilidade de escrever missas em música (excepcionalmente na França, com exceção dos Charpentier), os organistas compunham versículos muito curtos, destinados a alternaremse com o cantochão do coro. Com essas suítes e essas missas para órgão, a escola francesa atingiu, entre 1660 (Livre, de Roberday) e 1714 (Deuxième livre, de André Raison), o seu auge. No interior dessa escolaflorescente,os Couperin criaram para si um lugar privilegiado que comentaremos mais adiante. Ao lado dos Couperin, um admirável músico nos faz lamentar a brevidade de sua vida simples e de segundo plano: foi Nicolas de Grigny (1672-1703), aluno de Lebègue e organista da catedral de Reims. Deixou-nos um único Livre para órgão, que continha uma missa em cinco hinos. Como François Couperin, era um herdeiro da dupla tradição francesa: a dos polifonistas, como Titelouze, e a que fora ilustrada com as Suites e Messes de Nivers e dos Lebègue. Grigny mesclava intimamente as duas estéticas e retirava dessa afiança resultados inesperados e requintados, em que às vezes dominava o lirismo. Johann Sebastian Bach tinha pelo Livre de Grigny tão alta estima que copiouo integralmente à mão. O livro marcava, sem a menor dúvida, o auge da Escola Francesa de órgão, com maior rigor e tanta poesia quanto a coletânea, tão próxima, de François Couperin. Os Couperin A família Couperin era uma daquelas tribos de músicos produzidas pela sociedade de antigamente. Como tal, transmitia sua arte de geração em geração, como se ela fosse um artesanato. Sem ser tão profícua quanto a família Bach, que produziu uns quarenta músicos, a família Couperin atravessou musicalmente um século e meio. O primeiro Couperin organista foi Charles, que tocava os órgãos de Chaumes-en-
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A obra de Louis Couperin {ca. 1626-1661) é admirável. Os prelúdios não ritmados em que, segundo a tradição francesa, o compositor deixa ao intérprete o cuidado de encontrar livremente o impulso rítmico, as danças lentas, sarabandas e chaconas, todas as suas composições são de uma grandeza e de tal intensidade que algumas constituem verdadeiras obras-primas da literatura para cravo. Louis Couperin levou até o extremo o semi-romantismo latente na música francesa dessa segunda/terça parte do século XVII. A harmonia ousada e o uso do cromatismo tinham, em sua obra, uma função dramática. Louis Couperin era um poeta, e um poeta grave e sombrio; de maneira a mais leve, essa poesia pode ser reencontrada na obra de seu sobrinho François. Os dois irmãos de Louis, François e Charles, haviam-no seguido a Paris. A reputação deles também foi grande, mas nada deixaram, a não ser, no caso do segundo, um herdeiro de que falaremos adiante e que iria tornar-se o grande François Couperin.
transformações diversas, até cerca de 1670, data em que engendrou a ópera "à la française'. O ballet de cour é herdeiro do baile e conservou até o fim essa particularidade de não ser dançado por profissionais, mas por amadores da mais elevada posição social: o rei, a rainha, as princesas, o delfim, os maiores nomes da nobreza. Era um espetáculo privado que a corte concedia a si mesma. Mas é preciso lembrar que a dança era então, como a formação para as armas e a música, e bem mais que a literatura, um item essencial da educação nobre: era menos um mVertimento do que uma atividade séria, e seriamente desempenhada. A dança hoje em dia é uma diversão; então, era parte essencial do decorum barroco, em uma época em que "aparecer" era uma arte. Essa cultura coreográfica generalizada permite já por ela mesma compreender por que a música francesa estava a tal ponto dominada pela dança, por que os cravistas, violinistas e alaudistas tocavam as músicas de dança, e por que a ópera francesa — quando veio a aparecer — reservou à dança um lugar tão considerável. O ballet de cour era uma diversão de corte, em torno de temas romanescos (a libertação de Renaud, Alcidiane...), mitológicos (Andrómeda, as festas de Baco, o nascimento da Vênus, Psiquê...) ou simplesmente alegóricos (os prazeres, o amor doentio) e até mesmo burlescos. Uma ação mais ou menos negligente servia de pretexto para cantos, danças no estilo de pantomima ou figuradas, destinadas a alguns dançarinos virtuoses ou a grandes conjuntos. Os figurinos dos dançarinos estavam à altura de tão nobres intérpretes: ricos, brilhantes, cmtilantes — às vezes alegóricos. A encenação e os cenários, sempre móveis e produzindo transformações, eram luxuosos. A música era composta por diferentes compositores: o ballet de cour era uma obra coletiva, tanto na concepção musical quanto na coreografia. Tal como aparecera, durante cerca de um século o balé de corte foi um espetáculo brilhante, a que faltava lógica, e que pouco se importava com qualquer coerência. Sua evolução levou-o, contudo, juntamente com a própria sensibilidade do século XVII, a uma progressão no sentido de cada vez maior nobreza e mais fausto. Lully, com a ajuda de Molière e graças ao sentido dramático de que dispunha, pode ser responsabilizado pelo desenvolvimento definitivo a que chegou o balé de corte.
O balé de corte
A comédie-ballet
Os dois pólos de atração da música francesa eram, no século XVII, a canção (daí a ária de corte) e a dança. A fusão dessas duas tendências criou um gênero que é próprio da França e que assumiu uma importância considerável: o ballet de cour. O balé de corte apareceu no reinado de Henrique III, em 1581, com o Ballet comique de la reyne [Balé cômico da rainha], de Balthasar de Beaujoyeux, cujo nome verdadeiro era Baltassaro de Belgiojoso: mais um italiano que inaugurava uma nova vertente da música francesa... Desenvolveu-se o ballet de cour, com
A separação dos gêneros e o pequeno espaço que a música ocupa em nossa cultura fazem-nos esquecer que Molière desempenhou um papel considerável na história da música francesa, associando-se a Lully para criar o que se chamou de comédie-ballet. A colaboração entre Molière e Lully deu origem, em uma dezena de anos, a onze obras, muitas delas bem conhecidas (como Le Bourgeois gentilhomme, mas também Le Mariage forcé, Georges Dandin, M. de Pourceaugnac), cuja parte musical e coreográfica — que era considerável — de hábito é negligenciada nas montagens atuais.
Brie no início do século XVII, como amador esclarecido. A continuação da historia tem qualquer coisa de conto de fadas: três jovens apresentaram-se um dia na propriedade de Chambonnières, perto de Chaumes, durante uma refeição em que o dono da casa festejava o dia de São Tiago, e dedicaram-lhe um toque de alvorada. Foram convidados para entrar e tomar lugar à mesa. Chambonnières, surpreso com a qualidade da música que acabara de ouvir, perguntou quem era o autor: era Louis Couperin, o mais velho, que tinha cerca de 25 anos. O músico do rei cumprimentou-o, dizendo "que um homem como ele não era feito para ficar em uma província: era absolutamente imperioso que ele fosse para Paris". Ele foi, recebeu lições de Chambonnières. Três anos depois, foi nomeado organista da Igreja de Saint-Gervais, em Paris, posto que seria ocupado por membros da família Couperin sem interrupção até o século XIX. O rei quis nomear Louis Couperin ordinaire de la musique du roi pour le clavecin ("titular da música do rei para cravo"), em substituição ao próprio Chambonnières. Louis Couperin recusou, por consideração a seu benfeitor, e recebeu o título de "alto de viola", especialmente criado para ele pelo rei. Louis Couperin morreu antes dos quarenta anos, deixando umas 150 peças de cravo e algumas obras para órgão e para viola.
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A influência de Molière é importante, pois ele introduziu, na composição das obras cantadas e dançadas, um cuidado com a verossimilhança e a coerência: buscava multiplicar as situações em que a música pudesse surgir de maneira natural, esmerava-se em tecer um enredo dramático no qual a música e a dança viessem espontaneamente enxertar-se. Foi desse modo que ensinou ao músico Lully, seu colaborador, que uma ação contínua e coerente era conciliável com a música e também com o balé. Graças à influência indireta de Molière, o balé de corte pôde evoluir no sentido da ópera, por meio da inserção de uma ação dramática. A comédie-ballet constituiu uma etapa intermediária. Uma outra etapa, totalmente independente, foi a tragédie en machines ("tragédia com máquinas"). Muitas vezes nos enganamos quando pensamos que a bela, a pura tragédia "clássica", a de Corneille e de Racine, dominou sem contestações o teatro do século XVII francês. O gosto francês cindia-se então entre duas tendências contraditórias: a "clássica" (simplicidade, sobriedade, verdade, naturalidade) e a "barroca" (romanesco, gosto pelo insóHto, pelo maravilhoso, pelo ambíguo, pela metamorfose). Paralelamente a Racine e Corneille, e mesmo no próprio Corneille, corria uma sensibilidade que tinha maiores dificuldades para expressar-se e que buscava a si mesma. Uma das tentativas que ela fez, a tragédie en machines et en musique ("tragédia com máquinas e música"), produziu muitas obras atualmente bastante esquecidas, mas cujo sucesso na época foi por vezes superior ao das grandes tragédias clássicas: Andromède [Andrómeda, 1650] e La Toison d'or [O tosão de ouro], ambas de Corneille, foram exemplo disso. Essas tragédias mitológicas apelavam para todos os sortilégios da encenação, com as máquinas cenográficas as mais extravagantes (em Andromède, do grande Corneille, via-se um cavalo de verdade descer do urdimento trazendo Perseu no dorso!). A música, os coros, a dança nristuravam-se à ação. Foi esse o teatro que preparou mais diretamente a afirmação da ópera em sua versão francesa. A etapa decisiva foi Psyché [Psiquê, 1671] a mais bela das tragédies en machines, fruto da colaboração de Molière, Corneille, Quinault e Lully. Para ser uma autêntica ópera, restava-lhe apenas abandonar a alternancia entre falado e cantado. O sucesso de Psyché foi considerável. Por volta de 1670, o gosto do público voltava-se tão claramente para a tendência "barroca" do teatro — para o teatro musical, mitológico, maravilhoso — que o aparecimento da ópera francesa tornou-se inevitável. Depois de alguns ensaios abortados, como Pomone [Pomona], de Cambert, a ópera francesa surgiu, graças a Lully. Lully e a ópera A ópera propriamente dita era coisa que ainda não se fazia na França em 1670, quando já era dominante na Itália há meio século. Mazarino havia tentado "con-
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verter" os franceses, fazendo vir Luigi Rossi e Cavalli a Paris, em vão. Os franceses gostavam era do seu balé e faziam questão da alternância da recitação com o canto. Foi um italiano afrancesado, Lulli, ou Lully, que os fez dar o salto. Toda a carreira desse estranho personagem resume-se em umafrase:"Giambattista Lulli, filho de um moleiro, nascido em Florença em 1632; Jean-Baptiste de Lully, escudeiro, secretário do rei, superintendente da música do rei, morto em Paris em 1687" — com 600 mil escudos de ouro guardados em seu porão. Este foi todo um plano que "Baptiste", como era chamado, levou a cabo com mestria: à força de astúcia, inteligência, senso de oportunidade e também de muito talento, tornou-se o ditador absoluto da músicafrancesae "o homem sem o qual o rei não pode passar", como dizia Colbert, resmungando. A primeira parte da carreira de Lully foi a de um balladin, compositor de balés. A aliança com Molière levou Lully a compreender a possibilidade de construir obras dramáticas. Diante do considerável sucesso de Psyché e das tragédies en machines, Lully mudou seu fuzil de ombro e criou, em 1673, a primeira ópera "à la française", Cadmus et Hermione [Cadmo e Hermíone]. Desde então, ano após ano, iria produzir uma nova obra, até a morte. Alceste, Thésée [Teseu], Atys [Átis], Phaéton [Faetonte], Roland [Orlando], e principalmente Armide [Armida], sua obra-prima, composta em 1686, foram as principais etapas dessa carreira prodigiosa. A ópera francesa, tal como concebida por Lully e tal como permaneceu até Rameau, inclusive, um século mais tarde, era essencialmente diferente da ópera italiana. Derivava diretamente do balé de corte: era um balé construído em torno de uma ação dramática cantada. Os coros e a dança desempenhavam apelo considerável. Por outro lado, a própria ação dramática era visivelmente modelada a partir da tragédia clássica: a recitação, desdenhada na ópera italiana depois de Cavalli, permanecia dominante. A ária nunca se emancipou verdadeiramente do verso, cujas inflexões o canto tinha que seguir. Lully, dizem, modelava seus recitativos segundo a dicção da Champmeslé, a grande intérprete das tragédias de Racine. E Lully teve a sorte — e o faro — de tomar como seu libretista preferido Philippe Quinault, dramaturgo medíocre, mas poeta infinitamente musical. A contribuição mais importante de Lully foi a criação do récitatif français, que todas as tentativas de fazer teatro musical haviam buscado até então evitar, e que, muito provavelmente por conta de sua ascendência italiana, ele soube resolver bem. Esse recitativo era resultado de uma "amplificação", feita pela música, da recitação declamada da tragédia, tal como esta última era praticada no Hôtel de Bourgogne. Foi ao recitativo, e não à ária (originária da air de cour), que Lully confiou as grandes cenas dramáticas de suas óperas. Recitação, dança, cenários, máquinas, a ópera de Lully apresentava-se como um "espetáculo total", a respeito do qual afirmava La Bruyère que satisfazia "o espírito, os olhos e os ouvidos do espectador". Para compreender o que podia ser a ópera do
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século XVII, é preciso abandonar-se ao prazer de imaginar a enorme maquinaria, o arsenal mverossímil que trabalhava com grandes esforços nos bastidores, molinetes, cabrestantes, polias, alavancas e contrapesos que erguiam, içavam, guindavam, encapelavam e propulsionavam na cena teatral tudo o que pudesse se mover: nuvens em cima das quais tocavam trinta músicos, o carro de Armida, Júpiter no alto de uma nuvem negra, castelos que se elevavam das profundezas ou despencavam nas ondas do mar, monstros marinhos, Pégaso, o carro de Faetonte precipitado do alto do urdimento... Toda a glória da marinha a vela trabalhando para o Olimpo ao som de violinos e oboés: essa a dimensão da ópera de Lully, em sua mescla grandiosa de ingenuidade, imaginação delirante, sabedoria clássica e astúcia técnica. Lully era um homem de teatro, um dramaturgo genial, mais até do que um grande músico. Suas óperas eram descomunais, em que se refugiava, no próprio seio do classicismo francês, tudo o que havia de insaciável no barroco latente da França. A ópera de Lully era o excesso, a válvula de escape, o canal de derivação por onde se precipitava tudo o que não encontrava lugar na tragédia de Racine e na comédia séria de Molière. A mistura dos gêneros, a atração pela suntuosidade e pelo falso brilho, o puro prazer dos sentidos, o gosto pelos grandes movimentos de conjunto, a mescla de futilidade, sentimentalidade, grandeza e romanesco, acrescidos do imenso apetite barroco pelo maravilhoso, pela metamorfose, pelo encantamento, pela ilusão, e pelo trompe-l'oeil—tudo o que não era tragédia clássica, ou tudo o que a tragédia clássica, como a aprendemos, nos ocultava e que também é o século XVII francês: eis o que contém e revela a ópera de Lully. A música sacra Como na Itália, a música sacra na França deu continuidade às tradições do século XVI. A polifonia a cappella, que desaparecera pouco a pouco da música profana, conservava, na música sacra, o primeiro plano, com as obras de Eustache Du Caurroy (1549-1609) — mestre de capela de Henrique I V — , Jacques Mauduit (1557¬ 1627) e, mais tarde, Nicolas Formé (1557-1638), sob Luís XIII. Diante das grandes obras da escola veneziana, a música sacra francesa, até aproximadamente 1660, parecia surpreendentemente conservadora: nenhuma influência da música profana, da ária de corte; e apenas a distribuição em dois coros opostos a partir de Du Caurroy, à moda de Veneza, dava testemunho do gosto barroco pelo contraste. Antoine Boesset (1588-1643) inovou ao usar o baixo contínuo para acompanhar os coros. Etienne Moulinié (1600-1669), nos motetos, lembrava-se que era compositor de árias de corte e tentava criar um estilo concertante, cujas melodias inspiravam-se na graça e na expressividade da arte profana. Foi Henri Du Mont (1610-1684), mestre da Capela Real, quem modificou em profundidade essa música religiosa, até então conservadora em demasia. Du Mont abandonou deliberadamente a polifonia a cappella, fez acompanhar os coros por orquestra, levando-
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os a dialogar com um "pequeno coro" de solistas, efinalmenteinaugurou o moteto recitativo, espécie de diálogo dramático entre duas vozes. Na verdade, o aspecto mais importante da obra de Du Mont reside em uma série de grandes motetos com dois coros, com solistas e instrumentos: foi o ponto de partida do grande moteto "à la française'. Embora a maior parte de sua obra seja profana, Lully deixou alguns motetos em que desenvolveu a contribuição de Du Mont. Mas, a despeito de belas passagens, dos amplos coros e de uma grande nobreza de tom, a música sacra não era decerto o seu domínio de eleição. MARC-ANTOINE CHARPENTIER (1634-1704) Nesse domínio específico, Marc-Antoine Charpentier foi o mestre inconteste. Sabe-se muito pouco sobre a vida desse compositor. O próprio ano de seu nascimento é pura conjectura, e pesquisas recentes tendem a situá-lo aproximadamente em 1645, e não em 1634, como durante muito tempo se afirmou. Charpentier passou três anos na Itália, e essa viagem foi determinante para toda a sua carreira. Carissimi foi seu mestre, e Charpentier nunca deixou de ser um italianizado. Professor de música da princesa de Guise, a doença impediu-o de concorrer ao posto de maître da Capela Real. Foi mestre de capela dos jesuítas, cujas cerimônias na rua Saint-Antoine eram particularmente suntuosas e demandavam músicas grandiosas. Mas os jesuítas também tinham um teatro, para o qual Charpentier compôs inúmeras partituras. Acabou a carreira, contudo, em posição inferior à que seu talento justificava, como mestre de música da Sainte-Chapelle. A obra de Charpentier é imensa: preenche 28 volumes manuscritos que se encontram na Biblioteca Nacional da França, recopiados pela mão do próprio compositor. Missas (a capella, com instrumentos, para um, dois, quatro coros), salmos, hinos, diálogos, leçons de ténèbres, todos os gêneros de música sacra foram cultivados por Charpentier, que lhes acrescentou o oratório, a exemplo de seu mestre Carissimi. Compôs diversos motetos a uma ou duas vozes acompanhadas, mas os seus grandes motetos para dois coros e um grupo de solistas, orquestra, órgão e cravo — e mesmo uma missa para quatro coros e orquestra! — constituem uma ao mirável síntese da tradição francesa com a contribuição italiana. Os oratórios de Charpentier — Le Reniement de Saint Pierre [A negação de São Pedro], o L'Enfant prodigue [O filho pródigo] e Judite [Judite] — retomam exatamente a estrutura dos oratorios compostos por Carissimi. As obras "à voix seule" com baixo contínuo e, muitas vezes, uma sinfonia parecem ter tido a preferência de Charpentier. A série de Leçons de ténèbres de Charpentier, em que a arte do canto ornamentado (saído 1
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Ofícios de matinas dos últimos dias da Semana Santa, em que se refazem três leituras (lições) das Lamentações de Jeremias. Há, para esse gênero de obra sacra, música gregoriana, de Orlando de Lassus, de Palestrina e de outros polifonistas, mas as leçons de ténèbres de Charpentier são das mais célebres. (N. T.)
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da ária de corte) aliava-se a um notável sentido do recitativo, estão entre as páginas mais belas que deixou. A escrita de Charpentier era tão variada quanto os gêneros que praticava, e é mais rica e mais livre que a de Lully, ao qual muitas vezes ele é comparado, com razão. Lully tem um estilo intencionalmente simples, manejando vastos efeitos de massa. Mesmo nas obras de grandes dimensões, a escrita de Charpentier era mais requintada, a harmonia mais sutil, mais ousada. A firmeza, a variedade dos estilos, a força da expressão e a diversidade da instrumentação garantem a Charpentier um lugar inigualável. Há pouco tempo foi possível apreciá-lo de novo, por ocasião da ressurreição, pela ópera de Lyon, em 1981, da "tragédie en musique" ("tragédia em música") David etjonathas [Davi e Jônatas], representada em 1688 no Colégio dos Jesuítas de Paris. Essa ópera bíblica, quase exatamente contemporânea das grandes tragédias cristãs de Racine — Esther [Ester] e Athalie [Atália] — não fica nada a dever a essas obras. Em 1693 — seis anos após a morte de Lully—, Charpentier arriscou-se a compor uma tragédia lírica, Médée [Medéia], representada na Academia Real. Foi um sucesso parcial, porque o gosto do público, ainda preso demais a Lully, não aceitou bem os traços mais originais da partitura. E contudo Charpentier havia se imbuído bastante do padrão imposto pela ópera de Lully. O início da ópera chega a ser um pouco decepcionante, de certo modo um "sub-Lully". Na segunda parte, porém, Charpentier consegue apropriar-se do tema, eminentemente dramático, e conferir aos recitativos acompanhados (invocações das forças infernais por Medéia, morte de Creusa), aos duos, aos trios e aos coros uma dimensão patética que faz de Médée uma das grandes obras líricas do século XVII. François Couperin (1668-1733) Sobre Pierre Corneille, dizia Voltaire que ele era chamado de o grande Corneille "não para distingui-lo de seu irmão Thomas, mas do resto dos homens, e pela sua alma, que ele a tinha sublime..." Diz-se também François Couperin, o Grande; e, mesmo sem querer distingui-lo a esse ponto do resto dos músicos, convém conceder-lhe um lugar eminente no interior da música francesa e dar a seu espírito, que era nobre, e a seu coração, que era o de um autêntico poeta, particular atenção. François Couperin era filho de Charles, o mais novo dos três irmãos que Chambonnières levara a Paris por volta de 1650. Charles tornou-se, em 1661, organista da Igreja de Saint-Gervais: foi ele quem deu as primeiras aulas de música ao filho, que deixou órfão aos onze anos. Aqui entra em ação a maravilhosa solidariedade da sociedade de antigamente. Bach, também órfão, foi criado e educado pela "tribo" Bach, mas Couperin viveu coisa ainda melhor: Delalande aceitou, provisoriamente, o cargo de organista da Igreja de Saint-Gervais para guardá-lo para o menino, que assumiria quando pudesse ocupá-lo. Decerto o talento de François, aos onze anos, já era promissor... Efetivamente, Delalande entregou-lhe os ilustres
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teclados (um dos mais veneráveis órgãos da capital francesa) quando ele acabara de completar dezoito anos. Apenas três anos mais tarde, aos 21 anos, Couperin publicou sua primeira obra, uma obra-prima: Livre d'orgue [Livro de órgão]. Quase mais nada há a dizer sobre a vida de Couperin, tanto ela se confunde com sua obra. Teve postos brilhantes e, contudo, sua carreira foi modesta. François ainda era jovem quando o rei o escolheu para tocar órgão em sua capela. Um ano mais tarde, era professor de cravo dos infantes da França. Depois da morte de Anglebert, tornou-se "cravista do rei". E depois? Ficou entre Versalhes e Paris, compôs para a corte, para a alta sociedade parisiense, para a Capela Real, para a abadia de Maubuisson, da qual sua filha mais velha era uma das religiosas, deu aulas, fez da segunda filha, Marguerite-Antoinette, uma cravista de talento, que mais tarde foi professora das filhas de Luís XV. E é tudo. Só publicou suas obras muito mais tarde e deixou o órgão de Saint-Gervais para o primo, Nicolas Couperin. Essa vida sem história, essa carreira sem lutas e ambições desmedidas — as honras chegavam a ele por si mesmas e ele aceitava-as com modéstia — ocultam uma personalidade mais diversificada do que parece. A qualidade dominante de François Couperin era o sentido de medida em todas as coisas. Mas escondia uma sensibilidade muito viva e refinada, uma paixão contida, um requinte de espírito e de coração. E também uma grande exigência para consigo mesmo e com os outros: os alunos deviam achá-lo severo, e a fantasia discreta que reina em sua obra certamente não afetava o professor. Contudo, que encanto, que sedução verdadeira, que delicadeza! Esse homem modesto deixou obra modesta — não no talento, mas nas dimensões. O que escreveu para a Capela Real não foram grandes motetos para coro, solistas, orquestra e órgão, como Delalande, seu colega no palácio: foram pequenas obras para uma e duas vozes. Nada para teatro, nada para orquestra; sonatas para dois ou três instrumentos, concertos de câmara e, principalmente, inúmeras peças para cravo. Todavia, grandeza não lhe faltava, a nobreza lhe era inata. Todas essas qualidades discretamente contraditórias recobrem talvez o que Couperin tinha de mais profundamente genial: ele tudo sentia e fazia a síntese dessas forças divergentes, pesando-as, unindo-as dentro de si mesmo e fazendo dessa fusão, com a ajuda do sorriso, sua própria criação. Couperin sabia disso, e assim, no plano estético, colocava-se abertamente como mediador, o que é facilmente perceptível quando se tratou de fazer a paz entre os estilos francês e italiano. A OBRA PARA ÓRGÃO As Pièces d'orgue consistantes en deux messes [Peças para órgãos consistentes de duas missas] foram a primeira obra assinada por François Couperin (ele acrescentava "Sieur de Crouilly"). Essa breve coletânea constitui, em conjunto com o Livre único de Nicolas de Grigny, o ponto máximo da escola francesa de órgão.
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Quando Couperin, ainda jovem, publicou seu livro para órgão, sequer sonhava abandonar o estilo e o quadro elaborados pelos mais antigos. As suas missas justapõem grandes registros plenos em que, sobre uma taille soada nos registros de palheta, os dois teclados teciam um contraponto cerrado. As peças em duo ou trio, mais leves, mais vivas; recitativos em que um intérprete solo desenvolvia uma melodia meditativa. Couperin não se distinguiu de seus contemporâneos pela escolha das formas ou pelo estilo, mas pela profundidade do pensamento musical, pela maravilhosa adaptação ao instrumento e às suas sonoridades, pelo calor de sua inspiração. A MÜSICA DE CÂMARA Couperin fez música de câmara ao longo de toda a sua vida. Em um prefácio redigido pouco antes de sua morte, ele próprio contou como escreveu a primeira de suas sonatas: A primeira sonata dessa coletânea foi t a m b é m a primeira que fiz, e a primeira que foi composta na França. Sua história é mesmo singular. Encantado com as sonatas do signor Corelli, cujas obras amarei enquanto eu viver, assim como as obras de M . de Lulli, arrisquei-me a compor uma, que fiz executar no concerto em que ouvira as de Corelli. C o nhecedor da pressa dos franceses em aceitar as novidades estrangeiras em todos os terrenos, e duvidando de m i m mesmo, prestei a m i m mesmo, por meio de u m mentirinha oficiosa, u m grande serviço. Fingi que u m parente, que efetivamente eu tinha, e que vive na corte do rei da Sardenha, havia me enviado uma sonata de u m novo autor italiano: agrupei as letras de meu próprio nome de modo a formar u m nome italiano, que apus à sonata. Ela foi devorada com presteza e calar-me-ei sobre a apologia. Isso, contudo, encorajou-me. Fiz outras sonatas; e meu nome italianizado atraiu para m i m , sob o disfarce, grandes aplausos. Felizmente, minhas sonatas agradaram o suficiente para que o e q u í v o c o n ã o me fizesse enrubescer.
Desse modo, o jovem Couperin posava de "itaUanizante". De fato, escrever, por volta de 1692, uma sonata a três era imitar os italianos no que eles tinham de mais novo. Essa primeira sonata, denominada La Pucelle [A donzela], que foi a primeira composta na França, havendo agradado, foi logo seguida, em dois ou três anos, por cinco outras com títulos característicos da fantasia de Couperin: La Steinquerque (nome da batalha que desencadeou em Paris, em 1693, um entusiasmo delirante), La Visionnaire [A visionária^ L'Astrée [A Astréia, deusa da justiça], La Sultane [A sultana] e La Superbe [A soberba]. Se era ignorado o nome do compositor das missas para órgão e dessas sonatas, muito menos alguém teria tido a idéia de atribuir todas essas obras ao mesmo homem. Contudo, era aquele Couperin de 25 anos o autor delas, o que demonstra desde o início a flexibilidade de seu talento. As sonatas não eram um plágio de Corelli feito por um jovem: a mensagem italiana já está nelas totalmente assimila-
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da, interiorizada, traduzida. Um longo período separou as seis primeiras sonatas da sétima, LTmpériale [A imperial], e de todo o resto da música de câmara de Couperin, publicada a partir de 1722. Primeiro foram quatro Concerts royaux [Concertos reais] : "Eu osfiz",disse ele, "para os pequenos concertos de câmara aos quais Luís XTV me fazia comparecer todos os domingos do ano." Escrito para um pequeno conjunto (violino,flauta,oboé, viola baixo, fagote e cravo), eram suítes à francesa, em que um prelúdio era seguido por uma série de danças, aproximadamente na ordem tradicional. O espírito e a escrita dessas peças curtas estão bem longe do italianismo das sonatas. Aqui, tudo é francês na concepção. Mas fica evidente que a linguagem de Couperin alargara-se a ampliara-se em contato com a Itália. Couperin tinha tanta consciência disso que intitulou os dez concertos seguintes, publicados em 1724, de Les Goûts réunis [A reunião dos gostos] •— entende-se o "gosto" (e nós diríamos "estilo") italiano e o "gosto" francês. Essa síntese desejada e consciente aparece ainda mais claramente nas duas grandes obras sérias, mas bastante agradáveis, que Couperin intitulou, por ordem de composição, Apothéose de Corelli [Apoteose de Corelli] e Apothéose composée à la mémoire immortelle de l'incomparable monsieur De Lully [Apoteose composta à memória imortal do incomparável senhor de Lully], título cuja ênfase não deixa de envolver uma afetuosa ironia para com o soberbo superintendente. A Apothéose de Corelli é uma sonata em trio, mais elaborada que as precedentes, em que cada movimento conta um episódio da chegada de Corelli ao Parnaso e de sua acolhida por Apoio e as nove Musas. Mas a Apothéose de Lully é ainda mais cheia de significados: sempre sorrindo, como é seu hábito, Couperin nos comunica todo um programa de política musical. Primeiro Lully é recebido no Parnaso por Apoio — "o rumor subterrâneo provocado pelos autores contemporâneos de Lully" (em estilo italianizante, o que já quer dizer muito), a "queixa" dos mesmos, "a acolhida, entre doce e hostil, que é feita a Lully por Corelli", o agradecimento de Lully — e Couperin visivelmente diverte-se nessa peça com um duplo pastiche, fazendo cada um dos dois compositores falar em seu próprio estilo. Depois Apoio "persuade Lully e Corelli de que a reunião dos gostos francês e italiano deveria produzir a perfeição da música". Faz-se um "ensaio em forma de Ouverture"; segue-se um duo de violinos: Corelli acompanha Lully; depois Lully acompanha Corelli (sempre um divertido pastiche). Finalmente, celebra-se a "Paz do Parnaso" por uma grande sonata em trio, em que se aliam o gosto italiano (trata-se precisamente de uma sonata da chiesa em quatro movimentos) e o gosto francês. É notável a consciência que Couperin tinha de estar no cruzamento das duas culturas, que se reuniam nele, e de ser ele próprio capaz de delas fazer a síntese. Couperin decerto teria compreendido e amado Telemann, que, nesses mesmos anos e por outros meios, fazia o mesmo. Aliás, nada nos faz tanta falta hoje para conhecer melhor Couperin do que a correspondência que ele, ao que se diz, trocou com Johann Sebastian Bach, a qual teria se perdido no século XIX.
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A OBRA PARA CRAVO Se tentássemos agrupar todos os adjetivos que usamos para qualificar Couperin desde o início deste capítulo, que qualidades teríamos? Modéstia, medida em todas as coisas, discrição, clareza, sobriedade, pureza, nuance, finura... Não há uma sequer dessas qualidades que não se aplique ao cravo, e isso basta para explicar a predileção do compositor por esse instrumento. Na verdade, Couperin é — e só ele — "o cravo". Pode-se tocar Bach e mesmo Scarlatti ao piano, sem traí-los; Couperin perde a metade de seu encanto. Couperin precisa daquela sonoridade clara, nítida, um pouco seca (a arte de Couperin leva em conta essa secura, vale-se dela, faz dela o suporte da ornamentação de suas linhas melódicas), por vezes brilhante, volúvel, mas rica e poderosa no grave, inimiga de qualquer violência e de todo esplendor. A sonoridade do cravo é, por assim dizer, necessária a Couperin. Quatro livros publicados entre 1713 e 1730 — mais um tratado, L'Art de toucher le clavecin [A arte de tocar cravo], em que há sete Préludes mesurés—, ao todo 233 peças, agrupadas em 27 "ordens": neles está o Couperin inimitável, único, insubstituível. O que Couperin chamava de ordens são de fato suítes, mas tratadas com tanta desenvoltura que poderiam ser chamadas de "desordens" com igual verossimilhança. Reuniam essas "ordens" de quatro a 23 peças, talvez sem outro vínculo (sobretudo a partir do Deuxième livre) do que uma atmosfera comum, um laço a um só tempo firme e sutil, mas que se impõe. A evolução de Couperin ao longo de dezessete anos de publicações é muito clara. O Premier livre é mais leve, mais disparatado, e contém evidentemente a coleção das peças que, durante anos, haviam assegurado o sucesso do músico: podem ser chamadas de "ordens mundanas". No Deuxième livre (1717), a trama se fecha. Esse segundo livro, ao contrário do primeiro, é uma coleção de "ordens" um tanto severas, de tocante graça interior e espírito sonhador, com grandes peças como a Passacaille. O Troisième livre é mais poético, mais gracioso (1722). No último (1730), por vezes amargo e desabusado, outras vezes leve, brincalhão, estão as peças mais interiores e comoventes compostas por Couperin. A forma de que Couperin se vale com mais freqüência é o rondó: coplas e refrão alternados. Trata-se de escolha deliberada, que correspondia ao gosto francês pela concisão. Nada de desenvolvimentos longos, retorno obrigatório ao refrão, o que assegura a continuidade, mas um gosto pela metamorfose barroca, só que à maneira francesa, em que a arte da variação era temperada pela alternância de coplas e refrão. A maior parte das pièces de Couperin tinha título. Ele não foi o primeiro a dar nomes a suas composições: os alaudistas já batizavam as allemandes e as sarabandas das suítes. Os franceses, em música, são intelectuais. O desenvolvimento de uma sonata ou de uma ária não lhes basta: precisam de uma imagem, uma idéia, uma
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atmosfera sugerida pelo título. Assim já procedia Janequin no século XVI, assim fará Debussy no século XX. Certos títulos eram dedicatórias: a um músico — La Forqueray [A Forqueray], nome do violista virtuose com quem certamente Couperin trabalhou muitas vezes —, a uma personalidade, La Conti [A Conti], La Verneuil [A Verneuil] —, e muitas vezes às suas augustas alunas — La Princesse de Chabeuil [A princesa de Chabeuil], La Meneton [A Meneton], moças da alta nobreza, mas reconhecidas musicistas. Em que medida essas dedicatórias eram retratos musicais, como esses outros títulos que sugerem um caráter musical: La Ténébreuse [A tenebrosa], a La Lugubre [A lúgubre], La Badine [A brincalhona], a LTngénue [A ingênua], L'Enjouée [A jovial], L'Attendrissante [A enternecedora], La Séduisante [A sedutora] ou La Refraîchissante [A refrescante], La Fringante [A buliçosa], La Galante, L'Insinuante . Quem são essas moças? Ninguém, talvez. Ou referiam-se esses títulos a certas jovens da corte, ou das relações de Couperin? Um único título é mais explícito: L'Étincellante ou la Bontems [A cintilante ou a Bontems]. Seria a esposa do criado de quarto de Luís XTV", M . de Bontems, vivaz e cintilante como a música que tem seu nome? Todos esses adjetivos foram postos por Couperin no feminino. Eles sustentaram uma estranha e delicada ambigüidade, como o do velho La Fontaine, de quem não se fica sabendo, quando retrata a cravista Marie-Françoise Certain, se gostava da música ou da imagem de uma musicista de quinze anos. E o que dizer de La Belle Javotte [A bela Javotte], de V Aimable Thérèse [A adorável Teresa], de La Mimi [A Mimi], de La Barbet [A pequena Bárbara], de La Divine Babiche [A divina Babiche], de La Douce Jeanneton [A doce pequena Jane]? Outros títulos são como quadros, em particular da natureza. Mas não devemos tomá-los ao pé da letra. No início do século XVIII, a natureza não era o que depois iria tornar-se com Rousseau e o Romantismo: a natureza era encarada, na época de Couperin, como um elemento cultural tanto quanto natural. Desse modo, o Les Lis naissants é a flor que se abre, que desabrocha, e que parece comover Couperin; mas, no século XVII, a palavra "lis" rimava freqüentemente demais com Philis e Amaryllis para que o sentimento da beleza femimna nascente também não se apresentasse de imediato ao espírito do compositor e do ouvinte. Outros títulos eram verdadeiros programas: Le Rossignol en amour [O rouxinol apaixonado], Les Satyres chèvre-pieds [Os sátiros caprípedes], Les Linottes effarouchées [Os pintarroxos assustados], Carillon de Cythère... Outras dessas peças com nomes curiosos eram pequenas comédias em vários atos: Les Fastes de la grande et ancienne Ménestrandise [Os casos notáveis da grande e antiga Menestrandese] contavam as embrulhadas dos músicos do rei com a corporação dos menestréis; Les Folies françaises ou les dominos [As folias francesas ou os dominos] eram uma espécie de Commedia dell'arte ou de Carnaval (no sentido schumanniano do termo), em que as "personagens do amor" aparecem sob disfarce musical. 7
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Mas todos esses títulos, precisos ou poéticos, não devem nos iludir. Eles não são preexistentes à música mais do que os Préludes [Prelúdios] de Debussy. Não eram "temas", mas no máximo comentários, sugestões poéticas, alusões, aproximações. São poesia, poesia devem ser para nós, e nada mais. O que dizer do estilo de Couperin nessas Pièces Nelas há de tudo. Nesse quadro reduzido, limitado, raramente desenvolvido, nesse instrumento discreto que é o cravo, e que algumas pessoas acham frio, Couperin recorreu a todos os estilos, a todas as gramáticas, a todas as linguagens. E sempre com aquela maneira inimitável de manejar a litote, a arte de dizer muito com os meios os mais limitados. Para escutar Couperin, é preciso estar muito atento. Ele não se dá, não se oferece: empresta-se — e apenas a quem o procura, aos que vêm com o espírito alerta. Ao serem lidas ou ouvidas superficialmente, suas Pièces são às vezes pequenas coisas meio parcas, um pouco pobres. A harmonia não é contrastante, parece simples; todavia, quanta sutileza no modo pelo qual se encadeiam os acordes, na maneira segundo a qual as dissonâncias, mal emergem, escorregam umas nas outras! Um dos procedimentos de escrita preferidos por Couperin era o estilo "luthê' (herdeiro da técnica do alaúde). Nada de massas ou de acordes; cada nota é tocada isoladamente, a polifonia explode no espaço sonoro; e essa música, que de fato é escrita estritamente para quatro vozes, parece uma dispersão de notas ao acaso da fantasia. Que leveza nessa maneira de tratar as coisas sérias... São reflexos, vibrações, que passam da luz à sombra, como o vestido de La Finette, de Watteau, em que não se sabe o que é sombra, sol, tecido, folhagem, substância, miragem, moça ou sonho. Mas o elemento mais característico do estilo de Couperin é o ornamento, sobre o qual não se pode deixar de falar. O ornamento (trinado, agudo, arpejo, modulação, portamento da voz, aspiração, suspensão e tantos outros!) é inseparável do estilo do cravo; mas não esqueçamos que todos os instrumentos, e sobretudo a voz humana, utilizavam-no nessa época. Os ornamentos não eram apenas, como se disse, um meio de compensar a secura de sonoridade do cravo. Um soprano ou um oboé — que nada têm de secos — "ornavam" tanto quanto o cravo. Tratavase propriamente de uma maneira tipicamente barroca de completar e intensificar o valor plástico e expressivo da melodia. A palavra "ornamento" é enganadora neste sentido, pois faz crer que o "ornamento" é tão somente "ornamental": ele deve também ser expressivo. Seja como for, não há uma linha de Couperin que não contenha, em cada mão, em cada voz, inúmeros daqueles pequenos sinais de ornamentação a partir dos quais o exécutante deve fazer estremecer ou saltitar a nota. Esse é mais um aspecto essencial de uma música que se sabia e se desejava "vaga e solúvel no ar". 7
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AS LEÇONS DE TÉNÈBRES As funções de Couperin não o obrigavam a compor música vocal para a Capela Real. Legou-nos Couperin, contudo, uma série de pequenos motetos muito intimistas: quase nenhum coro; por vezes três vozes, com mais freqüência uma ou duas, e com predominância da voz de soprano (sua sobrinha Marguerite-Louise era cantora e apresentava-se na corte). Essa música interiorizada convinha a Couperin e atingiu seu mais completo acabamento nas três Leçons de ténèbres que foram conservadas, das nove que escreveu. Estão elas, a um só tempo, entre as obras-primas de Couperin e de toda a música clássica. As Leçons de ténèbres eram cantadas durante a Semana Santa. O admirável texto das Lamentações de Jeremias, um dos mais belos poemas da Bíblia, já havia inspirado inúmeros músicos, Charpentier e Delalande, entre outros. Couperin alia nessas obras um recitativo de infinita flexibilidade a vocalises expressivos em que a variedade dos ritmos e das harmonias está a serviço de uma emoção íntima, profundamente espiritual em sua delicadeza. Sem efeitos de apoio, pelo simples desenvolvimento de uma voz de soprano ou de um duo acompanhado por órgão e viola da gamba, é a música mais patética, mais perturbadora, que saiu da pena deste músico poeta e contemplativo. Couperin teve, depois de morto, um destino bastante insólito. Formou uma geração de cravistas: d'Andrieu, d'Agincourt, Domei, d'Aquin. Influenciou Bach, que recopiou de próprio punho algumas das peças de Couperin para o caderno de música de Ana Madalena. Mas, trinta anos depois de sua morte, nada mais restava de Couperin. É citado como um músico menor que "praticamente só compôs no estilo campestre". Curiosamente, os alemães guardaram melhor a lembrança de Couperin do que osfranceses.Foi Brahms quem fez a primeira edição de sua obra — mas durante muito tempo dela só se compreendeu e reteve o que era graça do desenho e leveza: a peruca desse homem tão típico do século XVIII escondeu um artista genial, um músico profundo e terno. No limiar do século XVIII Lully criara a óperafrancesa,atribuindo-lhe já de saída todas as suas características essenciais. Na verdade, o gênero praticamente não evoluiu depois dele. MarcAntoine Charpentier bem que tentou, com sua Médée (1603), ensaiar alguns passos em direção à tragédia lírica, mas seu talento não chegou a impor-se. Foi um meridional, André Campra (1660-1744), quem dominou a cena durante o primeiro terço do século XVIII. De início músico de igreja, mestre de capela em NotreDame de Paris, autor de notáveis motetos, Campra voltou-se deliberadamente para o teatro e tornou-se diretor da Qpera. Tancrède [Tancredo] e Hésione [Hesíona] trouxeram um novo alento, levemente colorido de italianismo, à ópera francesa. Mas foi por haver criado um gênero mais leve, a ópera-balé — na qual, com apoio
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em uma ação mais solta, a parte mais bela era dedicada à dança —, que Campra deu uma verdadeira contribuição à história da ópera. V Europe galante [A Europa galante], Les Fêtes vénitiennes [As festas venezianas], compostas em um estilo mais simples, mais gracioso, mais colorido que o de Lully, fazem uma harmoniosa síntese das tendências italianas e da tradição francesa. Um outro meridional, JeanJoseph Mouret (1682-1738), nascido em Avignon, produziu uma música fantasista e alegre, enquanto André Cardinal Destouches (1672-1749), aluno e colaborador de Campra, ensaiou com Omphale [Onfale] e com Les Éléments [Os elementos] uma harmonia mais rica e mais sutil. Mas esse início do século XVIII é sobretudo a época em que apareceu uma música que se poderia chamar "de câmara". Enquanto a grande pintura, a de Le Brun ou de Poussin, cedia lugar às obras de dimensões mais modestas e de aspecto mais leve — as "festas galantes" de Watteau, de Pater, de Lancret —, a ópera, sempre vivamente apreciada, viu surgirem novos gêneros musicais ombreando com ela. Essa música mais intimista, como a pmtura daquele tempo — e também como a arquitetura, que se dedicou a multiplicar mansões de tamanho relativamente pequeno e "casas de campo" —, dá testemunho de uma evolução social. Uma burguesia bem-sucedida chegava ao mundo da arte; mas era preciso que houvesse uma arte com as dimensões dessa burguesia, que não fosse nem a arte da corte, nem a dos grandes senhores, cujos meios e gostos tendiam para o luxo e a grandeza. Essa foi a época dos "pequenos gêneros" musicais: a "cantata francesa", espécie de ópera em miniatura, para um ou dois cantores e alguns instrumentos, na qual excediam Campra, Mouret, Louis-Nicolas Clérambault (1676-1749), Nicolas Bernier (1664¬ 1734); a sonata (à italiana) e a suíte (à francesa) para dois ou três instrumentos: Marin Marais, o violista (1656-1728), e seu rival Forqueray, Hotteterre, o oboísta, e seu rival Philidor, Michel de la Barre, oflautista,Michel Correrte, o violinista, e muitos outros consagraram aos instrumentos de sua predileção todo um repertório que muitas vezes revela obras-primas de graça e de qualidade da escrita. A cantata e a sonata atestavam, por sua vez, a ressurgência da influência da Itália sobre a arte francesa. Foi através da cantata que a ária italiana pouco depois viria a contaminar, embora superficialmente, a ária ao estilo de Lully. Foi pela sonata e pela prática instrumental que se preparou a obra concertante de Jean-Marie Leclair. JEAN-MARIE LECLAIR (1697-1764) Nasceu em Lyon, em 1697. Apareceu pela primeira vez na história da música como dançarino, traço tipicamente francês. Ainda no século XVIII, composição, violino e dança eram coisas que caminhavam juntas aquém dos Alpes, e a reputação dos dançarinos franceses reinava sobre toda a Europa. Leclair era o professor de balé na corte de Turim, onde também tocava violino. Aos 22 anos, publicou em Paris sua primeira coletânea de sonatas, depois alcançou um triunfal sucesso como vituose no Concert spirituel. Em 1734, entrou para a Musique du roi. Mas já então
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manifestava-se sua personalidade difícil: rivalidades, incompatibilidades de humor, falta absoluta de sociabifidade. Abandonou bruscamente a orquestra real e fixou-se em Amsterdã, importante centro musical, onde trabalhou com Locatelli. Após uma temporada na corte do infante da Espanha, em Chambéry, Leclair voltou a Paris e apresentou, na Ópera, Scylla et Glaucas [Cila e Glauco, 1745], sua única incursão no domínio da ópera. Nova viagem à Holanda, novo retorno a Paris, onde morreu em conseqüência de uma facada que recebeu na rua, à noite, de um desconhecido; o corpo só foi descoberto na manhã seguinte. Personalidade difícil e sombria, instabilidade de humor, misantropia: Leclair não era um homem amável, nem provavelmente feliz. Mas sua obra é de primeira qualidade. Mais do que sua ópera Scylla et Glaucus, que decerto não é o que de mais importante ele fez, apesar das páginas notáveis, em particular as páginas sinfônicas (Leclair não era um homem de teatro), a música instrumental de Leclair é de se considerar. Consiste sua obra instrumental de uma série de coletâneas de sonatas, publicadas ao longo da sua vida (de 1723 a 1753) — sonatas só para violino (1734), para dois violinos sem acompanhamento (1730), para dois violinos e baixo contínuo (seis coletâneas, 1730-1753) —, assim como de dois volumes de concertos (1737-1743), todos para violino, com exceção de um único, para flauta ou oboé. Leclair era célebre pela precisão, a justeza de sua execução ao violino e pelo virtuosismo. O donrínio de Leclair era o violino. Neste instrumento, era um mestre. A facilidade e a ousadia da sua técnica violinística manifestavam-se a cada momento em suas sonatas. Mas — diferentemente de Locatelli, por exemplo — nunca peca por excesso de virtuosidade: o rigor da composição, a elevação do pensamento e também o encanto igualam ou ultrapassam o brilhantismo e a cintilância da técnica. Admirável em Leclair é justamente o equilíbrio que se encontra, em cada obra, entre tendências diversas: audácia, ousadia, mas profundamente pensadas, temperadas com segura reflexão, e sem pressa. Uma correção perfeita da escrita, sem nenhuma frieza: ao contrário, lirismo em certos movimentos lentos, em particular, mas um lirismo grave e majestoso. Por vezes ternura, embora contida, e também impetuosidade, ma non troppo. A palavra "equilíbrio" resume Leclair: equilíbrio também na maneira pela qual soube aliar a herança italiana do violino e da linguagem musical com a tradição francesa. A estilização dos ritmos coreográficos da suíte francesa no enquadramento da sonata à italiana é um notável exemplo disso. Os concertos de Leclair em três movimentos (as sonatas tinham quatro movimentos: andante, allegro, andante, vivace) eram exclusivamente para solista (nenhum concerto grosso). Quatro tutti emolduravam três passagens soli nos movimentos vivos, que eram três, e dois tutti faziam o mesmo nos adágios; as passagens confiadas ao violino solo eram da maior variedade: brilhantes, virtuosísticas, e recitativos tensos oufrementes.Em seus concertos revela-se, melhor ainda do que nas sonatas, a riqueza da escritura harmônica de Jean-Marie Leclair.
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MICHEL-RICHARD DELALANDE E A MÚSICA SACRA A música sacra, como sempre, evoluiu nesse período mais lentamente do que a música profana: as formas da música sacra são mais estáveis, e sua destinação torna-a mais conservadora. Na verdade, o essencial das estruturas musicais religiosas do século XVIII preexistia ao próprio século XVII. O "grande moteto" com coro duplo transformara-se definitivamente em moteto para coro, pequeno grupo de solistas e orquestra; mas nada de fundamental havia mudado. Toda a música sacra francesa dessa época é dominada pela personalidade de Michel-Richard Delalande (1657-1726), que sucedeu a Lully como superintendente da Musique du roi. Tudo distinguía Delalande de seu antecessor. O arrivista genial mas sem escrúpulos, todo voltado para a ópera e para a música de divertimento da corte, era substituído por um homem modesto, que chegou, sem intrigas, unicamente por seu talento, aos mais elevados destinos musicais de sua época, um homem mais namralmente voltado para a capela do que para o bañe e a ópera. Foi Delalande quem—recordemos—por amizade aos Couperin aceitou, com a morte de Charles Couperin, o cargo de organista da Igreja de Saint-Gervais, para conserválo para o filho de Charles, o órfão de onze anos que, um quarto de século mais tarde, iria tornar-se seu colega na Capela Real. A vida de Delalande foi simples e confundese de certo modo com a multiplicidade de seus cargos oficiais. Não fez viagens: não tinha tempo para isso e residia em Versalhes, em companhia da mulher Arme, filha do violinista Rebel, das duas filhas, cantoras na corte, e de seus discípulos. A parte mais importante da obra de Delalande não são suas composições profanas, e se as célebres Symphonies pour les soupers du roi [Sinfonias para as ceias do rei] fizeram sua reputação atual, constituem uma parcela bastante secundária de sua produção musical, assim como alguns balés que compôs. O que verdadeiramente conta são os quarenta grands motets que escreveu para a Capela Real e que estiveram no repertório de todas as grandes igrejas da França até a Revolução. A estrutura desses motetos é bem simples: uma ouverture instrumental introduz um grande coro, sempre a cinco vozes, ao qual sucedem "recitações", duos, trios, seguidos de solos de flauta, violino ou viola, assim como "grandes" e "pequenos" coros. A escrita musical de Delalande é sólida, sóbria, possante. À linguagem tradicionalfrancesa,ele acrescenta alguns italianismos, e a melodia corre mais livremente que a de Lully. A linguagem é menos complexa e mais poderosa que a de Charpentier. Na obra de Delalande, primam a nobreza e a grandeza, um pouco retóricas e solenes, como convém a uma arte oficial. Delalande foi um pouco o Bossuet da música francesa. Na verdade, essa comparação sublinha de maneira oportuna as 1
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Grande pregador religioso do século XVll, Jacques-Bénigne Bossuet nasceu em 1627, foi bispo de Condom e de Meaux e preceptor do filho mais velho de Luís XIV, delfim de França; deixou imensa obra de prosa religiosa, num dos mais belos estilos da época clássica francesa. (N. T.)
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funções paralelas do orador sacro e do músico: um e outro haviam compreendido seu papel de maneira idêntica. Mas a nobreza um tanto pomposa do estilo de Delalande não impede o aflorar da emoção, que transparece em inúmeras páginas admiráveis: Requiem aeternam do grande Deprofundis (uma obra-prima do início ao fim), ou o Miserere, por exemplo. Além de Delalande, Nicolas Bernier e André Campra — aos quais já se fez menção com referência à ópera — deixaram uma obra religiosa nada desprezível, embora mais superficial ou, em todo caso, de tom mais leve. Curiosamente, essa música da virada do século bebeu de fontes meridionais: Campra vinha de Aix, e Mouret era proveniente de Avignon. Originário de Tarascón, Jean Gilles (1669-1705), ao contrário dos precedentes, fez sua breve carreira exclusivamente no Midi: em Aix, onde foi aluno de Poitevin, Montpellier, Toulouse e Avignon. Deixou uma coletânea com cinco grandes motetos, além de diversos motetos para uma única voz e do Requiem que faria sua glória, embora tenha sido executado pela primeira vez em seus próprios funerais. Obra a um só tempo majestosa e comovente, em que se aliam grande simplicidade e uma enorme clareza de escrita à originalidade de certos achados, o Requiem de Jean Gilles haveria de tornar-se uma das obras-chave do século XVII francês, em que serviu a funerais de pompa real, como o de Rameau. Depois de Grigny e Couperin, a música para órgão francesa foi dominada por Louis Marchand (1669-1732), rival de Couperin na Capela Real, que era virtuose extraordinário apesar de, durante uma viagem à Alemanha, ter recuado diante de um desafio em que seu competidor seria Johann Sebastian Bach. A arte de Marchand, colorida e brilhante, correspondia bem ao instrumento típico que era produzido pelos fabricantes de órgãofranceses.Juntamente com Marchand, Du Mage e Clérambault sustentaram com firmeza essa tradição, como organistas e compositores. Mas posteriormente, no decorrer do século XVIII, a arte dos organistas franceses perdeu o interesse e tendeu para um pitoresco que mal escondia a pobreza de pensamento de d'Agincourt e d'Aquin; Dandrieu foi a única exceção, com suas peças para órgão de severo contraponto.
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HEINRICH SCHÜTZ (1585-1672) j Extraordinário Heinrich Schütz, antes de qualquer outra coisa por sua longevidade! O maior compositor do século, ao lado de Monteverdi e Purcell, e o primeiro a colocar a música alemã em primeiríssimo plano, nasceu em Kõstritz, na Saxônia, em 1585, exatamente um século antes de Bach e na época em que, na França, o rei Henrique III estava às voltas com os membros da Santa Liga de seu primo, o duque de Guise. Schütz morreu em Dresden, em 1672, aos 97, apenas um ano antes de Molière — e, portanto, no apogeu do reinado de Luís XIV —, depois de ter dado até o último momento provas de gênio criador (o seu Magnificat alemão data de 1671). Mas situar Schütz em relação ao contexto francês não faz grande sentido: o único contexto à medida de Schütz, para além dos ensinamentos que lhe vieram, diretamente ou não, da Itália, onde esteve duas vezes, é a Alemanha. A Alemanha como um todo, e não apenas a Alemanha luterana personificada principalmente por Johann-Georg, eleitor da Saxônia, cuja capital era Dresden, e a serviço do qual Schütz ingressou em 1617, para permanecer ligado à família governante da Saxônia até o fim da vida, isto é, durante mais de meio século. Certamente Schütz foi um músico alemão, e também músico protestante, luterano. Foi também um homem do século XVII, aberto às idéias e técnicas novas, um músico barroco que viveu numa época dilacerada pela Guerra dos Trinta Anos (1618-1648), um músico humanista e ecumênico. Nenhum desses aspectos de sua personalidade é desdenhável, e apenas o conjunto deles permite retratar verdadei-
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ramente Heinrich Schütz, que refletiu seu tempo, mas que ainda fala à nossa época com uma intensidade sempre crescente. Músico humanista? Seguindo os desejos dos pais (o pai era dono de uma hospedaria) e sob a proteção do landgrave Moritz de Hesse, o Letrado, Schütz foi em 1599 para o ginásio de Kassel e depois, em 1608, para a Faculdade de Direito de Marburg, que só abandonou para dedicar-se inteiramente à música quando já beirava os trinta anos, após sua primeira viagem à Itália. Ele jamais considerou, mesmo a posteriori, esse tempo como perdido. Na época em que a composição era reconhecida como ciência entre as ciências, o estudo das humanidades (gramática, retórica e poética, história e filosofia) e das disciplinas matemáticas era uma obrigação para um futuro mestre de capela. As matérias extramusicais não eram cultura geral para Schütz, mas parte integrante de sua formação. Não as esqueceu, serviu-se delas. Característica dessa atitude foi a recomendação que deu a seu aluno Matthias Weckmann para "aprender hebraico, porque era útil para musicar os textos do Novo Testamento". Músico protestante? Desde criança Schütz foi profundamente marcado pela tradição luterana, em que o serviço divino era o próprio centro de toda a vida musical e segundo a qual, para um compositor, humanismo e cristandade não eram coisas contraditórias. Essa afirmação da unidade fundamental entre música profana e música sacra, assim como do restabelecimento do papel inovador da música de igreja, opunha-se claramente ao dualismo estilístico do barroco católico, que em geral reservava a maior parte das novidades para o profano, coisa de que Mozart, um século e meio depois, ainda se deveria ressentir. Livre de qualquer dogmatismo, individualista até o mais fundo de si mesmo, Schütz foi, também ele, o que Johann Kuhnau, predecessor de Bach em Leipzig, deveria dizer a respeito de si próprio como autor de cantatas: "Um pregador da palavra divina, empenhado em esposar, com seu texto, a substância original." Nesse sentido, Schütz jamais teve igual, mesmo na pessoa de Bach. Músico barroco? Schütz pertenceu ao século XVII. Mais novo dezoito anos que Monteverdi, soube aproveitar, quando esteve em Veneza—na primeira vez (1609¬ 1612), estudou com Giovanni Gabrieli e na segunda (1628-1629), com o próprio Monteverdi —, a revolução que, na virada do século, havia transformado a arte dos sons. Schütz trouxe da Itália o princípio concertante, a integração dos instrumentos (em particular dos metais) às obras vocais, o canto solista, o baixo contínuo e a exegese expressiva dos textos. Em 1619, publicou, em Dresden, os Psalmen Davids [Salmos de Davi] para coro a duas e quatro vozes com instrumentos, baixo contínuo e solo vocal: chamou-os salmos alemães à moda italiana, fazendo referência explícita à influência de seu antigo mestre Gabrieli, que, ao morrer, dera-lhe o seu anel. Do mesmo modo, é evidente a influência do Monteverdi de II Combattimento di Tancredi e Clorinda no primeiro volume das Symphoniae sacrae [Sinfonias sacras] de Schütz, publicadas em Veneza no ano de 1629.
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Músico alemão? Foi no prefácio de Geistliche Chormusik [Música coral espiritual], publicação de 1648, que Schütz expôs com maior clareza sua concepção das relações entre o novo e o velho. Nesse texto, conclamava principalmente os jovens compositores a só se dedicarem ao estilo moderno (originário da Itália, com baixo contínuo) depois de haverem dominado perfeitamente o estilo tradicional, a música coral (Chormusik) sem baixo contínuo, pois "apenas nesse estilo encontramse a essência e o fundamento do bom contraponto". Mas é preciso ir adiante. Assim como para Gabrieli, a antiga música polifónica e contrapontística continuava a ser para Schütz, para além de todo o modernismo, o fundamento de qualquer construção sonora. Nisso, um e outro opunham-se a Monteverdi, principal representante da corrente das Nuove musiche,pam a qual Gabrieli era um "compositor antigo" e a música alemã, desprezível — uma corrente que haveria de encontrar seu coroamento no profano, no teatro e na ópera. Com Monteverdi, começou a era estética da música, a era da música concebida como expressão dos sentimentos, e mesmo de um mundo exterior a ela. Em sua degenerescência, essa orientação acabaria por conferir importância cada vez menor às palavras (as árias intercambiáveis do século XVIII, que serviam a várias óperas, são um bom exemplo disso) e por provocar, além de reformas, como a de Gluck, o avanço da música instrumental. Nada disso aconteceu com Schütz, que nunca adaptou letras a uma música já existente, mas que, segundo seus próprios termos, "traduziu objetivamente textos em música para serem interpretados em língua alemã". Não temos dele a mínima partitura puramente instrumental, e, com exceção dos Madrigais italianos (1611), sua produção profana desapareceu por completo, principalmente nos dois incêndios que devastaram a biblioteca do castelo da corte de Dresden, no século XVIII. Decerto é preciso deplorar que isso tenha acontecido, mas não foi por acaso que a ópera Daphne [Dafne], de 1627, e os grandes balés de Schütz nunca foram impressos em vida do autor. Segundo dizem, Schütz considerava essa parte de sua obra como secundária, e nada prova que ele tenha igualado seus modelos italianos. Bem antes de morrer, Schütz foi reverenciado como "o pai da nova música alemã", como Germaniae Lumen ("a luz da Alemanha"). Daí essa ponta de orgulho nacional (principalmente dirigida contra o Sul) que transparece em alguns documentos por ele assinados, como aqueles, posteriores a 1651, em que se queixa da presença em Dresden de uma troupe de músicos dirigida pelo italiano Bontempi, castrato e professor de música do príncipe herdeiro da Saxônia, cujos gostos — mais que os de seu pai Johann-Georg — voltam-se para a música que vinha do outro lado dos Alpes. Com seus Madrigais italianos, de 1611, que totalizavam dezenove peças escritas quando estudava com Giovanni Gabrieli, Schütz elevou-se, sem grandes esforços aparentes, ao nível dos seus maiores predecessores no gênero. Data de 1617 o admirável Magnificat latino de Schütz. Mas foi com os 26 Psalmen Davids, publicados em 1619 — alguns dos quais já haviam sido escritos na Itália —, que Schütz
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assumiu o lugar que lhe era de direito no concerto musical de seu tempo: o primeiro. A coletânea como um todo traz a marca do estilo policoral veneziano, cujo exemplo mais acabado são as Sacrae symphoniae de Gabrieli; mas nela também se encontra um autêntico espírito de prece. Schütz sempre soube evitar as tentações e as armacLilhas do virtuosismo. Do madrigal à declamação lírica, os Psalmen Davids compreendem praticamente todos os estilos de canto da época e são uma prova da inesgotável curiosidade de espírito de Schütz. Em seguida veio a Auferstehung Historie Jesu Christi [História da ressurreição de Jesus Cristo], obra com a qual, em 1623, Schütz aplicou pela primeira vez na Alemanha, pelo menos ao que sabemos, as receitas ainda novas do oratório italiano. A iniciativa foi um golpe de mestre. A obra transfigura o realismo dos detalhes pelo intenso fervor de sua concepção de conjunto. O texto, retirado dos quatro evangelhos, relata os acontecimentos imediatamente posteriores à ressurreição de Cristo, que dela dão testemunho. Das três cenas, a primeira é situada à beira do túmulo (visita das três Marias e dos discípulos ao túmulo vazio, aparição dos dois anjos, aparição de Jesus a Maria Madalena e aos discípulos, diante do túmulo). A segunda passa-se no candnho de Emaús (encontro de Jesus com os peregrinos), e a terceira em Jerusalém (aparição de Jesus diante dos discípulos reunidos). A obra começa e termina com dois coros que são, a um só tempo, um reconhecimento da dívida com relação ao moteto da escola da Alemanha do Sul, de Lassus e de Lechner (presença do baixo cifrado) e uma homenagem aos novos tempos. Entre a primeira e a segunda parte, há o episódio bastante curto da corrupção dos soldados pelos grandes sacerdotes (trio de grandes sacerdotes). Entre a segunda e a terceira, um grande coro a seis vozes, representando a intervenção da multidão. Há, portanto, sete episódios de dimensões desiguais, mas de notável simetria de conjunto; tanto que a pessoa do Ressuscitado aparece cada vez mais presente e suas palavras são sempre triunfais. No prefácio, Schütz conta-nos sobre suas intenções e os matizes expressivos que deviam observar os intérpretes de tão preciosas informações, distinguindo, por exemplo, a cantilação modal do evangelista (na maior parte do tempo livre dos compassos e sustentada se possível por um quarteto de violas da gamba) das intervenções dos solistas que encarnavam os diferentes atores do drama (apoiados unicamente pelo baixo contínuo). Para as personagens de Jesus e de Maria Madalena, o prefácio exige não uma, mas duas vozes, com a concessão de que a segunda pode ser confiada a um instrumento ou pura e simplesmente abandonada. Com as quarenta peças das Camiones sacrae [Canções sacras], de 1625, baseadas nas preces da Bíblia e nas orações dos doutores da Igreja, Schütz pôs termo, de certo modo, ao seu primeiro período de criação, inscrito grosso modo—a despeito das antecipações que se podem encontrar nos Psalmen Davids e na Auferstehung — na tradição, entendida como prolongamento do contraponto veneto-flamengo: os textos eram em latim e as vozes praticamente privadas de sustentação ins-
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trumental, apesar da eventualidade do continuo, previsto pelo autor por demanda do editor. Em contrapartida, na primeira coletânea das Symphoniae sacrae (1629), fruto da segunda temporada de Schütz na Itália, sente-se nas peças — que, apesar dos textos latinos, permanecem fundamentalmente representativas da espiritualidade do luterano Schütz — a influência da dramaturgia profana e da monodia acompanhada. É nessas vinte Symphoniae que Schütz revela-se mais claramente tocado pela teatralidade transalpina e que sua "modernidade" explode com maior violência. A vida de Schütz foi uma sucessão de vitórias sobre si mesmo e sobre as circunstâncias: viveu na época em que a Guerra dos Trinta Anos abateu-se como um flagelo sobre a Alemanha. Que amargura não terá provado Schütz vendo seu protetor, o eleitor Johann-Georg, absorvido em um conflito que não tinha fim e cuja condução obrigava-o a dissipar os recursos que outrora haviam servido à capela e às artes em geral! Daí as queixas, as explosões de indignação e também, de 1633 a 1644, as três estadas do compositor na Dinamarca, verdadeira terra de refúgio. Durante esses anos tão tristes, Schütz escreveu o seu Requiem alemão, as Musikalische Exequien [Exéquias musicais], liturgia de pompas fúnebres que aliava as seduções de uma escrita concertante ao estilo antifônico veneziano (1636), e sobretudo os Kleine Geistliche Konzerte [Pequenos concertos espirituais], compostos entre 1633 e 1639, cujo aparente despojamento refletia bem a crueza da época. As Musikalische Exequien são resultado de uma encomenda do príncipe Pos¬ thumus von Reuss, amigo e protetor de Schütz, que o conhecera em Bayreuth, em 1619. Luterano fervoroso, esse príncipe quis programar pessoalmente o cerimonial de suas próprias exéquias. Fez gravar em seu futuro caixão algumas de suas preces favoritas, tomadas das Escrituras e dos hinos dos Livro dos Salmos, e solicitou a Schütz que compusesse a música. As Musikalische Exequien compreendem três partes: um concerto em forma de missa fúnebre alemã, um moteto sobre o Salmo 73, e, como conclusão, o Cântico de Simeão. A obra, executada ainda em vida do príncipe von Reuss e em sua presença, foi cantada, como ele desejara, nos seus funerais solenes, no dia 4 de fevereiro de 1636. Exige, para que transpareça todo o seu valor, a presença dos instrumentos:flautas-doces,violas, metais. A primeira parte, que é a mais importante, é tratada como uma espécie de Missa hrevis em língua vernácula, com Kyrie e Glória. Ou antes: as sentenças escolhidas pelo príncipe encerram aproximadamente o sentido das palavras do missal. O texto do moteto (Salmo 73) havia sido escolhido por Posthumus von Reuss como tema de reflexão para o sermão de seus funerais. Schütz usa nessa segunda parte um coro duplo a oito vozes, na tradição de Gabrieli, com a diferença de que os dois coros não se comportam, mas unem-se em um mesmo concerto para o repouso de uma alma e para a maior glória de Deus. Finalmente, o Cântico de Simeão, cantado durante a missa de corpo presente, é confiado ao coro (cinco vozes) dos "filhos dos homens", ao passo que, por sobre esse canto, desenvolvem-se as frases puras e se-
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renas de um segundo coro, a três vozes, que evocam a admissão da alma do defunto no conselho dos eleitos (na dedicatória da obra, Schütz tomara o cuidado de indicar que nutria a esperança de vir ele próprio a participar deste conselho um dia). Embora próximos no tempo dessa última obra, e compostos em plena guerra, os Kleine Geistlkhe Konzerte dela diferem profundamente. Essas peças para um a cinco solistas, sobre textos alemães ou latinos, com o único acompanhamento de baixo contínuo, são, nas palavras de Roger Tellart, as mais dilacerantes súplicas (ao mesmo tempo gritos de fervor e de tristeza) que já foram arrancadas do coração do Archicantor Schütz. E m u m Estado crucificado pela guerra e de novo atacado pela loucura dos grandes medos medievais, em uma sociedade que se tornara viúva de Espírito, Schütz empenhava-se, com sua evangélica caridade, em conservar algumas o c u p a ç õ e s para os raros fantasmas que n ã o haviam desertado de sua capela.
O perturbador oratório Die Sieben Worte unsers lieben Erlõsers und Seligmachers Jesu Christi [As sete palavras do nosso querido salvador e redentor Jesus Cristo], de 1645, ocupa uma posição intermediária entre a Auferstehung (1623), por um lado, e a Weihnachts-Historie [História da natividade, 1664] e as três Paixões (Historie des Leidens und Sterbens unsers Herrens Jesu Christi), por outro. Na Auferstehung, elementos do estilo antigo subsistiam, como a recitação livre do evangelista com acompanhamento de quatro violas da gamba, ou ainda a intervenção de certas personagens em polifonia a duas vozes. A Natividade, ao contrário, traduz inequivocamente a arte da segunda metade do século XVII. Já as Paixões, que são do mesmo período, levam o recitativo livre ao apogeu. Die Sieben Worte situam-se verdadeiramente entre dois mundos, a despeito de tudo o que Schütz não pudera deixar de aprender com os novos mestres romanos do oratório, como Luigi Rossi e Carissimi. A obra compreende um coro de introdução a cinco vozes (Introitus), em que Schütz faz referência à rigorosa polifonia de seus primeiros mestres, uma sinfonia a cinco vozes, puramente instrumental, em que se expressa o ouvinte de aberturas de óperas italianas, as sete palavras propriamente ditas, uma retomada da sinfonia e um coro conclusivo a cinco vozes (Conclusió). Nas sete palavras propriamente ditas, a narração do evangelista é confiada alternadamente ao alto, ao tenor e ao soprano, de maneira a que, em cada circunstância, o timbre escolhido corresponde da melhor forma às intenções do texto: supremo exemplo de síntese do antigo e do moderno, tanto mais que, no momento da morte do Cristo, Schütz não hesita em fazer com que o texto do evangelista seja cantado pelas quatro vozes solistas, sempre sustentadas pelo contínuo. Ao relato do evangelista, opõem-se as Worte do Cristo (tenor II), em estilo de arioso. Nesse momento, violas juntam-se ao contínuo. As outras personagens expressam-se por meio de vários solistas (os dois ladrões, por exemplo, pelo alto e pelo baixo). Schütz ilustrou sua posição de grande intermediário entre duas épocas radicalmente diversas não apenas com Die Sieben Worte, mas igualmente com as suas três
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publicações seguintes. Em 1647 surgiu, não mais com textos latinos, mas alemães, o segundo volume (27 peças) das Symphoniae sacrae, em que voz e acompanhamento instrumental interpenetram-se permanentemente. Em 1648, com a paz enfim restabelecida, foi a vez da Geistiiche Chormusik, 29 peças orientadas retroativamente para as severas construções polifónicas dos alunos de Lassus, mas com contraponto amiúde menos elaborado por conta dos imperativos da prece coletiva. Em 1649, o terceiro volume das Symphoniae sacrae (21 peças) misturava, aos jogos mais coloridos do estilo italiano, o clima de fervor coletivo, facultado pela grande tradição polifónica alemã. Henrich Schütz passou os últimos quinze anos de sua vida (1657-1672) na localidade de Weissenfels, onde passara a infância, pois seus pais lá se haviam fixado em 1590, em um retiro bem merecido, mas sem qualquer ociosidade. Permaneceu oficialmente ligado à corte da Saxônia, cujo declínio político e artístico já começara a se fazer sentir, e deslocou-se inúmeras vezes pelas residências aristocráticas vizinhas. Nesse último período compôs, entre outras obras, os Doze cantos sacros e três Psalmen, a Weihnachts-Historie, as três Paixões e o Magnificat alemão, de 1671. A Weihnachts-Historie, composta aproximadamente em 1661, e cuja primeira edição surgiu em Dresden no ano de 1664, respondia a uma encomenda de Johann-Georg II, novo príncipe eleitor da Saxônia. O texto, retirado dos evangelhos de Lucas e Mateus, divide-se em episódios narrados pelo evangelista (tenor) ou vividos por personagens: o anjo (soprano), os três pastores (altos), os reis magos (tenores), os grandes sacerdotes (baixos) e Herodes (baixo). O baixo contínuo (órgão e viola da gamba) está presente todo o tempo, mas instrumentos bem definidos — violas, violinos,flautas-doces,fagotes, trombones e trompetes — também acompanham os personagens da ação. Disso resulta uma diversidade de cores desejada pelo compositor e que distingue a Weihnachts-Historie dos dois oratórios precedentes, ou seja, da Auferstehung Historie e mesmo de Die Sieben Worte. No prefácio à edição de 1664, Schütz observa orgulhosamente que a parte do evangelista estava escrita "naquele novo stylo recitativo de que ainda não havia exemplo impresso na Alemanha". A Weihnachts-Historie é, na verdade, o reflexo da transição da música de igreja para formas teatrais e concertantes. Nesta obra, Schütz revela grande mestria ao delinear o cenário, ao acompanhar a ação com a palavra, ao colocar em cena as personagens, esboçando-lhes sempre que necessário as mais secretas motivações, sob o signo a um só tempo da ingenuidade mais desarmante e do mais completo realismo. As três Paixões de Schütz são do tipo Coral-Paixão ou Paixão-Responsorial, que altera recitativos de solistas com seqüências polifónicas (grandes coros, por exemplo) e constitui os mais perfeitos espécimes do gênero antes de Bach. Os traços aparentemente mais irreconciliáveis estão nelas tão genialmente sintetizados em uma unidade superior, que a coisa parece um verdadeiro milagre. De um lado, ascèse e o que poderia parecer um perigoso arcaísmo. As três Paixões renunciam a
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todo e qualquer acompanhamento instrumental, tanto ao baixo contínuo quanto à diversidade das cores e dos timbres. Só há vozes. (Ao fazer essa opção, Schütz estava respeitando o costume segundo o qual a orquestra calava-se durante as cerimônias religiosas da Semana Santa). Do mesmo modo, a sobriedade do canto solista livre de compasso às vezes chegava às raias da nudez, o que parece contradizer qualquer veleidade dramática. Mas, por outro lado, era e continua sendo incrível a modernidade do autor das Symphoniae sacrae. E essa modernidade não aparece só nos grandes coros. O essencial era que a simplicidade intencional da declamação dos solistas (espécie de cantochão redescoberto) permite, pela sua decupagem süábica e por sua acentuação natural, valorizar os momentos mais significativos do discurso. Das três, a Paixão segundo São Lucas é a mais direta e mais simples, a Paixão segundo São João, a mais austera, mas talvez a mais tocante, e a Paixão segundo São Mateus a mais dramática. Foi com o impulso da alegria do Magnificat alemão que, em 1671, Schütz descansou a pena. Temos dele quatro versões do Magnificat (duas outras perderamse): três alemãs, dentre as quais duas a cappella (a de 1671 é uma delas) e uma para soprano solo (na segunda série das Symphoniae sacrae); a quarta é em língua latina (1617). A sombra da partitura de 1617, homenagem a Gabrieli e muito próxima dos Psalmen Davids, plana com toda a evidência sobre a de 1671. Mas, nesta última, há menos luxo sonoro, menos arrebatamento. Mesmo nos auges de intensidade, prevalece um clima de serenidade e sobretudo de lucidez. Schütz, o grande ecumênico, um dos poucos — juntamente com Martins Opitz, poeta da Silésia, e Johann Valentin Andrea, teólogo de Wortemberg -— a dominar do alto, na Alemanha do século XVII, seus conteporâneos e a compreender a futilidade de suas querelas, deixou para a Alemanha uma mensagem definitiva, ao fim de uma carreira tão longa quanto harmoniosa. Não satisfeito em só se haver elevado em sua arte até o último suspiro, Schütz deixou uma produção em que, a despeito de sua abundância, nenhuma obra tem importância menor e cujo alcance espiritual "convida os fiéis e os ateus de boa vontade a comungar em uma compreensão mútua" (Roger Tellart).
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Entre os contemporâneos de Schütz, dois nomes se destacam: Samuel Scheidt (1587-1654) e Johann Hermann Schein (1566-1630). Scheidt foi (como Praetorius fora, algum tempo antes) aluno do grande pedagogo de Amsterdã, o organista calvinista Jan Pieterszoon Sweelinck (1562-1621). Sem jamais ter deixado a Holanda, Sweelinck conquistou verdadeira fama internacional. A escola alemã de órgão deve muito a esse extraordinário músico, que transmitiu a Scheidt a arte do órgão e do contraponto, assim como a herança anglo-holandesa. Autor de Tablatura nova, a primeira obra teórica importante do órgão alemão, de música sacra e de danças instrumentais, Scheidt fez a maior parte de sua carreira em Halle, sua cidade natal. Predecessor de Bach na igreja de Santo Tomás de Leipzig, Schein foi bastante influenciado pela Itália e pelo espírito do madrigal, e pode ser considerado o pioneiro da suíte de danças na Alemanha. A obra mais célebre desse compositor é Israelsbrünnlein [Fonte de Israel], uma série de 26 madrigais sacros para cinco vozes e baixo contínuo, publicada em Leipzig em 1623. Essa música, que durante muito tempo ficou à sombra de Geistliche Chormusik, de Schütz, é um dos mais importantes monumentos da música alemã do início da época barroca. Articulada à carreira de Schütz, está a de Adam Frieger (1634-1666), o mestre do Lied no século XVII. Aluno de Scheidt em Halle, foi mestre de tribuna na igreja de São Nicolau, em Leipzig, entre 1655 e 1657, sendo mais tarde nomeado para a corte de Dresden, onde já havia encontrado Schütz em oportunidades anteriores. Em Dresden, Frieger escreveu mais para voz do que para órgão. Suas Arien [Árias],
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com acompanhamento de cordas e contínuo, assinalam o ponto mais alto atingido pelo Lied monódico barroco. Na música para órgão, ausente do catálogo de Schütz, constituíram-se progressivamente na Alemanha, ao longo do século XVII, duas grandes escolas, a do Norte e a do Sul, representadas respectivamente por Dietrich Buxtehude (1637-1707) e Johann Pachelbel (1653-1706). Bach realizou a síntese dessas duas escolas. BUXTEHUDE E A ESCOLA DE ÓRGÃO DA ALEMANHA DO NORTE A escola do Norte — romântica avant la lettre, por cultivar a surpresa harmónica, a liberdade formal e rítmica — é integrada por diversos nomes além do de Buxtehude, o maior compositor alemão entre Schütz e Bach: Franz Tunder (1614¬ 1667), predecessor imediato de Buxtehude na igreja de Santa Maria de Lübeck; Heinrich Scheidemann (ca. 1596-1663), Johann Adam Reinken (1623-1722), (liante de quem Bach tocou, Nicolaus Bruhns (1665-1697), Vincent Lübeck (1654¬ 1740) e ainda Georg Bôhn (1661-1733), que sofreu influênciafrancesa.Buxtehude, o maior organista da Alemanha antes de Bach, levou a escola ao apogeu. Nascido em uma parte do Holstein então dinamarquesa, mas que logo se tornaria, e permaneceria, alemã, Buxtehude passou os primeiros trinta anos de sua vida na Dinamarca, onde compôs uma única obra, e os quarenta últimos na Alemanha: foi organista sucessivamente em Hãlsinborg (cidade atualmente sueca, mas então dinamarquesa), em 1657-1658, na paróquia alemã de Santa Maria de Elseneur (1660) e em Santa Maria de Lübeck, a partir de 1668, como sucessor de Franz Tunder, cuja filha desposou, conforme a tradição. Compôs para o órgão tocatas, prelúdios e fugas, passacalhas, corais ornamentados, corais com variações. De um total de aproximadamente noventa peças, cerca de 24 são do tipo prelúdio e fuga, e cerca quarenta prendem-se ao gênero do coral. Deve-se notar que os prelúdios e fugas de Buxtehude não são dípticos, como os de Bach, mas peças sem solução de continuidade, em que se alternam episódios de fuga e outros de caráter improvisado e virtuosístico. PACHELBEL E A ESCOLA DE ÓRGÃO DA ALEMANHA DO SUL Caracterizada por maior rigor e uma escrita mais cerrada, menos voltada para os contrastes e a violência do que para a clareza da forma, o equilíbrio e a concisão, a escola do Sul também não deixou de apropriar-se — o que é um fato capital — do coral protestante, naturalmente estranho à Alemanha meridional e à Áustria, ambas católicas. Além de Pachelbel, nascido e morto em Nuremberg, os principais representantes dessa escola — herdeira em linha direta de Girolamo Frescobaldi — foram Johann Jacob Froberger (1616-1667), aluno de Frescobaldi, Johann Casparkerle (1627-1693), que foi organista da catedral de Santo Estêvão em Viena, e Georg Muffat (1653-1703). Assim como Kerll, Froberger viveu muito tempo em Viena. Pachelbel, aluno de Kerll em Vienna, ocupou cargos em Eisenach (1677) —
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onde fez amizade com a famíha Bach —, em Erfurt (1678), nas cortes de Stuttgart e de Gotha (1690-1695), e, finalmente, até o fim de sua vida, na Sebalduskirche de Nuremberg. Compôs prelúdios de coral, chaconas, tocatas (mesmo nestas, Pachelbel renunciava ao virtuosismo), 94 fugas sobre o Magnifícate fantasias. A importante coletânea para teclado, Hexachordum Apollinis, publicada por Pachelbel em 1699, e cujo título é uma homenagem a Sweelinck, foi simultaneamente dedicada a Buxtehude e ao músico vienense Ferdinand Tobias Richter: para além das diferenças, as escolas do Norte e do Sul conheciam, no fundo, o que as unia. A OBRA VOCAL E INSTRUMENTAL DE BUXTEHUDE A maior parte de todos esses compositores não se limitou a compor para órgão. Buxtehude também foi importante como autor de cantatas. Froberger destinou todas as suas obras ao teclado, sem contudo jamais precisar se eram para órgão, cravo ou clavicordio. Foi igualmente o verdadeiro criador da suíte de danças em sua ordem mais freqüente: allemanãe-courante-saiabanda-giga. E Muffat, natural de Megève, introduziu na Alemanha o estilo de Lully (abertura àfrancesa,suíte de danças), assim como o concerto grosso à italiana. As obras vocais de Buxtehude — que vão do gênero do concerto espiritual, do coral e da ária (a influência do pietismo nascente é, no caso, particularmente clara) ao da cantata em várias partes — exerceram, como todas as escritas para órgão, um profundo efeito sobre Johann Sebastian Bach, sobretudo no período de Weimar (1708-1717): na obra de Bach, são, por assim dizer, "buxtehudianas", a célebre Tocata e fuga em ré menor BWV 565 para órgão e as Cantatas BWV106 (Actus tragicus) e BWV 4 (Christ lag in Todesbanden). Da centena de composições sacras de Buxtehude que subsistiram, é bastante provável que muitas tenham sido ouvidas pela primeira vez nas famosas Abendmusiken [Músicas à tarde], orgulhosamente descritas pelo compositor como "nunca antes realizadas em outros lugares". De fato, na igreja de Santa María de Lübeck, havia o hábito de, todas as quintas-feiras, o organista dar uma espécie de récita pública, alheia às funções do ofício. Tendo decidido conferir a essas manifestações uma nova forma, Buxtehude transportouas para a época do Advento. A partir de 1673, durante os cinco domingos que precediam o Natal, realizaram-se, depois da prece do meio-dia, as Abendmusiken acima mencionadas. Executava-se, a cada vez, um conjunto coerente (que se podia estender por vários domingos), constituído por música sacra vocal e instrumental, bem como de trechos para órgão. Dessas Abendmusiken infelizmente só restaram três libretos, cuja música perdeu-se. Sabe-se, contudo, que em 1705, foram usados, nessas Abendmusiken, dois coros de trompetes e tímpanos, dois de trombetas de caça e de oboés, vinte violinos, quatro coros nas tribunas e um na nave e, evidentemente, os quatro órgãos. Por outro lado, é bem possível que a espécie de oratório descoberta por pesquisadores em 1927-1928 e publicada em 1939, com o título de Dasjüngste Gericht [O Juízo Final], seja uma das Abendmusik de Buxtehude.
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No domínio instrumental, Buxtehude escreveu ainda peças para cravo (25 delas foram encontradas só no ano de 1942), entre as quais dezenove suítes e seis séries de variações, bem como 21 sonatas em trio, sete das quais foram publicadas em 1649, sete em 1696 e sete permaneceram manuscritas. Nesse último domínio, Buxtehude foi, juntamente com seu compatriota Johann Rosenmüller {ca. 1620¬ 1684), um dos pioneiros na Alemanha. As sonatas em trio de Buxtehude têm a particularidade de exigir uma viola da gamba, e, portanto, de opor expressamente esse instrumento "antigo" ao instrumento "moderno" na época, que era o violino. A ÓPERA BARROCA ALEMÃ Principalmente nas cortes, um pouco menos nas cidades, os países germânicos estiveram expostos, a partir da segunda metade do século XVII, a uma acentuada influência musical a um só tempo francesa e italiana. Por vezes tinha essa influência o caráter de uma verdadeira colonização, diante da qual os compositores "locais" encontravam dificuldades para impor-se. Mas ela também produziu efeitos benéficos. Por volta de 1700, os países germânicos estavam, em termos de ópera, muito atrasados em relação à França e à Itália, e mesmo à Inglaterra. Desde a metade do século XVII, a corte de Viena havia dado o exemplo, fazendo representar óperas italianas de Cavalli e Cesti, costume que deveria prosseguir até o final do século XVIII. Vimos como, no final da vida, Schütz lamentara a presença em Dresden — cidade que, principalmente com Johann Adolf Hasse (1699-1783), haveria de se tornar, pouco depois, a capital do italianismo musical na Alemanha — de uma trape de músicos dirigidos pelo castrato italiano Bontempi. A Daphne de Schütz, obra infelizmente perdida, ficou como uma experiência isolada (1627). Foi em Hamburgo — cidade que desempenhou, em relação à ópera barroca alemã, o mesmo papel que exerceu Veneza em relação à ópera italiana — que se criou, em 1678, o primeiro teatro lírico público da Alemanha: essa Gãnsemarktoper— Ópera do Mercado de Gansos — foi inaugurada com uma obra de Johann Theile (1646¬ 1724), aluno de Schütz, e passou por um período de grande sucesso com Johann Sigismund Kusser (1660-1727) e sobretudo com o aluno deste, Reinhard Keiser (1674-1739), que ali acolheu o jovem Haendel. Em 1725, Telemann fez representar nesse teatro o intermezzo buffo chamado Pimpinone, oito anos antes da estréia da famosa La serva padrona [A criada patroa] de Pergolesi. Keiser, que é o principal representante da ópera barroca alemã no início do século XVIII, nasceu em Teuchem, perto de Weissenfels, na fronteira da Saxônia com a Turíngia, e foi aluno não somente de Kusser, mas também de Johann Schelle (1648-1701), na igreja Santo Tomás de Leipzig. Diretor do Gãnsemarktoper em 1703, Kantor da catedral de Hamburgo em 1728, escreveu regularmente óperas (até quatro ou cinco em um ano): Odysseus [Odisseu, 1702], Orpheus [Orfeu, 1702], Der durch den Fall des grossen Pompejus erhõhte Julius Casar [Júlio César elevado pela queda do grande Pompeu, 1710] e sobretudo Croesus [Creso, 1710, modificado em 1730]. Essas
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obras são notáveis ao mesmo tempo pela síntese entre as amplas curvas do bel canto italiano e as intervenções mais breves do Lied alemão e pela fusão das tramas poéticas e musicais. Quando Keiser morreu em Hamburgo, a ópera alemã já estava em pleno declínio diante da ópera italiana, logo personificada por Hasse. Foi preciso esperar quase meio século, em particular por Mozart, para vê-la ressurgir. A MÚSICA MSTRUMENTAL Com relação à música instrumental, a despeito do trabalho de compositores como Johann Krieger (1649-1725), Johann Kuhnau (1660-1722) e sobretudo Johann Kaspar Ferdinand Fischer (1650-1746), o cravo jamais teve na Alemanha, antes de Bach, a mesma importância que o órgão. Natural de Nuremberg, Krieger passou temporadas na Dinamarca e na Itália e terminou a vida a serviço da corte da Saxônia. Seu irmão, Johann (1652-1735), era particularmente apreciado por Haendel. Kuhnau, sucessor de Schelle e predecessor de Bach na igreja de Santo Tomás de Leipzig, também autor de cantatas e de peças para órgão, deve uma boa parte de sua celebridade às Histórias bíblicas, obras de programa que adaptavam para o teclado do cravo os princípios da sonata em trio. Já Fischer, que passou a segunda metade da vida em Rastatt, foi um dos primeiros compositores, juntamente com Muffat, a introduzir na Alemanha o estilo instrumental originário da suíte de balé francesa, tal como foi consagrada por Lully. O seu opus 1, Diário da Primavera (Augsburgo, 1695), compreende oito suítes de orquestra para conjunto de cordas a cinco partes, com trompetes. O opus 2, Peças para cravo (1696, reeditado em 1699), reúne oito suítes para teclado das quais seis acrescentam, às quatro danças (aZZemande-cowrawre-sarabanda-giga) da forma de suíte fixada por Froberger na Alemanha, "galanteries" (minuetos, gavotas) à francesa. Fischer foi unanimemente reconhecido como um dos maiores cravistas de sua época, e sua Ariadne musica [Música de Ariadne] foi certamente uma das fontes de inspiração para O cravo bem temperado, de Bach. A MÚSICA DE CÂMARA Vimos que a música de câmara, ou de orquestra, que Fischer também compunha, teve seus grandes momentos com Buxtehude e Rosenmüller, mas igualmente com Johann Pezel (1639-1694) e sobretudo com Heinrich Ignaz Franz Biber (1644¬ 1704), o maior representante da escola de violino na Alemanha da época barroca. Ninguém igualou Biber nesse domínio, nem seu mestre Johann Heinrich Schmelzer (ca. 1630-1680), que fez a maior parte de sua carreira em Viena, onde escreveu principalmente músicas de balé para as óperas do repertório, nem seu aluno Johann Georg Pisendel (1687-1755), autor de concertos à maneira de Vivaldi. Nascido na Boêmia e falecido em Salsburgo, onde passou a segunda parte da vida, Biber fez progredir enormemente—virtuose que era—a técnica do violino, principalmente a utilização das cordas duplas e o emprego das posições elevadas. Nas dezesseis
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sonatas Sobre os mistérios do rosário (ca. 1674), Biber se vale, em relação à tonalidade de cada peça, das mais diversas scordature — modos de afinar o instrumento que permitiam alargar sua tessitura, variar seu colorido ou facilitar o equacionamento de certos problemas técnicos. As oito sonatas para violino e baixo compostas por Biber (1681) revelam o conhecimento que ele tinha dos estilos francês (danças ornamentadas), italiano (técnica da variação) e alemão. Escreveu também óperas, das quais uma única foi preservada, e principalmente música religiosa (Requiem). O BARROCO MUSICAL AUSTRÍACO Na Áustria, quando foi nomeado, em 1715, mestre de capela da corte de Viena (mestre da Capela Imperial), Johann Joseph Fux (1660-1741) sucedeu a uma linhagem de italianos. Lado a lado com o italiano Antonio Caldara (1670-1736) e com Johann Georg Reutter, o Jovem (1708-1772), que, aproximadamente em 1740, contratou Haydn para a capela da catedral de Santo Estêvão, Fux personifica o barroco musical austríaco do reinado do imperador Carlos VI. Com Fux, a Capela Imperial atingiu um brilho intenso, que jamais iria reencontrar com seus sucessores. Fux deixou mais de quinhentas obras vocais e instrumentais, religiosas e profanas, que fazem dele, a um só tempo, um mestre da tradição polifónica herdada de Palestrina e um dos fundadores da música austríaca do século XVIII. O reconhecimento de Fux pela posteridade veio-lhe essencialmente do Gradus ad Parnassum ( 1725), sem dúvida o mais notável tratado de contraponto jamais escrito. Graças ao Gradus, inúmeros compositores, direta ou indiretamente, haveriam de aprender as leis do ofício, entre os quais Haydn, Mozart, Beethoven e Schubert.
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Uma música "restaurada"? Em 1660, quando Carlos II voltou à Inglaterra para tomar posse do trono dos Stuart, houve uma explosão de alegria em todo o reino. Samuel Pepys, futuro alto funcionário e amante da música, deixou-nos um testemunho da alegria que se manifestava nas tabernas de Londres durante os dias que precederam o desembarque do príncipe. Não era uma questão de princípios políticos, mas de modo de vida: ricos e pobres, artesãos e burgueses, todos estavam fartos de quinze anos de uma ditadura que só falava em moralidade e em Bíblia. Os músicos decerto não foram os últimos a festejar o acontecimento: iam finalmente reconquistar uma ocupação e uma razão de ser. O jovem rei tinha reputação de ser amigo dos prazeres; podia-se contar com ele para organizar festas e bailes. Os teatros seriam reabertos; nas igrejas ressoariam novamente os grandes hinos triunfais. As pessoas ligadas à música teriam feito melhor moderando suas expectativas. Era verdade que Carlos II era um hedonista, mas também era prudente. Sofrerá anos no exílio e não queria correr o risco de desagradar a opinião pública. A restauração fitúrgica foi discreta para não descontentar ninguém. As festas foram numerosas, e nelas não se buscou propriamente a virtude, mas evitaram-se as ostentações faustosas. Não era o caso de chamar para elas a atenção dos devotos puritanos, sinceros ou políticos. Mas o pior era que, se o rei era músico, como tradicionalmente acontecia na família, ele tomara gosto pelas músicas que lhe ha-
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viam feito esquecer os aborrecimentos do exílio. Era à moda italiana ou à francesa que ele desejava o seu lazer musical, e não segundo os usos de seu reino. Os poucos sobreviventes do reinado de Carlos I não deviam esperar um retorno à idade de ouro. A Henry Lawes (1596-1662) foram confiados os cuidados com os hinos da coroação, mas essa era apenas uma forma de render homenagem à memória de seu irmão William, músico como ele, morto pela causa real em 1645, no cerco de Chester. Christopher Gibbons (1615-1676), filho do grande Orlando, foi feito organista da Capela Real e depois da abadia de Westminster: mais uma vez uma homenagem era prestada mais ao nome do que ao apreço pelo estilo musical do nomeado. Os lugares de importância foram reservados aos músicos modernos, os que sabiam que os bons ares vinham de Paris. Alguns deles haviam seguido o rei em suas aventuras, como aquele "capitão" Cooke (1612-1672), que foi feito mestre do coro infantil da Capela Real. Outros não haviam participado ativamente da guerra civil, como Matthew Locke (1622-1677), que contribuíra para manter viva a música de teatro durante os anos da ditadura puritana, mas apenas em reuniões privadas. Locke tinha um temperamento execrável e dava-se ares de músico de vanguarda, escrevendo para teatro e para a capela católica da rainha Catarina, de quem era organista. As músicas de cena que compôs para Macbeth e para A tempestade, de Shakespeare, dão mostras de um espírito romântico, original e amante do pitoresco. Mas Carlos II era obcecado com a perfeição da instituição musical que Lully soubera criar em torno do rei da França, Luís XTV", que era seu primo. Como Luís XTV, Carlos II tinha que ter seus "Vinte e Quatro Violinos do Rei". Chegou mesmo a tentar atrair Lully para Londres. Não conseguindo, rebaixou-se a contratar músicos de menor envergadura, um Louis Grabu (?- ca. 1694) ou um Robert Cambert (1628-1677), bom aluno de Chambonnières. Estes músicos estavam longe da mediocridade, mas para eles a tradição inglesa era e permaneceu sendo incompreensível. Esse recrutamento externo foi um paliativo provisório. A ambição do rei era criar uma equipe de músicos de origem inglesa, mas formada segundo os modelos parisienses. Foi assim que o jovem Pelham Humphrey (1647-1674), depois de ter feito sua primeira formação com Henry Cooke, foi enviado à França e à Itália para passar três anos (1664 a 1667) e desembaraçar-se das maneiras provincianas. Humphrey morreu muito jovem para que se possa apreciar o efeito dos contatos que manteve no continente. Ê certo que os motetos que compôs depois que voltou para a Capela Real devem muito de seu valor expressivo aos modos da ópera italiana que ele conheceu em toda força e juventude de seu desenvolvimento. Foi também da Itália que Humphrey trouxe o uso de sustentar com o som de vários instrumentos o canto de igreja: técnica bastante útil para um país em que não havia mais órgãos, mas também elemento de ruptura com a tradição do motet a cappella que prevalecera durante toda a época pré-revolucionária. No teatro, o
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gosto italiano de Humphrey acomodou-se perfeitamente às audácias de um Matthew Locke. Separadamente ou em conjunto, eles compuseram várias "máscaras", músicas para intermezzi, canções e danças incorporadas às representações faladas, herdeiras incertas da tradição shakespeareana. JOHN BLOW A personalidade mais rica dessa geração de meninos perdidos foi John Blow (1649¬ 1702). Também foi ele quem conservou um vínculo mais forte com a música inglesa de antes do período Cromwell, escapando às duvidosas influências de um contato muito prolongado com o espírito franco-italiano. Como Humphrey, recebeu sua primeira formação na Capela Real sob a tutela de Henry Cooke. Aos quinze anos, mostrou-se capaz de escrever, a pedido de Carlos II, um moteto dramático à moda de Carissimi. Teve educação musical complementar com Christopher Gibbons e com um certo John Hingston, que fora professor de música das filhas de Cromwell. Gibbons associou-o ao seu posto de organista em Westminster, e talvez por isso Blow tenha sido para Gibbons um herdeiro inteligente e inovador, que conferiu à nova música inglesa uma feição original. Gentleman da Capela Real em 1674, nesse mesmo ano sucedeu Humphrey como mestre do coro infantil. Tinha ainda 25 anos, mas esse posto assegurou-lhe uma influência significativa no desenvolvimento musical da Inglaterra durante os últimos decênios do século. Acrescentemos que Blow teve como aluno o jovem Henry Purcell, dez anos mais novo que ele. Em 1678, Blow abandonou suas funções em Westminster para encarregar-se dos coros da catedral de São Paulo, que Wren estava acabando de reconstruir depois do incêndio de 1666, que havia devastado o centro de Londres. Depois da morte de Purcell, retomou suas funções em Westminster. Até 1708, Blow atuou como o defensor de um conservadorismo inovador que fez dele o último elo da corrente dos grandes músicos britânicos. Tentou manter vivos e alimentados pelo mesmo fôlego o espírito do Renascimento e as aquisições da era barroca. Pouco conhecida, a produção de Blow é das mais importantes, em qualidade e quantidade. Compôs doze serviços religiosos e mais de uma centena de hinos, dos quais alguns em latim. Mas foi em outro terreno que ele deu vazão à sua originalidade. A admirável Venus and Adonis [Vénus e Adônis], de 1684, dá provas de uma sensibilidade quase mozartiana. Blow soube dar um toque muito pessoal a obras de circunstância, como as odes fúnebres com que saudou a memória da rainha Maria (1694) ou de Purcell (1695), ou as grandes peças que comemoravam coroamentos, a inauguração de novas construções e — gênero que nasceu na Inglaterra — a festa de Santa Cecília, padroeira dos músicos. A música instrumental — sonatas para dois violinos e baixo contínuo, suítes para teclado — completa o catálogo rico e diversificado das composições de John Blow.
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Henry Purcell (1659-1695) Henry Purcell é, com toda a evidência, o mais célebre dos músicos ingleses, e o mais inglês entre os grandes músicos. Nasceu às vésperas da restauração de Carlos II, no meio musical britânco: seu pai, Thomas, que acumulava na corte uma série de funções importantes, e seu tio, também chamado Henry, foram ambos nomeados em 1660 gentlemen da Capela Real. Outro de seus tios, chamado Daniel (1660¬ 1717), chegou a ter respeitável reputação como músico de teatro e organista. E o próprio Henry Purcell veio a ter descendentes músicos, que mantiveram o nome da família nos postos da Capela Real ou como organistas até 1770. Há poucos documentos sobre a vida de Henry Purcell. Descartadas certas especulações pouco verossímeis que constam de textos claramente posteriores à sua morte, só merecem confiança os documentos oficiais que assinalam as etapas de sua carreira. Sabe-se que, ainda muito jovem, ele foi admitido entre os doze meninos cantores da Capela Real. É provável que ele já estivesse lá na administração de Henry Cooke, e certamente já estava na de Humphrey. Não é impossível que Purcell tenha sido autor de uma ode que cantou, exatamente aos onze anos, diante de Carlos II. O certo é que sua voz mudou em 1673 e ele deixou a Capela Real. Recebeu então o seu primeiro posto oficial: "Conservador, reparador e afinador dos órgãos, portáteis ou outros, virginais, flautas e outros instrumentos de sopro de Sua Majestade... como assistente de John Hingston, sem ordenados, mas com direito de reversão por morte ou impedimento do referido Hingston." Tratava-se de uma espécie de condição de aprendiz que conferia certo status ao antigo membro da Capela Real, que, de resto, não tinha qualquer necessidade de auxílio financeiro. Todos os meninos cantores que deixavam a Capela Real continuavam a ser assistidos por ela enquanto prosseguiam seus estudos musicais ou esperavam por um posto remunerado. Thomas Purcell, que contava com bons rendimentos provenientes dos inúmeros cargos oficiais que exercia, estava em condições de subvencionar as necessidades do filho. O posto de conservador-afinador dos instrumentos reais tinha um aspecto manual que não era então julgado hurrulhante por ninguém. Grandes músicos haviam ocupado esse posto, que proporcionava ótimas condições para conhecer o aspecto técnico dos instrumentos. Observemos en passant que, durante muitos anos ainda, quando se fala de órgão na Inglaterra, fazse referência a pequenos instrumentos sem pedal e muitas vezes dotados de um único teclado. Na ilha, o nobre instrumento conhecido dos músicos continentais só iria surgir, ou antes, ressurgir, bem mais tarde. Já se falou de John Hingston em associação com o jovem Blow. Antes de engajar-se no serviço de Cromwell, Hingston vivera na corte de Carlos I. É de todo provável que esse músico, ele mesmo formado pelo grande Orlando Gibbons, tenha transmitido ao jovem que lhe era confiado como aprendiz o gosto e o conhecimento de uma música já velha de meio século e que praticamente nunca mais
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fora tocada nas cerimônias oficiais. Nesses anos de formação, que se estenderam até 1677, não faltaram professores para o jovem Henry: primeiro o pai e John Hingston, depois John Blow, apenas dez anos mais velho que ele. Não houve, com este último, relações oficiais, uma vez que ele não fazia parte da Capela Real; mas Blow interessou-se por Purcell e deu-lhe aulas com freqüência. Durante três anos seguidos encontramos registros de pagamentos feitos a Purcell por ter afinado o órgão de Westminster, do qual Blow era titular. Também sabemos que Purcell copiou partituras para os serviços religiosos da abadia. Tudo contribuía para assegurar-lhe uma cultura musical rica e enraizada na tradição. Quando Purcell tinha dezesseis anos, sua primeira obra foi publicada em uma coletânea: era uma canção, When Thirsis [Quando Tirse]. Dois anos mais tarde, Purcell pôde dar por encerrados os anos de aprendizagem e seu mérito foi reconhecido por um título oficial: compositor oficial para os violinos da Capela Real. Dois anos depois, substituía Blow, em 1679, nos órgãos de Westminster. Casou-se e desde então levou a vida sem história, típica dos músicos felizes. Em 1684, encontramos o nome de Purcell na lista dos gentlemen da Capela Real, onde consta como baixo. No ano seguinte, foi nomeado cravista da câmara privada do rei. Intérprete e compositor oficial de uma monarquia que seria agitada por muitas tormentas, jamais deixou de contar com o favor real. Isso não impediu que ele passasse por graves dificuldadesfinanceiras.Os reis sucediam-se, e as opiniões políticas e religiosas variavam, mas o tesouro real nunca estava suficientemente cheio. Purcell teve que chorar miséria muitas vezes para conseguir receber pagamentos devidos. Este foi o limite extremo de suas aventuras. Aliás, Purcell não conheceu outras aventuras que não as de suas obras, da interpretação ou publicação delas, e as de sua família, o nascimento de uma criança ou a morte de outra. Nesse plano, não sofreu mais do que a maior parte de seus contemporâneos: dos seis filhos que teve, apenas três sobreviveram. Só por duas vezes o nome de Purcell apareceu em documentos públicos, de maneira um tanto inesperada. Em 1684, os advogados de Londres resolveram equipar sua igreja com um órgão. Puseram em competição o alemão Bernhardt Smith, que fazia uma bela carreira na Inglaterra com o nome de "Father" Smith, e o inglês Renatas Harris. Purcell e Blow foram convidados para tocar o instrumento de Smith, e o italiano Draghi para defender as cores de Harris. Finalmente, o órgão de Smith foi escolhido, depois de prolongadas querelas. Em 1689, por ocasião do duplo coroamento de Guilherme II e Maria II, sua esposa, Purcell foi repreendido pelo capítulo da abadia de Westminster porque admitira convidados na tribuna do órgão, cobrando entrada. Foi condenado a entregar ao tesoureiro da abadia as somas recebidas na ocasião, sob pena de ter seus emolumentos retidos. O caso não foi adiante. É bem pouco para que se possa ter alguma noção do desenvolvimento de toda uma vida. Mas Purcell viveu pela música e para a música. O talento excepcional de que era dotado levou-o a cultivar todos os domínios da arte musical tal como ela
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era praticada em sua época. E conseguiu isso com aparente facilidade e demonstrando extrema sensibilidade. Não por acaso, tem sido tantas vezes comparado a Mozart, com quem partilha muitas qualidades. Menos precoce do que Mozart, sua morte, aos 36 anos, não lhe deu oportunidade de fazer escola, nem de levar às últimas conseqüências às transformações que poderia ter produzido na corrente musical inglesa. Mas compreende-se que os contemporâneos de Purcell tenham visto nele um "Orfeu britânico" e tenham reconhecido em sua obra "o modelo de todas as graças que a música pode produzir".
colaborou é formada pelos melhores nomes da época: Dryden, d'Urfey, Southerne, Shadwell e muitos outros. Compunha mdiferenciadamente para o gênero cômico (vinte espetáculos) ou trágico. O nível de colaboração podia Hmitar-se a duas ou três árias e um intermezzo instrumental, mas podia também chegar a uma dezena de peças: o Don Quijote tornou-se, assim, uma espécie de opereta, ao passo que a riqueza e a complexidade da ouverture de Abdelazer [Abdelasar] fazem dela uma verdadeira suíte de danças.
A MÜSICA DE CENA
Até aqui, era apenas hors-d'oeuvre. O ponto máximo da carreira de Purcell foi Dido and Aeneas. É difícil precisar a data em que foi composta essa ópera de Purcell (1689?), porque ela passou quase despercebida para os contemporâneos. Durante a vida do compositor, Dido and Aeneas teve apenas uma representação, no colégio feminino do respeitável Josias Priest, de Chelsea. Fenômeno estranho essa ópera, com personagens fortemente caracterizados, com uma espantosa flexibilidade melódica que escapa totalmente aos estereótipos já formados na França e na Itália, e única representante autêntica do teatro lírico britânico. A época preferiu obras completamente diferentes. O que se chamou de ópera com diálogos ou semi-ópera é uma forma bastarda, que trai a incapacidade de resolver o problema de prioridade: palavras ou músicas? Os enredos são complicados e carregados de episódios variados (dois deles são tomados de empréstimo ao que há de mais fantástico em Shakespeare). Continuidade é coisa que inexiste nessas obras, nas quais o músico encontrava um terreno livre para expressar-se sem ser pressionado pelas imposições da lógica. The Prophetess, or the History ofDioclesian [A profetisa, ou a historia de Diocleciano, 1690], King Arthur, or the British Worthy [Rei Artur, ou o bravo britânico, 1691], The Fairy Queen [A rainha das fadas], baseada em A Midsummer Night's Dream [Sonho de uma noite de verão, 1692], The Indian Queen [A rainha índia] e The Tempest [A tempestade], também baseada na peça homônima de Shakespeare, todas duas de 1695, formam um conjunto tanto mais homogêneo quanto Purcell nele só via, por sinal com toda a razão, pretextos para criar um certo clima poético-musical em que acabou se tornando mestre. A alternância entre sentimentalidade e uma comicidade por vezes bem vigorosa, um sentimento bastante justo do colorido musical, um não-sei-quê que tranforma o texto mais raso em verdadeira revelação fazem do Purcell dos últimos anos o mais sutil manipulador da palavra musical. Pode-se ter reservas diante das tentativas que fez para atingir uma expressão dramática que não era favorecida pelos libretos, mas no elegíaco, no narrativo e mesmo no cômico, Purcell é incomparável. A despeito das incertezas das "adaptações", Purcell captou a poesia de um Shakespeare como poucos músicos jamais fizeram. E os couplets dos camponeses de King Arthur revelam uma vigorosa alegria contestatária que sugere uma revisão da imagem muito fácil de um "doce" Purcell.
Talvez seja na música para teatro que o talento de Purcell tenha manifestado a originalidade mais surpreendente. A Inglaterra de sua época desconhecia ainda os esplendores da ópera à italiana ou à francesa, em que o canto, a orquestra e a dança formavam um conjunto contínuo em uma sucessão bastante plana de recitativos e árias. Já o teatro inglês podia oferecer uma variedade bastante flexível de formas: desde uma simples canção ou ária intercalada em uma tragédia ou em uma comédia, como Shakespeare e seus contemporâneos faziam com freqüência, até uma semi-ópera, com alternância de cenas inteiramente faladas e fragmentos musicais ligados uns aos outros por uma lógica bem elástica. Em todos os seus diversos aspectos, a arte lírica inglesa tem uma origem comum, a "máscara" elisabetana, aquela mescla, em doses variáveis, de poesia, música e danças, de canto e interlúdios orquestrais, e ainda, eventualmente, de malabarismos e acrobacias, tudo se passando em cenários construídos com extrema riqueza, para onde acorriam às vezes espectadores nobres. Por mais sedutora que fosse, a fórmula da "máscara" era reservada para ocasiões solenes. Músicos como Locke ou Blow, homens de letras como Dryden, viviam obcecados com a preocupação e o empenho em encontrar uma forma de teatro público em que se equilibrassem o texto dramático e a música. As poucas tentativas que precederam a entrada em cena de Purcell redundaram em fracassos artísticos e comerciais. O Cerco de Rodhes, montado mais ou menos clandestinamente em 1656, ainda era uma variante do drama "à la Shakespeare", sobrecarregado por uma música (atualmente perdida) composta por cinco autores diferentes. Albion andAlbianus [Albion e Albianus], de Grabu (1685), era uma cópia de ópera à moda de Lully, cujo fracasso parece ter sido merecido. Mas, em 1685, havia já algum tempo que Purcell tinha entrado em contato com o teatro inglês. Fez sua estréia teatral em 1680, com algumas peças e árias que complementavam o texto de Theodosius [Teodósio], do medíocre Nathanael Lee. A justificada derrota da obra de Lee poupou apenas as duas tragédias para as quais Purcell compôs música. No que diz respeito ao teatro, o compositor foi pródigo. Em quinze anos, participou de 43 aventuras cênicas de que não tinha o comando, entre as quais não se contam suas semióperas, nem Dido and Aeneas [Dido e Enéias]. A lista de dramaturgos com que
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A MÚSICA RELIGIOSA
A MÚSICA INSTRUMENTAL
Essa capacidade de teatralizar textos por vezes fragmentários transfere curiosamente sua força a inúmeras composições religiosas, anthems com coro pleno ou versículos, que naturalmente se fizeram presentes na carreira do organista de Westminster. A síntese entre uma escrita muito marcada pelo italianismo e uma pofifonia que se situava voluntariamente na tradição de Gibbons e dos mestres elisabetanos faz da obra de igreja de Purcell a expressão mais perfeitamente equilibrada do anglicanismo. Sente-se nas composições religiosas de Purcell o desejo de criar uma liturgia solene e faustosa, mas distanciada do triunfalismo de Roma. Essa música tinha estreita correspondência com a arquitetura de Christopher Wren, que lhe é contemporânea. Como Purcell, Wren tomou de empréstimo aos italianos uma gramática da articulação, um vocabulário das formas, de que retirou proporções perfeitamente inglesas, em suas dimensões restritas (deixemos de lado São Paulo de Londres), produzindo um conforto quase doméstico. Esses dois artistas pertencem a uma mesma tradição, que permanece inglesa, sem contudo recusar as contribuições externas. E mostram, em suas realizações, a mesma imaginação transbordante: o arquiteto inventou formas novas para as cerca de sessenta igrejas de que dotou Londres depois do incêndio de 1666 e das quais cerca de metade subsiste até hoje; o músico renovou-se incessantemente na centena de hinos que escreveu em menos de quinze anos e aos quais é preciso acrescentar os três grandes ofícios religiosos que compôs. O material de base era sempre o mesmo: de três a oito vozes solistas, um coro, um conjunto de cordas. O resultado surpreende sempre pela variedade, que se estende às grandes odes compostas para cerimônias oficiais, coroamentos e exéquias. Purcell não tinha o que se pode chamar de estilo de igreja: era, antes de mais nada, um músico a serviço de um texto. Tratava as páginas religiosas em função de seu conteúdo dramático...
A música instrumental tem lugar reduzido no catálogo de composições de Purcell. Ainda jovem, ele compôs fantasias, chaconas ou pavanas apenas para cordas: escritas para violino, poderiam igualmente ser tocadas por violas; ignoram o baixo contínuo e situam-se na antiga tradição de um Dowland. Tais peças datam possivelmente de 1680. Nos três anos que se seguiram, Purcell compôs sonatas em trio, exatamente na época em que declarou: "A música ainda está na infância... na Inglaterra. Atualmente ela está aprendendo italiano e não poderia ter melhor mestre (...). Devemos ficar contentes por estarmos progressivamente nos civilizando." Essas 22 sonatas foram publicadas parcialmente em 1683, e em parte, como edição póstuma, em 1697, embora tenham sido compostas em conjunto. O comentário que Purcell apôs ao cabeçalho da publicação é uma maneira de, a um só tempo, reconhecer uma evidente referência italiana e proclamar a independência das composições inglesas diante do quase monopólio então exercido no meio musical por Nicola Matteis, italiano fixado em Londres desde 1672. A maestria do jovem compositor revela-se surpreendente em um gênero novo para ele e que a Europa inteira ainda mal conhecia, já que a grande voga corelliana só começaria a impor sua forma dez anos mais tarde. Essas sonatas, notáveis por sua qualidade, são ainda mais extraordinárias pela maneira por que deixam aparecer, sob a influência italiana, uma certa simplicidade melancólica, marca de fábrica da música inglesa para violas. Curiosamente, os contemporâneos de Purcell criticaram as sonatas por não serem mais italianas. O aristocrata e bom músico (pelo menos teórico) Roger Nort diria, anos mais tarde, dessa "nobre suíte de sonatas que, por mais impregnadas que estejam de algo inglês pelo qual foram indignamente desdenhadas, são música muito boa e bem-feita".
Os efeitos de tímpanos e trompetes que pontuam a Ode a Santa Cecília, de 1692, Hail Bright Cecilia [Salve, brilhante Cecília], são comandados pelas alusões marciais do poeta em seu texto, assim como a imitação do movimento das ondas no início de They that Go Down the Sea [Aqueles que vão para o mar]. Perde-se a fronteira entre o profano e o religioso. As reações da sensibilidade que uma ária para solista — como a célebre O Solitude [Ó solidão] —- pode provocar não são exatamente do domínio da igreja: sua aura de religiosidade romântica nem por isso deixa de ser tocante. Mas não é o caso de buscar a ambigüidade na música, como em uma paródia tradicional em que uma mesma arquitetura musical pode abrigar conteúdos os mais diferentes. Contribuindo para colocar a música britânica em uma senda da qual ela não mais se afastaria, Purcell costurou a harmonia ao texto com fios de tal modo firmes que fica impossível desligar-se deste último sem perder a compreensão daquela.
A sensibilidade de Purcell, tão a contento realizada na música de câmara, parece adaptar-se menos ao teclado. Um ou dois Voluntariespara órgão, muito brilhantes, constituem uma modesta contribuição à literatura desse mstrumento; e, por sinal, a mais conhecida das duas peças não é de Purcell, mas do obscuro Jeremiah Clarke. As suítes e peças diversas que Purcell compôs para cravo não deixam de ter seu encanto. Representam bem a transição entre os séculos XVII e XVIII. É contudo difícil compará-las à produção dos cravistasfrancesesou alemães contemporâneos; exceto quando Purcell conseguia abandonar-se a seu maravilhoso lirismo, transcrevendo uma peça para voz ou sobre ela fazendo bordaduras musicais. Purcell morreu no dia 21 de novembro de 1695. A mais bela homenagem que lhe foi prestada é a Ode sobre a morte do senhor Henry Purcell de John Blow, que retomou, em Westminster, o posto que anteriormente abandonara em favor do aluno de dezesseis anos. Com ele, uma certa forma de música inglesa iria sobreviver até 1708, já bastante desgastada e pronta para ceder à tentação representada pela Itália e seu produto miraculoso, a ópera. Após algumas primeiras tentativas
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bastante medíocres, a ópera acabou por triunfar naquela ilha, para a qual o vento soprou trazendo um jovem alemão, Georg Friedrich Haendel, proveniente da Itália, via Hanôver, tão genial quanto ambicioso, e que haveria de conquistar a Inglaterra com eficácia tão brutal quanto Guilherme, o Conquistador, o fizera seis séculos e meio antes.
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O impulso tomado pela evolução social e cultural na Europa no século XVIII fezse sentir mais cedo nas regiões ocidentais do continente e no meio urbano, onde a mobilidade social e as atividades culturais se desenvolveram mais amplamente. As cidades de comércio e os grandes portos marítimos, por um lado, os centros administrativos e as cidades universitárias, por outro, desempenharam nesse processo papéis de maior ou menor importância, conforme o caso. A arte monárquica, herdada do século XVII, permaneceu: a música de corte rodeava e glorificava os soberanos. As festas e as cerimônias também cumpriam função de relevo na vida da sociedade, sobretudo nos círculos em que se moviam os príncipes e a nobreza, tendo sempre a acompanhá-la a música apropriada às ocasiões mais diversas, como noivados, casamentos, funerais e recepções solenes. Embora alguns dos maiores compositores, como Haendel, na Inglaterra, e, durante certo tempo, Bach, na Alemanha, tenham conferido prestígio à música de corte, sua decadência começou a manifestar-se no correr do século. Com o fim do barroco, por volta dos anos 1750, a arte monárquica entrou em declínio. Mas uma arte aristocrática continuou a existir no domínio musical, e uma boa parte da produção de música ainda foi criada nesse círculo social — na Itália, por exemplo, e sobretudo na Alemanha — até que, finalmente, o advento da música nos meios burgueses irrompeu com uma importância que até então jamais lhe fora reconhecida. No século XVIII, paralelamente à vida musical da corte e dos salões aristocráticos, desenvolveu-se aos poucos uma vida musical nova, a da burguesia. Gozando
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de considerável prosperidade econômica, a burguesia em parte retomou elementos da vida musical da corte e dos salões da aristocracia, e em parte criou, já em meados do século, os elementos de uma cultura musical autônoma, sobretudo nas grandes cidades européias, còmo Londres, Paris, Leipzig, Hamburgo, Viena, Veneza e Nápoles. Há nisso uma transformação profunda e importante para a vida musical do futuro, e, em particular, para a do concerto público. Passara-se da execução em círculos privados à execução em público, e da opera seria à ópera cômica (na Alemanha, também ao Singspiel e ao novo Lied): em suma, da dominação de uma cultura musical de corte à de uma cultura musical mais complexa, mais aberta e mais adaptada à classe média. Se a classe burguesa ascendente, mais ou menos consciente da vantagem cultural que sobre ela guardava a classe rival, terminou imitando-a em certos domínios, o fez segundo a mentalidade e o estilo de vida que lhe eram próprios, de modo a afirmar a própria personalidade e o próprio prestígio. Nesse contexto, a música assumia, por vezes, a função de signo ou de símbolo de um estatuto social. Mas se, em sua conquista da música, os burgueses não escapavam de imitar a aristocracia e mesmo a corte real, esta última também era imitada pelos aristocratas. Já no reinado de Luís XTV, os divertissements, por exemplo, tinham a função de comemorar algum evento importante e podiam ser oferecidos pelo rei em homenagem a uma personalidade, ou em recompensa por seus méritos. O fato de serem criadas pelos mais destacados compositores, como Philidor e Delalande (e, no século XVII, por Lully e Boesset), assegurava o prestígio dessas peças. A aristocracia, porém, logo apropriou-se do gênero, que deixou de ser uma exclusividade da corte. Composições feitas para um dia, para um sarau noturno, não estavam destinadas a sobreviver àqueles a quem adulavam. Entretanto, cumpriam muito bem sua função social do momento. Os divertissements constituem um exemplo de obras que se assinalam por características apropriadas a sua função social, mas cujo valor artístico é, o mais das vezes, menor ou inferior. Longe de ser tão instruído e refinado quanto o público aristocrático, o público burguês estava igualmente longe de possuir uma cultura musical comparável à daquele. Apesar do seu interesse pela música, era freqüente que esse novo público manifestasse um gosto bem medíocre ou mesmo bastante vulgar. Era característica da mentalidade desse público a opinião — corrente na Alemanha, por exemplo — segundo a qual a música tinha o poder de aliviar o peso dos esforços e do cansaço de um dia dedicado (pelo burguês) a tratar de negócios, a ocupar-se com números e contas. Também com freqüência, as motivações do público musical parisiense da primeira metade do século XVIII eram de natureza mais social que artística: por essa época, era comum apreciar-se a música mais pelo que ela podia acrescentar à vida mundana e à moda, assim como a uma educação de elite — objetivo que a burguesia se esforçava por alcançar —, do que por seu valor estético próprio.
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No século XVIII, o público parisiense favorecia competições entre virtuoses: violinistas como Guignon e Anet — mais tarde, Guignon e Mondonville —, ou cantoras como Todi e Mara. Nessa época, o intérprete procurava surpreender e causar pasmo pelo caráter original e engenhoso de seu desempenho, encorajado a tanto por um público às vezes superficial e freqüentemente pouco instruído. Essa prática foi levada ao extremo sobretudo na Itália. Na Alemanha, compositores como Reinhard Keiser e outros chegaram a ultrapassar as exigências do público na composição de suas óperas. Em seu esforço de seduzir as platéias, Campra e Danchet, por sua vez, introduziram numerosas modificações em suas obras líricas, ao sabor da acolhida de cada representação. Para satisfazer um público novo e variar o prazer dos ouvintes, organizadores e compositores foram levados a fazer-lhes concessões, aceitando soluções de compromisso. Cortar era um procedimento de uso muito corrente. Havia o gosto por costurar fragmentos diversos (que se apresentavam sob o nome, então muito apreciado, de pots-pourris) e por introduzir cortes nas obras menos acessíveis, recompondo-as pela escolha do que tivessem de mais leve, com o objetivo de torná-las de mais fácil aceitação pelo público. Por meio de tais concessões, as platéias eram levadas a admitir um pouco mais de "música erudita". No século XVIII, as peças curtas, ligeiras, estiveram em grande moda, o que influenciou sua publicação: Ballard imprimiu, em Paris, volumosas coletâneas. A música não era objeto apenas de concertos públicos; com ela se faziam também saraus a domicílio, que reforçavam a distinção social. A música, aos poucos, foi se tornando parte da vida social, no círculo familiar e de amizades da casa burguesa, como outrora do salão aristocrático, nos espetáculos e nas festas. Sob a forma de freqüentação dos concertos, saraus musicais a domicílio ou atividade musical de amadores, a música passou a ser, pouco a pouco, uma exigência social e um marco disimtivo da família burguesa. O piano, esse símbolo da prosperidade burguesa, faria sua entrada um pouco mais tarde nas casas da burguesia, e o estudo de piano, principalmente pelas moças, ficou sendo um "imperativo social", um signo de boa educação. Aí está uma das raízes sociais de um outro fenômeno importante, que haveria de se expandir nos meios burgueses, sobretudo na Alemanha: o amadorismo musical, originário em parte do amadorismo dos aristocratas. Os diversos convivia musica e collegia musica, surgidos desde o fim do século XVI, eram no início, de modo geral, corais de música sacra. No século seguinte, foram cultivados pelos instrumentistas amadores. No século XVIII, tais conjuntos chegaram a dar, pode-se dizer, uma fisionomia particular à burguesia alemã: a música de amadores de condição burguesa ajudou essa classe a tomar consciência de si mesma, funcionando a música como um vínculo social de reunião e de unificação. Essa situação persistiu ao longo de todo o século, e, em parte, no século XIX. Juntamente com as bandas municipais, essas mstítuições musicais de amadores constituíam, de certa forma, uma réplica da burguesia às instituições musicais prin-
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cipescas e aristocráticas, às capelas com orquestras das cortes e dos palácios. E o que é mais importante: os próprios compositores, que até então se voltavam com maior freqüência para a corte e para o palácio, começam a aproximar-se desses Kenner und Liebhaber [conhecedores e admiradores], aos quais até mesmo um periódico, Der Musikalische Dilettante [O diletante musical], foi consagrado a partir de 1769. O nascimento da crítica musical foi um acontecimento de imensa importância para a vida musical do século XVIII. Essa atividade não cessaria de existir, de então por diante, até os nossos dias, assumindo um papel cada vez mais relevante. Até aproximadamente a metade do século XVIII, prevaleciam nos escritos sobre música comparações e paralelos, polêmicas e querelas em torno de assuntos de caráter preferentemente geral, como as questões de melodia e de harmonia, ou de música francesa e italiana. Aqui e ali, no entanto, começaram a manifestar-se julgamentos sobre uma obra musical particular ou sobre a arte de determinado compositor. Podem-se 1er as primeiras críticas musicais propriamente ditas, em Londres, nos jornais The Spectator e The Guardian, e, em Paris, no Mercure Galant, ou seja, em publicações não profissionais. Em parte sob influência dos órgãos desse gênero, J. Mattheson começou a publicar, em Hamburgo, em 1713, seu periódico Der Vernünftler [O argumentador], cujo objetivo era a edificação cultural das classes médias. Um pouco mais tarde, sua revista Critica Musica acolheria críticas musicais das obras e de suas orientações estéticas, o que foi retomado também pela revista dirigida por J. A. Scheibe, Der Critische Musicus [O músico crítico], célebre por ter publicado uma apreciação negativa sobre as composições de Bach em 1737. Essas duas revistas musicais deram livre curso às novas idéias üuministas francesas, que enfatizavam a primazia, nas artes, da natureza e da razão. Outras publicações periódicas, como a Musikalische Bibliothek [Biblioteca musical], dirigida por L. Mizler, um aluno de Bach em Leipzig, tinham antes um caráter científico. Na segunda metade do século XVIII, Berlim tornou-se o mais importante centro de crítica e de teoria musical na Alemanha, graças sobretudo aos trabalhos e aos periódicos publicados por EW. Marpurg, que, amigo de d'Alembert, de Voltaire e de outros enciclopedistas franceses, levava ao público alemão as idéias destes sobre música. A crítica musical era particularmente prolífica nos países germânicos, tanto mais que lá se publicavam, no século XVIII, muitas centenas de revistas e jornais. No século XVII, a música era tratada nos escritos dos teóricos e dos filósofos sobretudo como parte integrante de um todo mais vasto, ou como uma arte inferior subordinada à poesia ou às matemáticas. Com os filósofos das Luzes, no entanto, ela passou a ser concebida cada vez mais como uma arte distinta, em sua autonomia e sua especificidade. Uma abordagem mais empírica da música começou a impor-se, e progressivamente foi sendo reconhecido o seu valor próprio, estético e cultural. Até mais ou menos a metade do século XVIII praticamente não existia uma clara e nítida consciência da historicidade da música, que começou, a
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partir de então, a manifestar-se. As primeiras histórias da música propriamente ditas foram escritas na Inglaterra, na França e na Alemanha, tais como as publicadas por Hawkins, Burney e Bourdelot-Bonnet. Os filósofos deram-se conta de que a música é um fenômeno de importância social e que, ao mesmo tempo, é dificilmente explicável nos quadros do racionalismo corrente: este a subordinava à poesia por causa do elemento racional que, presente na lingagem verbal, faltava justamente à música. Até então, as únicas formas de música verdadeiramente apreciadas pelos teóricos e os filósofos eram a música vocal e a ópera, ou seja, a música que está ligada à palavra. Doravante, a música mstrumental, em pleno desenvolvimento, levantava um problema teórico: o do valor próprio da música enquanto tal. Em meados do século, a própria palavra "estética" é aplicada por A.G. Baumgarten, em seu livro Aesthetica, ao belo e à arte. Embora nenhum dos enciclopedistas fosse músico profissional — com exceção, até certo ponto, do autodidata Rousseau —, a música mereceu um espaço importante na Encyclopédie, o que decerto contribuiu para retirá-la do isolamento em que se achava até então. O nascimento e o desenvolvimento da ópera, gênero que obteve o maior sucesso junto ao público, contribuíram, por sua vez, para contatos mais seguidos entre músicos e poetas, assim como para uma concepção mais humanística da música. O músico passou a ser tratado cada vez menos como um artesão, o que também determinou a mudança e a elevação de sua situação social e da consideração de que era objeto. Por outro lado, aumentavam os ganhos dos músicos, e suas condições gerais de vida tornavam-se aproximadamente as mesmas em diversos países europeus. Em suma: grosso modo, a música passa de uma posição de ornamento secundário na vida da elite social e de instrumento do culto religioso, da festa e do cerimonial, ao estatuto de importante item da vida cultural. As polêmicas entre músicos e filósofos, como a que se travou entre Rameau e Rousseau, que sustentavam respectivamente a primazia da harmonia ou da melodia na música, contribuíram para incrementar o interesse pela música nos círculos intelectuais, como, de resto, as querelas entre as diferentes tendências e escolas concernentes à ópera. Mas tampouco devem ser esquecidas, como fator determinante para a inserção da música na cultura, as funções reais que ela exercia na sociedade. A função social da ópera mostra-se, no caso, mais uma vez, de singular importância: a ópera não era apenas um divertimento para as classes superiores; também era o cenário de uma luta entre diversas idéias filosóficas e estéticas, entre diversos gostos, além de solicitar toda uma série de outras atividades, como a dos pintores, dos dançarinos, dos coreógrafos, etc. Assim, as considerações sobre a música viriam a ocupar um espaço cada vez maior na obra de filósofos como Diderot, d'Alembert e Rousseau. O século XVIII assistiu, sobretudo na França, à formação de verdadeiros "partidos" musicais, que às vezes se tornaram partidos políticos; inversamente, moti-
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vos políticos estiveram na origem de apreciações sobre as obras e os compositores. Criaram-se, igualmente, divisões em diferentes clãs, em que argumentos de gosto e de estética misturavam-se, por vezes, a atitudes políticas, como foi o caso das disputas entre música francesa e italiana, entre lullistas e ramistas, gluckistas e piccinistas, por exemplo. No princípio do século XVIII, o debate entre a música francesa e a música italiana ganhara novo impulso. A música italiana tinha a preferência da nobreza, e os primeiros compositores franceses de sonatas dedicavam, em geral, suas obras ao duque de Orléans, um partidário declarado da tendência italianizante. Talvez se deva ver nesse entusiasmo do regente da França um modo de opor-se às tendências até então prevalecentes na corte. A "Querela dos Bufões" serviu, por outro lado, para desviar a atenção das disputas do parlamento e do clero, até então o objeto fundamental da curiosidade pública. Durante a Revolução na França, a organização das festas nacionais, em que a música teve participação importante, foi uma das preocupações constantes das autoridades políticas. Conseguiu-se levar as massas a um engajamento musical, pedindo aos compositores que, com esse objetivo, escrevessem corais. As composições de circunstância, vocais e mstrumentais, surgiram em quantidade, e o que caracterizou o gosto musical revolucionário foi sobretudo o emprego de grandes massas sonoras. Em obediência à pressão popular, o gosto musical voltou-se para os vastos conjuntos e para as imponentes demonstrações de sonoridade, acostumando-se a efeitos demasiado pesados e mesmo brutais que bem se ajustavam à expressão do clã patriótico e ao poderio rnilitar: a música serve-se de fanfarras e até mesmo de canhões, com resultados os mais barulhentos, marcados por um entusiasmo pelo pomposo e pelo grandiloqüente. Muitos anos mais tarde, Reichardt ainda pôde observar, nas interpretações do Concert des Amateurs em Paris, exageros de nuanças dinâmicas na execução da música séria e sinfônica, o que é pouco provável não tivesse a ver com o estardalhaço pomposo das festas nacionais a que o público se havia acostumado. No século XVIII, a especificidade social da ópera cômica prende-se ao advento das classes médias. A ópera cômica apareceu mais ou menos na mesma época em diferentes países: na Itália, na Inglaterra, em Hamburgo, e no começo do século era representada sobretudo nos teatros das feiras, recebendo em seguida, em Paris, uma forma mais desenvolvida. Refletindo o gosto do público burguês e pequenoburguês, assinala um significativo contraste em relação à ópera de corte, com seus temas heróicos extraídos da história ou da mitologia, tanto por seu caráter musical como pelo de seu texto. Os recursos musicais e técnicos da ópera cômica, muito singelos de início, cresceram progressivamente em importância. Seus temas estavam ligados principalmente às classes médias, às quais se dirigia de modo especial; às vezes, abordava até mesmo o que estava acontecendo no momento. Era fre-
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qüente, nas óperas cômicas, ridicularizar a nobreza e parodiar a opera seria. Ao passo que esta última se apresentava com um caráter internacional, a ópera cômica era nacional; nela fazia-se uso até de dialetos locais. Era um espetáculo com ingressos à venda, aberto a todos sem exceção, ao contrário da ópera principesca, à qual só se podia assistir sendo convidado. A ópera cômica, sob suas diferentes formas e denominações, que variavam de um país para outro, era um gênero capaz de satisfazer perfeitamente as exigências de um público novo e em expansão, que não cessou de apreciá-lo cada vez mais ao longo de todo o século. O crescimento do público burguês amante da música no século XVIII teve uma conseqüência importante para a vida musical: multiplicaram-se as apresentações públicas de música, asseguradas pelos diversos concerts (sociedades de concerto ou academias). Na França, academias organizadas como sociedades de concerto, sobretudo de amadores, mas com a participação cada vez maior de profissionais, existiram desde a primeira metade do século, em Paris, Marselha, Bordeaux, Nîmes, Lyon, Lille e noutros pontos. Em Amiens, os principais burgueses da cidade, em número de quarenta, mantinham uma sociedade desse tipo. Os estatutos da academia de Marselha esclarecem que ela foi fundada "para divertir uma juventude por demais ociosa e para ter, ela própria, uma ocupação". As academias de província, da mesma forma que as parisienses — a mais importante das quais era o Concert Spirituel fundado em 1725 —, contribuíram de maneira considerável para a extensão da cultura musical na França, sobretudo nos meios burgueses. Entretanto, por conta da atmosfera social do Antigo Regime, quando uma academia não era fundada por nobres, seus fundadores burgueses quase sempre pediam a proteção de alguém que o fosse. Nos concertos oferecidos por essas academias, burgueses e nobres sentavam-se lado a lado. Na busca de alegria e distração na música, as duas classes finalmente se reuniam. Encontravam pontos de contato e de solidariedade na apreciação geral da arte dos sons até que afinal... compuseram-se, em termos de música, de tal modo que a vida musical, sobretudo na segunda metade do século, já não era puramente aristocrática, nem puramente burguesa tampouco. Antes mesmo do desenvolvimento das academias e dos concertos públicos na França, os salões aristocráticos foram-se abrindo pouco a pouco para uma certa elite da burguesia, e os membros das duas classes lá se reuniam para apurar juntos os ouvidos. O público que freqüentava o salão do mecenas La Pouplinière compunha-se tanto de nobres como de burgueses. Na aristocracia, numerosos eram aqueles que organizavam concertos em suas residências, onde era possível às vezes ouvir músicos notáveis — um Mozart, por exemplo. Trial e, posteriormente, Gossec dirigiram os concertos do príncipe de Conti, onde se apresentaram também Schobert, Rodolphe, Janson e outros mais. O barão de Bagge, o conde d'Albaret e o duque d'Aiguillon foram mecenas. Mas a alta burguesia também queria desempenhar o papel lisonjeiro de protetora das artes. Um
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financista como La Pouplinière, em cujos salões apresentaram-se, entre outros, Rameau, Stamitz e Gossec, alcançou grandes méritos em seu papel de mecenas de primeiríssima importância na França, a ponto de poder ser comparado, nessa condição, a príncipes e aristocratas da Alemanha que faziam de suas cortes e palácios verdadeiros centros da vida musical. Mas as academias ofereciam uma organização de concertos que custavam muito menos que a manutenção de uma orquestra particular permanente. A participação gratuita dos amadores em muito contribuía para isso. Ademais, as academias e os concertos públicos vendiam os ingressos, em geral, por um sistema de assinatura, obtendo dessa maneira uma renda com os espetáculos — o que era proibido, em princípio, aos salões particulares. A deterioração da situação econômica geral na França, que se acentua com o correr do século, a atitude oficial para com a música por parte de um poder que já não a favorece como antes e não concede cartas patentes reais às academias, e finalmente as guerras, como a Guerra dos Sete Anos, determinaram o declínio progressivo e, por fim, com a Revolução, o desaparecimento das academias, por sinal excessivamente associadas ao Antigo Regime. As décadas de 1770 e de 1780 trouxeram mudanças profundas para a vida musical, provocadas pelas modificações radicais da vida econômica e social. Esses anos foram assinalados por muitas inovações importantes na vida musical européia, decorrentes em parte da edição musical. Como escreveu Barry S. Brook, esse período marcou o ponto culminante de um longo processo durante o qual a música evoluiu da condição de oficio semifeudal, a serviço da Igreja, da cidade e da corte, à de profissão de livre iniciativa, voltada predominantemente para o mercado burguês. Nessa época, a classe média forjava para si uma nova situação social, e a profissão musical seguia o movimento que se expandiu em outras esferas sociais, cada vez mais penetradas pela livre iniciativa, que abastecia o mercado crescente em conformidade com as leis sempre mais ativas da oferta e da procura, leis que começaram a atuar também, mas de um modo específico, no setor cultural. No último quartel do século, o papel e a função do mecenato começaram a declinar, e as mudanças na posição econômica do músico desenharam-se em l i nhas marcantes. Os compositores já não recorriam sistematicamente à dedicatória para obter alguns subsídios da parte de um mecenas, o que significava, além do mais, endereçar suas composições a um público restrito. O destino do músico e de sua obra decide-se cada vez mais diretamente nos concertos públicos, no interior de uma vida musical sempre mais comercializada e organizada para um público novo de classe média, na qual, entretanto, o público aristocrático ainda ocupa um lugar de destaque. Os compositores escrevem cada vez menos exclusivamente para as residências dos príncipes e dos aristocratas, onde, até então, o músico não pas-
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sava, ou quase, de um criado, como era ainda o caso de Haydn a serviço do príncipe Esterhazy, ou de Mozart em Salzburg. Os compositores dependem cada vez menos de nobres patrões. Em Leipzig, por exemplo, J.A. Hiller, feito Kantor da igreja de Santo Tomás, esforçava-se por tornar acessíveis suas composições, procurando — sobretudo em seus Singspiels, que se tornaram muito populares na Alemanha — a simplicidade de expressão e a compreensão de um público mais amplo de diletantes e profissionais. A freqüência aos concertos e às representações de óperas aumentava com o crescimento das empresas comerciais de difusão musical, que se iam tornando menos dependentes da cópia manuscrita e cada vez mais associadas à jovem indústria da gravura e da impressão. Depois de ter começado dando prejuízo, a edição musical gravada ou impressa se fez lucrativa. Não é de surpreender, por exemplo, que Bach tenha publicado em vida tão pouco de suas obras. A venda de A arte da fuga, publicada quando de sua morte, não deu para cobrir sequer os gastos com a gravação sobre cobre. Mais tarde, pelo contrário, esse novo fator, representado pelo editor na vida musical, haveria de proporcionar ao compositor uma situação econômica de maior independência do que a que lhe garantia o serviço da aristocracia, embora, por outro lado, pudesse prendê-lo a outros vínculos de ordem econômica e comercial. Os compositores deviam freqüentemente levar em conta o mercado visado por seus editores e escrever suas obras de modo a que estes ficassem satisfeitos. Nessa época, entretanto, os compositores por vezes encarregavam-se de ser seus próprios editores, ocupando-se da impressão de suas obras por tipografia ou gravura. O abandono da proteção do mecenato aristocrático tradicional foi acompanhado pela evolução de possibilidades, até então desconhecidas, de liberdade de escolha em toda uma série de atividades musicais profissionais. E essas possibilidades eram exploradas por um número cada vez maior de músicos. A mobilidade da profissão de músico tornou-se mais generalizada, não sendo o estatuto social dessa categoria definido tão rigidamente como no passado. Na França, um decreto de Turgot pôs fim, em 1776, à história das corporações: todas as artes e ofícios tornaram-se doravante livres. A mobilidade da própria música aumentou em proporções até então nunca vistas. A influência da impressão e da edição, estreitamente ligadas entre si, foi sentida não apenas na difusão da música, perrnitindo-lhe ser conhecida numa área social e geográfica mais extensa: com a movimentação mais freqüente dos músicos de um país para outro e a conseqüente valorização de seus contatos pessoais, a edição musical de grandes tiragens contribuiu para uma influência recíproca crescente entre os estilos musicais e os compositores individuais, não somente no interior dos diferentes países mas também para além de suas fronteiras. A influência italiana, dominante sobretudo na esfera da ópera (como atesta a presença de companhias de ópera italianas em Londres quase desde o princípio do século, na Alemanha a partir de 1730 aproximadamente, e em Paris depois de
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1750), foi desaparecendo aos poucos na segunda metade do século, a não ser nos círculos da corte, onde a opera seria e o oratório italiano conservaram sua ascendência. No domínio instrumental da música far-se-ia sentir dali por diante a influência do que se fazia na Áustria, na Boêmia e na Alemanha do Norte. De qualquer modo, a edição musical teve conseqüências importantes também no plano artístico. Num primeiro momento, o papel principal coube à França, à Inglaterra e aos Países Baixos. Antes que muitos editores de outros centros europeus — como Viena, Berlim e Milão — se lançassem em uma atividade de maior vulto, mais ou menos na última terça parte do século, foram principalmente os editores de música de Paris (Boivins, Le Clercs), de Londres (Walsh) e de Amsterdã (Roger, Le Cène) que publicaram o grosso da produção musical gravada ou impressa do século XVIII. Muitos músicos alemães, austríacos e italianos, inclusive os mais famosos (Mozart, Haydn), tiveram as primeiras edições de suas obras publicadas em Paris, cuja grande atividade nesse domínio ultrapassou em muito, por um certo tempo, a atividade somada desses países todos. Certos editores abusavam, entretanto, dos compositores, publicando suas obras sem autorização e não lhes pagando qualquer remuneração. A pirataria na edição musical chegava ao ponto de atribuir-se o nome de um compositor célebre a composições que não eram de sua autoria, com o objetivo de vendê-las mais facilmente. Ou seja, os direitos autorais ainda não estavam garantidos. Só perto do final do século foram dados os primeiros passos nesse sentido — na Alemanha, sobretudo, graças à atividade de T.G.I. Breitkopf. Mas a produção musical da época era tão volumosa, que somente uma pequena parte das obras compostas podia ser publicada. Tanto mais que uma parte considerável dessa produção, sobretudo no tocante a óperas, era destinada a uma vida muito curta no repertório, motivo pelo qual sua edição impressa ou gravada não oferecia rentabilidade. A vida musical do século XVIII passou por este paradoxo: de um lado, o caráter efêmero de uma certa "arte de temporada"; de outro, a repetitividade, que visava, apoiada na edição, a manter por mais tempo certas obras no repertório. Este, por sua vez, comportava obras de alta qualidade lado a lado com aquelas que simplesmente estavam na moda, destinadas aos amadores e a um público cada vez mais numeroso. A grande influência exercida pela edição musical teve, no último terço do século, causas diversas, ligadas todas elas a fenômenos econômicos e sociais mais vastos que tinham curso nos países de maior desenvolvimento da Europa. O século XVIII, em seus últimos anos, inaugurou um fenômeno que dominaria a história da música dali por diante, cada vez mais: a repetitividade. Desapareceu o caráter único e estritamemte circunstancial, associado a uma só ocasião, ou quando muito a algumas ocasiões bem pouco numerosas, do acontecimento musical: suas li¬ mitações em freqüência amiinuíram, e sua restrição a uma circunstância especial ou única rarefez-se. O princípio de repetição, favorecido e encorajado pela edição,
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levou à possibilidade de audições múltiplas de uma peça musical numa série de execuções que escapavam ao controle do compositor e à sua direção imediata ou direta, assim como lhe escapavam os conhecimentos dos locais e dos círculos, dos intérpretes e das circunstâncias precisas em que suas obras poderiam ser tocadas. Bach compunha suas cantatas para ocasiões determinadas, e em geral uma cantata para cada vez; Haydn queixava-se, em 1768, de que lhe era difícil compor uma cantata para um mosteiro na Áustria sem conhecer "nem as pessoas nem o local". Enquanto as cantatas de Bach eram regidas por ele próprio, Haydn já se encontrava no momento da mudança, em que a execução de boa parte de suas obras começava a escapar-lhe. Se, por um lado, o crescimento quantitativo da música e sua disseminação t i veram causas sociológicas — maior liberdade para o músico, público mais vasto, estímulo econômico à edição —, por outro, também tiveram conseqüências bem determinadas: a ulterior ou suplementar demanda e ampliação do público, a receptividade para a música que aumentava com cada apresentação, o maior encorajamento ao amadorismo, e finalmente o estímulo mais forte para as próprias atividades comerciais ligadas à música e à vida musical. Aos poucos, a repetitividade levou à organização de toda uma rede comercial envolvendo o conjunto de fatores que tiveram papel ativo em sua afirmação posterior no século XIX: os gravadores, os impressores, os editores, os vendedores de partituras, os fabricantes de instrumentos, os organizadores da vida musical, etc. Quem quiser situar as primeiras aberturas em direção à democratização da vida musical e da música, tornada acessível no século XX a um público mais amplo do que jamais o foi no passado, pode encontrá-las em todos esses fenômenos que se produziram perto do fim do século XVIII — e não exatamente no século XIX, como se chegou por vezes a imaginar.
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ANTONIO VIVALDI (1678-1741)
Antonio Lucio Vivaldi nasceu em Veneza em 4 de março de 1678, e já em seu primeiro dia neste mundo correu perigo de vida por causa de sua constituição frágil, a ponto de a parteira ter-se apressado em batizá-lo ainda no quarto de sua mãe. Seu pai, Giovanni Battista, era violinista, e mesmo bom violinista, membro da Capela Ducal de São Marcos, que, com sua orquestra de 34 músicos sob a direção de Legrenzi, era então o que chamaríamos hoje de um dos templos da vanguarda musical. O pequeno Antonio teve, portanto, boa escola e mostrou-se, de resto, tão precoce que, ainda criança, foi admitido na Capela Ducal. Por que seu pai o destinou, tão jovem, ao sacerdócio? Talvez simplesmente para dar ao menino as melhores garantias de uma educação cuidada e de um cargo vantajoso em São Marcos ou num dos ospedali de Veneza — sem com isso nada ou quase nada atrapalhar uma eventual carreira teatral, caso ela se declarasse... Em 1693, com quinze anos, Vivaldi recebeu a tonsura, sendo ordenado em 1703. Nesse mesmo ano, o jovem padre de 25 anos assumiu as funções de professor de violino no Ospedale delia Pietà: o cálculo paterno fora aparentemente correto... Entretanto, aquele padre singular não haveria de oficiar por muito tempo: passados seis ou doze meses, parou de rezar missa. Muito se comentou sobre isso, espalharam-se muitos mexericos maldosos. Por exemplo, correu a história de que ele se havia afastado bruscamente do altar para anotar um tema de fuga que lhe passara pelo espírito, em conseqüência do que o Tribunal da Inquisição o havia suspenso de suas funções. O próprio Vivaldi deu mais tarde a explicação:
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H á 25 anos, já, que n ã o digo mais a missa e n ã o a direi jamais, n ã o por proibição ou qualquer determinação nesse sentido, mas de minha e s p o n t â n e a vontade, e isso por causa de u m a d o e n ç a de nascença que me deixa com a sensação de falta de ar. Assim que me ordenei padre, disse a missa por u m ano ou u m pouco mais e em seguida parei de dizê-la, tendo por três vezes abandonado o altar sem terminá-la por causa desse mesmo mal. É por isso que vivo quase sempre sem sair de casa e, quando saio, é em g ó n d o l a ou em coche, porque n ã o consigo andar por causa de u m a d o e n ç a do peito, mais exatamente: uma estreiteza do peito.
Doença diplomática?... Por mais que se saiba que Vivaldi tinha mesmo uma saúde fraca, sofrendo de asma, não há como não estranhar que — sabida, também, a energia de que dava mostras em seu ofício de músico, de virtuose, de empresário, de compositor, de professor — esse doente incapaz de permanecer meia hora diante do altar tenha podido levar a cabo tão grande obra e tão brilhante carreira... Que dizer de sua vida? A vida de Vivaldi conserva-se envolta em muito mistério; é mal conhecida, difícil de compreender e de interpretar. Não é romanesca como a de um Stradella (um verdadeiro romance), e o que dela se sabe não nos ensina grande coisa sobre sua arte. O pouco que podemos deduzir tem como base o ritmo da vida que levava: a existência de um artista necessitado e mal pago, sempre batalhando, dotado de uma vivacidade e de uma exuberância extraordinárias, virtuose, regente de orquestra, compositor, diretor de teatro, correndo do violino à ópera, do escritório de empresário ao Ospedale, onde ensinava sua arte às jovens internas, em viagens intermitentes; e, de vez em quando, procurando a perspectiva e a concentração necessárias para escolher e publicar, com meticuloso cuidado, aquelas que considerava as melhores da profusão de obras que jorrava diariamente de sua pena. A vida de Vivaldi orienta-se entre dois pólos. Em primeiro lugar, o Ospedale delia Pietà, para o qual foi nomeado em 1703, no posto de maestro di violino. Cargo importante, disputado. Em 1705, deram-lhe a incumbência de "mstruir as moças na composição e na execução de concertos". Mesmo funcionando como diretor sem ter o título, e por mais mal pago que fosse o posto — duzentos ducados por ano —, as vantagens que Vivaldi dele soube tirar em quarenta anos foram consideráveis. Primeiro, porque o diretor titular, Gasparini, com o pensamento absorvido por outros propósitos, deixava-lhe praticamente toda a iniciativa. Vivaldi, pode-se dizer, mandava na própria vida. Sem falar que esse cargo proporcionava ao músico um grande trunfo, de valor inestimável. Ele tinha à sua disposição, em caráter permanente, uma ampla equipe de moças musicistas de elite — orquestra, coro e solistas, num total de até 75 exécutantes. Todas as experiências lhe eram permitidas, no domínio da escrita como no campo do timbre instrumental. Nenhum entrave material, nenhuma preocupação com o orçamento vinham contrariar seus projetos musicais. A Pietà facultava a Vivaldi segurança
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(não só material, mas sobretudo moral e estética) e continuidade. Foi na Pietà, e para a Pietà, que Vivaldi compôs, sem dúvida, o melhor de sua obra. O segundo pólo de atividade de Vivaldi foi a ópera; mais precisamente, o Teatro Sant'Angelo de Veneza. Mais uma vez, Vivaldi não tinha o título de diretor nem de empresário, mas era o verdadeiro animador e responsável pelo que se fazia no teatro, onde quem vemos atuar é um segundo Vivaldi, muito diferente do professor de violino na Pietà. Tratava-se de um estranho personagem, que vivia em clima verdadeiramente febril: assinava contratos, enfrentava os vedetismos do palco, dirimia conflitos, resolvia situações escabrosas, realizava com êxito operações f i nanceiras, organizava ensaios e turnês, tinha que pensar em tudo na tormenta perpétua de um mundo caprichoso, extravagante e irresponsável. E, paradoxalmente, no mundo relativamente sereno — ou que, pelo menos, inspira segurança — da Pietà, Vivaldi inovou; no mundo turbilhonante da ópera, foi escravo da moda e conformista. Mas o paradoxo é apenas aparente. A caricatura de Vivaldi feita por Ghezzi é mais expressiva do que uma biografia. Nela se lê tudo, num só golpe de vista. Não foi outra a leitura dos contemporâneos — de Brosses, por exemplo, que viu Vivaldi em Veneza já perto do fim da vida deste: "É um Vecchio (um 'velho') com uma prodigiosa fúria de compor..." Digamos que esta furia (a palavra é mais expressiva em italiano), Vivaldi a estampava em toda a sua pessoa: em seus olhos, em seus gestos, em seu nariz fantástico... No croquis de Ghezzi tudo é legível ao natural: aquela vivacidade imperiosa, a inteligência, algo de agitado, de exuberante, mas também, provavelmente, uma tenacidade oculta, uma determinação inflexível. Vivaldi — nervoso, sem sombra de dúvida, emotivo, provavelmente sofrendo de uma angústia crônica (sua asma, sua falta de ar, sua strettezza di petto, como ele dizia, são doenças de ansiosos) — tranquilizava-se levando permanentemente consigo uma espécie de séquito, composto de quatro ou cinco pessoas que lhe eram indispensáveis e que criavam à sua volta um clima familiar e reconfortante. Essa entourage exclusivamente feminina —Annina, sua discípula e intérprete, a irmã desta, Paolina, a mãe das duas, e mais uma ou outra moça — deu muito que falar. Convenhamos que a visão desse estranho padre raivo cercado de saias devia oferecer, mesmo na Veneza do século XVIII, um espetáculo insóüto. Ei-lo, fixado ao vivo por Goldoni, por ocasião de uma visita que fez a Vivaldi, relacionada com um libreto de ópera em que tinha interesse: Recebeu-me bem friamente. Tomou-me por u m estreante, no que n ã o se enganou; e, como ele me achasse pouco familiarizado com a ciência dos estropiadores de dramas (degli Stroppiatori de' Drammí),
ficou
logo visível a vontade imensa que sentia de me
despachar. Uceo, disse, ecco o drama a ser adaptado: é a Griselda, de A p ó s t o l o Zeno. Obra belíssima, acrescentou, o papel da prima donna n ã o pode ser melhor; mas seria preciso fazer umas mudanças... Se Vossa Senhoria conhecesse as regras... N ã o adianta, n ã o pode conhecê-las. Veja s ó , por exemplo: depois desta cena de amor, h á uma aria cantabile;
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mas como a Signora Armina não... não... n ã o gosta desse tipo de ária (noutras palavras: ele queria dizer que ela n ã o as sabia cantar), seria preciso introduzir aqui u m a ária de ação... que revele a paixão, mas que n ã o seja patética, que n ã o seja cantabile. — C o m preendi, respondi-lhe, compreendi, vou ver como faço para satisfazê-lo; d ê - m e o libreto. — Mas é que eu t a m b é m estou precisando dele, disse-me Vivaldi, ainda n ã o terminei os recitativos. Quando me dará de volta? — Agora mesmo, disse-lhe eu; passe-me u m a folha de papel e u m a pena... — O quê? Vossa Senhoria imagina que u m a ária de ópera se escreve como as dos intermezzi? Veio-me muita raiva, e respondi-Lhe com insolência; na mesma hora, passou-me u m a pena e, tirando do bolso u m a carta, arrancou u m a folha em branco para dar-me. — N ã o se irrite, disse-me modestamente, vamos, instalese aqui nesta mesa; tome o papel, a pena e o libreto; esteja à vontade. Ditas estas palavras, ele voltou à sua mesa de trabalho e se p ô s a recitar o breviario. L i com toda a atenção a cena; analisei o sentimento da aria cantabile e, com ele, fiz u m a ária diferente, de ação, de paixão, de movimento. Levei-lhe meu trabalho. C o m o breviario na m ã o direita e a minha folha na esquerda, ele se p ô s a 1er tranqüilamente. E , quando terminou a leitura, jogou o breviário para u m canto, ergueu-se, a b r a ç o u - m e e beijou-me, correu à porta, chamou a Signora Annina. Entraram Annina e sua i r m ã Paolina. Ele leu para as duas a arietta, exclamando aos gritos: ele escreveu aqui, foi aqui mesmo que ele fez, aqui. E , de novo, beijos e abraços. E me disse bravo. Fiquei sendo seu amigo, seu poeta, seu confidente e n ã o me largou mais.
O fim de Vivaldi é estranho. Esse músico adulado, conhecido e tocado na Europa inteira, que falava com imperadores e correspondia-se com altezas reais, e que certamente foi rico, morreu esquecido, na miséria, completamente só, em Viena. O último triunfo de Vivaldi teve lugar em março de 1740.0 príncipe Frederico Cristiano da Saxônia, filho do rei da Polônia, foi a Veneza. Na Pietà, foi-lhe oferecido um grande concerto vocal e instrumental num ambiente suntuosamente decorado. Meses mais tarde, Vivaldi deixaria a cidade, decerto com Annina e seu séquito habitual. Antes de partir, tratou de vender tudo, inclusive seus manuscritos. Sabe-se que morreu em Viena (em 1741, aos 63 anos) e que foi enterrado com o serviço dos pobres do hospital. Essefimpermanece até hoje um mistério. Parece que Vivaldi, na verdade, foi exilado pelo governo da República de Veneza, por motivos obscuros, talvez políticos. Essa versão explica, em todo caso, várias coisas: certos textos e cartas escritos por Vivaldi no fim de sua vida, em que se defende de ataques e calúnias, sua miséria em Viena, a ausência de qualquer protocolo e cerimônia no seu enterro, e o silêncio que cerca sua morte. Aquela impetuosidade, aquela fúria, como diz de Brosses, que caracterizam a personagem Vivaldi, estão presentes na obra do compositor. A facilidade com que escrevia música é desconcertante: ele transbordava de idéias musicais. À margem do manuscrito de uma de suas óperas, há uma anotação de Vivaldi segundo a qual a ópera foi inteiramente composta em cinco dias. Certa vez, compôs dez concertos em três dias. De Brosses faz uma observação ainda mais contundente: "Ouvi-o
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vangloriar-se de compor um concerto com todas as partes em menos tempo do que um copista levaria para copiá-lo..." Encarada dentro dos padrões de hábito modernos, a obra de Vivaldi deixa abismado quem se anima a fazer-lhe o inventário: 223 concertos para violino e orquestra, 22 para dois violinos, 27 para violoncelo, 39 para fagote (devia haver uma extraordinária jovem fagotista na Pietà), treze para oboé, dezessete para diversas formações instrumentais, mais aqueles destinados à viola d'amore, ao alaúde, à tiorba, ao bandolim, ao flautim (piccolo): ao todo, 456 concertos. Acrescentem-se 73 sonatas. E imagine-se tudo o que pode ter sido perdido dessa obra em grande parte manuscrita, que foi "torrada" pelo próprio Vivaldi à razão de um ducado por concerto, em 1740, poucos meses antes de sua morte. Ainda falta incluir dezesseis grandes motetos para solistas, coro e orquestra, 28 motetos a uma ou duas vozes e instrumentos, três oratórios, duas serenatas, uma centena de árias, trinta cantatas profanas e, para finalizar, 47 óperas... Dá vertigem só de pensar. De tempos em tempos, a descoberta de novos manuscritos vem alongar esta lista. Tal "furor de composição" não é uma exclusividade de Vivaldi. Muitos de seus contemporâneos italianos também o manifestam; e o encontramos, com outro "sotaque", em Telemann. Mas é em Vivaldi que ele é particularmente exemplar. Um furor que corresponde ao seu temperamento. E em que também é preciso ver uma característica própria do barroco, período que ama a prodigalidade, a abundância gratuita, a profusão (de fitas, de cabelos, de rendas, de fogos de artifício, de festas, de dourados), a construção de um pavilhão em quinze dias, de um jardim numa noite, de um cenário de teatro num piscar de olhos. A rapidez e a abundância de Vivaldi são traços que o ligam profundamente ao barroco, não apenas veneziano mas europeu. Tudo isso pode explicar a presença em sua obra —- sobretudo no fim — de soluções fáceis, repetições desnecessárias, simplificações, estereótipos. Mas não é o caso de nos deixarmos enganar: a fúria de Vivaldi era uma paixão, mas uma paixão pela arte. Esse homem passou quarenta anos como professor no Ospedale de la Pietà, recebendo um salário que não ia além daquele de um principiante — duzentos ducados por ano — , evidentemente por amor desinteressado à arte, pois era lá que ele tinha as melhores condições para criar. A arte de Vivaldi está dividida entre duas tendências. De um lado, a impetuosidade do violinista virtuose, a exuberância, um vigor rítmico, uma vitalidade maravilhosa. De outro, uma ciência que não se exibe, mas que é real. Vivaldi nada ignora da técnica do violino; sua ciência do contraponto, digam o que disserem, é segura e impecável; simplesmente, não está em seu temperamento ostentá-la. Escreve fugas sérias e densas, mas só quando acha necessário.
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A obra instrumental Não é fácil dar em poucas linhas uma visão geral da obra instrumental de Vivaldi. As coleções que ele publicou em vida, com um cuidado que contrasta com a displicência demonstrada freqüentemente noutros domínios, são, sem sombra de dúvida, a parte de sua obra que ele mais valorizava. Não esqueçamos, porém, que, como tantas outras, elas circularam manuscritas por toda a Europa antes de serem impressas: Johann Sebastian Bach, em Weimar, transcreveu os concertos de Vestro armónico [A inspiração harmoniosa] muito antes de sua pubücação em 1711!
A obra de Vivaldi Opus I e II: Sonatas a três e sonatas para violino e baixo. Opus III:
L'estro armónico:
doze concertos para um, dois, três ou quatro
violinos e conjunto de cordas (1711). Opus IV:
La stravaganza [A extravagância]: doze concertos para violino e conjunto de cordas (1714).
Opus VII: Opus VIII:
doze concertos, dois dos quais para o b o é (1716). II cimento deU'armonia e déll'invenzione
[O confronto da harmo-
nia e da i n v e n ç ã o ] : doze concertos para volino, dos quais os quatro primeiros são Le quattro stasioni [As quatro estações] e outros como
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lista paira sobre um acompanhamento de toda a orquestra; ou então a oposição tutti-soli faz valer os seus direitos. Mas a clareza dessa estrutura formal e sua construção tão luminosa importam menos do que a riqueza da invenção melódica esfuziante, a fantasia que nada subtrai ao rigor, a ciência das dosagens sonoras, o lirismo sobretudo dos movimentos lentos, concebidos um pouco como árias ou ariosos de ópera, em que o quadro formal se faz mais maleável e o acompanhamento mais leve, de modo a deixar o campo livre para os vôos do solista. Não esqueçamos tampouco a liberdade, a fantasia de Vivaldi, de que ele tinha consciência e que deu como título a uma de suas coletâneas {La stravaganza), nem seu gosto pelo estilo descritivo, ou, mais exatamente, pela "música de programa". É o homem de teatro que se expressa em concertos como Le quattro stasioni, La tempesta di mare, La caccia [A caça], Ilpiacere [O prazer], Il riposo [O repouso]... os quais, bem mais que a descrição, visam a evocação, a representação de sentimentos ou de uma atmosfera. No confronto com os mais dotados de seus contemporâneos — Torelli, Albinoni... —, Vivaldi sobressai como um dos primeiros músicos a dar a suas obras uma marca pessoal bem definida. Não que o compositor fale de si ou se retrate conscientemente: Vivaldi nada tem de um músico romântico; mas qualquer coisa de muito sutil e indefinível, que é ele próprio, insinua-se em suas composições e faz com que elas se tornem identificáveis ao primeiro contato. É nisto que Vivaldi é novo: num certo uso que faz da primeira pessoa do singular.
La tempesta di mare [A tempestade no mar], La notte [A noite] etc. (1724). Opus IX:
La cetra [A citara]: doze concertos, u m dos quais para dois violinos e conjunto de cordas (1728).
Opus X:
seis concertos, entre os quais Ilgardinello
[O pintassilgo], para flau-
ta e conjunto de cordas (1729). Opus XIII:
Il pastor fido [O pastor fiel]: seis sonatas para flauta (1737).
É com Vivaldi que se impõe o concerto para instrumento solista: seus concertos (aliás, raros) para muitos violinos não são de maneira alguma concerti grossi à maneira de Corelli: neles, cada solista conserva sua individalidade. São concertos "para muitos solistas", mais do que concertos "para um solista múltiplo". A construção de tais concertos é muito simples, sendo a divisão em três movimentos (vivace-lento-vivace) adotada em definitivo. Nos movimentos rápidos, a oposição do tutti e dos soli é absolutamente clara. A orquestra expõe um ritornello, retomado e variado pelo instrumento solista: essa temática compartilhada, jamais ou pouco usada antes de Vivaldi, reforça o contraste e acentua a unidade. Nos movimentos lentos, diversos esquemas se apresentam: na maior parte do tempo, o so-
As óperas A primeira impressão que se tem das óperas de Vivaldi é que elas não parecem constituir a parte essencial de sua obra. O compositor não se mostra, nesse domínio, o inovador que suas outras esferas de criação revelam; modifica pouco os dados do gênero: Vivaldi trabalhou com a ópera veneziana tal como ela era—il teatro alia moda—, com suas ações dramáticas delirantes ou sem interesse, suas convenções, suas concessões ao vedetismo e ao gosto reinante. Inseriu, nesse arcabouço frouxo ou absurdo, sua música, sua invenção melódica, sua sedução, seu lirismo, seu maravilhoso elã rítmico, o colorido de sua instrumentação. As óperas de Vivaldi, de modo geral, formam coleções de árias muitas vezes admiráveis, que estão como que pedindo para serem destacadas tanto do todo musical como da ação dramática inexistente à qual estão — ou, melhor dizendo, não estão — adaptadas. Este é o caso de boa parte das obras líricas de Vivaldi, modeladas sobre o standard veneziano, inteiramente voltado para a arte do bel canto e do virtuosismo vocal, e que não se afastam basicamente de um estilo, do qual já se disse que estava mais a serviço dos cantores do que da música. No entanto, o estudo das obras faz com que apareçam diferenças notáveis em relação à produção habitual de seus
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contemporâneos. O recitativo é por vezes menos neutro e menos descartável. As arte não são tão separáveis da ação dramática. Certos enredos escolhidos por Vivaldi fazem "rachar" as estruturas tradicionais da ópera italiana. Assim, por exemplo, em Orlando furioso, se, por um lado, as personagens convencionais de Alcina, Angélica, Medor e Bradamante se acomodam à divisão recitativo secco - aria, a personagem de Orlando, por seu desregramento no início da obra e sua loucura no fim, rompe esses limites e não pode integrar-se na forma simétrica da aria da capo: reencontramos assim a "stravaganza" vivaldiana, a mesma de alguns de seus mais belos concertos. É certamente significativo que Vivaldi tenha retomado por três vezes o tema e a música dessa ópera; devia considerar Orlando um tema à sua altura. Por outro lado, é evidente, para quem tenha o olhar atento, que a ópera contaminou o concerto vivaldiano na mesma medida em que o concerto se insinuou na ópera. A oposição do solo e do tutti, a arquitetura de conjunto das árias, denotam uma influência da arte instrumental sobre a arte vocal, parecendo certos desenvolvimentos feitos mais para o violino do que para a garganta. Em compensação, há uma forma de lirismo instrumental — nos movimentos lentos de concerto, especialmente — que tem sua fonte no drama lírico, e certos uníssonos dramáticos de toda a orquestra são decalques fiéis das introduções compostas por Vivaldi para as grandes cenas dramáticas de suas óperas. É uma influência tão forte que Marc Pincherle, no fim de sua vida, estava tentado a fazer pender o fiel da balança em proveito do teatro e a dizer de Vivaldi que ele era "um compositor de ópera que escreveu concertos", e não o contrário. Todavia, as condições de trabalho impostas a um compositor de teatro em Veneza não permitiam de modo algum o aprofundamento da pesquisa: o valor do Orlando furioso decorre talvez de Vivaldi o ter reescrito três vezes. De sorte que se poderia dizer, sem exagero, que as obras dramáticas bem resolvidas de Vivaldi são aquelas que ele não destinou à ópera. Sempre que conseguiu escapar aos imperativos convencionais e comerciais, escreveu obras-primas. Sua melhor ópera é um oratório: Juditha triumphans [Judite triunfante]. Escrito para as moças da Pietà em 1716 e executado com perfeição por essas musicistas que não tinham a pressioná-las nem o fator tempo, nem o fator clinheiro, nem precisavam submeter-se aos imperativos da montagem cênica, o oratório reúne todas as características rutilantes da ópera veneziana, e quase nenhum de seus defeitos. No final das contas, será menos aceitável que todos os papéis nessa obra sejam escritos para vozes de moças — inclusive o de Holofernes, gigante barbudo — do que ver no teatro um César soprano e emplumado? Mas a música de Juditha triumphans é deslumbrante. A instrumentação é de uma riqueza que nenhuma partitura de ópera poderia atingir; sente-se que o compositor não se vê tolhido por qualquer sujeição material e que se apraz em utilizar todo o material disponível: trompetes, oboés, clarinos, salmoe, tiorbas, viole allTnglese, bandolins, além
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dos instrumentos habituais — cordas, flautas e cravo. A riqueza melódica não é menor; e o virtuosismo vocal, quase tão acentuado como na ópera, parece menos gratuito. E, sobretudo, o tema e o gênero tratado contribuem para que as convenções do teatro veneziano pressionem menos e para que a ação dramática não fique tão despedaçada. Decerto é também porque escapava às restrições impostas pela ópera que um outro gênero de obra vocal de Vivaldi sobressai por seus bons resultados: as grandes cantatas escritas com esmero para certas ocasiões particulares: Gloria e Himeneo [A Glória e o Himeneu], escrita para o casamento de Luís XV, rei da França, Senna festeggiante [O Sena em festa], para o nascimento do Delfim da França, a Serenata a tre e mais algumas outras peças de circunstância. Curiosamente, as encomendas oficiais, longe de resultarem — como freqüentemente acontecia — em obras apressadas e impessoais, figuram, pelo contrário, entre aquelas a que Vivaldi prodigalizou o melhor de seu tempo e dos seus cuidados.
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DOMENICO SCARLATTI E A MÚSICA INSTRUMENTAL ITALIANA
Domenico Scarlatti (1685-1757) Sexto filho de Alessandro Scarlatti e de Antonia Anzalone, Domenico nasceu no dia 26 de outubro de 1685 em Nápoles, onde a família acabara de instalar-se. Nápoles, que era possessão espanhola, devia à Espanha o aspecto de gravidade de sua tradição cultural: por trás da ebulição italiana, havia aqui uma intensidade fora do usual; por trás da canção das ruas, a paixão; por trás da opera buffa, Santo Tomás de Aquino — também ele, de origem napolitana. Em vão se procuraria qualquer traço da passagem de Domenico Scarlatti por qualquer dos quatro conservatórios da cidade: o único ensino regular que o jovem músico recebeu foi de seu pai, e assim mesmo de um tipo que nada tinha de semelhante com aquele que Johann Sebastian Bach dispensaria mais tarde aos seus filhos. A vida sedentária, calma e regular do Kantor de Leipzig, opõe-se diametralmente a de um músico de teatro, para quem a instabilidade e a insegurança no trabalho constituem a regra. Pois, fosse para buscar o apoio de um príncipe, fosse para encontrar um libretista, Alessandro Scarlatti estava sempre viajando entre Nápoles e Roma. A infância do pequeno "Mimmo," como haviam apelidado Domenico, deve ter sido impregnada de música a cada instante, pois a casa dos Scarlatti em Nápoles funcionava simultaneamente como residência da família e local de ensaios dos cantores e dos instrumentistas contratados para as óperas de Alessandro Scarlatti.
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Em 13 de setembro de 1701, pouco antes de completar o décimo sexto aniversário, o jovem Domenico foi nomeado para seu primeiro posto oficial, o de organista e compositor da Capela Real de Nápoles. Mas os acontecimentos precipitaram-se, e foi por pouco tempo que ele exerceu seu talento nesse emprego: no final do ano de 1700, a morte de Carlos II lançava a Europa na Guerra de Sucessão da Espanha. O vice-rei de Nápoles corria, ele próprio, sérios riscos, e Alessandro Scarlatti partiu com seu filho para a corte dos Médicis na Toscana. De volta dessa primeira viagem, o jovem músico compôs suas duas primeiras óperas, Ottavia restituita al trono [Otávia reintegrada no trono] e II Giustino, em que já se nota um firme domínio do ofício, a despeito da inspiração convencional. Observe-se que, nesse ano de 1702 — data dos primeiros manuscritos de Johann Sebastian Bach que chegaram até nós —, nada distingue ainda o estilo vocal de três músicos, todos com dezessete anos: Johann Sebastian Bach, Georg Friedrich Haendel e Domenico Scarlatti. Entretanto, a situação dos músicos em Nápoles continuava precária. Alessandro, cada vez mais convencido do talento de seu filho ("meu filho é uma águia de asas já crescidas", escreveu nessa época ao príncipe Ferdinando de Médicis), decidiu enviá-lo — dessa vez sem a sua companhia — para tentar a sorte em Veneza. E Domenico jamais voltou a viver em Nápoles. Por volta de 1700, Veneza tinha tudo para encantar um jovem artista: o mundo de Canaletto, de Guardi e de Goldoni estava nascendo... A música nãoficavaa dever às outras artes, com suas quatro salas de ópera em plena atividade, assim como inúmeros teatros. Tocava-se música nos palácios (academias) como nas ruas; Vivaldi em pessoa começava a ensinar na Pietà, justamente onde nosso músico iria travar seus primeiros conhecimentos importantes. Francesco Gasparini, mestre de coros na Pietà e antigo colega do pai de Domenico Scarlatti, estava então no apogeu de sua glória. Dava os últimos retoques no tratado L'armonico pratico al cembalo, publicado em 1708 e que continuaria sendo, meio século após sua publicação, um modelo inigualado de clareza pedagógica. Gasparini menciona nessa obra, por exemplo, certas liberdades que se podem tomar com a resolução das dissonâncias e o emprego da acciaccatura (um ornamento que se executa batendo simultaneamente uma tecla e a seguinte): e são estes dois elementos dentre os mais originais que iremos encontrar nas sonatas que vieram a ser compostas por Domenico Scarlatti em seguida. Mas o encontro fundamental desses anos passados em Veneza foi o que Domenico Scarlatti teve com Georg Friedrich Haendel. Os dois músicos aproximaram-se ainda mais quando Scarlatti se instalou em Roma, em 1709. Na obra que Mainwaring consagrou a Haendel, é mencionado um concurso instrumental que teria sido disputado pelos dois nos salões do cardeal Ottoboni: Scarlatti saiu vitorioso no cravo (o próprio adversário admitiu a derrota) e Haendel impôs-se no órgão. Já se podia notar em Scarlatti uma elegân-
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cia de estilo e uma rara delicadeza no toque; em Haendel, a inegável potência de sua execução e uma plenitude excepcional de som. Do anedotário musical consta que, depois desse episódio, Scarlatti nunca mais deixou de fazer o sinal da cruz quando ouvia o nome de Haendel, "z7 caro sassone" (o querido saxão)! Roma, segunda etapa da trajetória de nosso músico, iria pernntir-lhe travar, entre 1709 e 1719, relações não só na aristocracia como no Vaticano. Desde sua chegada em 1709, Domenico ocupou o lugar de seu pai, a serviço da rainha da Polônia exilada, Maria Casimira. Compôs duas óperas por ano, mas praticamente nada disso chegou até nós. Em um dos raros manuscritos originais queficaram,a abertura de sua ópera Tolomeo [Ptolomeu, 1711], encontramos o primeiro vestígio, em Scarlatti, de um movimento de corte binário, molde formal novo que ele retomaria com predileção em suas sonatas. Ressalve-se, entretanto, mais uma vez, que, em conjunto, não há nada que revele na música dramática de Scarlatti um compositor fora do comum. Em 1715, nosso jovem compositor foi nomeado mestre de capela da basílica de São Pedro, em Roma, onde compôs sua primeira grande obra autenticamente pessoal: um Stabat Mater a dez vozes. Na mesma época, tornou-se igualmente mestre de capela do embaixador de Portugal. O embaixador, por sua vez, recomendou-o calorosamente a seu soberano quando este lhe pediu que indicasse um músico. E foi assim que, em 1719, Domenico Scarlatti deixou seu posto no Vaticano, saiu da Itália e embarcou para Portugal, onde, entre 1720 e 1728, ocupou o cargo de mestre da Capela Real de Lisboa. Tinha na época 34 anos, o que corresponde à metade de sua vida. Compositor até então sobretudo de música vocal — sua música religiosa é de boa fatura, mas sua música dramática mostra-se um tanto insípida —, Domenico Scarlatti ainda não se distinguía do grosso dos produtores de música de sua época, uma vez que, ao que sabemos, até então não havia escrito nenhuma das famosas sonatas com que marcou sua presença na história da música. Em acréscimo às funções oficiais, Scarlatti foi encarregado pelo rei português, dom João V, da educação musical do jovem irmão deste, dom Antônio, e de sua filha Maria Bárbara. Misto de estreita conivência musical e mútua estima (segundo testemunho unânime da época, Maria Bárbara o que tinha de feia tinha de boa musicista), uma relação privilegiada não tardou a estabelecer-se entre a jovem princesa e seu professor. Quase nada se sabe da vida de Scarlatti em Portugal, uma vez que todos os documentos foram destruídos no terremoto de Lisboa em 1755. Quando muito, podemos situar este ou aquele marco, como a última visita que fez a seu pai na Itália, em 1724, e um primeiro casamento em 1728, com Maria Catalina Gentili, que lhe deu cinco filhos em dez anos. Tendo desposado Fernando, infante de Espanha, nesse mesmo ano, Maria Bárbara deixou a terra natal e foi instalar-se definitivamente na pátria do marido, carregando o músico consigo.
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Esses anos — 1725 a 1730 — correspondem a um período crucial da vida de Scarlatti. Na verdade, antes do desaparecimento de seu pai, a música de Domenico não passava de um testemunho, entre outros, do que se escreveu nesse primeiro quartel de século. Mas a morte de Alessandro haveria progressivamente de "liberar" a música de seu filho. A instalação em um novo país, uma verossímil liberação psíquica e a segurança afetiva são os três trunfos que presidem ao verdadeiro nascimento do gênio scarlattiano. Aos quarenta anos, a "águia" iria enfim levantar vôo?... Terra de austeridade, mas também de exuberância, de rigor, de extremos, a Espanha jamais, em qualquer tempo, deixou um artista indiferente. No momento em que Scarlatti nela se instalou, entrou em ação aquela mistura explosiva que afiava a sensualidade moura e pagã à beatice fanática da Contra-Reforma. Por suas origens, Scarlatti estava mais preparado do que ninguém para adaptar-se a isso. Ainda dessa vez, pouco se sabe sobre a vida de nosso músico em terra ibérica, a não ser que, durante trinta anos, ela se desenrolou à sombra da de Maria Bárbara, a qual, ela própria, desenrolou-se à sombra do rei Filipe V até a morte deste em 1746. Aliás, uma única pessoa tinha ascendência sobre esse infortunado rei louco que foi Filipe V: o famoso castrato Farinelli que, durante dez anos, cantou para ele, infatigavelmente, as mesmas quatro canções, todas as noites, para que conseguisse adormecer. Em 1746, Fernando e Maria Bárbara subiram ao trono espanhol, e seu reinado será lembrado como o dos "soberanos melómanos", a tal ponto Maria Bárbara conseguira comunicar ao marido a paixão pela música. A rainha tinha tamanha atração por partituras novas que Domenico Scarlatti compôs nada menos que 555 sonatas para seu uso pessoal! O músico tinha 53 anos quando se publicaram, em 1738, os trinta primeiros Essercizi, as únicas sonatas de Scarlatti a serem publicadas em vida do compositor. Como Haydn, Rameau ou Verdi, Scarlatti é um compositor da maturidade, e quase se pode dizer que sua vida, durante esses anos espanhóis, confunde-se com a gestação de suas sonatas. Do homem, não se sabe quase nada: nenhuma anedota, nenhum relato feito por contemporâneos chegou até nós. Conhece-se apenas um único retrato dele, feito por Domingo Antonio de Velasco. A pessoa que nele está representada irradia franqueza, equilíbrio e inteligência. Excetuando-se um punhado de fugas e algumas sonatas isoladas, a esmagadora maioria das sonatas de Scarlatti — como o próprio compositor as chamava — obedece a uma forma única: o movimento em duas seções. Esse corte binário não é, contudo, regido pela mesma lógica que aquele que organiza o movimento de dança da suite barroca: não é raro ouvirem-se muitos climas diferentes sueedendo-se em um mesmo movimento scarlattiano, ao passo que um movimento de suite jorra, todo ele, num fluxo só. A música de Scarlatti, com efeito, não se desenrola de maneira contínua, como a dos compositores barrocos seus contemporâneos, mas parece impulsionada do interior por uma dinâmica de outra natureza.
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Paradoxalmente, essa arquitetura tão invariável e tão típica ao mesmo tempo — na época de Scarlatti, ninguém mais compunha dessa maneira—não engendra nenhuma monotonia: na música instrumental do século XVIII não há nada que o ouvido reconheça tão depressa como uma sonata de Scarlatti. Mas nada se parece menos com uma sonata de Scarlatti do que outra sonata de Scarlatti, tão pouco freqüente é toparmos com repetições idênticas numa obra tão vasta! O molde em binômio permite todas as possibilidades de organização interna. Ora encontramos o que Norbert Dufourcq chama de "o espírito do concerto" — com as oposições defigurasmusicais maciças e de linhas que "despencam" às vezes por toda a extensão do teclado {Sonata Kirkpatrick 37) —, ora uma perfeita simetria entre ambas as seções da obra {Sonatas K 57, K133 e outras), mas também é comum encontrar — na verdade, são os casos mais numerosos — um exercício mais complexo de composição, que permite certa analogia com o percurso de um movimento de forma-sonata. Na harmonia está a segunda grande originalidade de Scarlatti. Nenhum tratado jamais soube explicar corretamente uma de suas sonatas, tantos são os desrespeitos cometidos contra a ortodoxia (basta citar as inúmeras "correções" feitas no texto original por Longo, na primeira edição italiana das sonatas no princípio do século). Além das resoluções inesperadas ou do emprego inusitado do acorde de sétima, já mencionados, merecem especial atenção a modulação, e, particularmente, a passagem do tom maior ao menor, de que Scarlatti faz uma autêntica componente dramática da escrita. É de se notar, também, o emprego do acorde, não como enchimento harmônico, mas como efeito de cor. A cor é, na verdade, um dos elementos fundamentais da linguagem expressiva do compositor: a sonata de Scarlatti é uma paisagem mediterrânea passada para a música. Nela, em maior ou menor grau, se ouve toda sorte de evocações realistas do folclore ibérico, com o instrumento assumindo, de cada vez, a feição de guitarra, de sinos {Sonata K487), de trómpete {SonataK358) ou de festa popular {Sonata K24), em que os mais diversos efeitos de eco impregnam a obra. A melhor prova da vitalidade de um organismo scarlattiano reside na resistência a qualquer classificação: a perfeição formal e expressiva dessas peças lhes confere uma envergadura que, excedendo amplamente a de um simples "exercício", tenderia a aproximá-las dos estudos de Chopin ou de Liszt, pelo virtuosismo que às vezes requerem para sua execução. Como Liszt e Chopin, Domenico Scarlatti era um improvisador fantástico, e é antes de tudo no próprio cravo que devemos buscar a origem de sua inspiração: encontramo-nos aqui nos antípodas do universo (mais abstrato) de Johann Sebastian Bach. Ralph Kirkpatrick — sem dúvida, o maior conhecedor de Scarlatti em nossos dias — definiu três períodos essenciais na obra do compositor depois dos primeiros Essercizi. Há o período dito "flamejante" de muito maior virtuosismo que o daquele marco inicial (com os cruzamentos de mãos mais acrobáticos de toda a
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obra de Scarlatti). Nesse período, que se estende aproximadamente por dez anos (1742 a 1752), vê-se a junção por pares de sonatas complementares. Já se pode notar, em desenvolvimento, aquela que se tornaria uma das fórmulas prediletas do compositor: a expansão progressiva de um intervalo, que faz com que, de repente, uma voz se parta em duas. Essa difração das linhas sonoras, um pouco à maneira de um jogo caleidoscópico, cria, por vezes, uma certa — e voluntária — confusão, que contribui para fazer passar o ouvinte do plano real ao plano onírico. O espaço assim explorado é, vez por outra, ilimitado (cor, luz, sonho: Debussy não está longe). Vem em seguida um breve período intermediário (Sonatas K 206 a 266) que comporta, em maior número, movimentos lentos (a magnífica Sonata K208). Esse período de dois anos caracteriza-se por uma inspiração mais interiorizada. Finalmente, a partir de 1754, espalha-se o "fogo de artifício" terminal, em que se abre o leque de todas as aquisições scarlattianas: são desse terceiro período a mais curta das sonatas de Scarlatti (K431) e a mais desenvolvida (K402). Se pensarmos que Domenico Scarlatti é rigorosamente contemporâneo de Johann Sebastian Bach, a sensação que nos vem é de que os dois músicos simplesmente não pertencem ao mesmo planeta: à "engenhosa brincadeira com a arte" do primeiro correspondem as grandes construções contrapontísticas do segundo; ao exercício da "execução ousada no teclado" (como está escrito pelo próprio Scarlatti em seu prefácio aos Essercizi), o desenrolar-se do pensamento abstrato do autor da Arte da fuga. Imensa figura da Hteratura para cravo, Domenico Scarlatti nem por isso deixa de ser um fenômeno musical isolado: não se encontra descendência de Scarlatti, nem na Itália, nem na Espanha. Melhor seria substituir a noção de descendência direta pela de "filiação espiritual", aplicável, esta sim, tanto aos criadores da sonata clássica como aos "grandes" do piano, no século XLX como no século XX. A música instrumental italiana no século XVIII No plano instrumental, a Itália conservou no século XVIII a supremacia conquistada no século precedente, tornando-se a grande nação exportadora de música do mundo. A música de teclado evoluiu pouco. Em Nápoles e em Roma, a tocatta barroca cristalizou-se em formas típicas que, ou seguem o modelo frescobaldiano — sem deixar de introduzir nele uma linguagem harmônica diferente, mais consonante —, ou reagem contra esse modelo, muitas vezes sob a influência da escrita melódica do instrumento por excelência do século XVIII: o violino. De início, a música de teclado (como. a de Frescobaldi) podia indiferentemente ser tocada no órgão ou no cravo. Contudo, o desenvolvimento de estilos distintos já se faz sentir com Domenico Zipoli (1688-1726), ou com Francesco Durante
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(1684-1755). Já em 1711, no Giornale de' Litterati d'Italia [Jornal dos homens de letras da Itália], Scipione Maffei anuncia a construção de um "piano" por Bartolomeo Cristofori, fabricante dos Médicis em Florença. Na verdade, a assimilação do novo instrumento (o pianoforte) foi lenta: não esqueçamos que o maior dos músicos achava-se vivendo na Espanha e que sua música, publicada em Londres (Essercizi), era desconhecida na Itália. Seria preciso aguardar os anos 1760-1770 e o aparecimento de compositores como Pier Domenico Paradisi (1707-1791) ou Baldassare Galuppi (1706-1785) para ver surgirem os primeiros sinais de uma escrita idiomática do novo instrumento. Foi no domínio do violino que a música instrumental se fez portadora de uma renovação em maior grau. A perfeição da luteria alcançada em Cremona por Stradivarius (seu apogeu começa por volta de 1700), Garneri e Ruggieri coincide com o aparecimento de Arcangelo Corelli (1653-1713), que foi o primeiro compositor a formar uma reputação puramente instrumental. A obra de Corelli — seis cadernos de peças publicadas entre 1681 e 1714 —, perfeitamente construída, equilibrada, homogênea (em suma: já "clássica"), domina o gênero. Diversamente dos violinistas das gerações seguintes, Corelli sempre soube submeter o virtuosismo às necessidades da expressão (uma lição que Scarlatti aprendeu dele nos encontros que tiveram em Roma). A geração seguinte afastou-se desse caminho. Francesco Geminiani (ca. 1680¬ 1762), discípulo direto de Corelli, foi o último a transmitir a substância de seus ensinamentos. Fez carreira principalmente na Irlanda e na Inglaterra, onde foi publicado, em 1751, seu tratado The Art of Playing on the Violin [A arte de tocar o violino], de que saíram todas as escolas de violino modernas. Giusepe Tartini (1692-1770), que deixou compostos cerca de 150 concertos e outras tantas sonatas (em que se inclui aquela, famosa, dita Trilo do diabo), soube acrescentar ao rigor coreliano a inspiração já pré-romântica de um homem de espírito aberto. O mais ousado foi certamente Antonio Locatelli (ca. 1695-1764), que se fixou em Amsterdã, onde acabou se tornando um dos principais animadores da vida musical. Intérprete dotado de um virtuosimo que já era legendário na época em que viveu, exe¬ cutava seus Caprichos para violino solo fazendo sucederem-se as mais audaciosas acrobacias, algumas das quais Paganini jamais conseguiu superar. No fim do século, a habilidade instrumental de certos violinistas-compositores degenera em virtuosismo pelo virtuosismo (Pietro Nardini, Gaetano Pignani, Antonio Lolli, etc). Além do padre Martini (1706-1784) — bem mais célebre como erudito e como pedagogo do que como compositor — e de Vivaldi, que domina largamente a primeira metade do século, alguns outros músicos devem ser mencionados: Tomaso Albinoni (1671-1750), cujos concertos para quatro ou cinco instrumentos marcam uma etapa importante da escrita do concerto grosso, Benedetto Marcello (1686-1739), figura original que publicou tanto obras literárias como musicais (estas muito próximas das de Vivaldi), Giovanni Battista Sarnmartini (1698-
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1775), que ocupou na Europa musical uma posição considerável sem jamais ter deixado sua Lombardia natal. Finalmente, Luigi Boccherini (1743-1805), que foi um dos raríssimos virtuoses violoncelistas de seu tempo. Ao nome de Boccherini haveria de ficar ligada a emancipação da música de câmara, que ele liberou do jugo do baixo-contínuo, contribuindo para que ela se orientasse em direção ao esquema, que logo se tornaria o "clássico" da conversação entre muitos: a obra de Boccherini compreende 110 quintetos, que incluem dois violoncelos, 91 quartetos de cordas, e 48 trios para dois violinos e violoncelo. Neste sentido, Boccherini pode ser considerado um dos raros embaixadores do estilo vienense na Itália. Da enorme quantidade de música composta durante esse século (Vivaldi: cerca de mil peças; Sammartini: 2.800; Tartini: mais de cem concertos ainda inéditos, etc.), o que fica — se deixarmos de lado os defeitos evidentes dessa música (domínio absoluto da consonância, acarretando a reiteração de certas formas que degeneram em "cacoetes" de escrita) — são suas grandes linhas estilísticas: a racionalização da forma (a suite e a toccata "tiram o chapéu" para a sonata), a predominância da melodia (uso idiomático do instrumento) e a passagem das dinâmicas em patamares do barroco a uma concepção mais sinfônica da escrita, já latente, por exemplo, em Boccherini. Nas proximidades do fim do século, entretanto, o êxodo dos músicos italianos atingiu tais proporções que o país se empobreceu musicalmente. O futuro da escrita instrumental está, dali por diante, em Viena.
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A MÚSICA VOCAL ITALIANA DE PERGOLESI A CIMAROSA
Se situarmos o apogeu da música barroca por volta de 1750, não há como não nos impressionarmos com a importância adquirida pela ópera italiana e com a distância entre a forma a que então já havia chegado e as primeiras experiências de um gênero que tinha apenas um século e meio de existência. Com exceção da França, onde ainda prevalecia a tragédia lírica herdeira de Lully, a ópera-italiana apossouse de toda a Europa. Reina soberana em Viena como em Madri, em Veneza como em Nápoles. Haendel a impôs na Inglaterra. Nas inúmeras pequenas cortes da Alemanha, a ópera italiana é apresentada e, o mais das vezes, mediocremente traduzida para os idiomas locais. Os compositores podem bem chamar-se Hasse ou Haendel e ser saxões, mas seu credo de base não difere daquele de um Vivaldi ou de um Porpora. Músicos de todos os tipos são para a Itália um artigo de exportação perfeitamente padronizado: todos pensam e trabalham segundo as mesmas regras. Só resta uma diferença, acentuada pela língua. Há duas óperas: a opera seria, dramática e nobre, que invade realmente a Europa, e a opera buffa, cômica e popular, que ainda por algum tempo continuaria confinada à península italiana. A opera seria
A opera seria, modelo cultural de uma Europa a meio-canrinho entre a idade do absolutismo e a era das Luzes, tornou-se, justamente sob o peso de seu sucesso, uma máquina incrivelmente esclerosada. A divisão em recitativos e árias, primitivamente motor do movimento dramático, adquiriu um valor quase sagrado: im-
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pôs-se como um rito inevitável, criando seus próprios hábitos de audição. É forçoso reconhecer que o problema criado para os sucessores de Monteverdi pelo conceito de drama lírico não era de fácil solução: era preciso a um só tempo dar aos cantores a ocasião de fazer valerem suas qualidades excepcionais, oferecer um espetáculo capaz de interessar visualmente os espectadores e amarrar esses elementos sem ligação entre si num enredo que apresentasse toda a "nobreza" necessária e assegurasse um nível mínimo de coerência. Praticamente, era problema tão simples de resolver como a quadratura do círculo. Somente no princípio do século XVIII ficou pronta a fórmula considerada perfeita. A ópera foi cortada em fatias, sem levar em conta a unidade musical: alternadamente, passam a ser usadas passagens para contar a ação (daí o nome de recitativo) que preparavam os tempos fortes da representação — as grandes árias, domínio absoluto do cantor. Algumas intervenções instrumentais permitiam criar a atmosfera e disfarçavam os tempos mortos necessários para instalar e acionar, por trás da cena, as "máquinas". Assim descrita, a fórmula pode dar a ilusão de um equilíbrio racional entre imperativos contraditórios. O recitativo teria podido incumbir-se do papel outrora exercido pela ópera como um todo — o de apresentar um drama, lançando mão de uma narrativa que recorria aos sortilégios da música. Menos diretamente ligadas à ação, as árias ter-se-iam tornado, nesse caso, excrescências; podiam ocupar o lugar que, na tragédia clássica francesa, cabia aos grandes monólogos de introspecção ou de exame dos sentimentos. Uma certa lógica do desenvolvimento, contudo, acabou por decidir as coisas de outra maneira. Do ponto de vista musical, o recitativo foi inteiramente sacrificado às árias, cuja forma, codificada ao extremo, isolava-as do desenrolar dramático. Para dar ensejo aos cantores de exibirem toda a sua agilidade vocal, propunha-se-lhes retomar, no final das árias, o tema inicial, ao qual estavam autorizados a acrescentar toda espécie de ornamentos. Escreveramse para eles árias em duas partes, opondo os dois aspectos de uma personalidade vocal. Mas o que se podia esperar, em termos de ação dramática, de um monólogo em que, por definição, o herói terminava com as mesmas palavras e a mesma música que haviam marcado sua entrada em cena, depois de haver, como que entre parênteses, expressado um sentimento diferente? De grande sedução para o cantor — e não tanta, talvez, para o músico — a forma A-B-A das árias era uma forma fechada; não poderia senão permanecer estática e paralisar tudo o que a rodeava. O fato de ser um nonsense dramático não a impediu de sobreviver até o século XIX. Colocar esse nonsense no centro da ópera — que era o que acontecia nos anos 1750 — eqüivalia a reduzir o gênero a um exercício de canto, de bel canto no sentido etimológico do termo. Isso implicava automaticamente pôr na sombra a narrativa da ação, que é o motor do drama, efetuada na forma de um recitativo seco e rápido, por um cantor que morria de tédio de o fazer, para uma platéia que o ouvia com o mínimo de atenção possível. Assim sendo, boa parte das óperas da época nos causa hoje a impressão de belos momentos (porque a música é realmen-
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te bela nesses momentos), que nos chegam na voz de cantores talentosos, dispostos (esses momentos) numa ordem — melhor dito, numa desordem — perfeitamente aleatória. Para nos certificarmos de até que ponto essa impressão moderna não está longe da realidade da época, basta fazer um inventário de quantas óperas pasticcio se produziam então (aquelas que os bons cozinheiros musicais preparavam utilizando restos de velhas óperas). É dessa época o costume entre cantores de ter uma ária dita "de valise", que levavam consigo em turnês, exigindo fosse inserida nas obras que deveriam cantar e com as quais nada tinha a ver. Foi assim que Haendel fez sua entrada na Inglaterra, antes mesmo de ter deixado a Itália, bem no meio de uma ópera de Alessandro Scarlatti. Verdadeiras árias passepartout, em papéis operísticos passe-partout, saídos de libretos passe-partout— a doença da opera seria está exatamente nesse curioso anonimato generalizado, que tudo sacrifica ao prazer da performance superlativa de um monstro sagrado. Essa receita de fabricação bem merece a censura que Stravinski aplicou injustamente aos concertos de Vivaldi: é seiscentas vezes a mesma coisa. Não que os músicos permanecessem completamente passivos diante desse estado de coisas. Nos melhores, encontramos tentativas de caracterização dos personagens; certas cenas eram bem construídas e de fato emocionantes. A maior dificuldade estava em escapar à convenção que pretendia que um cantor desaparecesse de cena assim que terminava "sua" ária. A opera seria praticamente não continha diálogos ou cenas de conjunto. Inspirava-se, para seus enredos, numa Antigüidade convencional, nisso se assemelhando aos dramaturgos franceses do século de Luís XIV. Pretendia-se moral e pertencia ainda ao mundo do absolutismo: heróico, o príncipe era um modelo de virtude, triunfante ou sacrificada, mas sempre exemplar na solidão deliberada do herói. Se algum compositor reagia contra esse jugo das convenções, não o fazia senão por toques isolados, aproveitando a eventual oportunidade que lhe oferecia algum libreto um pouco diferente dos demais. O caso de Haendel é típico: de temperamento dramático indiscutível, encontrou como expressar-se livremente nos seus oratórios. Nas óperas, deparamos com algumas manifestações desse temperamento: o longo monólogo de Bajazet assassinado clamando por vingança sobre a cabeça de Tamerlão, o quarteto vocal de Radamisto, o grande melodrama central de Ahina, até a deformação, tanto literária como musical, que fez de Xerxes um príncipe de farsa extraviado, com direito de vida e de morte, numa intriga de amor e poder. Em tudo isso podem-se 1er as promessas de um outro tipo de ópera, mais flexível e mais livre; Haendel, porém, não perseguiu até as últimas conseqüências o seu próprio pensamento, não erigiu em sistema o que, para ele, eram apenas idéias de homem de teatro, próprias para enriquecer uma ópera, mas que não justificavam um questionamento radical. 1
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Que se encaixam em tudo. (N. T.)
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E não foi por preguiça de espírito, nem por conservadorismo apático, que não o fez. Prevalecia a constatação, mais ou menos consciente, de que a máquina, tal como funcionava, dava satisfação a todos, em primeiro lugar aos cantores, sem os quais a ópera não existiria. Monstros sagrados eles já eram e continuarão sendo na medida em que suas performances ultrapassam a capacidade de uma voz normal. Sempre houve, na admiração que despertam, algo do espanto infantil com que acompanhamos o balançar do equilibrista na corda bamba. O "até onde?" faz parte do estupor do homem normal diante do virtuose que derruba os limites habituais do desempenho humano. A isso vinha somar-se, no século XVIII, a fascinação meio mórbida que suscitava o fenômeno dos castrati, seres de exceção, desafio um tanto monstruoso à natureza, fragmentos da criação modificados por um ato humano. O castrato — e nesta questão a França mais uma vez se singularizou pela reticência de que deu mostras — estava no centro do sistema de ilusões que era o mundo da ópera. Era o próprio signo da artificialidade: titular dos papéis principais masculinos, cantava numa tessitura inaudita, estranha à natureza, mais elevada, muitas vezes, que a dos principais papéis femininos. Tudo na representação tornava-se miragem, inversão dos dados da experiência cotidiana, universo codificado a que só podiam aceder os que possuíam suas chaves. "Rouxinóis" tão preciosos não podiam ser tratados como seres humanos comuns. Era perfeitamente lógico que se emoldurasse cada uma de suas árias como se engasta um diamante. Um Farinelli, um Senesino, por efeito de sua mutilação, tiravam exclusivamente do teatro sua existência real. Em qualquer outro lugar, seriam considerados monstros. Era justo, portanto, que o teatro inteiro se organizasse em função de suas intervenções. O que era válido para os maiores, vale também, por contágio, para os menos gloriosos. Tanto mais que a multiplicação das salas de ópera fazia de cada cantor ou cantora um primo uomo ou uma prima donna em potencial, mesmo que fosse num principado de terceira classe. Evidentemente, o cantor era o primeiro a beneficiar-se com esse prêmio ao vedetismo que é a ária da capo, unidade de base da ópera. Mas não era o único a tirar vantagem desse sistema artificial. Seu cúmplice natural era o libretista. É comum esquecer-se a posição de prestígio que tiveram, no século XVIII, um Apóstolo Zeno (1688-1750) ou seu sucessor, ainda mais célebre, Pietro Trepassi, dito Métastase (1698-1782). Seus contemporâneos os consideraram escritores muito importantes, comparando suas obras às de Corneille e Racine. Métastase, em especial, poeta "imperial" da corte de Viena, foi promovido ao círculo de grandes dramaturgos da história literária de todos os tempos. Voltaire elogiou "sua poesia... e sua elegância contínua que embelezam o natural sem jamais enfeitá-lo". Stendhal o pôs em boa companhia nas suas Lettres sur Haydn, Mozart e Métastase [Cartas sobre Haydn, Mozart e Métastase]. Na verdade, Métastase reinou por mais de meio século sobre a ópera italiana: sua obra não inclui mais que 27 libretos de
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ópera importantes, mas, como medida do impacto que tiveram na época, basta mencionar que alguns desses libretos chegaram a ser aproveitados até sessenta vezes, por músicos em geral eminentes. Foi com La clemenza di Tito [A clemência de Tito], libreto de Métastase, já enfrentado por Leo, Galuppi, Hasse, Gluck, Scarlatti, Veracini e muitos outros, que Mozart encerrou sua carreira lírica, numa dobradinha com Die Zauberflõte [A flauta mágica], que não deve quase nada à ópera italiana. Para um Métastase, a opera seria era uma forma literária tanto quanto uma forma musical. Não lhe desagradara, portanto, que a atenção do público só se voltasse para a música em certos momentos do drama, determinados e escolhidos por ele, o que não deixava de ser uma forma de impedir os cantores de invadirem um território em que o poeta deveria reinar soberano. A composição de um libreto de ópera começava como a preparação de qualquer tragédia. O texto, que se tornará o recitativo, não tinha nenhuma razão para ser diferente de um texto falado; somente algumas estrofes, espaços reservados numa construção que poderia dispensá-los, eram retrabalhadas numa perspectiva de canto. E estes eram indiferentes ao desenrolar do drama: não passavam de comentários ou de reflexões que se prestavam, por sua natureza, à forma fixa da ária da capo. Numa época em que o libreto de uma ópera era sempre impresso e vendido no teatro, o escritor podia esperar que seu texto sobrevivesse melhor à passagem do tempo do que a música, essencialmente fugaz, reservada a apreciadores que teriam muita dificuldade em reencontrá-la numa versão escrita. O libretista só precisava entrar em contato com o músico quando se tratava de acertar como se faria a distribuição das árias no curso da obra. Era esse, decerto, o momento mais penoso para ele, pois em geral essa distribuição nada tinha a ver com a lógica dramática, e muito pouco com uma lógica musical. Fazia-se essencialmente em função da hierarquia dos cantores: era preciso satisfazer as exigências de alguns dentre eles, em detrimento dos outros. Goldoni, em suas Memórias, transmite os conselhos que lhe foram dados por um homem de experiência na ocasião em que escreveu seu primeiro drama lírico. Os três protagonistas do drama devem cantar cinco árias cada um; duas no primeiro ato, duas no segundo e u m a no terceiro. A atriz e o ator que se situam logo abaixo s ó podem cantar três; e aos ú l t i m o s papéis estão reservadas uma ou duas, no m á x i m o . O autor deve (...) tomar cuidado para que duas árias patéticas n ã o se sucedam; é preciso distribuir com a mesma precisão as árias de bravura, as árias de ação, os minuetos e os rondós. Sobretudo, muito cuidado para n ã o dar árias apaixonadas, nem árias de bravura, nem r o n d ó s , aos papéis secundários.
Essa trama de cumplicidades, que favorecia as façanhas técnicas dos cantores à custa de todos os outros elementos da ópera, não passava, a bem dizer, da deformação de um equilíbrio desejado, no qual "o poeta e o músico teriam direito a receber
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a mesma atenção do público; o escritor, nos recitativos e nas passagens de narração, o compositor nas árias, nos duos e nos coros". Tal desiderata de Charles Burney, expresso ao comentar a ópera metastasiana, mostrou-se inviável pela reação de um público que aceitava muito comodamente a separação recital/ária e dela fazia uma das bases de seu comportamento no teatro. Para os espectadores, estava fora de cogitação seguir esses recitativos intermináveis. Os amantes de poesia leriam o l i breto em casa; os demais, bem à vontade no recinto de seus camarotes, procuravam distrações que não interrompessem sua vida mundana: conversa, jogo, negócios — sem falar da xícara de chocolate, ancestral dos nossos modernos esquimaux glacés. A atenção do público voltava a ligar-se à cena quando surgia o grande castrato, grande soprano, grande atração, o verdadeiro herói da festa. Isso explica a importância atribuída por Haendel aos ritornelli de introdução de suas árias, cuja razão de ser não era unicamente musical: eles ali estão como uma chamada à atenção do público para as delícias que anunciavam e prefiguravam. Uma vez terminada sua ária, o cantor deixava o palco, que não saberia partilhar com seres de menor importância; os camarotes voltavam a suas atividades particulares. Cantores, libretistas, público, e músicos também, que cediam com demasiada freqüência às facilidades desse sistema perfeitamente ordenado, todos contribuíam para fazer da opera seria um espetáculo monstruoso em seu esplendor, incompreensível para os não iniciados, e que nada, ao que parece, seria capaz de modificar. A opera buffa
Enquanto a forma opera seria se esclerosava, a opera buffa veio de Nápoles e se afirmou. Nas primeiras manifestações da arte lírica, a musa trágica e a musa cômica conviviam bem. Mas, à medida que uma triunfava e assegurava para si uma exclusividade de fato nos espetáculos da aristocracia, a outra esquecia sua origem nobre, via-se relegada a públicos burgueses ou populares; acanalhava-se, apelava para o dialeto provinciano, tendia para a farsa. De sua antiga legitimidade, não ficaram mais que os intermezzi, sem outra valia que a de distrair do tédio dos entreatos. Somente nos primeiros anos do século XIX é que a vemos aparecer abertamente, com sua independência assumida. Mas já a partir de 1709, um dos dois teatros de Nápoles, o Fiorentini, consagrara-se exclusivamente à opera buffa. Expediente econômico para recuperar ó teatro de uma situação difícil, a medida acabou trazendo consigo uma transformação da ópera. As primeiras produções do Fiorentini cheiravam ainda ao húmus de suas origens: o dialeto napolitano era mais freqüentemente usado que o italiano clássico. Mas estava feita a prova de que um público diversificado pode interessar-se pelos incidentes agradáveis, cômicos ou sentimentais da vida de todo dia. A nova fórmula aos poucos ganharia o Norte da Itália. No curso dessa migração, uma forma original foi-se elaborando.
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PERGOLESI
Uma das personalidades mais cativantes que encontramos nesse percurso é a de Giovanni Battista Pergolesi (1710-1736). Nascido em Jesi, na província de Ancona, Pergolesi foi ainda bem jovem para Nápoles. Sempre doente, compôs muito pouco, e ser-lhe-ia atribuído um número de obras muito maior do que o que realmente escreveu. Uma carreira póstuma deslumbrante veio confundir os traços da carreira real em que o desditoso músico conheceu apenas um sucesso relativo. Só se podem garantir como autênticas algumas de suas obras para o palco, algumas peças de música de câmara, duas missas, duas antífonas e o célebre Stabat Mater, obra derradeira de um tuberculoso em estado grave e cuja execução ele jamais chegaria a ouvir. Doença, pobreza, vala comum são os aspectos em que sua vida coincide com a de Mozart. A incrível celebridade que se abateu sobre Pergolesi poucos anos depois de sua morte leva por vezes a uma aproximação dos dois nomes, procedimento por demais afoito, que equivale a identificar na desgraça de uma vida a prova do gênio. No próprio Stabat Mater de Pergolesi, tão admirado, alternam-se passagens de grande intensidade dramática com páginas de um pieguismo inquietante. Qualidades e defeitos marcam igualmente a obra teatral de Pergolesi, à qual ele deveu sua fama e que o fez, dezesseis anos depois de sua morte, ser o detonador da chamada "Querela dos Bufões", que deixou Paris em polvorosa. Entretanto, suas duas opere serie— UOlimpíade [A olimpíada] e Adriano in Siria [Adriano na Síria] — não obtiveram nenhum sucesso. Só os intermezzi que as completavam receberam o aplauso do público. La serva padrona [A criada patroa] e La contadina astuta [A camponesa astuta] são muito superiores à tagarelice musical que habitualmente se compunha para preencher os entreatos. São pequenas comédias musicais, cuja destinação original condena a serem divididas em duas partes simétricas, mas que, por nenhuma outra característica, poder-se-iam distinguir das grandes opere buffeào autor. Lofrate 'nnamorato [O frade enamorado] e Flaminio, a primeira escrita em dialeto napolitano e a segunda em italiano, são modelos do gênero. Um fraseado musical bem flexível, a naturalidade de uma aria parlante que jamais incide em repetição e que acompanha os rumos tomados por uma fala eminentemente vivida são as características que assinalam o gênio próprio de Pergolesi. Embora sua morte precoce tenha feito dele um precursor cujos méritos tendem por vezes a ser exagerados, o fato é que Pergolesi permaneceu por muito tempo como o modelo ideal do compositor que infalivelmente seduz com o que escreve. "Saber de antemão que a música de tal ópera é de Pergolesi faz-me achar a ópera muito melhor que se eu ignorasse o nome do autor. Minha alma é convidada a devanear" confessará o dilettante Henri Beyle (Stendhal).
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A ESCOLA NAPOLITANA
Ao longo do século, numerosos foram os napolitanos que seguiram o caminho aberto por Pergolesi. Niccolo JommeUi (1714-1774), Niccolo Piccinni (1728¬ 1800), Antonio Sacchini (1730-1786), Giovanni Paisiello (1740-1816) e Domenico Cimarosa (1749-1801) são, à sua maneira, pesquisadores e apóstolos. Tais compositores, que em comum só têm uma prodigiosa facilidade melódica, alternam, em suas respectivas carreiras, o tratamento da opera seria a mais tradicional (em que se mantiveram fiéis a Métastase) com a opera buffa, que conduziriam até o limiar da era rossiniana. A comparação entre li barbiere di Siviglia [O barbeiro de Sevilha] de Paisiello (1782) e o de Rossini (1816) permite apreciar o nível de flexibilidade e mobilidade a que chegaram os mestres da escola de Nápoles. Além do mais, todos esses homens viajavam muito. Piccinni e Sacchini (em Paris), Paisiello e Cimarosa (na Rússia), todos eles em Viena numa ou noutra ocasião, atuaram como embaixadores de uma nova concepção da ópera italiana. Foram fermentos de novidade, tanto pelo que levavam ao exterior como pelo que lá escutaram e que incorporaram à sua bagagem musical quando chegou a hora de voltarem para casa. A nova música, de que se fizeram os caixeiros-viajantes, já não apresentava — nem mesmo na opera seria — as performances atléticas das óperas dos anos 1730. Para os contemporâneos italianos desses mestres, o que atribuímos a um desejo de flexibilidade, à busca de uma verdade expressiva, não era mais que a conseqüência da menor qualidade das vozes. Não resta dúvida de que, ao tempo de Pergolesi, um Caffarelli teria recusado cantar aqueles intermezzi, que haveria considerado muito abaixo do seu talento. Homem de viva inteligência, muito absorvido pelos problemas do teatro, Francesco Algarotti regozija-se com esse estado de coisas em seu Saggio solla musica di opere [Ensaio sobre a música de ópera], de 1755: Os compositores encontram-se na impossibilidade de entregar-se à sua fantasia naquela orgia de efeitos em que ostentavam os segredos de sua arte e todos os tesouros de sua ciência musical. Por sorte, essa prodigalidade insolente lhes está hoje interditada, tão estreitos são os limites que lhes impõem as capacidades de seus cantores.
O homem que assim se exprime não é um adversário da ópera. Pelo contrário, suas idéias, influenciadas por uma longa permanência na Alemanha, predizem o nascimento de uma nova ópera, mais dramática e mais rica. Ele simplesmente compreendera que a expressão é mais importante do que a mera exibição de qualidades vocais extraordinárias; aquela "ópera do cotidiano" que os napolitanos estavam inventando era capaz de transmitir — apesar ou por causa da fraqueza de seus intérpretes —- uma carga de emoção superior à das grandes peças encenadas segundo o modelo metastasiano. É difícil, hoje, compreender o entusiasmo que suscitaram Paisiello ou Cimarosa. Stendhal, de cuja admiração por Pergolesi já tomamos conhecimento, não hesita em colocar no mesmo pedestal Cimarosa e Mozart. Quando, em seus escri-
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tos íntimos, ele adota o preñóme de Dominique, é provavelmente em homenagem ao napolitano, que — reconhecia Stendhal — proporcionava-lhe um prazer mais vivido do que o que lhe vinha do salzburguense. Essa confusão entre talento e gênio nos escandaliza; ela é, no entanto, bastante compreensível nos contemporâneos. GIOVANNI PAISIELLO
Menos admirado pelos apreciadores, Paisiello aparece como uma espécie de mestre da alta-costura na música. Reinou oito anos na Ópera de São Petersburgo; seu Re Teodoro in Venezia [Rei Teodoro em Veneza] foi um triunfo em Viena. Personagem oficial da música no reino de Nápoles, Paisiello preferiu Londres e Paris à atmosfera um pouco enjoativa da corte dos Bourbons de Nápoles. Músico favorito do general Bonaparte, exerceu funções oficiais em seu país natal durante a breve e malsinada República Partenopéia. De volta a Paris, recebeu o encargo de compor a missa de sagração do imperador Napoleão. Mais tarde, em Nápoles, serviu ao rei José Bonaparte, ao rei Joachim Murât e chegou a conservar mesmo alguns de seus cargos depois de 1814. Não foi certamente o melhor músico da escola, mas foi sempre o primeiro da classe: sua música é agradável, sem surpresas, aceitável por todos os gostos. Ninguém, diga-se de passagem, jamais pensou em considerá-lo um gênio. 1
DOMENICO CIMAROSA
O caso de Cimarosa é mais complexo. Sua personalidade é mais marcante. Ao contrário do companheiro mais velho, não ganhou todos os prêmios, mas suas aventuras políticas têm mais colorido. Foi preso depois do fracasso da República Partenopéia; e sobre ele corre até mesmo uma lenda de que morreu por efeito de um misterioso veneno que lhe teria sido ministrado a mando dos Bourbon. Mas o caráter de Cimarosa era terno e cativante, sem falar que, para muitos, foi um verdadeiro gênio. Stendhal não foi o único a aproximar H matrimonio segreto [O casamento secreto] do Don Giovanni, de Mozart. O que hoje pode parecer incrível, pareceria mais razoável se nos perguntássemos o que Cimarosa pretendía oferecer a seu público: logo se veria que, em cerca de sessenta óperas (das quais menos de dez opere serie), Cimarosa jamais buscou outra coisa que não fosse a sedução pelo canto, e pelo canto mais fácil, aquele de que se conhecem e de que se saboreiam, por antecipação, todas as variações possíveis. Mas como está longe da idéia de que uma orquestra poderia ser um elemento musical ativo! Stendhal pensa mais ou menos na mesma linha quando comenta, apesar de sua devoção a Mozart, as "notas excessivas" e "os compassos lentos do autor de Cosi fan tutte". "A verve cômica e a riqueza de idéias" constituem um domínio em que Cimarosa é soberano para certos públicos que temem mais que tudo o aborrecimento de arriscar-se a um encontro con-
República fundada pelos franceses em Nápoles, em 1799, e que só durou alguns meses. (N. T.)
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sigo mesmo. Especialista da distração, Cimarosa não tem rival nesse jogo caleidoscópio) em que retornam sem cessar as mesmasfigurasmusicais e tea-trais, consumindo a única variedade numa ligeira mudança da ordem de apresentação. Ele está a serviço de uma sociedade fatigada, resolvida a não ouvir nada que possa perturbar seu conforto mental. Não há por que surpreender-se se II matrimonio segreto mostra-se mais adequado a relaxar as tensões do honesto imperador-funcionario Leopoldo I I do que seria capaz de fazê-lo Die Zauberflõte [Aflautamágica]. Opera buffa e opéra comique: nascimento da ópera moderna
Os sucessos napolitanos coincidem com um fenômeno importante: a retomada do contato entre a ópera italiana e a ópera "à francesa". Esta se havia defendido com êxito da tentação de macaquear o grande gênero que invadia o resto da Europa, vale dizer, a opera seria. A França acolheria muito mais favoravelmente as invenções italianas em matéria de opera buffa. Não que as coisas tenham corrido sem dificuldades; a Querela dos Bufões, que se encerra teoricamente com a derrota dos italianos, é uma prova do contrário. Mas os limites permanecem mal definidos entre a opéra comique de uns e a opera buffa de outros. Produz-se uma mescla cultural, que a política viria por vezes a facilitar. Em 1749, quando o infante Filipe de Espanha tornou-se duque de Parma, foi a um francês, Guillaume-Léon du Tillot, que ele entregou a orientação de sua política. Du Tillot admirava Rameau e, em 1758, fez vir Tommaso Traetta (1727-1779) de Nápoles para Parma com afinalidadeexclusiva de refazer "à italiana" a música de Hippolyte etAricie [Hipólito e Arúcia] e de Castor et Pollux [Castor e Pólux]. Traetta, em cuja obra se misturavam o bufo e o sério, viria a compor, para a corte de Viena, duas óperas: uma Armida (1761), com libreto inspirado em Quinault, e uma Iphigénie en Tauride [Ifigênia em Táuride], com texto de Marco Coltellini, que vivera muito tempo em Paris. Essas obras muito afrancesadas chegaram a Viena em momento propício. Gluck, que fizera conhecer aos vienenses os encantos da opéra comique francesa, sonhou com uma opera seria musicalmente mais maleável do que a que tinha escrito até então, e dotada de uma intensidade dramática maior que as histórias de deuses e de reis contadas por Métastase. Outro que também era meio parisiense, o libretista Rainero Calzabigi, contribuiu para impelir o músico em uma direção que ia justamente ao encontro dos desejos deste. Os resultados dessa colaboração foram Orfeo ed Euridice [Orfeu e Eurídice], em 1762, e Alceste, em 1767. A ópera italiana muda inteiramente de rosto nessas obras: já não há o recitativo secco; assistimos a um longo desenrolar lírico; e, se ainda subsistem árias solenemente destacadas, elas se integram por completo na ação dramática. O Orfeo de Gluck estava tão próximo da música francesa que, doze anos mais tarde, tornar-se-ia Orphée, em Paris, cantada em francês sem causar constrangimento a ninguém. ***
A miísica vocal italiana de Pergolesi a Cimarosa
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Durante toda essa mutação, em que a ópera tradicional ficou recebendo pressões de Nápoles e de Paris, chama a atenção a influência dos libretistas. É a eles que cabe dosar o peso que terão as personagens nobres e as personagens bufas em uma obra; deles depende a possibilidade de encontrar, em um texto poético mais flexível, o suporte para um arioso apaixonado ou para um recitativo accompagnato que não seja unicamente crônica dos acontecimentos. Homens que, por definição, ficam em segundo plano, é graças aos libretistas que o músico fará obra de dramaturgo ou reduzir-se-á à função de mero fornecedor de árias de bel canto. Nesse fim do século XVIII, os libretistas tentavam reencontrar algo que existia na ópera primitiva e que desaparecera na utopia metastasiana: o palco compartilhado por personagens trágicas e cômicas. Os libretistas já não partem de um drama tornado mais leve por um confidente ridículo ou por um rival grotesco, mas de uma comédia burguesa que faz agir, como em paralelo, as pessoas da boa sociedade e sua contrapartida popular. Tal como acontece às paralelas, essas duas séries de personagens jamais se encontravam, pelo menos nos primeiros ensaios do gênero. Dupla face de um espelho das paixões, eles passam, de si próprios, uns aos outros, uma imagem um tanto deformada, objeto de inveja ou de escárnio. O pequeno mundo da opera buffa subia um degrau na escala social, ao mesmo tempo que integrava o elenco de personagens dos intermezzi. Mas, na hora de cantar, cantava cada qual de seu lado. Foi Cario Goldoni quem primeiro tirou a conclusão lógica de seus sucessos teatrais e abriu uma brecha nesse muro que ainda separava na ópera as parti serie e as parti buffe. Reproduzindo o tom de seu teatro falado, Goldoni forneceu a Baldassare Galuppi (1706-1785) libretos em que um pequeno mundo familiar se agitava nas paisagens bucólicas e cotidianas da Arcadia in Brenta [A Arcádia em Brenta] ou na fantasia do Mondo delia luna [O mundo da lua]. Os esboços são vivos mas a caracterização social desses mezzi caratterijá não impunha ao músico fazê-los cantar em separado, isolados uns dos outros por uma barreira sociomusical. Haydn seguiu Galuppi nesse caminho goldoniano, utilizando três libretos do escritor de Veneza (tornado, entrementes, parisiense). A fusão enfim se realizava: nascia a ópera moderna, cujas primeiras obras-primas não tardaram a surgir como frutos da colaboração entre Mozart e Lorenzo da Ponte. Mas foi preciso percorrer todo esse longo caminho para que o finale de Don Giovanni pudesse reunir personagens vindos de duas óperas e de dois mundos diversos: dona Anna, dona Elvira, dom Ottavio, de um lado, e, do outro, Zerlina e Leporello. Mozart morreu em 1791 e, no mesmo ano, L'anima del filosofo [A alma do filósofo] assinalava a despedida de Haydn da ópera. Cimarosa, cujo Matrimonio segreto data de 1792, viveu até 1801. A ópera que haveria de nascer no século seguinte muito lhes deve, sem prejuízo da escolha de seus próprios novos caminhos.
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JOHANN SEBASTIAN BACH (1685-1750)
A música alemã do princípio do século XVIII e muito particularmente a obra de Johann Sebastian Bach são incompreensíveis se não conhecermos a situação precisa da sociedade na Alemanha do período que vai do Tratado de Vestfália (1648) à ascensão da Prússia à categoria de grande potência (1740). A Alemanha no tempo de Bach Dividida em pequenos Estados soberanos, dominada majoritariamente pelo luteranismo, cujo impacto na vida cotidiana era considerável, a Alemanha encontrava-se então numa espécie de estado de mutação lenta. A sociedade alemã parecia despedaçar-se aos arrancos violentos de forças divergentes. Havia, em primeiro lugar, as cortes soberanas. Cada pequeno príncipe, duque ou margrave era senhor em suas terras. A unidade alemã não tinha qualquer realidade. Cada principado tinha suas leis, suas tradições, seus costumes — e, o mais das vezes, sua religião: cujus regio, ejus religio. A religião do príncipe (catolicismo, luteranismo ou calvinismo) era a dos seus súditos. Tais cortes principescas, não raro minúsculas, sofriam muito fortemente a influência das culturas estrangeiras, principalmente as da Itália e da França. Os protestantes franceses, depois da revogação do Édito de Nantes, anuíram para a Alemanha, onde aí introduziram a língua, a cultura e a música francesas. Cada um dos príncipes germânicos tinha seu Kapellmeister, cantores e instrumentistas, e algumas daquelas cortes principescas tomaram-se centros de música de certo relevo. Bach viveu em duas delas: a de
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Quarta parte: a primeira metade do século XVIII
Weimar e a de Kõthen. Mas foi na corte de Celle, na Baixa Saxônia, entre os quinze e os dezoito anos, que Bach teve contacto com a arte e o modo de vida franceses, graças às figuras dessa nacionalidade que rodeavam a duquesa de BrunswickLüneburg, ela própria de origem francesa. Gozando de inteira independência em relação a esse universo social e cultural — e sem entrar em conflito com ele, diga-se de passagem —, havia uma outra sociedade que parecia como que levar uma vida paralela à das cortes: era a sociedade das pequenas cidades dotadas de suas próprias estruturas, sua organização, seus conselhos, suas assembléias. Culturalmente mostrava-se muito mais tradicionalista que a outra, impregnada de 150 anos de intensa vida religiosa, luterana na maior parte dos casos. A vida alemã nessas cidades pequenas pautava-se em uma seriedade, uma austeridade, uma gravidade provindas daquela religiosidade que permeava toda a sociedade e regulava o destino de cada indivíduo. A paróquia e seu Conselho — o "Consistorio" — eram o sustentáculo da existência dos artesãos, dos burgueses (no sentido antigo e germânico da palavra), do povo miúdo das cidades, das quais as mais importantes só raramente tinham mais de 20 mil ou 30 mü habitantes. No entanto, na primeira metade do século XVIII, surgiu um elemento novo, sob a forma do que ficou conhecido como Aufklãrung, o fluminismo. Um movimento intelectual, em parte sob influência francesa, esboçou-se no interior da sociedade burguesa das cidades alemãs e reagiu tanto contra a tradição luterana e suas estruturas estabelecidas como contra o cosmopolitismo das cortes. Corte dos principados, burguesia urbana, paróquia luterana e cenáculos intelectuais — estas quatro forças sociais e morais estarão atuantes na vida e na obra de Bach, obra que, pode-se dizer, é ao mesmo tempo construída e dilacerada pela convergência e pela divergência desses quatro vetores. Nesse sentido, a arte eterna de Bach está profundamente enraizada numa situação histórica precisa, que determina não apenas seu destino, suas escolhas culturais, mas também algumas de suas forças morais e psíquicas. O enraizamento de Bach na sociedade das pequenas cidades alemãs, os laços que o prendem à religião luterana, a tentação da vida na corte, da arte profana e moderna, sua opção definitiva pela tradição, sua decepção final devida à própria evolução dessa sociedade burguesa e alemã não foram apenas situações e escolhas sociais, mas culturais, e todas tiveram repercussão moral, espiritual e psicológica sobre o músico. Biografia e personalidade Antes de Bach, há os Bach. A personagem de Johann Sebastian Bach explica-se, primeiramente, por uma família e uma tradição que, longe de constituírem um obstáculo a sua evolução, serviram-lhe como um trampolim de notável potência. Do moleiro Veit Bach que, perto dos fins do século XVI, tocava citara enquanto
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Quarta parte: a primeira metade do sécido XVLV
olhava para o seu grão sendo moído, e que foi o primeiro Bach conhecido como músico, até o próprio Johann Sebastian, contam-se 33 homens com o nome Bach: 27 deles foram músicos — organistas, mestres de capela, Haussmànner (músicos municipais), violinistas, compositores. O menino Johann Sebastian só via à sua volta irmãos, tios, primos — e seu pai, naturalmente — ligados simultaneamente à música como a um "ofício" sólido, à igreja luterana e à Turíngia natal. Os Bach achavam-se presos por laços inquebrantáveis a dois desses pólos sociais e culturais a que nos referimos como constituintes do tecido da Alemanha de então, e inseparáveis um do outro. Não é difícil avahar o poder exercido por essa base familiar sobre a formação do jovem Johann Sebastian. Órfão, a família tomou conta dele e o educou, dando a ele uma situação profissional. Arranjou para ele um lugar como organista (ao largar essa colocação, mais tarde, deixou-a para um de seus primos). Um Bach nunca estava só na vida. E foi com uma Bach — uma de suas primas — que Johann Sebastian se casou. Seu caminho estava, de certo modo, traçado desde a infância, e as reviravoltas da existência, que teriam podido deixar um outro acabrunhado e isolado, contaram com essa grande tribo generosa para atenuar-lhes o impacto. Johann Sebastian Bach nasceu em 1685, aquele ano magnífico em que também vieram ao mundo Haendel e Scarlatti. O pai, Ambrosius Bach, que era violinista e "músico municipal" em Eisenach, pequena cidade da Turíngia, ensinou o menino a tocar os instrumentos de corda, ao passo que o tio Johann Christoph, excelente compositor e organista na mesma cidade, iniciava-o no órgão. Ainda bem criança, Johann Sebastian fez parte do coro. Um golpe atrás do outro, aos nove anos estava órfão de pai e de mãe. Foi seu irmão mais velho, organista em Ohrdruf, que se encarregou de sustentá-lo, ensinando o menino a tocar cravo e a compor. Aos quinze anos, por sua própria iniciativa, Johann Sebastian se fez admitir na escola de São Miguel de Lüneburg, onde eram acolhidos jovens pobres com alguma formação musical. Em troca de cantar na igreja que tinha o mesmo nome da escola, o jovem recebeu ali uma sólida educação, com aulas de retórica, latim e grego, lógica, teologia e, naturalmente, música. Aprendeu francês — a língua do mundo do espetáculo, da dança, da música de Lully — e mais tarde entrou em contato com os organistas do Norte da Alemanha. Depois, com ajuda da família Bach, fez sensação em Arnstadt, onde havia uma vaga para organista. Foi contratado sem fazer concurso em 1703, com apenas dezoito anos. A adolescência de Johann Sebastian Bach tem qualquer coisa de admirável. Uma espécie de instinto infahvel parece impeli-lo incessantemente, sem hesitação, não apenas no sentido de um conhecimento sempre mais amplo como de um desenvolvimento moral de adulto. Ele parece estar sempre dotado de uma maturidade superior à de sua idade, que guia suas escolhas de maneira infahvel. E, do fundo da Alemanha, ele descobre a cultura francesa sem sair da tradição alemã.
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A Itáha vem até ele com a música de Frescobaldi. E há o apelo dos organistas do Norte — Georg Bõhm, o velho Reinken e,finalmente,Buxtehude. Para ouvir este último, Bach chegou mesmo a cometer uma estranha fuga: pediu quatro semanas de licença e acabou ausentando-se por quatro meses. A coisa não foi bem recebida em Arnstadt e ele rompeu seu contrato tão logo surgiu outra vaga de organista, dessa vez em Mühlhausen, onde também o admitiram depois de uma audição, sem concurso. Casou-se então — tinha 22 anos — com a prima Maria Barbara Bach. Sua fama já era grande. Trocou Mühlhausen pela corte de Weimar, com as funções de organista, violinista e compositor, mudando de meio social por muitos anos. Era, agora, músico "de corte" e não mais músico municipal ou de igreja — ainda que suas funções fossem, em parte, ligadas à música religiosa. Estava a serviço de um príncipe, não de uma municipalidade ou de uma paróquia. Isso era uma promoção para ele —mas, de certa forma, uma ruptura com sua tradição familiar. Esse tempo que Bach passou em Weimar (1708 a 1717) trouxe-lhe, por outro lado, um enriquecimento musical considerável. Trouxe tensões, também. O duque que estava no poder era de trato difícil. Bach sentia-se mais atraído por seu sobrinho e herdeiro, o príncipe Wilhelm Ernst, melómano apaixonado. Não tardaram a surgir dificuldades. Chegaram mesmo a confiná-lo por um mês, durante o qual compôs o Orgelbüchlein [Pequeno livro do órgão]; passado esse episódio, conseguiu permissão de deixar Weimar por uma outra corte, a do príncipe Leopold d'AnhaltKõthen (1717-1723). Os cinco anos passados por Bach em Kõthen foram provavelmente os mais felizes de sua vida, apesar da perda que sofreu com a morte de Maria Barbara. O príncipe era inteligente, aberto, agradável, músico (tocava viola melhor do que um simples amador). Reunira a melhor orquestra da Alemanha (dezessete músicos, muitos dos quais virtuoses famosos). Bach gozava não somente de uma real consideração e de bom salário, mas de verdadeira amizade por parte de Leopold e dos que o rodeavam. Essas condições ideais para um artista (ter à sua disposição todos os meios de criar, e saber que sua obra é compreendida e apreciada... que artista não sonhou com isso?) iriam permitir a Bach uma produção abundante. Concertos, sonatas (quase toda a sua música de câmara data dessa época), O cravo bem temperado, as suítes e partitas, as aberturas para orquestra, os Concertos de Brandenburgo... Em Kõthen, Bach casou-se pela segunda vez, com Anna Magdalena Wilcken, filha de um trompetista da orquestra e cantora da corte. Manifesta-se, contudo, nesse período, uma insatisfação; e é por onde se pode medir o domínio exercido, consciente ou inconscientemente, pela tradição familiar. O príncipe Leopold era calvinista e, em Kõthen, a música religiosa não tinha qualquer participação no culto. O papel de Bach era, portanto, exclusivamente profano. Ao que parece, Bach teria sentido fortemente — em parte, talvez, por
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influência da perda de Maria Barbara — a necessidade de voltar a trabalhar para a igreja, como sempre o haviam feito seu pai e seus antepassados. Tentou, de início, conseguir um lugar como organista em Hamburgo. Até que apareceu a ocasião, como Kantor na Thomasschule [Escola de Santo Tomás] em Leipzig. Bach mudou o curso de sua vida e renunciou a todas as vantagens adquiridas. Por um salário menor, escolheu o posto de Leipzig, repleto de inconveniências que não demoraram muito a tornar-se insuportáveis. A Escola de Santo Tomás de Leipzig era uma dessas antigas instituições como tantas criadas pela Idade Média e, na Alemanha, pela Reforma. Meio orfanato, meio conservatório, estava estreitamente inserida na vida da igreja e na da cidade. A função de Kantor havia sido honrosa e importante — era-o, ainda, no início do século, ao tempo de Johann Kuhnau, o predecessor de Bach, simultaneamente professor de letras (o ensino do latim fazia parte de suas prerrogativas) e de teologia, professor de música e diretor das atividades musicais da igreja, regente do coro, regente da orquestra e — é claro — compositor. Mas, em 1730, essa função compósita começava a se tornar anacrônica, tal como a vetusta estrutura da escola. Aqui intervém o último dos fatores culturais que assinalamos mais atrás: a Aufklarung (Iluminismo) estava provocando uma modificação nas relações e nas estruturas sociais. A Escola de Santo Tomás, com sua organização antiquada, já não correspondia às aspirações intelectuais do século XVIII. Espíritos arrimados de boa vontade, homens inteligentes como o reitor Ernesti, desejavam fazer da Escola de São Tomás uma escola moderna. E a função de Bach constituía o principal fator de imobilismo. Bach pedia mais recursos para sua música, uma disponibilidade maior dos alunos, uma seleção orientada no sentido de suas respectivas capacidades musicais. O reitor gostaria de vê-los estudar latim ou grego, de preferência, a gastar horas e horas com ensaios no coro. O impasse era total, e Bach se revelou pouco hábil, pouco político. Sua música, "fora de moda", não agradava. Ele negligenciava seus cursos de latim e os transferia a inspetores que, por outro lado, não eram bons músicos. Acrescente-se a isso a estreiteza de espírito, a pouca inteligência e a mesquinharia dos membros do Consistório, a mediocridade dos membros da assembléia comunitária — e pode-se ter uma idéia das dificuldades, das preocupações que afligiram os últimos anos de Bach. A tragédia — pois trata-se autenticamente de uma, por menos consciente que ela possa ter sido no espírito de Johann Sebastian — é que essa amarga decepção vinha precisamente daqueles para quem havia escolhido trabalhar e consagrar sua vida. Por essa estrutura paroquial e comunitária ele renunciara à vida fácil da corte e à segurança de Kõthen. Ao buscar o modelo social, cultural e religioso que foi o de todos os Bach antes dele e à sua volta, J.S. Bach escolheu um caminho que era social e culturalmente — se não religiosamente — anacrônico e retrógrado. Os primeiros anos de Bach em Leipzig dão testemunho da felicidade que, no início, a situação lhe proporcionou, o que se pode medir por sua vitalidade criadora:
Johann Sebastian Bach
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A formação musical de Bach
FRANÇA
N O R T E DA ALEMANHA
LULLY Nicolas de Grigny,
V. Lübeck, Reinken,
Marchand,
GEORG B O H M ,
François Couperin
DIETRICH BUXTEHUDE
r • Bach encontra, em Lüneburg, Thomas de la Salle, discípulo
Bach vive em Lüneburg de
direto de Lully, e com ele
1700 a 1703 e toma aulas
freqüenta franceses em Celle.
com B õ h m ; viaja a Lübeck
Copia integralmente
para ouvir Buxtehude e lá
a obra de Grigny.
permanece quatro meses.
Transcreve Couperin.
Encontra Reinken.
I
J O H A N N SEBASTIAN B A C H
r •
"1 Ainda adolescente, Bach recopia
O irmão de
as Fiori musicali de
Johann Sebastian Bach,
Frescobaldi.
Johann Christoph,
E m Weimar, transcreve
encarregado de
para cravo ou ó r g ã o os
sua educação entre
concertos de
1694 e 1700, era discípulo
Vivaldi e Marcello
direto de Pachelbel.
(1709-1710). L .
ITÁLIA
.-
SUL DA ALEMANHA
Frescobaldi, VIVALDI,
Johann Krieger,
Marcello...
JOHANN PACHELBEL
I
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Quarta parte: a primeira metade do século XVÜI
48 cantatas só durante o ano de 1723 — quase uma por semana — , duas Paixões (São João em 1723 e São Mateus em 1729), motetos, e a Missa em si menor em 1733. Mas, aos poucos, não somente ele se desinteressou da escola, descarregando suas obrigações sobre os inspetores, como se fez mais vagaroso na criação de suas composições: umas poucas cantatas, apenas, ao longo dos vinte últimos anos de sua vida. É que, para Bach, compor era um ofício e uma função: sua função parecia tornar-se inútil — ele então se calou. Os últimos anos de sua vida têm um toque cinzento de tristeza. A música evoluía em seu redor. O estilo "galante" foi se impondo pouco a pouco. Um homem como Telemann adaptou-se à perfeição. Bach não mudou. Parecia mesmo agarrar-se a um estilo inteiramente fora de moda, austero e erudito. Só uns poucos especialistas o compreendiam. Não escrevia mais que algumas obras difíceis, destinadas a um pequeno número de melómanos capazes de apreciá-las. Selecionava, em suas obras passadas, as melhores páginas, que remanejava com amor, para seu prazer exclusivo e para a glória de Deus. Recolheu-se a um isolamento altivo e intransigente. E é justamente esse o momento em que o alcance de sua obra parece tornar-se universal... Ainda houve ocasiões festivas, como a viagem à corte de Potsdam, onde seu filho Carl Philipp Emanuel era cravista e durante a qual Frederico II dispensou-lhe honrarías. Mas a saúde de Bach se enfraqueceu. Ficou cego. Um charlatão tentou operá-lo dos olhos e, antes de arruinar a saúde de Haendel, arruinou a de Bach, que morreu em 1750. Muito se tem simplificado a personalidade de Bach. Porque teve vinte filhos, porque sua vida transcorreu aparentemente como um fio ininterrupto sem maiores perturbações, sem paixões tempestuosas, sem aventuras, centrada no estudo e no trabalho, resolveu-se fazer dele um modelo de perfeito burguês, pai perfeito, marido perfeito, compositor perfeito. É verdade: Bach constitui o mais cabal desmentido ao estereótipo da arte maldita, da arte inadaptada, do gênio marginalizado. Bach não passou pelo que se convenciona chamar de drama íntimo, mas teve, sem dúvida, grandes sofrimentos e dores profundas. Não a maldição do destino, mas a morte de uma mulher amada, a de numerosos filhos. Nem grandes lutas, nem atrozes dilaceramentos. Mas não se deve aceitar tão depressa essa idéia de serenidade perpétua. O que impressiona na vida de Bach, como em sua obra, é uma força imensa. Desde a adolescência, Bach parece ter sido adulto; dir-se-ia que jamais foi criança. Solucionou todos os seus problemas psicológicos, sociais e familiares com uma segurança de instinto que poucos artistas parecem ter possuído, e de tal maneira que sua paz interior jamais saiu diminuída desses embates, e sim reforçada. Sua serenidade foi uma conquista, sempre sobre si mesmo, sobre os acontecimentos e sobre os homens. É o que faz, com toda a certeza, a grandeza de sua obra, que respira força e paz, mas "contém" sofrimento e dor, sentidos e superados.
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Ao que foi dito devemos acrescentar que era um homem rude, um pouco resmungão, sem dúvida, de caráter não muito amável, e bem pouco diplomata. O que não impede a ternura... A gramática de Bach Bach foi um dos músicos que melhor dominaram a ciência da composição em toda a história da música. Talvez mais do que todos. Seu saber musical, sua capacidade de invenção e sobretudo de combinação chegam às raias do prodígio. Poderia ter sido um matemático genial. Mas sua força provém principalmente de ele ter-se encontrado numa encruzilhada onde se reuniam diferentes tradições musicais e de ter sabido, graças a um espírito de síntese de rara potência, captar esses diferentes tipos de linguagem musical e elaborá-los numa combinação de que resultou a sua própria gramática. O fundamento da gramática musical de Bach é o contraponto. Poder-se-ia dizer que tem no contraponto a sua língua materna, sua maneira natural de falar. Bach é o herdeiro de toda a tradição polifónica européia — digamos, de cinco séculos de polifonia. Uma melodia, para Bach, nunca vem só: engendra por si mesma uma ou muitas outras, independentes e complementares. O pensamento musical de Bach apresenta-se sempre, e da maneira mais espontânea, como uma polimelodia, uma estrutura combinatoria em que as linhas musicais conservam toda a sua independência melódica. Essa maneira de pensar musicalmente é particularmente sensível nas grandes obras, polifónicas por definição: as grandes fugas, os coros fugados; mas abrange muito mais do que isso. O contraponto constitui, em Bach, o que poderíamos chamar de "grau zero" do estilo; quando o compositor não está pensando em estilo, quando não manifesta intenção especial, o contraponto parece fluir sozinho de sua pena, entrelaçando vozes sem esforço. A riqueza da música de Bach tem a ver, antes que tudo, com isso: seu tecido é compacto e denso. Cada voz intermediária canta uma melodia completa e independente, mesmo aquela que é difícil ouvir-se na massa de um conjunto vocal ou orquestral complexo. Na imensa produção do artista, nem uma única vez é possível surpreender um acompanhamento de simples acordes plaqués (a menos que o compositor assim proceda por alguma razão expressiva), ou que se baseie em percussões rudimentares ou faça intervir vozes intermediárias apagadas e sem interesse. O virtuosismo de Bach no domínio do contraponto é espantoso. Ele parece capaz de "combinar" qualquer melodia com uma outra, ou consigo mesma, de todas as maneiras imagináveis. Tomar o tema de um cântico e com ele compor a linha do baixo; fazer desse baixo um tema de chacona, sobrepondo-lhe sucessivamente cinco melodias, de ritmo e espírito diferentes; ligar uma a outra, ou ligar três juntas, e produzir uma mudança; extrair de cada uma delas um contratema que, por sua vez, se converte em tema e engendra novos contrapontos; retomar
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um ou outro, invertido; mesclar, entrosar, ajustar todos esses irmãos, primos, sobrinhos e aliados, homogêneos por filiação e hereditariedade, mas prodigiosamente diversos, porque a imaginação de Bach é inesgotável — estaremos diante de um tour deforce de técnica musical, de uma obra-prima de artesão consciencioso que resolve mostrar até o último limite do seu savoir faire? Nada disso: este é apenas o coro inicial da Cantata BWV 78 Jesu der du meine Seele, escrita para o ofício do próximo domingo na igreja de Santo Tomás. Solucionar os mais difíceis problemas de contraponto fazia parte da "natureza" de Bach; o resultado nunca deixa entrever nem esforço nem dificuldade. Essa faculdade combinatoria do gênio de Bach é determinante, não só porque caracteriza seu estilo e faz dele o autor das mais suntuosas fugas já escritas em todos os tempos, mas porque é a garantia da liberdade de seu pensamento musical e dos meios expressivos de que ele quer dispor. Assim é que Bach pode comentar qualquer melodia com a ajuda de uma outra, de caráter expressivo mais acentuado. Bach pode ligar qualquer tema a um outro e, como resultado, pelo contraste ou pela união, alguma coisa surge. Bach pode, por exemplo, amiudar e acelerar o passo de um naipe deflautasou de uma viola da gamba ao longo de uma austera melodia de coral e, com isso, sugerir algo que não nos é dito pelo cantor, em quem temos ligada nossa atenção. Bach não precisa recorrer a nenhuma insistência harmônica, a nenhum efeito que se apóie no domínio da intensidade sonora ou do impulso; é pelo contraponto que ele expressa o que quer dizer. Bach é, portanto, antes de mais nada, o herdeiro da longa tradição polifónica ocidental. Mas, desde o início do século XVII, a música ocidental elaborava já uma outra linguagem, a da harmonia e do baixo contínuo, isto é, uma linguagem que considera a superposição das vozes em sua simultaneidade, acorde por acorde — sincrónicamente, digamos assim — e não mais diacronicamente, no desenrolar paralelo das vozes no tempo. A grande revolução do século XVII é a redução da estrutura sonora a uma melodia acompanhada por um baixo, melódico também, e que se completa pelos acordes percutidos num instrumento com teclado. Bach, é claro, empregou a técnica do baixo contínuo no curso de sua obra. Toda a sua música de câmara e a parte mais importante de sua música vocal envolvem esse tipo de escrita, que libera a melodia solista e permite ao canto alçar vôo, desembaraçado da coerção por assim dizer "social" de um complexo de vozes contraponteadas. Mas a originalidade essencial do estilo de Bach é estar no cruzamento desses dois caminhos. Homens como Lully e, de uma outra maneira, Haendel "pensam" a música verticalmente; com eles, só a melodia principal move-se no tempo; sua harmonização é pensada sincrónicamente, em função da eficácia imediata do acorde. Ao contrário destes, os grandes polifonistas dos séculos XV e XVI — Josquin Des Prés, Victoria, Palestrina — pensavam dentro do tempo (da duração) a totalidade simultânea das vozes, cujo entrelaçamento conduziam. Bach, no entanto,
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MÚSICA SACRA Duzentas cantatas (mais de u m a centena perdidas) Oratórios de Páscoa (1735) e de Natal (1734) Duas grandes Paixões: São João (1722) e São Mateus (1729) Outras Paixões perdidas: São Marcos (fragmentos reconstituídos), São Lucas (contestada) Grande Missa em si menor (1732-37-49) Quatro Missas breves (1735) Magnificat (1723) Sete motetos (1723-1734) CANTATAS PROFANAS 24 cantatas, entre as quais: Cantata de casamento, Cantata do café, Cantata da caça, Cantata de Febo e Pã, Cantata dos camponeses, etc. Árias diversas MÚSICA D E ORQUESTRA Seis Concertos de Brandenburgo (1721) Catorze concertos para um, dois, três, quatro cravos e orquestra (1727-1735) Quatro concertos para u m e dois violinos Concertos diversos ( o b o é e violino, flauta, violino e cravo...) Cinco suítes para orquestra (uma delas contestada) (1717-1725) MÚSICA D E CÂMARA Três sonatas e três partitas para violino solo (1720) Seis suítes para violoncelo solo (1720) Seis sonatas para flauta e cravo, dez sonatas para violino e cravo (1717-1721), dez sonatas para trio (1717-1721) Três sonatas para viola de gamba e cravo (1717-1721) ÓRGÃO 166 corais Seis concertos Seis sonatas em trio (1727) 27 prelúdios, fantasias, tocatas e fugas Grande Passacalha em d ó menor (1716) Peças diversas TECLADO O cravo (ou O teclado) bem temperado (1722-44) (duas vezes 24 prelúdios seguidos de fugas) Seis partitas (1726-31), seis Suítes inglesas (1724-25) Seis Suites francesas Concerto italiano (1735) Trinta invenções a duas, e três "Sinfonias" a três vozes (1720-23) Dezesseis concertos transcritos de Vivaldi, etc. (1710) Variações Goldberg (1742) Peças diversas OBRAS DIVERSAS INCLASSIFICÁVEIS Oferenda musical (1747) Arte da fuga (1750)
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pensa "simultaneamente" nos dois sistemas, e nisso está a fonte da extraordinária eficácia de sua linguagem musical. Virtuose do contraponto, ou seja, sempre à espreita da "perspectiva" desenhada pelas melodias ao longo de seu desenrolar no tempo, jamais perde de vista o resultado produzido no imediato pela superposição das notas captadas em sua simultaneidade. Seus acordes verticais se enriquecem com o fato de que, cada nota achando-se horizontalmente "em situação", o compositor se permite audácias harmônicas que seriam insuportáveis se o movimento das vozes não as conduzisse em sua corrente. E a dinâmica dessa polifonia em nenhum momento se mostra desencarnada, pois sempre o sentimento de que são cúmplices no instante faz ligar os sons, faz com que sejam retidos, e permite que do seu encontro resultem efeitos de uma intensidade por vezes dramática. Assim é que — da mesma forma que Bach, historicamente, encontra-se numa situação social e moral particular e conflitual, e que desse conflito se origina em parte o poder dramático de sua obra—ele também se situa, tecnicamente, no cruzamento de duas linguagens. Mais uma vez soube, milagrosamente, tirar sua força e sua originalidade da síntese de duas tendências aparentemente irredutíveis. Isso explica, também, que Bach não tenha herdeiro musical. Sua síntese é única, porque não se poderia fazer senão entre 1700 e 1750. A evolução da estética musical toma-a impossível mais tarde. Já no fim de sua vida, Bach era incompreendido e "superado" aos olhos de seus contemporâneos. Seu filho Friedemann, tão próximo do pai no pensamento musical, viveu dilacerado pela impossibilidade de realizar um ideal estético anacrônico. Mas uma obra de Bach tem sempre duas dimensões, assemelhando-se de certo modo àqueles quadros flamengos que podem ser decifrados a duas distâncias. A uma primeira distância, admiram-se as linhas, as massas, as proporções, a luz, asfiguras,o desenho. Ouve-se uma cantata ou a Paixão segundo São Mateus como quem olha, a dois metros, o retrato de Giovanni Arnolfini e de sua esposa por Van Eyck. Mas, se chegarmos mais perto, perceberemos, no espelho que está por trás do casal, todo um mundo em miniatura, como um quadro dentro do quadro e que a dois metros não era possível distinguir. Um coral ou uma cantata de Bach possuem essa segunda dimensão, mais difícil de captar, mas que é imprescindível pelo menos entrever, sem o que o próprio conteúdo da obra se desvirtua. Bach utiliza uma linguagem simbólica, uma espécie de vocabulário à clefs, de que se serve com regularidade e constância indefectíveis. Pode-se afirmar que, quando põe algum texto em música — e trata-se quase sempre de um texto religioso —, Bach jamais deixa passar uma idéia, uma imagem ou uma palavra importante, sem dela oferecer musicalmente uma transcrição simbólica. Bach possui todo um arsenal de procedimentos de escrita musical (melódicos ou harmônicos) que lhe permitem, a qualquer momento, modificar a marcha do desenrolar da música, mudar-lhe a direção e traduzir, assim, a imagem contida no texto que transcreve musicalmente. Nada pode causar mais espanto do
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que a leitura de certos manuscritos de Bach, em que surpreendemos o próprio modo de encaminhar-se de seu pensamento. Tome-se um fragmento do pequeno Magnificat para soprano, por exemplo: Bach estava para concluir uma frase; a cadência final estava escrita; mas, de repente, ele se dá conta de que uma palavra ficara sem traduzir-se. Interrompe a cadência, prolonga a ária em mais três compassos com a única finalidade de traduzir, por meio de uma guirlanda ascendente, "mãchtig isf ("pois Ele é poderoso"); após isto, retoma a cadência e conclui sem mais tardar. Esses três compassos são musicalmente inúteis, mas uma palavra ficara faltando — a obra, musicalmente encerrada, não se podia dizer concluída enquanto o sentido das palavras não houvesse sido transcrito. Um tal procedimento não mereceria talvez maiores considerações, se não fosse absolutamente sistemático. Acontece que é. Encontramos, por exemplo, nas Paixões, 57 exemplos de expressões como "ele foi", "ele partiu", "ele se ergueu" etc. Em cinqüenta e um deles, Bach emprega o mesmo motivo melódico ascendente. Em muitas centenas de exemplos de uso das palavras "morrer" e "morte", ao longo das duzentas cantatas, oratórios e Paixões, Bach parece não haver deixado passar um só sem que um acorde de sétima diminuta, uma falsa relação harmônica, uma queda brutal da voz em direção aos abismos, venham marcar a frase com sua dissonância ou sua inflexão dramática. Não há possibilidade sequer de enumerar aqui o que chamaríamos de o "léxico musical" de Bach, mas podemos definir-lhe as duas grandes direções. Há, em primeiro lugar, um vocabulário simbólico de imagens abstratas, de que ele se serve de maneira quase automática — digamos, mesmo, estereotipada: "ir" e "subir" traduzem-se por uma linha ascendente; "acompanhar", por um cânone; a interrogação, por um acorde sobre a dominante, etc. Há, por outro lado, um vocabulário expressivo, mais variado, mais rico e que exerce maior influência sobre o desenrolar da música. A morte, o mal, a alegria, o sofrimento, cada um destes tem muitos modos de expressão, todos eficazes e por vezes patéticos. Pesquisas recentes tendem a demonstrar que o simbolismo dos números teve sobre a organização das obras de Bach um efeito bastante considerável. Certos algarismos (3, 7, 12...) e outros, ligados, à própria pessoa do compositor, aparecem com uma freqüência que dá o que pensar (14 = B.A.C.H.; 41 = J.S. Bach). Não é sugestivo que o tema do coral "Senhor, eis-me diante do Teu trono", escrito por Bach em seu leito de morte, tenha sido alongado, graças a notas de passagem, das 32 notas que possuía para um total de 41? Bach é ao mesmo tempo um arquiteto e um miniaturista. Mas a força de seu discurso musical, o poder de sua invenção melódica são tais que essas inflexões e essas intenções expressivas acham-se sempre perfeitamente integradas. O que teria podido ser um mosaico de notações justapostas é arrebatado pela amplitude da concepção de conjunto e pela precisão dos passos por que procede essa música. Veremos mais adiante os efeitos prodigiosos obtidos por Bach graças ao domínio
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absoluto de todos os recursos técnicos e expressivos de que dispunha sua ciência musical infalível. O coral Não resta dúvida de que, no espírito de Johann Sebastian, o mais humilde dos organistas de aldeia tinha mais dignidade que o mais sofisticado dos músicos de corte. Acontece que Bach não escreveu sua música religiosa como se estivesse escrevendo uma música qualquer. Nela, a fé se exprime de maneira viva e direta. Um de seus alunos, Gottlieb Ziegler, comentava: "Quanto à maneira de tocar o coral, meu professor, o mestre de capela Bach, ensinou-me de tal forma que não me limito a tocar os corais simplesmente seguindo a música, mas inspirado no sentimento que indicam as palavras." Ouvir um coral sem compreender-lhe a mensagem é perder uma parte de sua força e de sua beleza: não se pode deixar de, pelo menos, saber disso. O coral está no cerne da obra de Bach porque está no cerne do ofício luterano. Tradicionalmente, o organista devia acompanhar a multidão dos fiéis, mas também preludiar. A literatura alemã para órgão anterior a Bach é de uma infinita riqueza nesse domínio e chegou a seu ponto culminante com os cerca de duzentos corais para esse instrumento escritos pelo Kantor de Leipzig. A cantata que Bach compunha semanalmente para o ofício litúrgico do domingo era, ela também, construída sobre o tema de um coral. É este que serve de fundamento ao grande coro inicial e, não raro, a uma parte das árias para solistas que se seguem. Para apreciar a música religiosa de Bach é preciso compreender que o coral era música popular na Alemanha luterana do século XVII. Estava ligado a uma época, a uma festa, a um sentimento particular: Natal, Páscoa, a Quaresma, o Advento, a festa da Reforma, a ação de graças, a penitência, a alegria, a morte. A evocação da melodia de um coral fazia vir as palavras à memória dos fiéis. Era um gênero vivo e simples. O gênio de Bach baseou a expressividade de sua mensagem musical no princípio popular de Lutero, dele utilizando tudo o que lhe permitia sua "gramática" musical. O resultado é prodigioso. Bach dispunha como que de um novo registro de "chaves", imediatamente inteligível pára todo luterano de seu tempo, graças ao imenso repertório de corais. Alguns exemplos bastarão para fazer sentir que dimensão e que atualidade Bach podia dar ao que se deve chamar de sua meditação musical. A Cantata BWV 127 foi composta para um domingo especial, em que se lia uma passagem do Evangelho que conta a história do cego de nascença. Jesus ia passando, o cego exclamou: "Filho de Davi, tem piedade de mim." Bach escolheu como
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tema do coro inicial de sua cantata o coral Herr Jesu Christ, wahrMensch und Gott [Senhor Jesus Cristo, verdadeiro homem e verdadeiro Deus], o que é uma glosa, um comentário à afirmação do cego. A curta frase circula em toda a extensão desse longo coro, como uma afirmação incessantemente repetida. De repente, Bach enxerta nesse tema, por um sofisticado contraponto, um segundo motivo que qualquer fiel reconhece na mesma hora: o coral O Lamm Gottes, Erbarm'dich unser [Cordeiro de Deus, tende piedade de nós] é o comentário à segunda parte da frase do cego; e os dois temas vão mesclar-se um ao outro durante todo o restante do coro. E, como se esse simbolismo já não fosse suficientemente claro, eis que aparece um terceiro motivo, o do coral da Matthãuspassion [Paixão segundo São Mateus], sugerindo que esse Cordeiro de Deus, verdadeiro homem e verdadeiro Deus, é aquele que morre na cruz. No início da Matthãuspassion, o imenso coro de abertura põe em cena, como o coro de uma tragédia grega, a lamentação dasfilhasde Sion, num grande diálogo patético — Kommt, ihr Tõchter... Sehet... Den Brãutigam ("Venham, vejam o noivo") — Wie? ("Como?") — e eis que aparece o motivo do coral O Lamm Gottes: "Alswie ein Lamm" ("Como um cordeiro"). Assim, o coral permite que Bach dê a qualquer música o valor de uma prece, e de uma prece familiar. Ele se vale disso para conseguir efeitos de extraordinária eficácia. Na Matthãuspassion, Jesus afirma "um de vós me trairá". Coro dramático dos apóstolos, repetido onze vezes (eles são onze, porque Judas se cala): Herr, bin ich's? ("Senhor, sou eu?"). A um acorde interrogativo, segue-se o silêncio — e logo, em vez da resposta esperada, o coro entoa o coral Ich bins, ich sollte büssen ("Sou eu"). De um momento para outro, cada assistente presente na igreja sente-se pessoalmente responsável pela morte de Cristo... Só depois disso é que o relato prossegue: Bin ich's, Rabbi? — Du sagest's ("Tu o disseste"). As cantatas e as Paixões Para Bach, a cantata era inseparável do culto, mas era concebida de uma maneira muito ampla. Uma espécie de concerto de igreja que se realizava após a leitura do Evangelho (o que explica as alusões que a este são feitas) e que estava em geral dividida em duas partes, uma antes e outra depois do sermão. As cantatas de Bach repousam em dois pilares extremos: no início, um grande coro de introdução, quase sempre construído sobre um tema de coral luterano; no fim, o canto muito simples do mesmo coral, a que se juntava provavelmente a multidão dos fiéis. Entre esses dois elementos constantes, reina uma completa liberdade na disposição das peças: árias para uma ou diversas vozes, acompanhadas por orquestra ou por instrumentos solistas; recitativos, ariosos, outros coros, construídos ou não sobre o coral.
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Bach deixou-nos duzentas cantatas — mas pelo menos uma centena se perdeu. Segundo seu filho Carl Philipp Emanuel, ele teria composto cinco centenas de cantatas, ou seja, cinco ciclos completos para todos os domingos e festas do ano. A composição das cantatas distribui-se ao longo de toda a duração da existência do compositor, e as primeiras não são as menos emocionantes. Pesquisas recentes, todavia, permitiram constatar que a maior parte delas foi escrita nos primeiros anos da permanência de Bach em Leipzig, onde ele teria realizado durante cinco anos (1723-1728) um trabalho verdadeiramente titánico, compondo durante cada semana a cantata do domigo seguinte. O mais espantoso é que essa massa de composições não revela desníveis: Bach permanece sempre igual a si mesmo em todas as cantatas. A Johannespassion [Paixão segundo São João, 1723] e Matthãuspassion [1729] são como imensas cantatas, em que o recitativo tem um lugar considerável. O texto do Evangelho constitui a trama essencial. Esse drama sagrado exalta em Bach um lirismo intenso, que se traduz nos ariosos e nas árias com que ele corta o relato do evangelista para fazer em torno dele meditações ou comentários. O coral intervém periodicamente para introduzir a prece.A Paixão se desenrola, assim, em muitos planos: a narrativa dramática do evangelista, com intervenção de certos personagens (Pilatos, Pedro, Judas...) e do coro (a multidão, os apóstolos); a meditação lírica individual (ariosos e árias confiados a solistas vocais); a prece (o coral). Nas Paixões, Bach revela-se um homem de teatro sem teatro: dá para perceber que ele teria podido escrever óperas deslumbrantes. Mas que drama poderia ser mais emocionante, para o crente Bach, que o do Calvário? A Johannespassion é mais íntima, mais lírica. A Matthãuspassion é mais arquitetura!. Nela, Bach empregou todos os recursos de que podia dispor: dois coros (mais um coro de crianças), duas orquestras, dois órgãos que se respondiam de partes distantes da igreja — herança barroca dos músicos de Veneza —, solistas vocais e instrumentais. A Missa em si menor (1733-1749 ou 1750) é, com o Magnificat, uma das poucas obras em latim de Bach, por sinal construída sobre certos temas do canto gregoriano em uso na Igreja Católica. Os meios empregados por Bach são também muito diversos: grandes coros, árias à italiana, duetos. Todos os tons, do recolhimento à angústia e à alegria, estão presentes com especial intensidade nessa obra, que reutiliza árias de certas cantatas, misturando-as a peças originais, sem que disso resulte qualquer perda de sua homogeneidade. A música para órgão Bach escreveu para órgão durante toda a sua vida, e não devemos esquecer que, mais do que por qualquer outro motivo, foi como organista virtuose e como improvisador de gênio que seus contemporâneos o apreciaram. Ao fim de um longo improviso sobre An Wasserflüssen Babylon, o velho Reinken — sabidamente um
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homem muito orgulhoso — passou-lhe o anel que usava no dedo, dizendo: "Eu pensava que esta arte morreria comigo, mas vejo que ela sobreviverá no senhor." Foram suas improvisações que dobraram Frederico II em Potsdam. As duas partes mais importantes da produção de Bach para órgão são os corais, em primeiro lugar, seguidos dos grandes prelúdios, fantasias ou tocatas e fugas. Os corais, que deveriam com mais propriedade chamar-se "prelúdios de corais", são o remate supremo de uma longa tradição ininterrupta desde Lutero. Bach agrupou-os em quatro coleções, distribuídas entre 1708 e 1747, e sobre essas simples melodias de cânticos exerceu todas as formas possíveis de metamorfose — do coral harmonizado (bem próximo da versão que cantavam os fiéis) às longas variações canónicas sobre o coral de Natal Von Himmel hoch. Bach apreciava o coral fugado, em que cada uma das frases do cântico é sucessivamente objeto de uma pequena fuga, o coral figurado, mais sofisticado ainda, em que, sobre um contraponto em valores breves, geralmente tomado de empréstimo ao tema do coral, este tema vem enxertar-se em longas notas que soam no baixo, no tenor ou no soprano, e, numa linha oposta, o coral ornado, menos estruturado formalmente, porém mais poético, em que o tema do cântico, transformado por incessantes ornamentações e arabescos, delonga-se como uma meditação. Mas o coral de Bach sempre se pretende expressivo, e o milagre — vale a pena insistir mais uma vez — é a perfeição formal jamais se deixar sacrificar à idéia expressiva que se impõe com força, reduzida geralmente a uma idéia-chave. Num determinado coral de Natal (Do céu desce a corte dos anjos) essa idéia é uma guirlanda de escalas ascendentes e descendentes, ligeiras como um estremecimento de asas; em outro (Foi-se o Ano Velho), é a melancolia de motivos cromáticos depressivos; noutro ainda (Por culpa de Adão), a queda dolorosa de um baixo implacável. Numa esfera oposta de idéias, situam-se as grandes páginas brilhantes das fantasias, das tocatas e dos prelúdios e fugas. Com Das wohltemperierte Klavier [O cravo (ou o teclado) bem temperado], estas são as peças de Bach que, mesmo durante o longo esquecimento que se abateu sobre sua obra a partir do fim do século XVIII e ao longo de uma grande parte do século XIX, jamais deixaram de ser tocadas. Também elas se distribuem por toda a extensão de sua carreira. Por esse caminho, mais do que por qualquer outro, talvez até seja possível acompanhar a evolução estética e espiritual de Johann Sebastian Bach. As mais antigás dessas peças trazem a marca, ao mesmo tempo, da juventude (de uma juventude fervilhante que nada tem de escolástica) e da influência dos mestres da Alemanha do Norte. São obras um pouco desordenadas, possantes, vulcânicas, como a célebre Tocata e fuga em ré menor. Mais tarde, em Weimar, a presença dos italianos torna-se sensível, a beleza plástica da forma impõe-se, sem que se perca a vitalidade das obras precedentes — contraste que assume proporções fantásticas na Tocata, adagio efuga em dó maior. A todos esses prelúdios, essas tocatas, Bach dá um caráter brilhante, possante, heróico, o que não impede seja o arcabouço de
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uma solidez admirável. Quanto às fugas, são, como vimos, o domínio mais pessoal de Bach, que, nessa forma severa, sente-se à vontade, livre, inventivo. Incluem-se, ainda, em suas obras para órgão, as seis Sonatas em trio, de uma assustadora dificuldade de execução e que devem ter sido escritas com a intenção que as tocasse seu filho Friedmarm; além da monumental Passacalha efuga em dó menor. A música para teclado Quais foram as relações de Bach com o "teclado"? Diz-se que ele preferia, ao cravo — cujo som é brilhante, porém mais seco —, o "clavicordio", antepassado do piano, com o qual era possível, ainda que em bem pequena medida, conseguir maior expressão. É fora de dúvida que se interessou pelos primordios do pianoforte e no final da vida chegou a possuir pelo menos um, que recebeu de presente de Frederico II depois de sua viagem a Sans-Souci. Tem-se por vezes a impressão, em todo caso, de que a música de Bach faz estourar a massa sonora do cravo, que ela a ultrapassa —- a não ser nas obras visivelmente escritas para um instrumento de duplo teclado como o Concerto Italiano, as Goldberg Variqtionem [Variações Goldberg] e outras. O teclado bem temperado é uma coletânea em duas partes, a primeira concluída em 1722 e a segunda em 1744. É preciso compreender essa coletânea, antes de mais nada, em seu contexto. Os 24 Prelúdios e fugas em todos os tons maiores e menores são uma profissão de fé engajada a favor do temperamento igual, como indica o título sem ambigüidade. A primeira dessas duas coletâneas é um marco na história da linguagem musical. É a conclusão, o resultado de um século e meio de pesquisas, por meio das quais a música destacou-se, progressiva e empíricamente, do sistema modal e do temperamento desigual, inaugurando assim a estrutura sonora que foi aquela do classicismo, do romantismo e da época moderna. Para melhor compreender o que faz dessa obra uma espécie de "manifesto" e por que razão ela continuaria a ser trabalhada sem interrupção por todos os pianistas num período em que tantas outras obras-primas de Bach haviam caído no esquecimento, é preciso que nos detenhamos um pouco nela, para ver do que se trata e avaliar que significação tinham os termos temperamento iguale desigual em 1722. As relações entre a música e a acústica são mais difíceis do que habitualmente se imagina. Elas flertam uma com a outra e parecem trocar juras de amor eterno. Mas não faltam a esse convívio seus momentos de tensão... Acontece-lhes usar as mesmas palavras e não estar falando da mesma coisa — o que, como todos estamos cansados de saber, é a fonte dos mais graves conflitos... 1
Traduzimos literalmente o titulo alemão, Dos wohltemperierte Klavier, desse modo furtando-nos a tomar partido na controvérsia.
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Uma oitava, se for o resultado da soma de uma quinta com uma quarta (dó-sol mais sol-dó), não soa da mesma maneira que quando é feita de duas terças maiores (dó-mi mais mi-sol sustenido mais sol sustenido-si sustenido). A segunda é mais curta que a primeira, sendo a diferença o que chamamos de uma coma. A oitava natural não é dividida em doze semitons iguais; um sustenido não eleva uma nota de um doze avos de oitava, da mesma forma que um bemol não a abaixa de um doze avos de oitava. Entre fá sustenido e sol bemol (ou entre si sustenido e dó) há uma "folga": o doze avos de uma coma. Noutras palavras: os dados da acústica empírica e aqueles que os cálculos nos pretendem fornecer não chegam aos mesmos resultados. Toda a dificuldade provém de que nada se encontra verdadeiramente em equilíbrio estável na escala, de tal sorte que as diversas maneiras de produzir um som nem sempre se correspondem entre si. Se afinarmos um instrumento levando em conta harmônicos naturais, o instrumento soará corretamente para o ouvido, desde que não nos afastemos demais da tonalidade escolhida para a afinação; mas basta que passemos às tonalidades vizinhas e certos intervalos ficarão grandes demais, outros excessivamente curtos, e isso cada vez mais, na medida em que abordarmos tonalidades com maior carga de sustenidos ou de bemóis; logo, o instrumento se tornará inaudível... Pelo menos em teoria, quem, no século XVII, quisesse tocar com afinação absolutamente perfeita teria que afinar seu cravo antes de cada número e jamais passar de uma tonalidade a outra dentro de uma mesma peça. Mas, no convívio da acústica com a música — como em todo tipo de convívios, aliás — a paz irá se estabelecer por meio de concessões, naturalmente: há que temperaros desacordos... E já desde o fim da Idade Média, com a ajuda de pequenas trapaças (para que as terças maiores soassem afinadas, abaixavam-se um pouco as quintas, elevavam-se um pouco as quartas), diversas formas de temperamento desigual foram elaboradas. Este temperamento desigual reinou sobre toda a música dos séculos XVI e XVII, permitindo que se tocasse num número razoável de tonalidades sem ferir o ouvido. O temperamento desigual conferia à música daquela época um sabor especial, pois os intervalos não eram exatamente os mesmos caso se tocasse, por exemplo, em dó maior e em sol maior, ou em ré menor e em sol menor. Nossos antepassados eram sensíveis a essas modificações dos intervalos de uma tonalidade para outra, como o explica muito claramente Jean-Jacques Rousseau em seu Dictionnaire de musique. "Disso resulta uma fonte de variedade e de beleza... a faculdade de provocar sentimentos diferentes com acordes semelhantes produzidos em diferentes tons. Em suma, cada tom, cada modo tem sua expressão própria..." Essa faculdade era a que Marc-Antoine Charpentier definia em seu tratado de composição e que ele chamava de energia dos modos. Para ele, dó maior era "alegre e guerreiro"; dó menor, "obscuro e triste"; mi maior, "agressivo e estridente"; si menor, "solitário e melancólico"...
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Mas certas tonalidades ficavam então totalmente excluídas, por causa de intervalos fora de tom ou desagradáveis que eram considerados "defeitos" (em francês, dizia-se loups, literalmente "lobos"). Pois houve tentativas, sobretudo no fim do século XVII, de "domesticar os lobos", ou seja, de encontrar um meio de afinar os instrumentos — trapaceando um pouco mais em relação à acústica — de modo que fosse possível tocá-los em todas as tonalidades. O organista Andreas Werckmeister, em 1691, fez a primeira exposição teórica do temperamento igual, alguns músicos aventuraram-se a compor em tonalidades até então inacessíveis. Johann Mattheson, em 1719, escreveu um tratado sobre o baixo contínuo que permitia tocar nas 24 tonalidades maiores e menores. Foi então que Bach compôs seu Das wohltemperierte Klavier. Resumindo: em nossos pianos de hoje, a "concessão" reina totalmente. Já não existe um só intervalo — a não ser o de oitava — que seja acústicamente autêntico. A "cor" particular de cada tonalidade desapareceu: todas são a réplica de dó maior e de lá menor. Isto dá uma idéia do que perdemos. A vantagem é a possibilidade de abordar todas as tonalidades, de modular ao infinito. É aqui que se situa a contribuição genial de Bach: à proclamação de que todas as tonalidades são acessíveis, Bach acrescentou concretamente, por meio de uma obra, a prova de uma liberdade inteiramente nova, absolutamente jovem, na modulação. Tomando como ponto de partida uma tonalidade dada, ele pode ir em qualquer direção; como o Cristóvão Colombo de Paul Claudel, Bach tomou posse de todo o universo sonoro. O milagre realizado neste caso por Bach está no fato de que essa obra engajada e, de certa maneira, teórica é ao mesmo tempo uma obra viva, sensível e de uma riqueza inesgotável. Já nessa primeira "prova", Bach chegou até a última conseqüência implícita no princípio do temperamento igual que é a possibilidade de modular ao infinito em todos os tons. A severidade do gênero fuga não foi obstáculo para ele, como tampouco o seria nas obras para órgão. A arte do contraponto de Bach — sem secura, sem falsa ciência — não foi superada e é insuperável. Os prelúdios, naturalmente mais livres, mostram-se aí de uma variedade maravilhosa: eles cantam, ou meditam, ou brincam -— e, em cada caso, funcionam como uma introdução ao espírito da fuga que a eles se segue. O segundo item da literatura consagrada por Bach ao teclado consiste de três coleções de suites: Suítes francesas (1722), Suítes inglesas (1724-1725) e Suítes alemãs (1726-1731), estas últimas com o título de Partitas. Bach respeita os quatro movimentos do esquema tradicional da suite (allemande, lento; courante, mais vivo; sarabanda, lento e meditativo; giga, arrebatado), mas a estes acrescenta danças diversas: gavota, minueto, bourrée, polonaise e, com freqüência cada vez maior, peças de outras origens (por exemplo, capricho, ária). Não raro, abre o conjunto com um prelúdio. As Suítes francesas são as mais fiéis ao molde herdado dos cravistas franceses e de Froberger, conservando-se os seus movimentos próximos à dança; as Suítes inglesas, mais elegantes, mostram um afastamento maior do mo-
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delo original; as Partitas ou Suítes alemãs aproximam-se finalmente da música pura e deixam pressentir o advento da sonata clássica. Não podemos encerrar o capítulo do teclado sem mencionar o Concerto Italiano, os dezesseis concertos que Bach transcreveu de Vivaldi e de alguns outros seus contemporâneos, e, sobretudo, as Variações Goldberg (1742), escritas para serem tocadas por seu brilhante e jovem aluno Johann Gottlieb Goldberg, por encomenda do barão de Kayserling. Nessas trinta variações sobre um tema de sarabanda, a ciência, a variedade, a dificuldade de execução, por vezes o lirismo, harmonizamse muito bem com a alegria e o jeito brincalhão de certas passagens, para fazer desta uma das obras-primas de Bach.
A música para orquestra Bach nunca teve uma grande orquestra à sua disposição. Mas, em Kõthen, contava com dezessete músicos de elite, reunidos pelo melómano príncipe Leopold. Compreende-se, portanto, que a maior parte de sua música orquestral tenha sido composta por volta desses anos 1720. Os seis Brandenburgische Konzerte [Concertos brandenburgueses ou Concertos de Brandenburgo] BWV 1046-1051 foram-lhe encomendados pelo margrave de Brandenburgo, o que nos permitiu conservar deles uma admirável partitura autografa. É provável que Bach tenha composto muito mais do que seis concertos desse gênero. Mas perderam-se, e as sinfonias instrumentais que abrem certas cantatas, reaproveitamento de obras anteriores, são vestígios daqueles que, decerto, jamais conheceremos. Os Concertos de Brandenburgo não se assemelham a quaisquer outros. Não são exatamente concerti grossi, nem concertos para muitos solistas. As formações se modificam a cada concerto em que os timbres se mesclam de maneira sempre inédita: podem ser três trompas, dois oboés e um violino (Concerto n° 1); ou um trómpete, uma flauta-doce, um oboé, um violino (Concerto n° 2). As massas instrumentais podem opor-se: três violinos, três violas, três violoncelos (Concerto n°3); ou os instrumentos serem tratados de maneira mais pessoal: uma flauta, um violino, um cravo (Concerto n° 5). Cada um desses concertos é um mundo à parte, que nada deve a seus vizinhos — e que nada deve a ninguém. As quatro Suítes para orquestra — cujo título exato, aliás, é Ouvertures [Aberturas] — são obras menos pessoais. As duas primeiras datam de Kõthen; as duas outras, mais tardias, foram escritas em Leipzig, para o Collegium Musicum, fundado por Telemann e que Bach dirigiu — com grande prazer, ao que parece — na década de 1730. A ouverture propriamente dita, que constitui a parte mais importante de cada uma delas, respeita o esquema vulgarizado por Lully, em três movimentos: lento e solene, em ritmo descontínuo; vivo, em forma de fuga livre; retorno ao ritmo inicial. Mas, desse esquema tão freqüente na Europa (Telemann e Haendel dele lançaram mão correntemente), Bach fez um monumento arquiteto-
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nico de proporções imponentes, de que destacou, por vezes, um instrumento solista (a flauta transversa na Suíte n°2). Após a abertura, encadeiam-se em série movimentos de dança e, às vezes, peças de forma livre (ária, réjouissance [deleite], badinerie [brincadeira], etc). Mais uma vez Bach ampliava o esquema que herdara das gerações precedentes, como que pressentindo a amplitude do que seria mais tarde a forma sinfônica. Os concertos de Bach têm a forma italiana, em três movimentos: allegro, adagio, allegro. Mas, também no caso do concerto, a estrutura inicial, que serviu de modelo, ganha alcance e riqueza totalmente novos, e o lirismo próprio de Bach flui livremente. Quatro concertos para violino (dois para um violino e dois para dois violinos) precedem os concertos para teclado, que são, todos, transcrições de concertos anteriores, seja do próprio Bach, seja de compositores seus contemporâneos, como é o caso do Concerto para quatro cravos BWV 1065, adaptação e enriquecimento do Concerto para quatro violinos de Vivaldi. Muito teríamos que falar da música de câmara de Bach, que em sua maior parte data provavelmente do período de Kõthen: sonatas para violino e cravo, para violino solo e violoncelo solo. Todas encerram em seu conjunto obras-primas, mas só destas últimas se pode dizer que alcançam, com seu efetivo reduzido ao mínimo dos mínimos, o nível das maiores criações musicais. A música que Bach consegue tirar de um único violino ou de um único violoncelo é de uma amplititude inigualável. Uma linha melódica e alguns poucos acordes bastam-lhe para sugerir uma polifonia complexa e plena. Para nos convencermos disso, é suficiente lembrar que, do prelúdio de uma sonata para violino solo, Bach extraiu mais tarde uma abertura de cantata para órgão, três trompetes, timbales e orquestra de cordas: tudo estava implicitamente expresso por um arco e quatro cordas. No fim da vida, Bach compôs duas obras, Musikalisches Opfer [Oferenda musical] e Kunst der Fuge [Arte da fuga], que são como que uma súmula de sua arte. A primeira é uma série de cânones e de fugas sobre tema que lhe ditou Frederico II e a que Bach deu todos os tratamentos imagináveis. A segunda, inacabada, e que em virtude disso reveste-se de um caráter quase patético, é formada por uma série de dezessete fugas que se constróem, elas também, sobre um tema único. Com a Arte da fuga encerra-se esplendidamente a era da polifonia, de que o próprio Bach vem a ser como que a conclusão. Um símbolo extraordinário, que essa obra tenha ficado inacabada... Um contemporâneo de Bach: Georg Philipp Telemann (1681-1767) Bach nos parece hoje impor-se com tal força no conjunto da história da música que isso tem como resultado, por um erro de perspectiva, esquecermos um pouco a música alemã de seus contemporâneos. Bach não estava só. Se Haendel emigrou para a Inglaterra para lá realizar sua vasta síntese, na Alemanha ficaram, de qual-
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quer forma, músicos cuja fama igualou ou até mesmo superou, na época, a de Johann Sebastian. É o caso de Telemann, compositor surpreendente que merece toda a nossa atenção, seja por sua longevidade (nasceu quando o velho Schütz ainda não fizera dez anos de morto; morreu quando Haydn já havia escrito trinta sinfonias, três anos antes do nascimento de Beethoven), pela flexibilidade do seu gênio (que lhe permitiu praticar todos os estilos e seguir sem esforço a evolução de sua época) ou pela facilidade com que compunha. Telemann foi, sem sombra de dúvida, o mais fecundo compositor de todos os tempos: o catálogo de suas obras, por ele mesmo organizado no final da vida, registra um total de... seis mil entradas. Bach e Haendel juntos não compuseram tanto. Vamos por categorias: doze séries de cantatas para os 52 domingos do ano — o suficiente para ouvir uma por semana durante doze anos. Quarenta e quatro Paixões. Cem oratórios. Quarenta óperas. Seiscentas ouvertures àfrancesa.Centenas de concertos, centenas de sonatas, de trios, de quartetos. Não dá para ver o fundo. Telemann, aliás, era o primeiro a perder-se nesses abismos, e não sabia mais o que tinha deixado de escrever. É vertiginoso. Morreu com 86 anos, tendo composto aos doze a sua primeira ópera — o que dá, em média, uma obra de três em três dias, domingos inclusive. É como se estivéssemos sonhando... E se tivesse feito só isso! Mas a vida de Telemann é repleta de viagens, de negócios a organizar, de ocupações de todo tipo. Considerou-a tão interessante que terminou escrevendo suas Memórias, curiosas pelo estranho homem que era. Em menino aprendeu tudo: latim, grego, geometria, línguas. Gostava de música: deram-lhe um professor, mas o menino cansou-se do professor passados quinze dias e resolveu estudar sozinho. Aos doze anos, fez sua primeira ópera: pânico na família. Colégio interno para o maroto! Mas, no colégio interno, compôs cantatas. Regente: o próprio. Aos quinze, compunha todos os dias alguma coisa. Aos vinte, partiu para Leipzig com o propósito de estudar Direito. Tirou o diploma. Entrementes, fundara o Collegium Musicum (entenda-se: "a orquestra dos estudantes"), que Bach dirigiu vinte anos depois. Ei-lo que se torna organista da nova igreja de Leipzig. O tédio é grande, estava na hora de aprender outra coisa. Foi trabalhar para o conde von Promnitz, como mestre de capela. Na corte, o gosto era de inclinaçãofrancesa:aprendeu a conhecer Lully e em dois anos escreveu mais ouvertures ao estilo de Lully do que o próprio Lully (ao longo da vida) e todos os seus discípulos. Mais e melhores. Tendo aprendido o que queria, instalou-se em Eisenach, onde encontrou Bach, de quem se tornou amigo íntimo (foi padrinho de Carl Philipp Emanuel Bach, que o sucedeu mais tarde em Hamburgo). Passou dez anos em Frankfurt, onde fundou um novo Collegium, sempre compondo. Em 1721, 1
Em 1723, os burgueses de Leipzig bem que desejaram contratar Telemann como Kantor da Thomasschule, mas, diante do desinteresse que Telemann manifestou pela oferta, eles se resignaram a ficar com Bach, dizendo: "Já que não pudemos ter o melhor, contentar-nos-emos com um passável."
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fixou-se em Hamburgo, onde morreu em 1767. Ao longo desse período, foi diretor da Ópera, "superintendente" das cinco igrejas da cidade, com a obrigação de compor a música para o serviço de todas as cinco, ensinou música nas duas grandes escolas de Hamburgo e, como se isso não bastasse para ocupá-lo, fundou novamente um Collegium Musicum para com ele executar suas obras. E ainda lhe sobrava espaço na cabeça para outras idéias: fundou, em 1728, uma revista especializada em música, Der getreue Musik-Meister [O mestre de música fiel]. Sabemos também que Telemann era mestre de capela da corte da Saxônia, que fornecia Tafelmusik ("música para a mesa") à corte de Eisenach, cantatas e oratórios à cidade de Frankfurt, além de uma ópera, todos os anos, a Bayreuth. Ficamos cansados só de pensar... Jamais lhe faltou o bom humor, nunca esteve doente (cego, apenas, no fim da vida, como Haendel e Bach: o trabalho material de um compositor é exaustivo, e à luz de uma vela os olhos inevitavelmente se gastam). Diante de um homem desses, não há como não nos sentirmos estéreis, como nãoficarmosindignados por perder tempo dormindo, frustrados por ter o espírito tão pouco inventivo, por pensarmos com tanto sacrifício, por pensarmos tão pouco, por nos exprimirmos tão mal. É insuportável. Não adianta nos vingarmos pelo desdém, afirmando em face de tanta vitalidade criadora: "é tudo feito muito às pressas, é fraco, é superficial". Seria injusto e, além do mais, falso. A música de Telemann pode ser às vezes "fácil" mas nunca é fraca, e há ocasiões em que se mostra sofisticada. Sua característica essencial está na capacidade de adaptação. Trata-se de um compositor camaleônico, Não há compositor alemão dessa época que tenha escrito num estilo "à francesa" tão perfeito. Mas seus concertos são completa e absolutamente italianos; impossível imaginar que o mesmo homem que escreveu a suíte Les Plaisirs [Os prazeres] seja o autor deste ou daquele concerto para três violinos. E não só isso: o estilo, que era francês em suas obras de 1720, tem, em 1760, todas as características de pré-mozartiano. Polifonista aos 25 anos, abandonou o contraponto à medida que envelhecia e que o "estilo galante" se impunha na Europa. É quando se descobre em Telemann um dom melódico insuspeitado até então, de uma delicadeza e de um encanto maravilhosos. E o seu Pimpinione precedeu a Serva padrona de Pergolesi. De nada serviria enumerar suas obras. Afinal, Telemann fez de tudo! Vale a pena lembrar, em todo caso, sua própria declaração — e não se enganou ao fazêla :— de que o melhor de sua obra estava na música de câmara: centenas de sonatas para todas as combinações instrumentais possíveis, despretensiosas, que fluem naturalmente com o único objetivo de agradar ao ouvido.
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Os anos de aprendizagem e de viagens (1685-1712) Georg Friedrich Haendel é um desses personagens cuja silhueta gigante esmaga uma época. Sua carreira na Inglaterra ocupa tal espaço em sua vida que até chegamos a esquecer que só foi aclamado grande músico inglês muito tarde e depois de duros combates. A aventura de Haendel requer um tratamento em três partes, não por exigências estéticas de simetria retórica, mas porque o músico, por mais constante em seu estilo que nos possa parecer, fez, de fato, três carreiras praticamente independentes entre si. Georg Friedrich Haendel nasceu em 23 de fevereiro de 1685, em Halle, na Saxônia prussiana, em pleno coração da Alemanha luterana, quase no mesmo dia em que nascia Johann Sebastian Bach. Ao contrário deste, não pertencia a uma família de músicos: bem menino, precisou impor sua vocação a um pai já idoso, autoritário e cuja habilidade como cirurgião-barbeiro tornara-o uma notoriedade local. Haendel convenceu o pai e passou a ser aluno do organista mais famoso de Halle, Friedrich Zachow (1662-1712). Zachow não só era bom professor mas também um homem de grande cultura. Ainda muito jovem, Haendel teve ocasião de familiarizar-se tanto com a música alemã como com os compositores italianos, de quem seu mestre possuía numerosas partituras. Em 1702, o rapaz já se considerava em condições de voar com as próprias asas, juízo que foi confirmado por Zachow. Candidatou-se ao posto de organista da catedral de sua cidade natal e foi admitido. O título era fisonjeiro, mas a função, infelizmente, pouco interessante.
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Halle era cidade luterana, e sua tradição musical era tão rica como a que naquela mesma época alimentava o jovem Bach. Politicamente, entretanto, era possessão do rei da Prússia. A catedral também funcionava como capela de um castelo onde o rei jamais punha os pés e em que os raros ofícios eram celebrados segundo um ritual de inspiração calvinista que não deixava à música mais que um papel irrisório. Haendel entediou-se tanto na catedral de Halle que, ao fim de um ano, largou o emprego. Em julho de 1703, achava-se em Hamburgo. Deixou Halle e o ambiente familiar, sem nada ter previsto do que poderia encontrar numa cidade maior, amplamente aberta às influências estangeiras. Sentia falta do novo, de um espaço mental mais vasto, onde pudesse respirar livremente. Esperava que uma cidade voltada para o comércio, rica, ativa e cultivada, que possuía seu próprio teatro de ópera, lhe desse a possibilidade de descobrir outro mundo. Em três anos, conseguiu impor-se. Começou tocando violino na orquestra da Ópera de Hamburgo e dando lições de música. Em pouco tempo, tornou-se um compositor conhecido, rival potencial de Reinhart Keiser (1674-1739), que era então o grande homem daquele pequeno mundo musical. Por curiosidade ou com segundas intenções de eventualmente vir a sucedê-lo, foi até Lübeck admirar os recursos técnicos e a sonoridade do maior organista contemporâneo, Dietrich Buxtehude. Uma Johannespassion [Paixão segundo São João], que compôs em 1704, ainda se ressente muito da inabilidade da juventude e revela um compositor inexperiente, que faz uma curiosa mistura entre a tradição germânica e as inovações italianas. O mesmo aspecto claudicante marca as óperas escritas por Haendel nesse período hamburgués: grandes espetáculos montados com texto bilíngüe, destinados a satisfazer o insaciável apetite de música dos burgueses locais. Dezenove anos mais tarde, entretanto, o grande Bach lembrar-se-ia daquela Paixão de Haendel, da qual fez vários empréstimos. E o sucesso de Almira e de Nero, do jovem compositor, foi quanto bastou para provocar em Keiser inveja e rancor. Durante o inverno de 1706-1707, Haendel viajou para a Itália. A bagagem musical que levava era bem pouca coisa: um Rodrigo em processo de composição e música instrumental sobre a qual não dispomos de dados precisos — provavelmente sonatas e suítes que os editores de Amsterdã e de outros centros publicariam a partir de 1720, quando a reputação do compositor já estava firmada. Desde o Renascimento, foram numerosos os jovens artistas que atravessaram os Alpes para ir buscar, num país ensolarado, a lição de uma forma eterna de beleza. Aparentemente, nosso jovem Haendel nutria ambições mais altas do que fazer uma simples viagem de formação. Estava decidido a empreender a conquista da Itália, num momento em que, para o mundo inteiro, a arte musical italiana não tinha rival. Numa época em que o mais ínfimo violinista de décima classe, proveniente de Pistóia ou de Fidenza, tinha em sua certidão de nascimento o "abre-te sésamo" para o sucesso e a fortuna nos países bárbaros do Norte, aquele jovem alemão
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desconhecido, munido de umas poucas cartas de recomendação de valor duvidoso, alimentava a inaudita pretensão de ser bem-sucedido em um país onde as palavras "alemão" e "bárbaro" ainda eram sinônimas. O mais extraodinário é que, contra toda a lógica, ele se saiu bem. É difícil seguir os deslocamentos contínuos que marcam os três anos da permanência de Haendel na Itália. O certo é que o músico aventureiro passou por Florença, cujo esplendor, na época, já era apenas uma lembrança do passado, e que se deteve nos grandes centros musicais da Itália barroca: Roma, Nápoles e Veneza. Também é certo que nesses centros musicais Haendel foi triunfalmente acolhido pelo que a Itália possuía de mais brilhante no mundo da música e nos altos círculos de sua sociedade. Corelli regeu a orquestra, em abril de 1708, na primeira execução do oratório La Resurrezione [A Ressurreição]. Cardeais escreveram para Haendel textos de cantatas e libretos de óperas. E aquele jovem de vinte anos l i vrou-se de uma só vez de todas as inabilidades e do despreparo social associados à juventude e à origem provinciana. Suas grandes composições vocais, destinadas ao culto católico, que ele parece ter amado mas ao qual recusou converter-se, não obstante as mais calorosas e amigáveis pressões (não é sem riscos que se freqüentam cardeais), dão provas de uma mestria que é espantosa em um músico meses antes ainda prisioneiro de uma algaravia melódica germano-italiana. De uma só vez, Haendel descobriu e adotou as formas de um triunfalismo à romana que se tornaria seu modo mais espontâneo de expressar-se, encontrando uma postura eminentemente barroca, irmã do gesto das grandes estátuas de Bernini. O poderoso efeito dessa viagem a Roma, mais ainda do que ao resto da Itália, foi o de ensinar a um jovem que ele pertencia ao mundo dos vencedores, que a audácia podia dar resultados e que não havia qualquer razão para que ele limitasse suas ambições. A prova material disso ser-lhe-ia dada em pouco tempo. Distinguido por uma aristocracia internacional que se sentia, na Itália, como se estivesse em sua própria terra, e autor de uma Agrippina [Agripina] aplaudida em dezembro de 1709 em Veneza — que continuava sendo uma das capitais da ópera —, Haendel recebeu a oferta de um daqueles cargos de músico de corte que constituíam a consagração da carreira de um profissional. Ainda não tinha 25 anos e podia escolher entre duas cortes importantes da Alemanha — a do eleitor de Hanôver ou a do eleitor pdatino, Johann Wilhelm II, que residia em Düsseldorf. O posto em Hanôver foi o escolhido, aparentemente por oferecer maior segurança. Mas só a longo prazo essa escolha revelaria suas repercussões maiores: Georg Ludwig, de Hanôver, era ó herdeiro presuntivo da coroa da Inglaterra, mas não parece que o fato tenha pesado na decisão de Haendel. O que ele buscava, mais uma vez, era o máximo de liberdade. Tão logo se viu em seu cargo na sinistra corte de Herrenhausen, pediu uma licença e foi ver como lhe parecia aquela Londres de que alguns nobres ingleses, encontrados em Veneza, lhe haviam dito maravilhas. Na época, era a cidade mais populosa e mais rica do mundo. A ópera italiana, que
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para o Haendel de 1710 era a forma de arte mais perfeita que existia, estava começando a entrar na Inglaterra. Em 1711, em Londres, o próprio Haendel apresentou Rinaldo, que fez um estrondoso sucesso. Não precisou de mais do que isso para convencer-se de que a sorte estava lançada. Depois de passar um ano em Hanôver, conseguiu que o licenciassem pela segunda vez. Em novembro de 1712, estava de volta a Londres. Era o término de seus anos de aprendizagem e viagens. Só raramente voltariam a vê-lo na Alemanha. Esteve de volta ali uma vez, em 1716, numa comitiva real. Em seguida, com intervalos de muitos anos, há indícios de quatro viagens de Haendel a sua terra. Apenas a última delas, em 1750, de caráter sentimental; as outras foram turnês profissionais para recrutar cantores. Haendel escolheu o país de seu futuro e tratou de conquistá-lo com energia e método. A batalha da Inglaterra (1712-1737) A segunda carreira de Haendel começa no esplendor do triunfo. Rinaldo, freqüentemente reencenada, fez vibrar os londrinos, que jamais haviam visto ou ouvido nada de semelhante. E o autor dessa ópera parecia envolvido numa aura solar. Tudo eram sinais propícios à satisfação das duas grandes ambições de Haendel: conquistar Londres e impor aos londrinos a ópera italiana. No entanto, nem um nem outro objetivo era tão fácil de atingir como parecia. A Inglaterra em peso vivia o impacto traumático da morte de Purcell. Não que ela desse mostras de uma devoção especial à memória do músico falecido, mas faltava-lhe imaginação, e ela não conseguia conceber uma fórmula musical diferente daquela encarnada por Purcell. A ópera à italiana, mais do que qualquer outra forma, parecia-lhe nada ter a ver com ela. Alguns aventureiros do palco, como Aaron Hill ou Heidegger, se haviam deixado empolgar com essa nova forma, mas suas primeiras experiências foram um fracasso. Hill e Heidegger aliaram-se ao jovem Haendel como cúmplices e amigos, o que, de resto, não contribuiu para que se aproximassem do compositor os espíritos que se pretendiam sérios. Addison revelou-se, em seu periódico The Spectator [O espectador], um crítico amargo e injusto dos primeiros sucessos haendefianos. Quanto ao pontificante dr. Johnson, não via na ópera mais que "uma distração exótica e perfeitamente irracional". A glória de Haendel foi triunfar, ainda que temporariamente, sobre essa crítica hostil. Como homem e como compositor, Haendel programou sua conquista da Inglaterra com todo o cuidado de um general em campanha, nada deixando ao acaso, selecionando os objetivos mais importantes de modo a dirigir para eles todo o peso de sua atividade. Seu primeiro cuidado foi o de fazer esquecer, tanto quanto possível, o fato de que era estrangeiro. Precisou adotar um estilo musical em que os ingleses reconhecessem as sonoridades a que estavam acostumados, o que não significava que ele pretendesse renunciar à mistura germano-italiana, que era sua lin-
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guagem própria. Não era no teatro, além do mais, que ele se poderia valer daquele novo estilo ao qual ainda faltava definição. Antes de mais nada, tratou de situar-se no terreno das instituições especificamente britânicas, um passo que facilitaria a mise en place adequada de novas harmonias. Em 1713, Haendel retomou por sua própria conta a tradição de escrever uma ode para festejar o aniversário do soberano. Durante anos afio,a rainha Ana vinha enfrentando uma doença grave, e desde 1707 os compositores britânicos não ousavam mais fazer qualquer ruído em torno do seu leito. Pois o forasteiro Haendel preparou uma grande peça solene, cantando os méritos "da grande Ana... que assegura ao seu país uma paz gloriosa". A satisfação manifestada pela rainha foi tão grande, que o músico repetiu a dose quase imediatamente. Com a assinatura da Paz de Utrecht, terminara um longo período de guerras entre a Inglaterra e a França. As condições do tratado não eram gloriosas para ninguém, mas eram francamente deploráveis para o eleitor de Hanôver, empregador oficial de Haendel. O compositor, que pouco estava ligando, decidiu jogar com as cartas dos ingleses. Associou-se à alegria oficial com a composição de um Te Deum. Tal foi o efeito sobre a rainha que, encantada, ela imediatamente concedeu ao músico uma pensão anual de duzentas libras, o que o investia de uma espécie de status semi-oficial. O mais importante é que o Te Deum reproduzia com muita fidelidade as formas dos riinos de Purcell. Haendel chegou mesmo a levar sua anglicização voluntária ao ponto de empregar aqui e ali a complicada polifonia dos mestres ingleses do início do século XVII. O resultado foi que as autoridades da catedral de Saint Paul escolheram esse novo Te Deum para substituir o de Purcell, até então apresentado regularmente por ocasião das festas de Santa Cecília. Ainda não era a desejada consagração, mas um grande passo nesse sentido. O período vivido em Roma ensinara a Haendel o valor das relações mundanas. Durante alguns anos, o que se viu foi um Haendel elegante e quase frivolo, evoluindo com desembaraço num círculo de aristocratas e escritores. E as relações que fez lhe foram úteis. Familiarizou-se com a língua inglesa, que sempre falou com o mais abominável dos sotaques, mas da qual foi capaz de apreciar, em seus oratórios, as mínimas entonações. Em 1714, o eleitor de Hanôver tornou-se rei da Inglaterra com o nome de Jorge I . Não guardava ressentimento das ausências do seu antigo mestre de capela. Confirmou todas as pensões que a rainha Ana havia dado a Haendel e mesmo lhe concedeu novas. É bem verdade que o compositor ofereceu, em 1717, ao novo rei, uma suntuosa música de festa náutica sobre o rio Tâmisa: a famosa Water Music [Música aquática], que continua a ser até hoje uma das obras mais populares dos repertórios das orquestras. Teria ela sido executada, da primeira vez, em 1715, por um Haendel desejoso de passar uma esponja na leviandade de seu comportamento para com o eleitor de Hanôver? Fala-se muito disso, mas sem grandes provas. O manuscrito completo data de 1717; e, sobretudo, não consta que, na época, se houvesse cogitado de qualquer necessidade de o compositor redimir-se perante o rei.
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Haendel tinha o hábito de passar seus verões em Cannons, nas cercanias de Londres, hospedado por lorde Chandos, um dosfidalgosmais ricos e mais desonestos do reino (foi tesoureiro-pagador geral dos exércitos de Marlborough). Ao contrário da lenda que se espalhou, Handel jamais encontrou qualquer "ferreiro harmonioso" na região: o que fez foi aproveitar a tranqüilidade do lugar para produzir muito, pois, em geral, ia a Cannons durante os períodos de ausência do proprietário. Foi lá que escreveu os Chandos Anthems [Hinos de Chandos], composições sobre o texto inglês dos salmos, sábia dosagem de estilo purcelfiano e de brio italiano, em que é possível detectar a presença, aqui e ali, de fragmentos de corais alemães. Acis and Galathea [Acis e Galatéia], Aman and Mardo [Aman e Mardoqueu], experiências de teatro lírico inglês, compostas para o palco privado de Cannons, serviriam bem mais tarde a Haendel como material de base e como repertório melódico para a composição dos seus primeiros oratórios. Pode-se ligar a essa época algumas das composições de música de câmara. As datas de publicação são em geral posteriores, mas não devemos nos fiar nelas. A análise estilística e temática leva-nos, pelo contrário, a datá-las de muito antes na carreira de Haendel, que só teria autorizado a sua publicação mais tarde, pressionado por seu editor. Durante seis anos, Haendel esteve mais preocupado com inserir-se na vida inglesa do que com a promoção da ópera italiana. A Rinaldo, que havia assinalado sua entrada na vida musical inglesa, vieram juntar-se apenas Teseo [Teseu], II pastor fido [O pastor fiel], Amadigi, além de uma ópera que sequer chegou a ter apresentações públicas: Silla [Sila]. Tratando-se de homem tão ativo, esse balanço pode parecer bemfraco.Acontece que ele não leva em conta o mais importante: Haendel construiu uma reputação, fez relações, conquistou um lugar na sociedade. Tornou-se indispensável à realização de um projeto que fascinava um certo número de membros da aristocracia. Por que a nobreza inglesa não poderia assumir coletivamente uma das funções do mecenato principesco, a de manter, às suas próprias custas, um teatro de ópera? Longamente discutido, o projeto resultou em 1719 na criação da Royal Academy of Music. Ao contrário do que então acontecia na França e em outros reinos, a realeza entrava no nome da academia por uma questão de mera cortesia. Na verdade, tratava-se de uma sociedade anônima que possuía e dirigia um teatro em Haymarket, e que optara por nele encenar óperas. O rei estava autorizado a contribuir com uma subvenção, mas não intervinha no funcionamento daquilo que era uma empresa privada. A Haendel foi oferecida, com amplos poderes, a direção artística de Haymarket, encarregando-se da administração material um empresário suíço, Johann Heidegger, aventureiro de talento e financista temível. A posição do diretor era muito especial: o conselho administrativo dava-lhe carta branca para escolher os cantores e organizar os programas. Mas, para apimentar a aventura, e em nome da livre concorrência, impunha-lhe recorrer também a compositores italianos, o que, apesar de perfeitamente normal, podia acarretar desas-
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trosas conseqüências. Por exemplo: em 1721, os nobres comanditários organizaram um curioso torneio, proporcionando a si próprios o prazer de assistir a um Muzio Scevola cujos três atos haviam sido compostos por três compositores diferentes: Haendel, um certo Amadei, que preferiu retirar-se às pressas, e Giovanni Bononcini (1670-1755), que durante cinco anos foi o adversário permanente de Georg Friedrich. A competição musical ganhou, ademais, o caráter de uma batalha política. Haendel, alemão, era apoiado por um rei de origem alemã. A oposição, agrupada em torno do poderoso clã Marlborough, lançou Bononcini, encarregado de representar as cores da verdadeira Inglaterra, contra um poder que se procurava ridicularizar, na impossibilidade de abatê-lo. A competição assim criada entre dois compositores que não tinham razões pessoais para antagonismos provocou em Haendel um jorro de imaginação e de ciência ao qual devemos algumas das mais belas obras-primas da ópera barroca, particularmente as duas óperas que compôs em 1724, Tamerlano [Tamerlão] e Giulio Cesare [Júlio César]. A partir de 1726, Bononcini renunciou à luta, recolheu-se a Blenheim, hospedado pelos Marlborough, que lhe garantiram uma pensão proveniente dos cofres reais. Haendel ficou na posse exclusiva do teatro. Tratava-se, desgraçadamente, de um teatro que estava à beira de ir a pique. No ardor da competição, todos — administradores, diretores, empresário — haviam esquecido os imperativos mais elementares da economia. Para garantir o êxito da ópera em Londres, convocaram-se os cantores mais célebres e mais caros da Itália. Senesino, o famoso castrato, ganhara uma fortuna. A rivalidade permanente entre as duas maiores sopranos da época, a Faustina e a Cuzzoni, não se mostrara vantajosa nem para a qualidade das representações (as duas puxavam-se pelos cabelos e insultavam-se em cena), nem para os custos de exploração do teatro. Em 1728, já não havia dinheiro suficiente em caixa para manter todos aqueles rouxinóis de alto luxo. Tais dificuldadesfinanceiraspesaram mais na derrocada daquele tipo de espetáculo do que — como há quem pretenda — o sucesso obtido em 1728 pela sátira cruel e divertida que foi a "ópera do Mendigo", The Beggars Opera, de John Gay. Haendel fora dos primeiros a rir com aquele pot-pourri musical, que tinha o texto escrito por seu amigo de longos anos e cuja música era de autoria de todo mundo — dele, Haendel, inclusive, entre outros. Panfleto político mais que obra musical, aquela "Pastoral de Newgate" (a prisão londrina) fez um sucesso maior do que o de qualquer obra lírica tradicional; sua descendente, na Alemanha de 1930, Die Dreigroschenoper [A ópera dos três vinténs], conservou-se-lhe fiel no espírito corrosivo que lhe passaram seus autores, Bertolt Brecht e Kurt Weill. É preciso que se diga que os grandes senhores acionistas da Royal Academy nem sempre tiveram muita pressa em atender aos pedidos de fundos: passados dez anos da criação daquele teatro de ópera, o capital de origem não se achava inteiramente integralizado. A Royal Academy estava às vésperas da falência. Para
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Haendel, isso representava o fracasso de todo o seu projeto pessoal. Em 1727, fizera-se naturalizar inglês, havia comprado uma casa em Londres, criara raízes. Diante da crise, após longas reflexões, tomou uma decisão sem precedentes. Dispondo de certa folga financeira (seu salário como diretor da Ópera de Haymarket, somado a uma pensão dos cofres reais, garantiam-lhe renda muito superior aos seus gastos), Haendel resolveu arriscá-la, assumindo com sua responsabilidade pessoal um empreendimento diante do qual recuavam as maiores fortunas da Inglaterra reunidas. Em vez de aceitar uma derrota razoável, preferiu travar o com¬ bate até o fim. Era uma batalha perdida de antemão, e nada havia que Haendel pudesse fazer contra isso; tanto mais que os mesmos lordes que se retiraram de campo em 1728-1729 não aceitavam a idéia de que um simples músico viesse a se colocar no lugar deles. E fundaram uma nova ópera, The Opera of the Nobility [A ópera da nobreza], para fazer com que fracassasse a tentativa de Haendel, que desejava prolongar a vida do empreendimento que haviam fundado. Assim, o público londrino, que se revelara incapaz de manter em funcionamento uma única sala de espetáculos, possuía duas a partir de 1733. Em situação próxima do desespero, Haendel não fugiu ao desafio. Criou suas mais belas óperas. A riqueza dramática de Orlando (1733) ou de Alcina (1735) tem poucos equivalentes. E Haendel organizou concertos em que deslumbrava o público com seu virtuosismo. Inventou, sem perceber o alcance da coisa, a fórmula de seus primeiros oratórios; é quase cruel ressaltar que ele sequer tentou tirar partido em Londres dos sucessos que obteve em 1733, com Esther [Ester] e com Athalia [Atália], em Oxford. Não havia jeito. Nunca conseguiu mais do que adiar o momento do desfecho. No início da primavera de 1737, era um homem à beira da catástrofe financeira (ao contrário do que alguns difundiram, ele não chegou a falir), um homem que esgotara os recursos de sua imaginação,fisicamenteexausto, que veio abaixo durante um concerto. Uma paralisia do lado direito — que é impossível garantir se teve origem vascular ou nervosa — triunfou sobre aquela montanha de energia. Solitário, recolhido à sua "toca" de solteirão em Brook Street, Georg Friedrich falava coisas incoerentes, que assustavam os amigos, e não consentia em deixar-se tratar.
Triunfo e velhice (1737-1759) Aachen (cidade que tem o nome francês de Aix-la- Chap elle), novembro de 1737. A cura súbita de Haendel foi tão mal explicada, em termos médicos, como o fora a própria doença. Nos sentimos tentados a dizer que, de um momento para outro, ele resolveu declarar-se curado por um ato de vontade. Mas estava com 52 anos, arruinado — e a ópera italiana, em que apostara para fazer sua carreira, não tinha mais futuro na Inglaterra. Na prática, teve que recomeçar da estaca zero. Compôs ainda algumas óperas, como Serse [Xerxes, 1738], em que furtivamente fez passar, contra seus hábitos, algumas cenas cômicas. Mas não trabalhava mais com o co-
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ração. Nessa época, escreveu por encomenda algumas obras que não levou à cena e que se situam em um plano bem baixo no contexto de sua produção. Em 1741, Deidamia pôs um ponto final em suas atividades como homem de teatro. Mais adequado seria dizer: em suas representações teatrais — pois no palco, graças a uma fórmula nova, Haendel reencontraria um campo de ação. Nos meses difíceis que precederam sua queda, Haendel tivera ocasião de apresentar ao público obras líricas sem direção de cena ou cenários. Esther, de 1731, inaugurara a série. O novo "formato" não era uma escolha de Haendel, mas deviase ao puritanismo do bispo de Londres, que se recusara a autorizar que os meninos cantores da Capela Real pisassem o palco em companhia de atores. A intervenção da princesa real Ana abrandara-a posição episcopal: acabou sendo possível montar, com sucesso, um concerto "em forma de oratório". Para Haendel, homem de teatro, a solução havia sido penosamente constrangedora; para Haendel, homem arruinado, era a chave de uma nova carreira. Ampliou sua clientela, apresentando espetáculos em inglês; seduziu os burgueses de Londres, falando-lhes a linguagem das Escrituras, e os membros da corte, falando-lhes em termos de drama; reduziu os custos, suprimindo os cenários e renunciando às estrelas italianas que cobravam fortunas; criou um novo centro de interesse dramático graças à utilização judiciosa e maciça dos coros; escapou à regulamentação que proibia fossem realizados espetáculos teatrais enquanto durasse a Quaresma — o que significava que, durante seis semanas por ano, os oratórios de Haendel não teriam concorrentes para suas apresentações. Todas essas considerações materiais eram de molde a tentar o homem prático tanto quanto o artista. Abria-se uma direção em que era possível construir uma carreira inteiramente nova. O homem de iniciativa lançouse à empresa sem mais delongas; e o sucesso veio. Não há dúvida de que, em Haendel, o desenvolvimento do oratório corresponde também a preocupações de ordem espiritual, mas de acordo com um outro calendário, mais tardio e muito complexo. Não devemos esquecer que diversos oratórios baseiam-se em temas inteiramente estranhos às Escrituras: Semeie [Sêmele] e Hercules [Hércules] pertencem ao domínio da mitologia, outros são alegorias. Um dos primeiros gestos de Haendel, aliás, foi testar as reações do público em relação àquele novo gênero de literatura musical e dramática. Em 1739, apresentou aos londrinos três obras completamente diferentes: Israel in Egypt [Israel no Egito], grande espetáculo todo constituído por coros, composto diretamente sobre o texto bíblico; Saul, dramatização de um episódio da história sagrada, e o L'allégro, ilpenseroso ed il moderato, [O alegre, o pensativo e o moderado], alegoria poética de Milton, adaptada e aumentada por Charles Jennens, também responsável pelo texto de Saul. As preferências dos ouvintes inclinaram-se nitidamente para este último, o que permitiu a Haendel projetar com maior precisão as linhas mestras de suas obras seguintes. Em um tema cuja origem bíblica é desejável mas não forçosa, enxerta-se um drama pessoal — no caso, os ciúmes que Saul tem de
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Davi. A intensidade do tratamento remete muito mais às grandes tragédias da Antigüidade grega do que ao teatro da época, com suas perucas bem penteadas. Cego por forças que o transcendem, não resta ao herói — seja ele Saul, Sansão, Hércules ou Jefté —- senão sucumbir diante do Destino. É, no entanto, para ele, e não para os vitoriosos e bem aquinhoados, que se volta a simpatia do compositor. O sistema de convenções do teatro é abalado por esse deslocamento do centro de interesse, que passa do anedótico ao essencial. As convenções musicais da ópera também vêm abaixo. Não se cogita mais de atribuir ao herói as mais belas árias, mas de inseri-lo numa construção da narrativa dramática que se vale, em primeiro lugar, da flexibilidade e das possibilidades de expressão do arioso e da grande declamação acompanhada por orquestra. A intensidade do papel de Saul em nada se vê diminuída pelo fato de ele não comportar nenhuma ária que seja levada até a sua conclusão. A preferência de Haendel pelos temas tirados das Escrituras explica-se por dois fatores simples: os livros "históricos" acham-se repletos de heróis que excedem os limites naturais; e a burguesia londrina, bem fanrüiarizada com a Bíblia, acompanhava com paixão essas histórias, que conhecera desde sempre e com as quais se sentia envolvida. Haendel alçou-se do abismo em que tombara em 1737, mas aos poucos. A agressividade com que conduzira sua carreira nos anos de seu primeiro triunfo acarretara-lhe muitos inimigos, que agora se compraziam em cobrar vingança do homem abatido. Contra Haendel moviam-se cabalas por vezes odiosas. O restabelecimento do compositor em uma atmosfera de vitória teve que se fazer em duas etapas. Em 1742, cansado de Londres, aceitou convite para apresentar uma temporada de oratórios em Dublin. Para essa ocasião foi que escreveu o Messiah [Messias]. Houve quem quisesse ver no fato de essa obra imensa ter sido escrita em apenas 21 dias o testemunho de uma espécie de iluminação mística que teria acometido o compositor. É esquecer que a mesma rapidez de escrita se pode verificar em todas as composições do músico: os doze concerti grossi do opus 6 foram fabricados em setembro de 1739 à razão de um cada dois dias. Não é nisso que está o milagre. O milagre está em que, trabalhando sobre o texto não remanejado das Escrituras, Haendel encontrou no profeta Isaías e em São Paulo libretistas infinitamente superiores a todos os que o haviam servido até então. A beleza das palavras permite ao compositor construir uma música que encontra sua eficácia em sua própria simplicidade. Pondo a serviço de um texto, pelo qual ele se sentia diretamente envolvido, os recursos de uma retórica teatral que deve sua força à naturalidade e à espontaneidade, Haendel criou a obra-prima que Dublin acolheu com entusiasmo em 13 de abril de 1742. Infelizmente, o Messiah, aplaudido em Dublin, foi recebido com frieza em Londres, por mera questão de decoro. Não se podia falar de coisas sagradas num teatro, e não se podia fazer profissionais da cena cantarem em uma igreja. O oratório de Haendel não tinha, portanto, onde situar-se: estava condenado à não-
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existência. Só com muitos anos de atraso é que o Messiah pôde ser normalmente aplaudido em Londres. Entrementes, a situação pessoal de Haendel havia mudado bastante: sua vitória na capital ainda teve que esperar mais de três anos. O incidente que trouxe de volta o velho músico — Haendel já passara dos sessenta — ao primeiro plano teve origem política. Em 1745, os Stuart fizeram um último esforço para arrebatar o trono da Inglaterra àqueles hanoverianos que os haviam substituído. As tropas escocesas em que se apoiava o pretendente, revolvendo tudo à sua passagem, chegaram a duzentos quilômetros de Londres. O tumulto foi grande na capital, onde, sob efeito do medo, os preconceitos anti-hanoverianos atenuaram-se. Haendel, que compusera no momento certo dois oratórios patrióticos, um dos quais Judas Maccabaeus [Judas Macabeu, 1747] destinado a festejar o retorna a Londres do vencedor dos escoceses, o duque de Cumberland —, viu-se unanimemente prestigiado naquela oportunidade. Cantara o que era preciso no momento em que era preciso: só podia ser, portanto, um grande músico. E as velhas querelas ficaram esquecidas. Musicalmente, o sucesso foi mau conselheiro: Joshua [Josué] e Alexander Balus (ou Alexander's Feast [A festa de Alexandre] ), que se seguiram a Judas Maccabaeus, mostram a mesma facilidade de harmonias guerreiras e triunfais. Durante alguns meses, Haendel confundiu música com exaltação à força em obras de valor discutível. Felizmente, a calma e a prosperidade de uma vida feliz facultaram ao músico uma visão mais matizada do mundo. Deve-se mesmo observar que os quatro oratórios posteriores a 1749 demonstram uma profunda evolução intelectual. Susanna, Solomon e Theodora dão provas de um apaziguamento do espírito desse homem que foi sempre violento e pouco inclinado à ternura, com os grandes esquemas maniqueístas que tão fortemente separam o bem e o mal atenuando-se numa compreensão mais aberta da humanidade. Jephta [Jefté] revela um homem capaz de uma reflexão trágica diante do problema do mal. Enquanto compunha esse último dos seus grandes oratórios, Haendel sentiu os primeiros sinais de uma cegueira que, como primeiro efeito, passou a lhe impor um ritmo de trabalho bem lento. Tratado pelo mesmo médico que operara Bach nas últimas semanas de sua vida, perdeu completamente a visão a partir de 1753. Cessou de compor, contentando-se em organizar a execução anual de seus oratórios e regendo uma vez por ano o seu Messiah em benefício da Casa dos Expostos, os foundlings [crianças enjertadas] aos quais, solteirão, ele se ligara por fortes sentimentos. Já cego, Haendel comprazia-se em ditar para um secretário o curioso potpourri, que é um pasticcio das passagens preferidas de sua obra, a que chamou de The Triumph of Time and Truth [O triunfo do tempo e da verdade]. Esse testamento musical do velho enfermo retomou assim, em 1756, o título do primeiríssimo oratório composto meio século antes pelo jovem alemão que recém-descobrira o sol da Itália: II trionfo dei tempo e dei disinganno.
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No dia 6 de abril de 1759, Haendel sentiu-se mal à saída do teatro onde fora ouvir o seu Messiah. Levado para casa, morreu uma semana mais tarde, exatamente dezessete anos depois da criação de sua obra-prima. A voz que se extinguía não pertencera a qualquer mundo bem delimitado: fizera-se ouvir na Inglaterra, mas jamais esquecera as lições aprendidas, em menino, de um organista de Halle, servidor da tradição luterana, como tampouco esquecera os esplendores do sol de Roma e os prazeres deliciosos da melodia italiana. A capacidade de síntese de Haendel é algo que lhe pertence com exclusividade. De material tão heterogêneo, ele conseguiu fazer um conjunto brilhante, ilustração incomparável do esplendor barroco em seu zênite.
Haendel, como via a si próprio A vida de Haendel lê-se, assim, como a de um conquistador. Ela nos dá a impressão de uma longa seqüência de comunicados militares, em que se sucedem vitórias, derrotas, praças tomadas, rivais eliminados; episódios numerosos, mas pouco variados, que levam à apoteose final e ao túmulo em Westminster. Tudo isso se passou às claras, sob a iluminação reforçada e amplificadora do teatro. Do homem, propriamente — de sua sensibilidade, de sua concepção da vida, de suas relações com a família e com os amigos —, pouco sabemos. Tão generoso e extrovertido em seu comportamento musical, Haendel foi bem avaro em confidências sobre si próprio. Para compor sua imagem, é preciso averiguar com atenção os poucos testemunhos que o tempo não dispersou. Um punhado de cartas, num francês um tanto afetado, escritas a um cunhado remoto (que se tornou a casar duas vezes depois de ter morrido a irmã do músico) e funcionário do rei da Prússia, uma série de testamentos redigidos muito nfinuciosamente, alguma correspondência com terceiros, o testemunho deixado por um amigo e contemporâneo numa passagem das memórias que escreveu, artigos de jornais — é todo o . material de que dispomos para reconstittiir essa personalidade. Na medida em que avançamos na leitura, Haendel vai se tornando mais complexo, mais rico e humanamente mais atraente. O primeiro Haendel com que se topa é o urso colossal que virou lenda, com suas cóleras homéricas, sua gulodice prodigiosa, a brutalidade com que domesticava os atores mais célebres: este só parece viver para o triunfo e a glória, capaz de estourar em gargalhadas diante do fracasso de um adversário e de ficar arrasado quando está só em seu teatro sem público. O homem com máscara romana um tanto flácida, esmagada por uma pesada peruca de época, ajusta-se bem demais a uma certa imagem fabricada; daí a posteridade não ter sido capaz de detectar o logro; preguiçosa, essa posteridade não se deu ao trabalho de cavar mais fundo, tanto mais que a personagem assim projetada em nossas imaginações combinava às mil maravilhas com uma música triunfalista e redundante, e igualmente artifi-
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ciai, que era, no século XIX, uma adaptação "enriquecida" da verdadeira música de Haendel para satisfazer às necessidades da burguesia vitoriana. O contra-senso que imperava na apreciação do homem encontrava sua exata contrapartida no contra-senso que era o modo de entender e executar sua música. Desde que já não nos contentamos com essa imagem simplista,ficamosimpressionados com o clima de solidão em que transcorreu a vida do compositor. A casa em Brook Street, com móveis surrados, só apresenta um luxo: os quadros — em especial, dois Rembrandt, um dos quais é uma grande paisagem que ele comprou por preço muito alto, meses antes de ficar cego. Não há indícios de qualquer aventura sentimental, ou simplesmente galante, no curso de uma vida que transcorreu, toda ela, à luz da publicidade e que teve a vigiá-la muitos olhares atentos e espíritos maledicentes. Algumas amizades do tipo que reconforta o coração, nos meios sociais mais diversos. Mas, a não ser um comerciante seu vizinho, não apareceu ninguém para assistir o velho em seus últimos momentos. Essa solidão de que sofreu no fim da vida foi certamente uma solidão voluntária na juventude. O músico tinha doze anos quando perdeu o pai, e deixou a casa familiar seis anos mais tarde, para nunca mais voltar. Haendel escolheu o exílio e nele sentiu-se a gosto. Tornou-se inglês porque assim o quis, chegando ao ponto de naturalizar-se — gesto que pode parecer extremado, se considerarmos que naquele século o conceito de nacionalidade tinha reduzida importância. Se insistirmos em olhar Haendel mais de perto, veremos que esse homem brutal e ambicioso era capaz de gestos de grande ternura. Numerosas amizades que fez na Inglaterra deixaram seu testemunho nesse sentido; e mais alto ainda fala a afeição que ele manifestou por tudo o que o ligava àquele passado alemão, com o qual, aparentemente, havia rompido de maneira tão violenta. Os gestos não faltam, desde que se saiba vê-los. Há a remessa, em 1754, de plantas raras ao velho Telemann, que as colecionava — uma diferença de quatro anos na idade separava os dois músicos, que não haviam voltado a se encontrar desde Halle, meio século antes; o interesse com que Haendel se punha a par, por intermédio do cunhado, dos mínimos acontecimentos familiares; a ajuda que deu à viúva de seu antigo mestre Zachow; a delicadeza de que deu mostras, em pleno 1736, ano terrível em sua vida, quando não mediu despesas para oferecer um presente de qualidade à sobrinha e afilhada, que se casou (aquele era um momento em que a menor libra esterlina podia ter importância capital para a continuidade de sua vida profissional). Sempre os mesmos traços de uma afeição sincera e espontânea pelos amigos e por uma família tão distante que chega a se tornar mítica. Os testamentos localizam, para assegurar-lhes legados substanciais, primas de que Georg Friedrich teve que procurar pistas vasculhando desde a Dinamarca até o fundo da Boêmia. A mãe Alemanha ocupou um lugar enorme na vida de Haendel. Era lá que ele refazia suas forças, como um Anteu cada vez que pisava o chão. Em 1729, recolheuse ao torrão natal antes de empreender sua extravagante aventura de industrial do
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teatro. Em 1737, foi em Aachen, território de língua alemã, que recuperou a saúde em um ímpeto de energia que nada na Inglaterra fora capaz de provocar. De cada um desses acontecimentos deixou um testemunho musical que não permite qualquer equívoco. As Neuen Deutsche Arien [Novas árias alemãs], de 1729, pertencem exclusivamente ao mundo germânico, pela sensibilidade mais ainda do que pela língua. A Funeral Anthem for Queen Caroline [Hino fúnebre para a rainha Carolina], de 1737, toma de empréstimo seus temas principais ao coral luterano e a um antigo cântico pascal, obra de um quase homônimo do século XVI, Jacob Handl, dito Gallus. Ao lado de exemplos tão manifestos, é comum encontrarmos, sob o invólucro solene de um estilo fortemente italianizado, os ecos das músicas de infância de Haendel. Obras tão diferentes como Acis and Galathea, de 1720, o Messiah, de 1742, ou Theodora, de 1750, comportam citações inequívocas do que Zachow ensinava ao seu jovem aluno por volta de 1700 na Liebfrauen-Kirche de Halle. A memória de Haendel parece funcionar de uma estranha maneira: assim como preserva um sentimento ativo em relação a uma família de que o músico se desligou materialmente, faz um estoque de fragmentos melódicos ou rítmicos que o compositor utilizará ao longo de toda a carreira. Falou-se muito (com ênfase no plano ético) dos pretensos plágios cometidos por Haendel. É bem verdade que — semelhante nisto a todos os seus contemporâneos — ele não se proibia de tomar empréstimos. Mais verdade ainda é que, no caso, era ele o seu principal fornecedor e o mais importante credor. Uma melodia agradável, uma fórmula feliz podem aparecer até seis ou sete vezes na obra do músico. E o passar dos anos não modificou em nada esse costume. O allegrofinalda Sonata para violino opus ln°ll, que data da extrema juventude de Haendel, reproduz-se integralmente na sinfonia que precede a entrada do anjo em Jephta, o último dos seus oratórios. Haendel tinha provavelmente razões muito pessoais para voltar com tanta freqüência aos mesmos temas, pois representam uma armadura conservadora que permite ao espírito inovador desenvolver-se com o mínimo de riscos. Sua permanência por toda a vida do autor e sua origem, que remonta em geral à primeira juventude, podem fazer desses temas elementos portadores de segurança para um homem e músico que vive uma aventura por vezes pesada demais: servem como ancoradouros, e também como fontes de consolação. Mas a presença recorrente desses temas na obra do compositor explica-se por motivo bem mais material e evidente: faz parte do método de trabalho que Haendel impôs a si próprio. Recusando (o primeiro, talvez, a ter feito isso) a situação de músico doméstico — que era o destino comumente associado à classe musical em sua época —, o compositor não fez mais que trocar uma escravidão por outra. Tornou-se servidor do público, esse amo tão mais terrível por ser anônimo, o que significa que não se pode chegar a nenhuma acomodação com ele. Trabalhando para o teatro — como músico, diretor e empresário —, Haendel arriscava sua sorte todas as noites. Estava condenado ao sucesso — e mais: ao
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sucesso imediato e irresistível. Não dispunha, como outros, de um tempo para reflexão. Um espetáculo mal levado podia significar a sala vazia no dia seguinte, e ele ter de arcar com todos os custos sem nenhuma receita, ao passo que uma cantata de domingo que saísse um pouco menos perfeita não modificava em nada a composição do público para o ofício do domingo seguinte. Haendel precisava, portanto, trabalhar bem depressa, sempre pronto a corrigir e a recomeçar. Se uma fórmula mostrou-se eficaz, por que não a reaproveitar? Até pomos em dúvida se esses auto-empréstimos eram sempre perfeitamente conscientes, se não eram o resultado de um impulso incoercível que permitia ao músico escapar à banalidade terrível das construções da música de cena. A qualidade de um libreto nunca bastou para fazer uma boa ópera. O que conta é a possibilidade, para um músico, de usar uma situação dramática qualquer como pretexto para dela extrair uma composição cujo sentido não possa escapar aos ouvintes, mesmo que o texto como tal lhes escape. Haendel era senhor absoluto desse malabarismo. O enredo de Ariodante ou de Tamerlano pode nos deixar completamente indiferentes. Mas Ariodante, príncipe apaixonado, que sofre porque se crê enganado, nos fala uma linguagem comovente. Bajazet, ao morrer, tem inflexões cuja intensidade não deixa margem à dúvida. Tudo visa àquele minuto de verdade, que é ainda mais intenso nos oratórios, quando o músico, contrariando seus próprios desejos, se desembaraça do grilhão daquela língua italiana que os ouvintes não compreendiam e dos entraves do recitativo. Escrita a toda velocidade (as partituras autografas dão testemunho disso), de um só jato, a música de Haendel é feita para seduzir logo de primeira, sem dar ao público o tempo de parar para pensar no como e no porquê. Um ritornello faz a introdução, situando bem nitidamente a tonalidade e a melodia, verdadeira mini¬ ouverture; logo em seguida, o cantor intervém. Nada mais existe, então, senão a frase, de desenho amplo, de tonalidade fortemente afirmada, de voluntária motricidade. Haendel é provavelmente um dos maiores bel-cantistas que já houve. Mas são raros os momentos em que cede ao gosto da frase gratuita; ele sabe que a música tem uma função psicobiológica (mesmo ignorando este vocabulário pedante e ridículo) e compõe para obter um efeito. Consola, tranqüiliza, emociona, distribui alegria, compaixão, coragem — e tudo isso pelos meios mais simples, de modo a agir sobre a maioria das pessoas. "Quando é preciso, ele fere como um raio", dizia a seu respeito Mozart. Raios, trovões — a própria força dos elementos! "Procure em Haendel", dizia Beethoven, "e aprenda com ele a produzir tão grandes efeitos com tão poucos meios." Essa função, que tornou sua, Haendel só pôde exercer plenamente no palco. Seu instrumento favorito era a voz, seja para servir-se dela separadamente ou em coros. Sua melhor música instrumental — os concertos para órgão, os concerti grossi—foi escrita para preencher os entreatos, para impedir que o público soltasse o espírito em divagações, para manter em seu mais alto nível uma tensão que é
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de energia tanto quanto de sentimento. Dessa origem provêm suas qualidades e seus defeitos. A espontaneidade vale mais, para Haendel, do que todas as elaborações da inteligência. A eficácia, emotiva e motriz, parece ter sido sempre o seu critério prioritário. O que explica a relativa pobreza de sua música de câmara: distração pessoal, aulas para alguns alunos ricos, divertimentos para melómanos da alta sociedade, de parte dele o interesse não é muito grande nem muito autêntico. Como tampouco consegue apaixonar-se por tudo o que se prenda à especulação intelectual: as fugas o aborrecem, e nelas o contraponto permanece sendo o de um bom técnico, nunca o de um gênio. A batalha pessoal que tem de travar desenrola-se noutro terreno, na febre das estréias, em meio ao cheiro das maquilagens, às discussões entre atores, à confusão dos lugares públicos. Ele se sabe vitorioso, e isso o deixa feliz, quando o silêncio se faz em torno de uma voz impecável que se ergue e descreve o grande arabesco que só ele é capaz de desenhar. É nesse momento que dá para compreender Beethoven querendo poder ajoelhar-se diante "do maior de todos". A pléiade dos admiradores de Haendel é imensa. Mozart, Gluck e Haydn estão reunidos, nessa admiração, com Beethoven, Chopin, Schumann, Liszt e Schubert. Os mais diversos temperamentos viram-se seduzidos por essa generosidade de todo o ser musical. O homem reservado, sobre quem sabemos tão pouco, aparece em sua verdade através de sua música. Lá o encontramos com sua força, não raro brutal, e sua terrível fragilidade. O alemão e o italiano fundiram-se para fazer um inglês. O músico triunfal e pontificante dos Coronation Anthems [Hinos da coroação] insensivelmente transformou-se no grande orador sacro do Messiah. O homem, tão seguro de si e do seu valor, que só sabia falar dos triunfos de Giulio Cesare, aprendeu a cantar a serenidade jubilosa em Salomon, a tolerância em Theodora, antes de nos dar, em Jephta, o mais emocionante testemunho de coragem, de medo e de confiança que possa mostrar um homem no confronto com um destino que não tem como explicar nem recusar. Os homens e as mulheres reunidos na abadia de Westminster, em 20 de abril de 1759, para prestar uma última homenagem a Haendel não sabiam que estavam fazendo mais do que enterrar um grande homem. A cerimônia, correta e digna, assinalava algo de mais sério: estava sendo batido o último prego para fechar o caixão da música inglesa. Transcorridos 25 anos, começariam as grandes cerimônias comemorativas em que centenas, depois milhares, de vozes em coro entoariam juntas o Messiah em Aleluias cada vez mais colossais. O ruidoso sucederia ao dramático. No tumulto coletivo e na mediocridade individual, a derrocada arrastaria consigo um sistema musical que durara cerca de três séculos.
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JEAN-PHILIPPE RAMEAU (1683-1764)
Jean-Philippe Rameau nasceu em 1683, em Dijon. Seu pai, com quem ele aprendeu música, era organista na catedral. Como Bach, como Couperin, soube reconhecer as notas musicais antes das letras. Mas, diversamente do alemão e à semelhança do francês, as letras permaneceram-lhe para sempre estranhas: o estilo de seus Traités é melhor que o do Méthode de Couperin, mas está longe de ser elegante. Aos dezoito anos, Rameau deixou Dijon e foi para a Itália. Não seguiu além de Milão e voltou, do que se arrependeria mais tarde. Tocou violino numa companhia ambulante e, aos dezenove anos, era organista em Avignon, depois em Clermont. Em 1705, transferiu-se para Paris, lá permanecendo o tempo necessário para tornar-se organista dos jesuítas na igreja da rua Saint-Jacques e publicar uma coleção de peças para cravo. Mas não demorou muito em Paris. Logo estava de volta à província. Dijon, Clermont, Lyon, Clermont outra vez, onde retomou o órgão. Período obscuro da vida de Rameau, esse em que é difícil acompanhá-lo. Não perdeu tempo, entretanto, e publicou um alentado volume — Traité d'harmonie réduite à ses principes naturels [Tratado de harmonia reduzida a seus princípios naturais] — que causou sensação em Paris em 1722. O título da obra diz perfeitamente o que ela pretende significar e está bem no espírito da época, assim como o próprio método de que procede. Não que todas as idéias de Rameau fossem novas e revolucionárias, mas, no atravancamento de teorias das mais diversas origens e na confusão prodigiosa herdada de séculos anteriores em que não se exercera qualquer tipo de organização sobre a multiplicidade
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dos fatos musicais, Rameau foi o primeiro a simplesmente pôr as coisas em ordem. Que ele é um homem de seu tempo constata-se pela intuição primordial que orienta o livro: a de que as "leis da composição musical" derivam necessariamente "da natureza dos sons acústicos". Pode ser evidente para nós, mas não o era, de maneira alguma, na época. Um som jamais é puro, ele é a combinação de um som fundamental com sons secundários que chamamos de "harmônicos". O achado de Rameau consistiu em explorar até as últimas conseqüências o fato, comprovado empíricamente, de que o acorde perfeito maior constitui-se dos primeiros harmônicos naturais. Assim, toda a lógica da composição musical clássica vê-se fundada na razão. Um homem do século XVIII precisava disso para sentir-se à vontade. Em 1722, Rameau voltou a instalar-se em Paris, de onde não mais arredaria pé. Já se tornara célebre, mas somente como teórico e filósofo; para a cabeça de seus contemporâneos, era difícil aceitar que Rameau fosse "também" músico. É que naquela época os compositores não tinham o hábito de divagar longamente sobre a teoria; dali para a frente as coisas mudaram. O sonho de Rameau, evidentemente, era a ópera. Na França do século XVIII, a ópera era o único exemplo verdadeiro de grande música: o resto não contava. Rameau tratou de procurar um poeta. Houdar de la Morte, o grande libretista, não fez caso dele. Rameau ficou marcando passo: "Exercitava os dedos" escrevendo música de cena para o teatro da feira de Saint-Germain e para o teatro italiano, publicou um segundo livro de peças para cravo, compôs um pequeno número de cantatas — eram óperas em miniatura, e o sucesso foi grande. O arrecadador geral de impostos Le Riche de La Pouplinière (é bom, para um mecenas, chamar-se Le Riche [O Rico] e sê-lo!) passou a protegê-lo e a incentivá-lo. Voltaire escreveu um libreto, Samson [Sansão], e Rameau trabalhou um ano na composição de sua primeira ópera. A sorte ainda não lhe sorriu dessa vez: o Parlamento proibiu a representação de uma ópera bíblica assinada por Voltaire! Enfim, o encontro decisivo: o padre Pellegrin, infatigável versejador de libretos, escreveu para ele Hippolyte etAricie [Hipólito e Arúcia]. A obra foi representada em 1735 na Académie Royale de Musique. Rameau estava com cinqüenta anos. Acolhida moderada. Os músicos se queixavam daquela música difícil demais, exigiam cortes. Os fiéis admiradores de Lully escandalizaram-se com as ousadias. Mas o velho Campra fez a observação certa: "Com a música desta ópera se poderia fazer dez outras!" A batalha que se travou entre "luilistas" e "ramistas" foi pesada, e não seria a última. Desse momento em diante, a vida de Rameau confunde-se com a de suas óperas: uma por ano, ou quase isso, dos 52 aos 81 anos. É preciso dizer mais? Entre 1733 e 1745, tiveram sua estréia as cinco grandes óperas que são certamente as obras-primas de Rameau: Hippolyte etAricie, Les Indes galantes [As índias galantes, 1737] Castor et Pollux [Castor e Pólux, também de 1737], Dardanus [Dárdano, 1739], Les Fêtes d'Hébé [As festas de Hebe], Platée. Entrementes, Rameau publicou
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seu último livro de peças para cravo (1728) e as Suites de clavecin en concerts [Suites para cravo em concertos, 1741]. Rameau tornou-se compositor da Câmara do rei em 1745, universalmente admirado, cumulado de honrarías. Em 1751, numa representação de Pygmalion [Pigmalião], o público identificou sua presença entre os espectadores e irrompeu numa ovação que emocionou até as lágrimas aquele velho pouco inclinado a enternecimentos. Bruscamente, no ano seguinte, veio a contestação. Uma companhia de músicos italianos representou em Paris La serva padrona [A criada patroa], de Pergolesi, simpática comédia bufa que seduziu arrebatadoramente uma parte do público. Logo se formou um partido italianizante. Os "intelectuais" — cerrando fileiras em torno de Rousseau, de Grimm, de Diderot, dos enciclopedistas — declararam-se a favor daquela música mais ligeira, mais espontânea talvez, cujos temas, extraídos de contextos cotidianos e familiares, opunham-se ao grande aparato mitológico da ópera francesa. Rameau, ainda na véspera tido como "revolucionário", virou "reacionário". Na Ópera, formaram-se facções: o "coin du roi", que era ramista, francês; e o "coin de la reine" (o da rainha), italianizante. Publicaram-se dezenas de obras, pró e contra (dezenove num único mês em 1753!). Rousseau deu todo o peso de sua contribuição a essa polêmica com a Lettre sur la musique française [Carta sobre a música francesa], que se encerra com a seguinte frase vingativa: "Osfrancesesnão têm música e, se chegam a ter, tanto pior para eles!" A pequena guerra acabou por falta de combatentes, pois a companhia italiana foi embora de Paris. Mas as conseqüências foram graves. Ela abalou Rameau e modificou a evolução da músicafrancesa,desconsiderada e enfraquecida diante da ofensiva dos italianos e dos alemães no final do século. 1
Durante seus dez últimos anos de vida, Rameau continuou compondo obras importantes, como Les Paladins (1761) e, no ano de sua morte (1764), Les Boréades, que jamais viu encenadas (esperaram até 1982 para subir aos palcos). Imenso e magro ("tinha flautas em vez de pernas"), seco e duro, no moral como no físico, solitário e reservado, passavelmente avarento. "Sua mulher e sua filha podem morrer quando bem entenderem; contanto que os sinos da paróquia que dobrarem por elas continuem a soar no intervalo de décima segunda ou de décima sétima, não há de que se preocupar." Foi Diderot quem escreveu esta maldade, e Diderot odiava cordialmente Rameau. Mas o gracejo ferino encerrava uma verdade: para Rameau, só a música tinha importância, e nada mais. Em toda a sua vida nunca pensou em outra coisa. "Toda sua alma e seu espírito estavam no cravo; quando o fechava, não havia mais ninguém em casa." "Desgraçado do indiscreto que chegasse até perto dele" quando estava trabalhando. Mas o que salva Rameau desse risco de secura e aridez O "canto" ou o "lado" do rei, correspondente, na Opera, aos que se agrupavam sob o camarote de Luís XV. (N. T.)
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é o fogo, o ardor, o entusiasmo da inteligência, e, sem dúvida, uma maior sensibilidade do que ele deixava entrever. Era rude de trato, mas seus íntimos conheciam talvez um outro personagem. Sua mulher (que tinha 25 anos menos do que ele; Rameau foi tardio em tudo) e sua filha jamais se queixaram. O mesmo se pode dizer de sua avareza, que era legendária mas não o impediu de socorrer com dinheiro alguns jovens em princípio de carreira: Balbastre, Dauvergne... "A verdadeira música é a linguagem do coração" — Rameau não teria escrito tal frase se não acreditasse nela. Quando Rameau nasceu, em 1683, Lully achava-se no auge em Versalhes; quando morreu, em 1764, ainda pôde ouvir o pequeno Mozart tocar — em Versalhes, também — no salão de madame Adelaide, filha de Luís XV. Essa longevidade de Rameau é uma das primeiras características, não só da personagem, mas da obra. Pois Rameau não compôs quase nada antes dos cinqüenta anos. Graças a Deus, viveu 81! Rameau meditou sua música ao longo de trinta anos, antes de escrevê-la. Mas a história nos revela que o gosto e a sensibilidade de um homem evoluem geralmente pouco — é na juventude que se fixam para sempre. Assim, Rameau foi um homem de vanguarda cujas raízes mergulhavam muito longe no passado. Ele é do século XVIII, sem sombra de dúvida, por todas as suasfibras,mas poder-se-ia dizer que escreve no meio do século, depois de ter molhado sua pena no princípio do século — e molhado numa tinta com a cor do século precedente. Nisso reside provavelmente a grandeza de Rameau, uma das fontes da amplitude de seu gênio; mas foi esse, também, o seu drama. Criticaram Rameau por ser de vanguarda e por estar ultrapassado: em defesa da ópera de Lully, falou-se em escândalo e em anarquia, e, contra os gluckistas e os italianos, saudaram-no como o continuador de Lully e herdeiro da grande tradição francesa da ópera. Desdenharam seus italianismos; quando veio a Querelle des Bouffons [Querela dos Bufões], Rameau passou a simbolizar a resistência à Itália. Não façamos troça de seus contemporâneos, não nos precipitemos em chamá-los de "vira-casacas": acontece que Rameau não somente era de fato tudo isso, mas era tudo isso ao mesmo tempo. Impossível analisar e separar, em sua obra, o que é antigo e o que é novo, o que é um achado genial e o que pertence ao gosto francês tradicional. Mas é verdade que Rameau veio tarde demais para produzir as obras-primas da ópera francesa no momento em que seus contemporâneos começavam a perder o interesse por ela.
A obra para cravo; as peças para "cravo em concertos" Publicada em quatro séries (1706-1724-1731-1741), essa obra avança paralelamente à de Couperin (1713-1717-1722-1730). Mas sua maior modernidade transparece, para o ouvinte, logo ao primeiro contato. Embora Rameau ainda conserve por algum tempo a velha forma do prelúdio francês sem compasso, em estilo característico do alaúde (o style luthé), já de saída ele revoluciona a forma antiga da suíte,
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que Couperin respeitou parcialmente em suas Ordres, a allemande, a courante lá estão apenas na qualidade de peças de música pura. A dança apresenta-se sob a forma de minuetos, gigas, gavotas. Essas peças são sobretudo pictóricas, ligeiras ou suntuosas — Le Rappel des oiseaux [Chamando os pássaros], Les Tourbillons [Os turbilhões], La Triomphante [A triunfante], La Boiteuse [A que coxeia] — e, às vezes, mas raramente, envolvem uma atmosfera de devaneio ou de melancolia, como Les Surpris [Os surpreendidos] e L'Entretien des muses [A conversação das Musas] . Rameau não tem o sentido da harmonia de riquezas secretas de Couperin. Sua escrita é plena; sua rítmica, mais cerrada. O cravo parece às vezes quase limitado para os seus dedos: é como sinfonista que Rameau compõe para o instrumento, e, de fato, muitas de suas peças, brilhantemente orquestradas, reaparecerão em suas óperas, grandemente amplificadas por todos os recursos da orquestra: La Sauvage [A selvagem], Le Tambourin [O tamborim], Les Tendres plaintes [As doces queixas]. Rameau se sentiu tolhido no esquema da peça para cravo, e por isso experimentou ampliar-lhe as alternativas sonoras, juntando ao seu teclado dois instrumentos melódicos: o violino (ou a flauta) e o violoncelo, nas Pièces de clavecin en concerts [Peças para cravo em concertos] publicadas em 1741. O esquema recebeu mais estofo, foi amplificado, mas não mudou. O cravo continuou a ser o instrumento dominante, "acompanhado" por dois comparsas: não se trata de sonatas em trio, como foram escritas tantas desde Corelli. O espírito dessas peças permaneceu muito próximo daquelas que Rameau já publicara. A forma, no entanto, evoluiu. Cada "concerto" era em três movimentos (vivo-lento-vivo) como um concerto italiano.
A obra dramática Em suas composições dramáticas está o essencial da obra de Rameau, pois só nelas transparece plenamente sua estatura como orquestrador, melodista e sinfonista. Por sua estrutura de conjunto, por sua concepção, a ópera de Rameau não é fundamentalmente inovadora. Ela está na linhagem direta da ópera criada por Lully, de quem Rameau segue todos os princípios, aprimorando-os e tornando-os mais maleáveis. É por dentro da ópera que Rameau a transfigura, sem que nada — ou muito pouco — mude no esquema geral. As obras dramáticas de Rameau cobrem todos os gêneros praticados na ópera da época. A tragédie lyrique [tragédia lírica], em primeiro lugar: obra em cinco atos, de enredo corrido e sem se desviar do tom sério, contido, como Hippolyte et Aricie, Castor et Pollux, Dardanus, Zoroastre [Zoroastro], Les Boréades. A Pastorale héroïque [Pastoral heróica]: obra em três atos, de tom mais ligeiro (Zaïs, Acante e Céphise). A opéra-ballet [ópera-balé]: obra com muitos enredos, mas brevemente tratados — um por ato —, que se agrupam em torno de um tema comum, e que destina um espaço muito grande à dança; a mais conhecida dessas opéras-ballet,
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merecidamente, é Les Indes galantes, cujos quatro enredos só têm em comum seu exotismo. Dignas de menção, nessa categoria, são Les Fêtes d'Hébé e Les Surprises de l'amour [As surpresas do amor]. Havia também o que ficou conhecido como actes de ballet, peças de ato único cujo tom é em geral ligeiro: Pygmalion, La Naissance d'Osiris, [O nascimento de Osiris], Anacréon [Anacreonte]. E, por fim, a comédia: Platée. A ópera de Rameau, como a de Lully, pretende dirigir-se aos olhos tanto quanto aos ouvidos. O espetáculo — cenário,figurinose balé — é tão importante como a música. A mise-en-scène havia feito progressos desde Lully e, nesse sentido, a ópera de Rameau é o apogeu de um gênero. Ele apela para o "maravilhoso": as ficções da mitologia, que nos parecem hoje bem artificiais, não chocavam o julgamento dos contemporâneos, todos imbuídos de cultura humanista e para quem as peripécias no Olimpo ainda tinham uma espécie de realidade. É exatamente com relação a esse ponto, entretanto, que todos os enciclopedistas cerrarão fileiras contra Rameau em 1752 por ocasião da Querelle des Bouffons— cobertos de razão em nome do "natural", mas injustos ao escolhê-lo como alvo, desconsiderando sua mestria harmônica. A desgraça de Rameau foi jamais ter tido a sorte de encontrar um libretista realmente talentoso. Se Samson houvesse chegado à cena e dela resultasse uma descendência, Voltaire poderia ter sido, talvez, esse libretista renovador do gênero. Mas nenhum dos outros poetas que trabalharam para Rameau soube mostrar nem originalidade, nem mesmo autênticas qualidades. Foi na escolha de seus libretistas, quem sabe, que a falta de cultura de Rameau mais cruelmente o desserviu. Ele acreditava, de boa fé, que a qualidade de sua música poderia compensar tudo. Talvez esteja pagando até hoje por esse erro, que condena suas melhores obras musicais a não serem mais encenadas. A música dessas óperas é da melhor qualidade. De uma força, de uma riqueza, de uma variedade que fazem de Rameau o maior sinfonista antes de Haydn e Mozart. Com uma orquestra relativamente reduzida (cordas, flauta, oboé e fagote, estes últimos empregados de maneira muito original), Rameau consegue efeitos prodigiosos. O gosto pela orquestração é, de resto, partilhado com os compositores seus contemporâneos, nas grandes sinfonias dramáticas e descritivas evocadoras de tempestades, terremotos, trovoadas, quando não do canto dos pássaros, do rumor das ondas ou do murmúrio das águas calmas. Mas, para além dessas páginas descritivas, Rameau é também sugestivo quando se trata de acompanhar com a orquestra os momentos dramáticos ou poéticos do canto. As árias terríveis de Abramane em Zoroastre, o êxtase de Pigmalião diante de sua estátua, o sofrimento de Fedra em Hippolyte etAricie e a lamentação patética de Dárdano em sua prisão são comentados e apoiados pelos instrumentos com uma plenitude que só Mozart iria reencontrar. O canto não é menos magistralmente tratado. Insere-se na tradição francesa, no sentido de que o recitativo é sempre considerado a parte essencial da ópera. Ao
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contrário do recitativo italiano, é cantante, mais cantante mesmo do que na época de Lully. A passagem do recitativo à ária torna-se ainda mais imperceptível, faz-se de forma gradativa. Em contrapartida, a ária fica próxima da declamação. Rameau soube, porém, tomar aos italianos um senso do vocalise que a ópera francesa não conhecia até então e que ele acrescentou à ornamentação francesa do canto, aquela ornamentação que, em meados do século XVIII, floresceu mais do que nunca. As músicas de balé não são o menor encanto das óperas de Rameau e constituem, sem dúvida, a parte de sua obra que chegou até nós de forma mais íntegra. De uma variedade extraordinária, as gavotas, minuetos, gigas e sarabandas, além de possuírem um valor coreográfico intrínseco, são parte integrante do drama — sinfonias dramáticas tanto quanto danças propriamente ditas.
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"Há em todas as nações duas coisas que é preciso respeitar: a Religião e o Governo; poderíamos acrescentar que, na França, existe uma terceira — a música do país." Estas palavras de d'Alembert parecem obsoletas ao leitor moderno. Para o leitor de 1754, que por tal pórtico era introduzido ao texto de De la liberté dans la musique [Da liberdade na música], semelhante afirmação devia ter efeito muito diferente: o de uma provocação. Quando uma companhia itinerante italiana instalou-se na Ópera de Paris (na época, sediada no Palais-Royal), em I de agosto de 1752, para dar espetáculos de intermezzi e de óperas bufas, com sucesso crescente durante mais de um ano, desencadeou-se uma guerrinha de epigramas que degenerou rapidamente. A tal ponto que a França desses anos não tardou a dividir-se em duas: a sociedade viuse envolvida num verdadeiro "caso Dreyfus" da música, em que se confrontavam, de um lado, os adeptos dos italianos, adversários declarados da ópera francesa (os "bufonistas") e, do outro, os representantes da música francesa. A personalidade dos que participaram dessa polêmica (Diderot e os enciclopedistas, Rousseau) deu-lhe a amplitude e o caráter de um conflito ideológico: a Querelle des Bouffons [Querela dos Bufões] interessa em igual medida à história da música e à história das idéias. É por essa dupla qualidade que ela é capital. o
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Escândalo que agitou a vida políticafrancesaentre 1894 e 1914, com acusações de espionagem — que depois se revelaram falsas—contra um capitão do Exército, condenado pela Justiça Militar mas defendido por intelectuais e políticos de renome. (N. T.)
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À primeira vista, o triunfo dos italianos em Paris, em 1752, pode parecer inexplicável: sua passagem pela cidade em 1729 transcorrera despercebida, e aquela mesma La serva padrona [A criada patroa] de Pergolesi, que fez tanto sucesso em 1752, havia sido um fracasso quando encenada em Paris em 1746. Mas nesse intervalo — e foram apenas poucos anos — a paisagem cultural modificara-se consideravelmente. A ópera francesa não se havia renovado desde a morte de Lully em 1687. Rameau, continuador genial da tradição lullista, já era fortemente contestado; por sua vez, o público sofria as investidas de autores de envergadura secundária (Des¬ touches, Desmarest, Mouret) que buscavam seus favores cortejando-lhe o gosto. Os balés estavam na moda? Na mesma hora, festejos e balés de todos os gêneros invadiam a cena lírica (balés heróicos, comédies-ballets, pastorais heróicas...), em detrimento da qualidade da ação, a que não restava outro recurso senão fixar-se ainda mais no convencionalismo. O público, esse começava a cansar-se. Em 1751, a municipalidade de Paris suspendeu a proibição que, já havia seis anos, pesava sobre os teatros de feira, e o "grande público" — aquele que já não ia à Ópera senão para a hora do balé — acorreu ao teatro da Feira para escutar as comédias de vaudeville, ou então Madame Favart parodiando a grande ópera. Lá os espetáculos eram divertidos, e os enredos, conduzidos num ritmo ágil, eram tirados da vida de todo dia: as obras "bufas" trazidas pelos italianos chegavam, portanto, no momento oportuno. Cansados da opera seria francesa, que já não emocionava, o público atirou-se à buffa com voracidade. O enredo-padrão de um espetáculo bufo apresentado pelos italianos {opera buffa ou intermezzo) consistia de uma série de peripécias cômicas sem qualquer episódio estranho à ação, e para o que bastavam uns poucos personagens. Na verdade, não menos convencional que o da opera seria, o enredo tirava toda a sua força de sua própria rapidez, da expressão realista de sentimentos cotidianos, de sua linguagem musical e arejada. Ademais, esse mesmo ano de 1751, que consagrava a reabertura da Feira em Paris, assinalou o lançamento do primeiro volume da colossal realização de Diderot e de seus amigos, a Encylopédie [Enciclopédia]. D'Alembert nela passava a limpo as teorias musicais de Rameau; Diderot, o barão de Grimm e d'Holbach atuavam como críticos de arte; Rousseau, que tinha ao seu cargo os textos de economia política, além disso era "copista de música" e compositor. "Todo um exército de penas estava, portanto, pronto a entrar em ação", observa Denise Launay em seu prefácio à recente reedição dos textos da Querelle des Bouffons. Seis meses antes de os bufos italianos chegarem a París, o barão de Grimm, num texto que foi por muito tempo considerado como o primeiro ato da Querelle, escreveu: "A música italiana promete e dá prazer a todo aquele que tenha ouvidos" {Lettre sur Omphale, fevereiro de 1752). Não estava dizendo nada de novo. Hoje parece que essa epístola não passa de um documento a mais a incluir-se no dossiê "música italiana contra música francesa" — dossiê que fora aberto em 1702 pelo
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padre Raguenet quando, com muito tato, definiu sua posição na questão. Como a questão continuasse em aberto, a querela só estava esperando o momento de ressurgir. A partir de agosto de 1752, as representações dos italianos na Ópera — que se alternavam com obras do repertório próprio da Académie Royale de Musique, como Acis et Galatée [Acis e Galatéia], de Lully, ou Alphée et Aréthuse [Alfeu e Aretusa], de Campra — foram cada vez mais tumultuadas. Discussões, trocas de insultos, chegou-se mesmo às vias de fato. Os partidários da música francesa agruparam-se no coin du roi (o "canto do rei", ou seja, sob seu camarote), e os da música italiana no "canto da rainha". A "guerra dos cantos" não tardou a apoderarse de todos os ânimos, como registra o testemunho de Rousseau: Toda Paris dividiu-se em dois partidos mais exaltados do que aconteceria caso se tratasse de uma questão de Estado ou de religião. U m , o mais poderoso, mais numeroso, composto dos grandes, dos ricos e das mulheres, apoiava a m ú s i c a francesa; o outro, mais vivo, mais altivo, mais entusiasta, compunha-se dos verdadeiros entendidos, das pessoas de talento, dos homens de gênio.
Modesto Rousseau! Três meses após as primeiras representações de La serva padrona, d'Holbach lançou — sem assiná-la — sua Lettre à une dame d'un certain âge sur l'état de l'opéra [Carta a uma senhora de certa idade sobre o estado da ópera], opúsculo humorístico em que o autor fingia indignar-se contra os espetáculos dos italianos, com o efeito de valorizá-los ainda mais: "Estão rindo na ópera! Estão rindo às gargalhadas! Ah, madame, só de pensar, sinto quase vontade de chorar." Pouco depois veio Le Petit prophète de Boehmischbroda [O pequeno profeta de Boehmischbroda], do barão de Grimm: nesse texto, previa-se um verdadeiro apocalipse se a ópera francesa não se renovasse segundo os princípios da escola italiana. Foi como soprar num braseiro: em resposta a Grimm — e em nove meses — apareceram nada menos que trinta escritos sobre a questão... Um verdadeiro furacão epistolar: ao todo, 2.400 páginas na última reedição dos textos. Em meio a essa tempestade, apenas um homem tinha a visão correta das coisas: Diderot. "Comparem partes semelhantes com partes semelhantes", suplicava. "Se acham que é necessário fazer comparações, comparem a opera seria francesa com a opera seria italiana", dizia aos bufonistas, enquanto acusava os defensores da ópera francesa de querer provar que "as farsas de Molière são ruins porque as tragédias de Corneille e Racine são boas". Trabalho perdido: as opere serie de Pergolesi ou de Alessandro Scarlatti eram então inteiramente desconhecidas na França. Numa de suas contribuições à querela — Au petit Prophète de Boehmischbroda [Ko pequeno profeta de Boemischbroda] —, publicada em 22 de fevereiro de 1753, Diderot mostrava-se desolado: "Até quando será preciso que dure o ridículo de uma querela conduzida de modo tão desastroso, em que há tudo a perder para os debatedores e em que só saem ganhando os brincalhões de mau gosto?"
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Ao iniciar-se o outono de 1753, entretanto, a intensidade daquela "onda de loucura" começou a dimmuir. Além do mais, os italianos só voltaram a apresentar-se em fevereiro de 1754. Tudo parecia acalmar-se. Foi então que Rousseau entrou na arena. Escrita em 1752, mas publicada em novembro de 1753, sua famosa Lettre sur la musique française [Carta sobre a música francesa] serviu de estopim para reacender a pólvora. Na verdade, Rousseau nesse texto não dava maior importância à Querelle des Bouffons propriamente dita. Atacando de frente a música francesa, recolocava o debate em seu território preferido (música francesa contra música italiana). "Extraordinária mistura de incompetência, incompreensão e tendenciosidade", para uns, para outros uma peça eloqüente, verdadeiro apelo à reunião de forças, a Lettre sur la musique française é, sem dúvida, a peça mais importante da querela. Conhecem-se as teses do filósofo. Sendo a natureza essencialmente boa, é preciso retornar a ela, ou seja, retornar ao máximo possível de simplicidade. Rousseau recrimina, na ópera francesa, o fato de ser "um gênero falso em que a natureza não se faz lembrar por nada". Desse ponto de vista, condena em bloco: as convenções de nossa ópera (a bobajada pomposa dos libretos, assim como o abuso que faziam de uma mitologia mais que batida), a ausência de ação dramática, o exagero das montagens aparatosas, e, por fim, a"pausterização" da inspiração musical (os brilharecos vocais, as gesticulações, as árias à base de trinados — tudo sem nenhuma relação com os sentimentos que o texto expressava). A esses comentários contestáveis (todos os compositores, não obstante seu valor pessoal, são postos sob o mesmo rótulo) acrescentam-se aqueles, mais finos, sobre a prosódia cantada e a comparação entre a "musicalidade" de uma e de outra língua. Sob esse ângulo de comparação, conclui Rousseau que todo compositor italiano superará sempre os melhores Rameau. Vale notar, todavia, que essa conclusão não impediu nosso "copista de música" de fazer representar seu Le Devin du village [O acfivinho da aldeia] em plena "guerra dos cantos" e em francês... Nesse debate em torno da óperafrancesa,Rousseau e os enciclopedistas foram, sem dúvida, os mais encarniçados inimigos de Rameau, forçando o compositor a sair da reserva em que se mantivera até então. Como mais tarde Brahms, bem a contragosto, congregaria as forças da reação antiwagneriana, Rameau, tomado como símbolo do "canto do rei", congregou a totalidade das forças da aristocracia conservadora. "Ele só foi visado, na Querela, na medida em que sua ópera ainda refletia a imagem do século de Luís XTV", escreveu Philippe Beaussant. Feito, contra a sua vontade, um estandarte do gosto "clássico", Rameau nem por isso foi menos censurado, ao mesmo tempo, por suas ousadias harmônicas "barrocas e bárbaras". Na verdade, a personalidade complexa, a envergadura excepcional e a estatura — incomparável, na França de seu tempo — do músico fizeram de sua ópera o alvo dos ataques mais contraditórios.
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O antagonismo entre Rousseau e Rameau, que se desencadeou em plena Querelle des Bouffons (três anos antes, em 1750, Rousseau ainda elogiava o autor de Dardanus), foi radical. Para Rameau, a música é sumamente racional, igual sob todas as latitudes e em todas as épocas: a compreensão da música é antes de tudo um fenômeno universal. Para Rousseau, muito pelo contrário, a música expressa as infinitas variedades do coração humano e não saberia de modo algum ser universal em sua forma. O caráter da melodia não tem como não variar de um povo para outro, de um momento para outro da História: a compreensão da música é, portanto, um fato histórico e cultural. O autor do Traité d'harmonie réduite à ses principes naturels [Tratado da harmonia reduzida aos seus princípios naturais] buscava os fundamentos eternos da arte musical e isolou-os no princípio unificador da harmonia. Nos antípodas desse "pitagorismo musical", Rousseau considerava nada existir de tão antinómico com a expressão dos sentimentos como a matemática de Rameau. Finalmente, para o autor de La Nouvelle Heloise [A nova Heloísa], o gênio não pode observar qualquer regra, pois, tal como a natureza de que procede, ele é smônimo de liberdade. Mais de uma vez, por conseguinte, Rameau era acusado de ter pouco engenho e muita doutrina. Por sua vez, o autor de Dardanus e de Castor et Pollux, tendo abordado a arte lírica após trinta anos de aprofundados estudos, acabou por acusar Rousseau e os enciclopedistas de incompetência (e forçoso é reconhecer que os conhecimentos musicais destes não igualavam — nem de longe — os de Rameau; e não será este o único caso em que se reivindicará a incompetência musical como garantia da honestidade do julgamento...). O combate ideológico se deslocara, fixando um foco que é precisamente o fundo do debate: nos séculos XVII e XVIII, em terra latina, um dos problemas capitais da estética musical é a relação entre som e verbo, entre poesia e música. "A arte como imitação da natureza" é um dos vetores primordiais desse debate, a ponto de que uma história da estética musical poderia coincidir, em suas linhas gerais, com a história desse conceito: todas as querelas entre a França e a Itália, tão freqüentes nesses dois séculos, estão presas a ele. Quando, em 1704, Lecerf de la Viéville respondeu a Raguenet com sua Comparaison de la musique italienne et de la musique française [Comparação entre a música italiana e a música francesa], criticou nos italianos seus excessos e extremos, enaltecendo o comedimento e a naturalidade da músicafrancesa;em 1753, era nosfrancesesque o filósofo genebrês condenava os excessos e a falta de naturalidade, ao passo que só encontrava elogios para a simplicidade italiana. Em meio século, o conceito modificou-se radicalmente: a natureza já não era sinônimo apenas de razão e de equilíbrio, mas também de sentimento. O movimento romântico não estava longe. O duelo entre Rousseau e Rameau havia eclipsado os bufos italianos, que simplesmente já estavam "fora de moda". Entre novembro de 1753 (publicação da Lettre de Rousseau) e fevereiro de 1754, apresentaram uma única peça, deixando
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a França em março desse mesmo ano. Em 21 de fevereiro de 1754, a Ópera de Paris reencenava, com sucesso, Platée de Rameau. Embora bastante fútil — porque viciada na base —, a Querelle des Bouffons, com a perspectiva que nos faculta o distanciamento no tempo, parece ter sido um inegável estímulo ao pensamento. Esse, que pode ser considerado o mais glorioso episódio do debate entre música francesa e música italiana, foi uma versão, ao gosto do momento, do combate entre lullistas e ramistas, do qual uma das últimas expressões ainda haveria de ser o combate entre gluckistas e piccinistas pouco antes da Revolução Francesa. Quem saiu ganhando com toda essa questão foi a opéra comique francesa: com Philidor, Dalayrac e Grétry, um gênero novo se impôs. Seguindo os conselhos de Grimm, a opéra comique "renovou-se na fonte italiana". A música, que até então só exercera um papel secundário na opéra comique, ganhava estofo, tornando-se mesmo o elemento mais importante e prendendo-se à caracterização das personagens. A ópera francesa, em contrapartida, haveria de sair duplamente abatida desses ataques, e o próprio Rameau não escapou de ser posto numa verdadeira "lista negra". "Poder-se-ia procurar corrigir os defeitos da Académie Royale de Musique, sem estar na obrigação de aniquilar a ópera" escreve Eugene Borrei. O silêncio de Rameau deixou um vazio que somente a chegada de Gluck a Paris foi capaz de preencher. Mas a gigantesca reforma da ópera francesa, empreendida por Gluck, teria sido possível sem o questionamento suscitado pelos bufões italianos?
QUINTA PARTE
O SÉCULO X V I I I : SEGUNDA METADE
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O NASCIMENTO DE UMA NOVA LINGUAGEM MUSICAL
Haydn não passava de um jovem desconhecido em 1750. Somente uns quinze anos mais tarde, por volta de 1765, é que ele e Mozart começariam a tornar-se famosos, embora a maturidade estilística, tanto de um como de outro, só tenha sido alcançada em torno de 1780. Por sinal, as origens do estilo de ambos já se haviam manifestado bem antes da morte de Bach, e até bem menos na obra deste último do que na de outros músicos dele contemporâneos, como Telemann, Rameau e principalmente Domenico Scarlatti, ou de seus sucessores imediatos, como seus próprios filhos, para não falar de Pergolesi e dos italianos de modo geral. Bach, entre outros, já havia levado a seu termo e a seu ponto máximo a herança polifónica dos franco-flamengos. No essencial, as preocupações dos homens de seu tempo já tinham tomado outra direção: a simplificação da escrita e o primado da melodia sobre a harmonia e a polifonia. Em vida, Bach fora glorificado, mas também violentamente criticado. Em 1728, o escritor Gottsched mostrou-se bastante perspicaz ao colocá-lo, ao lado de Haendel e de Telemann, na frente daqueles que faziam a honra da música alemã. Muitos, porém, viam Bach como um compositor pesado, retrógrado e ultrapassado. Estavam errados. Mas, de acordo com a óptica do tempo, entende-se sua reação. Com altos e baixos, a reputação de Bach subsistiu durante toda a segunda metade do século XVIII, graças particularmente aos músicos profissionais e aos professores de cravo, mas sua influência concreta sobre as forças vivas desse período foi, de princípio, quase nula, e depois, a despeito de tudo o que se tem dito, muito limitada. Bach teve um papel na formação do estilo da maturidade de Mozart, mas, no que diz respeito à técnica e ao modo de
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Quinta parte: o século XVIII - segunda metade
pensar, o estilo deste nada tem a ver com o do Kantor de Leipzig. Quanto a Beethoven (1770-1827) — que, em seu tempo, conheceu a obra de Bach tanto quanto era possível —, aproveitou bem parcimoniosamente esse conhecimento em suas próprias obras. Só na música romântica da geração de 1830, com Schumann, Chopin e Mendelssohn, é que se hão de encontrar contínuas referências a Bach, sem que disso resulte necessariamente arcaísmo ou marginalidade. Ora, aquela geração, em muitos aspectos, havia rompido com o estilo dos três grandes "clássicos vienenses": Haydn, Mozart e Beethoven. Tais fatos relativos ao período 1750-1830 representam um fator de unidade, mas contribuem para compreender esse período antes negativamente, isto é, pelo que ele não foi: não lhe suprimem nem a diversidade, nem as contradições. Em seus primeiros momentos, o período 1750-1830 revela, em relação a Bach, um indiscutível aspecto de superficialismo: a nova concepção da melodia prometia o futuro, mas se fez inicialmente acompanhar de perdas — sobretudo no que tange à densidade da escrita — das quais os contemporâneos mais lúcidos mostraramse tanto mais conscientes quanto tais perdas não vinham sendo imediatamente compensadas. Nesse período, na falta de uma linguagem coerente que se impusesse a todos ou a quase todos, prevaleceu igualmente uma tendência dispersiva. Daquilo que iria constituir uma linguagem nova e coerente, os compositores dos anos 1760 dominavam apenas alguns elementos, ou quando muito um, o que, entre outras coisas, acarretou a coexistência de uma multidão de personalidades, em geral muito interessantes, quase sempre de arraigado individualismo, mas "assombradas pelo maneirismo" (Charles Rosen): os filhos de Bach, os músicos da escola de Mannheim, Gluck, o jovem Haydn e o jovem Mozart. A grandeza de Haydn e Mozart está justamente no fato de terem conseguido uma síntese e dado coerência à nova linguagem musical, cada um à sua maneira mas praticamente no mesmo momento: em torno de 1780, dez anos antes da Revolução Francesa. A orientação que Haydn e Mozart então tomaram só parece inevitável quando considerada à distância: cerca de dez anos antes, em pleno pré-romantismo, teria sido possível imaginar outra. Ora, esta orientação foi dos fatos que mais pesaram na história da música ocidental. Até a metade do século XX, pelo menos, as obras tardias de Haydn e Mozart e quase todas as de Beethoven iriam servir de referência mais ou menos consciente para os compositores e o público que, de uma maneira ou de outra, tinham que definir-se, ainda que negativamente, em relação a elas. É sobretudo nesse sentido que Haydn, Mozart e Beethoven merecem a denominação de "clássicos". Historicamente, estes três compositores foram os primeiros que jamais tiveram necessidade de ser redescobertos. Isto não significa que todos seus predecessores tivessem caído em total esquecimento antes de serem ressuscitados no século XX, nem que, no século XIX, Haydn e Mozart, mesmo hão tendo conhecido um eclipse como o de Bach, fossem apreciados, compreendidos e tocados como atualmente o
O nascimento de uma nova linguagem musical
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são. Significa apenas que, desde sua época até os dias de hoje, Haydn e Mozart tiveram lugar assegurado no repertório dos concertos e sobretudo na consciência do público, dos profissionais e dos amadores. Ambos, com efeito, escreveram suas grandes obras para modalidades de concertos que, já a seu tempo, como ainda hoje, constituíam a base da vida musical. Juntamente com os novos tipos de concertos, criaram a orquestra sinfônica, deram foros de nobreza a novos gêneros — o quarteto de cordas e a sinfonia para orquestra —, sem esquecer a sonata para piano e a transformação radical (sobretudo com Mozart) do concerto e da ópera. Além disso, operaram a distinção fundamental, apesar dos laços subterrâneos que estas duas categorias guardaram, entre música sinfônica (ou de orquestra) e música de câmara, elevaram a música instrumental ao mesmo plano da música vocal e asseguraram, enfim, à música germânica uma predominância que perdurou mais de um século. A Revolução Francesa inaugurou uma era que ainda não se encerrou, constitaindo uma forma de subversão da qual a Europa viveu intensamente, entre 1780 a 1815, os preparativos, o desenvolvimento e as conseqüências imediatas. Ora, esses 35 anos vão da maturidade de Haydn e Mozart até o fim daquilo que — certa ou erradamente — se tem chamado de segunda maneira de Beethoven e até as primeiras obras de Schubert (1797-1828). Tornou-se lugar comum afirmar que a história da música (ou de qualquer outra arte) é inseparável da história do pensamento ou das civilizações. Resta, entretanto, o problema de saber de que natureza são essas relações: onde, quando e em que níveis se as pode melhor e mais completamente desvelar. Não basta dizer que a evolução da música depende ao mesmo tempo de forças sociais externas que sobre ela influem e de forças artísticas internas que lhe são próprias, e que as primeiras atuam sobre as segundas. O que se deve observar antes de mais nada é que o aparecimento da sinfonia correspondeu à criação da sala de concertos e que o desenvolvimento do piano foi uma das conseqüências do aumento do número de intérpretes amadores. Mas é preciso também ver em que medida e como, por sua própria técnica, as grandes obras chegam a refletir uma sociedade global no que ela tem de mais fundamental, tanto em suas aspirações como em suas contradições.
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A FORMAÇÃO DE U M NOVO PÚBLICO E SUAS CONSEQÜÊNCIAS MUSICAIS
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Na segunda metade do século XVIII, o fator sociopolítico de maior importância é decerto a ascensão e o triunfo da burguesia, o que, para a música, traduziu-se, entre outras coisas, na constituição de um público novo, mais vasto e de certo modo anônimo, ao qual, sob o signo de uma comercialização crescente, teve de adaptar-se e do qual viu-se obrigada, não a receber ordens como as que lhe v i nham dos príncipes, mas a adivinhar os desejos, expressos ou não. A luta da burguesia contra a aristocracia e o absolutismo manifestou-se também no plano cultural, e um dos sinais disso foi a expansão da música até lugares por ela antes pouco freqüentados. Não que tivesse deixado de ser tocada nas cortes reais ou principescas, nas igrejas e a céu aberto. É que assistiu-se então a um grande desenvolvimento dos concertos privados e das execuções amadorísticas, bem como ao nascimento da sala de concertos, ou seja, de um lugar onde, à condição de que se quisesse e pudesse pagar, podia-se ouvir — como no passado sucedera com a ópera — música que não se havia expressamente encomendado. As salas de concertos, os editores, os problemas comerciais Já em 1701, o jovem Telemann, com relação a esse assunto, teve um papel pioneiro, quando inaugurou em Leipzig os concertos públicos do Collegium Musicum, para os quais Bach, mais tarde, compôs várias peças. Em Viena, a primeira instituição de concertos públicos foi a Tonkünstler-Societát, fundada em 1771 pelo compositor Florian Gassmann. Em Londres, não podemos deixar de citar os famosos Concertos Bach-Abel, cujo nome se deve aos compositores Johann
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Christian Bach, o filho mais moço de Johann Sebastian Bach, e Cari Friedrich Abel. A esses concertos, realizados de janeiro de 1765 a maio de 1781, seguiramse muitos outros. Dito isto, cumpre mencionar que, das numerosas instituições de concertos públicos surgidas na Europa, a mais célebre e brilhante foi o Concert Spirituel — fundado em Paris em 1725 por Anne Danican Philidor (1681-1728) —, cujas atividades deveriam prosseguir, no Palácio Les Tuileries, até 1790. Destinados inicialmente à execução de música religiosa, logo os espetáculos do Concert Spirituel passaram a mesclar a arte profana à sacra, contribuindo enormemente para a difusão na França, a partir dos anos 1750, da nova música instrumental européia (Sammartini, Stamitz, Gossec). Para este gênero de repertório, o Concert Spirituel não tinha, então, equivalente na Europa. Os mais famosos artistas lá se apresentaram, como, em 1754-1755, Johann Stamitz (1717-1757), o fundador da escola de Mannheim, e, em 1768, Luigi Boccherini (1743-1805). Ao compositor François-Joseph Gossec (1734-1829) — que, depois de ter sido membro da orquestra particular do fermier général Le Riche de la Pouplinière, assumiu, em 1773, a co-direção do Concert Spirituel — coube, entre outros méritos, o de ter sido o primeiro a impor à admiração do público parisiense as sinfonias de Haydn: nos anos 1780, praticamente tocava-se uma ou duas, até mesmo três delas, em cada concerto. Em 1777, a direção do Concert Spirituel ficou a cargo do cantor Joseph Legros, que no ano seguinte iria encomendar a Mozart, por ocasião da última estada deste na capital francesa, a Sinfonia n° 31, dita Paris. Ao lado do Concert Spirituel,floresceramem Paris, nos últimos anos do Antigo Regime, diversas organizações particulares de concertos que, como o próprio Concert Spirituel, haveriam de desaparecer durante a Revolução. Uma delas, o Concert de la Loge Olympique, em 1784, encomendou a Haydn seis novas sinfonias, conhecidas hoje com o nome de Sinfonias Parisienses— as de número 82 a 87. Para que lhe fosse feita esta encomenda — um compromisso que assumiu nos anos de 1785 e 1786 •—, Haydn não teve necessidade de deixar os castelos de Eisenstadt e de Eszterhaza, as principais residências (situadas na Hungria, não muito distante de Viena) da família principesca dos Esterhazy, a serviço da qual se encontrava desde 1761. Foi na qualidade de mais célebre dos compositores vivos que recebeu a encomenda, embora, aos 62 anos, jamais houvesse saído de Viena ou das cercanias daquela cidade. Haydn acabou tendo consciência de sua imensa reputação. Mas o fato é que essa reputação foi se firmando praticamente sem que ele se desse conta disso, graças à difusão de sua música, apesar da cláusula do contrato que o ligava ao seu patrão, segundo a qual estava proibido de enviar obras ao exterior. Esta cláusula, por sinal revogada em 1779, nunca foi aplicada, o que decerto não se pode explicar unicamente pelo caráter do príncipe Esterhazy—um 1
déspota mais conciliador e simpático do que o príncipe-arcebispo de Salzburgo, Colloredo, patrão do jovem Mozart entre 1772 e 1781 —, nem pelo fato de que, havendo o príncipe Esterhazy percebido que seu mestre de capela era um gênio, tivesse avaliado que glória de Haydn poderia repercutir sobre a pessoa de seu protetor. Foi a demanda exterior que se revelou irresistível, por força sobretudo da importância adquirida pelas editoras, especialmente as sediadas em Paris, cidade que, no tocante à difusão musical, acabara por tornar-se a capital da Europa, como já era Viena no terreno da criação musical. A edição de partituras não data do final do século XVIII, mas do início do século XVI. Por ocasião da morte de Bach, entretanto, tanto por motivo da existência que levara, como por sua reputação de retrógrado, apenas quatro de suas obras estavam editadas. Já quando Haydn morreu, a maioria de suas sinfonias — e ele compôs mais de cem — estava publicada há muito tempo, sem falar no restante de sua música. E mais, muitas das obras de Haydn foram, com ele ainda vivo, objeto de inúmeras edições concorrentes, bem como daquilo que hoje chamaríamos de edições "piratas". As editoras não estavam presas a qualquer sistema de direitos do autor, e a pressão sobre elas era exercida pelo público e pelos intérpretes, amadores ou não. No fim do século XVIII, as obras musicais transformaram-se de modo decisivo em mercadorias, impondo-se com relação a elas a noção de valor comercial. Este aspecto da transformação econômica e social da sociedade ocidental em nada climinui o valor artístico das obras-primas de Haydn ou de Beethoven, mas não deixou de influenciar sua concepção do estatuto do criador, bem como a configuração técnica — e, por conseguinte, a "mensagem" — das obras elas mesmas. O progresso editorial permitiu, principalmente a partir de Beethoven, compensar a eventual má vontade ou as cabalas de um público local qualquer pela compreensão e o apoio de um novo público, espalhado pelo mundo e preocupado com novidades não mais produzidas em cadeia, mas bastante individualizadas. De um ponto de vista mais técnico, Adorno observou que o aparecimento de um público mais numeroso e ávido de distrações foi uma das causas do caráter superficial de muita música composta imediatamente depois de Bach: "Os compositores tiveram de transformar-se em agentes do mercado, cujos desejos penetraram em suas obras de modo a atingir-lhes o próprio cerne." Mas, acrescenta Adorno: N ã o é menos verdade que, em virtude justamente desta interpenetração, a necessidade de distração transformou-se em necessidade de variedades no interior do objeto composto, da própria c o m p o s i ç ã o , isto por o p o s i ç ã o ao desenvolvimento unitário e relativamente c o n t í n u o do barroco. O r a , esta p r e o c u p a ç ã o com a alternância no interior de u m a mesma peça tornou-se o fundamento da relação dinâmica entre unidade e diversidade, que nada mais é que a lei do classicismo vienense. Esta relação dinâmica foi, para a c o m p o s i ç ã o , u m progresso i m á n e n t e que, duas gerações depois, compensou as perdas
' Outras novas, entretanto, surgiram a partir de 1795, data da fundação do Conservatório.
que, inicialmente, a m u d a n ç a de estilo havia acarretado.
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Têm-se aí exemplos patentes, tanto de ações exercidas pela sociedade sobre a música, como da maneira pela qual um artista pode fazer progredir sua arte, voltando contra a sociedade as armas com que ela o ameaça. Beethoven nasceu no mesmo ano que Hegel: com Haydn, Mozart e Beethoven, a dialética invadiu os mais íntimos recônditos da técnica e do pensamento musicais. Voltando à comercialização, foi em março de 1764 que pela primeira vez se editou uma sinfonia de Haydn (a segunda pela numeração atual, em vigor desde 1907). Publicou-a, juntamente com outras de jovens compositores igualmente desconhecidos, um editor parisiense, Venier, que, sendo um homem de negócios de tino, os apresentava como: "noms inconnus, bons à connaître" [nomes desconhecidos dignos de serem conhecidos]. De que modo encontrou Venier a sinfonia de Haydn? Certamente através de um de seus agentes na Áustria, que lá trabalhava como copista profissional. Foi, com efeito, nas abadias da Áustria (Melk, Gõttweig, Saint-Florian, Lambach, Kremsmünster) que se começou a tomar conhecimento das sinfonias de Haydn. Os monges as copiavam assiduamente, os de Gõttweig e Kremsmünster já desde 1762. Chegaram elas em seguida aos mosteiros e às casas principescas da Boêmia e da Baviera, bem como ao Norte da Itália, particularmente a Veneza. O melhor, entretanto, ainda era adquiri-las na forma de cópias, em Viena, Veneza ou Leipzig, feitas por profissionais e vendidas a bom preço, e foi dessas cópias que os editores franceses passaram a abastecer-se. No começo, estas transações nada renderam a Haydn, que sequer teve conhecimento da existência das primeiras edições parisienses de suas obras. A demanda, entretanto, foi de tal ordem que os editores parisienses perderam qualquer escrúpulo de vender, com o nome de Haydn (um valor comercial sabidamente seguro), obras que na realidade vinham de compositores austríacos de menor envergadura, como Leopold Hofmann (1730-1793), Carl Ditters von Dittersdorf (1739-1799), Jan Krtitel Vanhal (1739-1813) e até do próprio irmão de Haydn, Johann Michael Haydn (1737-1806). Em 1770, foram publicadas em Paris, pela casa de Mme. Bérault, seis sinfonias atribuídas a Haydn, das quais uma só (a Sinfonia n" 30 em dó, dita Alleluia) era autêntica. As cinco outras haviam sido escritas, uma por Frantisek Xaver Dusek (1731-1799), duas por Johann Michael Haydn e as demais por compositores não identificados. Conta o compositor Adalbert Gyrowetz (1763¬ 1850) em suas memórias que, quando quis apresentar, em Paris, uma de suas sinfonias, não só teve a grande surpresa de ouvir pessoas dizendo que a sinfonia era de Haydn, como também a maior dificuldade de estabelecer a convicção de que era ele o autor da obra. Os editores também tomavam muita liberdade com as obras. Não se deve ficar nem espantado nem chocado com o fato de que, para fazer face às necessidades, tenham eles publicado as sinfonias de Haydn e de seus contemporâneos em múltiplas transcrições: sabemos quais caminhos deveria tomar, ao longo do sécu-
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lo XIX, a prática da transcrição para piano — desde o fim do século XVIII, o instrumento por excelência que se tinha em casa — de obras escritas para orquestra. Mas, muitas vezes, os editores mutilavam as obras musicais, sabendo o que faziam. Em 1773, por exemplo, Venier publicou uma sinfonia composta por Haydn em 1764, a Sinfonia n°22 de Haydn, dita Ofilósofo,só que o fez sem o primeiro movimento e sem o minueto; mas, para compensar, com um movimento suplementar de que ainda hoje se ignora a origem. Para o cúmulo do absurdo, uma parte escrita para trompas foi substituída por flautas. Uma sinfonia de Haydn em quatro movimentos foi, assim, transformada num subproduto de três movimentos, dos quais apenas dois — e com uma orquestração bem mais convencional — eram de sua autoria! Tais fatos, que refletem os costumes de uma época, estão na origem de certas dificuldades da musicología moderna. Haydn compôs ao todo 106 sinfonias: as 104 numeradas segundo o critério atual e mais duas da juventude, não numeradas. No entanto, mais de 150 outras circularam com seu nome enquanto ele ainda vivia (foram escritas na Europa, durante a segunda metade do século XVIII, cerca de 15 mil sinfonias). Só a musicología do século XX pôde esclarecer definitivamente a situação e conseguiu, através do estudo crítico das fontes, editar, "em conformidade com o desejo do autor", todas as sinfonias reconhecidas como autênticas. Não que, no século XVIII, as pessoas não dessem importância a questões de autenticidade. Mozart, a partir de 9 de fevereiro de 1784, teve o cuidado de estabelecer um catálogo de suas obras e, à medida que as terminava, ia precisando-lhes as datas. Haydn fez ou mandou quefizessemdois catálogos de suas composições — um a partir de 1765 e outro em 1805 — que são, porém, menos precisos e menos completos. Em seus manuscritos autografados, Haydn quase sempre indicava o ano da composição. Mas, para datar as obras das quais sumiu o autógrafo, é preciso recorrer a outras fontes que nem sempre permitem precisar com rigor o ano. Não foi em 1979 encontrada uma sinfonia da época de juventude de Mozart que se acreditava perdida para sempre, a Sinfonia emfá maior K 19a? Uma outra, a Sinfonia em lá menor K 16a, foi descoberta em 1982, mas sua autenticidade não foi comprovada. Um dos mais interessantes documentos relativo à difusão da música no século XVIII é o catálogo temático das obras postas à venda, tanto impressas como em cópias manuscritas, que, quase todos os anos, entre 1762 e 1787, publicava o editor de Leipzig, Breitkopf. Nele figuraram, pela primeira vez em 1763, algumas obras de Haydn e, em 1766, algumas das suas sinfonias: as obras ou as sinfonias em questão não poderiam, portanto, ser posteriores nem a 1763, nem a 1766. Estudando fontes como esse catálogo, tornou-se possível situar com bastante precisão muitas delas. No posfácio do primeiro desses catálogos (1762), Breitkopf achou oportuno observar:
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Sabe-se lá quantas lutas se tem de travar e quantas dificuldades se tem de vencer para dar a cada um o que lhe é devido, e restituir a uma peça que circula sob vários nomes o seu verdadeiro autor? Esses casos de litígio são realmente muito numerosos. Se, para resolvê-los, venham faltar as respostas às perguntas que se faz, corre-se grande risco de sair do bom caminho e perder-se no erro. (...) Se, nas suas horas de folga, os compositores de nome se dignassem a redigir eles próprios e me fizessem chegar u m catálogo de suas obras disponíveis, eu lhes ficaria muito grato e prosseguiria em meus esforços com redobrada audácia, estando seguro e certo de dispor de i n f o r m a ç õ e s adequadas. (...) Isto posto, devo dizer que se tornaram para m i m u m problema n ã o somente as falsas atrib u i ç õ e s , mas t a m b é m as questões de instrumentos e o n ú m e r o de partes indicado em cima de cada tema. Q u e m saberia qual o grau de liberdade que tal ou qual m ú s i c o pode conceder-se ao acrescentar ou cortar partes de u m a obra, ou ao transcrever esta ou aquela peça para outro instrumento? Dessas falsificações deliberadas, eu apenas descobri algumas, e quem sabe quantas outras estão à espera de ser descobertas, fazendo com
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dres). Houve vezes em que Haydn se viu em posição delicada por ter vendido a mesma obra a dois editores diferentes, cada um deles imaginando ter exclusividade. Em 1786, por exemplo, Haydn acusou, por escrito, "ter recebido de Mr. Guillaum(e) Forster a soma de 70 libras esterlinas por vinte sinfonias, sonatas e outras peças de minha autoria. Certifico, além do mais, que o dito Guillaum(e) Forster é o único proprietário das mencionadas obras." Qual não foi a estupefação de Forster no dia em que viu Longman & Broderip, a firma de Londres que representava a editora austríaca Artaria, pondo à venda duas destas "sonatas e sinfonias" com a assinatura de Ignaz Pleyel (1757-1831), antigo aluno de Haydn. Este último, sem dúvida premido pelo tempo, havia efetivamente enviado a Forster duas obras (dois trios) de Pleyel, fazendo-as passar como suas. O que não impediu Haydn de, alguns meses depois, escrever a Forster:
que constem ainda mais erros no meu catálogo? Só me resta, portanto, recorrer àqueles que possuem, a respeito dessas obras, melhor conhecimento do que eu. (...)
N ã o me queira mal se o senhor está tendo aborrecimentos com Mr. Langmann [Longman & Broderip]. Tudo isso resulta das práticas usurárias de Mr. Artaria. Posso em todo
Palavras significativas, pois levantam o problema não somente da autenticidade, mas também do respeito para com as obras, sem igualmente esquecer, no caso das questões de autenticidade, o problema do valor respectivo dos critérios de estüo e do estudo das fontes. "O estudo das fontes dá, em muitos casos, certeza total, em outros nenhuma. O estudo estüístico jamais dá certeza total, e só muito raramente presta algum auxílio" (Jens Peter Larsen). Em tais condições, como definir os traços estilísticos de um período como o final do século XVIII? Como determinar o que distingue Haydn e Mozart? Ou ambos em relação a seus predecessores ou a seus contemporâneos de segunda linha? Ou ainda de seus sucessores imediatos, entre os quais estão algumas personalidades artísticas secundárias, embora apreciadas, como Johann Nepomuk Hummel (1778-1837), mas também Beethoven, Weber e Schubert? A situação caótica acima esboçada começou a tornar-se mais clara no momento em que Haydn decidiu ele próprio vender suas obras a diferentes editores e quando, de modo geral, a edição musical descentralizou-se, passando a ter igual importância em Viena, Londres e Paris. Foi na primeira destas cidades que se deu uma reviravolta decisiva em 1778, ano em que tiveram início as atividades de edição musical da Casa Artaria. Data de 31 de janeiro de 1780 a primeira carta de Haydn ao editor Artaria, com o qual ele iria manter, durante dez anos, relações regulares, que uma abundante correspondência, felizmente preservada, permite acompanhar quase dia a dia. Mais de uma vez, Haydn queixou-se de erros de impressão e gravação, mas, no conjunto, as relações foram proveitosas para os dois lados. Nem por isso tais relações, com a novidade de o compositor ser também parte do negócio, deixaram de ser regidas pelo princípio do "cada um por si". Mais ou menos à mesma ocasião em que teve entendimentos com a Casa Artaria, Haydn entrou em contato direto com os editores Boyer e Sieber (Paris) e Forster (Lon-
caso prometer-lhe o seguinte: enquanto eu viver, nem Artaria nem Langmann receberão de m i m o que quer que seja, direta ou indiretamente. Mas o senhor deve compreender, naturalmente, que qualquer pessoa que desejar direitos exclusivos sobre seis novas obras minhas deverá mostrar-se disposto a pagar mais que 20 guinéus. Acabo justamente de assinar um contrato com a l g u é m que me paga mais de cem g u i n é u s por u m a série de seis obras.
Não se está muito longe do "eu exijo e eles pagam" de Beethoven, a propósito de seus editores. Um século mais tarde, Puccini e Richard Strauss geriam de forma perfeitamente capitalista os aspectosfinanceirosde suas atividades.
A condição social dos músicos Da emancipação social dos compositores no final do século XVIII, este é apenas um dos aspectos. Mas não se deve idealizar coisa alguma. As sujeições sociais mantinham-sefirmes.Bach fora para a prisão por ter ousado pedir dispensa do serviço, e os músicos que haviam sofrido desventura semelhante formavam uma verdadeira legião. Citemos, por exemplo, o caso de Christian Ludwig Dieter (1757-1822). Nascido em Wurtemberg, entrou muito moço para o pritaneu onde, submetidos a uma dura disciplina, eram formados os futuros funcionários do grão-duque Karl Eugen. Inicialmente destinado à pintura, acabou voltando-se para a música e, em 1779, fez ouvir sua primeira ópera. Em 1780, como iria acontecer dois anos mais tarde com seu compatriota, o escritor Friedrich Schiller — que na peça Kabale und Bebe [Amor e intriga], de 1784, denunciaria com todas as forças e sem subterfugios o regime tirânico de Karl Eugen —, Dieter foi apanhado e condenado à prisão por deserção, o que não o impediu de empregar-se depois como violinista na corte de Stuttgart, onde permaneceu até aposentar-se em 1817.
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Na corte de Colloredo, o príncipe-arcebispo de Salzburg, Mozart teve sorte um pouco melhor. Jovem, consciente de seu valor, impaciente para voar com as próprias asas, acabou tendo um único desejo, pois sentia que, da realização deste, dependia seu futuro de artista: escapar da situação de semi-escravidão em que se achava. A viagem que Mozart fez a Mannheim e a Paris em 1777-1778 foi, neste sentido, uma tentativa frustrada que, não obstante, contribuiu enormemente para sua maturação artística e humana. Mas, em 9 de maio de 1781, Mozart conseguiu alcançar seu objetivo, e por isso essa data — tendo em vista a grandeza e a celebridade de Mozart — é às vezes chamada de "o 14 de julho dos músicos". A ruptura foi violenta. Mozart, que passava uma temporada em Viena na comitiva de Colloredo, recebeu deste uma notificação com ordem para retornar a Salzburgo, ficando proibido de dar concertos sem sua ordem expressa. Mozart desobedeceu, consciente do que fazia. Não obteve a licença que queria, mas resolveu ele mesmo licenciar-se por sua própria conta e risco, já que nada o autorizava a fazê-lo. No curso dos incidentes que marcaram aqueles dias, chegou a receber um pontapé de um dos funcionários do príncipe-arcebispo, o conde d'Arco. Pode-se ter uma idéia de tudo por que teve de passar Mozart, lendo suas cartas ao pai. Ele [Colloredo] me disse que eu era o patife mais devasso que já conhecera, que n i n g u é m nunca o tinha servido tão mal como eu, que me aconselhava a partir hoje mesmo, senão ia escrever para Salzburgo mandando cortar meus vencimentos... Chamou-me de mendigo, de piolhento, de cretino... N ã o quero mais saber de Salzburgo, odeio o arcebispo até a loucura. [9 de maio] Lá [em Salzburgo], ele é o senhor. Mas, aqui, n ã o passa de um cretino, como eu sou aos olhos dele... Acredite-me, caríssimo pai, preciso de toda minha força viril para lhe escrever aquilo que manda a razão... Mas mesmo que eu tenha de mendigar, n ã o vou querer mais, de forma alguma, estar a serviço de tal patrão. [16 de maio]
Mozart — e isto deve ser sublinhado —, que descartava apenas a perspectiva de estar novamente a serviço de um "tal patrão" e não a de eventualmente encontrar um patrão mais aceitável, passou os seus dez últimos anos de vida como músico independente em Viena. Nesses anos, ele teve suas horas de glória, especialmente como virtuose do piano, mas conheceu também a amarga experiência dos imprevistos da "liberdade do artista". Como compositor, teve admiradores, inclusive nas classes dirigentes. Mas depois de 1785, com os seis quartetos para cordas dedicados a Haydn, sucedeu-lhe o primeiro grande fracasso, não junto ao homenageado, um dos raros que imediatamente souberam dar valor a estas composições, mas junto a certa platéia, a certos críticos e mesmo a certos músicos. "Música que nos faz tapar os ouvidos", tal foi o julgamento, que se pode explicar ou pelo menos justificar, inspirado ao compositor Giuseppe Sarti por dois segmentos de dois desses quartetos — a introdução lenta do que é denominado As dissonâncias (Quarteto para cordas em dó K 465) e o início do desenvolvimento do primeiro
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movimento do Quarteto para cordas em ré menor K 421. E quando o editor Artaria, depois de os haver publicado, enviou-os à Itália, os quartetos de Mozart logo foram devolvidos "porque há muitos erros de impressão". Os erros eram simplesmente os acordes inusitados escritos por Mozart. Nada impede, para explicar os infortúnios de Mozart em Viena, que se leve em conta outros fatores que não apenas a originalidade e as "dificuldades" de sua música, ou o fato notório de pertencer ele à franco-maçonaria, onde se achavam os espíritos esclarecidos da época. Poderíamos mencionar, por exemplo, o seu pouco tino para negócios, e sobretudo dizer que, se Mozart houvesse vivido mais tempo, teria visto melhorar sua situação material e assistido à sua revanche artística, que, de forma fulgurante, logo sucedeu sua morte. Apesar de tudo isso, o que permanece é o desencontro de Mozart com a sociedade vienense dos anos de 1780. Mas estava na ordem das coisas que ele tivesse tentado a aventura. Disso dá testemunho o que sucedeu com Haydn. Também ele conquistou sua autonomia, com a sorte ajudando e com a ajuda de seu caráter, mas por outros meios e com outros resultados. Ainda em 1776, numa pequena autobiografia, Haydn declarou que a sua vontade era "viver e morrer" a serviço do príncipe. Nos anos 1780, este serviço — que iria durar por um quarto de século — foi ficando cada vez mais pesado. A existência material de Haydn achava-se assegurada, o príncipe o apreciava enormente, mas cada vez menos ele suportava a solidão e a rotina do castelo de Eszterhaza, que se transformara numa espécie de prisão dourada. Só podia estar em Viena durante as estadas (para sua infelicidade, muito raras) do príncipe na capital. Quando este voltava a Eszterhaza, Haydn o acompanhava de má vontade. Em carta a Artaria, de 27 de maio de 1781, ele disse: "Meu mal é viver no campo." Anos depois, em 27 de junho de 1790, em outra carta a sua amiga vienense Marianne von Genzinger escreveu: U m a vez mais sou obrigado a ficar aqui. Vossa Graça deve imaginar tudo que me faz falta. É triste ter sempre de ser escravo, mas sem dúvida a Providência assim o quis. Sou u m pobre diabo! Sempre assoberbado de trabalho, poucas distrações, e quanto aos amigos? Já n ã o existem mais — uma amiga? Sim! Talvez ainda exista uma. Mas ela está longe.
Durante esse decênio (1781-1790), Haydn passou a maior parte do tempo em Eszterhaza, preparando e dirigindo para seu príncipe representações de óperas italianas — numa média de cem por ano, 126 somente em 1786! —, mas cessou de dar-lhe com prioridade suas novas obras. As grandes partituras instrumentais que compôs nessa época (sinfonias, quartetos para cordas, trios) destinam-se a instituições e personalidades de fora, como editoras, o Concert de la Loge Olympique em Paris (as sinfonias de número 82 a 87, em 1785-1786, e as de números 90 a 92 em 1788-1789), o rei de Nápoles e um cônego de Cadiz na Espanha (Die Sieben letzten Worte des Erlósers am Kreuze [As sete últimas palavras do Salvador na cruz] ). Mas, por ironia da sorte, a glória e a fama que o tinham obrigado a compor
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à distância, sem contato direto, para um público diferente daquele a que se habituara, salvaram-no talvez da sufocação e de uma grave crise na sua criação. Com o passar do tempo, o que teria sido de Haydn? Sem que necessariamente se estabeleça uma relação de causa e efeito, o ano 1790 foi, ao mesmo tempo, aquele em que Paris começou a ocupar-se seriamente de coisas que não fossem só concertos públicos e aquele em que, pela primeira vez desde 1760 mais ou menos, Haydn não escreveu uma única sinfonia. A verdade é que, em 28 de setembro de 1790, morreu o príncipe Esterhazy, desanuviando-se a situação. Na verdade, o falecido príncipe tornara-se, ao longo dos anos, antes mecenas do que patrão de Haydn. Devemos observar que Haydn poderia ter largado o emprego antes desta data se houvesse desejado ou ousado, pois nada em seu contrato o impedia de fazê-lo. Como o herdeiro dos Esterhazy não gostava de música, Haydn — para quem o falecido príncipe deixara uma pensão — pôde decidir a própria sorte. Em 1791¬ 1792 e em 1794-1795, fez duas viagens a Londres, cidade que por longos anos o havia aguardado em vão, com salas de concerto repletas de um público numeroso e animado, que ele via de perto pela primeira vez, e onde apresentou doze novas sinfonias, entre as quais as que seriam suas derradeiras, denominadas Sinfonias de Londres (n°93 a n° 104), o apogeu de sua produção no gênero. Nenhum compositor antes dele conheceu prestígio igual àquele de que Haydn gozou durante os anos que se seguiram, passados principalmente em Viena, onde, com independência financeira e sem atribulações, continuou a compor até 1803. Trata-se menos de uma questão de grau de prestígio — em 1793, portanto ainda em vida, Haydn foi homenageado com um monumento erigido pelo senhor feudal de sua aldeia natal — do que da natureza desse prestígio. Aqui, é preciso levar em conta tanto a personalidade de Haydn quanto sua obra. Primeiro compositor na história da música a ser considerado como uma espécie de "sumo sacerdote laico da nova música", glorificado em seu último período criador como o "pai da música nova", Haydn não esperou nem por essas honrarías nem pela fortuna — coisas de que só iria realmente usufruir depois das duas estadas em Londres — para proclamar que o artista, na medida em que lucra com a sociedade, tem igualmente obrigações para com ela e para indicar como, em sua opinião, deveria o artista comportar-se de modo a "não desmerecer". Já em 1779, uma carta de Haydn aos dirigentes da Tonkünstler-Societãt vienense contém, a esse respeito, as afirmações mais surpreendentes. Para Haydn, ao mesmo tempo homem muito realista e muito idealista, "não desmerecer" significava não ter de envergonhar-se de si tanto no plano profissional como no espiritual ("o material é a antecámara do espírito", diria mais tarde Schõnberg), ganhar e conservar através do trabalho a consideração da sociedade, tornar-se útil a esta sociedade e receber com toda justiça um pagamento decoroso e regular. A seus olhos, nenhum desses quatro pontos, todos muito concretos, era secundário; nenhum podia existir sem os outros. Embora partidário do trabalho
A formação de um novo público e suas conseqüências musicais
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sério e bem-feito, como aliás todos os grandes compositores, Haydn percebeu mais claramente e explorou mais inteligentemente do que qualquer outro, nos vinte últimos anos do século XVIII, as relações mútuas entre independência material efinanceirae independência espiritual e artística. Acabou conquistando desse modo, como se viu, sua autonomia de homem e seu lugar na sociedade. Mas, ao mesmo tempo, tornar-se útil à sociedade e a seus semelhantes jamais foi para ele uma máxima vã. Durante os últimos trinta anos de sua existência, Haydn reintegrou-se voluntariamente — de acordo com um processo de igual modo vantajoso para os outros e respeitososo para com sua autonomia, e com um status pessoal que nada em comum tinha com o antigo — a uma sociedade da qual, como indivíduo e artista, continuava a emancipar-se. Estes dois processos de emancipação e reintegração irão prosseguir um e outro, reforçando-se e condicionando-se mutuamente. Disso resulta a posição ímpar de Haydn — livre, mas sem os altos e baixos de Mozart ou a rebeldia de Beethoven — na consciência européia da virada do século XVIII para o XIX, ocasião em que compôs o oratório Die Schõpfung [A Criação], dez anos depois da tomada da Bastilha. E Haydn tinha consciência disso, como prova esta sua declaração relatada por seu biógrafo Griesinger e que dificilmente se imagina na boca de um músico de 1770 ou sobretudo de 1830: "Eu não o digo por vaidade, mas o mundo sabe seguramente que não fui um membro inútil da sociedade e que a música pode também servir para fazer o bem." Se toda ou quase toda a Europa nos anos próximos de 1800 — a Áustria católica, a Alemanha do Norte protestante, a França de Bonaparte e a Inglaterra de William Pitt, sem falar na Suécia e na Rússia — reconheceu-se em Haydn, isto foi porque sua arte refletia muito dos ideais universalistas, emancipadores e humanitários da época, sem traços morafizadores, mas com a aparente objetividade, a falsa ingenuidade e a verdadeira sabedoria de quem passou à ação. A música de Haydn, por isso, não dissimula os interesses potencialmente antagônicos dessa mesma época. A impressão que deixa é a de uma síntese harmoniosa, de elementos constitutivos claramente reconhecíveis, marcados pelo cunho da dinâmica. Com Haydn, e depois com Beethoven, irromperam na música aspectos autenticamente plebeus que iriam depois evoluir e mudar de função, sem contudo desaparecerem. O erudito e o popular, o aristocrático e o plebeu, sem nada perderem de sua identidade ou de sua riqueza, ao contrário afirmando-se mais ainda uns e outros, nunca se mesclaram tão intimamente como no apogeu do classicismo vienense, em obras como Die Zauberflòte [A flauta mágica] de Mozart (1791) ou Die Schõpfung de Haydn (1798), em uma época em que não somente se proclamava, como mais tarde o faria em um derradeiro gesto de desafio a Nona Sinfonia de Beethoven (1824), mas em que se acreditava que todos os homens eram irmãos. "Conheci imperadores, reis e muitos grão-senhores e deles recebi não poucos cumprimentos. Mas eu não poderia conviver com essas pessoas em pé de igualdade, prefiro pôr-me junto àquelas de minha classe." Estafrasedo velho Haydn, filho
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de componês, dá testemunho do seu senso de diplomacia e traduz com dignidade tanto a desordem como as contradições do início do século XIX. Isso vale igualmente para a famosa apostrofe — provavelmente apócrifa, mas bela demais para não ser aqui citada — lançada, em 1806, por Beethoven, furioso e desfeito de mais algumas ilusões a seu "amigo e protetor", o príncipe Lichnowsky, quando este último, deixando cair a máscara, tratou-o com extrema insolência: "Príncipe, o que o senhor é, deve ao acaso do nascimento. Já o que eu sou, sou por mim mesmo. Príncipes há e sempre haverá aos milhares. Beethoven, há apenas um."
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Do ponto de vista musical, o estilo que historicamente ia de par com a emancipação das classes médias traduziu-se, no início, não somente pela simplificação da escrita e pela primazia da melodia, reflexos de um desejo de variedade e diversidade, mas também pela exploração sistemática dos sentimentos subjetivos individuais, agora apreendidos não isoladamente na forma de um sentimento por peça musical (como na época barroca), mas em suas sucessões, suas transformações e seus contrastes, por vezes abruptos. Melodismo, subjetividade, expressividade No princípio, estas duas tendências (primado da melodia e subjetivismo) foram, grosso modo, obrigadas a coexistir. Para que se processasse defMtivamente a síntese, foram necessários trinta anos. Então, o melodismo e o subjetivismo tributário do instante transformaram-se dialeticamente em "trabalho temático" e em "dinâmica global", inseparáveis um do outro e conferindo à obra sua unidade na diversidade e sua força vetorial. Isto sob o signo de um equilíbrio extraordinário entre o humano individual e o humano universal e, tecnicamente, de uma verdadeira reinvenção da polifonia, da harmonia, do ritmo, da instrumentação e, conseqüentemente, das funções desses procedimentos. Essa revolução corresponde sem dúvida à maturidade de Haydn e de Mozart que, em separado e juntos, criaram um estilo a um só tempo expressivo e elegante, marcado pela preocupação tanto com os detalhes quanto com a concepção de conjunto e de efeitos dramáticos por vezes supreendentes, mas logicamente motivados.
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Este estilo aparece em toda sua glória, por exemplo, na Sinfonia n° 29 em lá maior K201 (1775) e no Concerto para piano n°9em mi bemol maior K271 (1777), escrito para a pianista parisiense mile. Jeunehomme, de Mozart, ou nos seis Quartetos para cordas opus 33 (às vezes chamados Quartetos russos em virtude de um editor os haver dedicado ao grão-duque Paulo da Rússia), de Haydn, que, no fim de 1781, por ocasião de sua publicação, anunciou-os muito justamente como tendo sido "escritos de uma maneira inteiramente nova e particular". Muitas vezes, pretendeu-se erradamente reduzir este anúncio a uma hábil fórmula comercial. De fato, como o demonstrou Charles Rosen, os primeiros compassos do Quarteto opus 33 n° 1 constituem um verdadeiro manifesto. Ouvem-se neles duas tonalidades, ré maior e si menor, uma lutando contra a outra, sem que se saiba imediatamente qual delas é a principal (a tônica) na peça (que acabará sendo a tonalidade si menor). No terceiro compasso, a melodia está confiada ao violoncelo, enquanto os outros instrumentos, particularmente o primeiro violino, limitam-se a um pequeno motivo de acompanhamento. No quarto compasso, sem que este motivo seja deixado pelo primeiro violino, ele se transforma na principal voz melódica, enquanto, por seu lado, o violoncelo, sem mudar de material temático, passa a ter um papel subordinado de acompanhamento. É difícil dizer em que lugar exatamente se dá a inversão, pois o terceiro e quarto compassos, unificados por um crescendo, formam um todo. O que acontece é que o primeiro violino inicia o terceiro compasso como acompanhamento e termina o quarto compasso como voz melódica principal, e com o violoncelo dá-se o inverso. Estes dois exemplos mostram nada mais que a invenção da harmonia clássica (tonalidades conflitantes) e do contraponto clássico (a contínua mudança de função das diferentes vozes). Existe uma solução de continuidade entre o segundo exemplo e as indicações "voz principal" (Hauptstimme) e "voz secundária" (Nebenstimme), de que, no século XX, Arnold Schõnberg, por exemplo, volta e meia haveria de valerse em suas partituras. É preciso, inclusive, observar-se que, por ocasião da publicação do Opus 33 de Haydn, em 1782, o editor Hummel, de Berlim, tratou de retirar esta ambigüidade tonai do início da obra. Para que se chegasse a esse tipo de coerência, o estilo de maturidade de Haydn e de Mozart não levou em conta todos os elementos do período "transitório" (1750-1775). Ele foi síntese, mas também rejeitou os resíduos das épocas passadas que de nada lhe serviam. Das múltiplas experiências dos anos 1740-1770, o estilo de maturidade de Haydn e Mozart retém apenas as que são capazes de integrar-se a um estilo dramático, fundado na tonalidade, com a polaridade tônica-dominante nitidamente afirmada e tendo, como motores principais, a ação dramática (não mais o sentimento), a necessidade de estabelecer contrastes, mas também de reconciliá-los num tipo de desenvolvimento sintético que transforma a oposição em unidade. A clareza na ação e a atribuição, ao menor fenômeno isolado, de uma função precisa em uma globalidade dinâmica caracterizam tanto uma ópera de
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Mozart, como Le nozze di Figaro [As bodas de Fígaro, 1776], quanto uma sinfonia de Haydn, como a. Sinfonia n" 92, dita Oxford (1789). Pode-se dizer, simplificando um pouco, que antes dos anos 1780 os compositores tinham de escolher entre surpresa dramática e perfeição formal, entre expressividade e elegância, e só raramente conseguiam chegar às duas ao mesmo tempo. A tentativa mais heróica, com relação a isso, foi a de Gluck (1714-1787), sobre a qual falaremos mais adiante. Os filhos de Bach No terceiro quartel do século XVIII, os filhos de Bach, de certa maneira, repartiram entre si todas as possibilidades estilísticas: Johann Christian (1735-1782), o mais moço, com sua música formalmente bem estruturada, sensual e elegante; Carl Philipp Emanuel (1714-1784), o mais célebre e o mais influente de todos, com suas obras violentas, expressivas, sempre surpreendentes, mas algumas vezes incoerentes; Wilhelm Friedmann (1710-1784), o mais velho, prosseguindo a tradição barroca de maneira muito pessoal, excêntrica mesmo, e justapondo a essa preocupação com a herança paterna (a personalidade do pai influenciou-o bastante) fulgurantes visões do futuro, precocemente românticas, mas que pouco tiveram a oferecer aos seus sucessores imediatos; Johann Christoph Friedrich (1732-1795), o menos conhecido, de quem se pode dizer grosso modo que evoluiu do estilo de seu irmão Carl Philipp Emanuel para o de Johann Christian. Desses quatro músicos, os dois mais velhos foram da geração de Gluck e Pergolesi e os dois mais moços da de Haydn. WILHELM FRIED EMANN Filho mais velho de Johann Sebastian Bach com sua primeira mulher Maria Barbara, Wilhelm Friedemann nasceu em Weimar e estudou principalmente com seu pai, que escreveu para ele, entre outras peças, o Klavierbüchlein. Em 1773, foi nomeado organista em Dresden, mas acabou deixando essa cidade -— aferrada demais à sua paixão pela música italiana e onde o príncipe-eleitor e sua mulher favoreciam o catolicismo — para tornar-se, em 1746, organista e regente em Halle. Durante dezoito anos conservou os dois cargos, que lhe proporcionaram muitas homenagens como compositor no plano da música religiosa (cantatas), ao passo que, nos anos passados em Dresden, dedicara-se antes à música instrumental (sinfonias, concertos, peças para instrumento de teclado). Tendo, por diversas vezes, se desentendido com as autoridade de Halle, particularmente por ocasião da morte do pai, aceitou, sem chegar a ocupá-lo, um posto em Darmstadt (1762), e no final das contas acabou renunciando ao cargo que tinha em Halle sem ter outros em vista (12 de maio de 1764), resolvendo assim — dezessete anos antes de Mozart — correr o risco da liberdade. Até 1770, permaneceu em Halle, passou algum tempo
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em Brunswick e, em 1774, instalou-se em Berlim, onde terminaria seus dias. Nessa cidade, foi bem recebido pela princesa Amélia da Prússia, a quem dedicou, em 1778, oito fugas a três vozes para instrumento de teclado. Passou então a ganhar a vida como professor e dando recitais de órgão (o primeiro deles foi uma verdadeira sensação), mas, ao morrer, deixou a mulher e a filha em completa miséria. Rapidamente construiu-se em torno de seu nome uma lenda, que seria difundida no século XIX por um romance pseudo-histórico de Brachvogel, apresentando -o como um canalha entregue à bebida. Pode-se deixar isso de lado, como também a suposta incompreensão e falta de respeito que Wilhelm Friedemann teria manifestado com relação à arte de seu pai, apesar de sabermos que ele se mostrou bem menos cuidadoso com os manuscritos do pai do que seu irmão Carl Philipp Emanuel. Dividido entre duas gerações, Wilhelm Friedemann sofreu intensamente com essa situação, a ligação com o pai opondo-se nele à fidelidade ao seu tempo. Além das obras citadas, escreveu peças para órgão e música de câmara em que a flauta aparece com freqüência. Em sua morte, o único necrológio que lhe foi consagrado qualificava-o como "o maior organista da Alemanha". De fato, dos quatro filhos músicos de Bach, Wilhelm Friedemann foi o único que perpetuou nesse plano a tradição familiar. CARL PHILIPP EMANUEL Segundo filho de Johann Sébastian e de Maria Barbara, nascido em Weimar, Carl Philipp Emanuel Bach foi aluno de seu pai na Escola de Santo Tomás, em Leipzig. Aos dezessete anos, ele mesmo imprimiu seu primeiro minueto. Fez sólidos estudos de direito e, em 1738, tornou-se cravista da orquestra do príncipe herdeiro da Prússia. Quando este foi coroado como Frederico II, Carl Philipp Emanuel o acompanhou a Postdam. Cedo revelou-se um mestre da música instrumental, em especial da música para instrumentos de teclado, nesta qualidade marcando profundamente sua época, tanto por obras como as Sonatas Prussianas (1742), as Sonatas Wurtemberguesas (1744) ou as Sonatas com reexposições variadas (1760), como com seu Versuch überdie Wahre Art das Klavier zu spielen [Ensaio sobre a verdadeira maneira de tocar instrumentos de teclado, 1753 e 1763], um dos tratados teóricos fundamentais da época. Com a morte de seu padrinho Telemann, sucedeuo no cargo de diretor de música religiosa em Hamburgo. Tendo ocupado este posto de 1768 até o final da vida, promoveu a execução do Messiah de Haendel, do "Credo" da Missa em si de seu pai, do Stabat Mater de Haydn, além de compor ele mesmo uma grande quantidade de peças sacras, como os oratórios Os israelitas no deserto (1775) e A ressurreição e a ascensão de Jesus (1777-1778). Também em Hamburgo executou ou fez executar novas obras para instrumentos de teclado — seis álbuns de Sonatas, rondós e fantasias para conhecedores e amadores [Fur Render und Siebhabe] foram publicados entre 1779 e 1787 —, música de câmara e dez sinfonias (a metade de sua produção no gênero): seis para cordas, dedicadas ao
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barão van Swieten ( 1773) e quatro para grande orquestra (publicadas em 1780). Em suas mãos encontrava-se a maior parte dos documentos originais da família Bach. Muitas das obras de Carl Philipp Emanuel Bach foram editadas enquanto ele viveu, e sua fama foi grande. Tanto Haydn — em quem sua influência pode ser sentida em algumas sonatas — como Mozart o admiravam profundamente. Pioneiro do concerto para piano (compôs cerca de cinqüenta), foi, por suas bruscas modulações dramáticas, seus ritmos imprevistos, seus encaminhamentos por vezes hesitantes, o maior representante do Empfindsamkeit, termo alemão difícil de ser traduzido em outras línguas que, aproximadamente, eqüivaleria a "sensibilidade". Para o músico do Empfindsamkeit, não é mais a harmonia preestabelecida da natureza e dos homens que convém explorar, mas seus turbilhões profundos e insondáveis, e não os imitando com recurso a fórmulas fixadas de antemão, mas traduzindo-os em sons. À ciência dos mestres do início do século, este músico opõe a inspiração individual e a liberação da forma. O Empfindsamkeit também nasceu como uma maneira de reagir contra o racionalismo do Aufklürung [Filosofia das Luzes]. Expressar os sentimentos tornara-se um fim em si. De todas as suas obras, Carl Philipp Emanuel Bach colocava em primeiro lugar as que havia escrito para ele mesmo. É significativo que, sob as notas de uma de suas peças para cravo, de caráter recitativo, um contemporâneo seu tenha podido escrever os versos do monólogo de Hamlet. Em seu Ensaio sobre a verdadeira maneira de tocar instrumentos de teclado, ele proclamou: U m m ú s i c o n ã o poderá emocionar se ele próprio n ã o se emociona. É preciso tocar com alma e n ã o como u m pássaro amestrado. Alguns virtuoses de profissão, por mais que surpreendam com a agilidade de seus dedos, n ã o conseguirão saciar a fome de seus ouvintes de alma sensível.
Daí a quantidade de composições suas intituladas fantasias, que procuram traduzir os estados da alma. Para ele, fantasieren não significará compor improvisos de acordo com as regras, numa demonstração de sapiência, mas exprimir seus humores e sentimentos improvisando, ou compondo peças que tenham ar de uma improvisação. Da galantería, à qual por vezes se entregou, Carl Philipp Emanuel Bach soube evitar os escolhos. Ocupou, em seu tempo, uma posição única, e não apenas por ser adepto da nova "forma sonata". Foi o único músico de sua categoria que, com uma produção abundante e de qualidade, compôs durante todo o segundo terço do século XVIII e boa parte do terceiro. JOHANN CHRISTOPH FRIEDRICH Filho mais velho de Johann Sebastian Bach com sua segunda mulher, Anna Magdalena, e o terceiro de seus quatro filhos que se tornariam músicos, Johann Christoph Friedrich, contrariamente a seus irmãos, fez uma carreira modesta e sem atropelos.
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Nascido em Leipzig e educado por seu pai, no início de 1750, pouco antes da morte deste foi para a corte do conde de Schaumburg-Lippe em Bückeburg, na Westfália, onde permaneceu até morrer a serviço dos condes Wilhelm (até 1777), Friedrich Ernst (1777-1787) e em seguida da regente Wilhelnrina. De início, Johann Christoph dedicou-se principalmente à música italiana, mas após a partida do maestro de concertos Angelo Colorína e do compositor G.B. Serini pôde incluir em seus programas obras alemãs de Gluck, Haydn, Holzbauer e Mozart. O escritor Johann Gottfried Herder, que morou em Bückeburg de 1771 a 1776, escreveu para ele os textos dos oratorios A infância de Jesus (1773) e A ressurreição de Lázaro (1773), bem como os de diversas cantatas. Em 1778, visitou seu irmão Johann Christian em Londres. A maior parte de suas obras jamais ultrapassou os limites de Bückeburg. De suas sinfonias, das quais muitas desapareceram, a última, em si bemol maior (1794), é uma obra-prima do estilo clássico tardio. Com seu filho Wilhelm Friedrich Ernst (1759-1845), igualmente músico, extinguiu-se a descendência de linha masculina de Johann Sebastian Bach. JOHANN CHRISTIAN
Ultimo filho de Johann Sebastian Bach e Anna Magdalena, Johann Christian tinha apenas quinze anos quando seu pai morreu; por isso, foi por ele bem menos influenciado que seu irmão e seus dois meios-irmãos, além de não ter podido valerse, como os outros, dos conselhos paternos. Depois de 1750, ele prosseguiu sua formação com Carl Philipp Emanuel e, em 1754, foi à Itália, uma viagem que até então nenhum Bach ainda havia feito. Lá, ligou-se a Sammartini, tomou lições com o padre Martini, compôs música sacra e óperas, um gênero que também até então nenhum Bach ainda havia tentado. Em 1760, para obter o posto de organista na catedral de Milão, converteu-se ao catolicismo. Nos anos de 1761 e 1762, respectivamente, fez ouvir sua ópera Artaserse [Artaxerxes] em Turim (1761) e Catone in Utica [Catão na Útica] e Alessandro nelVIndie [Alexandre nas Índias] em Nápoles. Em princípio apenas para passar alguns meses, Johann Christian chegou a Londres em 1762, como compositor titular do King's Theatre. E, a não ser para breves viagens, nunca mais deixou aquela cidade, onde, em 1764, acolheu a família do pequeno Mozart, que tinha então oito anos. Esse primeiro Bach cosmopolita e de hábitos mundanos participou ativamente da vida musical de Londres durante vinte anos. Assim é que, de 1765 a 1781, organizou e dirigiu, junto com Carl Friedrich Abel (virtuose de viola da gamba, 1723-1787), os concertos para assinantes Bach-Abel, além de ir todas as quartas-feiras fazer música para a rainha. Tornou-se professor dos príncipes da Casa Real e foi quem introduziu na Inglaterra o pianoforte. Depois de 1763, fez ouvir em Londres as óperas Orione [Órion] e Zenaida [Zenaide], e, em 1778, La clemenza di Scipione [A clemência de Cipião]. Em 1772 e 1774, foi visto em Mannheim para a encenação, primeiro, de sua ópera Temistocle [Temístocles] e depois para a de Lucio Silla [Lúcio Sila]. Em 1778, acha-
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va-se em Paris (onde reencontrou Mozart) para a assinatura do contrato de uma ópera francesa, Amadis de Gaules [Amadis de Gaula, 1779]. A morte prematura de Johann Christian Bach emocionou sobretudo seus credores, mas fez com que Mozart reagisse de forma pouco habitual: "Bach não existe mais, que perda para a música!" Embriaguez melódica, sensualidade, elegância e uma visível facilidade caracterizam o estilo de Johann Christian Bach (foi um dos criadores do allegro cantante, usado depois por Mozart), sem que isto esconda a firmeza no domínio da técnica de composição. Da sua abundante produção, da qual apenas uma parte foi editada durante sua vida, citemos as doze Sonatas opus 5 e opus 17; os seis Quintetos opus 11; os dezoito Concertos para teclado (cravo ou pianoforte) opus 1 (o final do sexto é constituído por uma série de variações sobre o hino inglês God Save the King), opus 7 e opus 13; as 24 Sinfonias opus 3, opus 6, opus 8, opus 9 e opus 18. Algumas dessas sinfonias são na realidade aberturas de ópera, como a muito conhecida Sinfonia opus 18 n° 2 (abertura de Lucio Silla). Devemse-lhe ainda numerosas sinfonias concertantes, gênero em que foi um dos especialistas de seu tempo, e árias de concerto, como Ebben si vada, [Pois bem, vá], com piano obbligato, na mesma forma em que mais tarde Mozart iria compor a ária de concerto Ch'io mi scordi di te? [Que eu me esqueça de ti?], K505. É nítida a influência do estilo galante em certas obras de Johann Christian Bach, mas a Sonata em dó menor opus 5 n" 6 ou a Sinfonia em sol menor opus 6 n° 6 mostram — como deviam, na época, ter mostrado seus improvisos — que Johann Christian também sabia explorar profundidade e paixão. Uma das chaves da personagem reside sem dúvida nesta confidência que fez a um amigo: "Meu irmão Carl Philipp Emanuel vive para compor; eu componho para viver."
A escola de Mannheim O Empfindsamkeit, com sua preocupação das nuanças, foi uma das causas do aparecimento na música — que se executava cada vez mais sem a presença do compositor — que trazia indicações precisas relativas ao andamento, à dinâmica e ao fraseado: "Existe uma grande diferença entre piano e pianissimo, entre forte e fortissimo, entre crescendo e sforzando." Esta frase típica foi extraída de uma carta na qual Haydn, em 1768, fazia recomendações em dez itens aos monges que iam executar, na sua ausência, a Cantata Applausus, de sua autoria. Na mesma ordem de idéias, costuma-se dizer que o crescendo foi inventado pelos músicos da escola de Mannheim. Ou antes, que é algo que ficou como uma especialidade dessas músicas, e muitas vezes como uma forma de maneirismo, por causa do papel fundamental que tiveram no nascimento da sinfonia e da técnica orquestral. Esta escola, cujo nome foi tomado da cidade de Mannheim, às margens do Reno, brilhou intensamente de janeiro de 1743, mês da ascensão ao poder do prín-
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cipe-eleitor palatino Cari Theodor, a dezembro de 1777, mês em que este, tornan¬ do-se príncipe-eleitor da Baviera, partiu para Munique. Portanto, a escola de Mannheim deve sua existência a um mecenas apaixonado por música e, com ele, praticamente desapareceu. Carl Theodor, que por seu lado era também músico, dispunha, em 1745 — entre cantores e instrumentistas —, de 48 músicos, número que dois anos mais tarde chegaria a 61 e em 1777 a mais de 90. A partir de 1745, a orquestra de Mannheim foi dirigida por Johann Stamitz (Jan Stamic), natural da Boêmia (1717-1757). Radicado em Mannheim desde 1741, Stamitz fez da orquestra uma das mais conceituadas da Europa, e da cidade um dos lugares em que mais se desenvolveu a sinfonia pré-clássica. Em 1754, foi para Paris e lá estreou no Concert Spirituel — no qual pelo menos uma das suas sinfonias já havia sido tocada — em 8 de setembro, permanecendo por cerca de um ano na capital francesa, onde vieram a público seus Trios para orquestra opus 1. A maior parte das obras de Stamitz foi, por sinal, publicada em Paris. Compôs concertos, música de câmara e algumas obras vocais, mas a importância da obra de Stamitz reside sobretudo nas sinfonias, das quais 58 chegaram até nós, e nos dez trios para orquestra de cordas, um tipo de obra que se situa entre a música orquestral e a música de câmara. Mais da metade dessas sinfonias e todos os trios para orquestra, à exceção de um, têm quatro movimentos, com um minueto sempre como terceiro movimento. Stamitz cultivou o crescendo e fez progredir tanto a arte da orquestração como o trabalho temático, mas está longe de ter sido o inventor desses procedimentos; na verdade, adaptou à nascente sinfonia esses traços de estilo que eram largamente empregados na Itália. Nisto, e por ser o primeiro grande representante da escola de Mannheim, teve um papel de considerável importância. Foi redescoberto no princípio do século XX, graças ao musicólogo Hugo Riemann (1849-1919), mas não é mais possível hoje ver nele, como pretendeu Riemann, o principal predecessor de Haydn. Excelente violinista, Stamitz foi sucedido por Christian Cannabich (1731¬ 1798) na direção da orquestra de Mannheim. O nível continuou igual. Em 1772, Charles Burney (1726-1814), historiador musical, referíu-se^à orquestra como "um exército de generais". Dela, fizeram parte extraordinários instrumentistascompositores, muitos dos quais, solicitados por Stamitz, originários da Boêmia: os violinistas Carl Stamitz (1745-1801) e Anton Stamitz (1750 — entre 1789 e 1809), filhos do próprio Johann Stamitz,'Wilhelm Cramer (1745-1799), Karl Joseph e Johann Baptist Toeschi, o violoncelista Anton Filtz (1733-1760), oflautistaWendling e o oboísta Ramm. Particularmente importantes revelaram-se Ignaz Holzbauer, natural de Viena (1711-1783), e sobretudo Franz Xaver Richter (1709¬ 1787), que depois de haver dominado a primeira geração dos compositores de Mannheim passou seus últimos vinte anos como diretor de música sacra na catedral de Estrasburgo.
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Entre outras conseqüências, o alto virtuosismo dos membros da orquestra impôs, em Mannheim, a preocupação nítida de matizar e diversificar a utilização dos instrumentos, o que se traduziu notadamente na composição de um grande número de concertos e sobretudo de sinfonias concertantes, gênero que quase se tornou uma especialidade de Mannheim. Mas a ênfase dada à música instrumental não impediu que também a ópera e a música religiosa recebessem em Mannheim grande impulso (Georg Joseph Vogler, Ignaz Holzbauer). Quando Carl Theodor foi para Munique, a maior parte de seus músicos o seguiu, assinalando com isso o fim do grande período de Mannheim. Pouco antes da orquestra dissolver-se, Mozart, vindo de Salzburgo e a caminho de Paris, fez uma parada em Mannheim e tirou grande proveito de sua estada naquela cidade. Por esta e outras razões, vários musicólogos, à frente dos quais Hugo Riemann, quiseram fazer do estilo de Mannheim — dramático mas sem surpresas, ao mesmo tempo aristocrático e popular — o ancestral direto e a principal fonte de influências do "classicismo vienense" (Haydn, Mozart). Tal opinião não faria hoje mais sentido. Por um lado, os traços de estilo da escola de Mannheim mais voltados para o futuro (crescendo, concepção dramática da música instrumental) eram já encontrados (como vimos a propósito de Johann Stamitz) na Itália. Por outro, na medida em que estes traços constituíam uma reação contra a era barroca, existiam igualmente em outros lugares, sobretudo em Viena. Finalmente, nem todos os gêneros de música, em Mannheim, eram praticados de maneira tão "progressista" quanto a sinfonia ou a sinfonia concertante, e, mesmo no caso das sinfonias, nem todas eram concebidas segundo padrões "avançados". Ao mesmo tempo que em Mannheim, desenvolvia-se em Viena uma outra escola de compositores de sinfonia e de música instrumental: Georg Christoph Wagenseil (1715-1777), Georg Mathias Monn (1717-1750), Franz Aspelmeyer (1728-1786), Florian Gassmann (1729-1774), Leopold Hofmann (1730-1793), Joseph Starzer (1726-1787), Carlos Ordoñez (1734-1786), Johann Georg A l brechtsberger (1736-1809), Carl Ditters von Dittersdorf (1739-1799), Jan Krtitel Vanhal (1739-1813), Johann Michael Haydn (1737-1806). Foi dessa escola, ou se preferirem, da tradição local, que se nutriu no início a arte de Joseph Haydn, visto que, no piano musical, não eram muitas as relações entre Mannheim e Viena. Nada tinham de semelhantes, por exemplo, com as estreitas relações mantidas entre Mannheim e Paris, cidade onde,' além de Johann Stamitz, muitos outros músicos de Carl Theodor tiveram ocasião de se apresentar e que, por sua vez, também havia feito da sinfonia concertante uma especialidade. Músicos franceses — como François-Joseph Gossec (1734-1829), Simon Leduc (ca. 1748-1777) ou o cavaleiro de Saint-Georges (ca. 1739-1799) — sofreram muito mais a influência de Mannheim, ou se pareciam muito mais com os compositores daquela cidade, do que Haydn, por exemplo. Igualmente, nos anos que vão de 1770 a 1780, desenvolveu-se na capital francesa um estilo de música para violino e de quarteto para
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cordas — o "quarteto concertante" —, muito diferente daquilo que então se fazia em Viena, e que é ilustrado principalmente por dois italianos imigrados: Giuseppe Maria Cambini (1746-1825) e Giovanni Baixista Viotti (1755-1824). As novas orientações da ópera O crescendo, em completo contraste com a dinâmica de francas oposições (ou dinâmica em terraço) do barroco, teria sido inventado — é preciso repeti-lo — mesmo que a escola de Mannheim jamais houvesse existido: uma diferenciação levada a todos os níveis foi uma das exigências primordiais da segunda metade do século XVIII. Da mesma forma, o Empfinsamkeit — do qual outra figura de proa foi Johann Schobert (ca. 1735-1767) , um dos inúmeros artistas alemães imigrados em Paris, onde viria a morrer depois de ter escrito obras para teclado que marcaram profundamento o jovem Mozart — viria a ser ultrapassado amplamente pelo subjetivismo, temperado de humanismo e de "retorno ao natural". Disso dão testemunho as profundas transformações que afetaram a ópera. No que diz respeito à ópera italiana, a opera seria, com seus personagens mitoló gicos, subsistiu até o final do século XVIII, mas limitando-se cada vez mais a situações e fórmulas estereotipadas, enquanto esperava pela renovação decisiva que se daria no começo do século XIX. Em oposição a ela, estava a opera buffa. De simples intermezzo entre os atos da opera seria—como a famosa La serva padrona, de Pergolesi, levada à cena em 1733 e representada em Paris em 1752, o que deu origem à Querela dos Bufões — a opera buffa tornou-se um gênero autônomo, que evocava personagens e situações da vida de todos os dias, acelerava o ritmo da ação com um número maior de árias (principalmente para as vozes de baixo), na forma de vigorosos alegras, ou de ensembles (episódios cantados por vários solistas). Nos fins de ato (finale) da opera buffa, com a preocupação de maiores efeitos de dramaticidade, punham-se no palco todos os cantores, que se revezavam num vaivém à frente da cena, até que por fim acabavam todos os personagens cantando juntos. Ou seja, desta vez com a preocupação de veracidade dramática, facultou a opera buffa a busca de meios que permitissem, por intermédio da música, expressar simultaneamente sentimentos diferentes e fazer da música em si uma ação que viesse reforçar a que estava sendo representada no palco. Por tudo isso, a opera buffa foi, como gênero, a fonte principal do estilo clássico vienense, e em especial de Mozart. Este estilo foi ação dramática, inclusive no domínio puramente instrumental. Nos anos de 1780, sempre adotou o ritmo da opera buffa e muitas vezes também o espírito desta. Excluindo-se os absurdos e a má-fé de alguns de seus atores, a Querela dos Bufões fora dos maiores acontecimentos culturais ocorridos na metade do século. Baldassare Galuppi (1706-1785), Pasquale Anfossi (1727-1797), Niccolo Piccinni (1728-1800) — este conhecido pela polêmica que em 1777-1787 opôs, em
Paris, seus partidários aos de Gluck, e cuja ópera La buonafigliola (1760) constitui um marco no desenvolvimento do gênero —, Giovanni Paisiello (1740-1816) — autor de um primeiro U barbiere di Siviglia [O barbeiro de Sevilha], levado à cena em São Petersburgo em 1782 —, e sobretudo Domenico Cimarosa (1749-1810), cujo famoso li matrimonio segreto [O matrimônio secreto] recebeu uma consagração na Viena de 1792, poucas semanas depois da morte de Mozart. Estes foram alguns dos principais compositores italianos que contribuíram para ilustrar a opera buffa. Mas foi seguramente Mozart que, com suas três grandes óperas italianas — Le nozze di Figaro [As bodas de Fígaro, 1786], Don Giovanni [1787] e Cosi fan tutte [Assim fazem todas, 1790] — levou o gênero a suas culminâncias e fez caírem todas as fronteiras. Cumpre notar, aliás, que a ópera absorvia de tal modo a energia dos compositores italianos que, depois de Giovanni Battista Sammartini (ca. 1700-1775) — um sinfonista milanês que, de certa maneira, antecipou Haydn, e cujas obras, ainda durante sua vida, eram já apreciadas tanto em Paris quanto em Viena —, foram poucos os que fizeram nome na música instrumental. Há, no entanto, duas exceções de peso: Luigi Boccherini (1743-1805), espanhol de adoção, grande violoncelista, autor de sinfonias, concertos, quartetos e quintetos para cordas de grande originalidade, que não fazem má figura junto aos de Haydn e Mozart; e Muzio Clementi (1752-1832) que, em vida, foi chamado de "o pai do pianoforte" e cujas sonatas para esse instrumento serviram de inspiração para as do jovem Beethoven. Na França, a tragédia lírica fundada por Lully desapareceu com Rameau, o seu maior representante e, por volta de 1760, teve início a moda da opéra comique, mais popular e, às vezes, algo "lacrimejante". Este gênero é fruto de vários outros, entre os quais o das comédies mêlées de chants [comédias mescladas de cantigas], ou seja, à maneira de vaudevilles, apresentadas a partir de 1725 pelo Théâtre de la Foire [Teatro da Feira] e pelo seu rival, o Nouveau Théâtre [Novo Teatro] italiano, e que atraíram a atenção do público parisiense, cansado das formas um tanto afetadas da ópera à la Versailles. Ao lado dos vaudevilles e de outras melodias tomadas de empréstimo que formavam o material básico do conteúdo musical das primeiras opéras comiques, aparecia uma parcela de música original que, com os anos, foi sendo aumentada, mas cujos autores haveriam de permanecer para sempre anônimos. Depois da Querela dos Bufões, o entusiasmo pela opera buffa italiana significou o fim da opéra comique à maneira de vaudeville. Obras originais começaram a aparecer: o famoso Le Devin du village [O amvinho da aldeia, 1752], de JeanJacques Rousseau (1712-1778), e sobretudo Les Troqueurs (1753) — apresentada de início pelo autor, Antoine Dauvergne (1713-1797), sob um pseudônimo italiano —, que assinala o nascimento oficial da opéra comique como peça constituída por diálogos falados misturados a "canções" originais, ou seja, comédie mêlée d'ariettes [comédia mesclada de arietas]. No início, foi um estrangeiro que se assenhoreou do gênero: o italiano Egidio Romualdo Duni (1709-1817), principalmen-
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te com Le Milicien [O miliciano], de 1763. Depois dele, surgiram François-André Danican Philidor (1726-1785), que ficou igualmente célebre como jogador de xadrez, Pierre-Alexandre Monsigny (1729-1817), cujo Le Déserteur [O desertor] fez correrem muitas lágrimas, Nicolas Dalayrac (1753-1809) e principalmente AndréModeste Grétry (1741-1813), que, com Richard Cozur-de-Lion [Ricardo Coração de Leão], em 1784, levou a ópera cômica francesa do século XVIII a seu ponto máximo. "As lágrimas de Colette comovem mais que as lágrimas de Vénus": esta frase, pronunciada em 1770 pelo compositor e musicógrafo Nicolas-Etienne Framery (1745-1810), resume em poucas palavras a contribuição trazida pela opéra comique no que diz respeito à sensibilidade, à naturalidade e ao humanitarismo. O gênero — que haveria de influenciar a escola do Singspiel da Alemanha do Norte, representada principalmente por Georg Benda (1722-1795), e mesmo as óperas alemãs de Mozart, Beethoven e Weber — impôs-se em Paris na mesma ocasião que as sinfonias de Stamitz, Wagenseil ou Haydn. Nos anos de 1750 e 1760, uma dupla invasão italiana e alemã, que a França, por sinal, estava pronta para receber, fez com que desabasse a estética de Versailles e tudo quanto Rameau representara. Foi a época em que a Alemanha, depois de ter vivido pelos padrões franceses, pôs-se a exportar artistas para o estrangeiro, principalmente para Paris. O mais célebre de todos foi um escritor, o barão Grimm (1723-1807), mas entre eles havia grande número de músicos. "Aqui, são os alemães que aparecem como donos da música que se publica. Entre eles, Johann Schobert, Eckard e Honauer são muito apreciados por suas peças para o cravo. Eles nos trouxeram as suas sonatas impressas e puseram, nelas, dedicatórias para meus filhos", relata, não sem orgulho, Leopold Mozart (1719-1787), em carta de 1° de fevereiro de 1764. Seu filho Wolfgang acrescentaria mais tarde: "Os franceses estão acabados, têm que deixar a música por conta dos estrangeiros." ChristophWillibald Gluck (1714-1787) Desses estrangeiros, o maior de todos foi Christoph Willibald Gluck, que dominou a cena parisiense de 1774 a 1779. Nascido no Alto Palatinado, filho de um guarda florestal que esteve a serviço de um certo conde Kinsky e depois de um príncipe de nome Lobkowitz, Gluck freqüentou a Universidade de Praga, onde estudou violino, violoncelo e canto, tornando-se, em 1736, músico de câmara do príncipe Philipp Lobkowitz em Viena. Entre 1737 e 1740, completou sua formação com Sammartini, em Milão, passando então a exercer as funções de músico da câmara do conde Melzi. Em seguida, teve suas primeiras óperas representadas, entre as quais Artaserse [Artaxerxes], o segundo libreto de Metastásio (Milão, 1741), Demetrio ou Cleonice (Veneza, 1742), Demofoonte (Milão, 1742), Tigrane (Crema, 1743), Sofonisba ou Siface (Milão, 1744), Poro (Milão, 1744), Ippolito (Milão, 1745). Passou, então, uns tempos em Paris (1745) e depois em Londres (1745-1746), Leipzig e
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Dresden (1747), Viena (1748), Copenhague (1749) e Praga (1750). Suas principais óperas levadas à cena nesse período e durante essas viagens foram: La caduta de' giganti [A queda dos gigantes, Londres, 1746], Le nozze d'Ercole e d'Ebe [As núpcias de Hércules e Hebe, Pillmtz, 1747] e Semiramide riconosciuta [Semíramis reconhecida, Viena, 1748]. Em 1752, Gluck fez nova viagem à Itália, durante a qual foi representada em Nápoles La clemenza di Tito [A clemência de Tito]. Foi com espírito de absoluto conformismo que, durante todos esses anos, Gluck se consagrou à opera seria. Sua contratação em 1754 pelo conde Durazzo, diretor dos teatros imperiais de Viena, marcou uma reviravolta em sua carreira. Graças a Durazzo, ele começou a interessar-se pela opéra comique francesa, chegando mesmo a compor algumas no gênero, o que contribuiu para desviá-lo das convenções da opera seria italiana. Estas óperas cômicas foram: LTsle de Merlin [A ilha de Merlim, Schõnbrunn, 1758], La Fausse esclave [A falsa escrava, Schõnbrunn 1758], L'Arbre enchanté [A árvore encantada, Schõnbrunn, 1759], La Cythère assiégée [Citera sitiada, Viena, 1759], L'Ivrogne corrigé [O bêbado corrigido, Schõnbrunn, 1760], Le Cadi dupé [O cádi enganado, Schõnbrunn, 1761] e LaRencontre imprévue ou Les Pèlerins de La Mecque [O encontro imprevisto ou Os peregrinos de Meca, 1764]. Fora isso, de 1752 a 1760, esteve sob sua direção a orquestra particular do príncipe Hildburghausen. Em 17 de outubro de 1761, Gluck fez representar no Burgtheater de Viena o balé em três atos Don Juan ou Le Festin de pierre [O festim de pedra], com argumento e coreografia de Gasparo Angiolini, futuro coreógrafo de Orfeo [Orfeu] e a colaboração de Raniero di Calzabigi, futuro libretista de Orfeo. Esta obra fazia parte de uma corrente reformista do balé, com tendência a privilegiar os aspectos expressivos e humanos da dança diante dos aspectos puramente decorativos. Neste ponto, era já um prenúncio de Orfeo, tanto assim que, para a versão francesa desta ópera, Gluck retomaria para a Danse des furies [Dança das furias] a grande chacona final de Don Juan. Um ano depois de Don Juan, foi a vez da montagem de Orfeo ed Euridice [Orfeu e Eurídice], no mesmo teatro, em 5 de outubro de 1762, a primeira manifestação da "reforma da ópera" que seria empreendida por Gluck. Observe-se, entretanto, que alguns compositores já o haviam precedido dentro desta mesma linha, entre os quais Niccolo Jommelli (1714-1774) e Tommaso Traetta (1727-1779), dois italianos há muito radicados na Alemanha. Em 16 de dezembro de 1767 — após um intervalo de tempo em que Gluck fez duas viagens à Itália (1763 e 1767) e teve lugar a representação, no palácio de Schõnbrunn, da serenata dramática IlParnasso confuso [O Parnaso confuso, 1765] — seguiu-se no mesmo espírito, sempre em língua italiana e sempre com libreto de Calzabigi, a estréia da ópera Alceste, cujo famoso prefácio, por sinal redigido por Calzabigi, contém as principais idéias de Gluck. Em 1770, foi levada uma terceira ópera, ainda com libreto de Calzabigi, Paride ed Elena [Páris e Helena].
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Em 1772, François du Roullet, adido à embaixada da França em Viena, redigiu para Gluck um libreto em francês baseado na tragédia Iphigénie, de Racine. Tendo decidido conquistar Paris, Gluck preparou-se para isso metódicamente e, em 1773, passou uma temporada lá, numa expedição exploratória. Em 1774, fez representar, na capital francesa, Iphigénie en Auliãe [Ifigênia em Aulide, 19 de abril] e Orphée et Euridice (2 de agosto), versão francesa de Orfeo ed Euridice. Em 23 de abril de 1776, seguiu-se uma versão francesa de Alceste. Com estes acontecimentos, Gluck granjeou de uma só vez calorosos partidários e violentos detratores, do que deveriam decorrer, a partir de 1777, as controvérsias da famosa "querela dos gluckistas e dos piccinnistas". A polêmica não opôs tanto os dois compositores, cujas relações pessoais continuaram sempre cordiais, quanto os seus respectivos campeões, e isto por motivos nos quais não era a música que estava em causa, ou, pelo menos, não apenas a música. No começo de 1777, enquanto trabalhava em Viena em Roland e em Armide [Armida], com libretos de Quinault, Gluck soube que a Ópera de Paris havia igualmente proposto o primeiro desses argumentos a Niccolo Piccinni, que chegara à capital francesa, vindo de Nápoles, em 31 de dezembro de 1776. Gluck enviou uma longa carta a Du Roullet, na qual declarava renunciar a Roland, elogiando, por antecipação, sua Armide. A Armide de Gluck foi representada em Paris no dia 23 de setembro de 1777 e o Roland, de Piccinni, em 27 de janeiro de 1778. Um e outro trabalharam em seguida na composição de suas versões de Iphigénie en Tauride [Ifigênia em Táuride]. A de Gluck, com libreto de Nicolas-François Guillard, foi apresentada em Paris no dia 18 de maio de 1779, e a de Piccinni somente em 1781, enquanto Gluck (Iphigénie en Taurideíoi a última de suas grandes óperas) mantinha-se retirado em Viena. Os adversários de Gluck, com La Harpe, Marmontel e d'Alembert à frente, reprovavam-lhe tanto a origem estrangeira (sem perceber que, de certa maneira, ele era um continuador da tradição de Lully e Rameau), como o fato de se ter afastado do ideal italiano. Piccinni, na ocasião em que o chamaram, estava no auge da glória. Ele não só era um grande autor de óperas bufas, como havia acabado de obter grande sucesso no terreno da opera seria com Allessandro nelTndie [Alexandre nas índias], em 1774, obra composta para um libreto de Métastase, aliás já utilizado por Gluck (Poro). Vindo para Paris sem se dar conta do papel que queriam que fizesse, e dotado de uma personalidade mais fraca que a de Gluck, Piccinni sequer captou as profundas intenções dramáticas e musicais deste último. A empreitada, por sinal, já vinha prejudicada desde o início. Em vez de opor a Gluck, na pessoa de Piccinni, um representante típico da opera seria italiana, e assim tentar provar que a opera seria não fora destronada pelas reformas de autor de Alceste,fizeramPiccinni trabalhar igualmente com um libreto francês (Roland), vale dizer, numa língua que ele mal sabia. O sucesso de Armide ultrapassou em muito o de Roland. Com Iphigénie en Tauride, Gluck obteve o seu maior triunfo,
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seguido, é bem verdade, do fracasso de Écho et Narcisse [Eco e Narciso, 24 de setembro de 1770] e de sua volta definitiva para Viena. Quanto a Piccinni, conseguiu irnpor-se com uma de suas antigas óperas bufas, mas não com Iphigénie en Tauride, isto antes de ter acontecido sua efêmera revanche com Didon [Dido] em 1783. De resto, pode-se dizer que, a despeito de todas as proclamações lançadas, a batalha entre ópera "dramática" (Gluck) e ópera "musical" (Piccinni) na verdade não aconteceu: pouco tempo depois, sem proclamações nem manifestos, Mozart iria mostrar como transcendê-la. Pode-se ainda dizer que ainda hoje esta batalha continua não decidida. A importância de Gluck não foi por isso menos considerável. Nas bases de suas cinco principais obras (Orfeo, Alceste, Iphigénie en Aulide, Armide e Iphigénie en Tauride), todas de caráter elevado, impregnadas de sinceridade e grandeza neoclássica, encontram-se princípios humanitários e ideais éticos fundamentais como a amizade, o amor conjugai, o espírito de sacrifício e, sempre, a vitória destes princípios e ideais sobre as forças destrutivas, inclusive a morte. Com justa razão, ele pôde definir sua música como a "linguagem da humanidade", o que tem tudo a ver com a frase de Haydn ao partir para Londres: "O mundo inteiro compreende minha linguagem." No plano artístico, Gluck simplificou os libretos, despojou a música de todo ornamento inútil, ligou a abertura orquestral ao drama em si mesmo, humanizou o recitativo, fez com que o coro participasse da ação e preocupou-se com o aspecto psicológico. Entretanto, não hesitou em proclamar que, para atingir tais fins, a música era apenas um meio, entre outros. No prefácio de Alceste, escreveu: "Procurei reduzir a música à sua verdadeira função, que é a de secundar a poesia, para fortalecer a expressão dos sentimentos e o interesse pelas situações, sem interromper a ação e desaquecê-la com ornamentos supérfluos." E isto no mesmo momento em que Mozart, longe de subordinar a música de ópera às palavras, estava conseguindo emancipá-la, fazer dela menos a expressão de um texto do que um equivalente — coerente em si próprio e não mais em função de critérios exteriores — da ação dramática. As "reformas" de Gluck praticamente nada tiveram a ver com o desenvolvimento da opera buffa. Gluck foi para Mozart um exemplo. Este ficou a dever-lhe principalmente Idomeneo (1781) no gênero opera seria, porque, no mais, a influência de Gluck irá manifestar-se apenas em algumas passagens de Don Giovanni, sem esquecer, contudo, as citações do balé Don Juan que se encontram na ária de Pedrillo de Die Entführung aus dem Serail [O rapto do serralho] e no fandango de Le nozze di Figaro [As bodas de Fígaro]. O herdeiro mais autêntico de Gluck não foi o "classicismo vienense" dos anos 1780, mas — por intermédio de músicos da Revolução Francesa, como Etienne-Nicolas Méhul (1763-1817) — Hector Berlioz. De qualquer modo, a carreira de Gluck, personagem a um só tempo irritante e admirável, marcou sua época com um dos dois acontecimentos de grande envergadura que precederam a plena maturidade de Haydn e Mozart.
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O Sturm und Drang musical
O Sturm und Drang [Tempestade e paixão] dos anos 1770 constituiu o outro desses dois acontecimentos tão marcantes. Haydn e Mozart, e sobretudo o primeiro, não somente o ilustraram, como, ao fazê-lo, elevaram-se de maneira decisiva acima de seus contemporâneos. O fenômeno do Sturm und Drang, tipicamente germânico, mas de alcance universal, foi em sua essência literário. Teve como pai espiritual Jean-Jacques Rousseau, e o nome, que lhe foi atribuído a posteriori, é o de uma peça do dramaturgo Maximilian von Klinger (1752-1831), escrita em 1776 e representada em 1777. Este fenômeno teve como a mais famosa e perfeita expressão literária o romance Werther, de Goethe (1773) e culminou sem dúvida com o drama Die Rãuber [Os salteadores, 1780-1781] de Schiller. Inseparável deste movimento foi o renascimento, nos países de língua alemã, das tragédias de Shakespeare. Os propósitos artísticos do Sturm und Drang eram as fortes emoções — sobretudo as mais profundas —, as surpresas e mesmo o arrepio. Em música, sua primeira manifestação, isolada e não muito típica, foi sem dúvida a chacona final do Don Juan de Gluck, que tem como seu prolongamento, entre outras, a cena do comendador ao término do segundo ato de Don Giovanni de Mozart. É certo que, na época, o Sturm und Drang foi um elemento importante da música teatral, do que dão testemunho as aberturas sensacionalistas (Hamlet, 1778) do abade Vogler (1749-1814), ou os balés produzidos por ele em Mannheim. Mas o Sturm und Drangtambém manifestou-se na música instrumental, em particular nos gêneros novos (quarteto para cordas e sinfonia), oriundos sobretudo da Alemanha e da Áustria. Em outras palavras, no nível musical, o Sturm und Drang significou, a um só tempo, num plano geral, a tomada de consciência da Alemanha como nação e, num plano particular, uma individualização cada vez mais nítida, nos gêneros do quarteto para cordas e da sinfonia, de cada obra tomada isoladamente, para não falar do papel cada vez mais importante exercido pelos sentimentos individuais. Mas, à diferença do Empfindsamkeit, tais sentimentos, em vez de permanecerem tributários das veleidades do instante, buscam integrar-se numa disciplina de conjunto, mesmo quando se expressam por bruscas explosões. As sinfonias e os quartetos escritos por Haydn por volta de 1722 caracterizam-se tanto por uma profunda subjetividade quanto por grande força intelectual. O Sturm und Drang foi para alguns, falando-se musicalmente, um fenômeno austríaco que atingiu seu apogeu por volta de 1770-1772. Já para outros, esta designação, no que concerne à música, deveria ser contestada. Tem ela a seu favor a comodidade, pois o termo Sturm und Drang é muito expressivo, sobretudo pelo fato de aplicar-se a uma música—a que foi produzida na órbita de Viena nos anos 1770-1772 — realmente muito nova e muito típica, tanto do ponto de vista da técnica como do conteúdo emocional. É verdade que, no plano da técnica —
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o recurso à polifonia, por exemplo —, seus traços mais característicos permaneceram enraizados numa tradição que no curso dos anos precedentes não havia desaparecido, muito pelo contrário. Os trios para barítono — instrumento da família das violas, que era da predileção do príncipe Esterhazy e por ele tocado — escritos por Haydn a partir de 1765 são, entre outras coisas, um laboratório de pesquisas contrapontísticas, e desde o início do século vigorava em Viena uma tradição nunca esquecida de fugas instrumentais para conjuntos de cordas. Fora isso, Haydn, durante essa época, escreveu mais obras instrumentais no modo menor do que em qualquer outro momento de sua vida, numa ocasião em que também se mostrava especialmente preocupado com os aspectos expressivos do contraponto (as fugas dos movimentos finais dos Quartetos para cordas opus 20 n°2, n°5en°6),e não apenas com seus aspectos "de tour deforce". A novidade, aliás, não estava tanto no recurso ao modo menor, quanto nas dimensões afetivas que lhes foram então associadas, dimensões que, antes de 1765, diante das sinfonias de divertimento da escola italiana ou vienense, haviam sido enfatizadas por um ou outro compositor isolado, e em obras de um ou outro compositor como Carl Philipp Emanuel Bach ou Franz Beck. Este último, homem de espírito aventureiro, nascido em Mannheim em 1734 e falecido em Bordeaux em 1809, compôs uma trintena de sinfonias, cuja maior parte foi publicada, em quatro grupos de seis, entre 1758 e 1766 (depois dessa data, Beck continuou a compor, mas nada mais publicou). Como escreveu B. Rywosch em 1934, para u m compositor do s é c u l o XVIII, u m a obra em modo menor significava algo extraordinário. Como tonalidade de um primeiro ou ú l t i m o movimento, o modo menor c o m e ç o u a ser usado para expressar paixão ou dor, ao contrário do que acontecia em um grande n ú m e r o de concertos alegres e solenes da era barroca, como os de Vivaldi em lá menor ou em ré menor.
Esta tendência não impede que Haydn, Mozart e seus contemporâneos tenham revelado igualmente, nas suas obras em tons maiores, como a Sinfonia n° 64 de Haydn ou a Sinfonia n° 29 de Mozart, ambas em lá maior, um acentuado gosto pelo claro-escuro, por sonoridades abafadas e efeitos estranhos e imprevistos. Com relação ao outro importante aspecto do Sturm und Drang— a recuperação do contraponto, realizada com fins de expressividade —, é preciso observar que foi em diferentes etapas de suas carreiras que Haydn e Mozart se valeram da polifonia para consolidar as novas conquistas (cf. o significado que teve, para Mozart, a descoberta de Bach e Haendel nos seus primeiros tempos de Viena). Todavia, se Haydn, por volta de 1770, valeu-se em grande escala de um elaborado contraponto nos seus trios para barítono, nos quartetos e nas sinfonias — o minueto da Sinfonia n" 44, dita Sinfonia Fúnebre, é um cânone, o movimento lento da Sinfonia n" 47 está construído por contraponto duplo em oitava e o minueto desta é formado por duas frases, sendo a segunda uma inversão retrógrada exata da pri-
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meira —, fez isto decerto para dar-lhes mais peso e seriedade, mas sem dúvida também para mostrar aquilo de que ele era capaz aos críticos da Alemanha do Norte (Berlim, Leipzig, Hamburgo) que acusavam violentamente a música vienense — e, por extensão, Haydn — de pobreza melódica, de falta de fôlego, de tendências italianizantes, de incorporar melodias populares perfumadas por qualquer coisa de balcânico, de passagens abruptas da tragédia à comédia, mas principalmente de insuficiências técnicas (predominância das vozes superiores, terças e sextas paralelas, ignorância do contraponto, uníssonos, acordes arpejados, baixos percutidos). Na polêmica entre o Norte e o Sul foi muito importante aquilo contra o que se insurgiam os críticos do Norte, pois, em nome da antiga sonata em trio, o conjunto dos elementos constitutivos do futuro "classicismo vienense" pouco a pouco se iam reunindo de maneira coerente. Os ataques foram violentos. Só é possível tolerar Haydn em suas sinfonias, por causa de algumas excelentes idéias,
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austríaca não tem por que envergonhar-se da contribuição que deu à escrita erudita. No entanto, para os críticos da Alemanha do Norte, seria impossível levar a sério esta contribuição, pois, aos olhos deles, que eram os pais guardiães de uma escola de contraponto, Johann Joseph Fux (1660-1741) e o padre Martini (1706¬ 1784) estavam infinitamente longe de ter o mesmo valor que Johann Sebastian Bach. Quanto a nós, com a distância do tempo e já firmada a primazia de Bach como compositor, estamos em condições de, imparcialmente, reconhecer em Fux, entre outros méritos, o de ter lançado as mais sólidas bases para o futuro "classicismo vienense", especialmente por sua maneira a um só tempo densa e leve de tratar o contraponto. Em tal contexto, os ataques vindos do Norte não podiam deixar indiferente Haydn, que era um profundo conhecedor do Gradus ad Parnassum, o famoso tratado de Fux. Disso dá testemunho o seguinte trecho de sua pequena autobiografia de 1776:
mas n ã o por seu gosto, nem pela solidez de sua escrita. E , para saber-se o que é m ú s i c a ruim, basta debruçar-se sobre suas obras para piano, sobretudo sobre seus trios e quartetos... Haydn e Dittersdorf realmente n ã o s ã o recomendáveis. (Hamburger
Unterhal-
tungen, 1769)
menos os berlinenses... Simplesmente fico surpreso com a incapacidade que t ê m estes senhores de Berlim, em geral t ã o razoáveis, de criticar minha m ú s i c a em termos ponde-
[Esta] sinfonia foi recentemente posta em forma aceitável por u m de nossos compositores, que lhes retirou as excrescências; o ú l t i m o movimento em 6/8 está incompleto; melhor seria se fosse suprimido o ridículo trio com seu minueto. Nachrkhten,
No estilo da m ú s i c a de câmara, eu tive a felicidade de agradar quase todos os povos,
(Wõchentlkhen
Leipzig, 1770, a p r o p ó s i t o de u m a edição da Sinfonia n° 28, de 1765)
rados: em uma publicação h e b d o m a d á r i a , eles me levaram às nuvens. E m seguida, em outra, arrastaram-me na lama, e isto sem jamais dizer por quê. Mas eu sei muito bem o motivo: é porque eles são incapazes de tocar algumas de minhas obras e vaidosos demais para se dar ao trabalho de estudá-las como é preciso, bem como por outras razões a que com a ajuda de Deus, responderei no devido tempo... N e m por isso deixam de fazer tudo
As obras de Haydn, Toeschi, Cannabich, Filtz, Pugnani, Campioni encontram-se agora
que podem para obter cópias de todas as minhas obras.
entre aquelas que são mais apreciadas. N ã o é necessário ser grande conhecedor para desvendar o vazio, a estranha mistura de c ô m i c o e sério, de bufonaria e sensibilidade, que reinam por toda a parte nessas obras. O s erros de escrita, especialmente os de ritmo, são abundantes e, de modo geral, as regras do contraponto, sem as quais nunca se escreveu u m trio que se sustentasse, são aqui soberanamente ignoradas. Tais obras s ó podem agradar àqueles que acham que a m ú s i c a n ã o é mais que melodia brilhante. Isso t a m b é m vale para os quartetos desses senhores. (Critischer Entwurf
einer auserlesenen
Biblio-
thek..., Berlim 1771) A m ú s i c a vienense, que na é p o c a de Wagenseü chegou a ter certa dignidade, (...) caiu (sob a influência de Haydn) na mais profunda trivialidade. (...) Haydn é excêntrico, bizarro, incapaz de controlar-se. (...) Cite-me uma única obra de Haydn que n ã o seja efeito de u m capricho! O senhores n ã o h ã o de encontrar u m a sequer. (Zwanzig
Compo-
nisten, eine Skizze, Berna 1776)
Como se viu antes, contrariamente ao que em geral davam a entender os críticos de Berlim, Hamburgo ou Leipzig, os compositores vienenses — principalmente aqueles que trabalhavam para a corte imperial, cujo gosto era antes conservador — em nada negligenciavam, inclusive na sua produção instrumental, a escrita contrapontística e fugada. E realmente, durante todo esse período, a música
Mesmo que houvesse expressamente tentado, Haydn jamais teria desarmado seus críticos com suas obras sombrias e contrapontísticas de 1770-1772, visto que o clima geral de violência e a introspecção delas, longe de fazer desaparecerem os aspectos plebeus que deixavam escandalizados os críticos, ao contrário conferiamlhes, pelo contraste, maior evidência. Primeira síntese na formação do "estilo clássico", o Sturm und Drang não conseguiu estabelecer completamente uma relação harmoniosa entre as partes e o todo em uma obra musical sequer, ou mesmo em um movimento de uma obra musical. Além do mais, o fator ritmo — se não em Mozart, pelo menos em Haydn — permaneceu fortemente impregnado do espírito barroco. Haydn e Mozart acabaram se afastando dos esplendores e sortilégios do Sturm und Drang por volta de 1774: Mozart mais bruscamente, sob a pressão do meio salzburguês; e Haydn, que vivia isolado e para quem o Sturm und Drangtivera maior significado, mais lentamente. Costuma-se dizer que foi por vontade de resvalar para a "galantería". É verdade, se por estilo galante entendermos a sedução melódica, a variação ornamental, o virtuosismo concebido como um objetivo em si. No entanto, apesar desses traços multiplicarem-se em Haydn e Mozart por volta de 1775, estão longe de defini-los
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por inteiro. Proporcionaram-lhes sobretudo — especialmente a Haydn, que delas tinha maior necessidade — qualidades como a clareza e a articulação das frases, a plasticidade dos contornos, um pensamento ao mesmo tempo dramático e concentrado. Não foi à toa que Mozart admirou Johann Christian Bach e que sucumbiu à sensualidade e à embriaguez melódica de Michael Haydn. O fraseado e os contrastes articulados, a polarização tónica-dominante, nitidamente afirmada, e o dramaticismo tonal do "classicismo vienense" no seu apogeu foram, todos eles, sublimações das receitas do estilo galante (denominação que, na época, englobava tudo que não se situasse na descendência inconteste da polifonia ao estilo de Johann Sebastian Bach, por exemplo). A partir de meados dos anos 1770, Haydn e Mozart rejeitaram o que não passava de rebelião, dispersão e morbidez, aquilo que turbilhonava sem levar a nada, em benefício da firmeza e da plasticidade, de uma forma orgânica com começo e fim — isto sob o signo de uma subjetividade talvez menos impetuosa, mas integrada num todo harmonioso e com isso mais poderosa e duradoura nos seus efeitos. Para eles, este processo não significou uma simples luta entre instinto e razão, mas a realização de uma aspiração profunda da época. A posição de vanguarda do "classicismo vienense", mais propriamente a de Haydn e Mozart, viu-se por fim internacionalmente reconhecida por volta de 1790. Desse reconhecimento ficaram excluídos, passando à oposição, os estilos que, de uma ou de outra maneira, haviam preservado sua autonomia: a grande ópera francesa, por exemplo, ou, em grau menor, as correntes italianas que, por volta de 1815, iriam levar a Gioacchino Rossini. Era como se, antes do Romantismo, essa nova ruptura—uma reunião de forças com amplitude sem precedentes — se houvesse revelado necessária.
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CARACTERIZAÇÃO DO "CLASSICISMO" VIENENSE
No começo, a proclamação do primado da melodia foi radical. Tal proclamação, é preciso sublinhá-lo, ia ao encontro daquilo que afirmava Rameau e também ao encontro da natureza profunda do futuro "classicismo" vienense. Para citar um dos mais ferozes críticos de Bach, o compositor e teórico Johann Adolf Scheibe (1708-1776), tratava-se de produzir uma música que fosse "bela, emocionante, profunda e nobre". Daí as múltiplas tomadas de posição — Mattheson em 1722, Scheibe em 1745 — de acordo com as quais a beleza de uma peça iria depender não mais da simultaneidade de várias vozes de igual ou quase igual importância, mas da predominância de uma delas, a voz melódica, acompanhada por uma infra-estrutura simples, da qual, no limite, poder-se-ia prescindir. Da melodia ao motivo Dito isto, a segunda metade do século absteve-se de desenvolver qualquer concepção de melodia, não importa qual fosse. Apoiou-se sobretudo nas melodias curtas e fragmentadas da ópera bufa italiana e da música popular, sendo, por sinal, a primeira influenciada pela segunda. No caso dos compositores austríacos anteriores a Haydn, como Monn ou Wagenseil, e mesmo no de Stamitz, esta fragmentação quase sempre resultava numa falta de fôlego e de unidade. Para resolver isto, os compositores do Empfindsamkeit procuraram aperfeiçoar melodias mais flexíveis e extensas, ou então, como Johann Christian Bach, elaborar a feição melódica ainda mais flexível, retomada por Mozart, do allegro cantabile. Por volta de 1770, estavam praticamente fixados todos os estilos melódicos então concebíveis, com
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exceção do tipo agressivamente popular inventado por Haydn em torno de 1780 (os últimos movimentos das Sinfonias n" 85, dita A rainha, e n" 88) e, depois, adotado por Beethoven, até a última página que escreveu (o finale substitutivo para o Quarteto para cordas n° 13 opus 130). Mesmo assim, ainda se impunha com nitidez o problema da construção melódica. Ora, a solução deste problema por Haydn e Mozart, longe de suprimir a fragmentação, transformou-a dialeticamente em articulação. Contrariamente ao encadeamento ininterrupto do barroco, a melodia (frase) clássica é periódica e articulada: claramente subdivisível (com freqüência, embora nem sempre, em "períodos" simétricos de quatro compassos), mas com subdivisões que mantêm entre si relações coerentes, geradoras de uma nova continuidade, e altamente personalizadas. A articulação periódica foi levada muito adiante. Não se limitou à melodia, à frase ou ao tema, mas estendeu-se a todos os níveis: à peça inteira, claramente subdividida em grandes parágrafos, à obra inteira, claramente subdividida em movimentos, sendo os parágrafos e os movimentos em número finito. No que concerne às microestruturas, a articulação foi responsável pelo nascimento do motivo, definido como a menor entidade rítmico-melódica capaz, por suas transformações, de insuflar energia numa obra "clássica". Por exemplo, o allegro inicial da Sinfonia n° 104 de Haydn, denominada Londres (1795), abre-se com uma melodia (um tema) de dezesseis compassos que podem ser subdivididos em dois períodos de oito compassos cada um, subdividindo-se por sua vez estes dois períodos em dois subperíodos de quatro compassos. Os dois períodos têm primeiros subperíodos idênticos e segundos subperíodos diferentes, o que, para o conjunto de dezesseis compassos, dá: A-B/A-B'. Pode-se, e é necessário, ir mais longe e subdividir cada subperíodo em dois, o que dá: al + a2 - b l + b2 / al + a2 - b ' l + b'2. Somente este último estágio de análise permite constatar com toda clareza que, nesse primeiro movimento de sinfonia, Haydn isola diversas vezes a fórmula a2 (compassos 3-4 e 11-12 da melodia de dezesseis compassos) que, transformada de diferentes maneiras, torna-se o principal motor da ação dramática. O principal motivo do primeiro movimento da Sinfonia Londres é esta fórmula de dois compassos, bem curta — seis notas apenas —, neutra e banal (quatro lás, um si e de novo um lá, ou seja, em seis notas, cinco idênticas). Originalmente integrado na melodia, e tendo passado até certo ponto despercebido, o motivo estava, no entanto, presente e posto em relevo pela articulação. Ele tinha tudo para emancipar-se, desde que o compositor reconhecesse a necessidade disso. Mas, ainda que transformado, permanece reconhecível. O material melódico de uma obra "clássica", mesmo submetido às mais radicais modificações, conserva sua identidade para o ouvinte, graças principalmente a uma certa constância do ritmo. Sem esta relação dialética entre transformação radical (se não mesmo desmembramento) e preservação de identidade — onde transformação e preservação
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ã o se aniquilam, mas se reforçam mutuamente —, não teriam existido nem o "trabalho temático", nem a "forma sonata" de Haydn, Mozart e Beethoven. No final do século XVIII, o culto do indivíduo foi levado longe. Seja harmonizado de forma diferente ou venha combinado com outros, um motivo haydniano, mozartiano ou beethoveniano conserva sua personalidade mesmo quando transposto para as mais diversas tonalidades, mesmo quando dotado de novos timbres instrumentais, de uma nova articulação, de um novo ritmo ou (permanecendo o mesmo ritmo) de uma nova melodia. O famoso motivo lapidar de quatro notas — as três primeiras idênticas — que abre a Quinta Sinfonia de Beethoven (1808) e a percorre do princípio ao fim contribui enormemente para sua unidade, sem que isto lhe prejudique a diversidade. Disto decorrem outros traços fundamentais do estilo "clássico" em seu apogeu, que é possível pôr em paralelo com o procedimento que consiste em fazer frutificar um capital: mostrar o que se pode obter a partir de um quase nada; ter como princípio que o valor de uma idéia não está tanto nela, mas naquilo que ela poderá vir a se tornar; não definir de uma vez por todas (ou quase), logo no primeiro compasso, o clima de uma peça musical pela natureza e configuração de sua melodia e pelos efetivos instrumentais envolvidos, mas conservar de reserva as possibilidades de contraste e de surpresa dramática, bem como fazer da estrutura (concebida como um processo dinâmico) o principal motor da expressão e do drama. O tratamento dinâmico de temas e motivos individualizados, como se fossem personagens de teatro, foi um dos principais elementos da dramatização da música no final do século XVIII.
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O tratamento da tonalidade Outro elemento de dramatização foi o novo uso da tonalidade. A linguagem aperfeiçoada por Haydn e Mozart implicava uma música concebida apenas em termos de temperamento igual, fosse ela escrita para teclado ou para qualquer outro instrumento. (Esta foi a principal crítica feita por Sarti a Mozart a propósito dos Quartetos para Haydn.) Com efeito, Haydn e Mozart não se empenharam em refazer a "demonstração" do Cravo bem temperado de Bach (provar que se podia escrever boa música nas 24 tonalidades maiores ou menores), mas em constrair um sistema no seio do qual fosse possível, partindo de qualquer tom, modular para qualquer outro com coerência, eventualmente da maneira mais abrupta, deixando a tonalidade nitidamente estabelecida, por um instante que fosse. Da disposição hierárquica das tonalidades, e sobretudo da distinção entre a direção dos sustenidos (ou da dominante), sinônimo do aumento de tensão, e da direção dos bemóis (ou da subdominante), sinônimo de distensão ou introspecção, Haydn e Mozart tiraram todas as conseqüências: promoveram o dramático e articulado contato das diversas tonalidades possíveis, não só entre si, mas também com a tonalidade prin-
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cipal (tônica) da peça, aumentando consideravelmente o alcance do fenômeno da modulação. Mas, seja lá o que estivessem fazendo, conservaram sempre a clareza de definição. Longe de excluir as ambigüidades, esta clareza foi condição necessária delas. Os efeitos humorísticos e mesmo os verdadeiros trocadilhos de Haydn e Beethoven, efetuados sem referências extramusicais, têm nisso sua origem principal, como também é isso o que explica o êxito de Mozart na ópera. No século XVIII, quase toda a música começava e terminava na mesma tonalidade, chamada tonalidade principal ou tônica, e no seu decorrer tendia a modular para a dominante, ou para o tom relativo maior, no caso de estar em tonalidade menor. Com Haydn e Mozart, esta tendência tornou-se irresistível. Essencial foi sobretudo a maneira como os dois se serviram de um procedimento que era, por assim dizer, inescapável aos ouvintes da época. No início do século, sequer era o caso de sublinhar tal procedimento. Mozart e Haydn trataram de o colocar em evidência. No início do século, em especial nas danças, encontrava-se com freqüência a seguinte progressão esquemática: enunciado de um material melódico da tônica à dominante, depois enunciado do mesmo material da dominante à tônica. Donde, uma dupla simetria, A-B/A-B do ponto de vista melódico, e A-B/B-A do ponto de vista tonal, com a impressão de conjunto binário e desenvolvimento bastante contínuo, não intervindo a reafirmação mais cabal da tônica no desenrolar da peça, pois elaficavareservada para o final. A revolução de Haydn e Mozart consistiu em articular dramaticamente tanto a passagem à dominante como a volta à tônica; em outras palavras, em transformar com clareza, ainda que provisoriamente, a dominante em nova tônica, e a reafirmar com força a tônica depois de transcorridos dois terços da peça musical, às vezes até a partir da metade, e o mais tardar depois de três quartos. Estas duas dramatizações — sobretudo a segunda — explicam a impressão tripartida (não mais bipartida) deixada pela maioria das peças musicais do final do século XVIII, definindo-se as três partes não pelo seu comprimento, que não é obrigatoriamente o mesmo, mas pela articulação e, em última instância, pela função de cada uma delas. Tais dramatizações constituíram o motor principal da "forma sonata" clássica que, fundada na relação dialética tensão-distensão, além de outras características essenciais, tem a estabilidade dos extremos, maior no final que no começo, e uma tensão máxima nas imediações da parte central. A "forma sonata" Esta forma, este princípio estrutural, dominou a música ocidental em seu conjunto de 1750 a 1950, vale dizer a partir da primeira escola de Viena (Haydn, Mozart e Beethoven) até a segunda (Schõnberg, Berg e Webern). Teoricamente, aplica-se não a uma obra inteira, mas a um movimento isolado, podendo este último fazer
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parte de uma obra em vários movimentos. Na realidade, a partir da maturidade de Haydn e de Mozart é possível e freqüente encontrar o princípio da forma sonata no planejamento de uma obra em vários movimentos. Numa sinfonia de Haydn, por exemplo, ofinaletem quase sempre um papel de resolução, comparável ao de uma reexposição na forma sonata. Observe-se, por fim, que a forma sonata vale para todos os gêneros instrumentais cultivados a partir de 1750 (não somente a sonata, mas também a sinfonia, o concerto, o quarteto de cordas, etc.) e mesmo, em certos casos, para gêneros de música vocal. Não se encontram dois exemplos idênticos de "forma sonata" em Haydn, Mozart e Beethoven. Ela nada tinha de esquemática, e suas "regras" eram bem menos numerosas do que se imagina. As primeiras descrições importantes de páginas construídas segundo seus princípios são sem dúvida as que estão em Versuch einer Anleitung zur Composition [Tratado de composição, 1782-1793], de Heinrich Christoph Koch (1749-1826). O próprio termo só foi consagrado bem depois da morte de Beethoven, nos tratados de composição de Adolf Bernhard Marx ( 1795¬ 1886) e de Carl Czerny (1791-1857), publicados respectivamente em 1837-1847 e em 1848-1849. A partir de Czerny, a forma sonata tem sido definida como uma estrutura melódica em três partes: a exposição, com o primeiro tema ou primeiro grupo de temas na tônica e o segundo tema ou segundo grupo de temas na dominante; em seguida, após a retomada da exposição, o desenvolvimento, onde os temas aparecem fragmentados e combinados em diversas tonalidades; por fim, a reexposição — eventualmente seguida por uma coda —, com os dois temas ou os dois grupos de temas na tônica. Este esquema, decerto confirmado por muitos movimentos do século XVIII, mas também contradito por muitos outros, tem contra si o anacronismo (é o século XVIII revisto pelo século XIX), a inexatidão, o caráter de receita (para pratos que, por sinal, haviam-se tornado impossíveis de preparar, segundo a bela fórmula de Rosen) e a tendência a fazer passar páginas de Haydn, Mozart e Beethoven, que nele não se encaixam, como violações (que, é claro, vão por conta da genialidade deles) de regras que, na realidade, jamais existiram. Assim, firmou-se pouco a pouco uma outra definição da forma sonata^ que admitia a prioridade da estrutura tonai sobre a estrutura melódica e distinguia não mais três partes, mas fundamentalmente duas: início na tônica e passagem à dominante; depois, passagem a outras tonalidades e retorno à tônica. Tal definição mostra-se inconveniente não só por dar a impressão de que os temas não têm qualquer importância, como também por ser mais uma descrição do que uma definição. Além disso, por sua generalidade, aplica-se a um número excessivo de músicas escritas entre 1750 e 1950, sem fazer qualquer distinção entre Haydn, Mozart e Beethoven e seus contemporâneos que ficam em segundo plano, e permanece restrita a pontos de gramática sem dar conta do espírito da forma, de sua
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significação como produto do final do século XVIII, nem, no interior da obra, das relações entre estrutura e matéria. Os elementos constitutivos da forma sonata apareceram paralelamente, em urna constante interação cujo mecanismo será mais bem compreendido com a ajuda de uma boa compreensão da tonalidade clássica. Na música tonai, especialmente depois de Haydn e Mozart, a tonalidade principal de uma peça ou de uma obra musical tem, com relação às outras tonalidades nas quais se aventura esta peça ou esta obra, o mesmo papel que tem, numa dada tonalidade, o acorde perfeito (consoante) em relação aos outros acordes, mais ou menos dissonantes, isto é, um papel de resolução de tensão. Retornar à tônica ou reaproximar-se dela tem o efeito de reduzir a tensão: a volta da tônica no fim de uma obra clássica corresponde a uma exigência fundamental da época. Deixar a tônica (a tonalidade principal) ou afastar-se dela tem o efeito de gerar tensão: quanto mais a modulação é articulada dramaticamente, mais a nova tonalidade afasta-se da principal e mais forte é a tensão criada. Corolário: quanto mais uma tonalidade se afasta da principal, mais difícil será para ela estabelecer um novo equilíbrio,fixar-see transformar-se numa tônica provisória. Disso decorre o papel essencial da dominante nas obras de Haydn e Mozart, pois, de todas as tonalidades geradoras de tensão, a dominante é a mais fácil de se firmar, porque é a mais próxima da tonalidade principal. Nas obras de Beethoven e de seus sucessores — que criaram estruturas capazes de suportar, em seus pontos de articulação, tensões aindà mais fortes —, disso decorre igualmente a freqüente atribuição, a tonalidades mais afastadas da tônica, do papel anteriormente reservado à dominante. A Sonata para piano opus 53, denominada Waldstein, de Beethoven (1804), é em dó maior: ora, no seu primeiro movimento, a segunda parte da exposição não se fixa na dominante sol maior, mas na mediante mi maior, que substitui a dominante. Qualquer ouvinte será sensível à desorientação, ao sentimento de exílio, resultante deste procedimento de Beethoven, mesmo ignorando tudo de sua razão técnica. Nos primeiros e sobretudo nos últimos movimentos de suas sinfonias, os préclássicos — o jovem Haydn e o jovem Mozart — atinham-se com freqüência à dupla simetria binária definida mais acima. Mas, na medida em que se desenvolveu o sentido do drama na música instrumental, uma segunda parte puramente simétrica tornou-se cada vez menos aceitável, podendo-se observar os começos de uma tendência a exprimir o crescimento da tensão harmônica e expressiva por meio, principalmente, de modulações em diversas tonalidades. A uma tensão que se fazia crescente na direção da parte central (desenvolvimento) devia fatalmente corresponder uma resolução mais marcada: daí uma mais destacada volta à tônica e uma seção conclusiva (reexposição), que se afasta bem pouco da tonalidade principal; disso viria a resultar uma estrutura tripartida, a que se chega por uma espécie de fissura da segunda seção da antiga estrutura bipartida.
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Todas as obras de Haydn, Mozart e Beethoven estão dialeticamente dilaceradas entre drama e simetria (que não é sinônimo de repetição textual), e cada uma das obras-primas desses compositores há de resolver à sua maneira esta contradição, que permanece aparente o tempo todo. O número de temas de um movimento na forma sonata não estava fixado. De uma exposição, exigia-se apenas que apresentasse um primeiro conflito, afirmando a tônica e depois a dominante (ou um substituto desta). Nada impedia que a exposição igualmente afirmasse en passant outras tonalidades cujo papel estrutural era menos importante. O lado dramático do estabelecimento da dominante podia ser reforçado pelo aparecimento simultâneo de um novo tema (procedimento freqüente em Mozart e na maioria de seus contemporâneos), mas também pela repetição, na dominante, do tema inicial (solução freqüente em Haydn). Beethoven e Haydn (Sinfonia n° 92, dita Oxford, ou Sinfonia n° 99) de bom grado combinaram os dois métodos, repetindo primeiro o tema inicial na dominante, com algumas mudanças (por exemplo, na orquestração) para evidenciar que sua função na arquitetura global não era a mesma, e só depois introduzindo um novo tema, de função antes conclusiva. Apresentar duas vezes a mesma idéia sob ângulos diferentes é tão dramático, se não mais, do que enunciar duas idéias. O crítico do jornal parisiense Mercure de France, depois de ter ouvido em 1787 as Sinfonias Parisienses, observou com admiração que, enquanto tantos compositores tinham necessidade de vários temas para construir um movimento de sinfonia, um único tema bastava a Haydn. Diz-se muitas vezes de uma obra da segunda metade do século XVIII que ela é tanto mais "progressista" quanto mais nítida e mais vasta é sua seção central (desenvolvimento), situada, em princípio, entre os acordes semiconclusivos de dominante (fim da exposição) e o retorno da tônica e do tema inicial (começo da reexposição). É verdade que, nas obras de Haydn, Mozart e Beethoven, esta seção raramente deixa de existir, e, no caso particular de Beethoven, suas climensões podem ser consideráveis. Contudo, nem a grande extensão e sequer mesmo a existência de um "desenvolvimento" são indispensáveis à forma sonata. Tanto na abertura de Le nozze di Figaro [As bodas de Fígaro, 1786], quanto no primeiro movimento da Sinfonia n° 92, Oxford, de Haydn (1789), o retorno à tônica (a reexposição) sucede quando a peça sequer chegou à metade. No caso da abertura de ópera de Mozart, isto se deve à ausência de desenvolvimento (depois da exposição, alguns compassos de transição conduzem diretamente à reexposição); e no movimento de smfonia de Haydn, às dimensões excepcionais da reexposição, à qual segue-se ainda uma coda. Não obstante, a abertura de Mozart, que certamente queria prefigurar a rapidez de ação da peça de Beaumarchais, é tão "progressista" quanto a sinfonia de Haydn. Em Haydn, Mozart e Beethoven, exposição, desenvolvimento, reexposição e coda não são de modo algum compartimentos estanques: defini-las por sua posição dentro de um movimento corresponde somente a parte da realidade. São as
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funções de exposição, de desenvolvimento e de reexposição que contam, e nos três mestres "clássicos" encontram-se tais funções (em geral repartidas desigualmente, é verdade) por todo um movimento, ou quase. Haydn e Beethoven, em particular, começam muitas vezes a "desenvolver" seus temas desde a exposição. A entrada de um novo tema no desenvolvimento — como é comum nas obras de Mozart e como acontece na Sinfonia n° 45, dita A despedida (1772), de Haydn e na Sinfonia Heróica de Beethoven (1804) — provoca sem dúvida uma desorientação, uma sensação de estranheza. Teria esse segundo tema também uma função expositiva? No primeiro movimento da Sinfonia Oxford de Haydn, a exposição consome 62 compassos, o desenvolvimento 42, a reexposição 76 e a coda 32. Ora, uma reexposição mais longa que a exposição terá de conter necessariamente acontecimentos novos. Estas novidades na reexposição da Sinfonia Oxford tornam-se ainda mais supreendentes porque, longe de se limitarem a seus quatorze compassos suplementares, preenchem 42. Seria o caso de ver nisso um segundo desenvolvimento, exatamente do mesmo tamanho do desenvolvimento oficial? E se assim fizermos, como conciliar aquilo que este termo implica com a função de resolução dos fins de movimento? Tendo em conta esta contradição, Haydn incluiu no seu "segundo desenvolvimento" vários picos de intensidade na tônica, sem que isto, no entanto, pudesse levar a termo a resolução. Daí a coda para preencher esta função. Bastante aparentado a este movimento de Haydn é o primeiro movimento da Sinfonia Heróica de Beethoven: sua coda tem a mesma função que a de Haydn, na medida em que o resíduo de tensão que ela serve para resolver provém no essencial do desenvolvimento propriamente dito, tão vasto e tão dramático que chega a esmagar um pouco a reexposição, mais curta e incapaz de manter-se em pé de igualdade com ele. Da mesma forma, sem o tributo à linguagem da época que são os quase cinqüenta compassos que martelam o acorde perfeito de dó maior no final da Quinta Sinfonia de Beethoven (1808), a enorme tensão acumulada no decorrer desta gigantesca obra não se poderia resolver. Em todas as obras "clássicas", a articulação e a periodicidade em todos os níveis acarretaram uma grande diversidade rítmica e uma maior necessidade de simetria, de equilíbrio. As reexposições da forma sonata são uma manifestação em grande escala desta necessidade, mas as de Haydn, Mozart e Beethoven lembram que simetria e repetição textual não são sinônimos. Vêem-se divididas entre a função da resolução e a necessidade de manter a música em movimento até o fim, levando em conta tanto a temporafidade da arte musical em geral quanto o dinamismo da arte musical que se praticava no final do século XVIII em particular. Nessa arte, os retornos dos acontecimentos já vividos não são simples repetições, mas reinterpretações. Diz-se de uma reexposição que ela será tão mais regular quanto mais fiel se mostrar à exposição que lhe serve de modelo. As reexposições de Haydn são geralmente muito irregulares, mas não por causa de uma simples
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preocupação com a variedade. Em Haydn, por assim dizer, a variedade é algo que va de soi. Com efeito, suas exposições são tão dramáticas e tão rapidamente concebidas em função da passagem à dominante, principalmente quando um único e pequeno motivo as domina {Sinfonia n° 88, de 1787), que uma reexposição textual na tônica seria puro nonsense, uma total impossibilidade. Nas exposições ou nos desenvolvimentos de Haydn, os episódios que aparecem numa tonalidade diferente da principal nem por isso deixam de ter sua contrapartida na reexposição, onde reaparecem, em geral, reescritos, reinterpretados, arranjados numa determinada ordem, mas sempre resolvidos. Mozart, com sua preferência por exposições mais politemáticas e feitas de longas melodias, pode permitir-se reexposições mais textuais, que no entanto reinterpretam tanto quanto as de Haydn. Rosen observa que, na Sonata para piano em sol maior K 283 de Mozart (1774), existe na exposição (compasso 17) e na reexposição (compasso 84) uma frase idêntica, mas que dá, num caso, uma impressão de passagem à dominante e, em outro, de afirmação da tônica. Esta diferença, que é uma maneira de dar clareza à forma, deve-se àquilo que, em cada caso, antecede afraseem questão. Tem-se com isto um exemplo, sob esse aspecto inconcebível em épocas precedentes, do relacionamento das partes com o todo no estilo "clássico" vienense. Este estilo caracteriza-se não somente por um alto grau de personalização, mas também de afinidade mútua entre as partes e o todo, sendo que o todo não é a soma das partes, mas a substância reunida do trabalho de que são objeto estas partes e do resultado deste trabalho. Ao mesmo tempo, o exemplo da Sonata K 283 de Mozart mostra que as partes são pré-formadas pelo todo, às vezes de maneira indelével, "como o indivíduo pela sociedade individualista" (Adorno). Como observou Sir Donald Tovey, quando se ouve já em execução um movimento desconhecido de Haydn, Mozart ou Beethoven, é possível saber se este movimento está no início, no meio ou no fim, coisa que em Bach seria muito mais difícil. Inversamente, a forma concreta não é imposta do exterior, mas determinada pelo material, propulsionada por ele do interior. Assim, as idéias iniciais de Haydn e Beethoven, normalmente concisas e carregadas de energia, dão imediatamente a impressão de um conflito, cujo desenrolar e resolução nada mais são do que a própria obra: esta foi a maior contribuição de Haydn e Beethoven à história da música. Deste ponto de vista, Rosen pôs em confronto dois primeiros movimentos de quartetos para cordas de Haydn, tirados um e outro do opus 50 (1750). O Quarteto para cordas opus 50 n° 1 começa calmamente, com a repetição pelo violoncelo da nota da tônica, o que empresta a esta uma importância e um peso particulares: a passagem à dominante se faz esperar, e os conflitos de maior violência só irão acontecer no desenvolvimento. O Quarteto para cordas opus 50 n° 6, ao contrário, abre com um mi isolado, que, por seu registro agudo, torna-se ainda mais ressaltado; seu caráter dissonante (este mi é a dominante da dominante) aparece no fim
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de três compassos, quando se descobre, por fim, que a tonalidade principal é ré maior. Uma vez posto este elemento de conflito, Haydn imediatamente passará a explorá-lo a fundo desde a exposição, uma das mais violentas produzidas por ele. A forma sonata do "classicismo" vienense foi uma maneira de escrever e, em última análise, um modo de pensar definido por Charles Rosen como "a resolução simétrica de forças opostas". Rosen acrescenta: Se esta definição parece tão ampla quanto a da própria forma artística, é porque o estilo clássico se tornou para muita gente o modelo segundo o qual se julga qualquer outra m ú s i c a — e daí, o seu nome. Já no caso do barroco, a resolução t a m b é m está presente, mas raramente ela é simétrica. As forças opostas, sejam elas rítmicas, dinâmicas ou tonais, n ã o se mostram tão claramente definidas. N a m ú s i c a da geração de 1830, a simetria é menos marcada e, por vezes, até escamoteada (a n ã o ser nas formas acadêmicas como a sonata r o m â n t i c a ) , e a recusa de uma resolução completa faz quase sempre parte do efeito poético.
Esse modo de pensar produziu uma grande quantidade de "formas", penetrou tanto o rondó como a forma Lied, está nos grandiosos finali de ato das óperas de Mozart e, sobretudo em Beethoven, na fuga e na variação. Sua contradição interna era aquela existente entre um dinamismo global (que se projeta à frente e tende para o perpétuo desenvolvimento) e o retorno em um dado momento ao começo (reexposição); em outras palavras, a que resulta de uma identidade estática numa forma de devenir. Esta contradição — indispensável à (ou compatível com a) verdade artística nos anos de 1780-1815 —, da qual cada vez mais deveria ressentir-se o século XIX, principalmente por causa da evolução da tonalidade, pode ser notada no cuidado que teve Haydn de quase sempre introduzir, em pontos próximos às reexposições, uma modificação, mesmo mínima, em relação ao início, estabelecendo assim, mais uma vez, a relação dialética entre identidade e mudança. Neste sentido, Beethoven, particularmente nas sinfonias, foi tão longe quanto possível sem destruir a linguagem. O primeiro movimento da Nona Sinfonia abre pianissimo com alguns instrumentos, enquanto a reexposição é martelada fortissimo por toda a orquestra. Identidade e mudança se confundem em uma unidade, tornando possível a proclamação simultânea de ambas por meio de uma démarche prévia que consegue fazer da reexposição um fenômeno não somente esperado, mas altamente desejado, e da volta ao ponto de partida o resultado inelutável de um processo desencadeado por este mesmo ponto de partida. A "falsa entrada da trompa", quatro compassos antes da reexposição do primeiro movimento da Sinfonia Heróica, é simplesmente a sedimentação, na própria obra, do resultado desta démarche e de sua ideologia subjacente. Adorno vê em Beethoven, por um lado, o "protótipo musical da burguesia revolucionária (e) de uma música que escapara da servidão" e, por outro, "no gesto
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afirmativo da reexposição (de seus) mais extensos movimentos de sinfonias, um repressivo e autoritário senhor. C'est ainsi'' Além disso, Adorno faz um paralelo entre a identidade do estático e do dinâmico que proclamam estas reexposições — sobretudo a parte inicial delas — e a "situação histórica de uma classe (a burguesia) em vias de dissolver a ordem estática, mas nem por isso, por medo de ver-se ela mesmo dissolvida, capaz de entregar-se à dinâmica que lhe é própria". O paralelo é interessante e historicamente convincente, principalmente quando se consideram os avatares pelos quais passou a forma sonata no século XIX. Havia sido um organismo vivo e tendeu a tornar-se um exercício de escola. Ou então teve seus contornos atenuados. Houve, é claro, démarches heróicas, propensas, como a de Bruckner, a levá-la mais à frente, ou, como a de Schubert, a repensá-la em suas relações com o desenrolar do tempo; ou ainda, como a de Liszt (Sonata em si menor), a voltar-lhe as costas, pelo menos na aparência. Por fim, nos primeiros anos do século XX, a sorte estava lançada. Os grandes inventores de formas concorreriam para a liquidação da "sonata", mesmo (e principalmente) quando conseguiram magnificar-lhe o espírito. Significativo é o caso da extraordinária Sexta Sinfonia em lá menorete Mahler (1904), que tanto foi a apoteose da "forma sonata" no que ela então tinha de normativo, quanto representou, pela mensagem que encerra, seu monumental enterro e o de tudo o que acompanhara.
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JOSEPH HAYDN (1732-1809)
Nascido em 31 de março de 1732 em Rohrau, pequena aldeia na fronteira da Áustria com a Hungria, Franz Joseph Haydn, não fosse pelas duas viagens que fez a Londres, teria passado toda a sua vida entre Viena e a região do lugarejo onde nasceu. Foi o décimo de doze filhos — dos quais sobreviveram apenas seis — do fabricante de carroças Mathias Haydn e de Anna Maria KoUer que, em solteira, trabalhara como cozinheira na residência do conde Harrach, senhor feudal de Rohrau. Quando tinha seis anos, Franz Joseph Haydn foi morar em Hainburg, a cerca de doze quilômetros de Rohrau, na casa de seu tio Mathias Franck, marido de uma meia-irmã de seu pai, que lhe ensinou os rudimentos de sua futura profissão. Entre 1740 e 1749, aproximadamente, fez parte do coro infantil da catedral de Santo Estevão em Viena. Depois que sua voz mudou, foi afastado da escola dos meninos de coro dessa catedral. Dos anos que se seguiram, sabe-se pouca coisa. Deixado por sua própria conta nas ruas de Viena, ganhou a vida dando aulas e tocando violino e órgão. Por volta de 1751-1752, o autor e também ator Felix Kurz Bernardon fez-lhe a encomenda de uma partitura para a comédia intitulada O diabo coxo. Por intermédio do poeta Métastase, tornou-se, em torno de 1753, uma espécie de aprendiz do compositor Porpora, um dos maiores professores de canto que já existira. Mas, no fundo, sua formação foi a de um autodidata, graças principalmente ao Gradus ad Parnassum, o famoso tratado do compositor barroco austríaco Johann Joseph Fux (1660¬ 1741). Mais ou menos em 1757, Haydn compôs para o barão Karl Joseph von Fürnberg, que o recebera em sua residência de Weinzierl, na Baixa Áustria, seus
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primeiros quartetos para cordas (aqueles, em número de dez, atualmente conhecidos como n° 0, opus ln°l-4e 6, e opus 2n°l,2,4e 6). Havendo ingressado, por volta de 1758-1759, no serviço do conde Morzin, cuja residência de verão se localizava na Boêmia, compôs para este, entre outras coisas, suas primeiras sinfonias (quase todas em três movimentos, sem o minueto) e uma série de "divertimentos" para instrumentos de sopro. Das muitas obras pertencentes a essa década, podem ser citadas: duas missas breves (que talvez remontem à época em que, ainda bem jovem, vivia na catedral de Santo Estevão), uma Ave Regina e uma Salve Regina (reflexos dos estudos com Porpora), sonatas para cravo, concertos para órgão e divertimentos para conjuntos de instrumentos diversos. Em 26 de novembro de 1760, Haydn casou-se, em Viena, com a filha de um cabeleireiro fabricante de perucas. Havendo os reversos da fortuna obrigado o conde Morzin a dispensar sua orquestra, em I de maio de 1761 Haydn assinou com o príncipe Paul Anton Esterhazy, um dos mais ricos senhores da Hungria, um contrato — freqüentemente citado por retratar exemplarmente a condição do músico no Antigo Regime —, pelo qual, na qualidade de segundo mestre de capela, ficaria responsável por toda a música do príncipe, com exceção da música de caráter religioso, reservada em princípio ao mestre de capela Gregorius Werner (1693-1766). Haydn que, após a morte de Werner haveria de sucedê-lo no cargo, permaneceu ligado à família Esterhazy até a morte, servindo a quatro gerações de príncipes, em condições, é verdade, sempre diversas. Fora de Viena, a residência principal do príncipe Paul Anton (morto em 1762) era Eisenstadt (em húngaro, Kismarton), que naquele tempo se situava no oeste da Hungria e hoje é capital da província austríaca de Burgenland. O sucessor de Paul Anton foi seu irmão Nicolas, morto em 1790, a serviço do qual Haydn esteve por 28 anos. Não iria demorar muito para que Nicolas recebesse o epíteto de Nicolas, o Magnífico. O castelo de Eisenstadt logo lhe pareceu acanhado demais, e ele mandou construir um outro castelo, esplêndido, que chegou a ser comparado a Versailles, na planície húngara no extremo sul do lago Neusiedl. A partir de 1766, o novo castelo passou a ser chamado de Eszterhaza. Haydn e seus músicos lá se instalaram definitivamente em 1769. Mas Eszterhaza só foi dado como realmente concluído em 1784, com a inauguração da cascata em frente à construção central. o
Durante mais de vinte anos, concertos, espetáculos de ópera e teatro (Haydn teve ocasião de ver representadas diversas peças de Shakespeare), além de grandes festas e espetáculos de fogos de artifício, sucederam-se ininterruptamente no castelo de Eszterhaza, sobretudo no verão, pois normalmente o príncipe e seu séquito passavam as semanas de inverno em Viena. A saison de 1778, apenas para se ter uma idéia, durou de 23 de janeiro a 22 de dezembro, com a realização de 242 espetáculos. Dos grandes festejos organizados em Eszterhaza, é obrigatório citar os de julho de 1772 em honra do cardeal de Rohan, embaixador da França em Viena,
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os de setembro de 1773 em honra da imperatriz Maria Teresa e os de agosto de 1775 em homenagem ao arquiduque Ferdinando, terceiro filho da imperatriz. Durante os primeiros anos vividos com os Esterhazy, Haydn obteve grande sucesso como compositor, sobretudo no domínio da sinfonia, para a qual fixou, não sem hesitações, a forma que acabaria por prevalecer: primeiro movimento rápido (com ou sem introdução lenta); segundo movimento lento; terceiro movimento no estilo dançante (minueto); quarto movimento rápido. A partir de 1761, Haydn já se revela magistral na composição de sinfonias: suas Sinfonias n° 6 {Manha), n° 7 (Meio-dia) e n° 8 (Entardecer) são brilhantes sínteses do barroco e do classicismo. Nas sinfonias seguintes, toma as mais diferentes orientações: os finali fugados das Sinfonias n" 13 e n" 40 (1763), a melodia de coral da Sinfonia n" 22 (O filósofo, 1764), as reminiscências balcânicas na Sinfonia n" 28 e na Sinfonia n° 29 (1765), os instrumentos solistas que aparecem nas n° 13 e n" 24 (1764), e sobretudo a Sinfonia n" 31, que compôs em 1765. Para que seus músicos solistas também pudessem brilhar, Haydn escreveu muitos dos seus concertos nessa época. Além das inevitáveis partituras de circunstância, ele ainda compôs a opera seria intitulada Alcide (1762) e o primeiro Te Deum (ca. 1763-1764). Por volta de 1766, a produção de Haydn tornou-se mais profunda e diversificada. Em oito anos (mais ou menos até 1773-1774), escreveu aproximadamente 25 sinfonias, algumas das quais consideradas entre suas obras mais geniais: a Sinfonia n° 49 em fá menor (A paixão, 1768), a Sinfonia n° 44 em mi menor (Fúnebre, ca. 1771), a Sinfonia n° 45 emfá sustenido menor (Les Adieux, 1772), a Sinfonia n" 48 em dó (Maria Teresa, ca. 1769), a Sinfonia n" 56 em dó (1774) e a Sinfonia n° 64 em lá (ca. 1773). Haydn preocupou-se mais com a estrutura interna dos movimentos do que com a natureza externa destes e, numa época de "crise romântica" (Sturm und Drang), não deixou também de cultivar um tom bastante subjetivo: em toda sua vida, nunca escreveu tantas obras em tons menores como nessa fase. Pertencem a esse período três séries de seis quartetos para cordas (opus 9,1769-1770; opus 17,1771; opus 20,1772), bem como belas sonatas para piano, como a Sonata n° 30 em ré (1767), a Sonata n° 31 em lá bemol (ca. 1768) e a n" 33 em dó menor (1771). E ainda música sacra: Stab at Mater (1767), Salve Regina em sol menor (1771) e quatro missas, entre outras obras. Algumas das óperas de Haydn como La canterina do gênero intermezzo bufo (1766), Lo speziale, do gênero bufo (1768), Le pescatrici, em que se mesclam os gêneros bufo e sério (1769) e a opera buffa LTnfedeltà delusa [A infidefidade desiludida, 1773], são igualmente desse período. Por muito tempo, a vida de Haydn em Eszterhaza confunde-se com a história de suas obras e de suas múltiplas tarefas artísticas e administrativas. Sob suas ordens, havia um numeroso grupo de cantores e instrumentistas de grande talento, mas às vezes turbulento e indisciplinado. Petições, disputas, requerimentos e casos litigiosos eram moeda corrente, com Haydn quase sempre servindo de intermediário entre o interessado (ou interessados) e o príncipe. Um exemplo que reflete
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bem essa situação é o famoso episodio da sinfonia Les Adieux (novembro de 1772), no fim da qual os músicos vão, um a um, retirando-se da orquestra: segundo consta, a sinfonia teria sido escrita dessa forma para protestar contra uma saison que nunca terminava. Ao que parece, esse episódio foi apenas mais um incidente entre outros tantos. Até mais ou menos 1775, ignoramos tudo da vida particular de Haydn e de suas relações com o exterior. Foi certamente sem seu conhecimento que começaram a aparecer em Paris, no ano de 1764, suas primeiras obras impressas. Em 1768, sua casa de Eisenstadt pegou fogo. Nesse mesmo ano, Haydn enviou ao mosteiro de Zwittl, na Baixa Áustria, sua Cantata Applausus, acompanhada de uma carta preciosa pelas indicações nela contidas sobre a execução de obras musicais do século XVIII. Em 1770, dirigiu em Viena a ópera Lo speziale e, em 1771, seu Stabat Mater. Nos dias 2 e 4 de abril de 1775, sob sua direção, foi apresentado na capital o oratório II ritorno di Tobia [O retorno de Tobias]. Em 1775, inaugurou-se um período de sete a oito anos durante o qual Haydn, sem abandonar a sinfonia, dedicou-se principalmente à ópera. Dessa época datam: L'Incontro improwiso [O encontro inesperado, 1775], II mondo delia luna [O mundo da lua, 1777], La vera costanza [A verdadeira constância, 1778-1779], L'Isola disabitata [A ilha desabitada, 1779], Lafedeltà premiata [Afidelidadepremiada, 1780-1781], Orlando paladino [Orlando, o paladino, 1782] e Armida (1783-1784). A ópera é um dos raros gêneros em que Haydn não se realizou plenamente. É preciso observar, no entanto, que todas as óperas que Haydn compôs para Eszterhaza são anteriores a Le nozze di Figaro [As bodas de Fígaro, 1786] de Mozart, a primeira obra-prima absoluta do "classicismo" vienense originária da opera buffa italiana. Contudo, nada existe na produção dos outros compositores da época que tanto permita antever as futuras grandes óperas de Mozart quanto La vera costanza, Lafedeltà premiata ou Orlando paladino, de Haydn, principalmente no que diz respeito ao uso da orquestra e aos grandiosos finali de ato dessas obras. Haydn, que em 1787 recusou a encomenda de uma ópera para Praga, mostrou-se surpreso por não terem dado preferência a Mozart, mas estava certo quando, a propósito de La fedeltà premiata, escreveu em 1781 ao seu editor vienense Artaria: "Asseguro-lhe que nem em Paris, nem em Viena, seguramente, já se ouviu música semelhante a esta. Minha infelicidade está em viver no campo." Nesse mesmo ano de 1781, foram escritos, "de uma maneira inteiramente nova e particular", os seis quartetos para cordas opus 33, os primeiros que se seguiram àqueles que haviam sido compostos nove anos antes. Resta ainda assinalar, além da Sinfonia n" 70 (1778-1789), com seufinaleem forma de tríplice fuga, e da Sinfonia n" 77 (1782), a monumental Missa de Mariazell (1782) que, junto com a Missa brevis Sancti Joannis de Deo {ca. 1777), é uma das raras partituras religiosas que Haydn escreveu nessa época de sua vida. Haydn vivia queixando-se de viver isolado em Eszterhaza e de não poder estar em Viena tanto quanto gostaria, mas reconhece que, pelo menos durante certo
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período de sua vida, essa situação tinha suas vantagens: "À frente de uma orquestra, eu podia... me permitir todas as ousadias. Excluído do mundo, eu não tinha quem me importunasse, e assim não tive outro jeito senão tornar-me original." O ano de 1779 representou uma reviravolta na vida de Haydn. Em janeiro, ele assinou com o príncipe um novo contrato destinado a substituir o de 1761 e do qual foram retiradas quase todas as humilhantes cláusulas do anterior. Meses depois, Haydn fez os primeiros contatos com o editor vienense Artaria, que acabara de se estabelecer naquele ramo de negócios. Em dezembro, chegou a Eszterhaza a cantora Luigia Polzelli, o que, por pouco que fosse, consolou Haydn de seu infeliz casamento. Também durante esse tempo, Nicolas, o Magnífico, encantou-se com a ópera italiana, paixão que logo veio a substituir a que nutrira pelo seu instrumento barítono. Haydn se viu obrigado a trabalhar ativamente nessa área, regendo e encenando não somente suas óperas, mas também as de outros compositores como Anfossi, Gazzaniga, Paisiello, Cimarosa, Sarti, Traetta, Piccinni, etc. Só que Haydn não se limitou a ensaiá-las e dirigi-las, mas tratou de as rever do ponto de vista musical, chegando mesmo, como era costume na época, a substituir determinadas árias por outras de sua autoria. Entre 1780 e 1790, ocupou-se de 96 diferentes óperas, das quais dezessete só no ano de 1786, o que levando-se em conta as reprises, dá um total de 1.026 representações, das quais 125 só em 1786! É espantoso como, com todo esse trabalho, ainda tenha encontrado tempo para compor. Na verdade, parece que pouco a pouco Haydn foi conseguindo dividir em compartimentos estanques suas atividades de mestre de capela e de compositor. Durante os últimos anos em Eszterhaza, praticamente nada compôs para o príncipe, pois a quase totalidade de sua produção era destinada ao mundo exterior: Viena, Paris, Londres, Madri. Esta produção tornou-se de novo essencialmente instrumental a partir de 1785. Haydn não só enviava as obras para o exterior, como também recebia encomendas de fora. Estão neste caso as seis sinfonias, ditas Parisienses, n°82 a 87, compostas em 1785 e 1786 a pedido do Concert de la Loge Olympique, de Paris, e a partitura instrumental de Die Sieben letzten Worte des Erlõsers am Kreuze [As sete últimas palavras do Salvador na cruz], escrita no inverno de 1786-1787, por encomenda de um cônego de Cádiz. Estas obras, somadas aos dezenove Quartetos para cordas opus 42 (1785), opus 50 (1787), opus 54-55 (1788) e opus 64 (1790), aos doze Trios para piano, violino e violoncelo, às Sonatas para piano n° 58 (1789) e n" 59 (1789-1790) e às sinfonias, compostas depois das Parisienses, de n° 88 a 92, dentre as quais está a Sinfonia Oxford n° 92 (1789), assinalam, reunidas às obras de Mozart da mesma época, o primeiro apogeu do estilo "clássico" vienense. O isolamento de Haydn em Eszterhaza ficava ainda mais insuportável na medida em que as pessoas que lhe eram caras residiam em Viena. Uma delas era Mozart, com quem estabeleceu, no final do ano de 1784, uma relação de amizade e estima recíproca, rara na história da música. Outra de suas amizades era Ma-
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riarrna von Genzinger, mulher de um médico da capital. As cartas que escreveu de Eszterhaza para essa senhora em 1789 e em 1790 estão entre os documentos mais pessoais sobre a vida de Haydn que chegaram até nós. A morte de Nicolas, o Magnífico, em 28 de setembro de 1790 veio pôr fim a esta situação. O filho e sucessor do príncipe, Paul Anton, herdara-lhe o título e os bens, mas não o amor pela música. Haydn continuou com sua pensão e o cargo de mestre de capela, só que nada lhe era pedido. Dessa forma, pôde aceitar a oferta do empresário londrino Johann Peter Salomon (1745-1815): trezentasfibraspor ópera composta, trezentas para escrever seis novas sinfonias, duzentas por sua participação em vinte concertos e duzentas como garantia de um concerto em benefício próprio, com a condição, é claro, de que Haydn fosse a Londres. Em 15 de dezembro de 1790, com 58 anos, o compositor deixou seu país pela primeira vez. Ficou em Londres — onde há uns dez anos sua vinda era aguardada — de janeiro de 1791 até o começo de julho de 1792, e foi nessa cidade que, em dezembro de 1791, tomou conhecimento da morte de Mozart, uma notícia em que de início não pôde acreditar. Nessa mesma ocasião, o Professional Concert, organização rival da empresa de Salomon, tentou usar um antigo aluno de Haydn — Ignaz Pleyel — para fazer-lhe oposição. A estada de Haydn em Londres, no entanto, foi um triunfo artístico e pessoal, tanto mais notável quanto a vida que ele teve em Londres era inteiramente diferente da que até então levara em Eszterhaza e mesmo em Viena. Depois de trinta anos de uma existência quase reclusa, Haydn ia de recepção em recepção, enchendo de entusiasmo salas anônimas e ruidosas. Em julho de 1791, viu-se agraciado pela universidade de Oxford com o título de doutor honoris causa. Foi recebido pela família real. A imprensa descrevia em detalhes seus concertos. Todos estes acontecimentos, bem como grande quantidade de anedotas, estão por ele relatados de maneira pitoresca não só em muitas de suas cartas a Luigia Polzelli e a Marianna von Genzinger, como também em cadernos manuscritos que, afortunadamente, foram conservados quase intactos. Durante essa primeira estadia na Inglaterra, as principais composições de Haydn foram a ópera Orfeo ed Euridice [Orfeu e Eurídice, 1791], no gênero opera seria, e as seis primeiras Sinfonias de Londres (n° 93 a 98), entre as quais a que é denominada Surpresa (n°94). Quando retornava à Áustria, durante uma parada em Bad Godesberg, Haydn foi apresentado ao jovem Beethoven. Em novembro de 1792, voltaria a encontrálo em Viena, dessa vez para dar-lhe lições durante um ano, por sinal bem mais proveitosas do que costuma admitir a lenda formada em tomo do assunto. É verdade que Haydn, no caso de Beethoven, negligenciou um pouco os exercícios de contraponto, mas o que importa é que colocou o compositor alemão em contato com o gênio criador. Do próprio punho de Beethoven, existem duas cópias de uma parte do finale da Sinfonia n" 99, que Haydn compunha em 1793 com vistas a nova viagem a Londres. Além disso, o Trio opus 1 n° 3, em dó menor (1794-
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1795), que Beethoven compôs na ausência de Haydn, inspira-se evidentemente numa das Sinfonias de Londres, a de n" 95, escrita na mesma tonalidade. Muito provavelmente, as aulas que Haydn deu a Beethoven não ficaram limitadas a meras questões de escrita musical, mas abordaram também a "composição" propriamente dita. No curso de sua segunda estada em Londres, que se prolongou de fevereiro de 1794 a agosto de 1795, as principais obras que Haydn fez executar foram: as seis últimas Sinfonias de Londres (n° 99 a n° 104), que incluem a Sinfonia Militar (n° 100), O relógio (n° 101), O rufo dos tímpanos {n° 103), bem como a Sinfonia Londres (n° 104), suas derradeiras composições neste gênero; os Quartetos para cordas do opus 71 ao opus 74, escritos na Áustria depois de 1793; as três últimas Sonatas para piano n° 60, 61 e 62; grandes Trios para piano, violino e violoncelo e obras vocais, entre elas as canzonets com letra em inglês e a ária de concerto Berenice chefai? [Berenice, que fazes?, 1795]. Fausto, virtuosismo e profundidade caracterizam esta produção bastante diversificada. Além disso, sob o signo de suas duas viagens a Londres, Haydn aliou à serenidade grave dos últimos anos de Eszterhaza achados de originalidade e uma veia inovadora e experimental que lembra seus tempos de juventude. Todas as Sinfonias de Londres são obras-primas, embora as duas mais conhecidas, a Surpresa e a Militar, tenham sido decerto superadas pelas de n" 98 e 99, mas sobretudo pelas três últimas — n° 102, 103 e 104 —, criadas em 1795. Àqueles que dizem ser a Primeira Sinfonia de Beethoven a mais haydniana de todas, elas mostram a que ponto estão confundindo a estrutura interna com as simples dimensões exteriores de uma obra. A verdadeira descendência das Sinfonias de Londres deve ser procurada na Sinfonia Heróica (1804). Em seu retorno definitivo à Áustria, Haydn já era unanimemente considerado, mesmo em seu país, como o maior compositor vivo. A partir de então, um dos problemas de Beethoven foi o de superá-lo nesta posição, e as dificuldades que opuseram Haydn e Beethoven devem-se em grande medida ao fato de que Beethoven somente começou a ombrear com Haydn quando este deixou de compor, ou seja, depois de 1803, justamente a partir da Sinfonia Heróica. Morto Paul Anton Esterhazy, o quarto príncipe Esterhazy que Haydn teve como patrão, Nicolas II resolveu reconstruir a capela do avô Nicolas, o Magnífico. Haydn retomou a direção da capela, mas suas obrigações eram bem mais leves do que no passado. Agora, ficava em Eisenstadt só dois ou três meses durante o verão — isto até 1803, ano em que cessariam definitivamente suas atividades — e o resto do tempo em Viena. As encomendas de Nicolas II resumiam-se em uma missa por ano, para comemorar o aniversário de sua esposa. De 1796 a 1802, Haydn compôs ao todo seis missas: Heiligmesse (1796), Missa in tempore belli (1796), Missa in angustiis ou Nelsonmesse (1798), Theresienemesse (1799), Schópfungmesse [Missa da criação, 1801], Harmoniemesse (1802). De resto, podia compor o que bem entendesse; são, por exemplo, dessa época o Concerto para trómpete (1796), a versão vocal das Die Sie-
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ben letzten worte des Erlõsers am Kreuze (1796), o hino austríaco Gott, erhalte Franz den Kaiser (1797), os Quartetos para cordas opus 76 (1797), opus 77 (1799) e opus 103 (1803, inacabado). São igualmente dessa ocasião os dois magníficos oratórios em língua alemã que iriam renovar completamente o gênero: Die Schõpfung [A Criação, 1798] e Die Jahreszeiten [As estações, 1801], ambos baseados em libretos do barão Gottfried von Swieten. Durante todos esses anos, Haydn foi figura destacada da sociedade vienense. Estava constantemente dirigindo suas obras, tanto em recintos públicos como particulares, e muitas vezes participou, ao lado de Beethoven, dos mesmos concertos — o último em que os dois apareceram juntos foi em 30 de janeiro de 1801. Os nove quartetos para cordas compostos entre 1797 e 1803 revelam-se ainda mais inovadores se comparados com as últimas Sinfonias de Londres: finali em tons menores em obras de tonalidade maior (opus 76 n° 1 e 3), substituição do minueto por verdadeiros scherzos (opus 76n°le opus 77n"le 2), ousadias tonais, harmônicas, polifónicas e rítmicas até então nunca ouvidas, como as que se encontram no Quarteto opus 76 n° 6 ou no Quarteto opus 77 n° 2. Pode-se dizer que tais páginas desafiam os critérios habituais de análise, pois tratam um material do século XVIII à maneira do século XX. As seis missas e-principalmente os dois oratórios são a contrapartida haydniana das grandes óperas de Mozart. O sinfonista manifesta-se pela importância conferida à orquestra e pela ausência de estereótipos formais. Não se trata, nessas obras, de episódios que se sucedem frouxamente ligados, mas de sólidas arquiteturas cuja vitalidade em nada diminui o alcance espiritual. Se Die Jahreszeiten, uma seqüência de quatro brilhantes cantatas, sugerem sobretudo o primeiro romantismo — o de Weber e o de Der Fliegende Hollander [O navio fantasma] de Wagner —, constiüiindo uma espécie de síntese de meio século da produção haydniana, é o próprio Tristan und Isolde [Tristão e Isolda] que o prelúdio de Die Schõpfung prenuncia: uma performance que se mostra tanto mais vertiginosa quando se sabe que ela emana de um gênio (que, no início da carreira, era tido como apenas mais um entre outros tantos obscuros compositores austríacos do século XVIII) e que, para além de seu lado visionário, esta poderosa representação do caos original inscreve-se com toda a coerência no pensamento musical de Haydn. No fim de 1803, o estado de saúde de Haydn o impediu subitamente de desenvolver qualquer atividade criadora, embora fosse ainda assaltado por novas idéias, que já não conseguia mais ordenar. Um terceiro oratório em alemão, O Juízo Final ficou só em projeto. Desde então, Haydn praticamente não deixou mais sua casa de Gumpendorf, um bairro de Viena, que acabou por transformar-se num lugar de peregrinação. Entre os freqüentadores mais assíduos da casa de Haydn nesse período citam-se seus biógrafos Dies e Griesinger, Constanze Mozart e seu filho mais velho, Weber e Cherubini. Em maio de 1808, Haydn lá recebeu toda a capela Esterhazy, que foi visitá-lo por ocasião de um concerto que viera realizar em Viena
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Joseph Haydn
sob a direção do maestro Johann Nepomuk Hummel (1778-1837). A última aparição em público de Haydn se deu em 27 de março de 1808, por ocasião de uma memorável execução de Die Schõpfung regida por Antonio Salieri (1750-1825), à saída da qual Beethoven beijou-lhe publicamente as mãos. Haydn morreu em sua casa de Gumpendorf no dia 31 de maio de 1809, poucos dias depois da segunda ocupação de Viena por Napoleão, acontecimento que, segundo parece, não deixou de lhe apressar o fim. Pelo biógrafo Griesinger,ficamossabendo que Haydn era "de estatura pequena, mas robusto e sólido na aparência; tinha a fronte larga, abaulada, pele morena, olhar vivo e altivo, traços fortes e bem definidos, sua fisionomia e comportamento refletiam prudência e calma gravidade". Já o diplomata sueco Fredrick Samuel Silverstolpe, que serviu em Viena de 1796 a 1803, descobriu em Haydn, por assim dizer, duas fisionomias. U m a , quando ele falava de coisas elevadas, era penetrante e séria; bastava a palavra sublime para que seus sentimentos aflorassem de maneira bem visível. Instantes depois, este estado de espírito cedia lugar ao seu habitual humor e ele voltava a ser jovial, com u m a satisfação que literalmente estampavase em seus traços
fisionômicos
e sempre desembocava numa atitude brincalhona. Esta
fisionomia era mais comum, a outra precisava ser estimulada.
Haydn não criou o quarteto para cordas e muito menos a sinfonia, mas foi o primeiro a conceder-lhes os foros de nobreza e a levar estes dois gêneros ao seu mais alto nível. Também foi o primeiro a usar genialmente a "forma sonata" e a explorar-lhe, com recursos inesgotáveis, todas as suas virtualidades dialéticas, tanto no plano do trabalho temático como no das relações tonais. Com isso, ensinou uma nova maneira de pensar em música. Neste sentido, Beethoven foi não só o maior, mas também seu único discípulo. Haydn, ao lado de Mozart e Beethoven, estes mais jovens que ele, formam o que se costuma chamar, certa ou erradamente, a "trindade clássica vienense". Dos três, foi ele o único que conheceu pessoalmente os outros dois. Ao seu pensamento rápido, concentrado, que procede por elipses, síntese extraordinária de contração e de expansão, de essência épica, Haydn deve o sucesso que alcançou no quarteto para cordas, na sinfonia, no oratório. Para chegar até Haydn, o único meio possível é através da música. Não nos podemos apoiar em temas ou personagens de ópera, como no caso de Mozart, Wagner ou Verdi, nem tampouco nos valer de uma exegese ou de uma simbólica bíblica, como para com Schütz ou Bach, isto para não falar nas biografias romanceadas de que foram vítimas Beethoven e tantos outros românticos. Não porque a vida deste grande artesão tenha deixado de influir sobre sua obra: seria preciso falar com minúcia de sua capacidade de observação, de sua tenacidade, de seu orgulho, de sua causticidade e, depois de tudo considerado, de sua solidão. De qualquer modo, para captar a personalidade de Haydn, bem mais significativa do que as lendas que correm é a descrição da primeira audição de Die Schõpfung (30 de abril de 1798),
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e principalmente da famosa passagem E fez-se a luz, feita por ES. Silverstolpe quarenta anos depois de a ela ter assistido: Parece que ainda hoje vejo seu rosto no momento em que a orquestra emite aqueles primeiros sinais luminosos. Haydn tinha o jeito de u m a pessoa prestes a morder os lábios, fosse para conter sua preocupação, fosse para dissimular u m segredo. E no instante preciso em que, pela primeira vez, aquela luz brilhou, tudo se passou como se os raios dela tivessem sido lançados dos olhos ardentes do artista.
Haydn teve dois irmãos músicos. Johann Michael (Rohrau, 1737 - Salzburgo, 1806), compositor, ocupou um posto em Grosswardein na Hungria de 1757 a 1762 e, a partir de 1763, em Salzburgo, onde conheceu Mozart. Tornou-se famoso, em sua época, sobretudo pelas obras religiosas que compôs. Escreveu também belas páginas instrumentais, entre as quais quintetos para cordas e 43 sinfonias. Dos compositores que, nesse período, se moviam na órbita de Viena, só foi inferior a seu irmão Joseph e a Mozart. Por sinal, era dono de um estilo que o aproxima mais do segundo que do primeiro. Johann Evangelist (Rohrau, 1743 - Eisenstadt, 1805) passou toda sua vida de músico, como tenor, na corte dos Esterhazy, pois Joseph Haydn, após a morte do pai de ambos, chamou esse irmão para ir viver junto dele.
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WOLFGANG AMADEUS MOZART (1756-1791)
Wolfgang Mozart (Johannes Chrysostomus Wolfgang Gottlieb) nasceu em Salzburgo em 27 de janeiro de 1756, ano em que começou a Guerra dos Sete Anos. Leopold Mozart, seu pai, natural de Augsburg, cidade livre do Sacro Império, era um violinista bem dotado e compositor de certo talento, autor de um método de estudo de violino que muito justamente lhe rendeu reputação de pedagogo; ocupava o posto de vice-Kapellmeister da corte de Salzburgo. Arma Maria Peril, sua mãe, nascida em Wolfgangsee, perto de Salzburgo, era filha de um funcionário da mesma corte. Salzburgo e seu território só foram reunidos à Áustria no tempo de Napoleão. Até então, como seus confrades de Colônia, Trier e Mainz, o príncipe-arcebispo de Salzburgo era soberano em seus domínios e ligado ao Círculo da Baviera na organização administrativa do Sacro Império. Dividido entre o pai, vindo da Suábia (Schwaben), e a mãe, nativa de Salzburgo, como ele próprio, Mozart nunca se disse austríaco, mas alemão. Salzburgo era uma pequena cidade de província (10 mil habitantes) que teve a sorte de localizar-se numa das rotas em que se entrecruzavam trajetos germânicos e italianos. Pôde, com isso, receber influências dos dois lados. Com suas fanrílias nobres, seus grandes burgueses, seus pequenos funcionários e seus artesãos, vivia totalmente centrada em torno do príncipe-arcebispo e de sua corte. Um bom músico, como Leopold, e outro que beirava a genialidade, como Michael Haydn (irmão de Joseph), lá não passavam de empregados domésticos. Talvez o príncipe os considerasse pouco mais que os outros, mas suas pretensões só serviam para ener-
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vá-lo, e ele decerto não esquecia de lembrar sua condição caso levantassem demais os olhos. Dessas coisas o pequeno Wolfgang não se dava ainda conta nos primeiros anos de sua infância, que começou como um conto de fadas. Era um lindo menino, deliciosamente emotivo e terno, em quem uma docilidade sempre atenta aliava-se a uma natural espontaneidade. Queria aprender tudo (como, por exemplo, matemática) e gostava de contar para si próprio histórias saídas de sua fervilhante imaginação. O pequeno Wolfgang cresceu no seio de uma família unida e amorosa: brincava com Nannerl, a irmã, pouco mais velha e muito musical, e tinha como professor o notável pedagogo que era seu pai. E então veio o milagre: com seis anos apenas, a encantadora criança revelou-se, sem a menor sombra de dúvida, um músico superdotado. E não somente por tocar cravo de forma exímia e compor promissoras pecinhas de música, mas sobretudo como alguém que entende como se processa a música e do que ela se nutre, que assimila suas técnicas e vive inteiramente imerso nela. Em todo caso, a família prestou mais atenção no precoce virtuose que no embrião de gênio. Como não poderia Leopold ter vontade de mostrar ao mundo aquele aluno fora de série, seu próprio filho, e como poderia o arcebispo não conceder autorização para as turnês daquele garoto que, sem dúvida, dentro de algum tempo, seria uma glória para sua corte? Dali por diante, durante anos, suceder-se-iam as viagens do menino prodígio, sempre vigiado de perto pelo pai. Salzburgo ficará como um porto seguro onde, entre um sucesso e outro, eles vêm refazer as forças. 1762-1768: Munique, Viena, Bruxelas, Paris, Londres, Haia, Paris, Zurique, Viena, as cortes e os soberanos, os diletantes e os curiosos maravilhavam-se diante do pequeno milagre. Para que mais patente ficasse o virtuosismo de Wolfgang, faziam-no executar proezas do tipo das que se exige de um cachorro amestrado, como tocar por cima de um pano que cobria o teclado. Era afagado e recompensado (às vezes em espécie, mas quase sempre acabava recebendo anéis ou relógios dificilmente vendáveis); sentado no colo de arquiduquesas e príncipes, causava admiração que houvesse conservado sua natural simplicidade. Menos pitorescas, embora bem mais proveitosas para a obra futura, foram as relações travadas com compositores de nome nas grandes cidades européias: jamais um músico recebeu aprendizado tão rico e tão diversificado. Entre os muitos encontros, dois iriam marcar por muito tempo o estilo mozartiano: Schobert e Johann Christian Bach. E já então se fazia a primeira colheita das obras de Mozart: dezesseis sonatas para violino e cravo, onze sinfonias e obras diversas, bem como a primeira opera buffa em 1768 (Ia finta semplice) e o primeiro Singspiel {Bastien und Bastienne). Ao avaliarmos hoje as obras da infância de Mozart, é difícil evitar que sobre elas se reflitam os esplendores da maturidade; no entanto, através do domínio quase inato da linguagem, já se entrevêem inflexões pessoais que não se podem minimizar, ainda que se ignorasse o futuro.
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Durante todo o ano de 1769, Leopold e Wolfgang permaneceram em Salzburgo: o adolescente de treze anos foi nomeado Konzertmeister (o que, de certo modo, equivale à figura do primeiro violino) do arcebispo. Onze anos se passaram sem que Wolfgang melhorasse de posição. Mas, de 1770 ao mês de março de 1773, o jovem Mozart fez três viagens à Itália, com estadas mais longas principalmente em Verona, Florença, Nápoles, Bolonha, Veneza e Milão. E tome soberanos: o papa nomeou-o cavaleiro da Espora de Ouro; em Bolonha, o padre Martini, ilustre erudito, iniciou-o na ciência do velho e severo estilo e fez com que Mozart fosse aceito como membro da Academia Filarmônica: tinha Mozart, então, quatorze anos, e esta foi a última alta distinção que recebeu na vida. Mas, nessas viagens, recebeu da música e da vida italianas muito mais que lições de contraponto: bufonada e travestimento de máscaras, densa concisão e nitidez flexível do contorno melódico, brio de uma vivacidade jamais sobrecarregada ou empastelada, tudo enfim que ele trazia já intimamente guardado consigo liberou-se das docilidades da infância. O maior ensinamento que Mozart recebeu da Itália foi a revelação de si mesmo, tanto assim que italianizou o último de seus prenomes, Gottlieb (em latim, Theophflus), para Amadeo ou Amadeus. As novas obras que então compôs estão bem de acordo com esta descoberta: sinfonias, música de câmara, uma primeira opera seria, Mithridate (1770), que vale como uma adesão sua ao virtuosismo vocal, um oratório intitulado Betulia liberata [Betúlia libertada], que compôs em 1771 em Salzburgo entre uma viagem e outra, uma obra de celebração, Ascanio in Alba [Ascânio em Alba], outra opera seria bem mais pessoal, Lucio Silla ( 1772), aliás tão mais pessoal que obteve sucesso apenas relativo! Março de 1773 - setembro de 1777: só o horizonte de Salzburgo abria-se para o jovem que havia percorrido toda a Europa. E um horizonte que se descortinava ainda mais estreito com a ascensão do novo príncipe-arcebispo, Hieronymus Colloredo, déspota com certas tintas progressistas, obcecado pela música italiana e decidido a pôr na linha os Mozart — pai e filho —, que julgava arrogantes e vagabundos demais. A esta nova opressão, Wolfgang respondeu inicialmente com uma superabundância de criações (estimulado, diga-se de passagem, por uma curta escapada até Viena, no verão de 1773, onde deu a contrapartida aos Quartetos "do Sol", de Haydn, com os seus seis Quartetos vienenses): o seu primeiro verdadeiro Concerto para piano, o primeiro Quinteto para cordas, três sinfonias, uma das quais {K 183) é a primeira das duas sinfonias que escreveu em sol menor, uma partitura para o drama de Thamos, em que já se pronuncia Die Zauberflõte [A flauta mágica] — enfim, uma coleção de obras que marcam verdadeiramente o início da primeira maturidade mozartiana e onde se nota uma acentuação e uma mobilidade novas na expressão dos estados da alma, atingindo, por vezes, o trágico em toda sua violência. Mozart inteiro já está aqui — ele, de quem a lenda quis fazer um pássaro e cujo elemento profundo é muito mais o fogo que o ar — com seu agudo sentido dramático, sua aspiração febril e sua arte personalíssima na manei-
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ra de combinar os dados rítmicos e melódicos. Uma voz que, daqui para diante, nunca mais se parecerá a qualquer outra. Essa é a hora em que Goethe escreve seu Werther, seu Prometeu e sua primeira versão do Fausto; Burger sua Leonora; Lessing sua Emilia Galotti. A hora do Sturm und Drang, cuja manifestação musical foi abordada por Marc Vignal em parte anterior deste livro. Varios motivadores aqui concorrem: a ascensão na Europa, a partir de Rousseau, do pré-romantismo (promoção do indivíduo, reivindicação da liberdade no plano da sensibilidade, da imaginação e da originalidade, contestação da ordem social e de suas convenções); a tomada de consciência de um mal especificamente germânico (aspiração à unidade e à liberdade de expressão em uma nação aprisionada por mil pequenos Estados e mil tiranias tão mesquinhas quanto locais); a situação asfixiante dos músicos germânicos dominados por seus empregadores — sujeição ainda pior do que aquela a que estavam submetidos os escritores ou pintores — e que olhavam com inveja o prestígio alcançado por alguns compatriotas expatriados (Haendel, Johann Christian Bach e, mais recentemente, Gluck). A afinidade pessoal de Mozart corn este surto renovador foi imediata. "Acho que já lhe escrevi dizendo que o pequeno Mozart está aqui"—escrevia de Nápoles o abade Gafiani a Mme. d'Épinay, em julho de 1770—"e que ele não é mais aquele milagre, embora continue sendo o mesmo milagre; de qualquer modo, ele nunca será senão um milagre, e isto é tudo." Wolfgang já não era mais o menino prodígio que maravilhara o mundo com suas proezas de virtuose superdotado; agora, como rapaz, teria de medir-se com outros compositores que conheciam em geral melhor do que ele os truques e as artimanhas do ofício, as intrigas de bastidores e as táticas da arte de seduzir. O fato de ter um original gênio de criador em nada o recomendava, nem junto às pessoas doutas, nem junto às frivolas. Agora, ele simplesmente teria de formar junto aos músicos normais, o que já constituía um handicap. Que se some a este handicap a vida de clausura do subalterno, e é isto suficiente para que um rapaz de dezessete anos se pergunte, angustiado, "quem sou eu?": "Em Salzburgo, não sei quem sou, eu sou tudo e também muitas vezes nada. Eu não peço tanto, mas tão pouco assim também não: basta-me ser somente alguma coisa. Mas que seja realmente alguma coisa!" Mozart não podia saber que, em apenas alguns anos, Sieyes formularia a mesma reivindicação em nome do Terceiro Estado francês; a comparação impõe-se para que se tenha uma idéia de um background social análogo, embora não explique o essencial. O que vem primeiro em Mozart é o sentido dramatúrgico (expresso não somente nas suas óperas, mas também nas modulações e cromatismos de sua obra instrumental), reforçado por uma acuidade psicológica, às vezes divertida, outras vezes bastante inquieta ou até cruel (do que dão testemunho tanto sua correspondência como sua música): "Eu não ia gostar nada se de repente me surgisse certa pequena frase musical de Mozart, de noite, no meio da escuridão de um bosque", dirá Reynaldo Hahn. Depois
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dos disfarces e das máscaras de Nápoles ou Veneza, foi o Sturm und Drang que fez Mozart encontrar-se consigo mesmo: esta interrogação sobre si próprio, esta frenética busca da verdadeira identidade de cada ser, jamais deixarão de persegui-lo, até em Cosi fan tutte [Assim fazem todas], até em Die Zauberflõte [A flauta mágica], até na resposta que pensou ter encontrado na espiritualidade maçômca: é essa busca que, cronologicamente, faz de Wolfgang Amadeus Mozart o primeiro dos gênios musicais de nossa modernidade mental. Contudo, há certas sinceridades cuja expressão não permanece por muito tempo impune; sem dúvida, este é o motivo por que, depois da explosão criadora que se seguiu ao retorno da Itália, como ele tinha de formar junto do comum dos músicos, Mozart preferiu conformar-se musicalmente, ou seja, jogar o jogo da "galantería". Durante mais de três anos, sem qualquer prejuízo para sua genialidade, Mozart escreveu, tanto para seu empregador como para alguns nobres benevolentes e alguns burgueses melómanos, uma profusão de peças encantadoras: missas e obras litúrgicas, concertos para violino (cinco), para fagote, para oboé, para um ou três pianos, e sobretudo aquelas serenatas, muito estimadas pela boa sociedade, que visavam ao solene divertimento de um círculo provinciano familiarmente mundano, como a deliciosa Serenata Haffner, composta para o casamento da filha do burgomestre. De imprevisto, vez por outra, um rompante agressivo, um jato impetuoso de ardor ou de inquietude, ou, mais comumente, o extravasamento de um lirismo efusivo em algum movimento lento que trai a alma que está pensando em outra coisa; no geral, contudo, a adaptação de Mozart àquele pequeno mundo parece ter sido bem-sucedida. Mozart, por sinal, pôde também encontrar no estilo "galante" mais de um traço que lhe era familiar. A amizade e o convívio com Michael Haydn fizeram com que, sob a influência deste, viesse a encontrar nessa arte galante algo de autenticamente seu: a elegância, é claro, mas animada por uma naturalidade e uma vivacidade sem limites, a poesia melódica do arabesco cantante, a predileção pelos dois gêneros musicais em que o Mozart dos últimos anos encontrará o seu tom mais inimitável — o concerto e a opera buffa. Em Munique, por ocasião de uma escapada de três meses no começo de março de 1775, Mozart fez representar La finta giardiniera [A falsa jardineira], a primeira de suas óperas bufas de que se pode dizer realmente que é genial (embora acolhida com entusiasmo apenas mediano), onde a estética do drama começa já a desmontar o convencionalismo "galante". Em 1777, Mozart compôs o concerto para piano dito Jeunehomme, uma obra-prima que assinala o nascimento do concerto moderno. Fica então claro que Mozart superara a "galantería": havia passado por ela e dela retirado o que valia a pena assimilar, para ir adiante. Chegara o tempo da ruptura. Ruptura alimentada pela maneira cada vez mais insultante com que o arcebispo tratava Mozart. "Ele" — escreveria nessa ocasião Leopold ao padre Martini — "não teve o menor pudor de afirmar que meu filho não sabe nada, que deveria ir
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o
paia. o Conservatório de Nápoles para lá aprender música." No dia I de agosto de 1777, Wolfgang enviou sua demissão a Colloredo, que, em vez de aceitá-la, pura e simplesmente devolveu-a ao seu Konzertmeister — sutileza cujas graves implicações Mozart parece não ter avaliado: por toda a parte onde fosse solicitar uma colocação, a solidariedade de casta faria com que fosse posto porta fora um músico que fora escorraçado por seu patrão. Setembro de 1777 - janeiro de 1779: Munique, Augsburg, Mannheim, Paris... volta. Dessa vez não foi o pai, mas a mãe que acompanhou o jovem de 21 anos. Uma grande viagem, desastrosa e apaixonante ao mesmo tempo. Apaixonante por ter contribuído para o enriquecimento musical de Mozart, que entrou em contato com a admirável orquestra de Mannheim, e também porque, enquanto viajava, Mozart escreveu uma série de obras, com sua inspiração finalmente livre de uma obediência servil. Entre estas, contam-se, principalmente, sonatas para piano solo e para piano e violino, além de uma Sinfonia concertante para sopros. Desastrosa para a "carreira" de Mozart, que encontrou por toda parte resistência ou (em Paris) uma mal disfarçada indiferença junto àqueles que, segundo imaginava, poderiam conseguir-lhe uma colocação. Apaixonante pelos encontros e amizades que fez, sobretudo em Mannheim, com músicos e também com intelectuais, como Orto von Gemmingen, que mais tarde reencontrou na franco-maçonaria vienense. Desastrosa porque sua mãe veio a morrer, no mês de julho, em Paris. Apaixonante e desastrosa porque, em janeiro, Mozart caiu de amores pela jovem cantora Aloysia Weber e entregou-se a esta paixão com um frescor e uma generosidade emocionantes. Em dezembro, entretanto, no caminho de volta, viu-se rejeitado pela moça, que estava no início de uma brilhante carreira e imaginava poder conseguir partido mais vantajoso. Amargamente apaixonante é ainda essa viagem pela altivez de que Mozart dá mostras: diante dos cortesãos de Munique, dos grandes burgueses de Augsburg, da alta sociedade parisiense — que ele julga com lucidez, dureza e indignação —, Mozart arma-se de todo seu justo orgulho de músico consciente de seu gênio e de homem consciente das exigências do seu coração. "Para mim é mais fácil obter todas as suas condecorações do que, para vocês, tornarem-se o que eu sou", disse a um grupo de medíocres que o rodeavam. Depois, quando pela primeira vez entrou em contato com a orquestra de Mannheim: "Aqueles que nada sabiam de mim olharam-me sem esconder seus risos; será que porque sou pequeno e jovem imaginam que não possa existir em mim nada de grande e maduro? Pois bem, logo eles vão se dar conta disso!" Dirigindo-se ao pai, escreve: "Se o senhor realmente quer escrever ao príncipe Zeil, eu ficaria muito feliz com isso. Mas nada de rastejar! Isso eu não posso agüentar." Altivez que quase sempre se faz acompanhar de profunda melancolia — "As coisas são para mim quase sempre sem rima e sem razão. Faz frio, faz calor? Nada me causa verdadeira alegria" —, mas que sobretudo se revela livre de qualquer auto-suficiência quando se trata do desejo de sempre ir
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mais adiante em sua arte: "Viver tantos anos quantos necessários forem, até nada mais poder fazer de novo na música." "Juro pela minha honra que não posso mais suportar nem Salzburgo, nem as pessoas de lá — a fala, a maneira de viver delas são insuportáveis." Onze dias depois de ter soltado este grito, Mozart estava de volta em Salzburgo, em 19 de janeiro de 1779. O príncipe-arcebispo condescendeu em reempregar aquele pobre rapaz que conhecera tropeços por toda parte, dando-lhe os mesmos cargos de antes. Novamente estava Mozart enclausurado por mais quase dois anos, num ambiente que ele assim resume: "Se eu toco ou se executam alguma composição minha é como se a mesa ou as cadeiras fossem os únicos ouvintes presentes." Neste clima, até a produção diminui, mas se condensa em algumas obras-primas, como a Missa da coroação, três sinfonias, a estranha peça Posthornserenade, que soa como um desafio, a Sinfonia concertante para violino e viola, de um lirismo doloroso no movimento lento, e um Singspiel inacabado, Zaïde, que se mostra como um prenuncio de Die Entführung aus dem Serail [O rapto do serralho]. Impossível, no entanto, para Colloredo impedir que seu doméstico atendesse a encomenda de uma ópera feita pelo eleitor da Baviera. Para Mozart, isto significou quatro meses de intenso trabalho e efervescência criadora em Munique, além do grande sucesso obtido por Idomeneo, opera seria apresentada em 25 de janeiro de 1781, composta dentro da tradição de Gluck, mas que a supera na orquestração, na expressividade e no mais pessoal dos lirismos. E foi então — enfim! — que a vida de Mozart mudou. Chamado a Viena para cortejar o novo imperador José II, depois da morte da imperatriz Maria Teresa, Colloredo ordenou que seu pessoal viesse juntar-se a ele na capital austríaca. Em 16 de março, Wolfgang chegava em Viena direto de Munique. Mais do que nunca foi tratado como lacaio, e dessa vez realmente se enfezou: "Eu não sabia que era um empregado doméstico, foi isso que me fez perder a cabeça." As escaramuças se sucederam, mas enquanto isso Mozart conseguiu formar um grupo de sinceros admiradores em Viena. Essa, a grande explicação do 9 de maio de 1781. Colloredo tratou Mozart de debochado, patife, cretino — e o escorraçou. Mozart rompeu secamente com o arcebispo: "Eu também não quero ter mais nada a ver com o senhor! Amanhã receberá meu pedido de demissão." A ruptura só se consumou realmente em 8 de junho, quando o conde Arco, mestre das cozinhas (o que hoje corresponderia ao cargo de chefe de pessoal), segurando Mozart pelos fundilhos, atirou-o no olho da rua. Mas, desde o dia 9 de maio, Mozart, entrando de volta em casa, "com febre, braços e pernas trementes, cambaleando na rua como um bêbado", já escrevia a seu pai: "Hoje começa a minha felicidade." Hoje... E faltava-lhe viver dez anos e meio. Restava agora a este músico, que conquistara sua liberdade a tal preço, viver e conquistar o público de Viena. E tudo levava a crer, nos primeiros quatro ou cinco anos, que ele o fosse conseguir. Participou da fundação de um "Concerto de dile-
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tantes" que se propunha a levar em praças públicas e nos jardins de Augarten a boa música, para que ela saísse dos fechados recintos de uma "elite" de privilegiados e se pusesse democraticamente ao alcance do comum dos mortais. Apesar de sua aversão por este gênero de ganha-pão, passou a aceitar alunos, mas na verdade se impôs com seu prodigioso virtuosismo, principalmente como pianista, intérprete e improvisador, e também como compositor, embora os melómanos mostrem-se sempre mais ávidos de virtuoses do que de criadores. Para começar, o primeiro dos "cinco pontos máximos" do Mozart dramaturgo: Die Entführung aus dem Serail apresentada pela primeira vez em 16 de julho de 1782. Ainda em 1782, a Sinfonia Haffher, sonatas, três concertos. Em 1783, a Grosse messe [Grande missa em dó menor], sem dúvida a mais alta expressão de todas as obras litúrgicas de Mozart, e a Sinfonia Linz. Em 1784, o Quinteto para piano e sopros, seis concertos (o concerto para piano, nesse perído, tem a mesma importância que a sinfonia teria na obra beethoveniana). E, de dezembro de 1782 a 1785, a série dos Seis quartetos para cordas dedicados a Haydn. Diante dessa profusão de obras-primas, compreende-se que Joseph Haydn tenha dito a Leopold Mozart: "Seu filho é o maior compositor que conheço, pessoalmente ou de nome." Ganhando bem a vida, requisitado e aplaudido pelo público vienense, saudado pelo genial Haydn, julgava-se Mozart um homem realizado? Bem, ele se casou em 4 de agosto de 1782 com Constanze Weber, irmã mais nova de Aloysia, depois de muitas e obscuras peripécias, um tanto pressionado, segundo parece, pela mamãe Weber. Nem muito bonita, nem muito genial, apenas boa musicista, Constanze era uma mulher doce. Seu marido e ela entendiam-se bem, com ternura, alegria e sensualidade, mas o amor dos dois foi de certo modo limitado. Sabemos de pelo menos duas outras mulheres que ocuparam apaixonadamente o coração de Mozart: em 1784, Theresa von Trattner, para quem escreveu a Sonata em dó menor precedida pela Fantasia em dó menor, uma pungente expressão de seus sentimentos; em 1786, a cantora Nancy Storace (a Susanna das Le nozze di Figaro [As bodas de Fígaro] ), para quem escreveu a admirável ária de concerto Ch'io mi scordi di te? [Que eu me esqueça de ti?] antes dela partir de Viena. Pode-se supor, entretanto, que os problemas afetivos não eram os únicos em causa, e que decerto também interferia um certo cansaço em relação à frivolidade ambiente (da qual, muitas vezes, ele era o primeiro a ser cúmplice), um certo descontentamento de ainda ter dé lidar com um público comportado demais e, inquestionavelmente, um desejo de ir ainda mais longe, quando vao se mostrando cada vez mais presentes na obra de Mozart escapadas para o trágico ou para o melancólico, expressões daquela intraduzível Sehnsuchtàt que ele próprio um dia deu uma das melhores descrições: "Uma espécie de vazio que me faz muito mal, uma certa aspiração que nunca se satisfaz e por isso constante, que dura sempre e que a cada dia cresce mais."
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É significativo que os testemunhos deixados sobre Mozart por certas pessoas que lhe eram próximas insistam em traços de caráter e comportamento que condizem mais com esta "aspiração" sempre insatisfeita do que com uma forma de quietude ou simplesmente de tranqüilidade. "Ele estava sempre de bom humor, mas sempre também muito absorto, mesmo quando se achava no melhor dos humores", diz sua cunhada Sofia Haibel, prosseguindo: "Até quando lavava as mãos de manhã, ele ficava de lá para cá no quarto, nunca parecendo tranqüilo, batendo os saltos dos sapatos um contra o outro, e sempre pensativo." Seu cunhado Lange escreveu: Ele falava com incoerência, passando de u m a coisa a outra, fazendo brincadeiras de todo tipo; descuidava-se de p r o p ó s i t o na maneira de vestir. A l é m disso, parecia n ã o refletir, nem pensar em nada. O u talvez, sob uma aparência frivola, tivesse a i n t e n ç ã o de dissimular sua angústia tarima; ou pode ser t a m b é m que gostasse de ver as idéias divinas de sua m ú s i c a brutalmente contrastadas com as vulgaridades da vida cotidiana e de divertir-se fazendo uma espécie de ironia consigo mesmo.
Esta "angústia íntima" (tão bem captada no melhor retrato que se tem de Mozart, justamente aquele pintado por Lange) corresponde bem pouco à lenda da eterna criança ou do pássaro despreocupado, que continuam sendo alimentadas por alguns. No entanto, quando se houve a música de Mozart é dessa "angústia íntima" que se é levado a lembrar: a mobilidade irrequieta, a vivacidade brilhante repassada por secreto ardor, o suspiro nostálgico que um ouvido atento sabe escutar, mesmo quando a melodia sugere um paraíso de ternuras, como na "Romanza" do Concerto para piano em ré menor. Falar de Mozart no plano das formas musicais não pode nos fazer esquecer que, no plano espiritual e expressivo, sua busca era a de um romântico. Para levar esta busca ainda mais longe, com mais lucidez, e para estar menos solitário diante dela para melhor aspirar a liberdade do coração e da arte, à plena luz na fraternidade do trabalho, Mozart decidiu entrar para a franco-maçonaria, onde foi recebido como aprendiz em 14 de dezembro de 1784, depois como companheiro e mestre antes de 11 de abril de 1785. Esta iniciativa resultou de uma decisão madura que, na sua vida, reveste-se de importância comparável à de uma conversão. O fervor e a seriedade de sua adesão jamais foram desmentidos, e a prova disto está no zelo demonstrado pelo neófito que, desde o início de 1785, empenhou-se em conquistar a adesão de seu pai e a de Joseph Haydn. O engajamento de Mozart na franco-maçonaria levou-o a compor uma série de obras de inspiração ritualística: Lieder, quatro maravilhosas cantatas, sublimes peças instrumentais como o Adagio em si bemol, obras que não são das mais conhecidas, mas que facultam, como poucas outras, o acesso à intimidade do pensamento mozartiano, para não falar daquelas suas obras que estão impregnadas do espírito maçônico, como as peças nas quais a clarineta tem papel decisivo e, obviamente, Die Zauberflõte [Aflautamágica].
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E, decerto, outra conseqüência: rudo acontece como se, depois de sua "conversão", Mozart, audaciosamente sereno, passasse a escrever suas obras exatamente como tinha vontade de as compor, sem preocupar-se muito com as conveniências e os hábitos do público. Os Concertos para piano em fá, em ré menor e em dó K 467 (fim de 1784 — inicio de 1785), em mi bemol, em lá e em dó menor (fim de 1785 - início de 1786) e o Concerto para piano em dó K 503 (fim de 1786), a Sinfonia Praga, os dois Quartetos com piano, o Quarteto Hoffmeister para cordas, o Trio Kegelstatt para piano, viola e clarinete assinalam, em dois anos, a plena maturidade da expressão mais livre e pessoal do gênio criador de Mozart, lado a lado com o segundo dos "cinco pontos máximos" do Mozart dramaturgo — Le nozze di Figaro — encenado em I de maio de 1786. O preço desta liberdade era de certo modo previsível: Mozart deixou de ser o homem da moda em Viena. Os colegas e os críticos começaram a ter atitudes reticentes ou de desaprovação que se foram acentuando e dando o tom para um público que já não mais se comprimia para assistir aos concertos do compositorvirtuose. As preocupações com dinheiro aparecem. Le nozze di Figaro nada rendem: a peça de Beaumarchais havia suscitado em Paris um grande escândalo, então bem conhecido, e mesmo que as tiradas mais acerbas houvessem sido excluídas do libreto preparado por Da Ponte, o assunto ainda chocava os vienenses. E a música se ressente disso. Já por ocasião da representação de Die Entführung aus dem Serail, José I I observara: "Notas demais, meu caro Mozart." Ao que respondeu o autor: "Nenhuma só a mais, Majestade" (coisa que nunca sairia da boca de um cortesão experiente). Ainda por cima, para decepção dos diletantes que iam aplaudir as proezas de seus cantores preferidos em Le nozze di Figaro, a originalidade da ópera mozartiana mostra-se ainda mais evidente, tanto pelo papel que tem a orquestra com relação às vozes, como pelo que é reservado aos conjuntos vocais em relação às árias dos solistas. Le nozze se ressentem ainda mais do fato de que Mozart manifesta nessa ópera a plenitude de um gênio dramatúrgico até então sem qualquer equivalente na história da música. Embora a "dramatização da música" seja uma das principais características do "classicismo" vienense, nas obras instrumentais de Haydn, por exemplo, ela só apareceria no jogo de oposições das formas musicais puras, sem que nelas viessem refletir-se conflitos humanos apaixonados e mesmo trágicos. Já no caso de Mozart e de suas óperas, é indentificando-se com cada uma de suas personagens sucessivamente, através de seu gênio de dramaturgo, mas sem abdicar de sua primordial condição de músico, que o compositor dá vida às pulsões e aos embates, aos desejos e às angústias dos seres humanos. Ele já havia começado genialmente a fazê-lo em em Die Entführung aus dem Serail mas o quadro de exotismo oriental dava ainda para dissimular o trágico das situações. No caso das Nozze, havia o agravante de tratar-se de uma opera buffa, gênero até então mais conveniente a facécias do que aos estados de angústia e no qual os personagens o
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são bem mais parecidos com os espectadores de ópera. No entanto, se faltam graça e humor nessa ópera, o trágico — sempre latente — manifesta-se francamente nos pontos culminantes dos dois grandes finali do segundo e do último atos (mesmo que, em princípio, o finale seja o lugar onde acontecem as resoluções das tensões), pois alguns dos protagonistas do drama se vêem ameaçados em sua l i berdade e em sua honra. Entende-se, portanto, porque começou a esboçar-se um divórcio entre o músico e seu público, um divórcio que Mozart nada fará para impedir ou retardar. Perspectiva de divórcio em Viena, amor à primeira vista em Praga, cidade que cai de amores por Figaro. No início de 1787, Mozart é aclamado ali em triunfo e recebe a encomenda de nova ópera. De volta a Viena, passa alguns meses ensombrecidos pela partida de Nancy Storace e pela morte, primeiro, de um amigo querido e, depois, de seu pai Leopold. As relações entre ambos haviam perdido muito da intimidade confiante de outros tempos, mas nem por isso Mozart deixou de sentir profundamente a morte do pai. Foi durante esses meses que compôs os Quintetos para cordas em dó e em sol menor (este último, talvez, o ponto mais alto da música de câmara mozartiana), Eine Kleine Nachtmusik [Pequena serenata noturna], que não se deve deixar de mencionar só pelo fato de ser muito conhecida, a Sonata para piano e violino em lá K 526. No meio de setembro, Mozart retornou a Praga para terminar uma ópera encomendada: Don Giovanni. Foi o romantismo que reconheceu em Don Giovanni o ponto mais alto e privilegiado de toda a obra de Mozart, pois nessa ópera o romantismo encontrou o que melhor o anunciava e aquilo de que mais tinha sede. Quanto ao esplendor musical, o julgamento talvez seja discutível, pois a vontade que se tem é sempre preferir, dos "cinco pontos máximos", aquele que se acabou de ouvir. O fato que permanece, no entanto, é que, das cinco grandes óperas de Mozart, Don Giovanni é aquela em que o gênio da dramaturgia musical se mostra mais contrastado, mais apaixonado e inegavelmente mais trágico. E é igualmente aquela em que Mozart deixa extravasar aquilo que vai no mais íntimo de seu ser: a personagem de Dom Giovanni parece induzi-lo a revelar suas aspirações mais irresistíveis — não no plano das conquistas eróticas, onde Wolfgang talvez se parecesse bem mais com o turbulento e instável Cherubino das Nozze do que com o feroz caçador de todas as presas femininas, mas por aquela recusa indomável, aquela firme rejeição de qualquer forma de cerceamento que faz Dom Giovanni gritar "Viva la liberta!"; e mais ainda por aquela paixão arrebatada de uma vitalidade que agarra o instante presente para matar de imediato sua sede incoercível, por aquela bravura altiva que pressente que um fogo tão violento só pode correr para a própria ruína, mas que se nega mesmo assim a baixar a cabeça. Basta ouvir a cena do festim final para sentir que o coração de Mozart bate no peito de Dom Giovanni quando este lança seu desafio ao Comendador. E o milagre é que, graças ao caloroso círculo dos amigos que fizera em Praga, possivelmente Mozart nunca tenha estado tão cheio
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de vida e entusiasmado com uma composição, e tão alegre, do que quando compôs Don Giovanni, a mais trágica de suas óperas. Meados de setembro - meados de novembro: dois meses marcados pelo estrondoso sucesso de Don Giovanni em 25 de outubro de 1787, e os mais felizes que Mozart iria viver nos poucos anos que lhe restavam. Mas a volta a Viena já não foi tão triunfal: nenhuma nova perspectiva, e o desfavor em que caíra se acentuara ainda mais. Montado em Viena em 7 de maio de 1788, Don Giovanni foi um total fracasso. José I I assim se expressou a respeito: "Isto não é prato para os meus vienenses." Ao que respondeu Mozart: "Vamos dar-lhes tempo para mastigar." Um crítico foi ainda mais ferino: "O capricho, a fantasia, o orgulho presidiram o nascimento de Don Giovanni, mas não o coração." Em maio de 1788, segundo a opinião da boa sociedade, aquela que sabe de tudo, Mozart, com 32 anos, era um homem acabado, um antigo menino prodígio decadente e sem serventia. As preocupações com dinheiro dão lugar à miséria. As dívidas e os pedidos de empréstimo a agiotas se multiplicam. Por economia, também as mudanças e alojamentos em bairros distantes. E quando Wolfgang ou Constanze adoecem seguidas vezes e há gastos com médicos e boticários, ou acontece uma doença ou a morte de um filho (tiveram seis, mas apenas dois meninos sobreviveram), é a catástrofe. Uma série de bilhetes suplicantes, ao longo de três intermináveis anos, endereçados ao irmão de loja maçônica Michael Puchberg (a quem Mozart dedicou o Divertimento para trio de cordas, uma obra-prima datada de 29 de setembro de 1788) dão testemunho desta indigência material, e bem depressa também moral, contra a qual o gênio em vão se debatia. Entre junho e agosto de 1788, com vistas a um grande concerto que esperava dar, Mozart escreveu a trilogia de suas mais belas sinfonias: a Sinfonia em mi bemol, a Sinfonia em sol menor K 550 e a Sinfonia em dó, esta última denominada Jupiter. Como não houve assinaturas, não houve concerto. No ano seguinte, a mesma coisa: as três sinfonias de 1788 foram as últimas que Mozart compôs. Sem encomendas, tudo uma balbúrdia, a produção forçosamente teria de rarear: aqueles que imaginam um gênio angelical ou infantil que passa os dias cantarolando divinas músicas numa maravilhosa despreocupação com as contingências humanas deveriam dar uma olhada na cronologia do catálogo das obras para avaliar o peso humano da criação. Na primavera de 1789, aproveitando uma oportunidade, Mozart fez uma viagem exploratória: Praga, Dresden, Leipzig, Berlim. Voltou de bolsos vazios, sem muitas encomendas, nem esperança de melhora, mas entusiasmado com a descoberta que fizera em Leipzig dos Motetos, ainda inéditos, do velho Johann Sebastian Bach. Somente Joseph Haydn, admiravelmente fraternal, continuava a proclamar sua admiração por Mozart, "este ser único". No outono de 1789, o imperador José II — que, embora com reservas, apreciava Mozart — encomendou-lhe uma ópera, es-
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colhendo ele mesmo o tema para evitar escândalos e intrigas: Cosi fan tutte, tema cuja frivola crueldade inspirou, como reação, as mais ternas efusões da clarineta, tanto na partitura da ópera como na do Quintento para clarineta e cordas que Mozart escreveu na mesma ocasião para um irmão de maçonaria. Depois que Mozart descobriu este instrumento — que ainda não se tocava em sua juventude em Salzburgo — passou a gostar de usá-lo para expandir tudo o que guardava de mais límpido e radioso no coração: à clarineta, Mozart confiou a sensualidade mais espontânea, a emotividade mais expressiva, a ternura mais franca, a fraternidade (maçônica) mais espiritual. E é bem significativo que, em Cosi fan tutte, a personagem de Dom Alfonso — seco, cerebral e cínico — somente tenha direito, quando canta como solista, ao acompanhamento das cordas, ao passo que a clarineta privilegia o papel de Fiordiligi, o mais terno dos quatro protagonistas, e o de Ferrando, a quem ela devia estar ligada por vínculo maior do que o odioso jogo de uma aposta. Tanto é assim que, nas óperas de Mozart, sobretudo em Cosi fan tutte, para a pergunta que se costuma com freqüência fazer — de todas as personagens, com qual o compositor mais se identifica? —, a única resposta válida é: não é esta nem aquela, mas a orquestra. A personagem-chave do gênio dramaturgia) de Mozart é a orquestra. A primeira representação de Cosi fan tutte (dos cinco "pontos máximos", aquele que só aos verdadeiros apaixonados por Mozart revela seu perfeito encanto) obteve certo sucesso em 26 de janeiro de 1790. Mas o imperador José II morreu alguns dias depois, e o luto da corte suspendeu as representações. Seu irmão e sucessor, Leopoldo I I , era um italianista extremado em matéria musical e, além disso, estava muito preocupado com a Revolução Francesa, com a propagação das idéias revolucionárias, suspeitando que a franco-maçonaria contribuía para a causa. A situação de Mozart tornou-se pior, e ele quase chegou a cair em desgraça. O novo imperador devia ir a Frankfurt, teoricamente a capital do Sacro Império, para lá ser coroado. Convidou para sua sagração todos os músicos importantes de Viena... com exceção de Mozart. Este, sentindo-se provocado, resolveu ir por sua própria conta (fim de setembro - início de novembro de 1790). Em Frankfurt, deu um concerto que lhe valeu muitas honrarías e pouco dinheiro; sem arranjar mais nada, fez o caminho de volta por Mainz, Mannheim e Munique, conseguindo apenas endividar-se mais. No entanto, em suas últimas cartas dessa viagem e nas atividades a que se dedicou depois de voltar, uma espécie de alegria substitui de repente a profunda melancolia em que parecia antes mergulhado. Terá sido apenas o prazer de reencontrar velhos amigos ou terá sido porque encontrara nas lojas maçônicas de Mainz •— onde eles eram numerosos e de espírito inflamado — irmãos prójacobinos que lhe teriam transmitido as esperanças de um mundo novo? O fato é que as obras que Mozart escreveu no mês seguinte — os dois Quintetos para cordas, o Concerto em si bemolK595 e mais algumas outras peças — dão sinais, a um só tempo, de uma vitalidade renovada na energia criadora, bem como de uma
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maneira nova, mais diáfana e mais matizada: urna evidente vontade de simplicidade e a suprema arte de passar soberanamente por uma gama de sentimentos dos mais contrastados sem que qualquer encrespamento marcasse os contrastes. Um inexplicável júbilo irradiava daquela miséria que se agravava a cada dia. No começo de março de 1791, Emanuel Schikaneder, um velho conhecido que se tornara diretor do teatro An der Wien (ou Auf der Wieden), encomendou a Mozart uma ópera. Para resumir uma gênese complexa, digamos que três homens colaboraram estreitamente na arquitetura e em cada um dos detalhes da construção desta obra, bem como na redação do libreto: Mozart, que segundo suas próprias palavras dava a maior importância ao libreto desse singspiel (inclusive às passagens faladas e não cantadas), Schikaneder e Ignaz von Born, o líder mais eminente e progressista da franco-maçonaria vienense. Destas reuniões de trabalho saiu o argumento de Die Zauberflõte [A flauta mágica], com seu texto escrito em dois planos superpostos e entrelaçados: um conto de fadas propício ao grande espetáculo feérico e popular, e uma viagem simbólica que leva à busca de si mesmo e à descoberta da sabedoria, uma espécie de busca maçônica do Santo Graal. Mas Die Zauberflõte era igualmente uma espécie de apologia da franco-maçonaria em um momento em que seus detratores contra-revolucionários recebiam cada vez mais apoio do governo imperial e em que a perseguição de que depois foi vítima estava prestes a ser desencadeada. Depois de Die Entführung aus dem Serail, ópera da liberdade, depois de Le nozze di Figaro, ópera da igualdade, vinha Die Zauberflõte, ópera da fraternidade nas Luzes, à qual Mozart consagrou suas últimas forças. A agitação de uma atividade criadora tão intensamente febril, o desgaste causado pelas privações e pelas angústias da miséria, a moléstia fatal talvez já em andamento (existe hoje o consenso de que se tratava de uma afecção renal), tudo isto minou as forças de Mozart, que começou a dar mostra de dificuldade no trabalho. Mesmo assim, entregou-se inteiramente a ele, para responder a duas encomendas, em julho, de um Requiem, que deixou magníficamente traçado em suas linhas mestras, mas não terminou, e, em agosto, de uma opera seria para Praga, La clemenza di Tito [A clemência de Tito] para a qual escreveu, a toda pressa, admiráveis trechos, tendo passado a um aluno a parte dos recitativos. Em 30 de setembro de 1751, teve lugar a estréia de Die Zauberflõte em um pequeno teatro de bairro popular em Viena: o cartaz mencionava em letras garrafais o nome de Schikaneder e, mais abaixo, em formato pequeno: "A música é do Sr. Mozart" — aquele Mozart que já fora a coqueluche de toda Viena. O sucesso foi imediato, avassalador, contínuo. A cada dia o entusiasmo crescia. Era preciso que Viena inteira lá acorresse. As ofertas e as encomendas agora iriam chegar — tarde demais. Uma lenda que por muito tempo persistiu, surgida logo depois da morte de Mozart, quer mostrá-lo vivendo na angústia obsessiva da morte que se avizinhava
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e obcecado pela idéia de estar compondo um Requiem para si mesmo, após ter recebido a encomenda de um misterioso desconhecido no mês de julho. Nada deveria subsistir desta lenda — já posta em dúvida por mais de um biógrafo — depois de se ter recentemente encontrado o texto de um contrato entre Mozart e um certo conde von Walsegg zu Stuppach, que nada tinha de misterioso. De fato, as cartas de Mozart do mês de outubro, apesar do estado de extrema fadiga em que ele já se encontrava, deixam por vezes transparecer uma animação quase burlesca. Nessas cartas, Mozart fala muito das representações de Die Zauberflõte, do Concerto para clarineta, que estava concluindo, e de um trabalho desesperado para compor o Requiem. Entregue às alegrias do triunfo que se afirma com toda evidência, não tanto para ele, mas para a mensagem espiritual que quis expressar, Mozart continuará vivendo por seis semanas sob o impulso da criação, embora seu estado de saúde só piorasse: um maravilhoso Concerto para clarineta, mais algumas páginas esboçadas para o Requiem, e — sua última obra—uma cantata maçônica, Elogio da amizade, executada em 15 de novembro. Em 19 de novembro, Wolfgang Amadeus Mozart caiu de cama para não mais levantar-se, e em 5 de dezembro de 1791 morreu. Nos últimos dias de agonia, foi para Die Zauberflõte que se voltou seu pensamento: todas as noites, mentalmente, ele acompanhava, compasso por compasso, o desenrolar da representação no teatro. Antes de perder a consciência, não terá ele cantado em si mesmo o que Tamino e Pamina cantaram por ocasião da última prova? "Pela força da música, felizes, avançaremos pela tenebrosa noite da morte."
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No domínio da música, como também em outros, a Revolução Francesa suscitou uma extraordinária produção de obras e idéias, uma completa mudança no que diz respeito às concepções e à linguagem, bem como a criação de novas estruturas e instituições. Contudo, a duração do período propriamente revolucionário não foi longa: uma dezena de anos apenas, ou seja, de 14 de julho de 1789 a 18 de Brumário do ano VIII (9 de novembro de 1799). No entanto, do mesmo modo que a revolução política não é independente do Antigo Regime, também não se pode descrever a contribuição musical desses dez anos sem que se faça referência aos homens, às idéias e às mstituições que os precederam de alguns decênios antes. A música em Paris às vésperas da Revolução A brevidade do período revolucionário explica por que apareceram tão poucos compositores durante a Revolução. Podem-se citar apenas os exemplos de Berton (1767-1844), o de Catei (1773-1830), o de Méhul (1763-1817) e, secundariamente, o de Boieldieu (1775-1834), cuja obra revolucionária é bastante minguada. Os outros, como Cambini (1746-1811), Louis Jadin (1768-1853) e Lesueur (1760¬ 1837), começaram a fazer carreira na época da tomada da Bastilha. Enfim e sobretudo, os grandes compositores da Revolução são as celebridades musicais do Antigo Regime: Cherubini (1760-1842), Dalayrac (1753-1809), Grétry (1741-1813), • Devienne (1759-1803), Gossec (1734-1829), Giroust (1738-1799) e Schwarzendorf, também conhecido como Martini, o Alemão (1741-1816), autor da famosa
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canção Plaisir d'amour [Prazer de amor] e que não deve ser confundido com G.B. Martini, o "padre Martini" (1706-1784). Foram muito raros os grandes músicos do Antigo Regime que não compuseram música revolucionária. As únicas exceções notáveis foram o grande violinista Viotti (1755-1824), emigrado mais por acaso do que por convicção, e Joseph Boulo gne, o cavaleiro de Saint-George (1739-1799), que pôs a espada, mas não o arco, a serviço da República. Em contrapartida, foi grande o número de amadores que se sentiu tentado a compor para a glória da Revolução: o material em pauta, é claro, era a canção, mas também houve obras mais ambiciosas. O exemplo mais célebre naturalmente é o de Rouget de ITsle (1760-1836) que, animado com a popularidade da Marseillaise [Marselhesa] e de seus outros hinos, prosseguiu na carreira de compositor, por sinal sem muito sucesso. Por fim, dois elementos devem ser mencionados a propósito do "pessoal da música" da Revolução. O primeiro refere-se ao número de estrangeiros que fazia parte dele. Entre os maiores nomes citam-se italianos, como Cambini e Cherubim, mas também belgas, como Gossec e Grétry, sem contar os fronteiriços da Valônia, como Méhul ou os irmãos Navoigille, todos originários de Givet. De fato, quase todos os estrangeiros — compositores ou intérpretes — que estavam em Paris durante a Revolução ajudaram, por convicção ou, mais raramente, por oportunismo. O outro elemento é ainda mais significativo. No momento em que explode a Revolução Francesa, aquilo que se pode chamar de "profissão de músico" estava começando a definir-se como tal. Intérpretes e compositores passariam doravante a exercer um tipo de "profissão liberal" cujos rendimentos seriam provenientes das receitas de concertos ou de direitos autorais, algo já diferente de uma simples atividade "assalariada" que dependesse da existência de uma capela ou de alguma instituição eclesiástica. Na verdade, os decênios que precedem a Revolução Francesa vêem nascer e desenvolver-se em Paris um tipo de instituição musical inteiramente nova: a sociedade de concertos. Paris contava com duas grandes sociedades desse tipo em 1789: a do Concert Spirituel e a da Loge Olympique (que absorvera a do Concert des Amateurs). A importância destas sociedades, financiadas pelo mecenato particular e por um sistema de assinaturas, foi considerável. Elas contíbuíram para a independência material de compositores e intérpretes. Encomendavam e executavam obras, além de concorrerem, em certa medida, para a formação do "gosto musical do público", com independência do que ia pelas cortes. Graças aos meios de que dispunham, ampliaram consideravelmente as dimensões da orquestra: a Loge Olympique empregava aproximadamente setenta músicos de altíssima qualidade, um número duas vezes e meio maior do que aquele com que contava Joseph Haydn na corte dos Esterhazy. Ora, como se verá, o aumento das dimensões da orquestra, tanto do ponto de vista do número de músicos nas diferentes estantes, como da introdução de novos instrumentos, exerceu influência decisiva
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sobre a linguagem musical da Revolução Francesa. Portanto, não é nada surpreendente que tais condições de trabalho, bem como "o espírito das Luzes", predominante nas sociedades de concertos, se tenham constituído no viveiro que iria preparar os músicos da Revolução. A partir de 1791, a Revolução fez com que desaparecessem as sociedades, mas deve-se reconhecer que quase todos os compositores revolucionários saíram diretamente delas. Na véspera da Revolução, a sociedade musical francesa continuava agitada pela grande polêmica que sucedeu a Querelle des Bouffons: a guerra quase sempre pitoresca em que se opunham os partidários de Piccinni e os de Gluck. Aplaudia-se ou se vaiava: do primeiro, La bonne filie [A boa moça]; e, do segundo, Iphigénie, e Orpheé et Euridice, contrapondo-se, em termos apaixonados, a escola francesa à italiana, o drama lírico à sedução da melodia. O que estava em jogo não era simplesmente rivalidade de escolas, mas um debate fundamental sobre a função da música. Os "piccinnistas", ou "italianos", eram na realidade partidários daquilo que mais tarde será chamado de a "arte pela arte" (o termo "italiano", diga-se de passagem, corresponde a uma concepção e não a uma nacionalidade; Cherubini e Cambini, por exemplo, eram "gluckistas"). Para os "piccinnistas", a música era feita antes de tudo para seduzir, era autônoma, não podia estar subordinada a nada e, certamente, não ao texto. Contrariamente a eles, Gluck definiu sua concepção ao referir-se a Alceste: "Procurei reduzir a música à sua verdadeira função, que é a de secundar a poesia para fortalecer a expressão dos sentimentos e o interesse das situações." De fato, a música da Revolução Francesa será uma leitura política da concepção de Gluck e, de forma específica, a vitória daquilo que poderíamos chamar de opéra sérieux, concepção próxima, mas não idêntica, ao gênero opera seria nascido na Itália. Sob todos os pontos de vista, os revolucionários, quanto mais não fosse pela importância dada aos coros, reivindicavam para si a concepção "engajada" de Gluck. Também não é surpresa o fato de que a evolução dos acontecimentos políticos, que conduziriam aos regimes do Consulado e do Império, se traduzisse por uma revanche progressiva — embora provisória — dos "italianos". Porfim,temos de assinalar um costume musical que também haveria de influir na música da Revolução. Em virtude das querelas entre escolas, e também por causa da curiosidade do público, era comum ver os compositores competirem entre si trabalhando sobre um mesmo tema, ou melhor, compondo para um mesmo libreto de ópera. Foi assim que o libreto Demofoonte, escrito por Métastase, foi musicado quase simultaneamente por uma boa dúzia de compositores, entre os quais Gluck e Cherubini, sem contar Mozart, que chegou a pensar seriamente nele. Anos depois, também Gossec e Méhul rivalizariam para compor, sobre o mesmo texto, uma Ode sur la mort du représentant Féraud [Ode à morte do representante Féraud] na noite mesma da ocorrência; eis aí apenas um exemplo entre mil da emulação patriótica e musical dos artistas revolucionários.
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O papel político da música durante a Revolução A primeira obra "erudita" composta dentro do espirito revolucionario foi, sem dúvida, o Serment civique [Juramento cívico], um hino de Gossec, executado em 25 de março de 1790 pelos Enfants Aveugles regidos por Valentin Haüy. Mas havia muito tempo que já se vinham compondo canções, desde bem antes do surgimento das obras oficiais. No final da Revolução, o saldo era de no mínimo duzentas odes, cantatas ou hinos, 3 mil canções e inumeráveis marchas, sinfonias e óperas. O entusiasmo e as emoções mobilizadas em um período tão denso explicam essa enorme produção em dez anos. Mas isso corresponde também a uma doutrina bem definida sobre o papel das artes em geral e da música em particular. Em 1792, um projeto de lei previa o canto "de hinos em honra da pátria, à liberdade, à igualdade e à fraternidade de todos os homens". O ensino dos hinos que celebravam as ações heróicas estava previsto na lei de 17 de Brumário do ano III. Entre as inúmeras declarações dos políticos sobre a música, a de um obscuro representante, o cidadão Dubouchet, em 26 de Nivoso do ano III, na tribuna da Convenção, resume, ela sozinha, toda a doutrina musical da Revolução: Nada mais adequado para inflamar as almas republicanas do que os hinos e as canções patrióticas. Por ocasião de minha missão nos departamentos, fui testemunha do efeito prodigioso que produzem. Terminávamos sempre as sessões dos corpos constituídos e das sociedades populares cantando hinos, e o entusiasmo dos membros e espectadores, que vinha em seguida, era infalível.
Pela primeira vez na história, a música está consciente e voluntariamente a serviço de uma ideologia e de um regime político. Convinha, por isso, saber utilizá-la e, para isso, dar-lhe as instituições necessárias. Não se pode dissociar a música e as grandes cerimônias organizadas pela Revolução Francesa para comemorar aniversários, temas cívicos ou acontecimentos especiais. A primeira e mais famosa foi a Festa da Federação, em 14 de julho de 1790, durante a qual foi interpretado um "hierodrama" de Désaugiers, cuja música infelizmente se perdeu. Nos anos que se seguiriam, Gossec ficou encarregado da música voltada para glorificar a tomada da Bastilha. A Marche lugubre [Marcha lúgubre] de Gossec, composta em setembro de 1790 em memória dos "cidadãos mortos no caso de Nancy", foi certamente a peça sinfônica mais executada durante a Revolução. Quanto às comemorações realizadas regularmente, assinalam-se particularmente: (a) a comemoração do dia 10 de agosto de 1792 (músicas de Gossec, Rouget de risle, Catei, Cherubini); (b) a comemoração do dia 21 de janeiro (músicas de Gossec, Jadin, Berton e Lesueur); (c) as festas da Razão e do Ser Supremo (Gossec, Rouget de 1'Isle, Dalayrac, Catei, Devienne, Méhul), bem como a dos Esposos (10 de Floréal), a da Agricultura (10 de Messidor) e a da Velhice (10 de Frutidor).
A música da Revolução Francesa
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As festas organizadas por ocasião de acontecimentos excepcionais eram ainda mais numerosas e sempre também acompanhadas de música, como no caso do traslado das cinzas de Voltaire para o Panthéon, em 11 de julho de 1791. Para aquele momento exemplar do espírito revolucionário reinante, Gossec novamente musicou os versos que o próprio Voltaire havia composto para Samson [Sansão], uma ópera de Rameau proibida por Luís XV em 1731: Peuple, éveille-toi, romps tes fers Remonte à ta grandeur première... Peuple, éveille-toi, romps tes fers: La liberté t'appelle! 1
Com o espírito revolucionário, a produção de canções, que já era naturalmente abundante no decorrer do século XVIII, foi ainda mais incentivada. A Revolução, através do Magasin Musical, facilitaria a publicação dessas canções, tendo considerado a possibilidade de instimir um concurso para a fabricação de um órgão portátil destinado a difundi-las pelo interior do país. Ao mesmo tempo, tornou-se obrigatória a execução de determinadas canções por ocasião de qualquer espetáculo ou reunião popular. De acordo com as circunstâncias e as épocas, os organizadores tinham à disposição: Le Réveil du peuple [O despertar do povo], Veillons au salut de Vempire [Velemos pela prosperidade do império], La Carmagnole [A Carmanhola], o Ça ira [A coisa vai] e a Marselhesa, à qual, na época, nem tanta importancia se dava. Encontra-se adiante um sumário que resume o enorme repertório das canções da Revolução Francesa. Mas o lugar reservado a estas canções é ressaltado facilmente pela estatística sobre o número de canções publicadas durante a Revolução, que mostramos abaixo —, uma estatística que usa os inventários de Constant Pierre (incontestáveis nessa matéria) e que, por si só, traduz a história do fervor revolucionário. 1789: 1790: 1791: 1792: 1793: 1794:
116 canções 261 canções 308 canções 325 canções 590 canções 701 canções
1795: 1796: 1797: 1798: 1799: 1780:
137 canções 126 canções 147 canções 77 canções 90 canções 25 canções
[Povo, desperta, rompe teus grilhões / Eleva-te à tua antiga grandeza / Povo, desperta, rompe teus grilhões / A liberdade te chama!] (N. T.)
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A criação musical durante a Revolução Como permitem imaginar os números acima expostos, não é fácil caracterizar uma produção tão vasta e tão multiforme. Não se pode, por outro lado, esquecer que o cancioneiro político de forma alguma é uma invenção da Revolução Francesa e tampouco, é claro, apanágio exclusivo dos bons republicanos. Para citar apenas um exemplo surpreendente, mas que nada tem de excepcional, os primeiros versos verdadeiramente políticos e violentos do famoso Ça ira foram escritos por realistas, e eram assim cantados: Ah, ça ira, ça ira, ça ira! Les démocrates à la lanterne! Tous les députés, on les pendra!
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O primeiro elemento específico do cancioneiro republicano é a diversidade de seus autores: não só todo mundo canta, mas todo mundo faz com que se cante. Com efeito, é possível distinguir três categorias de compositores: (a) a dos grandes músicos que, pelo fato de serem bem fluidos os limites que separam a ode e a canção, não chegam de todo a desdenhar o gênero. Será assim que veremos Cambini cantando La Femme républicaine [A mulher republicana], Gossec exaltando o Pardon des injures [Perdão das injúrias], Cherabini incitando o Salpêtre républicain [Ardor republicano] e Grétry musicando os Couplets du citoyen patriophile [Copias do cidadão patriófilo]; (b) a dos profissionais da canção popular, dos quais muitos eram ao mesmo tempo autores, editores e intérpretes, que também vendiam, pelas esquinas das ruas, segundo uma prática já há algum tempo corrente, "folhetos" com as músicas que cantavam. Entre esses, não se pode esquecer a viúva Ferrand, autora de umas trinta canções de sucesso, das quais contam-se, entre as mais pitorescas: L'Abolition des impôts et la chasse permise dans les campagnes [A abolição dos impostos e a caça permitida nos campos], La Prise de nos deux villes [A tomada de nossas duas cidades], logo seguida pela Reprise des deux villes [Retomada das duas cidades], etc. Ladré, cuja produção era a maior de todas, com mais de cinqüenta canções inventariadas, foi o primeiro a pôr em versos uma contradança de Bécourt que iria dar no Ça ira. Há ainda outros nessa categoria, como Cubières, Dusausoir, Moline, Pitou e, por fim, uma personagem bastante pitoresca, que compôs numerosas canções de sucesso: o "cida2
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Uma tradução um pouco sobrecarregada de explicações seria aproximadamente: "Agora a coisa vai, a coisa vai! Os democratas para a corda que já está pronta nos postes dos lampiões! Todos os deputados serão enforcados!" ^ (N.T.) - A proibição à caça nos campos era uma das odiadas normas feudais que sobreviviam no Antigo Regime. (N.T.)
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dão Piis". Na realidade, tratava-se do cavaleiro de Piis, autor de vaudevilles, antigo secretário particular do conde d'Artois (irmão de Luís XVI e Luís XVÏÏI) e autor de obras licenciosas. Em 1815, o cidadão Piis, depois de um muito oportuno acesso de bonapartismo, voltou à condição de cavaleiro de Piis e à antiga função de secretário do conde d'Artois, que reinou com o nome de Carlos X depois da Restauração, quando Piis foi nomeado secretário-geral da Prefeitura de Polícia e recomeçou a escrever suas obras licenciosas, (c) os amadores constituem a última categoria, que não era de modo algum a menor delas e à qual se deve a grande massa de composições que integram o cancioneiro revolucionário. De fato, a Revolução abriu oportunidades artísticas a inumeráveis cidadãos, inflamados pelo ardor patriótico ou apenas preocupados em serem bem-vistos pelas autoridades. Entre os inúmeros exemplos, não podemos deixar de citar Rousseau (alto funcionário na Secretaria da Guerra), Valcourt (juiz de paz em Paris), Lenormand (reitor das escolas públicas de Rouen), Beauvarlet-Charpentier (organista) e Lemière (federado bretão). Sem naturalmente esquecer o mais ilustre de todos esses poetas-compositores, revolucionários de ocasião, Rouget de 1'Isle... É preciso que se diga que a maioria dos cançonetistas revolucionários não eram compositores de verdade. Muitos não passavam de "arranjadores", que adaptavam os novos textos a melodias mais ou menos conhecidas. Para aproximadamente 3 mil canções revolucionárias existem apenas umas 650 árias diferentes e, destas, só 150 são originais, compostas especialmente para cantar os feitos da Revolução. As outras são originárias de vaudevilles, de óperas que estavam na moda, de músicas pré-revolucionárias, ou mesmo de temas folclóricos, com alguns datando até do século XVI. No entanto, é preciso assinalar que a abundância da produção e a pressa com que a maioria delas foi composta não chegam a explicar por si só esta contínua volta a árias já conhecidas. A prática da adaptação, do empréstimo, da transposição sempre fora uma constante na história da música e isto se refere também à música "erudita" até o século XIX. Tanto assim que, no século XVIII, costumava-se cüslinguir na França as ariettes [arietas], composições originais, dos timbres, melodias já existentes que recebiam nova letra. Para não nos afastarmos da Revolução, basta lembrar, por exemplo, que a melodia básica do famoso Veillons au salut de l'empire [Velemos pela prosperidade do império] (este último termo, naturalmente, deve ser entendido no sentido territorial e não político) de Gossec, talvez o mais difundido de todos os cantos patrióticos e revolucionários, foi tirada de uma ópera de Dalayrac, Renault d'Ast, encenada pela primeira vez em 1785... Resta-nos, por fim, dizer que é seguramente impossível estabelecer um catálogo, mesmo sumário, dos temas abordados pelas 3 mil canções da Revolução Francesa. Não há, com efeito, um aspecto — cômico ou trágico, cotidiano ou ideológico — que tais canções não tenham abordado, quer se tratasse de acontecimentos políti-
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Quinta parte: o século XVIII - segunda metade
cos ou militares, de virtudes cívicas ou particulares, quer fosse para celebrar as "grandes causas" ou honrar os heróis vivos e mortos. O injustificável esquecimento — para não dizer descrédito — das obras dos grandes compositores da Revolução Francesa torna difícil fazer um balanço musical desse período. Com raras exceções, como o famoso Chant du départ [Canto da partida] de Méhul, a música da Revolução é atualmente pouco editada, pouco tocada e menos ainda gravada. Entretanto, a produção musical da Revolução é considerável e, apesar das circunstâncias, muito pouco dela se perdeu, graças sobretudo ao colossal trabalho realizado no final do século XIX por Constant Pierre, no contexto das Publications relatives à la Revolution Française [Publicações relativas à Revolução Francesa], que se editaram por ocasião do seu primeiro centenário. A produção musical revolucionária, aliás, não se limita a cantos, hinos e músicas de circunstância. Além da Ópera de Paris, havia 25 teatros funcionando na capital francesa durante a Revolução, e em muitos desses havia condições para a audição de obras líricas ou para a apresentação de músicas de cena. Lesueur, por exemplo, não se contentou apenas em compor hinos para as festas da Agricultura ou da Velhice. Levou adiante uma constante pesquisa no campo da linguagem musical e, bem antes de Richard Strauss e outros compositores contemporâneos, já havia ressuscitado os modos gregos. Cambini é autor de sessenta sinfonias, 144 quartetos e 29 sinfonias concertantes — nem tudo, naturalmente, composto durante a Revolução. Também não podemos esquecer que Cherubini começou a compor em 1795 e criou, em 1797, Médée [Medéia], que não só é uma das maiores óperas da história lírica, como também foi o ponto de partida de uma concepção dramática de que Richard Wagner se confessará devedor. De todo modo, é impossível esboçar uma história da música durante a Revolução Francesa sem que se dê especial destaque às figuras de três homens cuja obra ou personalidade tiveram influência decisiva sobre esse período: Grétry, Gossec e Méhul. ANDRÉ GRÉTRY No momento em que estourou a Revolução Francesa, o belga Grétry, nascido em Liège, já tinha atrás de si uma longa carreira. Tinha 48 anos em 1789. Não foi um compositor revolucionário dos mais prolíferos: quatro hinos, uma ópera patriótica, Guillaume Tell [Guilherme Tell], e uma espécie de "comédia musical", onde há um potpourri de árias revolucionárias: La Rosière républicaine [A roseira republicana] . Mas, no momento em que sobreveio a Revolução, Grétry era o mais celebrado de todos os músicos franceses. Foi incentivado em sua carreira por Voltaire, teve como libretistas Marmontel e Sedaine, e possivelmente contou com o concurso do conde de Provence, futuro Luís XVIII, na ópera Panurge dans l'île des lanternes [Panurge na ilha das lanternas], cujo tema foi tomado de Rabelais. Entrou em combate contra os piccinistas, apesar de guardar alguma secreta simpatia pelas
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formas italianas, e sua ópera La Caravane du Caire [A caravana do Cairo] haveria de ser, por cinqüenta anos, um dos maiores sucessos da historia da cena lírica francesa. Ninguém defendeu tão bem como Grétry as leis da declamação lírica definidas por Jean-Jacques Rousseau. Ele próprio escritor, foi Grétry quem, na música, melhor ilustrou o espirito dos enciclopedistas. Isso explica, por sinal, por que Grétry sentiu-se tão pouco à vontade sob o regime do Terror, tanto assim que uma das árias de sua ópera Richard Cceur-de-Lion [Ricardo Coração de Leão] tornou-se um canto de reuniões dos realistas. De novo na moda depois do Termidor, Grétry não seria por muito tempo lembrado como compositor, após sua morte em 1813, em Montmorency, no eremitério de Jean-Jacques Rousseau. FRANÇOIS-JOSEPH GOSSEC François-Joseph Gossec, que se fazia chamar de Gossec d'Anvers, embora houvesse nascido em Vergnies, no Hainault (fronteira da Bélgica com a França), era mais velho que Grétry (nasceu em 1734 e morreu, quase centenário, em 1829). Mas Gossec teve a originalidade, nesse final do século XVIII francês, de ser bem mais sinfonista que autor de teatro. Sua paixão, se assim se pode dizer, é o "material sonoro". Foi o primeiro na França a introduzir clarinetes em suas sinfonias "périodiques", ou seja, "com movimentos". A sua Grande messe des morts [Grande missa dos mortos, 1760] mostra uma utilização da orquestra e de coros que prefigura Berlioz de maneira surpreendente. Na época da Revolução, Gossec introduziu os "tantãs" em sua famosa Marche lugubre [Marcha lúgubre] e multiplicou os instrumentos de sopro (alguns copiados de instrumentos antigos). É a Gossec que, em grande parte, a Marseillaise deve sua fama, pois foi ele quem fez a primeira e melhor orquestração que se tem do hino francês. Fora isso, Gossec foi de longe o mais inflamado e prolífico dos compositores revolucionários: escreveu no mínimo 37 hinos e sete obras sinfônicas, entre as quais, além da Marche lugubre, vale a pena lembrar o Hymne sur la translation des cendres de Voltaire au Panthéon [Hino pelo traslado das cinzas de Voltaire para o Panteão], Aux mânes de la Gironde [Aos manes da Gironda], bem como os hinos À l'Être Suprême [Ao Ser Supremo] e À la Liberté [À liberdade], que bem mereciam ser ouvidos mais vezes. O enorme talento de Gossec e o seu atual esquecimento bem ilustram, infelizmente, o descrédito em que caiu a produção musical da Revolução Francesa. Um descrédito que, da parte dos franceses, pode decorrer do remorso inconsciente pelo regicidio ou da conhecida negligência que demonstram com relação à sua música. ÉTIENNE-NICOLAS MÉHUL Desse ponto de vista, a injustiça mais flagrante foi sem dúvida cometida com relação a Méhul, literalmente ofuscado pelo mais famoso de seus dezenove hinos revolucionários, o Chant du départ [Canto da partida], certamente a mais bela
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obra vocal inspirada pela Revolução Francesa. Ao contrario de Grétry e Gossec, foi com a Revolução que Méhul começou verdadeiramente sua carreira de compositor. Compôs sucessivamente Euphrosine [Eufrosina, 1790], Stratonice [Estratonice, 1792] e Horatius Codés [Horácio Cocles, 1794], cujos nomes por si só já revelam o conteúdo moral e a forma gluckista. Durante os períodos do Consulado e do Império, Méhul deu prosseguimento à sua dupla carreira musical: a de músico patriota com composições como o Chant du retour [Canto do retorno] — contrapartida tardia ao da "partida"—e o Chant national du 14 juillet 1800 [Canto nacional de 14 de julho de 1800], a obra de maior peso desta época; e a de autor lírico de sucesso com Le Jeune Henri [O jovem Henrique, 1797], Ariodant [Ariodante, 1799], Joseph [José, 1807] e L'irato [O irado, 1801], uma ópera bufa de estilo italiano, escrita para fazer uma brincadeira com Napoleão, que lhe reprovava a mclinação excessiva pela música séria. Méhul é também autor de quatro sinfonias (uma das quais perdeu-se) de altíssima qualidade que, como o resto de sua obra, estão muito mais voltadas para o Romantismo nascente do que para a tradição de Haydn. Morreu ainda jovem, em 1817, e suas obras, por sinal, foram muito apreciadas pela quase totalidade dos compositores românticos, sobretudo por Mendelssohn e Schumann, cujo julgamento, por motivos incompreensíveis, não foi ratificado por nossa época. É certo que, como as canções populares, muitas das obras de circunstância foram compostas às pressas, com textos escritos ainda mais atabalhoadamente e cuja prosódia muitas vezes insípida e declamatória nem sempre conseguia inspirar os músicos. Mas não foram o período ou o gênero revolucionário os únicos a padecer dessas fraquezas, pois às vezes delas também encontramos traços na obra dos grandes músicos. Seria, aliás, um exagero condenar em bloco os textos inflamados que os acontecimentos inspiraram aos libretistas (entre os quais o mais prolífico foi, sem dúvida, Marie Joseph Chénier, irmão do grande poeta André Chénier, guilhotinado em 1794). Obras como Les Rois, les grands et les prêtres [Os reis, os grandes e os sacerdotes], de Cambini, saem ganhando na comparação com composições "engajadas" produzidas em épocas mais recentes.
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A INFLUÊNCIA MUSICAL DA REVOLUÇÃO FRANCESA A Revolução Francesa também adotou obras compostas por músicos mortos pouco antes da tomada da Bastilha, como Vogel (1765-1788) ou como Sacchini (1730¬ 1786), cuja ópera Œdipe à Colonne [Édipo em Colônia] só não fora bem aceita por causa de intrigas articuladas pela rainha Maria Antonieta. Enfim, é preciso assinalar que, além dos compositores estrangeiros que viviam em Paris, a Revolução Francesa foi celebrada no estrangeiro por compositores de várias nacionalidades. Tal foi o caso, do tcheco Anton Reicha (1770-1836), autor de uma Música para celebrara vitória dos grandes homens e dos grandes acontecimentos da Revolução Francesa, e de um amigo de Mozart e Beethoven, o austríaco Paul
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Vranicky (1756-1808), que compôs uma obra de programa intitulada A grande sinfonia característica pela paz com a República Francesa. A contribuição da Revolução Francesa não se limita ao catálogo de obras, boas ou más, por ela inspiradas. Muitas das tendências que se mamfestaram na época da Revolução iriam deixar marcas profundas e duradouras na música do século seguinte. Como foi observado mais acima, a música da Revolução decide-se francamente a favor do gênero dramático e da concepção gluckista relativa à arte lírica. Isto significa que grande importância era dada ao texto, que a tensão dramática tornou-se elemento fundamental e que a orquestra passaria a ser uma "personagem" essencial, não mais com a função de render dividendos aos trechos de bravura dos cantores da moda. Tudo levava os compositores da Revolução a aderirem a esta concepção: o fato da maioria ser de tendência "gluckista", a gravidade do momento, o caráter da execução das obras mais condizente com uma comemoração do que com uma interpretação. Mas, ao mesmo tempo, como escreveu J. Combarieu, a concepção revolucionária da música "transformou a arte amável do século XVIII. Ela abriu para a sinfonia fontes novas de inspiração e restaurou a música vocal." Poderíamos, muito simplesmente, acrescentar que estava prenunciando e preparando, como o fez o Sturm und Drang, o romantismo musical. De fato, não há exagero em dizer que a "grande ópera" romântica, até Wagner inclusive, deve muito à concepção dramatúrgica da música revolucionária que iria introduzir elementos de extrema importância na própria linguagem sonora. O coro, por exemplo, tornou-se um "instrumento" fundamental para a música: foi a partir da Revolução que ele passou a ter o papel que até hoje tem na ópera e na música de modo geral — e Beethoven rapidamente aprendeu essa lição. Contrariamente a uma afirmação que se costuma fazer, a Revolução não "matou", com sua política religiosa, o canto coral na França (na realidade, bem antes de 1789 as capelas já haviam perdido muito de sua força). A coisa é totalmente diferente: a maior parte das obras revolucionárias era, em geral, executada com enorme massa de coristas e diante de uma platéia que chegava a atingir, como na festa da Federação em 1790, perto de 300 mil pessoas. O volume alentado dessas massas corais e as execuções ao ar livre exigiam um poderoso apoio orquestral, coisa que só com os instrumentos de cordas não se conseguiria. Partes muito importantes foram, por isso, confiadas às percussões e aos instrumentos de sopro, .principalmente aos de metak.O tarol, os tímpanos, os tambores e mesmo o tantã (como na Marche lugubre, de Gossec) entraram com toda a força na orquestra, onde, até então, só apareciam em caráter excepcional. No que diz respeito aos instrumentos de sopro, o fenômeno é ainda mais evidente. Os compositores revolucionários acrescentaram às clássicas trompas, clarinetes e
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Quinta parte: o século XVIII - segunda metade
fagotes, os trombones, o serpentão e o picólo. Chegaram até a ressuscitar instrumentos antigos, que mandaram fabricar, conforme são vistos representados na Coluna de Trajano. Na verdade, é aos compositores revolucionarios que se deve a variedade da linguagem sonora romântica, desde os trompetes de Aida [Aída] até a orquestra wagneriana, passando pela Simphonie funèbre et triomphale [Sinfonia fúnebre e triunfal] de Berlioz. Para garantir e controlar sua enorme produção musical, a Revolução Francesa criou instituições originais, das quais uma continua até hoje sendo o centro do ensino musical na França: o Conservatório Nacional de Música, de Paris. Para ser mais preciso, já antes da Revolução existia o embrião de uma escola nacional de música, fundada em 1784 e denominada École Royale de Chant et de Déclamation en l'Hôtel des Menus Plaisirs du Roi [Escola real de canto e declamação no Palácio dos Pequenos Prazeres do Rei]. Mas o número crescente de festas cívicas e cerimônias da Revolução acarretou uma considerável demanda de exécutantes, sobretudo, é claro, de instrumentos de sopro. Bernard Sarrette, jovem capitão e melómano, teve a idéia de criar uma École Gratuite de Musique de la Garde Nationale Parisienne [Escola gratuita de música da Guarda Nacional parisiense], que visava à formação desses exécutantes. Os músicos que estiveram na origem dessa escola foram agraciados com patentes militares: Gossec, o decano, foi tenente, Devienne foi sargento, Catei foi músico de primeira classe. Em 18 de Bramário do ano II, o estabelecimento passou a ter o nome de Institut National de Musique [Instituto Nacional de Música] e, por fim, em 16 de Termidor do ano III, chamou-se de Conservatoire [Conservatório]. Coube a Sarrette e a seus cinco inspetores — Grétry, Méhul, Lesueur, Gossec e Cherubini, que lhe dedicou 50 anos de sua vida — fazer dele aquilo que é hoje. Há outra instituição musical da Revolução Francesa também muito interessante, embora tenha durado pouco. Trata-se do Magasin de Musique. A idéia desta instituição era simples: se as canções tinham facilidade de ser editadas, o mesmo não se dava com as partituras mais complicadas de hinos, odes e músicas militares escritas sob encomenda para as festividades e atos comemorativos da Revolução. Mas a originalidade do Magasin de Musique estava no fato de que ele funcionava como uma verdadeira cooperativa de produção, gerenciada pelos próprios músicos. O governo republicano comprometia-se, através de contrato, a comprar no Magasin de Musique um certo número de obras destinadas às escolas, às forças armadas e a outras instituições cívicas, sob a condição de que os "editores-músicos" garantissem a composição, a edição e a impressão das peças. Dessa forma, em cinco anos, o Magasin de Musique pôde produzir mais de 150 obras escritas pelos maiores compositores da época. Desapareceu em 1799, foi absorvido pela imprensa do Conservatoire.
A música da Revolução Francesa
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A posteridade musical da Revolução Em vários aspectos, Napoleão continuou a tradição musical da Revolução Francesa. Ele adorava música. Pretender o contrário é dar crédito a uma lenda baseada apenas no fato de que ele era algo desafinado. De fato, sua concepção filosófica e moral sobre música descendia em linha direta de Rousseau, de Gluck e da Revolução Francesa: 1
De todas as belas-artes, a m ú s i c a é a que mais influência tem sobre as paixões e aquela que mais deve ser incentivada pelo legislador. U m a p e ç a de m ú s i c a moral, composta por m ã o de mestre, toca infalivelmente o sentimento e tem muito mais influência que u m bom tratado de moral que convence a razão sem influir em nossos costumes. (Carta de N a p o l e ã o aos inspetores do Conservatoire de Musique.)
Napoleão continuou a proteger os compositores da Revolução Francesa: Lesueur, a quem encomendou a Marche triomphale [Marcha triunfal] para sua coroação, Gossec, que compôs grande número de músicas militares, e mesmo Cherubini, que Napoleão detestava cordialmente. No entanto, o momento já não era mais o dos grandes festejos populares: a música militar do Império, muito bela, é de um gênero bem diverso dos inflamados hinos da Revolução. Mas a origem e os gostos mais arraigados de Napoleão faziam-no inclinar-se para a música italiana: ele, que chorava com as monótonas melodias de Zingarelli, mandou virem Paisiello (de Nápoles) e Paër (de Viena). A ópera tornou a ser, durante o Império, em grande medida, apenas um espetáculo luxuoso e sedutor. A música do Império não tem especificidade, e sua história logo se confundiu com a da música européia do início do século XIX.
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Contrariamente à história da música durante a Revolução, sobre a qual não há qualquer obra de síntese, a música durante o Império está extraordinariamente analisada no livro de Théo Fleischman: Napoléon et la musique. Bruxelas, Brepols, 1965.
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SEXTA PARTE
NO LIMIAR DO SÉCULO X I X
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LUDWIG VAN BEETHOVEN (1770-1827)
Bonn (1770-1792) Ludwig van Beethoven nasceu no dia 16 de dezembro de 1770, em Bonn, então capital do principado do arcebispo-eleitor de Colonia. O avô, Louis van Beethoven, nascido em Malines, vierafixar-seem Bonn na qualidade de músico a serviço do eleitor e nessa cidade desposara uma mulher que mais tarde tornou-se alcoólatra e com a qual teve um filho, Johann, que seguiu a mesma profissão do pai e se tornou alcoólatra como a mãe. Johann van Beethoven casou-se com a jovem renana Maria Magdalena Keverich, que morreu de tuberculose. Dos sete filhos do casal, apenas três sobreviveram: Ludwig, Karl e Johann. Como o avô e o pai, Ludwig foi destinado, desde a primeira infância, a tornarse músico a serviço do eleitor. Mas a primeira educação musical que recebeu — incoerente, brutal e morosa, por culpa do pai—poderia muito bem ter provocado nele uma irresgatável aversão à música. A instrução geral de Ludwig foi quase nenhuma: aos onze anos, ele abandonou qualquer tipo de estudo regular. Dois encontros, contudo,fizeram-novoltar ao seu caminho. O primeiro foi com o músico Christian Gottlob Neefe, que passou a ser seu professor em 1782 e proporcionou ao menino, como alimento cotidiano, O cravo bem temperado, de Bach, e incentivou-o a compor. Aos onze anos, em 1782, o jovem Ludwig publicou sua primeira obra, Nove variações para cravo sobre uma marcha de Dressier. O segundo desses encontros, que também data de 1782, foi com um estudante de medicina, Franz Gerhard Wegeler, cinco anos mais velho do que Beethoven e
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Sexta parte: no limiar do século XIX
que logo se tomou seu amigo íntimo, introduzindo-o no convivio da familia von Breuning. Nesse meio culto e bastante liberal, acolhido como um filho da casa, Ludwig encontrou os meios de suprir as deficiências da sua primeira instrução: descobriu os grandes escritores alemães do Aufklãrung e do Sturm und Drang, particularmente Klopstock, Goethe e Schiller; e passou a comungar com as aspirações pré-revolucionárias que, na época, agitavam todos os elementos mais progressistas da burguesia alemã. O trabalho do pai de Beethoven, Johann, tomou-se cada vez mais irregular, mas aos treze anos Ludwig logrou obter, juntamente com o título de segundo organista da corte, remuneração em parte proveniente do salário paterno. Acumulou desde então as funções de organista adjunto, ensaiador (cravista-cimbalista) no teatro e músico de orquestra. Para equilibrar o orçamento familiar, reconquistou como pôde os alunos de seu pai, apesar do seu profundo desinteresse pelo ensino. Ainda tão jovem, assumiu assim os encargos de um chefe de família, o que decerto reforçou ainda mais a gravidade um tanto feroz de seu temperamento. Todos os testemunhos de que dispomos sobre essa época da vida de Beethoven acentuam a tendência ao devaneio e à meditação do adolescente, suas repetidas distrações (os "lapsos"), o poder de concentração de seu pensamento, a freqüência de suas mudanças de humor e a sua vocação para a melancolia. Em 1784, chegou a Bonn um novo príncipe-arcebispo, o arquiduque Maximiliano Francisco — o último irmão do imperador José —, que trazia com ele um camarista, o jovem conde Waldstein. Este logo se deu conta dos dotes do jovem Beethoven, tomando-o sob sua proteção e enviando-o a Viena, em 1787, para uma viagem de estudos, com ó propósito de que ele se tomasse aluno de Mozart, a quem Waldstein recomendou o jovem. Tudo indica que o encontro dos dois gênios não foi muito frutífero. Parece que — mesmo reconhecendo os dotes do adolescente provinciano e desajeitado que lhe fora apresentado—Mozart não lhe deu muita atenção, nem muitos conselhos. De resto, menos de duas semanas depois de ter chegado a Viena, Beethoven foi chamado com urgência a Bonn para assistir aos últimos suspiros de sua mãe. Os deveres familiares avolumaram-se. Beethoven enfrentou-os com a habitual disposição para a melancolia e com a íntima convicção de que tinha um destino hostil a enfrentar. "Aqui em Bonn, o destino não me é favorável", escreveu no outono de 1787, na primeira carta dele que chegou até nós. Mas Beethoven não deixou de seguir seus impulsos criadores e de aumentar sua cultura. Inscrito na universidade de Bonn em 1789, fez cursos de literatura. A despeito de uma educação escolar caótica, demonstrou'— e iria demonstrar cada vez mais e por toda a vida — um gosto e um interesse pela literatura que o aproximavam antes dos mais jovens Schubert e Schumann do que dos mais velhos Haydn e Mozart. Esse interesse — que beirava o entusiasmo — não estava voltado apenas para os escritores de língua alemã, mas para Homero, Plutarco e Shakes-
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peare, que lia assiduamente em traduções. Mais tarde, voltou-se para os místicos da India. Não se tratava de uma curiosidade diletante. Beethoven sabia que não tinha propriamente dons literários, mas disse mais de uma vez que a leitura dos poetas Goethe e Schiller em particular — estimulava-o e levava-o a compor. Quando reivindicou para si o título de Tondichter [poeta dos sons], Beethoven quis com isso indicar o vínculo entre o interesse que dedicava aos poetas da palavra e sua concepção, já totalmente romântica, de uma música que emulava com a poesia verbal na expressão dos sentimentos e das aspirações do coração humano. Sabiase tão genialmente dotado para a música, desejava com tão imperiosa decisão consagrar-se a ela — e até mesmo sacrificar à música toda a sua vida — que sempre ambicionou fazer de sua criação musical não um fim em si, mas o meio de uma revelação para a humanidade dos dramas mais interiores e dos dinamismos mais ardentes. Um dos dinamismos humanos mais violentos do qual ele se fez o poeta em música foi o dinamismo revolucionário. O professor cujos cursos de literatura Beethoven acompanhou foi Euloge Schneider, fervoroso partidário da Revolução Francesa, ao serviço da qual logo iria dedicar-se: Schneider pronunciou do alto de sua cátedra um elogio inflamado à tomada da Bastilha. Em 1790, Beethoven estava entre os primeiros subscritores de uma coletânea de poesias revolucionárias do mesmo Schneider. A partir desse momento (como Hegel e Hoelderlin, nascidos no mesmo ano que ele), Beethoven aderiu com entusiasmo ao novo espírito que tomava o Velho Mundo, e a ele permaneceu indelevelmente fiel durante toda a vida. Inquebrantável nisso como em tudo. Isto porque, se aos vinte anos Beethoven era apenas um compositor iniciante — menos precoce do que tantos outros no que dizia respeito às realizações —, seu talento, seu caráter, sua personalidade, suas opções já eram os de um homem feito. E nisso está o paradoxo: aquele que iria forjar a linguagem mais capaz de arrebatar a comunidade humana era, no fundo, um homem introspectivo, um pensador perdido em suas meditações e sonhos, que de bom grado se voltava para si mesmo para melhor concentrar-se. E disso lhe vinha aquela acentuada consciência de sua identidade que o impulsionava em direção à originalidade sem a menor afetação. Vimos Mozart perseguido pela lancinante questão: "Quem sou?". Com uma firmeza tão selvagem quanto mansamente orgulhosa, Beethoven afirmou desde o início: "Sou eu." E desde que começou a expressar-se verdadeiramente, isto só pôde acontecer na primeira pessoa do singular. - Em 1790, Beethoven compôs uma cantata fúnebre por ocasião da morte de José II — a primeira de suas grandes obras—e uma segunda cantata para a subida ao trono de Leopoldo II, mas, por razões pouco conhecidas, nenhuma das duas chegou a ser interpretada. Passando por Bonn a caminho de Londres, Joseph Haydn parece não ter prestado maior atenção ao jovem compositor. A essas decep-
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ções musicais, vieram acrescentar-se as primeiras tormentas amorosas: os velhos amigos de Beethoven evocaram mais tarde seus "amores a Werther" e enumeraram vários objetos de sua chama amorosa: Eleonora von Breuning certamente foi a última e a mais amada dessa fase renana da vida do jovem compositor. Em julho de 1792, voltando de Londres, Haydn passou de novo por Bonn. Dessa vez, tomou conhecimento de uma das cantatas e convidou o autor a prosseguir seus "estudos regulares". Waldstein mais uma vez interferiu e obteve do eleitor a licença para Beethoven ser mandado a Viena, para lá tornar-se aluno de Haydn, com a manutenção do ordenado. Em novembro de 1792, Beethoven deixou Bonn, pensando em voltar dali a alguns meses ou anos. Mas logo os exércitos da Revolução expulsaram o eleitor do principado. Beethoven jamais voltaria a ver "o nosso pai, o Reno", permanecendo em Viena até a morte. Os primeiros anos vienenses (1793-1802) Aos olhos de "papai" Haydn, quem era aquele jovem de 22 anos que desembarcara na capital para tornar-se seu aluno? Um menino bem-dotado, mas que ainda devia instruir-se para poder compor de maneira criteriosa. Cuidou dele com afetuosa benevolência, mas não sem uma certa disphcência no controle e na correção dos trabalhos. Beethoven, que se dava conta disso e estava ávido por aprender, logo acrescentou às lições de "papai" Haydn aulas com outros mestres: Albrechtsberger, composição; Krumpholz, técnica de violino; Salieri, técnica de canto, etc. Mas é legítimo indagar até que ponto, a despeito de uma ardente boa vontade, o talento próprio de Beethoven não era inadaptável a qualquer tipo de ensinamento justamente por causa de sua irredutível originalidade. E logo Beethoven decepcionouse com o aspecto amiúde escolástico das aulas que recebia. Bem mais tarde, gracejaria a respeito da "arte de fabricar esqueletos musicais" de Albrechtsberger. Por sua vez, certos mestres distanciaram-se dele. Haydn, embora conservando a mesma benevolência, assinalou diversas vezes sua desaprovação diante das obras daquele a quem chamava "o grão-mogol"; Albrechtsberger, que não era um gênio, mas um pedante, tornou-se claramente agressivo: "É um exaltado livre-pensador musical", diria aos outros alunos: "Não o freqüentem; ele nada aprendeu e nunca fará nada limpo." Se chamarmos de orgulho essa justa consciência do próprio valor e a vontade de permanecer fiel às suas próprias exigências, Beethoven certamente possuía tal virtude desenvolvida no mais alto grau. Foi sem a concordância de seus mestres que publicou, em 1795, três trios, aos quais atribuiu o número de opus 1, logo seguidos das três sonatas do opus 2. A fama de compositor começou afirmar-seno meio musical vienense, embora menos rapidamente do que a reputação de virtuose e improvisador ao piano. Beethoven impôs-se como o primeiro pianista de sua época, mesmo para o ouvido daqueles que haviam escutado Mozart. E compôs os
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primeiros concertos para piano com vistas ao seu repertório de virtuose; no final de março de 1795, apresentou-se em três concertos que consagraram seu sucesso. Esses primeiros anos vienenses foram os menos tensos da vida de Beethoven. Seu pai morreu logo depois que ele deixara Bonn (e ele chamou os dois irmãos para Viena), o príncipe-arcebispo havia sido destronado, ele estava livre e tinha como sobreviver dando algumas aulas, compondo coisas pequenas (variações, danças), graças ao apoio e por vezes mesmo à hospitalidade de algumas famílias da nobreza, pois, logo que chegou a Viena com as recomendações de Waldstein, Beethoven fez-se acolher e festejar nos meios mais aristocráticos da capital: os nomes de Zmeskall, Lichnowsky, Lobkowitz, Rasumovsky, Fries, van Swieten, etc., ficaram ligados às suas obras por mais de uma dedicatória. Ele aprendeu a montar a cavalo e não parecia insensível ao encanto um pouco frivolo dessa alta sociedade. Mas, ao mesmo tempo, tinha contatos com os grupos semiclandestinos dos "jacobinos" vienenses, freqüentando principalmente Joseph von Sonnenfels, que já havia sido amigo de Mozart. E não escondia sua simpatia pela Revolução — até no penteado e na "moda nova de além-Reno", em contraste com a correção dos seus confrades que conservavam os cabelos presos atrás, o culote e as meias de seda. * ** Mas a euforia que Beethoven pode ter experimentado durante esse período foi perturbada já em 1796. Apenas voltara das felizes apresentações em Praga, Dresden, Leipzig e Berlim, sentiu os primeiros sintomas da mais terrível doença imaginável para um músico: a surdez. O mal talvez tivesse origem em uma congestão dos centros auditivos internos; até então dotado de um ouvido excepcionalmente agudo, Beethoven entregara-se à sua arte com tão ávida concentração que certos especialistas interpretaram a sua surdez como de etiología psicossomática. A surdez nascente não chegou só: o estado geral de saúde de Beethoven, desde sempre relativamente precário, tendeu a piorar até o fim de sua vida. Doenças intestinais e respiratórias não mais o deixariam descansar. Em 1793, Beethoven anotava como profissão de fé no álbum de um amigo de passagem: "Fazer todo o bem que se possa / Amar acima de tudo a liberdade / E, mesmo que fosse em troca de um trono / Jamais trair a verdade." Em 1797, anotou em seu próprio caderno: "Coragem! Apesar de todas as falhas do corpo, meu talento deve triunfar. É preciso que este ano revele o homem completo. Não deve ficar mais nada a fazer." Na verdade, Beethoven redobrou sua atividade criadora. Ainda teve esperanças de que suas perturbações auditivas desaparecessem como resultado dos cuidados médicos e de uma melhor higiene. Tentou esconder seu mal de todos. Apenas em 1801 fez confidências a esse respeito a dois de seus amigos mais íntimos. E foi preciso esperar até 1806 (dez anos depois dos primeiros sintomas) para que Beethoven assumisse plenamente a tragédia de sua doen-
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ça e lançasse, à margem dos esboços do seu Quarteto n" 9, essafraselibertadora: "Assim como te projetares aqui no turbilhão mundano, podes escrever obras apesar de todos os entraves que a sociedade impõe. Não guardes mais o segredo de tua surdez, nem mesmo em tua arte!" Mas Beethoven não esperou 1806 para exprimir sua vida interior em sua arte. Um músico surdo: o fato é que essa tragédia excepcional não contribuiu pouco para popularizar, para fazer com que Beethoven fosse lamentado (talvez um pouco demais), amado e admirado, mais que qualquer outro compositor, por toda a posteridade. A piedade seria insultante: o alumbramento diante de um prodígio cai melhor. "Parece que se vê um deus cego criar o Sol", diria Victor Hugo. É importantíssimo notar, contudo, que essa tragédia que sempre fora vivida pelo próprio Beethoven como terrível do ponto de vista social, das relações amorosas ou de amizade e da carreira de virtuose, nunca foi por ele encarada como um obstáculo no plano da criação. A surdez condenava Beethoven à solidão; mas, a despeito da sede de comunicação humana e de aprofundamento afetivo que sentia, ele percebia que um certo tipo de solidão convinha à sua vocação. E sobretudo Beethoven foi, da primeira à última obra e cada vez mais, um músico em que o çerebralismo prevaleceu sobre a sensualidade dos sons; caso se deixasse arrebatar mais pelo brilho voluptuoso das combinações sonoras, Beethoven talvez tivesse sido mais tolhido pela surdez no que diz respeito à composição. Mas nele a obra forjava-se no cérebro e no coração, no esforço de uma longa busca que, por mais de uma vez, prolongou-se durante anos. Por mais cruel que seja dizer isso, não é nada impossível que a surdez, obrigando-o a concentrar-se ainda mais, acentuando aquele çerebralismo que era a marca e a condição de seu talento, tenha sido um apoio, mais do que uma dificuldade, para sua atividade criadora: a forja cerebral não era mais perturbada por nenhum parasita que o impedisse de elaborar sua música íntima no adensamento do silêncio interior. * * *
Isso não quer dizer que Beethoven não tenha sofrido amargamente com seu progressivo ensurdecimento. Logo veremos que sofreu ao ponto de debater-se longamente contra a tentação do suicídio — tentação que superou e que constituiu uma etapa decisiva em sua biografia criadora. E, para evitar qualquer contrasenso sobre essa etapa decisiva, levantemos uma "questão estúpida" mas que não nos parece inútil, embora qualquer resposta possível seja pura ficção. Imaginemos que Beethoven tivesse se matado em 1802: como iria figurar na história da música esse compositor morto tragicamente aos 31 anos de idade (a mesma idade com que Franz Schubert morreu)? Por imaginária que seja, a resposta parece de uma evidência espantosa e esclarecedora: as obras anteriores a essa
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data bastariam para situar Beethoven entre os maiores poetas da música, entre aqueles cuja entonação insubstituível não se parece com nenhuma outra e que foi mais além do que qualquer outro antes dele na exploração íntima do coração e no devaneio da imaginação. Isso nem tanto pelos três primeiros Concertos para piano e pelas duas primeiras sinfonias, nem pelas muitas obras de música de câmara, agradáveis, comoventes e de grande valor. Mas pelos três Trios para cordas, do opus 9, e mais ainda pelos seis Quartetos Lobkowitz, do opus 18. E sobretudo — nunca se deve esquecer que Beethoven era primeiramente e antes de mais nada um pianista — pela obra só para piano: mais de vinte sonatas, quase todas gemais; dentre elas (entre as dez últimas desse conjunto), a Sonata Patética opus 13, a Sonata em lá bemol (com a marcha fúnebre) opus 26, a Sonata em dó sustenido menor (dita tolamente Ao luar) opus 27 n°2,ea. Sonata em ré menor opus 31 n" 2, intitulada A tempestade. Nessas obras para piano, Beethoven revela-se aí o Tondichter, o poeta dos sons por excelência: as formas gramaticais que ele herdou do "classicismo" vienense obedecem nessas imposições a uma finalidade expressiva que não era a de comprazer ou encantar, mas a de levar o ouvinte à descoberta de si, segundo o itinerário de uma meditação. Nessas obras já se anunciavam os procedimentos expressivos de que Beethoven se valeria como ninguém: a irrupção de silêncios que só obedecem à exigência psicológica da viagem interior; a brusca fratura de um motivo no momento de uma nova exposição, como se a vontade interviesse para cortar subitamente uma repetição; a ocupação simultânea (cada vez mais freqüente e desenvolvida) dos extremos agudo e grave do teclado, como que para extravasar os limites da zona mediana da consciência clara; a promoção nova que é dada aos timbres (um emprego do trilo, por exemplo, que haveria de expandir-se em obras posteriores) para impedir o empobrecimento da melodia. Sobretudo, a primazia conferida ao ritmo e toda a arquitetura de uma obra construída sobre motivos breves e vigorosos, células mais dinâmicas do que temas cantantes, que fazem a música passar de um universo estático do ser a um mundo transitivo do devir. Viu-se anteriormente que uma das características do "classicismo" vienense era antes a promoção do motivo breve do que dafrasemelódica mais longa, tornando desse modo possível uma linguagem musical mais "dramática". Mozart havia recorrido a isso para descobrir uma nova dramaturgia. Beethoven levou isso ainda mais adiante, através das exigências de uma expressividade humana menos dramatúrgica, porém mais loucamente lírica, atingindo o plano do devir épico. Daí a importância, em Beethoven, da irrupção dos silêncios psicológicos que valorizam os motivos rítmicos. Ouvir verdadeiramente uma obra de Beethoven é participar de uma aventura humana cuja conclusão pode ser tão abrupta como indecisa, tão quieta como triunfal. É viver com ele um episódio ou um aspecto do itinerário de um indivíduo que nos atinge no coração, não sem deixar de nos falar daquele indivíduo:
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a própria definição daquele lirismo musical pelo qual o compositor se pretende um Tondichter a exemplo dos poetas. Autobiografiafragmentariaou auto-retrato, cada grande obra beethoveniana introduz no discurso propriamente musical a presença da historia de um homem e, portanto, uma nova dimensão da duração. A fraseología beethoveniana, naquilo que ela apresenta de mais abrupto, de mais imprevisível, engendrou u m a nova organização do tempo musical. Essa nova definição da duração através da obra talvez seja a contribuição mais especificamente beethoveniana: foi o elemento que fez toda a m ú s i c a do classicismo dar a volta rumo ao romantismo. (Célestin Deliège)
O destino agarrado pelo colarinho: o ciclo épico (1802-1812) A posição social de Beethoven parecia afirmar-se cada vez mais na virada do século. Graças a uma renda anual que o príncipe Lichnowsky lhe assegurava sem qualquer obrigação em troca, Beethoven podia criar livremente. No dia 2 de abril de 1800, foi inaugurada em Viena a primeira grande "academia" musical, onde se fez ouvir a Primeira Sinfonia de Beethoven. E, logo em seguida, ele recebeu a prova de que não podia alimentar a pretensão de ser totalmente aceito por aquela alta sociedade que o festejava. Beethoven amava uma de suas alunas, a jovem condessa Giulietta Guicciardi, e acreditava-se amado. Percebeu, contudo, que a jovem preferia um jovem fátuo, compositor amador, mas de família nobre como a dela, o conde Robert von Gallemberg: um casamento digno da alta sociedade. A tragédia da doença — e do isolamento que ela impunha —, acrescentava-se agora uma outra solidão para Beethoven e a dúvida de que pudesse um dia formar uma família, rompendo as barreiras sociais. Na primavera de 1802, os médicos aconselharam Beethoven a ir repousar no campo para poupar seus ouvidos. Durante seis meses, ele se estabeleceu na pequena aldeia vinícola de Heiligenstadt (atualmente na 19 circunscrição da cidade de Viena). Mas a surdez continuou a agravar-se, e na chegada do outono Beethoven viu-se atormentado pela tentação do suicídio. No início de outubro, voltou a si; foi então que escreveu para os irmãos uma carta que jamais enviaria e que ficou conhecida como o Testamento de Heiligenstadt. Um ano antes, escrevera ao amigo Wegeler: a
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assim. Desde a infância meu coração e meu espírito inclinavam-se para a bondade e para os sentimentos ternos. Sempre estive pronto para realizar grandes atos.
Mas a doença viera e continuava a agravar-se: Nascido com u m caráter ardente e ativo, levado às distrações da vida em sociedade, tive logo que me isolar, viver longe do mundo como u m solitário... Para m i m , nunca mais o e s t í m u l o da sociedade dos homens, nunca mais conversas inteligentes, nem manifestações de afeições m ú t u a s . . . devo viver como u m banido.
Beethoven acabava de se dar conta de que, em seus passeios, não conseguia nem mesmo ouvir o som de uma flauta ao longe, nem o canto de um pastor: "Tais fatos levaram-me ao limiar do desespero e pouco faltou para que eu mesmo pusessefimà minha vida." Veio então o sobressalto que o salvaria: Foi a arte, e apenas ela, que me reteve. A h , parecia-me impossível deixar o mundo antes de ter dado tudo o que ainda germinava em m i m ! Divindade, tu v ê s do alto o fundo de m i m mesmo, sabes que o amor pela humanidade e o desejo de fazer o bem habitam-me.
Em toda a história da música, nenhum músico, com uma convicção tão profunda, terá concebido sua obra como uma doação e uma missão a serviço de toda a humanidade. Foi então que Beethoven confiou a um amigo íntimo: "Ainda não estou satisfeito com o que escrevi até agora: de hoje em diante quero abrir um novo caminho." Os primeiros esboços da Sinfonia Heróica aparecem em seus cadernos quase em seguida ao "Testamento". A carreira de virtuose, cada vez mais incompatível com a surdez, que pouco a pouco iria se tornar total, estava encerrada. A doença parecia aprisioná-lo em si mesmo e proibir-lhe qualquer comunicação humana: foi o momento em que o solitário, sem deixar de falar na primeira pessoa do singular, decidiu dirigir-se à comunidade humana e tornar-se NÓS, realizando integralmente o seu EU. Como se não tivesse mais nada de que dispor e também porque a crise de que saíra vencedor tivesse acabado de amadurecê-lo, respondeu ao seu Destino com a obra musicalmente mais audaciosa em amplitude e em arquitetura, a primeira daquelas grandes proclamações em que finalmente deu livre curso aos sentimentos e às convicções que jamais havia renegado, mas que ainda não havia expressado (a não ser por alusões) em música.
Ah! o mundo, como eu gostaria de estreitá-lo em meus braços se eu fosse livre! Minha juventude, sinto-a muito bem, agora é que ela toma impulso... Quero agarrar o Destino
* * *
pelo colarinho; ele n ã o vai conseguir me curvar. A h , é t ã o bela a vida, vivê-la m i l vezes! U m a vida tranqüila? N ã o , n ã o fui feito para isso!
Agora a dor se fazia ainda mais pungente e a vontade de viver, menos firme: A h , v ó s que pensais que sou u m ser rancoroso, obstinado, misántropo, ou que me fazeis passar por isso, como sois injustos! Ignorais a razão secreta daquele que vos parece ser
Já vimos que o çerebralismo caracteriza o processo criador de Beethoven. O fruto desse çerebralismo é o magistral domínio de arquiteturas musicais tão coerentes e inabaláveis quanto complexas, em que a mais breve incidência e o menor detalhe nunca são produto do acaso. Mas o preço disso, se podemos falar assim, era a lentidão desse processo de criação. A inspiração nunca faltava a
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Beethoven: os contemporâneos que o viram improvisar ao piano na juventude foram unânimes em declará-lo incomparável pela riqueza e pela audácia de seus achados de improvisador. Mas não é nem menos surpreendente nem menos emocionante seguir os traços do seu árduo labor de elaboração através dos seus inúmeros cadernos de esboços, dos quais muitos foram conservados. O gênio particular de Beethoven relaciona-se com o pacto que ele fez com o tempo. Só compôs suas duas primeiras sinfonias em uma idade extremamente avançada para a época: escreveu a primeira aos 29 anos e concluiu a segunda apenas depois da crise de Heiligenstadt. É como se houvesse se empenhado em esperar que estivesse pronta e por ele dominada a linguagem orquestral que concebeu lentamente, bem como assimiladas e integradas as influências que sofreu: a de Haydn e a de Mozart, é claro, e também a dos músicos franceses da Revolução. No começo de 1798, alguns poucos meses de paz haviam levado a Viena uma embaixada francesa. Sabemos que Beethoven freqüentou assiduamente os integrantes dessa embaixada, sobretudo o músico Rodolphe Kreutzer, a quem dedicaria, em 1803, a Sonata para piano e violino opus 43. Não há dúvidas de que conheceu, por intermédio deste último, muitas obras francesas da Revolução, porque encontramos em sua música muitas citações explícitas dessas obras, e de que inspirou-se em mais de um aspecto na escrita de tais obras, principalmente no que diz respeito ao uso dos sopros (sobretudo os metais) e das percussões nas orquestrações que fez. Em sua Primeira Sinfonia — tão bem comportada em comparação com as seguintes —, Beethoven já havia escandalizado os ouvintes com o andamento de "música militar". Mas, como acontece muitas vezes, o gênio primeiro descobre e depois submete a inúmeros ensaios e experiências os elementos mais típicos de sua linguagem musical, antes de definir com que intenções e com que conjunto de instrumentos desenvolvê-los. Só no final de 1802 Beethoven sentiu que havia chegado a hora de se tornar o poeta épico que sempre desejara ser. Até a conclusão de sua partitura, em meados de 1804, a Terceira Sinfonia ainda não se chamava Sinfonia Heróica, mas Sinfonia Bonaparte. Nesse momento, Beethoven ainda planejava ir a Paris. Mas rasgou a folha em que estava escrito o título primitivo quando soube que se tornara imperador aquele que o compositor ainda considerava como o herói da República. Beethoven quisera, nessa obra, exaltar o arrebatamento vitorioso e o novo futuro humano que a Revolução inaugurava a seus olhos, e por isso construiu o finale a partir de um tema que evocava o mito de Prometeu. Preferiu permanecer fiel ao espírito revolucionário de Prometeu a associar sua sinfonia à glórià tirânica de Napoleão. " Com a Heróica, que data-4e. 1802-1804, começa úrn verdadeiro "ciclo épico", sem qualquer equivalente na história da música, e cujo impacto não pára de surpreender há dois séculos. Em 1805-1806, a única ópera de Beethoven, Leonore ou Fidelio (o título definitivo passou a ser, mais tarde, Fidelio), em duas versões e com
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três Ouvertures sucessivas, obra-prima épica mais do que teatral, cantava a união do amor conjugal e da paixão pela liberdade. Em 1807, a Ouverture de Coriolano expressava a impossibilidade, para o herói, de afirmar-se independentemente da comunidade humana. Em 1808, a sinfonia dita "do Destino" (a Quinta Sinfonia em dó menor) e a Sinfonia Pastoral sinfonias gêmeas do ponto de vista do autor, celebravam o combate do homem livre contra o Destino e sua comunhão com a Natureza. Em 1810, a música de cena composta para o drama Egmont, de Goethe (uma obra-prima do início ao fim, da qual geralmente só se conhece a Ouverture), reunia os grandes temas espirituais das obras precedentes: o amor e a força, o homem contra o Destino, as lutas pela independência nacional (inimigo do Império Francês desde 1804, Beethoven radicalizou essa inimizade depois que a Alemanha viu-se sob o domínio napoleónico) e pela liberdade política. A exaltação dos laços que uniam o criador individual ao NÓS da humanidade não impedia—bem ao contrário — o aprofundamento do canto lírico e solitário do EU. A Sonata Waldstein, a Sonata Appassionnata, os três Quartetos Rasumovsky, os dois Trios Erdõdy e o Quarteto n" 10 decerto assinalam, nesse período, os pontos mais altos de uma liberdade sempre mais audaciosa e de uma precisão técnica cada vez mais pensada a serviço de uma busca cada vez mais próxima das fontes da sensibilidade e da imaginação — sem esquecer as obras concertantes em que, desse momento em diante, dialogam o lirismo singular e a epopéia plural: o Concerto em sol de 1808, a Fantasia para piano, orquestra e coro, de 1808, o Concerto em mi bemol ("o Imperador"), tão triunfalmente belicoso, de 1809. *** Capitais do ponto de vista da criação, esses anos também o foram para a vida de Beethoven. Novamente iria ele ter esperanças de felicidade no amor, e essa felicidade novamente lhe seria recusada. Uma série de cartas suas, a maior parte delas datadas do inverno de 1804-1805, permitem medir a profundidade do amor que devotou então a Josefina von Brunsvik. Ele conhecia a jovem desde 1799, assim como a irmã, Tereza, e o irmão, Franz (fora por intermédio dos von Brunsvik que Beethoven conhecera a prima deles, Giulietta). Quando Beethoven confessou seu amor a si mesmo e a Josefina, ela estava viúva, aos 24 anos, de um marido que não amara, o conde Deyn. O amor entre Beethoven e Josefina era recíproco e não tardou a inquietar a alta sociedade vienense e os parentes da jovem. A presença em sua vida e no seu coração daquela a quem chamava "sua única bem-amada" inspirou em Beethoven as melodias de Fidelio ou o amor conjugai. "Calma, bate somente, pobre coração", escreveu ele, "não podes fazer mais nada. Por Ela, sempre Ela, somente Ela, eternamente Ela, meu alento, meu tudo!" Mas a força persuasiva do amor de Beethoven não foi suficiente para liberar Josefina do peso de seu ambiente social. Acreditando sacrificar-se à educação dos fi-
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lhos, incapaz de enfrentar a união com um músico plebeu, ela se afastou voluntariamente de Beethoven, deixando-o ferido até o mais íntimo de sua alma e mais solitário do que nunca. A difícil relação de Beethoven com a sociedade vienense decerto não se tornou mais fácil com esse episódio. Em 1806, brigou com o príncipe Lichnowsky, que, certa noite, quis obrigá-lo a tocar piano para convidados seus, e inclusive mandou forçar a porta do quarto do compositor para constrangê-lo a apresentar-se, o que criou a oportunidade para o orgulhoso bilhete de ruptura anteriormente mencionado. Fim da renda que recebia de Lichnowsky! Beethoven não aceitava nada que aprisionasse na música. Então, como viver? Uma tentativa de acordo com a direção dos teatros de Vienafracassou.No final de 1808, Beethoven, apesar da aversão que nutria pela França napoleónica, cogitou de aceitar o posto de Kapellmeister de Jerónimo Bonaparte, irmão de Napoleão e rei da Vestfália. imediatamente, Viena comoveu-se. Em I de março de 1809, seu aluno, o arquiduque Rodolfo, e os príncipes Lobkowitz e Kinsky assinaram um contrato pelo qual asseguravam ao compositor uma renda de 4 mil florins, sem dele exigirem nada além de que permanecesse em Viena. Foi a primeira vez que um músico de talento obteve uma vitória tão completa sobre a sociedade de seu tempo. Vitória que, por sinal de quase nada adiantou, em vista da nova guerra. Em maio de 1809, Viena foi bombardeada (Beethoven sofreufisicamentenos ouvidos doentes a explosão das bombas) e depois novamente ocupada pelos franceses. A saúde de Beethoven, que se deteriorava, agravou-se com a escassez de recursos que sobreveio no inverno seguinte. Sentiu-se atingido — mais moralmente que fisicamente — pela queda "da única pátria ainda alemã". A batalha de Wagran arruinara as finanças austríacas, e o governo desvalorizou o florim. Dos três príncipes signatários do contrato, um deles (Lobkowitz) deixou de cumpri-lo e outro (Kinsky) morreu acidentalmente. A renda de Beethoven, bastante cfiminuída pela desvalorização, só lhe foi paga de forma incompleta e irregular, e até o final da vida ele ficou à mercê de grandes embaraços financeiros que iriam prejudicar seu trabalho. Prosseguiu contudo seu caminho, sem ilusão nem abdicação. "Para ti, pobre Beethoven", escreveu, "não há qualquer felicidade exterior; és tu quem deves criar tudo em t i mesmo." Em maio de 1810, travou-se uma amizade terna e profunda entre o compositor e a jovem Bettina Brentano. Desde o primeiro encontro, ela ficara fascinada por ele. Escreveu a um amigo em 9 de julho de 1810: o
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mestre e tão verdadeiro que nenhum artista a ele pode comparar-se. Mas nas outras coisas da vida, sua distração é objeto de risos, e ele é t ã o i n g ê n u o que se pode fazer dele o que quiser. Tenho por esse homem u m a ternura infinita.
Beethoven estava disposto a apaixonar-se verdadeiramente por Bettina. De todo modo, jamais tivera essa impressão de ser tão intimamente compreendido, e a ela confiou alguns de seus pensamentos mais caros: A m ú s i c a é u m a revelação superior a toda sabedoria e a toda filosofia... Sou o Baco que vindirna a bebida de que se embriaga a humanidade... Os artistas são feitos de fogo, n ã o choram... Aquele que u m a vez compreendeu minha música, este deve libertar-se de todas as misérias em que os outros se arrastam.
Essas palavras, relatadas por Bettina, estão em sintonia com a expressão musical das obras que Beethoven acabara ou estava acabando de escrever, ou que então se encontravam em projeto: Sonata Lebewohl [Adeus], a música de cena para Egmont, o Quarteto n" 11 (que chamou, em italiano, Quartetto Serioso), e o Trio Arquiduque, de 1811. O sonho de Bettina, já íntima de Goethe antes de encontrar Beethoven, era fazer com que os dois gênios alemães se conhecessem. Este sonho só seria realizado em julho de 1812, na estação de águas de Toepliz, na Boêmia, onde Beethoven fora se tratar. Goethe era sem dúvida o contemporâneo vivo que Beethoven mais admirava desde a adolescência e cuja obra melhor conhecia; ele acabara de compor música para Egmont e durante toda a vida sonharia em musicar o Fausto. As conversas que Goethe e Beethoven mantiveram não resultaram, porém, em qualquer diálogo verdadeiro, e o encontro terminou sendo umfracasso.Goethe não escondeu sua admiração: "Nunca vi um artista mais poderosamente concentrado, mais enérgico, mais interior." Mais forte ainda, no entanto, foi sua desaprovação diante do comportamento indómito de Beethoven: Infelizmente, é u m a personalidade completamente descontrolada. Decerto tem razão de achar o mundo detestável; mas, na verdade, nada faz para tornar esse mundo mais agradável para si e para os outros.
Beethoven, por sua vez, escandalizado com a atitude obsequiosa do cortesão Goethe diante dos poderosos, escreveu: O ar da corte agrada muito a Goethe. Mais do que c o n v é m a u m poeta. N ã o falemos dos ridículos dos virtuoses daqui se os poetas, que deveriam ser os primeiros educadores de
É pequeno, moreno, marcado pela varicela, o que se chama de feio. Mas tem uma fronte
uma nação, podem esquecer todo o resto por essa quimera.
tão nobremente modelada que poderia ser contemplada como uma magnífica obra de arte; cabelos negros muito compridos, que ele joga para trás; parece ter apenas trinta anos; ele próprio desconhece sua idade, mas julga ter 35 anos [na verdade, tinha 39]. Suas roupas são rasgadas, tem u m ar completamente andrajoso, e contudo seu aspecto é imponente e magnífico... E m tudo o que diz respeito à arte, ele é de tal forma u m
Repreendido por Beethoven, Goethe nunca o perdoou. Deixou suas remessas de cartas e de músicas sem resposta, insultando-o com o mais desdenhoso dos silêncios: o mais incuravelmente surdo entre os dois gênios não era o que se pensava que fosse.
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"Uma personalidade completamente descontrolada": Goethe não se enganara ao qualificar assim o músico. O que teria dito, contudo, se houvesse lido uma carta que, pouco antes de seu encontro com Goethe, Beethoven escrevera, a 17 de julho de 1812, a uma jovem admiradora desconhecida, a pequena Emilia de Hamburg?
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Os anos de crise (1813-1817) No início de 1813, Beethoven anotou em seu diário: T u n ã o podes mais ser homem, para ti tu n ã o o podes mais, somente para os outros; para ti, n ã o h á mais qualquer felicidade a n ã o ser em ti mesmo, em tua arte. O h , Deus,
O verdadeiro artista não tem orgulho; sabe que a arte n ã o tem limites; sente obscuramen-
dai-me força para vencer-me a m i m mesmo! D e agora em diante nada pode me prender
te até que ponto está distante do objetivo; e, enquanto os outros talvez o admirem, ele
à vida!
deplora n ã o ter ainda chegado lá longe, onde u m g ê n i o melhor brilha s ó para ele, como um sol l o n g í n q u o . Não reconheço em qualquer homem outro sinal de superioridade
além
da bondade — onde a encontro, está o meu lar.
Nesses mesmos dias de julho de 1812, Beethoven novamente experimentou, com pungente intensidade, um amor correspondido. Sabemos disso por uma carta (escrita em três partes nos dias 6 e 7 desse mesmo mês) que foi encontrada na casa de Beethoven depois de sua morte e na qual se dirige a uma mulher como sua "imortal bem-amada": Fica calma, é apenas por uma c o n t e m p l a ç ã o tranqüila de nossa existência que poderemos chegar ao nosso objetivo, que é vivermos juntos — fica calma, ama-me — hoje — ontem — que aspiração, banhada em lágrimas por ti —-tu — minha vida — meu tudo •— meu eu!
O estilo tão beethoveniano dessas páginas ardentes não deixa de lembrar o de páginas anteriores que escrevera à "única bem-amada". Ficou todavia o enigma, sobre o qual debruçaram-se tantos biógrafos. Nenhuma prova formal permite identificar a "imortal" cóm segurança. A hipótese menos improvável nos parece ser a que identifica a "imortal" de 1812 com a "única" de 1804-1805: Josefina von Brunsvik, casada, então já havia algum tempo, com um estranho barão von Stackelberg, que desapareceu depois de alguns meses, em julho de 1812, e só retornou alguns anos depois. Certas aproximações musicais podem mesmo favorecer essa hipótese e, nesse caso, a filha que Josefina deu à luz nove meses depois da "carta à imortal bem-amada", Miñona, pode ter sido filha de Beethoven. Seja como for, depois de alguns meses de exaltação em que Beethoven terminou a Sétima e a Oitava Sinfonias e escreveu a Sonata para piano e violino opus 96, uma misteriosa catástrofe veio destruir todas as suas esperanças, no final de 1812. Ele jamais teria amor conjugai nem vida familiar. Aos 42 anos, Beethoven estava definitivamente só. E, no plano da criação, o fluxo dionisíaco se interrompera acabado: uma nona sinfonia, projetada em ré menor para constilxur um tríptico com a Sétima e a Oitava, não foi escrita; foi preciso que se passassem seis anos para que Beethoven reencontrasse sua plena vitalidade.
Pouco adiante, uma outra nota mostra que ele pensava novamente em suicídio. Sua produção rarefez-se. Mas a "guerra de libertação" da Alemanha contra Napoleão ainda era capaz de galvanizá-lo. Foi então que escreveu a Batalha de vitória (ou Vitória de Wellington), que está bem longe de ser a melhor de suas obras orquestrais. "É uma estupidez", diria ele mais tarde, mas, entre todas, teve a acolhida mais triunfal. A Alemanha inteira saudou em Beethoven seu músico nacional. Sua popularidade cresceu com cantatas e outras composições de circunstância que ele escreveria para as vitórias difinitivas dos aliados, em 1814 e 1815. No Congresso de Viena, os soberanos e os príncipes aplaudiam-no lisonjeiramente, enquanto comerciantes e estudantes aclamavam-no nas ruas. Essa retomada dos favores dos poderosos e do povo mostrou-se propícia a uma nova representação de Fidelio, cujas duas primeiras versões, de 1805 e 1806, não haviam feito o menor sucesso. Beethoven voltou a trabalhar na obra. Em 23 de maio de 1814, apresentou uma nova e definitiva versão (com uma quarta Ouverture, de Fidelio, e não mais de Leonora). Nunca trabalharia com tanto afinco em qualquer outra de suas obras quanto trabalhou na composição de sua única ópera. O introvertido Beethoven não tinha o dom dramático do extrovertido Mozart para identificar-se com cada personagem ao caracterizá-la: criou uma narrativa épica genial que obrigava o lugar e a duração do espetáculo de ópera a acomodar-se a ela. Uma mulher heróica e apaixonada, Leonora, sob o nome e a vestimenta do ajudante de carceragem Fidélio, introduz-se na prisão de Estado, onde seu marido Florestan está detido secretamente e condenado à morte. Ela consegue pôr em xeque o tirano e obter a libertação de Florestan e de todos os presos políticos. Leonora encarna desse modo a união do amor e da força {"Lieb' und Kraft"), que é a chave da estética e da ética beethovenianas: ela exalta sua paixão combatendo pela liberdade. É significativo que Beethoven, na versão final de 1814 e sobretudo no último finale da ópera, tenha acentuado mais ainda traços que lhe vinham da influência dos músicos da Revolução Francesa: finalmente, ele conseguia compor o canto que comemora — e anuncia — a tomada de todas as Bastilhas do mundo. Dessa vez, o sucesso público respondeu ao esforço criador. Mas como poderia esta epopéia conviver bem por muito tempo com a contra-revolução que se instaurou no poder por toda a Europa com a queda de Napoleão? Em todo caso, para Beethoven, a desilusão chegou depressa. Aquela Alemanha fragmentada como no
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passado, acorrentada pela polícia de Metternich, submetida à política da Santa Aliança, não se parecia em nada com a Alemanha com que haviam sonhado os combatentes da "guerra de libertação" e seus cantores. O homem que copiara em seus diários textos de Zacharias Werner—tais como: "Combate pelo direito e pela filha do direito, a eterna Liberdade" — indignava-se com o absolutismo restaurado e agravado que pretendia ditar sua lei ao mundo. De agora em diante, Beethoven seria e permaneceria sendo, durante toda a vida, um opositor irreconciliável do regime de Metternich. Mais de uma vez seus amigos estremeceriam ao ouvi-lo expressar-se em público sem qualquer comedimento, e a polícia chegou a inquietar-se com seus pronunciamentos. "Ah, se soubessem o que pensais em vossa música!", exclamou um de seus interlocutores, fazendo referência à impiedosa e mesquinha censura que, em Viena, pesava sobre toda expressão literária. Para Beethoven, o ano de 1815 foi sobretudo um tempo de reflexão, esclarecido por leituras e pela amizade (já antiga, mas interrompida por desencontros) da condessa Maria Erdõdy, a quem dedicou as duas admiráveis Sonatas para piano e violoncelo opus 102. Foi também à condessa Erdõdy que transmitiu, em carta, uma de suas mais significativas divisas: "Nós, seres limitados de espírito ilimitado, nascemos apenas para o sofrimento e para a alegria, e quase poderíamos dizer que os mais destacados apropriam-se da alegria através do sofrimento (durch Leiden Freude)" No final de 1815, o irmão de Beethoven, Karl, já há algum tempo doente, morreu, deixando um filho de oito anos, também chamado Karl, de quem Ludwig tornou-se co-tutor. Privado de toda afeição, Beethoven queria a todo custo cuidar do menino sozinho. A mãe da criança era uma mulher frivola e de conduta leviana. Beethoven quis excluí-la da tutela, mas só conseguiu isso depois de anos de processos extenuantes; grande parte da atividade do compositor foi consumida nesses cuidados e nas tarefas de pai adotivo. O pequeno Karl revelou-se um ser bastante apagado, traumatizado pelo duelo entre a mãe e o tio pela sua posse. Para Beethoven, seria uma fonte contínua de preocupações, de irritação e de decepção, bem adequadas a uma ternura paternal tão desajeitada quanto intensa. Junto com Karl, todos os embaraços domésticos e econômicos invadiram a existência cotidiana de um músico que jamais entendera nada da vida prática.
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escrito, intratável em sua hostilidade ao sistema de Metternich e considerado superado pelos entusiastas de Rossini (cuja música estava conquistando a sociedade européia da Santa Aliança: uma música do prazer, e não da "alegria através do sofrimento"), Beethoven mergulhou em um "estado de desespero" (foi nesses termos que veio a falar mais tarde desse período). Essa depressão, tão profunda, quase aniquilou seu poder criador em 1817. Mas algumas semanas mais tarde, escreveu à fiel Nanette Streicher, que tentava ajudá-lo nas fadigas da economia doméstica: "Tem paciência comigo... Ainda me chamo Beethoven!" "Gostarão mais tarde" (1818-1827) De fato, na primavera de 1818, como um convalescente, Beethoven voltou a encontrar forças para prosseguir criando. Dessa época em diante, trabalharia ainda mais lentamente, mas com concentração e entusiasmo redobrados. A certidão de nascimento dessa renovação foi passada pela conclusão, no início de 1819, da monumental Sonata opus 106, uma sinfonia só para piano. "Eis uma obra que dará trabalho aos pianistas", escreveu Beethoven. Seu partido estava definido: não criava para seus contemporâneos, mas para a humanidade futura. A indomável vitalidade beethoveniana projetava sua mensagem para além da era de regressão à qual ele recusava acomodar-se. Compôs então as três últimas Sonatas para piano opus 109, 110 e 111 (1820-início de 1822), concebidas como uma trilogia quase autobiográfica, as Variações Diabelli, em que o tema mais anodino engendra o mais prodigioso universo pianístico (1819-1823) e outra obra-prima bastante desconhecida, as seis Bagatelles do opus 126 (1824). O pintor Kloeber, que fez em 1818 o retrato de Beethoven, descreveu-o assim: Beethoven tinha sempre o ar grave; seus olhos, extremamente vivos, ficavam muitas vezes sonhadores, com o olhar u m tanto sombrio... Seus lábios eram cerrados, mas o traço ao redor da boca n ã o era rebarbativo... Quando sua cabeleira agitava-se tumultuosamente, ele tinha de verdade qualquer coisa de d e m o n í a c o .
A essa descrição devem ser acrescentadas as observações de um visitante inglês que ouviu Beethoven improvisar por volta de 1821: Para o profano, o mais interessante era observar como a m ú s i c a passava da alma daquele homem para seu rosto. Ele parecia ter sentimentos antes audazes, imperiosos e intempestivos do que calmos e langorosos. Os m ú s c u l o s de seu rosto inchavam, suas veias
Estava cicatrizada a ferida no coração pela separação da "imortal bem-amada"? Segundo o testemunho de amigos próximos, parece que era sempre o mesmo amor que Beethoven evocava, com pungente nostalgia, enquando trabalhava, no maior segredo, durante meses, no ciclo de lieder À distante bem-amada, a única obra importante de 1816, juntamente com a Sonata para piano opus 101. Mais solitário ainda em companhia do filho adotivo, freqüentemente enfermo, surdo a ponto de não se poder mais entrar em comunicação com ele, senão por
saltavam, o olhar selvagem movia-se com violência, os lábios apertavam-se. Beethoven parecia u m m á g i c o que se sentia senhor dos espíritos que evocava.
O impulso criador fora reencontrado por Beethoven graças ao lirismo pianístico; o sopro épico logo renasceu. Dofimde 1818 a 1822, Beethoven trabalhou em sua Missa Solemnis, em estado de grande exaltação espiritual e musical. "No mundo da arte, como na criação como um todo, a liberdade e a força de ir sempre
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adiante são o objetivo", escreveu então a seu aluno, o arquiduque Rodolfo. No final de 1822, sentiu-se finalmente pronto para começar a Nona Sinfonia com coro final sobre a Ode à alegria, de Schiller, que concluiria na primavera de 1824. Beethoven já pensava em musicar esse poema de Schiller desde 1792, antes de deixar Bonn para ir a Viena. Schiller escrevera a Ode para amigos franco-maçons (como o próprio Beethoven) em uma linguagem destinada a despistar a censura: todo mundo sabia que a palavra Freude ("alegria") escondia a palavra Freiheit ("liberdade"), de mesmo valor métrico em alemão. Instaurara-se uma tradição nas reuniões clandestinas dos "jacobinos" renanos: cantar alternadamente, com a melodia da Marseillaise, uma estrofe da Marseillaise em francês e uma estrofe da Ode à alegria em alemão. Quem mais se lembraria disso na Viena de Metternich, em que o texto de Schiller parecia simplesmente de uma ingenuidade utópica e fora de uso? Mas Beethoven sabia "o que pensava em sua música": sob o jugo do regime mais contrarevolucionário da Europa, em um mundo em que mais de um combatente da l i berdade ainda deveria cantar sob tortura, Beethoven quis, para retomar as palavras do poeta francês Louis Aragon, "aprimorar a Marseillaise paia toda a humanidade". No dia 7 de maio de 1824, Beethoven deu um grande concerto no qual o público vienense pôde ouvir pela primeira vez, além de três fragmentos da Missa Solemnis, a Nona. Todos os fiéis admiradores do compositor compareceram; a sala estava cheia, e só o camarote reservado aos membros da família imperial permaneceu vazio. Beethoven postou-se ao lado do Kapellmeister Umlauf, que regia: estava tão surdo que nem percebeu nada da formidável ovação final, até que a cantora Karoline Unger tomou-o pelos ombros para que ele voltasse o rosto para a sala em defirió... Mas, para o segundo concerto, a sala estava bem longe de estar lotada: à parte o punhado de fiéis, não havia mais público em Viena disposto a buscar a mensagem da alegria beethoveniana. Beethoven não se perturbou profundamente, embora tenha resmungado bastante contra a moda italianizante e o prazer rossiniano em que havia submergido Viena. Apenas disse: "Sei que sou um artista." Estivera gravemente enfermo em 1821 e ficaria doente de novo em 1825; tinha freqüentes momentos de furor ou de tristeza, mas nos enganaríamos totalmente se fizéssemos de seu caráter uma idéia uniformemente sombria, tensa, trágica ou amarga. Muitas vezes, ele transbordava de humor e jovialidade. Quando podia sentir-se realmente "à vontade" na companhia de verdadeiros amigos, dava livre curso a sua verve e a sua exuberância; sorria do mal que seus inimigos pensavam causar-lhe, fazendo-o passar por um misántropo. Ia assiduamente ao café, para 1er os jornais, fumar seu cachimbo, manterse a par dos acontecimentos políticos (insurreições liberais na Espanha ou na Itália, guerra de independência grega etc.) e comentá-los com alguns amigos íntimos. Além disso, consagrava-se à criação (e ao sobrinho) e sonhava com poder ainda uma vez saudar "nosso pai, o Reno" antes de morrer...
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"Tenho a impressão ainda só de ter escrito algumas notas", disse no dia seguinte ao da primeira apresentação da Nona Sinfonia. E de fato, mais uma vez, era "um novo caminho" o que ele abriu com os "últimos" quartetos, cuja composição consumira seu tempo do verão de 1824 ao outono de 1826: o Quarteto n° 12, em mi bemol, o Quarteto n° 15, em lá menor (com o Canto de reconhecimento de um convalescente à divindade), o Décimo terceiro, em si bemol (inseparável da Grande Fuga, que constituía seu término primitivo), o Quarteto n" 14, em dó sustenido menor, que com certeza não tem qualquer equivalente na história da música, e o Quarteto n° 16, emfá maior, em que, sob as palavras "Muss es sein? Es muss sein" [É preciso? Sim, é preciso], Beethoven retoma seu invariável desafio ao destino. Lirismo? Epopéia? Desta vez, na unidade dos quatro instrumentos de cordas, o EU e o NÓS eram apenas um. E quando lhe disseram que um dos últimos quartetos havia sido mal acolhido, respondeu só isso: "Gostarão mais tarde." Mais do que nunca Beethoven transbordava de projetos: um novo quinteto para cordas e uma décima sinfonia, nos quais já trabalhava, um Requiem, um "Oratório sobre os elementos" que mostraria "o homem, primeiro como escravo depois como senhor dos elementos da natureza" o Fausto com que sonhava há vinte anos... No dia I de dezembro de 1826, voltando a Viena depois de uma temporada de dois meses no campo, pegou friagem. Depois de quatro meses de sofrimento, morreu de uma cirrose, quase certamente conseqüência de uma tuberculose e não de alcoolismo, no dia 26 de março de 1827. Uma das suas últimas alegrias foi descobrir e saudar o talento de Franz Schubert. Deixou "toda uma sinfonia esboçada sobre a escrivaninha": por negligência ou imbecilidade, os testamenteiros não a conservaram. Beethoven tinha cinqüenta anos. Seu último gesto na agonia teria sido o de erguer o punho em direção ao céu como para encetar um último combate contra o Destino. o
** *
"Não é para vós, mas para as gerações futuras", disse Beethoven a um instrumentista em 1806, o que bem corresponde ao "gostarão mais tarde" dos últimos meses. As obras de Beethoven criaram seu próprio público em um gesto prometéico, criador de novas comunhões. Haveria toda uma história do beethovenianismo e dos beethovenianos a ser escrita. Aproximadamente em 1927, Romain Rolland acreditava ser o último adepto de um Beethoven "humanitário". Mais tarde, Beethoven foi redescoberto por músicos contemporâneos, exatamente pelo seu gênio musical, para além das difamações ineptas de um Cocteau e outros. Será preciso citar, além de Bartók e de Varèse, Barraqué, Boucourechliev, Xenakis, Pierre Henry e outros tantos mais? Os itinerários de descoberta e de exploração mudaram nos últimos 25 anos: quem ainda diria que Beethoven é grandiloqüente e pomposo?
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Permanece, para além das flutuações dos requintados e dos especialistas, urna adesão indefectível de massas: a música de Beethoven é a mais popular de todas as grandes músicas da historia. Sempre haverá espíritos sofisticados e carrancudos por ficarem aflitos com a música de Beethoven, mas os discos e os concertos provam que o fogo beethoveniano ainda não parou de iluminar e de inflamar nfilhões de pessoas. Por quê? Quando se fala de Beethoven, sempre se é levado a ir além das razões puramente estéticas que há para nos maravilharmos com suas obras. "Nessa orquestra, há o coração humano", dizia Victor Hugo. "Essa grandeza serve para fazer amar." O impacto de Beethoven está na fusão indissolúvel de ternura e entusiasmo, de amor e força no sofrimento como no júbilo, da bondade a mais profunda com a mais indómita liberdade. "Saída do coração, que ela chegue ao coração", dizia Beethoven de sua música. É claro que há temperamentos beethovemanos por afinidade, assim como há temperamentos mozartianos ou wagnerianos. Mas o que é interessante é a conjunção desse temperamento beethoveniano com a adesão indefectível das massas. Existe certamente uma mensagem beethoveniana: a quem ela se clirige? "Aquele que uma vez compreendeu minha música deve libertar-se de todas as misérias em que os outros chafurdam." Nenhum músico jamais havia feito até então tamanho ato de fé no poder da música. Ao mesmo tempo, nenhum deles havia delineado para a música um propósito que subordinasse tão imperiosamente a si as operações puramente musicais. Finalmente, a história do beethovenianismo confunde-se com a história dos seres humanos que, contra ventos e marés, contra os maus destinos e a adversidade das restrições, da solidão do coração e da doença, continuam a perseverar na certeza voluntária e mesmo entusiasmada de que podem e devem tornar-se criadores de sua própria liberdade e de sua própria história.
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DATAS ACONTECIMENTOS 16 ou 17 de dezembro: nascimento em Bonn. 1770 Início das aulas de Neefe; amizade de Wegeler 1782 e dos Breuning Beethoven "repetidor" no teatro de Bonn. 1783 Beethoven segundo organista titular. 1784 1785 1787 1789 1790 1791
Waldstein conhece Beethoven. Beethoven vê Mozart em Viena; volta a Bonn, onde a mãe morre. Beethoven estudante na Universidade de Bonn. Primeiro encontro com Haydn. Amor por Eleonora von Breuning.
1792 1793 1794 1795
Novembro: chegada a Viena. Beethoven aluno de Haydn.
1796 1797
Turnes Praga-Berlim; início da surdez. Amores diversos.
1798
Embaixada de Bernadotte em Viena; nova turnê em Praga
1799
Encontro com as irmãs Brunsvik.
1800 1801
2 de abril: primeiro grande concerto público. Progresso e crise da surdez; amor por Giulietta Guicciardi
Fim dos estudos com Haydn. Sucessos mundanos de Beethoven virtuose.
1
PRINCIPAIS OBRAS SÓ PARA PIANO Nove variações "Dressier", dó menor WoO 63 Três sonatinas "ao eleitor", WoO 47 Minueto WoO 82
Dois prelúdios (piano e órgão?), opus 39 Sonata inacabada para Wegeler, WoO 50 Sonata inacabada para Eleonora v. B., WoO 51 Várias séries de variações
Três sonatas, opus 2 (fá menor, lá, dó) Várias séries de Variações Rondo a capriccio, opus 129 Sonata fácil, opus 49 n° 2, em sol Sonata (quatro mãos), opus 6, em ré Sonata, opus 7, em mi bemol Três sonatas, opus 10 (dó menor, fá, ré) Sonata fácil, opus 49 n°l, em sol menor Sonata patética, opus 13, em dó menor Duas sonatas, opus 14 (mi, sol) Sonata, opus 22, em si bemol Sonata (Marcha fúnebre), opus 26,
em lá bemol Sonata, opus 27 n° 1, em mi bemol Sonata (Ao luar), opus 27, em dó
1802
sustenido menor Sonata, opus 28, em ré Tentação do suicídio; "testamento" de Heiligenstadt. Sonata, opus 31 n°l, em sol Sonata (A tempestade), opus 31 n° 2,
em ré menor Bagatelles, opus 33
Variações, opus 34, Variações, opus 35 1803
Primeiros projetos de uma ópera.
Sonata, opus 31 n° 3 (La Caillé),
1804
Amor por Josefina von Brunsvik, viúva Deyn
Sonata (a Waldstein), opus 53 em dó
em mi bemol Andante favorito, WoO 57, em fá Sonata, opus 54, em fá
WoO: obras sem número de opus no catálogo Kinsky / P: piano; V: violino; Vc: violoncelo; Va: viola. As tonalidades indicadas são maiores, exceto especificação de menor.
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DATAS ACONTECIMENTOS 1805 Josefina dispensa Beethoven. Os franceses em Viena (Austerlitz).
PRINCIPAIS OBRAS SÓ PARA PIANO
1806
32 Variações em dó menor, WoO 80
1807 1808 1809
Fracasso da ópera. Outono: estada em Silesia, ruptura com Lichnowsky. Setembro: na Hungria, com Esterhazy. Amizade amorosa por Maria Bigot. Intimidade profunda com Maria Erdõdy. Beethoven pensa em deixar Viena. Renda garantida pelos príncipes, Viena bombardeada; Wagram.
em fá menor
Variações, opus 76 Fantasia, opus 77, em sol menor em fá sustenido Sonata, opus 79, em sol
1811 1812 1813 1814 1815 1816 1817
Tereza Malfattí rompe com Beethoven. Reencontro com Bettina Brentano. Primeira estação de cura em Toeplitz. A Imortal Bem-Amada. Encontro com Goethe em Toeplitz. Ano de grave crise intima.
Sonata (Lebewohl), opus 81 A
Congresso de Viena: Beethoven em glória.
Sonata, opus 90, em mi menor Polonaise, opus 89, em dó
15 de novembro: morte do irmão Karl; início da tutela do sobrinho Karl. A tutela é disputada pela mãe. Depressão profunda.
DATAS PRINCIPAIS OBRAS DE MÚSICA DE CAMERA
Sonata (Appassionato.), opus 57,
Sonata (a Tereza), opus 78,
1810
(começada em 1809), em mi bemol
1783 1784
Primeiros Lieder
1785 1790
Três Quartetos P.V.Va.Vc, WoO 36 Trio P.-flauta-fagote, em sol, WoO 39
1791 1792
Trio P.V.Vc, em mi bemol, WoO 38 Trio de cordas, opus 3, em mi bemol Octeto para sopro, opus 103, em mi bemol
1793 1794
Variações Se vuol hallare, P.V., WoO 40
1795
1796
1797 1798
Sonata, opus 101, em lá (início do trabalho para a Sonata,
1800
Reconquista da vitalidade. Início dos "Cadernos de conversação".
1820
Beethoven suspeito para a polícia.
1821
Ictericia, saúde comprometida.
1822
Retomada de Fidelio, encontro com Rossini.
Concerto P. em mi bemol, WoO 4 (esboço)
Sonata (Hammerklavier), opus 106,
em si bemol Sonata, opus 109, em mi (e início das Sonatas, opus 110 e 111) Sonata, opus 111, em dó menor Sonata, opus 111, em dó menor Bagatelles, opus 119, n° 1 a 6
1823
Encontro com Weber.
Variações Diabelü, opus 120, em dó (começadas no início de 1819)
1824 1825
7 de maio: último grande concerto público. Diversas doenças sérias. Graves dificuldades com o sobrinho. Tentativa de suicídio do sobrinho. Outono: estada em Gneixendorf. Dezembro: última doença.
Seis Bagatelles, opus 126
1827
Morte em 26 de março, em Viena.
Cantata sobre a morte de José II, WoO 87 Ritterballet, WoO 1 Fragmento de um concerto V. em dó, WoO 5
Três trios P.V.Vc, opus 1 (mi bemol, sol, dó menor) Trio para sopros, opus 87, em dó Sexteto para cordas e coro, opus 81 B, em mi bemol Concerto P. n° 2, em si bemol, opus 19 Quinteto de cordas, opus 4, em mi bemol (retomado em 1798) Serenata Flauta, V.Va., opus 25, em ré Duas Sonatas P.Vc, opus 9 (sol, ré, dó menor) Quinteto P. Sopros, opus 16, em mi bemol Sexteto para sopros, opus 71, em mi bemol Serenata para trio de cordas, opus 8, em ré Três trios para cordas, opus 9 (sol, ré, dó menor) Trio P. Clarineta Vc, opus 11, em si bemol Três Sonatas P.V., opus 12 (ré, lá, mi bemol) Seis quartetos de cordas (Lobkowitz), opus 18 (fá, sol, ré, dó menor, lá, si bemol) Sonata P. Trompa, opus 17, em fá Septeto de cordas e sopros, opus 20, em mi bemol
Ah pérfido!, soprano e orquestra, opus 65
Concerto P. n° 1, em dó, opus 15 (começado em 1794) Sinfonia n° 1, em dó, opus 21
1801
Sonata P.V., opus 23, em lá menor Sonata P.V., opus 24, em fá Quinteto de cordas, opus 29, em dó
As Criaturas de Prometeu, balé, opus 43 Duas romanças V. e orquestra, em sol, opus 40 e em fá, opus 50
1802
Três Sonatas P.V., opus 30 (lá, dó menor, sol)
Concerto P. n° 3, em dó menor, opus 37 (1» versão de 1800) Sinfonia n°2, em ré, opus 36
1803
Sonata P.V. (a Kreutzer), opus 47, em lá Gallert-Lieder, opus 48
O Cristo no monte das Oliveiras, oratório,
1804
An die Hoffnung ( I versão), opus 32
Bagatelles, opus 119, n" 7 a 11
1826
PRINCIPAIS OBRAS PARA ORQUESTRA (com ou sem voz)
Cantata Adelaide, opus 46
opus 106)
1818 1819
621
Ludwig van Beethoven
a
opus 85 Sinfonia Heróica n° 3, em mi bemol, opus 55
Concerto P.V.Vc, em dó, opus 56 Leonore = Fidelio, ópera (I versão) e a
1805
Ouverture Leonore (III), opus 72, em dó
1806
Três Quartetos para cordas (Rasumovski), opus 59 (fá, mi menor, dó)
a
Leonore = Fidelio, ópera (2 versão) e Ouverture Leonore (III), opus 72, em dó
Concerto P. n° 4, em sol, opus 58 Sinfonia n° 4, em si bemol, opus 60 Concerto V. em ré, opus 61
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DATAS
PRINCIPAIS OBRAS D E MÚSICA D E CAMERA
1807
In questa tomba oscura, WoO 133
PRINCIPAIS OBRAS PARA ORQUESTRA
(com ou sem voz) Ouverture de Coriolano, opus 62,
em dó menor Concerto P., em ré, adaptado do Concerto V., e cadências novas — Missa em dó, opus 86 1808
Sonata P.Vc, opus 69, em lá Dois trios P.V.Vc (Erdõdy), opus 70 (ré, mi bemol)
Sinfonia n° 5 em dó menor, opus 67 Sinfonia pastoral n° 6, em fá, opus 68
Fantasia P., orquestra e coro, opus 80 1809
Quarteto de cordas n° 10, opus 74, em mi bemol
Concerto P. n° 5 em mi bemol
Goethe-Lieder opus 75
(O Imperador), opus 73
1810
Goethe-Lieder opus 83
Ouverture (fá menor) e música de cena para Egmont, opus 84
1811
Trio P.V.Vc. (Ao arquiduque), opus 97, em si bemol As ruínas de Atenas, opus 113
1812
Sonata P.V., opus 96, em sol Igual para quatro trombones, WoO 30
1813
An die Hoffming (2 versão), opus 94
A Batalha de Vitória, opus 91 — Tarpeja,
1814
Elegischer Gesang, opus 118
Fidelio (última versão) e Ouverture em mi Diversas contribuições patrióticas e Cantata, opus 136
1815
Duas Sonatas P. Vc. (Erdõdy), opus 102 (dó, ré)
Ouverture Namensfeier, opus 115, em dó Leonore Prohaska, WoO 96 Meeresstille und glückliche Fahrt, opus 112
1816
À distante bem-amada, opus 98
1817 1818
Fuga para quinteto de cordas, opus 137, em ré Temas variados P. Flauta (ou V.), opus 105 e 107
1819
Danças em septeto para Mõdling, WoO 17
1820
Abendlied unterm gestirnten Himmel, WoO 150
1822
Bundeslied, opus 122
Quarteto de cordas n° 11, opus 95, em fá menor
35
WEBER E SEUS CONTEMPORÂNEOS
O rei Etienne, opus 117
a
Sinfonia n° 7, em lá, opus 92 Sinfonia n° 8, em fá, opus 93
GERMÂNICOS
WoO 2
(início do trabalho para a Missa Solemnis)
Missa Solemnis, opus 123 (últimos
retoques em 1823), em ré Ouverture Die Weihe des Hauses, opus 124,
em dó 1823 1824
1825
(Trabalho para a Nona Sinfonia desde o outono de 1822) Quarteto de cordas n° 12 (Galitziné), em mi bemol, opus 127 (esboçados desde maio de 1822, retoquesfinais,fevereiro de 1825)
Sinfonia n° 9 em ré menor com coro, opus 125
Opferlied (última versão), opus 121 B
Quarteto n°15 (Galitziné II), opus 132, em lá menor Quarteto n°13 (Galitziné III), opus 130, em si bemol e Grande Fuga, opus 133, em si bemol
1826
Quarteto de cordas n°14, opus 131, em dó sustenido menor Quarteto de cordas n°16, opus 135, em fá maior Novofinaldo Quarteto n°13 Início de um Quinteto de cordas, WoO 62
Esboços de uma Décima Sinfonia
Hummel É possível imaginar personagem mais "histórica" do que o compositor Johann Nepomuk Hummel? Nascido em Bratislava, em 1778, foi uma criança prodígio descoberta ainda bem jovem por Mozart, que dele se incumbiu durante dois anos para dar-lhe uma perfeita educação musical. Depois foi discípulo de Joseph Haydn, que encontrou na Inglaterra e que o indicou para o cargo de chefe de orquestra do príncipe Esterhazy, o qual exerceu de 1804 a 1811. Mais tarde, finalmente fixado em Weimar, Hummel teve a oportunidade de cuidar de Carl Maria von Weber — há muito seu amigo e rival em virtuosismo pianístico —, mortalmente ofendido pela indiferença de Goethe. Amigo fiel de Beethoven, enfim, Hummel precipitou-se até Viena para assistir o doente em seus últimos dias. Nessa ocasião, descobriu o valor de um músico vienense até então desconhecido, Franz Schubert. Quando Hummel morreu, em 1837, era um dos compositores mais afamados da Alemanha, senão o mais, e célebre em toda a Europa. Chopin e Lizt reconheceram a influência que sobre eles exercera Hummel. Compositor fecundo, Johann Nepomuk Hummel era também um notável pedagogo. Talvez fosse, mais do que tudo, um grande virtuose do piano. Neste plano, herdeiro incontestável da tradição mozartiana, iria consagrar grande parte de sua obra (mais de 150 trabalhos) ao teclado, legando às gerações posteriores o primeiro grande método de piano, Klavierschule [Escola do teclado], publicado em 1828 e
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Sexta parte: no limiar do século XIX
seguido, em 1835, da série dos Vinte e quatro grandes estudos. Missas, óperas e balés compostos por Hummel tiveram menos sucesso póstumo do que os seus concertos ou do que certas obras de música de camera, famosas desde o surgimento (Septeto, Quinteto, etc.). Muitas vezes se disse que o Quinteto opus 67 de Hummel não poderia deixar de ter influenciado a concepção do famoso Quinteto Die Forelle [A truta], de Schubert (D 667, 1819). Publicado em 1821, o Quinteto de Hummel, composto em 1802, pode ter circulado pela Europa em cópias manuscritas. Preciosa testemunha de seu tempo, perfeita personagem de transição, importante como ponto de confluência de um "estilo" pianístico, Hummel é o continuador privilegiado de urna estética, sem se mostrar realmente inovador neste domínio. Em contrapartida, inaugurou o papel do virtuose do piano, não apenas pela interpretação, mas também e sobretudo pela composição, abrindo assim caminho para os grandes pianistas românticos. E. T. A. Hoffmann Completamente diferentes parecem ter sido o papel e o destino do pintor, escritor e compositor Ernst Theodor Amadeus Hoffmann (1776-1822), nascido em Koeningsberg, dois anos mais velho do que Hummel e, como este, quase contemporâneo de Beethoven. Também ele, como Hummel, era um admirador apaixonado de Mozart, a ponto mesmo de substituir seu terceiro nome pelo de Amadeus, em homenagem ao compositor; e a ponto de escrever uma novela com o inequívoco título de Don Juan, que se baseia em uma análise bastante bem argumentada da partitura da ópera mozartiana, que Hoffmann executara assiduamente durante anos. No entanto, se fosse preciso eleger um verdadeiro protótipo do romantismo alemão, não se poderia escolher e encontrar outro melhor do que E.T.A. Hoffmann. Perpétuo errante, insatisfeito por natureza, hesitando entre a pintura, a música e a literatura, Hoffmann deu o melhor de si neste último campo. Para a posteridade, permaneceu como o autor dos Contos fantásticos que ficariam célebres, do ponto de vista "musical", por terem sido transpostos para a ópera como Les Contes d'Hoffmann [Os contos de Hoffmann], de Jacques Offenbach, e também por terem inspirado as Kreisleriana, de Robert Schumann. Isso basta para dar uma idéia da importância desses contos e da maneira pela qual eles serviram como a chave que abriu as portas do ingresso no irreal como fonte de criação, descoberta por excelência do "romantismo alemão". Da criação como organização de um certo caos interior, da proposta de exploração de um certo irreal oculto no próprio âmago do real, de uma nova concepção da unidade do indivíduo que se tem em conta desses dois fatores — disso tudo a uma certa concepção da arte como totalidade há apenas um passo, que Hoffmann buscou transpor durante toda a vida.
Weber e seus contemporâneos germânicos
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Não há solução de continuidade entre o amor de Hoffmann pela música, cultuado desde a infância, e seu amor pela literatura. Hoffmann foi, ao mesmo tempo, escritor e músico, inaugurando desse modo uma função de crítico musical que se iria estender em seguida, por gerações de compositores, de Weber a Schumann, Berlioz, Wagner, Debussy et alii. Os primeiros artigos de crítica musical que Hoffmann escreveu foram publicados sem o nome do autor. Em seguida, ele passou a usar o pseudônimo de "Kreisler": Sofrimentos musicais do mestre de capela Johann Kreisler, primeiro texto da série das Kreislerianas, Reflexões sobre a alta dignidade da música, Carta do barão Walborn a Kreisler etc, textos que iriam finalmente resultar no ChatMurr. Não se pode negar a importância e a clarividência crítica de Hoffmann: os próprios compositores foram os primeiros a sublinhá-las. Assim ocorreu com Beethoven, que agradeceu a Hoffmann com efusão os artigos que este escrevera sobre os trios do opus 70 (Hoffmann exaltava em Beethoven a encarnação mais genial do "espírito romântico da música"), a Sinfonia em dó menor, a Ouverture de Coriolano e a música de cena para Egmont. Para Hoffmann, assim como não havia solução de continuidade entre a escrita literária e a música, também não havia ruptura entre a arte e a vida. Foi ele que instaurou, com Os irmãos Serapião, a prática daquelas pequenas sociedades fraternas (mais ou menos secretas e iniciáticas) em que a arte, prioridade essencial da vida, era vivida de forma compartilhada, sociedades que haveriam de florescer em seguida em torno de Weber, Schubert e Schumann. "Se dependesse apenas de mim, eu seria compositor" dizia Hoffmann. E ele foi compositor, mesmo que a memória disso tenha sido um pouco perdida — e o foi, mesmo antes de se tornar escritor. Cantor, pianista, organista, violinista, harpista e maestro, já havia composto várias óperas, uma sinfonia (em mi bemol), coros a cappella, música religiosa e várias obras de música de câmera antes de ter uma produção significativa no plano literário. Quase todas as suas óperas (Os músicos alegres, em 1804, Os hóspedes inesperados, em 1805, Aurora e Céfalo, Faustina, etc.) caíram atualmente no esquecimento, com exceção de Ondina, representada pela primeira vez com grande sucesso na ópera de Berlim, no dia 3 de agosto de 1816. Com Ondina, escrita a partir de um conto de Frédéric de La Motte-Fouqué, Hoffmann introduziu o fantástico na ópera. Alguns anos mais tarde, o Freischütz, de Carl Maria von Weber, viria retomar com toda a força esse propósito. Com isso, abria-se um novo caminho para a ópera alemã, que levou a Richard Wagner. Seja qual for o interesse da música instrumental de E.T.A. Hoffmann, sobretudo da música de câmara (Quinteto em dó menor para harpa e quarteto de cordas, Trio em mi maior para piano, violino e violoncelo), esta permanece eclipsada por sua obra de escritor. A originalidade da concepção, a irrupção do fantástico, essencial à démarche romântica, que se encontra na obra do escritor, estão presentes em menor grau (exceto em Ondina, porém muito em função do tema) na obra do compositor.
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Sexta parte: no limiar do século XIX
Ludwig Spohr Célebre por sua ópera Fausto, aliás excelente maestro e violinista virtuose, Ludwig Spohr (1784-1859) contou em sua autobiografia que, na juventude, pouco depois de 1800, na corte de sua cidade natal, Brunswick, na qual ele ocupava um posto, ainda lhe era era proibido tocar forte, por receio de que se perturbasse o jogo de cartas da princesa regente. E foi esse mesmo músico que regeu, em Cassei, em 1843, o Navio fantasma e, em 1853, o Tannhãuser, de Wagner. O que significa que o universo musical do fim da vida de Spohr nada mais tinha em comum com o da sua adolescência! Como tantos outros compositores de sua época, Spohr sentiu-se tentado pelo mito de Fausto, que musicou em 1813. Teve grande sucesso com a segunda versão do seu Fausto, representada em Praga em 1816.0 libreto partia de uma versão da lenda anterior à que está na origem do Primeiro Fausto, de Goethe, publicada em 1808. Sucessivamente ligado à capela da corte de Brunswick, à da corte de Gotha, à direção do teatro An der Wien, em Viena, à direção da Ópera de Frankfurt, depois disso foi mestre de capela da corte de Cassei durante mais de 25 anos. Essas diversas funções não o impediram de realizar importantes turnês em companhia da esposa, célebre harpista, e de fazer valer seu imenso talento de violinista. Foi também um compositor muito fecundo, tanto no domínio sinfônico quanto no lírico ou no da música de câmera (Noneto opus 31, Octeto opus 32, Septeto opus 147). Considerado, pela estética de suas composições, como um herdeiro de Haydn, Mozart e Beethoven, um pouco como seria Mendelssohn, Spohr foi, contudo, pelo uso original dos cromatismos e do Leitmotiv, um dos compositores que liberaram a escrita musical para perspectivas que anunciavam Pdchard Wagner. Carl Maria von Weber ( 1786-1826) Apenas a oferta de fundar urna ópera alemã em Dresden poderia fazer com que eu voltasse a me fixar. E eis-me trabalhando com zelo e todo o cuidado de que sou capaz, e se u m dia for preciso colocar u m a pedra sobre minha carcaça, poder-se-ia com justiça escrever: aqui jaz a l g u é m que verdadeiramente, com zelo e pureza, p ô s - s e a serviço da Humanidade e da Arte.
Assim expressou-se Carl Maria von Weber em seu Esboço autobiográfico, redigido em 1818, quando ingressava na última etapa de uma vida profissional tão agitada quanto breve. Nascido em Eutin, no Holstein, no dia 18 de dezembro de 1786, Carl Maria von Weber morreu em Londres em 15 de junho de 1826, quando realizava uma importante turnê. Era então diretor da Ópera alemã de Dresden. Há muito tempo doente e sabendo-se condenado, só fez essa viagem à Inglaterra para tentar garantir o
Weber e seus contemporâneos germânicos
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futuro financeiro de sua esposa e dos dois filhos. Compositor célebre, considerado, desde o sucesso da ópera Der Freischütz [O franco-atirador], encenada em Berlim em 1821, como o verdadeiro pai da ópera alemã, Carl Maria nem por isso deixava de estar em uma situação totalmente precária. É verdade que acabara de pagar todas as dívidas de seu pai, bem como as suas próprias. Educado na profissão do pai, o pequeno Carl Maria foi desde cedo iniciado por ele nas peregrinações inerentes à vida de uma troupe ambulante. Mas Franz Anton von Weber, como pai prudente que era, não negligenciou em nada a perfeita educação musical de seu caçula, de cujos dotes muito cedo se deu conta. Ao sabor das paradas e dos deslocamentos mais ou menos longos, o menino recebeu o ensinamento de professores famosos (principalmente Michael Haydn, em Salzburgo, de J.N. Kalcher e de J.E. Valesi, em Munique). Mais tarde, em Viena, encontrou Joseph Haydn e o abade Vogler, com quem aperfeiçoou sua formação. Tinha doze anos e acabara de perder a mãe quando foi publicada a edição de sua primeira obra, Seis pequenas fugas para cravo opus 1. E Weber chegou a pensar seriamente em tornar-se, ele próprio, o gravador de suas óperas, mestre que era na prática da litogravura. Mas logo suas preocupações maiores levaram-no à arte dramática e à ópera. Sua primeira ópera, O poder do amor e do vinho, foi destruída por um incêndio, assim como inúmeras das partituras instrumentais que compôs na juventude. A partir de 1800, Weber já esboçava para si, aos quatorze anos, um início de fama com a representação berlinense da ópera Das Waldmadchen [A donzela da floresta], "que obteve uma reputação sem a qual eu poderia muito bem passar", diria mais tarde o autor. Depois desta, vieram Peter Schmott, Rübezahl (fragmentária), Silvana e Abu Hassan, encenada em 1811 na Ópera de Munique. Como conseqüência das repercussões das guerras napoleónicas sobre o destino dos pequenos Estados alemães, Carl Maria von Weber perdeu por várias vezes os postos que ocupou em inúmeras cortes principescas, ao mesmo tempo em que vibrava, como tantos de seus contemporâneos, com a idéia de germanidade e participava da consciência comum de surgimento de um sentimento de identidade germânica. O ciclo de Lieder Leier und Schwert [Lira e espada], com os poemas da coletânea do poeta soldado Kõrner (que o jovem Franz Schubert também musicou na mesma época), muito contribuiu para difundir sua reputação de compositor germânico em todos os meios estudantis alemães. Esta posição pessoal foi ainda reforçada por diversos contatos que manteve com as casas de ópera da Europa, nas quais impunha-se, hegemônica, a ópera italiana. Em Praga, onde estivera durante algum tempo como encarregado da Ópera, e depois em Dresden, travou um combate constante para o restabelecimento da música alemã. Nunca deixou de incluir as óperas de Mozart e o Fidelio, de Beethoven, no repertório. Desde então sua reputação firmou-se e cresceu ainda mais depois das primeiras representações de Der Freischütz. Embora o músico Zelter tenha caçoado, com a costumeira amargura, "desse nada colossal retirado de um pequeno nada"
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(Goethe diria com maior perspicácia — em 1826, em uma conversa com Eckermann — que "a música teria tido dificuldades para impor-se se Der Freischütz não fosse um bom tema"), nada houve que pudesse atenuar a febre que se apossou de todos os espíritos tomados pelo ideal de arte germânica desde que Der Freischütz foi apresentada. O poeta alemão Heinrich Heine ficou satisfeito por não poder encontrar uma única pessoa que não lhe cantasse imediatamente o coro das damas de honra, verdadeiro Lied popular dentro de uma ópera. Der Freischütz, na qual Weber começara a pensar em 1817, foi concluída em maio de 1820 e encenada em Berlim em 18 de julho de 1821. Em poucos meses triunfava também em Breslau, Karlsruhe, Koenigsberg, Hanôver, Pesth, Copenhague e Viena, onde foi apresentada a 3 de outubro de 1821. Esse sucesso fulgurante significou, para todos os alemães, o verdadeiro ponto de partida para a renovação da ópera na Alemanha, já esboçada em O rapto do serralho e A flauta mágica, de Mozart, seguidas por Fidelio, de Beethoven (mas, para este último, ao preço de que dificuldades!). Além disso, e contrariamente às óperas de Mozart e Beethoven, Der Freischütz, pelo tema legendário e folclórico, mergulhava no coração da realidade germânica, e, pelo recurso ao fantástico (a intervenção de Samiel, o diabo, as balas encantadas, o mocho, etc.), convergia precisamente para aquela busca do real no irreal que caracteriza o romantismo. O fantástico já estivera na origem de temas como o de Ondina, de Hoffmann, e de Fausto, de Spohr, e Weber havia, inclusive, montado esta última ópera em Praga, em 1816. Finalmente, pela fusão mtima de seu tema literário (uma lenda popular traduzida em libreto de ópera por F. Kind) com a música, Der Freischütz realizava aquela unidade absoluta entre música e poesia que, também ela, é essencial ao espírito romântico. Espetáculo total que atingia o inconsciente coletivo, "verdadeiro canto daflorestaalemã" segundo Wagner, Der Freischütz, tanto por seus valores mais facilmente assimiláveis (o coro das jovens), quanto por sua qualidade mais fantástica e mais esotérica (a cena da garganta dos lobos), e exatamente porque aliava esses dois aspectos com uma impressão de total evidência (o direito e o avesso das coisas), representou um acontecimento "histórico" sem precedentes no seio de uma sociedade que então se questionava a si mesma. Der Freischütz funcionou como uma espécie de revelador para cristalizar o sentimento difuso de germanidade que tanto se buscava na época. Depois de uma representação de Der Freischütz em Viena, no ano de 1822, Weber confiou com inquietude ao seu diário: "Jamais pude sonhar com tamanho entusiasmo; atingi o apogeú e temo pelo futuro." Na embriaguez de Der Freischütz, Weber lançou-se à composição de uma nova ópera, Die Drei Pintos, que deixaria inacabada — requisitado que foi por outras tarefas —, mas que acabou sendo concluída por Gustav Mahler em 1887-1888 (o que comprova a longevidade da influência de Weber). Depois disso, quer se tratasse de Euryanthe (representada em Viena em 25 de outubro de 1823), ou de Oberon, escrita para ser apresentada em Londres, onde estreou em 12 de abril de 1826, os críticos
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nunca mais foram unânimes: essas duas obras jamais alcançariam o êxito obtido por Der Freischütz. Isso não impediu que, na noite da primeira representação de Euryanthe, Weber fosse recebido como um herói pela sociedade dos melhores poetas, pintores e músicos de Viena, agrupados sob o nome de Ludlamshõlle, e que por eles fosse coroado de louros. Franz Schubert possivelmente estava presente a esta reunião, pois nessa época freqüentava Weber com assiduidade. Beethoven, que durante muito tempo recebera o compositor, era um partidário entusiasta do trabalho de Weber: "Os alemães terão agora algo a opor a todos esses arrulhos italianos", clamava ele. Sempre lúcido, Weber aproveitou sua estada em Viena para ouvir as óperas italianas, inquietando-se, diante do virtuosismo das obras apresentadas, com o futuro da ópera alemã. Desse modo, depois de ouvir Semiramide [Semíramis], de Rossini, declarou: "Sobre a música, eu só poderia te dizer uma coisa: é Rossini. Mas que espetáculo! (...) A ópera assim apresentada só pode produzir entusiasmo, e fico com mais raiva dos meus alemães do que desses italianos" (carta à sua esposa Caroline). Na verdade, seria preciso esperar por Wagner para que fosse definitivamente aceito o desafio de Weber: abrir-se uma nova era da ópera alemã. Fluência da melodia e singularização dos instrumentos da orquestra são características da escrita musical de Weber em suas óperas que se inscrevem em uma tradição mozartiana ainda evidente em Der Freischütz. A despeito da opinião dos críticos seus contemporâneos, tudo indica atualmente — e Wagner não se enganara nisso — que foi com Euryanthe que Weber demonstrou mais plenamente seu caráter inovador. Se Weber permaneceu fiel às suas bases clássicas, estas de agora em diante estariam integradas em um processo c o n t í n u o que, insensivelmente, deslizava do recitativo ao arioso e do arioso à ária. (...) O coro t a m b é m perde seu papel episódico para tornar-se o verdadeiro árbitro da ação. (...) Weber demonstra com isso u m a engenhosidade instrumental absoluta. (...) C o m Euryanthe, Weber nos deu sua obra-prima mais acabada. Sua modernidade entusiasta valeu-lhe, aliás, fracassos públicos. (...) E m si, a obra-prima suprema estava quinze anos adiante dos espíritos mais inovadores do momento. (Serge Martin)
Em favor apenas de sua contribuição para a ópera e para o teatro, seria totalmente injusto ignorar a importância da produção musical de Weber em outros domínios. Weber era um notável pianista e compôs bastante para o piano (variações, quatro sonatas, dois concertos, konzertstück, e o famoso Aufforderung zum Tanz [Convite à dança, mais conhecido como Convite à valsa]), assim como para clarineta, um de seus instrumentos preferidos (concertos e concertino), sem esquecer as obras de música de câmera, de música religiosa, de música vocal (cânones, coros, Lieder, etc.) e, é claro, obras orquestrais (ouvertures, sinfonias, etc).
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Sexta parte: no limiar do século XLX
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O importante catálogo de obras suas em múltiplos domínios comprovam um trabalho árduo, sem interrupções ao longo de uma vida que, por muito tempo, foi errante, durante a qual o músico se viu submerso em preocupações materiais e, desde muito cedo também, em cuidados com a saúde. Em 1844, o corpo de Weber foi levado da Inglaterra para Dresden e definitivamente enterrado em terra alemã. Richard Wagner foi incumbido da homenagem pública ao compositor, e suas palavras chamaram a atenção para a apaixonada ligação dos músicos alemães com Carl Maria von Weber: Nunca nenhum m ú s i c o foi mais a l e m ã o do que tu; em alguma região do reino l o n g í n -
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quo e vago da fantasia a que te conduziu o teu gênio, mil laços ternos prenderam-no sempre a esse coração do povo a l e m ã o com o qual rias e choravas, como uma criança crédula que escuta os contos de fadas de sua ama. Sim, é bem esse espírito da infância que, como anjo bom, sempre guiou teu espírito viril, conservando-lhe essa pureza, essa
FRANZ SCHUBERT
castidade, que é como que característica tua. Porque soubeste guardar imaculada essa sublime virtude, n ã o tinhas nada por buscar, nada por descobrir, era-te suficiente sentir:
(1797-1828)
tu havias encontrado o essencial. E soubeste conservá-la até a morte, sem nunca dela nada sacrificar, sem nunca se negar o que quer que fosse dessa herança, de tuas origens alemãs, sem jamais nos trair. V ê , hoje o inglês te faz justiça, o francês admira-te, mas só o a l e m ã o pode amar-te: tu és dele, tu és u m belo dia da vida dele, és u m a cálida gota de seu sangue, u m p e d a ç o de seu coração.
A Europa inteira foi bem mais além desse reconhecimento nacional com relação ao homem da renovação, e particularmente a França, que foi conquistada pela música de Weber, tornada símbolo por excelência da música romântica. Evocar, como Baudelaire, as "fanfarras de Weber" a respeito de Delacroix é designar o próprio emblema do romantismo. E Victor Hugo não hesitou em qualificar o coro dos "caçadores perdidos no bosque" de Euryanthe como "talvez o que há de mais belo na música": "Sombrio e prodigioso coro que abre ao espírito as profundezas agitadas, que treme diante do olhar como uma floresta vertiginosa."
Qualquer que tenha sido a importância de Hummel, de E.T.A. Hoffmann, ou mesmo e sobretudo de Weber, a simplificação da história, de par com a intensidade da vida musical na Viena do século XVIII, faz com que a memória musical pareça engendrar-se na seguinte sucessão: Haydn, Mozart, Beethoven, Schubert. Já se terá pensado que Schubert morreu em Viena apenas um ano depois de Beethoven e que, se Mozart viesse morrer tão idoso quanto Joseph Haydn (77 anos), essa morte teria ocorrido em 1833, isto é, cinco anos depois da morte de Schubert? Antes de refletir sobre a criação schubertiana, é necessário levantar um outro ponto de referência, que sem dúvida confunde ainda mais: Schubert já escrevera os seus treze primeiros quartetos e as suas oito primeiras sinfonias quando foi pela primeira vez executada em Viena, na primavera de 1824, a Nona Sinfonia de Beethoven. Uma parte bastante significativa da obra de Franz Schubert—aliás, bem vasta do ponto de vista numérico — é uma obra de adolescência. Assim, não é de espantar que o ponto de partida da criação schubertiana situese na continuidade imediata das obras de seus predecessores, que Haydn e Mozart fossem para ele mestres a partir dos quais se determinou todo o seu modo de escrita musical, e que Beethoven — a quem encontrava apenas ao acaso da vida cotidiana — representasse para ele um ideal inatingível. Assim como é fácil reconhecer em Carl Maria von Weber o pai da ópera romântica alemã, é difícil "caracterizar" Schubert. Romântico por seu comportamento, Schubert figura muitas vezes, aos olhos de certos críticos e musicólogos, como o último representante de um certo "classicismo" vienense.
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Contudo, a situação histórica em que viveu Schubert era bem diversa da de seus predecessores. Se Haydn ainda passou quase toda a vida como um músico a serviço de príncipes, se Mozart enfrentara os príncipes e conquistara a liberdade contra o poder deles, se Beethoven, reconhecido pela aristocracia, conseguira submeter os príncipes ao poder de sua criação, Schubert ignorou o mundo dos príncipes e da aristocracia. Cumpre dizer que, com a ruína subseqüente às guerras napoleónicas, a aristocracia austríaca, tendo perdido muito de seu poder financeiro, estava bem menos apta a desincumbir-se de seu papel secular de mecenas e protetora das artes. A burguesia ascendente tomou para si o bastão, sem contudo caracterizar-se pela mesma propensão ao mecenato. Originário das camadas burguesas mais modestas, Schubert pertencia ao mundo dessa burguesia, tanto pelo gosto, como pelo modo de vida e pelas amizades que freqüentava; e não haveriam de ser os poucos anos de ensino dispensado a duas jovens de uma mesma família aristocrática (a do conde Esterhazy), nem as duas temporadas passadas na residência estivai dessa família que iriam mudar algo na percepção de mundo de Franz Schubert. Teria sido, contudo, muito estranho que esse período de grande mutação no qual viveu Franz Schubert, tanto do ponto de vista histórico quanto do ponto de vista da transformação da ordem social, não hovesse engendrado, por sua vez, uma mutação na ordem da composição musical. Por isso, o filho de Haydn e de Mozart, e admirador de Beethoven, foi a seu modo um inovador. Também por isso, a criação musical de Schubert haveria de exercer-se, em grande parte, em um domínio totalmente diferente daqueles já cultivados por seus mestres, por exemplo o do Lied, primeira forma na qual o gênio próprio de Schubert iria desabrochar. O viajante imóvel Dos músicos daquela época que passaram boa parte de suas vidas em Viena, Schubert foi o único a nascer nessa cidade. Mais precisamente, era uma criança dos subúrbios, de Liechtenthal, onde nasceu em 31 de janeiro de 1797, décimo segundo filho de uma família cujo pai era professor primário. O pai e a mãe de Franz Schubert, ambos de origem camponesa, estavam residindo havia pouco tempo na capital. A primeira infância de Franz Schubert desenvolveu-se no seio de uma família feliz e no contexto bem determinado da escola elementar que o pai dirigia. Aos onze anos, depois de um concurso, o menino ingressou no colégio municipal (Konvikt) de Viena, a título de pequeno cantor da corte. Para a família, esse fato representava uma promoção social no internato, pois se assegurava à criança uma dupla formação (escolaridade secundária e estudos musicais) e também a possibilidade de, mais tarde, ingressar facilmente na universidade. Na verdade, de 1809 a 1813, Schubert, embora de caráter reservado e mesmo taciturno, participou ativamente da vida musical do colégio, onde recebeu sua pri-
pranz Schubert
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meira cultura musical efetiva, acompanhada de impressões bastante fortes que o marcaram profundamente (Sinfonia em sol menor, de Mozart, Segunda Sinfonia de Beethoven). Comparados à educação de Haydn ou de Beethoven, os anos de escolaridade de Franz Schubert, por mais severos que tenham sido, foram os de um enfant gâté da cultura. E foi igualmente durante esses anos de colégio que se formou, ao redor de Schubert, aquele primeiro núcleo de amizades que nunca mais iria deixar de crescer, um verdadeiro círculo familiar que teceu em volta do músico solitário uma rede protetora. Esse grupo tirou seu nome do daquele compositor que era seu centro e sua alma: as "Schubertíadas" — fenômeno único na história dos músicos — dariam, por sua vez, origem à imagem lendária do Schubert alegre companheiro. Foi também durante os anos de colégio que Franz Schubert adquiriu, junto a seus amigos mais velhos, já universitários, uma consciência histórica de sua época: o despertar de um sentimento nacional, o ardor guerreiro, a pobreza e a bancarrota do Estado, que eram algumas das muitas conseqüências das guerras napoleónicas. De tudo isso, para a vida e para a criação, restaria a Schubert essa consciência humilhada de uma germanidade que era preciso afirmar, na exata medida em que o Congresso de Viena, em 1814-1815, e o sistema de governo instaurado na Áustria pelo chanceler Metternich empenhavam-se em restabelecer a ordem antiga, pré-revolucionária, do Antigo Regime, que mantinha o desmembramento da Alemanha. * ** Depois de haver deixado o colégio alguns meses após a morte da mãe, em 1813, Schubert inscreveu-se como aluno na escola normal, de formação de professores primários. Com esta decisão, seguiu um caminho bastante familiar. Ao final de um ano de estudos, já com o diploma, estava pronto para tornar-se, segundo o curso habitual das coisas, professor-assistente na escola paterna. Mas nesse momento se deu a verdadeira virada do gênio de Schubert: com dezessete anos, sonhava afirmar-se como músico nos gêneros musicais cultivados por seus predecessores. Schubert já havia escrito uma sinfonia, alguns quartetos de cordas, uma ópera (O castelo de prazeres do diabo) e uma missa solene (Missa em fá), quando, em outubro de 1814, compôs o genial Lied Gretchen am Spinnrade [Margarida na roca], que assinala "o nascimento do Lied germânico", segundo a expressão de Marcel Beaufils, um momento capital na história da música. Sete anos antes que Der Freischütz, de Carl Maria von Weber, fosse descoberta por um público deslumbrado, e executada em um domínio mais íntimo, o do Lied, a revolução que se registrava era decerto da mesma importância. Mas seria preciso esperar ainda mais sete anos para que, com sua publicação, os primeiros Lieder de Schubert se impusessem ao mundo. Esperando por isso, o muito jovem Franz Schubert certamente não tinha consciência da importância "histórica", para a história do Lied alemão, da criação de
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Gretchen am Spinnrade, que era o primeiro encontro entre a poesia de Goethe e o gênio musical de Franz Schubert. Tinha apenas consciência da sua vocação irredutível de compositor. Esta vocação manifesta-se no número espantoso de obras compostas. Em 1815-1816, enquanto exercia sua função de professor, Schubert produziu mais do que muitos outros músicos escreveram ao longo de suas vidas: dois quintos de sua obra, ou seja, 193 composições em 1815 e 189 em 1816 {Lieder, quartetos de cordas, sinfonias, missas, óperas, etc). Desde esse período, as obras que Schubert compunha eram tocadas por uma pequena orquestra de amadores, ou em família, ou ainda pelos antigos colegas do Konvikt. *** Aos dezenove anos, Schubert abandonou a função de professor e, a partir de então, passou a viver no seio de um grupo de amigos, ligado ao meio universitário de Viena, dependendo muitas vezes do apoio destes para morar e até para subsistir. Também em seu modo de vida Schubert inovava no plano do estatuto social do compositor. Livre, nem por isso procurava produzir-se ou rentabilizar-se como músico. Pensemos na instalação de Mozart em Viena ou na chegada do jovem Beethoven àquela mesma cidade e nos exercícios de virtuosismo a que ambos se prestavam para conquistar e seduzir o público. Nada disso em Schubert, que durante toda a vida nunca sé apresentou em público como solista, que só por três vezes atuou publicamente como regente, que certa feita tocou com um parceiro em uma audição de piano a quatro mãos e que em poucas ocasiões apareceu como acompanhante de seus próprios Lieder. Na mesma época, contudo, um violinista virtuose, Paganini, faria uma deslumbrante carreira internacional graças ao seu diabólico virtuosismo, atravessando o céu da Europa como um cometa que encantou os músicos — e não os menores deles —, de Schubert a Berlioz. E Franz Schubert, comportadamente, bem que procuraria ganhar a vida como músico, tendo feito inúmeros esforços para obter postos (principalmente o de professor de música em Laybach), mas sempre sem resultados. Sonhou conquistar a notoriedade pelo sucesso na composição de óperas, decepcionando-se com esse propósito; de cerca de uma quinzena de tentativas, apenas duas de suas óperas foram representadas, com sucesso mediano. Na verdade, as únicas fontes reais de recursos lhe viriam, alguns anos mais tarde, do produto da edição de suas obras. Neste sentido, pode-se afirmar que Franz Schubert foi historicamente o primeiro músico a viver somente de compor, o primeiro que foi apenas compositor, no sentido em que, atualmente, este termo basta para definir uma categoria de músicos. Desse ponto de vista, Schubert ocupa um lugar simbólico na história da música. A época em que Schubert começou a viver como músico independente (tinha então dezenove anos) foi também a época em que realizou uma exploração siste-
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mática do piano. As suas verdadeiras primeiras sonatas para este instrumento são de 1817 (Sonata em ré menor D 566; e Sonata em mi bemol maior D 568; Sonata em si maior D 575). Quando compôs essas primeiras sonatas, já tinha atrás de si um catálogo de obras muito numeroso: a Quarta Sinfonia {Trágica) em dó menor D 417'e a Quinta Sinfonia em si bemol D 485 datam ambas de 1815 e já eram, tanto do ponto de vista da forma quanto do conteúdo, obras perfeitamente equilibradas, que preparavam admiravelmente o caminho para a profética Sinfonia em dó maior, de 1818, que anuncia o estilo da grande maturidade schubertiana. No domínio do Lied, o progresso do compositor revela-se ainda mais evidente. Além de Gretchen am Spinnrade muitos outros Lieder que contam entre os mais expressivos do talento de Schubert e com os quais ele haveria de construir sua reputação, são anteriores às primeiras pesquisas do gênero sonata: eram eles já o resultado de uma longa pesquisa e, como tais, tão perfeitos em sua forma quanto pessoais em seu estilo — o fantástico Erlkõnig [O rei dos elfos]; Heidenrôslein [A pequena rosa das urzes], que haveria de se tornar uma verdadeira canção popular, o obsessivo Der Tod und das Mãdchen [A morte e a donzela] e mesmo o famoso e encantador Die Forelle [A truta], contemporâneo do trabalho com as primeiras sonatas para piano. O meio intelectual — jovens artistas pintores como Moritz von Schwind ou Leopold Kupefvvieser, poetas ou dramaturgos como Johann Mayrhofer, Eduard Bauernfeld ou Franz Grillparzer —, no seio do qual Schubert viveria de agora em diante, era um ambiente propício no sentido de alimentar a inspiração poética necessária ao florescimento do Lied. Se é fato que Schubert musicou inúmeros poemas escritos por amigos seus, também vibrou, como todos os de sua geração, com a poesia de Goethe ou de Schiller (setenta Lieder com poemas de Goethe, 42 com poemas de Schiller), descobriu Shakespeare e Walter Scott e, bem antes dos outros alemães ou austríacos, mas quase no final de sua vida breve, o talento poético de Heinrich Heine. Não foi o ignorante que durante muito tempo se presumiu que fosse. Bem ao contrário: uma sensibilidade extrema e uma sinceridade não menor faziam de Schubert um ser espantosamente receptivo à poesia. N ã o h á n i n g u é m que compreenda a dor do outro e n i n g u é m que compreenda a alegria do outro. Acredita-se sempre estar indo para o outro e nunca se pode mais que estar ao lado do outro. Ó que dor para quem sabe disso! — Minhas criações são o fruto de meu conhecimento da m ú s i c a e de meu conhecimento da dor. Aquelas que foram engendradas somente pela dor parecem agradar menos às pessoas. (Diário
íntimo
de Schubert,
m a r ç o de 1824)
É curioso que os anos 1818-1820 assinalem um desabrochar da criação de Schubert, ao mesmo tempo em que, pela primeira vez, verifica-se uma evidente desaceleração de sua produção: a "pequena" Sinfonia em dó maior D 589 (a sexta), assim chamada por oposição à sua irmã, a "grande" Sinfonia em dó maior (concluída apenas em 1828), a Sonata para piano em lá maior D 664 e o Quinteto para
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piano e cordas D 667, dito Die Forelle [A truta], marcam de modo esplêndido algumas das etapas desses anos. A vitalidade da imaginação melódica reúne-se integralmente à alegria da aliança dos timbres. Pode-se pensar que Franz Schubert estava então a ponto de conseguir imporse como compositor no meio musical de Viena. De fato, no mês de junho de 1820 representou-se, na Ópera de Viena, Die Zwillingsbrüder [Os irmãos gêmeos], D 647, seguida, pouco depois, em agosto, pela representação de Die Zauberharfe [A harpa mágica], D 644, uma peça feérica com texto de Georg von Hofman. Como qualquer compositor jovem em meio germânico, Franz Schubert, ardente admirador do Fidelio de Beethoven, sonhou durante toda a vida com fazer despertar a ópera alemã, diante da hegemonia da ópera italiana, ainda indiscutível em Viena como na maior parte das pequenas cortes alemãs. A atitude de Schubert estava muito próxima à de Carl Maria von Weber em Dresden, que haveria de resultar na revelação de Der Freischütz. Schubert, por suà vez, fez cerca de quinze tentativas com composição de óperas, quase sempre no gênero Singspiel. Sempre desejou chegar à glória através da ópera, revelando-se esse projeto tão fracassado quanto doloroso. Nem Alfonso e Estrella (1822-1823), nem Os conjurados (1823), nem Fierabrás [Ferrabrás, de 1823], óperas que concluiu, puderam subir à cena. Foi igualmente em 1823 que a encantadora música de cena composta para acompanhar Rosamunda princesa de Chipre, drama da poetisa Helmina von Chèzy, foi engolfada pelo fracasso retumbante da representação dramática. As circunstâncias não ajudaram Schubert nesse terreno, e talvez a ausência de um verdadeiro sentido dramático dos libretos utilizados também tenha sido prejudicial. A posteridade guardaria de Schubert antes a imagem do compositor de Lieder do que de criador de óperas. De resto, o grande hábito dos Lieder não deixou de influenciar, talvez de maneira evidente, a linguagem musical de Schubert em suas óperas: o sentido melódico flui, os coros são soberbos, a orquestra é rica em invenção. Foi preciso chegar o ano de 1820 para que fosse cantado pela primeira vez em público, no dia I de dezembro, o Lied com poema de Goethe, Erlkõnig, composto desde 1815.0 mesmo Lied que inauguraria finalmente a edição das obras de Schubert, como opus 1, em março de 1821, edição por subscrição, que jamais teria sido feita sem a intervenção dos amigos de Schubert. o
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* si-
De forma paradoxal, no momento em que a notoriedade de Schubert começava a esboçar-se o compositor atravessou os anos menos férteis de sua criação. Foram-se acumulando as obras inacabadas: a admirável Cantata sobre a morte de Lázaro D 689, de 1820, contemporânea do perturbador Quartettsatz [Movimento para quarteto] D 703. E Schubert compôs poucos Lieder, o que parece indicar a profundidade da crise.
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Esta crise também repercutiu na música sinfônica de Schubert. Depois de uma Sinfonia em mi maior D 729, deixada em estado de esboço, em 1821, sem que a orquestração fosse escrita (exceto para o início do primeiro movimento), foi a vez, em 1822, de uma obra que haveria de permanecer inconclusa, a Sinfonia em mi menor D 759, que ficou para sempre conhecida como Sinfonia Inacabada. Esta obra incompleta (dos quatro movimentos, dois foram acabados; do terceiro, um scherzo,ficouapenas um esboço de duas páginas; o quarto não existe) tornou-se uma espécie de símbolo perfeito do talento de Franz Schubert. Pela originalidade da escrita musical, pelo frêmito inicial que a anima, pelo tratamento original dos timbres, ela supõe um universo psicológico totalmente diferente daquele explorado até então nos quadros da música sinfônica. Será preciso lembrar que a Sinfonia Inacabada precede de dois anos a Nona Sinfonia de Beethoven, que sua linguagem é irredutível à linguagem de todas as sinfonias beethovinianas, e que Schubert tinha apenas 25 anos quando a compôs? "Nunca contarei, nunca usarei de subterfúgios com os sentimentos do coração: o que tenho em mim, dou-o como está, tudo de uma só vez", escreveu Schubert alguns anos antes, em outubro de 1818; e são proposições desta ordem que nutrem toda a sua obra. Muitos elementos convergem para alimentar a desordem de Schubert: os repetidos fracassos de seus esforços para encontrar uma situação material compatível com a prática de sua arte; a decorrente incapacidade de estabelecer um lar, como por um momento projetara, e de realizar o casamento que sonhara com a primeira noiva, que acabou casando-se com outro; a situação desesperadora da ópera alemã, que arruinava suas esperanças de obter sucesso neste doniínio e vinha de par com o sucesso crescente da ópera italiana e com o entusiasmo dos vienenses por Rossini. De um ponto de vista mais geral, Schubert sofreu, como seus amigos mais próximos, as conseqüências deprimentes do "sistema" Metternich, que bloqueava toda possibilidade de livre comunicação e fechava qualquer perspectiva de um futuro diverso do retorno à ordem antiga, reprimindo vigorosamente qualquer tentativa de expressão liberal — um dos amigos de Schubert, o poeta Johann Senn, foi preso e exilado, e Schubert também teve que se apresentar à polícia. A tudo isso é preciso acrescentar, em 1823, a degradação irremediável da saúde do compositor aos 26 anos e a humilhação que talvez tenha sentido por ter sido vitimado por uma doença venérea, o que complicou ainda mais sua difícil relação com as mulheres: mais do que nunca, elas se tornaram para ele inacessíveis. Desse modo explica-se parcialmente, nos anos que se iriam seguir, a relação amorosa — mas proibida — de Schubert com Caroline Esterhazy, que fora inicialmente sua aluna e que dele se tornou tão próxima em seus últimos anos de vida. Outros fatores bloqueavam Schubert em seu processo criador, e essas razões diziam respeito à sua produção anterior. Em 1821, Schubert tinha 24 anos e o
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catálogo de suas obras já ultrapassava o número de setecentas. Desde a idade mais tenra, escrevera, por vicissitudes da vida social, quartetos de cordas, sinfonias e óperas. Estes eram gêneros obrigatórios na época de sua adolescência, e nestes diferentes gêneros as formas nunca lhe colocaram verdadeiros problemas. Mas, ao mesmo tempo, ele descobrira, na escrita do Lied, uma nova liberdade formal no interior da qual elaborara uma linguagem completamente nova, a sua própria linguagem. A partir daí, pode-se perguntar se, atingindo Schubert a idade adulta, não terá sido a consciência dessa liberdade adquirida que de algum modo bloqueou seu processo criador. Não terá sido esse, para Schubert, um período de profundo questionamento com relação à própria música e, mais especialmente, com relação a todos os gêneros privilegiados de sua adolescência? Foi nessa época de profunda conturbação que Schubert escreveu, em julho de 1822, o texto literário Mein Traum [Meu sonho], absolutamente único nos anais da música. Trata-se de um relato não biográfico, mas fantasmático, em que o compositor revela algumas das chaves mais essenciais da motivação de suas criações. Nesse texto estão claramente expressos a nostalgia de um paraíso perdido, a condenação a uma viagem solitária e à errância, a obsessão com a morte, vivida como um repouso, o comprazer-se em um estado fora do tempo, a aspiração a um universo de comunhão. Tais são os temas poéticos — tão representativos de um pensamento romântico — que aí se encontram associados em Mein Traum. Pode-se 1er aí esta definição literal de sua obra: E u era u m i r m ã o de muitos irmãos e irmãs. Nosso pai e nossa m ã e eram bons. E u estava ligado a todos eles por um amor muito profundo. (...) Conduzi meus passos para outros lugares e, com o coração transbordante de u m amor mfinito por aqueles que se mostravam indiferentes a esse amor, passei a errar por uma região longínqua. Durante anos, senti-me dividido entre a maior das dores e o maior dos amores. (...) Durante anos cantei
Lieder. Se queria cantar o
amor, para m i m ele se transformava em dor; se queria
novamente s ó cantar a dor, para m i m ela se transformava em amor.
A ambivalência entre amor e dor está simbolicamente transposta para a obra de Franz Schubert por meio de uma perpétua ambivalência entre tom maior/menor, característica de seu estilo. ** *
Alguns meses mais tarde, Schubert põe-se a trabalhar no ciclo de Lieder Die Schõne Müllerin [A bela moleira] D 795, que parece a exata transcrição musical de sua proposta literária. Foi também nessa época que escreveu inúmeras valsas e outras danças (Valsas sentimentais, D 779, e Laendler, D 790) para animar as reuniões regulares do grupo das "Schubertíadas", onde, na maior parte do tempo, executavam-se Lieder de Schubert. O fato de que esse grupo tenha-se constante-
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mente reunido em torno de um dos músicos mais solitários que já houve não é um dos menores paradoxos da vida de Schubert. O grupo representava, em um local fechado e caloroso, um refugio e uma possibilidade de troca e de comunicação em um universo que se recusava a trocar e a comunicar-se. Era todo um complexo de marginalidade que ali se desenvolvia: a "Schubertíada" constituía, para a nova geração que dela participava, o verdadeiro mundo à margem do mundo, o lugar em que as individualidades podiamflorescer.Foi o próprio Schubert que dele deu a melhor definição: Aquele tempo em que estávamos juntos na mtimidade, em que cada u m mostrava para os outros os frutos de sua arte, com u m receio maternal, aguardando, n ã o sem alguma apreensão, o julgamento que sobre ele fariam com amor e sinceridade. Aquele tempo em que uns encorajávamos os outros e é r a m o s todos animados por u m esforço ú n i c o em busca do belo.
Havia então em Viena inúmeros pequenos grupos semelhantes ao das "Schubertíadas". A partir do momento em que se organizavam nrúnimamente, todos eram alvos das admoestações policiais. Um deles, que havia celebrado com estardalhaço a passagem de Carl Maria von Weber por Viena, por ocasião da representação de Der Freischütz e de Euryanthe, foi proibido de se reunir pela polícia em 1826, no próprio momento em que Schubert e um de seus amigos haviam decidido nele ingressar. Não é por acaso que se pôde dizer dessa geração que era "a geração dos loucos e dos suicidas". Na verdade, o escritor austríaco Lenau, contemporâneo de Schubert, terminou louco, e Johann Mayrhofer, o poeta amigo de Schubert, acabou por suicidar-se na segunda tentativa. A solidão dos jovens intelectuais dessa geração era acompanhada pela marginafização. A estética oficial era uma estética do prazer. A literatura, o teatro, a música deviam buscar a distração ou o prazer. Assim explicam-se o sucesso de Rossini, as facilidades oficiais oferecidas à instalação e ao desenvolvimento da ópera italiana em Viena, a ajuda prestada à criação dos grandes salões de baile que se tornaram negócios muito rendosos e a moda da valsa, que haveria de fazer grande furor. Em Viena, o verdadeiro rei da música foi, pouco tempo depois, Johann Strauss. Tudo se passava como se houvesse dois universos musicais, um brilhante e oficial na superfície, o outro subterrâneo e muitas vezes relegado ao desespero. Era a este último que pertencia o grupo de Schubert e de seus amigos. Isso explica por que poucas obras de Schubert foram tocadas em concertos públicos (nenhuma das sinfonias, por exemplo), por que, das obras publicadas de Schubert, as danças ocupam o primeiro lugar, logo depois dos Lieder, e por que a música de câmera está tão mal representada entre estas: um só dos quartetos, dos quinze que Schubert escreveu, foi editado em vida do compositor. Compreende-se melhor, à luz desses fatos, o insucesso social de Schubert como o não-reconhecimento de sua obra por parte de seus contemporâneos. E se tem
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melhor a medida da profunda solidão de Schubert como criador e da energia que lhe foi necessária para continuar a compor em um mundo que o ignorava tão soberanamente. Nessas condições, uma das feridas mais profundas que poderia atingir Schubert era a reprovação, ou a dúvida, manifestadas pelos seus amigos mais próximos a respeito de sua obra. Reações desse tipo sobrevieram, contudo, com maior freqüência, nos últimos anos em que compôs. Assim aconteceu com Schuppanzigh (o violinista que interpretara vários dos últimos quartetos de Beethoven), que não percebeu a grandeza do sombrio Quarteto em ré menor, dito Der Tod und das Mãdchen, D 810; assim aconteceu com as críticas dos amigos diante da novidade da Fantasiasonata D 894, de 1826; e mais ainda com a atitude de medo e recuo desses amigos diante da dimensão trágica, expressa no ciclo de Lieder intitulado Die Wtnterreise [A viagem de inverno], D 911, que Schubert compôs no decorrer do ano de 1827. Mais solitário do que nunca, a Schubert só restou avançar ainda mais naquela viagem interior que empreendera depois que começara a criar. A admiração por Beethoven, a aproximação com Bach, a apaixonada descoberta de Haendel ainda viriam a influenciar seus anos de maturidade e deveriam funcionar como estímulos para a criação, que dali em diante seguiu a lógica própria das descobertas pessoais, sem mais levar em conta nem a aquiescência da sociedade nem a aprovação dos amigos. Na medida em que o imaginário de Schubert os ultrapassava — e eles sentiram perfeitamente isso —, seus amigos começaram a dizer que ele se tornara um "visionário". Na verdade, a criação de Schubert assumiu, no último período de sua vida, uma dimensão totalmente nova. Quer se trate do Quarteto em sol maior D 887, ou do Quinteto para dois violoncelos D 956, da "grande" Sinfonia em dó maior D 994 (provavelmente acabada em 1828, mas em grande parte composta desde 1825¬ 1826), dos dois Trios para piano e cordas, em si bemol maior e em mi bemol maior, D 898 opus 99 e D 929 opus 100, da Fantasia emfá menor para piano a quatro mãos D 940, ou ainda das três Sonatas para piano em dó menor, dó maior e si bemol maior D 958, 959, 960, respectivamente, todas as obras desse período traduzem, para além de um donruiio absoluto da linguagem e da forma, uma nova abordagem da dimensão — e, portanto, uma nova apreensão — do tempo, assim como uma expressividade decuplicada. O mesmo aconteceria com os Lieder compostos para poemas de Heinrich Heine (provavelmente descobertos durante as leituras organizadas pelo grupo dos schubertianos), que estão incluídos na coletânea póstuma intitulada Schwanengesang [O canto do cisne] D 957, posteriores à trágica Wtnterreise (com poemas de Wilhelm Müller), em que se confirma a fusão desde então indissociável entre a palavra cantada e o acompanhamento pianístico. Tudo indica que só então Schubert tomou consciência de sua importância como compositor. Começou a reivindicar seu lugar junto aos editores, a tentar orga-
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nizar regularmente concertos públicos de suas obras. E, de fato, deu um concerto em março de 1828, no dia do aniversário de um ano da morte de Beethoven, embora não tenha ele próprio escolhido essa data simbólica. Aliás, não é impossível que — fosse qual fosse o pesar que sentiu pela morte daquele que considerava o maior dos músicos — Schubert tenha julgado que, dali por diante, ser-lhe-ia possível ocupar em Viena um novo lugar como compositor. *
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Em outubro de 1828, Schubert tinha atrás de si um catálogo de mais de mil obras. Acabara de realizar, nos últimos meses, uma leitura assídua de Haendel, e foi então que decidiu, com a sinceridade e a humildade habituais, retomar os estudos musicais pela base. Na certeza de que estava na aurora de uma nova etapa de composição (é verdade que, com a mesma idade, Beethoven tinha composto a sua Segunda Sinfonia) e sentindo ter chegado a um patamar de domínio absoluto de todas as formas de sua linguagem, decidiu dedicar-se ao contraponto e foi pedir lições àquele que era então o maior mestre de Viena neste campo da teoria musical, Simon Sechter (mais tarde professor de Bruckner, que nasceu em setembro de 1824). Após a primeira aula de Sechter, Schubert sentiu-se mal, não compareceu à segunda, prevista para 10 de novembro, pôs-se ao leito, atingido por uma febre tifóide. Durante a breve doença que o levou à morte, Schubert, voltando, em delírio, à sua angústia fundamental, reclamou o direito de ser posto ao lado de Beethoven e de existir: "Não tenho também o direito de ter um lugar na superfície da Terra?" Estas foram praticamente suas últimas palavras. Schubert morreu em Viena, na casa de seu irmão Ferdinand, no dia 19 de novembro de 1828. O gênio de Schubert Sobre a pedra tumular do compositor, seu amigo, o poeta Grillparzer, fez inscrever as palavras: "A música enterrou aqui um rico tesouro e esperanças ainda mais belas." Schubert tinha 31 anos. Deixava inúmeros projetos e planos, entre os quais o esboço de uma nova sinfonia, em ré maior. Depois que Schubert morreu, seu nome e sua música logo caíram no esquecimento. Foi necessária a dedicação de Schumann ou os acasos da pesquisa de um regente de orquestra para que a grande Sinfonia em dó maior e a Sinfonia em si menor fossem redescobertas e tivessem suas primeiras apresentações (respectivamente em 1839 e em 1865). Hoje em dia, com o intervalo de cerca de 150 anos que nos separam da morte do compositor, é mais fácil estimar o verdadeiro lugar desse criador na história da música, um lugar que se afirma cada dia mais importante, à medida que se redescobre a obra de Schubert, tanto no plano quantitativo quanto quahtativo.
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A partir do conhecimento global de sua obra — por uma ciência musicológica em plena evolução no que lhe diz respeito — nos é atualmente facultado medir até que ponto, sem grandes ápices de gloria na vida ou na carreira, sem qualquer fanfarronice, mas com uma incrível tenacidade e uma coragem em nada menor, Schubert perseguiu seu próprio caminho em uma progressão constante de sua arte. Foi Schubert um inovador na música? Como é normal para um criador que se expressa na juventude, ele partiu dos gêneros e das formas praticadas pelos músicos que lhe eram mais próximos, seus precursores. Esses gêneros e essas formas (missas, sinfonias, música de câmera, como os quartetos) não foram por ele propriamente questionados na arquitetura de conjunto e ao longo da criação de suas obras. Seu talento particular se expressava, antes, na liberdade no interior da forma. Liberdade do caminho harmônico, arte consumada da modulação, a música de Schubert, alimentada pela prática do Lied, muitas vezes se apresenta como um "relato" em que as associações e justaposições de idéias (a invenção melódica) acabam por determinar e engendrar suas próprias formas. É esta mesma liberdade que faz de Schubert um extraordinário pesquisador em domínios pouco explorados por seus predecessores. As condições históricas e sociais nas quais sua vida transcorreu não são alheias a esse fenômeno, é claro. Na era do advento da burguesia, a música penetrou em muitos lares e pequenos círculos, e adquiriu uma cor toda nova nessa intimidade. Não foi por acaso que Schubert revelou o brilho de seu talento em gêneros até então ligados a uma prática e a uma tradição populares que, desse modo, foram subitamente dignificadas e alcançaram — embora como gêneros menores — os ápices da "grande" música. Isso aconteceu com três categorias de obras: os coros, as danças, os Lieder. Os coros de Schubert, nascidos da vida comunitária de seus anos escolares e de uma tradição viva nos países germânicos, estão entre as obras mais impressionantes, mais novas em tom, das que compõem o catálogo do músico. Sob as mais diversas formas — coro masculino, coro feminino, coro misto, a cappella, acompanhado de piano, com acompanhamento de um pequeno conjunto instrumental —•, quase sempre são maravilhas que unem ao júbilo dos timbres vocais a fineza da percepção poética, talvez metafísica. Um exemplo como o do Canto dos espíritos sobre as águas D 714, com poema de Goethe, que Schubert levou cinco anos para aperfeiçoar e concluir, dá a medida da elevação desse gênero a um plano artístico até então nunca atingido. A partir de então — e esta é uma das contribuições mais características de Schubert •—, já não era mais possível falar de "gêneros menores". Ao contrário, estabeleceu-se uma verdadeira osmose entre os gêneros "menores" e "maiores". Assim, o Canto dos espíritos sobre as águas relaciona-se muito precisamente, do ponto de vista da linguagem e do clima, com a Sinfonia Inacabada, que lhe é em parte contemporânea.
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Quanto às inúmeras danças compostas por Schubert, Laendler e valsas, inscrevem-se elas no contexto histórico e sociológico que marca o sucesso definitivo do piano. A fabricação de pianos progrediu com grande rapidez, sua implantação drfundiu-se cada vez mais nas casas burguesas, e as danças, até então reservadas a pequenos conjuntos instrumentais, dali por diante passaram a ser escritas para piano. Ainda neste plano, o talento característico de Schubert haveria de iluminar este gênero, até então reputado como menor. A liberdade harmônica, a espontaneidade das mutações e as transformações de cores e climas eram tais nas danças compostas por Schubert, que essas páginas, nascidas da necessidade do instante, estão entre as mais reveladoras da originalidade e da vitalidade de seu compositor. As Valsas sentimentais D 779, as Valsas nobres D 969 e os Laendler D 790 são alguns exemplos eloqüentes disso. Destinadas também ao piano, e também surgidas da música tocada de maneira comunitária, as obras para piano a quatro mãos assumem, na obra de Schubert, uma importância quantitativa totalmente nova em relação aos seus antecessores. Acompanham a criação do compositor ao longo de toda a vida, desde os primeiríssimos ensaios de composição até as últimas obras. São representativas de seu permanente sonho de comunhão na música e, como tais, exprimem amiúde um clima de lirismo iluminado e caloroso. Do número um do catálogo (1810) ao número D 940 (a Fantasia emfá menor, 1828), o piano a quatro mãos foi uma constante na trajetória criadora de Schubert. É simbólico que, em maio de 1828, quase no final da vida, Schubert tenha ido mostrar, acompanhado de um amigo pianista, ao também amigo e dramaturgo Bauernfeld a Fantasia emfá menor, no momento mesmo em que acabara de compô-la. As obras desse tipo só tinham sentido compartilhadas na amizade. É claro que o domínio mais fantástico em que se revela o gênio schubertiano é o do Lied. Schubert, que se pretendia e se julgava um "cantor-poeta alemão", um Minnesãnger— e de uma forma tão mais exigente porquanto o contexto político recusava-lhe o direito de sê-lo —, revolucionou completamente a história da melodia acompanhada, a história do Lied, de tal modo que seu nome ficou imediatamente associado à história deste gênero musical. Seria possível traçar uma trajetória do Lied na criação schubertiana? Das grandes e loucas baladas da adolescência, todas elas cheias de imagens musicais, à expressão visionária que se destaca do ciclo de Wtnterreise, ou os Lieder compostos com poemas de Heine, há todo um percurso que passa por mais de seiscentos Lieder — compostos com recurso às formas mais diversas: livres e associativas, como a balada; mais próximas de uma veia popular, como o Lied estrófico; mais elaboradas, como o Lied estrófico variado; referidas a urna forma mais antiga, como o Lied em forma ternária. Dessa permanente pesquisa manifesta-se, por parte do criador, a busca continua da fusão entre a melodia e seu acompanhamento pianístico, de tal modo que, separadas nos primeiros tempos da criação, em que o acompanhamento obedecia muitas vezes a
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estereótipos, as duas linguagens iriam tornar-se cada vez mais enlaçadas, talvez inseparáveis. Quem pode imaginar o canto do "tocador de viela", com o qual termina dramaticamente a Wtnterreise, ou o Doppelgãnger [O duplo], que encerra o ciclo Schwanengesang, separando a palavra cantada e o acompanhamento? Nessa prática, nessa quase ascese cotidiana do Lied, ao longo de quinze anos de composição, a linguagem musical se condensa, se depura, torna-se literalmente profética, tanto na forma quanto na condução harmônica. Assim, Schubert abria magistralmente o canxinho para os músicos que viriam depois. Schumann e mais tarde Hugo Wolf haveriam de inscrever-se na filiação de Schubert, mais ainda do que o próprio Schubert inscrevera-se na tradição de um Zumsteeg, músico por quem nutrira grande admiração no início da carreira de compositor. Do ponto de vista psicológico, parece evidente que, se Schubert adotou, e mesmo privilegiou essa forma de discurso musical que é o Lied, isso em parte deve-se ao fato de que ele era fundamentalmente poeta (suas intuições nesse domínio são absolutamente perturbadoras); e deve-se também ao fato de que sua profunda incerteza quanto ao seu "direito de existência" estava plenamente de acordo com o gênero Lied: uma maneira de dizer "eu" sob a aparência de outro, do poeta. A prática do Lied deste modo intensivo não poderia deixar de repercutir sobre outras formas de composição. Neste sentido é preciso compreender as peças breves para piano escritas por Schubert: Impromptus [Improvisos], Moments musicaux [Momentos musicais] ou Kíavierstücke. Se Schubert não foi o inventor dessas formas do ponto de vista histórico, foi o primeiro a ter proporcionado foros de nobreza a esse gênero, o que fez as delícias dé várias e sucessivas gerações de compositores. Na prática de um gênero que não responde mais a um plano rigorosamente arquitetado (a sonata), mais uma vez afirma-se a liberdade do músico: trata-se de dar livre curso à imaginação melódica e harmônica em um momento breve no qual se possa (como no Lieã) exprimir tudo o que há para dizer. Tratase, na verdade, de uma música encarregada de expressar o instante psicológico ou dramático, e que por isso supõe a sucessão rápida de vários instantes, todos eles aceitáveis (na justaposição de elementos contrastantes no interior de uma mesma obra, por exemplo), o que implica uma perfeita flexibilidade da forma destinada a cumprir essa função. Na medida em que Schubert avançava em direção à maturidade da criação, é possível rastrear as profundas influências da escrita do Lied sobre sua música instrumental: a título de exemplo, vale citar a relação entre a Sonata inacabada em dó maior para piano D 840 e o fantástico e terrível Lied intitulado Der Zwerg [O anão] D 771. Mais clara ainda é a relação entre o Lied já mencionado Der Tod und das Mãdchen e o Quarteto em ré menor D 810, entre a Fantasia para piano D 760 e o Der Wanderer [O viajante] D 493, e entre o Quarteto em lá menor D 804 e Die Gõtter Griechenlands [Os deuses da Grécia] D 677; no caso dessas três últimas obras ins-
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trumentais, tudo indica que, em períodos de crise, Schubert, para avançar em seu próprio caminho, só podia recomeçar partindo de sua própria temática. Toda a linguagem de Schubert parece ordenar-se em torno da exigência implícita de agarrar o instante presente, mais do que em torno de uma busca de arquitetura; é, de certo modo, uma música de constatação, como se ele quisesse dizer: "por ora é assim", sem tentar comentar ou explicar. Esse procedimento básico confere à música de Schubert aquele tom de autenticidade que desconcerta pela nãoagressividade; nesse procedimento encontra-se uma nova liberdade de escrita. A verdade psicológica do instante, que encontra sua justa expressão nas mutações bruscas, nas reviravoltas, na justaposição de elementos contrastantes, nas ambivalências modais tão específicas da arte de Schubert, tudo isso tem um complemento natural no momento que nasce espontaneamente, sob os dedos do músico, em sua pesquisa ao piano (e, por extensão, em toda a sua música). Assim, a passagem espontânea de uma tonalidade a outra e o apelo a tonalidades inusitadas fazem de Schubert um extraordinário mágico no emprego da modulação; o espaço tonai, as cores, passam a ser regidos pelo empenho em traduzir associações imaginativas. Neste sentido, pode-se dizer que a liberdade de ação de Schubert com relação ao sistema tonai, no qual ele fora criado, pressupunha, para o futuro, a morte da tonalidade como lei de composição. Assim se estabelece e confirma, na proporção mesma dos progressos pessoais de Schubert, um universo schubertiano, livre por princípio, independente de uma gramática da música, e que supõe uma profunda osmose entre a escrita e o sonho, de modo a criar um universo onírico. E é também por isso que, paradoxalmente, Schubert, que tanto praticou formas breves, pôs em questão o tempo musical. Já em muitos Lieder Schubert tentava traduzir um tempo parado, imóvel, como em Meeresstille [A calma do mar] D 216, e que podia ser mortal. Ao longo de sua criação, tendeu cada vez mais a expressar um tempo ampliado, distendido, ou, mais precisamente, a criar um fora-do-tempo que correspondesse muito próximamente ao domínio do sonho. Ê neste sentido que se deve entender a reflexão de Schumann sobre "as divinas durações" da música de Schubert, expressão habitualmente encarada como um contra-senso. A lenta emergência de certos temas no início de uma obra, sempre ligada a um superpianíssimo, como se fosse o caso de criar, de início, a ruptura irremediável com a noção convencional do tempo (entre outras obras, no início da Sinfonia Inacabada, por exemplo) já era significativa dessa tendência. Quanto mais avançou em sua criação, mais Schubert pareceu progredir em um outro tempo. Caberia retomar, no sentido dessa análise, todos os temas schubertianos que supõem uma partida (segundo o mito da viagem imaginária), uma marcha, e cujas aproximações são tão eloqüentes. As estruturas de temas que introduzem algumas das últimas obras de Schubert só adquirem todo o seu valor à luz dessa análise. Assim, o tema inicial de Sonata para piano em si bemol ou da grande Sinfonia em dó maior determinam, a um só tempo, a
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climensão objetiva de toda a obra e dão a entender que, dali por diante, abre-se a exploração de um tempo articulado à dimensão do sonho. E quando essa atração pelo universo onírico tende a expressar a busca fundamental de Schubert — a procura profundamente inocente de um paraíso perdido (ao passo que o mito do paraíso perdido é habitualmente vivido na culpa), a procura de uma comunhão essencial —, então podemos compreender por que essa música nos toca o coração, por que e como essa busca engendra sua própria liberdade e por que Schubert, verdadeiro romântico, é profético em sua maneira de ser e de criar, na maneira inimitável e irredutível de dizer EU, tão simplesmente e com tal economia de meios, que qualquer homem moderno pode nela se reconhecer.
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A ÓPERA ITALIANA DE CHERUBINI A ROSSINI
Músicos italianos por toda a Europa A Revolução Francesa transtornou durante longo tempo a ordem das coisas em toda a Europa. Manifestação política que foi, alimentou-se de música ao mesmo tempo que exerceu uma profunda influência na evolução dos gostos e dos pensamentos. Desencadeou também um processo a que o imperador Napoleão, filho coroado da Revolução, deu continuidade e impulsionou até o extremo: a modificação das fronteiras e a simplificação do mapa da Europa. Nos primeiros anos do século XIX, a nova divisão de poderes teria uma influência radical sobre o desenvolvimento de um produto de que os italianos eram os grandes exportadores, a ópera, seria ou bufa. O mapa da produção evoluiu em função dos grandes movimentos culturais, com a influência romântica vindo contrabalançar os esforços dos últimos clássicos, discípulos de Gluck e de Mozart. O mapa do consumo também foi modificado pelo desaparecimento daquela multidão de pequenas cortes principescas em que a sala de ópera ainda era um elemento necessário na decoração de um poder que buscava seu modelo em Versailles. O fenômeno mostrou-se tanto mais importante para o balanço das contas musicais da Itália, vez que um certo número de regiões importadoras fecharam suas fronteiras e manifestaram a intenção de produzir elas mesmas seus próprios espetáculos líricos. Assim, o mapa musical da Europa que viveu os efeitos da aventura napoleónica, ou que a a ela sobreviveu, é particularmente difícil de ser delineado quando se trata de ópera italiana.
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O que dizer de um mundo em que Cherubini ou Spontini eram os luminares da ópera francesa, mas no qual Mayr, nascido na Baviera, introduziu a ópera na cidade italiana de Bérgamo e foi professor de Donizetti? De um mundo no qual aquele que hoje nos parece ser o protótipo sem mácula do mais perfeito italianismo, Rossini, era admoestado pelos contemporâneos por se parecer excessivamente com Mozart? No qual as óperas compostas em russo por Mikhail Glinka nos anos 1840 apresentavam tal semelhança de forma com as produções italianas que somente a diferença de língua podia às vezes evitar confusões ridículas? É preciso encontrar alguma explicação para essa desordem aparente. Comecemos por constatar que os italianos ainda continuavam a ser, no início da era romântica, os senhores da ópera e que a eles apenas conseguiam resistir uma certa tradição francesa e aqueles nouveaux venus, os alemães que haviam recuperado com talento suas formas de teatro popular cantado, o Singspiel, ao qual souberam aliar uma arte de compor que muito devia à influência italiana e o pensamento romântico, que, este sim, lhes era próprio. Die Zauberflõte, Fidelio e Der Freischütz cortaram as amarras de uma tradição italiana de que os autores dessas óperas não queriam mais saber. Um pouco por toda a parte, o italiano ou o italianizante ainda ditavam as leis no domínio lírico. Era entre eles mesmos que os compositores da península t i nham dificuldades para entrar em acordo. É que os problemas da música estavam estreitamente ligados aos da política, em uma época difícil, na qual também a Itália descobria uma consciência nacional. Nessa aventura em que todo um povo inventou para si uma comunidade de interesses e de ambições, não é possível separar o cultural e o político. E a ópera teve seu lugar nesse combate: a sala de teatro foi um campo de batalha como os outros. Mas era preciso que os músicos tomassem consciência disso, o que não aconteceu com todos da mesma forma. Daí, um problema suplementar: não é possível limitar a aventura aos poucos grandes nomes tradicionais: Rossini, Donizetti, Bellini, Verdi e Puccini. Nas revoluções, os comparsas têm às vezes um papel tão importante quanto os protagonistas, e isso é o que nos resta verificar. CHERUBINI Pela data e pelo lugar de seu nascimento, Cherubini pode ser reivindicado pelos italianos. Este florentino nascido em 1760, aluno de Giuseppe Sarti, deixou sua cidade natal, como tantos outros antes dele, para tentar a sorte primeiro em Londres (1784), depois em Paris (1786), onde transcorreu a parte mais importante de sua carreira. Na primeira ópera que compôs na França, Démophoon (1788), distanciou-se da tradição italiana recorrendo à orquestra com uma generosidade inesperada e apoiando o canto dos sofistas com uma firme contribuição coral. Mas o italiano que havia nele não desapareceu de todo, com uma espécie de afrancesamento apressado: a qualidade das melodias de Cherubini, a importância do canto
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em suas óperas, que nunca se limitou às curtas ariettes da opéra comique à francesa, criaram uma posição à parte, na fronteira de dois mundos. A ópera Lodoïska, que compôs em 1791, com base em um episódio de Les Amours du chevalier de Faublas [Os amores do cavaleiro de Faublas] de Louvet de Couvray, membro da Convenção, contribuiu para estabelecer sua reputação na Paris revolucionária, à qual ele proporcionou, aliás, algumas peças usadas nas cerimônias da nascente República. Essa ópera Lodoïska é, por sinal, quase gêmea, tanto no que diz respeito à data de sua composição quanto por seu libreto, de uma outra ópera de mesmo nome, obra do violinista Rodolphe Kreutzer, que ficou conhecido graças à sonata que Beethoven lhe dedicou. Célebre em Paris, Cherubini compôs Médée [Medéia, 1797], que, juntamente com Les deux journées ou Le porteur d'eau [Os dois dias ou O aguadeiro, 1800], representa o ponto alto de uma série de quase trinta óperas, quase todas com libretosfranceses.Nessas óperas, Cherubini mostra-se como o criador de um estilo claro, melodioso, fortemente construído, que faz pensar nas arquiteturas ideais sonhadas pelos urbanistas da Paris imperial. O retorno a uma antiga majestade, linhas puras, mas decoração rica, teriam podido fazer dele, com toda a lógica, o músico mais próximo das concepções estéticas de Napoleão. Mas os anos de Império foram para Cherubini anos de desgraça, a qual deveu-se antes à política do que às belas-artes. Com exceção da ópera Faniska, apresentada em Viena em 1806, o silêncio de Cherubini foi quase completo até Abencérages, de 1813, e Bayard à Mézières [Bayard em Mézières], de 1814. O antigo republicano que não conseguiu fazer-se aceitar pelo imperador tornou-se um dos filhos amados da Restauração. Professor de composição no Conservatório em 1816, foi seu diretor de 1821 a 1841, o que lhe possibilitou ter entre seus alunos um certo Hector Berlioz, que mais tarde tomariafirmementeo partido de Cherubini em suas Memorias. Os anos de velhice de Cherubini assinalamse pela composição de duas missas de Requiem, uma das quais (1817) consagrada "à memoria de Luís XVI". Personagem paradoxal quanto ao comportamento político, Cherubini talvez seja ainda mais contraditório em seu itinerário musical. Mais italiano na música de igreja ou na música de câmera do que na ópera, serviu de vetor introdutor da melodia italiana, que fez penetrar em um meio que lhe permanecia parcialmente estranho. Florentino aclimatado em Paris, foi o guardião de uma tradição da ópera semicômica com diálogos falados. O grande homem hiperclássico, cujo retrato foi pintado por Ingres, é considerado um dos profetas do romantismo musical francês. Diretor do Conservatório, Cherubini acompanhou sem a menor indulgência as primeiras tentativas sinfônicas de Berlioz, com quem, no entanto, compartilhava a admiração por Beethoven — admiração que, por sinal, este último retribuiu, chegando ao ponto de fazer o nome de Cherubini figurar entre os de todos os músicos de primeiro plano de sua época. Quando Cherubini morreu, em 1842, a ópera italiana já assumira, sem ele, e talvez
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mesmo contra ele, sua feição definitiva. Bellini estava morto, Rossini se aposentara, e a doença iria impor a Donizetti um silêncio definitivo. Cherubini já era um homem de outra época. SPONTINI
Cherubini dividiu essa posição de "homem de outra época" com outro músico, mais jovem que ele: Gasparo Spontini (1774-1851), napolitano que havia iniciado em Roma uma carreira a que deu prosseguimento, a partir de 1803, em Paris. Nessa cidade Spontini adotou, desde as suas primeiras composições, as normas técnicas da opéra comique francesa. Mas isso não se mostrou suficiente. Sua ópera Milton (1804) não teve maior sucesso do que Julie ou Le Pot de fleurs [Julia ou O vaso de flores]. Somente em 1807 veio o triunfo de La Vestale [A vestal]. Grande "máquina" à moda antiga, La Vestale tem uma série de características em comum com as óperas de Cherubini. Um certo italianismo fácil é até mais visível nessa ópera em um conjunto que o temperamento do autor não delineia com acentos enérgicos. Os diálogos falados, uma certa simplicidade estilística e o uso de coros distinguem a obra de Spontini das obras de Paisiello ou do Cimarosa de Gli Orazi e i Curiazi [Os Horácios e os Curiácios]. Napoleão manifestou seu interesse por Spontini, que se instalara em Paris como diretor da Ópera Italiana, onde em 1811 dirigiu a estréia do Don Giovanni, de Mozart. Fernand Cortez (1809) foi provavelmente a obra de Spontini que exerceu maior influência sobre o desenvolvimento da ópera francesa. Ópera histórica de grande espetáculo (parece que o imperador estava interessado em uma produção que bem se enquandrasse em sua política espanhola), cheia de grandes árias à italiana e de fragmentos orquestrais que evocavam o ruído das batalhas com uma generosidade digna de Lesueur, essa obra de Spontini ainda falava a linguagem da ópera italiana, mas já se encontram nela todos os elementos que, alguns anos depois, fariam o sucesso das óperas de Meyerbeer. A proteção imperial muito evidente podia prejudicar. Em 1815, Spontini preferiu deixar a França, cedendo a cena a Cherubim, que voltava a ela. Tornando-se berlinense, Spontini continuou a adaptar a tradição lírica italiana às necessidades de um público em mutação. A ópera Agnes von Hohenstaufen, que compôs em 1829, apresenta um modelo bastante curioso de ópera italiana escrita para um libreto alemão que incorporava algumas das cores de uma palheta romântica que, para ele, eram aquisições totalmente novas. Afinal, Der Freischütz é de 1821. Como se vê, as carreiras de Cherubini e de Spontini parecem cruzar suas trajetórias em uma Europa em que Napoleão é o ponto central. Na verdade, foram surpreendentemente complementares. Se é fato que um deles era dotado de mais talento, o outro teve uma área geográfica de atividade um pouco mais ampla. Ambos parecem ter perseguido o mesmo objetivo: pôr fim à opera seria italiana, levando-a a fundir-se em uma tradição estrangeira (e mais particularmente fran-
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cesa). Assim, os que vieram depois deles puderam desenvolver escolas novas sem perder a contribuição da insubstituível experiência italiana. São dois compositores que escapam ao mundo que era o seu: aparentemente não deixam sucessores e levam seu conhecimento musical aos novos senhores da Europa. Não é na Itália que se deve procurar a descendência de nossos dois confrades, mas em Auber, Halévy, Flotow ou Meyerbeer. Cherubini e Spontini foram representantes de uma certa modernidade, e sua ação de certo modo completa a dos compositores que buscavam, em um mundo novo, o movimento de trocas transalpinas que havia caracterizado o século XVIII. PAÊREMAYR Personagem secundário, Ferdinando Paër (1771-1839), natural de Parma, tornouse célebre em Viena, em 1801, com a ópera Acchille [Aquiles] e em Dresden, em 1804, com a ópera Leonore, que tinha o mesmo tema da Leonore ¡Fidelio de Beethoven, embora se deva excluir a hipótese de qualquer influência da obra de Paër sobre a de Beethoven. Em 1807, Paër tornou-se, por algum tempo, mestre de capela de Napoleão e, depois disso, terminou sua carreira em Paris. Outro personagem secundário, o bávaro Johann Mayr (1763-1845), fixou-se desde 1787 na Itália, onde seu renome ameaçou eclipsar o do próprio Rossini. Compôs em 1813 uma ópera intitulada Medea in Corinto [Medéia em Corinto], por todos admirada, e terminou uma vida de glórias artísticas e bastante próspera em Bérgamo, onde seu túmulo faz par com o de Donizetti. Saídos da mais pura tradição da arte lírica italiana, um e outro garantiram de alguma forma a ligação entre o mundo de Cimarosa e de Paisiello com o da grande ópera que Rossini fez reviver sob uma forma totalmente nova. G i o a c c h i n o Rossini ( 1 7 9 2 - 1 8 6 8 )
Em 1792 nasceu Gioacchino Rossini, o futuro Cisne de Pesaro. A vida de Rossini já começou em tom de ópera bufa. Nascido um pouco cedo com relação à data de casamento dos pais (mais ou menos cinco meses depois), era filho de um pobre músico municipal que tocava no teatro as partituras de trombeta ou de corne, e de uma lavadeira que se deixara tentar pelos encantos do teatro. Como soprano, ela atuou e cantou com trupes ambulantes, tendo provocado o seguinte comentário do filho: "Pobre mamãe! Não era verdadeiramente desprovida de inteligência, mas não conhecia sequer uma nota de música. Guiava-se pelo ouvido." A infância do futuro maestro transcorreu em um contexto de total incerteza política. Segundo o acaso das batalhas e dos tratados, Pesaro passava do governo pontificai ao governo da República Cisalpina. O pai de Rossini, Giuseppe, era republicano fervoroso. Estava sempre a postos para reger uma banda quando se plantava uma árvore da Liberdade que os adversários arrancariam na primeira ocasião. O meni-
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no Gioacchino foi envolvido nesse movimento político-musical. A primeira menção oficial a seu nome mostra-nos Rossini tocando triângulo (com remuneração), aos seis anos e meio, na banda da guarda cívica de Pesaro. Os pais de Rossini partiram para levar a vida errante dos músicos que faziam turnês provincianas. Deixado aos cuidados da avó, o garoto foi colocado como aprendiz do ofício de ferreiro. Dois cônegos locais, os irmãos Malerbi, amigos e protetores, deram ao menino as primeiras lições de canto e, ao que parece, de cozinha. Mais útil ainda foi a oferta que lhe fizeram de livre acesso à biblioteca de que dispunham, bem fornida de partituras de Haydn e de Mozart. E aí, certo dia, no teatro de Ravena, cidade a que fora para reunir-se a seus pais, o menino de doze anos, com voz de tenorino, foi chamado para substituir, sem tempo para prepararse, o baixo cantante da trape. Era o primeiro passo de uma carreira marcada pelo amor ao teatro, por uma certa indolência e pelo espírito de brincadeira. A família instalou-se em Bolonha, centro musical de importância. Gioacchino começou a estudar seriamente música, com a qual suas relações haviam sido até então casuais. Continuou a apresentar-se em cena quando havia ocasião e, com quinze anos de idade, compôs as Seis sonatas a quatro, vibrantes de fantasia e de espírito musical, mas sólidamente ancoradas nas técnicas de construção musical que aprendera nas partituras de Haydn e Mozart. No Liceo Musicale, trabalhou seriamente sob a direção do padre Mattei, o sucessor do célebre padre Martini. A música de câmera e os primeiros ensaios de música de igreja ocupavam-no mais do que as tentativas que andou fazendo para o teatro: uma primeira ópera, Demetrio e Polibio, começada no Liceo, só haveria de ser terminada em 1812. Enquanto isso, o autor, tendo atingido a idade avançada de vinte anos, fizera representar cinco comédias bufas. Em 1810, já estava farto do estudo do contraponto e da fuga. Deixou o Liceo quando o Teatro San Mosè de Veneza encomendou-lhe uma farsa musical, La cambiale di matrimonio [A procuração de matrimônio], que foi recebida com sucesso. O ESTILO ROSSINIANO Aos dezoitos anos Rossini encontrara o seu caminho e nele sentir-se-ia perfeitamente à vontade, compondo com uma facilidade desconcertante as obras mais diversas. Em um intervalo de dezessete anos, ofereceu ao público cerca de quarenta óperas, das quais quase a metade mantém-se no repertório. Uma produção desse porte não dispensa negligências e repetições. A mesma abertura serviu a Aureliano in Palmira [Aurefiano em Palmira, 1813], depois a Elisabetta, regina dTnghilterra [Elisabeth, rainha da Inglaterra, 1815], antes de alcançar a celebridade universal com II barbiere di Siviglia [O barbeiro de Sevilha], em 1816. E pode parecer estranho ouvir dois personagens tão diferentes quanto a rainha Elisabeth, exultando em sua alegria triunfante, e a jovem Rosina, expressando sua malícia de jovem apaixonada, na mesma cavatina ( Una voce poco fa, em li barbiere di Siviglia). É preciso estar atento: a pintura de caracteres não era o ponto forte do talento de Rossini, nem o jogo sutil
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dos coloridos de clima e ambientação. Fossem dramas líricos ou óperas bufas, suas obras eram engendradas pelo mesmo élan quase furioso que encontrava o princípio de sua força na aceleração rítmica e nos célebres crescendos tão típicos da música rossiniana. Tudo e todos parecem estar sempre correndo nessas obras compostas às pressas e meio caóticas. Essa permanente urgência, que é a marca de fábrica da ópera rossiniana, constitui também um de seus principais encantos. O espectador sequer tem tempo para aborrecer-se: as árias são vivas, e as próprias passagens intermediárias exalam alegria e juventude. Basta ver a paixão de um Stendhal, grande amante do prazer e no fundo músico medíocre, para compreender a natureza da sedução exercida por aquele "alegre homem gordo" que Berlioz tanto detestaria. Beethoven não se enganou propriamente quando aconselhou Rossini a ater-se à ópera cômica: apenas foi enganado por aparências formais. Seja qual for a natureza do libreto, as obras de Rossini respiram uma alegria de viver e um sentido de bem-estar contra os quais o compositor simplesmente nada podia fazer. Voltemos a Stendhal. O entusiasmo que sentia por Rossini é comparável à paixão que nutria pelo Bonaparte das campanhas da Itália. Nas primeiras páginas de La Chartreuse de Parme [A Cartuxa de Parma], Stendhal descreve "a massa de felicidade e prazer" que irrompeu na Itália com "aqueles soldados franceses (que) riam e cantavam o dia inteiro..." Como falar melhor do jovem Rossini do que empregando os termos alegria, juventude e despreocupação? É o que faz o escritor em sua Vie de Rossini [Vida de Rossini], em que louva no compositor "uma certa verve na execução, um brio, um arrebatamento generalizado que nunca se vê na ópera em nossos climas de raisonneurs" De quem fala ele? Do músico ou do jovem general? A comparação pode ser levada adiante. Rossini foi um dos primeiros autores cujas "sinfonias de abertura" parecem ter sido escritas prevendo uma execução por banda militar. Não vejamos nisso qualquer julgamento pejorativo, nem mesmo a indicação de uma mudança da relação tradicional entre cordas e sopros. Mas Rossini amava os ritmos definidos e os tempos alegres. Com ele, os próprios violinos tinham um tratamento de instrumentos a serem tocados ao ar livre. Basta verificar o uso que Rossini fazia da clarineta, um de seus instrumentos preferidos. Entre as árias patéticas de Mozart e a ternura sentimental de Brahms, a clarineta rossiniana é o instrumento dos ataques mordentes, das bruscas articulações: definia os limites de um mundo em que se misturavam as tonalidades do canto e da banda de música. A NOVA ÓPERA ITALIANA SEGUNDO ROSSINI Músico jovem, ao mesmo tempo fecundo e preguiçoso, Rossini nem por isso era um músico da facilidade e da rotina. Ao contrário, logo mostrou como era capaz de inovar. Por vezes até parece que queria justificar o apelido que lhe fora dado por alguns de seus contemporâneos italianos, Il Tedeschino, ou seja, "o Alemãozinho". A acusação — pois havia nisso uma acusação por parte daqueles que faziam tal
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julgamento — pode surpreender. Mas apenas reflete a atenção maravilhada que Rossini, quando menino, prestara à leitura das partituras de Haydn e de Mozart. Em 1811, em Bolonha, Rossini regeu os ensaios de Die Schõpfung, de Haydn, na Academia dei Concordi. E ficaria ainda mais profundamente marcado pelos estudos das grandes óperas mozartianas. Basta comparar os dois Barbieri di Siviglia, o de Paisiello e o de Rossini, para surpreender-se com uma diferença que não é de qualidade, mas de estrutura. A música de Paisiello é encantadora, sua força cômica por vezes é irresistível: a ária dos dois criados, um bocejando e o outro espirrando, talvez não tenha equivalente no domínio do riso puramente musical. Mas a ópera de Paisiello é concebida como uma série de árias e de duos, e os personagens só se encontram em conjunto no final. Na ópera de Rossini, as fórmulas as mais diversas sucedem-se com a maior das velocidades. Duos, trios, árias, quartetos e ensembles configuram uma espécie de geometria defigurasvariáveis em perpétuo movimento. É que entre as duas versões operísticas da primeira comédia de Beaumarchais estão Le nozze di Figaro; em que Mozart demonstrara a possibilidade de sair das fórmulas rígidas que a ópera italiana, mesmo emancipada das regras de Métastase, continuava a impor. Rossini compreendeu a lição. E continuou, pelo lado italiano, o processo de desestabilização iniciado pelo grande mestre vienense. Em certos domínios, Rossini foi mais longe que Mozart, morto alguns anos antes que ele nascesse. Em Elisabetta, regina d'Inghilterra, foi o primeiro a renunciar ao recitativo secco, sem por isso valer-se do recurso ao estilo francês ou alemão, ao diálogo falado. A ópera, que data de 1815, ainda comportava recitativos. Mas, ancestrais do mesmo fenômeno em todas as óperas modernas, os recitativos eram acompanhados por toda a orquestra, como no recitativo accompagnato dos barrocos e mesmo de Mozart. As obras ganham com isso uma continuidade dramática que permitiria pôrfim,na Itália, a usos que o resto da Europa já condenara: o da capo de praxe no final de cada ária, a saída do ator no momento em que terminara seu número vocal. Arriscava-se perder uma certa perfeição da ginástica controlada das vozes, mas essa perda, de resto imprecisa, haveria de ser amplamente compensada pela abertura do teatro lírico a forças dramáticas que se viam paralisadas por formas muito estereotipadas. Essa emancipação teve conseqüências imprevistas. A ópera italiana vinha padecendo, até Rossini, de uma classificação muito rígida. A opera buffa, tendente ao teatro de caracteres burgueses, em que os personagens saíam do repertório de uma vida cotidiana um pouco caricaturada, opunha-se à opera seria, que mal escapava aos cânones da beleza fixados por Métastase e cujas personagens eram tomadas, em sua grande maioria, à história ou à mitologia antigas. Com Rossini, dissipouse essa rigidez na escolha dos temas. Pelo lado cômico, as coisas caminharam por si mesmas. Era mais uma questão de música do que de escolha dos libretos, que por sinal passaram a envolver personagens ainda mais modernas, pois o autor tinha pouca atração pelas historietas de pastores e pastoras. Pelo lado dramático,
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a mudança é bem mais visível. Como reservatório de personagens, substituía-se o cenário antigo — história ou mito — por um contexto que os libretistas gostavam de situar entre a Idade Média e o Renascimento, épocas sobre as quais muitas vezes as noções que tinham eram bastante vagas: o estilo de praxe passou da toga heróica ao pourpoint do trovador. Se o Tancredi de 1813, adaptado de Torquato Tasso através de Voltaire, pertence ainda, como todas as primeiras opere serie de Rossini, à tradição antiga, Elisabetta proporcionava ao público, depois dofracassodo Sigismundo (1814), um libreto de tema completamente novo: não foi por acaso que essa mudança na dramaturgia correspondeu a uma modificação da própria narrativa musical. O teatro cantado aproximava-se do teatro propriamente dito. Otelo, tema shakespeariano, veio a seguir (1816) e contribuiu para familiarizar a Itália com um universo romântico ao qual ela haveria sempre de sentir-se um pouco estranha, mas cujos ouropéis histórico-romanescos adotaria sem dificuldades. Refúgio contra uma realidade técnica, econômica e social julgada incompatível com a nobreza da criação artística, a cena de época iria invadir a cena lírica até os últimos anos do século, com a mesma insistência que lhe permitiu anexar toda uma parte do espaço literário. Walter Scott — campeão, antes de Alexandre Dumas, deste tipo de literatura — forneceu a Rossini o tema de La donna del lago [A mulher do lago, 1819]. Cruzandofronteiras,a ópera rossiniana prefigurava, em seus libretos, o mundo decorativo e sentimental ao qual devemos a obra de Meyerbeer e todo um pseudo-romantismo da cena lírica. Esse medievafismo de encomenda referia-se, na maior parte das vezes, ao "mundo do outro lado dos Alpes" — alemão, inglês ou francês —, mais carregado de mistérios e de intrigas legendárias do que o mundo italiano. A historia local não faltavam, decerto, episodios suficientes para comover as almas simples e fazê-las tremer, mas ela parecia excessivamente familiar e quase cotidiana. O gótico dos libretos encontrava aqui sua significação etimológica. Mas nada de soturno viria tornar pesada a música de Rossini. Fossem quais fossem os temas abordados — gracejos modernos ou dramas sombriamente medievais —, a arte de Rossini permanecia marcada pelo primado absoluto do que os italianos chamavam de vocalitá, que era o uso da voz como transmissora privilegiada da emoção. Foi ainda Stendhal quem melhor comentou essa noção de envolvimento total pelo canto. Vale a pena citar doisfragmentosda Vida de Rossini: Nos países do Norte, entre vinte belas jovens às quais se ensina música, dezenove aprendem piano; apenas a u m a delas mostra-se o canto, e as outras dezenove acabam por achar bom apenas o que é difícil. Na Itália, todo mundo procura chegar ao belo musical por meio da voz (...). O prazer físico e maquinal que a m ú s i c a dá aos nervos do ouvido (...) aparentemente p õ e o cérebro em certo estado de tensão (...) que o força a produzir imagens agradáveis e a sentir com vinte vezes mais embriaguez as imagens que, em u m outro momento qualquer, s ó lhe teriam dado um prazer vulgar.
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Tudo está dito aqui: o prazer, uma certa facilidade, a "mise en émotion" do ouvinte. Seria preciso acrescentar, e Stendhal não deixa de fazer isso, um certo desprezo pelas complicações da harmonia erudita. Tal como era, a fórmula rossiniana dominou um século de ópera italiana. Algumas vezes essa fórmula, nos piores casos, produziu a caricatura mecânica que muito erradamente é designada pela expressão bel canto; outras vezes foi capaz de produzir obras-primas, tão diferentes umas das outras que não parecem estar referidas a uma mesma estética inicial. Não é certo que Rossini tenha alguma vez se dado conta da novidade e da solidez da fórmula que aperfeiçoara. * ** A existência de compositor de Rossini ocupa apenas a primeira parte de sua vida. É marcada por uma seqüência de sucessos que o levaram da Itália do Norte a Nápoles, onde desposou uma célebre cantora, Isabela Colbran, e depois ao estrangeiro: Viena, onde encontrou Beethoven, Londres e Paris, onde finalmente fixou-se em 1824, como diretor do Teatro Italiano. Mais do que os detalhes biográficos, os pontos de referência desses anos de glória e de trabalho são suas obras, sempre aplaudidas: La scala di seta [A escada de seda, 1812]; Tancredi e LTtaliana in Algeria [A italiana na Algéria], em 1813; Il turco in Italia [O turco na Italia], em 1814; Elisabetta, regina d'Inghilterra, em 1815; depois, em 1816, II barbiere de Siviglia; em 1817, quatro óperas, entre as quais La gazza ladra [A pega ladra] e La cenerentola [A cinderela]; Moisés no Egito, em 1818; La donna del lago, em 1819. Foi preciso esperar por 1824 para que se passasse üm ano, e não mais, sem qualquer obra. Semiramide [Seniíramis], de 1823, foi a última das grandes obras compostas para as cenas italianas. Em Paris, Rossini ainda produziria uma opera buffa em sua língua de origem. Depois adotaria o francês, com Le Siège de Corinthe [O cerco de Corinto], adaptação de seu Maometto [Maomé], de 1820. As duas últimas obras, uma farsa, o Le Comte d'Ory [O Conde de Ory, 1828], e um drama histórico, Guillaume Tell [Guilherme Tell, 1829] foram diretamente compostas sobre libretos franceses. Na época de sua ópera Guillaume Tell, Rossini tinha apenas 37 anos, mas atingira uma posição excepcional no mundo da ópera. Essa sua última composição — em que, todavia, percebem-se algumas fragilidades — valeu-lhe as propostas materiais mais sedutoras: uma pensão na lista civil do rei da França, a encomenda de quatro óperas que ele escreveria como e quando quisesse e que lhe seriam muito bem pagas. Esse contrato foi um dos últimos documentos que Carlos X assinou como rei. As Jornadas de Julho de 1830 estavam próximas. E Luís Felipe, recusando-se a honrar os dispendiosos compromissos de seu antecessor, proporcionou a Rossini a oportunidade de abandonar o teatro. Muitos motivos foram evocados para explicar essa retirada antecipada. Mas é preciso ver nela principalmente o
A ópera italiana de Cherubini a Rossini
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sinal do esgotamento físico e moral de um homem que há muito tempo retirava de sua própria inteligência os recursos de sua sobrevivência, com um esforço acima do suportável. O Rossini que se calou em 1830 era um homem doente. Acumulara toda uma série de aflições estomacais e intestinais que certamente tinham reflexo sobre seu estado mental. Seu lar ruía: Olympe Péfissier, a futura segunda senhora Rossini, começou por cuidar dele como enfermeira. Era o que se chama em francês de demi-mondaine, e acabou por passar do quarto do pintor Horace Vernet para o de Rossini, antes de ter criado para si uma respeitabilidade térrea. Durante 25 anos, o ex-compositor levou uma existência de velho boêmio, errando de uma cidade para outra da Itália, assitindo ao triunfo, na ópera, de novos nomes. Às vezes era tomado pela vontade de escrever: as Soirées musicales (um ciclo de cantos e de peças para piano), em 1835, o Stabat Mater, de 1842. Durante algum tempo interessou-se pela direção do Liceo Musicale de Bolonha, onde outrera fora aluno, mas nada disso tinha muita consistência. Em 1855,fixou-senovamente em uma Paris da qual quase se esquecera e para a qual seu nome era o de um espectro. Durante treze anos, até sua morte em 1868, reinou em seu salão de Passy, no qual conseguira reunir um dos círculos musicais mais divertidos de Paris. Ali recebeu Wagner, com quem trocou pontos de vista com extrema cortesia. Há um registro da conversa: um fala do Barbiere e de Guillaume Tell o outro de Tannhauser e de Tristan; nenhum dos dois menciona a música do outro. Seus últimos anos foram os de um velho a um só tempo epicurista e estoico, que se comprazia em dar, nos Pecados de minha velhice, provas de uma espantosa juventude de espírito e de um savoir-faire arrebatador. Rossini acabou sua existência sem amargura. A última de suas composições importantes foi uma Pequena missa solene para sofistas, coro, piano e harmonio, feita para ser executada no salão parisiense do banqueiro PiUet-Will. Curiosamente, sente-se nessa obra uma sinceridade religiosa estranhamente travestida, que se mostrara totalmente ausente da Missa di Gloria [Missa de Glória], composta quase cinqüenta anos antes para a catedral de Nápoles.
SÉTIMA PARTE
OS FILHOS DO SÉCULO
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SITUAÇÃO SÓCIO-HISTÓRICA DA MÚSICA NO SÉCULO X I X
A democratização da vida musical Os processos que se esboçaram por volta do fim do século XVIII na vida musical da Europa desenvolveram-se em toda a sua amplitude no século XLX, resultando numa nova situação, inteiramente diversa de tudo aquilo que, no passado, fizera a história da música. A partir de então, um público que antes era restrito às cortes e palácios cede terreno a outro tipo de público, numericamente mais importante e formado em sua maioria de burgueses. Os patronos e os mecenas nobres foram abandonando aos poucos seu tradicional papel, afastados pelos empresários e pelos diversos grupos de músicos, profissionais e amadores, que cada vez mais organizavam eles próprios concertos públicos. Já desde o início do século, alguns teatros e casas de ópera, como os de Munique e de Dresden, antes exclusivos das cortes, se haviam transformado em instituições públicas. (A Ópera Real de Dresden pôde orgulhar-se de ter tido diretores como Weber, de 1817 a 1826, e Wagner de 1843 a 1849). O despertar nacional, político e social estimulou a transposição de temas, como os de Der Freischütz [O franco-atirador], de C M . von Weber, ou de Fidelio, de Beethoven, que o exaltavam nas obras líricas. O impulso romântico fez com que a atenção dos artistas se voltasse para o passado de suas respectivas nações, privilegiando assuntos que dissessem respeito a elas, o que se observa tanto nos grandes países com tradição musical mais rica, como também nos pequenos (os eslavos e escandinavos, por exemplo) ou nos menos desenvolvidos (como
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a Rússia), onde nasce uma ópera que tem importante função no despertar e na sustentação da consciência nacional. Por outro lado, os historiadores da música empreendiam um trabalho sistemático de pesquisa, sobretudo de ordem biográfica e analítica, que permitiu a constituição da musicología histórica e a reconstituição da vida e da criação de vários grandes compositores, tais como Bach, Palestrina e Schütz. Em Paris, nos anos de 1830, o musicólogo belga Fétis (1784-1871) organizou concertos de música antiga que obtiveram enorme audiência e cujos efeitos haveriam de ressoar num poema de Victor Hugo. O público aumentou em número, principalmente nos grandes centros europeus, como Londres, Paris e Viena. Na época do romantismo, o compositor, liberto dos entraves que lhe eram impostos no passado, passou a contar com o juízo prévio favorável de um público neófito que o via quase sempre como um ser extraordinário, especialmente dotado. Começou a desenvolver-se o culto do gênio. Às vezes, a democratização da música, que cada vez mais se ia impondo, fazia as autoridades políticas alimentarem suspeitas em relação às sociedades musicais de amadores, cujas reuniões eram regidas, aos olhos das autoridades, por um princípio demasiado democrático, com seus diretores e comitês livremente eleitos e seus membros, provenientes de diferentes classes sociais, trabalhando lado a lado. Na Áustria, por exemplo, a ópera, sob o regime de Metternich, passava pelo controle da censura e era vigiada de perto pelas autoridades. Mas a democratização irresistível da vida musical, arrastando um número sempre crescente de pessoas, acabou por tornar necessária a abertura de grandes salas de concerto, capazes de receber milhares de ouvintes, bem como a criação de grandes organizações especializadas na programação de concertos. Pode-se quase falar de uma explosão cultural a propósito do que se passou na vida musical durante a metade do século, quando o número de concertos, pelo menos em certas capitais como Londres e Paris, triplicou ou mesmo quadruplicou. Nessa época, havia concertos de diversos tipos: os de caráter privado ou semiprivado, os concertos de promenade, que se realizavam em lugares públicos, e ainda os grandes concertos públicos e pagos. O comércio e a edição de músicas fizeram progressos consideráveis para poder satisfazer a demanda de um mercado cada vez mais amplo. Nenhuma arte, nesse tempo, conheceu expansão igual à da música. Como os burgueses não tinham muito como participar das outras manifestações artísticas, aumentava o prestígio do concerto e do teatro, herança do século precedente que facultava certa afirmação social em local público. Mas, além desse significado social e de sua finalidade estética, os concertos tinham outros propósitos: promover a afirmação profissional dos músicos, comemorar acontecimentos de diferentes naturezas, beneficiar obras de caridade. Costumavam ser patrocinados por algum músico ou por um grupo de músicos, por diferentes jornais (então muito mais numerosos e influentes do que no século anterior), e ainda por
Situação sóáo-histórica da mitsica no século XIX
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sociedades e clubes de diversas espécies, instituições de caridade, teatros e editoras de música, tudo contribuindo para que a vida musical tivesse uma imagem mais diversificada do que no passado. Os concertos organizados por amadores continuavam existindo; seus objetivos comerciais eram, entretanto, muito limitados porque, principalmente em cidades de menor importância, se destinavam a um círculo de pessoas amigas e conhecidas. Mas um grande futuro estava reservado aos concertos oferecidos pelas organizações permanentes de músicos profissionais: foram deles que saíram as orquestras sinfônicas ou filarmônicas que, mais tarde, no decorrer do século, iriam ocupar um lugar de honra na vida musical dos diferentes países. A mais ilustre de todas, com justa razão, foi a orquestra do Gewandhaus de Leipzig que, sob a direção de Mendelssohn entre 1835 e 1847, tornou-se uma das primeiras da Europa. Até o século XX, ela continuou a ter à frente regentes da categoria de Nikisch e Furtwãngler. Da mesma forma, só por volta da metade do século teve início a moda dos grandes "clássicos" vienenses — Mozart, Haydn e Beethoven. Bem cedo, no entanto, mais ou menos pelos anos 1830, começaram a manifestar-se certas distinções no interior da vida musical que refletiam diferenças de gosto, de estética e, às vezes, também de cultura e de condição social: de uma parte, surgiu uma tendência mais popular, mais acessível, voltada quer para uma arte agradável, humorística mesmo, como a ópera cômica, quer para uma arte bastante superficial, como pode ser o puro virtuosismo, para aquilo, enfim, que se poderia entender como uma mercadoria musical mais ou menos "funcional" ou utilitária, que não tinha outra ambição senão distrair; de outra parte, delineou-se a corrente de uma arte mais exigente, profunda e de alta cultura, que geralmente se reportava ao passado e era apreciada por um público restrito. A maioria dos compositores da época, evidentemente, seguia a primeira tendência, mais fácil e comercial. Toda uma música de salão, de dança, de entretenimento, além da opereta e de uma quantidade de canções e peças ligeiras, foi composta para um público que não somente os compositores, mas sobretudo os editores e negociantes de instrumentos, desejavam satisfazer. Às vezes, esses últimos reuniam em suas pessoas os dois interesses, como é o caso de Pleyel, na França, e de Clementi, na Inglaterra, que, publicando coleções inteiras de arranjos para piano de ópera e outras obras, incrementavam tanto o mercado editorial como o do instrumento de que eram fabricantes. Não demorou muito a estabelecer-se um corte marcando nitidamente dois domínios que, mais tarde, achou-se por bem designar como "música ligeira", de um lado, e "música séria e erudita", de outro. No âmago mesmo da democratização generalizada da música, que se manifestou no século XIX tanto pela expansão do número de ouvintes como pelas modalidades da vida musical — primeiros indícios de uma cultura de massa, modestos, mas reais, em que a exploração comercial da música foi ganhando um papel cada vez mais importante —-, esboçou-se uma
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Sétima parte: osfilhosdo século
cer, entretanto, o brilho dos concertos na Gewandhaus de Leipzig e a Orquestra de Weimar, no tempo em que Franz Liszt foi Kapellmeister da corte do grão-duque daquela cidade (1842-1858). O que acontecia era que não interessava às orquestras de ópera ou das cortes locais incentivar nem a criação de uma orquestra rival, nem prestar ajuda a uma concorrente. Berlim, contudo, graças aos músicos da corte, pôde ter seus concertos dados regularmente em caráter profissional. Mas a Berliner Philharmonika propriamente, depois de desvinculada de qualquer elo com a Ópera, só começou a atuar a partir de 1882, e a Berliner Symphoniker, de orientação mais moderna, depois de 1908. Mesmo em Viena não existiam concertos de orquestras normalmente organizados, públicos e regulares, antes de 1860, ano em que foi formada a Wiener Philharmonika, constituída em parte por músicos recrutados na Ópera, coisa que não lhes facilitava muito o trabalho.
diferenciação que haveria de revelar-se determinante para o futurada música. O que, na época, se mostrava mais importante para a primeira categoria (muitas vezes mais do que a originalidade) era a novidade, sempre apreciada e exigida, ao passo que, para a segunda, a apreciação da qualidade estética da música começava a constituir uma tradição de outra natureza.
O desenvolvimento dos concertos Em Londres, a criação, em 1813, da Philharmonie Society, que se propunha a oferecer música moderna executada da melhor maneira possível, era uma iniciativa normal para uma grande cidade, onde o público de concertos já estava bem constituído e era numeroso. Graças a ela, a música de Mendelssohn foi introduzida na Inglaterra e a Nona Sinfonia de Beethoven encomendada; para esta mesma sociedade, também Spohr e Dvorák compuseram algumas obras. Os chamados Promenades Concerts, fundados em Londres no ano de 1839, visavam a atrair um público ainda maior e davam concertos muitas vezes para 2 mil pessoas. Em 1852, foi fundada a New Philharmonic Society, cujo objetivo era a execução dos grandes mestres de todas as épocas para uma vasta platéia, sem quaisquer restrições, e que organizou concertos para um público que chegava a reunir 3 mil pessoas de uma só vez. A regência do primeiro de seus concertos foi confiada a Berlioz. Os Crystal Palace Concerts eram dados diante de uma platéia ainda maior. Podendo escolher entre as grandes salas onde õs preços eram mais baixos e as pequenas, com seus lugares mais caros, em geral os organizadores optavam pela primeira solução, o que bem correspondia às tendências sociais, comerciais e culturais da época. Em Paris foi fundada, em 1828, a Société des Concerts du Conservatoire, formada por competentes músicos profissionais que davam preferência sobretudo à música dos grandes mestres clássicos. François Habeneck (1781-1849), seu primeiro regente, promoveu, entre 1828 e 1831, a primeira audição integral (em Paris) das nove sinfonias de Beethoven e converteu-se em profeta e apóstolo da glória de Beethoven na França. O próprio Berlioz fundou uma sociedade de concertos de tendência modernizante, mas apenas a Société des Jeunes Artistes, fundada em 1851 por J. Pasdeloup (chamada, a partir de 1861, Concerts Populaires), teve sucesso no empenho de introduzir em seu repertório obras dos contemporâneos. Les Concerts du Châtelet (1874), chamados mais tarde pelo nome de seu fundador, Concerts Colonne, apresentavam principalmente obras de compositores mais jovens. Finalmente em 1881, foram fundados em Paris os Nouveaux Concerts — que ficaram conhecidos como Concerts Lamoreux, nome igualmente tirado de seu fundador —, cujo repertório foi sendo aos poucos enriquecido pelas obras de compositores franceses, como d'Indy, Chabrier e, posteriormente, Debussy. Já o desenvolvimento de uma vida musical de concertos nas cidades alemãs, tradicionalmente orientadas para a ópera, foi bem mais lento. Não se deve esque-
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A "desfuncionalização" e a emancipação da música
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Com o grande desenvolvimento da vida musical do século XIX, dominada pela instituição do concerto, um fenômeno de importância excepcional e sem precedentes veio a manifestar-se: uma "desfuncionalização" e uma autonomia como nunca a história desta arte havia até então registrado. Constituiu-se uma categoria socialmente distinta de profissionais, que introduziu seus critérios próprios de avaliação da arte musical, procurando libertá-la de toda e qualquer servidão social. Com a queda do Antigo Regime, a autonomia das artes tornou-se possível e, pouco a pouco, firmou-se de forma irreversível, o que acarretou sua "desfuncionalização", ou, em outras palavras, a transformação das suas funções sociais precedentes. Poder-se-ia falar igualmente de "refimeionafização": a música tornava-se autônoma em relação às suas velhas funções sociais e ganhava novas. Já os "clássicos vienenses" haviam começado a criar obras que não estavam destinadas a uma função imediata e particular, que não foram escritas para um dado conjunto musical ou para serem executadas num determinado lugar. Liberto do antigo papel de servidor ou de assalariado, e já emancipado, o músico mudou também de atitude: seu novo papel, face a um novo público, levava-o a não conferir mais às obras que compunha funções sociais então já caducas. Além disso, o romantismo elevara-o a um papel simbólico incompatível com sua função social anterior. A obra musical produzida pelo romantismo contribuiu para dissolver esta função, facultando a afirmação de uma outra, individualista, e antes de ordem psicológica e estética. A música tencionava ser expressiva, exprimir o sentimento pessoal do músico e estabelecer um contato novo com a platéia, que não mais delegava ao músico a tarefa de expressar seus sentimentos coletivos: reunia-se para ouvir a música proposta. E o músico — este o seu novo papel — há de impor ao público sua maneira pessoal de sentir.
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Mas há outro aspecto da mentalidade da época, que emergiu na segunda metade do século e permite avaliar a complexidade desta mentalidade e do seu caráter, por vezes, contraditório. Trata-se da doutrina estética da música comumente dita "formalista", que se firmou através de uma obra, bem depressa tornada famosa, Von Musikalisch-Schõnen [Do belo na música, Leipzig, 1854]. Eduardo Hanslick (1825-1904), seu autor, foi a primeira pessoa a ocupar uma cadeira de musicología numa universidade, a de Viena. Era um antiwagneriano extremado e crítico temido, além de oráculo da opinião musical reinante em Viena no terceiro quartel do século. A partir dele, o "formalismo" musical foi adotado não só por toda uma corrente de músicos, mas também por amplas camadas de ouvintes que se recusavam a procurar ou encontrar, na obra musical, qualquer coisa que fosse extra-música e a considerá-la ou escutá-la como uma expressão dos sentimentos ou da psique do compositor. Segundo Hanslick, deve prevalecer sobretudo a contemplação estética da obra, considerada na pureza de sua autonomia artística, a única coisa que dali por diante deveria importar. Hanslick afirma-o categoricamente, opondo a tese da especificidade da música à idéia hegeliana da unidade de todas as artes. Ora, é evidente que tal concepção também "desfuncionafiza" a obra musical. E a desfuncionafiza não somente no plano social, mas, até certo ponto, também no humano. Ela não considera mais a obra como a expressão do homem, mas como uma construção, um arabesco sonoro, como dizia Hanslick, uma arquitetura feita de sons, enfim, um universo à parte, autônomo e específico, cujo valor está no fato de ser harmoniosamente ordenado de acordo com princípios formais, aliás variáveis e em evolução, mas estritamente intrínsecos à música. Estafinalidadeestética reivindica sua primazia no final do século XLX, pretendendo relegar a segundo plano qualquer outra finalidade funcional. Assim, a partir do século XIX, os músicos profissionais não estavam mais dominados, como antigamente, pelas corporações ou por seus deveres para com a corte, e tampouco pelas limitações locais, para o que contribuiriam as turnes cada vez mais freqüentes de compositores e virtuoses. Um aspecto ulterior que explica a desfuncionalização da música erudita naquela época é o das instituições sociais ou dos aparelhos organizados da sociedade que, comparados aos do século XVIII, apareciam profundamente alterados em suas estruturas. Outro aspecto que esclarece a desfuncionalização social da música naquele momento é constituído pelos modelos sociais ou imagens coletivas que se faziam dela. Tais modelos ou imagens não mais se situavam no mesmo plano que antes: a música deixara de ser um elemento cerimonial, decorativo, um material usado na manifestação exterior de festas e cerimônias profanas, para transformar-se numa marca de prestígio, tornando-se também marca da boa educação, o que já se esboçara no século XVIII. O acento se deslocou do exterior para o interior. Não mais se tratava tanto de exaltar glórias exteriores de maneira mais ou menos espetacular, porém de fazer
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ressaltar uma qualidade pessoal. A música foi progressivamente afastando-se de uma função social pública e ornamental para exercer, de preferência, uma função estetizante e culturalmente autônoma. Pode-se falar também de uma espécie de purificação da música e do ato contemplativo no momento da escuta, cada vez mais liberto de qualquer função social que fugisse dos limites da música, durante o concerto. Contudo, o concerto se tornara uma cerimônia quase ritualística, em um quadro de comportamento definido e predeterminado a que deviam obedecer tanto os músicos como os ouvintes. Mas, se nesse sentido o concerto até certo ponto "refuncionalizava" a música, não o fazia de modo algum como as festas e cerimônias de outros tempos, que constituíam uma ocasião exterior à música, da qual se exigia uma participação. Até então, a música, como disciplina artística, estivera geralmente submetida a outras, tanto artísticas com científicas. O século XIX foi a grande época da emancipação da música também neste plano. Os musicólogos e historiadores de música, estudando o passado musical à luz do romantismo e, sob a influência do po¬ sitivismo, o fenômeno da música em si próprio, tomaram consciência não só do valor da música antiga, considerada pelo Século das Luzes como bárbara, mas também do valor próprio da música enquanto tal. A função política da música continuou a subsistir no século XIX, embora não mais se manifestasse como no passado. A música muitas vezes assumia uma função política, sem que houvesse sido concebida expressamente para atender a tal finalidade; outras vezes era composta deliberadamente para preencher, entre outras, uma função política simbólica, adquirindo então determinadas características, ainda que variáveis. O primeiro caso encontra seu exemplo típico na ópera NabuccOy de Verdi, que se tornou símbolo da libertação dos italianos. O segundo pode ser em certa medida ilustrado pela ópera nacional, um gênio adotado principalmente entre os povos que viviam sob dominação estrangeira, repleto de sentimentos de inspiração patriótica e nacional, como é o caso da ópera Porin, de Vatroslav Lisinski (1819-1854), na Croácia.
O aperfeiçoamento dos instrumentos No século XLX, desenvolveu-se consideravelmente o sentido musical do timbre e do colorido sonoro, que só bem tarde e lentamente veio a manifestar-se na história da música européia. E o timbre sonoro viria a tornar-se musical, sobretudo a partir de Beethoven e dos românticos. À diferença da orquestra barroca, baseada na primazia sonora dos instrumentos de cordas, a orquestra clássica e romântica, graças às novas invenções mecânicas, pôde modificar a qualidade de sua sonoridade. Aos poucos, todos os instrumentos foram se tornando cientificamente calibrados. Ficou possível determinar a produção do som, que se mostraria cada vez mais padronizada. Com o aumento do número de instrumentos, a divisão de trabalho na
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orquestra refinou-se. O aprimoramento das técnicas de produção em geral e o conseqüente e gradual processo de industrialização de muitos instrumentos — piano, órgão, os sopros e, particularmente, os metais — tiveram varias conseqüências, entre as quais as primeiras foram o aperfeiçoamento dos instrumentos que já existiam e a criação de outros. Graças às novas técnicas de fabricação, os instrumentos musicais tiveram suas possibilidades aumentadas e sua execução facilitada. Uma importante conseqüência ulterior foi a emancipação da música instrumental, em particular da música para orquestra. Dispondo, graças a uma série de instrumentos cada vez mais aprimorados, de um timbre cada vez mais rico e diferenciado, de possibilidades dinâmicas cada vez mais nuançadas e de um registro cada vez mais extenso, a música instrumental passou à frente da música puramente vocal, em quantidade e qualidade. Também a função e a posição dos instrumentos nos conjuntos orquestrais defïriiram-se de maneira mais precisa. Na era industrial, máquinas e fabricantes cada vez mais especializados apoderaram-se da fabricação dos mstrumentos. A mecanização da produção teve como resultado secundário a fabricação de instrumentos mecânicos para os quais compositores como Mozart e Beethoven já haviam algumas vezes escrito. Importantes inovações também ocorreram na fabricação dos mstrumentos mais comuns, o que haveria de mfluir sobre a execução musical. O século XLX foi o século de ouro da música instrumental, orquestral e sinfônica. O desenvolvimento das possibilidades de execução com instrumentos cada vez mais perfeitos permitiu que eclodissem de uma só vez uma música e uma técnica virtuosísticas como jamais se havia conhecido até então. O século XLX assinala o começo desse grande acontecimento, particularmente no que diz respeito ao piano. A evolução do virtuosismo é contemporânea ao aperfeiçoamento dos instrumentos. Foi no início do século, contudo, antes que esse processo houvesse avançado, que o mais brilhante dos virtuoses — o violinista (e violista) Niccolo Paganini (1782-1840) — fez sua fulgurante carreira. O fascínio que Paganini exercia era de tal ordem que se chegou a suspeitar que tivesse algum pacto com o demônio. E todos os grandes virtuoses do piano romântico — Kalkbrenner, Moscheles, Thalberg e o próprio Liszt—foram estimulados pela tentação de rivalizar em seus instrumentos com Paganini. Isso não impediu que os virtuoses do piano viessem a dominar o século com suas prestigiosas carreiras. O desenvolvimento da orquestra e do piano como instrumento solista estão de certo modo relacionados. Aquilo que se pôde chamar de orquestração do piano já aparecia nas últimas sonatas de Beethoven (principalmente na Sonata opus 106, denominada Hammerklavier) e, posteriormente, nas composições de Liszt. As qualidades novas do instrumento contribuíram não só para o desenvolvimento das grandes formas que lhe foram destinadas — nesse caso estão justamente as sonatas de Beethoven e as obras de Liszt —, como também para o refinamento da técnica
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virtuosística e para a tendência, que se observa em Liszt, às dimensões orquestrais. Dali por diante, a antiga música destinada a instrumentos de teclado, como o clavicordio e o cravo, seria tocada de acordo com os recursos do piano, principalmente naquilo que diz respeito à sonoridade e às nuances dinâmicas. O aumento das possibilidades dessas últimas, obtido com a moderna fatura do piano, condicionaram, por sinal, o estilo romântico de execução da literatura musical antiga e a floração da música expressiva para piano com a criação de obras de uma expressividade muito mais acentuada, sobretudo a partir de Beethoven e dos compositores românticos. Isso não se deve somente ao fato de a música desses compositores já pertencer a um novo estilo, mas também às novas possibilidades facultadas pelo próprio instrumento, que favoreciam novas formas de expressão musical. Mais ainda, as novas técnicas de fabricação do piano permitiram a difusão do instrumento, que se tornou, no século XIX, o preferido da burguesia e por muito tempo manteve a supremacia sobre os outros instrumentos solistas. Nas casas burguesas, o piano passou a ter um lugar de honra, como peça principal de um belo mobiliário. Mas a difusão do piano foi também favorecida pelas novas condições acústicas criadas nas grandes salas onde se executavam concertos pagos, abertas a um público que só fazia aumentar, bem ao contrário dos salões aristocráticos, reservados a convidados. A difusão do piano está, portanto, ligada a fatores de ordem técnica, social e arquitetônica. O piano mostrava-se perfeitamente adaptado às novas condições acústicas, sendo, com o órgão, o único instrumento facilmente audível nas grandes salas de concerto.
A nova situação do compositor Enquanto no século XVIII quatro países — Alemanha, Áustria, França e Itália — haviam dominado o panorama da história da música, no século XIX, esta, sob o impulso dos movimentos nacionais e patrióticos, enriqueceu-se com o surgimento de escolas nacionalistas e de compositores originários das mais diversas partes da Europa, como a Rússia, a Polônia, a Boêmia, a Moravia, a Croácia, a Dinamarca, a Suécia, a Noruega, a Espanha e a Hungria. Esta imagem diversificada e plural de escolas e de correntes da música da época torna-se ainda mais rica e mais variada pelo fato de que, no interior dos diversos países, o romantismo levou a uma diferenciação mais acentuada entre os compositores, seus estilos pessoais e as características particulares, quase sempre originais e muito mdividualizadas que eles davam a suas obras. O individualismo foi uma das marcas essenciais do compositor romântico, isolado e em revolta contra a sociedade. Apesar de subsistirem as diferentes funções do músico, como as de organista, Kantor, cantor, mestre de coro, diretor de ópera, etc., o século XIX viu afirmar-se uma nova figura de músico: apenas, ou sobretudo, compositor, vivendo exclusiva-
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mente, ou quase, de sua criação musical. Ele deixou de ser o principal e privilegiado exécutante de suas próprias composições, a não ser que fosse instrumentista e compusesse para o intrumento que tocava. É verdade que compositores como Schumann, Berlioz e Wagner, durante certo período de suas vidas, tiveram empregos, mas a maior parte do seu tempo e da sua energia foi gasta com a composição. Isto já ocorrera com Beethoven e Schubert. Entretanto, o compositor do século XLX, que nem sempre escreveu para sua época e para o público desta, dependia forçosamente do meio social em que vivia. Isso o obrigava a levar, por assim dizer, uma vida dupla: fazia concessões ao público, ocupando-se com coisas que não lhe interessavam muito, para em seguida retornar às alturas de suas preocupações artísticas, íntimas e mais elevadas. Essa dupla vida gerava um conflito dentro dele mesmo e um conflito entre ele e a sociedade que o rodeava, para não falar dos que resultavam de um descompasso entre modos de encarar a vida, a própria arte e sua missão ou função. Não somente as necessidades econômicas, mas também concepções filosóficas e estéticas, estão na origem das muitas angústias e divisões de que era presa o músico do século XIX. A significativa e recente tomada de consciência do valor humano de sua arte e de sua própria personalidade de artista — emancipada, mas nem sempre perfeitamente realizada—representava uma virada de grande importância histórica, tanto mais que esta tomada de consciência, de lá para cá, só fez aumentar. A posição do músico no século XIX padeceu de uma contradição interna: pela importância de sua missão e de seu trabalho, ele se sentia ao mesmo tempo no centro da humanidade e à margem da sociedade. Já Beethoven considerava a criação artística como uma tarefa de grande responsabilidade e como uma elevada missão. Mas ele conseguiu uma forma de distanciamento social de sua época que lhe permitiu consagrar-se inteiramente e sem interferências externas à arte, que, por sinal, não concebia como um fim em si mesma. As transformações da crítica musical A sociedade européia do século XIX, por outro lado, haveria de expressar-se sobre os músicos e suas obras através da crítica musical, que adquiriu uma importância que jamais tivera. Antigamente, esse dispositivo social público que se manifesta através da crítica musical pouco ou nada afetava o compositor. A partir do século XIX, no entanto, ele passou a dispor de uma poderosa arma, da qual a própria existência de um músico podia depender até certo ponto. Em certos momentos e às vezes por longo tempo, quase todos os grandes compositores do século XIX foram vítimas de críticas violentas, parciais ou injustas. A crítica musical do século XIX foi objeto, inicialmente, de uma mudança de estilo, que já se esboçara no século XVIII. Tornou-se menos pesada, mais simples
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e acessível, também mais flexível, ao que a mentalidade romântica acrescentou o entusiasmo, a poesia e às vezes o idealismo na abordagem e apreciação da música. No século XVIII, a pena do crítico musical era empunhada por especialistas, músicos competentes ou teóricos. Com o aumento do público e a nova situação geral em que se encontravam a música e os músicos no século XIX, quase todo mundo começou a sentir-se com direito de dar palpite nessa área, o que contribuiu para o desenvolvimento de um certo diletantismo e "impressionismo" crítico. A crítica profissional e competente, de um lado, e a que não o era, de outro, passaram a coexistir lado a lado. Músicos notáveis e de renome, como Schumann e Berlioz, foram críticos. Mas escritores "metidos", sem competência específica, como Stendhal e Balzac, formavam um numeroso grupo que também escreveu sobre música. Os jornais e as revistas de música multiplicaram-se em quase todos os países europeus, principalmente na Áustria e na Alemanha. Ali, entre os que gozavam de mais autoridade, encontravam-se Allgemeine Musikalische Zeitung e o Neue ZeitschriftfürMusik, este lançado por Schumann e ambos publicados em Leipzig. As críticas musicais apareciam também de maneira mais ou menos regular nos hebdomadários e nos jornais diários, atraindo para a música a atenção de um público cada vez mais numeroso e exercendo forte influência sobre ele. Foi assim que uma nova forma de crítica, muito popular, nasceu em Paris: o folhetim. Consagrado de início à literatura, o folhetim logo iria entrar no campo da música, com críticas, observações lúcidas e detalhes de crônicas, tudo num estilo acessível e leve que logo o fez transformar-se num gênero predileto do público. O que finalmente se tornou característico da crítica musical do século foi o fato dela ter enfrentado praticamente as mesmas contestações que a estética da música. Desse modo, desapareceu pouco a pouco toda a unidade de concepções que a fundamentava no século anterior. Para isso, contribuíram enormemente os movimentos gerais da sociedade, marcados cada vez mais por divisões de toda espécie — filosóficas, políticas e sociais. Por outro lado, à competência profissional e ao brilho estilístico de certos críticos, como Hanslick, somava-se todo um mundo de intenções malévolas, apadrinhamentos e partis pris que levava os críticos a dizerem absurdos e a desviarem-se dos verdadeiros objetivos de uma crítica musical autêntica e respeitadora da verdade. X- *
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De um modo geral, a música do século XIX participou, talvez mais do que a de outras épocas, dos problemas e contradições de seu tempo. Mas esta participação foi menos profunda no plano dos fatos e acontecimentos do que no plano mais sutil do movimento das idéias que, férteis e complexas, encontraram particular expressão na riqueza e variedade da própria música. No século XVIII, as diferentes
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artes eram concebidas como fechadas, ou como se cada uma ocupasse um lugar numa escala que continuava a assemelhar-se à divisão medieval das sete artes liberais. Só com o fluminismo esta escala começou a ser abalada. O século XIX concebeu as artes, inclusive a música, de maneira muito mais móvel. Móvel também se tornou a carreira do músico: ele já não provinha — como em geral acontecia até o século XVIII — de famílias de músicos, numa linhagem de pai para filho respaldada pelo espírito corporativo. Ao contrário, tinha origem social e profissional das mais diversificadas, como demonstram os casos de Schumann, Mendelssohn, Berlioz, Franck e Wagner. Com o romantismo, a música afastou-se pouco a pouco da vida em sua totalidade concreta e cotidiana para, em sua autonomia, estar mais próxima das esferas do espirito.
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A ÓPERA ITALIANA: DONIZETTI, BELLINI, VERDI
Donizetti e Bellini Coubera a Rossini firmar a certidão de nascimento da nova ópera italiana, com Elisabetta, regina d'Inghilterra [Elisabeth, rainha de Inglaterra], em 1815, ópera dramática, e depois, em 1816, com a ópera bufa II barbiere di Siviglia [O barbeiro de Sevilha]. Nessa época, os dois compositores que estavam destinados a explorar ao máximo as possibilidades dessas novas fórmulas ainda não haviam composto nada no gênero. O primeiro, Gaetano Donizetti, nasceu em Bérgamo no ano de 1797. Foi, como Rossini, aluno do padre Mattei no Liceo Musicale de Bolonha. No entanto, para não contrariar os pais, que se opunham à sua vocação musical, alistou-se no exército austríaco (já numa época em que não mais havia guerras napoleónicas). Foi durante as horas mortas da vida militar que compôs sua primeira ópera: Enrico di Borgogna [Henrique de Borgonha], encenada em 1818 na cidade de Veneza. Em 1822, já estava compondo a quarta delas, mas o exército achou melhor livrar-se daquele rapaz tão pouco dotado para a vida de caserna. Donizetti jamais obteve o estrondoso sucesso de Rossini: admirável arquiteto de construções líricas, teve a infelicidade de enfrentar a concorrência de Bellini e de outros jovens compositores italianos para os quais, fora da ópera, não havia qualquer outro meio de expressão musical. Para muitos desses jovens compositores, os temas históricos apresentavam-se como uma maneira de abordar problemas políticos. O Risorgimento italiano, en-
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tão em seus começos, vinha satisfazer uma dupla reivindicação: a unificação da Itália, liberta enfim dos estrangeiros, e o reconhecimento de uma italianidade que se esboçava de forma ainda bastante vaga na consciência coletiva dos italianos. Entretanto, a geração a que pertenciam Rossini e Donizetti ainda não fora afetada pela percepção desses problemas. Parece até que, embora brincando com o fogo, esses compositores não tinham a menor consciência das forças despertadas pelos dramas históricos que davam ao público. No caso de Donizetti, isso fica claríssimo. Sua carreira desenvolveu-se primeiro por toda a Itália para, depois do sucesso de sua ópera Anna Bolena (1830), expandir-se para outros países da Europa. As duas cidades que mais honraram este primeiro sucesso de Donizetti foram a Nápoles dos Bourbon e a Viena de Metternich, onde ele foi agraciado com o título de compositor da corte. Como se vê, isso nada tem a ver com alguma possível forma de contestação. Donizetti contentava-se em manipular com rara felicidade temas eminentemente melodramáticos, para os quais compunha música com uma profusão de efeitos de conjunto. A razão primordial destes era proporcionar aos grandes cantores (Garcia, Tamburini, Lablache ou Runini) ou cantoras (Pasta, Grisi ou Malibran) a oportunidade de exibirem seus excepcionais dotes. O canto no estado puro, o mais triunfante bel canto é servido pelo compositor com cega fidelidade. É isso que às vezes torna tão difícil para nós distinguir um fragmento de Lucia di Lammermoor de um outro, para a mesma voz, tirado de Maña Stuarda, Linda di Chamonix ou Lucrezia Borgia. Sempre fiel ao figurino da ópera romântica, Donizetti reincidia sem a menor cerimônia nas tribulações da grande ópera do século XVIII: a verossimilhança das situações, a progressão dramática, o apoio orquestral, tudo é sacrificado à voz. O que sobra é apenas a expressão simplificada de uma situação estereotipada de que se vale o bel canto como trampolim para mostrar-se em toda a plenitude. Ouvir uma ópera dramática de Donizetti é ter ouvido todas elas; em contrapartida, cada nova audição é capaz de proporcionar aos apaixonados pelas vozes os mesmos prazeres perfeitos e desprovidos de surpresa, a mesma completa satisfação. Num aspecto, entretanto, Donizetti foge a esta genial monotonia do prazer: quando compõe óperas bufas. O prazeroso Donizetti tem uma verve cômica comparável à de Rossini. L'anjo nelï imbarazzo [O tutor embaraçado, 1823], L'elisire d'amore [O elixir do amor, 1832] ou Don Pasquale (1843) dão provas de uma regularidade no trato da melodia cômica que assegurou a Donizetti a posteridade que talvez suas obras mais sérias não lhe houvessem garantido. Foi em Paris que o músico passou os últimos anos de sua vida produtiva. Lá, em 1840, Donizetti fez levar à cena uma encantadora farsa militar, La Fille du régiment [A donzela do regimento], bem como Les Martyrs [Os mártires], uma ópera cuidadosamente elaborada a partir do Polyeucte [Polieuto] de Corneille, que a censura de toda a Itália havia repelido — com o nome de Poliuto — como tema grave demais para ser levado à cena. Quanto à produção de música de câmara ou
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de igreja de Donizetti — que não é, por sinal, de todo sem mérito —, destaca-se a Messa di requiem composta em homenagem a Vincenzo Bellini. A atividade parisiense de Donizetti não se prolongou por muito tempo. Em 1844, o compositor começou a sofrer de terríveis problemas mentais, causados pela sífilis. E foi um pobre coitado, meio delirante, que sua família levou de volta para Bérgamo, onde veio a falecer em 1848. Muitos e importantíssimos acontecimentos marcaram aquele ano, para que a morte de Donizetti pudesse ser assinalada pelos jornais que lhe haviam proclamado os formidáveis triunfos. *** Donizetti compôs mais de setenta óperas. Vincenzo Bellini, que se pretendia seu rival, não chegou a produzir mais de dez. O tempo de vida ativa dos dois músicos explica apenas em parte esta diferença. A primeira vista, contudo, Bellini é um daqueles músicos que, como Pergolesi ou Schubert, inspiram naturalmente piedade pela vida curta demais que tiveram. Nascido em 1801 na cinzenta cidade de Catanea, ao pé do monte Etna, Bellini morreu num subúrbio parisiense em 1835. Além disso, jamais entregou-se a um ritmo frenético de trabalho, como costumava ser o de seus dois predecessores. Uma primeira ópera, hoje bastante esquecida, Adelson e Selvina, valeu-lhe uma encomenda do Teatro San Cario de Nápoles: Bianca e Fernando, composta em 1826. Observe-se, de passagem, que o público napolitano assistiu a essa ópera com o nome de Bianca e Gernando: o príncipe herdeiro da coroa napolitana chamava-se Ferdinando, e os censores tinham de servir para alguma coisa, como, por exemplo, defender os princípios sociais vigentes. O sucesso em Nápoles atraiu a atenção dos milaneses para o jovem compositor, e Ilpirata [O pirata] foi encenado no Teatro Alia Scala em 1827, ópera em que o tenor Rubini veio a obter consagradora ovação. De obra em obra, de grande sala em grande sala, Bellini foi fazendo carreira, com grande vontade de vencer, se necessário às expensas dos outros. Em 1835, vamos encontrá-lo triunfante em Paris, com sua ópera I puritani [Os puritanos] fazendo ainda mais sucesso que Marino Folien, de Donizetti. É verdade que ambos se haviam entregue ao mesmo tipo de composição — o drama lírico sustentado pelas vozes mais fantásticas da época —, entrando em competição tanto no campo comercial quanto no artístico. Bellini não possuía veia cômica: deveria, portanto, triunfar em um terreno que já estava ocupado de maneira magistral por Rossini e Donizetti. Contava, porém, com dois trunfos que lhe permitiam ombrear com os outros dois. O primeiro deles, em geral esquecido, era a personalidade artística de seu libretista, Felice Romani. Bellini entendia-se particularmente bem com esse homem cujo romantismo era só de fachada e que procurava extrair, dos grandes cenários tomados de empréstimo ao romântico inglês, a matéria mais pura de um poema, livre das
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ênfases do convencionalismo. Bellini era exigente: não se contentava com qualquer texto para projetar o virtuosismo de uma voz. Procurava concentrar-se numa idéia, conseguindo isolar uma bela ária de um drama cujo desenrolar, de modo geral, deixava-o até certo ponto indiferente. É neste quadro de trabalho, mais denso que o das obras de Donizetti, que Bellini situa os maravilhosos vôos de árias etéreas, em que a voz se transforma no mais sublime dos instrumentos. Sem jamais cair nos estereótipos do século XVIII, o músico encontra o aspecto quase concertante, em que a oposição entre cantor e orquestra presta-se a pôr em destaque a beleza luminosamente simples da frase cantada. A voz adota aquela longa curva de que tanto gostavam os românticos e que faz o encanto dos Noturnos de Chopin. O encanto provém da melodia, e o compositor pouco se preocupa com a aparente simplicidade dos meios empregados. Ocorrenos aqui lembrar Stravinski em sua obra Poética musical, quando opõe Beethoven (a quem negava qualquer senso de melodia) a Bellini: "Beethoven constituiu para a música um patrimônio que parece ser exclusivamente devido a seu obstinado trabalho. Já Bellini recebeu a melodia sem se dar ao incômodo de solicitá-la, como se o Céu lhe houvesse dito: eu te dou exatamente aquilo que faltava a Beethoven." Seria preciso bem mais que uma mera farpa de Stravinski para arranhar Beethoven, mas não resta dúvida de que o supremo trunfo de Bellini foi o dom da melodia. Belhni não era um grande orquestrador, mas sabia empregar com grande precisão um dado instrumento, que isolava do resto da orquestra e ao qual confiava o cuidado de dobrar a voz humana. Sabia também recorrer com perfeição a um canto que, partindo do pianissimo faz, gradativamente, brotar o fortíssimo que atinge o mais alto ponto das emoções de uma curva sonora. Tudo isso aproxima sua arte e o piano concebido por Chopin. Tanto em um caso como em outro, o lugar ideal de audição para essa música não é necessariamente a sala de concertos ou o grande circo de um auditório de ópera: era, talvez, o salão freqüentado regularmente por Chopin e para o qual Bellini compôs tantas e tão encantadoras canções e melodies, tão apreciadas na época quanto seus grande dramas líricos. Arte do bel canto e da ópera, a arte de Bellini é também a da confidência em forma de romanza. Heine, que não gostava dela, talvez não estivesse muito longe da verdade quando a descreveu como "um suspiro em escarpins". A obra de Bellini não é vasta. Há as duas óperas de grande sucesso que vêm fazendo, através dos tempos, a glória de qualquer prima donna: La sonnabula [A sonámbula] e Norma (ambas encenadas pela primeira vez em Milão, em 1831); a ária D'un pensiero ("A/x non credea mirarti"). Outras, que se prestam a grandes espetáculos, vez por outra são remontadas não só pela qualidade de seu canto como também por terem certo valor decorativo: II pirata (Milão, 1827), La straniera [A estrangeira; Milão, 1829], I Capuletti e i Montecchi [Os Capuletos e os Montéquios], um Romeu e Julieta bem pouco shakespeariano (Veneza, 1830), Beatrice di Tenda [Beatriz de Tenda; Veneza, 1833] e, finalmente, a obra derradeira I
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puritani (Paris, 1835). As outras óperas de Bellini praticamente caíram num esquecimento talvez merecido. Para completar a lista: algumas composições religiosas bastante vazias, encantadoras peças instrumentais, onde a técnica do bel canto está aplicada aos instrumentos solistas, entre as quais o mais lindo exemplo é o do concerto para oboé e, por fim, inúmeras romanzas, nem todas publicadas, que fazem a felicidade dos sopranos e tenores da Itália e alhures. Eis aí toda a bagagem de um compositor que soube aliar a arte do canto pelo canto à expressão justa do sentimento e ao esmero da frase musical. Bellini soube, como nenhum outro na época, fazer belas mulheres chorarem em meio aos aplausos que dirigiam a seus favoritos. Donizetti e Bellini levaram longe a ópera romântica italiana. Ambos dominaram a cena durante alguns anos: um por sua incrível fecundidade, apoiada na prática do teatro e na utilização de vozes famosas; o outro pela busca mais sutil de possibilidades dramáticas das grandes e radiosas árias. Nem um nem outro, entretanto, conseguiu fazer do teatro lírico, criado por Rossini, um instrumento capaz de levantar paixões e provocar o entusiasmo popular. Faltava-lhes certa dose da energia vital que Verdi foi o primeiro a fazer jorrar numa Itália em plena transformação. A morte de Bellini em 1835 e o silêncio de Donizetti depois de 1844 deixaram o campo livre para uma nova concepção da arte lírica. Giuseppe Verdi ( 1813-1901 ) A vida de Verdi está envolvida por uma espécie de auréola de lendas que ele, na velhice, gostava de acalentar. Uns tantos retoques finais dados à verdade histórica ajudaram a enriquecer sua figura de camponês altivo e genial, de alguém que se fez sozinho, filho de suas próprias obras, e de homem universal cujo horizonte humano não ultrapassava as fronteiras de umas dezenas de hectares na rica planície do Pó. O CAMINHO PARA O S CALA (1813-1840) Giuseppe Verdi nasceu num meio dos mais rústicos. Seu pai, Carlo Verdi, tomava conta de uma pequena e modesta estalagem em Roncóle, lugarejo de poucas casas a cinco quilômetros de Busseto, aldeia a meio caminho entre Parma e Piacenza. Sua mãe, Luigia, trabalhava comofiandeira.O futuro compositor nasceu em 9 de outubro de 1813, em uma região que, na época, fazia parte do departamento francês do Taro. A Itália era então apenas uma expressão geográfica sem realidade política. Quando Verdi morreu, em 27 de janeiro de 1901, num quarto de hotel em Milão, o seu país se havia tornado uma das potências da Europa: unificado, rico e começando a ter todos os problemas de um grande Estado moderno. Desta transformação, uma das mais rápidas da história, Verdi foi não só testemunha apaixonada como também, até certo ponto, um dos atores.
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Mas as grandes cidades nunca deixaram de ser lugares de passagem para Verdi, que de todo o coração permaneceu para sempre ligado àquele vale do Pó, de clima rude, povoado por homens secos, habituados ao trabalho duro, sujeitos a cóleras violentas, de pouca fala e sentenciosos. Incapaz de expressar-se em outra linguagem que não a da ópera, nem por isso Verdi deixou de se conservar sempre na defensiva no mundo do espetáculo. As grandes salas de ópera amedrontavam-no com seu público mundano, com todo aquele jogo de convenções às quais, muito de má vontade, era obrigado a submeter-se. Trabalhar com Verdi nunca foi coisa fácil: sua intransigência muitas vezes o tornava odioso, como dão testemunho as violentas brigas que teve com a direção da Ópera de Paris, com seus libretistas e mesmo com seus editores e amigos, os Ricordi de Milão. Nem o pai nem a mãe de Verdi sabiam 1er ou escrever. Foi o padre a quem estavam entregues os serviços da igreja de Roncóle que lhe ensinou os primeiros rudimentos de leitura, de aritmética e também de música. Por umas liras, Cario Verdi comprou para o filho uma velha espineta fora de uso, que um artesão consertou de graça por conta do "amor que o menino Giuseppe Verdi devota ao mecanismo daquele instrumento". O ensino que podia ser proporcionado por um pobre vigário do interior logo se revelou insuficiente. Se o pequeno Giuseppe tinha de receber uma instrução correta, seria em Busseto que deveria procurá-la. Com dez anos, o garoto foi colocado como pensionista na casa de um sapateiro da aldeia, e assim pôde seguir os cursos de uma escola de verdade. Era uma casa pobre, onde quase sempre se comia apenas a substanciosa polenta, uma papa de milho que serve de base para a alimentação dos camponeses pobres do norte da Itália. Pode-se bem imaginar aquele menino que, nos domingos de verão, voltava à casa dos pais trazendo os sapatos nas mãos para não gastá-los. Depois de fazer doze anos, confiaram-lhe uma responsabilidade musical: ficava encarregado dos órgãos da igreja de Roncóle em troca de um ordenado de 36 liras anuais. A sorte de Verdi, no entanto, foi lançada em Busseto. Um dos homens importantes da aldeia, Antônio Barezzi, merceeiro e dono de uma destilação, tomou-se de interesse por ele. Nessa ocasião, o futuro músico dava uma pequena ajuda na mercearia e era recebido regularmente no Palazzo Barezzi. Mas o importante é que ele ia poder estudar música com o "grande homem" da região, Ferdinando Provesi, que acumulava as funções de mestre de capela, organista, regente da orquestra municipal e professor de música. Tudo isso decerto em escala bem reduzida, e logicamente a gloriosa carreira de Verdi teria parado ali se Barezzi e Provesi não houvessem resolvido que seu protegido deveria ir para Milão em busca de um ensino capaz de proporcionar vôos mais altos. Os fundos necessários eram fornecidos por uma instituição de caridade e por Barezzi, que arcava com o grosso das despesas, mais pesadas ainda porque o Conservatório de Milão não quis saber de Verdi: ele havia passado da idade limite, era estrangeiro (o ducado
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de Parma, governado por Maria Luisa, ex-mulher de Napoleão, era uma província austríaca na Lombardia) e mau pianista. Verdi teve, portanto, que receber lições particulares e estudar sozinho. Durante três anos, de 1832 a 1835, viveu exclusivamente dos subsídios enviados pelos amigos de Busseto, que acabaram por julgar-se com direitos sobre ele, o que, mais tarde, deu margem a terríveis mal-entendidos. Durante a estada de Verdi em Milão, Provesi morreu, deixando para ser preenchidos os vários postos que detinha. Intrigas logo se tramaram, opondo liberais e clericais (note-se que Busseto fica na terra de Dom Camillo e Peppone). A candidatura de Verdi aos postos de Provesi que dependiam do poder eclesiástico foi rejeitada, sem qualquer motivo mais sério. As funções de caráter laico deveriam ser preenchidas por concurso, sob controle da administração de Parma, em 1836. Verdi passou com a maior facilidade, tornando-se maestro di musica de uma pequena cidade com menos de cinco mil habitantes. Para não perder a simpatia de seus compatriotas, recusou o posto — muito mais importante — de mestre de capela da catedral de Monza. Esta decisão pode também ser explicada pelo casamento de Verdi com Margherita Barezzi, filha de seu antigo protetor. Durante dois anos, Verdi permanecerá em Busseto, executando conscientemente os deveres relativos à sua função. Nesse período, compôs uma série de obras, em sua maior parte desaparecidas: duas sinfonias, música de câmara, romanzas e até uma ópera, Rocester, a primeira que escreveu e que se perdeu depois de Verdi a ter oferecido, sem sucesso, ao teatro de Parma. Mas a vida em Busseto nada tinha de entusiasmante. Margherita e Giuseppe sonhavam em ir para Milão, onde estavam concentradas as atividades musicais da Itália do Norte. Em 1838, o "maestro" pediu demissão e deixou Busseto. O futuro pareceu sorrir. Um editor apresentou-se para fazer a primeira publicação de uma coletânea de romanzas. O Scala montou Oberto, conde di San Bonifacio [Oberto, conde de São Bonifácio] que encontrou bom acolhimento por parte do público em 17 de novembro de 1838. E Verdi recebeu a encomenda de três óperas, para serem entregues em dois anos. Mas, bruscamente, a vida tornou-se sombria: o casal já havia perdido um dos dois filhos que tivera antes de deixar Busseto; um segundo filho morreu em junho de 1839. Um ano depois, Margherita também faleceu, de encefalite. Foi nessas horríveis condições que Verdi compôs uma ópera cômica, Un giorno di regno [Um dia de reinado], cuja reapresentação, em setembro de 1840, redundou em completofiasco.O golpe na vida do compositor foi tão brutal que Verdi, durante algumas semanas, chegou a pensar na possibilidade de abandonar o teatro. 1
' Alusão a Dom Camilo e seu pequeno mundo, do escritor italiano Giovanni Pappini. (N. T.)
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O TRIUNFO DE NABUCCO (1842) Contado, no inverno de 1841, Verdi recebeu o libreto de um drama de Solera, Nabuccodonosor, pelo qual interessou-se vivamente. Na primavera, entregou-se ao trabalho. Em 9 de maio de 1842, Nabucco, que logo se tornou o nome oficial da ópera, foi recebida com tíunfo no Scala. Do dia para a noite, o nome de Verdi ficou famoso. Essa data é tão importante para a ópera italiana quanto o é a "batalha de Hernanï' para o teatro francês. Não porque tenha havido qualquer conflito. O sucesso foi imediato e geral. Os italianos bem depressa identificaram com seu próprio infortúnio o canto de lamentação do povo hebreu. O coral Va pensiero haveria de tornar-se na Itália, por muitas gerações, mais importante que os hinos nacionais, os quais iam variando de acordo com os regimes políticos. Os italianos poderiam igualmente ter adotado um dos coros do Móisè, de Rossini, mas a dramaturgia verdiana era completamente nova se comparada com a das óperas comportadas e corretas que, havia trinta anos, vinham sendo dadas pelo teatro italiano. Nabucco não é uma obra-prima musical e menos ainda uma obra-prima da arte do canto. Antes de mais nada, é uma obra de extraordinária força. Ainda hoje é difícil não se deixar levar por aquele canto em que a melodia jorra, mas onde ela não conta tanto quanto a vontade de dobrar as emoções e as forças do público e de conduzi-las para uma direção precisa, à qual converge todo o aparelho musical. O drama reassume seu lugar de honra no teatro lírico, um drama governado de maneira imperiosa, que deixa ao ouvinte apenas uma escolha: ou recusar uma obra julgada vulgar e brutal, ou deixar-se transportar por aquela torrente de paixões. A retórica das paixões não é mais complicada que aquela a que recorrem Donizetti ou Bellini, mas é empregada em diferente contexto. As zombarias que, por exemplo, Stendhal fazia dos libretos das óperas italianas — nos quais, ao longo dos atos, desfilam rimas de pace, amore, fede, onore — não têm mais cabimento. É certo que as personagens amam nas óperas verdianas, mas isso é secundário, apenas um elemento indispensável a um sistema convencional. As palavras-chaves que se encontram por toda parte, mesmo nas obras aparentemente sem alcance político, são patria, liberta e morte. Contudo, o jovem Verdi de 1842 ainda não havia definido bem seu pensamento nacional, não mais que a maioria das pessoas até aquela data. Liberal por sentimento, desconfiava das potências estrangeiras que haviam reduzido seu país à condição de divisão política e de semi-servidão. Nem por isso deixou de dedicar suas primeiras óperas a arquiduquesas austríacas. Sentia-se mais cidadão de Parma do que da Itália. A curto prazo, a importância de Nabucco não foi grande — o tempo das revoltas ainda não chegara —, mas sua influência cultural foi enorme. A ópera, que não passava de um mvertimento, co1
Alusão à estréia da peça teatral Hernani, de Victor Hugo, cujo prefácio encerra os princípios do teatro romântico, em franca ruptura com a dramaturgia clássica francesa, e causou grande polêmica. (N. T.)
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mo um romance de leitura fácil, de algo perfeito para se passar uma noite agradável, tornou-se o mais profundamente sincero modo de expressão que podiam os italianos então permitir-se. Num país onde a tradição sinfônica praticamente desaparecera, uma forma musical de grande alcance (não se deve esquecer que a menor das cidades italianas possuía seu teatro, onde sempre se podia montar uma ópera) punha-se subitamente a falar uma linguagem viril. A força de persuasão era ainda maior pelo fato de que apoiava-se na voz, e o caráter cênico do gênero sempre permitia fazer alusões, mais ou menos diretas ou mais ou menos conscientes, às questões do momento. A linguagem musical de Verdi é simples, e com isso ganhava em eficácia; a engrenagem das emoções era um domínio em que o músico brilhava e no qual, durante os trinta anos seguintes, não parou de aperfeiçoar-se. OS "ANOS DE GALÉS" (1843-1953) Foi com pleno conhecimento de causa que Verdi se engajou naquilo a que ele próprio chamou de seus "anos de galés", durante os quais trabalhou em um ritmo que podia ser o de um Donizetti: dez anos separam í lombardi alia Prima Crociata [Os lombardos na Primeira Cruzada], que é de fevereiro de 1843, de La traviata, que é de março de 1853, dez anos em que compôs dezesseis óperas, cada uma das quais deu ocasião a uma quantidade de batalhas contra as várias censuras que reinavam na Itália. Religiosas ou políticas, severas ou algumas vezes complacentes, o mecanismo delas tornava-se ainda mais complexo por causa do traçado das fronteiras: aquilo que era aceitável em Roma, talvez não o fosse em Milão; os problemas que apareciam em Nápoles, talvez viessem a ser vistos com diferentes olhos em Florença. Era preciso também vigiar os libretistas, lutar contra autores que, como Victor Hugo, não viam com satisfação suas obras deformadas no interesse de uma música que não teriam oportunidade de ouvir e que os fazia sentirem lesados seus direitos. Hernani e Le Roi s'amuse passaram a ser Ernani e Rigoletto, o que não deixou de gerar uma série de amarguras e ressentimentos. O trabalho do compositor fica dobrado quando é realizado por um homem prático que nunca deixa as coisas por conta do acaso. Verdi era um bicho de teatro: preocupava-se com a maneira como eram montadas suas obras e mantinha cenógrafos e cantores sob estrita vigilância. Era também um homem que conhecia o valor do trabalho: áspero, discutia com editores e diretores de teatros os termos de seus contratos. Ele, que detestava viagens, nunca hesitou em ir a Paris, Londres ou mesmo São Petersburgo quando as cartadas eram altas, ou pelo dinheiro ou para defender a qualidade da apresentação de suas obras. Nesse apego às coisas materiais, há todo um lado de homem detalhista, atento ao ganho, que trai a ascendência camponesa. Jamais alguém foi tão pouco boêmio. A partir de 1844, logo que começou a fazer sucesso e pôde pôr de lado alguns ducados, passou a comprar terras nos arredores de Busseto, o que foi regularmen-
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te fazendo até formar uma rica propriedade em Sant'Agata. Lá, plantou árvores e mandou construir uma pesada casa amarela, bem ao gosto de um campônio enriquecido. Até o fim da vida, seu maior prazer era o de ir para Sant'Agata onde, durante alguns meses do ano, levava a existência de um proprietário de terras ocupado com o plantio do solo, cuidando do gado e caçando nos campos. A preocupação de realizar em pouco tempo os sonhos de menino camponês pobre de trabalhar numa terra que fosse sua refletiu-se na obra de Verdi. Não só este empenho o obrigou a trabalhar numa precipitação que explica certas redundâncias, como também desviou-o de uma das suas grandes ambições, a composição de um Rei Lear, imaginada desde 1843, mas nunca realizada e da qual, cinqüenta anos depois, ainda estava falando. Este projeto não concretizado tem sua origem em um longo diálogo interior com Shakespeare, que o antigo camponês conhecia muito bem e cuja influência se manifesta em toda sua obra. As três óperas que compôs com libretos shakespearianos são prova disso. O trabalho assíduo dos "anos de galés" traduz-se em uma longa lista de óperas que não são todas, é claro, obras-primas, mas que raramente nos deixam indiferentes. A marca de energia, tão característica de Verdi, sempre se faz sentir. A lista é compacta: I lombardi alia Prima Crociata (1843), Ernani [Hernani] e í due Fosead [Os dois Foscari, 1844], Giovanna d'Arco [Joana d'Arc] e Alzira (1845), Attila (1846), I masnadieri [Os salteadores] e Macbeth (1845) e, ainda nesse ano, Jerusalém, uma adaptação francesa de II corsaro [O corsário, 1848], La battaglia di Legnano [A batalha de Legnano] e Luisa Miller (1849), Stiffelio (1850) e, para terminar, a trilogia das grandes obras populares: Rigoletto (1851), Il trovatore [O trovador] e La traviata [A desviada, 1853]. Nem todas essas óperas obtiveram o mesmo sucesso, e algumas deixaram até de fazer parte do repertório verdiano. Pode-se entender perfeitamente o fracasso de Alzira ou de Stiffelio. Mas, independentemente da qualidade delas, todas têm uma coisa em comum: a intensidade dramática que as faz assemelhar-se a certo tipo de melodrama popular (Solera, Cammarano e principalmente Piave, libretistas de Verdi, não eram grandes escritores, mas adaptadores fiéis e obedientes às instruções do músico); o emprego de fórmulas dramáticas muito densas, que restringem os excessos do bel canto quando este pode prejudicar o vigor da ação; uma violência súbita que sobrevém, como o bote de uma fera, mesmo nas passagens mais ternas. Esta explosão de raiva ou de dor que transforma a melodia numa espécie de grito brutal apodera-se do ouvinte, impondo-lhe, como que à força, uma emoção inteiramente primária. O vigor do gesto musical verdiano irrompe nas situações mais tolamente romanescas, dando vida àquilo que não passava de convenções teatrais. Em dez anos de trabalho, Verdi fez enormes progressos. Aprendeu a tirar o máximo de seus libretistas. Conseguiu que as vozes se tornassem mais flexíveis e expressivas. Com ele, a orquestra, sobretudo, passou a ter personalidade própria,
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deixando de ser meramente uma ampla caixa de ressonância, simples instrumento de acompanhamento. A composição de Luisa Miller, em 1849, marcou uma virada na carreira do compositor, cujo desenvolvimento musical coincidiu, naquele ano, com a tomada de consciência política que ainda teremos ocasião de abordar mais detidamente. No plano da dramaturgia, encontramos uma sensibilidade mais refinada, que se vale de meios diretos e brutais. A pressão da ação, passa a corresponder, nas personagens, uma dimensão psicológica que lhes proporciona certa complexidade: já não se mostram tão cegamente submissas face à crueza do acontecimento que as esmaga. Mas a eficácia da receita não estava garantida logo de início. Stiffelio, que veio um ano depois de Luisa Miller, é uma das obras "menos boas" do compositor. Mas em La traviata, que coroa os anos de trabalhos forçados, Verdi pôde honestamente retomar o tema de Alexandre Dumas Filho e falar a linguagem de uma sociedade moderna diante de suas dificuldades e injustiças, mesmo com a censura austríaca exigindo que a sua Dama das Camélias aparecesse disfarçada em personagens do século XVIII para atenuar seu potencial de escândalo. Ao mesmo tempo, Il trovatore, que talvez seja o mais confuso e incompreensível de todos os libretos das óperas de Verdi, proporcionou-lhe ocasião de não só amontoar cenas cujo elo e continuidade são tudo menos evidentes, como também de, em cada uma delas, levar a paixão a um ponto de incandescência como jamais conseguira. Nunca ninguém compreendeu muito bem a história de Azucena; seu canto de horror e de morte atinge, como que num vazio da compreensão, uma intensidade dramática que mal se pode suportar. Foi em Paris, entre o verão de 1847 e o de 1849, que a existência de Verdi passou por uma reviravolta profunda. Em Paris parafiscalizaros preparativos de í masnadieri, que havia sido montada em Londres, e para dar os retoques finais na adaptação de Jerusalém,Vtrái reencontrou Giuseppina Strepponi, que criara o papel de Abigaille na primeira montagem de Nabucco. Os dois passaram a morar juntos e, no ano seguinte, ela o acompahava a Busseto, para escândalo dos habitantes da aldeia. Giuseppina Strepponi foi para Verdi, até o último dia de vida, uma fiel, boa e inteligente companheira. Ao seu lado, Verdi reencontrou um gosto de felicidade que desde muitos anos havia perdido. A opinião pública acabou por não aborrecêlos tanto, e os dois esperaram o ano de 1859 para casar, meio às escondidas, bem longe, numa cidadezinha na Savóia. O CANTOR DA UNIDADE ITALIANA (1848-1871) A estabilização da vida sentimental não impediu Verdi de acompanhar de perto os acontecimentos políticos. Na primavera de 1848, quando Milão se revoltou contra os austríacos, deixou Paris para ir à cidade sublevada ao encontro de Mazzini, de quem era grande admirador. Antes, porém, que o músico chegasse, a empreitada republicana de Mazzini já havia fracassado e fora substituída por um acordo com
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a coroa do reino de Savóia e Piemonte. Verdi desinteressou-se dessa manobra, que, na época, desaprovou. Prolongou então a viagem até Busseto, onde comprou a propriedade de Sant'Agata. Depois, retornou a Paris, enquanto os austríacos, no norte da Itália, restabeleciam a ordem — a deles, naturalmente — antes de esmagar as tropas piemontesas em Novara. O músico não conseguiu ficar inteiramente indiferente ao que acabara de acontecer. Dava-se conta de que a Itália tinha de ter um sentimento nacional que ultrapassasse as fronteiras de todos aqueles pequenos Estados provinciais. Via a necessidade de um fator que promovesse a unificação. Ainda era republicano de coração e admirador da personalidade de Mazzini, para quem escreveu o hino de guerra Suona la tromba [Soa a trombeta], mas já começava a entrever a possibilidade de ver no reino do Piemonte um agente capaz de promover a união da nova Itália. Nesse espírito, compôs La battaglia di Legnano, a mais engajada de todas as suas obras. A ópera, por sinal, foi montada em Roma sob sua direção (ele viajaria para lá expressamente para isso) em janeiro de 1849, alguns dias antes da proclamação da efêmera República Romana. Em agosto de 1848, Verdi pôs sua assinatura no pedido de socorro que os milaneses fizeram chegar ao governo francês, antes de ficarem à mercê dos austríacos. Em agosto de 1849, Verdi mudou-se com Giuseppina para Busseto, onde ambos passaram a ter um ritmo de vida diferente e novo. Na grande casa que mandara construir em Sant'Agata, Verdi passava o tempo calmamente, compondo e refletindo sobre os problemas da música. Ocupava-se com suas terras e seguia de perto a política na Itália, onde, enquanto se varriam as conseqüências do fracasso da primeira guerra de independência, já se pènsava por toda parte na segunda. Em 1855, Verdi compôs para a Ópera de Paris Les vêpres siciliennes [As vésperas sicilianas], com libreto francés de Scribe. A escolha do tema — o massacre dos franceses pelo povo de Palermo em 1282 — poderia surpreender, mas parece que isso chocou muito mais Verdi do que o público parisiense. Em 1857, foi a vez de uma primeira versão de Simon Boccanegra e uma tentativa de salvar o infeliz Stiffelio, modificando-lhe ao mesmo tempo a música e o libreto. A obra, contudo, com o nome de Aroldo, não chegou a obter mais sucesso do que em sua primeira versão. Un bailo in maschera [Um baile de máscaras, 1859] e Laforza dei destino [A força do destino, 1862] assinalam o auge da glória de Verdi. Era a época da segunda guerra italiana de independência e da expedição de Garibaldi à Sicilia. As cinco letras V.E.R.D.I. passaram a simbolizar: Vittorio Emmanuele Re D'Italia. Eram escritas em todos os muros de uma Itália em plena ebulição. Verdi, por sabedoria e 1
Vittorio Emmanuele era o rei do Piemonte (capital: Turim), sob cuja regência se fez a unidade italiana. Ele se tornou o primeiro rei da Itália. Cavour, primeiro-ministro do Piemonte, foi o articulador político da Itália unificada. (N. T.)
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também por causa de admiração que sentia por Cavour, tomou o partido da monarquia piemontesa e chegou a aceitar um lugar no Parlamento, o que não o impediu de entrar no esquema do contrabando de armas para abastecer as tropas de Garibaldi, que o governo de Turim nem sempre via com bons olhos. Da mesma forma que Verdi tomava a peito a política de unificação de seu país, aborrecia-se com a política comezinha praticada pelo Parlamento, que lhe parecia vazia e estéril. Pediu demissão de seu cargo político e partiu para Paris, cidade a que se sentia ligado por uma curiosa mescla de admiração e hostilidade. Em Paris, apresentou em 1865 uma versão francesa do Macbeth, retornando, em 1867, para a criação (também em francês) da primeira das muitas versões de Don Carlo, talvez a mais bem-acabada e perfeita de suas óperas. Em 1870, recebeu do quediva do Egito o convite para escrever uma ópera para ser apresentada na inauguração do canal de Suez. A ópera Aida, cujo libreto era baseado em um texto do grande egiptólogo Mariette, foi esplendidamente montada no Cairo em dezembro de 1871. Todos os grandes temas verdianos estão reunidos nela: um coro de invocações religiosas, uma grande ária de exaltação à pátria, O patria mia [Ó patria minha], os príncipes e o clero mostrados de maneira hostil, ou no mínimo com desconfiança. Aida teve uma repercussão muito particular. Algumas semanas antes da primeira representação, o governo da Itália havia proclamado Roma como a capital do reino, coroando triunfalmente o trabalho de unificação que fora sonho de toda uma geração. Verdi não esteve presente à première de Aida. Havia acabado de anunciar sua intenção de afastar-se das atividades artísticas e públicas. Era como se as últimas grandes óperas da maturidade não apenas houvessem expressado oflorescerdefinitivo de seu gênio, mas também como se fossem a expressão última de uma carreira em que o amor por uma certa Itália tivesse sido plenamente realizado. A perfeição de Don Carlo e de Aida, bem como a tomada de Roma, haviam fixado as fronteiras naturais de uma vida profissional que se desenvolvera sob o duplo signo da pátria e da liberdade. Verdi havia dito tudo que era necessário dizer. Tinha agora o direito de retirar-se e desfrutar dos vagares de uma alegre velhice. A RENOVAÇÃO FINAL (1873-1891) Em 1873, Verdi fez publicar um Quarteto de cordas qüe compusera, mais para dar provas de sua capacidade musical num gênero que lhe era estranho do que para enriquecer o repertório. Neste mesmo ano, morreu Alessandro Manzoni, o grande poeta italiano pelo qual Verdi sempre nutrira uma admiração que chegava às raias da veneração. Verdi decidiu compor para a ocasião uma grande missa de Requiem. No entanto, só muito raramente havia tido oportunidade de escrever qualquer coisa que não fosse música de teatro. Houvera o projeto de um Requiem em honra de Rossini, que seria uma homenagem da classe musical italiana, mas essa obra jamais chegou a concretizar-se. Em Í862, um Hino das nações gloriosamente rui-
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doso "dissipara-se" segundo as próprias palavras do compositor. O Requiem para Manzoni, dessa forma, estaria naturalmente fadado a ter a imponência de uma grande ópera litúrgica. Não se deve, no caso do Requiem de Verdi, confundir teatralidade com insinceridade. Verdi empregou a única linguagem que conhecia bem: uma vida inteira de teatro ensinara-o a exprimir os sentimentos mais íntimos na linguagem do palco. Além do mais, ele dispunha de um libreto que se mostrara eficaz ao longo dos séculos. A morte de Manzoni emocionou-o profundamente, e essa emoção tinha de transbordar naquüo que de melhor ele sabia fazer: uma mescla dramática com base no quarteto vocal, orquestra e coros. Havia ainda o fato de que o antigo menino de coro, por mais anticlerical que tivesse se mostrado por longos anos de sua vida, sentia-se provavelmente muito à vontade no vocabulário do ritual católico. Em maio de 1874, o Requiem foi executado em Milão, aplaudido por quase todo o mundo e criticado apenas por alguns, que viam nele uma "ópera trajada com roupagens eclesiásticas". Mas Verdi ainda não dera por concluída sua obra teatral. Em 1789, reencontrou Arrigo Boí'to, o poeta do malsinado Hino das nações, que, nessa época, era ainda muito jovem. Bom escritor, compositor de um Mefistofele [Mefistófeles] vaiado no Scala de Milão em 1868, Boïto era inteligente e simpático, grande admirador da música sinfônica alemã. Sua influência sobre Verdi foi grande. Encorajou-o a refazer o Simon Boccanegra (1881) e compor mais duas óperas que conservam apenas alguns pontos em comum com tudo o que até então Verdi havia escrito. Os progressos feitos por Verdi ao longo de sua carreira não haviam chegado a atingir a essência de uma construção que praticamente permanecera inalterada desde Nabucco. A força de Verdi residia no efeito conjugado da rapidez dramática com a densidade da matéria sonora. Em Otello, o ritmo da ópera não é mais imposto por acontecimentos exteriores, e o drama é apenas função das relações emotivas entre personagens que provocam acidentes de que elas mesmas serão vítimas. O ritmo é menos rápido: é o ritmo da tragédia e não mais o do melodrama. Os heróis da aventura mostram-se despojados da grandeza que lhes conferia sua resistência às pressões vindas do exterior: são apenas vítimas das próprias fraquezas. Os grandes slogans verdianos perderam seu espaço, já não funcionam mais. Nem a pátria nem a liberdade estão em causa; apenas a morte continua presente. Otello é de 1887. Seis anos mais tarde, em 1893, foi a vez de Falstaff. O velho Verdi, aos oitenta anos, deu mostras de uma exuberante juventude nesta obraprima onde, enfim, a orquestra torna-se por inteiro parceira dos cantores, fazendo explodir a melodia em mil estilhaços de uma enorme e esplendorosa risada. Velho e feliz, Verdi fez sua última pilhéria, a única talvez que tenha feito às custas da velhice. Ficaria para sempre faltandô-nos o Rei Lear que não encontrou tempo para escrever. Mas sua carreira de dramaturgo encerrou-se com duas óperas que não têm por que recear a vizinhança dos dois modelos shakespearianos. Quatro
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peças de música sacra, as Quattro pezzi, haveriam de pôr o ponto final em uma vida cheia de música, onde o teatro sempre ocupou lugar maior que qualquer outra coisa. Por isso não foi um hino religioso qualquer que a multidão cantou nas exéquias oficiais do compositor: em 26 de fevereiro de 1901, dezenas de milhares de italianos acompanharam Giuseppe Verdi ao sítio onde descansaria para sempre cantando a uma só voz o Va pensiero.
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Quando explodiu a Revolução, a música francesa ainda era patrimônio da corte e da aristocracia. Mas já na virada do século a burguesia marcava sua presença. Ela iria apaixonar-se cada vez mais pelo espetáculo lírico. Essa recém-nascida burguesia urbana não tardou muito a contribuir para o sucesso da mais francesa de todas as instituições líricas: a ópera cômica. A paixão, para ser mais exato, foi generalizada e duradoura. Todo mundo, de todas as classes, morria de amor pelo teatro lírico em qualquer de suas formas. Napoleão adorava La vestale de Spontini. A estréia de Robert le diable [Roberto, o diabo] em 1831 constituiu memorável sucesso na Ópera de Paris. Offenbach, trinta anos mais tarde, tornar-se-ia o ídolo do Segundo Império. Carmen impôs-se como autêntica obra-prima do repertório operístico. Esse amor desenfreado não deixou de ter sua contrapartida: a música instrumental entrou em eclipse e viveu todas as penas de um verdadeiro purgatório, do qual só iria sair na terça parte final do século. Desde Stendhal, que via o gênero instrumental como a "perdição da música", até Lesueur, que, embora professor de composição no Conservatório, não hesitava em considerar a música instrumental como um "ramo menor da arte", a depreciação do gênero foi fantástica. De resto, é só não esquecer a acolhida dada à Symphonie Fantastique [Sinfonia fantástica], de Berlioz. Com exceção de Berlioz, o século XIX mostrou-se incapaz de produzir, na França, até 1870, um músico de envergadura no campo da música pura. As menções forçosas restringem-se a Boëly, com sua importante coleção de peças pa-
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ra piano, a Niedermeyer, na música religiosa, a Anton Reicha, Pierre Baillot e Georges Onslow, na música sinfônica e de câmara. Uma menção especial, entretanto, deve ser feita a Charles Valentin Alkan (1813-1880), admirador incondicional de Liszt, cujos preceitos introduziu na França (virtuosismo transcendental e "música de programa"). Exemplo disto é sua Grande sonata opus 33, denominada Les Quatre âges de la vie [As quatro idades da vida], de 1847. Em tal contexto, temos de saudar a criação, em 1828, da Sociedade dos Concertos do Conservatório, por François Habeneck, que, corajosamente, foi a única na França a executar as sinfonias de Beethoven durante vinte anos seguidos. Por outro lado, caía-se de amores pelo virtuosismo. O Chopin intérprete e o Chopin improvisador eram bem mais louvados que o Chopin compositor. Liszt fazia furor nos salões parisienses e Paganini nas salas de concerto. Offenbach estreou como violoncelista virtuose. Viu-se ressurgir a paixão pela arte do canto que, por sua vez, suscitaria o aparecimento de uma nova geração de intérpretes: "a" Malibran e sua irmã, Pauline Virdot (ambas mezzo-soprano), Hortense Schneider, cujo nome permanece ligado ao de Offenbach, Wilhelmine SchrõderDevrient, a grande intérprete de Beethoven e mais tarde de Wagner, todas elas donas de admirável técnica e aclamadas nos palcos parisienses. "Põem-se nas nuvens os intérpretes, mas respeitam-se bem pouco as grandes obras", observou René Dumesml, sobre essa época. Havia, com efeito, o costume em Paris de nelas introduzir modificações que o "gosto do momento" exigia: Hérold escreveu balés para cada uma das óperas de Donizetti representadas no Théâthe des Italiens; ao Don Giovanni de Mozart foi acrescentado um finale, e Der Freischütz metamorfoseouse em Robin des bois [Robin dos bosques]. Se a Revolução Francesa deixara sua marca quando cassou o monopólio estatal das representações teatrais, o Império também deixou a sua: colocada sob o alto patrocínio do imperador — vale dizer, sob estreita vigilância —, a instituição da Ópera de Paris voltou a ser monopólio do Estado. Assim, não é de surpreender que aparecesse de novo uma ópera — bem mais na linha de Lully do que na de Rameau — que lembra a de Luís XTV. Ossian, ou les bardes [Ossian, ou os bardos] de Jean-François Lesueur (1760-1837) proporcionou ao autor, em 1804, distinções e honrarías, enquanto Le triomphe de Trajan [O triunfo de Trajano], de Louis Persuis e Jean-François Lesueur, praticamente presta vassalagem a Napoleão em 1807. O grande sucesso obtido por essas duas obras não foi menos completo que o justo esquecimento em que ambas caíram. A ópera cômica na época de Rossini Em Paris, a maior parte das representações líricas tinha lugar no Théâtre de l'Opéra, no Théâtre des Italiens e na Opéra Comique. Fora dessas três instituições, não havia como um compositor dramático abrir seu caminho (Offenbach tentou
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mutilmente, por anos a fio, entrar na Opéra Comique, antes de ousar abrir seu próprio teatro). A despeito da violenta oposição nacionalista que se fazia no Conservatoire — em 1800, sob a direção de Sarrette, o quadro de professores só incluía franceses —, a representação de La vestale, de Spontini, no Théâtre des Italiens em 1807 foi um sucesso sem precedentes, que inaugurou na França a moda dos compositores transalpinos. Primus inter pares, Rossini haveria de exercer considerável influência: L'italiana in Algier foi representada em Paris em 1817, L'inganno felice e II barbiere di Siviglia em 1819, e já em 1824 — no mesmo ano em que Stendhal publicava sua Vida de Rossini —, Rossini era colocado à frente do Théâtre des Italiens. A qualidade de seu trabalho, somada ao sempre alto nível dos cantores e das suas duas grandes obras desse período — Le conte Ory (1828) e Guillaume Tell (1829) — deixou seus "colegas" franceses fascinados. Mais uma vez tomando-se de amores pela opera buffa italiana, o público parisiense forçou os compositores de opéra comique a buscarem a chave do sucesso nas fórmulas rossinianas. Em Hérold, Boieldieu, Halévy, Auber, sem exceção, notam-se, em maior ou menor grau, as marcas de um certo rossinismo. HÉROLD
O menos conhecido desses compositores hoje é provavelmente Louis Joseph Ferdinand Hérold (1791-1833). Depois de brilhantes estudos instrumentais no Conservatoire de Paris (piano, violino, composição, harmonia) e de um Prêmio de Roma, Hérold primeiro foi passar uma temporada na cidade eterna e, em seguida, desceu até Nápoles, onde Murat lhe confiou a educação musical de suas duas filhas. Em Nápoles, Hérold compôs a primeira ópera, La gioventü di Enrico Quinto [A juventude de Henrique V], representada em 1815 no Teatro del Fondo. Mesmo que o compositor, posteriormente, haja declarado que a obra nada valia, o sucesso por ela obtido inicialmente iria orientar-lhe a carreira. De volta a Paris, Hérold teve de esperar quinze anos pelo próximo sucesso, que acabou chegando em 1831 com a ópera Le corsaire [O corsário], rebatizada com o nome de Zampa, ou la fiancée de marbre [Zampa, ou a noiva de mármore]. Em 1877, Zampa completou sua representação de número quinhentos. Apesar de uma abertura de grande sucesso — que muito impressionou Wagner, mas que foi bastante criticada por Berlioz —- a obra, uma espécie de Don Giovanni ao contrário, envelheceu bastante, embora se tenha dito que ainda "exala um perfume que pode agradar" (R. Dumesnil). Como um sucesso chama outro, o governo encomendou a Hérold um Hymne aux morts de juillet [Hino aos mortos de julho] para tenor, coro e orquestra, que foi cantado em 27 de julho de 1831 na cerimônia do Panthéon em honra das Trois Glorieuses. 1
Les trois journées glorieuses foram os dias 27,28 e29 de julho de 1830, quando a população parisiense se sublevou em favor das liberdades democráticas. (N. T.)
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Mas a obra mais importante de Hérold é, sem dúvida, sua última ópera Le Pré aux clercs (1832), com libreto de Planard, tirado das Chroniques du règne de Charles IX [Crônicas do reinado de Charles IX], de Mérimée. Se Hérold não tinha a mestria de um Meyerbeer no domínio da técnica, em compensação contava com um modo de compor limpo e seguro, bem como com uma inspiração das mais autênticas. A obra de Hérold é considerável: cerca de vinte opéras comiques e uma boa quantidade de peças instrumentais (quatro concertos para piano, duas sinfonias, sete sonatas para piano, duas sonatas para piano e violino, três quartetos para cordas).
completamente desconhecido como autor de teatro, fez dela uma paródia que chamou grande atenção. Dos títulos — mais ou menos em número de cinqüenta — deixados por Adolphe Adam (1803-1856), apenas Le Postillon de Longjumeau [O postilhão de Longjumeau], de 1836, chegou até nós. Adam obteve grande sucesso, que se prolongou até o século XX, com a música que compôs para o famoso balé Giselle (1841), ainda hoje prato de resistência nas temporadas de balé clássico, e com a canção Minuit, chrétiens [Meia-noite, cristãos], peça inevitável nas Missas do Galo, por ocasião do Natal.
BOIELDIEU
HALÉVY
Nascido em Rouen, François Adrien Boieldieu (1775-1834) fez-se notar por sua primeira ópera, escrita aos dezoito anos, La Fille coupable [A filha culpada], montada no mesmo ano em sua cidade natal. Pouco depois, instalou-se em Paris onde, valendo-se dos conselhos de Méhul, em pouco tempo se viu coroado de sucesso, particularmente com Le Calife de Bagdad [O califa de Bagdá, 1800]. De 1803 a 1811, foi diretor do Conservatório Imperial de São Petersburgo, na Rússia. De volta a Paris, novamente obteve sucesso com uma obra cheia de frescor e encanto, Jean de Paris (1812). A ascensão de Boieldieu, que se fez de forma gradual, culminou com La Dame blanche [A dama branca] em 1825 (libreto de Scribe), que lhe assegurou a fama em todo o continente europeu. Festejado compositor de cerca de quarenta opéras comiques, Boieldieu morreu aos 59 anos em conseqüência de uma faringite. Todos os músicos de seu tempo (Hérold, Auber, Adam, Berlioz, Cherubini) foram unânimes em afirmar que Boieldieu, entre eles, era um dos que mais talento tinha. Se a sua harmonia é das mais tradicionais — afinal, a opéra comique nunca foi lugar de inovações no campo da escrita musical—, já a melodia e a orquestração (geralmente prenunciando a de Berlioz) têm um colorido muito pessoal. Por exemplo, Boieldieu não hesita em escrever saltos melódicos de impressionante extensão (quinta, ou mesmo sexta redobrada) se o momento for particularmente dramático {finale do primeiro ato de Jean de Paris). Sua obra, que nada contém de artificial ou afetado, é reveladora da mutação estilística que se processa na música pré-romântica francesa (maior amplitude melódica e mais forte presença da orquestra) e justifica, em certa medida, o apelido de "Mozart francês" que valeu a seu autor.
Antes de tornar-se professor de Gounod, Bizet e Saint-Saëns no Conservatório de Paris, Jacques François Fromental Halévy (1799-1862) lá havia estudado e, como Auber, foi bastante influenciado por Cherubini, professor de ambos. Depois de ter obtido, com a Cantata Herminie [Herminia], o indispensável Prêmio de Roma em 1819, Halévy viajou para completar sua formação, passando algum tempo em Viena (1823). De volta à capitalfrancesa,foi chef de chant no Théâtre des Italiens de 1826 a 1829 e, posteriormente, na Ópera de Paris até 1845. Nesse período, tornouse professor do Conservatório (harmonia e acompanhamento em 1827, contraponto e fuga em 1833). Os primeiros sucessos de Halévy datam de pouco antes da ascensão de Luís Filipe ao trono: Clari, de 1828, La Dilettante d'Avignon [A diletante de Avignon], de 1829, e La Juive [A judia], de 1835. O nome de Halévy passou a ser mundialmente conhecido graças a essa última opéra comique, um dos pilares do repertório no gênero. (Lembramos que opéra comique não significa necessariamente obra de caráter cômico, mas apenas ópera em língua francesa e em que os recitativos são falados e não cantados.) As principais qualidades dessa obra são a sinceridade e a escrita cuidadosa; a famosa ária "Rachel, quand du Seigneur..." é um modelo de prosódia cantada. L'Éclair [O raio, 1835] e Guido et Ginevra (1838) ajudaram Halévy a firmar sua posição, ao passo que Le Drapier [O mercador de panos, 1840], com libretos de Scribe, La Reine de Chypre [A rainha de Chipre], composta no ano seguinte, e Charles VI, de 1843, são seus melhores'trabalhos.
DAVID E ADAM Apenas algumas palavras para não deixarmos passar em branco a figura de Félicien David (1810-1876), que não teve o menor sucesso no teatro, mas que se fez apreciar por seus contemporâneos com uma "ode sinfônica" de inspiração oriental, Le Désert [O deserto], cuja representação em 1846 suscitou um entusiasmo que hoje parece incompreensível. Era uma peça que, glorificando o deserto, símbolo da eternidade, apiedava-se da triste sorte dos citadinos. Offenbach, então
Autor de cerca de quarenta opéras comiques, o estilo de Halévy, que se assemelha ao de Boieldieu, não evita certas facilidades de escrita, repetições, italianismos e, por vezes, tende a um certo maneirismo. Wagner, no entanto, quando de sua primeira passagem por Paris, teceu-lhe grandes elogios. AUBER Daniel François Esprit Auber (1782-1871) foi incontestavelmente o representante maior da opéra comiquefrancesado início do século XIX. L'Erreur d'un moment [O erro de um momento], escrita para um teatro de amadores em 1805, atraiu a
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atenção de Cherabini, que imediatamente o aceitou como aluno. Poucos anos depois, o mesmo Cherubini apresentou a Auber um libretista, François Eugène de Planard, para La Bergère châtelaine [A pastora castelã] de 1820 e Emma de 1821, duas obras merecidamente esquecidas. O encontro com Eugène Scribe, libretista de outra categoria, foi decisivo para Auber. Leicester (1823) foi a primeira da longa lista de obras que resultaram da parceria de Scribe e Auber, cuja incrível facilidade melódica, dali por diante, viuse acrescida do talento dramático do parceiro. O sucesso de ambos foi de tal ordem na opéra comique, que lhes valeu uma encomenda da Académie Royale de Musique. La Muette de Portici [A muda de Portici], criada em 1828, inaugurou aquilo que se convencionou chamar de grand opéra "à francesa", um gênero sobre o quai há muito o que se dizer. (A representação dessa ópera em agosto de 1830, em Bruxelas, concorreu para desencadear a insurreição que culminaria com a independência da Bélgica.) Mas é no domínio da opéra comique que reside a verdadeira genialidade da dupla. Mencionam-se a seguir apenas algumas das obras mais famosas de Auber e Scribe, como Era Diavolo de 1830, ou Le Domino noir (O dominó negro) de 1837. Depois de 1840, Auber tornou-se mais lírico com La Part du diable [A parte do diabo, 1843], Haydée (1847) e Manon Lescaut (1856). Alternando romanzas sentimentais comfloreadosrossinianos para o soprano e o tenor e com couplets espirituosos, Auber constrói uma opéra comique que é um verdadeiro artesanato fino: a textura musical é leve e jamais prejudica a compreensão do texto, as harmonias são simples, sem nunca apelarem para cromatismo, a melodia (em geral de quatro compassos) é de feitio tradicional e apóia-se freqüentemente em ritmos de dança (valsa, polca, quadrilha). O estilo de Auber não é muito pessoal. Em suas óperas, notam-se influências tanto de Rossini como de Boieldieu. O que lhe é próprio é o senso de humor, unanimemente louvado, "a ironia sempre fina e a expressão nuançada de sentimentos fugitivos, tudo o que é preciso para agradar à massa dos ouvintes, mas tudo também que pode satisfazer às pessoas de sentimentos delicados" (R. Dumesnil). O mundo sabe ser grato aos que lhe proporcionam prazeres: como Halévy e Boieldieu, Auber foi alvo de muitas honrarías. No tempo de Carlos X, recebeu a Legião de Honra (1825) e foi eleito para o Institut de France (1829). Em 1842, Luís Filipe nomeou-o diretor do Conservatório e, finalmente, Napoleão III fez dele seu mestre de capela. Aquele de quem Rossini disse "piccola musica, ma grande musicista" (pequena música, mas grande músico) deixou um fantástico repertório de cerca de cinqüenta óperas, das quais 39 são opéras comiques, e ainda inumeráveis peças instrumentais e sacras, publicadas sob o pseudônimo de Aurel de Camare.
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Giacomo Meyerbeer Pela terceira vez na história, um compositor de origem estrangeira, depois de Lully e Gluck, teve seu nome associado a um marco decisivo da ópera francesa. Giacomo Meyerbeer (1791-1864) foi o mais importante compositor dramático desse período. Original de Berlim, judeu e de família abastada, Meyerbeer chegou a Paris em 1814, prestigiado como virtuose do piano. Na Alemanha na década de 1810, havia composto algumas óperas de "fulgurante fracasso", como ele próprio disse, gracejando, em sua correspondência. Pouco depois de ter chegado a Paris, partiu para a Itália, onde permaneceu nove anos e onde suas seis óperas representadas obtiveram relativo sucesso. De volta a Paris em 1824, conseguiu que lá fosse montada sua última criação italiana, II crociato in Egitto [O cruzado no Egito], no Théâtre des Italiens. Foi um triunfo. Mas, nos anos que se seguiram, o sucesso de La Muette de Portici, de Auber, e de Guillaume Tell de Rossini, convenceram-no de que, apenas remanejando suas partituras italianas, não iria conseguir chegar ao primeiro plano da cena parisiense, como era sua intenção. Ambicioso, inteligente e perspicaz, travou conhecimento com aquele que, pouco a pouco, se ia revelando o mais talentoso libretista de seu tempo, Eugène Scribe. Os dois prepararam juntos, cuidadosamente, Robert le diable [Roberto, o diabo], cuja estréia, em novembro de 1831, obteve um sucesso como nem a Ópera de Paris nem Meyerbeer jamais haviam conhecido. No dia seguinte, Meyerbeer era consagrado por Fétis na Revue Musicale como "o maior compositor europeu" do gênero. Meyerbeer tinha valor: havia ambicionado "conquistar Paris" e, numa única noite, o conseguira. Les Huguenots [Os huguenotes, 1849] e L'Africaine [A africana, 1865], todas escritas com Scribe, viriam em seguida a confirmar-lhe a posição. Primeiro compositor estrangeiro a ser nomeado comendador da Legião de Honra, Meyerbeer tornou-se um dos homens mais ricos da Europa. Sua carreira parisiense não o impediu de fazer outra, igualmente brilhante, em Berlim, onde lhe conferiram a insigne honra de Generalmusikdirektor. Mas o homem não era simpático e, diferentemente de Auber, não pensava duas vezes quando tinha que "derrubar" um rival ou comprar, se preciso fosse, a imprensa. Seria a ambição de Meyerbeer proporcional às suas qualidades musicais? Ele possuía inegavelmente uma técnica instrumental a toda prova, que lhe valorizava o gosto indiscutível pela experimentação (antes de Wagner, introduziu o clarinete baixo na orquestra). Valia-se de todos os meios na busca da expressão — e nisso não tinha quem se lhe comparasse —-, chegando inclusive a empregar sonoridades inusitadas (como é o caso do papel de Nelusko em L'Africaine). Também mostrava grande preocupação com a "cor local", estudando minuciosamente o contexto histórico e cultural de cada nova obra que compunha: seu repertório, por isso, é relativamente pequeno se comparado ao de seus contemporâneos (além das obras da juventude, no que diz respeito ao lírico, é constituído apenas
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por seis óperas italianas e seis grands opéras históricas à la française). O estilo de Meyerbeer, que pode ser resumido numa única expressão como "monumentalismo expressivo", parece hoje passado, embora existam cenas de grande força dramática em sua obra. Scribe e a grande ópera histórica A principal figura de toda "a questão lírica" dessa primeira parte do século XIX não é nem compositor, nem intérprete. É o autor dramático Eugène Scribe (1791-1861). Como "contador de história", como planejador de narrativas (organização cena/ato, tempo forte/tempo fraco...), como profissional de teatro e como conhecedor do palco, Scribe era único. Todo libreto seu era "original" e, mesmo que o pano de fundo fosse uma situação histórica determinada e bastante real — sempre um pretexto para grandes exibições de cenários, como o da Sicilia no século XIII em Robert le diable ou o dos Países Baixos e da Westfália no século XVI em Le Prophète —, Scribe nunca deixava de inventar o argumento. Foi o criador da grande ópera histórica à lafrançaise,que dominou a historia da música lírica no século XLX na França. Nos libretos de Scribe, a organização geral da intriga articulava-se da seguinte maneira: a ação se desenrolava em cinco atos, passando-se o primeiro sempre em ambientes externos, um finale grandioso obrigatoriamente coroava o terceiro ou o quarto ato, quando a ação começava a preparar-se para o desfecho e, porfim,era indispensável a intervenção de um balé. Nos espetáculos mais elaborados, cada ato reproduzia em miniatura o plano geral da obra. Mas a grande ópera histórica "à francesa" era bem mais que uma história "toda arramadinha". Era um verdadeiro Gesamtkunstwerk [obra de arte total], não de uma pessoa só, como no caso de Wagner, mas de todos: do libretista e seus colaboradores, do compositor, do maestro e do cenógrafo, que tinha papel capital. Todos introduziam modificações no curso da elaboração — prática de que, por sinal, Verdi queixou-se amargamente quando montou em Paris o seu Don Carlo — e todos velavam pelo sucesso da empreitada. Pois, inegavelmente, sucesso houve. La Dame blanche, La Muette de Portici, Robert le diable, La Juive, Les Huguenots, Le Domino noir, todos esses grandes títulos de repertorio da época tiveram em Scribe seu denominador comum. Ó sistema mostrou-se eficaz e, em Paris, tornouse absolutamente exclusivo: quem quisesse representar uma ópera na Ópera de Paris era obrigado a seguir o padrão "Scribe-Meyerbeer". Como sempre, o amor dos dois protagonistas era a principal mola da ação, mas diferentemente do que se passava nos melodramas, o amor era correspondido e contrariado, não por um mero "inimigo", mas pela incompatibilidade dos meios de origem: um esquema cujo protótipo é a história de Romeu e Julieta.
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Uma das principais qualidades de Scribe foi a de saber, como pessoa, adaptarse a seu tempo. A ética burguesa, que iria prevalecer sob Luís Filipe, já preside absoluta em seus libretos: nenhum personagem é uma coisa só; os maus têm sempre um lado que emociona e os bons nunca são fanáticos. O famoso "meio-termo" caracteriza a época. Mas Scribe tinha recursos suplementares e soube captar o aspecto essencial do movimento das idéias de seu tempo no campo artístico: o romantismo. Como todos os heróis românticos, seu herói morre vencido, numa correlação de forças que lhe é desfavorável. Não morre perseguido por um indivíduo isolado, mas para defender um ideal antagônico ao de seus adversários. Raul em Les Huguenots, Rachel em La Juive ou Jean em Le Prophète morrem todos em defesa do ideal e da fé que os anima. O aspecto religioso ocupa em geral um lugar de primeiríssimo plano. O fato por sinal não é novo, pois desde Quinault, o libretista de Lully, os preceitos religiosos tinham lugar no libreto francês de ópera. Mas a revivificação dessa veia no século XIX é particularmente espetacular: cardeais, papas, monges, inquisidores ou vozes celestes raramente estão ausentes dos argumentos. Retrospectivamente, o sistema, apesar do sucesso, parece não se ter mostrado infalível. As amarras que cerceavam a grande ópera à francesa eram de tal ordem que as personagens tinham de acabar ficando estereotipadas. Apanhado na própria armadilha, o público estava condenado a ver eternamente a mesma história, apenas com cenários variados. Se Scribe, como poucos em sua época, soube "vender" e garantir sem sombra de erro a glória ao compositor a que estava associado, é preciso, por outro lado, reconhecer que hoje nenhuma dessas óperas consegue mais convencer.
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HECTOR BERLIOZ (1803-1869)
"Parece-nos que Hector Berlioz forma, junto com Victor Hugo e Eugène Delacroix, a Trindade da arte romântica". A declaração é de Théophile Gautier. Assim, encontram-se reunidos numa trilogia os representantes de três disciplinas artísticas: a música, a literatura e a pintura, o que decerto bem corresponde ao grande desejo de unidade e interpenetração das artes manifestado pelo romantismo. Entretanto, sem deixar de reivindicar-lhe o espírito, é o próprio termo "romantismo" que será recusado por Berlioz, tanto foi este, na França, deturpado e reduzido em sua significação. Romântico? N ã o sei o que isso significa. E u sou u m clássico. Por clássico, entendo uma arte jovem, vigorosa e sincera, séria, apaixonada, amante das belas formas, perfeitamente livre; tudo aquilo que já foi produzido de grande, de corajoso: Gluck, Beethoven, Shakespeare.
Formado na escola de Gluck, a cuja obra deve sua vocação, é verdade que Hector Berlioz foi, de início, um enamorado dos clássicos. Mas depois encontrou o "novo estilo" (o de Der Freischütz [O franco-atirador], de Carl Maria von Weber, em 1824) e inflamou-se de vivo ardor por tudo o que esse novo estilo veiculava em termos de valores mais novos. Beethoven e Weber, Shakespeare e Goethe, suas grandes admirações, levaram-no para bem longe de suas primeiras posições, numa aventura a que se entregou por inteiro, orientada para a exploração de novas plagas em que o gesto criador, doravante estranho às leis do passado, engendrava as próprias leis.
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A música, hoje, na força de sua juventude emancipada, livre, faz o que bem entende. Muitas das velhas regras n ã o t ê m sentido. [...] Novas necessidades do espírito, do coração e do ouvido i m p õ e m novas experiências e até, em certos casos, a infração das antigas leis.
Projetando com violência o seu "eu" para o proscênio — "o impúdico gesto autobiográfico", como espirituosamente disse Pierre Boulez —, unindo a literatura (para ser mais exato, seus próprios textos) à música, até que aquela se torne o motivo desta, concebendo a música como teatralidade, apelando de maneira explícita para o "fantástico", privilegiando o irracional e o imaginário sobre o racional e formal, questionando o próprio material sonoro, Hector Berlioz é o próprio exemplo do romântico. Como escreveu Pierre Boulez: Participando daquela visão tipicamente romântica que se prende ao romantismo alem ã o em sua forma mais emocional, daquela c o n f u s ã o voluntária entre real e i m a g i n á rio, Berlioz foi, na música, o iniciador. (...) N ã o h á como n ã o ver a força da necessidade que o fez unir — ele, e somente ele — Beethoven a Wagner, elo espetacular entre o compositor sinfônico e o compositor de teatro por excelência.
A irresistível vocação Em 19 Frimário do ano XII (11 de dezembro de 1803) nascia, na casa do médico da pequena cidade de Côte Saint-André, no Delfinado, o primeiro de seus filhos. Louis Hector Berlioz teve depois duas irmãs — Nanei, nascida em 1806, e Adèle, em 1814 — e viveu uma infância sem atropelos, numa família abastada e de pessoas instruídas. Aos seis anos, Hector foi matriculado no pequeno seminário de Côte Saint-André, mas como o colégio foi fechado em 1811 por ordem de Napoleão, Louis Berlioz, o pai, tornou-se seu único professor, "com mfinita paciência e um empenho minucioso e inteligente", como diria mais tarde o filho. Flajolé, flauta e violão foram os primeiros instrumentos tocados por Berlioz, pois o pai temia o grande fascínio que o piano poderia exercer sobre o menino. Após o baccalauréat em 1821, Berlioz deixou o Delfinado no final do verão e foi estabelecer-se em Paris, onde, seguindo a vontade da família, começou a estudar medicina. Algumas romanze, um potpourri para seis instrumentos: por essa época, a produção musical de Hector Berlioz era extremamente elementar, a de um amador autodidata e talentoso. A chegada a Paris teve efeito imediato e conseqüências indeléveis: a descoberta da ópera e da arte lírica. Foi Berlioz quem escreveu: E u lia e relia as partituras de Gluck. Sabia-as de cor; elas me tiravam o sono e me faziam esquecer de beber e comer. E u delirava. Chegou o dia em que, depois de ansiosa espera, tive oportunidade de ouvir Iphigénie en Tauride. Quando saí do teatro, jurei que, apesar de pai, m ã e , tios, tias, avós e amigos, seria m ú s i c o . Tomei coragem e, sem demora, escrevi a meu pai, para que ele ficasse sabendo. E u n ã o podia resistir à minha vocação.
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Pode-se imaginar a desaprovação da família e sua ansiedade, quando Hector abandonou os estudos de medicina e foi tomar aulas particulares de composição com Jean-François Lesueur (1760-1837), o que não o impediu de, em 1824, obter o bacharelado em ciências físicas. Somente em 1826, com 22 anos, Berlioz entrou para o Conservatório de Paris, então dirigido por Cherubini (1760-1842), onde continuou a estudar composição com Lesueur e contraponto com Anton Reicha (1770-1836), por sua vez antigo aluno de Haydn e amigo de Beethoven. Antes mesmo de haver entrado para o Conservatório, Hector Berlioz tinha conseguido que se executasse, em 1825, na igreja de Saint-Roch em Paris, uma Missa solene que ele faria novamente ouvir, com modificações, em 1827; depois disso, destruiu a partitura. A originalidade dessa obra, tanto do ponto de vista da instrumentação, como da percepção dos timbres, já dava margem a controvérsias. Foi em 1826 — no ano, portanto, de sua entrada para o Conservatório — que Berlioz começou a imaginar uma ópera, que se tornaria Les francs-juges [Os franco-juízes], com libreto escrito por seu amigo Humbert Ferrand. Foi um trabalho enorme para uma ópera que haveria de permanecer para sempre inacabada. Dela se conhece a Abertura e a Marche au supplice [Marcha para o suplício], que reapareceria na Sinfonia Fantástica. Foi para Walter Scott que, em seguida, Berlioz se voltou, tirando do romance Waverley a idéia para uma abertura, que ficou conhecida pelo mesmo nome. Atendo-se às especificações da forma sonata que se mostra nessa obra mais clara do que na abertura dos Francs-juges, a Ouverture de Waverley encerra os bons ensinamentos das aulas de Anton Reicha. Dos primordios parisienses à Sinfonia fantástica Ao longo de seus primeiros anos parisienses — que pouco a pouco foram sendo inteiramente consagrados à música, tomada prioritária —, Hector Berlioz viveu intensamente as emoções das descobertas artísticas que a ele se apresentaram. Foi o que sucedeu, em 1824, com a descoberta de Carl Maria von Weber e de seu Der Freischütz (na França, levado à cena com o nome de Robin des Bois, numa versão deformada, apresentada por Castil Blaze), e depois, a partir de 1828, com a descoberta de Beethoven ("Vi erguer-se o colossal Beethoven, o rei dos reis"), cujas sinfonias foram executadas nos concertos do Conservatório. Intransigente, Berlioz não tolerava os cortes ou "correções" que se costumava fazer nas obras dos mestres. Paralelamente às descobertas musicais, as literárias também o deixavam transtornado. Shakespeare, a partir de 1827: "Eu disse a mim mesmo: estou perdido [...]. Shakespeare, caindo de repente sobre mim, fulminou-me. Eu vi, senti que estava vivo e que tinha de levantar-me e caminhar." Em 1828, é a vez de Goethe, graças a uma recente tradução do Fausto, publicada por Gérard de Nerval. De 1830 a 1860, com incrível constância, numerosas obras de Berlioz tirariam sua substância do universo shakespeariano: a Symphonie fantastique [Sinfonia fan-
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tástica], seguida de helio, ou le retour à la vie [Lelio, ou o retorno à vida], Le Roi Lear [O rei Lear], Roméo et Juliette [Romeu e Julieta], La Mort d'Ophélie [A morte de Ofélia], Beatrice etBénédict, etc. Ao universo goethiano pertence o grande tema faústico, central nas preocupações de Berlioz a partir de 1828, mas que só em 1846 irá resultar em La Damnation de Faust [A danaçâo de Fausto]. Em 1828 foi publicada na França a tradução de Fausto, feita por Gérard de Nerval. A partir dela, Berlioz começou a musicar oito cenas do drama de Goethe. Na mesma ocasião, mas baseando-se numa tradução de Albert Stapfer, Delacroix trabalhava em dezenove litografias faustianas. As Huit scènes de Faust [Oito cenas de Fausto] — Cristo ressuscitado, Coro dos Sielfos, Canção do rei de Thulé, Canção dos camponeses, Romance de Margarida, Serenata de Mefistófeles, Canção da pulga, Canção do rato — estavam terminadas em março de 1829. Pouco depois, Berlioz já estava pensando em uma sinfonia e um balé, também inspirados em Fausto. A noite de sabá está, sem dúvida, na Sinfonia fantástica, por conta do tema faustiano sempre presente na imaginação de Berlioz. Mas são as Huit scènes de Faust que formam a verdadeira ossatura em que viria enxertar-se o projeto ulterior da "lenda dramática" que resultou em La Damnation de Faust. As Huit scènes de Faust estão integralmente preservadas nessa obra posterior, onde dão precioso testemunho do apaixonado vigor que marcara os primeiros anos de composição de Berlioz. Nessa época, Berlioz se fez o propagandista da obra de Goethe junto aos outros músicos, inclusive, depois de 1830, junto a Liszt. ** *
O ano de 1830, em que se travou a famosa "batalha de Hernani', foi também um ano decisivo para a carreira de Berlioz, que, após três tentativas infrutíferas, finalmente recebeu o Grande Prêmio de Roma, com sua Cantata Sardanapale [Sardanápalo]. Ele acabara de vencer essa etapa quando estourou em Paris a Revolução de Julho. Berlioz apressou-se em orquestrar a Marselhesa, mas sua grande preocupação era com os preparativos para o primeiro grande concerto de suas obras, realizado em 5 de dezembro na sala do Conservatório. O jovem laureado lá fez ouvir, entre outras obras importantes, a Sinfonia fantástica, à qual deu um subtítulo autobiográfico e imaginário: Épisode de la vie d'un artiste [Episódio da vida de um artista]. Mendelssohn, quando conheceu a sinfonia, não apreciou seus excessos; já Liszt, presente à estréia, aprovou-a inteiramente. Sutil comentarista da obra de Berlioz, Maurice Le Roux define a Sinfonia fantástica como uma obra de "ruptura tradicional": Estas duas palavras n ã o são contraditórias se considerarmos a tradição como u m a transm i s s ã o da força criadora de um artista a outro; essa força criadora tem de domesticar materiais novos, ordenar um mundo necessariamente desconhecido, criar d i m e n s õ e s
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ignoradas. [...] Berlioz, aos 27 anos, d á - n o s esta Sinfonia fantástica mundo. C o m tal gesto de ruptura, ele renova o da Sinfonia
que assombra o
heróica.
Introdução de um tema cíclico (a idéia fixa), novos ritmos e nova linguagem harmônica, audácia da superposição de um "argumento" à trama musical, esta sinfonia-poema, embora referida a um encadeamento de movimentos proveniente da tradição (mesmo que eles sejam em número de cinco e não de quatro), rompe os quadros desta mesma tradição. Aos 27 anos, Berlioz, com uma de suas obras mais perfeitas e mais coerentes, entrava para a história. De Lelio a Benvenuto Cellini Obrigado, em conseqüência do Prêmio de Roma, a ir morar na Villa Mediei em Roma, Berlioz suportou mal esse afastamento de Paris. Um noivado rompido aumentou seu desânimo e o arrastou a aventuras rocambolescas. Acabou, por fim, pensando em suicídio. Já havia encontrado Liszt em Paris e agora, em Roma, encontrou Mendelssohn, de quem se tornou amigo. Também em Roma, travou conhecimento com Glinka. Se Berlioz não gostava da cidade, gostava de viajar pela Itália, nos Abruzzi, a Nápoles, mas apreciava sobretudo ouvir a música dos músicos de rua. Suas lembranças da Itália e as impressões poéticas e musicais desse período de sua vida estão em Harold en Italie [Haroldo na Itália, 1834] e, dez anos depois, na Ouverture du carnaval romain [Abertura do carnaval romano]. Berlioz conseguiu que lhe abreviassem a estada em Roma, sob a condição de ir passar um ano na Alemanha. Ele teve o cuidado de fazê-lo, mas isso iria mergulhálo em grandes dificuldadesfinanceiras,vez que sua pensão romana já não lhe era mais paga. Encomendada por Paganini, que desejava uma obra para solo de viola e orquestra, a sinfonia concertante Harold en Italie reporta-se ao Childe Harold de Byron. Berlioz escreveu em suas Memórias: U m solo combinado com orquestra, de maneira a nada subtrair de sua ação à massa orquestral, (...) uma seqüência de cenas em que o solo de viola se encontraria envolvido como uma personagem mais ou menos ativa, conservando seu caráter próprio; eu quis fazer da viola — pensando nas lembranças poéticas que ficaram de minhas peregrinações nos Abruzzi — uma espécie de sonhador m e l a n c ó l i c o no gênero do Childe Harold, de Byron.
Como na Sinfonia fantástica, um único tema percorre toda a obra, encadeando os desenvolvimentos, novo avatar psicológico da "idéia fixa", já tão surpreendente naquela sinfonia. Paganini jamais tocou essa obra, escrita em sua intenção. Nem por isso sua estréia, em 1834, deixou de ser um dos grandes sucessos de Berlioz, que iria conservar, pela vida afora, essa boa lembrança italiana.
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Depois de voltar de Roma, Hector Berlioz procurou tomar pé novamente na capital francesa, organizando um concerto de suas obras em 9 de dezembro de 1832. Berlioz pôs no programa a Sinfonia fantástica, que dali por diante faria par com Lelio ou le retour à la vie, monodrama lírico (ou "melólogo", como dizia Berlioz) para recitante, dois solistas, coros e orquestra, onde o argumento, sempre autobiográfico, determina não só a obra, como o conteúdo musical. A teatralidade é prioritaria nessa obra, em que a música vem depois. O impudor da intenção autobiográfica choca ainda mais pelo fato de que, além do ajuste de contas com os profanadores das obras dos mestres (subentendem-se os Fétis ou os Habeneck), que só lhe servia para granjear a antipatia dos donos da música oficial, não havia naquele concerto uma só pessoa que nãofizesseuma clara leitura dos propósitos de Berlioz: a declaração de amor que o compositor fazia a certa mulher que estava bem à vista de todos em um camarote. Era Harriet Smithson, uma atriz shakespeareana, antiga paixão perdida e reencontrada, a Ofélia de Berlioz, que a crítica impiedosa não tardou a apelidar de "madame Idéia Fixa"... Mesmo com esta declaração pública, foi ainda necessário um ano para que Harriet Smithson consentisse no casamento, celebrado em 3 de outubro de 1833 como um acontecimento no mundo parisiense. No concerto subseqüente de obras de Berlioz, algumas semanas depois, encontravam-se Alfred de Vigny, Victor Hugo, Emile Deschamps, Ernest Legouvé, Eugène Sue. Berlioz era o homem da moda nos meios literários. Musset, Chopin, Liszt, Jules Janin, Dumas, os Nodier, George Sand freqüentavam a pequena casa rústica de Montmartre, onde se instalara o casal Berlioz e onde nasceria, em 1834, Louis, o único filho do compositor. Dificuldades financeiras insuperáveis fizeram com que Berlioz aceitasse uma posição de cronista musical, primeiro, no Rénovateur ou na Gazette Musicale e depois, em 1834, no Journal des Débats, onde passou a escrever com regularidade, recebendo cem francos por artigo. "Folhetinista para ganhar a vida, é o cúmulo da humilhação", escreveu, mas ao mesmo tempo se confessou seduzido pela "arma que tinha nas mãos para sair em defesa do belo e atacar o que lhe parecesse contrário à beleza". Intransigente, polemista de verve brilhante, Hector Berlioz tornou-se um ótimo escritor especialista em música. E fez questão de, ele próprio, cuidar da edição, em três volumes, de seus escritos musicais: Les Soirées de l'orchestre [As noites da orquestra, 1852], Les Grotesques de la musique [Os grotescos da música, 1859], A travers chants [Através dos cantos, 1862]. A esses escritos iriam ainda reunir-se suas Mémoires, de 1844, e uma monumental Correspondance, fonte incomparável e, contrariamente às Mémoires, sem disfarces de informações sobre ele mesmo, sua música e o ambiente que o rodeava. Com a obrigação cotidiana de escrever, surgiu na vida de Berlioz nova razão para aborrecimentos: a luta entre o tempo dedicado à crítica e aquele que sobrava para a criação, sempre imperiosa. Foi a fase das mélodies: La Captive [A cativa] e Sarah la baigneuse [Sarah, a banhista], com textos de Victor Hugo, que sucederam
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as Mélodies irlandaises [Melodias irlandesas] por ele antes compostas. Trata-se muitas vezes de mélodies que ele retoma, refaz e desenvolve numa versão para orquestra. Esta dimensão da arte de Berlioz, importante mas quase sempre ignorada, proporcionou-nos maravilhas, como o ciclo Les Nuits d'été [As noites de verão], com poemas de Théophile Gautier, composto em 1841. A veia lírica conduziu naturalmente Berlioz na direção da ópera, gênero em que ele esperava ver confirmada sua notoriedade. Já em 1834, começava a pensar em Benvenuto Cellini, uma narrativa sobre a vida do grande ourives e da sua louca busca do absoluto na obra de arte. A partir das Memórias de Cellini, uma leitura que entusiasmou Berlioz, Auguste Barbier e Léon de Wailly, com um pouco de ajuda de Alfred de Vigny e umas tantas indicações do próprio Berlioz, trabalharam no libreto. Dois anos de trabalho febril e a partitura estava pronta em 1836. Foram necessários mais dois anos para que a obra subisse à cena. Nesse intervalo, Berlioz, atendendo a uma encomenda oficial, empreendeu a tarefa de compor sua segunda obra religiosa, a Grande messe des morts [Grande missa dos mortos] ou Requiem. "Se toda minha obra estivesse ameaçada de ser queimada e me fosse dado salvar uma, eu escolheria a Missa dos mortos", confessou o compositor em 1867 ao amigo Ferrand. Para melhor avariarmos até que ponto Berlioz, notoriamente ateu, tinha profundo interesse nas possibilidades oferecidas pela música religiosa, lembremo-nos de que o primeiro artigo que escreveu na vida (em 1829 para Le Correspondant) tinha como assunto "considerações sobre a música religiosa" e de que, no final de sua vida, ele iria compor L'Enfance du Christ [A infância do Cristo]. Muitas vezes, Berlioz chegou a levantar-se contra as concepções, então em voga, segundo as quais toda a música religiosa deveria permanecer fiel aos velhos modos eclesiásticos. "Não há teatro nessa obra", disse Claude Balfif, biógrafo e analista da obra de Berlioz. Em todo caso, não há qualquer razão para pôr em dúvida a sinceridade de Berlioz e a autenticidade de seus pensamentos com relação à morte, tal como se apresentam em seu grandioso Requiem, no qual, a despeito do brilhantismo instrumental em algumas passagens (Tuba mirum) e da grande massa coral requerida, o clima é de doçura e recolhimento. Se o Requiem de Berlioz obteve grande sucesso na igreja de Saint-Louis-desInvalides em dezembro de 1837, o mesmo não se pode dizer da ópera Benvenuto Cellini, que redundou num magistralfracassoem setembro de 1838. "O que dizer da música desses últimos cinco anos?" — protestava Berlioz cheio de indignação. "Só há uma palavra para resumi-la: Robert le diablel Eis o grande sucesso da nova era, eis a grande glória, aquilo que, depois de cinco anos, consagramos! Robert le diablel" A verdade é que, quando se tratava de arte lírica, eram Giacomo Meyerbeer e Fromental Halévy que ditavam então as regras na França. Em matéria de ópera, o público estava nos antípodas da problemática abraçada por Berlioz: o grande drama de Benvenuto Cellini não podia agradar a este público.
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De Romeu e Julieta à Danação de Fausto
Arrasado depois do fracasso, em situação financeira desastrosa, Berlioz caiu doente. Solicitou um lugar de professor de harmonia no Conservatório, mas não o obteve. Nesse momento, Paganini descobriu a partitura de Harold en Italie, que jamais havia tocado, e ficou tomado de admiração. Presenteou Berlioz com razoável soma de dinheiro, o que permitiu a este, por algum tempo, ficar livre dos trabalhos que lhe garantiam a subsistência e dedicar-se à composição. "Beethoven morto, somente Berlioz poderá revivê-lo", eram as palavras que acompanhavam o presente de Paganini e levaram a tranqüilidade ao compositor. Pouco depois, Berlioz foi nomeado conservador-adjunto da biblioteca do Conservatório: não era o lugar que esperava, mas pelo menos passou a contar com salário e um trabalho que lhe exigia pouco. E, graças ao presente de Paganini, pôde pensar na possibilidade de uma obra de grande envergadura: sua terceira sinfonia, intitulada Roméo et Juliette [Romeu e Julieta], para coro, sofistas e orquestra, com prólogo de Emile Deschamps na forma de um recitativo baseado na tragédia de Shakespeare. Em seis partes, determinadas pelo programa literário, a nova sinfonia de Berlioz corresponde a uma importante etapa inovadora, cuja concepção foge aos moldes da sinfonia clássica. Como afirmou Claude Ballif, "tudo é entrevisto de nova maneira. As partes vocais cantam a história, as partes instrumentais fazem prodigiosos comentários sobre esta". Roméo et Juliette foi integralmente composta entre janeiro e setembro de 1839 e é dedicada a Paganini, o generoso benfeitor. Na estréia dessa sinfonia, em 24 de novembro de 1839, Honoré de Balzac disse a Berlioz: "Mas esta sua sala de concerto é um cérebro", tantas eram as personalidades que haviam ocorrido para conhecer a obra. Depois de Roméo et Juliette, o compositor logo engatilhou outro grande projeto. O ministro do Interior encomendara-lhe uma obra para comemorar o décimo aniversário da Revolução de Julho de 1830. E Berlioz compôs a Symphonie funèbre et triomphale [Sinfonia fúnebre e triunfal], para grande banda militar. A obra era para ser tocada ao ar livre e de fato foi, mas em condições tais que ficou inaudível. Como já acontecera com Roméo et Juliette, despertou vivo interesse em Wagner, que a considerou "grande da primeira à última nota". Nova decepção outra vez iria ferir Berlioz em seu orgulho de compositor: sua candidatura à Academia de Belas-Artes, à cadeira que ficara vaga com a morte de Cherubini, não foi aceita. Premido por uma situaçãofinanceirasempre acrobática e pela situação familiar que ia à deriva, Berlioz só pensava em sair da França com sua nova companheira, a cantora Marie Recio. Nos anos que se seguiram, entre 1842 e 1846, fez constantes turnês pela Europa, na busca de novo público para suas obras. Bélgica, Áustria, Alemanha, Boêmia e Hungria viram passar por seus territórios aquele grande manager das próprias obras. Berlioz começou pela Bélgica,
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onde não obteve grande sucesso, mas foi simpáticamente recebido na Alemanha, sobretudo em Leipzig, onde Mendelssohn pôs à sua disposição a orquestra do Gewandhaus para que pudesse fazer ouvir a Sinfonia fantástica, e em Dresden, onde reencontrou Wagner, seu fiel admirador. Em 1844, Berlioz fez uma parada em Paris. No fim de julho daquele ano, a Exposição da Indústria lhe deu a oportunidade de organizar, praticamente sozinho e com incrível energia, o gigantesco "Festival" de encerramento da exposição, uma festa popular que alcançou enorme sucesso. Foi Berlioz o inventor do termo e da noção de festival, que tão boa carreira viria a fazer no século XX. Nesse mesmo ano de 1844, era publicada sua importante obra Traité d'instrumentation et d'orchestration modernes [Moderno tratado de instrumentação e orquestração], em que a paixão de toda uma vida pelo timbre, som e regência aparece na forma de um tratado didático e estético. Bem criança ainda, Berlioz já se maravilhava diante de uma folha de papel riscada com vinte e quatro pautas: "Que orquestra poderia ser escrita em cima delas!" Enquanto criava suas obras ou durante as viagens que fazia pelo estrangeiro, sempre se maravilhava diante da matéria viva que eram as orquestras: "A orquestra cresce, fala, torna-se adulta." Segundo Berlioz, o bom maestro é aquele que "sabe tocar orquestra". Quanto aos timbres, sempre manifestou com relação a eles grande audácia. É também sua a famosa frase que está no Traité: "Qualquer corpo sonoro posto em movimento pelo compositor é um instrumento de música", pensamento que imediatamente nos transporta para a segunda metade do século XX e que Varèse não negaria. Quanto aos projetos para o desenvolvimento da instrumentação, basta lembrar um deles: abrir, no Conservatório de Paris, cursos de percussão e de ritmo. Longe de ser obra secundária, o grande Traité de Berlioz é fruto de uma premente necessidade do compositor. Outros grandes compositores reconheceramlhe o valor. Em 1881, Mussorgski, já desligado de tudo, morrendo no hospital de São Petersburgo, guardava ciosamente consigo um tesouro único: o Traité de Berlioz. Em 1855, quando publicou a Art du chef d'orchestre [A arte do regente], Berlioz fez uma complementação de seu grande Traité. Sempre ligado psicologicamente à sua ópera fracassada e fiel ao princípio de retornar às obras já elaboradas para lhes dar novo polimento, em 1844 Berlioz compôs outra ouverture paia Benvenuto Cellini, dita "característica" e que recebeu o nome de Carnaval romain [Carnaval romano]. Em agosto de 1845, a cidade de Bonn promoveu festejos para Beethoven e lhe erigiu uma estátua: todos os músicos europeus passaram a ter encontro marcado na cidade natal de Beethoven. Enviado pelo Journal des Débats, Berlioz, em tal circunstância, se viu novamente envolto pela atmosfera goethiana e, a partir de então, retomou o grande projeto inspirado no Faust. A lenda dramática La Damnation de Faust [A danação de Fausto] ganhou forma no curso de uma viagem pela Áustria (Berlioz encontrou Liszt em Viena), Hungria, Boêmia e Silésia. Berlioz
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dedicou a Liszt essa obra, que foi concluída depois de sua volta a Paris. Para que fosse ouvida, Berlioz não mediu riscos e conseqüências. Alugou a Opéra-Comique, encarregou-se de boa parte dos gastos, assumiu a regência da orquestra, mas, nas duas vezes em que foi apresentada (6 e 12 de dezembro de 1846), o público permaneceu indiferente: "O bom público de París ficou em casa, desinteressado de minha nova partitura, como se eu fosse o mais obscuro dos alunos do Conservatório... Nada em toda niinha carreira artística magoou-me tanto quanto essa indiferença não esperada" (Berlioz). Foram precisos trinta anos para que La Damnation de Faust, hoje tão popular, viesse a se recuperar na França desse primeiro fracasso. Edouard Colonne foi o primeiro a incorporar a versão integral da obra a um programa de sua Société de Concerts, em 1877. "Fiquei arruinado. Devia uma razoável quantia de dinheiro, que não tinha. Imaginei que uma viagem à Rússia pudesse ser o jeito de livrar-me daquela embrulhada." Foi a conselho de Balzac — que lhe deu de presente sua própria peliça — que Berlioz empreendeu uma longa viagem na primavera de 1847. Em São Pertersburgo, logo conseguiu fazer-se conhecido. Depois de Moscou e Riga, de novo foi à Alemanha, onde teve o apoio do rei da Prússia. Em seguida, após breve temporada na França, viajou a Londres para dirigir uma série de concertos. De A infância do Cristo a Os troianos
Depois do desastre de La Damnation de Faust, que coroou tantas outras humilhações públicas, Berlioz não queria mais, em primeiro lugar, saber da França e, em segundo lugar, do mundo e de seus contemporâneos em geral: sentia-se rejeitado por todos. Ele, o cantor da Revolução de 1830, nada entendeu das paixões que agitavam a Europa de 1848, naquela "primavera das nações". A revolta dos trabalhadores parisienses em junho de 1848, de que tomou conhecimento na Inglaterra, só lhe despertou rancor contra "aquele país infeliz que tem o nome de França", contra "aquela república de bugres e mexeriqueiros". Ele era a favor da volta do Império e, já em 1849, compôs um Te Deum que esperava ouvir executado nas festas de proclamação do Império. Esse Te Deum, contudo, que é a mais monumental de todas as obras religiosas de Berlioz, somente viria a ser executado em 1855, durante a Exposição Universal. Do rancor que então lhe ia na alma nasceram as suas Mémoires, verdadeira reconstituição de seu próprio passado. Berlioz ainda se encontrava na Inglaterra quando soube da morte do pai, em julho de 1848 (a mãe morrera em 1838). Pouco tempo depois, sua mulher, Harriet Smithson, ficou paralítica. Os dois viviam separados, mas Berlioz continuara profundamente ligado a ela. A doença da mulher deixou-o transtornado. Até morrer, em 3 de março de 1854, Harriet pèrmaneceria imobilizada. Para combater a indigência musical reinante e a hegemonia italianizante que então governava a arte lírica, Berlioz, junto com um grupo de amigos, empenhou-
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se em fundar uma sociedade filarmônica, projeto a que se entregou por inteiro. Essa sociedade chegou a organizar com grande êxito duas temporadas de concertos e deu oportunidade para que a música de Berlioz fosse ouvida, pois abria canrinhos fora das instituições. Mas dissensões internas ocasionaram a sua dissolução em dezembro de 1851. Dessa época, datam os esboços da terceira e última obra religiosa da maturidade de Berlioz, L'Enfance du Christ [A infância do Cristo], na qual trabalhou, embora não com regularidade, durante quatro anos seguidos (de 1850 a 1854), por "blocos" de música independentes uns dos outros. Para que uma das primeiras cenas pudesse ser logo ouvida—o coro de L'Adieu aux bergers [O adeus aos pastores] — Berlioz valeu-se de um subterfúgio bem teatral. A obra, apresentada na série de concertos de sua Société Philarmonique em 1850, foi anunciada como se fosse uma descoberta recente de uma composição datada de 1679, de Pierre Ducré, mestre de música da Sainte Chapelle de Paris. Ignorante do verdadeiro autor, o público ficou extasiado. E Berlioz, continuou, impávido, com a impostura: Le Repos de la Sainte Famille [O repouso da Santa Família] foi interpretado em Bâle, no ano de 1852. L'Enfance du Christveio a público em sua versão definitiva em 1854. É um oratorio para pequeno efetivo orquestral e vocal, cuja concepção leve e íntima contrasta com as outras obras religiosas do compositor. E, pela serenidade que exprime, nada a figa à vida de seu autor. Em 1851, novamente Berlioz apresentou sua candidatura, de novo rejeitada, desta vez à cadeira queficaralivre no Instituto de France com a morte de Spontini, um músico que Berlioz admirava e a cuja sucessão tinha o direito de pretender. "O estudo dos procedimentos dos três mestres modernos — Beethoven, Weber e Spontini — completaram o que me faltava", escreveu Berlioz, lembrando-se de seus anos de aprendizagem. Ambroise Thomas foi eleito em seu lugar. A consagração do Instituto de France acabaria por chegar, mas somente em 1856, quando Berlioz foi eleito para a cadeira que ficara livre com a morte de Adolphe Adam. Seu comentário: "Antes estava sentado sobre uma baioneta, agora estou em uma poltrona." Harriet Smithson morreu em março de 1854; algumas semanas antes, seu filho Louis havia embarcado como marinheiro. A solidão de Berlioz aumentou. Ele regularizou sua situação com Marie Recio, casando-se com ela em 19 de outubro, poucas semanas antes da estréia de L'Enfance du Christ. Em 1856, em Weimar, onde Franz Liszt havia acabado de apresentar La Damnation de Faust (depois de já ter feito montar, em 1852, Benvenuto Cellini) e motivado pela energia da princesa Wittgenstein, Berlioz começou a considerar a possibilidade de retornar à ópera. Já há muito tempo vinha pensando em um libreto tirado da Eneida, de Virgílio, baseado em poema que ele próprio, Berlioz, escreveria. Ao longo de dois anos, a despeito de seu deplorável estado físico (achava-se doente, com sérios problemas intestinais), Berlioz trabalhou nessa ópera, cons-
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truída com duas seções que se complementam: La Prise de Troie [A tomada de Tróia], três atos inspirados no segundo livro da Eneida, e Les Troyens à Carthage [Os troianos em Cartago], quatro atos baseados no quarto livro e em trechos do quinto. Les Troyens [Os troianos] são uma colossal empreitada, concluída em 1858. Berlioz tinha motivos para crer que a ópera fosse ser logo representada. Foi preciso, no entanto, que ele esperasse até 1863, assim mesmo para vê-la levada no Théâtre Lyrique e não na Ópera de Paris, e numa versão extremamente truncada. Nesse intervalo, a Ópera de Paris, em vez de Berlioz, preferiu encenar David, Bellini, o príncipe Poniatowski, Rossini e principalmente Richard Wagner, cujo Tannhauser, apresentado em 13 de março de 1861, transformou-se num memorável escândalo. "Todos os jornais são unânimes em sua condenação. Quanto a mim, estou plenamente vingado", escreveu Berlioz. Esquecido da amizade que Wagner sempre lhe manifestara, totalmente obcecado por um sentimento de rancor contra a Ópera de Paris, que lhe recusara a obra, ulcerado, Berlioz perdeu as estribeiras, negando-se a escrever a crítica da obra do confrade no Journal des Débats. Dois anos mais tarde, mostrou-se capaz de julgamento mais sereno: "Há coisas bastante belas, principalmente no último ato. Ele é de profunda tristeza e tem grande caráter." Liszt, que reencontrou Berlioz em 1861, assim referiu-se a ele nos seguintes termos: "Todo seu ser parece abater-se sobre uma tumba." Berlioz praticamente não voltou mais a sair de seu estado de abatimento físico e moral. Contudo, encontrou forças suficientes para tentar um novo gênero: a deliciosa opéra comique Béatrice etBénédict, em que captou com felicidade a veia shakespeariana, uma constante em sua vida. Muito barulho por nada foi a peça de Shakespeare que lhe forneceu a trama do libreto, o qual, seguindo um hábito que já se estabelecera, foi por ele mesmo escrito, como Les Troyens. Encenada pela primeira vez em 9 de agosto de 1862 em Baden-Baden, Béatrice etBénédict não chegou a ser representada na França em vida do compositor. No mesmo ano, com a morte de Fromental Halévy, Berlioz nutriu ainda a esperança de obter o título de secretário perpétuo da Academia de Belas Artes, mas perdeu, por pouco, a eleição. Dias mais tarde, em 13 de junho, Marie Recio faleceu subitamente. A boa acolhida dada a Les Troyens à Carthage, em 4 de novembro de 1863, trouxe algum consolo a Berlioz, que somente aos sessenta anos podia enfim interromper sua colaboração no Journal des Débats. O último artigo que publicou foi sobre a ópera Les Pêcheurs deperles [Os pescadores de pérolas], de Georges Bizet. Promovido a oficial da Legião' de Honra, Berlioz começou a tomar as providências para a publicação das suas memórias. Uma última provação iria ainda sombrear-lhe tragicamente os últimos anos: o falecimento, em Havana, de seu filho único, Louis, morto em conseqüência de uma febre. "A dor esculpe cada vez mais profundamente aquela bela cabeça de águia raivosa, impaciente por ganhar o espaço", escreveu Théophile Gautier referindo-se a ele: Berlioz, desta vez, estava aniquilado.
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Berlioz fez ainda uma viagem à Rússia, numa volta às fontes vivas de sua juventude, em busca de Estelle, "sua estrela das neves" e amor da adolescência, ou a Nice, cujo clima, um dia, lhe fora favorável. Era um morto vivo. No dia 8 de março de 1869, morreu tranqüilamente, indiferente a tudo, em Paris. Havia já alguns dias que estava de cama, só dormindo. Teve enterro oficial, solene e circunspecto, última nota dissonante em relação às personagens que fora Hector Berlioz, com relação à ousadia provocadora que fora a marca de toda uma vida e que é também a de sua obra. Claude Ballif escreveu: Paris, que Berlioz tanto quis conquistar, cometeu u m ú l t i m o e q u í v o c o em relação a este grande criador, devorado pela própria obra, excessiva, mal compreendida e sempre em divergência: concedeu-lhe aquilo que menos condizia com sua pessoa: a banalidade pomposa.
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FELIX MENDELSSOHN (1809-1847)
Quando o jovem Felix Mendelssohn, com vinte anos, regeu em Leipzig, pela primeira vez depois da morte de Johann Sebastian Bach, em memorável concerto, a Paixão segundo São Mateus, cuja partitura estudara durante cinco anos, não pôde evitar escrever logo depois, com secreta alegria: "E dizer que coube a um judeu restituir ao mundo a maior obra cristã de todas as épocas!" Para entender ao mesmo tempo a força do impacto e o equívoco desta frase, é preciso saber que o menino judeu Jacob Ludwig Felix, juntamente com seus irmãos e irmãs e ao lado do pai, por decisão deste, foram todos batizados, ao mesmo tempo, na religião luterana, quando Felix tinha sete anos. Uma decisão que Jacob Salomon, tio de Felix, justificou nos seguintes termos: "É justo permanecer atado a uma religião perseguida e infeliz e impô-la aos filhos como um martírio quando se tem certeza de que ela é a única boa, a única capaz de conduzir à salvação, mas, no caso desta certeza já não existir mais, seria uma barbaridade exigir sacrifícios tão dolorosos e inúteis dos filhos." Assim fazendo, Abraham Mendelssohn rompia com uma tradição familiar de profundas raízes judaicas, encarnada na lembrança de seu próprio pai, Moses Mendelssohn (1729-1786), importante figura do Iluminismo alemão, amigo do filósofo e dramaturgo Lessing, que lhe dedicou seu Nathan, o sábio, e tradutor para o alemão do Fédon de Platão e de vários livros da Bíblia. Abraham Mendelssohn — que, espirituosamente, disse de si mesmo: "Na primeira parte de minha vida fui filho de meu pai e, na segunda, pai de meu filho" — quis que os filhos fossem perfeitamente assimilados pela sociedade de seu tempo e nela se inserissem sem traumas. Foi movido por esse espírito que desejou que o
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nome Bartholdy — o de uma pequena propriedade de familia — fosse no futuro associado ao de Mendelssohn. Desse modo, o menino Jacob Mendelssohn ficou sendo, para seus contemporâneos e para a posteridade, Felix MendelssohnBartholdy. Guiado por bons professores, o jovem Felix aprendeu ao mesmo tempo grego, latim, francês e inglês, e mais tarde ainda acrescentaria a estas línguas o italiano. Menino e adolescente, caminhava familiarmente ao lado de Goethe; em música, beneficiou-se de excepcional abertura para toda a herança germânica. Estas condições privilegiadas iriam fazer sua felicidade, mas possivelmente também causarlhe muitas tristezas. Maravilhoso pianista, regente audacioso, prosélito da música alemã, pedagogo apaixonado, fundador de um conservatório, autor de abundante correspondência, desenhista de grande talento, o compositor Felix Mendelssohn foi tudo isso ao mesmo tempo e sempre de maneira impecável. Para a definição de seu destino, as realizações do homem concorrem em igualdade de condições com sua obra de criador. A reputação de compositor de Mendelssohn iria ressentir-se disso: "Um belo acidente da música alemã", chegou a dizer Friedrich Nietzsche, que deixou ainda essas duras palavras sobre Mendelssohn: "Uma música que olha sempre para trás." A preocupação de ver-se integrado, no sentido em que desejava seu pai, uma vasta cultura acumulada desde a infância e uma educação musical orientada para os valores do passado levaram Mendelssohn mais para o lado da exploração e do desenvolvimento dos valores adquiridos do que para a descoberta de novos caminhos. Felix Mendelssohn teve consciência disso e se justificou algumas vezes, como numa carta a Hiller: Caso minhas c o m p o s i ç õ e s guardem algumas s e m e l h a n ç a s com as de Sebastian Bach, isso nada tem a ver comigo, pois as escrevi, linha por linha, sob a impressão do momento, e se as palavras exerceram sobre m i m e o velho Bach igual impressão, isso s ó me dá motivos de alegria; v o c ê n ã o pensa, imagino, que eu copie formas sem nada acrescentarlhes. U m trabalho tão vazio haveria de repugnar-me de tal modo que tornaria i m p o s s í vel para m i m chegar até o fim de qualquer coisa que escrevesse.
Nascido em Hamburgo em 3 de fevereiro de 1809 (Chopin e Schumann nasceram no ano seguinte, e Liszt em 1811), Felix Mendelssohn passou, a partir de 1813, a viver em Berlim, onde o pai instalara as sucursais de suas casas bancárias. Da união de Abraham Mendelssohn com Lea Salomon nasceram quatro filhos: Fanny (1805), Felix, Rebecca e Paul. A célula familiar era sólida, harmoniosa, afetivamente unida, culturalmente rica. Logo que os dotes musicais dos dois filhos mais velhos se tornaram evidentes, os pais tomaram as providências para que eles fizessem rápidos progressos. Felix tinha apenas sete anos quando, junto com Fanny, acompanhou o pai a Paris. Durante a estada naquela cidade os dois tiveram
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aulas com Marie Bigot, a maravilhosa pianista a quem Beethoven havia entregue o manuscrito da Sonata appassionata. Aos dez anos, Felix já tinha como seu principal professor de música Cari Friedrich Zelter (1758-1832), o eminente fundador da Singakademie de Berlim e amigo de Goethe. E a Zelter ficou devendo seu conhecimento de Bach e Haendel, bem como rígidos princípios de composição, sobretudo no que se referia à música vocal. Os Lieder de Mendelssohn acabaram sofrendo com isso: estão, tanto do ponto de vista da estrutura como da forma, aquém dos de Schubert e de Schumann. Foi Zelter quem apresentou seu jovem aluno de doze anos a Goethe. Depois de uma calorosa acolhida em Weimar, Felix, dali por diante, sempre que passou pela cidade, foi recebido na casa de Goethe. Quando se pensa nas difíceis relações de Beethoven, nas sistemáticas recusas deste às investidas de Schubert, no desprezo que nutria por Weber,fica-sesurpreso diante dessa famifiaridade com o jovem músico. Não se deve esquecer, no entanto, que Mendelssohn procurou valer-se dessa excepcional amizade para tentar converter Goethe à música de Beethoven. Tocou para o amigo mais velho um arranjo da Quinta Sinfonia no piano, e o relato que fez do episódio dá bem a medida do assombro de Goethe: "É imenso, é espantoso, poderíamos quase dizer que a casa vai desabar; mas o que aconteceria se todos os homens se pusessem a tocar isso juntos?" (Carta de 25 de maio de 1830.) Com quinze anos, Zelter declarou a Mendelssohn que nada mais tinha para ensinar-lhe: "Em nome de Mozart, Haydn e do velho Bach, eu te proclamo meu confrade." Mas em Paris, para onde Felix foi no ano seguinte, Cherubini, diante das primeiras composições de Mendelssohn, diria: "Este rapaz é rico, vai causar boa impressão, aliás já causa, mas gasta dinheiro demais, suas roupas não economizam pano." Numerosas composições (os três Quartetos para piano e cordas opus 1,2 e 3, o Sexteto para piano e cordas opus 110, o Octeto para cordas opus 20, o primeiro Concerto para piano e orquestra em lá menor) pontuam esses anos de formação, nos quais se nota o despontar de uma personalidade sob a influência dos grandes mestres. Aos dezoito anos de idade, Mendelssohn revelou bruscamente sua verdadeira dimensão de compositor com a abertura Sonho de uma noite de verão, ouvida pela primeira vez em Stettin, no dia 20 de fevereiro de 1827, sob a regência de Karl Loewe (1796-1869), também compositor e famoso por suas baladas e Lieder. Shakespeare, graças à tradução de Schelege, encontrava-se então no centro das preocupações e motivações dos artistas alemães: Beethoven vivia pensando em Macbeth e em A tempestade, Schubert recorreu a textos de Shakespeare em alguns de seus Lieder, Weber imaginara um certo Macbeth. Mendelssohn não fugiu à regra. Robert Schumann definiu a Ouverture de Sonho de uma noite de verão como "um derramamento de juventude". A peça é, incontestavelmente, um derrame de possibilidades inventivas: "A verdadeira originalidade da obra reside em sua estru-
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tura e na pura vitalidade de sua invenção musical. Trata-se de um extraordinário feito para compositor tão moço" — é o que diz, em nossos dias, o musicólogo e maestro Raymond Leppard. O esplendor da orquestração não deixa de sugerir a arte de Weber, a vitalidade de Rossini, a paleta de cores de Schubert. Com o mais completo domínio da forma e da orquestração, Felix Mendelssohn pôde, a partir de então, reivindicar uma luminosa maioridade. Quinze anos mais tarde, em 1843, iria acrescentar à Ouverture uma importante partitura de música de cena, reencontrando com a maior facilidade o ardor e a vivacidade de seus dezoito anos. Após a proeza de ter promovido a execução da Paixão segundo São Mateus, que regeu em 11 de março de 1829, exatamente um século depois de sua primeira audição, os anos de aprendizado do jovem mestre completaram-se com anos de viagem, uma maneira, por sinal, bem goethiana. Mendelssohn foi uma primeira vez à Inglaterra e à Escócia e de lá voltou com a Sinfonia da Reforma e o esboço de duas obras: o da bela abertura As Hébridas (ou A gruta de Pingai, como também é conhecida) e o da Sinfonia escocesa. Em seguida, fez uma grande viagem pela Itália, com estadas em Veneza, Florença, Roma (onde se ligou a Berlioz por laços de amizade), Nápoles e Pompéia, para, em seguida, mais uma vez voltar a Paris, onde encontrou Chopin e Liszt. De lá, rumou novamente para a Inglaterra. Fora a Sinfonia italiana, que data dessa viagem, um grande tema inspirado no Faust ocupava-o por inteiro: A primeira noite de Walpurgis (note-se que também Berlioz vinha, desde 1828, compondo as Huit scènes de Faust), uma grande balada para solistas, coro e orquestra, apresentada pela primeira vez em Berlim em janeiro de 1833. Chegara o momento em que Mendelssohn tinha de fazer sua escolha, e ele a fez com plena consciência e serenidade. D e acordo com os seus planos — escreveu ao pai em fevereiro de 1832 — , eu deveria primeiro observar bem os diferentes países que visitasse, de modo a escolher u m em que gostasse de morar; em seguida, deveria tornar meu nome conhecido e mostrar aquilo de que sou capaz, para que fosse bem recebido e as pessoas se mostrassem interessadas no meu trabalho. (...) Quanto à parte do programa que diz respeito à escolha do país em que devo estabelecer-me, já resolvi, pelo menos de maneira geral. Este país é a Alemanha: estou seguro disso.
Começou então — na Alemanha, é claro — a verdadeira vida pública de Mendelssohn, uma vida que, em termos modernos, poderíamos qualificar de "militante", inteiramente consagrada ao desenvolvimento da música em seu país e à defesa da música alemã. Diretor, em Düsseldorf, do Festival das Regiões do Baixo-Reno e logo depois regente orquestra do Gewandhaus de Leipzig, Mendelssohn revelouse não apenas um excelente regente, como também um programador de grande ousadia. Graças a ele, os concertos para piano de Mozart saíram do esquecimento e voltaram a ter lugar certo nas salas de audição, com ele quase sempre no piano; também Beethoven e Weber eram regularmente programados. Além disso, ao rea-
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lizar todo um trabalho em favor do oratório, que ressurgia sob luz inteiramente nova, Mendelssohn fez com que fossem redescobertas as grandes obras de Haendel (O Messias, Israel no Egito, etc.) e promoveu a audição de Die Schõpfung [A criação] e de Die Jahreszeiten [As estações] de Joseph Haydn. Envolvido pela grandeza do gênero, compôs ele próprio dois grandes oratórios, Paulus (1836) e depois Elias (1844). Sempre devoto da música de J. S. Bach, fez novamente ouvir a Paixão segundo São Mateus, dessa vez no mesmo lugar onde se dera a primeira audição, na igreja de São Tomás em Leipzig. Teve a idéia inovadora de promover recitais consagrados à obra para órgão de Bach, nos quais pôs seu talento e paixão de intérprete a serviço da música do cantor. Tocar o Concerto para três cravos de Bach (inclusive com Liszt é Hiller, numa das vezes) era para ele um prazer. Dessa forma, impôs-se uma nova concepção do "concerto histórico", que deve ser vista não como mérito menor de Mendelssohn, pois revelava o sentido de encadeamento da história da música (a preocupação com a historicidade é uma característica do romantismo) ao imenso público alemão. Particularmente, Mendelssohn já fizera coisa parecida a pedido de Goethe: "Antes do meio-dia, devo passar uns momentos tocando para ele no piano diferentes peças de grandes compositores, em ordem cronológica, e explicar-lhe como elesfizeramprogredir a arte." O conhecimento e o amor pela música do passado em nada impediram Mendelssohn de cultivar, com a mesma convicção, a música de seu tempo. Foi ele quem revelou ao mundo, em 1839, a pedido de Robert Schumann, que lhe entregou a partitura, a Grande sinfonia em dó maior de Schubert. Foi ele quem, em 1844, deu a primeira audição da Sinfonia n° 1, de Robert Schumann e, pouco tempo depois, do Concerto para piano, com Clara Schumann como intérprete. Foi Mendelssohn, finalmente, que recebeu Berlioz e pôs uma orquestra à disposição deste para que regesse, em Leipzig, a Sinfonia fantástica. Dividido entre Leipzig e Berlim — onde teve de aceitar, em 1841, o cargo de Kappelmeister do rei da Prússia —, Mendelssohn interrompeu suas constantes viagens a Londres, onde sempre eram esperadas com entusiasmo suas novas obras (a Sinfonia escocesa teve sua primeira audição, naquela cidade, em 1842, e Elias em 1846). Com tantas atividades, Mendelssohn nem sempre conseguiu levar uma vida familiar harmoniosa. Em 1837, casou-se com Cécile Jeanrenaud, filha de um pastor francês emigrado. Teve, desse casamento, cinco filhos. Homem de ação, Mendelssohn conseguiu, após três anos de luta, a permissão para fundar um conservatório de música em Leipzig, cuja abertura foi por ele presidida em 1843. Nesse conservatório, compartilhou com Schumann a cadeira de composição, além da de piano. Já o curso de violino ficou a cargo de seu amigo Ferdinand David, a quem Mendelssohn, no ano seguinte, dedicaria o Concerto para violino opus 64, fruto de cinco anos de trabalho, escrito de forma tão violinis¬ ticamente atenta à glória e às possibilidades do instrumento que haveria de permanecer, para sempre, como uma das jóias mais valiosas do repertório violinístico.
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Sobrecarregado de trabalho, o compositor, em suas raríssimas horas de recolhimento, entregava-se à composição de pequenas peças para piano. Oito volumes de Lieder ohne Worte [Canções sem palavras] foram assim preparados ao longo de anos: são folhas de álbum e cadernos de recordações que transcendem poeticamente o cotidiano (seis deles foram publicados a partir de 1832, sob a responsabilidade do compositor, e dois postumamente). O encanto dessas peças, essencialmente melódicas — cuja primeira coletânea, publicada em Londres, aparece com o sugestivo título de Original Melodies for the Pianoforte, melhor traduzido para o francês com o nome de Mélodies sans paroles—reside, em grande parte, na diversidade sempre renovada de que Mendelssohn dá prova, na riqueza da invenção temática e na beleza dos temas românticos, longos, mas flexíveis. A despeito da utilização relativamente nova de formas curtas, os Lieder ohne Worte nem por isso fazem de Mendelssohn um inovador no plano das estruturas e da linguagem. Foi, talvez, em outras obras, como as Variações sérias opus 54 (1841), obra de escrita extremamente densa, que Mendelssohn liberou o melhor de sua imaginação para o instrumento de sua predileção. Com o passar dos anos, as composições começaram a rarear e o trabalho sinfônico diminuiu. A última sinfonia de Mendelssohn, conhecida como Lobgesang, data de 1840. Em compensação, a música de câmara manteve-se bem viva: entre outras obras, destacam-se o Quinteto para cordas em si maior opus 87, de 1845, e o Quarteto para cordas emfá menor opus 80, de 1847, sendo este o sexto e o mais pungente da série dos belíssimos quartetos compostos por Mendelssohn em vinte anos. É um quarteto de conteúdo trágico, escrito sob o impacto da dor sentida com a notícia da morte súbita da irmã mais velha, em 14 de maio de 1847. Fanny, educada junto com ele, tão dotada para a música quanto ele, tivera de renunciar, por motivos familiares, à profissão de musicista. Seu próprio irmão, a despeito do amor que lhe tinha, contribuíra pessoalmente para dissuadi-la disso ao inserir em sua obra alguns Lieder compostos por ela, que assinou com seu próprio nome. A perda de Fanny, que veio após as mortes do pai e da mãe de ambos, significou para Mendelssohn o desaparecimento da imagem dele mesmo, a extirpação definitiva da lembrança de uma infância encantada. Mendelssohn não sobreviveu a isso. Morreu seis meses depois, em 4 de novembro de 1847, de um ataque cerebral idêntico ao que matara a irmã, como se fosse preciso deixar bem claro o papel de duplo que desde a infância Fanny e Felix haviam representado um para o outro. Dias antes da morte de Mendelssohn, o violinista Joseph Joachim havia tocado magníficamente seu Concerto para violino. Foi a última alegria de uma vida plenamente realizada. A despeito da evidente beleza das maiores obras de Mendelssohn, elas não desempenharam o papel determinante para o avanço e a renovação da música em sua época. Em compensação, as ações e tomadas de posição de Mendelssohn mostraram-se decisivas para o desenvolvimento da música na Alemanha. Decerto, seus
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dotes de melodista, sua ciência da escrita musical, sua enorme cultura sobre o passado nutriram uma obra de rara perfeição, emocionante pela idéia que a anima. Mas o élan vital de Mendelssohn foi antes de tudo sua vida, a defesa de suas convicções e a força de seus compromissos. Conseguiu fazer da vida uma obra. E nisso foi também um romântico. Estas duas atividades estão intimamente ligadas e são inseparáveis.
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ROBERT SCHUMANN (1810-1856)
Quando era adolescente, Robert Schumann gostava de que o chamassem de Faust ou de Doppelgãnger, dupla alusão poética e musical ao universo de Goethe e de Schubert, dupla e clara referência ao romantismo, duplo recurso ao fantástico e, secundando todo esse caráter dúplice, estranha consciência do sentimento que, ao ingressar na idade adulta, se traduzirá para Schumann numa angustiante divisão interna entre duas vocações: ser poeta ou ser músico. Depois de ter optado pela música, prossegue a divisão, entre duas assinaturas: Eusebius, "o terno", ou Florestan, o "selvagem", personagens distintos que se revezam (e às vezes aparecem simultaneamente) encobrindo a assinatura de Robert Schumann, compositor e crítico musical. Problemas psíquicos surgidos relativamente cedo e a loucura dos últimos anos — que exigiu internação em asilo psiquiátrico — completam o sombrio quadro romántico-romanesco da vida do compositor, acentuado por um longo episódio de amor apaixonado e contrariado, cujo objeto, a virtuose do piano Clara Wieck, enfim tornou-se sua mulher e mãe de seus oito filhos. "Eu era uma criança feliz, era todo poesia", escreveu Schumann certa ocasião à noiva, ou ainda: "Minha educação foi objeto dos mais atentos cuidados." O meni1
Que significa "o duplo espiritual" e é o título de um Lied de Schubert, com poema de Heinrich Heine, o penúltimo do ciclo de Lieder intitulado Schwanengesang (O canto do cisne]. (N. T.)
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no mimado pelas musas acabou louco, mas deixou uma obra irredutível a qualquer outra e marcada pelo signo da luta. * * *
Nascido em 8 de junho de 1810, em Zwickau, pequena cidade na Saxônia, Robert Schumann foi o benjamim de uma família com cinco filhos: Lichter Punkt (Raio de Sol) era o apelido com que a mãe o chamava. O pai, August Friedrich, de uma família originária da Turíngia, era livreiro de profissão, mas foi também o tradutor de Byron e de Walter Scott para o alemão. A mãe, Johanna Christina Schnabel, filha de um cirurgião, era musicista amadora de bastante talento. Com nove anos, Robert divertia-se ao piano fazendo retratos e caricaturas musicais. Numa viagem a Carlsbad, teve oportunidade de ouvir o pianista Moscheles e pediu que lhe dessem um piano. No colégio, logo se notou seu indiscutível talento musical, mas também que ele era uma criança dada a sonhar e a divagar, firmemente convicta de que um dia seria um homem célebre. A força da imaginação caracterizava o jovem Schumann, que não tardou a fundar uma orquestra com seus colegas de classe, ao mesmo tempo que criava uma sociedade literária: com sua orquestra, deu espetáculos públicos e, na intimidade do lar, estava sempre tocando piano a quatro mãos. A adolescência de Schumann foi marcada por um drama familiar que teria sérias conseqüências sobre seu psiquismo: o suicídio de Émile, sua única irmã e a mais velha dos cinco irmãos. Robert tinha dezesseis anos quando seu pai morreu, um ano depois da irmã. Nessa ocasião, começou a escrever seu diário íntimo: "Você não é escrito para ninguém, somente para mim." Embora tenha, mais tarde, chegado a qualificar o diário de "espelho da vaidade", continuou assim mesmo a escrevê-lo, compartilhando-o com Clara, sua mulher, depois do casamento, pelo resto da vida, até pouco antes de perder a lucidez. "A extrema juventude conhece aqueles instantes em que o coração não pode encontrar aquilo que deseja, pois, obscurecido por uma inexprimível Sehnsucht, não sabe o que procura. É qualquer coisa de mudo e de sagrado, em que a alma pressente sua felicidade quando o adolescente interroga sonhadoramente as estrelas" (Diário, 1827). Nesse texto, observam-se duas palavras-chaves: aspiração (Sehnsucht) e interrogação, os dois pilares sobre os quais repousa a aventura criadora e espiritural de Schumann. O pai de Schumann, atento aos talentos do menino, já pensava fazer dele um músico. Chegara mesmo a entrar em contato com Carl Maria von Weber, mas este não quis ficar encarregado da educação musical de Robert. Viúva, desejosa de uma carreira mais rentável e segura para o filho, Johanna Schumann convenceu-o a fazer estudos de direito, que Robert Schumann iniciou em Leipzig em 1828. No ano seguinte, prosseguiu seus estudos em Heidelberg, para, em 1830, interrompê-
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los e retornar a Leipzig, decidido finalmente, não sem dramas familiares, a ser pianista e a tornar-se aluno de Friedrich Wieck, famoso professor e pai de uma pianista prodígio, Clara, então com onze anos. Dos anos de adolescência, Robert Schumann guardou vasta cultura literária (os clássicos gregos, Byron, Schiller, Johann Paul Richter, Hoffmann e, mais tardiamente, Goethe) unida a uma sólida cultura musical (Mozart, Haydn, Ries, Moscheles, Beethoven e Schubert, a quem, no verão de 1828, escreveu uma carta jamais enviada). Havia, então, produzido muita coisa no plano literário e relativamente pouca no musical (oito polonaises paia piano a quatro mãos, alguns Lieder). "Refrescado pela brisa de uma vida nova", como ele na ocasião se descreve, Robert submeteu-se docilmente à autoridade de Wieck, mas logo sobrevieram novas inquietações: deveria ser pianista ou tornar-se compositor? "Não penso ser apenas um virtuose", confidenciou a sua mãe. Pouco tempo depois, solucionaria o problema de maneira tão pessoal e definitiva que até nos autoriza a indagarmos em que medida seu inconsciente não se encarregara de resolver para ele a questão. Tantos foram seus desesperados esforços para desenvolver a técnica pianística, que acabou por prejudicar seriamente dois dedos da mão direita. Durante meses, esperou em vão pela cura. Após 1832, as esperanças de uma carreira de virtuose esvaíram-se. "Minha vida começa no momento em que pude ver claramente dentro de mim e avaliar meu talento, quando resolvi consagrar-me à Arte, a única via que me permite usar meu potencial", escreveu ele a Clara, tempos depois. A arte, para Schumann, estava dali por diante ligada exclusivamente à composição. Condenado como instrumento para execuções virtuosísticas, o piano, nem por isso, deixaria de ser o primeiro mediador na via que levou Schumann à composição: 29 obras escritas para piano ao longo de nove anos (1830 a 1839). Depois vieram o Lied, a música de câmara, a música sinfônica e, por fim, as grandes obras líricas. Todo o processo da criação em Schumann desenvolve-se por sucessivas ondas, que se vão sempre avolumando.
A época do piano (1830-1839) Companheiro de infância, ou símbolo de vingança contra o objeto que significa a esperança de realização profissional, e símbolo do ser amado (Clara), o piano reinou sozinho no início da carreira do compositor. Se Schumann houvesse morrido aos trinta anos, seria conhecido apenas como compositor para piano. (Mas, se houvesse morrido com 31 anos, na idade de Schubert, teríamos já a revelação de seus mais belos Lieder.) Variações Abegg opus 1, Papillons opus 2, Toccata opus 7, Davidsbündlertãnze [Danças dos Companheiros de Davi] opus 6, Estudos sinfônicos opus 13, Carnaval opus 9, Fantasia opus 17, Kinderszenen [Cenas infantis] opus 15, Novelettes opus 21, Kreisleriana opus 16, etc. — obras que atraem a atenção do público e que, de uma só vez e com toda a força, se impõem a ele, inovadoras
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tanto na harmonia, como por sua opção pela brevidade. "Divirto-me em encontrar formas novas. Por sinal, já há um ano e meio domino completamente meus recursos; parece que consegui penetrar em muitos mistérios" (carta a Clara, 1838). Como escreveu Oliver Alain: A música de Schumann nasce já armada em uma complexidade espontânea do ponto de vista harmônico, polifónico, rítmico e dinâmico. Esta música é de longe a mais rica de sua época em acontecimentos diversos no instante musical. [...] No piano, Schumann rivaliza facilmente com Chopin, seja no plano da originalidade das idéias, seja no da beleza das disposições sonoras.
Um compositor como Alban Berg captou aclmiravelmente a riqueza da linguagem schumanniana para o piano, como mostra a análise que fez de Rêverie — em alemão Trâumerei [Devaneio], uma das Kinderszenen, em seu explosivo artigo de 1920 sobre A impotência musical da nova estética de Hans Pfitzner. "Tão altivo quanto o Doge de Veneza em suas núpcias com o mar, celebro pela primeira vez minha união com o mundo, que representa, em toda a sua extensão, o universo e a pátria do artista." Palavras românticas por excelência, que Schumann endereçou à mãe por ocasião da pubücação de seu opus 1, as Variações Abegg. Filho romântico de Beethoven por aquele desejo de uma apreensão cósmica de sua missão e irmão do "üuminado" Franz Schubert, Robert Schumann declarou: "A música é o que nos permite ter contacto com o Além (...). A música nos ajuda a entrar dentro de nós, a descobrir a divindade que em vão procuramos na vida e da qual temos uma sede insaciável." O livro de Marcel Beaufil sobre a música para piano de Schumann tem como epígrafe esta frase de E. T. A. Hoffmann em suas Kreisleriana (título de que Schumann se valeu para designar a obra que sempre foi sua preferida): "A música abre ao homem um mundo desconhecido que nada tem de comum com o dos sentidos e no qual ele abandona os sentimentos usuais para perder-se numa indefinível nostalgia." A comunhão de pensamento entre Hoffmann e Schumann é evidente. Tanto para um como para outro, a arte é a busca apaixonada de uma transcendência. Quando se expressa com palavras de poeta, Schumann tem consciência de que é um romântico e, como músico, também está consciente disso. Sua música para piano teve origem nesses anos de tensão interior. Segundo Schumann, ela devia unir o contínuo ao descontínuo, fazendo nascer o contínuo no descontínuo. "É o reinado do Intermezzo", como espirituosamente disse Roland Barthes. Ela cria as próprias formas, a maior parte das vezes sem referência às grandes formas clássicas, faz do ritmo um elemento essencial da escrita e comporta uma aceleração constante. Mas, como escreveu Schumann a Clara, "o romantismo não está só na forma; se o compositor for poeta, ele também irá expressar-se como tal. Um dia, vou provar tudo isso a você com minhas Kinderszenen!' Com efeito, ele deu à última
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dessas peças um título explícito: Der Dichter spricht [O poeta fala]. O compositor, portanto, se vê como um poeta, um Tondichter [poeta dos sons], para usar a expressão de Beethoven. No começo de sua vida de compositor, o piano foi o instrumento que melhor permitiu a Schumann reunir em sua pessoa aquela dupla aspiração de realizar-se na música e na poesia. Ao longo da vida, o piano continuou a ser para Schumann o lugar em que ele se voltava para si e olhava para seu interior, o lugar onde se dava sua confrontação solitária com seus duplos e seus demônios, o recinto sagrado onde, ao fim de um combate único, devia concretizar-se em profundidade a unidade do homem e do criador.
*• * * A explosiva efervescência criadora desses nove anos repetiu-se em outros setores das atividades de Schumann. Aluno de piano de Friedrich Wieck, e de teoria e composição de Heinrich Dom (diretor da Ópera de Leipzig e antigo aluno de Zelter, que também fora professor de Mendelssohn), Robert Schumann, sempre em busca da unidade interior, pôs seus pendores literários a serviço da música. Inicialmente, foi redator do periódico Allgemeine Musikalische Zeitung. E já nessa época, fazia entrarem em cena Eusebius e Florestan, assinando artigos em que se envolvia com paixão e subjetividade, como aquele, sobre o opus 2 de Chopin, que ficou famoso — "Senhores, tirem os chapéus, um gênio!" — e que lhe custou muitos aborrecimentos e o emprego na conceituada publicação. Três anos mais tarde, com apoio de amigos e de muitas personalidades do mundo musical, Schumann fundou sua própria revista: Neue Zeitschriftfür Musik [Nova revista de música], cujo primeiro número foi publicado em 3 de abril de 1834. Durante os dez anos seguintes, boa parte de seus esforços foram dedicados a ela. Schumann desejava que fosse uma revista combativa ("aquele que não ousa atacar o que é ruim não sabe defender o belo") que tivesse por finalidade divulgar os mestres do passado, ajudar os músicos a expressar-se e incentivar os jovens em sua luta. Sob pseudônimos (como o de Raro encobrindo o nome de Wieck ou o de Felix Meritis, usado por Mendelssohn), a revista reuniu músicos que, no espírito de Schumann, pertenciam ao Davidsbund [Liga dos Companheiros de David], cuja missão era desferir um "golpe mortal nos filisteus da música". Esta sociedade mítica inspirou o título da última peça do Carnaval, a Marcha dos Companheiros de David, bem como o das Davidsbündlertãnze [Dança dos Companheiros de David]. Como sucedera com os amigos das Schubertíadas e com os Irmãos Serapion que se reuniam em volta de E.T.A. Hoffmann, ou ainda com a Sociedade da Harmonia de Carl Maria von Weber, o sonho de um ideal comunitário agora florescia ao redor de Schumann e se concretizava nos encontros realizados no Kaffeebaum,
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uma taberna de Leipzig onde se reuniam os membros daquela pequena sociedade, formando uma família espiritual que tinha a arte como seu bem comum. Iniciada com o advento de Chopin, a carreira de crítico musical de Schumann, interrompida de 1844 a 1853, encerrou-se com o retumbante artigo intitulado "Novos caminhos", que revelava o nome de um novo compositor: Johannes Brahms. Já seriamente doente, Schumann ainda deu mostras de toda a sua força combativa em 1853. Foi este entusiasmo que, ao lado de suas qualidades de polemista, fizeram dele um dos mais importantes críticos musicais da história da música. Segundo Schumann, a crítica deveria "ressuscitar a mesma impressão causada pela obra original". Hoffmann foi o primeiro a abrir o caminho para aquele subjetivismo crítico que Schumann levaria à perfeição: "A vocação poética, juntamente com o refinamento da cultura e do julgamento musical, designam-no como promotor desta arte que a crítica veio a ser" (Boucourechliev). Schumann, com isso, não apenas resolvera um dos dilemas de sua adolescência, a sua "eterna divisão entre poesia e música"; também satisfizera sua primeira vocação, a de tornarse escritor. Mas, quando passou, a temer que seus trabalhos na revista pudessem impedi-lo de dedicar-se à composição, preferiu abandonar a revista. "O artista deve manter-se em equilíbrio com a vida, do contrário ele naufraga": este é um princípio schumanniano. A vida, porém, se encarrega de desequilibrar o artista. Após o acidente com a mão e a constatação de que jamais iria recuperarse ("Em mim, a música inteira é tão perfeita e viva que gostaria de respirá-la e, de repente, só consigo fazer isso com dificuldade, um de meus dedos ficou encavalado sobre o outro, é horrível", escreveu em uma carta a Clara), Robert Schumann mergulhou em grave crise depressiva. Nesse mesmo ano de 1833, quando estava fisicamente doente, perdeu um dos irmãos, Julius, e semanas depois perdeu também a cunhada Rosalie, mulher do irmão Karl, de quem gostava muito. Quase cinco anos depois, em 11 de fevereiro de 1838, escreveu a Clara: Na noite de 17 para 18 de outubro, de repente, ocorreu-me o mais aterrador dos pensamentos que pode passar pela cabeça de u m ser humano e que o C é u s ó envia como castigo: a impressão de estar perdendo a razão. Esta impressão apossou-se de m i m com tamanha violência que nada, fosse prece ou consolo, pilhéria ou ironia, parecia atingirme. E r a u m a angústia que me fazia sair de cidade em cidade e me tirava a respiração quando eu me dizia: e se v o c ê nunca mais puder pensar? Clara, quem se viu assim t ã o destroçado conhece todos os castigos, todas as dores, todos os desesperos deste mundo.
Schumann registrou em seu diário que, durante aquela "terrível noite", chegara a pensar em atirar-se pela janela. Teve que passar longas semanas descansando em Zwickau, na casa da mãe, para recuperar-se daquele primeiro e sério aviso. Nele, podemos hoje reconhecer os sinais prenunciadores da loucura que estava por vir.
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É verdade que Schumann fazia consigo mesmo um terrível jogo de escondeesconde. Fascinado pelo talento de Clara Wieck, a filha de seu professor, Robert emocionava-se com vê-la crescer, contando-lhe histórias fantásticas: "Eu penso em você, não como um irmão pensa na irmã, nem como um amigo em uma amiga, mas como um devoto pensa na Madona." Nessa época, Clara tinha treze anos. Ele combinava com ela encontros simbólicos: "Amanhã às 11 horas em ponto estarei tocando o adágio das Variações de Chopin. (...) Rogo-lhe que faça a mesma coisa, para que nossos espíritos se encontrem" (22 de maio de 1833). Mas sem querer ver claramente o que estava se passando dentro dele, ficou noivo de outra jovem pianista, mais próxima dele em idade, Ernestina von Fricken, para quem escreveu o Carnaval opus 9, "Pequenas cenas construídas em cima de quatro notas". Estas quatro notas—A S C H, pela notação alemã — correspondem tanto ao nome da pequena cidade de Ernestina, como às letras do nome de Schumann. O pai de Ernestina, o barão von Fricken, deu a Schumann um tema musical de sua autoria, a partir do qual foram compostos os Estudos sinfônicos opus 13. Assim, imaginação e força acham-se associadas a duas obras capitais, originadas na atmosfera de um noivado que Schumann haveria de romper no ano seguinte. A partir de então, Clara tornou-se o centro de sua vida: "Ernestina não ignora que usurpou, no meu coração, o lugar que, antes de eu a ter conhecido, já te pertencia." O convívio de Schumann com Clara não tardou a ser proibido pelo pai da moça. Teve início um período de afastamento forçado de Clara, com a relação reduzida à troca de cartas em segredo, a um noivado às escondidas, em meio a desespero e dor na longa e difícil luta contra Friederich Wieck pela conquista de Clara. Foram quatro anos infernais (1836 a 1840), de esperanças alternadas com sofrimentos, que deixaram suas marcas na música então criada por Schumann, inteiramente centrada em Clara. Em 1833, com a Sonata emfá sustenido menor opus 11, dedicada a Clara Wieck, Schumann ainda acreditava poder conciliar seu lirismo singular com o quadro formal herdado do passado. Mas em pouco tempo este seria posto à prova. Como escreveu Olivier Alain, "os moldes clássicos parecem aqui prestes a se dissolver sob a rebelião da inspiração lírica e fantástica, onde a consciência do tempo humano, do destino individual, choca-se contra as paredes erguidas pelo classicismo em sua ambição de intemporafidade". O fato de Schumann ter dado o nome de Fantasia a uma obra grandiosa (opus 17,1836), concebida como uma homenagem a Beethoven, mas dedicada a Franz Liszt, indica a que ponto chegava o seu desejo de fazer explodir este enquadramento formal, embora ainda tendo como referência a forma sonata. Schumann, aliás, pôs a seguinte observação no alto da partitura: "Interpretar de maneira que você volte àquele infeliz verão de 1836, em que renunciei a você. (...) Ela é um longo grito de amor dirigido a você" (carta a Clara, 1839). As Kreislerianas opus 16, de 1838, trazem o mesmo subtítulo de Phantasien: são peças curtas, compostas em quatro dias, enquanto Schumann esperava por uma
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carta de Clara, dentro do mesmo espírito alucinado que havia inspirado a Fantasia opus 17. "Música extraordinária, às vezes louca, às vezes sonhadora. (...) Em algumas das páginas há um mundo verdadeiramente selvagem" (carta a Clara). O conteúdo cria a forma, o universo fantástico de Hoffmann toca o ponto mais íntimo das visões poéticas de Schumann, criando-se a novidade da forma musical. Esses anos que Schumann viveu à espera de Clara foram ricos em encontros e em novas amizades. Por intermédio da revista e da calorosa amizade que o ligava a Mendelssohn, então diretor da orquestra de Gewandhaus de Leipzig, Schumann travou relações com Liszt, Chopin e, pouco tempo depois, com Berlioz. Em 1838, foi a Viena com o duplo objetivo de lá instalar sua revista e, ao mesmo tempo, pôrse longe dos olhos do pai de Clara. Foi nessa ocasião que encontrou o irmão de um músico que lhe era dos mais caros, Schubert. ("Dele, só falei à vontade com as árvores e as estrelas") E foi na casa de Ferdinand Schubert que Schumann descobriu numerosos manuscritos de Franz Schubert, cuja Grande Sinfonia em dó maior, até então inédita, trouxe consigo ao voltar para Leipzig. Mendelssohn, que estava à frente da orquestra, promoveu a primeira execução dessa obra no ano seguinte, a pedido de Schumann. Esta decepcionante estada na pouco hospitaleira Viena inspirou a Schumann, em 1839, o seu segundo Carnaval, o Faschingsschwank in Wien [Carnaval de Viena] opus 26, onde a Marselhesa, eco denunciador de toda forma de censura, ressoa como um desafio. Com esse segundo Carnaval, encerrava-se bruscamente a primeira fase das composições de Schumann para o piano. O
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Em 1840, o ano de seu casamento com Clara Wieck, realizado em 12 de setembro, Schumann compôs 138 dos 248 Lieder que constituem a coleção completa de suas obras para vozes e piano. Como não traçar um paralelo entre este comportamento novamente explosivo e as alegres perspectivas de um casamento que enfim se tornara possível? O piano, instrumento do eu schumanniano, projeta-se com força na direção da voz e pretende, sem perder sua identidade, a ela unir-se da maneira mais íntima possível. Era preciso, portanto, encontrar no texto a base das estruturas comuns aos dois parceiros fundidos numa única expressão. Essa será a característica do Lied schumanniano. Segundo Olivier Alain, Schumann "faz do Lied um sutil poema verbo-musical, onde a voz é apenas uma linha de cumeada altamente significativa, enquanto o piano cria uma atmosfera de densidade psíquica, mais tarde só atingida por Mussorgski ou por Debussy em Pelléas". Na felicidade, o canto se liberta, a melodia reclama seu direito à expressão individual; é o próprio Schumann que se vê invadido pelo canto: "Gostaria, como o rouxinol, de cantar ao morrer." Na unidade do par piano-voz está também a unidade do duplo desejo schumanniano de poesia e música, que jamais deixara de expressar-se. O eu exa-
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cerbado, que se imprimira durante os dez últimos anos nas composições para piano solo, explodia agora na perspectiva do casamento próximo e, em termos musicais, expressava a felicidade trazida por essa união antevista. Os poetas românticos passaram a ter encontro marcado com o Lied schumanniano: Heine (Liederkreis [Ciclo de canções] opus 24 e Dichterliebe [O amor do poeta] opus 48), Rückert (opus 37), Eichendorff (opus 40), Chamisso (Frauenliebe und Leben [O amor e a vida de uma mulher] opus 42), entre outros. Mas Schumann recorreu também a poemas de Schiller e, mais raramente, de Goefhe, bem como de poetas alheios à cultura germânica, como Shakespeare, Thomas Moore, Byron e até Andersen. A natureza, quase sempre fantástica, tem lugar primordial nos Lieder de Schumann: a natureza sombria e misteriosa do Reno com seus castelos, a do mar e das montanhas, Schumann as exalta em seus "Lieder de paisagem", nos quais a noite, eternizada por Novalis, constitui o elemento romântico por excelência, o elemento mágico e nebuloso. O "Lied de paisagem" e o "Lied de amor" revelam duas abordagens diversas: o primeiro traduz a angústia face à infinitude do universo e o segundo expressa a realização plena do amor de Clara e Robert. Rückert é o poeta preferido para os Lieder de amor, e é com Widmung [Dedicatória] que se abre o ciclo dos Myrten [Murtas], uma oferenda a Clara. Robert e Clara compuseram juntos Liebesfrühling [Primavera de amor] opus 27, e foi de Liebesfrühling [Primavera de amor], de Rückert, que foram extraídos os seis Lieder do Minnespiel opus 101. Em Eichendorff, Schumann reencontra o tema — tão caro a Goethe, a Novalis e, de maneira geral, a quase todos os românticos — da Wanderung, a vida errante nas estradas, a viagem, diretamente ligada à natureza e à noite. Foi ainda Eichendorff o inspirador do Einsiedler opus 83, dos Doze Lieder opus 39, a coleção em que se encontra Mondnacht [Noite de luar], de beleza sensual e quase tátil, da terra, das florestas e da brisa perfumada do Froher Wandersmann, uma das canções do opus 77. Schumann teve sua fonte de inspiração mais profunda no universo poético de Heinrich Heine. Grande foi a decepção do compositor por nunca ter encontrado o poeta, que sequer esboçou um agradecimento pelo atencioso envio do Liederkreis opus 24. Segundo Marcel Beaufil, os Lieder compostos com poemas de Heine "lançam sua luz singular sobre todo o Lied schumanniano", embora a maior parte deles seja pouco conhecida. É justamente o Liederkreis [Ciclo das canções] opus 24 que nos mostra os primeiros ensaios de Schumann no universo do Lied, em que já se define a técnica que confere a suas composições deste gênero aquele aspecto a um só tempo preciso e transparente, tão distinto da concepção schubertiana. Entre os Lieder com poemas de Heine, além do Liederkreis, é obrigatório mencionar o ciclo Dichterliebe opus 48 (1840), Fin Jüngling liebt ein Mãâchen [Um
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jovem amava uma moça], e, na coleção do Myrten opus 25, Du bist wie eine Blume [Você é como uma flor] e Lotus. Também com poema de Heine, Schumann compôs em 1852 um de seus últimos Lieder. Mein Wagen rollt langsam [Minha carruagem roda lentamente]. As primeiras realizações sinfônicas ( 1841 ) "Poucos acontecimentos, felicidade plena", anotou Schumann em seu diário, referindo-se ao ano de 1841. Foi, no entanto, um ano rico em acontecimentos de toda espécie. Desde o mês de janeiro o compositor trabalhava numa sinfonia, a primeira que compunha na idade adulta: nos anos de juventude em Zwickau houve uma tentativa, mas que não foi adiante. Em fevereiro ele anotou: "O esboço de toda a sinfonia ficou pronto em quatro dias. O esgotamento sobrevém às várias noites de insônia." A obra, cujo manuscrito foi revisto por Mendelssohn, estreou em 31 de março, na Gewandhaus, sob a regência do mesmo Mendelssohn, naturalmente. No mesmo programa, Clara, que se apresentava pela primeira vez em público depois do casamento, tocou Chopin, Mendelssohn e o Allegro opus 8 de seu marido. Foi a apoteose do casal de músicos. Uma vez terminada a Sinfonia n" 1 em si bemol opus 38, denominada Primavera, Schumann lançou-se imediatamente à composição da seguinte, que concebia como um monumento à memória do romancista e poeta Jean Paul Richter. Esta obra em ré menor, com o título de Fantasia Sinfônica, foi executada pela primeira vez em 6 de dezembro do mesmo ano, sempre na Gewandhaus, mas agora sob a regência de Ferdinand David. Retomada e refeita, a Fantasia Sinfônica se transformaria, dez anos mais tarde, na Quarta Sinfonia opus 120. Nesse intervalo e em intenção de Clara, Schumann pôs no papel os esboços de uma Fantasia para piano e orquestra, que em 1845 se tornou seu Concerto para piano e orquestra em lá menor opus 54, sem dúvida a obra mais famosa do compositor. Em I de setembro do mesmo ano, Robert e Clara festejaram o nascimento de sua primeira filha, Maria, de quem Mendelssohn foi padrinho. Oito filhos haveriam de nascer no lar dos Schumann entre 1841 e 1854. O último, Felix (sempre Mendelssohn!) veio ao mundo algumas semanas depois da internação do pai. O ano de 1841 encerrou-se com a presença de Liszt na casa dos Schumann. A emoção que Schumann sentira em descobrir e ouvir a sinfonia de Schubert talvez não seja estranha a esse súbito entusiasmo manifestado pela expressão sinfônica. Depois da sinfonia haver sido apresentada pela primeira vez em concerto, Schumann escreveu um importante artigo, afirmando que ela encarnava "o ideal da sinfonia moderna", com "seus tempos perfeitos, comparáveis a um romance de Jean Paul". Mas o entusiasmo não foi muito longo. Depois de alguns meses de fulguração neste domínio, Schumann esqueceu por alguns anos as sinfonias. o
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O ano da música de câmara ( 1842) Schumann estava absorvido por outro gênero: se 1840 fora o ano do Lied e 1841 o ano da sinfonia, 1842 seria o ano da música de câmara. É claro que este desdobramento da criação para além das fronteiras do piano resultava do desejo profundo de Schumann, bem como de alguns de seus contemporâneos, de contar com um meio mais amplo de expressão. "Tenho vontade de arrebentar meu piano" dizia ele: "Ficou muito limitado para mim!" Analisando as obras pianísticas do marido, Clara observou que elas já eram sinfônicas pela riqueza da harmonia. Quanto a Liszt, este estava sempre insistindo com Schumann para que passasse a escrever também música de câmara. Como de costume, Schumann se viu bruscamente tomado por uma febre de intensa atividade criadora. Iniciado em 4 de junho, o Quarteto para cordas n° 1 estava praticamente terminado no dia 10 do mesmo mês. O Quarteto n° 2 foi começado no dia 11 e concluído em 5 de julho. E no dia 10 desse mês o Quarteto n° 3 já estava em andamento. Ao todo, foram necessárias cinco semanas para que ficassem prontos os três quartetos agrupados no opus 41 de Schumann (Quarteto n° 1 em lá menor, Quarteto n° 2 em fá maior e Quarteto n° 3 em lá maior). Clara anotou em seu Diário: O dia 13 de setembro [aniversário de Clara] foi de alegria e prazer. M e u Robert me deu, de surpresa, uma quantidade de presentes. Mas os que mais me emocionaram foram os três quartetos que ele, de noite, mandou que tocassem em minha honra. [...] Todo aquele esplendor vindo do meu Robert, e para m i m ! Minha veneração pelo compositor que ele é só faz crescer a cada nova obra que escreve!
A febre continuou. O conhecido Quinteto com piano opus 44 foi escrito em seis dias no mês de setembro, e o Quarteto com piano opus 47 em mi bemol como o Quinteto, em cinco dias no mês de novembro. Também neste caso, o ato da criação talvez tenha sido fruto de um estímulo exterior, pois pode estar ligado ao fato de que, nessa ocasião, Schumann e Clara executavam constantemente no piano, a quatro mãos, os quartetos para cordas de Mozart, Haydn e sobretudo Beethoven. Além disso, estavam recém-publicados os Quartetos para cordas, de Mendelssohn, a quem Schumann logo iria dedicar os seus. A música de câmara, na qual imediatamente Schumann se mostrou mais à vontade do que na sinfonia, esteve dali por diante no centro de suas preocupações: Trios para piano e cordas opus 68 e 80, bem como pequenas peças para trompa opus 70, para clarineta opus 78, para oboé opus 94, em 1849; Trio para piano e cordas n° 3 opus 110 e duas Sonatas para violino, em 1851. O piano participa em todas essas peças. Schumann jamais retornou ao quarteto de cordas que tão fortemente ocupara todo um verão de sua vida.
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O projeto faustiano Depois da sinfonia e da música de câmara, Schumann se voltou para a ópera. Aliás, seria espantoso se este grande romântico não tivesse participado do sonho da ópera alemã, que abalara os meios musicais desde o aparecimento de Der Freischütz [O franco-atirador] de Carl Maria von Weber. Em 1843, com o oratório O paraíso opus 50, baseado em Thomas Moore, Schumann buscara uma primeira aproximação com o gênero lírico. Mas sonhava com Fausto. E abordou o grande mito goethiano pela última cena do Segundo Fausto, o chorus mysticus, no qual trabalhou febrilmente nos meses de junho e julho de 1844, entrando pelo mês de agosto, em que se encontrava em estado de saúde deplorável. As Cenas de Fausto só foram terminadas em 1853. Assim, embora com grandes intervalos, ocuparam dez anos da vida do compositor. Curiosamente, as primeiras páginas compostas, que são a quintessência do romantismo alemão, estão entre o que há de melhor em toda a obra do compositor. Talvez nunca Schumann tenha chegado a sublimar seus terrores através da criação como nos seus primeiros trabalhos para o Fausto. O ano de 1844 foi para ele, com efeito, um ano de dor e ruptura. Suportou muito mal a longa viagem a Rússia, que fez para acompanhar sua mulher em uma importante tumê artística naquele país: sofria por estar relegado a segundo plano, ignorado como compositor. Estava tão cansado que abandonou a direção da revista e ficou profundamente magoado porque não foi chamado para ocupar o cargo de diretor da Gewandhaus, que Mendelssohn deixara vago ao partir de Leipzig. Bruscamente, decidiu mudarse dessa cidade, instalando-se em Dresden. Ruptura altamente simbólica, que extirpou de sua vida a cidade de seus anos de estudos, a cidade de Clara, a cidade de sua revista, a cidade onde florescera sua amizade com Mendelssohn. *** Dali por diante, a saúde de Schumann deteriorou-se progressivamente. Com freqüência, o compositor enfrentou graves crises depressivas e sofreu de problemas físicos inexplicáveis, com certeza ligados a seu estado mental. Do ponto de vista psicológico, tornou-se uma espécie de errante que em vão procurava um lugar de paz neste mundo. Depois de 1846, decepcionado com Dresden, pensou em mudar-se para Viena ou para Berlim e, alguns anos mais tarde, instalou-se em Düsseldorf. Voltou-se então todo para a família, para os filhos (quatro dos quais nasceram em Dresden), compondo para eles em 1848 o Álbum para a juventude opus 68. Não parava de trabalhar um instante sequer. Em 1849 e 1851, anos extremamente fecundos, Schumann compôs em diversos gêneros ao mesmo tempo: dessa época em diante, piano, música de câmara e ópera aparecem misturados no catálogo de suas obras.
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Em 1845, em Dresden, Schumann terminou o Concerto para piano, que antes chamara de Fantasia e sobre o qual escreveu que era "qualquer coisa entre concerto, sinfonia e a grande sonata". No mesmo ano, começou uma nova sinfonia, travando através dela uma luta heróica contra a doença. A Sinfonia n° 2 em dó maior opus 61 ficou pronta em 1846. Schumann parece buscar então refugio no contraponto e no estudo assíduo da obra de Bach, inclusive compondo, ele próprio, Seis fugas sobre o nome de Bach opus 60 e os Estudos para piano de pedaleira opus 58. Nessa época, Wagner fez estrear em Dresden sua ópera Tannhãuser. Schumann, perplexo, emitiu julgamentos contraditórios a respeito. "Wagner não sabe escrever nem pensar além de quatro compassos", disse ao examinar a partitura; mas, depois da representação, seu julgamento mudou: "Quando se está sentado na platéia tudo ganha um sentido diferente. Fiquei inteiramente fascinado." Essa divisão de sentimentos dá mostras do drama interior que Schumann estava vivendo. Totalmente entregue ao contraponto para conter seus próprios demônios, como podia aceitar a liberdade wagneriana? Logo ele, que em outros tempos fora o homem que tomara tantas liberdades nas Kreislerianasl A morte quase súbita de Mendelssohn em 1847 foi para Schumann um golpe mortal, principalmente porque aquele fiel amigo se lhe afigurava como um símbolo representativo da harmonia entre a vida do homem e a vida do músico. Para defender Mendelssohn como compositor e também para defender seu próprio Quinteto, Schumann, certa vez, travara violenta discussão com Liszt, que estava de passagem em sua casa. O ideal de realizar a grande obra lírica ganhou para Schumann a dimensão de uma missão a cumprir: "A minha oração da manhã e da noite chama-se ópera alemã." Depois de Shakespeare (Hamlet), Hoffmann (Doge e dogaressa), Byron, Goethe, Racine e vários outros que lhe pareciam poder fornecer temas para a ópera, sua escolha recaiu sobre a lenda de Genoveva de Brabante, com libreto tirado dos dramas de Ludwig Tieck e de Friedrich Hebbel. A ópera Genoveva, opus 81, iniciada em 1847, ficou pronta no ano seguinte. Durante esse tempo, Schumann também trabalhou na música de cena para o Manfred de Byron (opus 115) e subitamente voltou à música de câmara, compondo duas obras de peso: os Trios para piano e cordas em ré menor opus 63 e emfá maior opus 80, nos quais de pronto reencontrou o clima e a febre que haviam animado o seu Quinteto. Nomeado diretor de uma importante sociedade coral, Schumann tomou a peito o trabalho e compôs diversas obras para o repertório dessa sociedade, assim transpondo para sua vida uma das características da vida de Mendelssohn. A deterioração nervosa que ia de par com sua dedicação encarniçada ao trabalho emprestava a este um componente trágico que acabaria por explodir em 1849, ano de pânico, mas descrito pelo próprio compositor como "um ano fértil". A fragilidade de Schumann combinou mal com o clima revolucionário que sacudiu a Europa em 1848. Quando estourou a insurreição em Dresden, no mês
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de maio de 1849, ele fugiu e refugiou-se no campo, ao passo que Wagner preferiu as barricadas. Nem por isso foi menor o ardor de Schumann no terreno da composição: pertencem a esse período as Quatro marchas para piano opus 76 (escritas entre 12 e 16 de julho) è as Marchas republicanas, "nascidas em um clima de verdadeiro entusiasmo", o mesmo que o faria musicar, sem qualquer hesitação, um poema de Freligrath — que era amigo de Marx e Engels — em defesa radical e extremada da república. Cerca de trinta números de opus, entre os quais incluem-se inúmeras obras para mstrumentos de sopro, datam desse ano de 1849, em que Schumann obteve consagração pública com as Cenas de Fausto, por fim concluídas por ocasião das cerimônias que comemoravam o centenário de nascimento de Goethe. Elas foram apresentadas sucessivamente em Dresden, Leipzig e Weimar, onde fizeram o encanto de Liszt. Jamais me senti tão ativo e feliz em minha arte. As d e m o n s t r a ç õ e s de simpatia que chegam tanto de longe como de perto me d ã o a sensação de que meu trabalho n ã o foi de todo em vão. Vamos tramando, fio por fio, u m tecido e acabamos incorporados a ele.
Infeliz em Dresden, Schumann aceitou uma proposta para o cargo de diretor musical em Düsseldorf, onde se instalou no final de 1851. Do impacto causado pelo retorno ao Voter Rhein, tão caro ao coração de todos os românticos, originou-se a majestosa Sinfonia Renana em mi bemol maior opus 97, composta em poucas semanas. No rastro dela, seguiu aquela sinfonia já antes esboçada, que veio a ser a Sinfonia em ré menor n° 4 opus 120, a última das que Schumann compôs. 1
Os últimos alvores Não tardou para que Schumann se sentisse pouco à vontade em Düsseldorf. Bem recebido na cidade, logo foi contestado como regente de orquestra. A situação tornou-se tão catastrófica que acabou resultando em sua demissão, em 1852, camuflada por um elegante acordo. Inquieta com o futuro, Clara começou a lecionar: pressentia que os sintomas de deterioração da personalidade, a que assistia impotente, não mais seriam passageiros. O mundo exterior estava fugindo de Robert Schumann e ele procurava as chaves de um outro universo: entregou-se por inteiro ao espiritismo, fazia girarem mesas e, fascinado e aterrorizado ao mesmo tempo, ouvia vozes que só a ele falavam. Schumann não deixou de compor em meio às angústias de um eu esfacelado: A peregrinação da rosa opus 112, para canto; Mãrchenerzãhlungen [Contos lendários] opus 132, para música de câmara, em que à clarineta é reservado importante
Em alemão, o Pai Reno, isto é, o rio Reno. (N. T.)
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papel. Em 1853, os Gesange âerFrühe [Cantos da alvorada] opus 133 — que,"antes de serem descrição pitoresca são expressão de um sentimento" — praticamente constituem suas últimas páginas, nas quais o piano torna a ser um confidente, como nos primeiros tempos de juventude. Estes Gesange der Frühe, Schumann os dedicou "à muito alta poetisa Bettina", vale dizer, a Bettina Brentano, que fora amiga de Goethe e de Beethoven; dias depois, entretanto, ele riscou a dedicatória no manuscrito e corrigiu: "An Diotima" ou seja, à heroína que, mesmo depois de louco, Hõlderlin continuou a adorar. A fronteira entre o real e o não-real fora ultrapassada, rompendo-se definitivamente o equilíbrio. Contudo, para celebrar a descoberta do jovem Johannes Brahms que veio bater-lhe à porta, Schumann retomou sua pena de crítico para fazer-se profeta e anunciar o gênio que estava por despontar na música alemã. Em janeiro de 1854, Johannes Brahms e o violinista Josef Joachim organizaram um Festival Schumann em Hannover: foi a última viagem do compositor, e sua última alegria. O mês de fevereiro foi povoado por delírios, com Schumann vivendo entre os anjos e os demônios de suas alucinações, ouvindo músicas ora sublimes ora aterrorizantes, e perseguido obsessivamente por uma nota única. Temendo fazer sofrerem os seus, pediu para ser internado, mas só o internaram depois de uma tentativa de suicídio: em 27 de fevereiro Schumann tentou atirar-se no Reno. Poucos dias depois, foi levado para o asilo de Endenich, perto de Bonn. Viveu ainda dois anos, às vezes compondo algumas coisas e fazendo viagens imaginárias através de um grande atlas. Clara Schumann só tornou a vê-lo quando ele estava agonizante. Morreu em 28 de julho de 1856.
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FRÉDÉRIC CHOPIN (1810-1849)
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Nascido em I de março de 1810 em Zelazowa-Wola, na Polonia, Frédéric Chopin é freqüentemente considerado como a figura mais representativa de um certo romantismo ao mesmo tempo arrebatado e doce, tumultuoso e efeminado. A ligação de Chopin com George Sand, sua frágil constituição física, a tuberculose que o vitimou e sua morte em plena juventude endossaram esta apreciação e contribuíram para fixar esta imagem. No entanto, apesar de Chopin habitualmente ser classificado entre os românticos, suas reticências com relação aos contemporâneos tidos como tal, seu apreço pela obra de Haendel, que afirmava ser a que mais correspondia ao seu ideal em música, e o fato de Bach e Mozart terem permanecido para ele como modelos privilegiados de perfeição, tudo isso põe em evidência a ambigüidade de seu temperamento e torna necessário reconsiderar seus procedimentos no terreno da composição. Os primeiros anos na Polônia (1810-1830) De mãe polonesa e pai francês, preceptor dos filhos da condessa Louise Skarmbek, Chopin nasceu na ala dos serviçais do castelo, mas teve uma infância mimada em um ambiente culto e educado. Os Chopin não tardaram a mudar-se para Varsóvia, onde Nicolas Chopin foi chamado a colaborar com o ensino de francês no liceu. E foi em Varsóvia que Chopin recebeu da mãe suas primeiras lições de piano, sendo em seguida confiado como aluno a Adalbert Zwyny, que lhe trans-
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mitiu a paixão por Bach e Mozart e descortinou no aluno imensas possibilidades musicais. Ao mesmo tempo que fazia seus estudos no liceu de Varsóvia, Chopin continuou a estudar piano. Em 1825, deu dois concertos presenciados pelo czar. Nesse mesmo ano, viu publicada pela maior editora de música de Varsóvia sua primeira obra, o Rondó n" 1 em dó menor, que ainda denota certa influência de Weber e de Hummel. Só depois de ter obtido o diploma do liceu ingressou no Conservatório de Varsóvia. Inscreveu-se no curso de harmonia e contraponto de Eisner, mas seu gosto pelas formas clássicas era apenas moderado. Os três anos que passou no Conservatório (1826-1829) coincidem com uma época de grande atividade criadora, mas já em conflito com o rigor formal do concerto e da sonata, as duas grandes formas da tradição musical clássica. No entanto, Chopin não deixou de esforçar-se, em suas primeiras obras, para pôr-se de acordo com o ideal clássico, mais talvez para satisfazer as exigências de seu professor do que por inclinação própria. Mas a mestria que revelou na composição dos dois concertos para piano escritos nessa época — o Concerto n° 1 em mi menor opus 11 e o Concerto n° 2 em fá menor opus 21 — fica de certo modo velada pela evidente inadequação da forma utilizada à natureza do projeto. O mesmo ocorre com a Sonata em dó menor opus 4, de 1828 e com seus ensaios de abordagem da música de câmara, com o Trio em sol menor para violino, violoncelo e piano. Nem a sonata nem o trio são obras muito marcantes. Em outras composições da mesma época, Chopin evitou retomar sua maneira de abordar a forma sonata, preferindo o virtuosismo da variação e do rondó. Com as Variações, Chopin até certo ponto.faz concessões ao gosto da época no que diz respeito ao procedimento da imitação, que põe à prova o virtuosismo do intérprete e do compositor; ele compõe então duas obras no gênero: as Variações sobre um tema alemão e as Variações sobre un tema de Don Juan, obra que mereceu de Schumann um artigo extremamente elogioso — "Tirem os chapéus, senhores, um gênio!" — publicado na revista Allgemeine Musikalische Zeitung. O Rondó à la Mazur opus 5 (1827) e o Rondó à la Krakoviak opus 14 (1828) testemunham uma evidente preocupação com reencontrar as raízes populares da música polonesa. Mas teria Chopin colhido diretamente nas fontes do folclore nacional? Bartók disse que não. Decerto Chopin conheceu, na infância, certo número de músicas populares com suas especificidades melódicas e modais, e sua correspondência do tempo de adolescência dá conta de um mundo de detalhes sobre manifestações musicais e festas da tradição popular que se desenrolavam às margens do Vístula. Mas também é certo que as formas musicais polonesas de que se iria valer em suas composições têm poucas transcrições etnográficas e muitas lembranças de temas que guardara na memória — as suas polonaises e mazurcas foram compostas em Paris, longe da terra natal. Por outro lado, Chopin recorreu a elementos do folclore musical polonês que não conheceu diretamente, mas que
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abordou através da interpretação de Kurpinski, Oginski e Weber. Com Chopin, no entanto, essas formas populares adquirem imensa expressividade: o fascínio que exerciam sobre ele as ambigüidades modais e rítmicas da música folclórica traduzia-se através das sutilezas harmônicas do piano. Dessa época datam as primeiras incursões do compositor neste universo formal: Polonaise em ré menor, Mazurca em lá menor, Noturno em mi menor, Valsa n° 3 opus 70. Em 1828-1829, Chopin faz suas duas primeiras viagens ao exterior: Berlim primeiro, depois Viena, Praga e Dresden. Conheceu então o repertório lírico da época: Der Freischütz de Weber, Fernand Cortez de Spontini, La Dame blanche de Boieldieu, Il crociato in Egitto de Meyerbeer, La cenerentola de Rossini. De volta a Varsóvia, deu seu primeiro grande concerto público em 17 de março de 1830 no Teatro Nacional, obtendo enorme sucesso e a estima da crítica. Depois disso, começou a preparar-se para uma longa viagem de estudos e aperfeiçoamento no estrangeiro. A insurreição polonesa e a chegada a Paris Em 2 de novembro de 1830, Chopin deixou Varsóvia a caminho de Viena, sem suspeitar que jamais retornaria a sua pátria. A insurreição nacional polonesa explodiu em Varsóvia no dia 29 do mesmo mês. O primeiro impulso de Chopin foi voltar à Polônia, mas deixou-se dissuadir da idéia por causa da saúde, que já não era boa. Em julho de 1831, deixou Viena rumo a Paris. Durante a viagem, em Stuttgart, recebeu a notícia do esmagamento da insurreição, da queda de Varsóvia e do saque da cidade pelas tropas russas. Escreveu então, para si próprio, algumas páginas trágicas. O desespero patriótico levou-o a fazer uma pungente indagação sobre si mesmo. Não há muitos textos que se assemelhem a esses nos escritos de outros músicos: Sinto-me paralisado; para que serve minha existência? Entre os homens, n ã o valho nada, pois me faltam pernas e garganta. (...) Matematicamente, resta-me muito pouco para confraternizar com a morte. (...) O h Deus, tu existes? Sim, tu existes e n ã o nos vingas! Será que já n ã o chegam todos os crimes dos moscovitas? O u , quem sabe, tu mesmo n ã o és u m deles? (...) A h , por que n ã o me foi dado matar pelo menos u m desses moscovitas? (...) Estou aqui parado, de m ã o s vazias, apenas soltando de vez em quando u m suspiro, desabafando meu desespero no piano. De que serve isso? Deus, meu Deus, faz tremer a Terra, que ela devore os homens deste século!
Pouco depois desse desabafo Chopin compôs o Estudo em dó menor opus 10 n° 12, conhecido como Estudo revolucionário — música sem precedentes, em que Schumann pôde ouvir "canhões escondidos sob flores". No final de setembro de 1831, Chopin chegou a Paris, onde as simpatias pela revolução polonesa eram muito mais fortes do que na Viena de Metternich.
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E, salvo os intervalos de suas curtas temporadas fora da cidade, lá viveu até a morte, dezoito anos mais tarde. Desde o primeiro momento, sentiu-se perfeitamente à vontade no mundo parisiense, em que reinava um certo clima de liberdade, para não dizer de libertinagem: logo foi adotado e bajulado por toda a elite culta da época e passou a ganhar a vida dando aulas de piano para jovens de sociedade. No seu primeiro concerto na Sala Pleyel, em fevereiro de 1832, tocou no fim do programa suas Variações sobre um tema de Don Juan: o sucesso consagrou-o, e a aristocracia dali por diante concedeu-lhe todos os créditos. A vida mundana e algo sofisticada que passou a ter por alguns anos em nada prejudicou suas atividades no campo da criação. De certo modo, até favoreceu seu encontro com alguns músicos famosos, como Rossini e Cherubini. De todos os encontros que teve nessa fase, o que se revelou mais decisivo foi o que o aproximou — graças a Ferdinando Paër, então diretor do Théâtre des Italiens — do virtuose alemão Kalkbrenner, o inventor do "guia das mãos". Tratava-se de um método pelo qual o antebraço era forçado a ficar apoiado sobre uma barra fixada na frente do teclado, para que, imobilizado, não interferisse no trabalho, executado exclusivamente pelas mãos. Chopin tornou-se aluno de Kalkbrenner, mas não por mais de um mês, pois a idéia de imitar alguém lhe era insuportável. Encorajado por seus amigos Liszt e Hiller, bem como por Mendelssohn (de passagem por Paris), e também consciente de suas possibilidades, deu-se conta de que não tinha mais necessidade de professor e desenvolveu sua própria técnica pianística.
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tribuir plenamente para a instauração do piano moderno. A tão buscada autonomia de cada dedo (voltada para conservar a independência de cada som), a utilização exaustiva de todos os registros do teclado, de modo a explorar tão sistematicamente quanto possível o universo sonoro — todos esses elementos permitem pôr em evidência e concentrar em um único instrumento as variadas riquezas orquestrais. Os Doze estudos opus 10, dedicados a Liszt, que foi extraordinário intérprete dessa obra, exploram todas as possibilidades do instrumento, de sua execução e, conseqüentemente, de suas potencialidades harmônicas e polifónicas. A curva muito particular que Chopin dá aofraseadomelódico faz com que ele se revele a nós sobretudo como melodista. Na verdade, em Chopin a melodia tem duas raízes: a primeira é o bel canto italiano, que lhe chegou diretamente através dos espetáculos de ópera italiana ou que ele conheceu através de transcrições para piano feitas por compositores como Field, Hummel, Spohr, etc.; a segunda é o folclore polonês. Assim, embora a melodia seja fundamentalmente diatónica, a harmonia de Chopin de certo modo mascara o diatonismo melódico pela infiltração, por exemplo, de ornamentos cromáticos. Em seu ensaio sobre Chopin, Liszt se refere a este elo muito estreito entre o aspecto fortemente tonai da melodia e o cromatismo da harmonia: Devemos a Chopin a extensão dos acordes, sejam plaqués,
arpejados ou em bateria,
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aquelas sinuosidades cromáticas e enarmônicas das quais suas páginas oferecem exemplos tão surpreendentes, aqueles pequenos grupos de notas justapostas que caem como gotas de u m orvalho matizado sobre a figura m e l ó d i c a .
A escrita pianística Se o piano teve um papel determinante na démarche dos músicos românticos, com Chopin, mais do que com os outros, o instrumento adquiriu uma função específica no plano da expressividade. Chopin não se limitou a uma forma musical particular. Cultivou diversos gêneros, mas foi ao piano que confiou, quase exclusivamente, sua imaginação criadora, fazendo desse instrumento seu modo de expressão musical por excelência. Em seu ensaio sobre Chopin, Liszt insiste no fato de que "ao encerrar-se no quadro exclusivo do piano, Chopin (...) mostra possuir uma das qualidades mais essenciais a um escritor: a justa avaliação da forma em que lhe é dado brilhar". Por sua maneira de tratar o piano, não só pela literatura que compôs, como pela interpretação característica que dela resultava, Chopin revolucionou a técnica pianística usual. Muito significativos com relação a isso são seus Estudos. Escreveu o primeiro deles com dezenove anos, depois de ter ficado vivamente impressionado com Paganini — o que, por sinal, não aconteceu apenas a ele, mas também a Schumann e Liszt — quando ouviu o, violinista na passagem por Vajsóvja. Embo¬ ra os Estudos sejam obras da juventude, compostos entre 1828 e 1833, nem por isso deixam de concluir a revolução pianística esboçada por Beethoven e de con-
Embora tal fluidez do movimento harmônico só fosse aplicável a "pequenas formas" — e é isso o que justamente define o caráter da música de Chopin —, ela se acha inseparavelmente ligada à sua escrita pianística. A interpretação de Chopin apresentava um colorido que lhe era próprio e contribuía ainda mais para dar conta da ambigüidade da escrita. Embora preferisse tocar diante de um pequeno círculo de amigos e não em concertos públicos — depois de 1835, ele chegou a ficar por vários anos sem apresentar-se em público —, Chopin, segundo Liszt, "dava um encanto todo especial àquela trepidação de que sempre se valia para fazer ondular a melodia, como um barquinho flutuando por cima de uma onda colossal." Nos seus escritos, Chopin designava "aquilo que dava um refinamento particular a seu toque pela indicação tempo rubato, isto é, tempo roubado, entrecortado, medida flexível, abrupta e lánguida a um só tempo, vacilante como uma chama ao sopro que a agita". *** 1
Antiga designação dada ao arpejo quebrado, como os do baixo Alberti. (N. T.)
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Em 1835, Chopin foi informado de que seus pais iam fazer uma estação de cura em Carlsbad: seguiu para lá, e a família reunida saboreou as alegrias de um encontro depois de cinco anos de separação. De volta a Paris, passou por Dresden, onde reviu a família Wodzinski e reencontrou já moça feita Maria Wodzinska, que conhecera quando era ainda bem menino em Varsóvia. Os dois jovens passaram juntos alguns dias, numa mtimidade de velhos amigos, mas, depois que partiu de Dresden, tendo dedicado a Maria a Valsa em lá maior n° 1 opus 69, conhecida como Valsa do adeus, Chopin sentiu que nutria pela moça mais do que simples amizade. Antes de chegar a Paris, passou por Leipzig, onde encontrou Mendelssohn e conheceu Schumann, seu admirador de longa data. Foi no final desse ano que uma primeira hemoptise iria revelar a tuberculose que o ameaçava seriamente e que nunca deixou de progredir, apesar de alguns períodos de trégua. O falso rumor de sua morte chegou até a Polônia. No ano de 1836 concluiu a Balada n° 1 em sol menor opus 23. Sua saúde estava um pouco melhor. No verão, reencontrou os Wodzinski em Marienbad e depois em Dresden. Ficou noivo de Maria, mas a família exigiu que o noivado permanecesse secreto. Com efeito, o projeto de casamento não foi adiante, não só por força das diferenças sociais, mas também porque a mãe de Maria ficara alarmada com a saúde do pretendente: os conselhos de higiene que ela deu a Chopin em várias cartas o comprovam. Sobre o envelope do maço de cartas de Maria Wodzinska e de sua família, Chopin escreveu estas palavras em polonês: "Moja hieda" [Minha infelicidade], e jamais se conformou. Registre-se, no entanto, que as pesquisas para a recente edição da Correspondência de Chopin afastaram qualquer dúvida sobre a inautenticidade das supostas cartas de amor que Chopin teria dirigido à condessa Delphina Potocka. Esta foi uma de suas melhores e mais fiéis amigas, que esteve ao seu lado até no leito de morte. Mas, se houve alguma ligação amorosa entre os dois, ela não deixou vestígio, pelo menos por escrito. A presença de George Sand De volta a Paris, Chopin conheceu George Sand, que lhe foi apresentada no inverno de 1836-1837 por amigos comuns, Liszt e Marie d'Agoult. A primeira impressão que teve dela foi negativa e chegou mesmo quase a evitá-la por algum tempo. Por outro lado, no outono de 1837, perdeu completamente as esperanças em relação a Maria. Em outubro de 1837, foi publicado o segundo volume dos Estudos, dedicado à condessa d'Agoult. No final de junho de 1838, teve início a ligação de Chopin com George Sand. Bastante breve, talvez, no que toca ao fogo inicial do desejo, haveria de durar oito ou nove anos, até a ruptura final, precedida por várias crises. Não demorou muito para que George Sand se transformasse em maternal enfermeira
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do amante doente. Ela lhe propôs uma temporada nas ilhas Baleares, esperando que isso fizesse bem à sua saúde, e os dois chegaram a Maiorca em novembro de 1838. Lá, apesar da hostilidade da população e do clima úmido, que ele suportou mal no mosteiro de Valdemosa, onde se hospedaram, Chopin trabalhou bastante: concluiu os 24 Prelúdios opus 28 (publicados em setembro de 1839) que são um dos pontos altos de sua obra, bem como a Balada em fá maior, a Polonaise em dó menor e a Polonaise em lá maior. Além disso, trabalhou no Scherzo n° 3 opus 39, na Sonata em si bemol menor opus 35 e nos Noturnos em sol menor e em sol maior. É interessante notar o tratamento que nessa fase Chopin passou a dar à sonata, uma obra que mostra a plena maturidade do compositor: a Sonata opus 35, dita Fúnebre por causa da Marcha fúnebre do terceiro movimento procede exclusivamente "por dissonâncias, de dissonâncias em dissonâncias". O estado de saúde de Chopin continuou a agravar-se. Depois de nova hemoptise, o compositor deixou Maiorca com George Sand e os filhos dela em meados de fevereiro de 1839. Só se restabeleceu realmente em Marselha. Em seguida, foram todos para a casa de George Sand em Nohant, onde passaram o verão. Dessa época em diante, Chopin viveu na companhia de George Sand, geralmente passando o inverno em Paris e o verão em Nohant. Em Nohant, concluiu os mais belos de seus últimos Noturnos. Esse gênero fora criado em 1814 pelo irlandês John Field (1782-1836), que fez a maior parte de sua carreira na Rússia. Mesmo que o noturno fosse um gênero novo para o próprio Chopin e que houvesse sido por ele explorado já nas primeiras obras, nem por isso deixa de ser, mais do que qualquer outra forma, característico da atmosfera tão própria do compositor. Através do noturno e graças à sua arte do apenas esboçado, do velado, ele pôde evocar o crepúsculo de sua Polônia. Durante os anos que se seguiram, até 1846, Chopin compôs muito: a Balada n° 2 opus 38, duas Polonaises opus 40, três Mazurcas opus 50, a Barcarolle opus 60. Entretanto, sua saúde estava cada vez mais frágil, e a morte do pai em 1844 emocionou-o enormente. Por outro lado, em 1846, a amizade afetuosa que substituíra a paixão entre ele e George Sand ficou seriamente abalada pela publicação do romance Lucrezia Floriani, de Sand, em que a heroína morre de pesar por causa do ciúme e da ingratidão do amante. Chopin fingiu não ter percebido a intenção, mas em segredo sofreu profundamente com isso. Sua tomada de posição em favor da filha de George Sand contra a mãe precipitou a ruptura definitiva em 1847. No dia 16 de fevereiro desse ano, ele deu seu último concerto na Sala Pleyel.
*** Quando começaram em Paris os primeiros choques que desencadeariam a Revolução de Fevereiro de 1848, Chopin partiu para Londres, mais para fugir de seu
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passado do que para pôr-se ao abrigo da agitação. Em Londres, foi bem recebido pela aristocracia, mas o clima da cidade não lhe fez bem e logo retornou a Paris. O inverno de 1848 esteve longe de ser calmo. Doente, em situação financeira desastrosa, Chopin quase não compôs mais. A Mazurca em sol menor n° 2 opus 67 e a Mazurca em fá maior n" 4 opus 68 foram suas últimas obras. Luisa, a irmã, veio da Polônia para ficar à sua cabeceira até o dia 17 de outubro de 1849, em que Chopin morreu em Paris. Funerais solenes lhe foram feitos na igreja da Madeleine. Ele foi enterrado no cemitério do Père Lachaise, mas o coração, a seu pedido, foi levado para a igreja da Santa Cruz de Varsóvia. Essa última vontade demonstra o quanto sofreu por ter vivido longe de seu país, identificando seus próprios sofrimentos com os da pátria oprimida. Entretanto, como a Hungria de Liszt, a Polônia constitui para Chopin uma espécie de símbolo mítico, não tanto da terra natal, mas principalmente da solidariedade humana sob a opressão e a violência. Liszt, em seu ensaio, escreveu: "Chopin poderá alinhar-se com aqueles primeiros músicos que souberam individualizar em si mesmos o sentido poético de uma nação."
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FRANZ LISZT (1811-1886)
O artista vive solitário. O que quer que faça, onde quer que vá, jamais deixará de ser um exilado. (...) O artista, hoje, vive fora da comunidade social; pois o elemento poético, quer dizer, o elemento religioso da humanidade, desapareceu dos governos modernos. O que teriam para oferecer a u m artista ou a u m poeta aqueles que acreditam resolver o problema da felicidade humana estendendo alguns privilégios, aumentando desenfreadamente a indústria e o bem-estar egoístico? (...) A arte social n ã o existe mais, ou ainda não existe. O que mais vemos atualmente? Músicos? N ã o . Fabricantes de música. Por toda parte artesãos, em nenhum lugar artistas. E u , menos que qualquer outro, dizem-me sempre, tenho o direito de fazer tais queixas, pois desde minha infância o sucesso em muito ultrapassou meu talento e meus desejos. Mas foi justamente em meio ao rumor dos aplausos que, tristemente, pude convencer-me de que, bem mais que ao sentimento do verdadeiro e do belo, quase todo sucesso se deve ao acaso inexplicável da moda, à autoridade de u m nome famoso, a uma certa força na execução.
Franz Liszt publicou este texto num artigo na Gazette Musicale em 16 de julho de 1837. Foi, paradoxalmente, o músico mais admirado e o mais solitário de seu tempo. A vida inteira permaneceu dividido entre o intenso desejo de solidão, de isolamento meditativo, e a adulação que o cercou. De espírito aberto e generoso ao extremo, Liszt não só concorreu para a evolução da música de sua época, com suas contribuições no plano da composição e da técnica pianística, como também, com a atenção que jamais deixou de dar às obras dos outros compositores, sempre promoveu a música "que então se fazia".
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O virtuosismo transcendente
Franz Liszt
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pin. Liszt reuniu todos estes recursos t ã o diversos numa síntese excepcionalmente rica. Ao refinamento acrobático da técnica, acrescentou u m a diversidade de coloridos e u m a
Franz Liszt nasceu em 22 de outubro de 1811 em Raiding, na Hungria. Embora húngaro, seu pai tinha sangue alemão (o nome anteriormente se escrevera List) e a mãe nascera na Áustria. Adam Liszt, contador e administrador do príncipe Esterhazy, era um melómano culto. Seu filho Franz pôde passar a infância em meio a uma atmosfera musical, onde as obras de Haydn eram ouvidas alternadamente com as de Mozart e Beethoven. Aos dez anos, ele foi com a família para Viena, onde teve Czerny como professor de piano. No dia 12 de abril de 1823 aconteceu o encontro, breve mas tão desejado, do pequeno Franz Liszt com Beethoven, que lhe predisse: você é um afortunado e fará a fortuna de outros. Nada mais belo do que isso! Mais tarde, os Liszt deixaram Viena e Franz deu concertos de piano que alcançaram enorme sucesso em Munique, Stuttgart e Strasburg. A família, por fim, acabou instalando-se em Paris, onde Franz viveu até 1835. Como o menino era estrangeiro, Cherubini não o deixou entrar para o Conservatório, mas ele passou a ter aulas de composição com Ferdinando Paër e de contraponto com Reicha. Logo foi notado e praticamente adotado pelo fabricante de pianos Sébastien Érard, que se tomou seu empresário em Paris e em Londres. Aos quinze anos, Liszt já era famoso como pianista. Foi nessa condição que Liszt se viu obrigado a questionar sua técnica quando, aos vinte anos, teve um choque: em 9 de março de 1831, ouviu pela primeira vez Paganini. Como Schumann e Chopin, ficou inteiramente fascinado. Para igualar no piano o virtuosismo do violinista, decidiu aplicar-se a novos estudos que^ o levariam a impor-se como virtuose sem rival em seu instrumento. Foi quase exclusivamente como intérprete que Liszt foi admirado por seus contemporâneos, mesmo na época em que já afirmara seu gênio de compositor. Mas, em suas próprias composições para o piano, desenvolveu a técnica tão particular que atingira para interpretar as músicas de seu repertório. O objetivo de Liszt era explorar todas as possibilidades do instrumento, não só desenvolvendo as qualidades naturais da mão, libertando-a de todas as amarras até então impostas ao dedilhado, como também devolvendo a liberdade de cotovelo, ombro e tronco, normalmente submetidos a uma rigidez paralisante. Além dessa sua concepção mais "corporal", mais "sensual" da execução, a técnica de Liszt permitia ampla exploração das possibilidades sonoras do piano, facultando-lhe criar, na expressão de Claude Rostand, um verdadeiro "piano orquestral". Oliver Alain escreveu: Liszt, em sua linguagem musical, procurou e encontrou o equivalente das principais conquistas sonoras dos compositores da época: o "canto ao piano" de Thalberg, os novos efeitos revelados pela acrobacia violinística de Paganini, o retorno cíclico dos temas, e s b o ç a d o pelos primeiros românticos, o esplendor do relevo orquestral descoberto por Berlioz, a densidade h a r m ô n i c a de Schumann, a s e d u ç ã o da sonoridade própria de C h o -
extensão na gradação da força sonora como, até então, jamais se haviam visto reunidas. (...) O virtuosismo lisztiano n ã o é e n ã o deve ser u m fim em si. É apenas u m meio a serviço de u m a i n t e n ç ã o sonora. De fato, temos de ver nele u m ponto de partida e n ã o de chegada.
Liszt começou a percorrer aos quinze anos essa trilha que o levaria cada vez mais longe. Datam de 1826 os Études en douze exercices [Estudos em doze exercícios] que, onze anos mais tarde, revistos e remanejados, se tornarão os Études d'exécution transcendante [Estudos de execução transcendental]. Nesses anos, no entanto, o itinerário pianístico foi mais fácil para Liszt do que o itinerário humano. Adaptado à mentalidade parisiense, Franz parecia regozijar-se com a vida mundana que levava nos salões da moda. Mas, por duas vezes, foi acometido de crises de misticismo: em 1827, na ocasião em que a morte brutal de seu pai levou tal crise ao paroxismo, e em 1829, quando não pensava em outra coisa senão fazerse padre. Entre uma crise e outra, em 1828, sucedeu um idilio amoroso entre Liszt e uma de suas alunas, condenado à desesperança pela fria oposição feita pelo aristocrático pai da moça. Amor divino, amores humanos, sucesso social, consagração às mais altas exigências de sua arte: toda a carreira de Liszt sofreu das contradições dessas quatro tendências que sempre se mostraram difíceis de conciliar, sem que jamais uma delas se sacrificasse inteiramente às outras. Da segunda crise mística de Liszt, "o canhão o curou", nas palavras de sua mãe: o canhão das Trois Journées Glorieuses da Revolução de Julho de 1830. Liszt viu nessa experiência o despontar de uma era revolucionária que o tiraria da apatia de sua vida mundana. Chegou a começar a compor uma sinfonia revolucionária dedicada a La Fayette; nunca chegou a concluí-la, mas alguns de seus fragmentos foram utilizados na Héroïde funèbre de 1850: Liszt jamais renegou qualquer coisa de seu passado. Em 1830, Liszt entregou-se avidamente à leitura de autores diversos: Voltaire, Lamartine, Montaigne, Chateaubriand, Saint-Beuve, Kant e principalmente Lamennais, que então conheceu e que o introduziu no meio intelectual e nos salões artísticos de Paris. Participando de um momento de intensa efervescência literária, Liszt sentiu-se atraído sobretudo pelas reflexões sobre a arte, que coincidiam com suas preocupações: as teses de Lamennais concernentes à inspiração social da revolução artística e as de Saint-Simon — cujo pensamento lhe foi apresentado por Félicien David, que conheceu em 1831 —, igualmente impregnadas de religiosidade, completavam-se segundo ele, no que dizia respeito ao estabelecimento de certo equilíbrio intelectual, religioso e artístico. A influência de Lamennais revelou-se maior e mais duradoura: em 1860, Liszt compôs uma Ode funèbre [Ode fúnebre] em sua memória. E na ocasião em que o Vaticano condenou as Paroles d'un croyant [Palavras
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de um crente], uma obra de Lamennais publicada em 1834, Liszt saiu em sua defesa: Singular cristianismo este de certas pessoas cuja pretensa m o d e r a ç ã o é, na verdade, um
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Como testemunham as cartas que escreveu a Marie d'Agoult, Liszt entregou-se a essa paixão com toda a veemência de seu romantismo e todo o misticismo que sempre foi nele uma permanente aspiração:
disfarce para a covardia. Cabe a n ó s atirar a primeira pedra nesse excelente padre que
Hoje, readquiri minha liberdade selvagem e minha i n d o m á v e l independência. N ã o me
consagra com sua língua de fogo a Liberdade e a Igualdade, esses dois grande dogmas da
vejo mais oprimido pelo fardo do passado, sinto-me libertado por u m misterioso ato de
Humanidade? (...) Somente de Deus espero minha libertação, e os tempos ainda n ã o
minha vontade. Por muito tempo, sofri, lutei e hesitei. Eis-me vitorioso e livre. (...) E u
chegaram. Minhas c o n v i c ç õ e s n ã o s ã o muitas: acredito u m pouco na minha obra e m u i -
n ã o poderia suportar por muito mais tempo o que outros chamam felicidade. Minha
to em Deus e na Liberdade.
vida iria parecer-me intolerável. (...) Se n ã o a l c a n ç a m o s a felicidade, é que talvez possamos valer mais do que isso. H á demasiada energia, demasiada paixão, demasiado fogo
Os acontecimentos políticos e sociais também não deixavam de comovê-lo: no outono de 1834, Liszt escreveu Lyon, uma peça para piano inspirada na insurreição do operariado das fábricas de seda de Lyon, e a dedicou a Lamennais. A permeabilidade de que Liszt dá mostra com relação a qualquer influência artística vai de par com um cosmopolitismo dos mais enriquecedores. Se é verdade que sua primeira formação musical estivera quase toda centrada na música "clássica" austro-alemã (Bach, Mozart, Beethoven) e que ele se mostrou extremamente receptivo à atmosfera romântica alemã emanada de Weber, por outro lado não é menos verdade que, para ele, foram determinantes tanto o movimento literário dos românticosfranceses(sobretudo o que foi capitaneado por Victor Hugo, com quem comungava em ideal e que encontrava freqüentemente), como as influências que recebeu de Chopin e de Berlioz. Liszt aparece antes de tudo como um pesquisador, sempre insatisfeito e disposto a mudar em qualquer ocasião de sua vida, pronto para receber qualquer ensinamento que pudesse enriquecer-lhe o horizonte musical. Os Estudos de Chopin o fizeram remanejar seus exercícios compostos na juventude, que se transformaram nos Estudos transcedentais. E, à luz das suas longas conversas com Lamennais — que então desenvolvia a tese da complementaridade, na arte, do social e do sagrado, e via em Liszt a encarnação do novo artista, comprometido com uma causa e dotado de fé — as opções estéticas de Liszt adquiriram um conteúdo dos mais inovadores, precursor das teorias do século XX: insurgindo-se contra a tese da "arte pela arte", Liszt julgava que a arte não é umfimem si, mas um meio que deve ser utilizado para a comunicação entre os homens. Em 1833, Liszt encontrou-se, na casa de Chopin, com a condessa Marie d'Agoult, cujo salão literário era um dos mais freqüentados pela intelectualidade parisiense. Logo nasceu entre ambos uma tal paixão que Marie d'Agoult, como que lançando um desafio à boa consciência moralista e burguesa da época, abandonou o lar para ir viver "irregularmente" com Liszt. Em agosto de 1835, fugiram para a Suíça, onde a ilegalidade da situação dos dois foi motivo de escândalo e praticamente os afastou do convívio social. A ligação que mantiveram durou mais de dez anos, passando por períodos alternados de alegria, serenidade e discórdia.
em nossas entranhas para que nos instalemos como burgueses no impossível. (...) A eterna sede da sede (Ewiger Durst nach Durst) h á de me consumir eternamente.
Não surpreende que as preocupações religiosas não tenham abandonado Liszt. Em 1833, ele compôs Pensées des morts [Pensamentos dos mortos], e em 1834 empreendeu um trabalho teórico, basicamente um estudo sobre a música religiosa, para a Gazette Musicale. No mesmo ano, iniciou a composição de uma peça, a primeira dos três volumes que se chamariam Années de pèlerinage [Anos de peregrinação], uma espécie de diário íntimo do compositor, em que ele relata as impressões de viagem colhidas nos diversos países por que passou. Na época em que o sistema tonai não era deliberadamente questionado, músicas como as de Chopin, Berlioz, Liszt e evidentemente Wagner evidenciam um deslocamento progressivo da tonalidade, devido em grande parte à infiltração da modalidade, que tende a libertar-se das algemas do classicismo. Desde as suas primeiras obras, Liszt manifesta a multiplicidade de suas preocupações no plano melódico e harmônico. Ao longo de seu trabalho, por diversos meios, ele questionou o sistema tonai. Dessa maneira, suafrasemelódica é alternadamente tonal, modal, cromática e atonal. Se é verdade que até o fim da vida Liszt continuou a escrever obras fundamentalmente tonais, é também certo que, pelo menos uma vez, ele quis conscientemente abolir a tonalidade: Bagatelle sans tonalité [Bagatela sem tonalidade, 1885]. Os anos que se seguiram foram de certa estabilidade. A ligação com Marie d'Agoult, bastante mal recebida pelas classes bem-pensantes, passou a ser aceita depois do nascimento de três crianças: Blandine (1835-1863), Cosima (1837¬ 1930) e Daniel (1839-1859). A vida de família, às vezes algo enfadonha, era propícia ao trabalho intelectual, tanto de composição como de reflexão teórica. Em 1837, durante uma temporada na casa de George Sand em Nohant, Liszt fez as transcrições das sinfonias de Beethoven para piano a quatro mãos e arranjos de Lieder de Schubert só para piano, desenvolvendo uma escrita pianística fundada em extremo virtuosismo. O virtuosismo técnico era uma aspiração característica da época, fosse pela preocupação de explorar sistematicamente os recursos do instrumento, fosse porque, através do instrumento, expressavam-se as exacerbações do Ego. Esta intenção está latente nos Études d'exécution transcendante.
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Foi a partir dessa época que Liszt começou a fazer um trabalho de prospecção das novas músicas, esforçando-se por promover o trabalho de seus colegas, não só. no plano da composição, mas também no da publicação de textos teóricos relativos à estética. Em 1837, por exemplo, escreveu um dos primeiros artigos em francês para a Gazette Musicale, sobre a música para piano de Schumann. Entre 1849 e 1855, fez publicar uma série de artigos sobre as obras de Richard Wagner {Tannhãuser, Lohengrin, Der Fliegende Hollander, Das Rheingold). Em 1852, foi a vez de um verdadeiro ensaio sobre a estética musical em Chopin. Em 1839, Liszt instalou-se com os seus em Roma, mas, cansado das restrições da vida de família, mandou Marie d'Agoult para Paris com as crianças. Estava trabalhando no segundo volume de Années de pèlerinage, consagrado à Itália (o primeiro havia sido dedicado à Suíça) e inspirado tanto em obras de arte como nas paisagens naturais. Depois de sua separação — que nada tinha ainda de definitivo — da condessa d'Agoult, Liszt retomou a carreira de virtuose, que de certa forma abandonara sem a ela renunciar de todo. Deu, então, uma série de concertos em Viena e Presburg, onde obteve enorme sucesso, e foi recebido em Peste e em Raiding, sua aldeia de origem, como herói nacional. Esta "volta à terra natal" teve de fato um papel de grande importância: depois de dezesseis anos de ausência, reencontrou a atmosfera fascinante de sua infância e do folclore dos ciganos húngaros. Dedicou-se então à composição das Melodias populares húngaras e do poema sinfônico Hungaria. Liszt foi um dos primeiros compositores a incorporar o modo cigano à sua música, mesmo que, no início, o utilize de forma intimamente ligada à evocação da Hungria. Mas, à medida que evolui seu pensamento criador, Liszt retira-lhe o invólucro folclórico para conservar apenas o que constitui verdadeiramente um elemento da escrita, abstração utilizada como parte integrante da arquitetura da composição que, até certo ponto, prefigura a técnica de empréstimos de Stravinski. Ao prosseguir em sua carreira de virtuose, Liszt inovou no que diz respeito a certos aspectos do concerto: foi, por exemplo, o primeiro pianista a dar recitais de piano solo e a tocar de cor. Durante anos percorreu a Europa inteira, fazendo sempre imenso sucesso. No outono de 1840, recebeu a visita de Richard Wagner, mas alguns anos iriam se passar até que os dois voltassem a encontrar-se. A carreira internacional, que doravante seria a sua, favoreceu a redescoberta da cultura germânica. Liszt passou a escrever em alemão, embora não utilizasse esta língua desde os dez anos. Durante as férias da família na ilha de Nonnenwerth, no rio Reno, em 1841, Liszt entregou-se à leitura dos poetas alemães (Goethe, Heine, Scliiller, Uhland, etc). Este retorno às fontes coincidiu com sua nomeação para o cargo de Kapellmeister extraordinário em Weimar, por decreto do grão-duque Karl Friedrich em 2 de novembro de 1842. Em 1841, Liszt fora admitido numa loja maçônica de Frankfurt.
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Em 1844, consumou-se a ruptura entre Franz e Marie, por iniciativa desta, cansada das numerosas aventuras de Liszt. Com o nome de Daniel Stern, Marie d'Agoult começou uma carreira literária e publicou, em 1846, o romance Nelida, no qual se vinga de forma rancorosa do antigo amante. Liszt permaneceu impassível. Em 1847, escreveu a "Daniel Stern": "Digam as bobagens que quiserem, minha vida tem uma única linha, que ninguém há de mudar."
O desabrochar em Weimar A vida errante, ainda que triunfal, não bastava a Liszt, que aspirava "romper sua crisálida de virtuose" e queria atingir maior fecundidade criadora, longe de tanta agitação. Por ocasião de um recital na cidade de Kiev em 1847, conheceu a princesa Carolina de Sayn-Wittgenstein: ela tinha oito anos a menos que ele, era instruída, inteligente, vibrante, autoritária. Católica fervorosa, mostrava-se decidida a lançar mão de todos os recursos para ter seu casamento anulado pelo tribunal do Vaticano e desposar aquele que seria seu único amor. Liszt se viu inteiramente seduzido e conquistado pela "sua amazona mística": só ela poderia ajudá-lo e estimulá-lo para que sefizessea sua tão desejada evolução criadora. Em 1848, o novo casal (provisoriamente irregular) instalou-se em Weimar. Liszt, que até então só passava três meses por ano naquela cidade, era agora Kapellmeister do teatro da corte local e, nessa condição, viveu em Weimar por dez anos decisivos, em que chegou à realização plena de sua dimensão como compositor e como homem. Nessa fase de sua vida, Liszt compôs uma série de poemas sinfônicos, fiel àquela exigência do romantismo, que sempre quis as inspirações literária e musical, procurando "uma renovação da música através de uma aliança mais íntima com a poesia, (...) um desenvolvimento mais livre e, por assim dizer, mais adequado ao espírito da época". As inspirações literárias de Liszt vão ser Victor Hugo para Ce qu'on entend sur la montagne [O que se ouve na montanha, 1848-1849] e Mazeppa (1851), Byron para Tasso, Herder para Prometeu (1850), Joseph Autran (e não Lamartine) para Os prelúdios (1854), Schiller para Os ideais (1857) e Shakespeare para Hamlet (1858). Outras obras, no entanto, como Orfeu (1854), não possuem qualquer fonte literária, e, para a Batalha dos hunos, Liszt foi buscar inspiração em um quadro do pintor Kaulbach (1857). "Musica de programa?" Sim, mas não descritiva, apenas narrativa: "O programa", escreveu o próprio Liszt, "não tem outro fim senão o de fazer uma alusão prévia aos motivos psicológicos que levaram o compositor a criar sua obra e que estão incorporados nela." No plano formal, este primado do psicológico permite uma liberdade maior de estrutura e de conduta, bem como o uso mais diversificado dos instrumentos da orquestra. Liszt aproveitou-se da carta branca que obteve em Weimar para difundir a música de seus contemporâneos, demonstrando mais uma vez sua generosidade sem
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limites. O primeiro e o principal beneficiario dessa disposição foi Richard Wagner, proscrito da Saxônia e de toda a Alemanha depois do fracasso da revolução de Dresden em 1849. Uma excepcional amizade irá unir os dois compositores, cujos encontros foram, de início, bem raros, mas cuja correspondência é tão entusiasmada quanto volumosa. Liszt fez tudo o que estava ao seu alcance para socorrer Wagner financeiramente e para que a música deste fosse ouvida. Em 1849, regeu Tannhauser com enorme sucesso, e o mesmo se deu com Lohengrin em 1850. Mas Wagner não foi o único a quem deu seu apoio. Em 1852, foi a vez da ópera Benvenuto Cellini, de Berlioz; em 1854, de Alfonso und Estrella, uma ópera de Schubert pouco conhecida e caída no esquecimento; em 1855, Genoveva, de Schumann. Esta espécie de apostolado mostra-se tanto mais meritória, quanto não estava nos planos de Liszt qualquer tipo de retribuição. Em 1857, escreveu a Wagner: Vários amigos bastante í n t i m o s , Joachim por exemplo, e antes Schumann e mais alguns outros, mostraram grande reserva e desconfiança, quase hostilidade, em relação às m i nhas c o m p o s i ç õ e s musicais. Nem por isso deixarei de estimá-los ou vou tratá-los da mesma forma, pois suas obras sempre despertaram em m i m o mais vivo e g e n u í n o i n teresse.
Liszt dedicou a Schumann a Sonata para piano em si menor, concluída em 1853, "partitura de uma originalidade e de uma inspiração estarrecedoras, construção audaciosa e livre, na qual está resumido todo o gênio de Liszt" (Claude Rostand). E a Berlioz dedicou a Faust-Symphonie [Sinfonia Fausto], escrita entre 1853 e 1854 e complementada tempos depois com um coro final. Fora através de Berlioz que, em 1830, Liszt descobrira o Fausto de Goethe na tradução de Nerval, antes mesmo de o haver lido no original. O mito de Fausto, que perseguiu tantos músicos românticos — desde Beethoven e Weber, cujos projetos não foram concluídos, até Schumann, Berlioz, Wagner e outros —, não poderia deixar Liszt indiferente. A temática faustiana sempre constituiu para ele uma exploração privilegiada do universo mítico. Mas, contrariamente a outros românticos, Liszt não compôs uma ópera sobre Fausto (ou um oratório, como Schumann), mesmo que essa tenha sido sua primeira intenção. Ele conseguiu expressar a Stimmung faustiana através da forma sinfônica, na qual sentia-se perfeitamente à vontade, dando livre curso à sua imaginação lírica pelo estudo sucessivo de três personagens: Fausto, Gretchen e Mefistófeles. Depois da Faust-Symphonie e da Sonata para piano, compôs uma obra para órgão em 1854: Fantasia efuga sobre o nome de Bach. A recusa de Liszt a limitarse a uma única forma musical prova sobretudo sua preocupação de manter-se aberto ao fenômeno global da música, imerso em um universo sonoro único, independentemente de suas formas de expressão. Se é verdade que seu fantástico talento pianístico fez com que ele fosse um incansável pesquisador dos recursos do instrumento, também é verdade que a mul-
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tiplicidade das formas musicais e dos instrumentos que abordou dá mostras de uma grande inquietude intelectual. Este aspecto da démarche de Liszt é reforçado pela enorme atenção que deu à música popular (fonte renovada de enriquecimento de seu universo sonoro), aos compositores do passado (cujas obras constituíam para ele não só um terreno para a análise crítica, mas também um campo de possibilidades para novas criações) e aos músicos de seu tempo (que ele jamais cessou de divulgar). Em Weimar, Liszt continuou desenvolvendo grande atividade musical. Além de suas funções no teatro, dava cursos de piano, órgão, harpa e até trombone. E deu prosseguimento tanto a seu trabalho de compositor—a Dante-Symphonie [Sinfonia Dante], dedicada a Wagner, foi concluída em 1856, e a Missa de Gran é de 1855 — como à sua obra teórica: trabalhou em seu ensaio sobre Chopin ao mesmo tempo que preparava uma obra intitulada Sobre os ciganos e sua música na Hungria, publicada em 1859. Apesar das controvérsias suscitadas por este texto, ele permanece fundamental; não se trata de uma obra de arqueologia musical, e Liszt tinha da música folclórica de seu país uma visão subjetiva, parcial e inexata. Compositores como Bartók e Kodály iriam levantar-se, no século XX, contra tal concepção. No entanto, Liszt, ao incorporar o folclore a seus procedimentos, foi dos primeiros a não considerá-lo como uma simples fonte de inspiração, e sim como algo que trazia a possibilidade de enriquecer o próprio ato criador. Em seu livro, Liszt teria querido "compor uma espécie de epopéia nacional da música cigana", assimilando música húngara e música cigana. Quanto ao fato de as Rapsódias húngaras não serem húngaras, mas ciganas, a própria obra dá preciosas indicações em relação a isso e permite compreender a razão que levou Liszt a adotar esta forma musical: "Por rapsódia, queremos designar o elemento fantásticamente épico que acreditamos encontrar nesta música." Tratava-se, portanto, de encontrar uma forma que correspondesse de maneira muito precisa à atmosfera nacionalista exaltada pela grande epopéia vivida nos anos de dominação estrangeira e de revolução. As dezenove rapsódias compostas entre 1846 e 1855 apresentam um interesse particular do ponto de vista da composição. Primeiro compositor a utilizar o "modo cigano" como princípio de composição, Liszt tomou da música cigana a escala, a rítmica, a arte de ornar e as particularidades sonoras de instrumentos como a clarineta, o violino e o zimbalão. A partir de 1856-1857, certas preocupações começaram a pesar. A princesa Carolina estava sempre às voltas com novos obstáculos à anulação de seu casamento, e a boa sociedade mostrava seu descontentamento com a irregularidade prolongada de sua ligação com Liszt. Além disso, uma intriga armada pelo novo intendente do teatro de Weimar levou Liszt a pedir demissão de seu posto em 18 de dezembro de 1858. Por fim, Liszt percebeu claramente que não estava obtendo, como compositor, os mesmos sucessos que obtinha como virtuose. Em carta a uma jovem amiga, datada de 1859, escreveu:
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Se, quando me estabeleci aqui, em 1848, tivesse querido juntar-me ao partido da m ú s i c a "defunta", (...) com as relações que tinha, nada me seria mais fácil. Mas n ã o era o que o destino me reservara: minhas convicções eram sinceras demais, m i n h a fé no presente e no futuro da arte era ardente demais, e ao mesmo tempo positiva demais, para que eu pudesse me submeter às vãs fórmulas de censura de nossos pseudoclássicos que se esmeram em gritar que a arte está se perdendo, que a arte está perdida.
O abade Liszt e a música do futuro A fé de Liszt na "música do futuro" veio acompanhada pela retomada de seu misticismo. Em 1856, ainda na condição de leigo, Liszt se tornou irmão terceiro da Ordem de São Francisco. Foi essa a época em que compôs as grandes obras sacras que sucedem à Missa de Gran: em 1856, concluiu o Salmo CXXVJIe as Beatitudes que constituirão a segunda parte do oratório Christus (1867); em 1858, fez o primeiro esboço para o oratório Die Legende von der heiligen Elisabeth [A lenda de Santa Isabel], terminado em 1865; em 1859, pôs-se a trabalhar na Missa choralis. A princesa Wittgenstein, a essa altura, já havia deixado Weimar para estabelecer-se em Roma, onde multiplicava suas cliligências junto ao Vaticano. Em outubro de 1861, tudo parecia arranjado, e Liszt foi reunir-se a ela para o casamento. Na última hora, no entanto, o papa exigiu novo prazo para um último exame do processo de anulação. A partir daí, a princesa, enquanto fumava enormes charutos e escrevia sem parar dezenas de alentados volumes, entregou-se por inteiro à teologia e à sublime espmtualidade. Liszt a visitava com freqüência. Depois de 1863, no entanto, ele se retirou para o convento da Madonna del Rosario, embora sem privarse de algumas viagens. Depois de se haver apaixonado pelo folclore, foi na música litúrgica que Liszt mergulhou para esgotar todas as potencialidades do gênero. Em seu retiro no convento em que residia o arquivista do Vaticano, não somente estudou um pouco de teologia, como também descobriu a arte vocal da Renascença. O gênero ocupa um lugar menor na linguagem musical do compositor, mas nem por isso Liszt deixou de absorver algumas das suas características. A natureza se encarregou de resolver aquilo que os lentos procedimentos da corte romana deixara pendente: o príncipe Wittgenstein morreu em 1864. A princesa viúva e Liszt podiam finalmente casar. Realiza-se então um lance teatral: em 25 de abril de 1865, Liszt toma a batina e recebe as ordens menores, primeiro passo para o sacerdócio. O segundo passo nunca chegou a ser dado, o passo decisivo que impediria Liszt de casar-se. Aquele que se tornara "o abade Liszt", do mesmo modo que já fora franciscano sem ser monge, era agora clérigo sem ser padre. Em vez de lançar qualquer suspeita sobre a sinceridade desse procedimento, é mais simples supor que o antigo discípulo de Lamennais encontrara um modo de voltar-se, a um só tempo, ao Cristo, que adorava, e à liberdade, de que necessitava para viver.
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Dali por diante, o refúgio de Liszt em Roma alternaria com estadias em Budapeste e em Weimar, onde ministrava inúmeros cursos de interpretação: foi o "segundo reinado weimariano", nas palavras de Claude Rostand. Em 1870, Liszt dirigiu o Festival de Weimar em que triunfaram as obras de Wagner. Pouco depois, correu a Munique para assistir à primeira representação de Die Walküre [A valquíria]. Mas, em 25 de agosto de 1870, sua filha Cosima, que acabara de divorciar-se de Hans von Bülow, discípulo seu, casou-se com Wagner: de coração partido, Liszt rompeu com a filha e com seu amigo mais próximo. A reconciliação só se fez em 1872, quando da construção do teatro de Bayreuth. Também nessa época, Liszt passou a ocupar a presidência da Academia Real de Música, em Budapeste. Desde então, Liszt dividiu a vida entre Roma, Weimar e Budapeste, mas geralmente fugindo de Roma, onde a princesa Wittgenstein via com maus olhos tanto a vida livre que Liszt continuava a levar ("Talvez", escreveu ela ao companheiro, "no futuro, os seus triunfos parecerão ter sido bacanais, pois afinal não lhes faltam algumas bacantes que a eles se associam"), como sua independência de pensamento. A "amazona mística" tornava-se cada vez mais doutrinária e sectária. Tendo permanecido um "católico liberal" na contracorrente, Liszt escreveu-lhe em 1877: O grande pesar de minha velhice é o de achar-me em contradição com v o c ê . Nem sempre foi assim, pelo menos de 1847 a 1862 [data da primeira bula pontifícia contra o liberalismo]. R o m a e as transcedências do seu espírito mudaram tudo. Depois da Syllabus [encíclica de Pio LX, de 1864], estamos sempre entrando em desacordo por causa das coisas de Roma.
Em 1876, Liszt assistiu ao sucesso de Wagner em Bayreuth, onde o teatro foi inaugurado, em 13 de agosto, com Das Rheingold [O ouro do Reno]: era a consagração do gênio wagneriano aos olhos do mundo e também a consagração da amizade dos dois, agora reconciliados. Esse ano de alegrias foi, no entanto, ensombrecido pelas notícias da morte, primeiro de Marie d'Agoult, e depois de George Sand, meses mais tarde. Uma parte da vida de Liszt, um passado já longínquo, extinguia-se com a morte das duas mulheres. Em 1877, Liszt reecontrou a serenidade em Roma: completou o terceiro volume dos Années de pèlerinage e sobretudo aprofundou sua meditação religiosa, só interrompida pelas viagens que fez à Alemanha e à Hungria, bem como por uma breve temporada em Paris, onde assistiu ao triunfo de sua Missa de Gran, executada na igreja de Saint-Eustache por ocasião da Exposição Universal de 1878. Liszt quase não deixou Roma em 1879 e lá recebeu a dignidade, puramente honorífica, de cônego de Albano. Musicalmente, o ano foi agitado: as composições religiosas {Via Crucis, Os sete sacramentos)fizeram-seacompanhar da preocupação profana com a tentação e a sedução (nova versão da Valsa Mefisto, inspirada pelo Faust de Lenau). Para Liszt, a música era uma só: profana ou sacra, sempre a
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expressão de uma inspiração interior. Foi também nesse ano que Liszt, entusiasmado, descobriu os músicos russos que formavam o "Grupo dos Cinco", particularmente Borodin. Em 1880, uma última chama amorosa foi acesa no coração de Liszt, em Budapeste, pela jovem Lina Schmalhause. Um último poema sinfônico em 1881: Do berço ao túmulo. Mas Liszt estava septuagenário, e sua saúde, já abalada, pouco a pouco foi-se deteriorando. Isso não o impediu de novamente atravessar a Europa, passar longas temporadas de trabalho em Weimar e Budapeste e assistir, em agosto de 1882, à estréia de Parsifal, de Wagner, em Bayreuth. A admiração incondicional que continuava a sentir por Wagner era tanta que foi instalar-se com ele e Cosima no palácio Vendramini, em Veneza, onde compôs a Gôndola fúnebre antes de partir para a Hungria. Em Budapeste, na manhã de 14 de fevereiro de 1883, recebeu a notícia da morte de Wagner. Em seus três últimos anos de vida, Liszt ainda teve a oportunidade de cruzar a Europa de fora a fora, empreendendo "aquela que seria a grande e suprema turné de sua vida". Quase aos oitenta anos, deu uma série de concertos que alcançaram por toda parte estrondoso sucesso. Em julho de 1886, voltou exausto a Bayreuth para assistir ao casamento da neta Daniela (filha de Cosima e de von Bülow) e, em seguida, fez uma viagem relâmpago a Luxemburgo. De volta a Bayreuth, pegou um resfriado e, já muito fraco, contraiu a febre que haveria de causar sua morte. Apesar disso, em 25 de julho, ainda assistiu a uma representação de Tristan und Isolde antes de morrer, na noite de 31 do mesmo mês, com sua filha Cosima na cabeceira. *** Liszt quis ser o primeiro a descobrir a "música do futuro" e tornar-se seu arauto. E foi o músico de um futuro ainda mais longínquo, Arnold Schõnberg, quem lhe rendeu talvez a maior das homenagens: Liszt tinha uma vida instintiva que colhia na própria fonte de sua personalidade e, com isso, teve o poder de acreditar. (...) Foi mais que u m artista; transformou-se em algo maior: em u m profeta. (...) Liszt criou uma forma de arte que nossa é p o c a necessariamente tem na conta de erro; mais tarde, talvez, desejaremos guardar a visão genial que lhe deu origem e prestar-lhe homenagem. (...) Tudo considerando, o impulso que Liszt deu à música, com suas inúmeras propostas, foi possivelmente maior que o dado por Wagner.
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RICHARD WAGNER (1813-1883)
Com Richard Wagner, a linguagem musical e a própria concepção da música, de sua função e do papel do compositor passaram por uma transformação tão grande que não poderia deixar de marcar toda a música ocidental ulterior: pode-se dizer que os compositores do século X X tentaram libertar seus procedimentos e sua estética mais a partir da influência de Wagner que da herança clássica. Ao radicalizar, por meio da infiltração do cromatismo e da modalidade, as tentativas já esboçadas no século X L X de abalar os alicerces da todo-poderosa tonalidade, Wagner de certo modo preparou a transgressão da linguagem tonai que seria realizada pelos músicos de nossos dias. A dissolução da tonalidade pelo cromatismo em Tristan und Isolde foi um acontecimento histórico, que prefigurava as pesquisas levadas a cabo pelos compositores da Escola de Viena (Schõnberg, Berg, Webern) no século X X . Embora sua produção inclua Lieder, sonatas para piano, sinfonias, um poema sinfônico, marchas, etc, foi no drama lírico que Wagner manifestou mais intensamente a capacidade de inovação de seu gênio criador. O empenho de Wagner no sentido de renovar a forma da ópera tradicional, pela introdução do que ele chamou de "melodia contínua" e de Leitmotiv [motivo condutor], vai de par com sua concepção do drama ligado a uma filosofia da existência, de fato uma reatualização do drama grego fundado no mito e na força irracional da música, que haveria de resultar em uma nova arte alemã. O aspecto nacionalista deste projeto prestouse a uma recuperação ideológica e à sua conseqüente glorificação para fins deturpados, por ocasião do advento do Terceiro Reich na Alemanha de Hitler. Contudo,
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não se deve esquecer que Wagner já estava morto havia cinqüenta anos quando Hitler subiu ao poder. Fazer do autor de Parsifal um precursor do nazismo é um contra-senso tão odioso quanto estúpido. Wagner em busca de si mesmo (1813-1841) Richard Wagner nasceu em 22 de maio de 1813 em Leipzig, e seu pai morreu nesse mesmo ano. A mãe, com sete filhos para criar, logo se casou com o ator, poeta e pintor Ludwig Geyer, que fora amigo íntimo do casal e provavelmente já amante da viúva quando o marido ainda vivia. Não há qualquer prova que justifique a afirmação de ser o pequeno Richard filho de Geyer. Por outro lado, cumpre assinalar que este não foi um problema menor para o psiquismo do compositor: era uma interrogação que ele se propunha sem jamais ter conseguido elucidá-la. Interrogação que talvez esteja ligada a uma constante em sua vida: Wagner sempre buscou um pai (no plano da música e idealmente, Beethoven; mais concretamente, Liszt; no plano temporal, seu real protetor, o soberano bávaro) e, ao mesmo tempo, não quis, como criador, descender de ninguém e tampouco associar qualquer de seus predecessores — salvo Beethoven — à sua glória em Bayreuth. A família de Wagner não tardou a instalar-se em Dresden, onde o menino iniciou sua vida escolar sem qualquer brilho particular: dava mostras de pouco gosto pelos estudos acadêmicos. Já então se apaixonou pelo teatro, tomado de fascínio pelo mundo do espetáculo, com seus cenários e figurinos. Também sua família compartilhava da mesma profunda atração, e nela Wagner encontrou apoio e compreensão muito propícios a seu desenvolvimento artístico. A este amor pelo teatro logo viria somar-se o amor à poesia, quando Wagner descobriu Shakespeare, Goethe e Hoffmann. Na realidade, embora o aspecto teatral da literatura de Shakespeare e de Goethe seja responsável pelo interesse que lhe despertaram esses autores desde essa época — e isto se confirmou em sua futura evolução —, Wagner não dissociava o teatro e as outras formas literárias; ao contrário, ele viria a reuni-las em sua concepção mais geral do drama musical. Muito moço ainda, Wagner forjou para si sólida cultura literária e não alimentava qualquer dúvida quanto à sua vocação: poeta teatral. A partir dessa época, escreveu dramas muito influenciados pela atmosfera shakesperiana e dos poetas do Sturm und Drang. A mtimidade com os textos dos românticos alemães decerto suscitou em Wagner o interesse pela forma de arte que veio a se tornar primordial para ele: a música. Por volta dos quinze anos encontrou-se com a música, compartilhando com a família o amor por Mozart e a admiração por Weber. Mas foi a descoberta de Beethoven, e sobretudo das suas sinfonias, que levou Wagner a optar definitivamente por uma carreira. Sua decisão de ser compositor não excluía a paixão pelo teatro e pela literatura: longe de dissociar as duas coisas,
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Wagner as reunia em uma única e mesma preocupação estética que prefigurava conscientemente sua futura tese da obra de arte total. Em 1831, Wagner fez, em Leipzig, cursos de harmonia e contraponto com Weinling, e logo o mestre achou que nada mais tinha para ensinar ao aluno, concedendo-lhe independência. No final de 1832, depois de concluir um primeiro ato, Wagner abandonou seu primeiro projeto de compor uma ópera: As bodas. Em janeiro de 1833, reincidiu, e Die Peen [As fadas] foi concluída em janeiro de 1834. Essa ópera só foi encenada em 1888, depois da morte de Wagner. Nela, o compositor já adotava o tipo de procedimento de trabalho que conservou por toda a vida: inicialmente, um esboço em prosa do libreto, no caso, inspirado em La donna serpente [A mulher serpente] de Cario Gozzi; depois, a versificação do libreto; por fim, a partitura musical. O poeta sempre precedeu o compositor, embora, com o passar do tempo, o poeta viesse a saber cada vez melhor qual partido musical e qual partitura, já antevista, poderia tirar do libreto. O início da carreira de Wagner como músico foi de certo modo auspicioso: regente de ópera em Magdeburg, sua ópera Das Liebeverbot [Proibição de amar], tirada da peça Measure for Measure [Medida por medida], de Shakespeare (libreto: verão de 1834; partitura: janeiro de 1835-janeiro de 1836) estreou naquela cidade em 29 de março de 1836. Na mesma época, Wagner publicou, na Neue Zeitschrift fürMusik, de Schumann, um importante texto sobre arte dramática. Mas pouco a pouco as dificuldades começaram a surgir e, apesar do firme apoio da atriz Minna Planer, com quem se casou em 1836, durante anos ele e a mulher levaram vida de errantes, indo de um teatro para outro, conforme os compromissos de Minna ou os dele, como regente (em Magdeburg, Wurzburg e Riga). Nomeado mestre de capela em Riga, Wagner sonhava conquistar Paris; mas não se julgava pronto para enfrentar o público francês com um repertório constituído apenas pelas óperas Die Peen e Das Liebeverbot. Foi então que concebeu o projeto de Rienzi, com base em tema tirado de um romance de Bulwer-Lytton sobre o fracasso de uma insurreição popular na Roma do século XIV. Com a intenção de propor a obra à Académie Royale de Musique e vendo Paris como o refugio daqueles que se desejavam livres, mas sobretudo como o lugar privilegiado em que se consagravam músicos, o casal Wagner decidiu partir para a França em julho de 1839. Depois de atravessarem a pé a fronteira russa e chegarem ao porto alemão de Pillau, embarcaram em um velho navio. Fizeram uma viagem fantástica em meio a terrível tempestade, o que trouxe à lembrança de Wagner a antiga lenda do "Holandês maldito". A partir dessa experiência começou a germinar na mente de Wagner o projeto que resultaria na ópera Derfliegende Hollander, mais conhecida em português e em outras línguas como o O holandês voador. Em Paris, reinavam absolutos Meyerbeer e Rossini, e lá também Wagner haveria de passar por uma série de decepções e desgostos. Para sobreviver, teve de acei-
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tar trabalhos desinteressantes (arranjos de árias de ópera, transcrições...), que, além de muito mal pagos, tomavam-lhe enorme tempo. Escreveu, nessa época, artigos para a revista musical publicada por Schlesinger, nos quais expõe as condições ideais para o desenvolvimento da arte. Apesar das cartas de recomendação que obteve de Meyerbeer, não conseguiu convencer os editores e diretores de teatro. A entrevista que pôde ter com Berlioz mostrou-se mais proveitosa: Wagner soube tirar partido das pesquisas de Berlioz no plano harmônico e orquestral, mas Berlioz, perspicaz, pressentiu que tinha diante de si um grande rival. Apesar das dificuldades, Wagner conseguiu concluir Rienzi der letzte der Tribunen [Rienzi, o último dos tribunos]. A composição do libreto prolongou-se de julho de 1837 ao final de agosto de 1838 e a da partitura, começada em Riga depois de agosto de 1838, só terminou em 19 de novembro de 1840. Redigiu nessa fase de sua vida seus primeiros escritos, O virtuose e o artista e Uma visita a Beethoven. Do verão de 1840 (até essa época ainda não havia acabado Rienzi) a maio de 1841, compôs o libreto, e de junho a novembro de 1841, a partitura de Der fliegende Hollander, recusado pela Ópera de Paris. Com esta obra, Wagner abandonava para sempre os temas tirados da literatura moderna ou da história, inaugurando o ciclo dos mitos, colhidos em antigas lendas e reelaborados, transformados e, muitas vezes, fundidos. Já então afirma-se o universo wagneriano, em que se opõe e caminham lado a lado os temas da queda, da maldição, da redenção e da salvação, que se tornariam específicos de sua dramaturgia. Em relação às composições anteriores, DerfliegendeHollandertambém assinala uma renovação do pensamento musical do compositor: fugindo à concepção tradicional, a ópera é concebida em torno da oposição dos temas da "maldição" (do holandês maldito) e da "rendenção pelo amor" (a libertação do holandês através do amor de Senta). Essa oposição não é um resumo preliminar da narração; ao contrário, encerra em si mesma todo o conteúdo dramático e simbólico da ópera. Não é demais lembrar que o poetamúsico tinha então 28 anos, já que a posteridade preferiu guardar dele a imagem de um sexagenário com perfil de quebra-nozes. Em 1841, Wagner foi comunicado que pretendiam representar Rienzi em Dresden e DerfliegendeHollander em Berlim. A saudade da Alemanha, aguçada pelo rancor que já devotava à França, encorajou-o a partir às pressas de Paris em abril de 1841, levando na bagagem poemas populares sobre as lendas de Tannhãuser e de Lohengrin, que seu compatriota Lehrs lhe dera de presente. Depois do sucesso estrondoso de Rienzi, em 20 de outubro de 1842, o rei da Saxônia ofereceu a Wagner o posto de regente da orquestra do Grande Teatro e, em seguida, o de mestre de capela na corte de Dresden. Em contrapartida, Der fliegende Hollander— que acabou estreando em Dresden, e não em Berlim, no dia 2 de janeiro de 1843, depois de Rienzi — foi sucesso apenas de crítica: quatro apresentações.
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O forjador em Dresden (1842-1848) Durante os anos que se seguiram, Wagner foi pouco a pouco forjando seu universo dramático e musical: entre 1842 e 1848, quase toda sua obra, com a exceção de Tristan und Isolde, encontrava-se já em germe, em uma concepção global do drama ligado a uma filosofia da existência. Dessa época em diante, os elementos constitutivos do mundo wagneriano ganham contornos precisos. Já em Der fliegende Hollander, os dois principais temas — o do mal imánente ao universo e o da redenção pelo amor — acham-se expostos. Tannhãuser und der Süngerbrieg auf der Wartburg [Tannhãuser e o torneio de cantores de Wartburg], com esboço e libreto escritos entre junho de 1842 e 22 de maio de 1843, e a partitura entre julho de 1843 e abril de 1845, teve sua primeira montagem em Dresden no dia 19 de outubro de 1845, com pouco sucesso. A peça representa um passo adiante: o amor puro e quase angelical de Elisabeth, nessa ópera, opõe-se à envolvente sedução de Vênus: as preces e a morte de Elisabeth salvam Tannhãuser. O conflito do homem que se divide entre o amor ascético e religioso e o amor voluptuoso e sensual, a temática da salvação pela felicidade, o amor e o sacrifício da mulher serão temas constantes na obra wagneriana e, por seus pontos em comum com as preocupações cristãs, iriam contribuir mais tarde para o desinteresse de Nietzsche pela música de Wagner. No verão de 1845, Wagner preparou os esboços dos libretos de Die Meistersinger von Nürnberg [Os mestres cantores de Nuremberg] e de Lohengrin. Na primeira dessas óperas, Wagner evoca a arte musical popular da Alemanha na Idade Média, com seus concursos de canto entre Meistersinger, e o amor feliz de Walther e Eva, sob o olhar resignado do artesão-poeta Hans Sachs. Para Lohengrin, Wagner recorreu à lenda popular. A história de Lohengrin é um mergulho na noite da mitologia alemã: o filho de Parzival (nome que Wagner trocou depois para Parsifal), cavaleiro da ordem do Graal, chega num barco puxado por um cisne para defender Eisa de Brabante de uma acusação injusta, mas não pode completar sua missão porque Eisa obriga-o a revelar sua identidade. Em Lohengrin, de forma mais sistemática e mais consciente do que em Der fliegende Hollünder e em Tannhãuser, Wagner desenvolve sua concepção da "melodia contínua" ou "melodia infinita" e do Leitmotiv. Paralelamente à exposição das constantes de seu universo, Wagner traz uma nova abordagem do fenômeno musical. Em oposição à concepção tradicional da ópera fundada na alternância de árias e recitativos, Wagner introduz a noção de continuidade melódica — espécie de dinamismo que foge às amarras dos habituais recitativos — calcada na continuidade da vida, na duração de nossa consciência, e que vem questionar o papel da repetição. A noção de repetição, central no pensamento musical clássico, implica a concepção de uma música que se desenrola desde a afirmação de uma idéia original até seu ressurgimento final, através de seu desenvolvimento e ramificações, o que
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empresta à memória um papel fundamental. A obra é pensada de acordo com uma lógica que parte de um começo definido e caminha para um fim determinado. Wagner provocou uma ruptura com o recurso ao Leitmotiv, que é de certo modo uma falsa repetição, ou melhor, um alongamento da repetição: com sua presença lancinante, verdadeiro fantasma que povoa toda a obra, o Leitmotiv desfaz a repetição, criando climas específicos num fluxo sem fim. A obra traz em si mesma seu próprio devenir, é conduzida por um ritmo dramático e o seu tempo se confunde com o da vida. O libreto de Lohengrin ficou terminado em novembro de 1845, e Wagner escreveu a partitura entre maio de 1846 e abril de 1848. Mas era difícil para ele acreditar que a obra pudesse ser logo representada. No ano de 1848, as revoluções se propagavam pela Europa, e ele se entusiasmou com elas. "O homem que, no seu berço, não foi dotado por uma fada com o espírito de descontentamento com o que existe", escreveu, "jamais chegará à descoberta do novo." Foi neste aforisma (que define maravilhosamente uma das tendências mais profundas do romantismo) que Baudelaire procurou mais tarde "a explicação dos pontos de vista revolucionários de Wagner". Para Wagner, a esse descontentamento universal somava-se a esperança de que o advento das democracias promovesse uma nova arte com mais liberdade para manifestar-se e para encontrar um novo público. Foi nesse estado de espírito que, de agosto a novembro de 1848, Wagner voltouse para as epopéias legendárias dos Nibelungos, inicialmente para escrever um ensaio sobre o mito dos Nibelungõs e, depois, um libreto sobre A morte de Siegfried, o primeiro projeto do que viria a ser o Gõtterdãmmerung [O crepúsculo dos deuses] . Assim, começando pelo fim e andando de trás para diante, Wagner ingressou na futura Tetralogía do Ring. Para o fervoroso revolucionário de 35 anos, a idéiamãe era a aniquilação dos deuses por eles mesmos sob o impacto provocado pela liberdade da consciência de um homem. 1
Tristão, o proscrito (1849-1862) Sem que se esperasse, os acontecimentos começaram a se precipitar. Ao lado de seu amigo Bakunin, o anarquista para quem todos os valores do passado deveriam ser destruídos, com exceção da Nona Sinfonia de Beethoven, Wagner participou ativamente, em maio de 1849, da insurreição de Dresden, massacrada pelas tropas enviadas pela Prússia ao rei da Saxônia. O compositor conseguiu fugir da cidade e chegou a Weimar, onde Liszt o acolheu fraternalmente, fornecendo-lhe os meios
Ring significa anel em alemão. Trata-se de referência ao nome dado ao conjunto de quatro óperas que formam a Tetralogía de Wagner, Der Ring des Nibehmgen [O anel dos Nibelungos]. São as quatro óperas apresentadas, em geral, em quatro noites seguidas: o prólogo, intitulado Dos Rheingold [O ouro do Reno] e as três óperas em que se conta a epopéia de Siegfried — Die Walküre, Siegfried e Gõtterdãmmerung. É habitual fazer-se referência às "noites do Anel". (N. T.)
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de passar a fronteira com a Suíça. Com um mandado de prisão pesando sobre ele e proscrito de todo» os Estados alemães, Wagner refugiou-se na cidade de Zurique em julho de 1849: só conseguiria obter uma anistia parcial em julho de 1860, e a anistia total teria que esperar até março de 1862. Sem se permitir qualquer repouso, Wagner passou a mão na pena para registrar seus pontos de vista e justificar suas posições em dois importantes ensaios: Die Kunst und die Revolution [A arte e a revolução, de julho de 1949] e Das Kunstwerk der Zukunft [A obra de arte do futuro, de novembro de 1949], nos quais expõe teoricamente sua concepção da obra de arte e a revolução que ela provoca em relação à ópera tradicional. Antecipou assim o ensaio que levou o nome de Oper und Drama [Ópera e drama, janeiro de 1851], no qual se encontra clara sua definição de ópera. A ópera, para Wagner, não era somente música e teatro, mas também uma globafidade na qual intervém simultaneamente música, poesia, gesto, visualidade, etc, ou seja, uma globafidade no sentido em que o era o antigo drama grego. Todos estes elementos que, na ópera tradicional, serviam de pretexto para a música tornam-se, na ópera wagneriana, elementos constitutivos do drama. Sua ação conjugada é que contribui para delimitar a dramaturgia propriamente dita. Por isso, Wagner sempre escreveu ele mesmo os textos de seus libretos, concebendo-os como verdadeiros poemas que trazem em si a evolução dramatúrgica. Logo depois da divulgação dos dois primeiros ensaios acima mencionados, um musicólogo de Colônia lançou, de brincadeira, o termo Zukunftsmusik [música do futuro], que acabou fazendo sucesso e se firmando entre os partidários de Liszt e de Wagner. A amizade entre Wagner e Liszt estreitou-se cada vez mais. Confiavam um ao outro os trabalhos que estavam fazendo, antes mesmo de os haverem terminado, sem abdicar cada qual da originalidade de seus procedimentos, mas enriquecendo-se com as mútuas experiências no campo da linguagem musical. Provavelmente Wagner era o que mais tinha a ganhar nessa troca de experiências. Por outro lado, Liszt, ao mesmo tempo que sustentavafinanceiramenteo proscrito, assumiu o risco de promover sua música: em 28 de agosto de 1850, fez representar pela primeira vez Lohengrin em Weimar, com espetacular sucesso. Em janeiro de 1849, Wagner esboçara em prosa o plano geral do libreto de um drama sobre Jesus de Nazaré, concebido, em plena febre revolucionária, como um libertador social. Wagner não deu prosseguimento a esse projeto, como também não daria seqüência ao projeto de um drama intitulado Wieland, o ferreiro, rascunhado entre janeiro e março de 1850, no qual o herói era o símbolo de um povo prisioneiro que reconquistava a liberdade. Finalmente, retornou ao mito dos Nibelungos e decidiu dedicar-se a ele. No ensaio autobiográfico Uma comunicação a meus amigos (escrito em julho e agosto de 1851), Wagner já previa a necessidade de um festival especialmente concebido para a apresentação do prólogo e das três noites — vale dizer, a "Tetralogía" — de O anel dos Nibelungos. De maio de 1851
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a dezembro de 1852, ele escreveu o libreto completo das quatro partes do Ring e editou com seus próprios recursos cinqüenta exemplares da obra em fevereiro de 1853. Embora fizesse muitas pequenas viagens, Wagner passava a maior parte do tempo em Zurique. Em 1852, conheceu nessa cidade o casal Wesendonck. Otto, o marido, um negociante muito rico, ajudou-o bastante íirianceiramente e pôs à sua disposição o "asilo", uma pequena casa perto daquela em que morava. Uma atração mútua entre Mathilde, a mulher de Otto, e Wagner logo se transformou em grande amor, e foi na mtimidade dos Wesendonck que Wagner trabalhou na composição musical do Ring. Primeiro, concluiu a partitura do prólogo — Das Rheingold [O ouro do Reno] —, entre setembro de 1853 e setembro de 1854, e depois a da primeira noite, Die Walküre [A valquíria], entre junho de 1854 e 22 de março de 1856. Com a grande epopéia de sua Tetralogía, onde o mito do deus Wotan tem um lugar complementar e antagonista ao mito do herói Siegfried, Wagner nos faz remontar às origens de nossa história. Ao elaborar uma verdadeira dramaturgia da Matéria, da qual os elementos fundamentais — água, fogo, ar e terra — são os motivos constitutivos, Wagner simboliza a luta contra a corrupção da humanidade (pela maldição do ouro) e a utopia de uma humanidade libertada pelo amor. Na época em que trabalhava em Das Rheingold e em Die Walküre, Wagner entrou em contato, em setembro de 1854, com a filosofia pessimista de Schopenhauer e suas teses sobre arte fortemente impregnadas de filosofia oriental, em especial de brahmanismo. E nela descobriu a formulação de seu próprio pensamento, passando a compreender de forma mais profunda o mito de Wotan. Para Schopenhauer, com efeito, existe um sofrimento fundamental no homem, e o papel da arte é justamente o de mitigar este sofrimento e fazer com que o homem o esqueça. A Tetralogía leva a seu termo o trágico do destino humano, mas também anuncia, com o herói redentor e o fogo que purifica, o nascimento de uma nova raça de homens. Em maio de 1856, sob a influência de Schopenhauer, Wagner esboçou o projeto de um drama de inspiração budista, Os vencedores, no entanto posto de lado. Em setembro de 1856, começou a escrever a partitura de Siegfried, a segunda noite do Ring, nela trabalhando sem interrupção até março de 1857 e, depois, com intervalos. Por fim, em 9 de agosto de 1857, pôs este trabalho de lado sem ter terminado sequer o segundo ato. Por que desistiu? A partir de outubro de 1854 — e é possível que também neste caso a leitura de Schopenhauer tenha exercido sua influência —, outro projeto começou a tomar forma em seu espírito, no início quase que contra a sua vontade: o projeto de um drama sobre o mito celta dos amores de Tristão e Isolda. Para dedicar-se a essa obra, Wagner alegou o pretexto ilusório de que o tema era mais fácil de ser tratado de forma dramática, além de mais acessível ao grande público, do que a colossal realização da Tetralogía. Estaria querendo enganar a si mesmo? Na verdade, mais determinante pode ter sido a paixão cada vez maior que sentia por Mathilde (em
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1856-1857, Wagner compôs, para canto e orquestra, cinco Lieder com poemas escritos por Mathilde Wesendonck, os Wesendonck Lieder). O amor de Wagner e Mathilde de certo modo atualizava, por uma identificação dos personagens, a antiga lenda céltica da princesa irlandesa e do velho rei da Cornualha, Mark: a paixão de Tristão e Isolda é provocada pelo filtro do amor, que substitui o da morte, mas que lhes será fatal, pois o destino que pesa sobre os amores proibidos conduz inexoravelmente à morte. As duas grandes entidades da trajetória humana — amor e morte — estão ligadas para sempre como que por um sortilégio do universo e traduzem a simbólica da noite tal como ela foi expressa pelos poetas românticos, especialmente por Novalis em seus admiráveis Hinos à noite. Escrito muito depressa, o libreto (poeticamente, dos mais belos que Wagner escreveu) ficou pronto em 18 de setembro de 1857. A partir de I de outubro, Wagner deu início à partitura. Mas, se Tristan und Isolde [Tristão e Isolda] tennina com a ditosa morte dos amantes reunidos, o mesmo não aconteceria com Richard e Mathilde. O ciúme de Minna Wagner explodiu em abril de 1858, e, para evitar escândalo maior, foi decidida a separação. Mathilde continuou no lar conjugai, "o asilo" foi abandonado, Minna voltou para a Saxônia e Wagner partiu no final de agosto para Veneza, onde concluiu em março de 1859 a partitura do segundo ato. Mas, nesse mesmo mês, foi expulso da cidade — então sob domínio austríaco —, onde a presença do proscrito de Dresden fora apenas tolerada. Wagner voltou para Zurique e, sem retomar a antiga intimidade com Mathilde,fixou-seem Lucerna. Terminou ali a partitura de Tristan und Isolde em 6 de agosto de 1859. Nunca se terá empregado tão profeticamente a expressão "música do futuro", como a respeito dessa obra. Em sua primeira visão de um drama sobre Tristão (outubro de 1854), Wagner havia imaginado que Parzival, na busca do Graal, encontrava Tristão no momento em que este estava morrendo. Logo abandonou esta idéia, mas o mito do Graal continuaria a assombrá-lo. Em maio de 1859, falou disso, mas para dizer que havia desistido. De fato, depois de Wagner ter concluído Tristan und Isolde, dois longos anos decorreram antes que ele voltasse realmente a entregar-se ao trabalho. o
Luís II da Baviera, Cosima e Nietzsche (1862-1872) Wagner viveu então anos tristes e solitários, bastante perturbados por seus espaçados e inamistosos encontros com Minna, que veio a falecer longe dele em 1866. Anos igualmente sombrios no plano financeiro, por causa de concertos deficitários que deu em Paris e Bruxelas. Seu Tannhãuser foi encenado na Ópera de Paris em março de 1861, com algumas modificações. Apesar da admiração que suscitou em gente como Baudelaire e Théophile Gautier, a intriga armada contra ele, a expressa má vontade de Berlioz e a reação do público, desconcertado com tal espetáculo, fizeram com que a ópera fosse um fracasso.
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Em novembro de 1861, Wagner retomou o argumento de 1845 para Die Meistersinger von Nürnberg [Os mestres cantores de Nuremberg]. Terminou o libreto em 31 de janeiro de 1862 e a abertura em outubro seguinte, trabalhou um pouco mais no começo do primeiro ato e, em junho de 1863, interrompeu a composição dessa ópera. A situação de Wagner era desesperadora: viagens pela França, Alemanha, Áustria e Rússia, negociações infrutíferas, dívidas acumuladas. Para fugir dos credores, deixou precipitadamente Viena e foi esconder-se em Stuttgart (marçoabril de 1864). Produziu-se então o milagre. Coroado rei da Baviera em 10 de março de 1864, Luís II, com dezoito anos, mandou Wagner vir falar com ele e o recebeu em 4 de maio de 1864 na cidade de Munique. Dali por diante, sob a proteção do soberano, Wagner pôde contar com uma inesperada segurança material: passou a desfrutar de uma renda e de uma casa em Munique. A ajuda desse jovem soberano, exaltado e apaixonadamente devotado à causa wagneriana, favoreceu o pleno desabrochar do compositor. Concertos com obras de Wagner foram organizados, e uma escola de música lhe foi confiada. Mas, o que é mais importante, parece ter sido por expressa encomenda de Luís II que Wagner se pôs a trabalhar na partitura de Siegfried a partir de 27 de setembro. Não demorou muito para que os políticos, ministros e a própria burguesia de Munique começassem a dar sinais de inquietação: o sentimento de adoração verdadeiramente amorosa manifestado pelo jovem rei, seu apoio desmedido e suas liberalidades causavam escândalo. A isto veio somar-se a ligação mal dissimulada de Wagner com Cosima von Bülow, filha de Liszt (os amantes, desde novembro de 1863, haviam jurado pertencer unicamente um ao outro), uma ligação ofensiva à sociedade e mortificante para Luís II, desesperado de ciúmes. Hans von Bülow, marido de Cosima, extraordinário regente e há anos ardoroso defensor da música de Wagner, recusava separar-se de sua mulher e preferiu aceitar a situação. O nascimento de Isolda, primeira filha de Wagner e Cosima, em abril de 1865, na manhã do mesmo dia do primeiro ensaio de Tristan und Isolde, sob a regência de Hans von Bülow (a ópera estreou em Munique em 19 de junho de 1865), associado à pressão cada vez mais forte da opinião pública bávara e às imprudentes interferências de Wagner em questões políticas — tudo isso constrangeu um mortificado Luís I I a ordenar que Wagner deixasse a cidade em 6 de dezembro de 1865 para evitar maiores problemas. *** Wagner voltou à Suíça, onde Cosima logo foi juntar-se a ele: viveram primeiro em Genebra, depois em Tribschen, perto de Lucerna, às margens do lago dos Quatro Cantões, onde instalaram-se em 15 de abril de 1866 e permaneceram por seis anos. Pela primeira vez, aos 53 anos, aquele eterno errante haveria de descansar
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por algum tempo em um lar de verdade ao lado de uma mulher que amava. A generosidade de Luís II, que veio visitar Wagner e manteve com ele vibrantes relações epistolares, contribuiu para isso. A partida de Munique interrompera abruptamente o trabalho de Wagner na partitura de Siegfried. Um pouco antes, no fim de agosto de 1865, Wagner havia delineado um primeiro esboço para ParzivaL escrito em prosa: tê-lo-ia feito em meio à atmosfera da estréia de Tristan und Isolde. Os dois mitos permaneciam, para Wagner, misteriosamente ligados. Mas, na Suíça, não foi para o Graal que ele se voltou: em 12 de janeiro de 1866, como se Munique lhe trouxesse à lembrança a antiga vida errante, retomou a partitura de Die Meistersinger. Dali por diante, na paz profícua de Tribschen, a obra avançou mais depressa,ficandoa partitura pronta em 24 de outubro de 1867. Oito meses antes, nascera Eva, a segunda filha de Cosima e Richard. O drama estreou em Munique no dia 21 de junho de 1868. Em 8 de novembro desse mesmo ano, Friedrich Nietzsche, então com 24 anos, encontrou Wagner em um salão em Leipzig. De passagem por aquela cidade, Wagner, sabendo que um estudante de filologia tocava ao piano algumas páginas de Die Meistersinger, quis conhecê-lo. A simpatia que de imediato sentiram um pelo outro aumentou ainda mais depois de se confessarem ambos admiradores da filosofia de Schopenhauer. A relação que mantiveram Wagner e Nietzsche foi, até o momento em que começaram a surgir as desavenças, na época de Bayreuth, das mais frutíferas. Longe de ser obstáculo, a diferença de idade servia para animar as pesquisas que vinham realizando. Wagner sentia-se lisonjeado por um rapaz de grande cultura, especialista em Grécia antiga, comparar suas propostas estéticas a uma renovação da tragédia grega, e Nietzsche ficava muito sensibilizado por ser reconhecido como gênio por um gênio consagrado. A dedicatória que fez para Wagner em sua primeira obra, A origem da tragédia, publicada em 1870, é a melhor prova disso. Wagner tomara a tragédia grega como ponto de partida de sua concepção formal da nova ópera; seus escritos teóricos sobre o assunto (A obra de arte do futuro, A arte e a revolução, Ópera e drama) mostram bem sua vontade de fazer renascer, no "drama", a tragédia antiga com seu universo mítico e seus rituais. Vendo na música contemporânea alemã a oportunidade para um possível renascimento da música dionisíaca, Nietzsche fez da obra de Wagner o centro de sua reflexão; para ele, Wagner, ao realizar uma depuração do lírico, era a esperança do rompimento definitivo com uma civilização da ópera. A nova ópera devia reencontrar a unidade primeira, poética, musical, gestual, como componente mesmo do drama, contribuindo a conjugação desses elementos justamente para delimitar a dramaturgia propriamente dita. Ora, se os textos de Wagner faziam crer na ressurreição do trágico, na possibilidade de assegurar, através do musical, a permanência histórica do questionamento mítico, por outro lado, a realização do eterno retorno do mito na produção lírica de Wagner não se torna música, mas é pretexto para a música; não é uma
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fábula das origens, mas antes narração, já que a finalidade mítica foi desviada pela assimilação de fatos míticos a temáticas provenientes da ética cristã. E mesmo que, a partir de 1869, Nietzsche visite com freqüência Wagner em Tribschen, a evolução de seu pensamento sobre a relação do mítico com o musical o afasta do universo wagneriano, próximo, segundo ele, de uma civilização do discurso, de uma "retórica teatral". Em nome de um contra-senso mítico, passou a combater Wagner. Em 7 de dezembro de 1868, Wagner tirou do esquecimento a partitura de Siegfried; pela terceira e última vez o Ring iria reclamar sua atenção. O trabalho prosseguia agora sem maiores complicações. Em junho de 1869, nasceu Siegfried, terceiro filho de Cosima e Richard. Em 22 de setembro desse mesmo ano Das Rheingold estreou em Munique, por imperiosa insistência do rei, mas contra a vontade de Wagner, que só queria ver o Ring levado a público depois do ciclo estar totalmente concluído. O mesmo sucedeu com Die Walküre, apresentada pela primeira vez, também em Munique, em 26 de junho de 1870. Depois de Hans von Bülow terfinalmenteconcordado com o divórcio, Cosima e Richard se casaram em Lucerna em 25 de agosto de 1870. No Natal seguinte, para comemorar o aniversário de Cosima, Wagner fez com que o Siegfrids Idyll [Idilio de Siegfried] fosse executado em Tribschen mesmo. Seis semanas depois, ele punha o ponto final na partitura de Siegfried; os esboços para a terceira e última noite do Ring, a ópera Gõtterdãmmerung [Crepúsculo dos deuses] sucederam-se já a partir de janeiro de 1870. Bayreuth: do Ring a Parsifal (1872-1883) No verão de 1870, quando estourou a Guerra Franco-Alemã, Wagner escreveu um importante ensaio sobre Beethoven, demostrando a constância de sua predileção por este músico. Já então sonhava um pouco com Bayreuth, imaginando erigir ali um teatro diferente, que se prestasse à dramaturgia de suas obras. Em abril de 1871, resolveu fixar residência em Bayreuth, mas até abril de 1872 continuou morando em Tribschen. O projeto concretizou-se. Graças a muitos donativos particulares e, principalmente, à generosidade de Luís II, a primeira pedra da Festspielhaus foi assentada em 22 de maio de 1872. Na cerimônia comemorativa, Wagner regeu a Nona Sinfonia de Beethoven, que no futuro passaria a abrir todos os festivais de Bayreuth. Tratava-se de um verdadeiro teatro experimental: a arquitetura do edifício, a estrutura do espaço, a platéia em plano inclinado, a dissimulação da orquestra que substituía o coro da tragédia grega (de modo que a música nascesse do silêncio e o público tivesse uma visão perfeita de todos os pontos do palco) — tudo, enfim, fora concebido pelo arquiteto Semper de acordo com a vontade de Wagner, que desejava dar ao edifício uma atmosfera propícia a um recolhimento próximo de um ritual sagrado.
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Em 21 de novembro de 1874, Wagner concluiu a composição da música Gõtterdãmmerung e, por conseguinte, de toda a epopéia musical do Ring. Há alguns meses estava morando em Bayreuth, na vila Wahnfried, para ele construída. Nessa época, já sofrerá as primeiras crises da angina do peito que irá levá-lo. Estava com 61 anos. Em julho de 1875, na Festspielhaus recém-construída, tiveram início os primeiros ensaios da Tetralogía. O primeiro Festival de Bayreuth aconteceu em agosto de 1876, com a presença do Kaiser Guilherme I, que assim consagrou Wagner em nome do novo Reich. Uma apoteose, mas também muitas dívidas: até 1882, nenhum outro festival pôde acontecer. Em 25 de janeiro de 1877, Wagner anunciou a Cosima ter resolvido começar a composição de ParzivaL cujo nome ele mudou para Parsifal, mais esotérico. Em 20 de abril desse mesmo ano, terminou o libreto. A composição musical da última de suas obras foi uma das mais longas de sua vida, cheia de interrupções e marcada por muitas viagens. Em Palermo, no dia 13 de janeiro de 1882, pôs o ponto final na partitura. Concebidos ambos pela primeira vez em Zurique, na época de seu idilio com Mathilde Wesendonck, Tristan e Parsifal constituem uma espécie de díptico que envolve o universo mítico wagneriano numa concepção musical inteiramente ligada a uma filosofia da existência. Tanto em Tristan como em Parsifal, o amor aparece como revanche contra o trágico e contra a miséria humana. Se em Tristan und Isolde o amor sensual só encontra a redenção na morte liberadora, em Parsifal o mal é combatido pela força irresistível do amor puro, inspirado pela fé. Parsifal, a última obra de Wagner, de certo modo sua profissão de fé e verdadeira tese em favor de uma humanidade salva pelo amor, corresponde a uma vocação profundamente religiosa: Wagner cumpria desse modo o itinerário de Schopenhauer, com a passagem da estética à salvação pela religião. O resultado "lógico" de sua filosofia muito contribuiu para fazer da Festspielhaus e do Festival de Bayreuth um verdadeiro templo onde a audição musical confunde-se com um rito sagrado. Esta conclusão religiosa, bastante próxima de um cristianismo esotérico e pouco ortodoxo, acabou levando Friedrich Nietzsche a investir violentamente contra Wagner, revoltado com estes "vapores de incenso e relentes de igreja". "Tu que suportavas todas as penas do cativeiro,/Espírito sem paz, ávido de liberdade, (...) Também tu te prostras diante da cruz./ Tu também! — um vencido!", grita em um poema aquele que haveria de cantar o "declínio de Zaratustra" como resposta à sagração ritual do servidor do Graal. O segundo Festival de Bayreuth abriu com a estréia de Parsifal em 26 de julho de 1882. Em setembro, abatido por várias crises cardíacas, Wagner foi com a família para a Itália e instalou-se em Veneza no palácio Vendramini. Um último ataque do coração iria matá-lo nesta cidade em 13 de fevereiro de 1883, enquanto trabalhava num ensaio sobre O feminino no humano. As últimas palavras que escreveu foram "amor" e "trágico".
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O corpo de Wagner foi levado para Bayreuth e enterrado com todas as honras. Depois de morto, o criador de mitos Richard Wagner foi ele o próprio transformado, por seus admiradores, em um mito que o Festival de Bayreuth, verdadeiro lugar de culto, revive todos os anos segundo um ritual já secular.
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Capital de um império de múltiplas nacionalidades, cadinho em que se fundiam as mil facetas da cultura européia, Viena assistiu ao crescimento progressivo de seu poder de irradiação. A partir de 1815, data do Congresso de Viena, tornou-se o principal centro político do mundo ocidental, posição que conservou até 1848. Essa cidade, outrora duramente castigada, primeiro pelas invasões turcas, depois por Napoleão, começara a respirar um ar de paz e de glória com o qual pouco a pouco inebriou-se. A partir de 1848 e da ascensão de Francisco José (que haveria de reinar durante 68 anos), o Império Austro-Húngaro conheceu uma grande estabilidade de poder, que favoreceu um progresso industrial e bancário sem precedentes. Gesto simbólico: em 1857 foram derrubados os muros fortificados que cercavam a cidade e sobre eles construiu-se o Ring, grande bulevar em que se ergueram palácios e edifícios oficiais (ópera, museus, prefeitura, parlamento, universidade, etc), separados uns dos outros por vastos jardins pontilhados por cafés, restaurantes e coretos de música. Com seus parques, seus vinhedos e seus subúrbios campestres — desde então tornados partes integrantes da cidade (Heiligenstadt, Grinzing) —, vivia-se em Viena uma Gemütlichkeit ["boa vida"] em que a música, a dança e o vinho branco desempenhavam papéis de destaque. Dançavase por toda parte, e o título de uma única valsa bastaria para ilustrar esse estado de espírito: Wein, Weib und Gesang [Vinho, mulher e canto, ou, como é mais co1
Em alemão, "anel". Trata-se, na verdade, da Ringstrasse, grande avenida que cerca o núcleo antigo da cidade, o Hofburg [burgo da corte], cuja construção foi um dos primeiros grandes empreendimentos urbanísticos do século XIX. (N. T.)
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nhecida, Amar, beber e cantar] foi uma valsa de Johann Strauss, filho, da qual Alban Berg não hesitaria em fazer, no início do século seguinte, uma saborosa transcrição. Puro produto vienense, Johann Strauss, pai (1804-1849), obtivera uma sólida reputação de violinista na orquestra de dança dirigida por Joseph Lanner (1801¬ 1843). Em 1825 fundou sua própria orquestra: tornou-se em pouco tempo o maior compositor de música de dança da Viena de sua época, atraindo para "sua" cervejaria visitantes de prestígio, como Chopin e Wagner. Devem-se a ele algumas dezenas de polcas, galopes, quadrilhas e marchas, dentre as quais a célebre RadetzskyMarch [Marcha Radetzski]. Todavia, o maior feito de Strauss foi ter contribuído, ainda mais do que Lanner, para o nascimento da valsa vienense, que seu filho, o segundo Johann Strauss (1825-1899), elevou a alturas nunca antes imaginadas. Bem enquadrada em uma sólida armadura de 32 compassos divididos em quatro vezes oito compassos (o jazz haveria de lembrar-se disso), a valsa de Johann Strauss pai, robusta, sólida, enérgica, ainda mostrava suas raízes populares (o handler); a do filho fez -se mais delicada, mais cuidada: em uma palavra, mais "mundana". A introdução — obrigatória desde Aufforderungzum Tanz [Convite à dança, mais conhecida como Convite à valsa] de Weber — e a coda foram prolongadas; a simetria tendeu a esfúmar-se em proveito de uma estrutura mais requintada; de explícito que era, o ritmo tão característico de valsa tornou-se "imph'cito"; finalmente, a orquestra diversificou-se. Entre centenas de títulos, citemos An der Schõnen blauen Donau [Sobre o belo Danúbio azul, 1867], Geschichten aus dem Wienerwald [Lendas dos bosques de Viena, 1868], Wiener Blut [Sangue vienense, 1873], Kaiser Walzer [Valsa do imperador, 1889]. Essas valsas, que provocaram admiração sem reservas em Wagner, Liszt, Brahms e todos os demais grandes compositores da época, pertencem com justiça ao patrimônio musical legado aos grandes compositores austríacos que ainda estavam por vir: Richard Strauss — Der Rosenkavalier [O cavaleiro da rosa] —, Gustav Mahler ou Alban Berg. As valsas de Johann Strauss correram o mundo ainda durante sua vida. A partir de 1870, sua criação artística ganharia nova dimensão. A atividade teatral em Viena era tão viva quanto a atividade musical. Viena era a cidade das brincadeiras, do humor fino e dos ditos espirituosos; o teatro vienense estava fundado na paródia e na sátira (no século XIX, Johan Nepomuk Nestroy foi o principal representante deste tipo de teatro). Essa dupla tradição musical e humorística constituía terreno fértil para a eclosão de uma opereta nacional. Mas era preciso que houvesse um elemento detonador: foi Offenbach, com as triunfais turnês dos anos 1860. É bem conhecida a anedota que relata o encontro entre Strauss e Offenbach ("Deveríeis escrever operetas, senhor Strauss..."). Mas, talvez porque não se sentisse possuidor de veia dramática, Strauss hesitou ainda por muitos anos, antes de seguir os conselhos de seu colega mais velho. Durante esse tempo, Franz von Suppé (1819¬ 1895) abriu caminho para ele: a opereta em um ato Das Pensionai [O pensiónate],
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escrita por von Suppé em 1860, é considerada a primeira opereta vienense. Do ponto de vista musical, nela se pode encontrar urna escrita bem italianizante em seu nervosismo (influência de Donizetti), mas apresentada à "maneira vienense", com uma mescla de sensualidade e humor de paladar inimitável: essas duas características serão reencontradas em todas as operetas de Johann Strauss. Mas von Suppé nunca pôde dispor de bons libretos, e na opereta — "esse gênero puro por excelência", como diria o polemista satírico Karl Kraus no início do século XX — o libreto é ainda mais importante do que na ópera, em que por vezes a música passa "à frente" do texto e de sua compreensão direta. Foi Johann Strauss quem, a partir de 1871, conferiu graus de nobreza ao gênero. Depois de alguns primeiros ensaios, como índigo, em 1871, e Der Karneval in Rom [O carnaval de Roma], em 1873, Johann Strauss produziu finalmente uma obra-prima: Die Fledermaus [O morcego], com libreto de Carl Haffher e Richard Gênée, a partir de Le Réveillon [A festa de ano-novo], de Henri Meilhac e Ludovic Halévy, que eram os próprios libretistas de Offenbach. A obra foi encenada no Theater an der Wien em 15 de abril de 1874. Um fato surpreende: a opereta vienense nunca negaria suas origens — a maior parte dos argumentos foi dali por diante retirada de peças francesas, e a influência de Offenbach se fazia sentir por vezes bem diretamente, como no segundo ato de Die Fledermaus. O elemento que distinguía a opereta vienense e o modelo de Offenbach era, no entanto, chave: distintamente de sua irmã mais velha, a opereta vienense não era uma sátira da ópera, mas uma resultante desta. Com raras exceções, nela não se distingue qualquer intenção irônica, nem do ponto de vista musical, nem do ponto de vista do texto. O espírito da opereta é de natureza totalmente diversa. Com Johann Strauss, que só tardiamente dedicou-se ao teatro, a valsa instalouse no plano estrutural da obra. Foi um golpe de mestre. Não apenas a opereta inspirou algumas de suas valsas de maior sucesso, como também formou um corpo tão coeso com a valsa que se pode adiantar a seguinte hipótese: a opereta vienense é definitivamente uma espécie de gigantesca encenação da idéia de valsa. Fonte de sua sensualidade implícita, a valsa, aquele rodopio indefinidamente recomeçado que produz uma perda progressiva do autocontrôlé, no entanto sempre reconquistado, impregna totalmente a opereta. De resto, em Johann Strauss, ela sempre teve três atos. Com personagens que são verdadeiros arquétipos — o marido fújão, a esposa fiel sobre a qual pesam suspeitas injustas, a criada atrevida, o apaixonado que se toma por outrem (o universo de Da Ponte está perto...) —, uma obra como Die Fledermaus foi um sucesso exemplar, um "clássico" em seu gênero. O equilíbrio entre texto e música, a espontaneidade e o frescor do estilo musical, a qualidade da invenção melódica eram tais que Gustav Mahler fez essa opereta entrar para o repertório da Ópera de Viena a partir 1894, ainda durante a vida de Johann Strauss. Mas os sucessos desse gênero não formam legiões: além das obras de Johann
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Strauss — Eine Nacht in Venedig [Uma noite em Veneza, 1883], Der Zigeunerbaron [O barão cigano, 1885], em que Strauss parodiava U trovatore [O trovador] de Verdi, Wiener Blut [Sangue vienense, 1899] —, seria injusto não mencionar Franz Lehar (1870-1948), um sucessor que se teria "puccinizado", mas cuja Die lustige Witwe [A viúva alegre, 1905] constitui um dos últimos grandes sucessos de um gênero que soube angariar os favores não apenas do grande público, mas também dos maiores intérpretes (Karajan, Elisabeth Schwarzkopf). Assim como Offenbach refletia o Segundo Império de Napoleão III, a opereta vienense foi antes de mais nada reflexo da Viena imperial, de seu modo de vida e de suas festas contínuas. Oferecia ao espectador maravilhado uma mistura de sonho e realidade, da mesma forma como o Império Austro-Húngaro oferecia-se como espetáculo ao mundo estupefato. É preciso mencionar ainda Otto Nicolai (1810-1849), fundador dos Concertos Filarmônicos de Viena e autor de Die lustigen Weiber von Windsor [As alegres comadres de Windsor], encenada em Berlim em 1849; e ainda Albert Lortzing (1801-1815), de origem berlinense, que escreveu inúmeros Singspiele, dos quais o mais célebre atualmente é com certeza Zar und Zimmermann [Tsar e carpinteiro, 1837], e uma ópera romântica, Undine (1845). Friedrich von Flotow (1812-1883) começou na França como compositor de óperas cômicas, como Le Naufrage de la Méduse [O naufrágio da Medusa, 1839]. A Revolução de 1848 obrigou-o a voltar a terras germânicas (Hamburgo, Berlim, Viena). Das cerca de quarenta óperas cômicas que deixou — na maioria das vezes com libretos de origem francesa —, cumpre mencionar Martha, encenada em Viena em 1847. Ardoroso wagneriano, Engelbert Humperdinck (1854-1921) foi professor em Frarikfurt, depois em Berlim. Sua ópera Hansel und Gretel [nomes tradicionais alemães para João e Maria, crianças abandonadas no bosque], representada em Weimar em 1893, mesclava com habilidade consumada uma linguagem sinfônica wagneriana e o uso por vezes "ingênuo" de melodias populares alemãs. Continua grande nos teatros germânicos o sucesso de Humperdinck.
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ANTON BRUCKNER (1824-1896)
Poucos foram os compositores que, como Anton Bruckner, traduziram a influência tanto do seu meio geográfico e social de origem, quanto da fé católica. Bruckner nasceu em Ansfeld, pequeno burgo da Alta-Áustria, em 4 de setembro de 1824, onze anos depois de Wagner e nove anos antes de Brahms. Seus ancestrais, como os de Schubert, haviam sido professores primários; o pai ainda exercia essa profissão. O próprio Bruckner preparou-se para o magistério, mas estudou música (órgão e composição) com o primo e padrinho Johann Weiss. Em 1837, ano da morte de seu pai, foi admitido no coro do célebre monastério de Sankt Florian, ao qual seu nome permaneceria ligado e onde ele está enterrado. Quatro anos mais tarde, Bruckner tornou-se mestre-escola. Marcada pela obtenção de um cargo de professor e de organista adjunto em Sankt Florian (1845) e por diversas composições, entre as quais quatro Missas "de juventude" e um Requiem, essa dupla carreira prosseguiu até 1856, data em que Bruckner, nomeado por concurso organista da catedral de Linz e desfrutando da proteção especial do bispo Rudigier, pôde abandonar suas atividades de professor e fugir ao meio provinciano em que vivia. Na mesma época, teve a sorte de ser aceito como aluno por Simon Sechter, célebre professor de contraponto estabelecido em Viena e a quem o próprio Schubert recorrera em seu último ano de vida (1828). Até a idade de 37 anos (1861), Bruckner viajava a Viena com regularidade para encontrar Sechter. Paralelamente teve aulas de composição e de orquestração com Otto Kitzler, diretor de teatro de Linz. Kitzler era um fervoroso admirador de Wagner e fez com que seu "discípulo" — apenas dez anos mais novo que Wagner
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— conhecesse as obras do compositor. Bruckner ficou profundamente marcado por essas obras. Ouviu Tannhãuser ainda em 1863 e, em 1865, estava entre os que assistiram à primeira representação de Tristan und Isolde em Munique. Encontrar Wagner e fazer-se apreciar por ele tornou-se desde logo um de seus propósitos mais caros: só conseguiu realizá-lo em 1873. As primeiras obras-primas de Bruckner datam aproximadamente da época em que ele tinha quarenta anos. A parte mais importante da produção musical de Bruckner são suas nove Sinfonias, das quais a última ficou inacabada. O catálogo de suas obras compreende duas outras sinfonias não numeradas, conhecidas respectivamente como Sinfonia em fá menor (1863) e Sinfonia n° 0 em fá menor (1864-1869), três Missas— em ré menor (1864), em mi menor (1866) e emfá menor (1868) —, o Quinteto para cordas (1879) e o Te Deum (1884). É preciso citar ainda uma Ouverture em sol menor, o coro sinfônico Helgoland (1893) e diversas partituras religiosas, entre as quais o Salmo CL (1892). Das nove sinfonias numeradas, apenas a Sinfonia n° 1 em dó menor (1866) precede as duas últimas missas. A Sinfonia n° 2 (também em dó menor) data, em sua versão original, de 1871-1872. Com a Sinfonia n° 3 em ré menor (1873), fecha-se o primeiro grupo das sinfonias de Bruckner, todas escritas (contando as duas não numeradas) no modo menor e em relação estreita com as três grandes missas. O grupo seguinte engloba três sinfonias mais positivas em tom, escritas no modo maior e às quais é possível aproximar o Quinteto: a afável Sinfonia n° 4 em mi bemol maior, também conhecida como Romântica (1874); a monumental Sinfonia n° 5 em si bemol maior, grandiosa em seu final em fuga (1875-1876); a límpida Sinfonia n° 6 em lá maior (1879-1881). Já as três últimas sinfonias de Bruckner — an" 7 em mi maior (1881-1883), an" 8 em dó menor (1884-1890) e a n° 9 em ré menor (1887-1896) — opõem-se, por sua vez, ao elemento trágico das primeiras e ao "romantismo" do grupo médio, pela elevação espiritual a que aspiram e pelas dimensões mais vastas. Com raras exceções, essas obras custaram a impor-se, ainda mais que o autor sempre levou uma vida obscura. Bruckner tornou-se professor do Conservatório de Viena em 1868 e da Universidade desta mesma cidade em 1876. Mas, uma vez instalado na capital, continuou a ser objeto dos ataques da facção brahmsiana, dirigida pelo crítico Hanslick. Quando pensou finalmente em defender-se, acabou fazendo-o de maneira bastante desajeitada. Já bem tardiamente, o imperador Francisco José perguntou a Bruckner o que poderia fazer por ele; ouviu o pedido do único favor impossível: impedir que Hanslick falasse mal dele. Bruckner obteve seu primeiro grande triunfo como compositor apenas aos sessenta anos, com a apresentação, em Leipzig (30 de dezembro de 1884), da sua Sinfonia n° 7, cujos compassos finais do sublime adágio haviam sido concebidos sob o golpe da morte de Wagner.
Anton Bruckner
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Há, para isso, várias explicações concebíveis. Modesto, desajeitado até na vida sentimental e deixando transparecer a todo instante suas origens camponesas, Bruckner opunha-se totalmente, como homem, à imagem de artista que o século XIX nos legou, tão bem ilustrada por aqueles espíritos alertas e cosmopolitas que traziam os nomes de Mendelssohn ou Berlioz, Liszt ou Wagner. Há um episódio que mostra até que ponto Bruckner era inepto para desempenhar o jogo da chamada "boa sociedade": entusiasmado com o ensaio da sua Sinfonia n° 4, correu a cumprimentar o maestro Hans Richter (o mesmo que regera a primeira apresentação integral do Ring em Bayreuth) e depositou discretamente na mão do regente um táler, dizendo-lhe: "Beba uma caneca de cerveja à minha saúde!" Richter chorou de emoção e fez pendurar o táler, como um tesouro, à corrente de seu relógio. Mas a alta sociedade vienense nunca se deixou comover pela simplicidade um tanto rústica de Bruckner. Além do mais, Bruckner deixou completamente de lado os gêneros tipicamente românticos, que eram o Lied e o poema sinfônico, para não falar da ópera e das peças para piano; concedeu atenção limitada à música de câmara. Finalmente, o lado filosófico e metafísico da arte de Wagner lhe era totalmente estranho, a despeito do culto que professava por esse mestre: não chegou ele ao ponto de certo dia declarar que nada sabia do enredo de Gõtterdãmmerung [O crepúsculo dos deuses] e que ouvia essa obra mais como uma vasta sinfonia do que como uma partitura dramática? Anton Bruckner foi, ao contrário, o único músico de seu século cuja produção como um todo, mesmo a profana, era determinada por uma fé religiosa ingênua e por vezes infantil, mas sempre sincera. Dedicou sua Sinfonia n°7a Luís II da Baviera, a Sinfonia n" 8 ao imperador Francisco José e a Sinfonia n° 9 ao "bom Deus". Bruckner ainda perseguia a tradição da sinfonia beethoveniana e schubertiana numa época em que o próprio Wagner não hesitava em declarar que essa espécie estava extinta: as sinfonias de Mendelssohn e de Schumann mocilmente podiam ser consideradas desse mesmo tipo, e as de Brahms ainda não haviam sido escritas. Ora, quando vieram a público as sinfonias de Brahms, entre 1874 e 1886, pôde-se observar que sob muitos aspectos — por exemplo, os movimentos centrais e a concepção muitas vezes próxima da música de câmara — elas aproximavam-se das obras da metade do século, enquanto as de Bruckner, mais ambiciosas, tinham com o que espantar editores e público, para não falar dos intérpretes. Por uma espécie de círculo vicioso, esse estado de coisas só fazia agravar a timidez natural e a falta de autoconfiança de Bruckner, o que o levou, inclusive, sob a influência de amigos às vezes bem-intencionados, a submeter suas obras "acabadas" a revisões que se revelaram mais ou menos felizes, algumas delas contrariando a vontade do autor: cortes, em geral sinônimos de mutilação, e novas orquestrações. Isso representou para Bruckner uma imensa perda de tempo. Ao mesmo tempo que compunha as suas três últimas sinfonias, reviu quase completamente, por exemplo, as
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três primeiras. Reelaborou também a partitura da Sinfonia n° 8, depois que uma versão acabada em 1887 foi considerada "impossível de ser executada" pelo maestro Hermann Levi. Este foi um dos motivos pelos quais esta sinfonia permaneceu inacabada. Essa é a razão pela qual várias sinfonias de Bruckner têm diversas versões publicadas, entre as quais se deve fazer uma escolha. Para a Sinfonia n° 8, por exemplo, a versão editada por Robert Haas é preferível à editada por Leopold Norwak, em que a arquitetura do finale foi destruída por um desastrado corte. Corte ainda mais grave, mais uma vez nofinale,foi feito na terceira versão (1891) da Sinfonia n° 3, à qual é preferível a segunda versão (1877) ou mesmo a primeira (1873). Quanto à Sinfonia n° 4, ao contrário, a última versão (1880) se impõe à escolha. Todas as sinfonias de Bruckner têm sua personalidade própria, mas é possível caracterizá-las de modo abrangente. Os temas assumem a dimensão de verdadeiros parágrafos, os episódios de cada movimento são facilmente comparáveis às diversas partes da arquitetura de uma catedral. As sonoridades orquestrais, menos wagnerianas do que se costuma afirmar, evocam antes o órgão, por sua maneira de opor os instrumentos por famílias. A música de Bruckner é concebida para uma acústica de catedral, com seus silêncios que só obtêm efeito quando acompanhados por um "eco" que se prolonga de forma ameaçadora, com os seusfinaisde movimentos cortando de modo abrupto a explosão dos metais. Todas as sinfonias compreendem os quatro movimentos tradicionais; as de n° 8 e 9 fazem intervir o scherzo antes do movimento lento; esta última, infelizmente, ficou sem o finale (restaram esboços bastante desenvolvidos). Os movimentos iniciais (allegros) abrem-se com trêmulos de cordas dos quais emerge o primeiro tema (os temas são muitas vezes em número de três, respectivamente de caráter solene, lírico e rítmico). Nos movimentos lentos melhor se manifesta a fé religiosa do compositor: são adágios que caminham em direção a um imponente clímax, progressivamente atingido e imediatamente precedido por uma espécie de ascensão imaterial, chamada por certos comentaristas de "escala celeste". Os scherzos evocam diretamente as origens geográficas de Bruckner e, por vezes, lembram a dança popular austríaca intitulada laendler. Osfinalescitam movimentos precedentes, de maneira breve, mas com fins expressivos e psicológicos bem precisos: assim ocorre no finale da Sinfonia n° 8, que, em seu episódio conclusivo, pouco antes da última progressão triunfal, subjuga, por superposição (realizada com mão de mestre), temas dos quatro movimentos da sinfonia. Realizada oito anos depois da Sinfonia n° 7, a apresentação dessa Sinfonia n° 8 em Viena em 18 de dezembro de 1892 foi, para Bruckner, a ocasião de um novo grande sucesso; e com o público também tiveram que concordar Brahms e Hanslick. A posição do compositor acabou por melhorar um pouco, embora os três decênios que passou em Viena se tenham revelado, no conjunto, bastante monótonos e nada isentos de preocupaçõesfinanceiras.Viajou sobretudo para inter-
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pretar suas obras. Apresentou-se como organista em Nancy e Paris (1869), depois em Londres (1871), e visitou Bayreuth em cinco oportunidades: em 1873 (quando Wagner aceitou a dedicatória da Sinfonia n" 3), em 1876 (inauguração da Festspielhaus e estréia da Tetralogía), em 1882 (estréia de Parsifal), em 1886 (assistiu a Tristan und Isolde e tocou órgão no funeral de Liszt) e em 1892 (orou demoradamente sobre o túmulo de Wagner). Algumas honras lhe foram tardiamente prestadas: audiência com o imperador Francisco José, em 1886, diploma de doutor honoris causa de Filosofia da Universidade de Viena, em 1891. Gravemente enfermo a partir de 1890, teve que abandonar sucessivamente suas funções no Conservatório (1891), na capela da corte (1892) e na universidade (1894). Sua última viagem longa, feita em companhia de Hugo Wolf, levou-o a Berlim, onde assitiu à execução de sua Sinfonia n" 7, do Quinteto de cordas e do Te Deum, em janeiro de 1894. Em 30 de novembro deste mesmo ano, terminou finalmente os três primeiros movimentos da Sinfonia n" 9, obra cujas ousadias harmônicas anunciavam Mahler e Schõnberg. Em dezembro, começou a escrever ofinaleda sinfonia. Trabalhou cerca de dois anos nessefinale,até a manhã de sua morte (11 de outubro de 1896, no apartamento do castelo de Belvedere, posto à sua disposição pelo imperador). Johannes Brahms — que o seguiria na morte menos de seis meses depois — assistiu aos funerais. Mais tarde, os restos mortais de Bruckner foram transferidos para o mosteiro de Sankt Florian, onde hoje repousam sob o grande órgão, segundo desejo expresso do compositor.
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JOHANNES BRAHMS (1833-1897)
Criador singular, que cobre com sua imensa estatura a totalidade dos gêneros musicais de seu tempo (com exceção da ópera), Johannes Brahms foi — o paradoxo é apenas aparente — o único músico alemão que não criou uma forma. "Brahms é antes de mais nada — e será até o fim — um homem e um artista da Alemanha do Norte." Este juízo de Claude Rostand, por literário que seja, não deixa de ser exato. Há entre o homem — seu lado taciturno, introvertido, voluntariamente resignado, tão pouco revolucionário na vida como na música, impermeável a qualquer influência — e as paisagens da Alemanha do Norte — o céu baixo e cinzento, os pântanos e as brumas — uma correspondência que não é possível negar: toda a obra de Brahms é uma espantosa prova disso. Hamburgo (1833-1863) Johannes Brahms nasceu em Hamburgo no dia 7 de maio de 1833, em um meio modesto. O pai era contrabaixista de cervejaria, e a mãe completava o orçamento familiar costurando para fora. Desde os dez anos, o pequeno Johannes, cujos dotes o pai cedo observara, acompanhava-o às tabernas, onde também tocava durante uma parte da noite. Se essa atividade precoce foi nociva tanto para a saúde quanto para a cultura geral do menino (tendo deixado a escola muito cedo, durante toda a vida iria conservar complexos típicos de autodidata diante da cultura), não há dúvida de que lhe propiciou também uma relativa independência financeira no seio da família; também possibilitou que Johannes tivesse um conhecimento geral
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do repertório musical popular, do qual saberia fazer o melhor dos usos mais tarde. O menino teve dois excelentes professores desde os dez anos de idade: Cossel e Marxsen ensinaram-lhe as bases de uma boa profissão de pianista. Esse ensinamento — o único que Johannes Brahms recebeu — foi tradicional, no melhor sentido do termo: foi "clássico" (ele estudava Bach, Beethoven e Mozart, o que não era tão comum assim para a época), mas não acadêmico, nem retrógado. Os anos entre 1848 e 1853 foram de abertura para o jovem músico: ouviu muita música em Hamburgo, onde teve os primeiros contatos com a música húngara graças ao convívio com os refugiados políticos em partida para os Estados Unidos; Liszt, Berlioz e um jovem virtuose de origem húngara, Joseph Joachim, apresentaram-se sucessivamente nesses anos em Hamburgo. Brahms deu seu primeiro concerto em 21 de setembro de 1848 e logo começou a compor (duas Sonatas para piano opus 1 e opus 2, Lieder opus 3). A sua primeira obra publicada, o Scherzo opus 4, entusiasmou Liszt e revelou profundas afinidades com Schumann, que Brahms, por sinal, ainda não conhecia. O ano de 1853 foi importante. Depois de ter entrado em contato com Joseph Joachim, a quem se ligou desde logo por uma "amizade à primeira vista" (Joachim haveria de ser para ele, durante toda a vida, um conselheiro musical exemplar, e Brahms muitas vezes lhe submeteu os seus manuscritos antes de publicá-los), o jovem músico conheceu Robert Schumann. Os fatos são conhecidos: a nota entusiasmada de Schumann no seu diário íntimo ("Visita de Brahms, um gênio!"), o célebre artigo de Schumann sobre Brahms da NeueZeitschriftfürMusik, intitulado "Neue Bahnen" [Novos rumos]. "Jamais um artista principiante foi beneficiário de tamanha publicidade", observou Claude Rostand. Uma bela amizade desenvolveu-se entre Brahms e "os" Schumann (Robert e Clara), e a casa de Düsseldorf conservou-se sempre aberta para Brahms. Este passava longos períodos na biblioteca de Schumann, que o amava como a um filho espiritual. Quanto à relação do jovem e belo "deus louro" com Clara, muitas hipóteses são possíveis, mas uma só coisa é certa: Brahms e Clara Schumann destruíram a maior parte dos documentos que lhes diziam respeito. A versão de uma relação mãe/filho que compreendia, pelo menos nos primeiros anos, fortes componentes amorosos, está sem dúvida próxima da "verdade" — se verdade há... Seja como for, e apesar de alguns períodos de afastamento, Clara foi durante toda a vida uma propagandista ativa da música de Brahms. O ano de 1853 foi coroado pela publicação de uma das maiores páginas do repertório romântico para teclado: a Sonata opus 5 de Brahms. De estrutura geral acabada, de linguagem pessoal, de um vigor expressivo totalmente romântico, a sonata é inspirada do início ao fim. Pode-se até observar que, como a Sonata de Liszt, da qual é exatamente contemporânea, a Sonata opus 5 é cíclica. As obras de Brahms ganhavam vida, e o músico continuava a apresentar-se em concertos por toda a Alemanha. O moço louro de olhos azuis era tímido, reserva-
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do, desajeitado em sociedade, mas era simpático. Tinha confiança em si mesmo, sem presunção, mas com lucidez. Conquistou sem maiores dificuldades os dois grandes centros musicais — Leipzig e Weimar —, com recitais em que tocava Bach e Beethoven, além de suas próprias obras. Em 1854, vinha à luz um dos mais belos cadernos de piano de Brahms, as Quatro baladas opus 10, que contêm em germe a poética musical das suas últimas coletâneas de Intermezzi; no ano seguinte, Brahms dedicou-se às suas duas vias privilegiadas de expressão: a música de câmara, com o Trio para piano e cordas opus 8 (foi no domínio da música de câmara que Brahms se revelou mais fecundo) e a escrita em variações ( variações sobre um tema de Schumann, para piano, opus 9). Foi também a partir de 1855 que se manifestou um aspecto muitas vezes desdenhado do trabalho de Brahms: seu estudo solitário, minucioso e sistemático dos grandes mestres do passado. Naquela época em que estudar os antigos já não era mais moeda corrente, Brahms iniciou-se na música de Bach, Orlando de Lassus e Palestrina: disso certamente lhe vieram o gosto que desenvolveu pelo contraponto (finale da Sinfonia n° 4), seu epíteto de "restaurador da música alemã" e a veia de inspiração que lhe permitiria escrever os seus mais belos coros a cappella (opus 74, opus 104, opus 109 e opus 110). A morte de Schumann, em 1856, encerrou esse capítulo dos "anos de aprendizagem". Chegara o tempo do primeiro emprego (mestre de capela do príncipe Lippe-Detmold), do qual não gostava — Brahms era tudo, menos mundano —, mas que lhe dava a oportunidade de fazer seu próprio trabalho, facultando-lhe uma segurança material nada desprezível: duas obras de circunstância — Serenatas opus 11 e opus 16— mas igualmente uma nova safra de obras importantes, depois da Sonata opus 5. No fim dos anos 1850 e início dos anos 1860, Brahms compôs várias obrasprimas: o Concerto para piano e orquestra n° 1 em ré menor opus 15; as variações sobre um tema de Haendel opus 24, para piano, o Sexteto de cordas opus 18. Primeira obra sinfônica de Brahms, seu concerto para piano foi um retumbante fracasso em sua primeira execução na Gewandhauss de Leipzig, no dia 27 de janeiro de 1859. O segundo Concerto para piano de Brahms haveria de mostrar-se de um romantismo mais controlado (mas também mais conveniente); o primeiro era de um romantismo agitado e exacerbado. Durante os mais ou menos 25 minutos que dura o primeiro movimento, a tensão nunca arrefece. Lá está a forma sonata sabiamente respeitada (Brahms nunca a forçou muito), embora tratada de modo flexível. Finalmente, pode-se dizer que esse primeiro movimento é típico da "maneira" de compor de Brahms: ouve-se mais um piano "inundado" de orquestra do que intervenções do sofista claramente cortadas pelos tutti (um crítico de Leipzig acusava o concerto de ser "apenas uma sinfonia com piano obbligato"). O segundo grande caderno de variações ( variações sobre um tema original opus 21/1) assinala uma pausa nesse romantismo desenfreado e um progresso evidente em direção à
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aceitação, por Brahms, da herança beethoverriana, ao mesmo tempo que prepara a coletânea seguinte, as Variações e fuga sobre um tema de Haendel para piano, opus 24. Esta última obra é soberba e exala aquela impressão imediata de força e equilíbrio que caracteriza a grande obra-prima. O clima geral é a unidade, com destacada utilização do contraponto e espetacular unidade tonai (21 das 25 variações estão na mesma tonalidade de si bemol menor) dentro da diversidade, principalmente no plano rítmico. Mais tarde, Brahms tornaria ainda uma vez a esgotar os recursos do teclado, em uma obra ainda mais virtuosística: as Variações sobre um tema de Paganini opus 35. Essas duas obras situam Brahms como o sucessor do Bach das Variações Goldberg e do Beethoven das Variações Diabelli. Nesses últimos anos de Hamburgo, dois acontecimentos devem ser mencionados: a criação de um coro feminino (amador) com o qual Brahms ocupou-se ativamente (durante toda a vida ele teve um fraco pelas cantoras) — coro que se tornou, pela qualidade de suas execuções, um dos pilares da vida musical da cidade —, e a composição de um primeiro grupo de obras de música de câmara. No fim da vida, Brahms gostava de afirmar que, depois dessas obras, não tinha feito nada melhor (Sexteto de cordas opus 18, e dois Quartetos para piano e cordas, opus 25 e opus 26). O Sexteto é de fato um dos pontos máximos de toda a arte de Brahms. Quando Joachim recebeu o manuscrito, pela primeira vez não esboçou a menor crítica. A emoção imediata que se impõe quando ele é ouvido não deve fazer esquecer nem a estrutura tão perfeitamente equilibrada, nem o jorro da inspiração, nem, ainda uma vez, a personalidade do estilo. Tudo nessa obra respira a perfeição. O Sexteto teve um sucesso imediato, profundo e durável, o que não impediu que Brahms passasse pelo primeiro revés profissional de sua vida, que ele nunca esqueceria: sua nomeação para regente da Orquestra Filarmônica de Hamburgo foi recusada. Então, em uma bela manhã de setembro de 1862, o compositor partiu para Viena. Passou uma temporada verdadeiramente encantadora, foi apreciado tanto como intérprete (Brahms era então um dos raros pianistas a terem seu próprio repertório, por exemplo, a Sonata opus 111, de Beethoven), quanto como compositor (o caminho estava aberto por Clara Schumann). O célebre crítico Hanslick havia tomado posição claramente favorável à "jovem águia" (Schumann chamarao assim); na época, era Hanslick quem dava as cartas. Mas nada de definitivo aconteceu, e Brahms voltou a Hamburgo para festejar seu aniversário de trinta anos com a família. Três semanas depois do retorno, contudo, chegou uma carta: propunham-lhe a direção da Singakademie [Academia de Canto] de Viena. Embora aparentemente inquieto (temia, antes de mais nada — e pretendia que por isso jamais pôde resolver-se a casar — a perda da liberdade), Brahms na verdade ficou louco de felicidade e foi instalar-se em Viena no fim de agosto de 1863.
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Viena (1863-1897) A vida de Brahms mudou radicalmente. Dali por diante "sediado" em Viena, pouco a pouco acabou por organizar-se da seguinte maneira: passava o inverno em Viena (as datas correspondiam, grosso modo, às temporadas de concertos); de maio a setembro ia descansar no campo, muitas vezes perto de onde Clara Schumann veraneava (como muitos compositores germânicos, Brahms adorava a natureza e fez durante toda a vida longos passeios matinais); finalmente, viajava sempre e muito (turnês de concertos e recitais na Alemanha, algumas temporadas na Suíça e, no fim da vida, na Itália). Era uma vida organizada de celibatário, tipo "solteirão", mas de modo algum rotineira, pois as viagens desempenhavam um papel essencial. A primeira saison vienense (1863-1864) foi totalmente passada sob o signo das novas funções na Singakademie. Brahms foi calorosamente acolhido desde o primeiro concerto, em 15 de novembro de 1863 (no programa, duas obras que os vienenses não haviam ainda tido a oportunidade de ouvir: a cantata Ich hotte viel Bekümmernis, de Johann Sebastian Bach, e o Requiem para Mignon, de Schumann). Foi, desde logo, reconhecido como um grande profissional, pelo trabalho sério e cuidadoso e pela gentileza com os membros do coro. Os programas da Singakademie, totalmente elaborados por Brahms, mostraram desde então grande originalidade. O compositor montou grandes obras corais, desconhecidas, mas também pequenas peças praticamente inéditas (Gabrieli, Schütz, Rovetta). As mesmas qualidades — de cuidado nas execuções e de originalidade nos programas — haveriam de ser encontradas mais tarde, quando Brahms aceitou seu segundo (e último) posto oficial, a direção da Gesellschaft der Musikfreund [Sociedade dos Amigos da Música], que ocupou de 1872 a 1875. Em 1864, Brahms pediu demissão da Singakademie para consagrar-se mais exclusivamente à composição. Três grandes obras de seu catálogo de música de câmara, tão fértil e variado, datam dos seus primeiros anos em Viena. O Quinteto emfá menor para piano e cordas opus 34, é uma obra de gênese complicada. Mesmo depois da publicação, o compositor conservou em relação a ela uma ambivalência curiosa, continuando a proibir a execução da versão para dois pianos. ("Temo", escreveu Joachim com clarividência, "que, sem uma interpretação vigorosa, esse quinteto não soe com suficiente clareza") Ainda uma vez, a amplitude da obra é dada pelo primeiro movimento, de um vigor de inspiração e de uma veemência de tom magníficos (há três temas em lugar dos dois temas tradicionais, o que é freqüente em Brahms). Em seguida veio um segundo Sexteto de cordas opus 36, peça. única em Brahms, pela existência de um conteúdo oculto de música de programa. Esse Sexteto era uma espécie de "adeus" a Agata von Siebold, uma jovem que Brahms amou apaixonadamente. Como sempre, o compositor inflamara-se (teve muitas outras paixões!) e recuara na última hora. Além da finalização dos magníficos Romances de Magdelone opus 33, a ultima obra desse período é o Trio para
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piano, violino e coro opus 40, contemporâneo da morte da mãe do compositor (o adagio revela traeos deste triste acontecimento). Apenas citaremos, como contemporâneos a essas três obras, as deliciosas Valsas para piano a quatro mãos opus 39, um dos raros cadernos autenticamente vienenses de Brahms e que em nada teriam envergonhado seu amigo Johann Strauss! Apresentado no dia 10 de abril de 1868, em Bremen, e acolhido com enorme triunfo, Ein deutsches Requiem [Um réquiem alemão] foi o ponto forte da carreira de Brahms, que haveria de ser considerado dali por diante um dos maiores compositores de seu tempo. Esse sucesso teve inclusive efeito sobre suas outras obras: seus Lieder e peças para piano entraram para o repertório dos recitais; e apresentar pela primeira vez uma das sinfonias de Brahms tornou-se uma honra muito disputada. Ein deutsches Requiem tem sete partes refinadas pelo próprio Brahms a partir de textos bíblicos e centradas na idéia de Ressurreição. Reina em todo esse Requiem "um espírito de ternura, de doçura e de amor bastante raro em obras desse tipo" (C. Rostand). A liberdade de concepção nessa obra é sinônimo de estrutura original: cada seção tem sua própria característica, reforçada pela variedade da orquestração. Os movimentos 1,2,4 e 7 são puramente corais, os movimentos 3 e 6 foram escritos para solo de barítono e o movimento 5 (acrescentado depois da primeira apresentação) para solo de soprano. Para alcançar a importância de Ein deutsches Requiem, cumpre colocá-lo no contexto da grande tradição coral germânica, em que a obra pretende inscrever-se, pois reflete antes de mais nada a aceitação de uma herança considerável (Schütz, Bach, Beethoven: Missa Solemnis). Há outra obra coral de Brahms não menos magnífica — de mesma veia expressiva, embora de proporções bem mais modestas: Schicksalslied [Canto do destino] opus 54, com texto de Hõlderlin, que põe em cena a oposição entre a existência humana — frágil, agitada, angustiada — e a bem-aventurança celestial. O Schicksalslied forma uma espécie de tríptico temático com duas outras "baladas corais" de Brahms, Gesang der Parzen, com poema de Goethe, e Nünie, com texto de Schiller. Encontram-se, em todas essas obras de inspiração religiosa, a mesma bondade, a mesma generosidade de inspiração, o mesmo "espírito de ternura" tão típicos de Brahms. Entre Ein deutsches Requiem e Schicksalslied (1871) situa-se um novo episódio amoroso, igualmente não resolvido, com a filha de Robert e Clara Schumann, Julie Schumann, que haveria de morrer tragicamente pouco depois. Esse episódio deu nascimento a duas obras de tons opostos: as bem vienenses Liebesliederwalzer opus 52, e a sombria Rapsódia para solo de contralto, coro masculino e orquestra opus 53, com texto de Goethe. Na batalha entre os correligionários de Brahms e de Wagner, que alguns anos mais tarde empolgaria Viena, o próprio Hugo Wolf, que não poupou palavras duras a respeito de Brahms, teve de convir que a obra era soberba. Brahms torna-se um compositor arrivé. Demonstrara seu talento em todos os domínios. Todos? Pelo menos no domínio coral (havia mesmo se aproximado da
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ópera com a cantata Riña Ido), vocal (inúmeros Lieder) e pianístico. O seu catálogo de música de câmara era bem provido, e durante anos ele dirigira a mais prestigiosa instituição musical vienense, a Gesellschaft der Musikfreunde. Contudo, nenhuma obra puramente sinfônica saíra de sua pena, com exceção das duas Serenatas para orquestra da juventude. E, no entanto, ele sonhava com isso — há muito tempo. Schumann não lhe dissera, em 1853, "Devias escrever uma sinfonia"? Sem serem uma sinfonia propriamente dita, as Variações para orquestra sobre um tema de Haydn opus 56, haviam sido executadas em 1873 e acolhidas favoravelmente em Viena. Brahms tinha de algum modo "disfarçado" o problema da forma, valendo-se de um estilo de que particularmente gostava (tema e variações). Bem mais do que um esboço, no entanto, as Variações sobre um tema de Haydn abriram a fase sinfônica da obra de Brahms, que se prolongaria até o Concerto duplo para violino e violoncelo opus 102, composto em 1887. A Sinfonia n° 1 de Brahms, amadurecida durante cerca de um quarto de século e apresentada no próprio ano da abertura de Bayreuth, em 17 de dezembro de 1976, foi acolhida de forma morna pelos vienenses, confundidos pelas amplas proporções da obra. Em contrapartida, foi um triunfo memorável na tradicionalista Leipzig. Em contraste total com a Sinfonia n° 1, a de n° 2, apresentada pouco depois, seduziu Viena e aborreceu Leipzig. Multiplicam-se os exemplos que provam até que ponto as sinfonias de Brahms foram — e ainda são — controvertidas. Brahms é, juntamente com Bruckner, o último grande sinfonista de pura tradição germânica. Depois dele, a sinfonia mudou cada vez mais, fosse para tomar o caminho do poema sinfônico (Richard Strauss), fosse para ganhar outras e novas dimensões (Mahler). Em torno das sinfonias começou a querela opondo Brahms a Wagner. Se Brahms nunca viu com maus olhos a benevolência de Hanslick (por sinal, nunca desmentida) em relação à sua obra, é preciso entretanto não perder de vista que a agressividade vinha, de início, dos wagnerianos. A querela foi alimentada — e era avivada a cada audição de uma nova obra — pelos "fãs" vienenses de Richard Wagner (Felix Mottl, Hermann Levi e Hugo Wolf). Se a Sinfonia n° 1 de Brahms é indiscutivelmente pós-beethoveniana, a Sinfonia n" 2, escrita de uma só vez durante as férias de verão de 1877, tem textura bem mais fina, bem mais mozartiana e aérea (quem acusa a obra de Brahms de pesada que a escute, nem que seja apenas o terceiro movimento...). A Sinfonia n° 3, apresentada em Viena em dezembro de 1883, é sem dúvida a mais pessoal de todas, a que mais profundamente se concilia com o lado norte-alemão do compositor, ao passo que a Sinfonia n° 4 (1885) presta em seu finale, sob a forma de passacale, uma monumental homenagem a Bach (a posteridade faria desse último movimento da Sinfonia n" 4 de Brahms uma das certidões de nascimento do neoclassicismo na Alemanha).
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Grosso modo, o equilíbrio é o mesmo nas quatro sinfonias. Segundo o esquema clássico, a tensão é mais forte nos movimentos extremos (embora tenda ao equilíbrio, na Sinfonia n°4). O movimento lento, muitas vezes de caráter elegíaco, vem em segundo lugar; e, se o terceiro movimento nunca é dito scherzo, pelo menos tem o espírito do scherzo (Allegretto grazioso da Sinfonia n" 2). Com sua ausência de exuberância, sua moderação geral de tom e sua escrita concentrada, "essas quatro sinfonias dominam, hegemônicas, a época em que foram criadas" (Rémi Jacobs). Com exceção da primeira, todas as sinfonias de Brahms foram concebidas durante períodos de férias de verão. Essas estações de veraneio (Põrtschach ou Lago de Thun) foram se tornando para Brahms, cada vez mais, "locais de trabalho", em detrimento de Viena, onde o compositor tendia a permanecer cada vez menos tempo (para falar a verdade, parece que quanto mais velho ficava, menos conseguia parar quieto!). Desse modo, se as oito encantadoras temporadas que Brahms passou na Itália não exerceram qualquer influência sobre seu estilo, nem por isso deixaram de constituir "detonadores", trazendo novos impulsos à criatividade do grande romântico. Em 1878, depois de sua primeira estada na Itália, Brahms compôs o Concerto para violino e orquestra opus 77, dedicado ao amigo Joachim, e retomou o piano, que havia algum tempo abandonara. Com as oito Klavierstücke [Peças para teclado] opus 76, inaugurava-se uma nova veia de inspiração: nada de sonatas, nada de variações, definitivamente abandonadas em proveito de peças mais livres, de curta duração e de inspiração mais poética (a forma era muitas vezes simplesmente tripartida, ABA). Brahms reconciliava-se com o espírito da balada e, no final da vida, com os opus 116,117,118 e 119, produziria páginas de uma simplicidade e de uma intensidade poética verdadeiramente perturbadoras. Os três veraneios sucessivos de Brahms às margens do Lago de Thun, na Suíça, favoreceram a eclosão de doze obras maiores, dentre as quais cumpre citar a Sonata para piano e violoncelo opus 99 (1886), a Sonata para piano e violino opus 100 (1886), o magnífico Quinteto de cordas opus 111 (1890) e o Trio n" 3 para piano e cordas opus 101 (1886), uma das grandes páginas do repertório romântico de música de câmara. Esse Trio é a primeira obra de Brahms em que se manifesta, pela economia de meios e pela contenção do gesto, a concisão que de então em diante caracterizaria todas as suas obras. Do homem Brahms deve-se reter a vivacidade da inteligência ("Era preciso grande atenção e capacidade de recuperação para acompanhar as exigências de sua infatigável vitalidade... Nunca vi ninguém que, como Brahms, desse mostras de um interesse sempre tão renovado por tudo o que o rodeasse na vida, quer se tratasse de coisas da natureza, da arte ou da indústria", escreveu um de seus amigos íntimos), seu lado áspero e um tanto "urso", mas também sua jovialidade em 'diversas circunstâncias (enfatizada por todos os amigos que o encontraram durante as viagens à Itália). Tudo isso estava em sua divisa Einsam, aberfroh [Solitário, mas
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feliz]. Do ponto de vista musical, se Brahms não foi um criador de formas, indiscutivelmente ocupou, na música pura e na música vocal (exceto na ópera), o lugar que Richard Wagner deixara livre. Brahms manifesta, principalmente com o seu famoso "três por dois", uma liberdade rítmica espantosa para uma época tão bem comportada, uma linguagem pessoal geralmente mantida em alto nível de inspiração e, em muitas de suas obras, uma ousadia tonal — Arnold Schõnberg foi o primeiro a chamar a atenção para esse traço de Brahms — que teria contado com o aval do autor de Tristan und Isolde. No outono de sua vida, quando já havia decidido não mais compor, Brahms conheceu um músico excepcional, um clarinetista daquela orquestra de Meiningen que tanto o havia ajudado a levar avante a execução de sua Sinfonia n° 4: Richard von Mülhfeld, que executou pela primeira vez no verão de 1891, em Meiningen, como resultado desse encontro, o Trio para clarineta, violoncelo e piano opus 114— mais uma insólita reunião de instrumentos feita por Brahms! —, o suntuoso Quinteto para clarineta e cordas opus 115, e,finalmente,as duas Sonatas para clarineta e piano opus 120. Nessas sonatas em que tudo é dito em meio-tom, Brahms revela-se o compositor da introversão e da mais pura mtimidade. A última obra que Brahms destinou à publicação foi uma coletânea de Lieder intitulada Quatro cantos sérios opus 121, para barítono e piano — uma obra com textos bíblicos, tomada de empréstimo ao espírito do coral e já voltada para a morte. Embora escrita em 1896, a obra data de um momento em que Brahms — que viria a morrer em 3 de abril de 1897 — mostrava-se com ótima disposição (todas as testemunhas estão de acordo sobre esse ponto) e de humor alegre. Mas, para um criador de tal envergadura, a "verdade" — se verdade há — está na vida ou na obra?
Um contemporâneo de Brahms: Max Bruch (1838-1920) A vida de Max Bruch lembra a de Weber, com a alternância de viagens (pela Alemanha, mas também a Paris e a Bruxelas), de postos oficiais (Coblence) e de períodos em que o músico viveu de maneira independente (por exemplo, em Berlim, entre 1871 e 1873). Um primeiro sucesso veio com a ópera Scherz, List und Rache [Gracejo, astúcia e vingança], que conseguiu fazer montar no ano de 1858 em sua cidade natal, Colônia. A consagração só veio bem mais tarde, em 1891, com a obtenção de uma cátedra de composição na Academia de Berlim, que ocupou até 1910. Caso se queira caracterizar em uma palavra a personalidade musical de Bruch, poder-se-ia evocar um Mendelssohn entusiasmado por Brahms, que encontrou muitas vezes sua inspiração no folclore, como na Fantasia escocesa opus 46, composta sobre temas escrupulosamente anotados ao longo de uma viagem. De natureza mais épica do que lírica (as más línguas acrescentariam: mais melodramática do que dramática), esse músico atualmente não é mais apreciado, exceção feita ao seu Concerto n° 1 para violino opus 26, de 1868, ainda muito executado.
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A MÚSICA FRANCESA: OFFENBACH, GOUNOD E BIZET
A opérette de Jacques Offenbach (1819-1880) é uma das expressões culturais mais representativas do Segundo Império na França, mostrando-se, em muitos aspectos, como seu mais fiel reflexo. Raramente impôs-se, com tamanha precisão, correspondência tão estreita entre um momento da história e um gênero musical. A Offenbachiade nasceu e morreu exatamente com o Segundo Império de Napoleão III. Antes de 1851, Offenbach ainda não era compositor de operetas: nascido no gueto de Colônia, chegou em 1833 a Paris, onde seu pai conseguira fazê-lo admitir pelo Conservatório, apesar da dupla dificuldade: a idade e a origem estrangeira. Obrigado a ganhar a vida, logo tornou-se violoncelista na Opéra Comique. Em 1848, não passava de um virtuose apreciado nos salões; depois de 1870, nada mais era do que um velho compositor consciente de que sua hora de glória já passara. Morreu deixando inacabadas a ópera Les Contes d'Hoffmann [Os contos de Hoffmann], sua última grande obra-prima. Entre essas duas datas — e, mais precisamente, entre as duas Exposições Universais do Segundo Império (1855 e 1867) —, a opereta de Offenbach reinou em Paris e, a partir de Paris, no mundo. Tudo começou com a ascensão do Segundo Império. Apoiado, através de um plebiscito, por todas as camadas sociais da nação, o príncipe-presidente Luís Napoleão logo se viu em uma situação difícil: para manter a burguesia em seu campo político, deixara-a enriquecer — mas, ao mesmo tempo, asfileirasdo proletariado, com o qual buscava em vão conciliar-se, haviam crescido em número. Instaura-
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ram-se a ditadura e a censura, mas o capitalismo em expansão exigia cada vez mais liberalismo. Desde logo as contradições do regime tornaram-se insuperáveis. E uma única solução impôs-se às classes dirigentes: afagada vida real. A opereta, de fato, "só pôde nascer em uma sociedade que levava uma vida de opereta" (Sigfried Krackauer). "Nascido do cruzamento de um galo com um gafanhoto" segundo a fórmula de Nadar, Offenbach, dotado de uma incomum capacidade de adaptação e de um humor ao qual ninguém conseguia resistir, encontrou seu alter-ego indispensável na pessoa de Ludovic Halévy, sobrinho do compositor de La Juive [A judia]. Observador lúcido e desabusado, Halévy soube melhor do que ninguém pôr a nu os mecanismos do Segundo Império. Meilhac acrescentou sua contribuição de boulevardiere seus conhecimentos de dramaturgia, e, em trio, esses homens realizaram um teatro musical em que reinava, segundo a própria expressão de Nietzsche, "a forma superior de espiritualidade". Na inversão de valores própria à opereta francesa, Offenbach, em suas melhores peças — Orphée aux Enfers [Orfeu no Inferno, 1858], La Belle Hélène [A bela Helena, 1864], La Vie parisienne [Avida parisiense, 1866], La Grande-Duchesse de Gerolenstein [A grã-duquesa de Gerolstein, 1867] —, realizou um desnudamento ao mesmo tempo impiedoso e desopilante das bases do regime político e social do Segundo Império. Radicalmente diferente da opereta vienense, a opereta de Offenbach era urna dupla sátira: da ópera e da sociedade para a qual ela se apresentava como um espelho deformante. Se, contudo, se substituísse a sátira da época pela idéia de um "blague" bem divertido — naqueles tempos de censura os autores da Offenbachiade eram sempre hábeis o bastante para que seus espetáculos pudessem ser vistos como apenas divertidos —-, as operetas poderiam aparecer como hinos à glória do Segundo Império. Todos, portanto, do imperador ao burguês, podiam tirar partido delas... Tinha-se a impressão de que a "grande ópera" exercia sobre o público uma verdadeira ditadura. Em lugar das construções em cimento armado de Scribe e de Meyerbeer, Offenbach oferecia o borbulhar de seu champanhe; e, para os ouvintes de boa escuta, não faltavam ocasiões para o riso: Les Huguenots [Os huguenotes], de Meyerbeer, foi parodiada em Ba-ta-clan (1855); Orphée [Orfeu], de Gluck (Che fard senz'Euridice...), teve seu pastiche em Orpheé aux Enfers-, e Guillaume Tell de Rossini, em La Belle Hélène (trio patriótico). O cômico nascia do choque entre a banalidade das letras e a grandiloqüência da música extraída de seu contexto original. As alusões aos costumes do regime — que ficavam por conta da comicidade do texto — éram transparentes. Desse modo, as cortes de opereta eram inspiradas na corte do Palácio Les Tuileries, e a eventual distância histórica não impedia que os contemporâneos compreendessem as alusões: o poder era uma brincadeira e os governantes trapaceavam (La Belle Hélène); os planos de guerra estavam entregues a militares estrambóticos e irresponsáveis (La Grande-Duchesse); a hipocrisia mais total ia de par com os
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costumes mais corrompidos: "É preciso salvar as aparências, aí está o segredo" (Orphée aux Enfers). As altas esferas, contado, já pareciam haver percebido a fragilidade do sistema — "Compreendes que isso não pode durar muito" (La Belle Hélène) — e, por conseguinte, haviam decidido, custasse o que custasse, "locupletar-se enquanto desse" (La Vie parisienne). Se a inteligibilidade do texto sempre foi a preocupação máxima de Offenbach — preocupação que ditava sua escrita musical —, nem por isso ele foi um músico limitado. Como Mozart, era dotado de um instinto musical infalível: "Nenhuma valsa, nenhuma cançoneta, nenhum galope de suas operetas estavam ali gratuitamente: sempre ocupavam o lugar único que lhes era determinado pela ação" (S. Krackauer). Offenbach nunca era "forçado", e a sátira jamais era pesada. Ele adotava de bom grado os tempos rápidos e as estruturas musicais leves, propícios a fazer avançar a ação. Mas também sabia (como Mozart) passar de um plano a outro, do superficial ao profundo, da ironia à ternura, sendo capaz de encontrar, para evocar o amor, os tons mais corretos (La Vie parisienne, carta a Métella). Fazendo rir, Offenbach havia feito cair a máscara de uma dignidade mentirosa e de um poder usurpador: essa autenticidade de intenções dá valor ainda hoje à sua produção teatral e musical (uma centena de operetas). Encenada na Opéra Comique, em 10 de fevereiro de 1881, a ópera Les Contes d'Hoffmann é uma experiência à parte na produção lírica francesa do século XIX: uma "ópera fantástica", organizada em três atos, cada qual contando uma história autônoma, emoldurados por um prólogo e um epüogo. A obra vale por seu alto nível de inspiração, em que se reconhecem a graça e a leveza de elaboração do compositor de operetas. A orquestração de Les Cantes d'Hoffmann foi concluída depois da morte do compositor, por Ernest Guiraud. Trata-se de uma ópera difícil de ser montada (três papéis femininos de primeira linha, cinco importantes papéis masculinos, dos quais quatro baixos e um barítono, além de um demolidor papel principal para o tenor) e é problemática do ponto de vista da realização cênica.
Gounod e os que o cercavam O advento do Segundo Império foi marcado por uma progressiva mas inegável reformulação do cenário musical, mesmo que esse período, aos olhos de um Berlioz e dos primeiros "grandes" do século XX, permaneça como um período de transição. Se a opéra comique lançava então seus últimos fogos de artifício, esses fogos assinalaram a maior obra de seu repertório: Carmen. Face a Wagner e a Verdi, surgiu na França nesse período uma escola nacional, com Gounod e Massenet. A música instrumental renasceu finalmente das cinzas. A composição de música de câmara foi retomada, e para tanto fundaram-se inúmeras sociedades privadas a partir de 1848. De início destinadas à difusão de um repertório que permanecera no esquecimento (Société Alard Franchomme,
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em 1848; Société des Derniers Quatuors de Beethoven, em 1851), logo iriam dedicar-se a favorecer o cultivo desse gênero, bastante depreciado, por novos compositores (Edouard Lalo, por exemplo, começou como violista na Société de Musique de Chambre Armingaud).. Do ponto de vista das orquestras, três grandes regentes tiveram seus nomes associados a uma renovação continuada da mstituição sinfônica, assim como à propagação da nova música. Esses nomes são até hoje familiares para o público: Jules Pasdeloup, Edouard Colonne e Charles Lamoureux foram os maiores artífices da renovação sinfônica do século XLX na França. Jules Pasdeloup inaugurou, em 1861, seus Concerts Populaires, no Cirque d'Hiver (1861 a 1884), nos quais teve uma primeira audição a Symphonie espagnole [Sinfonia espanhola] de Lalo, em 7 de fevereiro de 1875. Em seu conjunto, porém, os programas eram bastante clássicos. Edouard Colonne começou como violinista, tornando-se, mais tarde, assistente de Pasdeloup. Criou, em 1873, o Concert National, que se transformou em associação artística, de início situada no Teatro Odéon e depois no Châtelet (Concerts du Châtelet, mais tarde Concerts Colonne). Os Concerts Colonne foram um apoio eficaz a compositores como Berlioz, Bizet, Saint-Saëns e, depois, Debussy e Ravel. Também executavam o repertorio estrangeiro (Mendelssohn, Beethoven, Wagner). Mais atraído por esse repertorio germânico, Charles Lamoureux fundara, em 1860, uma sociedade de música de câmara, que haveria de revelar Brahms para o público francês. Em seguida, criara a Société de l'Harmonie Sacrée (primeiras audições: Messiah e Judas Macabeu, de Haendel, A Paixão segundo São Mateus, de Bach...) e, finalmente, Société des Nouveaux Concerts, que funcionou a partir .de 1881 e muito contribuiu para a difusão da obra de Wagner na França. *** Nesse período da música francesa, Edouard Lalo (1823-1892) foi certamente o primeiro compositor instrumental a destacar-se enquanto tal. Para completar sua formação de origem (violino e harmonia, no Conservatório de Lille), transferiuse para Paris e estudou composição com François Habeneck. A partir de 1855, para ganhar a vida, participou das sessões de música de câmara de Armingaud e de Jacquard. Ainda presa da idéia de que um músico só era "descoberto" quando produzia uma obra de teatro, Lalo viria a compor, tardiamente, duas delas: Namouna, um balé, em 1882 — acolhido por Claude Debussy nos seguintes termos: "Entre balés tão estúpidos, há uma obra-prima: Namouna, de Lalo." —, e a ópera Le Roi d'Ys [O rei de Ys], em 1888. Mas foi no domínio sinfônico que esse músico de linguagem tão afetuosa e colorida demonstrou toda as suas possibilidades: seu Concerto para violino teve sua primeira audição no Concert National em 1874, e, como já se disse, sua Symphonie espagnole estreou nos Concerts Populaires
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em 1875. As obras de Lalo para orquestra dão o tom de um certo estilo sinfônico francês, brilhante, mas de sedução muito superficial: Rhapsodie norvégienne [Rapsódia norueguesa], Sinfonia em sol menor. Compôs também música de câmara — três trios, dois quartetos de cordas, dois quintetos ainda inéditos — diferentes peças para piano e algumas mélodies. Desde 1830 o sistema tonai dava sinais de esgotamento que se tornariam evidentes no final do século. A renovação da escrita musical, como se sabe, não veio da França. No gênero da opéra comique, escrevia-se em 1830 mais ou menos o mesmo tipo de coisa que em 1780. Durante todo o século, o terreno instrumental, que passara novamente a ser cultivado pelos compositores, conservou o atraso a que fora condenado por um período excessivamente longo de inércia. Quanto ao ensino da música, encontrava-se sólidamente dominado, de um lado, pelo dogmatismo o mais tradicionalista do Conservatório (sempre contrário à novidade) e, de outro, por um ensino quase tão rígido e limitador, ministrado pelo "conservatório de música religiosa e clássica" dirigido por Alexandre Choron e depois por Niedermeyer (que lhe deu o nome), onde a "harmonia curvava-se diante das exigências da melodia modal em uma compreensão ampliada da tonalidade" (Roland-Manuel). Foi lá que, nos anos 1860, o jovem Gabriel Fauré ganhou todos os prêmios. Se a Ópera de Paris já conseguira ganhar o título de "museu de música" (não mais do que cinco obras francesas foram criadas entre 1852 e 1870), o Théâtre Lyrique, recentemente fundado (1851), era mais aberto: lá foi apresentada, em 1863, a ópera Les Troyens [Os troianos], de Berlioz. Também no Théâtre Lyrique tiveram lugar as representações parisienses de Rienzi, de Richard Wagner, e os promissores trabalhos de Gounod: Le Médecin malgré lui [O médico à força], em 1858, e Faust [Fausto], em 1859. *** Charles Gounod (1818-1893) foi indiscutivelmente um personagem fora do comum: fascinado pela religião durante toda a vida, nunca ingressou numa ordem religiosa, mas deixou um colossal catálogo de músicas de igreja; igualmente fascinado pelo teatro, legou-nos cerca de vinte obras líricas, das quais cinco ou seis constituem uma das contribuições mais preciosas da música francesa para o repertório lírico do século XIX. Tendo sido agraciado com o Prix de Rome em 1839, Gounod conheceu, na Cidade Eterna, o padre Lacordaire, futuro grande orador dominicano que então terminava o noviciado em Viterbe. Vivamente impressionado, quis também professar. A família conseguiu evitar que o fizesse, mas, durante toda a vida, Gounod foi periodicamente "tomado" por crises mais ou menos místicas, chegando mes-
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mo, em certos momentos, a vestir sotaina e assinar-se "abade Gounod": uma ligeira tendência à mistificação que muitas vezes haveria de manifestar-se também em suas composições... Até 1850, Gounod praticamente só compôs música de igreja, mas, "sofrendo por permanecer obscuro", procurou voltar-se para o teatro e compôs Sapho [Safo], por sinal com um libreto catastrófico (1851). Pauline Viardot tentou — em vão — defender a obra. No ano seguinte, Gounod foi nomeado para os seus primeiros cargos oficiais (mestre de canto das escolas conreináis, inspetor dos orfeões). Nos anos consecutivos (1854-1855), Pasdeloup regeu as duas sinfonias de Gounod, ambas de um classicismo excessivamente atrasado. O sucesso, contudo, já estava por perto. Mas a página que o tornaria célebre da noite para o dia foi a sua Méditation [Meditação], mais conhecida como Ave Maria (as palavras da oração Ave Maria eram cantadas com a música do primeiro prelúdio de Das wohltemperierte Klavier [O cravo bem temperado] de Johann Sebastian Bach). Gounod chegou a fazer da peça uma versão para grande orquestra (com grande reforço de harpas, bombos, címbalos e coro). A ópera Faust (1859) foi certamente sua obra-prima. Inspirada no Faust de Goethe, a obra de Gounod (com libreto de Barbier e Carré) modificava consideravelmente as perspectivas do original. O tema foi esvaziado de seu conteúdo puramente filosófico e literário, e o personagem-título, reduzido à função de mulherengo, perdeu toda a espessura psicológica. O drama passou a articular-se totalmente em torno do destino de Marguerite. O terceiro ato, com a célebre Air des bijoux [Ária das jóias], mas sobretudo com o quarteto e o dueto do jardim, é uma das mais belas páginas do repertório francês: mesmo o mais insensível dos auditórios não pode deixar de notar a qualidade da inspiração e o domínio da escrita musical. Gounod estava então em plena posse de seus meios artísticos, e novas criações sucederam-se em ritmo acelerado: cinco óperas, de Mireille, em 1864, a Roméo et Juliette, baseada na tragédia de Shakespeare, em 1867. As últimas etapas da vida do compositor foram marcadas por uma temporada na Inglaterra, onde Gounod refugiou-se com sua família depois de 1870; por uma forte ligação com a cantora Georgina Weldon e, simultaneamente, pela composição de diferentes oratórios — Mors et vita [Morte e vida], Rédemption [Redenção]. Houve ainda um último retorno à França e à tragédia lírica, com Cinq Mars (1877), o oratório profano Polyeucte [Pofieuto,1878], Le Tribut de Zamora [O tributo de Zamora, 1881]. Gounod era um metodista sem par, e sua escrita musical dá provas de um respeito exemplar pela prosodia francesa. Segundo a sensual expressão de Paul Landormy, a melodia de Gounod voluntariamente arredonda-se em contornos que se desenham com lentidão, n ã o sem uma graça particularmente feliz. Eleva-se facilmente e consegue planar sem esforços. Repousa em c o n c l u s õ e s brandas e sem sobressaltos, por vezes n ã o isentas de alguma faceirice ou de u m a certa preciosidade, mas t a m b é m , por outras, na mais clara simplicidade. Toca primeiro os sentidos, mas vai até a alma. Envolve-se de u m certo mistério,
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mas n ã o deixa de estar banhada de luz, de uma luz doce e coada. O mais leve acompanhamento e as harmonias mais simples s ã o suficientes para assegurar-lhe o caminho. Ela n ã o vagabundeia pelas tonalidades, embora n ã o se furte às engenhosas m o d u l a ç õ e s .
Gounod representa bem, como escreveu Claude Debussy, "um momento" da sensibilidade francesa. Se sua obra não está isenta de plágios (a primeira parte de Mors et vita é um requiem que Gounod "toma emprestado" de Verdi em mais de uma página...), ele passa entretanto —junto com Massenet — por um dos "restauradores" do estilo nacional e um dos inspiradores diretos de Bizet e de Fauré, embora ambos o ultrapassem em ampla medida. * * *
A obra lírica de Jules Massenet (1842-1912) estende-se, em sua parte mais bem-sucedida, pelo último quartel do século XIX e os dez primeiros anos do século XX. Tendo recebido o Prix de Rome (1863), Massenet tornou-se professor do Conservatório em 1878 e demitiu-se de suas funções para dedicar-se apenas à composição, embora a parte mais importante de sua obra já houvesse sido escrita antes. Dez anos depois da morte de Massenet, Debussy escreveu: "Massenet parece ter sido vitimado pelo abanar dos leques de suas belas ouvintes." Na verdade, algumas de suas páginas, mesmo as obras mais bem-sucedidas — Manon (1864), Le Cid (1885), Werther (1892), Tahïs (1894) —, são marcadas por uma enorme complacência com relação ao público. A famosa Méditation [Meditação], da ópera Tais, ou o Clair de lune [Luar], da ópera Werther, páginas célebres em seu tempo, são apenas romanças de salão; há outras, em contrapartida, impregnadas de uma sensibilidade e de uma sensualidade bem fin de siècle, que ainda hoje enfeitiçam ("Enfermant les yeux", no segundo ato, assim como o dueto final do quinto ato de Manon). Não sejamos injustos. Reconheçamos, com Debussy, que a influência de Massenet sobre a música de seu tempo foi considerável. Como em Gounod, há em Massenet um inegável sentido melódico e dramático. A clareza e a elegância de seu estilo e o requinte da orquestração fazem dele um dos mais "franceses" dos compositores. Debussy, que muito lhe deve, escreveu em 1901 que Massenet tinha "o talento das cores claras e das melodias murmuradas em obras feitas de leveza". * ** Esse panorama permaneceria incompleto se não fosse mencionada uma constelação de compositores que, embora desconhecidos do público atual (quase todos injustamente), não deixam de ter seu lugar nesse limiar do século XX. Seja dita, de início, uma palavra sobre Gustave Charpentier (1860-1956), aluno de Massenet e imortal autor da ópera Louise (1900). Apresentada por seu autor
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como "um romance musical em quatro atos e cinco quadros", Louise é um exemplo da estética "naturalista" em música, que se pretende próxima de um Zola na literatura. Essa opção manifestava-se mais na música (onde é difícil ver em que ela consistiria) do que nos cenários e nos figurinos, no tema e no tipo de personagens que Charpentier escolheu pôr em cena (operários e burgueses). Com efeito, Paris é a personagem principal dessa obra original, na qual algumas pessoas que assistiram à representação de estréia julgaram ver uma apologia do amor livre. Encontram-se em Louise as brilhantes qualidades do sinfonista que trazia de Roma suas Impressions d'Italie [Impressões da Itália, 1891], além de um intimismo que leva a pensar em Puccini. Outro talentoso aluno de Massenet, Alfred Bruneau (1857-1934), colaborou assiduamente com Zola — L'Attaque du moulin [O ataque do moinho], Messidor, Le Rêve [O sonho], La Faute de l'abbé Mouret [O erro do abade Mouret] — e foi relativamente apreciado por Debussy, que gostava de citar o terceiro ato de Ouragan [Furacão] ou certas páginas de Le Rêve como realizações dignas de elogio. Fosse o que fosse, essa orientação.da música foi efêmera, por falta de outros representantes de alguma envergadura. Tendo conhecido sua hora de glória na primeira metade do século, a opéra comique começou, por seu lado, a perder o fôlego. Com exceção de Carmen — e a obra na verdade supera o gênero —, a ópera cômica francesa não mais produziu obras de destaque. É preciso citar Victor Massé (1822-1884) que, nos momentos mais bem-sucedidos de Les Noces dejeanette [As nupcias de Jeannette, 1853] ou de Galatée [Galatéia, 1854], lembra Gounod, e Ambroise Thomas (1811-1896), acadêmico e mais tarde diretor do Conservatório (1871), que, depois de inúmeros fracassos no teatro, acabou por brilhar com Le Caïd na opéra comique de Paris em 1849. Encantado com a literatura, Ambroise Thomas flertou com Shakespeare — Hamlet (1868), La Tempête [A tempestade, 1889] —, levou à cena pessoalmente Le Songe d'une nuit d'été [Sonhos de noite de verão] em 1850, obra para o qual compôs música tão italianizante quanto convencional. O sucesso mais duradouro de Thomas foi Mignon, que data de 1866, com libreto de Carré e Barbier, adaptado de Wilhelm Meister, de Goethe. Melodista agradável, Léo Defibes (1836-1891) teve seu momento de glória com Lakmé, ópera a que pertence a famosa Air des clochettes [Ária das campainhas], em 1883. Os balés Coppélia [Copéfia, 1870] e Sylvia (1876), com música composta por Delibes, permanecem no repertório dos grandes teatros. Se apenas mencionamos Charles Lecocq (1832-1918) por conta de La Filie de madame Angot [A filha de madame Angot, 1872], Edmond Audran (1840-1901) por La Mascotte [A mascote, 1880] e Henri Rabaud (1873-1949) por Mârouf (1914), em compensação é preciso fazer uma referência especial a André Messager (1853-1929), aluno da escola de Niedermeyer e amigo de Fauré, a quem se deve La Basoche [A dança dos magistrados, 1891], Les P'tites Michu [As pequenas Michu,
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1897], Véronique (1898) e Fortunio (1907) — um modelo de "comédia musical ao gosto francês". Messager exerceu funções ditatoriais na Ópera de Paris e depois na Opéra Comique, mas seu nome permaneceria, antes de mais nada, ligado à apresentação de Pelléas etMélisande [Peléas e Melisandra], ópera de Debussy que foi aceita na Opéra Comique em parte graças a Messager e de cuja direção e regência ele próprio se incumbiu. No capítulo dos "wagnerianos franceses", cumpre finalmente evocar Ernest Reyer pela ópera Sigurd (1884); Xavier Leroux, cuja ópera Le Chemineau [O peregrino, 1907] revela a dupla influência de Wagner e de Massenet, efinalmenteReynaldo Hahn — uma figura original que pertence mais ao século XX do que ao XIX. Como bem demonstra sua correspondência com Marcel Proust, Hahn era amigo de "todos os que importavam" no mundo das artes e das letras em Paris. Compôs seis óperas, duas comédias musicais e quatro operetas, bem como inúmeras mélodies que fizeram a alegria dos salões parisienses do entreguerras.
Georges Bizet De envergadura totalmente diversa é a figura de Georges Bizet (1838-1875), decerto a mais alta figura dessa segunda parte do século XIX no domínio lírico francês. Criança precoce e dotada, já aos dez anos Georges Bizet entrava no Conservatório de Paris por uma especial deferência. A carreira de Bizet foi brilhante; ganhou facilmente todos os prêmios dos cursos que freqüentou. A influência de Gounod, que Bizet conheceu na aula de contraponto, manifestou-se em uma de suas obras de juventude, a magnífica Sinfonia em dó maior, de 1855 — composta exatamente ao mesmo tempo que a sinfonia de Gounod. Embora nenhuma das duas obras manifeste a intenção de afastar-se do modelo vienense, a de Bizet impõe-se pelo domínio técnico e supera a de Gounod pelo frescor e pela espontaneidade da invenção. O movimento lento é profético: o tema de oboé produz uma fórmula melódica que pode ser reencontrada na introdução da ária de Nadir em Les Pêcheurs de perles [Os pescadores de pérolas] e no trio do minueto em L'Arlésienne [A arlesiana], sempre apresentada pelo oboé. Isso prova — se fosse preciso provar — que o exotismo era uma das qualidades naturais da escrita de Bizet, que pouco viajou em toda a vida. Depois de um primeiro período feliz, que se encerrou com uma encantadora temporada na Villa Médicis, entre 1857 e 1860, Bizet nunca mais reencontraria tamanho bem-estar. Na volta de Roma, teve início para o compositor um decênio de dúvidas e incertezas. Inúmeros trabalhos foram iniciados e abandonados (Esmeralda, Ulysse, Don Quixotte...), e todos davam mostras de uma única preocupação (obsessão?): a ópera. Bizet parecia "andar em círculos", buscar modelos entre Mozart e Rossini, de um lado, Beethoven e Wagner, de outro... e ter dificuldades para encontrar seu próprio caminho.
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Foi uma encomenda da Opéra Comique que veio tirar Bizet do marasmo: a ópera Les Pêcheurs de perles foi escrita de um só impulso, entre abril e agosto de 1863, e apresentada em 30 de setembro do mesmo ano. A obra era desigual, a acolhida foi morna e o próprio compositor tratou de retirá-la de cartaz após dezoito representações. Novidade que era, a ópera foi mal compreendida. Ao mesmo tempo taxada de "wagnerismo" e de "verdismo" por uma crítica amplamente incompetente, a ópera não soube encontrar bons defensores (com exceção de Berlioz, cujo público era infehzmente limitado). O próprio Bizet foi bastante lúcido: "A forma deixa a desejar; sem forma não há estilo; e sem estilo não há arte", gostava de declarar. A etapa seguinte foi marcada por uma nova encomenda, desta vez feita pelo Théâtre Lyrique: La Jolie fille de Perth [A bela jovem de Perth], apresentada em 1866, recebeu melhor acolhida. Apesar de um libreto mais uma vez inepto, a obra significava um progresso inegável em direção ao domínio da atmosfera dramática (tensão, humor). Pelo estilo sóbrio, claro e original, que então começava a se fazer sentir, pode-se ver um salutar antídoto para certas obras "açucaradas" de Gounod, então em plena glória. Esses anos de 1865-1868 representaram para Bizet uma "pausa instrumental", em que produziu muitas partituras para piano e muitas mélodies. No conjunto, essas peças trazem bastante influência germânica (Mendelssohn, Schumann) e de Liszt. Nota-se, por exemplo, nas Variations chromatiques [Variações cromáticas, 1868] para piano, poderosas afinidades com as 32 Variações em dó menor, de Beethoven. Percebe-se, contudo, na mélodie intitulada Les Adieux de l'hôtesse arabe [As despedidas da hospedeira árabe, 1866], uma concentração de paixão na voz e um domínio do pitoresco que prenunciam diretamente o universo de Carmen. Em 1868, uma nova crise de confiança voltou a assaltar Bizet. Durante três anos ele hesitou novamente, mas terminou Roma, obra que esboçara nessa cidade e que veio a ser favoravelmente acolhida por Pasdeloup. Apesar de tudo, o compositor acabou por se institucionalizar um pouco (casamento com a filha de Fromental Halévy, participação no júri do Prix de Rome). Depois da Guerra FrancoPrussiana de 1870, Bizet publicou seus Jeux d'enfants [Jogos infantis] em 1871, doze fragmentos para piano a quatro mãos, dos quais quatro iriam formar, mais tarde, a Suite d'orchestre [Suíte de orquestra]. Em 1871, Camille du Locle encomendou-lhe, para a Opéra Comique, Djamileh, baseada em Namouna, de Alfred de Musset: a obra foi um dos mais retumbantes fracassos da Opéra Comique. Mas, paradoxalmente, Bizet logo em seguida tomou coragem e pôs mãos à obra: começou a trabalhar com os libretistas de Offenbach — Meilhac e Halévy — no que haveria de ser sua obra-prima. Uma importante interrupção veio suspender o trabalho de composição de Carmen: a música que Bizet escreveu para L'Arlésienne [A arlesiana] de Alphonse Daudet. Mesmo que esta obra só possa ser plenamente apreciada quando associada à peça de Daudet, a Suite de Varlésienne recebeu aco-
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lhida triunfal quando apresentada por Pasdeloup em dezembro de 1872. A audiência não se enganou: era uma obra-prima. Suprema realização de um gênero que vinha transcender, última e definitiva criação de um homem cuja morte iria causar, Carmen é incontestavelmente não apenas a maior obra-prima da tradição lírica francesa do século XIX — a única a não empalidecer diante das obras-primas italianas e wagnerianas —, mas sobretudo a única opéra comique moderna. Além disso, Carmen é, no repertório musical francês, a única verdadeira incursão daquelas obras em que efetivamente se afirma em toda a sua força o "realismo psicológico", como, no campo romanesco, destacam-se as de Stendhal, Flaubert ou Proust, e, é claro, a de Mérimée, cuja novela está na origem do libreto de Meilhac e Halévy. Apesar dos remanejamentos que foi obrigado a fazer, Bizet soube permanecer firme nas questões essenciais e impôs uma ampliação do gênero da opéra comique, introduzindo o que, desde Les Pêcheurs de perles, lhe parecia primordial, isto é, a noção de estilo. Construída como uma inexorável progressão em direção à morte, a estrutura dramática de Carmen é perfeita. ("Trate de fazê-la não morrer", haviam suplicado tolamente os autores: "Nunca se viu ninguém morrer no palco em opéra comique".) Mulher fatal para alguns, protótipo do ser livre e independente (masculino?) para outros, Carmen com toda a certeza pertence à galeria das grandes heroínas do repertório que, de Brünnhilde à Lulu de Alban Berg, assombram ainda hoje os espíritos dos apaixonados por ópera. A trajetória de dom José, a decadência progressiva que o leva da condição de honesto soldado à de assassino, bem como o destino de Carmen, são elementos universais da condição humana, aos quais a música de Bizet conferiu uma veracidade emocional indiscutível. Além disso, nessa partitura, "toda nervos e músculos", tudo concorre para a verdade da atmosfera: a economia da orquestração, a alternância de pitoresco e não-pitoresco (lembremos, a esse respeito, que a Espanha de Bizet é puramente fantasmagórica), a credibilidade das personagens. "Como uma obra assim nos torna perfeitos!", exclamou Nietzsche, cujo entusiasmo por Carmen jamais se desmentiu. A estréia, em 3 de março de 1875, foi umfracasso.Mas os músicos de verdade — Saint-Saëns, Massenet, Brahms — não se enganaram e nela louvaram uma obra-prima. A crítica foi unânime na condenação: Bizet era a um só tempo wagneriano e obsceno, erudito e obscuro, não tinha sentido melódico nem senso dramático. A ópera só obteve sucesso quando voltou do estrangeiro — em Viena, Carmen triunfou sem esforço. Bizet, que não sobrevivera ao fracasso da estréia, já estava morto havia oito anos.
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CÉSAR FRANCK, OS "FRANCKISTAS" E CHABRIER
Poucas personalidades e poucas obras na história da música francesa colocam tantas questões como as de César Franck. Sua vida, contudo, parece ser tão simples que o chamaram o Voter seraphicus. E sua obra, como ele próprio declarou, era "fundada, como toda obra musical, em um princípio vital e básico: a estrutura tonai". Uma como a outra — vida e obra — são todavia matizadas por tantas sutilezas, percorridas por tantas contradições, que nunca deixaram de desconcertar os críticos, os musicólogos e mesmo o público. 1
César Franck ou a vida de um homem de bem Primeira contradição: aquele que muitas vezes foi visto como o símbolo de uma certa concepção francesa da música não tinha nas veias uma gota de sangue francês. Nascido em Liège no dia 10 de dezembro de 1822, César Franck também não era valão nemflamengo:todas as suas origens, próximas ou distantes, ligavam-no à Áustria e à Alemanha. É verdade que Franck naturalizou-se francês por duas vezes: a primeira, em 1837, para poder entrar no Conservatório de Paris; a segunda, durante a Guerra Franco-Prussiana de 1870, para que seu filho pudesse engajar-se no Exército francês. Segunda contradição: sem os pais, César Franck talvez nunca tivesse sido músico; suas primeiras aptidões inclinavam-no para o desenho e a pintura. Mas o Imagem de pai nobre, bom marido, bom cidadão, bom cristão, enternecedor e um tanto tolo. (N. T.)
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terrível e mesquinho Nicolas-Joseph Franck, uma das figuras paternas mais odiosas da história da música, não entendia assim: depois do pequeno Mozart e do pequeno Liszt, meninos-prodigio muito rentáveis, seria a vez dos pequenos Franck — os, porque não se pode separar, pelo menos no início de suas vidas, o pianista César e seu irmão caçula, o violinista Joseph. Instalado em Paris com a família em 1835, Nicolas-Joseph Franck tentou, durante anos, fazer de seus filhos duas vedetes. Aliás, obteve mais sucesso com Joseph do que com César. A despeito de uma carreira bastante brilhante no Conservatório de Paris e de alguns sucessos em concertos (e malgrado os esforços do paiempresário, que se valia de todas as modernas técnicas de publicidade), César Franck não era um Liszt ou um Moscheles. Intérprete extremamente hábil, faltava-lhe — e esta seria também uma das características de sua obra — o aspecto mundano brilhante, a elegância envolvente, o poder de sedução imediata. Era um construtor, um compositor que refletia sobre as estruturas musicais, e seu futuro sucesso como organista não contradiz essa atração pela "linguagem". A maior parte dos grandes músicos da época (entre eles Liszt, Moscheles e Hans von Bülow) reconheceu imediatamente o valor das primeiras obras de César Franck, em particular dos quatro Trios opus 1 e 2, de 1843. A respeito de Ruth, um oratório apresentado em 1845, Liszt teve a oportunidade de afirmar que, entre os jovens músicos de seu tempo, não havia três que valessem César Franck. Mas agora César Franck alcançara a maioridade. Como a psicanálise ainda não fora inventada, a ruptura entre ele e seu terrível pai desenrolou-se segundo os cânones clássicos do drama burguês: encontro da bem-amada (Eugénie Desmousseaux, filha de atores do Théâtre Français); recusa paterna do consentimento; casamento mesmo assim, na pobreza; maldição do pai ultrajado. O casamento de César Franck e a ruptura com o pai não foram só uma peripécia: entregue a si mesmo, César Franck seguiria, de então por diante, uma trajetória obscura e de trabalho. Primeiro foi preciso ganhar a vida dando aulas de piano, tocando no Institut Musical d'Orléans, tornando-se organista da paróquia de Saint-Jean-Saint-François e, depois, da nova basílica de Saint-Clotilde. Durante mais de vinte anos, César Franck não haveria de compor praticamente nada... Esse silêncio de vinte anos muitas vezes intrigou os historiadores. Com certeza deveu-se principalmente às necessidades materiais. Mas revelava também o caráter de um homem cujas leituras favoritas eram a Bíblia e a Crítica da razão pura, de Kant, e que havia sido inibido por um passado de criança-prodígio. Além disso, para um músico francês do Segundo Império, a via privilegiada era a ópera, e César Franck não se mostrava atraído pelo teatro. Suas raras tentativas nesse domínio — Le Valet de ferme [O criado de fazenda, 1853], Huida (1885) e Ghiselle (1888-1889) — foram grandes fracassos. Em todo caso, o silêncio do compositor não era o sono do músico: organista mediano na época de estudante, César Franck iria revelar-se — em particular no
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famoso órgão Cavaillé-Coll de Sainte-Clotilde — um dos maiores organistas de seu tempo. Em 1866, Liszt disse que César Franck, em Sainte-Clotilde, era "igual ao maior de todos os mestres, o grande Johann Sebastian Bach!" Certamente é muito difícil julgar a partir das peças escritas — apenas um pálido reflexo das improvisações —, mas a comparação de Franz Liszt, pelo menos do ponto de vista do caráter, era bastante correta: a mesma fé serena e sólida, a mesma concepção aplicada do ofício de músico, o mesmo interesse pela "sintaxe" musical. O destino pessoal e musical de César Franck mudou no início da década de 1870. Nesse ano, com Saint-Saëns e outros, fundou a Société Nacionale de Musique, a famosa S.N.M., cujo primeiro concerto teve lugar em 17 de novembro de 1871 e cuja divisa, Arsgallica [Arte gaulesa], representava a um só tempo as ambições e as circunstâncias políticas da época. Algumas semanas mais tarde, César Franck foi nomeado professor de órgão do Conservatório: começava então o terceiro período da vida do compositor, marcado pelas grandes obras de uma maturidade tardia, mas surpreendentemente fecunda: obras sinfônicas como Les Éolides [Os Eólidos, 1876], as Variations symphoniques [Variações sinfônicas] para piano e orquestra (1885), Le Chasseur maudit [O caçador maldito, 1882], Les Djinns (1884), a Sinfonia em ré menor (1886-1888); oratórios, como Rédemption [Redenção, 1873] e Les Béatitudes [As beatitudes, 1880]; e sobretudo obras de música de câmara, como o famoso Quinteto para piano e cordas emfá menor (1878), Prélude, choral et fugue [Prelúdio, coral e fuga, 1884], a conhecida Sonata para piano e violino (1886), dedicada a Eugène Ysaye, e o Quarteto de cordas (1889). Mas a força de irradiação do gênio de César Franck não está em sua música: ele desempenhou importante papel como chefe de escola, quer se tratasse do grupo de compositores que se autodenominavam la hande à Franck [o bando de Franck], quer de seus alunos do Conservatório. Essa irradiação, de que existem poucos exemplos na história da música (ela faz pensar, com todas as suas correspondências, na do padre Martini), explica-se por vários fatores. De início, havia o próprio caráter de César Franck, sua serenidade, a tolerância e a elevação de sua visão espiritual e musical — e, sem qualquer dúvida, suas enormes qualidades pedagógicas. Havia também o que se poderia chamar de ecumenismo musical de Franck: em uma geração profundamente marcada pelas polêmicas em torno de Wagner, César Franck soube ser wagneriano sem ser wagnerólatra e sem renegar nenhuma das tradições. Havia igualmente, contra os "teatrais" (Gounod, Delibes, Thomas, Massenet e outros), a defesa e a ilustração de uma música "séria", escrita com outro propósito que não o de facilitar as digestões burguesas. Enfim, naquela França posterior ao desastre de 1870, César Franck foi o símbolo da riqueza de uma escola francesa cujo equivalente só pode ser encontrado recuando-se até o século XVIII. Embora o conteúdo da expressão Ars gallica seja praticamente impossível de definir, Franck, os franckistas e a S.N.M. eram os hussardos de uma França regenerada que partia para a reconquista da sua Alsácia-Lorena musical...
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César Franck foi vítima de um acidente de carro em maio de 1890, ao qual não sobreviveu por muito tempo. Antes de sua morte, em 8 de novembro do mesmo ano, pôde contudo escrever seu testamento musical e espiritual, os Três corais para órgão que, só eles, justificam o julgamento de Claude Debussy: E m César Franck, há uma d e v o ç ã o constante à m ú s i c a . Quando ele está diante dela,
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menos na França, a usar e a preconizar a "forma cíclica", que é justamente o contrário de um princípio: uma célula melódica — de que o Leitmotiv wagneriano é um caso particular — que se expande e se transforma livremente no decorrer da obra, sem maiores cuidados com as regras formais do desenvolvimento clássico. A "pequena frase" da sonata de Vinteuil... Debussy e Milhaud, assim como d'Indy, são os filhos de César Franck. 1
ajoelha-se murmurando a prece mais profundamente humana jamais pronunciada por uma alma mortal.
Tal como ele mesmo... Pela obra, assim como pelo exemplo, César Franck é fundamental na história da música francesa em todos os sentidos. Primeiro artesão daquela "renovação" saudada na época por Romain Rolland, ele fez caducar a definição dada por Richard Wagner dos compositores franceses em 1840: "Todos têm um pé na opéra comique" O caso dos gêneros musicais ressuscitados por César Franck é a melhor ilustração de sua contribuição. Para começar, foi graças a ele que a música de câmara deixou de ser, no século XLX, uma especialidade exclusivamente germânica. Se examinarmos o catálogo das obras dos compositores franceses desde o início do século, inclusive Hector Berlioz, verificaremos que a sonata, o trio e o quarteto estão praticamente ausentes, com uma única exceção, que confirma a regra: Cherubini. Por causa do poder hegemônico da literatura, o romantismo francês estava preso ao texto; pelo teatro lírico, com certeza, mas também pela mélodie e pelo "programa" das obras sinfônicas. Césàr Franck reabilitou a "música pura", no verdadeiro sentido do termo: a música que não deve nada aos coadjuvantes da cena, nem à caução do grande poeta, nem sequer à dramaticidade do solista virtuose. Franck reencontrou o gosto pelos timbres instrumentais e por suas combinações e, se insistiu nas regras do estilo e da linguagem musical, foi para que a música só fosse apreciada e julgada segundo critérios que lhe são próprios. Após a idade de ouro do século anterior, o órgão francês também havia perdido sua alma. A religiosidade romântica contentava-se, na maior parte das vezes, com as harmonias açucaradas dos organistas mundanos, de que Lefébvre-Wély (1817¬ 1869) foi um dos melhores exemplos. Pior ainda, muitas vezes os temas ou as melodias eram tomados de empréstimo à ópera, que inspirava as improvisações "agradáveis" dos titulares da moda. Não é difícil imaginar que a fé de César Franck e suas concepções musicais não se acomodassem a essa modalidade de execução ao órgão. Ajudado pela renovação no modo de construir o instrumento (como separar o nome de Franck do nome de Cavaillé-Coll?) e deslumbrado pelo concerto que Anton Bruckner apresentara nos órgãos de Notre-Dame em 1869, César Franck devolveu ao órgão francês sua dignidade e fundou uma escola de organistas que, um século depois, permanece viva. Em todos esses aspectos, César Franck é tudo, menos um teórico ou um doutrinário. Quando julgava, dizia "gosto", ou calava-se. Foi um dos primeiros, pelo
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Depois de um século, o destino de César Franck sofreu muitas variações. Não se deve pensar que, ainda em vida do compositor, sua música ou seu ensino tivessem sempre suscitado a unanimidade. A maior parte das obras de Franck só obteve sucesso junto à crítica; outras, como Rédemption ou Les Béatitudes., chegaram a ser verdadeiros fracassos. O próprio Saint-Saêns, um dos amigos de César Franck, manifestou algumas reticências com relação às mais belas obras deste, como o Quinteto emfá menor ou Prelúdio, coral efuga. Quanto ao ensino dispensado por César Franck no Conservatório de Paris, teve de enfrentar a hostilidade dos "teatrais", que não hesitavam em dizer, como Léo Delibes: "O senhor Franck revela tendências perigosas." Condenava-se em César Franck o uso muito freqüente de tonalidades difíceis para os intérpretes (como a de fá sustenido maior). Finalmente, com César Franck ainda vivo, começou-se a construir a lenda do Pater seraphicus, como se, aliás, a austeridade dos costumes fosse incompatível com o talento musical. É preciso muito esforço, de resto, para que a personalidade e a obra de César Franck possam ser qualificadas como etéreas, para não dizer puritanas. A respeito de Franck, sabe-se de, pelo menos, uma paixão extraconjugal, mas provavelmente platônica, por Augusta Holmès. Para além da anedota, em todo caso, obras como Psiché [Psiquê] ou o Quinteto em fá menor mostram em César Franck a presença permanente de uma sensualidade indiscutível, que por sinal só atrapalha os "ha¬ giógrafos" do compositor. Durante muito tempo, contudo, as obras sinfônicas de Franck—em particular Le Chasseur maudit, as Variations symphoniques e a Sinfonia em ré menor— foram peças dominantes no repertório dos concertos, com sua música de câmara ficando naturalmente reservada aos happy few. Atualmente, a obra de César Franck é objeto de certa comiseração por parte dos musicólogos que lhe condenam o respeito absoluto pela tonalidade — embora estejam prontos a criticar também seu cromatismo —, o rigor das formas, a administração erudita das modulações. Amigo e Vinteuil, o compositor, é uma das personagens de  la Recherche du temps perdu [Em busca do tempo perdido], a grande obra de Marcel Proust, romancista francês do início do século XX. Alguns estudiosos sustentam que a personagem é inspirada em César Franck e que a "petit phrase" da sonata de Vinteuil, tantas vezes mencionada na obra, pertenceria à magnífica Sonata para violino e piano de César Franck. (N. T.)
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contemporâneo que era de Saint-Saëns e de d'Indy, atribui-se a César Franck as mesmas limitações e particularidades desses dois compositores. Compositor francês da segunda metade do século XLX, é cobrado por não ter feito pressentir a Escola de Viena e não haver começado a destruir a herança de formas e de linguagens a que ele apenas se dispôs a dar continuidade e enriquecer. Fora a beleza de uma obra que ainda está por ser redescoberta, o caso de César Franck é particularmente interessante. Na verdade, ele faz parte daquele grupo de compositores (como Johann Sebastian Bach ou Gustav Mahler) cuja "leitura" pela posteridade é indicativa do gosto e das concepções musicais de uma época, uma prova de que sua ingenuidade era mfinitamente menor do que ele deixava transparecer... Lo bonde à Franck É impossível evocar a obra e a personalidade de César Franck sem associar-lhes o grupo dos que eram chamados de la bande à Franck. Os limites e a natureza desse grupo, todavia, são extremamente difíceis de definir. O "bando de Franck" não se confundia certamente com a Société Nationale de Musique — de resto, dissolvida pela rivalidade entre Saint-Saëns e Vincent d'Indy. Seria abusivo incluir no "bando de Franck" compositores como o próprio Saint-Saëns, Massenet, Lalo ou Chabrier. A diversidade dos que o formavam impede, por outro lado, que se fale de "escola", ou de discípulos reunidos em torno do mestre Franck por força de uma doutrina estabelecida. Entretanto, o "bando de Franck" existia e teve uma influência considerável sobre a música francesa, ainda em vida e depois da morte de César Franck: uma espécie de grupo de pressão em favor de uma concepção ao mesmo tempo séria e aberta da música, não renegando nem proibindo nada. Nem todos os membros do "bando de Franck" foram favorecidos pela posteridade. Talvez injustamente, Arthur Coquard (1846-1910), Paul de Wailly (1854-1933), Charles Bordes (1863¬ 1909), Louis de Serres (1884-1942) ou ainda Pierre de Bréville (1861-1903) — autor de um pequeno livro que muito contribuiu para a difusão da imagem seráfica de César Franck: Les Fioretti du père Franck [As fioretti do pai Franck] —, todos foram esquecidos. Um pouco mais lembrada é a bela Augusta Holmès (1847-1903), que compunha sob o pseudônimo de Hermann Zenta. Irlandesa de origem, afilhada de Alfred de Vigny, Augusta Holmès inspirou a César Franck uma paixão tão violenta quanto reprimida, da qual o Quinteto de Franck talvez seja o eco e a sublimação. Tendo suscitado também o interesse amoroso do comportado Camille Saint-Saëns, Augusta Holmès permaneceu fiel a Catulle Mendès, com quem teve cinco filhos. Ela própria escrevia seus textos e compôs várias sinfonias de programa — entre as quais uma obra de proporções gigantescas, destinada à celebração do primeiro centenário da Revolução de 1789.
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Os membros mais eminentes do "bando de Franck" foram Alexis de Castillon (1838-1873), Ernest Chausson (1855-1899), Henri Duparc (1848-1933), Vincent d'Indy (1851-1931), Guy Ropartz (1864-1955) e Guillaume Lekeu (1870-1894). ALEXIS DE CASTILLON Alexis de Castillon de Saint-Victor foi a primeira vítima de uma espécie de maldição que atingiu a vida e o coração de vários membros do "bando de Franck" (Chausson, Duparc e Lekeu). Morto aos 35 anos, Castillon havia iniciado sua carreira de compositor (depois de uma passagem pelo Exército) somente aos 27 anos. Mas sua obra, se não chega a ser abundante, não deixa de ser de uma enorme beleza. Castillon foi, aliás, um exemplo da renovação da música de câmara na França. Se o seu Concerto para piano opus 12, dedicado a Saint-Saëns, ou Esquisses symphoniques [Esboços sinfônicos] opus 15 não são nada desdenháveis, é nas suas obras de câmara — como o Quarteto para piano e cordas opus 7, os dois Trios com piano ou a Sonata para violino e piano opus 6 — que se pode perceber melhor a personalidade desse compositor. Um músico de um lirismo patético, mas cuja escrita rigorosa é rica de idéias e invenções. ERNEST CHAUSSON Ernest Chausson reunia em si a maior parte das características dos franckistas: como Duparc ou Castillon, era um "amador", dotado de meios independentes, que chegou relativamente tarde (aos 25 anos) à música. Secretário da S.N.M., mostrava-se aberto a todas as correntes da música de seu tempo: admirador apaixonado de Wagner, favoreceu e influenciou Debussy, permanecendo fiel aos princípios da construção harmônica de César Franck. Como a maior parte dos seguidores de Franck, interessava-se também pelas outras formas de expressão artística, em particular pela pintura, que passava nesse final de século por transformações bem conhecidas. Se César Franck era amigo de Gleyzes, Chausson freqüentava Degas e Renoir. Como a da maior parte dos integrantes do "bando de Franck", a obra de Chausson é fundamentalmente lírica, como por sinal a da maioria dos poetas e dos pintores desse final de século XLX, em que os artistas tentavam, talvez pela última vez, reencontrar a palavra perdida sob a onda invasora do cientificismo triunfante. A obra de Chausson só faltou o tempo para que ela se tornasse uma das mais importantes de sua época: como Castillon, Duparc e Lekeu, a carreira de Ernest Chausson foi brutalmente interrompida aos 44 anos por um estúpido acidente. Chausson, contudo, não foi muito maltratado pela posteridade: o Poème de l'amour et de la mer [Poema do amor e do mar, 1887], a Sinfonia em si bemol maior (1890) e o Poème pour violon et orchestre [Poema para violino e orquestra, 1896] continuam a ser assiduamente executados. Mas podemos indagar se o "coração" da obra de Chausson não está ainda por ser descoberto em sua música de câmara: a obra-
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prima absoluta que é o Concerto em ré maior para piano, violino e quarteto de cordas, o Trio opus 3, o belíssimo Quarteto opus 35 e as várias mélodies, para as quais — ao contrário de tantos músicos excelentes — Chausson de um modo geral escolheu muito bem os textos. Em nenhum outro lugar, como em suas mélodies, pode-se perceber tão bem até que ponto Chausson exerceu o difícil papel de "elo" entre César Franck e Debussy. Finalmente, cumpre lamentar o esquecimento em que caíram as obras inspiradas a Chausson pelas lendas da Távola Redonda: o poema sinfônico Viviane (1882) e sobretudo LeRoi Arthur [O rei Arthur, 1881-1894], ópera para a qual o próprio Chausson escreveu o libreto, porque este grande músico era também um grande poeta. HENRI DUPARC
A carreira musical de Henri Duparc, como a de Ernest Chausson, foi curta. Atingido em 1885 por uma grave doença nervosa que o impediu, com menos de quarenta anos, de se dedicar a qualquer trabalho criativo, Duparc, doente e cego, a ela sobreviveu cerca de cinqüenta anos. O essencial da obra de Duparc reside nas treze mélodies (das quais algumas foram orquestradas), que constituem um conjunto único na música francesa. Graças a uma linguagem musical de incrível sutileza, Henri Duparc conseguiu adicionar poesia aos textos que musicou, sem qualquer redundância ou preciosismo. L'Invitation au voyage [O convite à viagem] e La Vie antérieure [A vida anterior], escrita para conhecidos poemas de Charles Baudelaire, talvez sejam as maiores obras-primas da mélodie francesa. Henri Duparc foi certamente o mais caro e o mais fervoroso discípulo de César Franck, que a ele legou vários manuscritos — dentre os quais, alguns inéditos de juventude. VINCENT D'INDY
Embora tenha incontestavelmente pertencido ao "bando de Franck", e embora a sua amizade com o mestre tenha sido bastante estreita, d'Indy pouco se parece com seus companheiros. Dele se pode dizer que era um músico militante. Para começar, foi militante político, nacionalista e antidreyfusiano, a atração musical da Action Française. Foi também, a despeito do seu calvinismo, um wagneriano apaixonado, que em 1886 provocou a cisão da Société Nationale de Musique, opondose a Saint-Saëns. Mas era sobretudo um crítico musical de incrível dogmatismo tonal, junto ao qual ninguém, de Beethoven a Debussy, obtinha graça. Basta 1er os artigos e o livro Cours de composition [Curso de composição] de Vincent d'Indy para que fique explicado como a revolta contra a tonalidade pôde parecer, para muitos músicos, uma verdadeira liberação. Na verdade, a personalidade de Vincent d'Indy é mais matizada do que seus juízos incisivos. Quando se tratava de música, d'Indy esquecia suas opiniões políticas ou racistas, como demonstram suas excelentes relações com Paul Dukas, para citar apenas um exemplo entre mil. Quanto ao homem, as maneiras eram tão
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doces quanto a pena era cruel. Não era fácil para d'Indy, criado por uma avó que havia conhecido Grétry, compreender Honegger ou Varèse... A importância doutrinai e polêmica de Vincent d'Indy e seu papel na Schola Cantorum fazem por vezes que fique esquecida a obra do compositor, merecendo atenção, o mais das vezes, apenas a Symphonie sur un chant montagnard français [Sinfonia sobre um canto francês das montanhas], dita igualmente Symphonie Cévenole. A obra de d'Indy é, no entanto, considerável: 105 opus, dentre os quais cumpre citar a Sinfonia n" 2 em mi bemol, a Jour d'été à la montagne [Dia de verão na montanha], a Grande sonata em mi, a ópera Fervaal (cuja inspiração wagneriana é bem mais aparente que real) e obras de música de câmara (entre as quais os três Quartetos para cordas), que estão por ser redescobertas. A isso tudo cabe ainda acrescentar a coleta e a harmonização de inúmeros cantos populares do Vivarais, na região de Cévennes, à qual d'Indy estava tão profundamente ligado. Finalmente, deve-se a Vincent d'Indy a renovação do interesse do público pela música francesa anterior ao romantismo, de Marc-Antoine Charpentier a Rameau, mas sobretudo pela música de Claudio Monteverdi, na época totalmente esquecido, e cujas óperas Vincent d'Indy fez interpretar na Schola Cantorum. 1
GUY ROPARTZ Último sobrevivente do "bando de Franck" — morreu em 1955, com mais de noventa anos —, Guy Ropartz caiu um pouco no esquecimento, apesar da estima de que gozou até a morte. Uma das características mais interessantes de Guy Ropartz é a associação de uma escrita musical muito sofisticada com uma inspiração folclórica (bretã, mas também da região do Bourbon), de que existem poucos exemplos na música francesa. A obra de Guy Ropartz é, aliás, de dimensão bastante considerável: mais de duzentas composições, dentre as quais cinco sinfonias, seis quartetos e várias peças de câmara, assim como muitas peças de cunho religioso. Cumpre lembrar que Ropartz é autor de uma obra literária considerável. GUILLAUME LEKEU Guillaume Lekeu foi o mais jovem discípulo de César Franck e, como ele, era originário da Bélgica. A famosa Sonata para piano e violino, escrita em 1892, é uma obra-prima do gênero e dá uma medida do que a música francesa do século XX perdeu com a morte prematura, aos 24 anos, de Guillaume Lekeu. Mas a celebridade dessa obra não deve empalidecer o Adagio para quarteto de orquestra opus 3, ou a Fantaisie symphonique sur deux airs populaires angevins [Fantasia sinfônica sobre duas árias populares angevinas], obras-primas de um catálogo prematuramente interrompido e, contudo, ainda não totalmente publicado. 1
Da regiãofrancesade Cévennes. (N. T.)
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A segunda geração "franckista" A maioria deles muito jovem para ter feito parte do "bando de Franck" ou antes alunos do que discípulos de César Franck, outros compositores franceses devem à renovação musical empreendida por César Franck o respeito pela linguagem e a qualidade de inspiração.
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po lírica e rigorosa, que cultivou todos os gêneros. Na ópera Polyphème [Polifemo], no Concerto para piano e orquestra e na suíte Âmes d'enfants [Almas de crianças] pode-se descobrir a personalidade apaixonada e atraente de um compositor cuja obra ainda reserva surpresas. O órgão francês depois de César Franck
ALBÊPJC MAGNAPvD
Albéric Magnard (1865-1914) pertenceu ao movimento franckista graças a d'Indy. Aluno de Massenet e filho de um dos grandes diretores do jornal francês Le Figaro, Albéric Magnard soube dar as costas à moda e ao "parisianismo" fácil. Sua morte heróica, em 1914, parece ter exaltado o homem em detrimento de sua música. Progressivamente exumada, essa música revela-se conforme à ética a que o compositor fixara-se: "O artista que não extrai sua força da abnegação, ou bem está perto da morte, ou bem está perto da desonra." Talvez se tenha feito uma aproximação muito fácil entre Beethoven e Magnard, fundamentada sobre elementos comuns: a surdez, o sentido do Durch Leiden Freude. É verdade que as quatro belíssimas sinfonias de Magnard enquadram-se em uma tradição bethoveniana do tema, do desenvolvimento e do ritmo (como, aliás, a Sinfonia de Franck). Mas o tom de Magnard é profundamente pessoal e sua obra de música de câmara é uma das mais belas de uma época particularmente rica nesse domínio DÉODAT D E SÉVERAC
Embora seja autor de várias obras Uricas e de belas mélodies, Déodat de Séverac (1872-1921) é conhecido principalmente por sua obra pianística. Na realidade, coletâneas como Le Chant de la terre [O canto da terra], En Languedoc ou En vancances [De férias] podem figurar entre as obras-primas da música para piano deste século. Esse "músico camponês", como ele mesmo se designava, soube conciliar a um só tempo o ensino rigoroso que recebera de d'Indy, Bordes e Magnard, o gosto pelos temas folclóricos tomados de sua província mediterrânea e uma admirável sensibilidade impressionista. Ao lado de Déodat de Séverac, cumpre citar igualmante Joseph Canteloube (1879-1957), que teve os mesmos mestres e que soube perfeitamente traduzir (e não apenas harmonizar) o folclore de uma região, em particular em Chants d'Auvergne [Cantos de Auvergne]. JEAN C R A S
Somente agora começa-se a reservar o lugar merecido a Jean Cras (1879-1932), de quem Henri Duparc, seu mestre, dizia: "É o jovem mais bem-dotado que jamais encontrei." Ao contrário de Albert Roussel, Jean Cras nunca abandonou a carreira de oficial de marinha e morreu cedo, quando acabava de ser nomeado almirante. Mas sua carreira não o impediu de compor uma obra importante, ao mesmo tem-
Como já se viu, a ressurreição de uma grande escola francesa de organistas-compositores não foi a herança menos significativa deixada por César Franck. A concepção arquitetura! de Franck, assim como as possibilidades abertas pelo modo moderno de fabricar órgãos, explicam bastante bem por que se tem feito referência a essa escola como a "escola do órgão sinfônico". Charles-Marie Widor (1845-1937), embora tenha sido durante um período aluno de César Franck (antes de tornar-se seu sucessor no Conservatório de Paris), muitas vezes rejeitou, pelo menos em palavras, a influência deste último. As nove grandes sinfomas para órgão que compôs nem por isso deixam de estar na tradição de seu predecessor, mesmo se Widor acrescentou a essa tradição uma utilização completamente orquestral do instrumento. Seria injusto não lembrar que a excepcional longevidade de Widor permitiu-lhe compor uma obra considerável, que compreende inclusive os domínios da música sinfônica e da música lírica. Louis Vierne (1870-1937) conheceu César Franck quando ainda era bem moço, no Institut des Jennes Aveugles [Instituto dos Jovens Cegos] de Paris. Mas sua obra, que inclui também música de câmara e peças sinfônicas, é de inspiração completamente pessoal, mais lírica e mais apaixonada do que propriamente religiosa. As seis sinfonias para órgão de Louis Vierne (principalmente a segunda e a terceira) figuram entre as obras-primas do gênero. Charles Tournemire (1870-1939), que está mais próximo da tradição franckista, consagrou ao mestre um pequeno livro, e o nome que deu à sua grande coletânea de peças compostas para os domingos, L'Orgue mystique [O órgão místico], é bastante revelador. Titular, desde 1898 até a data de sua morte, do famoso órgão da igreja de Saint-Clotilde, ficou célebre, como seu predecessor César Franck, pelas improvisações que fazia. O primeiro cuidado de Tournemire era com a liturgia, para a qual recorria muitas vezes a melodias gregorianas. Charles Tournemire escreveu também para teatro, notadamente uma ópera consagrada a São Francisco, II Poverello diAssisi [O pobrezinho de Assis]. O renascimento do órgão, que se deve a César Franck e também a grandes intérpretes como Alexandre Guilmant (1837-1911), ainda hoje se faz sentir. Pelo temperamento e pela linguagem musical de ambos, pode-se dizer que a tradição espiritual de César Franck está presente em Olivier Messiaen, por exemplo. Nessa grande linhagem do órgão francês, convém ainda citar Marcel Dupré (1886-1971), um "sinfonista"; Maurice Duruflé (de quem trataremos mais adiante); Jean Lan-
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glais (nascido em 1907), que deu continuidade à tradição litúrgica de seu mestre Tournemire; Gaston Litaize (nascido em 1909), cuja obra é totalmente consagrada à igreja; e Jehan Alain (1911-1940), membro de uma ilustre familia de organistas e cuja morte em campo de batalha interrompeu a obra pessoal. Emmanuel Chabrier "Pai provedor da escola francesa, Emmanuel Chabrier possui o doloroso mas sensível privilégio de ser redescoberto a cada vinte anos." Essa observação de RolandManuel resume exatamente o lugar de Emmanuel Chabrier na história da música há um século. Com efeito, Chabrier é por vezes reduzido àquele "bom gordo" um tanto negligenciado do desenho de Edouard Détaille, cheio de humor e de facundia, mas não muito sério para ser levado a sério — como se o riso, tão próprio do homem, não pudesse ser admitido em música. O COMPANHEIRO DE AMBERT Emmanuel Chabrier nasceu no coração da região francesa de Auvergne no dia 18 de janeiro de 1841, em uma família sem músicos — gente da lei. Aliás, como diversos compositores de sua época (Chausson, Roussel, Duparc, para citar alguns), Emmanuel Chabrier foi durante muito tempo um músico amador. Se "subiu" até Paris, foi para estudar direito e para tornar-se amanuense no Ministério do Interior. Mas desde os seis anos dè idade Chabrier era apaixonado por música: graças a excelentes professores, tornou-se um notável pianista. Logo nos primeiros anos que passou em Paris, Emmanuel Chabrier demonstrou — fora da música — os traços dominantes de sua personalidade: o interesse por todas as formas de expressão artística, o senso de humor, o gosto pela farsa e a irresistível atração pelas turmas de companheiros. Mas que companheiros... Manet, José Maria de Heredia, Edmund Rostand, Vñliers de 1'Isle-Adam, Paul Verlaine! Aliás, foi com Verlaine como librertista que Chabrier escreveu, aproximadamente em 1865, suas duas primeiras obras líricas, peças burlescas denominadas Fish-ton-Khan e Vancochard et Fils F [Vaucochard e Filho I ] . A primeira obra importante de Chabrier, entretanto, só viria mais tarde: L'Étoile [A estrela], ópera bufa encenada em 1877 com certo sucesso. Enquanto isso, Emmanuel Chabrier freqüentava a Sociedade Nacional de Música, a famosa S.N.M., tornando-se familiar do "bando de Franck". Em 1880, Henri Duparc apresentou-lhe a música de Wagner, de quem Chabrier tornar-se-ia um defensor, aliás como a maior parte dos seguidores de César Franck. Nesse mesmo ano de 1880, Chabrier deixou seu cargo no serviço público e tornou-se secretário e chefe dos coros dos Nouveaux Concerts Lamoureux. Aos 39 anos, tornou-se finalmente compositor em tempo integral, embora sua formação de autodidatafizessesorrir os professores de boas maneiras musicais, como Saintr
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César Franck, os "franckistas" e Chabrier
Saëns, que o tratava de "músico de domingo". Mas o "músico de domingo" não parava de compor obras-primas: Dix pièces pittoresques [Dez peças pitorescas] em 1881, a respeito das quais disse César Franck: "É uma música que liga o nosso tempo ao de Couperin e de Rameau"; España, rapsódia para orquestra escrita em 1883, depois de uma viagem à Espanha e que obteve imediatamente um enorme sucesso; e, no mesmo ano, Trois valses romantiques [Três valsas românticas] para piano; inúmeras mélodies, em particular com poemas de Edmond Rostand e de Rosemonde Gérard; Habanera e a Joyeuse marche [Marcha alegre] em 1885, a Bourrée fantastique [Bourrée fantástica] em 1891 — sem esquecer Souvenirs de Munich [Recordações de Munique], uma paráfrase resplandecente de humor com temas de Tristan und Isolde, de Wagner. Emmanuel Chabrier teve menos sorte com as obras vocais. A primeira ópera que escreveu, Gwendoline, foi apresentada na Bélgica e em toda a Alemanha, antes de ser finalmente acolhida na Ópera de Paris em 1893. Apesar de suas qualidades, quase não foi mais encenada desde então. A carreira de Roi malgré lui [Rei à força, 1887] foi interrompida pelo incêndio da Opéra Comique e, embora os intermezzi orquestrais de Chabrier fossem freqüentemente tocados em concertos — principalmente Fête polonaise [Festa polonesa] —, tinham de enfrentar a hostilidade do establishment musical, isto é, daqueles sobre os quais dizia Chabrier que faziam "música que não valia a pena"... Cumpre finalmente assinalar, em 1890, a famosa Ode à la musique [Ode à música], com texto de Edmond Rostand e que Claude Debussy não se cansava de ouvir. Em 1888, Emmanuel Chabrier empenhara-se na composição de uma lenda lírica, Briséis [Briseida]. Progressivamente tomado por urna misteriosa paralisia, só pôde terminar o primeiro ato. Depois da morte do compositor, em 13 de setembro de 1894, Vincent d'Indy, encarregado de terminar a obra, renunciou à sua missão. O ANJO FOLGAZÃO "O anjo folgazão", era assim que o próprio Vincent d'Indy, amigo fiel, chamava Emmanuel Chabrier. É verdade que Chabrier deu exemplo de um temperamento muito raro na história da música: o de um compositor alegre, truculento, caloroso, transbordante de amizade, cuja personalidade e cujas obras inspiravam sentimentos tão bem traduzidos por Paul Verlaine (Amour, 1888): Et c'était tout autour comme um brûlant anneau De sympathie et d'aise aimable qui rayonne. 1
Mas seria um enorme erro restringir a obra de Chabrier — como se faz com freqüência — à dimensão de uma brincadeira musical, embora de alta qualidade.
"E em volta era como um ardente anel que irradiava simpatia e amável contentamento." (N. T.)
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Essa obra, relativamente limitada em quantidade, composta essencialmente em menos de dez anos (entre 1880 e 1890), vem tendo grande influência sobre a linguagem musical há um século. Porque nada devia ao Conservatório de Paris e às disputas das escolas, porque entendia que a melhor homenagem que se podia prestar a Wagner era fazer algo totalmente diferente dele, porque estava engajado em todas as aventuras artísticas daquele final de século, do Parnaso aos impressionistas, por tudo isso Chabrier compôs uma música absolutamente "moderna", no bom e exato sentido da palavra. Debussy nunca deixou de proclamar o quanto seus Prelúdios deviam às Dix pièces pittoresques de Chabrier. Stravinski, por sua vez, prestou seu tributo à orquestração de Chabrier. Francis Poulenc declarou que "os acordes de nona do Roi malgré lui haviam mudado a orientação da música francesa". E sem em nada diminuir a gloria de Satie, é forçoso reconhecer que sua originalidade fica bem menos surpreendente quando se ouve a obra para piano de Chabrier, escrita trinta anos antes. As sutilezas modais de Chabrier, seu desdém pelas séries harmônicas escolares, sua extraordinária generosidade melódica asseguram à sua obra — embora não. muito extensa — uma importância cem vezes maior do que a de Gounod, Massenet e Saint-Saëns juntos. Finalmente, é impossível não lembrar que Emmanuel Chabrier, mesmo que não houvesse escrito uma só música, haveria de figurar mesmo assim em todas as histórias da arte... na rubrica dos grandes colecionadores. A lista de cerca de quarenta telas que conseguiu adquirir com seus parcos recursos ainda hoje faz pulsar os corações dos conservadores de museus. Para citar somente um exemplo, o quadro que Chabrier tinha pendurado sobre seu piano era nada mais nada menos do que Un bar aux Folies-Bergère [Um bar nos Folies-Bergère], de Manet.
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A MÚSICA RUSSA: DE GLINKA AO "GRUPO DOS CINCO"
Seria um paradoxo evocar o "despertar das nacionalidades" no caso da Rússia do século XLX: o povo russo era consciente e orgulhoso de sua singularidade havia séculos, e nada existia por ser feito em favor de sua unificação e de sua independência nacional. Bem ao contrário, depois do reinado de Pedro, o Grande (morto em 1725), cuja obra foi continuada principalmente por Catarina II (morta em 1796), a "Moscovia" tornara-se um poderoso império, colonizador e imperialista, que privilegiava a expansão de suas vias marítimas e que interviera vigorosamente, e mais de uma vez, nas questões políticas européias: basta lembrar as partilhas da Polônia. A nação russa, no entanto, embora vaidosa de ter vencido o império napoleónico em 1812, carecia ainda de buscar a emancipação de sua cultura. A causa principal dessa carência estava certamente no regime social e político (daí, e como conseqüência, a relação privilegiada, embora amiúde tumultuada, entre a intelligentsia russa e as correntes progressistas, populistas ou revolucionárias): não existiam praticamente classes médias cultivadas que tomassem parte na direção dos negócios. Sob o facão dos czares autocráticos (dos quais Nicolau I foi, entre 1825 e 1855, o mais tirânico e o mais reacionário), a nobreza, instrumento do poder, desempenhava um papel hegemônico: dominava o Exército, controlava a administração e tinha a posse das terras: sob ela, vivia e trabalhava um campesinato analfabeto, ainda submetido à servidão. Ora, todos os nobres —ricosou nem tão ricos — eram totalmente europeizados: a língua francesa era corrente nos salões de São Petersburgo. As estantes das bibliotecas estavam cheias de obras de Montesquieu, Rousseau, Marivaux, Vol-
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taire, etc. Nem um único livro russo! Um publicista do século XX escreveu: "Conheci inúmeros príncipes que não saberiam escrever duas linhas em russo." Resultado dessa francomania? A nobreza russa vivia como estrangeira em seu próprio país. Na Hteratura, vivia à.moda francesa; na música, à moda italiana; contudo, alguns diletantes mais esclarecidos, sem pensarem em favorecer os músicos de seu próprio povo, tinham o olhar voltado para Viena. Assim, os príncipes Razumovski e Galitzin imortalizaram-se encomendando quartetos de cordas a Beethoven (números 7, 8 e 9, no caso do primeiro; 12, 13 e 15, no do segundo), situação típica de uma expatriação cultural dos privilegiados mais refinados. Foi na literatura que se fez mais pujante e mais imediatamente genial a eclosão de uma verdadeira arte nacional russa. Aleksandr Pushkin (1799-1837), cuja obra é "a resposta dada pela nação à obra de Pedro, o Grande", e Nicolas Gogol (1809¬ 1852), praticamente sem quaisquer precursores, não foram somente pioneiros: de um só impulso alçaram-se ao plano mais alto da hteratura mundial, caso excepcional em toda a história das letras. Glinka e Dargomijski A música russa moderna nasceu com Mikhail Ivanovitch Glinka (1804-1857). Até então, nada havia, exceto os cantos religiosos e populares, de grande riqueza, que chegaram até nossos dias. Em São Petersburgo repercutiam os ecos das óperas italianas (Cimarosa, Paisiello) õu francesas (Boieldieu). Não havia um conservatório de música na Rússia: jovens compositores traziam de seus anos de estudo na Itália um perfeito conhecimento da técnica ocidental e fabricavam óperas de estilo napolitano. A temporada que Glinka passou na Itália, em contrapartida, convenceu-o das riquezas inexploradas da tradição russa. Retornando a São Petersburgo, tomou a seu cargo a gestação de uma verdadeira música nacional. Em A vida pelo czar, a primeira ópera russa, representada em 1836 — o título primitivo, Ivã Susanin, que fora modificado para agradar o czar Nicolau I , mais tarde foi restabelecido na União Soviética —, manifestam-se suas idéias nascentes, embora a obra ainda seja marcada pela influência italiana. Russian e Ludmila, composta a partir de um texto de Pushkin, ihspirava-se mais no folclore russo, tanto com relação à escolha dos ritmos (muitas vezes ritmos ímpares, em cinco ou sete tempos) quanto no emprego dos modos do cantochão (tomados de empréstimos à música religiosa) ou de melodias de estilo oriental. A mensagem de Glinka foi determinante para os compositores russos das gerações posteriores. De então por diante, todos — com exceção de Tchaikovski — abandonaram a tradição ítalo-franco-alemã para buscar alimento nas fontes populares eslavas. "Toda a música russa vem delas", escreveria mais tarde Stravinski. Uma generosa declaração do próprio Glinka vem corroborar essa afirmação: "Quem cria a música é o povo; nós, os artistas, só fazemos os arranjos."
A música russa: de Glinka ao "Grupo dos Cinco"
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Primeiro discípulo de Glinka, Aleksandr Dargomijski (1813-1869), em suas duas últimas óperas, ambas compostas com base em textos de Pushkin (Rusalka, de 1855, e O convidado de pedra, inacabada), dedicou-se bem mais que o mestre a conservar o espírito do texto, procurando a mais estreita correlação entre o verbo e a música. Em O convidado de pedra, o compositor modela um recitativo contínuo não apenas segundo as entonações e as inflexões naturais da língua falada, mas também a própria pontuação do texto de Pushkin.
O "grupo dos cinco" Em 1861, uma grande decisão de alcance econômico, social e político sacudiu a Rússia: o novo czar Alexandre II aboliu a servidão. As reformas que se seguiram trouxeram conseqüências evidentes para a vida cultural e artística. A literatura nacional desenvolveu-se até tornar-se explosiva: Turgueniev, Dostoievski, Tolstoi, deliberadamente voltados para o povo, abalaram as bases de uma sociedade à qual, no entanto, pertenciam. Em 1863, foi a vez da ruptura no domínio das artes plásticas: treze alunos "dissidentes" da Escola de Belas Artes de São Petersburgo criaram uma Sociedade de Exposições Ambulantes. Foi então que, nos meios musicais, entrou em cena o famoso "grupo dos cinco". MILI BALAKIREV O iniciador do grupo, Mili Balakirev (1837-1910), improvisador genial, soube impor aos demais sua personalidade, de caráter despótico mas temperada por uma grande capacidade de sedução e um verdadeiro poder magnético. Ainda jovem, Balakirev, que tinha uma memória musical infalível, suscitara a admiração de Glinka. Mais tarde, as idéias de Balakirev conseguiriam obter a adesão de César Antonovitch Cui, Modest Mussorgski, Nicolai Andreievitch Rimski-Korsakov e Aleksandr Porfirevitch Borodin. Tão exigente consigo mesmo quanto com seus amigos, Balakirev compôs muito pouco: durante vinte anos, dedicou-se totalmente à construção de sua obra mais bem-sucedida, Islamey, fantasia oriental para piano, cuja execução apresenta grandes dificuldades técnicas. Já a composição de Thamar, um dos poemas sinfônicos de Bdakirev, exigiu quinze anos de trabalho. Dotado de espírito empreendedor, Balakirev considerava sua vida como um apostolado voltado para a música. Freqüentando a alta sociedade de São Petersburgo, regia concertos sinfônicos e dava aulas, embora sempre tenha negado a necessidade de estudos regulares e considerado que um compositor se forma compondo. Para lutar contra o ensino acadêmico oferecido no Conservatório de São Petersburgo, feudo de Anton Rubinstein, abriu, em 1862, uma escola gratuita de música, que se tornou um bastião da nova estética. Estranho personagem, em 1872 Balakirev bruscamente eclipsou-se da vida musical para ocupar um emprego obscuro em uma companhia ferroviária.
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O "grupo dos cinco", contudo, apoiado por um famoso crítico de arte, Vladimir Stassov, pouco a pouco afirmou sua doutrina: inimigo do ensino tradicional vindo do Ocidente, o "possante pequeno grupo" encarava como perigosos os "estratagemas musicais" que se aprendem nas escolas. Os "cinco" desconfiavam do trabalho temático e dos procedimentos de desenvolvimento aos quais geralmente restringiam-se os aprendizes de compositor durante suas "aulas" de escrita musical. O grande elemento de impacto do grupo era o "retorno à terra" o apelo ao gênio da raça. Por conseguinte, elaboravam seu estilo com base no folclore, nos cantos populares ou nos cantos religiosos da Igreja Ortodoxa. Buscando em suas obras vocais uma fusão orgânica da música com o texto, tratavam com realismo os temas escolhidos. CÉSAR CUI César Antonovitch Cui (1835-1918), compositor russo de ascendência francesa, consagrou-se como o porta-voz do "grupo dos cinco". Professor de matemática na Academia Militar de Engenharia, mas também crítico musical da Gazeta de São Petersburgo, fez-se de início propagandista das teorias de Balakirev. Foi o primeiro dos "cinco" a deixar-se atrair pela aventura teatral. Infelizmente, sua primeira ópera, William Ratcliff, obra excessivamente anodina, suscitou ataques por parte da crítica em 1868. A melhor obra lírica que compôs, Angelo (1876), a partir de um texto de Victor Hugo, também não escapava completamente às características convencionais, apesar das profissões de fé do próprio César Cui: "Um dos traços da nova escola russa é a fuga à vulgaridade e à banalidade." A obra de César Cui não se limita às suas onze óperas. Ele compôs também peças corais, sinfônicas, música de câmara, obras para piano solo e várias canções para voz e piano. A despeito dessa abundante produção, parece ter sido vitimado pela inveja e pelo ciúme quando, anos mais tarde, molhou sua pena no fel para acusar Boris Godunov de monotonia. ALEKSANDR BORODIN Aleksandr Porfirevitch Borodin (1833-1887), ao contrário, era uma figura simpática, amigável e generosa. Apesar da existência agitada que levava — uma casa incessantemente invadida por amigos assombrados pela desgraça material e moral, uma vida familiar complicada, os cursos de química que ministrava na Academia Militar de Medicina —, compondo um pouco por toda parte e de maneira contínua, mas dotado de uma inesgotável imaginação melódica, Borodin conseguiu deixar, depois de dezoito anos de trabalho, uma das mais belas realizações da música russa: a ópera épica Príncipe Igor. Rimski-Korsakov descreveu esse homem sempre atarefado nos seguintes termos: No mesmo momento em que estava pronto para tocar passagens que me arrebatavam, levantava-se bruscamente para correr à sua retorta, para assegurar-se de que tudo ia
A música russa: de Clinka ao "Grupo dos Cinco"
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bem, enchendo o ar, no caminho, de incríveis sucessões de sétima e de nona, emitidas a plenos p u l m õ e s .
Príncipe Igor ainda era uma ópera de estrutura italiana, dividida em árias, duetos, recitativos, etc. No entanto, devia sua originalidade a um estilo profundamente impregnado pelo folclore eslavo e oriental: a cena da orgia e as famosas Danças polovtsianas tinham inspiração asiática, enquanto os coros do povo abandonado e a grande cantilena da esposa do príncipe Igor representavam a contribuição russa. Morto subitamente, Borodin deixou a partitura inacabada e em grande desordem: Rimski-Korsakov e Glazunov, um aluno de Borodin, restabeleceram a ordem de sucessão das diferentes partes e terminaram a orquestração. A popularidade de Borodin deve-se muito a Nas estepes da Ásia Central, esboço sinfônico cuja construção tão simples — dois temas contrastantes que acabam por superpor-se — sustenta uma música de grande força poética. Além dessas duas obras muito freqüentemente executadas pelas orquestras contemporâneas, Borodin também é o autor de doze admiráveis Lieder, de dois quartetos de cordas e de três sinfonias, a última delas inacabada. RIMSKI-KORSAKOV A obra de Nicolai Andreievitch Rimski-Korsakov (1844-1908) é quase exclusivamente sinfônica ou lírica. Compositor preciso e consciencioso, com a idade de 31 anos — depois de ter sido oficial da Marinha —-, resolveu passar por um aprendizado tradicional de música. Isolou-se do mundo musical durante cinco anos para estudar harmonia e contraponto. Nomeado professor no Conservatório de São Petersburgo — oh, traição! —, adquiriu certo renome como professor de técnica musical e sobretudo como orquestrador. Na orquestra de Rimski-Korsakov, sentese a influência de Berlioz, a quem, aliás, os "cinco" devotavam um verdadeiro culto. Cumpre igualmente mencionar que não foram perdidos para Rimski-Korsakov os anos durante os quais exerceu as funções de inspetor de música da Marinha: aproveitou para aprender a tocar todos os instrumentos da orquestra! Isso explica o virtuosismo de sua escrita orquestral. Ele conhecia os melhores registros e as possibilidades técnicas de cada instrumento, assim como suas fragilidades particulares. Rimski-Korsakov, contudo, pagou alto tributo pelos seus dotes: muitas vezes sua arte cede lugar à complacência decorativa, carregada de efeitos excessivamente artificiais. Entre suas obras sinfônicas, o Capriccio espanhol ou Shéhérazade, rutilante de mil palhetas instrumentais, dão testemunhos dessa arte de ilusionista e são menos tocantes do que a abertura A grande páscoa russa, cuja música mais interiorizada toma emprestados alguns elementos da liturgia ortodoxa. A predileção por antigas lendas ou episódios da história russa guiou na maior parte das vezes a escolha dos argumentos das quinze óperas de Rimski-Korsakov: desse modo, já o seu primeiro drama lírico, começado em 1868, A donzela de
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Pskov, retraçava a história da revolta dos habitantes de Pskov, comandada pelo czar Ivã, o Terrível. Mais tarde, em Saáko, ópera que se desenrola na cidade de Novgorod e nos domínios do rei do Mar, o compositor recriou o arcaísmo dessa velha história, utilizando uma declamação que lembra a dos antigos bardos e um acompanhamento feito pelo gusli — espécie de citara russa, instrumento tipicamente popular. Kitczh, ou A lenda da cidade invisível de Kitczh e da virgem Fevrônia, inspira-se também em uma lenda popular russa, transmitida pela tradição oral. Quanto à última ópera de Rimski-Korsakov, O galo de ouro, escrita com base em um poema de Puslikin, trata-se não apenas de um conto de fadas popular, como também de uma feroz sátira política do sistema czarista. Além de seu talento como compositor, Rimski-Korsakov deu provas de outra grande qualidade: uma fidelidade notável aos seus amigos. Graças a ele ficaram para a posteridade as grandes óperas de Mussorgski e de Borodin. Muitas vezes criticaram-se — e com razão — as "revisões" que ele fazia das partituras que ficaram aos seus cuidados. Professor atento, vez por outra "corrigia", sem qualquer malícia, as "incorreções" dos amigos e mutilava várias passagens das obras deles. No entanto, ao orquestrar e completar grandes páginas deixadas inacabadas, colocando os manuscritos, em seguida, sob a proteção da biblioteca pública, e ao empenhar-se por fazê-los editar — tendo consagrado, em várias ocasiões, alguns anos de sua existência à promoção da obra de outrem, negligenciando com isso seu próprio trabalho pessoal — Rimski merece nossa admiração: sabe-se lá quantas horas de aborrecimento custa uma orquestração?
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MODEST MUSSORGSKI (1839-1881)
O compositor mais dotado do "grupo dos cinco" foi decerto Modest Petrovitch Mussorgski. Nascido em Karevo, na província de Pskov, em uma família da antiga nobreza, reteve da infância a calorosa atmosfera que se irradiava da ama-de-leite, a niania. Nos salões, o jovem Mussorgski ouvia Mozart, Beethoven e Rossini, mas, no quarto, iniciava-se nos contos populares russos e nos cantos folclóricos: "A intimidade com o gênio do povo e suas formas de vida é responsável pelo primeiro e pelo mais forte impulso às minhas improvisações musicais ao piano." Como todas as crianças da nobreza, Mussorgski recebeu uma educação européia na escola da moda de São Petersburgo: falava correntemente francês e alemão, estudava piano com um certo M . Herke, que era pianista de Sua Majestade e professor do Conservatório Imperial. Aluno brilhante, ávido de tudo saber, Mussorgski ingressou na escola de aspirantes da Guarda Imperial. Aos quatorze anos de idade, orgulhosamente compôs sua primeira obra: A polca dos aspirantes. Tornado um "pequeno tenente de livro de gravuras" bem dotado para as mundanidades, freqüentava as soirées musicais na casa de Dargomijski, na qualidade de ouvinte e de pianista, e lá teve a revelação de uma música que não supunha existir. Em seu entusiasmo pela nascente música nacional russa, pediu para ter aulas com Bdakirev; elas consistiriam em análise das obras de Beethoven, Glinka, Schubert e Schumann. Persuadido de que Mussorgski seria a encarnação russa de Schumann, Balakirev incentivou-o a compor para piano. Balakirev aplicou o mesmo determinismo a todos os membros do "poderoso cenáculo": foi conferido a César Cui o dominio lírico, enquanto a Borodin e a Rimski-Korsakov coube a produção sinfônica.
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Dócil, Mussorgski escreveu para piano. Fora alguns projetos abandonados no meio do caminho, ele não chegou a concluir, até a primeira redação da ópera Boris Godunov, em 1869, qualquer obra de envergadura. Mas escreveu também inúmeras canções para voz e piano que nem sempre foram submetidas à tirania de Balakirev. A partir de 1857, Stassov tornou-se o guia espiritual de Mussorgski. Aconselhou-o quanto às leituras e ajudou-o na escolha dos textos de suas óperas, assim como nas pesquisas históricas. Em 1858, Mussorgski desligou-se de seu regimento para poder consagrar-se totalmente à música. Dedicou-se ao estudo e compôs pouco, tanto mais que atravessava um período de crise de angústia e de misticismo. Tais crises, que iriam multiplicar-se ao longo de sua vida, eram os primeiros sinais do mal — provavelmente a epilepsia — que o levou. Em 1861, escapou à ascendência de Balakirev, que não deixou de repreendê-lo por esta defecção. Mussorgski respondeu-lhe de Moscou: "Se tenho talento, não me atolarei, sobretudo se minha atividade cerebral foi incentivada; se não, por que tirar do atoleiro um ser que de nada vale?" A abolição da servidão levou Mussorgski à ruína material e obrigou-o a arrumar um emprego na administração. Liberal sincero, contudo, aprovou sem restrições íntimas uma reforma que o privava de seus rendimentos. Nessa época, Mussorgski, impregnado pelas idéias de Proudhon e de Tchernichevski, fundou com cinco companheiros uma "comuna": dividiam o mesmo apartamento e trocavam seus entusiasmos no decorrer de noitadas passadas em conjunto. Vários projetos de obras líricas, principalmente Salammbô, inspirada pelo romance de Flaubert (Mussorgski sonhara igualmente com um Han da Islândia, a partir de Victor Hugo), depois Kallisfrate — ensaio de comédia musical —, com base em obra de Gogol, foram abandonados no meio do caminho, mas o material que restou haveria de ser utilizado em óperas posteriores. A composição de algumas belas canções — Noite, com poema de Pushkin, Berceuse, sobre texto de Ostrovski, O seminarista — abriu caminho para o primeiro grande ciclo de canções de Mussorgski, o das "canções infantis", terminado em 1870 e que compreende sete peças para canto e piano: admiráveis dramas em miniatura vividos "a partir do interior", nos quais todas as situações são assumidas pela criança com a maior seriedade. Mussorgski é um dos raros compositores a ter penetrado de maneira tão profunda na alma infantil. Musicalmente, o caráter de cada canção engendra sua estrutura. A importância dessa lição de liberdade não escaparia a Debussy, tendo sido determinante para suas pesquisas formais. O compositor francês escreveu: "Não se trata de uma forma qualquer, ou pelo menos essa forma é de tal maneira múltipla que é impossível aproximá-la das formas estabelecidas — poder-se-ia dizer, administrativas." A leitura de uma obra sobre feitiçaria, no entanto, deu novo alento a Mussorgski, que, em 1867, concluiu Uma noite no Monte Calvo, poema sinfônico cujos primeiros esboços datam de 1859.
Modest Mussorgski
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Compus minha Noite de São João de u m ú n i c o impulso, em doze dias, diretamente. Terminei na noite de São João, sem poder dormir. (...) Dispus a orquestra em grupos isolados: o ouvinte c o m p r e e n d e r á facilmente, porque o contraste entre as cordas e os metais é muito claro. Acho que o tema só pode ser tratado dessa maneira: grupos de instrumentos que chamam uns pelos outros, que se respondem e, no final, unem-se como todos os seres infernais.
Infelizmente, não é essa a versão — cujo manuscrito perdeu-se — que conhecemos; a que chegou até nós é uma adaptação edulcorada e recomposta por Rimski-Korsakov, feita a partir de várias versões encontradas depois da morte de Mussorgski. Um novo projeto de ópera, com texto de O casamento, de Gogol, foi levado por Mussorgski até o fim do primeiro ato e concluído posteriormente por Nicolai Hirolaievitch Tcherepnin. Mussorgski dava mostras, nessa partitura, de uma audácia inaudita, que motivou reprovações de Rimski-Korsakov: "As monstruosas inépcias harmônicas de Mussorgski..." Essa incompreensão não nublou de modo algum a amizade recíproca dos dois compositores que, em 1871, dividiam o mesmo quarto e... o mesmo piano! Mussorgski já trabalhava então em sua ópera Boris Godunov, da qual veio a escrever várias versões, a última delas representada em São Petersburgo em 1874. Mussorgski não se contentou em musicar o texto de Pushkin. Aliás, ele nunca compunha "sobre" as letras, mas "com" as letras, e nisto estava bem distante da concepção, por exemplo, de Schubert, cuja arte consistia em sugerir o clima afetivo do poema. Mussorgski declarou: Antevejo u m novo tipo de canção, que será a canção da vida. C o m muito esforço, consegui compor u m tipo de canção que imita o ritmo do discurso. U m dia, repentinamente, o canto inefável elevar-se-á, inteligível a todos. Se eu conseguir isso, serei u m conquistador na arte.
Mussorgski, que manifestava uma certa independência com relação aos textos utilizados, intercalou em Boris Godunov — sem hiatos — versos de sua própria lavra. "Karamzin [historiador russo], Shakespeare, as cartas de concessão de privilégios feudais, tais são as fontes de Boris", dissera Pushkin. Ajudado pelo fiel Stassov, Mussorgski debruçou-se sobre o estudo desses documentos históricos, de modo a melhor penetrar nas características da época e a encontrar os elementos próprios para reorganizar o texto de Pushkin, construindo assim uma evolução dramática coerente. Os protagonistas de Pushkin eram levados por paixões e pela fatalidade histórica. A ópera de Mussorgski é construída sobre um vasto movimento cuja força impulsionadora nada mais é do que o povo russo. Certas passagens musicais foram tomadas de empréstimo a cantos russos encontrados por Mussorgski e Stassov em
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antigas coleções: a canção de Varlaam no albergue, o coro do povo revoltado no quarto ato. Mas geralmente Mussorgski preferia inventar seus próprios temas, pronto para dar a eles uma feição popular. Julgando que o drama lírico era um espetáculo completo em que tudo contribui para provocar a emoção do espectador — música, letra, cenário, montagem —, Mussorgski criava personagens profundamente humanas e que, por isso, tornam-se simbólicas. É possível reencontrar esse mesmo espírito em obras de Stravinski, particularmente em Les Noces [As nupcias] . Depois de ter visitado a exposição retrospectiva organizada por Stassov em 1874, Mussorgski decidiu prestar uma homenagem musical ao amigo morto. Escrita para piano, a obra compreende dez "quadros" separados entre si por promenades [passeios] que, embora diferentes a cada vez, garantem a continuidade da visita à exposição. As diversas transformações dessas promenades, que são os trajetos do espectador entre um quadro e o seguinte, correspondem à evolução psicológica deste último, e, portanto, do próprio Mussorgski. A suíte Quadros de uma exposição ficou mais conhecida na orquestração de Maurice Ravel do que na forma original para piano. Os pianistas reprovam-na exatamente por não ser "pianística". Sabe-se, porém, que Mussorgski era um pianista notável. A escrita de Quadros de uma exposição não é, pois, inábil, como certos comentaristas dão a entender. É decorrente da expressão musical desejada, e a riqueza da obra vem exatamente dessa liberdade diante do teclado, tratado antes como uma orquestra do que como um instrumento de virtuosismo. Durante o mesmo período, Mussorgski compôs novos ciclos de canções, bem como A feira de Sorotchinsky, ópera cômica baseada em texto de Gogol, volta e meia abandonada, depois retomada e finalmente interrompida pela morte do compositor. Posto para fora de seu apartamento, Mussorgski foi abrigado por um bon vivant, Naurnov, que infelizmente envolveu-o em suas orgias. Os amigos —- Ludmila Chestakova, Stassov, Balakirev, que voltara ao convívio do compositor — começaram a inquietar-se, tanto mais porque Mussorgski fugia deles para esconder sua fraqueza, o alcoolismo. Nessa altura, um sursis: tendo pedido demissão de seu cargo administrativo, Mussorgski decidiu ganhar a vida tocando piano, como acompanhador da cantora Daria Leonova nas turnês por esta realizadas. Em 1880, participou, com a Tomada de Kars, da última tarefa comum do "grupo dos cinco", honrando uma encomenda para o vigésimo quinto aniversário do reinado do czar Alexandre II. Durante uma homenagem a Dostoïevski, uma semana após a morte do escritor, Mussorgski improvisou um concerto de finados ao piano: foi sua última aparição pública. Hospitalizado, morreu em 16 de março de 1881, por ter festejado seu próprio aniversário bebendo uma garrafa de conhaque. Para Mussorgski, a arte era um meio de comunicação entre os homens e a música representava um modo de expressão tão perceptível quanto a palavra. Mas, para isso, a arte, prodigiosamente vivaz, alimentada por uma perpétua busca, não
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poderia merecer em nenhum momento as críticas que ele fazia à música admitida pela sociedade de sua época: "Dois fatores essenciais governam toda a música russa: a moda e a escravidão ao passado!" Mussorgski observava com bastante justeza que as leis criadas pelos grandes inovadores — Palestrina, Bach, Gluck, Beethoven, Berlioz, Liszt — estavam submetidas a uma constante evolução, como todo o universo espiritual do homem. Esse é o motivo pelo qual ele considerava convencional e repressiva uma técnica musical que fosse determinada de urna vez por todas pelos cérebros ocidentais de um dado período histórico e se cristalizasse em tratados de ensino musical. Mussorgski escreveu uma declaração já velha de um século, porém de surpreendente atualidade: N ã o é minha o p i n i ã o que todo estudo seja necessariamente obscurantista; p o r é m , o livre desenvolvimento, o desabrochar sem entraves de dons naturais que conservam suas raízes sadias e vigorosas me é muito mais simpático do que u m adestramento escolar ou acadêmico.
Embora haja quem se permita criticar — em nome das sacrossantas leis harmônicas adotadas pelos tratados — esse ou aquele encadeamento de acordes em Quadros de uma exposição, dissimulando um sorriso de indulgência diante do "autodidata", nem mesmo esses podem negar a grandeza de uma obra que escapa à análise "administrativa". Mussorgski legou a seus sucessores o direito de reivindicar a liberdade em relação às formas e à linguagem. Tal liberdade foi pescada em pleno vôo por Debussy, ou por Stravinski, que, por sua vez, transmitiram essa febre de pesquisa ao nosso século XX.
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A obra de Piotr Hitch Tchaikovski provoca as reações mais contraditórias: entusiasmo de uns, desdém de outros. Para os primeiros, Tchaikovski representa o mais autêntico dos músicos eslavos, digno sucessor dos grandes românticos do século XLX; para os segundos, ele não passa de um traidor da alma russa, pois sua obra está ancorada em uma bagagem cultural do Ocidente. É claro que Tchaikovski valia-se de elementos do folclore russo — "Sou russo, russo, russo até a medula", dizia ele —, fazendo-os passar por um molde clássico, ao contrário de Mussorgski, que recusava as estruturas consagradas pelo ensino tradicional. Tchaikovski não compreendia a atitude de Mussorgski e, embora tivesse estima por Rimski-Korsakov, por Mussorgski só sentia desprezo: O desejo de aperfeiçoar-se é totalmente estranho a Mussorgski, que, a l é m disso, é u m homem muito i m b u í d o de si mesmo e das idéias ineptas dos que o cercam. (...) Mussorgski faz charme com sua falta de cultura musical.
Tchaikovski é considerado por muitos como o primeiro dos músicos russos: Mahler admirava e regeu com entusiasmo a ópera A dama de espadas; Stravinski dedicou a Tchaikovski duas de suas obras, Mavra e O beijo da fada; Chostakovitch afirmou que a audição de uma única das obras sinfônicas de Tchaikovski vaha por uma aula de instrumentação. A música de Tchaikovski apresenta também um constante paradoxo do ponto de vista do estilo: ao lado de diversas obras muito bem acabadas, há outras que beiram a vulgaridade. Decerto isso é reflexo de uma personalidade que, afinal, era
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bastante comum, mas privilegiada com imensos dons para a música. Prisioneiro de sua vida sentimental, Tchaikovski nunca chegou a assumir seu drama humano. Em sua correspondência, ele fala com complacência de suas crises de pranto, nunca ultrapassando, na interpretação e na descrição de seus sentimentos, a dimensão imediata e violenta. Muito conformista — reprovava, por exemplo, todos os movimentos revolucionários nascentes na Rússia —, Tchaikovski viveu sua homossexualidade com uma vergonha que beirava a neurose. Toda a obra de Tchaikovski gira em torno de um grande tema, o do fatum [o destino], grande tema reduzido, porém, à medida de um espírito mediano, para o qual a desgraça só se podia manifestar de modo material e tangível, sem quaisquer grandes aspirações a uma forma superior de humanismo. O que Tchaikovski buscava era a tranqüilidade terrestre de uma felicidade burguesa. "Lamentar o passado, esperar pelo futuro, nunca estar satisfeito com o presente — eis toda a minha vida." As obras de Tchaikovski permanecem no plano da descrição de suas agitações psicológicas. Esse "lirismo democrático", vizinho de uma angústia fácil e alimentado por uma hipersensibilidade incorrigível, chegou diretamente ao coração da nobreza decadente que constituía o essencial do público de sua época. A governanta francesa do compositor já não consideraria o pequeno Piotr como "um menino feito de cristal"? Nascido em 1840 nos Urais, filho de um pai engenheiro de minas, diretor de uma usina de metalurgia, e de mãe de origem francesa, Piotr Ilitch Tchaikovski conservou durante toda a vida uma profunda ligação com a famíha, em particular com a irmã Alexandra — cuja casa sempre foi seu melhor refúgio nos momentos difíceis —, mas também com os irmãos Modest e Anatol. Os estudos que fez na Escola de Direito de São Petersburgo levaram-no a uma brilhante carreira profissional. Em 1863, contudo, Tchaikovski abandonou seu posto no Ministério da Justiça para dedicar-se inteiramente à música. De aluno que era, logo tornou-se professor — em 1866 — no Conservatório de Moscou, onde ensinou composição. Nessa época, compôs sua Sinfonia n° 1 em sol menor opus 13, dita Sonhos de inverno, à qual o desenvolvimento dramático dos movimentos confere o caráter de um poema sinfônico. Em 1867, Tchaikovski descobriu Berlioz durante uma turnê triunfal do músico francês pela Rússia. Tchaikovski nunca negou o entusiasmo que nutria pela música de Berlioz, da qual uma de suas últimas obras, Manfredo, é devedora em mais de um aspecto. Em 1868, Tchaikovski encomendou um libreto de ópera ao dramaturgo Ostrovski: Voyevoda, cujos manuscritos mais tarde haveria de destruir, deles conservando apenas a famosa Romanza do rouxinol. Nessa ocasião, fez seus primeiros ensaios como maestro; experiência não muito bem-sucedida, que lhe permitiu, porém, entrar em contato com Rimski-Korsakov e com o "grupo dos cinco", em relação ao qual, como se sabe, seus sentimentos eram muito contraditórios. Na
mesma época, esboçou o projeto de casar com uma cantora, Désirée Artôt, projeto contrariado pela própria interessada. Tchaikovski refez-se rapidamente dessa decepção e, ainda sob o encanto de seu breve amor, aproveitou para compor sua primeira obra-prima: a abertura-fantasia intitulada Romeu e Julieta, na qual convivem três temas caros ao compositor: o amor, a morte e o destino. A abertura inscreve-se no quadro de um allegro de sonata e aparece como o esquema de uma eventual ópera. Sente-se nela a influência de Liszt e mesmo de Wagner, apesar da falta de interesse que Tchaikovski manifestava em relação ao mestre de Bayreuth. Em Romeu e Julieta, revela-se um grande sinfonista, feito mais para o afresco orquestral do que para a música lírica ou a música de câmara, a despeito do sucesso que foi seu Quarteto n" 1 opus 11, aquele cujo Andante cantabile arrancava lágrimas de Leon Tolstoi. A Sinfonia n" 2 em dó menor, dita A tempestade, inspirada na obra homônima de Shakespeare, e a ópera Vakula, o ferreiro, escrita com base em um conto de Gogol, mantiveram o compositor ocupado até 1874, ano que lhe traria uma certa notoriedade graças ao Concerto para piano e orquestra em si bemol menor. O Concerto para violino e orquestra em ré maior, embora composto alguns anos mais tarde, não tem o mesmo porte nem a mesma unidade. Também falta unidade à Sinfonia n° 3 em ré maior opus 29, dita Polonaise, cuja primeira audição teve lugar em presença de Saint-Saëns, por quem Tchaikovski nutria enorme admiração. Uma encomenda do Grande Teatro de Moscou está na origem do balé O lago dos cisnes, cuja partitura Tchaikovski levou consigo durante a viagem que fez a Paris em 1876. A viagem terminou com o entusiasmo produzido pela descoberta das obras de Massenet e, sobretudo, de Bizet. O périplo seguinte, que levou Tchaikovski a Bayreuth, foi bem menos satisfatório: "Outrora, a música era feita para o prazer dos ouvintes; com Wagner, tornou-se um suplício e uma fadiga!" Nesse mesmo ano de 1876, tiveram início as bem curiosas relações de Tchaikovski com Nadejda von Meck. Viúva de um engenheiro de pontes e estradas, à frente de uma grande família e de uma imensa fortuna, Mme. von Meck era tão apaixonada pela música que essa arte passou a representar para ela uma válvula de escape para o pânico que sentia das relações afetivas. Essa senhora propôs um curioso trato a Tchaikovski, a quem entronizara como seu músico favorito, concedendo-lhe uma pensão confortável em troca de uma correspondência cotidiana, mas com a condição de que o compositor e ela nunca se encontrassem. Esse amor platônico e fabricado em todos os seus aspectos durou quatorze anos, ao término dos quais Mme. von Meck interrompeu bruscamente a remessa da pensão, decerto porque fora informada pelas más línguas sobre as "amizades particulares" de seu protegido. Tchaikovski iria sentir esse abandono como uma traição, não tanto por haver perdido sua amiga, mas por lhe ter dado a medida da frivolidade do amor que Mme. von Meck pretendia devotar à sua música.
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Em 1877, para "fechar a boca de toda aquela súcia", Tchaikovski casara-se, levianamente, com uma aluna do conservatório que, para piorar as coisas, era ninfomaníaca! Essa união, que só poderia ser muito infeliz, levou-o ao limiar do suicídio, e sua mulher foi passar o resto de seus dias em um asilo de alienados. Em meio a esse drama, Tchaikovski compôs sua Sinfonia n" 4 em fá menor opus 36, carregada de tragédia — "Enquanto compunha a sinfonia, fui tomado pela mais negra hipocondría" —, e sua melhor ópera, Eugueni Oneguin. Quadro da sociedade russa de 1830, feita a partir de um texto de Pushkin, Eugueni Oneguin era um tema que convinha perfeitamente ao romantismo de Tchaikovski, cuja verve melódica, cheia de íntimo frescor, criou um cenário musical totalmente adequado. Quanto à estrutura da ópera, ela não denotava qualquer preocupação com a renovação formal, seguindo o esquema da ópera italiana tradicional. Apesar dos insucessos iniciais, Eugueni Oneguin tornou-se pouco a pouco, para os russos, sua ópera nacional por excelência. De então por diante, Tchaikovski só compôs, no domínio lírico, obras medíocres, — A donzela de Orléans (1881), Mazepa (1884), A feiticeira (1887) —, até A dama de espadas (1890), ópera que expressa mais abertamente o terror do compositor diante da morte e que é, a despeito de tudo, uma obra desigual: cenas muito belas se alternam com aborrecidos momentos de "enchimento". Com a década de 1880, chegou a consagração: considerado o "músico nacional", Tchaikovski dali por diante passou a dividir seu tempo entre a composição musical, inúmeras viagens — até aos Estados Unidos, em 1891 — e uma pequena propriedade campestre que havia adquirido. Balakirev incentivou-o, em 1884, a compor uma obra a partir do Manfredo, de Byron. O resultado é uma sinfonia em quatro movimentos ligados por uma frase trágica que faz o papel de Leitmotiv e representa o herói. Dessa vez, e sob a insistência de Balakirev, Tchaikovski mostrou-se mais exigente consigo mesmo, renunciando ao famoso romantismo distinto. Manfredo é, para muitos, a mais bem-sucedida obra sinfônica de Tchaikovski. Até a data de sua morte, provocada por uma epidemia de cólera, em 1893 (a hipótese do suicídio, contudo, é cada vez mais levada em conta), Tchaikovski compôs sem cessar: a música para os balés A bela adormecida e O quebra-nozes— a partir de um conto de E.T.A. Hoffmann —, no qual fez proezas de instrumentação e empregou a celesta pela primeira vez na Rússia. Essa também foi a época em que Tchaikovski compôs suas últimas sinfonias, nas quais adotou sempre a mesma evolução dramática, representando a luta do homem contra seu destino. Geralmente, a progressão psicológica é constante: partindo de um primeiro movimento pessimista, passa pelo estágio da tristeza calma no segundo movimento e termina em alegria que se torna quase frenética no terceiro e no quarto movimentos. A sinfonia mais célebre de Tchaikovski, porém, a Sinfonia n° 6 em si menor opus 74, chamada Patética, desvia-se da luz vislumbrada no terceiro movimento para ter-
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minar em um verdadeiro Requiem — segundo afirmação do próprio Tchaikovski — do homem vencido pelo destino. Essa sinfonia "de programa", dedicada por Tchaikovski ao sobrinho — o filho de sua irmã Alexandra —, que passara a ter um lugar de destaque na vida do compositor, data de 1893 e foi executada no mesmo ano, alguns dias antes da morte de Tchaikovski. O Voyevoda — poema sinfônico e o Concerto n° 3 para piano e orquestra, inacabado, estão entre suas últimas obras.
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"Despertar das nacionalidades" "primavera dos povos": se esses termos pouco convinham ao povo russo, o "grande irmão eslavo", caem como luvas no que diz respeito ao povo tcheco, havia séculos submetido à dominação germânica, incorporado sem consentimento ao Império Austríaco, e cujas reivindicações patrióticas e lingüísticas se faziam cada vez mais vivas. A situação, por sinal, era complexa: Viena ditava sua lei aos povos eslavos da Europa Central, mas, ao mesmo tempo, fazia-os beneficiários de seu poder de irradiação cultural e musical e não impunha obstáculos ao crescimento de uma classe média cada vez mais cultivada. Em sua origem, a tomada de consciência de uma nação tcheca foi em grande parte estimulada pelos intelectuais — escritores, lingüistas, filósofos — que haviam sido formados pelo espírito sério e rigoroso dos pensadores e pesquisadores germânicos. O mesmo paradoxo pode ser encontrado no progresso da música na Boêmia e na Morávia, onde viveram e de onde vieram para Viena numerosos músicos de grande talento no século XVIII. Já existia em Praga uma prática musical secular e de altíssima qualidade (à qual Mozart mostrara-se tão amorosamente sensível), no momento em que veio a manifestar-se, nessa cidade, a reivindicação cada vez mais viva de uma música especificamente nacional. Em toda a Europa Central, e sobretudo na região tcheca, os cantos populares há muito tempo eram a expressão das lutas sociais e da surda revolta das populações contra a opressão estrangeira. Ressoavam, por isso, com força tão singular a
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ponto de impressionarem profundamente tanto as pessoas do povo como os compositores de música "erudita". Na segunda metade do século XLX, esses compositores puseram-se a estudar pela primeira vez seu folclore musical de forma "científica", indo recolher os cantos camponeses até nos lugares mais recônditos, para em seguida integrá-los em suas obras, criando assim uma música erudita que se alimentava das fontes vivas da música popular. Smetana O compositor Bedrich Smetana (1824-1884) é considerado o fundador da música tcheca moderna, que, nutrindo-se de um rico patrimônio folclórico, tinha bases também na longa e sólida tradição clássica implantada na Boêmia e na Morávia pelos ocupantes austríacos. Nada parecia destinar Smetana, nascido em Litomysl, na Boêmia, a ser o portaestandarte dos músicos nacionalistas. Na verdade, sua educação de pianista começou com o estudo das partituras dos grandes mestres clássicos. Muito jovem, Smetana tornou-se um virtuose do teclado, ao qual destinou suas primeiras tentativas de composição: Danças e Miniaturas. Tendo ido para Praga aos dezesseis anos de idade a fim de concluir seus estudos, lá encontrou Franz Liszt, que se tornou seu professor e guia cultural, levando-o a descobrir a música de sua época — em particular a obra de Berlioz, que maravilhou o jovem -— e ajudando-o, alguns anos mais tarde, a abrir uma escola de música na capital tcheca. Em Praga, Smetana logo se envolveu com o movimento de idéias nacionais e progressistas da elite intelectual tcheca. A severidade da repressão austríaca obrigou-o a exilar-se em 1856. Aproveitou a proposta da Orquestra Füarmônica de Gotemburgo, que lhe oferecera o cargo de regente, para instalar-se durante cinco anos na Suécia, onde compôs os seus primeiros poemas sinfônicos, dentre os quais o afresco histórico Ricardo III. De volta a Praga, em 1861, Smetana encontrou um clima social e político mais liberal, sempre animado por uma intensa efervescência nacionalista. Esse liberalismo revelou-se impotente para desfazer as intrigas que se forjaram com o fim de atrasar a estréia de Os brandenburgueses na Boêmia, sua primeira ópera histórica, na qual o compositor expressava sem disfarces seus ideais nacionalistas. Na inauguração das instalações provisórias do Teatro Nacional de Praga, em 1862, Smetana prometeu a si mesmo criar um repertório lírico especificamente nacional. Mas a verdadeira data de nascimento desse repertório é assinalada pela primeira representação, em 1866, de A noiva vendida: essa ópera cômica, de uma alegria transbordante, expressa em melodias e ritmos tomados de empréstimo a um autêntico frescor camponês, foi acolhida com um sucesso retumbante, em conseqüência do qual Smetana veio a ser nomeado primeiro regente da Ópera de Praga. Desde
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então, Smetana passou a desenvolver ao mesmo tempo inúmeras atividades: pianista, compositor, mestre de capela e crítico musical no periódico Narodny Listy. Guardando predileção pela ópera histórica, Smetana escreveu Daliborem 1867, mas a obra foi mal recebida pelos tchecos, que a consideraram excessivamente "wagneriana" e acusaram Smetana de traição aos sentimentos nacionalistas. Lisbuse, muitos anos mais tarde, teve acolhida bem melhor: sua estréia teve lugar em 1881 na inauguração do edifício Teatro Nacional, erigido graças a uma subscrição pública. Em 1874, Smetana tornou-se subitamente surdo. Enfrentando corajosamente a doença, não interrompeu suas atividades de compositor e retirou-se para Jabokonia, onde escreveu, entre 1874 e 1879, um grande ciclo de seis poemas sinfônicos, a que deu o nome, em tcheco, de Má Vlast [Minha pátria], contando a história e descrevendo as paisagens de seu país. No segundo desses poemas sinfônicos, Smetana segue as pegadas de Liszt, adotando resolutamente o princípio da obra "de programa". A música simplesmente acompanha o curso do Moldava, rio da Boêmia — Vltava, em tcheco, Moldau, em alemão —, esboçando alguns quadros vivamente coloridos: uma floresta e seus caçadores, uma festa na aldeia, o luar sobre as águas, uma dança feérica e,finalmente,a gloriosa chegada à capital. Uma antiga canção eslava assume a função de Leitmotiv nostálgico que, representando o curso da água, serve de ligação temática entre os diferentes quadros. Mais belicosamente patriótico, o quinto poema sinfônico dessa série, Tabor, evoca a luta a um só tempo religiosa e nacional dos hussitas do século XV contra os cruzados germânicos. Nesse mesmo período, Smetana compôs óperas cômicas — As duas viúvas em 1872, O beijo em 1876,0 segredo em 1878 e O muro do diabo em 1882 — bem como algumas obras de música de câmara, uma das quais, o Quarteto para cordas em mi menor— que ele intitulou De minha vida —, é evidentemente autobiográfica. Tomado pela fadiga e pela angústia da solidão a que se via condenado pela surdez, Smetana acabou seus dias imerso na tristeza, em um hospital psiquiátrico. Para seus compatriotas, restou o compositor que soubera dar forma clássica à ópera, à ópera cômica e ao poema sinfônico tchecos, realizando em sua obra uma síntese entre a singularidade da música nacional tcheca e a cultura musical clássica européia. Dvorák Embora muito diferente de Smetana quanto à origem social e à personalidade, Antonin Dvorák (1841-1904) aparece como o sucessor imediato do iniciador do estilo nacional tcheco. Nascido em Nelahozeves, era filho de um estalajadeiro e estava destinado a suceder o pai no negócio familiar. Tomou-se de paixão pela música, porém tocan-
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do violino com o professor primário de sua aldeia. Muito cedo pôs-se a estudar composição, e tocava em uma pequena orquestra de dança como forma de garantir sua subsistência. Em 1857, um de seus tios ajudou-o a inscrever-se no curso de órgão do Conservatório de Praga. Alternadamente violista na Ópera de Praga e organista na igreja de Santo Adalberto, Dvorák progrediu no aprendizado de compositor e fmalmente fez-se conhecer pelo público de Praga produzindo em 1873 uma cantata patriótica intitulada Hymnusr. os herdeiros da montanha Branca. Esse sucesso esteve na origem de uma rápida ascensão: o Estado austríaco concedeu-lhe várias bolsas que lhe permitiram aperfeiçoar-se; Brahms — ao qual l i gara-se por laços de amizade — obteve para ele um contrato com o editor alemão Simrock; o regente Hans von Bülow inscreveu várias das obras de Dvorák em seus programas de concertos. Professor de composição no Conservatório de Praga em 1891, Dvorák conseguiu alcançar crescente renome internacional, particularmente na Inglaterra, para onde viajou uma dezena de vezes entre 1884 e 1896, e nos Estados Unidos, onde permaneceu três anos como diretor do Conservatório de Nova York (1892-1895). Dvorák compôs nove sinfonias, das quais a última, Sinfonia n" 9 em mi menor opus 95, composta em 1893 durante sua estada em Nova York, é conhecida pelo nome de Sinfonia do Novo Mundo. Mas o fascínio por aquele mundo moderno que encontrara na América não o fez esquecer a antiga pátria: as melodias populares eslavas de seu país forneceram-lhe o essencial da temática da obra, exceto no caso do segundo movimento, que toma seu tema principal do folclore norte-americano, o célebre negro spiritual intitulado Home, Sweet Home. Durante toda a vida, Dvorák sonhou escrever uma ópera do mesmo porte que as de Smetana. Chegou a compor onze óperas, marcadas pela influência de Brahms — Vanda (1875), O diabo e Catarina (1899), Rusalka (1900). Mas a originalidade da obra de Dvorák reside na criação de um verdadeiro oratório tcheco, do qual o Oratório de Santa Ludmila, escrito em 1886, é o exemplo mais acabado, paralelamente a outras obras religiosas como o StabatMater, de 1877, e o Requiem, de 1890. Dvorák tem uma obra de dimensões consideráveis: concertos — o mais interessante é o Concerto para violoncelo, escrito em 1895 —, páginas sinfônicas de todos os gêneros — é conhecido o célebre Scherzo capriccioso —-, três aberturas, duas séries de Danças eslavônicas, obras de música de câmara, entre as quais contam-se onze quartetos de cordas, etc. O Trio Dumky (1891-1892) é particularmente caro aos tchecos. Quando morreu, Dvorák tornou-se uma glória nacional. Embora se deva reconhecer em sua obra a dupla influência de Brahms e de Liszt, seu estilo é a perfeita expressão da alma eslava. O trabalho temático, contudo, é menos aprofundado em sua obra do que na de Smetana. Em contrapartida, Dvorák expressa com maior constância uma inalterável verve popular haurida no folclore camponês da Tchecoslováquia.
A música tcheca: Smetana, Dvorák
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Fibich Os tchecos ainda hoje reverenciam Zdenek Fibich (1850-1900), também considerado um dos principais fundadores da música nacional tcheca. No estrangeiro, é menos conhecida a obra desse compositor que, contudo, depois de ter estudado em Leipzig, passou muito tempo em Paris. Regente do Teatro Nacional tcheco e mestre de capela da igreja russa em Praga, compôs bastante, principalmente óperas que se inspiram na estética wagneriana — A noiva de Messina (1883), Sarka (1897) —, assim como uma série de melodramas, como os da trilogia intitulada Hipodâmia (1891).
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GRIEG E OS MÚSICOS ESCANDINAVOS
Com exceção de uma curta guerra entre a Dinamarca e os alemães em 1864 (a "Guerra dos Ducados"), os países escandinavos não passaram, no século XLX, nem por conflitos armados, nem por revoluções ou revoltas depois de 1814: não se pode, portanto, falar de "despertar de nacionalidades" no caso de povos assim tão pacificamente seguros de sua existência e de sua independência. No entanto, não deixa de ser significativo constatar, também neles, um fenômeno mais geralmente acentuado em nações oprimidas: a busca das fontes folclóricas, o interesse pelas raízes populares da vida nacional. Mais do que na Dinamarca (cuja fronteira musical com a Alemanha sempre foi bastante permeável: Buxtehude era dinamarquês de origem) e na Suécia, essa busca e esse interesse impuseram-se na Noruega, por duas razões. Para começar, dentre todos os países escandinavos, é na Noruega que se encontra a música popular mais viva: as danças nacionais (o hailing em dois tempos e de andamento rápido, o springar, verdadeira "dança pulada") são acompanhadas por instrumentos próprios, como o harãangerfele (uma espécie de viola), que se apoiam em harmonias originais. Em segundo lugar, o povo norueguês era a única das populações escandinavas privada de uma independência total. Unidos à Dinamarca por séculos, os noruegueses dela foram separados contra seu próprio desejo quando a Suécia anexou a Noruega à sua circunscrição em 1814. O estatuto de autonomia relativa da Noruega não satisfazia o povo. Essa disputa de família teve fim em 1905, com um divórcio amigável e pacífico: rompendo com a Suécia, a Noruega pôs no trono um príncipe dinamarquês. Enquanto aguardava a independência, a Noruega, não que-
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rendo ser sueca, não podendo mais ser dinamarquesa, buscava o carninho de sua identidade cultural, e mais uma vez haveria de ser ao mundo germânico que iria demandar os meios para isso. No plano musical, este foi o contexto favorável para o papel exercido por Grieg. De origem escocesa por parte de pai, Edvard Grieg (1843-1907) era filho de uma boa pianista norueguesa, apaixonada pelo romantismo alemão. A mãe de Grieg foi a sua primeira professora. Entre 1858 e 1862, ele passou quatro anos no Conservatório de Leipzig, experimentando ali alguns dos anos mais desagradáveis em sua existência: o jovem estudante sentia-se em total desacordo com o professor de harmonia (Hauptmann), cujo dogmatismo estreito lhe era insuportável. Felizmente, nas aulas de piano, foi aluno do grande pianista e pedagogo Moscheles, que havia tido Beethoven como professor. Sem se tornar um virtuose comparável a Liszt ou Busoni, Grieg foi, por toda a vida, um excelente pianista. "O ar de Leipzig contaminou-o com os micróbios mendelssohmanos e schumannianos, nocivos à sua originalidade e que retardaram sua evolução", pode-se 1er na Enciclopédia Fasquelles. Protestamos contra tal julgamento: não apenas a imersão no banho cultural germânico não foi nociva, mas, bem ao contrário, forneceu-lhe e ossatura indispensável, sem a qual Grieg nunca teria podido desenvolver sua própria personalidade criadora. Embora Grieg jamais tenha apreciado seus contemporâneos (Richard Wagner e Johannes Brahms), encontram-se em suas peças mais bem-sucedidas provas abundantes de uma filiação germânica — em particular, schumanniana — plenamente assumida. Aos 21 anos, Grieg conheceu Richard Nordraak, um compositor de sua idade, em quem os nacionalistas noruegueses identificavam o seu campeão musical. Nordraak havia composto o hino nacional, mas morreu prematuramente aos 24 anos. Grieg sentiu então que seu caminho estava traçado: seguindo os passos de Nordraak, engajou-se resolutamente no "romantismo nacionalista". A primeira das suas obras que traz essa marca foi uma coletânea de cenas da vida popular para piano, as Humoresques opus 6, de 1865. As peças 1, 2 ou 4, por exemplo, são cada uma delas um springar disfarçado em tempo de valsa ou de minueto. A primeira peça contém efeitos de quintas em bordão ou de cordas duplas ressonantes que evocam irresistivelmente o apelo popular já mencionado. Já nessa composição, Grieg se apresenta como o naturalista, pintor da vida de seu país, que se mostraria em definitivo nas Vinte e cinco danças e canções norueguesas opus 17, de 1869. Grande viajante, Grieg tocava assiduamente em turnês e fez duas temporadas em Roma. Durante a primeira, na passagem de 1865 a 1866, compôs uma página sinfônica atualmente caída em esquecimento (No outono) e encontrou Ibsen, verdadeiro "alter-ego dramático", que haveria de lhe encomendar, mais tarde, a música de cena para sua peça Peer Gynt. Em 1866, Grieg instalou-se em Cristiânia, hoje Oslo, futura capital da Noruega, ali regendo concertos da Sociedade Filarmônica local. No ano seguinte, casou-se com uma prima que era cantora — intérpre-
Grieg e os músicos escandinavos
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te e exclusiva destinatária de cerca de 140 Lieder— e deu início à série de Peças líricas, seu grande corpus pianístico, que concluiu em 1901. As duas obras que imediatamente se seguem às Humoresques no catálogo de Grieg — a Sonata para piano opus 7 e a Sonata para piano e violino opus 8 — são mais "tradicionais" e menos coloridas pelo folclore do que as Humoresques. O recitativo inicial da Sonata para piano e violino (Lento doloroso), com seus acentos dilacerantes, antes trai a influência de Liszt do que a inspiração folclórica. Este também é o caso da Sonata para piano, assim como do célebre Concerto para piano e orquestra opus 16, que Grieg compôs aos 25 anos, ambos de essência evidentemente schumanniana. Em 1874, Grieg pôde consagrar-se à composição e pôs mãos à obra para honrar a encomenda de Ibsen. Compor música de cena para a peça Peer Gynt foi, segundo as palavras do próprio Grieg, que trabalhou um ano nessa partitura, o trabalho mais penoso que até então lhe coubera. Tiveram os dois grandes intérpretes da alma norueguesa certa dificuldade para pôr-se de acordo um com o outro? Acreditamos antes na hipótese segundo a qual Grieg, orquestrador mediano (em certa época, chegou mesmo a ter aulas de orquestração com Lalo, a quem muito admirava), não estava à vontade no universo sinfônico. Fosse como fosse, a música para Peer Gynt — da qual mais tarde foram retiradas duas suítes orquestrais — encerra páginas de intensa poesia, como a Canção de Solveig ou a Introdução do Ato IV (Alvorada). Em 1876, Grieg fez uma viagem a Bayreuth, para assistir às representações da Tetralogía. Wagner interessava-o, mas não fazia o seu estilo: Grieg não era um músico com veia dramática. Do decênio que se seguiu, citemos duas obras: o único quarteto de cordas que ele concluiu, o Quarteto em sol menor (1877-1878), com momentos impressionistas, e a Balada em sol menor opus 24, para piano, feita de uma série de variações sobre um tema folclórico. O tema é inicialmente apresentado em uma rica harmonização cromática. Em seguida vêm nove variações figurativas que retomam o tema a cada vez sob uma luz diversa. A seguir, da décima à décima quarta variação, cada qual distancia-se mais radicalmente do tema, um pouco à maneira da passagem do figurativo ao abstrato na pintura. A décima quarta variação culmina progressivamente em um máximo de intensidade dramática, subitamente quebrada. Permanece uma nota, no extremo grave do piano, isolada. O retorno do tema em sua primeira forma ressoa tragicamente e dá à obra inteira uma profundidade perturbadora. Em 1885, Grieg renunciou às turnês e instalou-se definitivamente perto de Bergen, em uma casa que ele próprio fizera construir. A partir de 1890, um segundo sopro nacionalista animou-o, dessa vez marcado pela exploração franca de material folclórico (Variaçõespara doispianos opus51, Gjaetergute Klokkeklang, entre as Peças líricas opus 54). O impressionismo latente em seu Quarteto emergiu então para o primeiro plano, enquanto a harmonia evoluía em direção à dissonância:
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ancorado em sua "legitimidade" folclórica, Grieg foi um harmonista audacioso, próximo de Manuel de Falia ou de Bartók. Seu catálogo pianístico e suas coleções de Lieder contêm as melhores páginas que compôs. Na Dinamarca, foi um músico alemão, Friedrich Kuhlau (1786-1832) que criou, em 1824, a primeira ópera romântica em dinamarquês. Menção especial deve ser feita a Carl Nielsen, a figura de maior relevo da música dinamarquesa, que alguns têm como de envergadura comparável à de Schõnberg. De origem pobre, Carl Nielsen (1865-1931) conseguiu estudar durante três anos, de 1884 a 1886, no Conservatório de Copenhague. Músico dotado de um amplo espectro de interesses, absorveu com inteligência o melhor de sua herança cultural e musical antes de reformulá-la de maneira original e pessoal. Inicialmente, sua obra foi de tradicional feitura clássica, tanto na harmonia quanto na linha melódica, acusando claramente a filiação do compositor (Beethoven, Franck). A obra de Nielsen, porém, evoluiu rapidamente. A partir de 1890, o compositor começou a fazer as mais diferentes e ousadas experiências: a "tonalidade ampliada" (Canções para voz e piano opus 4, 6~e 10), modalidade (Sinfonia Expansiva, Chacona para piano), politonafidade (como Darius Milhaud) e mesmo atonafidãde (particularmente perceptível nas últimas sinfonias que escreveu). Seu catálogo é rico em todos os gêneros: duas óperas (nas quais é gritante a influência de Wagner), seis sinfonias, um concerto para violino e um concerto para clarineta, assim como inúmeras obras de música de câmara e belas coletâneas de melodias. Para concluir, deve-se dizer uma palavra sobre o sueco Franz Berwald (1796¬ 1868), cuja obra só veio a ser apreciada em seu país no século XX: além da ópera Estrella de Soria (1862), a obra de Berwald compreende várias sinfonias (Sinfonia Séria, Sinfonia Singular, Sinfonia Caprichosa) e algumas composições de música de câmara.
NONA PARTE
A VIRADA DO SÉCULO XX
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HUGO WOLF (1860-1903)
Hugo Wolf nasceu no dia 13 de março de 1860, em Windschgráz, na Estíria, província do Império Austro-Húngaro. Era o segundo filho do curtidor de peles da cidade, Philippe Wolf, que, sempre que podia, escapava do trabalho em uma profissão que não escolhera para dedilhar o violino. Até 1869, Hugo Wolf freqüentou a escola da aldeia, enquanto o pai, a quem era muito apegado, ensinava-lhe alguns radimentos de música. Os anos de ginásio (primeiro em Graz, depois em Marburg) revelaram, contudo, um caráter instável. Parece que, a partir de 1875, o jovem Hugo Wolf sabotou deliberadamente os estudos para ser enviado — dessa vez contra a vontade do pai — para o Conservatório de Viena: suas primeiras composições (Sonata para piano opus 1, Variações opus 2, Lieder opus 3) datam dessa época. Nada, porém, caracterizava ainda um estilo pessoal. Aos quinze anos, Hugo Wolf instalou-se em Viena, cidade que nunca iria deixar, com exceção dos curtos períodos que passou na Alemanha, a partir de 1890, em viagens profissionais. Condiscípulo de Mahler no Conservatório, Hugo Wolf freqüentava assiduamente a Ópera de Viena. Assistiu a todo o repertório e sabia de cor todos os papéis: durante sua vida, a ópera foi fundamental para Wolf. O grande acontecimento dos anos de formação do jovem músico, diante do qual o aprendizado no Conservatório de Viena tornou-se um mero pano de fundo, foi a descoberta de Wagner. Em 1875, ninguém podia ficar indiferente à "questão Wagner". Para os jovens músicos, Wagner era sinônimo de progresso e liberdade; para seus adversários — dentre os quais o mais poderoso era o crítico Eduard Hanslick—, Richard Wagner
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era o iconoclasta que pervertia a juventude. Em 1876, Felix Mottl, então ainda jovem, criara em Viena uma Wagner Verein que, a partir do inverno de 1888, haveria de ser a primeira instituição vienense a promover regularmente audições dos Lieder de Wolf. Depois que deixou o Conservatório, em 1877, a vida criativa de Hugo Wolf dividiu-se em dois períodos. Entre 1878 e 1887 prevaleceram tentativas e indecisões; depois veio a época da afirmação de seu talento, com as coletâneas de Lieder compostos entre 1888 e 1897. *** As composições de Hugo Wolf concluídas entre 1878 e 1887 são reveladoras de um compositor em busca de si mesmo, que se arriscou um pouco em todos os gêneros: quartetos de cordas (Quarteto em ré menor, composto entre 1878 e 1884), Intermezzo, em 1886, Serenata italiana, em 1887, poema sinfônico (Penthesileia, com base na peça teatral de Heinrich von Kleist, em 1883-1885), vários Lieder. Não chegou a criar obras-primas. No entanto, as duas vias essenciais da expressão do compositor, tal como ela viria a florescer nas coletâneas de Lieder de sua maturidade, já estavam presentes nessas primeiras obras: a via interior, religiosa ou mesmo mística (seis Lieder sagrados, com textos de Eichendorff, para coro misto a cappella, em 1881), que sempre teve lugar em todas as coletâneas de Lieder que Wolf publicou, até a última (os três Michelangelo Lieder, em 1897); e sua atração pelo Sul, que encontraria no Italienisches Liederbuch [Livro de Lieder italianos] sua expressão mais acabada. No final desse primeiro período, Hugo Wolf enveredou também pela crítica: entre 1884 e 1887, tornou-se o crítico musical titular do periódico Wiener Salonblatt. Espírito íntegro, apaixonado pelo absoluto, Hugo Wolf entregou-se até o fundo a essa atividade que praticou com paixão, por menos disponibilidade que ela lhe deixasse para compor, e que, em contrapartida, refinou-lhe o gosto. Ergueu-se contra a adulação de que Brahms era objeto (a despeito dele próprio, Brahms reunira em torno de seu nome as forças da reação musical vienense); fezse apóstolo de Liszt e de Berlioz, então raramente interpretados; denunciou o conservadorismo dos programas da Orquestra Filarmônica de Viena, assim como o laisser-aller dos cantores de ópera: em uma palavra, levantou-se contra a Schlamperei (mistura de rotina e desordem) que na virada do século seria duramente combatida pelo novo diretor da Ópera de Viena, Gustav Mahler. Os conhecimentos biográficos disponíveis sobre esse período da vida de Hugo Wolf são muito escassos. Ao que tudo indica, por volta de 1884 — quando já contraíra a sífilis que haveria de pôr fim à sua vida vinte anos depois —, o compositor conheceu Mélanie Kõchert, esposa de um de seus benfeitores. O papel dessa mulher na vida de Wolf, tão eficaz quanto discreto, tem sido amiúde des-
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prezado pelos comentaristas. Tão apaixonada quanto compreensiva, Mélanie Kõchert não sobreviveu a Hugo Wolf e suicidou-se em 1906, após uma vida de devotada dedicação ao compositor, principalmente na última fase da vida deste, em que, acontecesse o que acontecesse, ela ia visitá-lo três vezes por semana no asilo. No ano de 1887, registram-se algumas mudanças fundamentais na vida de Hugo Wolf. Seu pai, que sempre se opusera de maneira violenta à carreira do filho, morreu na primavera. No fim do ano, foram publicados os seus primeiros Lieder, o que deu a Wolf a certeza de que deveria continuar naquele caminho. *** Fenômeno essencialmente afetivo, o Lied, nas palavras do poeta alemão Heinrich Heine, é "o coração que canta, o peito comovido que se agita". Nada explica completamente o aparecimento de um Schubert, que conduziu o gênero, de um único impulso, à sua máxima intensidade expressiva; da mesma forma, nada explica a essência fundamentalmente pessimista do Lied. O que poderia fazer, recém-chegado ao gênero, um compositor de Lieder que, conhecendo o que haviam feito Schubert e Schumann, tivesse, além disso, profunda consciência da formidável novidade introduzida na escrita musical por Richard Wagner? Tocava-lhe, a um só tempo, assumir a herança e encontrar o seu lugar diante de Wagner: mais de um teria renunciado a essa tarefa... Na alquimia do verbo e do som que o Lied realiza, duas atitudes são possíveis: ou o texto, assimilado em suas grandes linhas, serve como pretexto para uma operação de pura criação musical e, como sublinha Marcel Beaufils, o compositor submete o poema à sua "ditadura" (Schubert, Brahms); ou o texto, cuidadosamente escolhido, é penetrado, "mastigado", repisado mesmo, até os seus mínimos recantos, e aspirado no mais profundo de sua substancia. Neste caso, é o músico que se põe a serviço do poema: essa é a atitude de Schumann e de Wolf. Durante seus concertos, este último, de resto, permaneceu sempre fiel ao seguinte ritual: antes de acompanhar o cantor ao piano, lia o poema em voz alta para seus ouvintes. Mais ainda do que o próprio Schumann, Wolf era o homem de uma arte carregada de referências culturais e de signos literários. Hugo Wolf só utilizava poemas já musicados por outros compositores quando pudesse trazer ao poema algo "a mais". É significativo comparar, nos MõrikeLieder (Lieder com poemas de Mõrike), de Hugo Wolf, Das verlassene Mãgdlein [A jovem abandonada], sucessivamente musicado por Schumann e Wolf, e constatar como é mais pungente a moderada expressão do desespero na composição de Wolf. A mesma operação pode ser realizada, e com o mesmo resultado, no caso dos textos de Goethe, anteriormente musicados por Schubert e Schumann: os Gesange des Harfners [Os cantos do harpista], as Mignon, Philine. Somente Wolf sou-
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be dar ao famoso Kennst du das Land..., a canção de Mignon, todo o espaço e toda a luz que o texto pede. Os Lieder compostos por Hugo Wolf a partir de 1888 foram todos concebidos em ciclos com textos de um mesmo poeta — o Italienisches Liederbuch [Livro dos Lieder italianos] e o Spanisches Liederbuch [Livro dos Lieder espanhóis] têm uma organização particular. Hugo Wolf procedia do seguinte modo: depois de ter selecionado os poemas e refletido sobre eles, punha-se ao trabalho, compondo seus cadernos em grandes fluxos, numa espécie de jato contínuo. Escrevia às vezes mais de um Lied por dia, sem fazer previamente qualquer esboço e sem a menor rasura. Em cerca de apenas um ano, compôs 103 Lieder, ou seja, cerca de metade dos 242 que iria publicar: 53 Mórike Lieder, 20 Eichendorff Lieder, 50 Goethe Lieder. No primeiro desses ciclos, os Mõrtke-Lieâer, compostos entre 16 de fevereiro e 26 de novembro de 1888, Hugo Wolf aproximou-se de um poeta cuja sensibilidade entrava diretamente em ressonância com a dele. Mais do que qualquer outro, Eduard Mõrike foi o "seu" poeta. Autor de uma poesia concreta e refinada, Mõrike penetra com igual felicidade na realidade e no sonho, no natural e no fantástico. A esse ciclo pertence Der Feuerreiter [O cavaleiro de fogo] : esse Lied, que retraça o destino de um cavaleiro piromaníaco que acaba por sacrificar-se em um braseiro que ele mesmo acendera, é com certeza o mais tragicamente autobiográfico dos Lieder de Hugo Wolf. O universo dos Eichendorff Lieder (13 Lieder compostos entre 31 de agosto e 9 de setembro de 1888, aos quais juntaram-se outros sete Lieder anteriores) é também muito concreto. Na maior parte das vezes, o herói, cheio de saúde e displicência, é um errante, soldado ou marinheiro em viagem, estudante vagabundo ou músico de estrada. Mas podem aparecer uma fada — Waldmããchen [Donzela da floresta] ou um quadro impressionista. Nachtzauber [Noturno mágico], por exemplo, em que sussurram asflorestase murmuram as fontes, está bem próximo de certas Ariettes oubliées [Arietas esquecidas] que Debussy — embora um jamais tenha ouvido falar do outro — compôs no mesmo ano. Se é possível reconhecer nos Lieder de Hugo Wolf um "estilo Mõrike" ou um "estilo Eichendorff", os poemas de Goethe por ele selecionados, em contrapartida, não lhe inspiraram um estilo particular. Isso se deve não apenas à escolha de poemas de diversas proveniências — Os anos de aprendizagem de Wilhem Meister, O diva ocidental-oriental, baladas, poemas diversos — como à excepcional qualidade intelectual dos textos. Sublinhemos a perfeição que, em gêneros muito diferentes, atingem o terceiro Canto do harpista, a magnífica cena dramática que é Ganymed [Ganimedes],finalmenterevelado em sua dimensão metafísica (Schubert já o havia musicado), a balada Der Rattenfanger [O caçador de ratos], com sua estarrecedora parte de piano, e Anakreons Grab, com sua radiosa linha vocal. O Spanisches Liederbuch — formado por 44 Lieder, dez sacros e 34 profanos, traduzidos do espanhol por Paul Heyse e Emmanuel Geibel e todos compostos por
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Hugo Wolf entre 28 de outubro de 1889 e 27 de abril de 1890 — representa um momento de transição, caracterizado por uma menor intensidade poética, embora nesse ciclo já comece a se operar, no plano formal, uma certa condensação que anuncia o ciclo seguinte. Se a parte religiosa inspirou a Hugo Wolf páginas tocantes (Herr, was trãgt der Boden hier?), nos textos de inspiração profana nota-se no compositor, pela primeira vez, uma tendência ao exotismo, por vezes nada desprovida de encanto (Aufdem grünen Balkon, Klinge, Klinge mein Pandero). Se cada caderno compreende características próprias, relacionadas antes de mais nada ao universo do poeta a cuja obra é dedicado, nem por isso um certo número de traços comuns deixa de estar sempre operando na escrita musical. Durchkomponiert, "composto de um único fôlego", sem repetição nem elementos de enchimento, o Lied de Wolf nunca é simples melodia acompanhada, mas um todo orgânico. Enquanto em Schubert não era raro ouvir piano e canto seguirem caminhos rigorosamente paralelos, embora Schumann tenha modificado essa função, coube a Hugo Wolf levar a termo essa evolução: o piano torna-se a expressão plástica da idéia ou da imagem sugerida pelo texto, ao mesmo tempo que é intrínsecamente belo. A escrita musical de Wolf é sempre original, diferente em cada Lied (não há, como em Schubert, "fórmulas pianísticas"): o piano é, em suma, o equivalente da orquestra wagneriana. Piano é canto podem, por exemplo, entrar em conflito: em Mein Liebster singt [Meu canto amoroso] do Italienisches Liederbuch, o piano representa a serenata masculina do lado de fora, ao passo que a voz é a da heroína aprisionada. Realiza-se assim, no espaço musical, um magnífico contraponto teatral. De maneira geral, o clima harmônico é wagneriano; e uma das expressões mais patentes desse clima wagneriano encontra-se no belíssimo Kennst du das Land. Procedendo freqüentemente por graus conjuntos, as l i nhas melódicas são contidas. Essa sobriedade do canto, que pode às vezes dar a impressão de que a parte de piano é mais trabalhada, facilita a compreensão do texto e apresenta a vantagem de conduzir de maneira segura a corrente da emoção. Disso há exemplos bem realizados no Italienisches Liederbuch. O Italienisches Liederbuch é formado por 44 pequenos Lieder sobre poemas traduzidos do italiano para o alemão por Paul Heyse e compostos em duas épocas: o primeiro caderno, entre 25 de setembro de 1890 e 23 de dezembro de 1891; o segundo entre 25 de março e 28 de abril de 1896. Entre os dois, houve várias viagens à Alemanha, onde o renome de Wolf cresceu mais rapidamente do que em Viena, apareceram os primeiros sinais evidentes da loucura e Wolf compôs sua única ópera acabada, Der Corregidor [O corregedor, 1895]. Uma contestação impõe-se: nenhum dos grandes compositores de Lieder (Schubert, Schumann, Brahms) conseguiu jamais realizar uma obra-prima no domínio da ópera: "o Lied é um voltar-se para si mesmo que recobre a angústia de uma impotência dramática", escreveu Marcel Beaufils. Desejando forçar o destino e sentindo que de ora em diante seu tempo estava contado, Hugo Wolf aceitou um
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libreto mediocre (que recusara anos antes) e compôs febrilmente, em nove meses, a ópera. Embora o generoso Bruno Walter tenha tentado salvá-la, Der Corregidor foi um fracasso, tanto do ponto de vista dramático quanto no plano musical (wagnerianismo mal dominado,fragilidadedo libreto, falta de fôlego dramático, fraqueza de orquestração). Pela combinação de uma excepcional intensidade expressiva e de meios musicais de uma sobriedade exemplar, o Italienisches Liederbuch exprime, sem qualquer traço de "cor local", a aspiração, a eterna nostalgia germânica da paisagem mediterrânea. Como já era o caso no Spanisches Liederbuch, os Lieder nunca têm títulos e os dois sexos estão alternadamente representados. Esse caderno é, na verdade, uma sucessão de dedicatórias amorosas: "todo Lied é secretamente um objeto de dedicatória" (Roland Barthes). A distribuição dos papéis mostra a mulher irritada, aborrecida, na maior parte das vezes transbordante de vida e de malícia (Du denkst mit einem Fádchen...): Hugo Wolf trata-a com humor (Wie lange schon...). Fica reservada ao homem a expressão da paixão amorosa (Und willst du deinen Liebsten). Quando paira incerteza sobre qual o sexo da personagem que canta (Nun lass uns Frieden schliessen), os Lieder ganham em universalidade e tornamse ainda mais comoventes. Por vezes, perdem mesmo toda a materialidade e tornam-se pura emoção. Algumas palavras, um clímax dramático que muitas vezes surge do nada (na nuance pianissimo), três vezes nada no piano: atingido esse ponto de concentração em que se torna aforisma, o Lied romântico alemão só poderia mudar de feição. Com Hugo Wolf, vira-se a página do século XLX. Depois dele viria a aventura de Gustav Mahler e os compositores da Escola de Viena, que conduziriam o gênero por vias totalmente diversas. Depois do Italienisches Liederbuch, a loucura não tardou a declarar-se. Antes de ser internado, no final do mês de setembro de 1897, Hugo Wolf ainda compôs os três comoventes Michelangelo Lieder: ainda lhe restavam seis anos, mas sua vida criativa — uma das mais breves e esporádicas que se conhece — terminara. Apesar de alguns breves períodos de recuperação (durante um deles Mélanie Kõchert levou-o à Itália), as sombras obscureceram definitivamente seu cérebro a partir de 1899. Depois de um ano inteiro de atrozes sofrimentos e de paralisia total, Hugo Wolf morreu no asilo, em 22 de fevereiro de 1903. Foi enterrado ao lado de Schubert e de Beethoven, no principal cemitério de Viena. Um austro-húngaro bem diferente: Karoly Goldmark (1830-1915) De origem judaica e modesta, o húngaro Karoly Goldmark era um jovem astucioso e esclarecido, dotado de espírito curioso e aberto, muito decidido a "fazer carreira", quando — completamente autodidata até então — chegou em Viena, em 1844, para dar início à sua formação de músico. Em meados dos anos 1860, assi-
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nou sua participação no grupo dos "modernos" da Viena de seu tempo, adotando um wagnerianismo que nada viria desmentir. Sua obra, por mais eclética que seja, com a alternância de composições instrumentais leves e espontâneas e óperas que tanto devem a Wagner quanto a Meyerbeer, revela no entanto uma natureza harmoniosa e equilibrada. Nela, a facilidade da escrita caminha a par com um inegável sentido dramático, revelado ao público com a Rainha de Sabá (1871) — qualidades que não seriam desmentidas pelas cinco óperas que escreveu posteriormente. Goldmark morreu em 1915.
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GUSTAV MAHLER (1860-1911)
Nascido no dia 7 de julho de 1860, em Kaliste, pequeno burgo da Boêmia próximo da fronteira com a Morávia, Gustav Mahler teve uma infância muito difícil. Judeu e integrante da minoria germânica estabelecida na Boêmia, seu pai encontrava-se à margem de ambas as comunidades. Os pais de Gustav Mahler não se entendiam bem, do que resultou uma série de dramas familiares e psicológicos cujos traços o compositor guardaria de maneira profunda. Mahler contou a Freud que, pequeno, testemunhara uma cena brutal entre os pais e, em seguida, ouvira um realejo tocar na rua Adi! du lieber Augustin! "Essa conjunção súbita de alta tragédia e diversão de baixo nível permaneceu definitivamente marcada em seu espírito. No futuro, cada qual desses estados de espírito invariavelmente haveria de suscitar o outro." As marchas e os toques mihtares do exército austríaco na guarnição de Jihlava, onde a família instalara-se em dezembro de 1860, também reapareceriam em sua música. R u m o ao a p o g e u ( 1 8 8 0 - 1 8 9 6 )
Tendo ingressado no Conservatório de Viena em 1875, para lá estudar durante três anos, Mahler teve como condiscípulo Hugo Wolf. Como este, entusiasmou-se por Wagner bem mais do que por Brahms. Nessa época, conheceu Bruckner, de quem nunca foi aluno. Em junho de 1880, foi contratado para uma temporada de três meses como maestro no teatro de Hall, estação de águas na Alta Áustria. Começo dos mais modestos, mas a carreira de maestro, que ele levou adiante junto com a
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de compositor, acabou por conduzi-lo aos mais altos vértices da fama. De volta a Viena em setembro do mesmo ano, terminou Das Klagende Lied [O dito do lamento ou O canto de acusação], cantata para solista, coro e orquestra, com texto adaptado a partir de um conto de sua própria autoria. Essa obra, a mais antiga que temos dele, com exceção de um ou dois Lieder, foi apresentada em 1881, no concurso para o Prêmio Beethoven: não obteve qualquer menção de um júri do qual Brahms fazia parte. A verdadeira carreira de regente de Mahler começou em janeiro de 1883, em Olmütz. As etapas seguintes foram Kassel (setembro de 1883 a abril de 1885), Praga (temporada de 1885-1886) e Leipzig (do outono de 1886 a maio de 1888). Mahler familiarizou-se com o repertório sinfônico e operístico, bem como com as intrigas e o trabalho árduo próprios à vida teatral, sem contudo, por força de seu caráter altivo, evitar as discórdias com os superiores. Da época de Kassel datam os Lieder eines fahrenden Gesellen [Cantos de um companheiro errante], quatro Lieder cujos textos foram adaptados ou diretamente escritos pelo próprio Mahler, inspirados por uma ligação com a cantora Johanna Richter; da época de Leipzig são a conclusão da Primeira Sinfonia, dita Titã, o início da composição da Segunda Sinfonia, dita Ressurreição, e os primeiros Lieder sobre textos extraídos de Des Knaben Wunderhorn [A cornucopia mágica da criança], romântica coletânea de que falaremos adiante. Em setembro de 1888, depois de ter deixado Leipzig com grande estardalhaço, Mahler assumiu o posto de diretor da Ópera Real de Budapeste. Dependendo somente de si mesmo no plano artístico, pôde desenvolver à vontade suas qualidades de administrador, reformador, diretor teatral e regente, do que resultaram as apresentações em Budapeste, sob sua direção e em língua húngara, das óperas Das Rheingold [O ouro do Reno] e Die Walküre [A Valquíria], de Wagner (janeiro de 1889). Ainda em janeiro de 1891, dirigiu uma representação de Don Giovanni, de Mozart, a respeito da qual Brahms teria declarado que um nível tão elevado era "inconcebível em Viena". Mesmo assim, Mahler pediu demissão dois meses mais tarde, principalmente por causa das dificuldades que teve com o novo intendente, o conde Zichy. A partir de abril, já estava trabalhando em Hamburgo, como primeiro regente da Ópera. Hans von Bülow, então diretor dos concertos filarmônicos da cidade, teve diante de Mahler uma reação típica: elogiou o intérprete, mas desconheceu o compositor. Durante os seis anos que passou em Hamburgo, Mahler, que em 1894 passou a contar com a colaboração de um jovem assistente chamado Bruno Walter, impôs-se definitivamente como um dos primeiros regentes de seu tempo, formando um grupo cujos melhores elementos — Anna von Mildenburg, Bertha Fõster-Lauterer, Leopold Demuth — iriam juntar-se a ele mais tarde em Viena. Concluiu então a Segunda Sinfonia(l894), a Terceira Sinfonia{ 1896) e a quase totalidade dos Wunderhorn Lieder.
Gustav Mahler
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Viena (1897-1907) Com a nomeação, em maio de 1897, para as funções de Kappellmeister e depois de diretor da Ópera de Viena, Mahler ingressou na etapa mais importante e mais prestigiosa, que duraria dez anos, de sua carreira oficial. Para conseguir isso, enfrentou várias situações difíceis e teve mesmo que se converter ao catolicismo, uma conversão que criou problemas, não tanto quanto à sinceridade, mas quanto aos limites. A um amigo que lhe perguntou por que, depois da adesão ao catolicismo, ele nunca escrevera uma missa, ele respondeu simplesmente: "E o Credo?" Mahler dedicou-se ao trabalho em Viena sem poupar nem a si mesmo nem a seus colaboradores: daí os triunfos e osfracassos.Regente dos concertos filarmônicos a partir de 1889, teve que abandoná-los em 1901. Reformador intransigente, tanto do ponto de vista "social" (proibição de os retardatarios entrarem na sala de concertos antes do intervalo, supressão da claque), quanto artístico (busca de uma unidade profunda entre teatro e música, renovação do repertório), ganhou partidários devotados e inimigos ferozes. São provas desse estado de espírito alguns de seus aforismas: "Tradição = desordem... No plano humano, faço todas as concessões; no plano artístico, nenhuma. Não posso suportar os que se desleixam, só os que exageram me interessam." Em 1901, Mahler conheceu Alma, filha do pintor Emil Schindler, cerca de vinte anos mais nova do que ele. Depois de curto e intenso noivado, o casamento foi celebrado em 9 de março de 1902, iniciando-se uma união que apresentaria aspectos tempestuosos... A partir de 1903, Mahler trouxe para a Ópera de Viena um colaborador de primeiro plano, na pessoa do pintor Alfred Roller, com o qual realizou as suas maiores encenações operísticas: Fidelio (1904), Das Rheingold (1905), Don Giovanni (1905), Le nozze di Figaro [As bodas de Fígaro, 1906], Die Walküre (1907), Iphigénie en Aulide [Ifigênia em Aulide, 1907]. Paralelamente, compôs dez Lieder sobre poemas de Rückert, entre os quais os famosos Kindertotenlieder [Cantos para as crianças mortas, 1901-1904], e a Quarta (1901), a Quinta (1902), a Sexta (1904), a Sétima (1905) e a Oitava (1906) Sinfonias. Em 1907, três "golpes do destino" abateram-se sobre ele e "transformaram-no de imediato", como escreveu sua mulher Alma: como conseqüência principalmente de ataques evidentemente anti-semitas, perdeu seu posto de diretor da Ópera de Viena; sua filha mais velha, então com cinco anos de idade, morreu repentinamente em julho; e Mahler descobriu que era portador de uma doença cardíaca incurável. Amante dos longos passeios a pé e da natação, ele foi obrigado a renunciar a tais práticas da noite para o dia. O escritor Arthur Schnitzler conta tê-lo visto, sozinho e prostrado, nos bancos do parque de Schõnbrunn. Chamado a Nova York pelo diretor da Metropolitan Opera House, deixou Viena em 9 de dezembro: uma mensagem de adeus datada do dia 7, pregada por ele no quadro
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de avisos da Ópera de Viena, foi descoberta no dia seguinte, rasgada por mão anônima. Nova York (1907-1911) Por quatro anos seguidos (1907-1911), Mahler residiu durante o inverno em Nova York e passou a primavera e o verão na Europa, dividindo seu tempo entre longas estadas nos Dolomitas e novas turnês. Na América do Norte, onde fez suas últimas temporadas à frente da Orquestra Filarmônica de Nova York, mostrou-se mais conciliador do que em Viena. Terminou em 1908 a composição de Das Lied von der Erde [O canto da Terra], com textos de poesias chinesas traduzidas para o alemão por Hans Bethge, e a Nona Sinfonia em 1909 — duas partituras que ele nunca chegou a ouvir executadas. Em 1910, uma grave crise conjugai dificultou parcialmente a conclusão da Décima Sinfonia. Em agosto de 1910, Freud estava de férias na Holanda e Mahler foi a Leyde encontrá-lo. Muito mais tarde, em 1935, Freud escreveu a Reik (que viria a publicar o texto mais tarde nas preciosas Variações psicanalíticas sobre um tema de Gustav Mahler): Analisei Mahler durante uma tarde, em Leyde. Se posso dar fé no que me veio à mente, fiz um bom trabalho. A consulta pareceu-lhe necessária porque sua mulher revoltava-se contra o fato de que a libido dele afastava-se dela. Interessantes incursões pela sua vida nos permitiram descobrir as c o n d i ç õ e s de suas relações amorosas, particularmente seu complexo mariai (fixação na m ã e ) . Tive ocasião de admirar neste homem uma genial faculdade de c o m p r e e n s ã o . Nenhuma luz esclareceu a fachada sintomática de sua neurose obsessiva. Foi como se tivéssemos aberto uma profunda e única fenda em uma construção enigmática.
As duas últimas frases sucedem — de maneira curiosa, de tão abrupta — a frase precedente sobre a "genial faculdade de compreensão": sem dúvida, essa foi, em todo caso, a cura mais breve de toda a história da psicanálise. A mais bemsucedida? Talvez menos do que Freud acreditara... Foi em meio a esses fatos que a apresentação, em Munique, da Oitava Sinfonia, inadequadamente dita Sinfonia dos Mil, valeu a Mahler o maior de seus triunfos (setembro de 1910). Vítima, na América do Norte (março de 1911), de uma angina estreptocócica, irremediavelmente doente, Mahler foi transportado de Nova York a Paris, e depois, no tempo certo, de Paris a Viena. Morreu nessa cidade no dia 18 de maio de 1911, com uma última palavra — Mozartl [meu pequeno Mozart] — dirigida a Alma, regendo com os dedos uma orquestra invisível. A obra de Mahler "Ela produziu escândalo; depois, o escândalo nunca mais parou", disse um dia Schõnberg a respeito de uma de suas primeiras obras. Mahler teria podido expres-
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sar-se da mesma maneira, mas por razões diferentes. Lembremos que foi apenas tardiamente, ou em certos ambientes bem definidos, que se teve lembrança de censurar em Schõnberg a estética "pós-romântica", então já superada. A situação nunca foi tão simples com Mahler, desde logo acusado, a um só tempo, de ultrajantemente moderno e inocentemente ultrapassado. "Banal complacência de uma sentimentalidade de costureira", chegou a escrever Vincent d'Indy. A razão fundamental disso está na contradição aparente entre a escolha que Mahlerfizerade seu material musical e a maneira como tratava esse material. Em sua música ressoavam, de uma forma ou de outra, todas as músicas que faziam parte de seu campo cultural (inclusive a dele mesmo). Viu-se aí uma falta de originalidade. Mas isto é uma simples constatação, bem secundária com relação ao que ele soube fazer da arte da citação (sem se limitar à sua própria música, é claro): uma lembrança ou um pressentimento, e não um banal reconhecimento, uma visão não idealizada, mas crítica e corrosiva, da herança que recebera. Será preciso frisar que esse traço de estilo é um dos principais dados da atualidade de sua arte? Mahler, aquele judeu surgido sem aviso prévio de "alguma parte da Boêmia", assim como Freud ou Kafka, começou a perturbar desde a idade dos vinte anos, com Das Klagende Lied. O argumento tinha como seduzir: lenda medieval próxima de certos contos de Grimm, universo dos primeiros escritores e compositores românticos alemães. Mas nessa partitura, uma das mais pessoais vindas de um autor tão jovem, encontrava-se já todo o Mahler: seus aspectos poéticos e pitorescos, mas também profundamente inquietantes, suas melodias entoadas por trompas, mas também ritmos de marchas que vinham quebrar as melodias. Dos Klagende Lied rendia homenagem ao fantástico e ao grotesco e lembrava que Mahler era um leitor assíduo de E.T.A. Hoffmann. Escuta-se, nos momentos mais dramáticos dessa história de morte, de assassinato do irmão, uma espécie de orfeão: primeira intervenção em Mahler do "estilo baixo" e uma série investida contra a noção de respeitabilidade em música. Amplamente romântico por sua inspiração, Mahler é profundamente moderno pela linguagem e pela expressão. Várias revisões precederam a primeira audição do Das Klagende Lied, que só deveria ser realizada em 1901. Mas o essencial, em particular a surpreendente orquestração, data de 1880. Desde então, Mahler dedicou-se apenas ao Liede à sinfonia. Embora se elogiasse o Mahler intérprete em detrimento do Mahler criador, tomaram-se como pretexto as alentadas dimensões de suas sinfonias para nelas ver somente "pequenos Lieder inchados em sinfonias". Como tudo isso parece agora derrisório! Lieder e sinfonias estão reunidos na obra de Mahler por laços múltiplos, que não se limitam aos mais evidentes: movimentos vocais com poemas de Des Knaben Wunderhorn, na Segunda, na Terceira e na Quarta Sinfonias, encontros de atmosfera, citações esparsas ou não dos Lieder eines fahrenden Gesellen, na Primeira Sinfonia, dos Wunderhorn Lieder da Segunda à Sétima Sinfonias, pelo menos, dos Lieder com
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poemas de Rückert da Quarta à Sétima Sinfonias. Os Lieder de Mahler não se deixam resumir pela noção — por mais extensa que ela seja — de estudo prévio. Com exceção dos publicados em 1892 como "Lieder e cantos de juventude", todos foram ímalmente orquestrados e muito dificilmente são concebíveis de outra forma, porque também eles são dotados de dimensão sinfônica. Esta é determinada, entre outras coisas, pelos textos, muitas vezes "arcaicos", que voltavam as costas ao Eu individual. Os dois ciclos escritos para poemas de Rückert, ao contrário, estão muito próximos desse Eu, mas isso só foi possível para Mahler em um estágio bem mais avançado de sua evolução. Os Lieder eines fahrenden Gesellen também, mas estes definem-se por um tom de balada que faz o contrapeso. O objetivismo colorido de arcaísmo é, antes de mais nada, o apanágio dos Wunderhorn Lieder, que ocupam uma posição central na obra de Mahler e esclarecem sua música bem mais que a Quarta Sinfonia. Por si mesmos, os textos literários — recolhidos e arranjados por Arnim e Brentano no início do século XLX e publicados por eles com uma dedicatória a Goethe — fazem ressurgir um passado sem ilusões, a um só tempo com um claro distanciamento e reflexos de catástrofes ambientes. Sua irracionalidade, que Goethe enfatizara, tem qualquer coisa de montagem. A ironia é freqüente nestes poemas, sempre misturada com a compaixão. Os textos ocupam-se mais do camponês astuto do que de seu senhor, tratam de indivíduos que se agitam e falam em vão, mas põem em cena fundamentalmente um mundo de danados, reprovados, condenados, famintos, fuzilados. Tudo isso está na música de Mahler, cujo herdeiro legítimo é, nesse aspecto, principalmente o Alban Berg de Wozzeck. Esses Lieder são de essência épica; para eles, o piano seria muito íntimo e muito socialmente condicionado pelo salão. O passado que evocam é evidentemente mítico e, de todo modo, contradito pelo que Mahler fez: uma música erudita e avançada, para além de todas as entonações populares que nela se queira ouvir. O grupo das quatro primeiras sinfonias de Mahler é marcado pela presença da literatura. Não por conta dos programas que Mahler redigiu para a Primeira, a Segunda e a Terceira Sinfonias, antes de rejeitá-los e a eles renunciar definitivamente. "Música definida como romance", escreveu Adorno, referindo-se à sua forma e não a um herói qualquer. Sob esse aspecto, a página mais significativa de Mahler é certamente o primeiro movimento (o mais longo jamais escrito) da sua Terceira Sinfonia (a mais longa que já se escreveu). Essa página também mantém relações evidentes com Des Knaben Wunderhorn. É uma vasta montagem que a forma sonata recobre como um véu transparente. Pode-se penetrar na Terceira Sinfonia de Mahler confrontando-a com a Segunda, que ela prolonga. Os parentescos entre as duas obras não se esgotam no paralelismo de seus movimentos centrais. Se a Segunda Sinfonia, dita Ressurreição — em cinco movimentos, dos quais o último com coros, sobre um texto de Klopstock — constitui uma vasta meditação sobre a vida e a morte e trata da ressurreição do homem, a Terceira impõe desde logo
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uma meditação sobre a natureza, mas uma natureza privada de sua inocência. Pelo contexto no qual o insere, Mahler faz do material que evoca objetivamente esta natureza um instrumento dotado das mais espantosas conseqüências; como Kafka, serve-se dos aspectos mais banais para dizer as coisas mais terríveis. O evolucionismo do século XIX, feição naturalista da idéia de ressurreição, encontra na Terceira de Mahler sua tradução musical em todos os níveis. Estrutura aberta por excelência, esta sinfonia é o ciclo de metamorfoses em direção a formas de vida cada vez mais elevadas e evoluídas. Tal é a idéia não apenas do primeiro movimento, mas da sucessão dos seis; não apenas do poema de Nietzsche usado no quarto movimento, mas do Lied retirado de Des Knaben Wunderhorn, do qual o terceiro movimento é uma versão instrumental bastante ampliada: o que importa se o cuco morre em sua queda se, no lugar dele, temos o rouxinol, mais elevado na hierarquia dos animais? O adágio final, hino ao amor divino, vem de encontro ao final da Segunda Sinfonia, mas como última etapa de uma gradação, e não mais como resultado a que se chegou, com altos custos, após longos combates duvidosos. Uma gradação, contudo, que não deixa de apresentar resistências ou vítimas (o cuco). No primeiro movimento, Mahler adotava os riscos máximos, não hesitava em se fazer cúmplice do caos. Em nenhuma parte de sua obra exerce o compositor menos censura com relação ao banal e ao cotidiano, dando, desse modo, as costas para a estética da "áurea mediocritas" (o único caminho que, para Schõnberg, não levava a Roma). Mahler sublimou assim o pot-pourri, tecendo entre seus componentes violentados uma rede de comunicações subterrâneas, valendo-se de maneira provocante da música "vulgar". Antes do desmoronamento que conduz à reexposição, não se ouve mais uma só marcha, mas várias, como nas feiras. As fontes sonoras multiplicam-se — essência do contraponto de Mahler, que pode ser aproximado do que Charles Ives tentou fazer poucos anos depois. A Quarta Sinfonia não abandonou essas conquistas, mas, misturando-as a referências de infância e do século XVIII, tornou-se objeto de escândalo. Mais estilizada, mais condensada, anunciava ao mesmo tempo as sinfonias seguintes e prefigurava a aparição, nestas, de lembranças originárias menos do mundo exterior do que do universo próprio de Mahler, como se fossem músicas imaginárias. A Quinta, a Sexta e a Sétima Sinfonias são puramente instrumentais. Das três, a obra-chave é a Sexta, que, como a Terceira, mostra o que há de perecível em toda a cultura, mas pela única virtude de sua forma perfeita — escolar, dever-se-ia dizer, se esse termo não tivesse conotação tão pejorativa. A Quinta e a Sétima Sinfonias se parecem, com os seus cinco movimentos que evoluem das sombras à luz, de uma marcha fúnebre inicial a um rondó triunfal em tom maior. A Quinta compreende dois pares de movimentos (lento-vivo), um sombrio e outro luminoso, entre os quais um vasto scherzo faz a ligação. A Sétima, de disposição simétrica, concéntrica, é composta por dois movimentos extremos vivos (um sombrio, outro luminoso), e, no centro, dois movimentos lentos em claro-escuro, que envolvem
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um scherzo. No meio do scherzo inscreve-se um dos primeiros Lieder imaginários de Mahler. Nessas duas sinfonias, a tonalidade evolutiva (método que consiste em terminar uma obra em uma tonalidade diferente da inicial) desempenha um papel psicológico essencial. Exteriormente, a Sexta é a mais tradicional das sinfonias de Mahler: é a única, além da Primeira, a ater-se aos quatro tipos de movimento fixados por Haydn, uma das raras a terminar em sua tonalidade inicial (lá menor), e o seufinaleé uma apoteose da forma sonata, com a dialética temática e tonai indispensável a essa forma. A Sexta Sinfonia é também a única a terminar "mal", com uma queda psicológica. Mas, musicalmente é um dos grandes triunfos de Mahler. "A única Sexta, apesar da Pastoral", disse dela Alban Berg, antes de inspirar-se concretamente em seus ritmos de marcha e em certos pontos estratégicos do seu finale para a última das suas Peças para orquestra opus 6. Nesse estágio da evolução musical de Mahler, aparece o vínculo evidente entre uma estrutura externa e interna tradicional, o círculo fechado de uma tonalidade a que é impossível fugir, a queda psicológica e a obra-prima. A Sexta Sinfonia, exatamente por sublimar a tonalidade e tudo a que ela havia servido, celebra o seu fim e a impossibilidade de retornar a ela. O primeiro movimento da Sétima Sinfonia, com suas superposições impiedosas de quartas (indício, entre outros, da proximidade da atonafidade), e o primeiro movimento ( Veni Creator) da Oitava Sinfonia, reduzido, como ofinaleda Sétima, a se forçar para afirmar o modo maior, são testemunhos dessa celebração do fim da tonalidade. Menos, no entanto, que as obras póstumas. Desde o segundo movimento (Cena de Fausto) da Oitava Sinfonia, desaparece definitivamente para Mahler o formato arquitetônico, a sonata. Daí por diante, a forma romanesca, que "detesta saber de antemão aonde vai", realiza-se completamente. Dos Lied von der Erde e a Nona Sinfonia são praticamente divididas em capítulos, e seus diversos movimentos dispõem, uns com relação aos outros, de uma autonomia anteriormente inconcebível. Das Lied von der Erde, na realidade uma sinfonia para tenor, alto (ou barítono) e orquestra, é unificada de maneira quase serial por uma sucessão de intervalos (segunda maior e terça menor). Sem esses seis movimentos talvez não existissem os movimentos da Suíte lírica de Berg. A obra culmina com Der Abschied [O Adeus], a expressão mais dilacerante de todas. Igualmente marcada pelo Adeus, senão (como achava Alban Berg) pela Morte, a Nona compreende quatro movimentos agrupados de forma pouco ortodoxa (dois movimentos lentos extremos enquadram dois movimentos centrais vivos), dos quais o primeiro é, ele mesmo, quase uma sinfonia. Já em 1912, um crítico via na Nona Sinfonia de Mahler a única "Inacabada" concluída da história da música. Os seis primeiros compassos da Nona Sinfonia de Mahler fazem ouvir uma suíte de motivos curtíssimos em que são organizados os timbres, os tempos,- as intensidades. É o início de uma das citações imaginárias de Mahler. E, mais ainda do que em Das Lied von der Erde, o passado assim evocado (só por instrumentos)
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aparece fragmentado em migalhas. Quando o discurso começa a se articular, no sétimo compasso, reúne não mais que ruínas. "Era uma vez a tonalidade", canta até a obsessão o início da Nona Sinfonia, na qual o ré maior (como posteriormente o dó maior da Sétima Sinfonia de Sibelius) figura principalmente como coloração. No fim do primeiro movimento, depois de uma das passagens mais terrificantes de todo o Mahler (a "Morte em pessoa", segundo Alban Berg), depois de uma cadência incrível de três timbres (flauta, trompa, cordas graves), sinônimo de desintegração (cada um desses timbres e dos instrumentos por eles responsáveis não leva em conta os demais), o ré maior transforma-se em refúgio. Não foi Schõnberg que a ela retornou eventualmente em suas últimas obras. Foi Mahler quem soube primeiro dizer objetivamente que a tonalidade não existia mais — paradoxalmente, sem jamais tê-la abandonado. Sobre Mahler, Arnold Schõnberg escreveu em O estilo e a idéia: E m vez de perder-me em palavras, talvez fosse melhor dizer logo: acredito firmemente que Gustav Mahler foi u m dos maiores homens e dos maiores artistas que jamais existiram (...). Desde logo devo avisar que, de início, t a m b é m eu tomei os temas de Mahler como maculados por banalidades. Teimo em dizer que fui Saul antes de me tornar Paulo. Mas, pouco a pouco, tomei consciência da beleza e da magnificência da obra de Mahler e cheguei ao ponto em que tomo certas argumentações n ã o como u m a prova de sutileza, mas, ao contrário, como u m a prova de total carência de capacidade de julgar. (...) U m artista fica ainda mais desarmado diante da acusação de sentimentalismo do que diante da acusação de banalidade. N ã o h á qualquer defesa contra a acusação de sentimentalismo. Pode-se ou n ã o ter razão quando se contesta os sentimentos profundos de u m outro, ou, ao contrário, quando se reconhece com alegria os sentimentos profundos do outro? [...] Quando aparece o que h á de mais profundamente pessoal em um compositor, o ouvinte recebe u m choque. Mas ele interpreta esse choque como uma agressão; n ã o vê que apareceu o que justificaria sua admiração.
Alguém próximo a Mahler: Alexander von Zemlinsky (1871-1942) Alexander von Zemlinsky não faz parte, propriamente falando, da Escola de Viena, mas manteve relações estreitas, sobretudo com Mahler, Schõnberg e Berg, tanto no plano pessoal como no musical. Amplamente ignorado como compositor — pelo menos depois de morto e até meados da década de 1970 — , Alexander von Zemlinsky foi beneficiário, mais tarde, de um renascimento tão súbito quanto espantoso, graças ao interesse que atualmente desperta tudo o que é vienense, interesse que nunca se completará sem a consideração da alta qualidade de sua música. Com sua costumeira perspicácia, Schõnberg, que reconhecia de bom grado ter recebido de Alexander von Zemlinsky o único ensinamento digno deste nome, previra que cedo ou tarde esse renascimento ocorreria. Nascido em Viena em 14 de outubro de 1871, Alexander von Zemlinsky entrou para o Conservatório dessa cidade em 1884 e lá formou-se como pianista em 1889
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e como compositor em 1891. Em 1892, compôs uma Sinfonia em ré menor, e, em 1893, sua primeira ópera, Sarema. Em 1895, deu aulas a Schõnberg, seu faturo genro. Seguiram-se, em 1896, o Trio opus 3 para piano, clarinete e violoncelo e o Quarteto de cordas opus 4 n" T, em 1897, uma Sinfonia em si bemol; em 1898, os Lieder opus 7 e opus 8; e em 1899, sua segunda ópera, Es war einmal, apresentada no ano seguinte na Ópera de Viena sob a regência de Mahler. Em 1904, Zemlinsky tornou-se primeiro regente na Volksoper de Viena e fundou, com Schõnberg — que em 1901 desposara Mafhñde, a filha de Zemlinsky— e sob a presidência de honra de Mahler, a efêmera Vereinigung Schaffender Tonkünstler [Sociedade dos Artistas-Compositores]. Em 1907, Mahler admitiu-o na Ópera de Viena, alguns meses antes de deixar aquele estabelecimento. Tendo se desentendido com Felix von Weingartner, o sucessor de Mahler, a respeito da ópera Der Traumgõrge, Zemlinsky voltou em 1908 à Volksoper, onde dirigiu no mesmo ano a estréia vienense da ópera Ariane et Barbe Bleue [Ariane e Barba Azul], de Paul Dukas, e, em 1910, de Salomé, de Richard Strauss. Em 1909 concluiu e em 1910 apresentou sua própria ópera, Kleider machen Leute, composta a partir de texto de Gottfried Keller. Del911al927, Alexander von Zemlinsky ocupou o posto de primeiro regente no Teatro Alemão de Praga e, a partir de 1920, passou a ensinar composição na Deutsche Akademie [Academia Alemã] dessa mesma cidade. Em 1912, regeu a estréia, em Praga, da Oitava Sinfonia de Mahler, e em 1924, no Teatro Alemão, as estréias mundiais de Erwartung e Die glückliche Hand, de Schõnberg. Os Maeterlinck-Gesànge opus 13 (canções com poemas de Maeterlinck) datam de 1910 (versão com piano) e 1913 (versão orquestral); o Quarteto de cordas n° 2 opus 15, dedicado a Schõnberg e em um único grande movimento, é de 1913-1914; o Quarteto de cordas n° 3 opus 19, de 1924; e as óperas Eine florentinische Tragõdie [Uma tragédia florentina] e Der Zwerg [O anão], ambas inspiradas por textos de Oscar Wilde, de 1914 e 1915, respectivamente. Em 1981, por ocasião de uma reapresentação em Hamburgo, Der Zwerg foi rebatizada como Der Geburtstag der Infantin [O aniversário da infanta], voltando a receber, portanto, o título original do conto de Oscar Wilde. Essas duas óperas têm, cada qual, um único ato: o melhor é representá-las juntas, em uma mesma noite, pois, entre as óperas em um ato escritas no século XX, elas ocupam, por sua eficácia dramática e por suas dimensões humanas, um lugar de destaque. Em 1922-1923, Alexander von Zemlinsky compôs o que durante muito tempo seria a sua obra mais célebre, a Lyrische Symphonie [Sinfonia lírica] para soprano e barítono, opus 18, com poemas do escritor indiano Rabindranath Tagore. Os poemas, retirados da coletânea Ojardineiro, são em número de sete, e os sete movimentos da obra foram alternadamente confiados ao barítono (números 1, 3, 5 e 7) e ao soprano (números 2, 4 e 6). Essa estrutura e essa substância "exótica" lembram Das Lied von der Erde [O canto da Terra] de Mahler; na Lyrische
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Symphonie, no entanto, os diversos movimentos são encadeados, sempre com um prelúdio no início, um poslúdio no fim e alguns interlúdios. Depois de ter tomado o modelo de Das Lied von der Erde, a Lyrische Symphonie, cujo tema é o amor e que oscila entre o erotismo e o misticismo, inspirou diretamente, até mesmo no nome, a Lyrische Suite [Suíte lírica] de Alban Berg. Este último não somente dedicou essa obra a Alexander von Zemlinsky, pelo menos oficialmente (a dedicatória oculta é para Hanna Fuschs), como também citou em várias passagens a Lyrische Symphonie de Alexander von Zemlinsky. Em 1927, Alexander von Zemlinsky foi chamado por Otto Klemperer à Krolloper de Berlim, onde dirigiu inúmeras obras contemporâneas, continuando a ensinar na Akademische Hochschule far Musik. Em 1933, com a ascensão de Hitler ao poder, Alexander von Zemlinsky fugiu para Viena. De 1933 é a ópera Der Kreidekreisr, de 1934, a Sinfonieta; e de 1936, o Quarteto de cordas n° 4 opus 25. Uma oitava ópera iniciada em 1935, KõnigKandaules [O rei candaule], baseada no texto homônimo de Gide, permaneceu inacabada. Em 1938, por ocasião do Anchluss [anexação da Áustria pela Alemanha], Alexander von Zemlinsky partiu para os Estados Unidos, esperando sem dúvida um convite do Metropolitan Opera de Nova York. Começou uma nova ópera, Circe, fadada a permanecer inacabada, e morreu em 15 de março de 1942, em Larchmont, no Estado de Nova York, sem ter tido a chance de ser apreciado pelo público norte-americano. Influenciado por Mahler e Strauss, Alexander von Zemlinsky, como o primeiro Schõnberg, levou o cromatismo pós-wagneriano até os limites mais extremos, mas sem dar o passo em direção à atonalidade. De algum modo imprensado entre os dois gigantes — Mahler e Schõnberg —, não foi um simples epígono e mostrou-se, contrariamente a ambos, um grande compositor para o teatro. Maestro famoso e pedagogo sem par, exprimia-se de maneira muito pessoal na "linguagem ardente" (Adorno) que, em Viena essencialmente, constituíra-se a partir de Wagner e de Brahms.
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As datas de nascimento e morte do compositor dão o testemunho: Richard Strauss (1864-1949) foi, antes de mais nada, o músico da unidade alemã. Em todo caso, foi o único de sua envergadura a ter vivido essa unidade em sua integralidade: "A Alemanha atual reconhece nele seu herói", escreveu Romain Rolland em 1908. A excepcional longevidade de Strauss fez dele um músico dos séculos XIX e XX, um criador contemporâneo das últimas obras de Brahms e de Liszt, e da Décima Segunda Sonata de Pierre Boulez. Filho de um músico de grande qualidade (passavelmente retrógrado em seus gostos), primeira trompa da orquestra da Ópera de Munique, e de uma descendente da ilustre família dos proprietários da cerveja Pschorr, Richard Strauss nasceu em Munique no dia 11 de junho de 1864. A família era relativamente abastada. Richard Strauss cresceu na harmonia de um meio que logo reconheceu seu talento, encorajou-o e facilitou-lhe o acesso ao mundo musical. O pai fez com que lhe fosse ministrada uma educação tradicional e sólida (entre 1875 e 1880, Richard Strauss estudou harmonia, contraponto e fuga com F.-W. Meyer) e chegou mesmo a acompanhá-lo — a despeito da aversão que sentia por Wagner — a Bayreuth no verão de 1882: o jovem mal pôde esconder o quanto se sentira seduzido... O começo foi fácil: as primeiras obras (Marcha de festa para grande orquestra, Sinfonia em ré menor, Quarteto de cordas opus 2, Sonata opus 5), todas fortemente marcadas pelo romantismo alemão — e poderia ser de outro modo? —, atraíram sobre elas as opiniões mais favoráveis. O diretor da Ópera de Munique, o próprio Hermann Levi, regeu pessoalmente, em 1881, a Sinfonia em ré menor de Strauss.
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Regente titular de uma orquestra à qual a qualidade de seu trabalho havia conferido uma excelente reputação, Hans von Bülow convidou então o compositor para reger, em Meiningen, a Suíte para treze instrumentos de sopro opus 4 (uma primeira homenagem a Mozart; muito se disse sobre as afinidades entre os dois compositores). Depois de iniciar estudos de direito, que mais tarde abandonou, Richard Strauss foi nomeado em 1885 para o primeiro posto oficial que ocupou, o de assistente de Hans von Bülow em Meiningen. Não tendo qualquer formação de regência, graduou-se na prática, sabendo encontrar o ponto de contato com os músicos, que, em contrapartida, apreciavam seu conhecimento dos instrumentos, assim como sua enorme gentileza. Portanto, foi sob os melhores auspícios que começou em Meiningen a carreira do jovem maestro. Os poemas sinfônicos e os Lieder (1886-1898) O primeiro período de atividade de Richard Strauss o levou de Meiningen a Berlim, para onde foi nomeado por duas vezes (de 1886 a 1889, depois de 1894 a 1898), e Weimar (1889). Esse período caracteriza-se pela institucionalização progressiva do regente, ao mesmo tempo em que se afirmava o talento pessoal do compositor em dois domínios precisos: o poema sinfônico e o Lied. O primeiro inovador que Richard Strauss encontrou em 1885 foi Alexandre Ritter, o spalla da orquestra de Meiningen, que abriu para o compositor as portas do universo de Liszt e de Wagner. Ritter transmitiu-lhe a seguinte mensagem: o tempo da música pura (sonata, sinfonia), assim como o da divisão tradicional da orquestra, fora revolucionado: às novas idéias literárias e filosóficas (Nietzsche) deviam corresponder novas formas musicais. Segundo esse argumento ou proposta (seu "programa"), o poema sinfônico devia engendrar sua própria estrutura, utilizar sua própria linguagem: "Estabeleça você mesmo a regra e depois siga-a", disse Hans Sachs ao jovem Walter, guiando-o no aprendizado para o concurso de canto em Die Meistersinger von Nürnberg [Os mestres cantores de Nuremberg, ato III, cena 2]. A mensagem foi assimilada (mais tarde, Strauss afirmou: "Foi Ritter quem fez de mim um músico do futuro"). Mas Richard Strauss não teria deixado no gênero sinfônico uma impressão tão profunda caso se houvesse contentado em assimilar os preceitos de Ritter sem a eles acrescentar sua "marca": dotado de um instinto incomum para a orquestra, que se somava à experiência (durante todo o período dos poemas sinfônicos, Strauss esteve quase cotidianamente debruçado sobre a estante de música), o compositor produziu, desde os 22 anos, obra-prima após obra-prima: os poemas sinfônicos Aus Italien (1886), Don Juan (1888), Tod und Verklãrung [Morte e transfiguração, 1888-1889], todos contemporâneos dos Lieder do opus 10 ao opus 22; e depois Till Eulenspiegel (1894), Also sprach Zarathustra [Assim falou Zaratustra, 1895], Don Quixote (1897), Ein Heldenleben [Uma vida de herói, 1898], os quatro
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contemporâneos dos Lieder do opus 27 ao opus 49. Entre esses dois períodos, situase uma fase intensiva de regência das óperas de Wagner em Weimar (e em Bayreuth, onde foi convidado a reger Tannhãuser), assim como a conclusão de uma primeira obra dramática, Guntram (1887-1893), filha bastarda de um wagnerianismo ainda mal digerido por Richard Strauss. A noção de "música de programa" é problemática. Trata-se de ilustrar (um tema, uma idéia, um relato)? Em caso de resposta afirmativa, o que é "ilustrar" em música? Quais podem ser as incidências, sobre a forma de uma obra, de uma atitude composicional estimulada por considerações extramusicais? A todas essas questões Strauss tentará responder de forma original em cada um dos seus poemas sinfônicos: Till e Don Quixote—assim como Tod und verklãrung, com um propósito mais ambicioso — "contam" uma história; Ein Heldenleben evoca um destino (o do compositor, sem dúvida!); Don Juan, um mito; Also sprach Zarathustra reflete um programa explícito. Mas Tod und Verklãrung não se define pela forma-sonata; Till é reconhecidamente um rondó, enquanto Don Quixote é um verdadeiro concerto para violoncelo, apenas disfarçado em "um tema e variações fantásticas sobre um tema de caráter cavalheiresco": o principal mérito desses poemas sinfônicos não é tanto o de haverem suscitado formas originais, mas o de terem facultado, pela abertura que significaram, todos os registros do instrumental desse final de século XLX. Dominique Jameux assim se expressou: Strauss deve aos seus dons de orquestrador o consenso a respeito de seu talento. Ele faz parte de u m a geração de orquestradores admiráveis, que se beneficiaram, no final do outro século e no início deste, de u m instrumento, a orquestra sinfônica, que atingiu seu ponto m á x i m o de perfeição, principalmente no que se refere ao mecanismo dos instrumentos de pistões. Mas, sobretudo, nasceu u m novo espírito orquestral do qual participam de modos diferentes m ú s i c o s t ã o diversos como Mahler, Puccini, Ravel e RimskiKorsakov.
Através de Liszt e de Wagner, o "novo espírito orquestral" vinha na verdade de Berlioz, cujo Tratado de orquestração Richard Strauss terminou de traduzir para o alemão em 1900. Strauss levou mais além do que qualquer outro antes dele a emancipação das estantes de música: não somente a escrita de cada parte se fazia de forma cada vez mais virtuosística, como novas combinações sonoras eram postas em prática pela primeira vez na orquestra. O resultado? Uma orquestra "jamais ouvida", simultaneamente utilizada em transparência e potência, requintada e sonora, soberanamente regida (o "modo de fazer" straussiano) e entusiasmante: característicos da vertente heróica — senão comovente — de Strauss, os poemas sinfônicos impuseram-se rapidamente ao repertório de todas as grandes orquestras européias. Diremos apenas algumas palavras sobre os aproximadamente 150 Lieder (quase a totalidade dos Lieder de Strauss) compostos ao mesmo tempo que os poemas
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sinfônicos, de que constituem um reverso íntimo: a evidente predileção do compositor pela voz feminina, seu sentido inato do fraseado vocal (mais uma afinidade com Mozart) e,finalmente,a propensão de Strauss para a ópera. Desde a primeira coleção de Lieder de Strauss, composta em 1882, o romantismo da escrita deixava filtrar a originalidade (Zueignung opus 10). Encontram-se "jóias" em todas as coletâneas (Stãndchen opus 17, Ruhe, meine Seele opus 27). As partes de piano (mais tarde Strauss as orquestraria) recapitulam todas as aquisições do gênero: ao mesmo tempo, sabem ser acompanhadoras (Du meines Herzens Krónelein opus 21), parceiras de um diálogo fictício (Nichts opus 10), e mesmo, por vezes, distanciar-se ironicamente do texto (Schlechtes Wetter opus 69). Reunião dos dois domínios assim explorados (a orquestra e a voz), a ópera entrou naturalmente na vida do compositor. Desde 1886, Richard Strauss, que não cessara de reger no teatro, não parou de sonhar com uma ópera. As óperas sombrias (1900-1910) Depois de uma segunda tentativa, mais profícua que a primeira (Feuersnot, em 1900), a terceira foi decisiva: Salomé, apresentada pela primeira vez em Dresden em 1905, foi a primeira obra-prima dramática do compositor. Salomé valia-se de um libreto decalcado da peça teatral homônima de Oscar Wilde, ela mesma imaginada a partir de um episódio bíblico (São Mateus, 14,3-11, e São Marcos, 6,17¬ 29). Como Pelléas et Mélisande, de Debussy — e antes de Wozzeck, de Berg —, Salomé deve ser considerada uma das primeiras óperas do século XX. Herdada de Oscar Wilde, a estrutura original da ópera em um único ato é elemento essencial de sua força e unidade. Do ponto de vista dramático, é importante destacar a organização simbólica em torno do número três, símbolo espiritual bem conhecido. O plano geral da obra revela uma respiração em três tempos, as cenas muitas vezes são em três partes, as frases repetidas por três vezes, os motivos enunciados três vezes seguidas... Enfim, essa organização, que estrutura a obra em todos os seus componentes, faz de Salomé uma ópera simbólica, em que se defrontam dois mundos: um mundo de pureza e de regeneração (a anunciação do cristianismo por São João Batista, o Profeta) e um mundo de corrupção e decadência moral (o de Herodes). Ponto central desse confronto, Salomé aspira desesperadamente à pureza do primeiro, através da expressão de um desejo monstruosamente forte. "Que esta mulher seja morta!", sentencia o padrasto enlouquecido, enquanto o pano cai sobre o gesto assassino dos soldados que obedecem. Do ponto de vista musical, o sistema de escrita decorre diretamente do sistema wagneriano: do início ao fim, a textura sonora é contínua (durchkomponiert) e recorre ao Leitmotiv, à maneira do primeiro Richard Wagner: os personagens são sempre acompanhados pela orquestra, que toca um motivo próprio a cada um deles; esses motivos quase não sofrem transformações ao longo da obra. "Richard
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Strauss não passa de um Wagner exasperado", escreveu Debussy em 1910; mas Salomé não seria uma obra-prima se não fosse o produto de um compositor póswagneriano dotado de talento pessoal. Bem mais próximo nisso de Mozart do que de Wagner, Strauss tinha um instinto bastante certeiro com relação ao teatro: nada de prolongamentos ou de relatos inúteis em sua ópera; toda a ação musical — inclusive as páginas puramente sinfônicas — traz em si validade teatral. A esse certeiro instinto do teatro junta-se um seguro instinto da voz — e particularmente a voz feminina. O estilo vocal dramático de Strauss encontra um de seus resultados mais bem acabados no famoso monólogo final da heroína. Além disso, a orquestração de Salomé exige uma das maiores orquestras cabíveis em um fosso de teatro lírico (mais de cem músicos), ao mesmo tempo que a partitura é uma das mais requintadas do repertório: toda a destreza temática e o poder emocional dos poemas sinfônicos encontramse em operação nessa obra, a ponto de fazerem com que certos comentaristas (E. Newman, Norman del Mar) pudessem ver em Salomé um verdadeiro poema sinfônico com voz. Outra dimensão da originalidade da obra é a pesquisa do colorido instrumental. Como muitos criadores germânicos, durante toda a vida Strauss foi atraído pelo Sul e pela sua luz (Aus Italien foi seu primeiro poema sinfônico). Essa atração traduz-se por uma atitude muito pessoal diante da orquestração. Raramente ouvimos uma plástica instrumental mais inventiva do que a dessa ópera: a atmosfera, a vibração do ar em uma noite tropical, mas também os diferentes estados dos protagonistas, o desejo, a repulsa, o medo, a histeria, o êxtase, enfim, estão magistralmente representados. Strauss era um colorista sem par, e isso situa-se completamente fora da tradição germânica: Salomé é uma verdadeira expatriação da ópera alemã. Elektra, resultado da primeira colaboração do compositor com o poeta e dramaturgo austríaco Hugo von Hofinannsthal, que estreou em Dresden em janeiro de 1909, atingiria uma perfeição da mesma natureza. As óperas róseas (1910-1916) A última grande obra-prima de Strauss antes de 1914 foi a ópera Der Rosenkavalier [O cavaleiro da rosa], com libreto de Hofmannsthal (Dresden, janeiro de 1911): "Strauss viveu 85 anos, escreveu mais de 120 obras, entre as quais umas quinze óperas, e continua sendo, antes de qualquer outra coisa, o compositor de Der Rosenkavalier" (Dominique Jameux). A obra representa uma reviravolta espetacular: nada de modernidade agressiva, com a luz crua e o cortejo de estridências que haviam sido reprovados em Salomé e em Elektra, mas uma obra voluntariamente rétro para a época, situada em meados do século XVIII, na Viena da imperatriz Maria Tereza, banhada de um clima de encanto, doçura e nostalgia — sen-
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timento que, no final de sua vida, o compositor viria a explorar de maneira tão magistral. Resultado de uma colaboração de qualidade excepcional entre compositor e libretista — que foi comparada com associações como as que se criaram entre Verdi e Bõito ou entre Mozart e Da Ponte —, Der Rosenkavalier é, em mais de um aspecto, uma imciativa exemplarmente bem-sucedida. De um rigor clássico, a ação desenrola-se em três atos e representa— caso nem tão freqüente na ópera — "a mescla de uma comédia e um drama" (Dominique Jameux). Ao fim de peripécias burlescas, a comédia permite o casamento entre o jovem cavaleiro Octavian (papel travestido) e Sophie; o drama, o do tempo que passa (tema caro a Hofmannsthal), simbolizado pelo papel da Marechala (monólogo: Da geht er hin). A ópera foi muitas vezes comparada, por conta do drama da condessa mozartiana, a Le nozze di Figaro. Mas se pode dizer que, como Cosi fan tutte, Die Zauberflõte ou Die Meistersinger von Nürnberg, Der Rosenkavalier é uma ópera de aprendizado que, sob a ação conjugada do libreto e da partitura, transforma seus personagens, de modo a não deixá-los sair da ópera no mesmo estado em que nela haviam entrado: a Marechala atravessa um momento decisivo em sua vida, enquanto Sophie e Octavian passam da infância à idade adulta. Além da espetacular pregnância da valsa vienense em toda a obra, notam-se, no plano musical, os três momentos de exceção que são a cena final do primeiro ato, a "apresentação da rosa" no início do segundo ato (Sophia e Octavian), com seu miraculoso efeito de suspensão do tempo, e finalmente o trio final da ópera, com o entrelaçamento das três vozes femininas (a Marechala-Sophie-Octavian), a transparência totalmente mozartiana da ambiência orquestral, a pureza da emoção que dela se desprende. Dominique Jameux escreveu: Por seu equilíbrio geral, a beleza de seus grandes momentos, o esplendor do tratamento vocal e instrumental, a mistura obtida no mais alto grau entre o lirismo e o estilo da conversação musical, a síntese entre as aquisições de u m a linguagem muito elaborada e u m retorno à simplicidade e à euforia auditiva, a aliança tão vienense e t ã o humana do sorriso u m pouco triste com a melancolia u m tanto leviana, por essa mistura de gêneros que Strauss trata com soberana maestria, a obra é a mais straussiana de todas.
Antes da guerra, Strauss iniciou sua segunda "ópera-rósea", Ariadne aufNaxos [Ariadne em Naxos], também composta em colaboração com Hofmannsthal. Mas a versão definitiva só foi escrita em 1916. A obra é "barroquizante" (o barroco estava na moda), sofisticada (história dupla, teatro dentro do teatro) e de um virtuosismo instrumental (35 músicos no fosso) jamais igualado. Em busca de um segundo fôlego (1914-1940) A guerra de 1914 eclodiu quando Richard Strauss estava em plena glória: regente titular da orquestra da Ópera Real de Berlim, era reconhecido por todos como um
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dos principais animadores da vida musical de seu país (para falar a verdade, de seu tempo). Strauss regia: a consagração de sua carreira foi a nomeação para a direção da Ópera de Viena, posto que ocupou de 1919 a 1924. Strauss animava: um de seus altos feitos foi ter contribuído, com Hofmannsthal, para a organização do Festival de Salzburgo, em 1917. Strauss militava: criou um sindicato para o reconhecimento dos direitos autorais dos músicos (uma divertida coletânea de Lieder tomou parte neste combate: o Krãmerspiegel opus 66). Finalmente, no início do século XX, Richard Strauss era um homem ativo, em contato direto com os acontecimentos de sua época. Terá sido, por isso, "um compositor de sua época"? Porque, cumpre reconhecer, a parte principal de sua obra já estava para trás. Durante a guerra, surgiram duas obras importantes: a Alpensinfonie [Sinfonia alpina] opus 64 (1911-1915), da qual existe uma bela gravação do próprio Strauss, e a ópera Die Frau ohne Schatten [A mulher sem sombra] opus 65 (1914-1917), sobre libreto do fiel Hofmannsthal. É uma obra ambígua e, sob um pano de fundo simbólico e metafísico, ostenta um argumento "falsamente simples", tendo a pretensão de ser um pouco Die Zauberflõte ou o Parsifal dos dois artistas. Ambiciosa na proposta, denota contudo, a despeito de algumas belas páginas, a falta de intimidade de Strauss com esse registro (já em Salomé a figura do profeta João Batista só lhe tinha inspirado antipatia, como escreveu a Romain Rolland). Quanto às obras seguintes (Schlagobers opus 70, Austria opus 78, Die Tageszeiten opus 76, para coro masculino), quem hoje em dia as pode defender? Composta para distrair-se depois de Die Frau ohne Schatten, a ópera Intermezzo (1919-1923), de um modernismo anedótico (trenós e esquis em cena, divórcio, telefone...), é uma obra teatral sem maiores pretensões, com um libreto que o próprio compositor retirara de um acontecimento de sua vida conjugai (o último poema sinfônico do primeiro período já havia sido, em 1904, uma Symphonia Domestica). Entre o modernismo envelhecido de Intermezzo e a modernidade bíblica de Salomé, a posteridade fez claramente sua escolha. Em contrapartida, foi incontestável o sucesso da ópera Arabela opus 79, composta entre 1930 e 1932. Último presente de Hugo von Hofmannsthal — que morreu em 1929 deixando pronto o libreto —, esta ópera foi também uma homenagem àquela de "suas" cidades a que Strauss estava mais intimamente ligado (a valsa impusera-se rapidamente como um dos "modos de ser" musicais preferidos de Strauss): Viena. Hofmannsthal morto, Strauss nunca mais haveria de encontrar um libretista da mesma envergadura: Stefan Zweig, encarregado do libreto de Die Schweigsame Frau [A mulher silenciosa] em 1931, não se mostraria à altura, e diluiu em três atos um argumento bufo que podia ser resumido em um. Strauss, que tanto admirava Verdi, perdeu assim a oportunidade de ter o seu Falstaff. Quando Richard Strauss estava compondo Die Schweigsame Frau, os nazistas chegaram ao poder na Alemanha. O compositor tinha 68 anos. Teria ele ao menos
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se dado conta da monstruosidade do regime que aceitou legitimar, ao dirigir em 1933 a Reichs MusiJdtammer [Câmara de Música do Reich]? ("Já que essa Câmara exigia um presidente, pelo menos que fosse eu a preencher a função: não era eu o primeiro músico da Alemanha?") É provável que não, pois ele fez um escândalo para que se recolocasse, no cartaz da estréia de Die Schweigsame Frau, em 1935, o nome do libretista Stefan Zweig, de origem judaica. Demitido por Goebbels depois do incidente (ao que parece, Strauss não aderira com suficiente convicção às teses racistas do regime...), nem por isso Strauss deixou de reger o hino olímpico nos Jogos de Berlim. Tende-se a pôr na conta da idade do compositor — e do isolamento em que o mantinha seu formidável egoísmo — essa relativa falta de compostura. O desabrochar do fim (1940-1949) Refugiado desde o início da guerra em sua casa de campo de Gramisch e tendo chegado ao fim de seu percurso, Richard Strauss, septuagenário e depois octogenário, ainda produziria uma obra-prima em cada um dos domínios de sua predileção. Capriccio é uma obra-prima quase teórica sobre a relação das palavras com a música na ópera; em suma, uma "ópera sobre a ópera". Stefan Gregor (libretista malsucedido de algumas óperas anteriores: Dia de paz, Dafne, O amor de Danaé), de início cogitado para mais esse trabalho, mostrou-se incapaz de satisfazer Strauss, que finalmente concordou em escrever a obra com o maestro Clemens Krauss. Capriccio, apresentada pela primeira vez em 1942, reconciliava-se com Der Rosenkavalier e Ariadne aufNaxos, óperas às quais se assemelha em mais de um aspecto: a época (século XVIII); a intriga: uma ópera dentro da ópera (como Ariadne aufNaxos) e uma mulher entre dois homens (Der Rosenkavalier invertido); a música, finalmente, tem momentos mágicos das partituras dos anos 1910 (monólogo final da condessa). Mas dessa vez a orquestra, a escrita, as formas, a atmosfera, tudo se tornara leve, depurado. Mais do que nunca, Strauss aproximava-se de Mozart: falar-se-á de "neoclassicismo"? Não, no que diz respeito à ópera, em que Strauss apenas segue uma inclinação que lhe pertence de maneira exclusiva; sim, no que diz respeito às obras de concerto do mesmo período (Concerto para oboé, Segundo concerto para trompa). As metamorfoses (1945) são constituídas por um vasto movimento lento para 23 cordas sofistas: sem ser um poema sinfônico, ao estilo do primeiro Strauss (a orquestra também foi depurada), a obra não deixa de ter um conteúdo programático (deploração das ruínas de guerra: Berlim, Dresden), que a carrega de uma densidade emocional única na obra do compositor. Falar-se-á, aqui, de "neoromantismo"? Ao se ouvir a cena final de Capriccio, sente-se que todo o conflito foi resolvido na obra de Strauss, que toda a música dali em diante se sacrificava. Chegara o momento do gesto de adeus: o próprio Strauss intitulou de "últimos" os quatro
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Lieder que compôs a seguir (três deles com textos de Hermann Hesse, o outro com texto de Joseph von Eichendorff). Neles, reina a perfeição: coerência absoluta do ciclo, perfeita adequação entre uma meditação sobre a morte e sua transformação em música, refinamento da inspiração instrumental, pureza da linha do canto: "tudo é serenidade, felicidade, equilíbrio" (Dominique Jameux). No último Lied, uma última evocação de um dos poemas sinfônicos de juventude (Morte e transfiguração) traz um "fecho de ouro". Strauss morreu em 8 de setembro de 1949. Em 1950, enquanto os quatro últimos Lieder eram apresentados em Londres pela Philharmonia Orchestra, cantados por Kirsten Flagstad e regidos por Wilhelm Furtwángler, do outro lado do oceano Schõnberg também morria, no início da década em que já despontava a luz dos compositores do após-guerra (Boulez, Nono, Stockhausen).
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DOIS ANTIGOS E U M MODERNO: REGER, PFITZNER, BUSONI
Max Reger Filho de um professor que também era músico amador, Max Reger (1873-1916), nascido no Alto Palatinado, recebeu sólida formação musical. Seu primeiro professor, Adalbert Lindner, incutiu-lhe com severidade o amor pelos "velhos mestres": para Reger, Johann Sebastian Bach haveria de ser, por toda a vida, segundo suas próprias palavras, "o começo e o fim de toda a música". A vida de Max Reger foi obscura: em 1901, depois de ter concluído o essencial de seu catálogo de órgão, instalou-se em Munique onde, apesar de uma criatividade transbordante, não conseguiu firmar-se (sua Sinfonietta opus 90 produziu escândalo na estréia). A etapa seguinte foi uma cadeira de composição na Universidade de Leipzig, que ocupou de 1907 a 1911. Soberbamente impermeável a qualquer novidade, o ensino que ministrava era rigorosamente tradicional: em harmonia, por exemplo, defendia as teses de Rameau. Em 1911, assumiu em Meiningen, depois de Steinbach e Berger, o lugar de Richard Strauss (compositor que Berger não apreciava). Esgotado e doente, retirou-se para lena em 1915. No ano seguinte, morreu. Como Brahms, a quem admirava profundamente — embora encaminhasse a démarche brahmisiana de maneira bem mais sistemática e exclusivista que o próprio Brahms —, Reger pretendia ser o restaurador da velha tradição polifónica alemã. "Posso dizer, bem conscientemente," — escreveu um dia — "que de todos os compositores vivos, talvez eu seja aquele que mais contatos conserva com os
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grandes mestres de nosso passado tão rico." Na época em que a modernidade sinfônica passara a significar Gustav Mahler e Richard Strauss, Max Reger certamente foi, junto com Hans Pfítzner, um dos únicos compositores a ter voltado obstinadamente as costas para o seu tempo. Medo ou convicção passadista? Em todo caso, seu catálogo de imposições é eloqüente: seja na sua música para órgão, em que ele pretendia ser o correspondente moderno do catálogo de Johann Sebastian Bach, em música para piano (Variações efuga sobre um tema de J.S. Bach opus 81), seja na música de câmara ou na música sinfônica, não há qualquer peça que inove. Sempre sonatas, fugas, suítes e variações — seu modelo predileto —, em uma escrita rigorosamente consonante. A obra de câmara de Reger é a de um epígono de Brahms (Sonata para piano e violino opus 139, Quinteto com clarineta opus 146), enquanto nos momentos mais bem-sucedidos o catálogo sinfônico lembra Schumann (Concerto para piano opus 114, Prólogo sinfônico para uma tragédia opus 108). Quando se pensa nos requintes de Mahler e de Richard Strauss, seus contemporâneos, a orquestração das peças de Reger parece rasa. Se a obra de Max Reger, em seu "classicismo" proclamado, foi inegavelmente a obra de um conservador, não deixa de estar, contudo, atravessada pelos conflitos de uma época empenhada em se afastar do romantismo: a harmonia, por mais tradicional, nem por isso é menos sobrecarregada; a dinâmica geral de suas obras tende logo para a inchação. A música de Max Reger "aspira a uma contenção e a um equilíbrio clássicos e, ao mesmo tempo, é desmesurada; tende à ordem, provocando, contudo, a confusão" (Heinrich Strobel). A inspiração melódica, de fôlego curto, acomodava-se à escrita de tema e variações: Variações para orquestra opus 100 (1907), sobre uma melodia extraída de um Singspiel de J.A. Hiller (um contemporâneo de Mozart), assim como as Variações sobre um tema de Mozart opus 132 (Sonata em lá maior K 331), compostas em 1914. As duas obras têm em comum o fato de situarem-se, no plano formal, bem aquém das variações do último Beethoven, que as precedem de um século. Podemos avahar a importância de Reger conhecendo sua descendência: o único músico que recebeu dele uma influência decisiva foi Paul Hindemith. Hans Pfítzner Hans Pfítzner (1869-1949), exato contemporâneo (e rival) de Richard Strauss, sustentou durante toda a vida posições análogas às de Max Reger: compositor dramático (cinco óperas), também tentou fazer uma espécie de síntese entre Wagner, Schumann e Brahms, e era um adversário declarado da modernidade de seu tempo; sobre essa questão, o título de seu livro antibusonista não deixa a menor dúvida: Futuristengefahr [Os perigos do futurismo, 1917]. Ao acaso das turnês de seu pai, que era músico, Hans Pfítzner nasceu em Moscou, em 5 de maio de 1869. De volta à Alemanha, a família Pfítzner instalou-se em
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Frankfurt, onde o pai dirigia o Conservatório e o filho fazia seus estudos musicais. Mais tarde, Hans Pfítzner ocupou diversos postos oficiais (professor do Conservatório de Koblenz e do Conservatório Stem de Berlim), dos quais o mais importante foi em Estrasburgo, onde dirigiu, entre 1908 e 1916, o Conservatório, a Orquestra Sinfônica e, a partir de 1910, a Ópera. Em 1914, escolheu Otto Klemperer como assistente. Nesse período — na verdade, o seu apogeu — compôs, entre 1912 e 1915, a "lenda musical" Palestrina, com libreto de sua própria autoria, que veio a ser apresentada pela primeira vez em 1917, em Munique. Mais do que um retrato do músico renascentista Palestrina, Pfítzner empenhou-se em fabricar um drama original, que põe em cena a problemática da liberdade do artista na sociedade, sua determinação e sua responsabilidade diante do mundo. Para colocar o ouvinte no ambiente (a ação transcorre no século XVI), Pfítzner escolheu voluntariamente uma escrita arcaizante, que hoje poderia provocar risos, mas que, na época, representava uma tentativa musical original. Alguns comentadores acreditaram ver em Palestrina, tal como ele está representado na obra, uma espécie de auto-retrato de Pfítzner. Na verdade, a obra inscreve-se essencialmente numa linhagem muito particular da arte dramática alemã que, de Die Meistersinger von Nürnberg [Os mestres cantores de Nuremberg], de Richard Wagner, a Mathis derMaler [Matías, o pintor], de Hindemith, busca pôr em cena as relações entre o criador moderno e seu tempo. A grande diferença, contudo, está em que o século XVI dos Meistersinger era o pretexto para uma obra toda voltada para o futuro, ao passo que em Palestrina significa o passado. De resto, Palestrina é um caso isolado e não deixou descendência. De volta a Berlim em 1920, Pfítzner assumiu um curso de composição, bateuse contra qualquer nova abertura para a música e polemizou a esse respeito com Busoni. No final da vida, esse homem determinado e íntegro, muito anti-social, tornou-se sombrio e amargo, a ponto de brigar com Thomas Mann, que sempre o havia apoiado com a maior fidelidade. Mesmo que seu catálogo de composições comporte algumas peças instrumentais, duas sinfonias, quatro concertos e um grande número de Lieder (como Hugo Wolf, ele era um homem culto), o nome de Hans Pfitzner permanece, antes de mais nada, ligado a Palestrina que, apesar dos defeitos, representa uma das tentativas originais do nosso século no campo da música para a cena. Ferruccio Busoni Ferruccio Busoni (1866-1924) foi, em todos os aspectos, uma personalidade fora do comum: ao mesmo tempo um virtuose de estatura lisztiana, um compositor cuja originalidade não tem equivalentes (nem descendentes) e um pedagogo sem par.
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Nascido na pequena cidade italiana de Empoli, perto de Florença, em uma família de músicos, Dante Michelangiolo Benvenuto Ferruccio Busoni era de origem italiana por parte de pai, que era clarinetista, e alemã por parte de mãe, que era pianista. Embora o menino só tivesse dez anos quando a família instalou-se em terras germânicas (em Graz, na Áustria), durante toda a vida ele conservou essa dupla herança, uma ambivalência de atitude: alemão por opção, Busoni permaneceria italiano de coração. Antes de mais nada, foi uma criança prodígio (deu o primeiro concerto público como pianista aos oito anos, regeu seu próprio Stabat Mater aos doze anos...) e soube atrair para si um artigo elogioso do temível crítico Hanslick já aos dez anos, quando foi a Viena para dar um recital. Nessa ocasião, interpretou principalmente algumas de suas próprias composições, e Hanslick elogiou o pianista tanto quanto o compositor. Recomendado por Brahms, passou três anos no Conservatório de Leipzig, entre 1886 e 1889. Lá conheceu Tchaikovski, Grieg, Mahler, Delius e compôs, em uma das belas tonalidades do pós-romantismo, o seu Quarteto em ré menor opus 26. A partir de 1889, começou sua carreira de professor (em Helsinque, depois em Moscou), interrompida por uma turnê de virtuose pelos Estados Unidos. Na volta, em 1894, instalou-se em Berlim, cidade que ele nunca mais deixaria, exceto para uma apresentação em Zurique, durante a Primeira Guerra Mundial. Busoni tornou-se rapidamente um dos principais animadores da vida musical berlinense, organizando concertos de música contemporânea. Desse modo, deu várias primeiras audições — que ele próprio regia — das obras de Bartók, de Sibelius, de músicos franceses (Debussy, Fauré, d'Indy), assim como de suas próprias obras. Depois de haver composto três óperas — Die Brautwahl (1912), Arlecchino, oãer Die Fenster (1917), Turandot (1917) —, morreu em Berlim em 1924, deixando inacabada a sua última obra dramática, a "obra da sua vida", Doktor Faustus. Vasta empresa para a qual ele próprio escreveu um libreto que nada deve a Goethe, a obra é mais um drama do desespero (freqüência do lirismo, retorno consciente à melodia, construção por quadros fragmentados) que representa uma abertura para as angústias de nosso século, sem recorrer ao divino: tal obra só poderia mesmo ter ficado inacabada. O PIANISTA VIRTUOSE Todas as opiniões convergem: Busoni era um dos maiores pianistas de seu tempo. Depois de tê-lo ouvido tocar em um recital dedicado a Liszt, Chantavoine escreveu: A interpretação de Ferruccio Busoni é no momento, eu acho, o que se pode ouvir de mais completo e mais perfeito. É uma sorte rara essa adequação absoluta de u m intérprete às obras que ele interpreta. Busoni possui uma incrível riqueza de nuances e de "toques"; passa de u m a outro com uma sutileza e uma precisão que transmite à sua interpretação uma extensão de perspectiva da qual s ó podem ter idéia os que acabam de ouvi-lo tocar.
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Irène Baumme observou: No piano, ele tocava muito simples e corretamente, sem articulação exagerada, sem se balançar e sem grandes gestos inúteis. Quando muito erguia às vezes a m ã o direita ao final de u m a frase. Tinha u m a extraordinária precisão em sua interpretação e u m a leveza transparente nos pianissimo, o que n ã o excluía u m magnífico poderio na f o r ç a — s e m qualquer brutalidade. As interpretações de Busoni dos Études de Chopin, das obras de Liszt, das Variações sobre um tema de Paganini, de Brahms, entre outras obras, eram de uma perfeição verdadeiramente incomparável.
Duas idéias a guardar dessas avaliações contemporâneas ao compositor: as afinidades com Liszt, assim como a espantosa modernidade da interpretação (uma sobriedade análoga de gestos seria observada por Busoni na regência da orquestra). O COMPOSITOR PARA PIANO Pianista dotado de tão grandes qualidades, era natural que a obra de compositor conservasse traços disso: o piano ocupou, em toda a obra de Busoni, um lugar primordial (no entanto, ele compôs em todos os gêneros). O nome de Busoni está ligado, em primeiro lugar, a uma monumental edição da obra para teclado de Johann Sebastian Bach (com a adaptação do repertório de órgão para piano moderno), conhecida como "edição Bach-Busoni" e publicada por Breitkopf e Hártel. Se o encontro entre o jovem Busoni e Brahms foi importante, o encontro com Liszt foi mais ainda. Como Liszt, Busoni não apenas era dotado de uma técnica a toda prova, mas partilhava com o ilustre precursor um sentido inato das possibilidades do piano. As obras de Busoni em que a influência de Liszt e da "virtuosidade transcendental" estão mais presentes são o Concerto para piano opus 34, e a célebre Fantasia contrapontístico, de 1912. Uma das coletâneas para piano mais interessantes é certamente o caderno das Seis sonatinas, compostas entre 1910 e 1920. Que o título não induza a erro: não se trata de modo algum de "pequenas sonatas", mas de verdadeiras sonatas, em que se manifesta um sentido da forma particularmente original. Na verdade, a forma tradicional é ultrapassada e como que dissolvida em uma sucessão de idéias musicais que se encadeiam umas às outras sem solução de continuidade. Não se encontrará aí qualquer fórmula de escrita, qualquer estereótipo, nem de linguagem, nem de pensamento (a não ser a obsessão com o contraponto), mas uma eloqüência do teclado (Sonatina n° 4), um humor (Sonatina n° 3, Sonatina n° 6, dita Fantasia sobre Carmen) e uma harmonia que é própria a Busoni, uma espécie de "harmonia independente", em que as funções tonais só são imperativas na linguagem tradicional, o que lhes permite explorar novas combinações sonoras. Desse modo, se a Sonatina n° 1 funciona um pouco à maneira de uma "Sonata de Liszt reduzida", a tonalidade é abandonada na Sonatina n° 2, que representa um dos pontos mais bem acabados na busca que Busoni empreendia no sentido de
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forjar uma linguagem pessoal. Para começar, não se encontra aí nem armadura de clave (Liszt: Bagatelle sem tonalidade), nem indicação de acorde de qualquer tipo. Se o clima assemelha a peça a uma espécie de improvisação, esta é magistralmente construída. No primeiro movimento (Vivace, fantástico, con energia, capriccio e sentimento), a exploração de um intervalo privilegiado (a quarta justa, ao qual é confiado um papel estrutural) dissolve o sentimento da tonalidade. Bem mais: quando se examina a obra de perto, percebe-se que, apesar da aparente heterogeneidade do material temático, toda a sonatina é construída sobre derivadas do recitativo inicial para a mão esquerda (a mezza voce parlando). No entanto, não há nada de "escolástico" nessa demonstração formal, e a peça nunca perde aquela facundia pianística que caracteriza Busoni de maneira definitiva. Nunca, contudo, esse compositor — que não aderiu ao pensamento dodecafônico — esteve mais próximo da Escola de Viena.
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A ÓPERA ITALIANA: DEPOIS DE VERDI, PUCCINI
O PEDAGOGO
Avesso a todo sectarismo, Busoni pregava o estudo de Bach e de Mozart; se, ensinando em Weimar na temporada de 1901-1902, teve que se fazer apóstolo de Liszt (já caído no esquecimento), também não deixava de lutar com toda a tenacidade de seu caráter latino contra as tendências fin de siècle na música (música de programa, poema sinfônico...). Deste ponto de vista, pretendia ser o condutor do "jovem classicismo", como ele mesmo nomeara (três de suas composições deixam entrever esta intenção: o Divertimento opus 52, os Tanzwalzer opus 53 e o Scherzo opus 54). Ao contrário de um Max Reger, Busoni praticava um ensino inimigo de toda rotina e de todo academicismo, exigente, aberto e muitas vezes questionador. Mais perto de nós, Stravinski e Varèse (que foi seu aluno e amigo) tinham-no em alta conta. Em seu Esboço de uma nova estética musical, publicado em 1907 (e que lhe valeu vivos ataques de Pfítzner), não hesitou em escrever, com uma coragem certeira: A técnica clássica atingirá o esgotamento no final de uma etapa da qual ela já atravessou a maior parte. Onde irá levar a etapa seguinte? A meu ver, ela nos levará às sonoridades abstratas, a uma técnica sem entraves, a uma liberdade tonai ilimitada. Cumpre retomar tudo a partir do zero, retornando a uma virgindade absoluta.
Que fez a Escola de Viena, senão isso?
O após-Verdi A carreira de Verdi terminou duas vezes: em 1871, com Aída, quando ele próprio anunciou sua intenção de se retirar; e em 1893, depois da genialidade de Ealstaff, obra à parte, inclassificável, da qual não é possível estabelecer com precisão nem a filiação, nem a descendência. Do mesmo modo, a sucessão do mestre haveria de ser duas vezes retomada, em condições muito diferentes. Os dois decênios que separam estes movimentos de retirada de Verdi foram marcados por uma evolução profunda da vida política, cultural e musical da Itália. O após-Verdi começou em 1871, quando o músico ainda não atingira a idade de sessenta anos. Nessa época, o tão aguardado reino italianofinalmenteconquistou a unidade e estabeleceu uma capital. Ressoavam as trombetas de Aída. O talento do músico não diminuíra: Otello e Falstafjlogo provariam isso, mas o público já não escutou com os mesmos ouvidos esses apelos à glória e ao sacrifício. O tempo histórico de Verdi passara. Isso tem como conseqüência imediata o fato de que não se deve buscar seu sucessor entre os músicos que a ele muito se assemelhavam. OS ULTIMOS ROMÂNTICOS O romantismo da liberdade e dos grandes sentimentos tinha seus adeptos. O ano de 1870 viu justamente aparecer um estranho personagem, brasileiro de origem: Antônio Carlos Gomes (1836-1896) nasceu em Campinas, perto de São Paulo;
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estudou música em Milão e compôs uma ópera estranha, O guarani, em que se encontram todos os temas patrióticos tão caros a Verdi; a isso, o compositor acrescentava uma espécie de homenagem a Rousseau, ao fazer de seu herói um índio guarani (o próprio Carlos Gomes tinha ascendência indígena) que, depois de sofrer todos os malefícios por parte dos europeus, acaba — oh! escândalo — por merecer o amor da heroína branca deste suntuoso melodrama. A música da obra é sólida, densa e apresenta por momentos aquela imperiosa urgência que prende a atenção nas óperas de Verdi. Carlos Gomes foi saudado como o herdeiro presuntivo do mestre e, em seguida, foi rapidamente esquecido entre os inúmeros compositores de dramas mais ou menos históricos; tomou ainda de empréstimo a Victor Hugo os temas para as óperas Maria Tudor (1879) e Marion de Lorme, de menor interesse. Depois voltou ao Brasil para lá compor em 1889 sua última ópera: O escravo. Foi também a Victor Hugo que Amilcare Ponchielh apelou para construir o libreto de sua ópera mais conhecida, La Gioconda (1876), adaptada por Arrigo Boïto a partir de Angelo, tirano de Pádua. Mas Ponchielh (1834-1886) nunca passou de um hábil artesão, e sua obra copia sem o menor talento o heroísmo dramático de Verdi. A epopéia I lituani [Os lituanos, 1875] só tem de original um libreto em que mtervinham pela primeira vez na ópera italiana as misteriosas fadas nórdicas, as Wallys (ou Villis), destinadas a nela fazerem uma bela carreira. O sucessor de Verdi, difícil de encontrar entre seus fiéis imitadores, teria podido ser Arrigo Boïto (1842-1918). O homem certamente era um dos mais inteligentes de sua geração, grande admirador de Baudelaire e de Wagner, poeta, jornalista, crítico, músico ao sabor das horas, o único autêntico romântico italiano, segundo Benedetto Croce. Mefistofele [Mefistófeles], vaiado no Scala em 1868, aplaudido na reprise, em 1881, é uma obra ambiciosa e pesada, cheia de reminiscências wagnerianas. Os dois grandes mestres da ópera, aliás, não tinham estima pela obra de Boïto. Verdi escreveu que o autor "tem talento, busca ser original, mas o resultado soa de maneira curiosa". Quanto a Wagner, foi ainda mais malicioso, falando "dos enfeites de uma jovem mulher". A recusa do público explicava-se por uma novidade que chocava: aquela música enfática estava muito distante da secura nervosa de Verdi. Boïto deixou seu nome para a posteridade mais por sua contribuição com os libretos de Otello e de Falstaffdo que pelos méritos de Mefistofele ou de Nerone [Nero], que ficou inacabada. Em 1870, ainda não havia à vista qualquer eventual sucessor para Verdi. Em 1895, quando o músico retirou-se definitivamente, o problema foi bem diferente. É que a cultura italiana havia mudado muito ao longo desses 25 anos. Em 1874, o escritor siciliano Giovanni Verga publicou Nedda, primeira manifestação do "verismo", a forma italiana de naturalismo. Da hteratura, o novo sistema iria transportar-se para a música.
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A CORRENTE SINFÔNICA
Os anos 1880 assistiram ao aparecimento de uma música instrumental em uma Itália para a qual a voz já não era suficiente como único meio de expressão musical. Essa Itália, que ignorara até o final dos anos 1850 o conjunto da obra sinfônica de Beethoven, e em que a presença em cartaz de um concerto com este grande nome ainda era um acontecimento raro,finalmenteiria contar com seus primeiros compositores de música puramente instrumental, arrimados pelos mesmos objetivos de seus colegas da França e da Alemanha. Logo apareceu o melhor deles, Ottorino Respighi (1879-1936), célebre sobretudo por duas séries de cartões-postais sinfônicos, Fontane di Roma [Fontes de Roma, 1914-1916] e os Pini di Rome [Pinheiros de Roma, 1924], e que, significativamente, só tentou compor óperas nos últimos anos de vida. É curioso observar que Respighi estudara orquestração em São Petersburgo com Rimski-Korsakov. Um novo alento musical de origem, antes de mais nada, germânica vinha soprar sobre a península italiana. Boïto fazia referências a Wagner; os sinfonistas da escola de Nápoles imitavam Beethoven e Brahms. Todos buscavam uma germanização da música. Tais esforços em parte permanceriam estéreis, mas nem por isso deixaram de ter efeito sobre a evolução da ópera, gênero que perdeu a posição de monopólio da expressão musical. Mais ainda, todos os compositores passaram a ver na sinfonia uma riqueza complementar para garantir o sucesso da ópera, a única forma a conservar uma audição popular. Os elementos orquestrais amplificados iriam enriquecer a narrativa dramática, única a merecer de verdade o interesse do público. A orquestra, apoiando a voz, viria desempenhar um papel de motor na ação cênica. O modelo wagneriano, apresentado por Boïto, era incompatível com o gosto a que permaneciam fiéis os compositores italianos, gosto por uma melodia evidentemente afirmativa, acrobática se possível, mas cuja primeira qualidade era a de ficar facilmente gravada nas memórias. Nessas condições, não deve ser motivo de surpresa o delineamento de uma estranha contradição. Enquanto os teóricos apresentavam a música alemã como exemplo, os fazedores de óperas, que asseguravam a continuidade da tradição, viam com interesse a música francesa. Para aqueles compositores que haveriam de qualificar-se a si próprios como os "jovens italianos", Bizet e Massenet tornaramse fonte de inspiração bem mais precisa e mais acessível que Wagner e os grandes alemães. A primeira crise que atingiu os "jovens italianos" dizia respeito aos libretos de ópera. O modelo heróico, caro a Verdi, parecia-lhes ter passado de época; seguindo um impulso neo-romântico, foram buscar em uma tradição germanizante a fonte de inspiração para libretos sobre os quais fariam jorrar o mais italiano dos cantos. Um dos primeiros a fazer isso foi Alfredo Catalani (1854-1893), nascido em Lucca, como Puccini, e alguns anos mais velho do que este. Toda uma nova
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literatura lírica pode nele ser reconhecida: suas óperas Loreley (1890) e La Wally (1892) seguem a mesma receita: importância dos interludios orquestrais, que jamais é obstáculo a um desenvolvimento totalmente italiano da frase cantada; estrutura romanesca de situações sem alcance filosófico ou político, convergindo para algumas grandes cenas sentimentais; cuidado dirigido a todos os detalhes suscetíveis de atingir diretamente a sensibilidade dos espectadores. Fórmula de sucesso. Toscanini ficou de tal modo entusiasmado que deu à sua filha mais velha o nome nada italiano de Wally. Observemos, de passagem, que Puccini, de quem falaremos com mais vagar adiante, fizera sua primeira ópera, Le Villi [As Vilfis, 1884], sob o signo das mesmas fadas nórdicas. OS VERISTAS A amável facilidade de Catalani ou das primeiras óperas de Puccini do início precedeu a entrada em ação daquela que foi chamada de música verista. Cômodo vocábulo que serve para tudo, a palavra "verismo" é uma bandeira que cobre mercadorias as mais diversas (algumas passaram mais tarde a ser conhecidas sob outros nomes). Aplicada apenas ao aspecto musical da ópera, o verismo não passa de uma forma da música imitativa levada ao extremo. Quando os italianos começaram a falar dela, em toda a Europa já se fazia esse tipo de música, em poemas sinfônicos com temas mais ou menos bem definidos ou para proporcionar panos de fundo a espetáculos líricos. Neste sentido, Carmen, de Bizet, já era totalmente verista, assim como a La Navarraise [A navarreza], de Massenet. Não é inútil observar que uma das primeiras manifestações oficiais do verismo italiano foi L'Arlesiana [A arlesiana, 1896], de Francesco Cilea, cuja aproximação com Bizet impõe-se, mesmo porque a música de cena que este último compusera para a peça teatral de Alphonse Daudet já tinha, nessa época, mais de vinte anos. A originalidade da démarche dos compositores veristas não será encontrada nessa direção. Eles pensavam como criadores de óperas, ou seja, como contadores de histórias. Sua démarche partia do libreto, porque sabiam que tipo de música iam fornecer ao público, porque conheciam os limites de seu poder sobre a audiência, que, afinal, só demandava uma coisa: uma história emocionante e algumas grandes árias bem cantadas. A lógica do movimento lançado pelo manifesto de Verga levava-os a buscar os temas na vida cotidiana, o que às vezesfizeramcom talento. Mas a própria natureza do espetáculo de ópera os induziu freqüentemente a conservar seus heróis no mundo da fantasia romanesca, desde sempre tão familiar à literatura operística, e onde é tão fácil encontrar aquelas situações comoventes que não deixam de fazer chorar a mais ingênua das moças, como no melodrama popular. É preciso prestar atenção à definição do verismo que Ruggiero Leoncavallo, libretista e músico, escreveu no prólogo de Pagliacci [Palhaços, 1892]. Ele descreveu sua obra, na melhor expressão naturalista, como "un squarcio di vita", uma
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fatia da vida; anunciou "os espasmos da dor, gritos de raiva e risos sardónicos"; o que não o poupou de ser acusado de "falta de gosto" pelo crítico vienense Hanslick, a quem essa crueza meridional abalava, por força da atitude de respeito que mantinha em relação à noção, bastante clássica, de dignidade da arte. Nessa brutalidade intencional não se deve ver, porém, nada mais do que uma das faces do verismo. Lado a lado com Pagliacci, Cavalleria rusticana [Cavalaria rústica, 1890], de Pietro Mascagni (com libreto baseado em uma narrativa de Verga), ou com a sórdida Mala vita [Vida baixa, 1892], de Umberto Giordano, o verismo conta com muitas obras que se passam em contexto bem mais convencional, desde Andrea Chénier (1896), do mesmo Giordano, até a encantadora ópera L'amico Fritz [O amigo Fritz, 1891], de Mascagni, ou Adriana Lecouvreur (1902), de Francesco Cilea. Pode-se mesmo atribuir limites cronológicos bem precisos para o verismo "pesado". As poucas produções em que se aliam crimes sangrentos à descrição de meios muito populares pertencem todas ao último decênio do século XLX. Quando Puccini, em 1918, compôs II tabarro [O capote] escolheu esse tema negro e brutal para melhor equilibrar as voletas de seu II trittico [O tríptico], mas já estava longe, no tempo, de uma moda já ultrapassada, que explorou à margem das correntes mais modernas. Melodistas a serviço de amantes do canto, os músicos veristas encontravamse muitas vezes em uma falsa posição. Era-lhes concedida a graça de continuar — freqüentemente com uma ponta de ridículo •— uma tradição de bel canto dos quais eram os últimos defensores: não se apreciava o trabalho deles como sinfonistas; quando muito, aceitava-se ver neles imitadores do teatro lírico de Richard Strauss. É certo que o amor dos compositores veristas italianos pela orquestra tinha fontes germânicas, mas a cronologia nos obriga a reconhecer neles uma originalidade que surpreende. O vento que empurrava os veristas era o dos novos tempos, que esses italianos, ainda musicalmente tagarelas, procuravam alcançar. Às vezes, a modernização da ópera que buscavam produzia resultados curiosos. Adriana Lecouvreur, de Cilea, é de 1902, data em que Richard Straüss estava apenas iniciando sua aproximação com o mundo da ópera. O tema dessa ópera de Cilea pertence ao mais deplorável gênero melodramático (o libreto, retirado de Scribe, obrigava a isso); os solistas contam com árias que as cantoras do século passado, uma Malibran ou uma Grisi, não teriam desprezado. E a massa orquestral é endurecida com uma gourmandise verdadeiramente amorosa, um preparado rico e bem temperado que o Strauss dos anos 1910 não haveria de renegar. De uma multidão de compositores entre os quais o talento nem sempre se dividia de maneira igual, alguns merecem ser destacados. De início, Ruggiero Leoncavallo (1857-1919), a quem se deve uma agradável La Bohème [A vida boêmia, 1897], caída no esquecimento por causa da Bohème de Puccini, embora o encanto e a juventude da primeira a aproximem do espírito de Murger; uma Zaza
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(1900) transbordante de sensibilidade e que Fauré muito admirava, e ainda o célebre Pagliacci. Pietro Mascagni (1863-1945), cujas óperas Cavalleria rusticana e L'amico Frifzfizeram-se seguir de urna Iris (1898) e de IIpiccolo Marat [O pequeno Marat, 1921], ainda hoje bastante popular na Itália. Ao lado desses, cumpre citar Umberto Giordano (1867-1948), que ao célebre Andrea Chenier acrescentou uma Fedora (1898) e uma Siberia (1903) em que se encontram algumas árias russas destinadas a assegurar a cor local; Francesco Cilea (1866-1950) e sua Adriana Lecouvreur, em que a espessura da massa orquestral faz lembrar o jovem Richard Strauss; Ricardo Zandonai (1883-1944), cuja Francesca da Rimini (1914) inspirase em uma tragédia de Gabriele d'Annunzio; Ermanno Wolf-Ferrari (1876-1948), que compôs óperas cômicas "de atualidade", como 17 segreto di Susanna [O segredo de Suzana, 1909] e peças "de época", em que se valeu de textos de Goldoni ( I quattro Strusteghi, 1906). A parte o último citado e Mascagni, todos esses compositores cessaram suas atividades aproximadamente na década de 1920, como se pertencessem completamente ao mundo do pré-guerra. Giacomo Puccini A celebridade de Giacomo Puccini (1858-1924) ultrapassa de muito a dos outros músicos de sua geração. O renome internacional conquistado por Puccini é tão expressivo quanto o de Verdi, ou mais. Em particular, Puccini conseguiu conquistar a opinião pública norte-americana, o que veio a fazer da equipe PucciniCaruso a imagem ideal de uma certa cultura italiana. Último grande representante da ópera tradicional, Puccini levou ao extremo as qualidades e os defeitos que haviam sustentado, durante tanto tempo, o reinado inconteste de um gênero de espetáculo cuja sedução residia em suas próprias extravagâncias. A vitória do cantor e do compositor confundiam-se nos sucessos que uma Nova York, finalmente conquistada pela ópera, garantiu à obra do último representante de uma certa tradição de grandes compositores italianos. OS PRIMEIROS SUCESSOS Giacomo Puccini nasceu em Lucca, de uma família que havia quatro gerações servia à música de igreja ou de ópera. Já no século XVIII, um certo Giacomo Puccini era suficientemente bem considerado para manter correspondência regular com o famoso padre Martini. Órfão aos seis anos, o jovem Giacomo Puccini teve que se virar o melhor que pôde. Pagava seus estudos na cidade natal fazendo a manutenção, um a um, de todos os órgãos das igrejas de Lucca e complementava esses ganhos tocando piano nos bares e mesmo — a crer nas más línguas — em um bordel. Isso pouco importa. A entrada de Puccini no domínio da composição fezse com uma Messa di gloria [Missa de glória, 1880], que muito deve a Verdi e mais ainda a Rossini.
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Mas a música de igreja não interessava a Puccini. Era à ópera que ele visava desde jovem. A ajuda financeira de um tio e uma bolsa do governo perrmtiram-lhe garantir para si uma formação no Conservatório de Milão, onde se ligou sobretudo ao ensino de Ponchielfi, autor de La Gioconda e um dos últimos apóstolos da ópera romântica. A primeira obra de Puccini, Le Villi [As Villi, de 1884], retomava o tema da música para balé de Gisèle, de Adolphe Adam, uma antiga lenda germânica contada por Heine e Théophile Gautier. A sorte do compositor fez com que sua ópera fosse notada por dois personagens importantes: Boïto e o editor Giulio Ricordi. Graças a eles, a obra foi montada com algum sucesso em Turim e em Milão. Ricordi contratou o jovem compositor, no qual viu um possível sucessor de Verdi, o que é prova de um tino comercial bastante seguro. O Puccini de Le Villi certamente ainda não era um grande compositor, mas a música era cheia de encanto e ele demonstrava ter bastante habilidade na escolha de seus modelos musicais, que ia buscar em Verdi, em Wagner e em Bizet, num ecletismo que poderia parecer chocante se a mistura das influências não se desse de maneira tão magistral. Edgar (1889), composto em seguida a Le Villi, foi um fracasso musical e comercial. Giulio Ricordi teve trabalho para convencer seu conselho administrativo a não cancelar o contrato com Puccini. Os acontecimentos lhe dariam razão num futuro próximo: Manon Lescaut (1893) foi um enorme sucesso. O compositor encontrara o equilíbrio que melhor lhe convinha entre as exigências do canto e as da orquestra. Bernard Shaw, de Londres, aplaudiu Puccini por ter feito de sua obra "um movimento único ornado de episódios", apontando nele o legítimo herdeiro de Verdi — um elogio importante, vindo da pena do grande dramaturgo e crítico. Com Manon Lescaut apareceram dois libretistas que, trabalhando em conjunto, vieram a se tornar responsáveis por algumas das óperas mais justamente populares de Puccini: Giuseppe Giacosa e Luigi Iifica. Durante esses anos de primeiros sucessos, a vida sentimental de Puccini complicou-se. Bastante mulherengo, sempre em busca de aventuras novas, raptou, em 1884, Elvira Gemignani, mulher de um de seus amigos de infância, que se tornaria sua companheira durante toda a vida; em 1904, com a morte de Gemignani, Puccini casou-se com Elvira, mas jamais abandonou sua habitual leviandade. Presa de um ciúme doentio, Elvira fez do seu casamento com Puccini uma interminável história de brigas e de dramas permanentes. OS GRANDES TRIUNFOS La Bohème (1896) confirmou o sucesso de Manon Lescaut: o verismo, então triunfante na ópera italiana, era nessa ópera temperado por urna sentimentalidade de bal musette que assegurou boa acolhida à nova ópera de Puccini. O ano de 1900 assinalou, com Tosca, o ponto máximo da carreira de Puccini. Verdi sentira-se tentado a musicar a peça teatral de Sardou: via nela a ocasião de lançar um grande hino à afiança da arte e do amor, centrado no "Vissi d'arte, vissi d'amore" ["Vivi de
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arte, vivi de amor"] com que Tosca responde a Scarpia. Essa Tosca poderia ter sido uma irmã distante de Violetta. As preocupações de Puccini eram bem mais elementares. Pouco se prendeu ao quadro histórico da peça de Sardou e ao contexto político que ela poderia oferecer. Para ele, só contava uma magnífica história de amor, ciúme e morte, pretexto para algumas árias magníficas. Era o que sabia fazer de melhor e não podia desviar-se do caminho em que o sucesso estava garantido. A acolhida do público foi absolutamente delirante, com a atmosfera incendiada pelo medo de um atentado anarquista; a crítica, ao contrário, mostrou-se relativamente reservada, deplorando certos aspectos muito brutais do libreto e a tendência de Puccini a sacrificar algumas passagens de sua ópera à busca de efeitos mais vigorosos sempre que tinha a intenção de sublinhar algum ponto importante. A ópera seguinte, Madame Butterfly, foi vaiada — fato inédito para Puccini — em sua primeira apresentação no Scala de Milão, em fevereiro de 1904. Uma segunda versão, seriamente remanejada, recebeu a acolhida esperada quatro meses mais tarde, no Teatro Grande de Brescia. É provável que um público que permanecera preso à lembrança da violência dramática da Tosca tenha ficado um tanto desconcertado com os orientalismos delicados e excessivamente trabalhados de Madame Butterfly. Àquele público restava absorver algumas surpresas mais. De fato, a ópera seguinte de Puccini dirigia-se diretamente ao público norteamericano. Apresentada pela primeira vez no Metropolitan Opera House de Nova York, em 1910, La fanchdla del West [A garota do Oeste] tinha como cenário a Califórnia dos caçadores de ouro, dos bandidos, dos xerifes e das proprietárias de saloons. Adaptado a partir de uma medíocre peça de sucesso, o libreto da ópera é uma bela história de redenção pelo amor que dificilmente se pode pôr de acordo com o realismo de silhuetas cujo lado pitoresco é meio forçado, tais como a de Jack Rance, o xerife implacável e jogador de póquer. Mas o público nova-iorquino deu à peça uma acolhida triunfal. Cumpre dizer que a orquestra foi regida por Arturo Toscanini e que o papel principal do bandido arrependido foi desempenhado por Enrico Caruso. A esse melodrama exótico, Puccini deu como sucessor uma opereta de estilo vienense, La rondine [A andorinha]. A obra demandou muito trabalho do compositor e deu-lhe poucas satisfações. Com estréia em Monte Cario, em 1917 (o que não foi uma boa data para a opereta), muito cedo caiu no mais completo esquecimento. A estréia da produção seguinte de Puccini teve novamente como palco o Metropolitan Opera House de Nova York. A guerra de 1918 não evoluía de uma forma que os italianos tivessem grande Vontade de montar óperas de um compositor que não escondia suas simpatias pela Alemanha. Para falar a verdade, II trittico [O tríptico] não era propriamente uma ópera, mas a justaposição de três atos líricos completamente independentes. II tabarro [O capote] é uma sórdida história de ciúme e assassinato a bordo de um barco no rio Sena. Pela primeira vez em sua carreira, Puccini abandonava-se às convenções mais negras do verismo radical.
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Suor Angelica [Sóror Angélica] é um melodrama sentimental em que a crueldade mental anda de par com a devoção com tintas de angelismo: morre-se de dor ao som de cânticos em uma atmosfera particularmente mórbida. "A morte é a mais bela das vidas", é a mensagem que a infeliz Angélica confia aos ouvintes. A terceira voleta desse tríptico fala igualmente de morte, mas no tom alegre e brutal que de hábito se reserva às brincadeiras sobre temas importantes. Gianni Schicchi, farsa poderosa sobre a caça a heranças, é retirada de duas linhas de Dante, mas o espírito é o de Boccacio e a música é irmã da de Falstaff, de Verdi. Il trittico recebeu uma acolhida mais respeitosa do que entusiasmada; somente Gianni Schicchi mereceu a unanimidade dos aplausos do público e da crítica; as opiniões de agora, aliás, permanecem semelhantes às de sessenta anos atrás. Puccini não teve tempo de concluir sua última obra: Turandot, baseada em uma velha lenda chinesa, adaptada para o teatro no século XVIII por Cario Gozzi e que já havia inspirado uma dezena de compositores de óperas. Depois que Puccini morreu numa clínica de Bruxelas, em novembro de 1924, seu aluno Francesco Alfano completou as últimas páginas da partitura de Turandot, que foi regida pela primeira vez por Toscanini no Scala em abril de 1926. A última ópera de Puccini é provavelmente também a mais bem acabada. Em nenhuma outra ele fizera da orquestra um uso tão rico e melhor adaptado às situações dramáticas. Para além do jogo dos coloridos que dá sua atmosfera particular ao conjunto da obra, os instrumentos da orquestra adquirem nesta obra um relevo particular que faz deles como que parceiros da história prodigiosa que é contada. Ao contrário de Madame Butterfly, em que o orientalismo permanece na superfície, a orquestração de Turandot dá provas de uma imaginação pitoresca que se manifestava especialmente no recurso — muito inovador para Puccini — a um enorme efetivo de percussão. Entre a caracterização musical dos personagens e o enquadramento geral da ação pelo trabalho da orquestra, o compositor só encontrou um equilíbrio tão perfeito em sua ópera póstuma. A DRAMATURGIA DE PUCCINI Conhecemos as fontes em que Puccini foi buscar os libretos de suas óperas. É interessante constatar que ele pensou em utilizar diversos outros textos. A busca de um certo realismo romântico fez com que cogitasse de Les Misérables [Os miseráveis] e de Oliver Twist. Um certo gosto pelas situações ousadas induziu-o a compor as primeiras cenas de uma obra intitulada La Femme et le pantin [A mulher e o fantoche], de Pierre Louys. Chegou a levar bem longe um projeto de colaboração com Gabriele d'Annunzio. É verdade que, ao mesmo tempo que trazia para a música de ópera uma nova riqueza sinfônica, carregava também as próprias óperas de uma complexidade sentimental, psicológica, social e — seria o caso de dizer-se — psicanalítica. O título de Barrés, Du sang, de la volupté et de la mort [Sangue, volúpia e morte], traz a marca de seu tempo; mas poderia muito bem servir de
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slogan publicitário para a Tosca. Scarpia não é um tirano como os demais, como as centenas que o repertorio da ópera produziu: é um sádico no sentido quase clínico do termo. Assim como a velha princesa, tia de Suor Angelica. A relação amor/ódio de Turandot com o mundo é um caso a ser considerado em um tratado de psicopatologia. O espectador que assiste à tortura imposta a Mario Cavaradossi (ou que pelo menos ouve seus gritos) ou à escrava fiel, a pobre Liu, torna-se cúmplice desse desrecalcamento dos fantasmas de Puccini. Não existe mais inocência nessas óperas fin-de-siècle, em que as relações assumem toda a complexidade dos amores interditos, gosto delicioso do fruto proibido, mas também complacência masoquista de um remorso permanente e sabor raro do castigo inevitável, temido e ao mesmo tempo desejado. Como estão longe a nobre simplicidade de um Verdi, o riso estridulo de um Rossini, como estão esquecidas as nobresfrasesvazias e decorativas de um Donizetti! A ópera permanece sendo distração, mas dirige-se a paladares entediados, que pedem a cada dia comida mais picante. As doze óperas de Puccini, que assinalam o limite de um gênero, ainda fizeram durante muito tempo as delícias dos amantes das belas vozes. Mas, como gênero dramático popular, não têm mais razão de ser. O sentimentalismo, a violência, o pitoresco fácil encontraram um veículo mais bem adaptado às necessidades das multidões, mesmo em se tratando de multidões italianas: o cinema. Quem há de tremer com todo o coração pela Fanciulla del West e seu belo bandido se a mesma história é oferecida a preço baixo em todas as salas de cinema? A técnica veio pôr fim a um gênero que, pelo menos na sua tradição italiana, era velho de trezentos anos; e só deixou sobreviverem esplêndidas peças de museu para "amadores distintos".
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SCRIABIN E SEUS CONTEMPORÂNEOS RUSSOS
Dentre os sucessores do "grupo dos cinco" e de Tchaikovski, Serge Vassilievitch Raclimaninov (1873-1943) merece destaque em primeiro lugar. Descendente de uma linhagem de senhores feudais da Moldávia, Rachmaninov deixou a Rússia para viver sucessivamente em Paris, na Suíça e nos Estados Unidos. A influência predominante de Tchaikovski faz-se sentir em toda a obra de Rachmaninov: nas três óperas — das quais a mais bem-sucedida foi Francesca da Rimini (apresentada em 1906) —, na obra sinfônica, na música de câmara, nas canções para voz e piano e nos quatro concertos para piano e orquestra que, ainda hoje, são peças de eleição dos virtuoses do teclado... Foi o poema sinfônico Stenka Razine (1885) que mais contribuiu para a fama de Aleksandr Konstantinovitch Glazunov (1865-1936), aluno de RimskiKorsakov. Cumpre abrir um parênteses para que uma pessoa até então estranha ao meio musical faça sua entrada — em 1883 — na cena da jovem música russa. Esse homem, chamado Belaiev, era um rico melómano que, depois de ouvir a Primeira Sinfonia de Glazunov — o compositor tinha apenas dezesseis anos —, decidiu colocar sua fortuna a serviço de novos talentos como o de Glazunov. Belaiev entrou em contato com Rimski-Korsakov, mestre de toda a jovem geração, e passou a organizar brilhantes saraus musicais todas as sextas-feiras, nos quais a arte nada tinha a invejar à gastronomia... Sempre com a idéia de subvencionar os jovens talentos musicais, Belaiev abriu em Leipzig uma casa de edição e fundou uma Sociedade de Concertos Sinfônicos Russos.
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Glazunov estava, pois, entre os protegidos de Belaiev. Este compositor precoce haveria de escrever nove sinfonias, além de poemas sinfômcos, balés, cantatas e obras de música de câmara. Apesar dessa abundante produção, Glazunov consagrou muito de seu tempo à pedagogia: foi professor de composição no Conservatório de São Petersburgo antes de tornar-se diretor daquela instituição. Atingiu o ápice de sua carreira social ao se tornar presidente da Sociedade Imperial Russa de Música, o que lhe permitiu controlar a vida musical de seu país em seus menores detalhes. A celebridade de Glazunov ultrapassou as fronteiras russas graças a inúmeras turnês de concertos e à sua colaboração com os Ballets Russes, de Diaghilev. Glazunov deu continuidade à sua ação pedagógica no início do regime soviético: só imigrou em 1928 e terminou seus dias em Paris, no ano de 1936. Sua glória foi efêmera, certamente porque o caráter russo de sua obra prende-se antes — e bastante superficialmente — a idéias literárias do que à matéria musical propriamente dita: a influência musical alemã é bem mais evidente na obra de Glazunov. Apesar disso, desempenhou um papel na formação dos jovens Stravinski, Prokofiev e Chostakovitch. Entre os outros protegidos de Belaiev aparece Anatol Konstantionovitch Liadov (1855-1914), cuja obra está mais fielmente impregnada do folclore eslavo do que a de Glazunov. Foi aliás um dos primeiros compositores a ter pesquisado metódicamente o mundo do, folclore e a publicar várias coletâneas de canções populares. Sinais desse empenho de Liadov podem ser encontrados em seus pitorescos aíreseos sinfônicos Baba Yaga (1904) e Kikimora (1909). Nicolai Tcherepmn (1873-1945) ficou conhecido principalmente como um bom maestro. Depois de ter dirigido os Concertos Sinfônicos de Belaiev e o Teatro Marinsky de São Petersburgo, tornou-se o diretor musical dos Ballets Russes durante a turnê da companhia em Paris, no ano de 1912. Em 1921, Tcherepmn instalou-se definitivamente nessa cidade. É autor de três óperas, vários balés e uma ouverture sobre La Princesse lointaine [A princesa distante], de Edmond Rostand. A música de Alexandre Tikhonovitch Gretchaninov (1864-1956) inscreve-se antes na linhagem do "grupo dps cinco", por suas vivas cores orquestrais e pelo emprego de numerosos ritmos populares russos. É uma música agradável, mas sem grande envergadura. Gretchaninov ficou conhecido sobretudo por sua abundante produção destinada às crianças, em particular O sonho da pequena árvore de Natal. Também ele emigrou, vindo a morrer nos Estados Unidos. Reinhold Glière (1875-1956) também freqüentou, a partir de 1900, o grupo de Belaiev. Pedagogo e principalmente etnomusicólogo, defensor da música das minorias nacionais soviéticas, compôs uma ópera inspirada no folclore do Azerbaijão, Chah-Senen. Seu aluno, Nikolai'Miaskovski (1881-1950), escreveu — entre outras obras — 27 sinfonias. Personalidade importante da vida musical moscovita, foi, durante toda a vida, um dos baluartes do classicismo russo.
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Alexandre Scriabin O compositor russo mais eminente dessa geração foi incontestavelmente Alexandre Scriabin (1872-1915). Contemporâneo de Debussy, no início do século Scriabin foi um dos artesãos da emancipação da linguagem harmônica em relação aos limites tonais. Primeiro às apalpadelas, depois afirmando suas teorias, esse compositor russo mal conhecido, impregnado de um misticismo que ele fazia participar do processo da criação, buscou reestruturar a escala cromática temperada: inventou um acorde formado por quartas superpostas (dó-fá sustenido / si bemolmi / lá-ré), que ele chamou de acorde sintético e ao qual atribuía uma carga mística. Esse acorde tem um papel estrutural de primeira importância, porque os sons de que é constituído engendram todos os motivos, os temas melódicos e as agregações da obra. Por outro lado, sua utilização suprime o princípio de atração sobre o qual repousa todo o sistema tonai (sabe-se que, nesse sistema, a tônica ou a dominante são graus fortes). Há, pois, um parentesco espantoso entre as pesquisas de Scriabin e as de Schõnberg. Scriabin também inventou um modo que alterna tons e semitons, que Olivier Messiaen haveria de tornar célebre sob o nome de "segundo modo de transposições limitadas". Esse modo é o material de base da Nona Sonata para piano, de Scriabin. Essa peça, construída sem solução de continuidade, atesta também a libertação de Scriabin com relação às formas clássicas. Apaixonado pelas correspondências entre som e cor — que é de igual modo uma das maiores preocupações de Olivier Messiaen —, Scriabin persuadiu-se de que o espectro sonoro tem seu equivalente espectro luminoso. Em Prometeu: o poema do fogo, obra em que tende a resolver o problema da obra de arte total, Scriabin acrescentou à sua orquestração um teclado luminoso destinado a projetar em uma tela as cores correspondentes à evolução harmônica da obra. Scriabin aparece também como um inovador no domínio da instrumentação. Embora não conhecesse, como Debussy ou Ravel, o gamelão javanés, tomou de empréstimo certos timbres a músicas extra-européias: ao lado de sinos e campainhas, gongos e tantãs entram em suas obras. Nascido em 1872 em Moscou, Scriabin fez seus estudos no Conservatório de Música dessa cidade. Mesmo antes de ter concluído o curso, começou a fazer várias turnês de concertos, como pianista. Professor de piano no mesmo conservatório de 1898 a 1903, em seguida instalou-se em Bruxelas, onde freqüentou assiduamente a Sociedade de Teosofía: dessa experiência resultaram suas teorias filosóficas, um tanto nebulosas, que dão testemunho de um meio social decadente do qual, infelizmente, encontramos certos traços na obra do compositor. Sua filha Marina Scriabin escreveu: N ã o estamos, no caso de Scriabin, diante de duas atividades distintas e paralelas: de u m lado a criação musical, de outro a especulação filosófica. Havia uma experiência única, o nascimento, no interior de uma tensão espiritual contínua, de u m possante jorro cria-
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dor que se manifestava em todas as formas musicais, poéticas ou filosóficas, signos polimorfos de uma única realidade interior.
Até 1903, data em que compôs a Quarta Sonata para piano, a obra de Scriabin foi profundamente marcada pela influência de Chopin e, depois, de Wagner. A Terceira Sinfonia, construída sem solução de continuidade a partir de um tema único, representa o ponto de partida de um período de pesquisa na obra de Scriabin. A partir de 1907, Scriabin libertou-se conscientemente do sistema tonal e edificou seu próprio universo sonoro: o Poema do êxtase opus 54, e a Quinta Sonata para piano foram as primeiras obras manifestas de uma nova trajetória que resultou na elaboração de Prometeu: o poema do fogo opus 60, para piano e orquestra, concluído em 1910, em que o universo harmônico de Scriabin estava já perfeitamente constituído e controlado. Havendo retornado à Rússia em 1911, durante os quatro anos que ainda lhe restavam Scriabin nunca mais deixou seu país, exceto para algumas turnês. Trabalhou na composição de um Mistério que não pôde terminar e procurou equacionar a associação de uma obra musical com projeções coloridas (correspondência entre cores e sons), sensações olfativas e táteis, chegando a ponto de apelar para toda a natureza, desde o ruído das folhas à cintilação das estrelas. A obra de Scriabin, muito apreciada na Rússia durante os primeiros anos que se seguiram à Revolução de Outubro de 1917, foi rejeitada pela nova estética — o "realismo socialista" — a partir de 1925. Scriabin, que está entre os pioneiros da linguagem musical contemporânea, teve o mérito de questionar as estruturas e a linguagem legadas pelo século XIX; contudo, o espírito de sua obra ainda permanece profundamente romântico. Por isso, essa obra, constantemente distendida entre dois pólos contraditórios, exerceu pouca atração sobre os compositores do século XX. O que tem maior significação na obra de Scriabin, além do prazer de ouvir belíssimas páginas, infelizmente tocadas raras vezes, é a sua dimensão entre as daqueles compositores que — na França, na Áustria, na Rússia, cada qual por seus meios próprios —, buscaram no início do século XX, escapar da autocracia da tonalidade. Os vanguardistas russos Os admiradores russos de Scriabin eram muitos entre aqueles que hoje se convencionou chamar de "vanguarda russa",florescentenos vinte primeiros anos do século e depois obscurecida na então União Soviética. Vários dos componentes dessa vanguarda, por sinal, escolheram emigrar, e na União Soviética nunca mais se falou oficialmente naqueles que lá permaneceram. Entre 1907 e 1917, em arte, a Rússia encontrava-se no pólo avançado das tendências modernas, e sua cultura irradiava-se por toda a Europa: basta pensar na influência exercida pelos Ballets Russes de Diaghilev.
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"Como na Rússia a cultura musical trazia a marca da Igreja Ortodoxa, o sistema sonoro nunca foi submetido à ditadura do maior e do menor da mesma forma que na Europa Central e Ocidental." Essa reflexão do musicólogo Detlef Gojowy explica a facilidade e a espontaneidade com que, na Rússia de então, tornou-se possível pôr em questão o "sistema sonoro" ocidental. Futurismo, construtivismo, bruitisme, pesquisas sobre novas estruturas sonoras tendentes à atonalidade, às superposições de sons ou à conquista dos microintervalos, todas as tendências afirmavam-se ao mesmo tempo, lado a lado com outras concepções mais eruditas, por exemplo neo-românticas. Na década de 1920, o engenheiro Liev Termen (Léon Theremin) inventou o primeiro instrumento musical eletrônico, o que muito impressionou Lênin. Nikolai Roslavetz, Arthur Lourié, Ivan Wyschnegradski, Nikolai Obouhov e Alexandre Mossolov estão entre os representantes mais eminentes dessa época, da qual Arthur Lourié conservou uma nostalgia para o resto de sua vida: "Era uma época fantástica, incrível, e o futurismo foi a coisa mais pura que jamais foi dada a conhecer." Nikolai Roslavetz, nascido em 1881 e morto em Moscou em 1944, era autodidata de formação. Partiu da concepção dos acordes de Scriabin para esboçar "acordes sintéticos" e caminhar em direção ao dodecafonismo por um "novo sistema" de organização sonora. Roslavetz escreveu em 1942 que tal sistema seria chamado a substituir o sistema clássico, que abandonamos definitivamente, e a oferecer uma base sólida para as criações "intuitivas" (mas na realidade anárquicas) da maior parte dos compositores atuais (...). Sei que o ato criador n ã o é um "transe" místico, n ã o é u m a "revelação divina", mas u m momento de supremo esforço da inteligência humana para levar o "inconsciente" (o subconsciente) à esfera da consciência.
Baudelaire, Laforgue e Byron eram os inspiradores das obras sinfônicas desse compositor, que também compôs muita música de câmara. Arthur Vincent Lourié, nascido em 1893 e morto em Princeton (Estados Unidos) em 1966 era descendente de franceses e amigo de Maïakovski, Aleksandre Blok e Anna Akhnatova. Foi um comunista convicto desde a aurora da Revolução. Lunatcharski confiou a ele a direção musical do Comissariado do Povo para a Educação. Gosta-se de dizer que ele foi o "Satie russo", por conta da mistura específica de liberdade e simplicidade que se observa em seu estilo. Em 1922, emigrou para Paris, onde se tornou amigo de Stravinski e encontrou Varèse. Viveu nos Estados Unidos a partir de 1941. Mais tarde, veio a exercer grande influência sobre os "minimalistas" norte-americanos. Ivan Wyschnegradski nasceu em São Petersburgo, como Arthur Lourié, e no mesmo ano (1893). Morreu em 1979, em Paris, para onde emigrara em 1920. Admirador de Scriabin, que descobrira durante seu período de estudos, dedicouse à pesquisa e à exploração dos microintervalos 1/4 e 1/6 de tom. A obra a que
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dedicou sua vida, La Journée de l'existence [A jornada da existência], já estava composta na Rússia em 1916-1917, mas o compositor voltou a trabalhar nela sistematicamente e a remanejou duas vezes. A primeira audição foi transmitida pela Rádio França em 1978. Muito próximo de Wyschnegradski, Nikolai Obouhov também morreu em Paris (em 1954). Nascera em 1892 e também fora aluno do Conservatório de São Petersburgo. Em 1914 já inventara um novo sistema de notação musical que fazia ressaltar, por meio de cruzes colocadas sobre as linhas das notas, a igualdade dos doze sons. Foi esse o modo de notação que Obouhov empregou em sua grande obra, O livro da vida, composta entre 1914 e 1926. Alexandre Mossolov, nascido em 1899 e morto em Moscou em 1973, célebre pela obra A fundição de aço (1928), mas também autor de um extenso catálogo de composições de grande originalidade (musicou anúncios de jornal), foi um dos mais expressivos representantes do futurismo e da fascinação exercida pelo advento da era da máquina. Isso não impediu que ele se tornasse igualmente um destacado etnomusicólogo. Em 1948, teve sérias contas a ajustar com a crítica oficial, que condenou em bloco sua produção dos anos 1920.
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JEAN SIBELIUS (1865-1957)
"O maior sinfonista depois de Beethoven" (segundo o musicólogo britânico Cecil Gray, em 1931), "o eterno ancião, o pior compositor do mundo" (segundo René Leibowitz, em 1955), "o principal representante, junto com Schõnberg, da música européia desde a morte de Debussy" (segundo o compositor e musicógrafo britânico Constant Lambert, em 1934) — as opiniões sobre Jean Sibelius, quando ele ainda era vivo, mas em uma época em que já não compunha mais, eram bem contraditórias! Atualmente, a distância no tempo e a situação presente da música permitem ver mais claro: deixar de procurar a todo custo, em Sibelius, a Escola de Viena; deixar de considerá-lo, com Falia, Janácek ou Bartók, e muito embora ele jamais tenha recorrido ao material folclórico musical, como um dos mais destacados representantes daquela "segunda onda nacionalista" da qual uma das tábuas de salvação foi o exemplo de Debussy. Nascido em 8 de dezembro de 1865, em Tavastehus, na Finlândia central, Jean Sibelius fez estudos de direito e depois de música em Helsinki (1886-1889), Berlim (1889-1890) e Viena (1890-1891). Na capital austro-húngara, esboçou sua primeira grande obra, a sinfonia para solistas, coros e orquestra intitulada Kullervo, opus 7, inspirada em diversos episódios da mitologia finlandesa do Kalevala. A primeira audição de Kullervo, realizada no dia 28 de abril de 1892, em Helsinki, lançou as bases do renome de Sibelius na Finlândia. Do primeiro período criador de Sibelius, dito "romântico nacional", datam igualmente a Suíte de Leminkainen opus 22, para orquestra (1896), também inspirada no Kalevala, e cujo célebre Cisne
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de Tuonela, espécie de irmão nórdico de L'Après-midi d'un faune [A tarde de um fauno] de Debussy, nada mais é do que a segunda voleta; o poema sinfônico En Saga opus 9 (1893, revisto em 1901); a música de cena para O rei Cristiano II opus 27(1898); a Sinfonia n" 1 em mi menor opus 39 (1899); e a Sinfonia n°2 em ré maior opus 43 (1902). Isso sem esquecer as várias páginas dedicadas às reivindicações autonomistas da Finlândia, que fazia parte, na época, como grão-ducado, do império dos czares e que só conquistaria sua independência em 1917: a mais conhecida dessas obras é Finlândia opus 26 (1899). Em 1904, Sibelius instalou-se em Jãrvenpãã, cerca de trinta quilômetros ao norte de Helsinki, em uma casa rodeada de árvores, onde iria morar até sua morte, cerca de meio século mais tarde. Dessa época são o célebre Concerto para violino opus 47 (1903, revisto em 1905), a música de cena para Kuolema opus 44 (1903), da qual foi retirada a famosa Valsa triste, e a música de cena para Pelléas et Mélisande opus 46 (1905). A residência de Sibelius em Jãrvenpãã marcou o início de uma nova fase em seu estilo, mais universal, mais concentrada, mais "clássica" que a precedente, e ilustrada principalmente pelos poemas sinfônicos A filha de Pohjola opus 49 (1906), Cavalgada noturna e nascer do sol opus 55 (1907), e sobretudo pela Sinfonia n° 3 em dó maior opus 52 (1904-1907), verdadeiro pórtico da grande maturidade do compositor. Ao mesmo tempo, a reputação internacional de Sibelius, que tivera início na Alemanha, firmou-se na Inglaterra, onde o compositor passou seis temporadas entre 1903 e 1921. Foi nesse país que, em 1909, concluiu o quarteto de cordas Voces intimae opus 56, sua única partitura de câmara de grande envergadura. Seguiu-se uma série de obras que estão entre as mais austeras e radicais de Sibelius, e cuja gênese pode ser parcialmente atribuída ao temor que ele então nutria de vir a morrer de câncer: a Sinfonia n° 4 em lá menor opus 63 (1910-1911), o poema sinfônico O bardo opus 64 (1913), o poema para soprano e orquestra Luonnotar opus 70 (1910-1913). A mesma ascese revela-se nas três Sonatinas para piano opus 67 (1912), que constituem o melhor que Sibelius destinou a um instrumento com o qual, segundo ele mesmo declarou, não tinha grandes afinidades. Por ocasião de sua única visita aos Estados Unidos (1914), exatamente antes do desencadeamento do primeiro conflito mundial, Sibelius compôs um de seus mais belos poemas sinfônicos: As oceânides opus 73. Em 8 de dezembro de 1915, dia em que o compositor completava cinqüenta anos, teve lugar em Helsinki a primeira apresentação da versão primitiva (ém quatro movimentos) da Sinfonia n° 5 em mi bemol maior opus 82 (revista em 1916; a versão definitiva e única publicada em três movimentos é de 1919). Com o restabelecimento da paz, Sibelius retomou suas viagens e suas turnês: Inglaterra em 1921, Noruega e Suécia em 1923, Suécia em 1924, Itália em 1924 e 1926. As obras importantes desses últimos anos foram a Sinfonia n° 6 opus 104 (oficialmente em ré menor, 1923), a Sinfonia n° 7 em dó maior opus 105 (1924),
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a música de cena para A tempestade, de Shakespeare, opus 109 (1925-1926) e o poema sinfônico Tapióla opus 112 (1926). Depois disso, Sibelius não produziu qualquer obra maior e passou os últimos trinta anos de sua vida — morreu em Jãrvenpãã, em 20 de setembro de 1957 — no silêncio. Uma Sinfonia n° 8 foi esboçada, concluída em 1932-1933, e depois destruída. Quase sempre os comentários que se fizeram sobre a obra de Sibelius restringiram-se a aspectos pitorescos ou mitológicos. Daí vem a falsa idéia de um compositor tão isolado da música de seu tempo quanto a Finlândia do resto da Europa. Na verdade, durante toda a sua vida ativa, Sibelius foi um grande viajante: não apenas conheceu tudo que se relacionasse com a música ao seu redor, como também levou tudo em consideração. Depois de ter ouvido, em Londres, em 1909, os Nocturnes [Noturnos] de Debussy, anotou em seu diário: "Eu estava dormindo; escapei da Finlândia em cima da hora." Em 1914, respondeu a um jornalista que, por ocasião da sua chegada aos Estados Unidos, lhe perguntara qual era, a seu ver, o maior compositor vivo: "Schõnberg, mas também gosto da minha própria música." Entre a Finlândia e ele jamais houve ruptura. Muitos de seus poemas sinfônicos têm como fonte de inspiração o Kevala, e, em um nível mais profundo, pôde-se constatar afinidades estritas entre a música de Sibelius e o ritmo da língua finlandesa. Esta última acentua a primeira sílaba das palavras ou o começo de uma frase; o resto desenrola-se mais depressa, de maneira mais igual e menos intensa, mas com um breve sobressalto final. Observa-se a mesma característica em uma melodia típica de Sibelius, como o tema conclusivo do primeiro movimento da Sinfonia n° 2, com sua nota prolongada inicial, sua alternância regular de duas notas e,finalmente,seu sobressalto ao final com quinta descendente incisiva. Esse microcosmo ao mesmo tempo estático (a nota prolongada) e dinâmico (o resto) e o que se encontra, por exemplo, com algumas variantes, no tema único de Tapióla podem servir como pontos de apoio para explorar a singular síntese de estatismo e dinamismo em que reside a profunda originalidade de Sibelius: composições como o primeiro movimento da Sinfonia n° 5, ou como toda a Sinfonia n" 7, adotam como estrutura global, isto é, em uma escala bem mais ampla, o mesmo tipo de procedimento. Desde cedo fascinado por Liszt e Berlioz e muito influenciado pelos russos, Sibelius não conseguiu exorcizar o espectro do romantismo, mais precisamente a ponto de se tornar o próprio tipo de artista romântico disciplinado. Suas obras maiores não desdenham nem as imagens mais evocadoras nem os sentimentos pessoais mais intensos, mas os apresentam com uma precisão microscópica, com a mais extraordinária objetividade, sem reduzir o mundo a eles, colocando-os na perspectiva de uma realidade mais vasta, ela também presente. Neste sentido, como em outros, Sibelius opunha-se a seu contemporâneo Gustav Mahler, como bem o demonstra a famosa conversa que tiveram em Helsinki, em 1907:
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Quando chegamos a falar sobre a essência da sinfonia, disse que admirava a severidade de seu estilo e a lógica profunda que cria u m a unidade intensa entre todos os seus motivos musicais. A o p i n i ã o de Mahler era exatamente a oposta: "Não, a sinfonia deve ser como o mundo, deve abarcar tudo."
Também típica é a célebrefrasede Sibelius sobre Beethoven, até porque, pesando bem as coisas, trata-se de uma frase que poderia aplicar-se a ele próprio: "Fui conquistado tanto pelo homem quanto por sua música. Para mim, ele é uma revelação. É um titã. Tudo era contra ele, e no entanto ele triunfou." A grande força da música de Sibelius está em que, de suas profundezas estáticas (que nunca são sinônimo de imobilidade total), surge inexoravelmente uma força motriz considerável, mesclando-se as duas, por vezes, inextrincavelmente. A sucessão das sete sinfonias permite observar o crescimento do domínio de movimento por parte do compositor e da sua autodisciplina. O romantismo da Sinfonia n° 1 (1899) é mais individual e legendário; o da Sinfonia n° 2 (1902), mais coletivo e nacional. O primeiro movimento dessa segunda sinfonia parece novo ao consolidar progressivamente, no plano dinâmico e sonoro, um discurso que, no início, dá a impressão de um mosaico desordenado. A Sinfonia n° 3 (1907), concluída no momento em que Schõnberg estava prestes a dar o passo em direção à atonalidade, é um ato de coragem com sua tonalidade de dó maior claramente afirmada, sua orquestração econômica, seu clima leve e claro. O primeiro dos três movimentos alia flexibilidade e força dinâmica, bem à maneira da Sinfonia n" 4 de Beethoven. Pela primeira vez na obra de Sibelius, o último une em um único movimento — sem que isso signifique encadeamento — dois tipos de movimento (scherzo efinalepropriamente dito). A Sinfonia «° 4(1911) nada deve em relação à vanguarda oficial da época: seu elemento fundamental (tonalmente disruptivo) é o trítono, ou quarta aumentada, e utiliza de maneira quase serial as relações de intervalos como matéria-prima arquitetural. O primeiro dos quatro movimentos dessa sinfonia — páginas que conseguem fazer, em apenas dez minutos, a síntese de um tempo muito lento, em ritmo de desenvolvimento wagneriano, com uma forma sonata tão concisa e tão rica como a de Webern — contém um desenvolvimento central monódico que não deixa de corresponder a um paroxismo de tensão. A Sinfonia n° 5 ( 1919), a mais possante das sete, com seu primeiro movimento muito complexo, responde ao elemento trágico da sinfonia precedente pela afirmação triunfal de sua peroração, à maneira de um hino. A Sinfonia n° 6 (1923), a mais latina de todas e cuja tranqüilidade superficial esconde violentas tempestades interiores, requer uma análise ao mesmo tempo tonal e modal, ao passo que a Sinfonia n" 7 (1924), monolito panconsonante de indizível grandeza, reúne em um bloco, em um único impulso e em cerca de vinte minutos, os diversos tipos de movimentos da sinfonia tradicional. Em Tapióla (1926), sublime poema sinfônico sobre a floresta, que está para Sibelius assim como La Mer [O mar] está para Debussy, sobrevém, perto do final,
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um terrível cataclisma que é provavelmente a chave para interpretar os subseqüentes trinta anos de silêncio do compositor. Sibelius certamente foi inibido por sua posição no século, e sua reação foi totalmente oposta àquela soberba indiferença de seu contemporâneo Richard Strauss. Nem por isso deve-se tomar como leviandade afrasede Sibelius segundo a qual "Alban Berg é a melhor obra de Schõnberg". Decerto ele se reconheceu nessas "formas em transformação", nesse "sentido de um desenvolvimento contínuo com uma enorme ambigüidade" que Pierre Boulez declarou recentemente tanto apreciar na obra de Alban Berg. E, na verdade, ao conservadorismo aparente do vocabulário de Sibelius opõe-se uma contribuição fundamental, no nível sintático, para renovar a noção de forma musical orgânica. Por sua forma de dar aos temas e aos marcos temáticos uma importância cada vez menor (de fazer os temas flutuarem ou se deformarem em ritmos diversos do tema que está encarregado do discurso musical como um todo), ou ainda pela maneira de conseguir o controle simultâneo de diferentes tempos, e também pelas sonoridades de que lança mão (rajadas ou invectivas por vezes estranhamente próximas de Varèse), o mestre finlandês situa-se, para nós, a um só tempo no prolongamento imediato do que havia feito Debussy e em contato direto com os problemas da música que se fez nas décadas de 1970 e 1980 do século XX.
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Debussy antes do prelúdio (1862-1893) Claude-Achille Debussy nasceu em 1862, em Saint-Germain-en-Laye, em uma família de comerciantes. Afilhado de um corretor, Achille Arosa, passou momentos felizes em Cannes, na casa do padrinho, e ali teve dois encontros determinantes: com a música e com o mar. Em Paris, onde os pais passaram a residir, o jovem Debussy foi apresentado a Mme. Mauté de Fleurville, a sogra de Paul Verlaine, excelente pianista (que se dizia discípula de Chopin) e que se propôs a dar aulas ao menino, no qual pressentiu dons musicais. "Devo-lhe o pouco que sei de piano", disse mais tarde Debussy. Os pais de Claude-Achille decidiram que a carreira de pianista — virtuose, é claro! — era o futuro que se delineava para o filho. Em 1872, Debussy entrou para o Conservatório de Paris, onde passou por duro aprendizado que durou doze anos. Seu temperamento independente adaptou-se mal ao arbitrário currículo escolar. Encontrou estima e compreensão em alguns professores — Albert Lavignac, por exemplo, que na aula de solfejo o fez descobrir Tannhãuser e os quartetos de cordas de Haydn e de Mozart —, mas em outros chocou-se contra um muro de conveniências diante do qual iriam fenecer sua fantasia e sua liberdade. Marmotel, seu professor de piano, constatou com reprovação que "Debussy gosta mais de música do que de piano". Piores ainda foram suas relações com Emile Durand, verdadeiro sargento no ensino de har-
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monia. Quando Debussy abandonava-se ao improviso de seus acordes preferidos, recebia a tampa do piano sobre os dedos... Ambroise Thomas, diretor do Conservatório e aplaudido autor da ópera Mignon, achava a interpretação pianística de Debussy excessivamente pessoal: afinal, o jovem aluno tinha a audácia de tocar o Cravo bem temperado, de Johann Sebastian Bach, com expressão, e não como um simples exercício. Suprema decepção para os pais do futuro "virtuose", Debussy jamais ganhou qualquer prêmio de piano. No entanto, as lembranças deixadas por seus contemporâneos dão testemunho de uma notável capacidade de interpretação; momentos de violência, de aspereza, que davam lugar a episódios de uma doçura impalpável. "Deus! Como aquele homem tocava bem piano!" escreveu Stravinski. Enquanto isso, a família Debussy renegou aquele filho indigno, que, felizmente, encontrou outros caminhos: haveria de ser compositor. Em 1880, Debussy inscreveu-se no curso de composição de Ernest Guiraud, jovem professor que se interessava muito por seus alunos, a ponto de tornar-se amigo deles: passeios noturnos, discussões nos bares, Guiraud irradiava uma simpatia que fascinou Debussy naqueles tempos de definição e reflexão. Reflexões bem distantes, de resto, da música que era possível ouvir na Paris de 1880: época em que Carmen, de Bizet, era considerada como uma linguagem difícil e Massenet obtinha grandes sucessos. O grupo da Schola Cantorum tomou como missão reagir contra a germanização da música, mas estava destinado a forjar um novo academicismo em torno de Vincent d'Indy. Quanto às óperas de Wagner, depois do escândalo da estréia de Tannhãuser em Paris, em 1861, só era possível conhecê-las indo a Bayreuth. Debussy foi lá em 1887, mas uma segunda estada em Bayreuth (1889) deixou-o mais crítico, principalmente com relação ao uso excessivamente rígido do Leitmotiv. Nesse período de sua vida, durante três verões consecutivos, Debussy foi contratado como "músico faz-tudo" por uma aristocrata rüssa, Mme. Von Meck, a famosa protetora de Tchaikovski. Professor de piano dos filhos da baronesa Von Meck, pianista acompanhador e integrante de um trio, o jovem Debussy naturalmente consumiu Tchaikovski demais. Nessas temporadas, nada fazia além de tocar, percorrendo toda a Europa (foi até Moscou) e assistindo aos espetáculos mais interessantes (teve a revelação de Tristan und Isolde em Viena, em 1882). Elas representaram um descanso e uma abertura para o estudante um pouco gauche, freqüentemente taciturno, que tinha relações tão difíceis com seus colegas do Conservatório. Foi ganhando a vida como pianista acompanhador que Debussy ligou-se a Mme. Vasnier, a quem dedicaria as primeiras mélodies que compôs, e depois ao marido desta, Pierre Vasnier, arquiteto que abriu sua biblioteca a Debussy, ajudou-o a encontrar uma disciplina de trabalho e incentivou-o a concorrer ao Prêmio de Roma.
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As reticências de Debussy diante de certos conformismos jamais iriam ceder. A personagem de Monsieur Croche antidiletante, que criou em 1900 a partir do modelo da personagem de Monsieur Teste, de Paul Valéry, empenhava-se em atacar esse tipo de instituição, conforme testemunha, por exemplo, o seguinte diálogo fictício entre "Monsieur Croche" e Debussy: — Entre as instituições de que a França se honra, v o c ê conhece alguma mais ridícula do que a instituição do P r ê m i o de Roma? E u ousei responder-lhe que... ter ou n ã o ter ganho o P r ê m i o de R o m a resolvia a questão de saber se u m m ú s i c o tinha ou n ã o talento.
A despeito do seu desdém pela competição artística, Debussy seguiu os conselhos de Vasnier e ganhou o famigerado prêmio em 1884 com a cantata L'Enfant prodigue [O filho pródigo]. Mas suportou muito mal a temporada na Villa Médicis. Estranhamente, suas cartas a Vasnier lembram certas páginas do diário de Berlioz. Perdeu muito tempo, não chegou a trabalhar e se desinteressou por tudo o que o rodeava, inclusive a arte italiana. A ópera deixou-o indiferente; mencionou somente um encontro com Verdi. Mesmo assim, ficou maravilhado com as obras de Michelangelo e fascinado por Liszt, que se apresentara em Roma, em uma turné de concertos. Durante esse período obscuro de gestação e exploração de si mesmo, Debussy teve a premonição de suas pesquisas futuras: "Sinto a obrigação de inventar novas formas. Wagner poderia me servir..." A época de Pelléas (1894-1902) De volta a Paris, Debussy freqüentou os meios literários, principalmente a Librairie de l'Art Indépendant, na rua Chaussée-d'Antin, onde era possível encontrar Mallarmé, Gide, Claudel. Fez ali as primeiras amizades duradouras, com Robert Godet e Pierre Louys. Incontestada escola do gosto no final do século, Paris era o centro de uma espantosa fermentação de vida intelectual. O simbolismo, lançado com grande rumor pelas pequenas revistas que se multiplicaram a partir de 1880, destronava o naturalismo: era a vingança do sonho contra a "fatia de vida". Desse modo explica-se o sucesso das peças de Maurice Maeterlinck, o poeta belga que tentava expressar o mistério das regiões subconscientes. A pintura seguia o mesmo movimento que a literatura, e o impressionismo sucedeu as obras de Coubert e de Daumier. Sempre como reação contra o naturalismo e com seu horror característico ao utilitarismo do século, a inteligentsia negava a soberania da razão. Oflorescimentode diversos movimentos dá mostras disso: esteticismo, mas também teosofía, ocultismo. O "mago" Pédalan fundou a ordem da Rosa-Cruz à qual aderiu Erik Satie; um dos raros compositores
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que escaparam ao interdito que Debussy haveria de lançar contra os meios musicais, Satie tornou-se um dos seus amigos mais fiéis: amizade tormentosa, mas indestrutível. No final do século XIX, o internacionalismo econômico fazia-se acompanhar de um internacionalismo intelectual: desejava-se desfrutar de todas as culturas. Durante esse período de "incubação", Debussy descobriu as magias do exotismo: o gamelão javanés da Exposição Universal de 1889 deixou nele uma marca indelével. Finalmente, em 1893, a descoberta de Boris Godunov perturbou-o profundamente: sentiu que tinha parentescos espantosos com Mussorgski, tanto na forma de abordar o mundo harmônico, como no desejo de modelar a forma musical segundo as necessidades de cada obra. Até 1894 nenhuma obra capital aparece na produção de Debussy, somente esboços, projetos abortados — a ópera Rodrigue et Chimène [Rodrigo e Ximena], com texto de Catulle Mendès, poeta da moda, bem parisiense, que conhecera no café Pousset —, e alguns começos: as Arierres oubliées [Arietas esquecidas], com poemas de Verlaine, Cinc poèmes [Cinco poemas], de Baudelaire, a Suite bergamasque [Suite bergamanesca] para piano, e sobretudo, o Quarteto de cordas, obra cíclica onde se percebe a influência de d'Indy e de Franck, mas cuja personalidade não escapou à perspicácia de Paul Dukas: "Tudo nesta obra é claro e claramente desenhado, a despeito de uma grande liberdade de forma. A essência melódica é concentrada, mas de rico sabor, e suficiente para impregnar o tecido harmônico de uma poesia penetrante e original." Depois de 1892, contudo, Debussy começou a trabalhar em uma obra sinfônica inspirada pelo célebre poema de Mallarmé: L'Après-midi d'un faune [A tarde de um fauno]. Projetou uma composição em três partes: um prelúdio, um interlúdio e uma paráfrase. Somente o prelúdio foi composto. Sua execução, em 1894, valeu a Debussy o primeiro sucesso público. No prelúdio à L'Après-midi d'un faune, a liberdade da estrutura, de que participam a um só tempo a forma sonata, a forma Lied e o procedimento da variação, alia-se a uma maravilhosa flexibilidade orquestral: deslocamento contínuo das figuras temáticas pela orquestra em movimento; utilização sutil das cordas, não mais tratadas tradicionalmente como material de base da orquestra, mas encarregadas de conformar diferentes luminosidades, tudo isso dentro de uma profunda unidade de linguagem. Certo dia de maio de 1893, Debussy saiu do teatro Bouffes Parisiens encantado com as réplicas da nova peça de Maeterlinck, Pelléas et Mélisande [Péleas e Mefisandra]. Buscando, desde os anos do Conservatório, um poeta que soubesse "dizer as coisas pela metade", Debussy acabara de descobrir finalmente o texto ideal para compor a sua ópera. A peça era uma transposição do mito de Tristão e Isolda: o amor irresistível de dois jovens, interditado pela presença de um marido idoso e violentamente ciumento, só pode realizar-se com a morte.
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O texto de Maeterlinck respondia plenamente às exigências de Debussy que — já enfeitiçado pela ópera Tristan und Isolde, de Wagner — fugia da ópera histórica ou anedótica e sonhava com personagens que "não discutissem, mas seguissem o curso da vida e do destino". Debussy rejeitou as críticas de Pierre Louys, hostil a essa escolha, conseguiu obter a autorização de Maeterlinck e pôs-se ao trabalho: a difícil elaboração de Pelléas et Mélisande durou quase dez anos. Enquanto isso, surgiram outras obras importantes: as Chansons de Bilitis [Canções de Bilitis], os Nocturnes [Noturnos] para orquestra e a suíte dita Pour le piano [Para o piano]. As três Chansons de Bilitis — La Flûte de Pan [Aflautade Pã], La Chevelure [A cabeleira], Le Tombeau des Naïades [O túmulo das Naiades] — foram compostas em 1897 com textos de Pierre Louys. Na verdade, o poeta havia escrito deliciosos pastiches de poemas gregos, afirmando que nada mais fizera do que traduzir um texto antigo até então desconhecido. Fica-se chocado com a correspondência que existe entre aqueles textos, em que nada era afirmado, mas apenas murmurado ou sugerido, e a poética de Debussy, que parte de um sentimento ambíguo, constituído a um só tempo de reserva falsamente cândida e de audaciosa impertinência. A primeira audição dessas canções teve lugar em 1900, com Debussy ao piano. Dois anos mais tarde, Debussy escreveu os Nocturnes, que estão na origem do mito da "música impressionista": na verdade, no fim do século XIX, taxava-se de impressionismo tudo o que cheirasse a vanguarda. Criados em duas etapas, os Nocturnes obtiveram grande sucesso. O mérito dessas composições deve-se em grande parte à instauração de um prodigioso cenário orquestral próprio a cada Nocturne: uma orquestra sem metais para Nuages [Nuvens], que desenrola seu lento cortejo de acordes em torno de uma parte central animada por uma flauta; um brilhante scherzo, ao contrário, para Fêtes [Festas], verdadeira exaltação do ritmo; e, para Sirènes [Sereias], um coro de vozes femininas que Debussy tratou de forma instrumental, misturando coro e orquestra: por esse motivo, esse terceiro Nocturne, infelizmente, é pouco tocado. Na suíte Pour le piano (1901) — prélude, sarabande, toccata —, Debussy dá mostras de um desejo de arcaísmo, procurando ir ao encontro da tradição dos cravistas do século XVIII. Aliás, ele se vale do procedimento de repetição melódica, renovando-a por meio de luminosidades harmônicas sempre diversas. Outro acontecimento importante: em 1899, Debussy casara-se com uma encantadora jovem parisiense, de origem bastante humilde, chamada Lily Texier. Naquela época, as soirées musicais nos salões em que Debussy executava obras de Wagner ao piano — na casa de Ernest Chausson —, algumas aulas particulares e uma quantia fixa que lhe era paga pelo editor Hartmann permitiam que o compositor trabalhasse em Pelléas et Mélisande. A morte de Hartmann, em 1900, foi um duro golpe para ele. Mas, depois do sucesso dos Nocturnes, o diretor da Revue
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Blanche — uma revista de vanguarda — propôs-lhe escrever crítica musical: foi então que nasceu Monsieur Croche. Em 27 de abril de 1902, depois de uma série de dificuldades, das quais a querela de Debussy com Maeterlinck não foi a menor, foi apresentada pela primeira vez a ópera Pelléas et Mélisande, no Théâtre de l'Opéra Comique de Paris. Cinco atos, dezenove quadros: Debussy adotara musicalmente a técnica wagneriana da continuidade: as cenas encadeiam-se sem interrupção, ligadas por interludios. Os Leitmotiv, mais elaborados do que em Wagner, por vezes verdadeiros temas que se prendem aos personagens, evoluem de acordo com a progressão psicológica. O estilo vocal, próximo de um recitativo melódico, linear, sem grandes saltos, respeita o fraseado e a acentuação tônica da língua francesa. A rítmica bastante flexível e a orquestração sutil sustentam uma rara intensidade dramática; tudo é apenas sugerido, nada afirma-se graças a um "efeito" qualquer. O próprio Debussy declarou durante uma entrevista: Quis que a ação nunca cessasse, que ela fosse contínua, ininterrupta. A melodia é anti¬ lírica. E l a é impotente para traduzir a mobilidade das almas e da vida. Nunca consenti que, por efeito de exigências técnicas, minha m ú s i c a acelerasse ou retardasse o movimentos dos sentimentos e das paixões dos meus personagens. E l a se ofusca sempre que c o n v é m deixar aos personagens inteira liberdade para seus gestos e gritos, para sua alegria e sua dor.
Na primeira representação, o caos foi tamanho que a polícia teve que mtervir. A réplica de Mélisande "Não sou feliz", toda a platéia urrava: "Nem nós." Somente alguns espíritos elevados — Valéry, Mfrbeau, Régnier, Toulet — ousaram tomar a defesa de Debussy que, entrincheirado no gabinete do diretor do teatro, não quis ver ninguém. Corajosamente, o maestro André Messager segurou a batuta até o fim, e depois sufocou-se em lágrimas atrás da cortina abaixada. O diretor do Conservatório, Théodore Dubois, proibiu que os alunos assistissem às récitas da ópera. E Vincent d'Indy escreveu: "Esta música não viverá, porque não tem forma." O "Debussysme" Essa incompreensão não impediu que Debussy chegasse à celebridade, e o editor Jacques Durand garantiu ao compositor condições de trabalho que ele jamais conhecera. Nascera uma nova religião: o "debussysme". "Pelléastres" e "contrapontistas" trocavam idéias "agridoces". Agora Debussy dominava sua própria linguagem. Seu estilo harmônico afirmara-se, sem recusar qualquer possibilidade de enriquecimento. Foi quando escreveu: N ã o creio mais na o n i p o t ê n c i a de vosso sempiterno d ó , ré, mi, fá, sol, lá, si, d ó . N ã o se deve excluí-lo, mas dar-lhe companhia, desde a gama de seis tons até a gama de 21 graus... C o m os 24 semitons contidos na oitava, tem-se sempre à disposição acordes a m b í g u o s que pertencem a 36 tons ao mesmo tempo.
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Conservando uma profunda admiração por certas páginas de Wagner, Debussy insurgiu-se contra um wagnerismo excessivamente ardente e observou com humor, na saída de uma representação da Tetralogía: "Como essas pessoas com capacete e peles de animais se tornam insuportáveis na quarta noite!... Imaginem, elas nunca aparecem sem seu maldito Leitmotiv.." Nesse período, Debussy compôs muito, principalmente para piano: as Estampes [Estampas]: Pagodes [Pagodes], La Soirée à Grenade [A noite em Granada], Jardins sous la pluie [Jardins sob a chuva]; as Images [Imagens]: Rejlets dans l'eau [Reflexos na água], Hommage à Rameau [Homenagem a Rameau], Mouvement [Movimento]; Children's Corner [O recanto das crianças], seis fragmentos infantis escritos para sua filha, Chouchou, que lhe fora dada por sua segunda mulher, Emma Bardac; dois hvros de Préludes [Prelúdios, 1908 e 1913], cada qual com doze fragmentos bem curtos, cuja estrutura depende apenas de uma incitação poética — procedimento semelhante ao que havia orientado o Prélude à l'Aprèsmidi d'un faune. A escrita pianística contrastada e a escolha harmonica que se aplica a criar um cenário sonoro próprio a cada peça dão aos Préludes um encanto poético que não é desmentido pela popularidade dessas peças: é impossível resistir à sucessão de acordes das Danseuses de Delphes [Dançarinas de Delfos], à tarantela das Collines d'Anacapri [Colinas de Anacapri], ou à canção arcaica de La Fille aux cheveux de lin [A moça de cabelos de finho]... Em 1915, Debussy compôs Douze études [Doze estudos] na tradição de Chopin e de Liszt, referindo-se, cada um deles, a uma dificuldade pianística particular: Pour les Tierces [Vaia as terças], Pour les Degrés chromatiques [Para os graus cromáticos], etc. O mais surpreendente desses estudos — Pour les Sonorités opposées [Para as sonoridades opostas] — põe em evidência todas as possibilidades acústicas do piano e nisso é o augúrio de uma preocupação que se tornaria corrente em meados do século XX — Messiaen, depois Boulez, Stockhausen etc. A suíte para dois pianos En Blanc et noir [Em branco e preto, 1917] veio pôr um ponto final nessa notável produção pianística. Debussy também escreveu obras-primas para orquestra. A primeira delas demonstra uma paixão que remontava à infância. Desde sempre Debussy fora um enamorado do mar... Para aquele sonhador "de horizontes quiméricos", o mar era ao mesmo tempo o símbolo da mãe e uma coquette sedutora: "O mar foi muito bom para mim, ele me mostrou todas as suas vestimentas. Ainda estou completamente aturdido..." (1906). Encontra-se o mar em várias obras de Debussy: nos Nocturnes (Sirènes), em Pelléas et Mélisande (cena 3, por exemplo), nos Préludes— Voiles [Velas], La Cathédrale engloutie [A catedral submersa] —, mas ele é sobretudo o motivo de uma grande obra sinfônica em três movimentos, que Debussy modestamente intitulou Trois Esquisses symphoniques [Três esboços sinfônicos]. Curiosamente, Debussy começou a compor essa obra na Borgonha, em 1903,
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apoiado em inúmeras lembranças: "Isso é melhor (...) do que uma realidade cujo encanto geralmente torna-se muito pesado em nosso pensamento." Terminado em 1905, La Mer [O mar] foi apresentado, porém mal interpretado, nos Concerts Lamoureux, e decepcionou o público, que esperava uma obra mais descritiva. Mais uma vez, só o nosso amigo Paul Dukas não se enganou: "Nunca um autor deu prova maior de virtuosismo técnico; sente-se que ele está em plena posse de seu domínio." A obra está construída em três movimentos. O primeiro — De l'Aube à midi sur la mer [Da aurora ao meio-dia no mar] — segue a lenta progressão da luz, desde o esboço tateante dos primeiros motivos, até a apoteose dos últimos compassos, sob o sol ofuscante do meio-dia. Em Jeux des vagues [Movimento das ondas], a dispersão sonora chega ao ápice; a orquestra vive de todos os lados ao mesmo tempo: o fluxo e refluxo das flautas e das clarinetas, o chamado velado das trompas, a frase perturbadora do corne inglês, retomada achante pelos calorosos violoncelos, o frêmito das cordas, o hábil emprego das percussões finas (címbalos, triângulo, Glockenspiel). Aquele mundo fluido e constantemente em movimento, aquela orquestra matingível transportam o ouvinte para um sentimento de tempo musical indeterminado. Le Dialogue du vent et de la mer [O diálogo do vento e do mar] retoma certos elementos do primeiro movimento, cujos desenvolvimentos levam a uma brilhante coda. Como em todas as suas obras sinfônicas, Debussy inventa uma forma original com La Mer. a obra, em um fluxo ininterrupto, parece construir-se na audição. Nas Images [Imagens] para orquestra, concluídas em 1911, Debussy sacrificou-se à moda, tomando de empréstimo elementos do folclore escocês, em Gigues [Gigas], e espanhol, em Ibéria. Jeux [Jogos], obra composta para os Ballets Russes sobre um argumento de Nijinski, é uma apologia plástica do homem de 1913. A primeira geração do século XX nascente comprazia-se em exaltar a vida física e honrava o esporte: uma partida de tênis ocasionava brincadeiras entre os jogadores. A música de Debussy, incompreensível, é um emaranhado de motivos distribuídos por toda a orquestra — segundo o princípio da "melodia de timbres" ou Klangfarbenmelodie —, figuras que aparecem e desaparecem, em um discurso fragmentado que recusa a idéia de desenvolvimento. Acolhida pelo público de 1913 na maior indiferença, essa obra tornou-se a obra-manifesto de toda uma corrente contemporânea, particularmente dos defensores da "obra aberta", por um lado no que diz respeito ao uso do timbre pelo timbre (preocupação que estabelece uma filiação Debussy-Webern), por outro do ponto de vista de uma apreensão original da duração, que impõe ao ouvinte uma escuta imediata. Em 1911, foi representada no Théâtre du Châtelet uma obra curiosa, fruto da colaboração de Debussy com o poeta italiano Gabriele d'Annunzio, encomendada pela bailarina Ida Rubinstein, estrela dos Ballets Russes. Le Martyre de SaintSébastien [O martírio de São Sebastião] é uma espécie de "mistério" moderno,
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com mímica, dança e fala. O texto grandiloqüente de d'Annunzio pouco convinha à personalidade excessivamente interiorizada de Debussy. Por isso, falta unidade à partitura, e certas páginas chegam a irritar um pouco. Debussy, que descobrira ter câncer em 1910 e que fora operado em 1915, sentia-se cada vez mais fraco quando a guerra começou a devorar a Europa. Um nacionalismo de última hora suscitou, certamente sob a pressão de uma loucura coletiva, obras de circunstância: Noël des enfants qui n'ont plus de maison [Natal das crianças que não têm mais casa], para vozes, e a Berceuse héroïque [Cantiga heróica], para piano ou orquestra. No mesmo espírito de fervor patriótico, aquele que agora assinaria "Claude Debussy, músico francês" tentou retornar às formas tradicionais dos concertos de Rameau em três sonatas: para violoncelo e piano; para flauta, viola e harpa; para violino e piano. Claude Debussy morreu em 26 de março de 1918. Pioneiro da arte contemporânea, recusou-se a adotar uma forma preexistente à obra, buscou uma escrita que escapasse à tirania tonal e utilizou os timbres instrumentais por sua beleza intrínseca, sem submetê-los obrigatoriamente a temas, m^tribuindo, ao contrário, esses temas por toda a orquestra. Nessa óptica, foi o primeiro compositor a preocuparse com uma imagem sonora global da obra musical, agenciando matérias musicais à maneira de um jogo complexo de construções. Finalmente, inscrevendo-se na linhagem de um Chopin, fez avançar a escrita pianística rumo a uma maior precisão (posta a serviço da expressão) e ampliou a utilização do teclado, preparando assim o caminho das futuras gerações. Um grande "Defaussysta": André Caplet Entre os amigos e colaboradores de Claude Debussy, André Caplet (1878-1925) ocupou um lugar privilegiado. Brilhante regente internacional, esteve à frente da orquestra na estréia de Le Martyre de Saint-Sébastien em 1911 (influenciara também na orquestração da obra). Uma grande amizade passou a ligá-lo a Claude Debussy, cuja influência certamente recebeu. De Caplet compositor, conhecemos sobretudo as obras religiosas: Le Miroir de Jésus [O espelho de Jesus] e a Missa. Também surpreendem a beleza e a modernidade de sua música de câmara, em particular Le Masque rouge de la mort [A máscara vermelha da morte] — a partir de um conto de Edgar Allan Poe — para harpa e quarteto de cordas.
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Em todas as épocas, há criadores cujas obras revelam uma busca estrutural fundamental e que determinam uma virada na história da arte. No início do século XX, essasfigurasde proa chamavam-se Debussy, Ravel, Bartók, Stravinski, Schõnberg, Berg, Webern, Varèse. Paralelamente, outros compositores não menos dotados — mas que não questionaram a linguagem de sua época — estavam na origem de uma obra feita para o prazer dos sentidos. Na França, Saint-Saëns, Fauré, Dukas e Roussel situam-se nessa linhagem de músicos respeitadores da tradição. Camille Saint-Saëns Camille Saint-Saëns (1835-1921) teve uma infância de pianista prodígio: aos onze anos de idade, enfrentou o público da Sala Pleyel... Em seguida estudou órgão e composição, tornando-se, aos dezoito anos, titular dos órgãos de Saint-Merri, em Paris. Mais tarde ficou conhecido pelas brilhantes improvisações nos órgãos da igreja da Madeleine. Saint-Saëns levou uma vida de trabalho, dividida entre as turnês de concertos por todo o mundo, a composição de uma obra prolífica e o ensino. Destacou-se no mundo cultural francês, até o ponto de ocupar uma cadeira no Institut de France, mas isso só aconteceu depois de ter passado por duras provas. Em particular, sua vida familiar e afetiva foi bastante triste, marcada pela morte de dois filhos ainda pequenos e por sua separação da mulher. Na obra deste compositor, a música sinfônica ocupa o lugar mais importante. Saint-Saëns tinha predileção pela forma livre do poema sinfônico e baseava-se em argumentos literários. Um deles, La Danse macabre [A dança macabra, 1874], foi
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uma homenagem ao seu grande predecessor, Franz Liszt. Lembremos também Le Rouet d'Omphale [A roca de Onfale, 1871], dedicado a Augusta Holmès. Saint-Saëns compôs também varias suítes para orquestra, entre as quais Le Carnaval des animaux [O carnaval dos animais, 1886], que muito contribuiu para estabelecer sua fama. As cinco sinfonias — das quais a ultima que escreveu foi, apesar do número de ordem, a Terceira Sinfonia, dita Com órgão, dedicada à memória de Liszt, que havia chamado Saint-Saëns de "o primeiro organista do mundo" —, os cinco concertos para piano, os três concertos para violino — dos quais o último, de 1880, foi composto para o violinista Pablo Sarasate, virtuose cuja sonoridade e cuja pureza de estilo eram particularmente propícias a seduzir o espírito clássico do compositor —, as inúmeras obras de música de câmara, nada disso deve fazer com que se esqueça o amor que Saint-Saëns devotava à arte lírica. Compôs treze óperas, entre as quais destacam-se Samson et Dalila [Sansão e Dalila] que estreou em Weimar em 1877, por iniciativa de Liszt, Étienne Marcel, em 1879, e Henri VIII [Henrique VIII], em 1883. Compôs também música de cena (Djanira, em 1911), uma centena de mélodies e — embora não tivesse fé religiosa — inúmeras obras htúrgicas: oratórios como Le Déluge [O Dilúvio, 1875], cantigas, motetos e um Requiem (1878). Saint-Saëns foi um dos fundadores, em 1871, da Sociedade Nacional de Música, associação destinada a promover a música francesa, em reação contra o entusiasmo do público de ópera pela música estrangeira, em particular pela obra de Wagner. Esse tipo de visão parcial, que restringia Saint-Saëns a um nacionalismo um tanto ümitado, não impediu contudo que sua música — de feição bastante clássica — estivesse impregnada de influência alemã. Saint-Saëns não se inscreve na linhagem dos compositores franceses "inovadores". Embora tenha vivido na mesma época que Debussy e Ravel, a principal parte de sua produção situa-se antes de 1895, e seu gosto pessoal levou-o a voltar-se mais para o passado do que para o futuro. Gabriel Fauré Gabriel Fauré (1845-1924), que ficou conhecido principalmente por suas mélodies para canto e piano e pelas obras para piano, desempenhou um importante papel no renascimento da música instrumental francesa. Isto porque, em 1870, em Paris, a única música que tinha direito ao sufrágio público era a música lírica. Fauré, que freqüentava o salão da célebre cantora Pauline Viardot, sabia perfeitamente disso. Mesmo assim, por convicção, insistia em compor obras de música de câmara. O MESTRE E SEUS ALUNOS Quando, instigada por Saint-Saëns, foi criada sob a insígnia da Ars Gallica a Sociedade Nacional de Música, que tinha porfinalidade"dar a conhecer as obras, editadas ou não, dos compositores franceses", Fauré foi um de seus principais anima-
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dores. Contribuiu para fazer o público conhecer as melhores obras da época. Mais tarde, em 1909, ocorreu uma cisão entre os epígonos degenerados do "franckismo", discípulos de d'Indy na Schola Cantorum, e os jovens compositores mais avançados, todos alunos de Fauré. Estes fundaram então uma segunda associação, a Sociedade Musical Independente, cuja presidência ofereceram a Fauré. Retomaram então os propósitos da primeira Sociedade Nacional de Música, apresentando obras de Florent Schmitt, Maurice Ravel, Claude Debussy, Albert Roussel, etc. A ascendência de Fauré sobre a nova geração não parava aí. Depois de ter lutado para ganhar a vida fazendo música e de ter dado aulas particulares nos quatro cantos de Paris e dos subúrbios, Fauré foi nomeado, aos 47 anos, inspetor do Ensino e depois professor do Conservatório de Paris, onde substituiu Massenet. Tornou-se então o guia e o confidente de seus alunos: não apenas de Maurice Ravel— de quem se fala adiante neste livro —, mas também de Charles Koechfin e de Florent Schmitt. Charles Koechfin (1867-1951) foi encarregado por Gabriel Fauré de orquestrar a música de cena que compusera para Pelléas et Mélisande [Péleas e Melisandra], a mesma peça de Maurice Maeterlinck em que Debussy haveria de buscar sua ópera. Esse compositor prolixo foi também um teórico apegado à tradição e um agudo conhecedor da escrita orquestral (seu tratado de orquestração tem autoridade até hoje). No entanto, a curiosidade infinita de Charles Koechfin levou-o a praticar a pofitonalidade e a atonalidade, sobre as bases de uma escrita tradicional, e a introduzir em suas obras o uso dos modos antigos: sonatine modale [sonatina modal] paraflautae clarineta, motets de style archaïque [motetos de estilo arcaico]. A inspiração de Koechlin era amiúde guiada por um grande amor pela natureza, como demonstram os títulos de algumas de suas obras sinfônicas — Le Printemps [A primavera], La Forêt [Afloresta]— ou de suas peças para piano — Paysages et marines [Paisagens e marinhas]. Naqueles que o conheceram, Koechlin deixou a lembrança de um personagem original, capaz de uma generosidade sem limites, mas também de um compositor dotado e transbordante de imaginação: compôs mais de duzentas obras que merecem muito mais do que o atual esquecimento em que se encontram. A brilhante carreira de Florent Schmitt (1870-1958) ganhou impulso com a composição, uma em seguida à outra, das suas duas grandes obras: o Psaume XLVII [Salmo XLVII, 1906] e a Tragédie de Salomé [Tragédia de Salomé], apresentada pela primeira vez no Théâtre des Arts em 1907. Schmitt tornou-se um influente personagem da vida musical de sua época: depois de uma turnê nos Estados Unidos, foi eleito membro do Institut de France (por 27 votos contra os 5 dados a Stravinski!) e integrou o Comitê da Sociedade Musical Independente. Deixou um prolífico catálogo — mais de uma centena de obras nos diversos gêneros — de rica escrita
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harmônica, onde dá mostras de uma enorme inventividade rítmica e de um perfeito domínio da instrumentação. A força irradiadora de Gabriel Fauré atraiu também Paul Dukas, a quem Fauré devotava certa predileção, e Arthur Honegger. Em 1905, finalmente, Fauré foi nomeado diretor do Conservatório. Na Escola Niedermeyer, onde fizera seus estudos, ele havia sido formado no aprendizado do cantochão (portanto, dos modelos antigos) e em um ensino de harmonia bem mais flexível, menos dogmático que aquele que se oferecia no Conservatório (prova disso são os sofrimentos do jovem Debussy). Assim, decidiu combater aquela estéril tradição encarnada por seu antecessor Théodore Dubois e introduzir um pouco mais de música na instituição. Foi uma verdadeira declaração de guerra, mas Fauré conseguiu, a muito custo, instalar verdadeiros músicos no "conselho superior" daquela casa: o mais engraçado é que Debussy ali estava, lado a lado com Vincent d'Indy! Em todo caso, um vento de frescor e de vida varreu a sombra severa de Ambroise Thomas. AS COMPOSIÇÕES Gabriel Fauré nasceu em 1845, em Gailhac-Toulza, em Ariège. O pai, professor preocupado com o futuro dos filhos, inscreveu-o aos nove anos na Escola de Música Religiosa Niedermeyer, em Paris, onde ele permaneceu como interno durante onze anos. Lá conheceu um jovem e brilhante professor, Camille Saint-Saëns, que logo se tornou seu amigo. Em 1866, Fauré deixou a escola, formado na profissão de organista. Não dispondo de qualquer fortuna pessoal, foi obrigado a dedicar-se a atividades "de sobrevivência", paralelamente a uma carreira pouco lucrativa de organista, primeiro em Rennes, depois em diversas paróquias parisienses. Finalmente, em 1896, Fauré foi nomeado titular do grande órgão da igreja da Madeleine, em Paris. Compôs diversas mélodies para poemas de Victor Hugo, Leconte de Lisle, SullyPrudhomme, Armand Silvestre e Verlaine. Pode-se ter uma idéia da evolução de sua linguagem pelos seus três ciclos de obras para voz e piano: Cinq mélodies de Venice [Cinco canções de Veneza, 1891, Verlaine], La Bonne chanson [A boa canção, 1893, Verlaine] e L'Horizon chimérique [O horizonte quimérico, 1921, Jean de la Ville de Mirmont], em que Fauré atingiu grandeza inegável. Desde as suas primeiras obras, o requinte harmônico foi a marca de Fauré, que recoma instintivamente à mistura tonal-modal, abrindo com isso uma porta para Debussy e Ravel. Se em suas primeiras melodies o piano era apenas um sustentáculo e um ornamento da voz, a parte pianística pouco a pouco adquiriu tal autonomia que se pode dizer que certas mélodies põem em ação dois trechos musicais independentes: por exemplo, o elegante minueto de Clair de lune [Luar, Verlaine, 1887]. Fauré também compôs inúmeras peças para piano: três Romances sans paroles [Romanças sem palavras], a Ballade [Balada] opus 19, posteriormente orquestrada — que teria sido um dos modelos de Proust para a famosa "pequena frase" de
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Vinteuil —, seis Impromptus [Improvisos], treze Barcarolles [Barcarolas], nove Préludes [Prelúdios], treze Nocturnes [Noturnos], quatro Valses-caprices [Valsas-caprichos], oito Pièces breves [Peças breves]. A escrita pianística de Fauré, de estilo muito pessoal, distingue-se por uma fluência que permite, no fluxo dos arabescos e dos arpejos, fazer passar sem percalços as modulações mais sutis e mais inesperadas. Nas obras que compunha com mais prazer—ele gostava muito do piano —, Fauré desviou-se da forma rígida da sonata. Adotou formas românticas, voltando, no entanto, a uma estrutura mais clássica nas obras de música de câmara: dois quartetos com piano, um trio para piano, violino e violoncelo, duas sonatas para piano e violino e duas para piano e violoncelo, dois quintetos. Embora criado na atmosfera das igrejas, Fauré não tinha crença religiosa. Suas músicas de igreja são sobretudo obras de circunstância. Um Requiem sereno e pacífico, embora tenha sido composto em 1888, depois da morte do pai do compositor, é a mais sedutora de suas obras religiosas. Fauré voltou-se por três vezes para o teatro lírico. Em 1898, escreveu música de cena para a peça teatral de Maeterlinck, Pelléas et Mélisande, quatro anos antes de Debussy, cinco anos antes do poema sinfônico de Schõnberg e sete anos antes da música de cena feita por Sibelius para a mesma peça. Em 1900, Fauré compôs uma tragédia lírica, Prométhée [Prometeu], sobre um libreto adaptado do Prometeu acorrentado, de Esquilo. Em 1913, cedendo aos pedidos da cantora Lucienne Bréval, concluiu, depois de sete anos de trabalho, a ópera Pénélope [Pénélope], com libreto adaptado da Odisséia por René Fauchois. A montagem de Prométhée pôs em ação meios colossais. Representada em 1900 nas arenas de Béziers, envolvia nada menos do que quatrocentos músicos, formando três orquestras de harmonia e uma orquestra clássica, duzentos cantores no coro, cinqüenta bailarinas, atores e cantores sofistas. Infelizmente, no que diz respeito a Pénélope, ópera na qual se encontram belas páginas musicais, as deficiências do libreto muitas vezes desencorajam os encenadores. Nessa época, uma angustiante provação atingiu Fauré: a partir de 1903, ficou surdo. Mas essa solidão no interior de si mesmo a que se via condenado permitiulhe descobrir horizontes musicais ainda mais densos: L'Horizon chimérique e o Quarteto de cordas dão amplo testemunho disso. Fauré morreu de pneumonia em 1924, aos 79 anos, quando concluía a composição de seu Quarteto de cordas. Paul Dukas Paul Dukas (1865-1935) foi, como Debussy, aluno de Guiraud: sua vida foi a imagem de sua pessoa, simples e discreta. Foi professor do Conservatório de Paris a partir de 1909. A grande cultura de Dukas e o interesse despertado por seus cursos atraíam alunos do mundo todo. Ele sempre foi um conselheiro inteligente e um amigo dedicado. Sua curiosidade uni-
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versal levou-o às leituras mais variadas, com predileção pela poesia e a filosofia: Goethe, Nietzsche (que "tinha alma musical sem ser músico de natureza") e Valéry eram os autores de que ele mais gostava. A numerosa obra crítica de Dukas, publicada em várias revistas — Revue Hebdomadaire, Gazette des Beaux-Arts, Courrier Musical, etc. —, ainda conserva sua atualidade. O compositor é menos conhecido. Seu temperamento exigente levou-o a destruir a maior parte de suas obras, que julgava incompletas. Esse tormento com a perfeição deixou-nos apenas nove opus, a maior parte raramente tocada. Depois de ter composto uma abertura para Poliyeucte [Polieuto, 1891], tragédia de Corneille, na qual buscou traduzir musicalmente as lutas espirituais do herói até o apaziguamento na fé, e uma Sinfonia em dó (1896) marcada pela influência de César Franck, Dukas escreveu L'Apprenti sorcier [O aprendiz de feiticeiro], scherzo sinfônico inspirado em uma balada de Goethe e apresentado pela primeira vez pela Sociedade Nacional de Música em 1897. Essa obra recebeu boa acolhida, unânime e duradoura, tanto por parte do grande público quanto dos músicos. O argumento é conhecido: na ausência do mestre feiticeiro, o aprendiz quer experimentar seu poder sobre as coisas, mas vê-se rapidamente ultrapassado pelos acontecimentos que suscitou. A sedução de L'Apprenti sorcier está em sua inventividade melódica, em sua qualidade formal e em sua orquestração deslumbrante. La Péri, poema para dança escrito em 1911 para Diaghilev, cede à moda do exotismo que dominou o início de nosso século. O argumento era dado por uma lenda oriental: a busca da Flor da Imortalidade pelo rei Iskander, que percorre o Irã. Ainda uma vez, a instrumentação brilhante sustenta uma arquitetura perfeitamente equilibrada, na qual se interpenetram diversos elementos temáticos. A obra para piano de Paul Dukas — Sonata em mi bemol menor e Variations sur un thème de Rameau [Variações sobre um tema de Rameau], ambas de 1901 — é pouco executada, decerto por conta das qualidades técnicas transcendentes que ela exige para ser tocada corretamente. A obra-prima de Paul Dukas é sua ópera Ariane et Barbe-Bleue [Ariane e BarbaAzul], com libreto de Maurice Maeterlinck, escrito expressamente para ser musicado. A obra foi encenada pela primeira vez em 1907. Preocupado havia muito tempo com o problema da arte lírica, admhador de Wagner, nessa obra Dukas dá prova de sua maestria, não só pela orquestração sempre admirável, mas também ao resolver — de forma diversa da de Debussy — o problema do equilíbrio entre texto e música. Dukas dedicou-se também a traduzir em sua ópera uma certa ética: Ariane tenta libertar suas companheiras, que preferem, à liberdade desconhecida, seu carrasco familiar. Nas recomendações que fez aos intérpretes, Dukas insistiu na ambigüidade de um poema que é satírico, mas também trágico: Essa recusa da liberdade assume u m caráter totalmente patético, como acontece quando um ser superior que se acredita indispensável percebe que n i n g u é m tem necessidade de seu devotamente h e r ó i c o e que, aos m e d í o c r e s , basta u m a s o l u ç ã o m e d í o c r e .
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Na maravilhosa orquestração de Ariane et Barbe-Bleue, pode-se entrever a origem da orquestra cintilante de um aluno de Dukas, Olivier Messiaen. Albert Roussel As obras de Albert Roussel (1869-1937) não têm nem o encanto das de Fauré, nem o brilho das de Dukas. Sua música revela, contado, uma força que não nos deixa indiferentes. Oficial de marinha até os 25 anos, Roussel dedicou-se à técnica musical, pela qual abandonou uma profissão segura, com um espírito já adulto, tornado flexível pelas disciplinas científicas. Depois que se retirou da marinha, fez estudos musicais completos com a maior seriedade, inscrevendo-se para tanto na Schola Cantorum, onde seguiu com assiduidade os cursos de Vincent d'Indy. Os progressos foram de tal modo fulgurantes que em pouco tempo ele se tornou professor de contraponto naquela mesma escola, onde permaneceu até 1914. O próprio Roussel dividia sua carreira musical em três períodos: até 1913, influenciado por Debussy, mas ainda preocupado com a forma ensinada na escola de d'Indy, produziu a sua Sinfonia n° 1, intitulada Le Poème de la forêt [O poema dafloresta]e um bonito balé montado em 1913 no Théâtre des Arts, Le Festin de l'araignée [O festim da aranha], em que se vale com engenho de uma orquestra reduzida a 32 exécutantes que evoca, pela transparência de sua instrumentação, o mundo liliputiano e a vida fremente dos insetos. A segunda etapa de sua evolução foi marcada pela ópera-balé Padmâvati (1918), que se baseia em uma lenda por ele recolhida em uma viagem à Índia, mas se situa na tradição francesa do teatro lírico, ilustrada por Lully ou Rameau. Encontra-se nessa partitura uma harmonia mais audaciosa e mais áspera do que a das obras anteriores do compositor, assim como uma originalidade de linguagem que se deve ao emprego dos modos musicais liindus que Roussel recolheu no Oriente, constatando — verdadeira profecia — que eles poderiam enriquecer a música européia sem por isso fazê-la recair em um exotismo fácil. Roussel encontrou seu modo de expressão definitivo a partir de 1926, data em que compôs a Suíte em fá para orquestra. Escreveu em seguida a Sinfonia n° 3 — por encomenda de Kussevitzky, para a orquestra de Boston —, a Sinfonia n° 4, o balé Bacchus et Ariane [Baco e Ariadne], uma Sinfonieta para orquestra de cordas e urna ópera bufa, intitulada Le Testament de la tante Caroline [O testamento de tia Carolina]. Animada por uma espécie de embriaguez rítmica quase agressiva, a obra de Roussel adota um estilo harmônico audacioso, por vezes estridente. Mas, por outro lado, ela deve uma certa rigidez ao respeito excessivamente intransigente que observa em relação à forma clássica.
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Ravel foi um daqueles raros grandes criadores que se revelam desde as primeiras obras: na Habanera dos Sites auriculaires [Sítios auriculares], escrita quando o compositor tinha apenas vinte anos de idade, a personalidade de Ravel já estava tão bem afirmada que, doze anos mais tarde, ele próprio não hesitou em incluir a peça — depois de havê-la orquestrado, mas sem mexer em qualquer nota — em sua Rhapsodie espagnole [Rapsódia espanhola], sem com isso produzir qualquer hiato no desenvolvimento geral da peça. Decerto pode-se discernir, ao longo da produção musical de Ravel, alguns traços de influências: de início, Chabrier, taxado de "precursor desajeitado e genial"; depois Satie, assiduamente freqüentado pelo jovem Ravel, que insistia em executar ao piano Sarabandes [Sarabandas] e Gymnopédies [Girrmopédias] durante um concerto da Sociedade Musical Independente, e que em 1913 orquestraria o Prélude dufilsdes étoiles [Prelúdio do filho das estrelas]. Os Sites auriculaires de Ravel não são, de resto, estranhos a um certo esoterismo musical tão característico do "Sócrates de Arcueil". Quanto aos russos, apaixonadamente ouvidos, a música de Ravel deve-lhes certas curiosidades modais ou rítmicas e sobretudo um espantoso virtuosismo instrumental: a escrita pianística de Islamey, de Balakirev, seduziu-o bastante e ele aprendeu orquestração nas partituras de Rimski-Korsakov. A vida de Ravel foi aparentemente tão modesta e discreta quanto ele mesmo. Nascido em 1875, em Ciboure, no País Basco, viveu uma infância sem histórias em Paris onde, estudante dócil, tomou as primeiras aulas de música. Tendo ingressado no Conservatório em 1889, dedicou-se com boa-vontade aos exercícios acadêmi-
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cos. As primeiras paixões musicais de Ravel foram Schumann, Weber, Chopin e Liszt, nos quais buscou os primeiros elementos de sua escrita pianística. Aos vinte anos, quando publicou suas primeiras obras, Ravel assistia fielmente ao curso de composição de Fauré, "seminário da elegância e do gosto", o que o encorajou a ingressar em uma via para a qual a sua própria natureza o induzia: a de um certo hedonismo. É verdade que ele gostava de posar de dândi baudelairiano, e por vezes encontra-se em sua música essa atitude feita de distinção um pouco preciosa. Felizmente, outros interesses acabam tomando seu espírito ávido de descobertas: lê Mallarmé, perde-se nos sonhos feéricos de Shéhérazade e persegue as quimeras de Poe ou as almas condenadas de Huysmans. Em 1901, Ravel obteve o segundo prêmio de Roma; nos anos seguintes, nada. Esses fracassos diante dos senhores do Instituto desencadearam um "affaire Ravel". Indiferente a essa glória precoce, no entanto, Ravel compôs Jeux d'eau [Jogos de água] em 1901, para piano: atraído pelas aliterações de um verso de Henri de Régnier — "Dieu fluvial riant de l'eau qui le chatouille" [Deus fluvial que ri da água que lhe faz cócegas] —, escreveu uma obra de virtuosismo, valendo-se do álibi que lhe proporcionava o poema para explorar o timbre das regiões agudas do teclado, pouco usadas até então, exceto nas obras de Liszt. O próprio Ravel afirmou: "Os Jeux d'eau estão na origem de todas as novidades pianísticas que se quis reconhecer em minha obra." No ano seguinte escreveu o Quarteto de cordas, no qual mostra-se mais lírico do que de costume, embora a obra tenha sido composta segundo uma vontade de construção rigorosa. Pouco depois escreveu Shéhérazade, três poemas para canto e orquestra; em seguida, a Sonatina para piano, toda composta em flexíveis linhas modais, carregada de alusões à antiga suíte. Finalmente, Miroirs [Espelhos], também para piano. Escritos em 1905, os Miroirs compreendem cinco partes — Noctuelles, Oiseaux tristes [Pássaros tristes], Une barque sur l'océan [Uma barca no oceano], Alborada del Gracioso, La Vallée des cloches [O vale dos sinos] — e marcam uma etapa na evolução do estilo de Ravel: harmonia mais audaciosa, mais personalidade, fórmulas pianísticas mais rebuscadas. Todas as semanas Ravel comparecia aos "samedis" do pintor Paul Sordes, onde encontrava um pequeno cenáculo em que figuravam, ao lado dos poetas LéonPaul Fargue e Tristan Klingsor, Ricardo Vines — seu pianista favorito — ou Georges Mouveau, cenógrafo de teatro. Esse grupo de amigos — "os Apaches" — elevava Debussy às nuvens e participou ativamente da defesa de Pelléas et Mélisande. Mais tarde, os Apaches passaram a se reunir na casa de Maurice Delage, aluno de Ravel, e acolheram novos recrutas: Florent Schmitt, André Caplet, Manuel de Falia e o último, em ternos cronológicos, Igor Stravinski. Ravel, homem reservado que, no entanto, não desgostava de surpreender, suscitou um novo escândalo ao transformar cinco textos das Histoires naturelles [Bis-
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tórias naturais] de Jules Renard em mélodies (1906): os textos não agradaram aos acadêmicos "d'indystas" da Sociedade Nacional de Música: não se faz música com frases tão prosaicas! Além disso, reprovou-se severamente a Ravel ter ousado conservar, na prosódia musical, as efisões da linguagem corrente: costumes de caféconcerto... No entanto, quem mais poderia ter sido capaz de exprimir com aquela emoção contida o humor delicado do Paon [Pavão] ou do Grillon [Grilo]? Notável compositor de mélodies, segue, em um recitativo livre, as inflexões naturais da fala, deixando a voz totalmente independente da parte de piano que, mais do que um acompanhamento, instala um novo cenário para cada mélodie. Enquanto isso, e sempre afetando indiferença, "... tão seguro de ser belo que é incapaz de nutrir rancor" (Jules Renard sobre Paon), Ravel trabalhava em sua primeira grande obra de orquestra, a Rhapsodie espagnole (1907). Quatro movimentos: o Prélude à la nuit [Prelúdio à noite], construído em torno de um misterioso ostinato de quatro notas, a Malagueña [Malaguenha], dança em três tempos cujo langor se expressa em uma frase sinuosa do corne inglês, a Habanera de 1895, a Feria [Feira], cujos motivos incisivos deslocam-se rapidamente por uma orquestra a um só tempo nervosa e transparente: é que a orquestra era o modo de expressão mais favorável ao talento de Ravel, e vamos vê-lo aplicar sua imaginação a jogos instrumentais que vão atingir o desafio (o Bolero). L'Heure espagnole [A hora espanhola], comédia leve de Franc-Nohain, tinha um humor propício a excitar a inspiração de Ravel. A partitura foi escrita de um único lance, em cinco meses (1907): uma "conversa em forma de música" entabulada em uma relojoaria de Toledo por cinco personagens bem típicas é pretexto para fórmulas pitorescas. Um bacharel enamorado mas pedante, um obeso suspirante, um relojoeiro ingênuo que não suspeita de seu infortúnio de marido traído, um forte carregador de móveis que termina por obter os favores da relojoeira lánguida, tudo isso em um balé divertido com relógios cúmplices e carrilhões escarnecedores. Ravel reatava com a tradição da ópera bufa: prova disso é a Habanera final, cantada "para o público" por todos os protagonistas. Ravel era amigo fiel dos Godebski, que reuniam em sua casa, todo domingo, a elite dos artistas da moda: cenáculo de escritores que, com Léon-Paul Fargue, contribuiria para a fundação Nouvelle Revue Française (NRF); amigos da Revue Blanche — Picasso, Diaghilev, Vuillard. Foi para os filhos dos Godebski que Ravel escreveu as encantadoras páginas dos contos de Ma Mère l'Oye [Mamãe Gansa], para piano a quatro mãos. No mesmo ano de 1908, Ravel compôs uma obra de destaque: Gaspard de la nuit [Gaspar da noite]. Os passos-de-fundo dessas três peças para piano foram sugeridos pelos textos fantásticos de Aloysius Bertrand (1807-1841): Ondine [Ondina] ("E como eu lhe respondesse que amava uma mortal, amuada e despeitada ela chorou algumas lágrimas..."); Le Fibet [O cadafalso], marcado pelo sinistro dobre de um si bemol obsédante ("É o sino que badala nos muros de uma cidade
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sob o horizonte e a carcaça de um enforcado avermelhado pelo sol poente"); Scarbo, peça alucinante, imagem do gnomo inapreensível em que Ravel buscava resolver um problema do seu ofício ("Escrever para piano peças de virtuosismo transcendente, que sejam mais difíceis que Islamey"). Nessa obra, Ravel exagera a escrita pianística de um Balakirev ou de um Liszt, chegando mesmo a inovar no domínio da técnica transcendente: a posição do polegar dobrado contra a palma da mão que apertava três teclas ao mesmo tempo é característica: "Enciclopédia diabólica de todas as armadilhas, obstáculos, alçapões que uma imaginação incansável pode armar sob os dedos do virtuose" (Jankélévitch). A música para dança ocupou um lugar de destaque na produção de Ravel. É certo que as turnês dos Ballets Russes suscitaram, no início do século XX, mais de uma obra-prima. O diretor dos Ballets Russes, Serge de Diaghilev, estava sempre procurando novos compositores: Stravinski, Debussy, Ravel, Satie, de Falla, Auric, Milhaud e Poulenc escreveram música para as coreografias de Fokine ou de Nijinsky, com cenários dos pintores Bakst, Roerich ou Benois e, mais tarde, Picasso, Braque, Matisse e Derain. Pode-se imaginar a importancia de um fenômeno como este na vida artística parisiense entre 1910 e 1930, principalmente no que se refere à música. Em 1911, antes de produzir uma obra para os Ballets Russes, Ravel compôs uma sucessão de valsas para piano, à maneira de Schubert. Foram as valses nobles et sentimentales [Valsas nobres e sentimentais] que, no ano seguinte, orquestradas e acrescidas de um argumento coreográfico, iriam se tornar Adélaïde ou le langage des fleurs [Adelaide ou a linguagem das flores]. Aquelas oito peças sem pretensão, postas por sua própria epígrafe sob o signo da futilidade ("O delicioso e sempre renovado prazer de uma ocupação inútil", Henri de Régnier), são na realidade um verdadeiro manifesto harmônico. Nunca antes Ravel buscara com tamanha acuidade a riqueza de cada acorde, jogando com as dissonâncias, justapondo matérias contrastantes, deixando de lado o virtuosismo de um Scarbo para ir musicalmente além. As Valses nobles et sentimentales são um dos pontos máximos da carreira do compositor. A sinfonia coreográfica em três partes intitulada Daphnis et Chloé [Dafne e Cloé] foi apresentada pela primeira vez em 1912, pelos Ballets Russes. Sem ser tão "avançada" como as Valses nobles et sentimentales, a obra impõe grandes linhas de força e revela fascinante poesia instrumental. Trata-se de uma sucessão de danças ligadas por um argumento retirado da pastoral de Longus, escrita no século II da era cristã. As Suítes retiradas dessa obra são muitas vezes executadas em concertos, sem a parte coral. Ravel escreveu: Daphnis et Chloé, sinfonia coreográfica em três partes, foi-me encomendada pelo diretor dos Ballets Russes. (...) Ao escrevê-la, minha intenção foi compor u m vasto afresco musical, menos preocupado com o arcaísmo do que com a fidelidade à Grécia dos meus sonhos. (...) A obra é construída s i n f ó n i c a m e n t e segundo u m plano tonai muito rigoro-
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so, por meio de u m pequeno n ú m e r o de motivos cujos desenvolvimentos asseguram a homogeneidade da obra. (...) Daphnis et Chloé foi trabalhada várias vezes, principalmente a parte final.
Sabe-se efetivamente que a maravilhosa Bacchanale [Bacanal] do fim, cuja escrita orquestral parece ter brotado diretamente de uma fulgurante inspiração, na realidade custou enormes esforços a Ravel. Segundo seu próprio testemunho, ele refez essa parte da obra várias vezes, durante um ano, com muita dificuldade, antes de ficar satisfeito. Tendo decretado que a versão de Rimski-Korsakov não lhe convinha, Diaghilev contratou, em 1913, Ravel e Stravinski para reorquestrarem a ópera Khovanchtchina, de Mussorgski. Para realizar esse trabalho, Ravel foi ao encontro de Stravinski na Suíça. Lá, entusiasmado com as Trois poésies de la lyrique japonaise [Três poesias da lírica japonesa], adotou a idéia do compositor russo e, como ele, inspirou-se na instrumentação do Pierrot lunaire [Pierrô lunar] de Schõnberg para compor Trois poèmes de Stéphane Mallarmé [Três poemas de Stéphane Mallarmé]. No mesmo ano, firme defensor de Le Sacre du printemps [A sagração da primavera], participou da famosa batalha desencadeada pela obra de Stravinski. Em 1914, por ocasião da Primeira Guerra Mundial, Ravel apressou-se para concluir o Trio antes de alistar-se no Exército. Nessa obra em quatro movimentos, escrita para piano, violino e violoncelo, abordou, no essencial, um problema de equilíbrio sonoro entre o piano e as cordas, que resolveu com mão de mestre. Depois de uma série de dificuldades, tornou-se motorista do Exército em 1916, reformando-se um ano depois. Perdeu a mãe em 1917 e ficou profundamente abalado. Instalou-se então em Lyons-la-Forêt e pôs-se ao trabalho: Le Tombeau de Couperin [O túmulo de Couperin], homenagem à música francesa do século XVIII, é uma suíte para piano tomada de seis peças; nela reencontra-se o harmonista elegante da cintilante Forlane [Forlana]. Mesmo sofrendo por ver seu país engajado em uma guerra cruel, Ravel jamais perdeu a lucidez diante do absurdo. Respondeu da seguinte forma a uma figa formada para proibir na França a execução de obras austro-alemãs: Pouco me importa que o senhor Schõnberg, por exemplo, seja de nacionalidade austríaca. N ã o seria por isso que ele deixaria de ser u m m ú s i c o de alto valor, cujas pesquisas, plenas de interesse, tiveram u m a feliz influência sobre certos compositores aliados e até sobre n ó s . E , mais ainda, fico orgulhoso que os senhores Bartók, Kodály e seus discípulos sejam húngaros e manifestem isso em suas obras com tanto sabor.
De resto, Ravel sempre seguiu uma linha de conduta muito honesta, não se deixando levar, nem em sua vida privada, nem em sua música, pela menor complacência em relação a si mesmo. Aos amigos que acreditaram agradá-lo fazendo com que lhe fosse conferida a Legião de Honra, explicou sua recusa nos seguintes termos: "Consentir em ser condecorado é reconhecer ao Estado ou ao príncipe o
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direito de julgar." Esse affaire da Legião de Honra perturbou por um momento a elaboração de Wien [Viena] — título primitivo La Valse [A valsa] —, composta para Diaghilev. Buscando fazer a apologia da valsa vienense, Ravel lançou a orquestra em um torvelinho paroxístico. Em um belo dia de 1916, Colette trouxe para o diretor da Ópera de Paris um texto feérico para ser musicado. Jacques Rouché propôs-lhe falar com Ravel. Atraído pelo tema — os objetos da casa e depois os animais do jardim revoltam-se contra uma criança malvada —, Ravel aceitou. Depois, durante cinco anos Colette não ouviu mais falar do compositor, até o dia em que "a obra acabada e seu autor saíram do silêncio". Musicalmente, L'Enfant et les sortilèges [O menino e seus sortilégios] é a obra de um mágico. Ravel não hesitou em justapor um fox-trot (o bule de chá inglês e a taça chinesa), a dança ligeira do fogo e uma pastoral com acompanhamento de museta e pandeiros. O compositor adapta-se a todos os gêneros com virtuosismo, maneja o humor com bastante requinte, ao esboçar um boneco aritmético hilariante, e ainda deixar lugar para a emoção. A primeira representação no Teatro de Ópera de Montecarlo, em 1925, obteve um sucesso estrondoso. Em contrapartida, o público parisiense recebeu mal o rocambolesco duo dos gatos. Já Colette parece que vibrou em uníssono com a música de Ravel: C o m o falar da minha primeira e m o ç ã o , ao primeiro rufar dos tamborins que acompanham o cortejo dos Pastores? O brilho lunar do jardim, o v ô o das libélulas e dos morcegos... " N ã o é divertido?", dizia-me Ravel. E , no entanto, eu estava com u m n ó na garganta: os animais, com u m cochicho apressado, apenas silábico, inclinavam-se sobre o menino, reconciliados...
Sohcitado de todos os lados, Ravel, que tinha necessidade de calma para trabalhar, instalou-se em Montfort-rAmaury, em uma casa chamada o Belvedere, que encheu de tesouros queridos, autômatos, japonaiseries, caixas de música. E lá ele compôs, em 1926, as Chansons madécasses [Canções malgaches], com Poésies érotiques [Poesias eróticas] de Évariste Parny, poeta francês do século XVIII. Nesses quartetos para voz, flauta, violoncelo e piano, em que a voz desempenha o papel principal, Ravel chegou ao despojamento. Mas, sob essa falsa simplicidade, emergia uma revolta contra a ordem estabelecida: "Auá! Desconfiai dos Brancos, habitantes do rio." Foi em 1928 que Ravel compôs o célebre Bolero, na origem um balé que lhe fora encomendado por Ida Rubinstein: um desafio quase insolente pela monotonia intencional do ritmo e da melodia, fascinante pelos jogos dos timbres e pelo aparecimento de novos instrumentos que não cessam de enriquecer a orquestra a cada retomada do motivo, em um créscendo contínuo. O Concerto para piano em sol decepciona um pouco, por conta das concessões feitas ao virtuosismo e ao brio. Em contrapartida, o Concerto pour la main gauche
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[Concerto para mão esquerda], que lhe é contemporâneo, composto em 1931 por encomenda do pianista Wittgenstein, que a guerra havia privado do braço clireito, chega mais perto do trágico e dá testemunho de uma pesquisa sonora que o desafio de escrever só para a mão esquerda obrigou Ravel a levar mais adiante. Nessa época, Ravel viajou muito, para atender aos convites que lhe vinham do estrangeiro e para distrair-se das preocupações com a saúde: sentia então os primeiros sintomas de uma doença cerebral que, sem privá-lo da lucidez, prejudicava o funcionamento das relações da consciência com o mundo exterior. Em 1934, escreveu sua última obra, as mélodies ditas Don Quichotte à Ducinée [Dom Quixote a Dulcinéia], encomendada por uma empresa cinematográfica. Depois disso, até a morte, que sobreveio em 1937, Ravel ficou incapacitado para compor. Muitas vezes concede-se a Ravel, um tanto comodamente, a etiqueta de "brilhante orquestrador". Certamente ele escrevia para uma orquestra de virtuoses, muitas vezes exigindo que os instrumentos fizessem acrobacias técnicas; certamente, como Rimski-Korsakov, sabia confiar a frase musical ao instrumento capaz de maisfielmentea modelar; ele próprio, porém, defendeu-se de um tipo de definição tão apressada: "Não há músicas bem orquestrados; há somente músicas bem escritas." No teclado, Ravel seguiu a tradição de Liszt, acrescentando-lhe alguns achados técnicos, como em Scarbo. A personalidade musical de Ravel como compositor reside essencialmente na flexibilidade da melodia, geralmente modal, e na riqueza da harmonia. Ravel contribuiu amplamente para liberar a música da tirania tonai, mas, tomando um caminho diferente do de seus contemporâneos Debussy, Schõnberg ou Stravinski — a quem admirava com igual respeito —, "voltou-se em direção a precárias descobertas que participavam, mais mal do que bem, da ordem já existente, mas que não destruíam fundamentalmente sua coerência". Esse julgamento severo de Boulez não chega, contudo, a turvar a imagem de um compositor dedicado ao trabalho, ao mesmo tempo exigente e cheio de fantasia. Exigente a ponto de desafiar uma natureza que o havia tão generosamente dotado, Ravel gostava de escolher as matérias mais rebeldes para melhor domá-las: H á duas semanas n ã o largo o trabalho. Nunca trabalhei com tamanho frenesi. (...) É apaixonante fazer uma obra de teatro. E u n ã o diria que a coisa vem por si mesma, mas isso é justamente o que h á de mais belo.
Curioso insaciável, Ravel está na origem de uma certa busca do "inédito" sonoro, tão característica do século XX. Levou a ousadia ao ponto de fazer uso de instrumentos mais incongruentes? Eolina, jazzo-flauta, piano luteal, percussões em grande quantidade.
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A MÚSICA ESPANHOLA: ALBENIZ, GRANADOS, MANUEL DE FALIA
No século XVI, a Espanha passara por um magníficoflorescimentomusical dominado, entre outros grandes talentos, pela genialidade de Victoria. A partir do século XVII, ao contrário, a música "erudita" atravessou um longo eclipse naquele país. Mas a tradição musical popular, extremamente vigorosa, continuou a desenvolver-se. Os compositores do século XLX foram buscar a maior parte de seu material no folclore, mais especificamente no flamenco. Sabe-se que oflamencoé um dos cantos populares mais particulares do Sul da Espanha, cuja estrutura alterna improvisação e certasfigurasfixas,e onde o ritmo depende do conteúdo dramático dos poemas. Muitas são as conjecturas a respeito doflamencoou cante jondo [canto profundo]. Alguns musicólogos acham que ele foi introduzido na Espanha pelos flamengos (daí o nome) na época de Carlos V. Outros atribuem-no aos ciganos, outros aos mouros e,finalmente,há quem, encontrando nos modos utilizados pelo cante jondo certos modos musicais hindus, suponha que ele foi importado da Ásia. Manuel de Falia acreditava que o cante jondo nasceu de uma tripla conjunção: "A adoção do canto bizantino pela Igreja espanhola, a invasão árabe, a imigração e o estabelecimento na Espanha de inúmeros grupos de ciganos." Oflamenco,no entanto, é somente uma das inúmeras manifestações da arte popular espanhola. Porque cada província possui uma rica tradição folclórica, na qual as danças desempenham um papel determinante: o aurresku, no País Basco, a jota em Navarra e Aragão, a seguidilla e o bolero em Castela, a sardana na Catalunha.
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Paralelamente a esse desenvolvimento da música popular, a vihuela foi progressivamente substituída pelo violão, ou guitarra espanhola, que teve sua idade do ouro no século XVIII e no início do século XIX. Quanto às representações dramáticas, de que os espanhóis sempre foram grandes apreciadores, decerto serviam-se do talento de alguns músicos. Desde o século XVI, Cervantes ou Lope de Vega com freqüência introduziam música em suas peças de teatro, mas já se tratava, então, mais de música popular do que de obras eruditas. A tonadilla é um exemplo característico daquele teatro popular: formada de curtos quadros realistas e cheios de aspectos pitorescos, constituía um gênero dramático que se adaptava a todos os meios, campestres ou citadinos, e a todas as circunstâncias. Alternativamente satírica, mitológica, sentimental, moral, etc., a tonadilla situa-se na mesma linhagem da commedia delVarte italiana. De resto, no século XVIII, a ópera italiana invadiu a Espanha; primeiro chegou uma trupe italiana de opera buffa, os Trufaldinos, seguida de perto por diversos músicos italianos: Domenico Scarlatti e Luigi Boccherini passaram longas temporadas em Madri, impregnando-se do idioma musical espanhol, mas também trazendo toda uma cultura italiana para os músicos espanhóis. Nenhum deles havia de afirmar-se durante aquele período, com exceção do padre Antonio Soler (1729¬ 1783), discípulo de Scarlatti, tão bem dotado quanto fecundo. Ele se mostrava bem mais italianizante em suas sonatas para teclado do que nos villancicos (cantos religiosos e profanos) que compôs, dos quais muitos foram escritos em linguagem popular. Foi preciso esperar pelo século XLX para assistir à eclosão de uma consciência nacional espanhola. Esse verdadeiro renascimento atraiu o interesse dos compositores pelo folclore, interesse que se expressou principalmente no domínio do teatro popular. Ainda se ouvia muita ópera de estilo italiano em Madri, mas, paralelamente, o público acorria à apresentação das zarzuelas, pequenos espetáculos de caráter regionalista, escritos em tom brincalhão e obedecendo a uma forma estereotipada: o jovem galã, a jovem que desdenha o amor deste e o criado um tanto simplório encadeavam canções, duetos, coros e diálogos curtos. O musicólogo e compositor Felipe Pedrell (1841-1922) —- professor de Granados e Manuel de Falia — consagrou-se à regeneração das escolas regionais. A prática, bastante difundida, da música coral facilitou o florescimento de uma escola musical catalã. Finalmente, o movimento em favor de uma ópera nacional encorajou a Academia Real de Belas Artes a organizar um concurso em 1905: de Falia, com a ópera La vida breve [A vida breve], recebeu o primeiro prêmio. Para poder atravessar os Pirineus, Manuel de Falia, que havia algum tempo já pensava em ir a Paris, aceitou participar de uma turnê de segunda classe em 1907. Paris, no início do século, era o refugio de inúmeros artistas estrangeiros. Formouse, então, uma escola espanhola "de Paris". Ao lado de pintores como Juan Gris, Picasso ou Miró, podia-se encontrar Albeniz e Manuel de Falla. O pianista Ricardo
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Viñes (que dedicou seu talento a fazer com que se conhecessem as obras de seus contemporâneos) introduziu Manuel de Falia na vida parisiense, apresentando-o a Ravel, Dukas, Debussy e Albeniz, que acolheu calorosamente seu compatriota. Isaac Albeniz (1860-1909) Albeniz era o mais velho dos três grandes músicos espanhóis daquela geração. O início de sua vida foi um verdadeiro romance picaresco — o de uma criança prodígio menos dócil do que Mozart ante a exploração de sua precocidade pelo pai. Ainda bem pequeno, fugiu várias vezes: aos doze anos, acabou chegando ao Rio de Janeiro, deu concertos, fez turnês pelo Brasil e foi mais uma vez reencontrado pelo pai que, cedendo ao cansaço, deixou-o em paz. Por um curto período foi carregador de bagagens em Nova York. Viveu em seguida em Leipzig e em Bruxelas, onde causou escândalo pela depravação de seus costumes; só tomou jeito quando seu companheiro de hbertinagem suicidou-se. Aos dezoito anos, foi conquistar Liszt em Budapeste e tornou-se aluno do grande mestre, seguindo-o por toda parte. Em seguida, foi noviço dos beneditinos de Salamanca e diretor de uma trupe de artistas ambulantes que encenavam zarzuelas... Aos 23 anos casou-se, tornando-se bom esposo e bom pai. Aconselhado pela mulher, fixou-se em Paris em 1894. Lá teve início sua vida de artista criador. Albeniz era, antes de mais nada, um pianista notável. Partindo de uma concepção do instrumento muito influenciada pelo conhecimento das obras de Liszt, conseguiu em Iberia, sua obra-prima, fazer uma verdadeira renovação da escrita pianística, que também deve muito a Debussy e a Ravel. Os quatro cadernos de Iberia (1905-1908) compreendem doze peças guarnecidas de títulos evocadores (Festa-Deus em Sevilha, Almería, ElAlbaicin, Jerez, etc.), cujo virtuosismo impressiona os intérpretes, mas cujo elemento espanhol utilizado de maneira intuitiva pode parecer artificial, pelo emprego de fórmulas andaluzas típicas — triolés, acordes secos imitando o timbre do violão, etc. Nada disso, porém, haveria de impedir que Oliver Messiaen saudasse Iberia como "a maravilha do piano, a obra-prima da música espanhola". Enrique Granados (1867-1916) Catalão de origem, como Albeniz (mas bem menos atraído pela Andaluzia do que ele) e tendo, como Albeniz, concluído sua formação musical em Paris (depois de ter sido aluno de Felipe Pedrell em Barcelona), músico requintado, hábil colorista, Enrique Granados também foi, antes de mais nada, um grande pianista. Produziu inúmeras obras para o instrumento que tocava, obras marcadas sobretudo pela influência de Schumann. Em suas Danzas españolas [Danças espanholas, 1892¬ 1900], no entanto, ou em Goyescas (1911), introduziu fórmulas tipicamente espa-
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nholas, principalmente o arabesco. Podem-se encontrar as mesmas características nos dois ciclos de canções de Granados: as Tonadillas (1914) e as Canciones amatorias. Granados também compôs obras dramáticas. Maria del Carmen obteve triunfo em Madri em 1898. Das Goyescas para piano ele retirou, com o mesmo nome, uma ópera que pretendia fazer representar em Paris; por causa da guerra, a estréia — triunfal — teve que realizar-se no Metropolitan Opera House de Nova York, em janeiro de 1916. Ele escreveu na ocasião: "Tenho a cabeça cheia de cabelos brancos e estou apenas começando minha obra, mas trabalho com entusiasmo. Sinto minha alegria atual mais por aquilo que há de vir do que pelo que já fiz até aqui." E embarcou para voltar à Europa no navio Sussex, torpedeado por um submarino alemão em 24 de março de 1916. Recolhido por um bote, Granados viu sua mulher debatendo-se nas ondas e voltou a mergulhar no mar para socorrê-la. Juntou-se a ela, e os dois desapareceram enlaçados.
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Pedro], apresentado em 1923, e o Concerto para cravo, dedicado a Wanda Landowska, no qual evidenciava-se aquele cuidado com o detalhe que lhe havia sido legado por Ravel e Dukas. Nesse Concerto, última obra concluída por Manuel de Falia, afirma-se com maior vigor a originalidade de seu estilo. Pois, se de Falia foi em primeiro lugar um herdeiro de Albeniz, se veio a sofrer, durante sua temporada parisiense, a benéfica influência de Debussy, principalmente no que diz respeito à escrita harmônica, em contrapartida ele era perfeitamente capaz de integrar o "espírito" da arte popular espanhola em sua música em 1926. Ao longo daqueles anos de experiência, forjara para si próprio uma linguagem despojada, purificada, o que o fez atingir seu próprio classicismo. As viagens, a doença, a dramática situação política que levou a Espanha à guerra civil e o assassinato de Garcia Lorca abateram tão profundamente Manuel de Falia, que, sentindo-se incapaz de trabalhar durante quatro anos, o compositor decidiu emigrar para a Argentina. Lá retomou, não sem dificuldade, o projeto de uma cantata cômica — Atlántida [Atlântida] — que tinha muito empenho em realizar, mas que não pôde concluir antes de sua morte.
Manuel de Falla ( 1876-1946) Manuel de Falia foi bem mais longe que seus dois companheiros mais velhos, embora rumasse na mesma direção. Nascido em Cadiz, era andaluz por parte de pai e (também ele!) catalão por parte de mãe. Foi escutando uma sinfonia de Beethoven que sentiu nascer a vocação de compositor, e a temporada que passou na França muito contribuiu para seu desenvolvimento futuro. Enquanto permaneceu em Madri, compunha essencialmente zarzuelas. A primeira obra parisiense que escreveu, as Quatro peças espanholas (1908), emborà marcadas pela influência de Albeniz, dão testemunho de uma vontade consciente de integrar a arte popular em sua música, o que está presente no sentido da seguinte declaração: "No canto popular, o espírito importa mais que a letra." Em 1914, Manuel de Falia voltou a Madri. El amor brujo [O amor feiticeiro], para canto e orquestra, devia dar origem a uma canção e uma dança a ele encomendados por uma bailarina cigana para um espetáculo de variedades. Mas o entusiasmo de Manuel de Falia levou-o a conceber um balé de mais vastas proporções, do qual escreveria uma versão ainda mais encorpada em 1916. Compôs em um único impulso Noches en los jardines de España [Noites nos jardins da Espanha], para piano e orquestra, e uma nova música de balé destinada aos Ballets Russes, El sombrero de tres picos [O tricornio], cuja expressividade carregada de júbilo e de ironia dava mostras de que ele estava atravessando um período alegre. Infehzmente, o sucesso de El sombrero de tres picos em Londres, coincidiu para Manuel de Falia com a morte de sua mãe. Em Granada, onde o compositor refugiou-se, fez amizade com o poeta Federico Garcia Lorca e voltou a dedicar-se ao trabalho. As últimas produções de inspiração espanhola de Manuel de Falia foram El retablo de Pedro [O retábulo de
Turina e Rodrigo O itinerário do jovem Joaquin Turina (1882-1949) foi curiosamente semelhante ao de Manuel de Falla. Andaluz como este, começou seus estudos em Madri, antes de ir aperfeiçoar sua formação musical com Vincent d'Indy, em Paris. Também Turina reverenciava as obras de Albeniz e de Debussy. Professor, regente da orquestra do Teatro Real de Madri e pianista, Turina, em suas composições, inspirou-se nos cantos populares andaluzes, tanto no que se refere às obras para piano — Danzas gitanas [Danças ciganas] — quanto às peças destinadas à orquestra — Rapsódia sinfônica para piano e orquestra —, ao teatro ou aos conjuntos musicais de câmara — La oración del torero [A oração do toureiro], quarteto para cordas. Joaquin Rodrigo, nascido em 1902, aluno de Paul Dukas, parece ter sido um daqueles compositores de uma única obra, tão célebre tornou-se o seu Concierto de Aranjuez, paia violão e orquestra, composto em 1939. Na realidade, Rodrigo escreveu várias outras obras: elegantes canções, mas principalmente concertos para diversos instrumentos, revelando especial predileção pelo violão.
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A situação da música inglesa no século XIX apresenta um aspecto paradoxal. A Inglaterra foi, na verdade, um dos países em que a "civilização do concerto" desenvolveu-se mais rapidamente, muitas vezes apoiada em um real desejo de permitir que as camadas desfavorecidas da população tivessem acesso à cultura musical. Mas tal vontade de organização da sociedade não se pôde basear em uma produção musical comparável àquela quefloresciana maior parte dos países do continente. As obras de Charles Hubert Parry (1848-1918) ou de Charles Villiers Stanford (1852-1924) não deixam de ter qualidades; não podem ser comparadas, todavia, com a de um Brahms, de um Grieg ou mesmo de um Saint-Saëns. Desse modo, as manifestações do romantismo musical que agitou toda a Europa se desenvolveram na Inglaterra em torno dos compositores estrangeiros. Seria preciso lembrar o sucesso que encontraram ali compositores como Weber, Mendelssohn ou Berlioz, que receberam por vezes no além-Mancha os aplausos que lhes eram recusados em seus países de origem. O gosto pelo oratorio, herança dos tempos de Haendel, explica por que a Inglaterra acolheu tão bem a novidade de Elijah [Elias] de Mendelssohn, da Rédemption [Redenção] de Gounod e da Santa Ludmilla de Dvorak. De maneira curiosa, foi no domínio da opereta que Londres demonstrou sua maior potência criadora, com as fantasias de Gilbert e Sullivan. Também é preciso notar que o encanto dessas obras resulta tanto dos libretos de W. S. Gilbert quanto da música de Arthur Sullivan. Os primeiros concertos populares de Londres foram criados em 1838 por um francês, Louis Jullien, que havia sido obrigado a fugir de Paris por causa de dívidas. Em Manchester, uma iniciativa do mesmo tipo foi obra do regente alemão
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Charles Hallé. Inúmeras instituições semelhantes surgiram durante os anos 1840-1860. Algumas delas experimentaram grande expansão. Os Concertos Jullien, mais tarde chamados Promenade concerts (com maior familiaridade, Proms), passaram a ser dirigidos a partir de 1895 por Henry Wood, sucedido por Malcolm Sargent em 1944. Atualmente, sob a égide da BBC, são uma das instituições mais ativas da vida musical londrina. Regentes ilustres asseguraram desde sempre a excelência da direção musical dos Promenade concerts, cujo repertório vai das grandes obras clássicas até a música contemporânea. A influência desse tipo de instituição e de inúmeras outras destinadas à formação de amadores a que elas deram origem foi um importante fator a contribuir para o renascimento musical por que passou a Inglaterra a partir dos últimos anos do reinado da rainha Vitória. *** O mais importante ator desse renascimento foi, sem dúvida, Edward Elgar (1857-1934). Egresso da pequena burguesia provinciana, instrumentista amador que nunca recebera qualquer formação regular, o jovem Elgar levou muito tempo para livrar-se do estigma de compositor dos domingos. Só em 1899 as Variations on an Original Theme [Variações sobre um tema original], ou Enigma Variations, foram apresentados por Hans Richter a um público entusiasmado. No ano seguinte (1900), um grande oratório composto sobre um poema de Newman, The Dream ofGerontius [O sonho de Gerontius], impôs-se à admiração geral, depois de uma primeira audição um tanto difícil. A partir dessa data, Elgar tornou-se o músico consagrado da época eduardiana. A orquestração de suas composições, rica ao ponto de ficar pesada, é üuminada por um sentido bastante correto da sonoridade individual dos instrumentos. As influências, a princípio contraditórias, de Brahms e de Wagner fazem-se sentir em obras cujo perfume, entretanto, permanece especificamente inglês. Só na aparência o brilho sem discrição dos metais da Ouverture Cockaigne, homenagem ao burburinho londrino, ou marchas como Pomp and Circunstance [Pompa e circunstância] opõem-se ao lirismo ultraromântico do Concerto para violino ou às duas sinfonias de Elgar. Um certo gosto pela descrição sentimental, a incapacidade de se expressar por elipses, a ausência de qualquer desconfiança com relação às grandes construções — tudo isso caracteriza o retrocesso da Inglaterra em relação ao movimento musical europeu. Por um descompasso no tempo, o estilo que lá se elaborava ia contra a corrente do que se fazia no continente na mesma época. A longa tradição de oratórios, que se ofuscara durante todo o século XIX, culminou, com Elgar, em The Dream ofGerontius, The Apostles [Os apóstolos, 1903], The Kingdom [O reino, 1905], grandes "máquinas" edificantes em que se acham algumas das páginas mais sinceramente emocionantes do compositor. O ritmo de produção de Elgar tornou-se bem mais lento
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depois da Primeira Guerra Mundial. O ano de 1918 foi o da composição do Quarteto para cordas, do Quinteto com piano e do Concerto para violoncelo. Essas três obras, sobre as quais desce o pano de um fim de vida eivado de infelicidades pessoais, deixam ouvir uma voz mais austera, carregada de ternura, despojada dos esplendores um tanto pesados de um século XIX que nunca acabava de morrer. Retomando finalmente uma sonoridade e uma sentimentalidade que pertenciam somente a ela, a música inglesa podia enfim deixar de lado o modelo alemão que durante tanto tampo lhe servira de tutor. Uma andorinha não faz verão. O talento de Elgar ter-lhe-ia facultado compor uma música britânica, diversa e liberta do grande movimento pós-romântico alemão. Mas nem por isso o problema estaria resolvido para todos os compositores ingleses, seus contemporâneos ou sucessores. Todos eles confrontaram-se com aquilo que poderíamos chamar de um problema de identidade. Não existia na história recente da música inglesa qualquer ponto de referência em que aqueles compositores pudessem amarrar o seu barco. O passado próximo remetia-os sempre a modelos alemães e, mais raramente,franceses.Na medida em que desejavam afirmar-se britânicos, era-lhes preciso ir buscar apoio muito longe na história, fazendo-os regressar a épocas em que houve uma música inglesa que ainda funcionava como tal, a época de Purcell ou a dos músicos elisabetanos. Na ausência de uma referência histórica, muitas vezes os compositores ingleses desviavam-se para a utilização de temas tomados de empréstimo ao folclore ou para a descrição das paisagens e dos humores da Inglaterra. Desse modo, a busca de uma identidade musical acabou fazendo de muitos compositores ingleses os campeões de uma identidade cultural, o que não deixou de os levar a encontrar conforto em uma tradição antiqüíssima — a utilização privilegiada do texto literário como sustentáculo da emoção musical —, da qual o desenvolvimento do oratório é apenas um epifenómeno. Cantar em inglês, e sobretudo em inglês antigo, haveria de ser para os ingleses a forma mais original de reatar laços com um passado longínquo demais para ser resgatado apenas pela música. Tal dificuldade de situar-se é particularmente sensível em Frederick Delius (1863-1934). Meio alemão, tendo iniciado sua carreira nos Estados Unidos, admirador a um só tempo de Grieg, de Debussy e de Wagner, Deliusfixou-seem 1897 na França, em Grez sur le Loing, lugar que praticamente nunca mais haveria de deixar. A obra de Delius compreende óperas e grandes composições vocais em que persiste um violento pessimismo nietzschiano. Mas Delius ficou mais conhecido como autor de pequenas peças orquestrais de caráter rural e descritivo, verdadeiras miniaturas impressionistas com harmonias de uma riqueza por vezes maneirista.
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Personalidade forte, capaz de violências, Ralph Vaughan Williams (1872-1957) assumiu sem maiores complexos as contradições da música britânica. Por meio de uma obra abundante e variada, participou de todas as brigas de seu tempo. Homem arraigado a seus próprios preconceitos, gastou enorme energia para favorecer a carreira de seus jovens contemporâneos, quando não julgava que as ações destes fossem nefastas. Consagrou uma parte de sua produção musical aos conjuntos amadores ou a instrumentos geralmente condenados ao esquecimento pela tradição da "grande" música: concerto para harmônica, suíte para flauta de bambu. Vaughan Williams, que não hesitara em freqüentar por alguns meses a escola de Ravel — que era, no entanto, mais novo que ele —, visitou todos os gêneros, da ópera à música de câmara. Seis óperas, nove sinfonias, concertos para violino, piano, oboé ou tuba são a sua contribuição às formas acadêmicas. Mas é entre as composições que fez para orquestra e vozes, solistas ou coro, que cumpre buscar os traços dominantes de uma obra marcada pela ambição de "fazer da arte a expressão de toda a vida de uma comunidade". Harmonista consciencioso, Vaughan Wilhams — que nisto se aproximava de um Honegger — não hesitou em colocar o seu saber e o seu savoir-faire a serviço dos acidentes da vida cotidiana. Contemporâneo e amigo de Vaughan Wilhams, Gustav Holst (1874-1934) deve sua celebridade à suíte sinfônica The Planets [Os planetas, 1914], bela demonstração de suas qualidades de qrquestrador. No entanto, a capacidade tão típica de Holst mesclar várias tradições aparece melhor em outros gêneros: em suas óperas e em certos poemas sinfônicos — lembrança de uma Inglaterra pré-Haendel, gosto por um vigor rural, cujos temas ele tomava emprestado de Thomas Hardy, e uma paixão completamente pessoal pela mística indiana. À mesma geração de Vaughan Wilhams e de Holst perteceram alguns músicos cujas obras são raramente executadas, a despeito de sua evidente qualidade. Frank Bridge (1879-1941) e John Ireland (1879-1962), ambos especialistas em música de câmara, dividem o mérito de terem favorecido os primeiros passos musicais do jovem Benjamin Britten. Embora inglês de origem, Arnold Bax (1883-1953) foi buscar nas paisagens da Irlanda o melhor de sua inspiração, enquanto o irlandês (do Norte) Hamilton Harty aproxima-se de Vaughan Williams, tendo se tornado conhecido por algumas adaptações barulhentas e triunfalistas da obra de Haendel. A despeito do aspecto um tanto esmagador da personalidade de Vaughan Wilhams, a Inglaterra de entreguerras escapou ao risco de um neo-academicismo que se via despontar nas composições daquele que se impôs como o grande legislador da vida musical. A música serial ganhou pouco espaço na Inglaterra. No entanto, é preciso mencionar o nome de Roberto Gerhard (1896-1970), compositor espanhol a quem a Universidade de Cambridge ofereceu hospitalidade quando ele foi
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obrigado a fugir de seu país. Elisabeth Lutyens (1906-1983) foi a primeira musicista britânica a adotar, sem compromissos, a m^ciplina do dodecafonismo. Quanto aos outros, voltaram-se para o passado, de modo a escapar ao peso de um ambiente musical em que ainda triunfava o século XLX. A referência a Brahms e a Wagner cedeu lugar a uma simpatia aberta em relação às técnicas de Debussy, Ravel e do Stravinski neoclássico. Ernest Moeran (1894-1950) e Peter Warlock (1894-1930) voltaram-se para a música elisabetana, enquanto a obra bastante rara de Ivor Gurney (1890-1937) foi manifestamente inspirada pela de Schubert. Adivinha-se Erik Satie por trás das três marchas fúnebres de Lord Berners (1883-1950), compostas para um estadista, para uma tia rica e para urri canário. Mas, que importa isso, se elas faziam a alegria de uma certa vanguarda londrina que aplaudiu Berners, assim como seus émulos parisienses haviam encorajado o Milhaud do Boeuf sur le toit [Boi sobre o telhado] ? O talento fervia entre os músicos ainda jovens que não se podiam impedir de lançar olhares com o canto do olho para um Stravinski que hesitava entre Paris e Nova York. Pelo menos dois deles fizeram uma entrada bastante notável na cena musical. Constant Lambert (1905-1951) compôs em 1926 um Romeo and Juliet [Romeu e Julieta] para Diaghilev. O humor de vanguarda e o neoclassicismo mesclavam-se nessa obra com extrema felicidade. Em seguida, Lambert iria acrescentar um novo componente à sua palheta cultural: o jazz, que ele conheceu ao orquestrar Duke Ellington. Esse compositor chegou a manter uma divertida independência ao longo de sua carreira, cujo sucesso jamais haveria de declinar. Já em 1922 William Walton (1902-1983) fez-se ouvir com insolência na parada musical com textos de Edith Sitwel. Mas logo o sucesso oficial iria pegá-lo. Um grande oratório dramático, Belshazzars Feast [O festim de Baltazar], marcou desde 1934 um retorno às sendas conhecidas. As obras de um Walton que envelhecia fizeram dele o perfeito herdeiro de uma tradição elgariana que havia perdido sua causticidade. Arthus Bliss (1891-1975), Lennox Berkeley (nascido em 1903), Edmund Rubbra (nascido em 1901) acompanharam-no nesse percurso, com incontestável elegância. Mais original, Gerald Finzi (1901-1956) deu provas, em seus ciclos de canções, de uma sensibilidade exacerbada e de uma inteligência que o aproximam de Hugo Wolf. Essa extrema plasticidade da música inglesa não é um sinal de fraqueza. Separados da tradição continental pela história, os compositores de talento procuravam sua própria via e iam buscar sua herança onde era possível. Os medíocres fracassaram nesse propósito, enquanto os melhores ganharam com isso uma liberdade e uma originalidade que os torna dificilmente catalogáveis. Da aparente confusão que parece dominar a Inglaterra da década de 1930 sairiam personalidades tão marcantes e também tão independentes de influências externas como Britten e Tippett.
DÉCIMA PARTE
A PRIMEIRA METADE DO SÉCULO XX
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ERIK SATIE, O "GRUPO DOS SEIS"
Erik Satie Erik Satie (1866-1925) foi uma figura solitária. Na contramão das tendências estéticas do final do século XLX, que levavam os compositores à elaboração de vastas sinfonias (Franck, d'Indy, Saint-Saëns) ou a uma pesquisa sutil no domínio dos sons (Fauré, Debussy, Ravel), a música de Satie cultivou o despojamento até o ascetismo. No entanto, Satie esteve integrado à sua época, no sentido de que compartilhava todas as inclinações filosóficas desta: era "gótico", adepto da Rosacruz, na esteira de Péladan; depois, insatisfeito, fundou sua própria seita, "a Igreja Metropolitana de Arte e Jesus como Guia", que teve o defeito de não recrutar mais que um só e único adepto, ele mesmo! Era antiwagneriano no momento adequado e dadaísta avant la lettre. Depois de fazer seus estudos de piano no Conservatório de Paris, Erik Satie tornou-se "um jovem razoavelmente passável". Logo vamos encontrá-lo em Montmartre, onde, como segundo pianista do cabaré Le Chat Noir, pôde aproximar-se de Alphonse Allais, que não tardou a apelidá-lo de "Esotérik" Satie... No Auberge du Clou, outro cabaré em que também tocou piano, ficou conhecendo Debussy, com quem travou longa amizade. Já então Satie compunha peças curtas para piano, impregnadas do estilo do cantochão medieval, nas quais há predominância do elemento vertical — os acordes — sobre a melodia e cujos títulos extravagantes mascaram a modéstia: Ogives (1886), Sarabandes (1887), Gymnopédies (1888) — Debussy orquestrou a primeira e a terceira da série — e as Gnossiennes (1890-1891).
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Décima parte: a primeira metade do século XX
Em 1898, Satie resolveu mudar de vida e retirou-se para o que chamava de "antro de Nossa Senhora da baixeza", um quarto miserável em Arcueil. Mais tarde, aos 36 anos, aquele inquieto, que se escondia por trás de um cinismo galhofeiro, decidiu retomar seus estudos musicais partindo da estaca zero e, com talfim,inscreveu-se na Schola Cantorum. Deixou-a gloriosamente três anos mais tarde, munido de um diploma de contraponto! Sob a carcaça de aluno consciencioso, entretanto, despertava de vez em quando o indivíduo subversivo que compôs os Trois morceaux en forme de poire [Três peças em forma de pêra, de 1903]: "Meus corais igualam os de Bach, com a diferença de que são menos numerosos e menos pretensiosos." Em 1911, Ravel revelou ao público da Société Internationale de Musique (SIM) algumas obras de Satie. Era o começo da fama... Satie passou a compor frenéticamente, escrevendo cerca de sessenta peças para piano ao longo de três anos e dando início, nesse período, à sua fase "humorística": Préludes flasques pour un chien [Prelúdios flácidos para um cão], Embryons desséchés [Embriões ressecados], Trois chapitres tournés en tous sens [Três capítulos virados em todos os sentidos] e — ingratidão suprema — Trois valses distinguées du précieux dégoûté [Três distintas valsas do precioso enfadado], uma réplica maldosa das Valses nobles et sentimentales [Valsas nobres e sentimentais] de Ravel, de quem, por sinal, Satie disse certa vez: "Ele pode recusar a Légion d'Honneur, mas toda a sua música a aceita." Satie criou uma técnica de composição bastante especial, que teve origem em sua mania de classificações: primeiro ele estabelecia um catálogo dos encadeamentos de acordes que podem ser encontrados em diversas obras e depois extraía as melodias de escalas derivadas dos modos gregos. Em 1914, Satie compôs uma obra formada por vinte "instantâneos musicais", Sports et divertissements [Esportes e divertimentos] : o desenho realizado pela disposição das notas sobre a pauta completa os comentários verbais com que Satie se comprazia em ornamentar as margens de suas partituras. Esse precursor genial havia descoberto o espírito dos Calligrammes [Caligramas] que Apollinaire haveria de escrever em 1918. O balé Parade foi o fruto do encontro de Satie com Cocteau, que concebeu o argumento para os Ballets Russes e o montou em colaboração com Picasso e com o coreógrafo Massine ( 1917). A partitura musical — essencialmente rítmica, onde desfilam, em fragmentos, melodías, temas de danças, refrões que estavam na moda e ragtimes — acrescentam-se os ruidos de uma roda da fortuna girando, de uma sirene e de uma máquina de escrever. O escândalo provocado pela primeira representação consagrou finalmente o nome de Satie. No momento de redigir o programa para o espetáculo nasceu, da péna de Apollinaire, o termo "surrealismo", por ele grafado "sur-réalisme". 1
Condecoração distribuída pelo Estado francês a notáveis que se distinguem em diversos campos. Traduz um reconhecimento oficial pelo establishment, portanto, sua aceitação pelo condecorado significa, de modo geral, uma manifestação pública de conformismo e adesão. (N. T.)
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Erik Satie, o "Grupo dos Seis"
Por encomenda da princesa de Polignac, que lhe deixou inteira liberdade quanto à escolha do tema e da forma, Satie compôs em 1920 Socrate [Sócrates], mélodie paia. quatro personagens e acompanhamento instrumental. Escolheu como texto três dos Diálogos de Platão, que "se revela um colaborador perfeito, muito gentil e jamais importuno". O resultado é uma obra-prima. Foi também nessa ocasião que Satie fez uma experiência, junto com o jovem Darius Milhaud, de "musique d'ameublement" (música para preencher espaços), pondo no centro de uma galeria de artes plásticas um conjunto instrumental que tocava pequenas frases melódicas repetitivamente, sempre as mesmas e sem pausas. O auge do espanto do público parisiense registrou-se, no entanto, quando os Ballets Suédois apresentaram Relâche [Folga], em 1924, produto da colaboração Picabia-Satie: "balé instantaneísta", que aproveitava uma partitura escrita para Entracte [Entreato], filme mudo de René Clair. A obra de Satie é desconcertante — chega à plena provocação — com suas linhas e seus ritmos simples, seus encadeamentos harmônicos inesperados, a extrema originalidade de sua linguagem que escapa a uma análise tradicional, o que punha em fúria certos "profissionais" de seu tempo. Mas tem grande importância histórica, situando-se no cruzamento de diversos caminhos estéticos e indicando um itinerário possível para o século XX: o "Grupo dos Seis" fez desse compositor anticonvencional seu padrinho espiritual. Até o próprio John Cage reconhece em Erik Satie o iniciador de uma arte nova: arte que se recusa a ser levada a sério, arte d'ameublement, irredutível a qualquer influência — e referência — cultural. "A ESCOLA DE ARCUEIL" No fim da vida, Satie cercou-se de um grupo de jovens discípulos que se designavam, eles próprios, pelo nome de "Escola de Arcueil": Henri Cliquet-Pleyel, Roger Désormière, Maxime Jacob — dom Clément Jacob, na vida religiosa — e Henri Sauguet. Nenhuma declaração estética os congregava, apenas sua admiração pela sobriedade e simplicidade de expressão do "mestre de Arcueil". Henri Sauguet (nascido em 1901) fez seu batismo de fogo, como compositor, no teatro, em 1924, com uma ópera bufa intitulada Le Plumet du colonel [O penacho do coronel]. Em 1927, seu segundo balé, La Chatte [A gata] — uma encomenda de Diaghilev—, foi estreado pelos Ballets Russes em Monte-Carlo. Essa vocação cênica afirmar-se-ia em seguida, pois a maior parte da produção de Sauguet — marcada por uma espontaneidade poética que ele deve em grande parte a Satie — veio a ser destinada ao teatro. Mas nem as óperas que vieram depois — La Chartreuse de Parme [A cartuxa de Parma], ou Les Caprices de Marianne [Os caprichos de Mariana] —, nem o célebre balé Forains [Os artistas de feira] justificam que esqueçamos as mélodies com poemas de Rilke, Heine, Baudelaire, Mallarmé, os quartetos de corda ou a Mélodie concertante [Melodia concertante] para violoncelo e orquestra de Henri Sauguet. :
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De Roger Désormière (1898-1963), recordamos sobretudo a figura generosa do regente de orquestra inteiramente devotado à música de seus contemporâneos e, em especial, à dos compositoresfranceses.Foi ele quem regeu a orquestra nas apresentações da companhia dos Ballets Russes em 1925, a orquestra da Opéra Comique a partir de 1937 e, mais tarde, em 1945, nos espetáculos de balé na Ópera de Paris. Esteve à frente de diversas primeiras audições: Mort du tyran [Morte do t i rano] de Milhaud, Animaux modèles [Animais-modelo] de Poulenc, a Sinfonia n° 1 de Dutilleux e Le Soleil des eaux [O sol das águas] de Pierre Boulez. O "Grupo dos Seis" Cocteau serviu de traço de união entre Satie e o "Grupo dos Seis". O grupo foi assim batizado por um jornalista, numa alusão aos russos do "Grupo dos Cinco", em janeiro de 1920, depois de um concerto em que figuravam obras de Louis Durey (1888-1979), Arthur Honegger (1892-1955), Darius Milhaud (1892-1974), Germaine Tailleferre (1892-1983), Francis Poulenc (1899-1963) e Georges Auric (1899-1983). Reunidos de início pela amizade, esses compositores passaram a identificar-se, em seguida (por pouco tempo, é verdade), com a estética preconizada pelo texto de Cocteau, Le Coq et l'arlequin [O galo e o arlequim], no qual são condenados a arte alemã — com exceção de Bach —, o romantismo e até mesmo Debussy, em proveito da expressão bruta de um Satie ou de um Stravinski, e de uma ironia que solapa qualquer tentativa de grandiloqüência ou de seriedade. Tal proscrição do lirismo levou esses compositores a se valerem de textos prosaicos, reflexos do cotidiano: Les Machines agricoles [As máquinas agrícolas] de Milhaud é um exemplo disso. Além do mais, esses adeptos do café-concerto, que gostavam de reunir-se no cabaré Boeuf sur le Toit em torno do pianista Jean Wiener e na companhia de Cocteau e de Biaise Cendrars, introduziram a pitoresca música do "caf-conc"' em algumas de suas obras. A única obra coletiva dos "Seis" (de que não participou apenas Louis Durey) é a colaboração em Les Mariés de la Tour Eiffel [Os noivos da Torre Eiffel], de Cocteau, em 1921. Pouco depois, cáda um tratou de ir buscar um caminho independente, sem que se rompessem os laços da amizade comum. Três dentre eles — Milhaud, Honegger e Poulenc — afirmaram-se no cenário da música francesa e internacional por sua notável originalidade criadora.
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[A lareira do rei Renato]. As aspirações espirituais do compositor exerceram importante impacto sobre sua obra: por exemplo, quando Milhaud transcreve melodias folclóricas judaicas para delas fazer emocionantes Chants populaires hébraïques [Cantos populares hebraicos]. Uma viagem que fez ao Brasil em companhia de Paul Claudel, de quem Milhaud foi por algum tempo secretário, enriqueceu sua obra de uma matéria musical nova (Saudades do Brasil, paia piano). Essa sua colaboração com Claudel estimulou-o a escrever para o teatro (Christophe Colomb, em 1928), o mesmo resultando de sua amizade por Superviene (Bolivar, em 1943). Campeão da politonafidade, Milhaud levou essa técnica ao extremo em sua música de câmara, que inclui nada menos que dezoito quartetos para cordas, sonatas para diversas formações instrumentais, trios, quintetos, um sexteto, um septeto e um octeto. A origem dessa busca no caminho de uma linguagem politonal pode ser encontrada nos ensinamentos de Koechfin, cujo Tratado de harmonia foi estudado atentamente por Milhaud, que fez em seguida uma análise sistemática das combinações obtidas superpondo melodias de tonalidades diferentes e analisando as harmonias resultantes de tais superposições. Milhaud esclarecia — e isso é fundamental — que essa politonalidade deve sempre ser submetida ao "julgamento do ouvido". A obra sinfônica de Milhaud é, ela também, enorme: doze sinfonias para grande orquestra e seis sinfonias para orquestra de câmara, numerosos concertos para diversos instrumentos e algumas obras de "gênero". Mas é em sua obra cênica — teatro e balé — que Milhaud se mostra mais feliz na expressão do lirismo que deve à sua dupla origem. Ao lado de numerosas mélodies e de muitas cantatas, deixou um bom número de músicas para teatro, como Les Choéphores [As coéforas], com seus famosos coros falados, e para balé: L'Homme et son désir [O homem e seu desejo], de que nos fica na lembrança a orquestra de percussão; Le Boeuf sur le toit [O boi no telhado] e seus ritmos brasileños; La Création du monde [A criação do mundo], com os empréstimos tomados ao jazz, como era de se esperar tratandose de um argumento "negro" proposto por Blaise Cendrars. Quanto a suas óperas propriamente ditas, servem-se em geral dos "grandes temas" mitológicos — Les Euménides [As Eumênides], Les Malheurs d'Orphée [As desventuras de Orfeu], Médée [Medéia] — ou históricos, como os da trilogia sul-americana: Christophe Colomb, Maximilien e Bolivar. ARTHUR HONEGGER
DARIUS MILHAUD A obra prolífica de Darius Milhaud — mais de quatrocentos números de opus — está marcada por seu temperamento.mediterrâneo. Milhaud transpôs com virtuosismo certos elementos do folclore para a Suite provençale [Suíte provençal], para orquestra, ou para o quinteto para sopros intitulado La Cheminée du roi René
Nascido na cidade francesa de Havre, de pais suíços, Arthur Honegger foi criado num meio exposto às influências do romantismo alemão e do rigor protestante. Mas, como a educação francesa veio temperar a influência germânica, Honegger haveria de mostrar-se tão sensível às seduções das harmonias debussyistas ou fauréanas quanto à força dos monumentos wagnerianos. O "germanismo" de Ho-
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negger manifestou-se na dimensão de algumas de suas obras, bem como numa certa gravidade que o afasta do espírito de Satie. Como Milhaud, Arthur Honegger é um compositor fecundo. Como Milhaud, igualmente, suas mais belas realizações pertencem ao domínio da música lírica. Desde sua primeira apresentação, em 1924, o oratório Le Roi David [O rei Davi], afresco bíblico em 28 episódios, de estilo muito livre, foi acolhido triunfalmente pelo público. Outras obras dramáticas sucederam-no: Judith, em 1926 e Antigone [Antígona], em 1927 (com texto de Cocteau), mas foi preciso esperar pela montagem de Jeanne D'Arc au bûcher [Joana d'Arc na fogueira], com texto de Paul Claudel, em 1935, para repetir-se o sucesso de público que fora Le Roi David. A produção sinfômca maciça de Honegger liga-se à tradição romântica, o que logo o desvinculou dos "Seis". Pacific 231, obra descritiva que lhe valeu, ela também, um franco e duradouro sucesso, é todavia bem menos interessante do que a Sinfonia n° 2 para cordas, a Sinfonia n" 3 "Litúrgica" ou a Sinfonia n 5 dita Di tre re, nas quais se expressa a angústia do criador. Forçado por necessidades materiais a compor muitas músicas para o cinema — Napoléon de Abel Gance, Mayerling, etc. —, Honegger interrogou-se longamente sobre a situação de compositor: "Nossos contemporâneos sempre precisarão de quem lhes venda talharim ou sabão. Não têm a menor necessidade de músicas novas." Apesar do tom peremptório dessa declaração, aquele que se definia como "o Beethoven dos pobres" empenhou-se em alcançar um grande público: a
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A música deve mudar de caráter, deve tornar-se reta, simples, de grande alcance; o povo está pouco ligando para a técnica, para as filigranas. Tentei realizar essa mudança em Jeanne au bûcher. Esforcei-me por ser acessível ao homem da rua, sem deixar de interessar ao músico.
FRANCIS POULENC
Francis Poulenc começou sua carreira muito jovem fazendo executar sua Rhapsodie nègre [Rapsódia negra] no teatro do Vieux-Colombier. Na época, ele ostentava um espírito provocador, mauvais garçon, que seduzia muito... Pouco depois, compôs os Mouvements perpétuels [Movimentos perpétuos] para piano, cuja ironia muito deve a Satie. Nada se encontrará de revolucionário nas obras de Poulenc, mas sempre muito espírito: Le Bestiaire [O bestiário], ciclo de mélodies com poemas de Apollinaire; um balé, Les Biches [As corças], encomenda de Diaghilev; mais tarde, o humor e a delicadeza de Animaux modèles [Animáis-modelo], balé inspirado em La Fontaine, fizeram grande sucesso na Ópera de Paris.
"Dos três rés" porque cada movimento se baseia na nota ré. (N. T.)
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Poulenc voltou a Apollinaire em 1944 com uma obra-prima bufa, de verve surrealista, Les Mamelles de Tirésias [As mamas de Tirésias], pouco depois de haver composto uma pungente cantata para duplo coro, Figure humaine [Figura humana], com texto de Paul Éluard. A propósito, note-se que Poulenc brilhou, durante toda a vida, no domínio da música vocal, e, mais particularmente, da mélodie acompanhada ao piano. Na linhagem de Debussy e de Fauré, perpetuou assim uma tradição de sobriedade e "bom gosto" que é própria à melodia francesa. Poulenc sabia escolher para suas obras vocais os melhores textos de todas as épocas: além de Apollinaire e de Éluard, trabalhou com contemporâneos seus, como Max Jacob, Pierre Reverdy, Colette, Louise de Vilmorin, Louis Aragon, Robert Desnos, mas também com belos textos antigos de Malherbe, Charles d'Orléans, Ronsard, etc. A música vocal não impediu Poulenc de compor numerosas peças sinfômcas, das quais o Concert champêtre [Concerto campestre] para cravo e orquestra e o Concerto para dois pianos estão entre as mais conhecidas. Em 1936, Poulenc escreveu sua primeira obra religiosa: Les Litanies à la Vierge Noire [As htanias da Virgem Negra]. Mas foi a partir da década de 1950 que se afirmou a forte convicção de sua fé católica, de que dão testemunho obras religiosas de um caráter muito mais interiorizado: o Stabat Mater, em primeiro lugar; mais tarde, o Gloria; e sobretudo, no intervalo entre os dois, sua ópera baseada na obra de Bernanos, Dialogues des carmélites [Diálogos das carmelitas], terminada em 1956. No mesmo estilo, se bem que com tema profano, escreveu em 1959, para a cantora Denise Duval, La Voix humaine [A voz humana], com texto de Cocteau. Brimante pianista, Poulenc produziu muito para seu instrumento. No entanto, escrever para o piano não era a sua atividade musical preferida. Argumentava que, em sua obra pianística, composta diretamente no teclado, tendia a ceder à facilidade e que seu pensamento musical perdia em liberdade e originalidade. Não é difícil ver refletido em seu Concerto para piano, de 1949, o duplo aspecto de sua personalidade, a que os contemporâneos se referiam quando falavam dele, que era "meio monge, meio libertino". A "Escola de Paris" Contemporâneos dos compositores que formavam o Grupo dos Seis e a Escola de Arcueil, muitos artistas de origem estrangeira elegeram domicílio em Paris no princípio do século. É o caso de um aluno de Vincent d'Indy, Marcel Mihalovici, nascido na Romênia em 1898, que, em 1928, organizou com alguns amigos que haviam emigrado para a França um concerto que reunia obras de todos eles. Foi nessa ocasião que os jornalistas encarregados da crítica musical escolheram, para designá-los, o termo "Escola de Paris". Mihalovici conservou de suas origens romenas o gosto pelos modos e ritmos folclóricos de seu país, matizando essa influência com o uso do cromatismo. A obra
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de Mihalovici, de consideráveis dimensões, destina-se tanto ao palco — as óperas: Phèdre [Fedra], La Dernière bande [O último bando, com texto de Samuel Beckett] — como à orquestra — Sinfonia giocosa, Toccata pour piano et orchestre, Symphonie pour le temps présent [Sinfonia para o tempo presente] — ou aos conjuntos de câmara: quartetos, sonatas etc. Nos anos 20, Alexandre Tansman, nascido na Polônia em 1897, desenvolveu suas atividades musicais ao lado de Ravel, Roussel e do Grupo dos Seis. A música de Tansman, influenciada de inicio pela de Ravel, tomou, após uma longa permanência do compositor nos Estados Unidos, a direção indicada por seu novo amigo Igor Stravinski: balés — La Grande ville [A grande cidade], Bric à brac; óperas — Le Serment [O juramento], oito sinfonias e algumas obras de gênero como a Rhapsodie polonaise [Rapsódia polonesa]. Nicolai Tcherepnin instalou-se em 1921 em Paris, onde se tornou diretor do Conservatório Russo fundado por músicos imigrantes. Trouxe com ele seu filho, Alexandre (1899-1977), que começava então uma brilhante carreira de pianista. Alexandre Tcherepnin ligou-se à "Escola de Paris" e sua primeira sinfonia estreou com grande estardalhaço em 1927. Suas turnês levaram-no aos Estados Unidos, onde ele se instalou em 1948. Inventor de uma escala — o que logo nos traz ao pensamento os "modos de transposições limitadas" de Olivier Messiaen —, sua música permanece marcada pelas origens russas e pela influência dos folclores do Extremo Oriente a ele revelados por sua esposa, uma pianista chinesa. Compôs três concertos para piano, música para balés e obras de música de câmara. A Escola de Paris colheu também em suas redes o tcheco Bohuslav Martinu e os húngaros Tibor Harsanyi e Lazlo Lajtha (1892-1963) — este último aluno de Vincent d'Indy e etnomusicólogo conceituado, autor de sete sinfonias, madrigais, música religiosa, balés, música de câmara, etc. Os independentes Paralelamente a essas três "escolas" parisienses, certos compositores franceses persistiam no caminho da independência. Foi o caso de Jacques Ibert (1890-1962), durante muito tempo diretor da Villa Médicis em Roma, cuja obra inscreve-se numa certa tradição de elegância e de charme própria da música francesa. Autor de obras líricas de caráter ligeiro, como a ópera bufa Angélique, a ópera cômica intitulada Le Roi d'Yvetot [O rei de Yvetot], de música de cena para produções teatrais e cinematográficas, Ibert também se interessou pelo balé — Diane de Poitiers, Le Chevalier errant [O cavaleiro errante] —, assim como pela música de câmara e para orquestra — Symphonie concertante pour hautbois et orchestre à cordes [Sinfonia concertante para oboé e orquestra de cordas] e Escales [Escalas].
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A obra de Georges Migot, nascido em 1891, caracteriza-se, ao contrário, por uma certa severidade, resultante da atração que certas disciplinas esotéricas exercem sobre o autor: Saint Germain VAuxerrois (oratorio), Requiem. Manuel Rosenthal, nascido em 1904 e mais conhecido internacionalmente como regente de orquestra, ensinou no Conservatório de Paris e compôs obras religiosas, peças para orquestra, óperas — Hop Signor— e óperas bufas — La Poule noire [A galinha preta]. Nascido em 1896, Jean Rivier ensinou composição no Conservatório de Paris e sua música, de caráter mais expressionista e mais maciço do que a dos compositores antes mencionados, aproxima-o de Honegger. Compôs sete sinfonias, diversos concertos e obras para orquestra, como a Ouverture pour un drame [Abertura para um drama], e para conjuntos de câmara, bem como mélodies. Maurice Duruflé, nascido em 1903, foi organista. Além das peças que compôs para seu instrumento, destacam-se em sua obra o Requiem, de espírito fauréano mas de estilo muito pessoal, a Messe cum jubilo [Missa com júbilo] e Trois danses pour orchestre [Três danças para orquestra]. Lily Boulanger (1893-1918), que infelizmente morreu muito jovem, deixou, entre outras obras, Trois psaumes [Três salmos], cuja escrita é pessoal e muito forte. Sua irmã, Nadia Boulanger (1887-1979) desempenhou até o fim da vida um papel de primeiro plano no mundo musical, com sua atuação pedagógica que atraiu dezenas de jovens músicos vindos do mundo inteiro. Henry Barraud, nascido no ano de 1900, em Bordeaux como Henri Sauguet, foi aluno de Paul Dukas e de Louis Albert. Muito receptivo para a literatura, inspirouse em boas fontes para suas composições: Robert Desnos, para as Huit Chantefables pour les enfants sages [Oito "cantofábulas" para os meninos obedientes], de 1946; Charles Péguy, para Le Mystère des saints innocents [O mistério dos santos inocentes], também de 1946; Arthur Rimbaud, para Une Saison en enfer [Uma temporada no inferno], de 1969; e, mais recentemente ainda, Paul Claudel, para uma ópera tirada de Tête d'or [Cabeça de ouro], cuja primeira audição a rádio da França apresentou em versão de concerto em 1985.0 mesmo espírito de abertura e curiosidade manifestou-se sempre, de sua parte, em relação aos compositores contemporâneos. Dadas as funções sucessivas e importantes que assumiu por muito tempo na direção da Rádio e Televisão Francesa entre 1944 e 1966, exerceu papel capital na difusão da música nova. É autor de uma obra de peso sobre Berlioz e de um pequeno tratado, Pour Comprendre les musiques d'aujourd'hui [Para compreender as músicas de hoje], publicado em 1968, em que realiza um verdadeiro trabalho de iniciador.
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JANÁCEK, MARTINU, KODÁLY: A EUROPA CENTRAL
Leos Janácek Na Tchecoslováquia, o compositor Leos Janácek (1854-1928) emerge como a figura mais original da música tcheca depois de Smetana e Dvorák. Muito antes de Bartók, e sem que ninguém na época se interessasse pelo que estava fazendo, esse filho de um pobre mestre-escola rural recolheu os cantos populares da Morávia, à qual se sentia profundamente ligado, anotando não apenas as inflexões da linguagem humana como também todos os ruídos da natureza: cantos de pássaros, gritos de animais, bramido das cachoeiras. Essas pesquisas levaram-no a forjar uma linguagem rítmica e melódica inteiramente nova. Mais do que pelo folclore musical, Janácek interessava-se pela linguagem, analisando as entonações, as cadências, as inflexões, as "melodias da fala", do riso, das lágrimas: daí o caráter breve e nervoso de sua temática. Só de ouvir a fala das pessoas, sem se fixar especialmente no sentido de suas conversas, Janácek pretendia ser capaz de decifrar os pensamentos e a psicologia de cada uma delas. Janácek libertou-se do jugo da harmonia clássica estudando as obras do físico Helmholtz, que demonstrava como um acorde superpõe-se às ressonâncias do acorde precedente, formando então um "caos de sons": justificativa para que o compositor passasse a organizar as dissonâncias como bem entendia. Absorvido por suas pesquisas, pela direção da escola de órgão de Brno e pelo jornalismo, Janácek só atingiu a maturidade como compositor em 1903. Compôs então sua terceira ópera (escreveu dez), Jenufa, que teve de esperar até 1916 para
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tomar-se um grande sucesso em Praga. Janácek tinha o temperamento de um compositor dramático e seu talento expressou-se melhor nas obras líricas. As mais belas de suas criações datam dos dez últimos anos de sua vida: Katia Kabanová (1919¬ 1921); As aventuras da pequena raposa astuciosa, em que Janácek utilizou seu conhecimento da natureza combinando gritos de animais com vocábulos humanos (1924); O caso Macropoulos, ópera fantástica (1925); A casa dos mortos, baseada nas recordações de Dostoievski (1927-1928). Digna de menção é também a sua Missa glagolítica (1926) escrita em língua da hturgia eslava (búlgaro antigo) e num estilo musical áspero, severo, de grande originalidade, que não há como associar a qualquer influência, apesar de umas quantas reminiscências fugidias da linguagem de Mussorgski ou de Debussy. Compositor que desabrochou tardiamente, já septuagenário Janácek ainda transbordava de vitalidade criadora e de verdor amoroso, do que dão testemunho suas últimas obras-primas instrumentais: o Quarteto n°l (1923-1925), inspirado na Sonata Kreutzer de Tolstoi; um Sexteto (1924-1925) intitulado orgulhosamente Juventude; a Sinfonietta paia orquestra, com predominância originalíssima dos instrumentos de sopro (1926); finalmente, no próprio ano de sua morte (1928), o Quarteto n" 2, ardente de amor febril e que se intitula Cartas íntimas. Janácek não recorreu diretamente ao folclore em sua obra; a singularidade de sua linguagem deve-se sobretudo a uma assimilação total dos ritmos ou dos modos da música coral tcheca, sobre os quais trabalhou durante muito tempo, dos cantos religiosos aprendidos no convento de sua infância, daquela brisa cigana que perfuma sua terra e do muito que escutou instrumentos locais característicos pelos timbres inusitados. A música de Janácek não é nem um pouco tradicionalista, mas é, com toda a certeza, música de um patriota tcheco. Não foi por acaso que, após séculos de opressão, havendo a independência da Tchecoslováquia sido restaurada em 1918, os dez últimos anos em que explodiu o gênio de Janácek coincidiram com a primavera e com a renovação trazidas por essa independência. Bohuslav Marti nu A obra de Bohuslav Martinu (1890-1959) — mais conhecido na França, onde viveu durante muito tempo — está longe de ter aquele sabor cru de liberdade que encontramos na música de Janácek, já que o compositor teve seu estilo policiado pela freqüentação das escolas ocidentais. Esse aluno de Albert Roussel foi autor de uma obra imensa, que não possui menos de quatrocentas partituras: seis sinfonias, trinta concertos, setenta obras de música de câmara, quinze óperas, doze balés... Mas, ao contrário de seus confrades tchecos mais velhos — que, como ele, inspiraram-se nas fontes folclóricas —, Martinu atenua o sabor desse material combinando-o com um estilo mais ociden-
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tal, adquirido durante seus anos de aprendizagem na França e no contato com as obras que mais o comoveram: as de Debussy, de Dukas, depois as de Stravinski e as dos compositores do Grupo dos Seis. Martinu passou a maior parte de sua vida fora do torrão natal: em 1923 chegou a Paris para estudar com Albert Roussel; de 1941 a 1953 — expulso da Europa pela guerra —, instalou-se nos Estados Unidos. Finalmente, de volta à Europa, dividiu seu tempo, até morrer, entre a França, a Suíça e a Itália. A escolha dos temas de Martinu revela um espírito curioso, à caça da atualidade do mundo: o rondó Half-Time, por exemplo, é um verdadeiro afresco esportivo, com a música seguindo passo a passo o desenrolar de uma partida de futebol. La Bagarre [A desordem] relata a primeira travessia do Atlântico em avião. Les Vicissitudes de la vie [As vicissitudes da vida] destinava-se a ser objeto de uma "óperafilme"... La Passion grecque [A paixão grega] baseia-se no romance de Nikos Kazantzakis O Cristo recrucificado. Que não fique sem menção, neste panorama de uma obra inteiramente voltada para a sua época, La Journée de bonté [O dia de bondade], ópera bufa escrita para um pequeno conjunto instrumental, em que Martinu previu a amplificação dos timbres por um dispositivo eletrônico. Martinu apontou, ele próprio, as origens de sua linguagem musical: o folclore tcheco, a música francesa — em particular a de Debussy —, o madrigal elisabetano e o concerto grosso italiano. Alois Haba Entre os compositores da "tercena geração" tcheca, Alois Haba (1983-1973) ocupa uma posição especial, como um dos primeiros a promover a música microtonal. Concluídos seus estudos no Conservatório de Praga, Haba seguiu para Berlim, onde, por indicação de Busoni — um dos professores de Edgar Varèse —, fez cursos relacionados com a acústica e a música não européias. A partir de 1920, Alois Haba consagrou todo o seu tempo a um trabalho de pesquisa sobre as músicas em quartos de tom e obteve apoio do governo tchecoslovaco para que se fabricassem "sob medida" instrumentos capazes de executar suas obras. Adepto das teorias antroposóficas, Alois Haba passou a defender de forma ferrenha uma música inteiramente cromática, da qual excluiu o tematismo e na qual utilizava intervalos menores que os semitons: quartos e sextos de tom. Uma das obras mais representativas de sua estética é a ópera Die Mutter [A mãe], de 1931, em que a orquestra se compõe de instrumentos de cordas, clarinetas em quartos de tom, duas harpas afinadas com um quarto de tom de diferença uma da outra, trompetes em quartos de tom, trombones, um piano e um harmonio em quartos de tom.
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Décima pacte: a primeira metade do século XX
Zoltán Kodály Na Hungria, o compositor Zoltán Kodály (1882-1967) foi o companheiro de estrada de Bartók em suas pesquisas de etnomusicologia. Diga-se de passagem, Bartók considerava a obra desse seu amigo como a mais fiel expressão do espírito musical húngaro. Grande humanista, musicólogo fervoroso, proveniente de uma família de músicos que já se interessava pela música cigana, pedagogo sempre inventivo — é autor de um célebre método de iniciação ao canto coral para crianças pequenas —, jornalista e compositor, Zoltán Kodály teve papel determinante na orientação da música húngara de seu tempo. Deixou obras de música de câmara, entre as quais uma surpreendente Sonata para violoncelo solo em que os diferentes timbres do instrumento são explorados com muita habilidade; oratórios — o famoso Psalmus Hungaricus (1923) é um verdadeiro manifesto musical do nacionalismo húngaro —, obras sinfônicas como Noite de verão, Concerto para orquestra; obras cênicas (Hary Janos) e, sobretudo, uma imensa obra coral.
Karol Szymanowski e seus predecessores poloneses Depois da morte de Chopin ( 1849), a música polonesa já não brilhava na segunda metade do século XLX, apesar do talento de Stanislas Moniuszko (1819-1872), compositor de oito óperas, das quais a mais interessante é Halka (1858). Depois, surgiu uma figura mais prestigiosa do que genial, a de Ignacy Paderewski (1860¬ 1941), pianista de renome mundial, que foi o chefe do primeiro governo da Polônia ressuscitada em 1919, e depois novamente presidente do governo polonês no exílio, em 1939, mas cuja obra de compositor pouco acrescenta a seu renome. Bem mais interessante como criador foi Karol Szymanowski (1882-1937). Figura original e um pouco excêntrica, que aceitava sua relativa solidão a um só tempo com amargura e altivez, homossexual declarado — militante mesmo —, interessado com paixão na cultura árabe e iraniana, Szymanowski era um atormentado, cujas aspirações ao misticismo terminavam por predominar em frágeis sínteses mais esotéricas do que metafísicas. Depois de obras de juventude que denotam, como é normal, mais de uma influência, atingiu a maturidade artística por volta dos quarenta anos. Passou então a pesquisar o folclore de sua pátria e chegou mesmo a ser, por algum, tempo, diretor do Conservatório de Varsóvia, mas logo pediu demissão, vencido pelo desânimo em face do conservadorismo entranhado no corpo docente. Como Chopin, morreu de tuberculose, mal que o perseguiu durante quinze anos. O catálogo de suas composições é abundante em quase todos os gêneros, e a grande maioria delas resulta de pesquisas múltiplas e refinadas. Novos coloridos instrumentais são obtidos e, pelo emprego das escalas orientais, suas obras escapam o mais das vezes ao sistema tonai. Dignos de nota são sobretudo sua ópera
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Król Roger [O rei Roger, 1918-1924], cujo libreto escreveu em colaboração com o poeta Iwaszkiewicz, o balé Harnasie, em que trabalhou de 1923 a 1931, suas quatro sinfonias e, entre numerosas obras religiosas, o belíssimo Stabat Mater concluído em 1926. Georges Enescu Na Romênia, destaca-se a figura de Georges Enescu (1881-1955), regente, violinista, pianista e compositor, cuja ópera Œdipe [Édipo], estreada na Ópera de Paris em 1936, foi fruto de quinze anos de trabalho, e na qual se percebem ecos do folclore romeno. É também autor de duas Rapsódias romenas, de diversas obras para orquestra— sinfonias, suítes, poemas sinfônicos, aberturas — e de numerosas obras de música de câmara, entre as quais destaca-se nitidamente a Sonata para violino e piano n" 3 opus 25, moldada "no caráter popular romeno": já em 1926, Enescu trabalhava com motivos em quartos de tom. Eminente intérprete de Bach, esse duplo virtuose foi professor de violino de Yehudi Menuhin e de piano de Dino Lipatti!
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BELA BARTÓK (1881-1945)
Entre os compositores que, no princípio do século XX, buscaram regenerar sua linguagem imergindo-a nas fontes da música popular, Bartók é o único a tê-lo feito de maneira científica e não empírica. Alcançou em sua obra uma admirável integração dessas duas músicas, a "erudita" e a popular. O romantismo dos primeiros passos patrícios Bela Bartók nasceu em 1881 em Nagyszentmiklós, na Transilvânia (hoje em território romeno), uma região que fora sempre objeto de conflito. Tendo combatido em vão por sua independência durante séculos, primeiro contra os turcos, depois contra os austríacos, a Hungria ainda era palco de sérias disputas internas entre as diferentes etnias, agravadas pelos antagonismos sociais. A submissão de sua pátria aos Habsburgo revoltava o jovem Bartók, e disso dá testemunho sua primeira obra de importância, o poema sinfônico Kossuth, que põe em cena o herói da Revolução Húngara de 1848. O pai de Bartók, diretor de uma escola de agricultura, morreu prematuramente, deixando dois filhos para sua mulher, Paula, criar — Bela e a irmã Elza —, o que Paula fez com grande coragem e inteligência. Professora primária, inicialmente numa cidade pequena, depois em Presburg (Bratislava), Paula ministrava também cursos de piano. Bela, menino tranqüilo, de saúde delicada, era apaixonado por música. Durante um concerto beneficente, interpretou, aos onze anos de idade, sua primeira composição, inspirada numa aula de geografia: O curso do Daníi:
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bio. Nesta peça podem-se notar indícios da influência de Haydn, Mozart e Schumann, mas estão presentes também elementos tomados de empréstimo às czardas ciganas. Em Presburg, o adolescente fez camaradagem com outro jovem músico muito talentoso, Ernõ Dohnanyi (1877-1960), cujas obras para piano e música de câmara não são desprovidas de interesse e que exerceu uma ascendência profunda sobre Bela Bartók, desviando-o do Conservatório de Viena — onde acabava de ser admitido brilhantemente — para o de Budapeste. A base da formação musical na Hungria apoiava-se então no estudo do romantismo: "Aos dezoito anos, eu estava razoavelmente familiarizado com a música que vai de Bach a Brahms", escreveu Bartók em sua Autobiografia. Mas, desde então, a evolução de Bartók seguiria uma lenta curva orientada para a busca de uma autenticidade nacional. Em 1901, fascinado pela música de Liszt, de quem ele ensaiava a Sonata para piano, Bela Bartók tomou consciência das relações de seu genial predecessor com a cultura da Europa Oriental. No ano seguinte, o poema sinfônico Also sprach Zarathustra [Assim falava Zaratustra], de Richard Strauss, atingiu-o "como uma paixão avassaladora". Dessa conjunção nasceu Kossuth em 1903: "Quero servir a uma só causa — a do bem da nação e da pátria húngara." Entretanto, até 1905, Bartók conheceu da música húngara apenas um aspecto desfigurado; na verdade, o que habitualmente se chama de música cigana (tzigane) não passa de uma corrupção do autêntico folclore húngaro. A virada estética Outra evolução marca esse momento da vida de Bartók, uma evolução que ele jamais renegaria: Bartók passou a recusar toda e qualquer crença religiosa. Justificou-se categoricamente a esse respeito escrevendo a uma amiga em 1907: É espantoso que a Bíblia diga que Deus criou o homem. Se foi justamente o contrário! N ã o foi Deus quem criou o homem à sua imagem e semelhança, mas o homem quem criou Deus à sua imagem e semelhança. Por que encher com mentiras os cérebros de tantos m i l h õ e s de pessoas? Para que a maioria se deixe convencer por elas até a hora de sua morte e que a minoria se liberte para u m combate que poderia ter sido evitado! (...) Quando completei 23 anos, era u m homem novo — u m ateu.
** * De volta de uma viagem a Paris, onde participou sem sucesso de um concurso Rubinstein, Bartók descobriu de repente o sabor e a riqueza das verdadeiras canções populares húngaras. Pleiteou uma bolsa que lhe facultou recursos para recolher essas canções "em sua própria fonte" e partiu para anotá-las em companhia de
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seu amigo Zoltán Kodály. A coletânea de Canções populares húngaras, que é fruto dessa colaboração, começou a ser impressa logo que eles regressaram da pesquisa. A partir dessa época, e até ofimda vida, Bartók, inaugurando uma nova cfcciplina científica — a etnomusicologia —, recolheu e classificou metódicamente milhares de canções, ampliando progressivamente o horizonte geográfico de seu trabalho: primeiro a Hungria, depois a Romênia, a Ucrânia, a Bulgária, até a África do Norte (Argélia e Egito) e a Anatólia. Por que essa busca perpétua que o tornava alvo da galhofa de certos músicos, "já não suficientemente ingênuos, nem ainda suficientemente cultos, para compreender o que tem de belo a música popular"? Porque Bartók sentia a necessidade de alimentar com matéria viva sua linguagem musical. O estudo da música camponesa ajudou-o a libertar-se da hegemonia do sistema dos modos maior e menor, próprios da nossa música erudita ocidental. "Em sua maioria, as melodias recolhidas são construídas segundo modos de igreja ou gregos clássicos, até mesmo primitivos (pentatônicos) em certos casos." Essa experiência também lhe deu a possibilidade de familiarizar-se com a liberdade rítmica dessas músicas, com os ritmos ímpares, tão freqüentes, de cinco ou sete tempos, inusitados na música clássica. Embora, em suas primeiras obras, Bartók tenha integrado elementos melódicos e rítmicos populares, assim procedeu animado por um espírito científico em nada comparável ao dos compositores ditos "nacionalistas", que se contentavam com tomar de empréstimo à música popular seus trejeitos, para que suas obras ganhassem com um colorido folclórico. Bartók buscava na música popular os fundamentos de sua criação: assimilou o próprio espírito dessa música camponesa, aplicando, ao criar, uma estrutura mental forjada no conhecimento aprofundado dos esquemas populares. Bartók chegou a constatar — e para tanto foi-lhe útil a amplitude assumida por suas excursões geográficas — que é possível reduzir "todas as músicas populares da Terra a algumas formas, a alguns tipos e a alguns estilos primitivos". Sabemos, por exemplo, que a improvisação melódica se realiza por um processo que é o mesmo em todas as músicas populares do mundo: partindo de uma curta fórmula de base — que pode consistir simplesmente de duas notas —, os músicos ampliam progressivamente essa fórmula, aumentando seu ambitus, e a ela retornam periodicamente no decorrer de uma peça, como se ofizessempara ganhar, a cada vez, um novo impulso. "As horas mais felizes de minha vida foram as que passei com os camponeses", disse Bartók. Esse trabalho de pesquisa transformou o fervoroso patriota de vinte anos num artista, num homem de ciência e, sobretudo, num humanista. Em 1931, Bartók escreveu a um amigo romeno: Minha idéia central, verdadeiramente, aquela que me possui por inteiro desde que sou compositor, é a da fraternidade dos povos, u m a fraternidade que se s o b r e p õ e a todas as
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guerras e a todos os conflitos. Esta é a idéia a que, na medida de minhas forças, procuro
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As obras-primas do período húngaro
servir com o que crio. Por isso n ã o me recuso a nenhuma influência, seja ela de fonte eslovaca, romena, árabe ou qual for, contanto que pura, fresca e sã.
E, em 1943, escreveu: N u m momento em que esses povos [da Europa Oriental] se matam uns aos outros por ordem de seus senhores e em que essa região parece habitada por diferentes nacionalidades dispostas a trucidar-se reciprocamente sob o menor pretexto, é oportuno, sem dúvida, salientar que os camponeses n ã o sentem nem jamais sentiram a menor raiva de outro povo. Os camponeses são animados por sentimentos pacíficos; o ó d i o racial é coisa das camadas superiores.
*** O amadurecimento da linguagem de Bela Bartók, inseparável de suas pesquisas de etnografía musical, também é tributário da influência de certos compositores: Bach, Beethoven, Liszt, o fiel amigo Kodály e, sobretudo, Debussy, cuja revelação em 1907 foi um marco para Bartók, que dali em diante passou a considerá-lo o maior compositor do século XX. Em 1939, teve ocasião de dizer ao maestro Serge Moreux: "Debussy restaurou o sentimento dos acordes em todos os músicos; foi tão importante quanto Beethoven, que nos revelou a forma progressiva, ou Bach, que nos introduziu à transcendência do contraponto." Foi através de Debussy que Bartók teve acesso à música dos russos, principalmente à de Mussorgski. Debussy e Mussorgski legitimaram o empenho de Bartók em sua tentativa de escapar à dominação germânica que o sufocava. Outros encontros de menores conseqüências marcaram, contudo, a evolução do compositor, quando mais não seja pela reflexão a que o puderam compelir: Bartók admirava muito Schõnberg, sem entretanto ter aderido à técnica serial. Isto porque Bartók, que reconhecia na música popular a fonte de sua inspiração, pôde observar em toda manifestação folclórica uma "base tonal", o que não significa que essa "tonalidade" seja a tonalidade convencional que conhecemos e que toma emprestado seus esquemas aos modos maior e menor. Bartók empregava a palavra num sentido mais amplo, designando por "música tonai" aquela cujos sons são organizados, hierarquizados e mantêm laços de interdependência; certos "graus", mais "fortes" que outros, impõem, por exemplo, a estrutura melódica ou o encadeamento dos acordes. Ora, com o método serial, Schõnberg buscava, pelo contrário, destruir essa hierarquia. Bartók sentia-se também bastante próximo do Stravinski da "fase russa", em quem ele identifica a verve popular em toda a sua autenticidade: repetição de temas primitivos, ritmos em perpétua'mutação, danças mágicas.
Bartók experimentou suas descobertas sempre ao piano, instrumento que lhe era familiar. "Aqueles que o viram ao piano podem dizer se não havia em seus movimentos, em seus gestos, em seus sobressaltos, algo da pantera, do rapiñante; algo de temível" (Bence Szabolcsi). De 1907 a 1934, Bartók ensinou piano no Conservatório de Budapeste e criou fama como excelente pedagogo. (Em 1909, casou-se com Marta Ziegler, uma de suas alunas. O primeiro filho, Bela, nasceu menos de um ano mais tarde.) A virada que se esboça em 1911 rumo a uma nova estética teve sua primeira manifestação no Allegro bárbaro, com uma expansão tonai, uma liberdade melódica mais afirmada e estruturas rítmicas originais. No mesmo ano, Bartók compôs sua primeira obra cênica, A Kékszákallú herceg vára [O castelo do Barba Azul], ópera em um ato. O diálogo contínuo entre Barba Azul e Judite, sua última esposa, símbolos do homem e da mulher, num drama que retrata a impossibilidade do amor mais apaixonado penetrar, sem se destruir, no inconsciente e no passado do ser amado, é a primeira experiência de adaptação da prosódia musical ao ritmo da língua húngara. A ópera de Bartók é, para os húngaros, um manifesto comparável ao Pelléas de Debussy para os franceses. Essa obra haveria de dormir sete anos nas gavetas de Bartók. Ninguém é profeta em sua terra, e Bartók continuava ignorado pela crítica. Só se salvou de um isolamento social completo graças às atividades de coleta com Kodály e ao ensino no Conservatório de Budapeste. Em 1916 compôs um balé, mais uma vez sobre o tema da incomunicabilidade entre homem e mulher: O príncipe de madeira. As duas obras foram regidas em 1917 por um brilhante maestro italiano, Egisto Tango, obtendo um sucesso estrondoso e inesperado. Bartók passou a existir para o público de Budapeste! Em 1924, o compositor concluiu a orquestração de sua terceira obra cênica, a pantomima A csodálatos mandarin [O mandarim maravilhoso], jogo demoníaco entre o amor, o dinheiro e a morte. O argumento fantástico de Lengyel, tratado no estilo expressionista, situa-se num ambiente sórdido, no centro da cidade agressiva e tonitruante: três bandidos obrigam uma moça a provocar os transeuntes a fim de assaltá-los. O último "otário" é um mandarim que só pode sucumbir às facadas dos bandidos depois de um gesto de piedade da moça. Nessa obra, que assinala uma etapa decisiva em sua produção, Bartók realiza a integração do estilo folclórico: muitos temas melódicos são desenvolvidos segundo o procedimento da hora lunga romena — espécie de improvisação a partir de um intervalo que vai crescendo progressivamente — ou segundo um procedimento parecido, tomado de empréstimo ao folclore árabe: rodopio cromático a partir de uma nota central fixa. O ritmo deve também seu caráter nervoso, ofegante, ao folclore da Europa Central: ritmos magiares, búlgaros. Já a harmonia provém diretamente da melodia; as notas ouvidas sucessivamente podem também ser toca-
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das simultaneamente, engendrando acordes. A orquestração acusa os perfis cortantes dessa música, que tira sua força de um certo despojamento e de insólitas alianças de timbres. Esses foram anos de.vida difícil para o compositor. Bartók passou pelas angústias da guerra em que seu país cerrou fileiras com a Alemanha, que ele detestava, contra a França que ele considerava seu país de adoção. Depois, em 1918, o novo regime socialista da Hungria fundou um Comissariado Político para a Música, cujo responsável recorreu a Dohnanyi, Kodály e Bartók como conselheiros artísticos. Projetou-se criar um museu de música ou, pelo menos, introduzir no museu etnográfico uma seção de música popular, de que Bartók seria o diretor. Infelizmente, o regime comunista desmoronou meses depois, e o novo governo húngaro não poupou o seu rancor. Dohnanyi foi afastado do Conservatório, salvo por um triz graças a uma greve dos colegas, e Bartók foi posto em quarentena. Pela primeira vez, desgostoso com o chma de desconfiança, pensou em exilar-se. Em 1923, divorciou-se de Marta para casar-se com outra de suas alunas, Ditta Pasztory, então com dezesseis anos. Essas contrariedades viram-se porém compensadas por uma vida profissional muito mais fecunda e promissora. De 1921 a 1923, Bartók compôs obras belíssimas: duas Sonatas para violino e piano, nas quais os dois instrumentos são tratados de maneira muito independente, e Suíte de danças para orquestra, que transmite em seu entusiasmo uma corrente de frescor. Essas cinco danças extraem seus elementos vivazes das músicas populares de que Bartók faz uma síntese, sobretudo a última delas, da qual disse o compositor que "tem um caráter tão especificamente primitivo que só dá margem a se pensar num estilo camponês antigo". Por outro lado, o sucesso da ópera Barba Azul deflagrou o processo da fama: a editora de músicas Universal propôs um contrato a Bartók, que foi muito aplaudido nas excursões que fez ao exterior. E seu Quarteto n° 3 ganhou o prêmio da Musical Fund Society da Filadélfia. Foram anos marcados por uma atividade febril e que levaram Bartók ao momento excepcional e privilegiado de que datam suas obras mais bem realizadas. Em 1930, compôs a Cantata profana, com as palavras de um velho canto popular romeno que trata de uma lenda alegórica: nove caçadores irmãos são transformados em cervos, e seu pai exorta-os a voltarem para casa, onde cântaros de vinho estão à sua espera; mas os filhos se recusam, preferindo a liberdade ao amor até mesmo de sua mãe: "Jamais tornaremos a beber em cântaros ou em copos; para nós, nada que não sejam as fontes mais claras." Foi a recusa do fascismo reinante na mãe-pátria que inspirou a escolha desse tema a Bartók, segundo testemunho explícito seu. Nesse mesmo período, Bartók compôs os últimos e os mais bem-sucedidos dos seus Quartetos para cordas, gênero que cultivou ao longo de toda a vida -— 1908, 1917, 1927, 1928, 1934, 1939 — e que traduzem de certo modo as etapas de sua
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evolução artística. Uma experiência divertida e surpreendente é ouvir os últimos quartetos de Beethoven e emendar diretamente ouvindo os quartetos de Bartók: estes dão continuidade àqueles —- a mesma força, a mesma nobreza, o mesmo espírito no tratamento dos quatro instrumentos por massas sonoras. Em 1936, Bartók compôs o que é sem dúvida sua obra-prima: a Música para cordas, percussão e celesta, onde encontramos, ampliados, todos os elementos de sua linguagem. As estruturas da obra estabelecem-se segundo as leis da seção áurea e da série áurea mais simples, dita "seqüência de Fibonacci". A "seção áurea", também conhecida como "segmento áureo", é uma medida que se utiliza em todas as artes, mais particularmente na pintura e na arquitetura. Como ela representa uma proporção "perfeita", o pintor, o músico ou o arquiteto situam — às vezes inconscientemente — as linhas de força de suas obras no ponto dado pela seção áurea. No caso de Bartók, essa utilização é inteiramente consciente, com uma precisão calculada quase no nível da semicolcheia. Num espaço dividido segundo as leis da seção áurea, a relação entre o espaço em sua totalidade e a parte mais longa desse espaço corresponde geométricamente à relação entre a parte mais longa e a mais curta. Essa divisão reserva à seção áurea aproximadamente 5/8 do espaço em questão. A série áurea é uma seqüência de números inteiros, chamados números de Fibonacci. Nessa série, cada número é igual à soma dos dois números precedentes: 2, 3, 5, 8, 13, 21, 34, etc. Há uma relação — complexa demais para ser exphcada aqui — entre a série de Fibonacci e a seção áurea. As relações tonais entre os diferentes movimentos da Música para cordas, percussão e celesta são determinadas pelo "sistema de eixos" inventado por Bartók e baseado em relações de trítono. A instrumentação, fortemente original, compreende dois grupos de orquestra de cordas, percussões, uma celesta, uma harpa e um piano. Cada um dos quatro movimentos é uma obra-prima: o primeiro é uma das mais belas fugas da história da música; o segundo, de um grande dinamismo, joga com a heterofonia dos diferentes grupos instrumentais; no terceiro movimento, Bartók encontra as sonoridades mais desorientadoras: é aí que explora ao máximo os recursos das cordas, combinando-as de maneira inusitada com os timbres percussivos; o caráter de festa do final afirma-se na melodia principal em modo antigo — modo de fá — ritmado à búlgara. A Sonata para dois pianos e percussão foi composta em 1937 para atender a uma encomenda de música de câmara. Sendo Bartók pianista e acostumado a tocar em duo com sua mulher Ditta, a obra oferecia, ademais, a vantagem de ampliar seu repertório em comum. Os dois percussionistas tocam conjuntamente os seguintes instrumentos: tímpanos, bombo, caixas-claras, triângulo, pratos, gongo e xilofone. Formada por três movimentos — vivo, lento, vivo —, a obra é construída rigorosamente. Por exemplo: no primeiro movimento, a retomada do tema faz-se exatamente no marco da seção áurea. O próprio movimento ocupa 5/8 da obra.
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Observa o musicólogo Lendvai que nessa sonata "a seção áurea coincide sempre com o momento mais importante de modificação na forma". A escrita instrumental da Sonata para dois pianos e percussão representa uma verdadeira aula de instrumentação contemporânea. Em muitas obras do século XX, onde a percussão vem sendo cada vez mais empregada, seus timbres situados entre ruídos e sons integram-se o mais das vezes bastante mal, ficando de fora em relação às partes puramente musicais e dando uma impressão de gratuidade ornamental. Ora, nessa sonata de Bartók, a homogeneidade instrumental é extraordinária. Pianos e percussão avançam lado a lado. Os pianos, utilizados em todos os registros, adotam uma função percussiva que os aproxima dos timbres da bateria. Quanto às intervenções da percussão, têm sempre a motivá-las a estrutura da obra e sua temática. Assim, Bartók demonstra que ser um bom músico de "vanguarda" não depende apenas da escolha de uma distribuição instrumental revolucionária, mas também da maneira de tratar essa instrumentação. A educação pianística de seu segundo filho, Peter, fez com que Bartók decidisse compor um "método" de piano que graduasse, é claro, as dificuldades, mas que também servisse para acostumar as crianças à música do século XX. Além de preencher sua função pedagógica, os seis volumes do Mikrokosmos [Microcosmo], compostos entre 1932 e 1939, representam o saldo das pesquisas do compositor e podem constituir um objeto de estudo apaixonante para quem quiser conhecer melhor Bartók.
Bartók nos Estados Unidos ( 1941 - i 945) Desde 1935, o movimento nazista tecia paciente e inelutavelmente sua rede por sobre a Europa. Após a anexação da Áustria por Hitler, a situação da Hungria tornou-se angustiante. Enquanto foi possível, Bartók protestou e revoltou-se contra o. regime fascista. Exigiu, por exemplo, que seu nome figurasse ao lado dos compositores judeus por ocasião de uma exposição de "música degenerada". Escreveu a uma amiga: Estamos todos sob a ameaça de ver a Hungria entregar-se t a m b é m a esse regime de saqueadores e de assassinos. A questão resume-se em saber quando e como. Infelizmente, o que se v ê s ã o homens cultos, cristãos, submeterem-se, quase todos, ao regime nazista. Envergonho-me de provir dessa classe! C o m o daqui por diante conseguir viver neste país, ou — o que dá na mesma — trabalhar nele, é algo que n ã o posso imaginar! Falando francamente, seria meu dever expatriar-me.
Bartók hesitou por algum tempo, mas acabou tomando sua decisão: no final de 1940, deixou seu país e emigrou para os Estados Unidos. Já minado pela leucemia que causaria sua morte, Bartók atravessou então os anos mais dolorosos de sua existência. Ignorado pelo público norte-americano,
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doente, viveu na pobreza, sem aceitar qualquer socorro dos amigos. Sua situação só melhorou em 1943, quando a Associação dos Compositores Norte-Americanos ofereceu-lhe meios para tratar-se e começaram a aparecer encomendas de composições: Serge Kussevitzki pediu-lhe que compusesse um Concerto para orquestra, no qual os instrumentos se alternassem como solistas, Yehudi Menuhin, uma Sonata para violino solo e William Primrose, um Concerto para viola, que não passou do esboço. O Concerto n" 3 para piano de Bela Bartók foi escrito para Ditta, por assim dizer, "sob medida". Sabendo-se próximo da morte, Bartók quis aumentar, enquanto era tempo, o repertório de sua mulher. Em lugar de ceder às suas inchnações naturais, nesse concerto ele adaptou sua linguagem à técnica de sua mulher, feita mais de agilidade, de velocidade e de poesia do que de violência ou de força. Com uma orquestra bem comportada e um piano brilhante, esse concerto representa um aspecto da linguagem de Bartók em que a sedução se exerce sacrificando em parte o vigor sempre presente em suas outras obras. A morte interrompeu seu trabalho no dia 26 de setembro de 1945. Seu amigo Tibor Serly se encarregou de escrever os dezessete compassos que tinhamficadofaltando. Assim chegava ao fim uma trajetória que Bartók se empenhara em seguir durante toda a sua carreira como compositor, e que resumiu com estas palavras: "Meu desenvolvimento artístico é como uma espiral. Estou sempre buscando um nível mais elevado para resolver, de maneira sempre mais perfeita, os mesmos problemas essenciais."
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A MANEIRA DE PREÂMBULO À "ESCOLA DE VIENA": MÚSICA ATONAL, DODECAFÔNICA, SERIAL
O sistema tonai, depois de ter dominado a música ocidental durante cerca de três séculos, chegou, por volta de 1900, a um estado de esgotamento e de saturação resultante, no fundamental, da ação cada vez mais corrosiva sobre ele exercida, no século XLX, pelo cromatismo. Diante desse enfraquecimento das funções tonais, os músicos não tiveram todos a mesma reação. A da Escola de Viena, constituída por Arnold Schõnberg (1874-1951) e seus dois discípulos Anton Webem (1883-1945) e Alban Berg (1885-1935), consistiu em levar a seu termo a evolução esboçada pelo romantismo alemão, especialmente por Schubert e Wagner. Isso em duas etapas principais. Compuseram-se, primeiro, a partir de 1907-1908, as obras ditas (na falta de melhor termo) "atonais livres" desses três compositores; seguiu-se, no período 1921-1923, a descoberta por Schõnberg do dodecafonismo serial, destinado a organizar a atonalidade de maneira tão coerente quanto o havia sido outrora o sistema tonal. A Escola de Viena estão associados, portanto, os conceitos — fundamentais para a evolução da arte musical do século XX — de música atonal, de música dodecafônica e de música serial. Ora, esses três termos não são smônimos. Cada um dentre eles pode aphcar-se a uma dada música sem que seja o caso de aplicar-lhe os dois outros. Somente em se tratando dos casos precisos de certas obras de Schõnberg, Webern, Berg e de alguns de seus sucessores é válido aplicar todos os três.
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Música atonal Em sentido amplo, é atonal qualquer música que não obedeça (ou não mais obedeça) às leis do sistema tonal, que, com seu símbolo, o acorde perfeito, determinou a evolução da música'ocidental, em sua maior parte, de 1600 a 1900: músicas modais antigas, músicas medievais, numa certa medida músicas do Renascimento, músicas de diversas culturas extra-européias, músicas de diversos compositores desde o início do século XX. Historicamente, a música atonal, no sentido estrito (schõnberguiano) da palavra, implantou-se no Ocidente por um processo em várias fases que, partindo do enfraquecimento e da insuficiência dos elementos afirmadores das funções tonais, chegou à vontade deliberada (progressivamente controlada e organizada) de a eles escapar: extensão do cromatismo num quadro ainda tonai, tendo como etapas essenciais Tristan und Isold [Tristão e Isolda] de Wagner e obras de juventude de Schõnberg como a Verklàrte Nacht [Noite transfigurada, 1899]; depois a composição, por Schõnberg, a partir de 1907-1908, de suas primeiras obras "atonais livres" (Quarteto de cordas n° 2 opus 10; Cinco peças para orquestra opus 16) onde, segundo Pierre Boulez, a tonalidade ainda se define apenas de maneira negativa, como uma extensão do cromatismo wagneriano até seus limites extremos, como um "período de transição bastante forte para romper o universo tonai, mas sem coerência suficiente para engendrar um universo não tonai". É freqüente ouvir-se falar, para caracterizar esse período "atonal livre" ligado a Schõnberg, Berg e Webern, de emancipação da dissonância. Isso quer dizer que qualquer acorde pode doravante suceder a qualquer outro, ou, e sobretudo, que uma dissonância já não tem que necessariamente se resolver numa consonância (acorde perfeito). Essa recusa de resolução foi o que, mais do que qualquer outra coisa, permitiu ao estilo de Schõnberg dos anos 1908 e seguintes representar a angústia, o macabro. Note-se, contudo, que Schõnberg empenhou-se em recriar a dialética tensão-repouso que, na música tonai, havia decorrido das relações dissonância-consonância. Ele o conseguiu por meio de suas linhas melódicas e por seu fraseado. Em seu monodrama Erwartung [Expectativa] opus 17, o retorno periódico de um acorde de seis sons produz zonas de estabilidade parcial. Dessa obra — uma das raras, na época, a renunciarem ao tematismo —, a última página é altamente significativa: no intervalo de alguns segundos, Schõnberg satura o espaço cromático temperado e faz ouvir em muitos registros, na sua sucessão e na sua superposição, os doze sons da escala cromática temperada. Em Erwartung realmente — e em muitas outras obras da época, virtualmente — a consonância absoluta já não é o acorde perfeito, mas a plenitude cromática. Música dodecafônica Ainda em sentido amplo, podemos chamar de dodecafônica (de ãodeca = "doze" em grego) toda música que utiliza os doze sons da escala cromática temperada,
A maneira de preâmbulo à "Escola de Viena"
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adotada no Ocidente a partir do início do século XVIII, e que divide a oitava em doze semitons estritamente iguais. Mas a música clássica e romântica ocidental, dodecafônica no sentido amplo -— se considerarmos seu material de base —, não o é no sentido preciso adotado para esse termo desde as obras de Schõnberg dos anos 1921-1923 e seguintes. Nessa música clássica e romântica, de fato, as leis da tonalidade criam entre os doze sons uma hierarquia segundo a qual alguns dentre eles — a tônica, em primeiro lugar — possuem, em virtude de sua função harmônica, um papel privilegiado como centro de atração. Abolir metódicamente essa hierarquia, já por assim dizer aniquilada na atonafidade "livre", foi justamente um dos objetivos do dodecafonismo schõnberguiano, que utiliza os doze sons da escala cromática temperada de maneira totalmente diferente. No sentido estrito, o único consagrado pelo uso, dodecafonismo é sinônimo de dodecafonismo schõnberguiano.
Música serial Para abolir, pelo menos em princípio, toda hierarquia entre os doze sons, Schõnberg recorreu à atonafidade e ao serialismo a partir de 1921-1923. Em qualquer música serial, seja ela qual for, os elementos "dispostos em série" são teoricamente iguais por direito e estão sujeitos a leis no tocante à ordem em que aparecem e se sucedem: falou-se até, a propósito disso, em "comunismo dos sons". Schõnberg só aplicou o princípio serial — para ele, culminação da atonafidade "livre" dos anos 1908 e seguintes; para nós, um caso particular da atonafidade — a um único dos quatro parâmetros (altura, duração, timbre, intensidade) do som tradicional: à altura. Tomou como material de base para suas séries de alturas os doze graus da escala cromática temperada. Suas séries são, portanto, dodecafônicas; daí, no que lhe concerne, o conceito de dodecafonismo serial ou de série dodecafônica. Schõnberg, por sinal, recusou sempre a designação de compositor atonal, preferindo a de compositor pan-tonal. * **
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A série dodecafônica schõnberguiana é a enunciação, numa ordem qualquer, dos doze sons da escala cromática temperada, cada som tendo que ser enunciado uma vez e somente uma (condição sine qua non da abolição de toda hierarquia preferencial): o número das séries possíveis eleva-se assim a 479.001.600. Elemento básico de uma obra é a série precisa escolhida pelo compositor em função de diversos critérios e que tanto pode ser apresentada em sua forma original, como em forma retrogradada (da última nota à primeira), invertida (mudando-se a direção de seus intervalos), ou invertida-retrogradada, cada uma dessas quatro formas sendo, ademais, transponível para os outros onze graus da escala cromática,
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do que resulta um total de 48 formas diferentes da mesma série. O compositor dispõe livremente dessas 48 formas, que se inscrevem nas 479.001.600 teoricamente possíveis. E ainda pode contar com o princípio da identidade do horizontal e do vertical (as notas da série tanto podem apresentar-se sucessivamente como de maneira simultânea em forma de acorde), com o da equivalência entre si de todas as notas do mesmo nome, qualquer que seja o seu registro, e com a possibilidade de fazer passar de uma voz a outra tal ou qual forma da série escolhida, além de poder fazer ouvir simultaneamente, em vozes diferentes, diversas formas da série, com modificações no andamento ou no ritmo. Esses diversos princípios — que podem combinar-se — demonstram que, fundamentalmente, a série dodecafônica não é um tema no sentido clássico do termo (ela não é forçosamente "reconhecível" melódicamente), mas uma sucessão de intervalos.
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À maneira de preâmbulo à "Escola de Viena"
Schõnberg, Berg e Webem adquiriram rapidamente uma grande mestria no uso da série, mas adaptando-a, cada um, a suas necessidades pessoais. Antes da Segunda Guerra Mundial, foram raros os compositores que seguiram seu exemplo, como o italiano Luigi Dallapiccola (1904-1975). Mas, depois de 1945, muitos jovens compositores uniram-se a eles, tendo à frente Luigi Nono (nascido em 1924), Pierre Boulez (nascido em 1925) e Karlheinz Stockhausen (nascido em 1928). Com essa nova geração, o princípio serial estendeu-se a parâmetros outros que as alturas de sons: às durações, aos timbres, às intensidades. Instaurou-se, até cerca de 1955, o período do "serialismo integral", ou do "serialismo pós-weberniano". O "pensamento serial" estava na ordem do dia, ilustrado notadamente por esta definição que dele. deu Stockhausen em Zur Situation des Metiers (1953-1954): O princípio serial significa, de modo geral, que, para urna obra determinada, escolhe-
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mos, em n ú m e r o limitado, grandezas diferentes; que essas grandezas estão aparentadas umas às outras por suas proporções; que estão dispostas numa certa ordem e com inter-
Como resultado do que precede, temos: Primeiro: que uma música pode ser dodecafônica no sentido amplo (utilizar os doze sons da escala cromática temperada) sem ser serial e sem ser atonal: é o caso da música tonai ocidental dos séculos XVIII e XIX. Note-se que encontramos séries (no sentido schõnberguiano) isoladas de doze sons, integradas num contexto tonai, num recitativo da ópera Don Giovanni de Mozart (1787), no início da Sinfonia Faust de Liszt (1854) e na fuga de Also sprach Zarathustra [Assim falou Zaratustra] de Richard Strauss (1896); Segundo: que uma música pode ser serial sem ser dodecafônica, se ela recorre a séries de menos de doze sons (séries defectivas, freqüentes no Stravinski da última fase) ou a séries de mais de doze sons (no caso de uma linguagem que utilize intervalos menores que o semitom), ou se ela "dispõe em série" parâmetros outros que as alturas de sons; e que pode ser serial sem ser atonal se a série é escolhida de maneira a suscitar um sentimento tonai; Terceiro: que uma música pode ser atonal sem ser dodecafônica (as obras de Schõnberg dos anos 1908 e seguintes só são dodecafônicas no sentido amplo e as obras modais antigas não o são de maneira alguma) e sem ser serial; Quarto: que uma música dodecafônica (no sentido schõnberguiano) e serial pode ser tonal, se a série é escolhida de modo a suscitar um sentimento tonai (Concerto para violino de Alban Berg); Quinto: que, se as obras de Schõnberg realizadas segundo seu "método de composição com doze sons que só se relacionam consigo próprios" são (em princípio) ao mesmo tempo atonais, dodecafônicas e seriais, elas não passam de um caso particular tanto da atonafidade como do serialismo.
valos determinados; que essa seleção serial intervém no tocante a todos os elementos que servirão ao trabalho de c o m p o s i ç ã o ; que, com base nessas séries fundamentais, o trabalho de c o m p o s i ç ã o desemboca em novas séries de configurações de u m grau superior que, por sua vez, são variadas serialmente; que as proporções da série constituem o princípio estrutural dominante da obra a compor, princípio de que esta última deve tirar as conseqüências formais indispensáveis.
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O dodecafonismo serial, último avatar da utilização do total cromático da gama de doze semitons temperados, desenvolveu-se, na verdade, com base em algumas das tradições mais profundas da música ocidental: reconheceu a tirania da oitava e a predominância das alturas (melhor dito: dos intervalos) sobre os outros parâmetros musicais, não excluindo a persecução de um pensamento fundado sobre o conceito de tema e sobre as formas que acompanhavam esse conceito. Disso tinha consciência o compositor "pan-tonal" Arnold Schõnberg, para quem o dodecafonismo serial foi em grande parte um substituto dos poderosos meios arquiteturais outrora fornecidos à música pela tonalidade clássico-romântica. A música ocidental não teria podido dispensar o serialismo. Mas, como acontecera, antes dele, ao "classicismo" vienense de Haydn, Mozart e Beethoven, o serialismo desembocou — enquanto lugar de convergência onde se condensou e dinamizou a evolução global — numa explosão da música em correntes as mais diversas e na reintegração de tendências que haviam podido parecer marginais: era o advento da fase pós-serial da música, que vivemos até hoje. Certo é que essa explosão, que agora, por sua vez, engendra novos problemas, jamais teria podido ocorrer sem uma prévia concentração de forças.
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ARNOLD SCHÕNBERG (1874-1951)
"Sou um conservador que forçaram a se tornar revolucionário": assim se definiu um dos maiores e mais inteligentes artistas do século XX, um dos raros a ter um agudo senso da história, a que alude quando usa esse plural "forçaram". Considerou-se sempre o herdeiro autêntico da tradição clássica e romântica germânica, e, nessa qualidade, uma força histórica inevitável. Quando, durante a Primeira Guerra Mundial, Schõnberg foi convocado para o Exército austríaco, um de seus superiores perguntou-lhe se era ele mesmo o compositor Arnold Schõnberg, que fazia um tipo de música dissonante, tão moderno, etc. Sua resposta foi típica: "Como não apareceu quem quisesse sê-lo, eu me ofereci como voluntário." A missão histórica assumida conscientemente por Schõnberg consistiu em, uma vez constatado o esgotamento do sistema tonai, acabar com ele e em seguida erguer um novo sistema em seu lugar. Essa revolução teve duas etapas: uma primeira, que, na falta de melhor nome, conhecemos como o atonafismo "livre" (a partir de 1908), e a segunda que foi o dodecafonismo serial (oficialmente a partir de 1923). Note-se, entretanto, que, como todas as verdadeiras revoluções, a promovida por Schõnberg teve um aspecto de "consolidação do passado". Nascido em 13 de setembro de 1874, em Viena, numa família da pequena burguesia israelita, Schõnberg começou a compor e a tocar violino com oito anos de idade. Consagrou-se em seguida ao violoncelo para poder fazer música de câmara; concluiu sua formação praticamente como autodidata, tendo como único professor o futuro cunhado, o compositor Alexander von Zemlinsky (1871-1942). Em
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sua juventude apaixonou-se tanto por Wagner como por Brahms, o que na época parecia contraditório. Conquanto houvesse partido do hipercromatismo wagneriano, o senso da forma apreendido em Brahms acompanharia Schõnberg até em suas obras da velhice. O período tonal e pós-romântico Data de 1897 um Quarteto para cordas em ré maior, escrito por Schõnberg ainda no espírito de Dvorák. Em 1898 e 1900 foram compostos diversos Lieder, doze dos quais deveriam constituir os opus 1 a 3 do catálogo de suas obras. Em 1898, um deles provocou um escândalo. Schõnberg escreveu muito mais tarde: "Dali por diante, o escândalo não parou mais." Em setembro de 1899, compôs em três semanas uma obra que, apesar do escândalo causado por sua primeira audição (Viena, 1902), tomar-se-ia em pouco tempo uma de suas peças mais tocadas: o sexteto para cordas Verklãrte Nacht [Noite transfigurada] opus 4, inspirado num poema de Richard Dehmel. O próprio, autor realizou — em 1917 e em 1943, respectivamente — duas transcrições desse sexteto para orquestra de cordas. Trata-se da primeira de suas grandes partituras ainda tonais e de estilo pós-romântico: cromatismo exacerbado mas que não chega a romper os limites do sistema tonai. "Quando me perguntam por que já não componho como no tempo de Verklãrte Nacht, costumo responder que é exatamente o que faço. Não tenho culpa se as pessoas não se dão conta disso" (Schõnberg, em 1927). Verklãrte Nachtprovém fortemente de Wagner, mas seus contornos melódicos são muito pessoais, com vastos saltos de intervalos e uma quase ausência de referência ao acorde perfeito. Vale lembrar uma observação de Theodor Adorno:
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De 1901 a 1903, Schõnberg viveu em Berlim, onde sobreviveu orquestrando operetas. De volta a Viena, descobriu a arte de Gustav Mahler e começou uma longa carreira pedagógica, extraordinária aventura que iria marcar profundamente a música do século XX. Entre os alunos de primeira hora, estavam Anton Webern e Alban Berg, que, cada qual à sua maneira, o seguiram em suas ousadias, para formar com ele a famosa "trindade vienense". Com o Primeiro Quarteto para cordas opus 7 (1905, oficialmente em ré menor) e, sobretudo, a Primeira Sinfonia de câmara, para. quinze instrumentos solistas, opus 9 (oficialmente em mi maior), composta no ano seguinte, Schõnberg chegou aos limites do mundo tonai. Primeira manifestação, nele, do expressionismo, a Sinfonia de câmara substituía notadamente as harmonias de terças por um sistema baseado nas superposiçães implacáveis de quartas e, por sua estrutura em um único movimento, renovou de maneira original a forma sonata.
O estilo atonal livre O passo decisivo para a atonafidade foi dado em 1907-1908, com o Segundo Quarteto para cordas opus 10, cujos dois primeiros movimentos são ainda tonais. Os dois últimos (que fazem intervir a voz) — mesmo se considerarmos que continuam a sê-lo por seu vocabulário (acordes codificados) —, já não o são por sua sintaxe, já que esses acordes não se encadeiam segundo as leis da tonalidade. Schõnberg declarou a respeito: O terceiro e o quarto movimentos definem claramente uma tonalidade em todos os pontos de articulação da forma. Mas as dissonâncias são tantas que n ã o seria possível contrabalançá-las pelo simples aparecimento, de quando em quando, de acordes perfei-
As i n o v a ç õ e s decisivas de Schõnberg n ã o teriam sido possíveis se, em Verklãrte Nacht, ele n ã o se houvesse desviado da pompa dos poemas sinfônicos de seu tempo para tomar como modelo a severidade da escrita dos quartetos de Brahms.
tos correspondentes a essa ou aquela tonalidade. Pareceu-me absurdo enquadrar à força u m movimento no leito de Procusto de uma tonalidade, se n ã o há progressões h a r m ô nicas que com ela se relacionem. Foi esse o meu problema — e meus c o n t e m p o r â n e o s deveriam ter-se preocupado com ele da mesma forma.
Do período tonal e pós-romântico de Schõnberg, constam ainda o poema sinfônico Pelléas und Mélisande [Péleas e Melisanda, 1903] opus 5 e os Gurrelieder [Cantos de guerra, 1900-1911], baseados em poemas do escritor dinamarquês Jens Peter Jacobsen, traduzidos para o alemão por Robert Franz Arnold. A ligação com esse período já é muito menor no primeiro Quarteto para cordas opus 7 e na Primeira Sinfonia de câmara opus 9 (1906). Escritos para solistas, coros e orquestra, os Gurrelieder recorrem a efetivos gigantescos. Foram concebidos em 1900, mas sua orquestração só foi levada a termo em 1911. A primeira audição (Viena, 23 de fevereiro de 1913) representou um triunfo para Schõnberg, mas um triunfo de certa maneira póstumo — nos anos transcorridos desde a criação dessa música, o compositor evoluíra radicalmente e havia encontrado em sua cidade natal resistências que chegavam às raias do ódio.
Note-se que essas primeiras páginas atonais de Schõnberg foram compostas exatamente quando, na pintura, surgia o cubismo. Uma comparação impõe-se entre o opus 10 e as Demoiselles d'Avignon de Picasso (ambas as obras são do mesmo ano): aos dois primeiros movimentos (ainda tonais) do opus 10 corresponde a parte esquerda (tradicional) do quadro; aos dois últimos movimentos (atonais) do opus 10, a parte direita (cubista) das Demoiselles. Seguiu-se um período de criação intensa, com as obras-primas de estilo "atonal livre", por alguns (Pierre Boulez, particularmente) consideradas as mais notáveis realizaçães de Schõnberg. De 1908 -1909 data o Buch der hãngenden Garten [Livro dos jardins suspensos] opus 15, ciclo de quinze Lieder compostos para poemas de Stefan George. Em 1909, foram produzidas as Cinco peças para orquestra opus 16,
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as Três peças para piano opus 11 e o monodrama Erwartung opus 17, com um texto de Maria Pappenheim, que só haveria de ser montado em 1924. No opus 16, a. orquestra é tratada como um grande conjunto de solistas. Esse interesse pelo timbre em si destaca-se vivamente na terceira das cinco peças, feita quase exclusivamente de um único acorde de cinco notas transferidas de um registro a outro e de um instrumento a outro. Schõnberg simplesmente pôs em prática um princípio que já havia definido em seus trabalhos teóricos, o da Klangfarb enmelo die [melodia de timbres]. Erwartung, com uma duração de cerca de meia hora, põe em cena um único personagem — a mulher que busca seu amante na floresta e termina encontrando só o cadáver. Trata-se, com efeito, de um pesadelo. Levando aos limites extremos o princípio de não-repetição de uma idéia musical, a ponto de beirar o atematismo, Erwartung é a primeira obra de conteúdo psicanalítico a marcar presença na história da música. No ano seguinte, em 1910, Schõnberg consagrou-se quase completamente à pintura, manifestando em suas telas um expressionismo tão violento como o de sua música. Com Kandinsky, Klee e Franz Marc, participou ativamente do movimento que teve como órgão a revista Der Blaue Reiter [O cavaleiro azul]. Em 1911, ano da morte de Mahler, Schõnberg compôs Herzgewãchse [Folhagens do coração] opus 20, sobre a tradução de um poema de Maeterlinck, terminou seu Tratado de harmonia e voltou a instalar-se em Berlim, onde permaneceu até 1914. Foi lá que, em 1912, compôs e fez ouvir Pierrot lunaire [Pierrô lunar] opus 21, a obra que o tornou célebre, com um conjunto (organizado por ele próprio) de pequenos textos do poeta belga Albert Giraud traduzidos para o alemão por Hartleben. Esses "três vezes sete poemas... para voz falada, piano, flauta (ou flautim), clarineta (ou clarineta baixa), violino (ou viola) e violoncelo", com duração média de um minuto e meio cada um, resultaram de uma encomenda da atriz vienense Albertine Zehme, especialista em melodrama. Na obra, a voz é tratada segundo o princípio do Sprechgesang, processo que consiste em emitir a voz meio como quem fala, meio como quem canta, em medida, aliás, difícil de dosar. Por sua curta duração, as 21 peças que compõem Pierrot lunaire enquadram-se na categoria de "forma pequena", já utilizada por Schõnberg em 1910 em suas Três peças para orquestra de câmara (de publicação póstuma) e em 1911 em suas Seis pequenas peças para piano opus 19, forma esta de que Webern iria fazer sua especialidade. Obra-chave do século XX, Pierrot lunaire é típica do período expréssionista de Schõnberg, por sua mescla de ironia com sadomasoquismo macabro e sangrento. Em 1913, Schõnberg escreveu ainda Die glückliche Hand [A mão afortunada] opus 18, drama com música sobre um libreto dele próprio. Em 1913-1916 foi a vez 1
No sentido de concentrada, aforística. (N. T.)
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dos Quatro Lieder com orquestra opus 22. Nos anos seguintes, Schõnberg nada publicou. Trabalhou na composição do oratório inacabado Die Jakobsleiter [A escada de Jacó, 1917-1922], mais uma vez com libreto de sua autoria. Ocupou-se com a Sociedade de Execuções Musicais Particulares, graças à qual tentou, de 1918 a 1921, preencher as lacunas dos concertos oficiais em matéria de música contemporânea. Entregou-se à elaboração do dodecafonismo serial, seu "método de composição com doze sons que se relacionam exclusivamente entre si". Com esse método, quis não apenas substituir a ordem tonai por uma nova ordem que pusesse fim à anarquia da atonafidade "livre" dos anos 1908-1913, mas também, e sobretudo, reencontrar o fio da grande tradição clássica e romântica. Dão testemunho disso tanto o seu retorno, nos anos 20, às formas tradicionais, como a declaração que fez em 1921 a seu discípulo Josef Rufer: "Fiz uma descoberta que garantirá a predominância da música alemã pelos próximos cem anos." Mais tarde, em 1937, Schõnberg escreveu sobre o preço que teve que pagar por prosseguir em seu itinerário, enfrentando a oposição de quase todos. Foi num texto admirável, Como a gente se torna um solitário: Não me sentia particularmente feliz em meu esplêndido isolamento. (...) Senti-me terrivelmente só durante esse período em que me vi reduzido à fidelidade de um núcleo bem minúsculo de alunos. (...) Uma das acusações que me faziam constantemente era a de que eu compunha para minha exclusiva satisfação. Isso acabou correspondendo à verdade, mas num sentido diferente daquele que tinham querido dizer. Até então eu inegavelmente havia escrito para o meu prazer; dali por diante, senti que compor era um dever para mim. Eu precisava dizer o que tinha de ser dito, sabia que cabia a mim desenvolver minhas idéias no interesse do progresso da música, quer isso me agradasse ou não. Ao mesmo tempo, não podia deixar de levar em conta que a grande maioria do público não tinha o menor gosto musical, mas (...) quem sabe ainda viesse a promessa de um novo dia de sol para a música, como aquele que eu teria gostado de oferecer ao mundo. (...) Em 1924, senti-me pela primeira vez na vida um homem só. Começara a introduzir em minha música uma espécie de aperfeiçoamento (...) por meio do que eu chamava de método de composição com doze sons.quando, de uma hora para outra, a opinião pública resolveu esquecer o valor afetivo de tudo o que eu havia escrito antes. (...) Certos críticos qualificaram-me, desde então, de meramente mecânico, querendo dizer com isso que minha música não nascia da inspiração; era seca e vazia de qualquer conteúdo emotivo. Outros, em compensação, acusavam-me do crime inverso: eu era um romântico fora de moda, meu estilo e minha expressão incorriam no erro de desejar ainda traduzir sentimentos pessoais. Uns me tratavam como um burguês retrógrado, ao passo que outros criavam para mim a imagem de um bolchevique. (...) Eu era seco demais ou sentimental demais, um riscador de planos e plantas ou um romântico delirante, um inovador ou um atrasado, burguês ou bolchevique. (...) Eu bem que poderia levar na galhofa toda aquela estupidez. Mas ter todos contra mim não deixava de ser meio aterrorizante.
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O dodecafonismo serial
As primeiras manifestaçães do dodecafonismo serial foram a valsa que encerra as Cinco peças para piano opus 23 (1920-1923), o Soneto de Petrarca da Serenata opus 24 (1920-1923), e, sobretudo, a Suíte para piano opus 25 (1921-1923). Em seguida, Schõnberg esmerou-se em dar a seu método os requintes de uma ciência, com uma complexidade e um virtuosismo extremos no Quinteto para instrumentos de sopro opus 26 (1923-1924), no Quarteto n" 3para cordas opus 30 (1927) e, mais que tudo, nas imponentes Variações para orquestra opus 31 (1926-1928). Levou ao teatro o seu método, aplicando-o na ópera bufa Von Heute aufMorgen [De hoje para amanhã] opus 32, escrita em 1928-1929 com libreto de sua segunda mulher (Gertrud Schõnberg, com o pseudônimo de "Max Blonda"). Em nova incursão no repertório de piano, o dodecafonismo serial deu as Peças para piano opus 33a (1928) e opus 33b (1931). Com a Begleitungsmusik [Música de acompanhamento para uma cena de filme], Schõnberg provou que o método não era incompatível com o expressionismo de antes da guerra. Professor titular, desde 1925, de uma classe de composição na Academia de Artes de Berlim, Schõnberg viu-se expulso dali com a ascensão de Hitler ao poder, quando justamente terminara os dois primeiros atos de uma obra-prima destinada a permanecer inacabada, a ópera Moses undAron [Moisés e Arão], cujo libreto, mais uma vez, foi escrito pelo próprio compositor. Schõnberg foi, primeiramente, para Paris, onde, no dia 30 de julho de 1933, retornou solenemente à religião judaica (ele que aos dezoito anos se convertera ao protestantismo): essa iniciativa foi, de resto, o desenlace de uma evolução interior que tivera início pouco depois de 1920 e que se manifestara notadamente pela redação de um drama jamais publicado, Der biblische Weg [O caminho bíblico, 1927]. Em outubro de 1933, Schõnberg emigrou para os Estados Unidos, de onde não mais se afastaria. Ensinou primeiro em Boston e em Nova York, e depois — de 1936 a 1944 — na Universidade da Califórnia. O período californiano abre-se com duas grandes obras seriais: o Concerto para violino e orquestra opus 36 (1934-1936) e o Quarteto n°4para cordas opus 37 (1936). Mais tarde, Schõnberg reintroduziu em sua música certas referências ou funçães tonais, como em Kol Nidre opus 39 (1938) ou na Ode a Napoleão opus 41 (1942), sobre um poema de Byron. Depois que se aposentou da Universidade da Califórnia, precisou retomar alunos particulares para viver. Em 1945, teve recusado pela Fundação Guggenheim um pedido de bolsa, com a qual esperava poder terminar o oratório Die Jakobsleiter, a ópera Moses undAron bem como diversas obras teóricas. Em 2 de agosto de 1946, em seguida a uma violenta crise de asma, o coração de Schõnberg parou de bater; uma injeção salvou-o. O esplêndido Trio para cordas opus 45, escrito de 20 de agosto a 23 de setembro, foi a tradução musical dessa morte momentânea. No ano seguinte, o relato de um fugitivo do gueto inspirou-
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lhe Um sobrevivente de Varsóvia opus 46. Em 1949 veio à luz a Fantasia para violino com acompanhamento de piano opus 47. As últimas criações de Schõnberg foram vocais e de inspiração religiosa. Em 1950, ele trabalhou na redação de Salmos modernos, e, para deixar bem assinalada a continuidade que neles percebia em relação aos Salmos de Davi, deu ao primeiro da série o número 151. Começou logo a compor a música, mas sua morte, sobrevinda em Los Angeles no dia 13 de julho de 1951, deixou esta última obra {opus 50c) inacabada. * * *
Schõnberg é um músico de difícil acesso, e as razões dessa dificuldade não se esgotam com a atonafidade e o serialismo. A razão profunda está no ritmo e na excepcional densidade de seu pensamento: como acontece com o pensamento musical de Haydn, o de Schõnberg concentra uma multidão de acontecimentos musicais num espaço sonoro e temporal que, fosse outro o compositor, teriam assumido dimensões bem mais vastas. Foi de propósito que, para ilustrar seu ensaio intitulado Por que a música de Schõnberg é tão difícil de compreender? (1924), Alban Berg escolheu uma obra ainda tonal, o Quarteto n° 1 para cordas opus 7. Há um célebre gracejo de Schõnberg a esse respeito: "Minha música não é moderna, ela é mal tocada." Se aceitou conscientemente essa situação, foi graças a um senso histórico de que já tratamos mais acima e que lhe tomou possível efetuar consciente e deliberadamente uma ruptura radical, ou que ele proclamava radical, com o passado e a tradição, ao mesmo tempo em que se declarava, não um dos continuadores, mas o continuador necessário e inevitável, o único continuador autêntico, dessa tradição. Razão pela qual ele sempre apregoou haver "descoberto" (em alemão, gefunden) e não "inventado" (em alemão erfunden) o princípio serial. Hoje, as questões de linguagem e de vocabulário perdem relevo diante da profunda unidade espiritual de sua obra; sem dúvida, se virtuosismo técnico houve (e era incomparável), foi todo a serviço de uma afetividade exacerbada. A resistência encarniçada que Schõnberg encontrou, particularmente com as obras de 1908-1913, deveu-se menos ao abandono da tonalidade que ao universo de sentimentos novos por ele trazidos à luz. Se sua mensagem foi mal aceita, é porque foi compreendida até demais. Poucos artistas de nosso tempo são tão estimulantes para o espírito como Schõnberg, e sua música é uma demonstração viva disso. Mas seus escritos também, a que não faltam a argumentação sólida, nem a acuidade psicológica, nem o humor mais ou menos sarcástico. Durante toda a vida, Schõnberg gostou de cultivar o paradoxo. Venerado como um deus por seus discípulos e amigos, temperamento intratável quando o que estava em discussão era sua arte, Schõnberg deixou na história a marca inconfundível que é privilégio dos grandes entre os grandes.
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ALBAN BERG (1885-1935)
Nascido em Viena em 9 de fevereiro de 1885, numa família da alta burguesia católica, Alban Berg foi educado em um meio compreensivo e aberto a todas as formas de cultura. Desde a adolescência, dividiu seu tempo entre a poesia e a música. Em 1904, seu irmão apresentou-o a Arnold Schõnberg, que primeiro tornouse seu professor — abordando com ele todas as disciplinas musicais — e depois seu amigo. As primeiras obras de Berg foram compostas sob a orientação do mestre: a Sonata para piano (1908), os Quatro Lieder e o Quarteto opus 3. Em 1911, Alban Berg casou-se com a cantora Helen Nahowski, que haveria de desempenhar importante papel em sua vida, proporcionando-lhe o apoio afetivo e os encorajamentos necessários para fortalecê-lo em seu trabalho criador. De início, Berg empenhou-se em fazer trabalhos de transcrição para prover o sustento da casa. Os Cartões postais para soprano e orquestra (Altenberg-Lieder), compostos em 1912, provocaram um tal tumulto em sua primeira apresentação que a polícia viuse forçada a intervir. Em 1914, Berg compôs Três peças para orquestra opus 6. No mesmo ano, descobriu Wozzeck, drama de Georg Büchner (1813-1837), escrito quase oitenta anos antes mas publicado somente em 1875 como obra póstuma, e resolveu fazer dele uma ópera. As circunstâncias vieram em seu auxílio, pois, mobilizado como soldado, mas lotado no Ministério da Guerra por conta de sua saúde frágil, pôde observar de perto justamente uma das faces da sociedade que está na alça de mira na peça de Büchner. Por outro lado, longe da frente de combate, trabalhou com calma, refundindo a peça e concentrando seu teor dramático em onze cenas (no original, são 26). A partitura musical dessa ópera ocupou-o de 1917 a
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1921. Apresentada fragmentariamente sob a regência de Hermann Scherchen em Frankfurt, no ano de 1924, Wozzeck foi à cena, no ano seguinte, em versão integral, na Ópera de Berlim, dirigida por Erich Kleiber. Reapresentada com freqüência no exterior, Wozzeckficouno repertório alemão até o advento do nazismo, que taxou a música de Berg de "degenerada", condenando-a a um silêncio de dez anos. Em 1925, Berg compôs o Kammerkonzert [Concerto de câmara] para piano, violino e instrumentos de sopro. Em 1926, um novo quarteto para cordas, intitulado Lyrische Suite [Suíte lírica], cuja perfeição em muito contribuiu para firmar seu renome como compositor. O contrato oferecido a Alban Berg em 1927 pela editora Universal desembaraçou-o por completo das dificuldades materiais: seu maior prazer, na época, era retirar-se de vez em quando para uma casa que ficava à beira da floresta, onde se consagrava por inteiro à música. As obras, entretanto, se tornaram mais raras. De 1928 até a data de sua morte, Berg trabalhou numa nova ópera, Lulu, cuja elaboração interrompeu por duas vezes para escrever, respectivamente, Der Wein [O vinho], cantata para soprano e orquestra (1929), e o Concerto para violino dito Em memória de um anjo. Alban Berg morreu de septicemia em 24 de dezembro de 1935, sem terminar Lulu, cujo terceiro ato não chegou a orquestrar. Deixou a lembrança de um homem cujo traço dominante era afidelidadeaos amigos — a Schõnberg e a Webern, naturalmente, mas também a seus alunos, entre os quais se distinguiram Josef Rufer, autor de um tratado sobre a técnica dodecafônica, H. E. Apostei, compositor e editor, Willi Reich, biógrafo de Berg, e o filósofo Theodor W. Adorno. A vasta cultura e a vivacidade de espírito de Alban Berg fizeram dele um ensaísta brilhante, autor de artigos, análises, panfletos, sem falar das cartas comoventes dirigidas a Helen Nahowski. Podem-se distinguir três etapas na evolução da obra de Alban Berg. A primeira, que chamaríamos de "período atonal", teve início com a Sonata para piano, num só movimento, na qual Berg desembaraçou-se a duras penas das influências de Schumann, Wagner e Brahms. Em seu Quarteto opus 3, articulado em dois movimentos — o segundo é um desenvolvimento do primeiro —, Berg consumou a ruptura com a tonalidade e deu aos intervalos uma função estrutural. Altenberg, pitoresco poeta vienense que se comprazia em rabiscar pequenos textos impertinentes em cartões postais destinados aos amigos, foi o elemento detonador da criação de uma obra para canto e orquestra -— ópera em miniatura, por assim dizer — a que Berg deu o título de Cartões postais, embora a obra tenha ficado mais conhecida como Altenberg-Lieder. O temperamento dramático do compositor revelou-se, nessa primeira obra, pela exploração de ricos meios expressivos e orquestrais. Em seguida, Berg experimentou trabalhar com a "forma pequena" em peças concisas pára clarineta e piano. As Três peças para orquestra opus 6 (Prelúdio, Ron-
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da e Marcha) datam de 1914 e são sua primeira obra destinada exclusivamente à orquestra, na qual se descobre uma tendência à complexidade da escrita e a um apuro minucioso na orquestração que prefiguram a orientação que tomará a evolução futura do compositor. No período seguinte, 1917-1926, Berg compôs suas três obras-primas: a ópera Wozzeck, o Concerto de câmara e a Suíte lírica. Embora escrita no início do século XIX, a peça de Büchner é de um espírito surpreendentemente moderno. O pobre soldado Wozzeck, motivo de troça da sociedade e de sua amante Maria, é levado ao desespero. Os personagens da peça — o médico, o capitão, o tambor-mor por quem Maria se apaixona — apresentamse sob a forma de caricaturas monstruosas. Quanto a Wozzeck, suporta nos ombros todo o peso da miséria terrestre; a conjunção do infortúnio individual com o infortúnio social movem-no ao crime e depois à autodestruição: tragédia da solidão e da incomunicabilidade, até mesmo o amigo Andres considera a lucidez de Wozzeck como um sinal de loucura e foge dele com pavor. A estrutura musical incorpora-se à evolução do drama. Berg dividiu a peça em três atos: "exposição", "peripécia" e "catástrofe". A grande inovação de Berg em Wozzeck é ter atribuído a cada cena uma forma musical determinada. Na "exposição", cada "quadro" apresenta um personagem novo por meio de "peças de caráter": suíte, rapsódia, marcha militar e berceuse, passacalha e andante. O ato central, desenvolvimento do drama, é uma espécie de sinfonia em cinco movimentos: forma sonata, fantasia e fuga, largo, scherzo, e introdução e rondó. Já o terceiro ato é uma sucessão de variações: sobre um tema, sobre uma nota, sobre um ritmo, sobre um acorde, sobre uma tonalidade, sobre um perpetuum mobile. O gênio de Berg consiste em resolver a antinomia entre uma concepção em compartimentos estanques da ópera e o drama musical contínuo tal como foi compreendido por Wagner. Na verdade, o ouvinte neófito não percebe essa complexidade orgânica, pois, pelo tratamento sutil dado aos motivos presentes ao longo de toda a peça e que passam por incessantes transformações — funcionando ora como lembranças, ora como premonições musicais e dramáticas —, Berg faz de Wozzeck um bloco inteiriço. Ele dizia: "É necessário que a técnica não passe despercebida, mas é de justiça ocultá-la profundamente." No nível da voz, Berg emprega todos os graus intermédios entre a fala pura e simples e o bel canto, passando pela declamação rítmica que Schõnberg explorou em seu Pierrot lunaire [Pierrô lunar]. Wozzeck é a obra mais representativa do teatro lírico contemporâneo. A tendência de Berg ao pós-romantismo — que, em outras de suas criações, pode por vezes incomodar — aparece nessa obra muito bem contrabalançada pela exigência de forma. A integração plena do texto com a música na ópera fazem de Alban Berg o maior gênio dramático do século XX, e Wozzeckbem pode figurar no fim dessa linhagem de obras líricas cuja perfeição as torna indispensáveis: Orfeo [Orfeu], Die Zauberflõte [A flauta mágica], Tristan und Isolde [Tristão e Isolda], Boris Godunov, Pelléas et Mélisande. E até o presente,
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não obstante a influência aparente que Berg teria exercido sobre certos discípulos — Henze, Dallapiccola —, não apareceu, no domínio difícil da arte lírica, qualquer descendência espiritual autêntica de Wozzeck. O Concerto de câmara ou Kammerkonzert está ordenado segundo um princípio ternário: três famílias de instrumentos — piano solista, violino solista e um conjunto de treze instrumentos de sopro — e três movimentos. O primeiro movimento (tema e variações) põe em ação o piano e os instrumentos de sopro; o segundo (em duas partes, sendo a segunda a retrogradação da primeira), o violino e os instrumentos de sopro; o terceiro, a totalidade dos instrumentos. Esse terceiro movimento, que tem como ponto de partida um motivo resultante da transcrição musical dos nomes de Schõnberg, Webern e Berg, reúne os elementos constitutivos dos dois movimentos precedentes para eliminá-los progressivamente em seguida. Essa ordenação ternária estende-se até a concepção harmônica, uma vez que Berg mistura em sua linguagem episódios tonais, episódios atonais e outros "parcialmente sujeitos às leis da técnica dos doze sons". A Lyrische Suite é o segundo quarteto para cordas de Alban Berg. Composta em 1925-1926, a obra foi criada em Viena em janeiro de 1927 pelo Quarteto Kõlich, obtendo um sucesso extraordinário. Nela, Berg submete em grande medida sua técnica às leis seriais, explorando o processo a fundo ao empregar os conceitos de permutações e de séries derivadas. A série de base por ele escolhida para construir a Lyrische Suite é a mesma que a do Lied intitulado Schliesse mir die Augen beide, primeira experiência dodecafônica feita por Berg em 1925 e dedicada ao diretor da editora Universal com o propósito de convencê-lo de que havia grande interesse no novo método de composição descoberto dois anos antes por Schõnberg. Essa série, "encontrada" por um certo Klein, aluno de Berg, oferece determinadas particularidades: não apenas enumera os doze sons da escala cromática, como contém todos os intervalos possíveis dentro do sistema temperado. Além disso, é completamente simétrica, construída em duas figuras isomorfas dispostas "em espelho", o que significa que, se for tocada em sua forma retrógrada — ou seja, começando pelo fim —, obtêm-se os mesmos intervalos da enunciação original. A partir dessa série básica, Berg deduziu três formas dela derivadas, permutando certos sons entre si. Os seis movimentos da Lyrische Suite — ora seriais, ora não seriais — sucedem-se em alternância de movimentos cada vez mais vividos e movimentos cada vez mais lentos. Esse percurso apresenta-se como uma trajetória "catastrófica" cujo desenrolar dramático assemelha-se curiosamente ao de Wozzeck partindo de um allegretto gioviale, cuja construção perfeita, em forma sonata, exprime um harmonioso equilíbrio, Berg encaminha-se progressivamente para o delírio, depois para o drama e para o desespero, descrevendo estados emocionais chocantes: andante amoroso de forma rondó; allegro misterioso e trio estático: forma scherzo; adagio appassionato: forma binária e variações; presto delirando e tenebroso: duplo scherzo; largo desolato: estrutura livre, de forma rapsódica.
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Adorno não se enganara ao ver na Lyrische Suite uma "ópera latente". De fato, sabemos desde 1976 — data da morte de Helen Berg — que a Lyrische Suite é a "história" sonora de uma profunda e violenta paixão que Alban Berg sentiu em 1925 pela mulher de um amigo, Hanna Fuchs. Amor desvairado, fadado à separação e ao desespero, porque nem Hanna nem Alban encontraram forças para romper o vínculo conjugai. Esse desgosto, dolorosamente contido em segredo no âmago de um coração ardente, expande-se com violência tanto maior na linguagem esotérica da obra de arte. Encontrou-se, em poder da filha de Hanna, uma partitura da Lyrische Suite inteiramente anotada pelo próprio Berg, com observações dirigidas à mulher amada. Essa partitura revela um material composicional de caráter criptográfico: a obra é percorrida por uma célula melódica de quatro sons que representam — no sistema alemão, em que as notas são designadas pelas letras do alfabeto -— as iniciais de Berg Alban e de Fuchs Hanna:
Esta célula também aparece no início da segunda forma da série dodecafônica; pode-se reconhecê-la facilmente no início do surpreendente allegro misterioso. Ao criptograma melódico, Berg acrescenta um símbolo matemático: o número de compassos de cada movimento, assim como os andamentos metronômicos, são calculados com base nos números-fetiches de Alban e de Hanna — 1 0 e 23 — e em seus múltiplos. E mais: Berg introduz na própria textura da obra duas citações carregadas de sentido. A primeira, no quarto movimento, é o tema de uma parte cantada da Sinfonia lírica escrita em 1923 por Alexander von Zemlinski, cunhado de Schõnberg e outrora professor de Berg, a quem a obra é dedicada — tema que, na obra original, apóia-se sobre o texto Du bist mein Eigen [Tu és meu verdadeiro eu]. A segunda citação, no sexto movimento, é o Leitmotiv do desejo de Tristan und Isolde. Para todos que se interessam por música, esse motivo representa o símbolo sonoro da reunião dos amantes na morte. Na partitura da Lyrische Suite oferecida por Berg a Hanna, ele transcreveu, à margem do último movimento, os versos sem esperança do Deprofundis clamavi de Baudelaire. A obra termina com uma desintegração progressiva da melodia, cujas duas últimas notas incorporamse pouco a pouco ao silêncio, como que desencorajadas pela lentidão do tempo... Je jalouse le sort des plus vils animaux Qui peuvent se plonger dans un sommeil stupide Tant l'écheveau
du temps lentement se dévide! '
Invejo a sorte dos animais os mais vis / Que podem mergulhar num sono estúpido / Enquanto o novelo do tempo lentamente se esvazia! (N. T.)
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No que concerne à escrita instrumental das cordas, pode-se constatar que, desde que foi composta a Lyrische Suite, nenhum compositor chegou tão longe quanto Berg na pesquisa das variedades de timbres desses instrumentos e dos modos diversos de tocá-los. Basta ouvir o extraordinário allegro misterioso, em que o estaticismo harmônico é povoado pela sonoridade móvel das diferentes matérias, para constatar que Berg atinge nessa obra um equilíbrio sonoro extremamente raro. Os modos de tocar não têm conta: perto do cavalete (sonoridade um pouco metálica), col legno (os toques se efetuam com a madeira do arco, seja batendo com ela nas cordas, seja esfregando-a nelas), em pizzicato (cordas pinçadas com os dedos), em flageolets (sons levíssimos, próximos dos harmônicos), sur la touche (sonoridade muito suave, um pouco irreal), etc. Em 1928, Berg transcreveu três dos movimentos da Lyrische Suite para orquestra de cordas. A terceira fase da evolução de Berg corresponde a uma busca de síntese entre a linguagem tonal e o processo serial. Parece, de fato, que o esforço do compositor tendeu cada vez mais a mascarar a técnica dodecafônica que empregava. Esse período foi quase inteiramente preenchido pela elaboração de uma segunda ópera, Lulu, que se apóia em dois textos do dramaturgo alemão Franz Wedekind (1864-1918). Nessa obra, mais uma vez, Berg observa com compaixão a miséria da condição humana. Lulu é o gênero de femme fatale que se move numa roda de reputação duvidosa, personagem ambígua, ao mesmo tempo carrasco e vítima. A estrutura dessa ópera inteiramente serial é totalmente diferente daquela de Wozzeck. Em Lulu, os episódios musicais em sua totalidade derivam de uma série de doze sons que representa a personagem de Lulu. As outras personagens, assim como certas situações dramáticas, são representadas por modelos temáticos derivados dessa primeira série. Como em Wozzeck, Berg trata a voz com a maior liberdade, tirando partido tanto maior do hei canto na medida em que escolhe para o papel de Lulu um timbre de coloratura. Mas Lulu não tem nem a grandeza nem a unidade de Wozzeck. A força dramática da música foi talvez um tanto embotada pelo libreto, muito descosturado. Mais importante: a estética expressionista — que predominava nos anos 1920 e marcou profundamente Lulu — parece ser incompatível com o espírito serial que Berg quis impor rigorosamente. A morte impediu Berg de terminar a orquestração do terceiro ato de Lulu, mas já se conheciam passagens da ópera graças a uma obra para orquestra com soprano, Lulu Symphonie [Sinfonia de Lulu], que Berg havia, ele próprio, extraído de sua ópera em gestação e que estreou em Berlim em 30 de novembro de 1934 sob a regência de Erich Kleiber. Após a morte de Berg, sua viúva proibiu que se concluísse a obra porque Schõnberg se havia recusado a ocupar-se dela. Foi preciso esperar mais uns quarenta anos até que o compositor Friedrich Cerha levasse a cabo o trabalho. A versão assim terminada estreou em Paris no dia 24 de fevereiro de 1979, sob a direção de Pierre Boulez.
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À margem de sua ópera, Berg escreveu uma grande ária de concerto para soprano e orquestra, assimilável à concepção de cantata e intitulada Der Wein. O texto provém de três poemas de Baudelaire traduzidos para o alemão. Quanto à música, é do mesmo espírito de Lulu. Finalmente, Berg interrompeu uma segunda vez o trabalho de composição de Lulu para escrever, já no próprio ano de sua morte, o Concerto em memória de um anjo. Encomendado pelo violinista americano Louis Krassner, esse concerto, obra derradeira de Berg, foi composto em 1935 e, contrariamente a seus hábitos, no lapso de tempo muito curto de quatro meses. Berg dedicou-o à memória de Manon Gropius, morta aos dezoito anos, filha do arquiteto do Bauhaus e de Alma Mahler. Nesse concerto, Alban Berg procurou conciliar os dois mundos antagônicos entre os quais se recusava a fazer uma esjolha: o mundo tonal, de que foi impregnado por sua cultura, e o mundo dodecafônico, cuja necessidade sentia. Isso fica particularmente evidente no quarto movimento, em que toma de empréstimo a Johann Sebastian Bach a melodia de um coral — Es istgenug! — para tratá-la sob a forma de variações harmonizadas, alternativamente, à maneira de Bach e segundo a técnica serial. Não há como deixar de admirar a mestria do compositor no manejo arriscado dessas duas linguagens, sua habilidade diabólica, que consegue deixar intacta a qualidade da expressão musical. A obra constitui-se de quatro movimentos encadeados aos pares, andante e allegretto, allegro e adagio, formando uma espécie de arco que parte da lentidão para a ela retornar, passando pelos dois movimentos rápidos do pico central. O emprego dos diferentes temas e, principalmente, a volta do tema da introdução no final da obra, confirmam esse objetivo. ** *
Berg sempre perseguiu o sonho de um equilíbrio entre a tradição tonal e a nova linguagem ensinada por Schõnberg. Certos especialistas — entre eles, Boulez e Adorno — censuraram-no severamente por isso. O segundo escreveu: "A fraqueza de Berg é não conseguir renunciar a nada, quando a força de toda música nova reside na renúncia." Mas, na verdade, todos os músicos reconhecem em Wozzeck ou na Lyrische Suite obras que alcançam uma espécie de perfeição musical. O agudo sentido da forma e da organização da obra, agindo paralelamente a uma preocupação com trabalhar bem os detalhes — a orquestração de Wozzeck é uma autêntica obra de ourivesaria —, e isso sem jamais perder de vista as grandes linhas de força, faz de Berg um compositor genial, mas cujas soluções são por demais pessoais para fazerem escola e engendrarem uma descendência. Berg passou à história como um fenômeno isolado, cujo milagre — incomparável -— consiste nessa síntese bemsucedida de duas estéticas radicalmente opostas. Concluiremos endossando a afir-
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mação de Michel Fano e Pierre-Jean Jouve: "A desenvoltura de Berg é soberana em matéria de formas, de articulação, de invenção de sonoridade, entre o passado e o futuro da música. Esse revolucionário nada perdeu dos ensinamentos antigos: é um príncipe."
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Anton Webern nasceu em Viena em 3 de dezembro de 1883. Os Webern tinham o título de barões desde 1705, mas o pai de Anton nunca o usou, e o próprio Anton repudiaria a partícula nobiliárquica "von" a partir de 1918. Depois de ter estudado piano, violoncelo e teoria musical em Klagenfurt, Webern foi aluno de musicología, no Conservatório de Viena, de Guido Adler. Ingressou na Universidade de Viena em 1902 e tornou-se doutor em musicología em 1906 com tese sobre o Choralis Constantinus de Heinrich Isaac. O primeiro encontro de Webern com Schõnberg deu-se dois anos antes, em 1904, e este último transmitiu-lhe seus ensinamentos até 1908. A primeira obra publicada de Webern foi a Passacaglia opus 1, de 1908, que ainda deixa transparecer vestígios do estilo mahleriano; por outro lado, a referência a uma forma musical tradicional, a passacale, revela a atitude dialética de Webern em relação à sua herança cultural, sobretudo durante os últimos anos de sua atividade criadora. Essa forma lhe permitiu adotar um tipo de escrita contrapontística a que Schõnberg havia dado novo alento. A obra revela certas características que serão atuantes em toda a música de Webern, até o opus 11: temática entrecortada de silêncios freqüentes, dinâmica geralmente fraca. A técnica de contraponto de Webern, formada no estudo dos mestres do Renascimento, como Heinrich Isaac, aparece mais desenvolvida ainda em Entflieht aufLeichten Kãhnen, coro a capella com texto de poemas de Stefan George. Nessa obra, o princípio do cânone é utilizado de maneira permanente, e Webern parece emancipar-se dos traços fundamentais da retórica musical clássica, com suas estruturas de repetição, seus pontos de referência e suas periodicidades subjacentes.
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Discípulo de Schõnberg Pode-se observar, a partir das Melodias opus 3 e4, com poemas de Stefan George, uma virada decisiva no pensamento musical de Webern, que rompeu com os princípios da tonalidade, pôs em prática uma espécie de dúvida radical, de questionamento generalizado da tradição musical que lhe foi transmitida. René Leibowitz observou que esse ato de libertação de Webern teve lugar mais ou menos no mesmo momento que o de Alban Berg, e através de obras escritas para um mesmo material musical (voz e piano, depois quarteto de cordas). Os Cinco movimentos para quarteto opus 5 ilustram particularmente bem esse período da obra de Webern, seja por sua concisão extremamente densa, seja por uma técnica de variações dos motivos temáticos que permite "üuminá-los" sempre de maneira diferente. A depuração, a cristalização das formas, a tendência para uma redução ao essencial afirmam-se nas Seis peças para orquestra opus 6 e nas Quatro peças para violino e piano opus 7; nas quais a assimetria parece ser o princípio que prevalece, assim como a rejeição de quaisquer padrões preestabelecidos, fixados a priori, como se a cada obra devesse ser atribuída uma forma autônoma. A escolha das "formas pequenas", concentradas, aforísticas, faz pensar em certas tradições orientais — no haicai japonês, notadamente. Webern parece diferenciar-se cada vez mais nitidamente de Schõnberg, como se quisesse radicalizar suas pesquisas. A partir do Opus 5, a harmonia weberniana mostra-se mais cromática e mais tensa que a de Schõnberg. As relações entre o mestre e o discípulo, que permaneceram amigos, passaram por momentos de rude tensão, e o motivo disso não foi apenas o choque de temperamentos diferentes, mas uma reação que o próprio Schõnberg analisou mais tarde com lucidez e franqueza: Webern apressava-se a tirar imediatamente partido de tudo o que eu pudesse escrever, dizer ou projetar. (...) O que eu n ã o entendi bem foi que ele simplesmente estava disposto a p ô r em prática minhas idéias na sua m ú s i c a antes de eu próprio ter c o n d i ç õ e s de o fazer na minha.
Em 1912, Webern escreveu um texto sobre Schõnberg no qual ressaltava as contribuições negativas da obra do mestre em relação à herança do passado. Essa "destruição de um espaço", de que fala Francastel a propósito das artes plásticas, haveria de ser levada mais longe por Webern do que por Schõnberg, antes que as gerações de depois da Segunda Guerra Mundial viessem a dar continuidade a essa estética. Webern assume tal radicalização em diversos planos: no plano da forma global da obra, tão "concentrada" quanto possível, bem como no nível de seus elementos constitutivos, que parecem emergir do silêncio para, em seguida, a ele retornar. Esses elementos se dispõem, no tempo, de maneira rigorosamente descontínua, como para evitar que algum motivo pareça dominante e seja percebido como tema.
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Webern conseguiu, portanto, desligar sua obra da ressurgência dos esquemas formais do passado, das hierarquias admitidas entre os acordes harmônicos, entre as funções atribuídas aos intervalos, entre vozes principais e vozes secundárias. Desse modo, os intervalos tornam-se ambíguos. Não conseguem decidir-se a ser simplesmente considerados como consoantes ou dissonantes, mas dependem fundamentalmente do contexto em que se inscrevem. Na obra de Webern, o conceito de intervalo é considerado, em suas implicações filosóficas, como síntese de dois conceitos antinómicos: a unidade e a dualidade, o contínuo e o descontínuo, o simultâneo e o sucessivo — conforme adotemos, para encarar o intervalo, um ponto de vista harmônico ou melódico. Entretanto, para provocar uma impressão de descontinuidade, de imprevisibiHdade, de desagregação da matéria sonora, Webern utiliza, segundo a definição de Henri Pousseur, a dissonância em sua forma mais tensa, o desencontro h a r m ô n i c o em seu maior grau, entre termos que se acham aproximados no tempo. Esse f e n ô m e n o torna-se a célula geradora de u m tecido musical distributivo, constelatório, onde mais nada está subordinado a outra coisa, onde tudo — pelo fato de simplesmente estar presente (e sem qualquer aspiração que n ã o seja a essa presença) — goza de igual importância significativa. Para garantir a integridade desse novo equilíbrio h a r m ô n i c o , desse espaço sonoro relativista, Webern faz com que a ele se conformem todos os outros aspectos de seu discurso (estrutura da polifonia, orquestração).
Inscrito nas Duas melodias para voz e oito instrumentos opus 8, o verso de Rilke "Weil ich niemals dich anhielt, halt ich dich fest" [Porque jamais te retenho, conservo-te firmemente a meu lado], adere com particular força à estética então adotada por Webern. O mesmo se dá com o exergo das Seis bagatelas opus 9 ( 1913), dedicadas a Alban Berg: "Non multa sed multum — como eu gostaria que isto pudesse aplicar-se ao que aqui te ofereço!" Até a criação das Três pequenas peças para violoncelo e piano opus 11, tais citações dizem respeito implicitamente ao pensamento musical de Webern, a essa sua vontade de despojar a obra de qualquer artificio, de romper com a linearidade do tempo, de viver na pura alternância entre presença e ausência. Por outro lado, a preocupação com o timbre parece ter importância cada vez mais decisiva em sua escrita. Webern desenvolveu a técnica da Klangfarbenmelodie [melodia de timbres], já focalizada por Schõnberg, que, em seu Tratado de harmonia de 1911, analisara as possibilidades de aplicar os princípios melódicos a outras propriedades do som que não a altura, e em particular ao timbre. Desse modo, a Klangfarbenmelodie contribui para dar a cada som uma identidade específica, particularizando-o. Segundo a fórmula de Pousseur, "Webern diferencia e dinamiza a estrutura vibratória interna de cada acontecimento auditivo, para torná-lo digno da atenção mais aguçada". O som já não é considerado abstratamente, de acordo com sua altura relativa, mas sim de acordo com sua altura absoluta e tendo em
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conta as interações dos componentes fundamentais do fenômeno acústico: altura, timbre, intensidade, duração. As Três pequenas peças para violoncelo e piano opus 11 (1914) aparecem como uma obra-chave na música de Webern. Trata-se de uma obra de extrema tensão, que dá a sensação de um dilaceramento interno: Webern alcança um cromatismo tão cerrado que a harmonia não parece passar por nenhuma progressão. Reina sobre essa música uma impressão de suspense. O ouvinte já não é orientado dentro dela por fios condutores, por ligações dedutivas claramente definidas; não mais existem, como na tradição clássica, momentos de tensão e de repouso distribuídos com o objetivo de alimentar os interesses psicológicos da percepção. Nada havendo que lhe imponha uma direção unilateral a seguir no percurso da obra, o ouvinte não se sente, nesse percurso, compelido por qualquer espécie de fatalidade, o que lhe dá a possibilidade de concentrar-se no aqui e no agora. Ao passo que o mundo da tonalidade era regido por um jogo de coerções preexistentes (por exemplo, a preparação ou a resolução das dissonâncias) e de hierarquias (entre os acordes, entre as diferentes partes instrumentais), na música de Webern cada som existe por força de sua própria presença e não em função de suas relações com o que vem antes e o que vem depois. A lógica da composição, muito forte em Webern, não impõe, entretanto, uma orientação privilegiada à "leitura" da peça, que permanece sempre "relativa". A música de Webern contém uma taxa elevada de imprevisibilidade. Reserva ao ouvinte uma surpresa atrás de outra, graças a uma articulação temporal que não pára de renovar-se, a uma ausência de simetria aparente. A matéria sonora parece atomizada. Por exemplo, as Cinco peças para orquestra opus 10 representam verdadeiros microcosmos, dentro dos quais cada som faz-se ouvir pelo que vale em si mesmo, em sua nudez. No dizer de Schõnberg, Webern exprime "um romance inteiro num simples suspiro". Tudo se passa como se ele se esforçasse por afastar na medida do possível todo esforço retórico, para ater-se ao elementar e ordenar no tempo, como unidades autônomas, estados musicais rarefeitos e por assim dizer cristalizados, reduzidos a motivos melódicos extremamente condensados — às vezes, até mesmo, a um único som. As Três peças pequenas para violoncelo e piano opus 11 representam, ao que tudo indica, o momento extremo do despojamento de Webern, que antecedeu à sua renúncia a um material sonoro nos confins do impalpável, do inapreensível, para trabalhar com unidades sonoras bem definidas, que inscreve em relações de trocas recíprocas, em vez de insistir numa descontinuidade que é negativa demais. Do Opus 12 ao Opus 19, Webern combina a voz humana com diferentes efetivos instrumentais, aplicando, por meio de instrumentações que variam de uma peça para outra, os princípios da Klangfarbenmelodie e desenvolvendo os aspectos contrapontísticos de sua escrita. Na escolha dos efetivos instrumentais muito restritos
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— em que se faz sentir, de maneira incisiva, o interesse pelas cores específicas dos instrumentos — há numerosas afinidades com as opções feitas por Schõnberg no que diz respeito à associação entre voz e instrumentos: basta citarmos as Seis melodias opus 14 (1915-1921), as Cinco melodias sagradas opus 15 (1917-1922), os Cinco cânones opus 16(1924), as Três melodias populares sagradas opus 17(1924) ou as Três melodias opus 18 (1925). Desde os Cinco cânones opus 16, Webern sai, de certa maneira, de uma "crise da indeterminação". Aos poucos, o silêncio assume um peso diferente em sua obra; deixa de ser o vazio que engole cada fenômeno sonoro e passa a adquirir um valor "positivo", na medida em que torna possível a articulação do tempo e favorece, para o ouvido, uma diferenciação das unidades sonoras. Do Opus 11 ao Opus 16, a escrita polifónica de Webern torna-se cada vez mais densa e complexa. Em geral, a extensão dos registros instrumentais explorados é muito ampla e abrupta, como se a intenção de Webern fosse embaralhar toda referência possível às funções tonais dos intervalos, por meio de um dilaceramento das figuras sonoras. O tipo de instrumentação que adota pode ser qualificado como "constelatório", em que as diferentes partes instrumentais constituem, jimios, o instrumento dessas estruturas rompidas e manifestam assim um novo tipo de unidade.
Para além de Schõnberg A partir das Melodias opus 17, Webern utiliza a série dodecafônica. Mas, diversamente de Schõnberg, ele a desvincula de toda implicação temática; a série constitui o verdadeiro núcleo gerador da obra, assegura sua coerência interna, garante sua unidade orgânica. Havia sido seduzido, através da leitura da Metamorfose das plantas, de Goethe, pela idéia, ali exposta, de uma planta original de que teriam derivado todas as demais. Ora, a série é justamente concebida como o centro das operações composicionais, aquilo de que decorrem todas as particularidades da obra, ainda que não seja "exteriorizada" como tema nem tenha jamais outro papel que não o de tecer de maneira subjacente todos os laços que unem os fenômenos sonoros postos em ação. Devemos ver na concepção serial, decerto, a ambição de percorrer uma trajetória contínua desde a essência da obra até sua existência. É precisamente o que subentende Henri Pousseur quando declara: As séries de Webern são entidades gerais — por isso mesmo, virtuais, em potência, n ã o em ato — mas engendram entidades que, estas sim, são concretas, atuais, limitadas, relativas, portanto perecíveis.
A partir desse estágio de sua evolução, evidencia-se mais do que nunca que a escrita de Webern não opõe as dimensões horizontais e verticais do tempo — com mais razão ainda, o harmônico e o melódico —, mas trabalha sobre múltiplas
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direções; é o que revela sua exploração de figuras sonoras que ele apresenta nas mais diversas dimensões do tempo. E é o que confere à sua obra, no que diz respeito à audição, uma mobilidade intrínseca. Uma obra como a Segunda cantata, de 1943, é particularmente reveladora dessa tendência da obra weberniana. A partir do Trio para cordas opus 20 (1927), Webern sentiu a necessidade de ampliar seu sistema, de enfrentar a problemática da grande forma e, para tanto, de reintegrar certas técnicas antigas voluntariamente postas entre parênteses durante o período em que, de maneira a mais radical, fez tábula rasa. Por isso, o primeiro movimento desse trio é aparentado à forma rondó, e o segundo à forma sonata. Dentro do desenvolvimento estético de Webern, essa obra, que se inscreve num período dos mais ascéticos de sua atividade criadora e anuncia o pensamento musical serial em seu aspecto mais rigoroso, situa-se no ponto de articulação entre a densidade polifónica que marca suas obras precedentes e a busca de maior clareza, característica de suas obras futuras. Webern descobre meios de transfigurar essas técnicas, de ultrapassar uma situação de simples antítese para com a tradição: não se trata de recuar, mas de ir além da alternativa. Com a Sinfonia opus 21 (1928), inaugura-se um período de grande mestria na arte da variação e do cânone, técnicas que se encontram nas mais antigas manifestações da arte polifónica. René Leibowitz salienta que "o aspecto rítmico é tão simples que ele termina por expressar-se numa simetria quase total, e no entanto essa simetria é de um tal refinamento que se confunde com a assimetria absoluta". O Quarteto para violino, clarineta, sax-tenor e piano opus 22 (1930) testemunha essas mesmas características, se bem que o princípio de variação mostre-se nessa obra ainda mais desenvolvido. Nesse quarteto, como em uma obra instrumental mais tardia — o Concerto para nove instrumentos opus 24 (1934) —, ou em Das Augenlicht [A luz dos olhos] opus 26 (1935), que confronta orquestra e coro, a instrumentação contribui para ressaltar a organicidade da obra mais que o caráter individual de cada instrumento. Além disso, Webern consegue inscrever as inovações de sua escrita no interior de formas que escapam tanto à redução e à concisão extremas de suas primeiras tentativas como às formas tradicionais — por exemplo, nos Três cantos opus 23 (1934), cuja forma revela independência em relação à do Lied. O desejo de trabalhar com um material sonoro o mais homogêneo possível, capaz de manifestar a unidade profunda do discurso serial, levou Webern a escrever sua primeira obra para piano, as Variações opus 27 (1936). Nessa composição, o conceito de variação é explorado no interior de uma forma em que a impressão de circularidade domina. Para retomar uma idéia de René Leibowitz: nas Variações para piano, de Webern, "tudo é tema", à imagem das variações beethovenianas, ou melhor, "tudo é variação" a partir de uma célula que engendra a obra em seus múltiplos aspectos.
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Desde então, o ideal de uma ordem serial manifesta-se cada vez mais distintamente. As Variações para orquestra opus 30 (1940) e as três obras que Webern compôs com coro — Das Augenlicht opus 26 (1935), a Cantata n° 1 opus 29 (1939) e a Cantata n" 2 opus 31 (1943), todas escritas para textos de Hildegard Jone — realizam esse equilíbrio entre a ressurgência de formas tradicionais e um universo serial que anuncia as pesquisas de Boulez, Stockhausen, Berio e Pousseur no início dos anos 50. Segundo o próprio testemunho de Hildegard Jone, a propósito da Cantata n" 1, Webern desejava que não fosse percebido nenhum centro de gravidade, que a estrutura harmônica ficasse em expectativa. Pierre Boulez deu a um texto seu, consagrado a Webern, o título de Seuil [Limiar], justamente para ressaltar o fato de que as obras do compositor vienense constituíram uma base considerável de reflexão e de trabalho para os músicos que viriam a seguir. As contribuições de Webern são múltiplas: suas pesquisas não foram apenas uma etapa decisiva para o pensamento serial; o sentido que ele possuía do tempo musical, da descontinuidade e do silêncio influenciou profundamente compositores que já não se podiam satisfazer com as concepções estéticas formuladas pela tradição ocidental da obra de arte. * * *
Da biografia de Webern, fora de sua atividade como músico, pouco há de especialmente relevante para mencionar-se. Certas cartas a Alban Berg revelam estados psicológicos de forte angústia, particularmente em 1912; e sabe-se que, em 1913,. um tratamento psicanalítico ajudou-o — de forma durável, tudo faz crer — a recuperar-se de uma terrível depressão: nem a depressão nem o tratamento parecem ter alterado a evolução da obra. Mais ligada a sua atividade de compositor esteve a impregnação mística de seu pensamento e de sua sensibilidade. Não consta que em tempo algum ele tenha posto em discussão sua fé católica, se bem que freqüentasse pouco as igrejas; muitas de suas obras vocais recorrem a textos religiosos. Essa fé não era incompatível com buscas esotéricas, e tampouco se achava isenta de uma certa tendência panteísta: Webern tinha pela natureza um amor infinito e fazia do alpinismo uma verdadeira prática espiritual. Sua tendência mística aprofundar-se-ia depois que, em 1926, teve início uma amizade cada vez mais íntima com a poetisa Hildegard Jone, oito anos mais jovem que ele. A correspondência de Webern com Hildegard e os numerosos textos seus que ele pôs em música demonstram uma autêntica colaboração criadora entre ambos, na qual as aspirações espirituais vão de par com as pesquisas estéticas. Essa adesão reforçada aos valores religiosos não foi obstáculo (um conflito interior, doloroso no início, acabou por ser superado) à sua convicção democrática
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e à sua aceitação de colocar-se sob a dependência do Partido Socialista Austríaco para dirigir, entre 1923 e 1934, o Coral dos Trabalhadores (proibido pela repressão antioperária de Dollfuss), bem como a Orquestra Sinfônica dos Trabalhadores Vienenses. A vida de Webern revela-se quase inteiramente orientada para a pesquisa musical, assumida em condições de quase segredo. Para realizá-la, em trabalho solitário, ele teve que aceitar imposições de sobrevivência até o fim da vida (deu aulas particulares, foi regente de orquestra ou de coro em diversos teatros de opereta na Alemanha, assim como em Viena e em Praga, trabalhou como consultor da rádio austríaca para questões relativas à música nova e como revisor de provas para a editora Universal). Os esforços de Webern para difundir a nova música em meios populares estiveram longe de ser bem-sucedidos. De 1935 em diante, suas atividades públicas se foram reduzindo com a ascensão do nazismo, e suas principais fontes de renda ficaram limitadas às aulas particulares. Durante a Segunda Guerra Mundial, a obra de Webern foi declarada "degenerada e bolchevique" pelos nazistas. E ele não escondia a profunda aversão que lhe inspirava o nazismo:
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O que acontece hoje à Alemanha equivale à destruição da vida do espírito! É bem difícil p ô r de lado as contingências políticas porque elas são u m ã questão de vida ou morte. Mas isso s ó torna ainda mais urgente o dever de salvar o que pode ser salvo. N ã o estamos longe do momento em que a pessoa irá para o cárcere por ser u m artista sério. O que pode acontecer de menos ruim é cada um se ver encurralado no plano material.
Em 1945, Webern saiu de Viena (sua ligação com a Áustria era de tal ordem que, todo esse tempo, deixou-o incapaz de se decidir a expatriar-se, apesar do isolamento e da incompreensão que sofreu) com a mulher e as filhas para buscar refugio numa aldeia dos Alpes na região de Salzburgo. Nesse mesmo ano, no dia 15 de setembro, lá encontrou a morte, abatido a tiro, por trágico equívoco de um soldado norte-americano. O conjunto da obra de Webern é excepcionalmente exíguo. Mas os 31 opus que a constituem quase por completo (e que têm a duração de quatro discos) deram ao pensamento musical do após-guerra um impulso decisivo; essa fonte inesgotável de ensinamentos já estimulou de maneira privilegiada diversas gerações de músicos.
Paul Hindemith Menino superdotado (praticando desde a mais tenra infância o violino, a viola, o clarinete e o piano), Paul Hindemith (1895-1963) teve estréias fulgurantes: desde junho de 1915 foi o primeiro violino da orquestra da Ópera de Frankfurt. O rapaz tinha exatamente vinte anos e transbordava talento: não apenas se tornou, três meses depois dessa primeira nomeação, Konzertmeister [regente principal] da Ópera de Frankfurt, como nem mesmo todas as suas atividades conseguiram impedi-lo de praticar assiduamente o quarteto de cordas, inclusive durante sua mobilização na Primeira Guerra Mundial. A partir de 1919, ele começou a tornar conhecidas as suas primeiras obras instrumentais, muito influenciadas por Brahms e Reger. Mas sua fama só começou em 1921, em vista do escândalo provocado pela representação de sua primeira obra dramática. A dialética escândalo/sucesso havia-se tornado moeda corrente nas manifestações artísticas desde o início da República de Weimar. Os "miasmas" da era precedente, razoavelmente retrógrada, fechada em si mesma e repressiva no plano cultural, tinham-se dissipado logo após o fim da guerra. Passada a depressão da derrota, veio a explosão. Uma verdadeira embriaguez apoderou-se do mundo artístico alemão; a "revolução cultural" chegou mesmo a ultrapassar de longe a revolução política. Em Berlim, qualquer manifestação de modernidade fazia as multidões correrem: prosperavam a pintura abstrata, o expressionismo, o dadaísmo, o teatro futurista, o jazz e as "revistas
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negras". No plano musical, todas as cidades rivalizavam e criavam vigorosamente (Festival de Donaueschingen, em 1921). Com suas quatro óperas, vinte salas de concerto e cerca de oitenta formações orquestrais, Berlim tornou-se, nos anos 20, uma das grandes capitais musicais do mundo, suplantando Viena pela ousadia de suas escolhas e a intensidade de seu brilho. Entre 1918 e 1933, Busoni, Schõnberg, Hindemith (ensino e composição), Furtwãngler, Erich Kleiber, George Szell, Otto Klemperer e Bruno Walter (maestros) encontravam-se ali em plena atividade, e as criações mundiais sucediam-se num ritmo nunca visto até então (Alban Berg, Wozzeck, 1925; Darius Milhaud, Cristóvão Colombo, 1930). Nesse contexto, convém situar a ascensão fulgurante de Paul Hindemith após as primeiras representações, em 1921, de sua obra em um ato intitulada Morder, Hoffnnng der Frauen [Assassinato, esperança das mulheres], baseada num libreto do pintor expressionista Oskar Kokoschka. Duas outras óperas em um ato, NuschNuschi, referente a "marionetes birmanesas", e Sancta Susanna, garantiram a seu autor uma reputação mundial, a partir desses anos de 1921-1922. Essas três obras têm em comum um agudo senso de provocação {Morder evoca a luta entre os sexos nos primordios da humanidade; Sancta Susanna põe em cena as fantasias eróticas de uma freira), um oportunismo talentoso e agressivo e uma música ainda não "decantada", mas onde se identifica uma técnica já muito segura ("A necessidade de olhar duro e bater com força", escreveu Lucien Rebatei). Na mesma época, no nascente Festival de Donaueschingen, tocõu-se uma bela partitura instrumental de Hindemith, seu Quarteto de cordas n° 2 opus 16, que o compositor executaria na Alemanha inteira como violista de um grupo de câmara que acabara de criar, o Quarteto Amar. Durante toda a sua vida, Hindemith foi um violonista-viofista ímpar. Nesse contexto, não há surpresa em que tenha sido proposto, em 1923, que ele participasse da comissão diretora do Donaueschingen. Dotado de grande curiosidade a respeito de tudo, franco e empreendedor, o jovem compositor fez com que fossem executadas imediatamente (em 1924) as partituras mais significativas da Escola de Viena (Webern: Opus 9 e Opus 24) e conferiu a esse festival de música contemporânea, por seu dinamismo e sua imaginação, uma solidez que ele ainda preserva até hoje. No plano musical, Hindemith ainda não havia encontrado seu estilo. Assim, as obras desse primeiro período, de 1918-1923, foram escritas numa língua que misturava Puccini, Schreker e Richard Strauss; ao mesmo tempo, é possível identificar em seu Quarteto n° 2, ultra-romântico, afinidades com o Schõnberg de A noite transfigurada, afinidades estas que depois desapareceram; em sua primeira Kammermusik [Música de câmara] opus 24/1 (1921), podem ser identificados o parentesco momentâneo de sua escrita com a de Stravinski (liberdade rítmica) e a de Darius Milhaud (politonalidade) e a influência do jazz e da sonoplastia (Luigi Russolo) em sua suíte para piano intitulada 1922 (opus 26), onde Hindemith recomenda que se trate o piano "como uma máquina", a murros, se preciso for.
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Como todos os compositores do mesmo período, após uma primeira fase "de libertação", Hindemith sentiu necessidade de ordem. Na mesma época em que Steavinski se debruçava sobre as partituras de Pergolesi, Hindemith "mergulhou" em Haendel e J. S. Bach, assim se aproximando de uma primeira virada estilística. No ciclo de melodias intitulado Das Marienleben [A vida de Maria, 1924], baseado em textos de Rilke, assistimos a uma domesticação espetacular da "selvageria" das obras anteriores, a um controle maior da estrutura geral e também à utilização de esquemas formais diretamente saídos do barroco. A disposição dos movimentos (fuga, coral, prelúdio, marcha e passacalha) do Quarteto de cordas n° 4 opus 32, de 1923, e sua ópera Cardillac (1926) em três atos, cujo modelo claramente confesso são as grandes obras dramáticas de Haendel, trazem os vestígios mais espetaculares dessas mudanças. Falou-se em "neobarroco" para definir o período de 1924 a 1933: as Kammermusik n" 2 a 7 opus 36 são concertos de câmara para sofistas diferentes (violino, violoncelo, viola de amor), em completa ruptura com a tradição clássica e romântica do concerto; reatam com o espírito dos Concertos de Brandenburgo. Esse gigantesco passo atrás (o primeiro, e não o último) foi acompanhado por um sucesso que não mais se desmentiria, e o enfant terrible do passado institucionalizou-se (em 1927, foi nomeado professor de composição na Escola de Música de Berlim). Convencido de que era preciso reconciliar o público com a nova música, Hindemith, simplificando ao extremo sua linguagem, tentou tornar-se acessível às execuções amadoras (Construímos uma cidade, 1930; PlónerMusiktag, 1932). Convém mencionar que pertencem a esse período as experiências da Gebrauchmusik [música utilitária], assim como as tentativas poliartísticas realizadas com Bertolt Brecht em 1930 (Lehrstück = fragmento de aprendizagem). Essas atividades de praticante da música (instrumentos, pedagogia), que incluíam até um engajamento crescente no tocante à pedagogia, levaram-no à publicação de um tratado de composição ( Unterweisung im Tonzatz), escrito a partir de 1933 e lançado em 1937: desta feita, Hindemith seria fiel pela vida afora aos preceitos tradicionalistas que expôs. Convém observar que esse "desengajamento" da modernidade de sua época valeu-lhe não ser imediatamente incomodado pelos nazistas. Não obstante, ele teve que deixar a Alemanha em 1937. Por volta de 1933-1934 ocorreu a última virada de sua vida criativa, marcada por uma obra capital. Assim como a Palestrina, de Pfítzner, Mathis, o pintor, criada em 1938 em Zurique, foi composta a partir de um libreto do próprio compositor. O retábulo de Issenheim, em Colmar, foi a fonte de inspiração dessa ópera gigantesca, simultaneamente constituída como um "comentário musical" do célebre tríptico e como um drama da relação do artista (Mathis Grünewald) com o povo, na luta entre luteranos e católicos, na época da Guerra Camponesa de 1525. Cativante sob esse aspecto, é uma das raras obras de Hindemith em que se sentem os conflitos íntimos do compositor.
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Depois da guerra, medindo seu tempo entre a Universidade de Yale e a de Zurique, Hindemith tendeu a se tornar cada vez mais acadêmico. Um dos últimos resultados de seu "retorno a Bach" foi, em 1943, o Ludus tonalis, uma espécie de Cravo bem temperado que escreveu para solo de piano. Daí por diante sucederamse sinfonias e concertos mornos e ressequidos: a sinfonia Harmonie der Welt [Harmonia do mundo, 1951], posteriormente ampliada até as dimensões de uma ópera, é de um peso e de um neoclassicismo tão mecânico que constitui hoje uma obra propriamente inaudível. As opiniões se dividem quanto à influência de Hindemith. É certo que ele teve mais alunos do que qualquer outro pedagogo germânico de sua época, mas alunos aos quais soube apenas transmitir uma técnica acadêmica. Pelo menos, nenhum dos que foram seus discípulos (Harald Grenzmer, Hermann Reutter, Ernst Pepping, Hugo Distler) impôs-se até hoje como um compositor de primeira linha.
Cari Orff Carl Orff (1895-1982) é um caso isolado na história da música germânica: músico autodidata e que chegou tardiamente à composição, ele mesmo designava suas obras como peças de "teatro musical". Saltou por cima de toda a história da ópera para imaginar uma nova representação a partir do espírito do teatro antigo (ou, pelo menos, da idéia que fazia dele...) e das danças rituais. O primeiro triunfo mundial dessa estética pessoal foi obtido com Carmina Burana, em 1937, uma obra erigida sobre poemas em latim vulgar (cânticos de estudantes "contestadores" da Idade Média).-Claude Rostand escreveu: Essa primeira obra definiu um estilo que quase n ã o variou desde então: uma rítmica primitiva e obstinada, u m a harmonia muito rudimentar e u m vocabulário m e l ó d i c o t a m b é m primitivo,
freqüentemente
p e n t a t ô n i c o e procedendo igualmente, com obsti-
nação, de u m ambiente de repetição encantatória.
Heinrich Strobel foi ainda mais longe: "A música de Orff (se quisermos reconhecer-lhe esse nome) é voluntariamente desprovida de arte." De fato, contra um fundo orquestral simplificado (uma vasta percussão que repete indefinidamente o mesmo esquema rítmico), a voz humana é solicitada numa recitação monocórdia de fonemas, quase sempre em língua estrangeira (latim, grego), quer de balbucios silábicos, quer de gritos inarticulados. Vez por outra destaca-se uma ária. Nem modulações nem contrapontos vêm surpreender ou sequer interessar o ouvido do ouvinte, que entra progressivamente num estado quase hipnótico. O Terceiro Reich o compreendeu bem: se Richard Strauss era tolerado na Alemanha, somente Carl Orff foi festejado pelo regime nazista, sem ter.que entrar realmente em conflito com ele. Essa estética "neoprimitivista" soube agradar: um método de ensino da música através do ritmo, associando arbitrariamente algumas fórmulas rítmicas à sua ex-
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pressão por batidas das mãos e dos pés, difundiu-se com sucesso na Alemanha e, mais tarde, na França, depois da Segunda Guerra Mundial. Aluno de Carl Orff, o compositor Werner Egk, nascido em Augsburgo em 1901, também atravessou sem grandes problemas os anos tumultuados do Terceiro Reich. Sua obra abundante, que não nega a influência de Stravinski, situa-se sobretudo no campo lírico (Peer Gynt, 1938; O inspetor, 1957). Os "músicos de Brecht": Kurt Weill, Hanns Eisler, Paul Dessau De origem judaica, Kurt Weill nasceu em Dessau em 1900. Em 1920, instalou-se em Berlim e escolheu Busoni como seu mestre. Trabalhou principalmente com Jarnach, assistente de Busoni, a quem dedicou suas primeiras composições. Em 1923, conheceu um dos principais autores dramáticos expressionistas, Georg Kaiser, com quem fez uma associação das mais fecundas durante dez anos. Mesmo ao trabalhar com Brecht, Weill não interrompeu essa colaboração privilegiada. Portanto, foi já sensibilizado para um teatro de tendência social que conheceu Bertolt Brecht: o primeiro fruto comum dos dois foi uma das obras-primas do repertório dramático do século XX, a Dreigroschenoper [Ópera dos três vinténs, 1928]. Um estilo musical pessoal, equilibrado e cativante, mostrou-se nela em toda a sua pertinência cênica. No conjunto, foi um lirismo "neoverdiano" apimentado pelo tom inimitável do cabaré berlinense, que criou o ambiente das canções de Kurt Weill. Sem suas melodias, a Ópera dos três vinténs não teria tido o sucesso que vem alcançando desde sua criação. Os dois homens ainda produziriam juntos Ascensão e queda da cidade de Mahagonny (1930) e Os sete pecados capitais (1933), antes de se separarem. Obrigado a emigrar em 1933, Weill obteve a nacionalidade norte-americana e, a partir de então, dedicou todas as suas forças às comédias musicais da Broadway. Morreu em Nova York em 1950. Muito diferente foi a trajetória de Hanns Eisler (1892-1962). Instalado em Viena desde 1901, ele tomou aulas particulares, entre 1919 e 1923, com Schõnberg (e, algumas vezes, com Webern). Foi o próprio Schõnberg quem o recomendou calorosamente à editora Universal, para a publicação de suas primeiras obras (Sonata para piano opus 1). Todas as suas composições iniciais foram marcadas por sua filiação à Escola de Viena, mas a partir de 1925-1926 ele fez uma mudança radical. Transformado em professor do Conservatório Klindworth-Scharwenka, de Berlim, foi vivamente afetado pela agitação social da Alemanha de Weimar, suas crises permanentes e a miséria de seu operariado. Inscreveu-se no Partido Comunista, renegou toda sua obra anterior e passou a compor canções de luta (Stempellied, Kominternlied, Solidaritãtslied). Sua escrita é de extrema economia; a estrutura é simples e invariável; e Eisler optava, de preferência, por tons menores:
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foram esses os três trunfos de suas canções, que se transformaram em clássicos do cântico militar (a ex-República Democrática Alemã lhe encomendaria, posteriormente, seu hino nacional). Em 1930 iniciou-se a colaboração com Brecht, com base em A mãe, de Máximo Gorki. O estilo do músico, claro e incisivo, sem emotividade aparente, participou do trabalho de distanciamento que era tão caro a Brecht. Obrigados a emigrar, os dois homens levaram adiante sua colaboração durante a guerra, nos Estados Unidos (Terror e miséria do III Reich, Galilea Galilei). O maior sucesso comum de ambos foi, sem dúvida, Cabeças redondas e cabeças pontudas: a música de Harms Eisler, reforçando o peso das palavras, constitui-se numa verdadeira glosa do texto, provocando constantemente a reação do espectador. Músico teatral (cerca de quarenta obras), ele aplicaria com sucesso seus princípios "brechtianos" à música de filmes (cerca de quarenta trilhas sonoras, assim como um livro em colaboração com o filósofo Adorno sobre esse assunto). Comunista convicto, Eisler nem por isso obteve um apoio irrestrito das autoridades culturais da República Democrática da Alemanha: as reticências e críticas do poder impediram-no de compor a ópera que ele mais trazia no coração, Dr. Johann Faustus, cujo libreto já tinha escrito e publicado (1952). O mais exclusivamente "brechtiano" dos compositores de Brecht foi, sem dúvida, Paul Dessau (1894-1979), que gostava de reconhecer como, graças ao dramaturgo, pudera enfim definir claramente sua arte e sua consciência política. Depois de fazer uma boa carreira como regente na Alemanha de Weimar (Hamburgo, Colônia, Mainz, Berlim) e uma pequena estréia como compositor de música de cinema, fez uma incursão no dodecafonismo graças a Leibowitz, conhecido em Paris em 1933, e travou conhecimento com Brecht nos Estados Unidos, em 1942. Compôs a trilha sonora de uma das mais belas peças de Brecht, Mãe coragem (1946), e a de outras duas (O círculo de giz caucasiano, 1954; Mestre Puntila, 1966). Marxista convicto, instalou-se em Berlim Oriental depois da guerra e procurou transpor suas convicções políticas para seu campo de ação profissional. Para ele, como para Eisler, a música tinha que "provocar" e despertar os sentidos; não devia nem sobressair-se ao texto nem ser-lhe tolamente submissa; devia "interpretar" o real e ajudar o espectador a tomar posição. Se Dessau não teve a envergadura de Eisler ou de Kurt Weill, nem por isso deixa de ser verdade que os nomes desses três homens são indissociáveis do de Bertolt Brecht na criação de um teatro engajado, único na história do século XX ocidental.
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de um erotismo exacerbado e, até 1910, desconhecido dos palcos alemães: Der feme Klang [O som distante, 1912], que impressionou vivamente o jovem Alban Berg, descreveu, pela primeira vez num palco lírico, o destino de uma prostituta. Nas palavras de Heinrich Strobel, "perto de Die Gezeichneten [Os rejeitados, 1918], Salomé não passava de uma brincadeira de crianças". Se foi um compositor de envergadura medíocre (jamais conseguiu destacar um estilo pessoal), Schreker era, em contrapartida, um pedagogo admirável: sob sua direção, a Escola de Música de Berlim conheceu um belo período de liberalismo. Um de seus alunos mais brilhantes foi Ernst Krenek, nascido em 1900, cuja juventude efervescente não deixa de ter uma analogia com a de Paul Hindemith. Sua "ópera-jazz" intitulada Johnny spielt auf[ Johnny está brincando, 1927], cujo modernismo cheio de truques está hoje fora de moda, teve grande sucesso em sua época. Em 1933, Krenek converteu-se ao serialismo (ópera Karl V); é autor de um número impressionante de obras, mais ou menos de todos os gêneros (dodecafonismo, jazz, estilo aleatório etc). Sua obra musicológica mais interessante é, sem dúvida, um ensaio sobre Ockeghem, de quem ele fez (como depois o fariam os compositores do Domínio musical) um dos precursores do pensamento serial. Filho do eminente crítico vienense Julius Korngold, Erich Wolfgang (1897¬ 1957) logo se revelou um menino de dons excepcionais. Tinha apenas nove anos quando, durante uma visita a Gustav Mahler, tocou de cor para ele sua cantata (que um colega de classe malicioso ofizeraintitular de Gold). O célebre diretor da Ópera de Viena (em geral muito crítico) soltou apenas uma exclamação: "Um gênio!" O sucesso veio depressa: uma Sonata para piano (1908) que seria tocada com freqüência por Arthur Schnabel, depois uma primeira ópera (Violenta, 1916) que atraiu para ele a atenção de Strauss e Puccini, e por fim um triunfo com Die tote Stadt [A cidade morta, 1920], simultaneamente criada em Hamburgo e Colônia. Em 1928 (embora, a essa altura, toda a sua obra já houvesseficadopara trás), um jornal vienense, o Neue Wiener Tageblatt, o chamou de "o maior compositor vivo, ao lado de Schõnberg". Em 1934, Korngold emigrou para os Estados Unidos com Max Reinhardt. Até sua morte, produziu um pouco de tudo, de música de cinema a arranjos para operetas de outros compositores. Dois suíços: Frank Martin e Ernest Bloch
Schreker, Krenek, Korngold De origem vienense, mas havendo emigrado para Berlim, Franz Schreker (1878¬ 1934) soube surpreender e fascinar, em sua época, através da utilização de libretos
Décimo e último filho de um pastor, Frank Martin (1890-1974) cresceu num meio favorável à eclosão de seus dons: aos doze anos, sua vocação foi-lhe revelada através da audição da Paixão segundo São Mateus, de Bach. Na casa desse suíço francófono, os estudos musicais desenvolveram uma certa germanofilia tradicional (Bach,
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Schumann), o que de modo algum o impediu de se interessar pelas pesquisas rítmicas de um Jacques-Dalcroze ou, na década de 1920, pelo serialismo de Schõnberg. Diferentes opções manifestaram-se alternadamente em sua música: tradição (Sonata para piano e violoncelo, 1915), dodecafonia (Trio para cordas, 1936), espiritualidade (In terra pax, 1944) e neoclassicismo (Concerto para sete instrumentos, timbales e orquestras de cordas, 1949). Em 1948, Martin dedicou seus Oito prelúdios para piano ao grande Dinu Lipatti. Sua obra mais conhecida, sem dúvida, continua a ser Le Vin herbé, uma cantata profana para doze vozes solistas, sete cordas e piano, com base no texto de Tristão e Isolda estabelecido por Joseph Bédier (1940). Ernest Bloch (1880-1959), dez anos mais velho que Frank Martin, fez a junção entre a velha Europa e os jovens Estados Unidos, mantendo-se como o símbolo da busca de uma música ligada ao espírito do judaísmo e buscando exprimir a fonte deste numa linguagem atual. De origem suíça, nascido em Genebra, morreu nacionalizado norte-americano. Violinista, foi aluno de Eugène Isaye e, nos Estados Unidos, dirigiu importantes conservatórios e foi professor de uma universidade californiana. Celebrizado a partir de 1902 por sua Sinfonia, uma obra de vastas dimensões, compôs obras de temática judaica até 1936, depois uma seqüência de obras de virtuosismo instrumental, entre as quais um Concerto para violino (1938) muito famoso. Seguindo a grande tradição européia, elaborou uma notável série de cinco Quartetos de cordas (1916-1956) que marcaram os limites mais avançados de sua arte.
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IGOR STRAVINSKI (1882-1971)
Stravinski ocupa uma situação excepcional na evolução do século XX. Mais talvez do que qualquer outro músico, ele parece aderir às opções e tensões de nosso tempo. Em suas obras, reflete-se, com ênfase perturbadora, a situação conflituosa do mundo ocidental, sua atitude "relativista", seu aspecto exacerbado de colagem social e cultural. Stravinski jamais deixou de manter reservas em relação a sistemas passados e presentes, jamais deixou de ser um observador dotado de uma perspicácia notável que nos mostra, através de suas obras, o que pode existir de prospectivo em instrumentos, técnicas e concepções que remontam por vezes a vários séculos. Stravinski rejeitou a ilusão romântica do artista. Soube enfrentar os mais diferentes gêneros musicais, libertar a obra da sala de concertos, do museu, viajando por toda parte em que a música tem seu lugar, da igreja ao teatro, da feira ao circo... Nada escapava a seu interesse pela organização do mundo sonoro e do tempo. A Rússia Igor Fiodorovitch Stravinski nasceu no dia 5 (dia 17, pelo calendário reformado) de junho de 1882 em Oranienburg, perto de Cronstadt, na Rússia. Muito novo, entrou em contato com o mundo da arte lírica, pois seu pai, o baixo Fiodor Stravinski, era cantor da Ópera Imperial de São Petersburgo. O universo musical das tradições populares, cujo efeito de sedução já se fazia sentir antes mesmo de impregnar tão profundamente sua vida de músico, levou Stravinski a tomar consciência de suas aspirações artísticas.
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A partir de 1903, Rimski-Korsakov deu-lhe aulas de orquestração, e o jovem Stravinski daí por diante conservaria por muito tempo a influência do mestre na. arte de combinar instrumentos. Foi ao professor que Stravinski dedicou seu Feu d'artifice [Fogo de artifício, 1908], mas Rimski-Korsakov morreu sem ter podido ouvir a obra de seu aluno. Feu d'artifice e Le Rossignol [O rouxinol], esboço de ópera que Stravinski só veio a concluir em 1914, revelam uma forte originalidade e uma imaginação sonora de excepcional fertilidade, mesmo levando-se em conta as marcas deixadas pelos músicos de que Stravinski recebeu influências na época — notadamente Chabrier, Dukas, Debussy e Ravel. Serge de Diaghilev, que preparava as temporadas dos Ballets Russes em Paris, ficou vivamente impressionado com as execuções do Scherzo fantastique [Scherzo fantástico, 1907-1908], bem como de Feu d'artifice, e encomendou a Stravinski uma música de balé para a temporada de 1910: L'Oiseau de feu [O pássaro de fogo], baseado num conto popular russo. Desde então, a música de balé tornouse um dos gêneros prediletos de Stravinski. Durante muitos anos a colaboração com Diaghilev foi particularmente intensa, e Stravinski entrou em contato com as personalidades mais prestigiosas do mundo da dança, como o coreógrafo Fokin, o dançarino Nijinski e as dançarinas Pavlova e Karsavina... Mas nem tudo foram águas mansas nessa colaboração, dado o temperamento fortemente "possessivo" de Diaghilev. Stravinski viu-se obrigado a deixar para mais tarde a conclusão de Le Rossignol e a transformar Konzertstück [Peça de concerto] em uma nova música de balé, Petruchka, para a temporada parisiense dos Ballets Russes de 1911. Pouco tempo antes, Stravinski obtivera grande sucesso em Paris com L'Oiseau de feu, obra que revela seu sentido pessoal da orquestração, ainda que os ensinamentos de Rimski-Korsakov nela transpareçam emfiligranas,e uma concepção da harmonia que tende para a politonalidade, tão característico do estilo de Stravinski. A preocupação com o timbre, permanente em sua obra, levou-o a acrescentar à orquestra tradicional, nessa composição, três harpas, um piano e uma celesta que contribuem para dar a L'Oiseau de feu sua roupagem de festa sonora. Por ocasião de uma estada na Suíça, começara a germinar no espírito do compositor o projeto de uma grande cerimônia musical pagã, que haveria de se tornar Le Sacre du printemps [A sagração da primavera], mas, em 1911, foi em Petruchka (cujo tema é tomado de empréstimo ao teatro de marionetes) que ele acabou por trabalhar, recriando o clima festivo dos espetáculos de feira, pelo recurso à parodia e pela justaposição de ritmos e melodias populares, dando ensejo a encontros imprevistos de sonoridades. De fato, a arte popular russa, o universo modal e os temas de suas canções tradicionais, com a parte de misticismo e de magia que neles se imprime, o teatro de marionetes — tudo isso tem um lugar preponderante nas obras de Stravinski desse período. Mas, enquanto Petruchka revela essencialmente uma ligação profunda com as fontes populares, visível na sua harmonia de caráter diatónico, obras como
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Zvesdoliki, le roi des étoiles [Zvesdoliki, o rei das estrelas], cantata para coro e orquestra, e duas mélodies sobre poemas de Balmont — Le Pigeon [O pombo] e Myosotis [Miosotis] —, anunciam as pesquisas inovadoras do Sacre. Le Sacre du printemps, composta entre 1911 e 1913, terá mesmo sido uma obra revolucionária que inagurou uma nova era musical? O escândalo provocado por sua primeira audição no Théâtre des Champs-Élysées em Paris, em 29 de maio de 1913, sob a direção de Pierre Monteux, poderia ser invocado como prova disso. No entanto, em seu livro Poétique musicale [Poética musical], Stravinski nega de certa forma qualquer afirmação que visasse a considerá-lo um artista destruidor, disposto a entregar-se ao caos. Sob muitos aspectos, essa obra parece paradoxal, solitária e sem descendência, apesar da incontestável agitação que suscitou no meio musical. De início, Stravinski imaginara uma espécie de sinfonia que receberia o título de "O grande sacrifício"; mas Serge de Diaghilev terminou convencendo-o a transformar seu projeto num balé de maior envergadura, formado por um conjunto de quadros da Rússia pagã. Nicolas Roerich, pintor e arqueólogo, trabalhou com Stravinski no argumento dessa evocação ritual da primavera, que funde dados etnográficos das mais diversas origens. Em Chroniques de ma vie [Crônicas de minha vida], Stravinski escreveu: Ao compor o Sacre, imaginei o lado de espetáculo da obra como u m a seqüência de movimentos rítmicos de uma extrema simplicidade, executados por grandes blocos h u manos com um efeito imediato sobre o espectador, sem m i n ú c i a s supérfluas nem complicações que traíssem o esforço.
Mas, como aconteceu muitas vezes com Stravinski, o resultado obtido por Nijinsky como coreógrafo ficou muito longe do que ele esperava. Na verdade, é a plasticidade de um jogo de forças de ressonâncias naturais que é suscitada pela música de Stravinski, mais do que qualquer referência a um argumento literário. Longe de ser música de programa, a obra é muito mais essencialmente uma exortação ritual dirigida a pulsões naturais que se destinam a realizar-se através do som. A eclosão em causa diz respeito, na verdade, a forças energéticas de natureza acústica; a obra alimenta-se de matérias sonoras das mais complexas, razão pela qual o trabalho feito com timbres e ritmo não pode satisfazer convenções preestabelecidas. A partitura valoriza as famílias instrumentais nos seus registros mais variados, dentro de um efetivo orquestral de grandes dimensões: 38 instrumentos de sopro, um conjunto de instrumentos de cordas que lhe é proporcional e uma percussão à altura. Uma particularização desejada dos timbres instrumentais, que se apóia em construções rítmicas extremamente sóhdas, permite a Stravinski jogar nessa obra com as relações entre planos sonoros particularmente contrastados, graças àquela "engrenagem rítmica" de que fala Olivier Messiaen, que nos faz passar do mais simples ao mais complexo.
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Uma tal polarização no domínio do ritmo não era conhecida, sem dúvida, no Ocidente, desde a Ars Nova e de Guillaume de Machaut. Por meio dessa arquitetura tão rigorosa, cada fenômeno sonoro assume um peso incomparável e parece dispor de toda a sua força no momento presente, como se cada motivo temático, uma vez manifestado, estivesse destinado a desaparecer. A harmonia do Sacre parece, ela própria, afirmar-se como uma espécie de desafio ao mundo da tonalidade, com suas leis e funções estritamente concebidas e sua estabilidade. As incursões do modo menor no modo maior são inúmeras, e a combinação dos modos numa verdadeira polifonia de direções harmônicas mergulha-nos numa primitividade arquetípica da linguagem musical ao mesmo tempo que nos deixa entrever, por outro lado, a eventualidade de um diálogo entre os diferentes sistemas explorados pelo pensamento musical desde os primordios da nossa civilização. A Europa Numerosas turnês pela Europa, em companhia de Diaghilev, permitiram a Stravinski ouvir obras como Pelléas et Mélisande, de Debussy, ou Daphnis et Chloé, de Ravel, que constituíram para ele autênticas revelações. Em contrapartida, uma representação de Parsifal, de Wagner, a que Stravinski assistiu em Bayreuth, afastouo para sempre dessa forma de ópera. Esse período da vida de Stravinski foi repleto de encontros (com Debussy, Ravel, Satie, Manuel de Falla, etc.) e de descobertas, tais como o Pierrot lunaire [Pierró lunar] de Schõnberg, em 1912, que exerceu influência determinante sobre as obras escritas por Stravinski entre 1913 e 1916, como as Trois poésies de la lyrique japonaise [Três poesias da lírica japonesa]. Stravinski parece consagrar-se, na época, a conjuntos instrumentais e vocais mais reduzidos, que ensejam um novo tipo de virtuosidade para os sofistas. Em obras como Três peças para quarteto de cordas, ou Pribautki, os instrumentos aparecem cada vez mais .individualizados, "personificados". A valorização de todos os seus registros de possibilidades favorece contrastes muito fortes e combinações de timbres desconhecidas na música ocidental. Por ocasião de uma viagem pela Rússia em 1914, que durante muito tempo não poderia repetir, Stravinski recolheu abundante documentação sobre as tradições populares. Os elementos assim reunidos foram-lhe especialmente preciosos para a composição de Les Noces [As bodas] , que ele só concluiu em 1923, das Berceuses du chat [Canções de ninar do gato] e dos Quatro pequenos coros a cappella (para. vozes femininas). A guerra o isolou ao mesmo tempo de sua terra e de seu principal "cliente", os Ballets Russes de Diaghilev. Em 1915, na Suíça, Stravinski conheceu Ramuz. Desse encontro logo resultou uma primeira colaboração, Renard [Raposa], história burlesca a ser cantada, tocada e encenada por um grupo de palhaços, dançarmos e acróbatas, cujo tema tem
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origem numa fábula popular russa. Outras obras escritas mais ou menos simultaneamente — em especial, dois "cadernos" de mélodies— dão testemunho de uma profunda nostalgia da terra natal. A escrita de Renard manifesta uma grande r i queza de timbres, em que sobressai o do címbalo, instrumento cigano cuja integração no efetivo orquestral vem provar que Stravinski estava perpetuamente em busca de recursos sonoros capazes de ampliar seu campo de ação. Quanto à escrita vocal, fornece-nos também o testemunho dessa vontade do compositor de ampliar suas forças de expressão, seja por meio de séries de onomatopéias (como já acontecia nas Berceuses du chat), seja por meio de glissandos e outros efeitos variados. Renard estreou em 1922, na Ópera de Paris, com os Ballets Russes. Pouco depois do projeto de Renard, Stravinski havia preparado uma nova colaboração com Ramuz, L'Histoire du soldat [A história do soldado], encenada em 1918, em Lausanne. Ainda se pode entrever nessa obra contribuições do folclore russo, mas cada vez mais despojadas e estilizadas. A técnica de tomar emprestados elementos musicais preexistentes estende-se a outros domínios sonoros (por exemplo, à ópera italiana do século XIX, ou a danças populares, como um paso doble, um tango e um ragtime), o que provoca "telescopagens" das mais percucientes. O efetivo instrumental, reduzido a sete instrumentos por dificuldades econômicas (mas Stravinski sempre conseguiu passar matreiramente por cima das dificuldades), evoca as jazzbands de Nova Orleans. A parcimônia dos meios utilizados tornava possível formar uma espécie de teatrinho ambulante, transportável de cidade para cidade, e desse modo escapar ao centralismo dos grandes núcleos culturais. L'Histoire du soldat reflete uma concepção teatral próxima à de Renard. Como na maioria das obras cênicas de Stravinski, o aspecto ritual é predominante. L'Histoire du soldat é uma obra destinada a ser lida, dançada e tocada. Esse período da atividade criadora do compositor é fortemente marcado pela influência do jazz. Para Stravinski, o jazz representa urna forma de desenraizamento comparável ao que ele sentia em relação às tradições populares transmitidas oralmente e ao universo modal que nossa linguagem tonai veio substituir pouco a pouco. O jazz representa essa separação violenta, essa dilaceração que existe entre os recursos mais ou menos normalizados oferecidos pelo mundo ocidental e as fontes primitivas e rituais que lhe cabe reatualizar, ainda que se manifestem mascaradas por ele. A música de Stravinski revela, ela própria, tensões jamais resolvidas entre mundos musicais que se entrechocam. Tal como faz o jazz, Stravinski desvia-se das convenções do sistema tonal, transgride-as com tal violência que esse sistema, imagem por excelência do racionalismo europeu, rompe os seus limites e põe-se a serviço de uma concepção do tempo que ele contribuiu para destruir — o tempo sacralizado do rito. Em Piano Ragtime Music [Música de ragtime para piano], em Ragtime pour onze instruments [Ragtime para onze instrumentos], ou, mais tarde, em Ebony Concerto (1945), Stravinski "interpreta" a própria essência do jazz como muito
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poucos compositores antes dele — e que, como ele, tenham surgido de uma tradição inteiramente outra — foram capazes de fazê-lo. Desse período, que precede uma longa permanência na França a partir de 1920, vale citar ainda os Quatre chants russes [Quatro cantos russos] de 1918, as Três peças para clarineta e a versão para concerto de L'Oiseau de feu. Os anos 1920 representam um momento decisivo no pensamento musical de Stravinski — mas não, certamente, uma ruptura ou uma reviravolta, como foi dito muitas vezes. Interessado em arranjos de temas de Pergolesi, Diaghilev havia procurado Manuel de Falia e Stravinski. Este último escreveu uma partitura para um grupo de cantores e um conjunto instrumental de câmara, Pulcinella [Pohchinelo], cuja ação cênica deveria ser inteiramente dançada por personagens da commedia deU'arte. A primeira audição de Pulcinella na Ópera de Paris, em 1920, foi recebida com muita frieza. Viram em Pulcinella apenas uma regressão relativamente a criações como o Sacre ou Les Noces, um simples pastiche do século XVIII, sem que se percebesse o quanto Stravinski dava com essa obra um passo adiante no sentido de estender seu campo de ação. Dali por diante, o compositor praticou uma técnica de justaposição de estados musicais em escala mais larga do que fizera em suas obras precedentes, "modelando" e reativando por sua conta as músicas do passado, da mesma maneira como Picasso iria propor uma nova visão das Meninas de Velasquez. Por exemplo: no Concertino para quarteto de cordas, de Stravinski, os contrastes entre diferentes caracteres musicais são tanto mais violentos quanto mais nitidamente se afirmam, permitindo combinações de tonalidades bem definidas e separadas. Já na Symphonie d'instruments à vent (Sinfonia para instrumentos de sopro), de 1920, a referência é ao universo musical de Debussy. Mais ainda do que o Sacre, Les Noces, obra concluída em 1923, surge como uma música russa que se situaria para além do folclore, depurada de quaisquer referências particulares, como que para passar uma quintessência da Rússia. A obra — que, com exceção de um tema de canção de fábrica retomado por diversas vezes no último quadro, não contém nenhum empréstimo tomado à tradição musical popular — parece seguir um movimento irresistível, até a chamada final dos sinos e o frenesi que se apossa dos últimos momentos da encenação, como se esse frenesi devesse encarnar, acima de tudo, a precipitação do destino do casal, representar uma fusão indissociável dos sentimentos de angústia e de desejo. Em Les Noces transparece a filosofia profunda de Stravinski, notadamente a dependência por ele sentida com relação ao escoar do tempo e de seus ciclos, ao determinismo que cerca irremediavelmente os seres e sua linguagem musical. Para criar Les Noces foi necessário um longo tempo de amadurecimento no que diz respeito à escolha dos materiais sonoros destinados a servir ao propósito da obra. Nove anos de intervalo separam os primeiros esboços e a instrumentação definitiva — o que é excepcional na obra de Stravinski. Uma primeira tentativa juntava sax-hornes e saxofones a um conjunto vocal e a duas orquestras de cordas,
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uma tocando em legato, a outra em pizzicato. Tal solução exigia o concurso de cerca de 150 músicos. Desistindo desse canxinho, Stravinski pensou em substituir os saxofones por um harmonio e introduzir, entre outros, zimbalões (instrumentos tradicionais ciganos), assim como um instrumento mecânico, a pianola (que utilizou repetidas vezes em obras e transcrições ulteriores). Entretanto, as dificuldades de sincronização entre os instrumentos mecânicos e as partes instrumentais e vocais deveriam levá-lo a considerar uma nova opção, baseada na oposição entre percussão e voz. Cantores solistas e coro acabaram assim confrontados com um efetivo instrumental constituído por quatro pianos e um conjunto de percussão. Assim, Stravinski provou que, num trabalho de orquestração, se torna cada vez mais difícil encontrar soluções prontas, e que esse trabalho demanda uma pesquisa que tome em consideração as exigências de cada obra, que se adapte a ela em caráter pessoal. A preocupação com a matéria sonora demonstra, na nobre austeridade alcançada com extrema economia de meios, a vontade de atingir, como no Sacre—se bem que de maneira mais despojada — a profundidade e a força do mito do eterno retorno. Stravinski parecia orientar cada vez mais suas pesquisas no sentido de uma renovação das técnicas da polifonia e do contraponto. É o que revela, por exemplo, seu Octeto para instrumentos de sopro composto em 1923. O contraponto é justamente o que lhe permite articular sua arte combinatoria de estados sonoros extraídos de horizontes estilísticos extremamente diversificados. A estrutura formal deve ser tanto mais sólida quanto mais os materiais musicais possam parecer heterogêneos e disparatados, correndo desse modo o risco de provocar uma neutralização de seus efeitos. O interesse por uma ampliação do conceito de polifonia, por um conceito que estivesse mais próximo daquilo que ela possa ter sido em suas origens, à época da Escola de Notre-Dame ou do Renascimento, mais do que no classicismo, levou Stravinski a compor diversas obras onde o piano ilustra de maneira particularmente adequada a evolução de seu pensamento musical. É o caso do Concerto para piano e instrumentos de sopro, de 1924, ou da Sonata para piano, escrita no mesmo ano. O piano deixava de ser usado sobretudo como instrumento de percussão, tal como Stravinski o aproveitara em Les Noces (terceira obra com a colaboração literária de Ramuz), e passara a funcionar como instrumento capaz de permitir que se ouçam entrecruzamentos de desenhos melódicos, capaz de favorecer entrosamentos contrapontísticos dos mais complexos, sob o controle de um único intérprete. Em certas passagens da Sonata, a escrita pianística faz lembrar as técnicas de ornamentação dos cravistas franceses. Assim como, no Concerto, Stravinski baseou-se em esquemas formais clássicos para orientar sua reflexão, no Capricho para piano e orquestra, de 1929, a forma do concerto surgia carregada de virtualidades insuspeitadas. Uma das forças de Stravinski consistia em apoderar-se de elementos que lhe eram exteriores — aparentemente, pelo menos —, tratá-los com a preocupação de ser objetivo e deles conseguir tirar conseqüências imprevisíveis. Stravinski enfrentava bem esses "estranhamentos" (ele é o homem do de-
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senraizamento), ainda que se tratasse de intervalos dos mais extensos. Para ele, de modo geral, compor era organizar um certo número de sons segundo certas relações de intervalo. Em suas obras, ele procede a uma avaliação do que o separa da música italiana do século XVIII ou da música russa do século XIX, ou ainda, ulteriormente, do sistema dodecafônico introduzido pela Escola de Viena — e a tensão assim engendrada dá ensejo a um processo dinâmico sem igual na história da música. Não se atendo a um mundo sonoro de que pudesse, ele só, reivindicar os direitos, Stravinski não via problema em servir-se de modelos musicais, fossem quais fossem, pouco se preocupando com o conceito de propriedade artística. Tal atitude, artesanal ao mesmo tempo que experimental, mais freqüente entre os pintores do que entre os músicos, ainda está longe de ser tolerada em nossos dias. Em 1925, Stravinski projetou escrever uma obra dramática de grande envergadura que constituísse uma síntese da ópera e do oratório. Impressionado com a peça Antigone [Antígona] de Jean Cocteau e com os temas da Grécia antiga, sua escolha terminou frxando-se no Édipo Rei, de Sófocles, de que pediu uma adaptação a Cocteau. Stravinski queria um texto em latim (a tradução latina do texto de Cocteau veio a ser feita por Jean Daniélou, o futuro cardeal). Justificava-se tal opção, mais uma vez, pelo efeito ritualístico que não poderia deixar de produzir esse recurso a uma língua morta, recurso graças ao qual se criava — segundo os próprios termos do autor — "uma plástica monumental, à altura da majestade que envolve a lenda antiga". Esse aspecto é ressaltado pela presença, estática e como que imóvel, de um narrador que anuncia os acontecimentos antes que estes sejam transmitidos pelas vozes do coro. Œdipus Rex dá as costas à exteriorização, corrente na tradição da ópera, para optar por um despojamento cuja força é incontestável. A primeira audição teve lugar em Paris, em 1927. Esse despojamento é igualmente sensível no balé Apollon musagète [Apolo, guia das musas], de 1927-1928, baseado numa ação mitológica dançada em "balé branco". Quase simultaneamente, Stravinski escreve outra música para balé, baseada em temas de Tchaikovski, por sugestão da dançarina Ida Rubinstein — Le Baiser de la fée [O beijo da fada], cujo enredo vem de um conto de Andersen. A obra é bem um testemunho da admiração de Stravinski por Tchaikovski, que ele considerava dos maiores entre os compositores russos. O caráter a um só tempo fantástico e romântico do argumento do balé não poderia ser mais bem escolhido para dar ênfase à referência. Uma encomenda da Orquestra Sinfônica de Boston levou Stravinski a conceber uma obra de inspiração religiosa, a Symphonie de psaumes [Sinfonia de salmos] , espécie de oratório de influência barroca que associa estreitamente vozes e 1
Ballet blanc: o termo aplica-se a qualquer balé em que as dançarinas usem os trajes tradicionais, longos e brancos, que foram desenhados por Eugene Lami para Maria Taglioni no balé La Sylphide (primeiro balé "romântico") em 1830, ulteriormente incorporados, entre outros, ao segundo ato de Giselle. (N. T.)
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instrumentos. O texto em latim ressalta uma vez mais a distância tomada em relação a qualquer dramatização. A obra, harmónicamente polivalente, traz as marcas do canto gregoriano e de um modo de expressão vocal como a salmodia, além de exibir inovações que lhe são próprias. Pesquisas de novas formas de virtuosismo instrumental manifestaram-se por outro lado, especificamente no que diz respeito ao violino, em obras como o Concerto em ré (1931) e o Duo concertante para violino e piano (1932), cujos movimentos se referem a modelos literários da Antigüidade, tais como a écloga, o ditirambo, etc. Se excetuarmos um poema de Verlaine, que Stravinski havia posto em música em 1910, a primeira vez que o compositor se apóia inteiramente em um texto de língua francesa foi com Perséphone [Perséfone], adaptação do mito homérico por André Gide, em que o compositor tornou a enfrentar os problemas do teatro lírico; mas os temperamentos desses dois artistas eram demasiado diferentes entre si para que um entendimento verdadeiro pudesse ocorrer. A obra estreou em Paris em 1934. Nesse mesmo ano, Stravinski adotou a nacionalidade francesa, depois de estar residindo na França havia quinze anos. Novas obras concertantes foram compostas no curso dos anos seguintes, notadamente o Concerto per due pianoforti [Concerto para dois pianofortes], que Stravinski escreveu com o propósito de tocá-lo junto com seu filho Sviatoslav Soulima, e o Dumbarton Oaks Concerto, de 1938, que evoca certas características do Concerto de Brandenburgo n° 3, de Bach. Desse período, não se podem deixar de citar Jeu de cartes [Jogo de cartas, 1937], em que se encontram alusões a Beethoven e a Rossini. Os dois anos que se seguiram foram particularmente dolorosos para Stravinski, marcados pelas mortes sucessivas de sua filha Ludmilla e de sua mulher Catarina, com quem se casara em 1906 em São Petersburgo. Foi nesse estado de espírito que ele começou a Sinfonia em dó, obra de profundo despojamento com que reconstituiu sua própria serenidade. A América Convidado pela Universidade de Harvard para dar, em 1939, uma série de conferências, Stravinski decidiu deixar a Europa. (Em 1945 renunciaria à nacionalidade francesa para assumir a nacionalidade norte-americana.) Essas conferências proporcionaram-lhe a possibildade de definir sua Poétique musicale, que francamente se chocava com certas tendências expressionistas e neo-românticas ainda muito influentes na época. Stravinski pôde precisar ainda melhor sua posição nas Chroniques de ma vie: Considero a música, por sua essência, impotente para expressar seja o que for — um sentimento, uma atitude, u m estado psicológico, u m f e n ô m e n o da natureza, etc. A expressão jamais foi propriedade i m á n e n t e da música. A razão de ser desta n ã o é, de modo
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algum, condicionada por aquela. Se, como quase sempre acontece, a música parece exprimir algo, isso não passa de uma ilusão, não é uma realidade. É simplesmente um elemento adicional que, por convenção tácita e inveterada, nós lhe conferimos, lhe impusemos, como uma etiqueta, um protocolo, em suma, uma vestimenta, e que, por força do costume ou por inconsciência, chegamos a confundir com sua essência.
E o compositor desenvolve sua profissão de fé afirmando que essa expressividade não passa de uma ilusão mantida por todo tipo de convenções que só serviram para trazer confusão e que afastaram a percepção musical do que ela tem de mais específico. Em 1940, teve início uma nova fase da vida de Stravinski, um período profundamente influenciado pela realidade norte-americana e assinalado pelo casamento do compositor nesse mesmo ano com a pintora Vera de Bosset. Após haver terminado sua Sinfonia em dó, obra que reflete em sua forma a concepção sinfônica determinada por compositores como Haydn ou Beethoven, Stravinski tentou, com a Sinfonia em três movimentos, de 1945, criar uma síntese da sinfonia e do concerto. Os anos 40 são igualmente marcados por obras de circunstância, como a transcrição do hino norte-americano, o Star Spangled Banner em 1941, as Four Norwegian Mods [Quatro melodias norueguesas], o Tango para piano, Circus-polka, de 1942, para os elefantes do Circo Barnum & Bailey..., assim como por revisões de suas obras da juventude. Em 1944, um empresario de Hollywood encomendou a Stravinski, bem como a seis outros compositores -— entre os quais, Schõnberg —-, uma cantata baseada num episodio do Gênesis bíblico. É interessante constatar, com Michel Philippot, que, enquanto Schõnberg escolheu exprimir a epopéia da criação, ou seja, a passagem do nada para o caos original e depois para a construção do mundo, Stravinski optou pela temática de Babel, a relação entre o uno e o múltiplo, entre a ordem e a desordem. Assim, cada um revelava seu sentimento profundo da organização do campo musical. As obras instrumentais que Stravinski compôs durante esse período — a Sonata para dois pianos, a Ode de 1943, a Elegia para viola, de 1944 — participam, todas, daquela tendência à abstração que traduz uma atitude ascética já presente no Octeto. Muito atraído pelas músicas da Idade Média e do Renascimento, Stravinski elaborou um novo balé com George Bdanclrine, Orpheus (1947), e o modo como utilizou a orquestra nessa composição evoca os conjuntos instrumentais ad libitum dos séculos XV e XVI, assim como a arte de Monteverdi. As referências aos sistemas musicais anteriores aos períodos barroco e clássico se foram tornando, por sinal, cada vez mais numerosas na obra de Stravinski: ora modos eclesiásticos, ora processos cultivados por Guillaume de Machaut, como, por exemplo, na Missa de 1948, destinada à liturgia romana. A partir de 1948, Stravinski iniciou a composição de uma nova ópera, com libreto do poeta W.-H. Auden: The Rake's Progress [A vida de um libertino], ins-
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pirada em uma série de gravuras de William Hogarth. Essa ópera, que estreou em Veneza em 1951 e contém alusões ao Don Giovanni de Mozart, mostra-se mais próxima das concepções "humanistas" do século XVIII do que as obras similares de Stravinski que a precederam, notadamente o Œdipus Rex, O período pré-clássico parece representar para Stravinski, de então por diante, um terreno de reflexão, como verificamos na Cantata de 1952, composta sobre uma antologia de poemas anônimos dos séculos XV e XVI. Por outro lado, a título complementar, Stravinski passou a recorrer a uma fonte de experimentação extremamente preciosa que lhe oferecia o pensamento dodecafônico e serial provindo da Escola de Viena, que ele, até então, mantivera apartado de sua própria pesquisa. A partir das Three Songs from Shakespeare [Três canções de Shakespeare], de 1953, dos Cânones fúnebres sobre poemas de Dylan Thomas e do Septeto, Stravinski desenvolveu um tipo de escrita em que o serialismo trava um diálogo com as técnicas mais diversas antes experimentadas pelo compositor ao longo de sua vida musical. No Canticum sacrum de 1956, depois no balé Agon de 1957, escrito para Balanchine, as alusões aos compositores vienenses, em particular a Webern, são cada vez mais explícitas, embora Stravinski não se contente, é claro, com aphcar literalmente um sistema composicional seja ele qual for. Em Agon, por exemplo, o universo serial defronta-se com o universo modal, evocado através de referências a danças antigás como a galharda, a sarabanda ou a francesa branle. A fusão assim obtida é das mais sutis. A primeira obra de Stravinski a ser considerada inteiramente serial é Threni [Lamentações], de 1958, obra religiosa com o texto das Lamentações de Jeremias a propósito da ruína de Jerusalém. Seguiram-se obras como Movimentos para piano e orquestra, Epitafio e Duplo cânone, em que o processo serial, encarado por um espírito tão pluralista como Stravinski, deixa pressentir conseqüências ricas de promessas, ainda que não tenham sido de modo algum tomadas em consideração pelos adeptos de uma certa ortodoxia do serialismo. O fato é que Stravinski dispõe de um horizonte infinitamente mais vasto que seus detratores, e que, por meio de obras como as Variações para orquestra, de 1964, em que explora o conceito de série à luz do conceito de variação — mais precisamente no sentido das Variações Goldberg de Johann Sebastian Bach —, construindo o que ele próprio qualificou como autênticos "mobiles musicais", consegue refletir de maneira dialética diversos períodos da pesquisa musical. Seu trabalho inspirado em Cario Gesualdo, de que resultaram obras como as três Sacrae cantiones [Canções sacras] ou o Gesualdo monumentum [Monumento a Gesualdo], é particularmente significativo nesse sentido. Stravinski suscita uma forma nova de comunicação com as obras do passado, fortalecida por uma atitude experimental cujo objetivo visado são aqueles aspectos que apresentam as mais vivas afinidades com a nossa época. Esse período da vida do compositor foi igualmente marcado, em 1962, por uma viagem à União Soviética, onde foi recebido com grande fervor. Num capítulo da
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Poétique musicale, intitulado "Os avatares da música russa" a posição política de Stravinski aparece, entretanto, com relativa nitidez: ele não parece capaz de admitir nem a "desordem conservadora" nem a "desordem revolucionária" que, na sua opinião, suplantara a primeira na Rússia. O "materialismo rudimentar" e o "ateísmo militante" que Stravinski denuncia não poderiam deixar de, na verdade, chocar-se com o misticismo ardente de que está impregnada grande parte de sua obra, a cujas "funções sagradas" é feita referência em repetidas ocasiões. Para Stravinski, o racionalismo, o espírito pseudocrítico, com a "parolagem estéril" que infalivelmente os acompanha, envenenaram os traços artísticos especificamente russos: por meio de um sistema político cujos fermentos haviam sido importados da Europa Ocidental, a Rússia profanara suas fontes ancestrais, desconsiderando o fato de que "uma renovação só é fecunda quando tem a tradição ao seu lado". Stravinski nega, por outro lado, que a arte possa ser "uma superestrutura estabelecida sobre as bases produtivas da sociedade"; para ele, a arte é acima de tudo "realidade ontológica" em favor da qual uma "ordem definida de meditação" desempenha papel fundamental. Ao longo de sua obra aparecem com regularidade composições de teor religioso, muito profundamente inspiradas em textos bíblicos, depois de seu retorno à Igreja Ortodoxa em 1926. A música sacra assume notadamente um lugar todo especial na produção de Stravinski a partir dos anos 50, com um pólo geográfico que bem poderia ser Veneza e sua basílica de São Marcos, onde têm um encontro historicamente marcado o Oriente bizantino e o Ocidente latino. O retorno triunfal de Stravinski à União Soviética, em 1962, para uma turnê de concertos, não pôde ser, portanto, mais do que episódico: retorno à sua "pátria russa" com a consciência da distância que o separava de uma sociedade afastada, segundo ele, do sentimento do sagrado e da religiosidade inerente à arte. Com a exceção de obras de inspiração religiosa como A Sermon, a Narrative and a Prayer [Um sermão, uma narrativa e uma prece, 1961], The Flood [O dilúvio, 1962], para narrador, solistas, dançarinos, coros e orquestra, ou Abraham and Isaac, de 1964, balada sacra para barítono e pequena orquestra, em que Stravinski tira partido das qualidades fonéticas da língua hebraica, a produção dos últimos anos de vida do compositor surpreende pela concisão das homenagens prestadas a personalidades como o pintor Raoul Dufy, o escritor Aldous Huxley, o poeta T.S. Eliot e o presidente Kennedy, miniaturas de uma pureza excepcional. As obras tardias de Stravinski, tal como o Requiem Canticles [Cânticos de requiem, 1966], anunciam uma época do pensamento musical que não mais se funda na negação dos valores estabelecidos, tampouco numa síntese de diferentes estilos, mas em que prevalece o ensinamento recíproco e dinâmico de sistemas de pensamento, nenhum dos quais pode verdadeiramente pretender à universalidade. Igor Stravinski morreu em 6 de abril de 1971 em Nova York. A seu pedido, foi enterrado em Veneza, cidade de sua predileção, que tanto impregnou sua personalidade de músico.
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SERGUEI PROKOFIEV (1891-1953)
Estranho destino o de Serguei Sergueievitch Prokofiev, nascido em 1891 (ano do centenário de Mozart) numa pequena aldeia ucraniana, Sontsovka, voluntariamente exilado durante catorze anos e falecido em Moscou no dia 7 de março de 1953, o mesmo ano em que morreu Stalin. Filho mimado e dotado de grande precocidade musical, Prokofiev já compunha antes de entrar para o Conservatório de São Petersburgo em 1904. "Entrei vergado pelo peso de duas pastas que continham quatro óperas, duas sonatas, uma sinfonia e uma porção de peças para piano. 'Isso me agrada!', exclamou Rimski-Korsakov, presidente da banca examinadora." Nos anos de conservatório, Prokofiev compôs sobretudo para piano, de que era um virtuose extraordinário: Sonata n° 1 (1907), Concerto n° 1 (1911), Toccata (1912), Sonata n" 2 (1912), Concerto n° 2 (1913). A execução do seu Concerto n°2 para piano e orquestra foi motivo de um escândalo memorável. Era o mesmo ano do escândalo, causado em Paris, por Le Sacre du printemps [A sagração da primavera], de Stravinski. Em 1914, Prokofiev encerrou seus estudos com um prêmio Rubinstein que teve muita repercussão: na prova final, ele conseguiu impor, a uma banca examinadora perplexa e fascinada, o seu Concerto n° 1 para piano e orquestra. Desde então, Prokofiev — já muito ligado à vida literária e artística de São Petersburgo, de que freqüentava os círculos de vanguarda, notadamente o do "mundo da arte" (Diaghilev, Benois, Bakst) — começou a viajar para o exterior. Em 1913 foi a Londres, depois a Paris. Em 1914 estava de volta a Londres. Mantinha relações com Stravinski e com Debussy. Voltou-se então para a escrita sinfônica, com duas obras tão contrastantes como a Suíte cita (1914), "obra de provo-
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cação, com suas sonoridades insolentes", disseram os críticos, e a Sinfonia clássica (1917). Também nesse período compôs o seu Concerto n° 1 para violino e orquestra (1917) e as Vinte visões fugitivas para piano (1917). Como que numa antevisão dos distúrbios revolucionários daquele ano, foi levado a escrever uma obra de rara violência ("Não uma cantata", disse ele, "mas um exorcismo caldeu."): Sete, eles são sete (1917), com poema de Constantin Balmont, uma evocação dos sete Titãs, senhores do Universo. De 1918 a 1933 Serguei Prokofievfixou-seprimeiro nos Estados Unidos; depois, sobretudo, na França. Foi o período das obras destinadas a espetáculos: os balés Chut, o bufão (1920) e O passo de aço (1925), escritos por encomenda de Diaghilev, a ópera O jogador (1927), extraída de Dostoievski, e O anjo de fogo (1927), ópera trágica e mística tirada de um romance de Valeri Briussov. Note-se que tais obras, ou já estavam iniciadas antes de ele deixar a Rússia, ou encontram sua fonte de inspiração na literatura ou na sociedade russas. Só uma ópera escapa a essas condições: a feérica e humorística O amor de três laranjas (1919). O Concerto n" 3 para piano e orquestra, concluído em 1921, também fora iniciado na Rússia; já o Concerto n° 4 "para a mão esquerda" e o Concerto n" 5 para piano e orquestra datam, respectivamente, de 1931 e 1932. Após duas turnês triunfais pela União Soviética, em 1927 e 1932, que completaram suas numerosas turnês pela Itália, Alemanha, Estados Unidos, Canadá e Cuba, Serguei Prokofiev decidiu, em fins de 1932, voltar ao país natal e lá fixar-se. A vida musical, tal como a conhecera em suas turnês, achava-se em plena efervescência na União Soviética, e as músicas da mais extrema vanguarda, compostas no próprio país ou no exterior, tinham acolhida em suas salas de concerto. Nikolai Roslavetz (1881-1944), um dos mais destacados compositores vanguardistas soviéticos, era ouvido nos teatros juntamente com Arnold Schõnberg, Stravinski constava do mesmo programa que Bartók, Milhaud, etc. O mínimo que se pode dizer é que, do ponto de vista do historiador, a decisão de Prokofiev surge aos nossos olhos, hoje, como tomada na hora errada, tarde demais, pois coincidiu bem de perto com o início da glaciação stalinista: Prokofiev não sentiu o gosto dos anos mais felizes da vida artística na União Soviética. A produção de Serguei Prokofiev em seu país natal foi bem considerável: Pedro e o lobo (1936), a suíte sinfônica tirada da música para o filme O tenente Kije (1934), os balés Romeu e Julieta (1936) e Cinderela (1944), as óperas Simeon Kotko (1939), O noivado no mosteiro (1940) e Guerra epaz (1952), as realizações originadas da colaboração com o cineasta Eisenstein: Aleksandr Nevski (1939) e Ivã, o Terrível (1945). Entre 1939 e 1945, Prokofiev compôs três sonatas para piano (Sonatas n° 6,n°7— que proporcionou a seu autor o Prêmio Stalin — e n" 8). Três sinfonias datam do após-guerra, a Sinfonia n" 5 de 1944, a Sinfonia n° 6 de 1947 e a Sinfonia n" 7 de 1952. Acrescentem-se ainda as obras de circunstância, sendo a mais famosa Em defesa da paz, oratório composto em 1950. Com uma sonata para
piano, a Sonata n° 9, encerra-se, no opus 138, o catálogo cronológico das obras de Prokofiev, em que tão grande foi a variedade de gêneros abordados. Numericamente falando, a parte mais considerável da obra de Prokofiev foi composta na União Soviética (do Opus 55 ao Opus 138), ou seja, quase dois terços do total. Se levarmos em conta que as trinta primeiras obras também foram compostas na Rússia e que as obras do período em que Prokofiev viveu na Europa Ocidental têm, no tocante à inspiração, uma dívida para com a mãe-pátria, não se pode negar que esse artista tão viajado, esse "cosmopolita" (como pejorativamente o qualificaram seus detratores) foi, acima de tudo e antes de mais nada, um compositor russo. Não resta dúvida de que as duasfigurasmais importantes da música soviética são Prokofiev e Chostakovitch, cada qual com seu perfil psicológico particular, que exerce influência determinante sobre a essência de suas obras. Entretanto, quaisquer que sejam as diferenças entre ambos, suas respectivas atitudes gerais como compositores guardam uma característica recorrente nos dois e que faz dessas diferenças uma seqüência de variações sobre um tema comum: o amor devastador pela pátria russa, que já havia inspirado as mais belas páginas de Glinka, Tchaikovski e sobretudo Mussorgski. Prokofiev não foi russo apenas por sua mensagem musical, que denota um temperamento de vastas proporções e superexcitado. Ele o foi também em virtude de uma psicologia íntima que correspondia à idéia que tão comumente se faz de seus compatriotas. Nesse sentido, tanto por seu comportamento como por seu estilo de vida, ele está mais próximo de Diaghilev que de Chostakovitch. Ao passo que este último caracterizava-se por grande discrição no vestir-se e por certa modéstia e pouco brilho nos atos da vida social, o autor do célebre conto musical Pedro e o lobo encarnava sua antítese completa. Provocador, os ternos que Prokofiev usava eram sempre de chamar a atenção, confeccionados em tecidos de colorido berrante, o que levou certo dia o violoncelista Mstislav Rostropovitch — que o conhecia muito bem — a dizer: "Este homem é um extravagante." Prokofiev tinha muito mau gênio e explodia à toa. Não dava trégua aos que lhe eram mais próximos, notadamente a sua primeira esposa, a cantora Lina Llubera, com quem teve dois filhos, Sviatoslav e Oleg. Imaginava que os outros deviam estar sempre à sua inteira disposição e dobrar-se aos seus mínimos caprichos. Uma excursão de automóvel pela França, empreendida pelo compositor e sua família durante os anos 1920, por pouco não se converteu em catástrofe familiar. Enquanto a mulher pedia insistentemente para visitar os monumentos antigos, o músico só pensava nos prazeres gastronômicos e nas longas sestas digestivas que a eles deveriam seguir-se. Essas divergências profundas no tocante à maneira de empregar o tempo de lazer provocaram cenas violentas em Domrémy, a aldeia natal de Joana d'Arc. Se o autor de O canto das florestas, a não ser por algumas viagens que fez a serviço da propaganda cultural soviética, quase nunca teve ocasião de sair da
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União Soviética, com Prokofiev foi muito diferente. Ele conhecia o mundo e tinha viajado a Londres e a Paris bem antes dos acontecimentos revolucionários em seu país. Se decidiu emigrar em 1918, não foi por oposição ao novo regime que se instalava ("Eu não tinha a menor idéia de quais fossem o objetivo e o significado da Revolução de Outubro", escreveu Prokofiev mais tarde), mas porque sentia necessidade de "novos ares" para melhor entregar-se à composição. O comissário do povo para Cultura, A.V. Lunatcharski, autorizou sua partida nestes termos: "O senhor é um revolucionário na música, nós o somos na vida. Deveríamos trabalhar juntos. Mas não me oporei, se deseja partir para a América." O difícil Serguei Prokofiev escolheu a emigração. "Não quero voltar a um país tão conturbado", declarou em sua chegada aos Estados Unidos. Durante catorze anos viveu entre os Estados Unidos e a Europa Ocidental; nesta última, pressionado por toda uma tradição, escolheu a França como lugar de suas mais longas permanências. Três russos viviam então seu momento de glória em Paris: Rachmaninov, Stravinski e Diaghilev. Já dotado de modos de pensar bem singulares, forjados até por esse itinerário que seguiu, Prokofiev resolveu voltar à pátria. Tantas viagens, tantas experiências haviam feito dele um "russo cosmopolita", a quem Diaghilev chegava ao ponto de recomendar "que me escreva música verdadeiramente russa" (a propósito do balé Chut). Além do mais, aqueles anos passados no exterior revelaram a Prokofiev reflexos diferentes em face da evolução do mundo e da maneira de perceber a atualidade. Nesse sentido, é evidente que o autor da Sinfonia clássica não podia sentir a grande crise econômica de 1929 ou as disputas entre Stalin e Trotski depois da morte de Lenin com a mesma sensibilidade que os habitantes de Kiev ou de Leningrado: estes últimos viviam num estado de completa desinformação... Tal estado de coisas não contribuiu para simplificar as relações de Prokofiev com os representantes do poder soviético. Pouco tempo depois de sua volta, começaram as pequenas hostilidades. Primeiro, sob a forma de atritos leves: aquele viajante impenitente teve que se defrontar com autoridades pouco inclinadas a conceder vistos de saída que lhe permitissem prosseguir em sua tríplice carreña de compositor, regente de orquestra e pianista em Viena e em Londres. Durante os anos que de imediato seguiram-se ao seu retorno à União Soviética, Prokofiev não perdeu o hábito das turnês européias e dividiu sua vida entre a União Soviética e a França. Só em 1936 abandonou o apartamento parisiense, trazendo consigo a mulher e os filhos para seu país. A partir de 1947, no entanto, tendo deixado sua mulher, viveu com a poetisa Mira Mendelson, que haveria de ser sua colaboradora em muitos libretos de óperas. A última tumê no Ocidente teve lugar em 1938. Em 1942, Prokofiev renunciaria definitivamente à sua carreira de virtuose. As primeiras escaramuças ideológicas com as autoridades soviéticas datam de 1936, mas, nessa ocasião, Chostakovitch era visado mais diretamente do que Prokofiev, ambos acusados de "formalismo". Mais adiante, em 1943 e 1944, algumas
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de suas obras, notadamente a Balada do menino desconhecido, foram julgadas duramente e tiveram sua publicação proibida. Em 1948 o dogmatismo lançou seu raio fulminante, que haveria de abalar também Chostakovitch e Khatchaturian. Em 10 de fevereiro, uma resolução do Comitê Central do Partido Comunista, que se celebrizou sob a denominação de "Relatório Jdanov", condenou sem apelação as ditas "tendências antidemocráticas na música" e classificou Prokofiev entre asfigurasde proa da orientação supostamente degenerada. Dessa vez, a acusação de "antipopular" vinha completar a de "formalista". Em 1937, depois dos primeiros ataques de que havia sido objeto, Prokofiev teve a coragem de fazer publicar no Pravda um importante artigo intitulado "O desenvolvimento pleno da arte", em que dizia: Todo esforço para adaptar-se ao gosto do ouvinte denota que se está subestimando ao mesmo tempo seu nível cultural e a qualidade de seu gosto. A uma tal tentativa faltaria sinceridade; ora, uma m ú s i c a insincera n ã o é viável.
Responderam-lhe em 1948: "Prokofiev mostrou-se incapaz de refletir a grandeza de nosso povo." Depois do "Relatório Jdanov", o compositor recusou-se a fazer publicamente sua autocrítica e enviou uma carta àquele que acabava de ser nomeado secretário-geral da União dos Compositores Soviéticos, Tikhon Khrennikov. Sem deixar de reconhecer que deveria simplificar sua linguagem, para torná-la compreensível às "massas", o autor de Aleksandr Nevski defendia nesse texto, com uma corajosa obstinação, os cânones estéticos a que era fiel havia três décadas. O revide tinha que se fazer acompanhar de um reforço sonoro, que veio ainda em 1948 sob a forma de uma ópera intitulada A história de um homem autêntico. O libreto e a partitura — em seus mínimos detalhes, inclusive — haviam sido expressamente concebidos para agradar às autoridades. Mas essa estranha cura, essa trama surpreendente de uma pretensa mudança de posição não teve o poder de atuar sobre os membros da nomenklatura. Muito pelo contrário. A história de um homem autêntico só mereceu uma única execução em concerto, sem figurinos nem cenários, em Leningrado, no dia 3 de dezembro de 1948. O acesso a esse concerto era estritamente reservado a portadores de convites oficiais, e a ópera foi condenada irrecorrivelmente nas semanas seguintes. Jamais foi encenada em vida do compositor. A presteza de Prokofiev para reagir às agressões resultava de uma natureza particularmente enérgica, digamos mesmo excitável, no sentido médico do termo. Ora, tal característica é também um dos parâmetros fundamentais da música de Prokofiev. Quer se trate dos balés O passo de aço ou Romeu e Julieta, dos cinco concertos para piano, ou das nove sonatas compostas para esse instrumento, um mesmo sentimento de agitação telúrica e de nervosismo extremo impõe-se ao ouvinte. Sem dúvida, é possível atribuir a esses fenômenos causas relacionadas com
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a fisionomia da época. Como Prokofiev demonstrasse bastante interesse pelos progressos do automóvel ou do avião, pensou-se durante muito tempo que sua arte reafirmava incessantemente um juramento de lealdade ao culto da máquina e às conotações políticas ou sociais que ele podia veicular. Nesse sentido, haveria motivos para encarar a Sonata n" 7 para piano — que ganhou o Prêmio Stalin em 1947, pouco antes de Prokofiev receber o título de Artista do Povo da URSS — como uma dança desenfreada em honra ao universo industrial edificado pelos responsáveis da União Soviética. Mas é preciso levar em conta também o magnífico impulso vital, sem o qual Prokofiev não seria o que é. Pois a agressividade sarcástica tantas vezes manifestada em sua obra tem tudo a ver com uma jovem vitalidade transbordante de energia. Nisto há também uma distinção de grande relevo a ser estabelecida em relação à retórica rangente de Chostakovitch, mais inclinada a recorrer a caretas macabras do que a esbaldar-se com divertimentos de uma extravagância sem limites. Essa diferença psicológica atua também, de modo bem nítido, sobre a natureza do lirismo de Prokofiev quando — nos momentos de calma ou de recolhimento —- ele desnuda sua alma. O Concerto n°l para violino ou as célebres Visões fugitivas seduzem por um jogo de charme e ternura, pondo à mostra devaneios de coloração quase oriental, apoiados sempre num nítido sentimento de equilíbrio. Noutros termos: a arte de Prokofiev é bem a de um extrovertido. Essa constante fica clara ña necessidade imperativa de palco, de cena, que linha o compositor de Chut. Não contente em seguñ a tradição de Rachmaninov e de Scriabin, de oferecer-se, ele próprio, como espetáculo em recitais de piano, Prokofiev também manifestou tal propensão desenvolvendo intensa atividade nos domínios a que se associam mevitavelmente as artes cênicas. O catálogo de suas obras revela imediatamente que ele se entregou com deleite a tudo o que prolongava a magia sonora por um efeito de teatralização. A começar pelo balé, gênero levado à perfeição em seu tempo por Tchaikovski, e depois por ele próprio com Cinãerela e Romeu e Julieta. A arte hfica, como era de esperar-se, também foi reservado um lugar privilegiado na produção de Prokofiev. Nela, por sinal, por matizes diversos, se distingue por que esse inveterado apreciador da boa mesa considerava, com razão, que o teatro — como a gastronomia, para a degustação dos pratos — era capaz de tornar perceptíveis múltiplas facetas na exploração da alma humana. A irônica ópera cômica O amor âe três laranjas está ligada a uma espécie de concepção barroca da farsa, peneñada pelo crivo do autor dramático veneziano Cario Gozzi (Amore delle tre melarance). Já O noivado no mosteiro, que se inspirou na peça The Duenne [A aia, 1940], de Sheridan, estaria bem enquadrada como ópera bufa. O anjo de fogo ocupa uma posição excepcional na produção lírica de Prokofiev: na produção, pelo tempo que durou sua gestação (1919-1927); e por seu tema: um drama de possessão demoníaca (onde até Fausto aparece) situado na Alemanha do
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século XVI; pela incandescência geral de sua escrita; por seu destino, enfim: só vñia a ser encenada em 1955, em Veneza, depois da morte do autor. Quanto a Guerra e paz, baseada no romance de Tolstoi, é uma ópera realizada em um dos momentos mais críticos da Segunda Guerra Mundial, um vasto afresco heróico. Prokofiev soube fazer refletir com perfeição o estado de exaltação do povo russo à época em que teve de defrontar-se com as tropas de Napoleão. É de lastimar-se que uma partitura tão bem realizada seja ainda muito pouco conhecida nos países ocidentais. Esse mesmo espñito de epopéia está presente também nas músicas das trilhas sonoras compostas por Prokofiev para filmes do grande cineasta Serguei Eisenstein. A colaboração não valeu somente para reforçar a certeza de que o século XX era o século da sétima arte, capaz, como se mostrou, de dar uma cfimensão e uma amplitude suplementares a temas que, até então, haviam sido tratados quase exclusivamente no palco. Distmguiu-se também pelo vivo interesse que dedicou a episódios capitais da história russa. As trilhas de Aleksandr Nevski e Ivã, o Terrível, compostas em 1938-1939 e em 1942-1945 demonstram isso claramente. A primeira dessas obras, de que existe também uma versão para concerto sob forma de cantata para mezzo-soprano, coros e grande orquestra, relata sobretudo a famosa "batalha sobre o gelo". O combate, cuja memória se perpetuou no anais da história do país, travou-se em 1242. As tropas do príncipe Aleksandr Nevski enfrentaram vitoriosamente os Cavaleños Teutónicos nas extensas superfícies congeladas do lago de Pskov, situado ao sul do golfo da Finlândia. Esse esmagamento dos alemães foi um feito glorioso, que anunciou a ñresistível ascensão do poder moscovita. Igualmente expansionista foi o destino de Ivã, o Terrível, sagrado czar em 1574. A despeito de sua crueldade maudita, foi ele o verdadeño pai da Rússia moderna. O reinado de Ivã coincidiu com o desenvolvimento de um Estado forte e teve momentos triunfais por ocasião do célebre episódio da tomada de Kazan, em que os exércitos imperiais arrasaram seus oponentes tártaros num enfrentamento cruento e tumultuado, digno dos grandes lances das cruzadas... Estas precisas observações de ordem histórica não se fazem aqui à toa. Elas demonstram que Prokofiev não se podia realizar verdadeñamente a não ser voltando-se com energia para o passado de sua pátria. A melhor prova desse estado de plenitude está nas visões altamente épicas que lhe inspñou a tomada de Kazan, üidiscutivelmente o ponto culminante de seu Ivã, o Terrível. Sob esse aspecto, Prokofiev reúne-se plenamente a grandes predecessores como Glinka e Mussorgski que, com Ivan Sussanin e Boris Godunov, haviam buscado, no passado de seu país, a quintessência de uma inspfiação sempre generosa. Já de Chostakovitch pode-se dizer que foi infinitamente mais sensível aos acontecimentos e aos mitos de seu tempo, pois suas grandes obras fazem referência à Revolução de Outubro, a Lenin, etc. Não tendo sido formado de acordo com os preceitos da sociedade soviética, Prokofiev não podia apresentar esses reflexos. Os atores diretos de sua música eram simplesmente a voz humana ou os instrumentos.
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Estes últimos não vinham previamente paramentados com conotações alegóricas. Nesse sentido, Serguei Sergueievitch revelava de preferência uma nítida tendência a fazer música pela música. É claro que um conto como Pedro e o lobo poderia dar a entender p contrário, uma vez que cada um dos instrumentos solistas tem por objetivo encarnar um personagem. Mas, lado a lado com o esquema sumário segundo o qual um fagote representa o avô, um oboé o pato, ou uma flauta um pássaro de vôo ligeiro, não devemos perder de vista que o compositor estava querendo explorar a fundo as possibilidades dos instrumentos assim combinados por sua escolha. Essa preocupação coincide com o esforço para alcançar uma orquestração extremamente brilhante, cultivado por Prokofiev ao longo de sua carreira. RimskiKorsakov e Stravinski haviam-lhe dado exemplos determinantes na matéria: maliciosamente, ele procurou superá-los, o que não é pouco. Assim, a Suíte cita — composta em 1914 — não tardou a ficar conhecida como "a obra mais cara do mundo" pelos organizadores de concertos, que mal conheciam na época os enormes efetivos exigidos para as sinfonias de Mahler ou para os Gurrelieder de Arnold Schõnberg. De qualquer modo, essa obra, perpassada de frissons bárbaros, tem motivos de sobra para impressionar: à imponente orquestra necessária para sua execução, Prokofiev acrescentou oito trompas, cinco trompetes e um conjunto respeitável de instrumentos de percussão. Elementos quantitativos consideráveis costumam estar presentes também nas sete sinfonias de Serguei Sergueievitch. Se o inventário dos componentes da orquestra é em geral copioso, por outro lado .tais sinfonias oferecem um terreno especialmente propício a um trabalho qualitativo de rara perfeição. Podemos citar, a título ilustrativo, a Sinfonia n° 4 em dó maior, escrita em 1930 por encomenda de Kussevitzsky para o qüinquagésimo aniversário da Orquestra Sinfônica de Boston. É evidente que Prokofiev, nessa composição, esmerou-se nos detalhes, pois estava sabendo que seria executada por artistas consumados. O mesmo virtuosismo de instrumentação encontra-se na Sinfonia n° 5, uma das partituras mais famosas de toda a música soviética. Composta em 1944, ano em que o desfecho da Segunda Guerra Mundial se anunciava vitorioso para os súditos de Stalin, ela canta "o homem livre e feliz, sua força, sua generosidade e a pureza de sua alma". Não é preciso dizer que semelhantes intenções clamavam por uma orquestração que fosse das mais luminosas, das mais brilhantes. O autor da suíte Tenente Kije preferia — e de longe •— as grandes massas orquestrais ao discurso íntimo da música de câmara. A leitura detalhada do catálogo de suas obras revela-nos, decerto, um Quinteto, uma Sonata para violoncelo solo, duas Sonatas para violino e piano e dois Quartetos para cordas, o segundo dos quais, em fá maior, foi escrito com base em temas populares da província caucasiana de Kabarda. Mas a verdade é que a preferência de Prokofiev estava com a
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suntuosidade sonora de conjuntos imponentes. O fato de falar com igual mestria a linguagem da grande orquestra e a das confidências feitas com poucas vozes não impede um compositor de sentir-se inteiramente à vontade num modo de expressão mais do que em outro. Prokofiev mostra-se, nesse particular, como um antiChostakovitch. A imagem que dele há de continuar a nos proporcionar a história da música é aquela de um colorista frenético, que não consegue dispensar os tons violentos de sua palheta.
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D I M I T R I CHOSTAKOVITCH (1906-1975)
"Passei minha vida, não como um basbaque, mas como um proletário. Trabalhei muito desde menino." Dimitri Chostakovitch nasceu em São Petersburgo no dia 26 de setembro de 1906. Em 1914, a cidade passou a chamar-se Petrogrado e, em 1924, Leningrado. O pai de Chostakovitch, de remota origem polonesa, era engenheiro. Sua morte em 1922 deixou a família em situação de miséria. Em 1919, o jovem Mitia entrou para o Conservatório de Petrogrado, e por toda a sua vida, conservaria uma lembrança emocionada de Glazunov, então diretor da instituição. Aos vinte anos, terminados os estudos em que se mostrou constantemente brilhante, Chostakovitch já era internacionalmente célebre por sua Sinfonia n° 1 (ele tinha o projeto de compor 24 sinfonias; compôs quinze — e cada uma tem uma história particular). Concluiu em 1928 sua primeira ópera, O nariz, inspirada no conto homônimo de Gogol; e, em 1932, Lady Macbeth do distrito deMzensk, nova ópera baseada em texto de Nikolai Leskov. A despeito do sucesso imediato — e talvez em virtude dele —, começaram as desventuras de Chostakovitch às voltas com uma burocracia dada a pequenas perseguições. Assim, tratou o compositor de deixar na sombra sua Sinfonia n" 4 (1936), foi homenageado pela Sinfonia n° 5 (1937) e escreveu em 1938 o primeiro de seus quinze Quartetos para cordas (também, como para as sinfonias, havia previsto escrever 24). Durante a guerra viveu com seus concidadãos o início do bloqueio de Leningrado. A Sinfonia n" 7, dita "de Leningrado", foi concluída nessa cidade em 1941 e logo se tornou um símbolo da resistência da União Soviética ao invasor, ainda que, no pensamento de seu autor, a violência descrita seja um reflexo do pavoroso ex-
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purgo sofrido pelos habitantes de Leningrado em 1936. Realizada a primeira audição na União Soviética em 5 de março de 1942, a partitura microfilmada da. sinfonia pôde atravessar as linhas de combate, chegando finalmente à Radio City de Nova York, onde Toscanini a fez ouvir já em julho do mesmo ano. Em agosto, a Sétima de Chostakovitch ressoava na própria Leningrado, sob o cerco dos alemães, em execução memorável. Pouco depois, Bela Bartók utilizaria um dos temas dessa sinfonia no seu Concerto para orquestra. Apesar de todo o prestígio de que gozava como compositor, nem por isso Chostakovitch foi menos amplamente perseguido em conseqüência dos ditames ideológicos dos dirigentes políticos e culturais de seu país — em 1948, em seguida ao "Relatório Jdanov", e em 1962, por causa de sua Sinfonia n° 13, que se apoiava no grande poema Baby Yar de Evgueni Evtuchenko. Nos altos e baixos de uma carreira gloriosa e constantemente posta em questão, repleta de honrarías oficiais e de inclusões no index não menos oficiais, Chostakovitch amargou todos os dissabores de sua condição, a ponto de por vezes ter imaginado que a melhor solução só poderia ser o suicídio. Nem por isso faltou-lhe coragem para seguir incansavelmente, com uma regularidade sem falhas. Até sua morte em 1975, criou uma obra prolífica, intransigente em seu conteúdo, generosa em seu projeto e amplamente regeneradora para todo o povo soviético, ao qual Chostakovitch achava-se tão profundamente ligado. O drama e a riqueza da obra de Chostakovitch residem nas fantásticas contradições em cujo seio desenrolou-se a vida do homem e do criador. "A música pode ser amarga, mas jamais pode ser cínica", dizia o compositor, grande admirador de Bach, Beethoven, Mussorgski e Mahler. Por tal razão a obra desse músico, um dos grandes sinfonistas do século XX, ressoa como um canto épico. A maioria de minhas sinfonias são monumentos funerários. Gente demais, entre n ó s , morreu n ã o se sabe onde. E n i n g u é m sabe onde os corpos foram enterrados. Mesmo os que eram mais chegados a eles n ã o sabem. Isso aconteceu a u m a p o r ç ã o de amigos meus. Onde se pode erguer u m monumento a Meyerhold ou a Tukatchevski? Somente a m ú s i c a pode fazê-lo. Estou disposto a dedicar uma obra a cada uma das vítimas. I n felizmente, é impossível. Dedico-lhes, então, toda a minha música.
Estas linhas, que figuram no livro Testemunho, são atribuídas a Chostakovitch e teriam sido formuladas algum tempo antes de sua morte. A crer na sua autenticidade, é evidente que constituem um requisitorio particularmente severo contra o país em que o autor de O canto das florestas passou sua existência. Além do mais, elas revelam uma divergência total de pensamento entre este último e o sistema soviético, o que não podia deixar de gerar crises artísticas ou morais. É indispensável, entretanto, insistir no lado um pouco frágil de semelhante tese. De fato, Chostakovitch morreu não faz muito tempo, em 1975. De nossa parte, portanto, há uma falta de perspectiva. Dispomos apenas de uma documentação
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ainda incompleta a seu respeito. E, mesmo essa, exige cautela. Por exemplo, se acreditarmos no que diz a cantora Galina Vichnievskaia, que foi amiga íntima de Chostakovitch, o texto do livro Testemunho — estabelecido pelo musicólogo Solomon Volkov — teria sido amputado de muitas partes. A fim de não causar problemas com a polícia para certas pessoas que ainda se encontram em Moscou ou em Leningrado, o manuscrito original da obra estaria escondido em algum lugar seguro, provavelmente no Ocidente. Enfim, parece difícil que alguém se desembarace de certos reflexos característicos da sociedade em que vive. Um observador ocidental que abra o dossiê Chostakovitch jamais deve esquecer que se trata de um affaire tipicamente soviético. Detalhe importante, já que estamos diante de uma organização social diferente da nossa. Antes de discutirmos as relações do músico com o poder, comecemos por restabelecer em sua verdade dois conceitos importantes. Se, por um lado, esse natural de São Petersburgo recebeu maus tratos dos altos funcionários responsáveis pela cultura no Kremlin, não devemos, por outro, conferir-lhe a coroa dos mártires, levados apenas pelo conhecimento que temos de tais circunstâncias. Chostakovitch era também, por natureza, um grande pessimista: as fotografias em que aparece sorrindo são raríssimas. Além do que, ele parecia obcecado — como seu ilustre predecessor Mussorgski — pela idéia da morte. Tinha algo também daqueles niilistas russos do século XIX, retratados nos romances de Dostoievski. Essas informações servem para evitar apreciações unívocas sobre obras como o Trio com piano opus 67 (1944) ou a Sonata para viola epiano opus 147. As trevas sem fim que emanam dessa composição derradeira (1975) e a melancolia por vezes desesperada do instrumento de cordas não resultam somente de torturas morais causadas por comissários políticos. Elas podem provir de uma personalidade frágil ou perseguida por pensamentos macabros. Graças a certas análises simplificadoras, costuma-se esquecer demais no Ocidente. Segunda retificação necessária: Chostakovitch foi certamente um comunista sincero, não obstante suas divergências com uma doutrina oficial da qual o mínimo que se pode dizer é que nem sempre seguiu um caminho retilíneo. Não fosse assim, ele teria talvez procurado emigrar. Esse recurso ainda era possível antes da ascensão de Stalin ao poder. Afinal, sem seu engajamento muito nítido em favor dos princípios originais do universo soviético, o compositor jamais teria podido inventar de cabo a rabo o sopro épico e lírico que atravessa a maioria de suas quinze sinfonias. Quer se trate da segunda dentre elas, encomendada em 1927 para comemorar o décimo aniversário da Revolução de Outubro, ou de uma partitura tão universalmente conhecida como a Sinfonia de Leningrado, ou da Sinfonia n° 12 opus 112(1961), a que o compositor deu o subtítulo de 1917, à memória de Lenin, em todas trasparece um mesmo entusiasmo de coloração em geral leninista. Esse entusiasmo foi próprio de uma geração de criadores que — como Eisenstein, Maiakovski ou Iessenin — em certo momento acreditou ser para
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amanhã o paraíso terrestre, antes de renunciar a suas esperanças, às vezes de forma trágica. Mas, como os verdadeiros artistas, Chostakovitch era também um espírito livre e independente: pensava sinceramente que o estatuto particular de sua profissão desobrigava-o de seguir palavras de ordem como aquelas que eram impostas aos operários, aos mineiros e aos camponeses de sua pátria. Sob esse aspecto, enganava-se. Os sucessivos dirigentes da União Soviética jamais esqueceram de intervir diretamente nas orientações estéticas seguidas pelos pintores, escultores, escritores... e músicos. Essa presença sufocante do Estado passava pela filiação obrigatória a organismos profissionais, tais como a União dos Compositores Soviéticos, cujos membros deviam conformar-se escrupulosamente às instruções que emanavam diretamente do Soviete Supremo e que visavam — entre outros objetivos — a eliminar os meios de expressão usados pelas vanguardas artísticas ocidentais. Quanto a uma vanguarda na União Soviética, sempre esteve fora de cogitação deixá-la existir, pelo menos depois da morte de Lenin. Mesmo não sendo possível abordar com mais detalhes restrições tão graves à liberdade de expressão, era necessário lembrar sua existência: Chostakovitch sofreu seus efeitos em repetidas ocasiões. A primeira dessas escaramuças deu-se em 1936 por causa de sua ópera Lady Macbeth do distrito de Mzensk, de então por diante conhecida sob o título de Katarina Ismailovna. Essa obra conta como uma mulher se tornou assassina por amor e demonstra que, se ela foi levada a cometer crimes, a causa estava no comportamento odioso de suas vítimas — na realidade, autênticos carrascos. Infelizmente, Lady Macbeth desagradou por completo a Stalin, que se mostrou chocado com o erotismo de certas cenas, a escrita vocal tensa, o uso brincalhão e extravagante dos instrumentos e o ritmo esbaforido da partitura. Não tardou que viesse a resposta ao que Stalin considerara uma provocação: em 28 de janeiro de 1936 — "o dia mais memorável de toda a minha existência", segundo Chostakovitch —, o Pravda publicou um artigo quase difamatório a respeito dessa ópera e de seu autor. Intitulava-se o texto "Um galimatias musical" e afirmava que o trabalho do compositor nada tinha a ver "com sonoridades sinfônicas". Esse julgamento irrecorrível — emanando do Partido Comunista — teve graves conseqüências. Chostakovitch recebeu a pecha de "inimigo do povo". Lady Macbeth foi banida de todos os teatros soviéticos. Foi preciso esperar... 27 anos para que a ópera retornasse à cena, em Moscou, no dia 8 de janeiro de 1963. Entrementes, porém, o compositor havia tido que remanejar sua partitura e suprimir o episódio orquestral que descrevia um ato sexual. A segunda vez que Chostakovitch foi posto no index ocorreu em 1948. Apesar de haver adquirido notoriedade internacional com a Sinfonia Leningrado, alegoria tão bem realizada da luta soviética contra a invasão nazista, o compositor viu-se violentamente criticado por uma resolução do Comitê Central do Partido Comunista de 10 de fevereiro de 1948. Esse documento, que punha Khatchaturian e
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Prokofiev no mesmo saco (Chostakovitch como n° 1 e Prokofiev como n° 2 da lista negra), era uma diatribe contra os "compositores adeptos da tendência antipopular". Atacava os autores "cujas obras ilustram com especial evidência as perversões formalistas e as tendências antidemocráticas na música, que são estranhas ao povo soviético e a seus gostos artísticos". Essa nova perseguição teve graves conseqüências para o equilíbrio emocional de Chostakovitch. Como o conta Solomon Volkov, o compositor "recolheu-se inteiramente em si mesmo. A divisão de sua personalidade chegou ao máximo. Suas obras desapareceram do repertório." A começar pela Sinfonia n" 9 opus 70, que fora terminada em 1945. E não sem motivo: ao invés de fazer dessa sinfonia um elogio a Stalin e ao heroísmo do Exército Vermelho durante a Segunda Guerra Mundial — em conformidade com as ordens recebidas dos altos escalões —, o autor de O nariz fez uma partitura "de gosto duvidoso", para usar a expressão oficial. Em tais condições, não é de admirar que ele tenha sido fustigado pela famosa resolução do Comitê Central, mais conhecida como "Relatório Jdanov". O "realismo socialista" era decididamente incompatível com a estética pessoal de Chostakovitch. O terceiro e último desentendimento acalorado aconteceu em 1962. Nesse ano, Chostakovitch manifestou a intenção de apresentar pela primeira vez aos amantes da música sua Sinfonia n° 13 opus 113, para solo de baixo, coro masculino e orquestra. Os textos cantados provinham de poemas de Evgueni Evtuchenko. Mas, em lugar de glorificarem os lendemains qui chantent, esses poemas denunciavam claramente os crimes cometidos sob o reinado de Stalin, tais como a repressão sangrenta, os grandes expurgos, o violento anti-semitismo e o arrivismo descarado. Como se sabe, Nikita Krutchev já participara e ia ainda participar dessa crítica aos horrores stalinistas. Mas — segundo as regras do jogo em vigor na União Soviética — não cabia a um compositor tomar partido publicamente sobre semelhantes questões. Sobretudo quando se chamava Chostakovitch e era uma celebridade internacional. Por conseguinte, Chostakovitch viu-se rudemente repreendido pelas autoridades, que exigiram dele a modificação urgente dos textos, sob pena de a Sinfonia n° 13 não vir a ser executada. Esse novo incidente é uma excelente refutação da tese segundo a qual o músico teria sido constantemente envolvido e resgatado pelos senhores sucessivos do Kjemlin. Ainda que sendo refém deles, não faltavam a Chostakovitch nem determinação nem coragem para dizer em alta voz o que outros pensavam sem abrir a boca. E isso, não obstante seu mandato de deputado junto ao Soviete Supremo, que ele exerceu de 1962 até o fim da vida. Devemos, portanto, receber com ceticismo as frases que Schõnberg escrevia a Kurt List em 17 de outubro de 1944: "Con1
1 Em francês, os "porvires que cantam", expressão irônica que designa um futuro em que se projeta uma felicidade geral, idealizada como compensação para as vicissitudes de um presente penoso. (N. T.)
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tiriuo vendo em Chostakovitch um grande talento. Não é culpa dele se deixou a política influenciar seu estilo de composição." O Concerto n° 1 para violoncelo opus 107, de 1959, ou a Sonata para violino e piano opus 134, de 1968, acaso passam mensagens marxistas-leninistas? Temos todo o direito de duvidar disso. Por outro lado, seria desonesto silenciar sobre a simpatia real que Chostakovitch manifestava pelos que eram oprimidos em conseqüência de sua religião ou de suas crenças filosóficas. Isso está patente na Sinfonia n° 13, mas não esqueçamos tampouco o ciclo vocal Extrato da poesia popular judaica opus 79, escrito em 1948, assim como o prefácio que o compositor redigiu para uma coletânea de cantos iídiches publicada em 1970 em Moscou. Chostakovitch encarregou-se da revisão das peças que compunham esse último caderno. São gestos que nada têm de gratuitos, sobretudo em se tratando de um cidadão da União Soviética. Entretanto, para proteger-se contra as acerbas críticas de que foi alvo durante a carreira, Chostakovitch encontrara havia muito um número restrito — mas real — de escapatórias, meios discretos de entrar em dissidência, dando a impressão de exercer normalmente sua atividade criadora e acatar os imperativos oficiais. O primeiro desses meios de fuga encarna-se nos trabalhos de adaptação de certas grandes partituras da música russa. O compositor tinha uma predileção acentuada por Mussorgski: "Sua obra foi para mim uma verdadeira academia humana, política e artística." Isso explica que, por três vezes, ele tenha empreendido a orquestração de importantes composições deixadas por aquela alta figura da música russa. Em 1940, Chostakovitch trabalhou na reorquestração de uma das mais belas óperas de todos os tempos: Boris Godunov. Dezenove anos mais tarde fez o mesmo com A Khovanchtchina, grandioso afresco que Mussorgski deixara inacabado. Finalmente, em 1962, chegou a vez do ciclo vocal dos Cantos e danças da morte, cuja importância para a concepção de sua Sinfonia n° 14 Chostakovitch foi o primeiro a reconhecer. Se, por um lado, temos o direito de contestar um pouco as orientações estilísticas escolhidas pelo músico nesse gênero de trabalho e de nos surpreendermos, por exemplo, com a atmosfera muito "Revolução de Outubro" que paira sobre o final do ato polonês de Boris Godunov, não devemos, por outro, desprezar as correspondências profundas que existem entre Chostakovitch e Mussorgski, tanto em suas relações com o mundo exterior como em seu universo íntimo. Um e outro sofreram na pele as arbitrariedades do poder, fosse o poder dos czares, fosse o do Partido Comunista. Lembremo-nós que, quando da estréia de Boris em 8 de fevereiro de 1874, no Teatro Mariynskí de São Petersburgo, os círculos próximos da família imperial suportaram com dificuldade a citação de uma cantiga popular lituana. Isso significava tomar partido pela Polônia, atitude que foi recriminada ao compositor em virtude das relações já conflituosas que existiam entre esse país e a Rússia. Outro ponto comum aos dois artistas: um espírito eminentemente eslavo. Não há como não o perceber quando ouvimos O canto da floresta opus 81
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(1949) ou os Quatro poemas do capitão Lebyadkin opus 146 (1975), pois foi esse mesmo espírito que proporcionou a Chostakovitch sua grande impavidez diante dos opressores, ajudando a melhor suportar a adversidade, encarnação que era de um fenômeno muito mais antigo do que o regime soviético — uma realidade atemporal sobre a qual práticas políticas não podiam agir. Acrescentemos a esta lista de fatores comuns o sentimento da morte — a que já dudimos no momento de definir a personalidade de Chostakovitch — e a aproximação se fecha de modo perfeito. Também a produção do compositor no domínio da música de câmara suscita comentários análogos. Mas antes vale a pena fixar que, durante sua carreira, ele se distinguiu por um copioso catálogo nesse modo de expressão: dele se destacam notadamente quinze Quartetos para cordas (do opus 49, em 1938, ao opus 144, em 1974), sonatas para violino, para violoncelo, para viola, diversas composições destinadas a formações tão diversas como duos, quintetos ou octetos. Assim como obras para piano solo, entre as quais figuram duas Sonatas (opus 12, em 1926, e opus 61, em 1941) e os 24 Prelúdios e fugas opus 87 (1950-1951). Esse interesse tão vivo por um gênero de pura intimidade pode ser interpretado como a procura de um porto de paz, de um refúgio a que não chegassem as atribulações políticas atravessadas por Chostakovitch. Sob esse aspecto, forçoso é notar que a necessidade teve força de lei. O teatro lírico carreava conotações históricas e sociológicas em demasia, que podiam gerar insuportáveis reprimendas de natureza política. Isso explica por que — com exceção da opereta Moscou, bairro Tcheriomuchki, composta em 1958 — o compositor abandonou a ópera desde a idade de 25 anos. O nariz e Lady Macbeth do distrito de Mzensk lhe haviam causado preocupações demais. Por outro lado, num país em que o mais estrito ateísmo era a regra,ficavaimpossível fixar sua escolha na música sacra, sem falar que as convicções pessoais do músico sequer admitiam esse subterfúgio. Daí a força simbólica da música de câmara deixada por Chostakovitch e a carga alegórica muito concentrada que contêm algumas de suas peças. Estamos pensando particularmente na Sonata para viola e piano opus 147 — o canto do cisne de Chostakovitch — assim como nos 24 Prelúdios e fugas de 1950. A sonata termina com um adagio de cerca de quinze minutos que é uma meditação às portas da morte. Mas, ao mesmo tempo, um tema confiado à viola, os baixos cavernosos e os arpejos tocados pelo piano mostram-se quase como uma citação da Sonata ao luar opus 27 n° 2, de Beethoven. Ora, qualquer pessoa culta sabe que o ilustre compositor alemão expressou coisas capitais em música e que seus ideais humanitários — mesmo que só nos ativéssemos à defesa dos dheitos humanos — continuam sempre atuais. Também o fato de escolher o gênero do prelúdio e da fuga, escrevendo precisamente 24 deles, vale como um magnífico juramento de lealdade a Bach, outra pilastra fundamental da música de todos os tempos, que fixou o mesmo número de peças para cada um dos dois cadernos do Cravo bem temperado.
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Que ninguém se engane: essa dupla escolha levada a efeito por Chostakovitch não deve ser encarada como sem maior importância. Tanto mais que ela diz respeito a dois artistas alemães, dois criadores provindos de uma nação a que, em geral, as mentalidades coletivas russas e soviéticas sempre foram hostis: os berlinenses ou os habitantes de Frankfurt aparecem freqüentemente como personagens ridículas nos romances russos do século passado. Desde o surgimento de uma consciência musical nacional graças a Glinka, as referências à escola germânica não eram bem aceitas. Prova disso foram as ásperas discussões que a tal respeito se travaram dentro do Grupo dos Cinco. Mais uma vez, Chostakovitch não hesitou em enfrentar um tabu cultural, e o último discurso musical que produziu, com a Sonata para viola e piano, é uma saudação beethoveniana à liberdade. É bem verdade que Chostakovitch foi o primeiro a dizer que sua vida "não conheceu nenhum momento especialmente feliz, nenhuma alegria — foi sempre cinzenta e sem brilho". Destas palavras, depreende-se perfeitamente a vítima que ele foi. Entretanto, ao escolher essa referência ao compositor de Fidelio, Chostakovitch optou pela fraternidade universal e, saudavelmente, fez abstração das querelas que dividiam o mundo em dois blocos antagonistas. Sob este aspecto, pode-se dizer que Chostakovitch terá triunfado sobre os sucessivos dirigentes de sua pátria. Este apanhado sobre música soviética não estaria completo se, depois de abordar a vida e a obra de Prokofiev e Chostakovitch, nada se disesse sobre dois outros compositores da mesma geração que alcançaram fama internacional graças a algumas de suas obras: Aram Khatchaturian e Dimitri Kabalevski. Aram Khatchaturian (1904-1978) O armênio da música soviética do século XX — esta, a principal característica do autor da famosa Dança do sabre — recebeu sua educação musical de Glière e, em certo período, do próprio Prokofiev. Toda a obra de Khatchaturian está dominada por tradições populares armênias, fonte fecunda de sua inspiração. Essa fidelidade às origens de essência oriental não bastou para livrar o compositor dos ataques do "Relatório Jdanov". E o objeto das críticas que sobre ele desabaram foi sua Sinfonia n° 3, escrita para festejar o trigésimo aniversário da Revolução de Outubro! Também professor e regente de orquestra, Khatchaturian há de ser lembrado sobretudo por seu Concerto para violino e orquestra e pelos dois balés de fama internacional que compôs: Gayane e Spartacus. Do primeiro (1943), faz parte a famosa Dança do sabre, e o segundo, terminado em 1954, em seguida a uma estada do músico na Itália, celebrizou o bailarino russo Vassiliev.
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Dimitri Kabalevski (nascido em 1904) Belo exemplo de vocação tardia, o caso do soviético Dimitri Kabalevski: entrou para o Conservatório de Moscou com a idade de... 21 anos! Esse trajeto inusitado é tanto mais digno de nota ao constatarmos que o compositor — natural de Leningado — recuperou em pouco tempo o atraso inicial, com uma produção ao mesmo tempo abundante e variada, em que figuram quatro sinfonias, na linha de Chostakovitch, e cinco óperas dominadas pela influência de Mussorgski. Uma dessas obras líricas —- Colas Breugnon (1938) — foi inspirada pelo escritor francês Romain Rolland. Kabalevski é também autor de partituras para a juventude e de numerosas canções: nos dois gêneros, adota uma linguagem verdadeiramente pessoal, feita de lirismo, humor e simplicidade.
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Nos países da América Latina, ao iniciar-se o século XX, a moda burguesa levava às salas de concerto e à ópera um público de pessoas de posses — descendentes dos conquistadores espanhóis ou portugueses e mestiços enriquecidos — que se inebriavam ouvindo os expressivos fraseados italianos de óperas escritas no estilo de Donizetti pelos compositores locais. O restante da população, entretanto, dava sua preferência à música de essência popular. Em todas as regiões do continente, essa arte popular resultou da combinação de, pelo menos, três tradições musicais diferentes: em primeiro lugar, encontramos fórmulas melódicas e instrumentos que remontam ao período anterior à conquista — ou seja, antes do século XVI — e que têm suas origens nas músicas das antigas populações indígenas: os maias no México, os incas no Peru e na Bolívia, populações andinas pré-incaicas em certas regiões montanhosas da Argentina, etc. O segundo "sedimento" que contribuiu para a formação dessa música popular foi a música religiosa católica, importada da Europa no século XVI pelos missionários espanhóis e portugueses. Finalmente, o terceiro "aluvião" que é importante considerar nessa arte de expressão popular está representado pela contribuição da música negra — levada sobretudo para as regiões costeiras, principalmente do Brasil, sem que se esqueçam as Antilhas — proveniente do tráfico de escravos africanos a partir do século XVII. A maioria dos compositores latino-americanos do início do século XX teve o mérito de tentar defender e encorajar essa abundante música popular: não apenas preservando-a de um esquecimento provável a curto prazo — que se pode atribuir,
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em grande parte, aos deslocamentos de populações provocados pela industrialização — mas também explorando suas riquezas instrumentais e originalidades rit-. micas ou melódicas para ampliar a linguagem musical de suas próprias obras. Entretanto, a trajetória da maior parte desses compositores é semelhante: todos começaram seus estudos musicais na terra natal, mas todos partiram, em seguida, para aperfeiçoar-se na Europa ou nos Estados Unidos. Em geral, interessaram-se pelo folclore sul-americano ao voltar de sua permanência no exterior. México O mexicano Manuel M . Ponce (1886-1948), aluno de Paul Dukas, após retornar da Europa contribuiu para encorajar a cultura musical de seu país. Diretor do Conservatório Nacional no México, recolheu os cantos populares, ocupando mais tarde uma cadeira de professor de folclore na Universidade Nacional Autônoma. Manuel Ponce deve sua popularidade à canção Estrellita [Estrelinha], embora tenha sido autor de obras mais sérias, como o Concierto del Sur [Concerto do Sul] para violão e orquestra, dedicado a Andrés Segóvia. Julian Carrillo (1875-1965), de origem índia, começou sua carreira artística... na rua, como violinista popular. Mais tarde, fez estudos acadêmicos de música, primeiro no México, depois na Alemanha, em Leipzig. A mesma época que Alois Haba e Ivan Wyschnegradski — de quem ignorava as pesquisas —, Carrillo trabalhava sobre o problema dos microintervalos (isto é, intervalos menores que o semitom). Desde 1895, compôs obras em quarto, terço, oitavo e dezesseis avos de tons, para cuja execução mandou fabricar instrumentos especiais. Digno de nota é, principalmente, seu Preludio a Colón [Prelúdio a Colombo] para vozes e conjunto de instrumentos microtonais. É a um aluno de Camilo, o etnomusicólogo Vincente Mendoza, que devemos a obra mais completa sobre a música mexicana: Panorama de la música tradicional de México (1956). Carlos Chavez, nascido em 1899, fundador e regente durante vinte anos da Orquestra Sinfônica do México, abordou todos os gêneros em sua obra considerável: música sinfônica — Sinfonia índia —, música de balé, música coral, música de câmara, etc, mesclando uma linguagem inspirada no folclore mexicano a uma escrita marcada pela influência de Stravinski. Brasil Heitor Villa-Lobos (1887-1959) nasceu de uma família rica, em que se organizavam soirées de música de câmara. Mas, já de menino, preferia ouvir os seresteiros nas ruas do Rio. Depois da morte do pai, juntou-se, como violonista e violoncelista, a um desses grupos populares que animavam festas e carnavais. Foi um
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autodidata que proporcionou a si mesmo uma dupla formação: por um lado, t i nha o ouvido atento às músicas populares que descobriu durante suas viagens pelo interior do país; por outro, estudava as partituras clássicas e românticas do repertório europeu, completando esse trabalho com a leitura do Cours de composition musicale de Vincent d'Indy! Em sua obra prolífica (chegou a escrever doze sinfonias), Villa-Lobos combinou mdiferentemente todos os estilos e todos os gêneros, introduzindo sem hesitar certos materiais musicais tipicamente brasileiros em formas tomadas de empréstimo à música clássica ocidental. Procedimento heteróclito que o levou a aproximar, numa mesma obra, Johann Sebastian Bach e os instrumentos mais exóticos. Entre 1930 e 1944 compôs as nove Bachianas brasileiras, para combinações instrumentais diversas. Nas quatro suítes para orquestra intituladas O descobrimento do Brasil, VillaLobos justapôs os cantos indígenas e a música da hturgia católica. Mas, aqui, o episódio histórico que dá motivo à obra justificava que se defrontassem os dois mundos musicais diferentes, pois trata-se de descrever o encontro de duas civilizações. Nos períodos que passou em Paris, Villa-Lobos fez conhecer a música brasileira na Europa. Compôs então os Choros, inspirados numa técnica de composição popular que consiste em acompanhar com as cordas as variações executadas por um instrumento de sopro. Os catorze Choros de Vüla-Lobos são escritos para conjuntos de composição extremamente diversa, que vão do solo (violão) até a junção de muitas orquestras dentro da mesma obra. Villa-Lobos desenvolveu no Brasil uma importante ação político-musical, que terminou repercutindo sobre toda a vida musical do país: ele fez a programação das associações sinfônicas, organizou enormes concentrações de corais — chegou a reger 40 mil estudantes reunidos num estádio —, criou um Conservatório Nacional para o canto coral, depois uma Academia Brasileira de Música. A composição de uma Suíte sobre temas negro-brasileiros para orquestra revela o interesse que o folclore também despertava no compositor e pianista Luciano Gallet (1893-1931), amigo de Villa-Lobos e aluno de Darius Milhaud. Ainda na América Latina Como se vê, encontramos em toda a América Latina compositores que, na mesma época — a primeira metade do século XX —, contribuíram não só para preservar as músicas tradicionais como para desenvolver uma cultura musical vinda da Europa. Esses criadores foram muitas vezes os fundadores dos primeiros conservatórios e de várias associações musicais: O diretor do Consevatório Nacional da Bolívia, Eduardo Caba (1890), utilizou em El poema del charango um dos instrumentos populares mais difundidos em seu país, o charango (pequeno instrumento de cordas pinçadas).
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No Chile, o principal animador da vida musical foi também o criador do Conservatório de Santiago, Domingo Santa Cruz Wilson, nascido em 1899. Depois de haver dirigido uma Sociedade Bach, mais tarde Instituto de Extensão Musical, tornou-se o reitor da Faculdade das Artes e Ciências Musicais da Universidade do Chile. O Conservatório Nacional do Uruguai, em Montevidéu, foi criado por Eduardo Fabini (1883-1950), que se formou pelo Conservatório de Bruxelas e foi autor, notadamente, de poemas sinfônicos: duas linguagens estão presentes, lado a lado, na Isla de los Ceibos, uma, de inspiração debussyista, e a outra com características que identificam a música popular uruguaia, de essência espanhola e negra. Na Argentina, Alberto Williams (1862-1952) — que fez seus estudos em Paris com César Franck —• impulsionou a renovação musical. Foi seguido por Carlos Lopez Buchardo (1881-1948), aluno de Albert Roussel em Paris e primeiro diretor do Conservatório Nacional de Buenos Aires. Mas é a Juan Carlos Paz (nascido em 1897) que se deve a introdução, na Argentina, de um espírito de pesquisa com caráter mais contemporâneo. Esse compositor conhecia bem a técnica serial de Schõnberg, a que consagrou uma obra. Professor, crítico e musicólogo, Paz foi um dos fundadores dos Concertos da Nova Música e do Grupo Nova Música (1944) que tiveram, entre outros membros, Michael Gielen e Mauricio Kagel. Alberto Ginastera (nascido em 1916) também conhecia o sistema serial, que praticou em sua música desde os anos 1960. Mas ultrapassou essa etapa de modo a orientar-se no sentido de uma escrita mais "espacial", recorrendo notadamente aos agregados em blocos ou "cachos" de notas (clusters). Professor no Conservatório de Buenos Aires, desempenhou papel influente na vida musical contemporânea de seu país. É autor de muitas óperas — a mais recente, Barrabás, com argumento extraído da peça homônima de Michel de Ghelderode —, de cantatas (Cantata para América mágica), de balés, de música para cinema, música de câmara e música sinfônica.
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CHARLES IVES E SEUS CONTEMPORÂNEOS NORTE-AMERICANOS
Para muitos compositores do início do século nos Estados Unidos era preponderante o desejo de encontrar fontes de inspiração na música que se fazia no país (cantos tradicionais dos índios, spirituals, blues, jazz). A ausência de uma tradição nacional a que se reportar levou-os a forjar uma linguagem que não mais dependia da hegemonia européia. George Gershwin Por exemplo: George Gershwin (1898-1937). Pianista prodigioso, dotado de um senso melódico fantástico, autor de um sem-número de canções que obtiveram sucesso imediato e de numerosas comédias musicais, Gershwin teve desde cedo consciência de ser o compositor norte-americano. "Sou o Schubert americano", teria dito um belo dia; e, com mais seriedade: "Tenho a modesta pretensão de contribuir para a elaboração do grande romance musical americano." Sério? Pouco sério? Fiquemos com o julgamento de Schõnberg, que foi seu amigo: Ê absolutamente evidente que Gershwin foi um inovador. O que ele conseguiu fazer, em matéria de ritmo, harmonias e melodias, n ã o se atém simplesmente ao d o m í n i o da estilística. É mesmo uma linguagem muito afastada do maneirismo de tantos compositores que se pretendem "sérios". Suas melodias n ã o são o produto de u m a forma aplicada
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mecanicamente: são entidades indissolúveis. Melodia, harmonia e ritmos estão feitos no mesmo molde, n ã o se trata de elementos heterogêneos que tenham vindo se juntar ali para a ocasião.
Com a maior naturalidade, Gershwin tentou, em sua obra, romper as barreiras entre música de jazz e música sinfônica. É o que acontece na Rapsody in Blue (1924), em An American in Paris [Um americano em Paris, 1924] ou no Concerto em fá para piano e orquestra (1925), certamente sua obra mais pessoal. A declaração é dele: "Considero o jazz uma música popular americana; não a única, mas a que faz parte da alma do povo." Seu campo de ação musical abrange, de fato, tanto as formas mais clássicas da canção popular como o jazz mais padronizado. Depois de ter produzido tantas comédias musicais, Gershwin escreveu pouco antes de morrer sua obra-prima no gênero, a ópera Porgy and Bess (1935): é característico dos Estados Unidos que coubesse a um judeu do Brooklin de origem russa o mérito de impor internacionalmente uma grande obra lírica destinada a ser executada apenas por negros. O drama das minorias raciais e de seus problemas sociais é abordado nessa obra com um sentimento profundo do trágico, e converte-se num sucesso essencialmente musical, sem apelar para qualquer ideologia. A descompartimentação dos diferentes gêneros musicais é, por sinal, um dos traços fundamentais da música norte-americana. Veja-se, por exemplo, a obra de Aaron Copland (nascido em 1900). Essa tendência "americanista" salta aos olhos em numerosos compositores que tentam construir uma prática a partir de valores não exclusivamente baseados nos critérios que o pensamento europeu vem desenvolvendo desde muitos séculos. Em Douglas Moore, chama a atenção a diversidade das fontes folclóricas; em John Alden Carpenter e, sobretudo, em William Grant Still, destacam-se as tentativas de síntese entre as músicas de tradição oral dos negros e a música sinfônica. Charles Ives Uma das características dominantes da música norte-americana é promover a mescla gigantesca de tradições culturais as mais distanciadas, do Oriente ao Ocidente; é ligar a música às circunstâncias mais diversas (festas, espetáculos circenses, manifestações ao ar livre) da atividade social, com a música moldando-se à imagem da cidade. É raro o compositor que se tenha consagrado exclusivamente à obra de concerto, como é geralmente o caso na Europa. Na produção de Charles Ives (1874-1954), por exemplo, as relações entre a atividade musical e a vida cotidiana são manifestas. Seu pai, que fora músico militar, gostava de tentar experiências de "músicas simultâneas" com as fanfarras e os corais de sua pequena cidade em Connecticut. O exemplo paterno há de ter sido mais fecundo para o jovem Charles do que os estudos musicais que fez na Universidade de Yale entre 1894 e 1898; o melhor de sua produção foi sempre o que tinha
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relação com o seu lado autodidata. "A arte", escreveu Ives, "sai diretamente de dentro da experiência da vida e da reflexão sobre a vida, a vida vivida." Ives não dissociava sua atividade profissional — por mais distante que ela pudesse parecer de uma atividade estritamente musical — de seu trabalho de composição: para ganhar a vida, fundou uma companhia de seguros em 1906. Dedicou-se a esta sem qualquer preocupação de fazer carreira ou de se tornar famoso. Assumiu os gastos com a publicação de suas obras (que durante muito tempo intimidaram os editores) e dos ensaios em que as comentava. O essencial de sua produção foi composto entre 1900 e 1918; em 1918, passou a sofrer de uma doença cardíaca; em 1930, aposentou-se no ramo de seguros e, ao mesmo tempo, parou de compor. Durante o quarto de século que lhe restava de vida, assistiu com certa ironia à ascensão de sua glória, que demorou a vir: ainda então, bem poucas eram as obras de sua autoria que já haviam sido tocadas. Para Ives, como para as gerações mais jovens de músicos, a música reflete, à sua maneira, a descontinuidade da vida. Muito influenciado pela escola filosófica dos transcendentafistas de Concord (Emerson, Hawthorne, Thoreau), Ives elaborou sua concepção estética da música em harmonia com a idéia que fazia da natureza como um todo. Declarou em seus Essays [Ensaios]: A natureza gosta das analogias e tem horror às repetições e à explicação. H á uma tendência excessivamente generalizada a conceber — e uma facilidade excessiva em aceitar — a unidade como análoga à forma, a forma como análoga ao costume e o costume ao hábito.
A música não deve se oferecer logo em toda a sua clareza como uma verdade; a música "real" deve, antes de tudo, residir na humanidade daquele que a produz. A textura musical é, segundo Ives, como um microcosmo em que a coexistência de elementos discordantes não acarreta mais desordem do que, numafloresta,a justaposição de diferentes árvores, rochas,flores,animais, etc. Não se pode dizer que esteja ausente da escrita de Ives a tradicional definição de ordering paia. a forma musical (exploração do conceito de repetição, periodicidade inerente à frase musical, ordenação das tonalidades), mas ela não se manifesta de maneira onipresente. Ives dava mais importância ao que chamava de "substância" do que à técnica de composição propriamente dita. Para ele, manner significa o que outros chamam de "técnica"; em contrapartida, a "substância" é uma noção praticamente indescritível. "A substância de um som provém de alguma parte próxima do espírito; a maneira' vem sabe Deus de onde!" Para Ives, a música é como uma recriação sonora de sua própria vida. Ele acolhe como fonte material de suas obras toda espécie de idéias musicais, as suas como as dos outros: em suas sinfonias, por exemplo, ou em Three Places in New England [Três lugares na Nova Inglaterra, 1903-1904], estão incluídas reminiscências, citações, fragmentos de experiências musicais vividas, mas sem que jamais haja qual-
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quer tentativa de promover uma síntese. Um tema é universal; nada impede que ele evolua por influência de épocas e de lugares diversos. De forma fugidia, aparecem na música de Ives fragmentos tirados de hinos müitares, de marchas, de canções de estudantes, ou seja, elementos do seu "cotidiano sonoro", da mesma forma que ele utiliza referências mais "culturais", como um motivo da Sinfonia n° 5 de Beethoven na Concord Sonata (1909-1915): a junção, a superposição, em suma, a coexistência de tais elementos dá um sentido inusitado ao conceito de polifonia. O que Charles Ives desejava não era dar a ilusão de um sistema perfeitamente ordenado e simétrico, mas estimular os ouvidos de quem entra em contato com sua música e, de certa maneira, agredir esses ouvintes: "A beleza em música é excessivamente confundida com algo que deixa repousar os ouvidos sobre uma poltrona macia", afirmava. "As dissonâncias estão se tornando beleza." Como Henry Cowell ou Harry Partch, Ives representa um precioso catalisador para a invenção musical. O domínio acústico e sua inscrição no espaço parecem constituir para ele mais um campo de experimentação do que de convenções. Tanto quanto Cowell, Ives veio a ser um precursor de efeitos pianísticos como o cluster (acorde particularmente compacto e "ruidoso"), por exemplo em Majority [Maioria, 1921], e da técnica do "piano preparado", desenvolvida mais tarde por John Cage. Por outro lado, a concepção de forma em Ives passou por abalos radicais que levariam diretamente às noções de obra aberta e de formas móveis. Nesse sentido, Halloween [Festa das bruxas], para quarteto de cordas e piano, pode ser considerada como uma das primeiríssimas músicas variáveis, pois Charles Ives, na apresentação que dela fez, indicou de que maneira a obra podia mudar de uma versão para outra. Uma geração de experimentalistas A música desse início de século nos Estados Unidos mostra-se, como se vê, excepcionalmente rica em intuições e achados, os quais só alçarão vôo plenamente depois da Segunda Guerra Mundial, quando estiverem dadas as condições para que se inscrevam numa concepção diferente do fenômeno musical, orientada antes para a idéia do lúdico e da instabilidade do que para um conceito de obra acabada. Paradoxalmente, no trabalho de George Antheil (1900-1959) — citemos especialmente seu Balé mecânico (1927) para oito pianos, campainhas elétricas, xilofones, buzinas de automóveis, bigornas, serras circulares... que faz lembrar as experiências dos futuristas italianos — ou de Henry Cowell (1897-1965), tentativas das mais experimentais caminharam lado a lado com obras absolutamente convencionais. E é freqüente descobrir, na produção musical acadêmica de certos compositores, direções que ilustram sua vontade de escapar a um conservadorismo estéril: por exemplo, Henry Brant (nascido em 1908) explorou desde muito cedo a eventualidade de um
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rompimento, nos espetáculos, do espaço reservado aos músicos, procurando abolir o corte tradicionalmente mantido entre palco e platéia; ou então, no que diz respeito à escrita musical propriamente dita, Brant praticava superposições de andamentos de uma complexidade inigualada (até 22 andamentos em Millenium II), o que põe em evidência a idéia de "colagem" tão do gosto de Charles Ives. A invenção e a descoberta de novos recursos sonoros foi uma preocupação capital para muitos compositores. Henry Cowell, por exemplo, construiu, com Léon Theremin, o rythmicon, instrumento capaz de produzir de maneira automática combinações rítmicas muito complexas, que ele utilizou na composição de Rythmicana (1931). Não podemos deixar de citar, igualmente, as pesquisas efetuadas por Harry Partch (1901-1976) para construir instrumentos de teclado com capacidade de controlar intervalos menores que o semitom; nesse caminho, Partch chegou ao ponto de preconizar a divisão da oitava em 43 partes. Entre suas obras, que só podem ser ouvidas em discos (pois não há como executá-las a não ser com os instrumentos de sua invenção) destacam-se By the Rivers of Babylon (1931), Dark Brother (1943), The Bewitched (1955) e The Delusion of the Fury (1969). O próprio Charles Ives interessou-se bastante por sistemas harmônicos que escapassem ao temperamento da música clássica ocidental. No livro que escreveu sobre Virgil Thomson (nascido em 1896) — autor de óperas como Four Saints in Three Acts (1934), com libreto de Gertrud Stein, Lord Byron (1972) e da música do filme Louisiana Story, de Flaherty, em colaboração com Kathleen Hoover — John Cage, que, como Thomson, refere-se freqüentemente a Erik Satie, declara, a propósito da geração musical que o precedeu (a de compositores como Lou Harrison, Henry Cowell e Charles Ives): "São todos compositores que fizeram o que achavam que deviam fazer, sem pretensão, num desafio à corrente geral do teutonismo e do neoclassicismo." Convém também sublinhar a importância das inter-relações entre a música sinfônica e gêneros de teatro musicado difíceis de classificar ou híbridos como a comédia musical, que encontrou sua expressão mais original nos Estados Unidos durante a primeira metade deste século com compositores do gabarito de um Irving Berlin, um Cole Porter ou um Richard Rogers. Entretanto, a presença nos Estados Unidos desde 1933 de Schõnberg, que em 1934 começou a ensinar em diversas universidades, foi determinante para a orientação da nova música norte-americana. Embora suas obras tenham sido pouco tocadas nos Estados Unidos em vida do compositor, seu pensamento estético difundiu-se rapidamente nos meios musicais e universitários. Numerosos compositores, como Roger Session, adotaram as técnicas dodecafônicas — depois seriais — da Escola de Viena, o que contribuiu para disciplinar impulsos de pesquisa um tanto dispersos. Na verdade, longe de ser constituída principalmente por obras cujo academicismo mostrar-se-ia mais ou menos velado por um cosmopolitismo superficial ou
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um ecletismo de bom tom, a música norte-americana da primeira metade deste século — graças, em particular, à personalidade excepcional de Charles Ives — está semeada de experiências musicais que permitem pressentir as opções mais recentes, tanto no que diz respeito à ampliação do material sonoro utilizado, em conformidade com os desenvolvimentos da tecnologia, como também no que concerne a considerações de ordem estética, que passam por uma revisão profunda, decorrente da reavaliação dos princípios de unidade, equilíbrio e ordem que haviam impregnado o pensamento musical durante tantos séculos.
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EDGAR VARÈSE (1883-1965)
Varèse deixou apenas catorze partituras, mas cada qual é mais surpreendente que a outra. Autêntico pioneiro da época contemporânea, Varèse foi um grande aventureiro do domínio sonoro, o primeiro compositor a saber expressar a poética de um mundo citadino e mecanizado, o primeiro a dar voz à angústia do homem moderno. A aventura de Varèse: da Borgonha à América Edgar — ou Edgard, pois ele empregava indiferentemente as duas grafias de seu preñóme — Varèse nasceu em Paris no dia 22 de dezembro de 1883. Passou a infância na Borgonha, na casa do avô materno. "A única coisa que tem valor para niim, na minha herança", ele disse, "é a recordação de meu avô borgonhês." Ou ainda: "Se existe alguma força ou alguma beleza na minha música, devo-a à igreja de Saint-Philibert de Tournus." Em 1892, foi morar com seus pais em Turim. O pai, industrial de origem italiana, era um indivíduo truculento. Destinava o filho aos estudos politécnicos e proibiu-o de ocupar-se com música. Varèse freqüentou cursos de música às escondidas. Em seguida à morte de sua mãe, cortou relações com o pai, depois de lhe ter dado uma surra para impedi-lo de brutalizar sua segunda mulher. Em 1903, instalou-se em Paris, onde vivia miseravelmente, mas sem deixar de tomar aulas com Roussel e com d'Indy, mais tarde com Widor. Revelou-se um aluno brilhante e, paralelamente, estudou física.
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Nessa época, Varèse fundou o coral da Universidade Popular do bairro parisiense de Saint-Antoine, destinado aos operários locais. Varèse acreditava firmemente na necessidade de uma expressão popular da música, com a qual jamais haveria de perder o contato, empenhando-se ao longo da vida em dirigir corais desse gênero. Em 1907, casou-se com a atriz Suzanne Bing (de quem se divorciaria em 1913). No mesmo ano de 1907, instalou-se em Berlim, decepcionado com a inexistência de um verdadeiro público musical na França. Mostrou suas partituras a Romain Rolland, que escreveu sobre o encontro: "Apareceu-me por estes dias um segundo Jean-Cristophe... Uma espécie de jovem Beethoven italiano pintado por Giorgione." Mostrou-as em seguida a Richard Strauss e, o que é mais importante, tornouse discípulo de Ferruccio Busoni, de quem Varèse leu com a maior empolgação o Esquisse d'une nouvelle esthétique musicale [Esboço de uma nova estética musical] e de quem mais tarde diria: Ele tinha o dom de estimular meu espírito, dirigindo-o para abismos de imaginação profética. Tornei-me u m a espécie de Parsifal diabólico, em busca n ã o do Santo Graal, mas da bomba que faria explodir o mundo musical, deixando entrar neste, pelas brechas, sons que naquela é p o c a •—• e mesmo hoje ainda, às vezes — eram chamados de ruídos.
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membros do coral eram mineiros da Pensilvânia, e os ensaios realizaram-se durante seis meses no fundo de uma mina, para onde se havia feito descer um piano. De 1918 a 1921, graças a dois mecenas anônimos, Varèse compôs uma obra para grande orquestra (125 músicos), a mais longa de sua produção (cerca de 23 minutos), intitulada Amériques. O compositor introduziu nessa peça duas sirenes cujos sons puros — sem a carga de harmônicos — dão uma outra dimensão à música que as cerca, criando um espaço sonoro de um relevo inesperado. A percussão, que marca forte presença, é utilizada muitas vezes a descoberto. Offrandes [Oferendas], para pequena orquestra e solo de soprano — composta em 1921 com textos do poeta chileno Vicente Huidobro (Chanson de là-haut [Canção lá de cima]) e do mexicano José Juan Tablada (La Croix du Sud [O Cruzeiro do Sul] ) —, foi dedicada a Carlos Salzedo e a Louise Norton. Varèse descobriu nessa ocasião novas técnicas para a harpa. "O ruido mais extraordinário que encontramos em toda a obra de Varèse é o ataque da harpa (eu ia dizer 'o ataque do coração', pois é onde ele se produz) no compasso 17 de La Croix du Sud", escreveu Stravinski. Em 1923, Varèse compôs, um logo em seguida ao outro, Hyperprism e Octandre. Hyperprism trabalha com oito instrumentos de sopro e dezesseis instrumentos de percussão, entre os quais cfistinguirnos, já nos primeiros compassos, a sirene e o lion's roar, literalmente "rugido de leão". A obra está construída em duas partes dominadas pelos metais. Octandre— ou seja, para "oito homens", efetivo necessário à execução da obra — é a única peça de Varèse que não inclui nenhuma percussão: apenas instrumentos de sopro e um contrabaixo. Obra de curta duração, distingue-se das outras por uma estrutura em três movimentos encadeados, nos quais Varèse afirma, por meio de melodias encantatórias, de martelamentos rítmicos que evocam o "sacrafizado", da interpenetração dos timbres, etc., o caminho que haveria de explorar dali por diante. Em 1925, é a vez de Intégrales [Integrais], que tiveram sua primeira audição no mesmo ano, em Nova York, sob a regência de Stokovski. Escrita para um conjunto instrumental muito parecido com o de Hyperprism, a obra é de maiores dimensões e também mais próxima do projeto que então norteava as criações de Varèse: consiste na ocupação de todo o espaço e na projeção dos diferentes planos sonoros nesse espaço. Tais territórios acústicos, que passam de um registro a outro, são ocupados, como em Hyperprism, por motivos "em chamado" ou por passagens homorrítmicas de caráter "sacrafizado". Em 1927, Varèse concluiu Arcana [Arcanos], segunda e última obra para grande orquestra, da qual veio a fazer uma revisão em 1960. Ele considerava Arcana a 1
Em 1914, Varèse foi mobilizado para o exército, mas, atacado por uma dupla pneumonia, foi reformado depois de servir seis meses. Nesse ano de 1914, todas as suas partituras pegaram fogo no incêndio de um depósito, exceto a do poema sinfônico Bourgogne [Borgonha], executado em Berlim em 15 de dezembro de 1910, cujo manuscrito, por sinal, o próprio compositor destruiu em 1962. Sufocado numa Europa que mocilmente aceitava os inovadores, Varèse decidiu partir para os Estados Unidos. Em companhia de um violinista norte-americano que conhecera em Berlim, embarcou em Bordeaux no mês de dezembro de 1915. Subjugado por Nova York, onde "o ser humano sente-se aspirado do alto", lá se instalou, fez orquestrações para a Broadway e para o cinema, e participou de gravações, aperfeiçoando seus conhecimentos técnicos. Em 1917, conheceu Louise Norton, tradutora, que se tornaria sua companheira, e ligou-se por uma profunda amizade ao harpista Carlos Salzedo, com quem fundou a International Composers Guild [Associação Internacional de Compositores], lançando um manifesto em que declarava: "Morrer é privilégio dos que estão esgotados. Os compositores de hoje recusam-se a morrer." Foi essa a primeira sociedade para a promoção da música moderna nos Estados Unidos, que se encarregou de dar a conhecer aos norte-americanos as obras mais recentes — Pierrot lunaire [Pierrô lunar], de Schõnberg; Les Noces [As bodas], de Stravinski; o Opus 5 de Webern; o Kammerkonzert [Concerto de câmara] de Alban Berg; as obras de Debussy, etc. No mesmo ano, Varèse regeu o Requiem de Berlioz: a maior parte dos
Instrumento cujos componentes, funcionamento e som lembram os da cuíca brasileira. (N. T.)
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realização mais fiel a seu pensamento e anotou, à margem da partitura, uma citação de Paracelso: Existe u m a estrela que se ergue acima de tudo o mais. Esta é a estrela do Apocalipse. A segunda é aquela do ascendente. A terceira é a dos elementos, que s ã o quatro: há, portanto, seis estrelas estabelecidas. A l é m destas, h á ainda u m a outra — a i m a g i n a ç ã o — que dá origem a u m a nova estrela e a u m novo c é u .
É que ele próprio—Varèse — trabalhava como dquimista do som, produzindo constantemente a transmutação dos materiais sonoros ultilizados de início. A propósito de Arcana, Varèse declarou numa entrevista: A arte n ã o nasce na razão. É u m tesouro enterrado no inconsciente, esse inconsciente que tem maior c o m p r e e n s ã o das coisas que a nossa lucidez. N a arte, excesso de razão é fatal. É a i m a g i n a ç ã o que dá forma aos sonhos.
Nesse mesmo ano de 1927, em que Varèse tornou-se, por motivos de ordem prática, cidadão norte-americano, a International Composers Guild foi dissolvida. No ano seguinte, o compositor retornou a Paris, onde permaneceu por cinco anos. Trabalhava então no esboço de Espace [Espaço] — obra inconclusa que o absorveu pelo resto da vida — e começou a compor Ionisation [Ionização]. Historicamente, Ionisation foi a primeira obra da música ocidental escrita apenas para percussões, para 13 instrumentistas e 37 instrumentos. Terminada em 1931, teve sua primeira audição em Nova York em 1933. Os teclados — xilofones, vibrafones — estão ausentes da partitura; em contrapartida, é de notar-se a importância dada aos gongos e o emprego de alguns instrumentos inusitados: sirenes, tarol, bigornas e o tambor de corda. Sem falar que, em 1931, a utilização de bongôs, do guiro (reco-reco), das claves, das maracas e dos cincerros (sinos que se penduram no pescoço das vacas) devia ser suficientemente rara para justificar a descrição de cada um desses instrumentos que Varèse fez no início da partitura. André Jofivet tornou-se aluno de Varèse, o que deu início a uma grande amizade. Em 1933, Varèse declarou numa entrevista: O que nos faz falta é u m grande r o m â n t i c o , porque todos os grandes criadores na ciência ou nas artes foram r o m â n t i c o s — o g ê n i o é r o m â n t i c o . A obra é clássica depois que passou pela prova do tempo.
De volta a Nova York, em 1933, Varèse compôs Ecuatorial, obra para voz de baixo amplificada ou para um coro de vozes masculinas, e para um conjunto instrumental muito especial que abrangia quatro trompetes, quatro trombones, um piano, um órgão, duas ondas Martenot e 21 instrumentos de percussão. A obra inspirava-se em texto extraído do livro sagrado dos maias, o Popol Vuh, conhecido graças às Leyendas de Guatemala [Lendas da Guatemala], de Miguel Angel Asturias. Varèse buscou nessa obra reencontrar o espírito da arte pré-colombiana,
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"a mesma intensidade rude, elementar, que caracteriza essas obras estranhas e primitivas". A técnica vocal, de cunho bastante encantatório, está assinalada por indicações de grande precisão, indo da "fala rouca" à "declamação percuciente" ou ao "cantado de boca fechada, pelo nariz", etc. Depois dessa obra, Varèse atravessou uma crise longa e terrível, que durou cerca de vinte anos: seus vãos esforços para conseguir um laboratório acústico a tal ponto o deprimiram e angustiaram, que chegou a sentir-se tentado ao suicídio. Entre 1934 e 1954, a única obra que Varèse concluiu foi uma peça para flauta solo, Density 21,5 [Densidade 21,5], escrita em 1936. O título nada tem de esotérico: indica simplesmente a densidade da platina da flauta para a qual o virtuose Georges Barrère encomendou a obra a Varèse. Essa monodia, que se desenrola a partir de uma célula estreita, expande-se para registros extremos, ocupando o espaço até os limites do instrumento, como um grito de angústia, mas também como uma mensagem lançada ao futuro. Durante esses anos de silêncio, Varèse não conseguia tirar do pensamento o projeto de Espace, com o qual vislumbrava uma grande sinfonia internacional e revolucionária: "A Humanidade em marcha. (...) Utilizar aqui e ali fragmentos de frases tomadas de empréstimo às revoluções americana, francesa, russa, cliinesa, espanhola e alemã", anotava ele já em 1929, num primeiro argumento. Pensava em mesclar, em inúmeros coros, os idiomas de todos os países, numa tentativa de "abraçar tudo o que é humano, desde o que há de mais primitivo até as mais avançadas fronteiras da ciência". Além disso, a guerra, que estourara na Europa, atiçou a revolta de Varèse, que considerava essa crise mundial como um sinal "infinito da burrice". Na verdade, Varèse não se pretendia francês nem norte-americano, mas "cidadão do mundo". "A idéia de nações está superada. Quem não tem o sentimento de pertencer à humanidade como um todo é um imbecil." Que um tal sentimento não haja excluído tomadas de posição políticas — mas por elas, ao contrário, tenha sido reforçado —, três indícios há que bastam para deixar isso bem claro. Em 1927, Varèse presidiu o comitê musical da Sociedade Norte-Americana de Relações Culturais com a Rússia e sempre fez questão de lembrar que conhecera pessoalmente Lenin em Paris antes de 1914. Em 1933, participou, juntamente com camaradas — entre os quais, Rafael Alberti —, da elaboração do projeto de reunião de uma IV Internacional das Artes e das Letras em Barcelona. Em julho de 1937, organizou um comitê de socorro à República Espanhola, com o objetivo de enviar uma ambulância para os feridos. De 1936 em diante, Varèse viajou muito, num esforço para esquecer-se de si próprio, do Novo México à Califórnia, onde tentou trabalhar para o cinema; depois, voltou para Nova York e lá terminou um "estudo" para Espace (1947). As atividades do compositor, nessa fase, consistiam em dirigir corais, dar cursos e conferências, publicar alguns textos. Em 1950 vamos encontrá-lo lecionando nos cursos de verão de Darmstadt. Um de seus alunos de então, Luigi Nono, pa-
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rece ter desejado perseguir, em algumas de suas obras, a utopia da famosa sinfonia varesiana. No mesmo ano, Varèse deu início à composição de Déserts [Desertos], cuja primeira audição teve lugar em Paris, em 2 de dezembro de 1954, com regência de Hermann Scherchen, provocando violento tumulto. Déserts foi escrita para uma orquestra de instrumentos de sopro, um piano e cinco percussionistas, com interpolações de som gravado em fita magnética e difundido por dois canais, em estereofonía. "A obra procede por oposição de planos e de volumes", indica Varèse. Nenhum sistema põe freios à liberdade de sua escrita instrumental, cuja pureza e sobriedade fazem jogo com as tensões dos sons gravados. Varèse projetou Déserts de modo a tornar possível que se tomasse a partitura como base para construir um filme. "Não haverá ação. Haverá imagens. Fenômenos puramente luminosos. (...) Naturalmente, as imagens estarão unidas por uma ligação orgânica." De volta aos Estados Unidos, Varèse compôs uma curta seqüência para o cinema, La Procession de Vergés [A procissão de Vergés], destinada a acompanhar um filme sobre Joan Miró. Em 1956, Ricordi começou a editar as obras de Varèse. E foi então que a Companhia Philips da cidade de Eindhoven, na Holanda, encomendou ao arquiteto francês Le Corbusier a realização de um pavilhão para a Exposição de Bruxelas de 1958. "Não farei um pavilhão", respondeu o arquiteto, "farei um poema eletrônico dentro de uma garrafa." Le Corbusier encarregou Xenakis de realizar esse trabalho e Varèse de compor a música. Depois de criados muitos problemas com os engenheiros de Eindhoven, que compreendiam mal as motivações de Varèse, e graças à teimosia de Le Corbusier em fazer o compositor participar dessa obra arquitetônica, o Poème électronique [Poema eletrônico] viu a luz do dia: quatrocentas fontes sonoras envolviam os visitantes desde o momento em que entravam no Pavilhão da Philips. Varèse realizou seu sonho de ocupar o espaço com um volume sonoro coerente. Esta obra continua a ser, até hoje, a mais estruturada e a mais puramente musical de todas as realizações eletrônicas. A partir de 1958, Varèse ganhou certo renome. Sua música passou a ser tocada e gravada por toda parte sob a regência de Bernstein, Boulez e Craft. Varèse não chegou a concluir Nocturnal, obra para coral e conjunto instrumental, com texto de Anais Nin, iniciada em 1959 e de que apenas uma primeira parte foi executada em 1961. E não realizou o projeto de pôr em música Dans la nuit [Dentro da noite], de Henri Michaux. Varèse morreu em 6 de novembro de 1965. Um novo mundo sonoro Na vida de todos nós, certos encontros servem para fixar uma direção em relação à qual ainda nos mostrávamos hesitantes. O primeiro encontro de Varèse foi com a música do passado: Idade Média e Renascimento; interessavam-no no mais alto
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grau a pureza dos contrapontos de Léonin e de Pérotin, mais tarde de Machaut e de Dufay, e a realização inteligente das organizações sonoras produzidas pelas l i nhas melódicas. Foi a estes compositores que se referiu quando disse a Odile Vivier: "Não sou um precursor, sou um criador. Será que Pérotin, Machaut ou Monteverdi eram apenas precursores?" Varèse sentia-se, por iguais razões, um parente muito próximo de Berlioz, que também consagrara a vida à busca de matérias sonoras desconhecidas. Vieram, em seguida, os encontros com os contemporâneos: Busoni, em Berlim, foi o primeiro a conceber a necessidade de introduzir a máquina no universo musical e encorajou Varèse em sua vontade de escapar aos sistemas: "O papel do artista criador é fazer leis, não é seguir aquelas que já estão feitas." As longas conversas que manteve com Debussy a propósito de suas respectivas obras também serviram para ampliar o universo de Varèse. Lembremo-nos de que Debussy já se empenhava na busca de uma forma própria para cada obra. Varèse levou adiante essa pesquisa. Quando o jovem compositor mergulhou no estudo da Fisiología do som de Helmholtz -— físico alemão do século XLX—, ficou fascinado com a descrição das experiências feitas com as sirenes. Varèse encontrou na leitura dos gregos—Aristóteles e Aristóxeno, autor do mais antigo tratado de música conhecido, Elementos harmônicos (ca. 350 a.C.) —, de Leonardo da Vinci (Cadernos) e de Paracelso justificações para sua opção criadora. Durante toda a vida, Varèse conviveu mais com artistas plásticos (Modigliani, Picasso, Miró, Gris, Giacometti, Zadkine) e escritores (Apollinaire, Léautaud, Desnos, Asturias, Henry Miller, John dos Passos, Alejo Carpentier, André Malraux) do que com os músicos. Na verdade, seu trabalho lembra o de um pintor, dispondo as matérias, organizando uma circulação entre elas e transmutando-as a cada retorno. E sua busca de um novo espaço, de uma concepção mais aberta da forma, da exigência de uma realização a partir de um material mínimo, não deixa de ter analogia com o itinerário seguido pelo pintor Piet Mondrian, seu contemporâneo. "O desrespeito está na própria base do ato criador! A própria base da criação é a experimentação", declarou Varèse. Referindo-se aos primeiros polifonistas, a Monteverdi, Schütz, Beethoven, Chopin, Berlioz e Debussy, ele acrescentou que "jamais houve um criador de importância duradoura que não tenha sido um inovador". E disse ainda: "Os laços que formam uma tradição foram forjados por homens que, todos eles, foram revolucionários." Sob esse ponto de vista, Varèse não fazia qualquer distinção entre arte antiga e arte moderna: "Há a arte que vive no presente." Isto porque a arte, para Varèse — que sempre empregou o termo com reservas —, é antes que tudo uma pesquisa e uma realização inteligente dos problemas propostos pelo compositor. Varèse concebeu a música como uma arte espacial, um movimento de corpos sonoros no espaço. E o trabalho do compositor consistiria em organizar os sons.
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U m compositor jamais deve esquecer que sua m a t é r i a - p r i m a é o som. Ele deve pensar em termos de sons e n ã o de notas n u m papel, n u m a página. Deve n ã o somente com-
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Assim se explica a predileção de Varèse pelos instrumentos de sopro e de percussão — o piano concebido como um destes.
preender o mecanismo e as possibilidades das diferentes m á q u i n a s sonoras que fazem viver a m ú s i c a , mas t a m b é m familiarizar-se com as leis da acústica.
A percussão, no tocante a sua essência sonora, possui u m a vitalidade que falta aos outros instrumentos... em suma, as obras rítmicas de percussão estão desembaraçadas dos ele-
Assim se explica porque Varèse rejeitou os sistemas tradicionais de escrita que se comprazem em triturar a matéria sonora de maneira inteiramente arbitrária, produzindo obras que não têm nenhuma realidade sensível. Uma fuga não é senão um exercício gratuito e abstrato — que Varèse realizava, por sinal, com brilhantismo, quando aluno da Schola Cantorum — sem correspondência com qualquer estrutura humana. Varèse acreditava na existência de um vasto universo sonoro não condicionado por hábitos culturais:
mentos anedóticos.
Varèse denunciou a utilização da melodia como anedótica: "Basta a melodia dominar para que a música se torne soporífera." E noutra passagem: "As pessoas confundem a melodia com árias. Árias são a baboseira da música." Por outro lado, recusava-se a distinguir som e ruído, e pretendia que opor o ruído a um som musical não passa de uma recusa de ordem psicológica. A concepção da forma, em Varèse, decorre naturalmente de sua percepção do material sonoro:
Meu objetivo foi sempre a libertação do som, abrir todo o universo do som à música... Esse combate foi por vezes interpretado como u m desejo de denegrir e de p ô r no lixo a grande m ú s i c a do passado. Mas é lá que mergulham minhas raízes.
E m lugar do antigo contraponto linear, fixo, o que existe em minha obra é o movimento de planos e de massas sonoras, variando em intensidade e em densidade. Quando esses sons colidem uns com os outros, disto resultam f e n ô m e n o s de penetração ou de repul-
Vimos, de fato, que o itinerário de Edgar Varèse parte dos primeiros polifonistas e, passando por Berlioz, descobre novas fontes em Debussy. Mas Varèse chegou a um ponto em que a técnica instrumental já não lhe podia bastar. Sonhou com manipular diretamente os materiais sonoros e fundou suas esperanças no advento da eletrônica —- uma eletrônica que não é um elemento supressivo na arte e na ciência da música, mas uma ajuda suplementar para apossar-se de um mundo sonoro mais vasto. Varèse esperava muito da máquina:
são. Certas transmutações acontecem n u m plano. Projetando-as sobre outros planos,
A libertação do sistema temperado, arbitrário e paralisante (...) uma extensão insus-
Portanto, as formas musicais são ilimitadas. Fica parecendo uma coisa inteiramente artificial querer inserir uma obra numa estrutura histórica qualquer. Em contrapartida, Varèse impressionou-se com a analogia que existe entre a formação de suas composições e o fenômeno de cristalização tal como o descreve Nathaniel Arbiter, professor de mineralogía da Universidade de Columbia:
peitada de registros no grave e no agudo, novas belezas h a r m ô n i c a s (...) uma nova dinâmica que ultrapassa de longe as possibilidades da orquestra atual com sua necessidade de u m a intervenção humana (...) u m senso da projeção sonora no espaço (...) ritmos entrecruzados sem relação uns com os outros... tudo isso numa unidade determinada de compasso ou de andamento humanamente impossível de obter.
Nada disso, porém, modificou a atitude do compositor, cujos problemas continuavam sendo os mesmos. O ritmo e a forma ocupavam o centro de suas preocupações. Mas Varèse, como vimos, não teve a oportunidade de encontrar os meios materiais que lhe permitissem desenvolver suas pesquisas a fundo. Razão pela qual continuou a escrever para os instrumentos tradicionais, buscando com eles novos timbres e antecipando com esse material imperfeito as pesquisas eletrônicas. Se Varèse fez pouco uso das cordas, é porque elas já não o satisfaziam:
cria-se uma impressão auditiva de deformação prismática.
Cada obra de Varèse determina sua própria forma: H á uma idéia, que é a base de u m a estrutura interna, que se desenvolve e depois se divide em diferentes m ó d u l o s de sons que mudam incessantemente de força e de velocidade, atraídos e repelidos por forças diversas. A forma da obra é o produto dessa interação.
O cristal caracteriza-se ao mesmo tempo por uma forma externa e u m a estrutura interna precisas. A estrutura interna baseia-se na unidade do cristal, que é a menor aglomeração de tomos aceita pela ordem e pela c o m p o s i ç ã o da substância. A extensão da unidade no espaço vai constituir o cristal por inteiro. Mas, n ã o obstante a variedade relativamente limitada das estruturas internas, as formas exteriores do cristal são inifinitas. A forma do cristal é a c o n s e q ü ê n c i a da interação das forças atrativas e repulsivas e da montagem ordenada do tomo.
Iannis Xenakis escreveu:
A u m instrumento isolado falta força, substância; é pobre, miserável. Violino no jazz
Para m i m , Varèse é u m dos m ú s i c o s mais importantes deste século, talvez o mais impor-
n ã o dá; é meloso. O violino n ã o exprime nossa época. A orquestra sinfônica é u m ele-
tante no plano da m ú s i c a direta, sobretudo por sua invenção radical de u m mundo
fante hidrópico. A orquestra de jazz, u m tigre.
sonoro inteiramente novo que ia muito mais longe que as pesquisas efetuadas por gran-
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Dérima parte: a primeira metade do século XX
des homens como Schõnberg, Webern ou Stravinski. Por isso, viveu solitário ao longo de toda a sua existência. E r a o nosso grande alquimista, o descobridor de terras virgens, inventor de uma nova combinatoria dos sons. Varèse ficou fora dos quadros, foi um desmancha-prazeres, profeta insolente, negador dos valores estabelecidos. Estará sempre aí para impedir de dormir aqueles que n ã o v ê e m na m ú s i c a s e n ã o u m eterno recomeçar.
Depois da descoberta da obra de Varèse, é impossível ouvir música como antes. Quem se deleitava com uma melodia de Beethoven, passa a apreender os quartetos ou a Nona Sinfonia acompanhando os antagonismos ou as interpenetrações dos blocos sonoros. A melodia torna-se pretexto, e a atenção do ouvinte concentra-se nos fenômenos essenciais da estrutura musical. Varèse deu um ouvido novo não apenas ao ouvinte da obra musical, mas também a quem a compõe. É inconcebível, depois dele, separar a frase escrita e o objeto sonoro. Já não é possível compor no piano e em seguida orquestrar. A música é concebida como uma organização de matérias, de timbres, de ritmos e de dinâmicas inseparáveis uns dos outros. A nota no papel pautado não corresponde a nada. O compositor precisa da realidade sonora onipresente.
DÉCIMA PRIMEIRA PARTE
O JAZZ
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PODE-SE DIZER O QUE É O /AZZ?
Como falar do jazz na década de 1980? Essa música nascida com. o século viveu uma aventura tão prodigiosa, seguiu uma evolução tão rápida, que experimentou sempre cedo demais os problemas enfrentados pela música "clássica" de tradição européia. Se aceitarmos o paralelo, compreenderemos que o jazz se encontre hoje em crise de identidade. Isto não significa que tenha havido uma espécie de idade de ouro, em que ele não houvesse sido trabalhado por correntes diversas, ou deixado de mostrar facetas muito diferentes. Tampouco significa que sua evolução foi linear: pelo contrário, essa evolução fez-se sempre em forma de leque, com certas varetas se alongando para em seguida retrair-se, como aconteceria com dedos exploradores que recuassem ao sentir o vazio sob sua falange distai. Todos esses movimentos proteiformes definiam constantemente — e historicamente — o que podemos chamar de zonas de não-jazz, as quais, por força das coisas, circunscreviam um conjunto musical que, apesar de diverso, todos concordavam em designar como jazz. Uma perspectiva mais ampla e distanciada nos permite dizer que, de "King" Oliver a John Coltrane, é da mesma música que se trata. Mas talvez mais importante seja constatar que, afora umas poucas polêmicas — polêmicas de especialistas —, os contemporâneos já sentiam isso, já o sabiam. Hoje o panorama é totalmente outro, com uma tendência a juntar sob o mesmo rótulo de jazz um número excessivo de coisas. O que foi dito acima deveria nos alertar contra eventuais acusações de termos decidido que o jazz cessa em tal ano, tal dia, quase em tal hora, com tal gravação. Pensamos simplesmente que as zonas de não-jazz continuam a existir e que hoje muita gente vê-se em dificuldades para distingui-las do jazz, da mesma forma como, nas décadas de 1920, 1930 e 1940,
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Décima primeira parte: o jazz
grande parte do público não sabia definir a linha que separava o hotjazz do straight jazz (ou seja, da música dos espetáculos de variedades, "a estrumeira das variedades", como diz Lucien Maison) e do symphonic jazz (já sem falar da Rhapsody in Blue de Gershwin e do Ragtime para onze mstrumentos de Stravinski). Nossa pergunta é apenas se o jazz está efetivamente presente em tudo o que hoje chamamos de jazz. Pergunta que nos deixa com um pé atrás, pois automaticamente puxa outras: em primeiro lugar, é claro, "que é o jazz?" E mais uma enxurrada de indagações, legítimas ou não: em virtude do fato de que o jazz é uma música improvisada, toda música improvisada deve ser considerada jazz? Em virtude do fato de que o jazz é, sob muitos aspectos, uma música de contestação e de contracultura, todas as músicas de contestação e de contracultura são jazz? Em virtude do fato de que o jazz integrou muitos elementos exógenos, ele pode integrar todos os elementos exógenos? Pergunta ainda mais grave: as músicas exógenas podem integrá-lo de maneira outra que não seja como um verniz ou como a sintaxe de uma língua estrangeira mal dominada? De uns tempos para cá, os jazzmen europeus se felicitam por terem deixado de imitar seus colegas americanos. Isso nos obriga a questionar o seu jazz, a indagar se, ao cortarem o contato com as fontes, eles não perderam uma parte daquilo que dava a essa música o seu caráter de jazz. Nada impede de imaginar um siberiano que, criado no meio de ciganos da Andaluzia, se tornasse um notável cantor de flamenco; mas seria cômico imaginar que daí pudesse ter nascido e se desenvolvido uma escola e um estilo siberianos de flamenco. Haverá quem me responda que, diferentemente doflamenco,o jazz tornou-se um modo universal de expressão musical. Não há dúvida. Mas não vemos japoneses, quando tocam Bach e Beethoven •— compositores que fundadas razões levam a considerar universais —, felicitarem-se por interpretá-los "à japonesa", isto é, de acordo com uma sensibilidade e uma estética específicas, ditadas por uma longa história cultural. Estas questões devem ser colocadas, não para recusar a brilhante expansão do jazz na atualidade, mas para que o termo "jazz", tomado em seu sentido mais amplo, conserve alguma significação. Não vemos que vantagem possa haver em amontoar um excesso de coisas sob esse termo. Em boa lógica aristotélica — a que utilizamos nas conversas mais frivolas e em nossas reflexões mais austeras —, quanto mais um conceito ganha em extensão, mais ele perde em compreensão. No caso que nos interessa, quanto mais abrirmos a extensão (quanto mais rotularmos com o nome de jazz objetos musicais diferentes), mais restringiremos a compreensão dessa noção (menos caracteres constituirão a definição, a essência), a ponto de encontrarmo-nos numa situação em que a palavra jazz deixe de ter qualquer sentido preciso e possa ser substituída pela palavra música. Tentemos ver a coisa por outro ângulo. O jazz é uma música de criação total; permite uma experiência de liberdade que era desconhecida até então na música ocidental. O que importa não é tanto o resultado, mas o fato de tocar. A criação
Pode-se dizer o que é o jazz?
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não se julga no nível da obra concluída — muitos músicos de vanguarda recusam até mesmo a própria noção de obra — mas no nível do processo. Se não pretendermos colocar a questão de saber o que é uma liberdade que se exerce no vazio e não se justifica por suas realizações — e se não quisermos lembrar que a linguagem do jazz foi criada por músicos que tocavam para a dança ou para o espetáculo e que não tinham consciência de ser criadores —, é possível admitir essa concepção, que dá ênfase ao mesmo tempo à soma da energia investida e à auto-realização dos músicos. Mas, então, como se explica que, em tantos festivais ditos de jazz, possamos ver lado a lado peças que tomam decididamente o partido da improvisação total, peças altamente elaboradas, sofisticadamente escritas, e gêneros rigorosamente codificados, como o reggae — sem falar dos músicos clássicos da índia? A música dita contemporânea tornar-se-á jazz a partir do momento em que comece a balançar com um certo suingue ? O reggae, que tem quase esse balanço, mas certamente o tem menos que o samba, seria jazz sob o pretexto de que exprime uma aspiração dos jamaicanos à liberdade e à justiça social, não obstante obedeça a uma estrita codificação rítmica, métrica e harmônica que lhe parece interditar toda e qualquer evolução harmônica e formal — exatamente como teria sido o caso do blues arcaico, se este não houvesse encontrado um dia os instrumentistas improvisadores de jazz? E, se aceitarmos tal mistura, como faremos para explicar que o rock, a pop music e o punk não tenham tido vez nesses festivais, sem falar dos músicos revivalistas célticos ou occitânicos que julgam ter-se renovado pelo fato de apoiar-se no derrisório ritmo binário do rock? E que destino deveremos dar às facilidades do movimento dito de "fusão", assim como ao retorno do Third Stream, que todos já considerávamos morto e enterrado? Será que o jazz pode mesmo integrar tudo? 1
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Em suma, as pessoas esquecem que o jazz, mesmo sob a rica diversidade trazida pela ruptura do free jazz, é antes de mais nada uma música nascida e desenvolvida nos Estados Unidos em determinadas condições históricas, geográficas, sociais, políticas e econômicas. Esquecem que ele é, antes de tudo, um fenômeno americano único, muito especialmente a expressão do povo negro dos Estados Unidos. Não são os críticos europeus, como há quem diga, que insistem sobre este último ponto, mas sim os próprios negros norte-americanos, sejam eles vanguardistas ou jazzmen clássicos, que raramente encontram no jazz tocado pelos brancos de seu país e, com mais forte motivo, pelos músicos de outros continentes, o feeling de que são dotados — e que, de resto, não se privam de declarar isso.
' Como vem sendo adotado na literatura, usamos a ortografia "suingue" quando se trata de "balanço" ou "bossa"— que é do jazz de todas as épocas — e swing para designar o estilo do jazz da década de 1930. (N. T.) 2
Movimento contemporâneo, principalmente californiano, que visa a efetuar a fusão do jazz— em todas as suas formas —, do rock e da pop music
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Literalmente, "terceira corrente": seu objetivo é integrar ao jazz técnicas de escrita e de composição tomadas de empréstimo à música clássica européia, do barroco [John Lewis] ao moderno [Gunther Schuller].
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Décima primeira parte: o jazz
Quando falamos de negros e brancos, está claro que não fazemos alusão a qualquer critério de genotipo ou de pigmentação da pele, mas ao fato de pertencer a uma tradição cultural e a uma história que determina uma memória coletiva, traços de comportamento, hábitos de linguagem e, de modo mais geral, um perfil humano, todos bem específicos. Somos capazes de distinguir, quase com absoluta certeza, um francês, um espanhol e um alemão não tanto pelas características "raciais", mas pelas atitudes culturais. Da mesma forma, é mais pelos traços culturais do que pela cor (pelas cores!) da pele queficamossabendo o que separa os negros americanos dos negros africanos e dos brancos americanos. Esses traços culturais próprios da maioria dos negros americanos são o produto de um duplo processo — adaptação a um ambiente novo e perpetuação de tradições e costumes antigos — que os antropólogos chamam mais precisamente de aculturação e de enculturação. Entende-se por aculturação o processo pelo qual um grupo minoritário integra os valores, os costumes e os comportamentos do grupo majoritário em que está inserido. Quanto à enculturação, é o processo pelo qual esse mesmo grupo minoritário continua a secretar de uma geração a outra seus próprios valores, costumes e comportamentos. No que concerne aos escravos africanos transplantados para a América do Norte, esse duplo processo interveio decisivamente para assegurar a sobrevivência de um grupo de etnias díspares em plena deculturação, isto é, em pleno processo de perda de identidade cultural. Desse modo, uma situação histórica limite suscitou o nascimento de uma cultura afro-americana, que já não era completamente africana nem completamente americana — e que continua a não o ser, no sentido de que os valores oficialmente reconhecidos nos Estados Unidos coincidem, em maior ou menor grau, com os da elite branca dominante. Entre os fatores de aculturação, podemos citar: a adoção de uma língua estrangeira, o inglês americano, o qual, chocando-se, por um lado, com certas resistências das condições de emissão vocal das grandes línguas oeste-africanas (iorubá, achanti), assumiu um perfil sonoro e rítmico diferente (o suingue já presente na fala, como observou LeRoi Jones); a adoção de uma religião monoteísta, sem eliminar completamente certas lembranças animistas, cuja sobrevivência encontramos em certos ritos religiosos e mesmo em certos blues; finalmente, a adoção de um sistema harmônico simples, o da balada popular anglo-americana, com seus três graus — tônica, subdominante e dominante —, sistema sobre o qual apoiarse-ão os melismas africanos, notadamente nos blues. Entre os fatores de enculturação, devemos reter — sempre no interesse da préhistória e da história do jazz—a sobrevivência de certos traços musicais da África Ocidental: funcionalidade da música, que acompanha todas as atividades, do trabalho ao relaxamento, passando pela religião; ausência de uma nítida separação entre os que fazem a música e os que a escutam, todos participando; indissociabilidade parcial da música e da dança, sentida como reação corporal total e imediata
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a um estímulo rítmico; senso metronômico, ou seja, um conceito do ritmo não como estruturação interna do compasso, mas como uma pulsação contínua que exprime superposições polirrítmicas e multimétricas; primazia concedida ao tratamento do timbre, com preferência pelos timbres turvos, por oposição aos sons claros, considerados menos expressivos; enfim, sobrevivência de sistemas melódicos que, se não são apenas pentatônicos — como durante muito tempo se pensou —, não observam, mesmo nas escalas heptatônicas, o mesmo temperamento da música ocidental dos três últimos séculos. O que é então o jazz? Mil vezes foi feita a pergunta sem que se obtivesse jamais uma resposta definitiva. Não pretendemos ter melhor êxito. A uma velhinha que lhe perguntou um dia "What is jazz?" [Que éjazz?], o truculento pianista "Fats" Waller respondeu, depois de um suspiro: "Minha senhora, se até hoje não sabe, deixa pra lá." Igualmente espirituosa e profunda é a resposta que se atribui a Louis Armstrong diante de uma pergunta no mesmo estilo (feita, quem sabe, pela mesma mulher): "Mr. Armstrong, just what is swing?" [Mr. Armstrong, o que, exatamente, é swing?]. Louis usou seu vozeirão rouco: "Lady, if you gotta ask, you'll never know! [Se precisa perguntar, senhora, não vai saber nunca!]. De todas as definições propostas, parece-nos que a melhor ainda é a do musicólogo americano Marshall Stearns: "O jazz é o resultado da mistura, durante trezentos anos, de duas grandes tradições musicais, a da Europa e a da África Ocidental." Uma definição precisa e rica em informações. Ela coloca a questão em termos de lugar, duração, telescopagem cultural e, lendo-se nas entrelinhas, de conflitos — aqueles que opuseram e continuam a opor negros e brancos. Além disso, ela dá a entender que, nos territórios onde se criava a jovem civilização americana, mesmo sob a Coroa inglesa, havia um vazio cultural e uma dispombihdade que favoreciam a aceitação, a adoção e, em certos casos, a pilhagem — por um grupo dominante (os brancos) em busca de uma identidade cultural nacional — de formas populares desenvolvidas pela subcultura negra, com base em materiais díspares mas em grande parte de origem africana. Mesmo essa estimulante definição tampouco escapa de um defeito. Ela deixa de lado a circunstância de que não foi por sua própria vontade que a tradição oesteafricana se transferiu para a América do Norte. O mínimo que podemos dizer é que lhe deram um empurrãozinho para que atravessasse o Atlântico e chegasse ao continente americano, onde desembarcou esfacelada e desestruturada, e onde as condições de vida que lhe foram oferecidas só serviram para aumentar seu transtorno. Mas, se retivermos na memória esse fenômeno histórico que foi o tráfico negreiro, compreenderemos melhor as implicações da definição de Stearns: os negros — eles próprios, para sobreviver, necessitando buscar uma identidade americana, ou seja, criar a contragosto uma cultura afro-americana — estavam bem mais dispostos a integrar as influências euroamericanas do que se estivessem vivendo plenamente sua cultura na África.
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Déáma primeira parte: o jazz
Uma tal vinculação geográfica, histórica e sociocultural não pode ser considerada um epifenómeno, razão pela qual não podemos seguir os autores que situam o ponto de partida do jazz nas primeiras formações instrumentais de Nova Orleans. Para uma compreensão correta do jazz é indispensável levar em conta toda a herança musical afro-americana: os spirituals, o fenômeno dos minstrels, do blues e do ragtime.
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U M A POESIA ÉPICA COLETIVA: NEGRO
SPIRITUALS
Designa-se pelo termo negro spiritual todo um conjunto de cantos sobretudo religiosos que constituem uma criação coletiva do povo negro americano na época da escravatura. O termo está abonado por Higginson desde 1862, no início da Guerra de Secessão, mas existe um texto bem mais antigo, de 1819, encontrado por Dena Epstein, que descreve o que é exatamente um spiritual em curso de elaboração: "No setor (dos camp meetings) ocupado pelos negros, as pessoas de cor reúnem-se e cantam juntas, durante horas, curtos fragmentos de afirmações desconexas, de juramentos ou de preces, prolongados por extensas repetições em coro" (John F. Watson). Em 1866, outra testemunha, de que conhecemos apenas as iniciais M . R. S., assim descreve no Pennsylvania Freedman's Bulletin um shout, dança de roda que os negros estavam autorizados pelos brancos a dançar: Terminadas as aulas, os professores deram a seus alunos permissão para fazer u m shout. Trata-se do exercício religioso favorito dessa gente, sejam velhos ou jovens. N a classe dos menores, depois de removidos os bancos, as crianças alinharam-se ao longo das paredes. C o m e ç o u então u m canto selvagem em b o r d ã o n u m a tonalidade menor, os tempos marcados com palmas e batidas dos pés. Sem perder o ritmo desse estranho canto, eles c o m e ç a r a m a girar em volta da sala, mantendo sua p o s i ç ã o u m em seguida ao outro, trocando o passo inicial por u m movimento mais rápido e mais desenvolto, aumentando o volume das palmas do acompanhamento na medida em que o fervor dos cantores atingia seu apogeu. As palavras de seu hino s ã o simples e comoventes. Estrofes de dois versos, o primeiro repetido duas vezes. Por exemplo: Nobody knows de trubble I sees, I Nobody knows de trubble I sees, I Nobody knows de trubble I sees,/Nobody knows but Jesus.
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Décima primeira parte: o jazz
Reconhece-se aqui um dos mais famosos spirituals, Nobody Knows The Trouble I've Seen, num momento em que ainda não havia encontrado sua forma definitiva. O que nos interessa nessas descrições — e existem muitas outras — é que elas permitem refutar a tese, muito difundida, de que os spirituals seriam o produto de uma deformação canhestra dos corais protestantes, feita pelos escravos negros da América. Sem pretender negar que em muitos spirituals se encontram vestígios de salmodia puritana e de hinódia batista ou metodista, neles se podem ver, entretanto, dois outros traços fundamentais: a sobrevivência de melismas, assim como de comportamentos rítmicos (notadamente uma sincopação referida por muitas testemunhas), que nada devem à tradição européia, e uma distinção precisa entre o religioso e o profano — ou entre o sagrado e o secular, se preferem. Em outras palavras: longe de ser uma degradação do canto religioso protestante americano dos brancos, os spirituals são uma autêntica criação afro-americana que, como toda criação original, foi buscar uma parte de seus temas, de seu material e de suas imagens nos modelos propostos pelo ambiente cultural. A Guerra de Secessão começou em 14 de abril de 1861. Em maio, os primeiros escravos fugidos do Sul refugiaram-se no Forte Monroe, defendido pelo general nortista Benjamin Butler. Quando lhe pediram que devolvesse esses escravos a seus senhores, Butler recusou, alegando que eram uma presa de "contrabando de guerra". Daí a denominação de contrabandosterficadopor muito tempo associada aos escravos fugidos. Todas as testemunhas do Norte deixaram-se seduzir pela beleza e o fervor de seus cantos, notadamente os representantes enviados por associações antiescravagistas, de caridade ou religiosas. O primeiro spiritual completo de que se tem notícia foi assinalado em setembro de 1861 e publicado em dezembro do mesmo ano. Trata-se do soberbo e dramático Go Down, Moses, até hoje um dos mais famosos e que foi publicado sob o título de Let My People Go — A Song of the Contrabands, com a seguinte anotação: "Ao que parece, este hino vem sendo cantado há pelo menos quinze anos na Virgínia e em Maryland, se bem que clandestinamente, por causa do medo do chicote." Isso faria remontar a 1845 ou 1841 a existência de um spiritual já em sua forma completa. Compreende-se por que esse spiritual era cantado clandestinamente. Por meio de imagens bíblicas perfeitamente oficiais — Deus envia Moisés ao Egito para ordenar ao faraó que "deixe partir meu povo", senão "abaterei todos os primogênitos"... meu povo "não trabalhará mais como escravo... deixe-o partir com o que tomou do Egito" — desenha-se uma vontade de liberdade, uma esperança no fim próximo da escravatura e mesmo um desejo de vingança que teriam apavorado os sulistas já traumatizados por cerca de 130 revoltas de escravos entre 1526 e 1861, de que ficaram especialmente famosas a de Denmark Vesey (Carolina do Sul, 1822) e a de Nat Turner (Virginia, 1831). Mas o contato mais importante com o material dos spirituals data do que foi chamado de "a experiência de Port Royal". Evidentemente, não se trata aqui dos
Uma poesia épica coletiva: negro spirituals
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jansenistas. Port Royal é uma ilha situada ao largo de Charleston, que em dezembro de 1861 foi capturada pelas forças nortistas, desejosas de neutralizar seus fortes e instaurar um bloqueio naval. O estado de miséria dos escravos que aí se encontravam despertou a compaixão dos movimentos antiescravagistas do Norte, que lhes enviaram administradores, mas também missionários e uma centena de professores. Entre estes, Charles P. Ware, sua irmã Lucy Mc Kim e seu primo William Francis Allen. A eles devemos as primeiras publicações de coletâneas de cânticos negros autênticos, documentos tornados mais preciosos pelo fato de Lucy Mc Kim ser uma musicista de grandes méritos. Graças a esses pioneiros, o grande público do Norte pôde dar-se conta de que as cançonetas dos minstrels, que até então passavam como sendo cantos de escravos, nada mais eram que imitações feitas por intérpretes brancos. Não tardou que duas instituições de ensino fundadas pelos negros depois da Guerra de Secessão — o Hampton Institute (na Virgínia) e a Fisk University de Nashville (no Tennessee) — prosseguissem com esse trabalho, classificando e codificando um acervo cada vez mais considerável. Em 1872, a Fisk University criou um grupo de cantores e cantoras negros, os Fisk Jubilee Singers, que divulgaram os spirituals apresentando-se nas grandes cidades do Norte e até na Europa, onde cantaram diante da rainha Vitória e do imperador da Alemanha. A experiência de Port Royal serviu para mostrar que existia uma música vocal negra profana que não apresentava grande diferença em relação à dos spirituals. Em função disso, pode-se dizer que uma grande parte dos spirituals era cantos de trabalho sobre os quais vieram apoiar-se referências às imagens bíblicas. Michael Row De Boat Ashore, spiritual muito conhecido, era originalmente uma canção de barqueiro. Havia também as corn-shucking songs, as cane songs e outras harvest songs (canções para acompanhar a debulha do milho e de outras colheitas, entre as quais a da cana-de-açúcar). Mais que nos serviços religiosos dominicais, pode-se pensar que os spirituals se tenham formado nos camp meetings, essas reuniões ao ar livre em que centenas, às vezes milhares, de homens e mulheres, brancos e escravos negros misturados, cantavam durante horas sob a direção de regentes de coro improvisados que praticavam o lining-out,já utilizado desde muito nas congregações brancas rurais, em sua maioria analfabetas. Ou seja, liam, salmodiando-o, um versículo de salmo que o coro repetia ou a que respondia sempre com a mesma expressão estereotipada {Hosannah! Yes Lord! etc.). Essa técnica de responso, chamada também de call and response pattern, não poderia deixar de seduzir pessoas cuja memória coletiva guardava ainda bemfrescosos vestígios do responso correntemente utilizado na música da África Ocidental. Ora, esse responso está presente também nas work songs, inclusive naquelas que os musicólogos John e Alan Lomax registraram, muito mais tarde, nas décadas de 1930 e 1940, nas penitenciárias do Sul. Mais fascinante, porém, é que ainda hoje ele está presente em muitas igrejas batistas. Certas gravações contemporâneas realizadas em igrejas nos permitem
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sentir, em pleno desenvolvimento, o mecanismo da formação dos spirituals. Em 1951, por exemplo, em sua igreja batista de Washington, o reverendo Samuel Kelsey escolheu como tema de seu sermão o versículo 8 do primeiro capítulo dos Atos dos Apóstolos. Numa fala entrecortada e arquejante, leu o versículo, repetiu-o, voltou a deter-se numa ou noutra passagem e finalmente reteve como palavra de apoio witness, "testemunha" (de Jesus), que fez os fiéis cantarem. Logo o piano entrou como acompanhamento, enquanto um "pedal de trombone" trouxe toda a congregação para a mesma tonalidade e um tamboril começou a marcar o ritmo. Que falta a essa criação coletiva para tornar-se um spiritual Falta apenas a repetição durante muitos meses, muitos anos talvez, num meio menos exposto às informações exteriores, de tal forma que o canto se cristalize e não mais permita variações, a não ser ínfimas — em suma, uma situação histórica inteiramente diferente. Quanto à inspiração religiosa, é freqüente opor-se o gospel ao spiritual — o primeiro, como o nome indica {gospel: evangelho), inspirado no Novo Testamento, ao passo que o segundo é ligado ao Antigo Testamento. Não é exatamente assim, porque o nome de Jesus aparece em certo número de spirituals. Mas, de fato, nos spirituals a maioria das referências rehgiosas remete ao Antigo Testamento. Tais imagens, por sinal, eram percebidas de maneira muito concreta pelos escravos. O povo negro em servidão identificava-se facilmente com os hebreus no cativeiro egípcio; pronunciada por um afro-americano analfabeto, Canaã soava quase exatamente como Canadá, um país situado ao norte, de que alguns haviam ouvido falar e onde não havia escravatura; e, como Higginson registrou, Moisés passava às vezes por herói da Revolução Americana, Aliás, hoje admite-se que certos spirituals tiveram uma função de comunicação clandestina de uma plantação a outra, servindo para lançar mensagens de alarme ou marcar encontros. Higginson, que durante a Guerra de Secessão serviu como coronel em um regimento formado exclusivamente (com exceção dos oficiais) por negros libertos pelos nortistas ou fugidos, recolheu grande número de spirituals cantados por seus soldados. Uma das versões de The Ship ofZion [O barco de Sion] que ele registrou é significativa sob esse aspecto: De Gospel ship is sailiti' Hosann — sarin. O, Jesus is de captain, Hosann — sann. De angels are de sailors, Hosann — sann. O, is your bundle ready? Hosann — sann. O, have you got your ticket? Hosann — sann.
Uma poesia épica coletiva: negro spirituals
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Os dois primeiros versos podem ser interpretados como um desejo devoto de seguir Jesus, mas os dois últimos ("Oh, já fez a trouxa? / Oh, conseguiu sua passagem?") podem implicar um projeto clandestino de fuga, sem dúvida por meio da underground railroad, a rede de evasão que salvou a vida a centenas de escravos e que ia até o Canadá. A maior parte das testemunhas da época, algumas das quais dotadas de bom ouvido musical, ouviu os spirituals em tom menor. Ora, a maioria desses cantos é em tom maior. A não ser que admitamos que todas as testemunhas empregaram "menor" no sentido vulgar, que conota uma impressão de tristeza, somos levados a acreditar que ficaram desconcertadas com o tratamento dado à terça e à sétima, que, no canto afro-americano, são o mais das vezes diminutas — como veremos mais adiante nos comentários sobre o blues. Em 1913, Krehbiel classificou assim os 527 cantos afro-americanos que analisou (entre os quais um bom número de spirituals): maior, 331; menor, 62; misto e vago, 23; pentatônico, 111; maior com sétima bemolizada, 20; maior sem sétima, 78; maior sem quarta, 45; maior com sexta alterada por sustenido, 8; maior sem sexta, 34; menor com sétima não bemolizada (sensível), 19. Como se vê, predonfina o modo maior. Quanto à retenção de características musicais africanas, Kolinski, citado por Waterman em 1952, fez as seguintes observações depois de ter efetuado um estudo comparativo dos spirituals e dos cantos da África Ocidental: Trinta e seis spirituals são idênticos a cantos da África Ocidental, ou assemelham-se muito a eles do ponto de vista da estrutura tonai (escala e modo). (...) Osritmosdo início de 34 spirituab são quase idênticos aos de certos cantos do Daomé e da Costa do Ouro. (...) Se numerosos spirituab provêm de melodias européias, algumas aparentemente não deformadas, essas melodias, ou foram transformadas para conformar-se ao estilo da música da África Ocidental, ou foram escolhidas porque se pareciam com esse estilo.
No tocante à estrutura, o professor John Work, da Fisk University, distingue três tipos de spirituals: (1) chamada e resposta (ou anufônico responsorial): o ring shout, o sermon, o jubilee e, por vezes, a gospel song, (2) curta melodia rítmica: o jubilee e a gospel, (3) melodia longa e sustentada: o que ele chama de spiritual propriamente dito. Sem querer discutir aqui essa distinção um pouco arbitrária, digamos apenas que o último tipo é ilustrado notadamente por cantos como Nobody Knows [Ninguém sabe] e Sometimes I Feel Like a Motherless Child [As vezes sinto-me como uma criança sem mãe]. É bem verdade que, no esforço de codificação, sobretudo harmônica, efetuada pela Fisk University e pelo Hampton Institute, os spirituals perderam uma parte de suas características africanas, ao se tornarem mais policiados — sob o impulso, legítimo na época, que levava a burguesia negra a procurar agradar os gostos do público branco. Dessa concepção parcialmente ocidentalizada do spiritual resultou uma tradição que em nossos dias é bem ilustrada por quartetos como os Delta
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Rhythm Boys ou o Golden Gate Quartet. Paralelamente, o spiritual popular, mais primitivo, mais "negro", prosseguiu sua carreira nas pequenas congregações de província. Fundido com a gospel song, resulta o ramo em que podemos situar grandes artistas contemporâneos, como Mahalia Jackson, Sister Rosetta Tharpe, Bessie Griffin, Frances Steadman etc. Quanto às experiências de interpretação dos spirituals com uma técnica vocal clássica, mesmo por vozes negras, o que acontece é que privam essa música de toda autenticidade, assim como de grande parte de sua beleza. Qualquer um percebe isso, ouvindo as gravações de Paul Robeson, Marian Anderson e WilheJmenia Fernandez. Nesse fenômeno coletivo que são os spirituals há autores que vêem constituirse uma espécie de pot-pourri de sagrado e de profano (Spaulding, 1863), ao passo que outros vêem a criação de uma verdadeira saga coletiva comparável à litada, à Chanson de Roland ou aos Nibelungen. É certo que as palavras dos spirituals são por vezes ingênuas, como, aliás, aqui e ali, a poesia de Homero também é, mas, da mesma forma que esta, não é raro transmitirem uma carga emocional que nos atinge profundamente. Os spirituals são a obra de um povo que vivia em condições inumanas, mas que jamais se resignou a ver nesse estado um destino. Em 1939, John Lovell Jr. assim consagrou o reconhecimento dessa criação coletiva: "Não tínhamos dúvida de que ele [o negro] soubesse inventar lindas cançonetas. Mas, na verdade, o que ele estava escrevendo era uma das poesias mais fortes que já foram criadas."
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jMLASCARAS E PILHAGENS: OS MINSTRELS
Os minstrels shows, ou espetáculos de "menestréis", surgiram no século XIX, bem antes da Guerra de Secessão. Punham em cena comediantes, cantores e artistas brancos de variedades que, besuntados de preto, os lábios exageradamente aumentados e pintados de rosa, reviravam os olhos numa caricatura da consagrada imagem popular do escravo negro. Ao longo de uma seqüência de números de music-hall, insistia-se em acentuar o lado ingênuo e bom-menino do nigger das plantações, seu linguajar desajeitado, sua preguiça, seu gosto pela dança e por uma música simples e comovente, ainda que um tanto primitiva. Reconhece-se aí, em ação, um dos mais insidiosos procedimentos do racismo: a troça paternalista. A organização desses minstrels shows obedecia a um esquema bem conhecido. A trupe chegava à cidade e, depois de desfilar exibindo-se nas ruas à maneira dos nossos circos de outrora, dava um breve concerto na praça principal; em seguida, faltando pouco para começar o show, espalhava-se em alvoroço diante do teatro, chamando o público para comparecer à função. O espetáculo propriamente dito durava cerca de uma hora e quarenta minutos. Os comediantes-músicos ficavam sentados no palco, em semicírculo, de frente para o público. O animador, branco como todos os demais do grupo, era o único a não estar insultuosamente maquilado de preto. Apresentava-se como um branco sulista, um proprietário de plantação que, por meio de diálogos "humorísticos", zombava dos dois "negros", colocados um em cada extremidade do semicírculo e cujos nomes eram sempre os mesmos: "Mr. Bones" [Sr. Ossos], que tocava castanholas feitas com ossos de peru ou com omoplatas de carneiro, e "Mr. Tambo" que, como seu nome indica, tocava
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Décima primeira parte: o jazz
tamborim. A segunda parte do espetáculo, chamada de olio (do espanhol olla podrida, que deu o francês pot-pourri), era uma sucessão de solos, cantigas cômicas e danças. Finalmente, o espetáculo se encerrava com uma dança coletiva em ritmo de marcha, que chamavam de walk around e em que certos autores (Ostranski, Blesh) vêem o antepassado do cakewalk — este, por sua vez, reconhecido como uma das fontes rítmicas do ragtime. A arte do minstrel— a minstrelsy— está documentada desde pelo menos 1827, ano em que o cantor branco George Washington Dixon apresentava-se besuntado de preto no estado de Nova York, O gênero transformou-se rapidamente num sucesso sem precedentes e se espalhou como fogo de palha por todos os Estados Unidos. Em 1828, Thomas "Daddy" Rice publicou sua célebre canção Jim Crow, que faz a caricatura de um criado de estrebaria negro e manco. (A expressão "jim crow" permanece até hoje na linguagem americana, como sinônimo de "racista", tendo inclusive formado o substantivo jimcrowism [racismo contra negros].) Em 1843, estreou em Nova York uma companhia que deveria tornar-se célebre, os Vkginia Minstrels, cuja popularidade, no entanto, foi eclipsada pela dos Christy's Minstrels. Surgiram trupes de minstrels em todo o país, até na Cahfórnia, em 1849, no momento da corrida para o ouro. Logo se verá uma aberração: músicos e cantores negros, besuntando-se à maneira dos minstrels brancos que os ridicularizam, passarão a oferecer ao público de brancos, mas também ao de negros, sua autocaricatura. O pastor Henry George Spaulding, que fez parte da comissão de Port Royal, descreveu com tristeza o espetáculo que teve ocasião de ver em 1863, em Beaufort, Carolina do Sul: À primeira vista, quando reparou nos artistas sentados em semicírculo no palco — uma dúzia de negros bem constituídos e de boa aparência — , o espectador imaginou estar em presença do famoso grupo de Christy ou de qualquer outra companhia de "serenatistas etíopes" brancos. Mas n ã o tardou muito e veio a inesperada revelação, pelo b i n ó c u l o de teatro, de que, embora cada u m dos minstrels fosse, de nascimento, t ã o negro quanto é possível a alguém sê-lo, todos os artistas haviam coberto a pele do rosto com uma camada de cortiça queimada a fim de que sua semelhança com os minstrels brancos se tornasse em todos os sentidos completa. (...) Como imitação realizada por autodidatas, a representação foi u m esplêndido sucesso. No entanto, a impressão geral deixada no espírito da platéia esteve longe de ser agradável. E r a inevitável ficar-se pensando que u m povo tão naturalmente inclinado para a harmonia seria capaz de fazer coisa muito melhor do que a imitação, ainda que perfeita, daqueles que tão grosseiramente haviam caricaturado sua raça.
Acabamos de ver a palavra "etíope" usada no texto. É que a expressão "melodia etíope" foi por muito tempo sinônima de minstrel song. Não se consegue entender muito bem o que os etíopes têm a ver com a história, mas a palavra pegou. (Talvez a origem desse uso esteja no fato de que, segundo a Bíblia, o primeiro africano a ter sido batizado — pelo diácono Filipe — foi um etíope [cf. Atos dos Apóstolos, 8,26-40].)
Máscaras e pilhagens: os minstrels
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O fenômeno dos minstrels diz respeito ao jazz por dois aspectos: a constituição de um material melódico durável e a perpetuação de uma imagem de bom menino para o músico negro. Os compositores brancos de minstrel songs — entre os quais, no primeiro plano, há que citar Daniel Decatur Emmet e sobretudo Stephen Foster, a quem devemos muitas canções bem feitas, algumas tendo-se tornado imortais, integrantes do folclore americano {Olá Folks at Home, Suzana, Old Kentucky Home) —, foram buscar inspiração no repertório de canções dos negros das fazendas, que eles moldaram em formas ocidentais dentro do esquema AABA. Junto com o blues, esse modelo constituiu uma das principais estruturas de improvisação do jazz. Há, por conseguinte, uma recuperação do material negro, mas acompanhada de uma vontade de apagar dele tudo o que soa rude demais ao ouvido ocidental, principalmente o tratamento hvre dado ao timbre e às alturas das notas. Foster dizia que queria moldar as melodias etíopes "ao gosto das pessoas educadas" e indicava em suas partituras "con espressione". Os negros, por sua vez, passaram a escrever canções de minstrels de forma AABA, notadamente James Bland, autor de Carry Me Back to Old Virginny [Levem-me de volta para Virgínia] : "É para lá que o coração do velho escurinho [darkie] tem vontade de ir... Foi lá que eu dei tanto duro trabalhando para meu velho amo." O conjunto dessas canções exala uma nostalgia do Sul, ou seja, lendo nas entrelinhas, da escravatura. A fazenda é pintada em tom pastel como um universo paradisíaco a que o negro bom menino sonha retornar. A popularidade das minstrel songs não se extinguiu com o século passado. Em 1927, o ator americano (de origem russa) Al Jolson besuntava-se e revirava os olhos para cantar Swanee em The Jazz Singer, primeiro filme do cinema sonoro, que fez enorme sucesso. Em 1937, Louis Armstrong, então no auge da glória, gravou com os Mills Brothers quatro faces (78 r.p.m.) de minstrel songs: Carry me Back to Old Virginny, Darling Nellie Gray, The Old Folks at Home e In the Shade of the Apple Tree. Quanto a Duke Ellington, dois anos antes havia gravado Cotton, uma canção assinada por Koehler e Bloom, que provavelmente era pretexto para algum número cênico no Cotton Club, ponto de reunião do público elegante que subia da parte baixa de Manhattan e que devia deliciar-se com ela. A voz era da cantora Ivy Anderson: "Algodão! Dai-me um punhado de algodão / Levai-me esta noite para os campos brancos como a neve / A beira desse rio lamacento. // O algodão me faz falta, bem que eu o colheria todo / Só para voltar à velha cabana / E estar de novo entre os meus. // O Senhor deve ter um fraco pelas terras do Sul / Porque lá do alto repetiu: / Alguém tem que colher esse algodão!'/ E foi para isso que nasci. // O algodão! De algodão tenho envolto o coração / Senhor, foi um erro, levai-me para onde é meu lugar / Não deixarei o Sul nunca mais."
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I î I
U M CANTO DE DESAMPARO: O BLUES
Certa noite do ano de 1903, na estação ferroviária do pequeno povoado de Tutwiler (Mississipi), William Christopher Handy esperava um trem que chegaria com nove horas de atraso. Cornetista e chefe de uma banda que devia tocar sobretudo marchas e quadrilhas, Handy nascera no Alabama trinta anos antes, de pais que haviam sido escravos até 1865, data do fim da Guerra de Secessão. Caiu no sono e foi despertado, de repente, por "um negro desengonçado" que se pôs a arranhar a guitarra. Ouçamos Handy: O homem estava em andrajos, pela frente rota dos sapatos apareciam os dedos dos p é s , o rosto exprimia u m a tristeza imemorial. Tocava ferindo com uma faca as cordas da guitarra, no melhor estilo dos guitarristas havaianos que haviam l a n ç a d o a moda com suas pequenas barras metálicas. O efeito era inesquecível. Sua canção t a m b é m me i m pressionou muito: Gain' where the Southern cross' the Dog. O cantor repetiu três vezes esse verso, acompanhando-se na guitarra com a m ú s i c a mais estranha que eu já ouvira em toda a minha vida.
Foi o primeiro blues ouvido por Handy. Dele sairia Yellow Dog Blues, soberbamente cantado em 1925 por Bessie Smith, numa gravação em que a "imperatriz do blues" teve como acompanhantes alguns dos melhores jazzistas da época: os Hot Six de Fletcher Henderson — ou seja, Joe Smith (trómpete), Charlie Green (trombone), Buster Bailey (clarineta), Coleman Hawkins (saxofone tenor), Fletcher Henderson (piano), Charlie Dixon (banjo) e Kaiser Marshall (bateria).
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Em 1912, Handy publicou Memphis Blues, em 1914, Saint Louis Blues, em 1917, Beale Street Blues. Morto em 1958, entrou para a história americana como o "pai do blues". Por uma vez, a América branca — que batizou o bufao Paul Whiteman de "rei do jazz" na década de 1920 e depois decidiu, na de 1930, que o clarinetista Benny Goodman era o "rei do swing", quando sua orquestra (por sinal, excelente) tinha entre seus contemporâneos essas formidáveis e criativas máquinas de jazz que eram os conjuntos negros de Duke Ellington, Jimmie Lunceford e Count Basie — por uma vez a América branca não se havia enganado, se bem que a expressão exija um esclarecimento. Handy não foi o "inventor" do blues (não existe, é claro, um inventor do blues), tampouco um bluesman. Mas, além das primeiras publicações de blues, devemos a ele duas contribuições que interessam profundamente à história do jazz: a codificação em doze compassos e três versos de forma AAB, e a notação sistematicamente bemolizada dos 3 e 7 graus alterados da escala, o que não era conhecido ainda como blue notes. Handy teve a maior dificuldade para publicar Memphis Blues, que foi recusado por muitos editores, para os quais sua estrutura de doze compassos era uma forma "incompleta". Eles lhe pediam para reescrever a peça em dezesseis compassos. De fato, a forma em três versos confunde. Se admitirmos — o que ninguém nega — que, de todos os componentes do jazz, o blues é o mais autenticamente afro-americano, é forçoso levantar a difícil questão de saber o que há de especificamente africano no afro-americano. No blues, o problema dessas retenções africanas interessa a dois aspectos: o da forma e o das blue notes. o
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oeste-africanas tradicionais, mesmo estruturando-se em séries rítmicas longas, nem por isso deixam de ignorar a barra de compasso. Daí podermos achar divertido, mas não justificado, o comentário que às vezes faziam os jazzmen franceses no intervalo dos primeiros concertos dados em Paris por bluesmen autênticos, na década de 1960: "Não era o caso de fazer vir de tão longe uns caras que nem sequer sabem cantar no compasso." Porque os "caras" não davam a mínima importância para respeitar o limite constante de doze compassos. Para eles, o que de fato contava era cantar um enunciado, retomá-lo com as mesmas palavras mas com acordes ou inflexões diferentes e amarrar a estrofe com uma conclusão. É certo que o conjunto abrangia por volta de doze compassos, se contados à ocidental, e que, portanto, a codificação de Handy não era arbitrária. Mas é mais correto esquematizá-lo assim:
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A maior parte das obras ou dos verbetes de dicionários que tratam do jazz dá uma definição de blues mais ou menos nestes termos: "Estrutura de doze compassos, baseada numa sucessão de acordes de tônica, de subdominante, de tônica mais uma vez e de dominante com resolução na tônica." O que significa pôr o carro na frente dos bois. Como acabamos de ver, a forma em doze compassos estritos foi codificada por Handy, e essa codificação viu-se consagrada pelos pequenos conjuntos de estilo Nova Orleans, por motivos evidentes: quando muitos instrumentistas improvisam coletivamente, é indispensável convencionar uma divisão interna rigorosa em períodos de quatro células (tempos ou compassos) que cada um deve respeitar, de modo a assegurar a coesão métrica e também a harmônica. Esta a razão por que os jazzmen, a não ser por algum acidente inteiramente excepcional, jamais cometem erros de compasso. As coisas se passavam de outra maneira — ainda hoje se passam — com os cantores de blues. Os bluesmen arcaicos, aqueles que gravaram a partir de 1926 — Charley Patron, por exemplo — e, com mais forte razão, seus predecessores que não nos deixaram nenhum documento sonoro, estavam pouco ligando para cantar dentro do compasso. Nisso eles ainda eram muito africanos, já que as músicas
A A B
... ... ...
A representa o enunciado inicial, Á sua repetição (texto e melodia quase idênticos, mas com progressão harmônica diferente), B é a conclusão (palavras, melodia e progressão harmônica diferentes) e as reticências indicam um prolongamento (às vezes uma abreviação) não metrificado da frase. Em T. B. Blues [Blues da tuberculose], Huddy "Leadbelly" Ledbetter, nascido em 1885, canta a primeira, a segunda e a quarta estrofes em 14 compassos e meio, a terceira em 13 e meio. Bem mais perto de nós, em 1961, Howfin' Wolf acrescenta dois compassos no fim da primeira estrofe de The Red Rooster, e não raro se notam contagens irracionais de compasso nos bluesmen urbanos contemporâneos — em Buddy Guy, por exemplo. Como dizia Muddy Waters, outro bluesman: " I don't know myself how many bars we do. You don't count it out: you feel it." [Eu mesmo não sei quantos compassos fazemos. A gente não conta isso: a gente sente.] Em outras palavras: embora a cantora Gertrude "Ma" Rainey tenha dito que escutou blues em 1902 (um ano antes de Handy), a codificação se fez lentamente. É extraordinário pensar que em 1915 o futuro blues shouter (cantor de blues de grande orquestra) Jimmy Rushing, então com doze anos, aprendeu por meio de um tio do Deep South [Sul profundo], que "the blues means twelve bars" [o blues significa doze compassos]. Mais extraordinário ainda: foi ele quem, onze anos depois, em 1926, passou essa informação a um jovem pianista cujo nome, Count Basie, permanece para sempre ligado ao admirável estilo de blues instrumental da tradição de Kansas City. Seja como for, o blues nasceu das canções e das chamadas de trabalho, principalmente as das plantações {field calls,fieldhollers). Ele existia desde muito no Sul, bem antes de sua codificação métrica e harmônica. Certos autores pensam que,
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sob forma muito primitiva, ele existia já antes da Guerra de Secessão. A julgar por certos documentos — notadamente cantos de muito antiga tradição registrados nos anos 1930-1940 em penitenciárias de negros do Sul —, é também muito provável que o blues tenha por muito tempo hesitado diante da forma da balada popular, de quatro versos por estrofe, antes de optar por sua forma definitiva em três versos. Muito ainda se discutirá, sem dúvida, se esta última forma não era, ela própria, aparentada com antigas baladas de origem irlandesa e escocesa, ou se tinha origem especificamente africana. Apesar dos esforços de certos autores, notadamente do inglês Paul Oliver, a identificação precisa das retenções africanas na herança musical afro-americana continua oferecendo grande dificuldade. Existe, entretanto, um exemplo bem antigo de canção africana com três versos AAB, onde o segundo A retoma exatamente a melodia e as palavras do primeiro, ao passo que o verso B apresenta melodia e palavras diferentes. Essa canção, que começa por "Do bana coba" (numa língua africana até hoje não identificada), é citada em 1903 pelo grande humanista negro William Edward Burghardt Du Bois, em seu livro The Souls of Black Folk. Ele nos conta que essa canção, aparentemente uma cantiga de ninar, vinha sendo transmitida em sua família desde dois séculos antes — desde que a avó de seu avô fora deportada da África para a América por um traficante de escravos holandês. Se somarmos os oitenta anos que nos separam da publicação do texto de Du Bois, a canção africana em forma de blues está perto de completar, no mínimo, três séculos de existência. Mais perto de nós, o musicólogo gánense contemporâneo J. H. Kwabena Nketia, em seu livro The Music of Africa (1974), cita dois exemplos de estrofes com três versos. Uma delas, que é zulu, tem a estrutura AAA. Nketia (que, digase de passagem, não se interessa nem pelo blues, nem pelo jazz, que ele não menciona em nenhuma passagem de seu livro) faz a respectiva notação em treze compassos. O outro exemplo, proveniente da etnia éwé, é estruturado em AAB, ou seja, com repetição das mesmas palavras no segundo A e com palavras diferentes em B; na notação de Nketia, tem doze compassos. O segundo aspecto específico do blues é o das blue notes, que já fez e continua a fazer correr muita tinta. Pode-se dizer, grosso modo, que as blue notes caracterizam-se por uma atração pelo semitom inferior dos 3 , 5 e I graus da escala heptatônica temperada, tal como a conhecemos no Ocidente. Aqui, deixaremos de lado a blue note 5 — não porque ela não seja expressiva, mas porque, diferentemente das blue notes 3 e 7, não suscita problemas harmônicos e modais. Historicamente, a primeira explicação racional das blue notes foi proposta pelo musicólogo americano Ernest Borneman em 1946. A tese de Borneman é a seguinte: os negros deportados como escravos só conheciam a escala pentatônica tonai, que não admite terças nem sétimas: dó, ré, fá, sol, lá. Expostos às músicas de o
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origem européia (religiosas e profanas), eles teriam "abaixado" instintivamente a terça e a sétima. Mas essa explicação já deixou de ser convincente depois que a etnomusicologia africana mostrou não ser verdade que na África Ocidental só existam escalas pentatônicas, nem que elas sejam mais difundidas do que as outras escalas, notadamente a heptatônica. Entre todas as demais explicações propostas, vale reter a de Marshall Stearns: a teoria das neutral notes. Essas "notas neutras", que não existem em nossa escala temperada, situam-se entre a tônica e a quinta (dó e sol) e entre a quinta e a oitava (sol e dó). Ele as chama, respectivamente, de uma terça neutra e uma segunda neutra. Para nossos ouvidos ocidentais, essas notas soam desafinadas quando cantadas com precisão. Em trabalho recente, Jeff Todd Titon propõe renunciar à noção de blue note para substituí-la pelas de "complexo mi", "complexo sol" e "complexo si". Analisando umas quarenta gravações de blues vocais arcaicos, ele estabeleceu as freqüências de utilização dos microintervalos que formam esses complexos. Por exemplo: o complexo mi é formado por mi bemol, mi bemol mais, mi bequadro menos e mi bequadro. No fundo, essas teorias não se excluem umas às outras. É Nketia quem parece pôr todo mundo de acordo quando nos ensina que, na música africana, existem escalas de sete graus não equidistantes que incorporam semitons, tons inteiros e intervalos que são ligeiramente inferiores a um tom inteiro e ligeiramente superiores a u m semitom, particularmente entre o terceiro e o quarto graus e entre o s é t i m o e o oitavo graus.
Enfim, por mais que essas discussões em torno da natureza das blue notes sejam apaixonantes para o musicólogo de jazz, parece-nos que, se quisermos tornar agradável a leitura para o aficionado de jazz, melhor seria evitar minúcias tão sutis. Ao darmos excessiva importância aos microintervalos dos "complexos" de Jeff Todd Titon, corremos o risco, no final das contas, de perder a noção de blue note e de não mais sentir a incerteza e a ambigüidade modais por elas introduzidas, principalmente pela blue note 3. Pois, quer se queira ou não, o fato é que ocorre uma incerteza modal. Em primeiro lugar, porque a blue note 3, que pode grosso modo deixar-se igualar à terça bemolizada — o índice de nosso modo menor — não expulsa da melodia do blues a terça justa. Em segundo lugar, porque a melodia do blues, que privilegia a terça e a sétima bemolizadas, apóia-se em acordes de tom maior (a não ser excepcionalmente, porque existem também blues construídos em cima de acordes em tom menor, evidentemente menos expressivos). Daí resulta não apenas uma coloração que é específica do blues, mas um conflito que determina uma ambigüidade. Essa ambigüidade, evidente para quem ouve blues cantados sem acompanhamento instrumental, é também sensível para quem escuta blues arcaicos em que certos can-
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tores se acompanham na guitarra com bordão efetuando acordes esparsos. Pessoalmente, ouvimos um velho bluesman rural cantar Saint James Infirmary, peça em tonalidade menor, acompanhando-se na guitarra com acordes em tom maior que ele às vezes modificava elevando a segunda às redondezas da terça menor. Mas essa ambigüidade pode também ser obtida no jazz orquestral, e ninguém jogou com ela mais habilmente que Duke Ellington (Black and Tan Fantasy, 1927; Echoes of the Jungle, 1931; Such Sweet Thunder, 1957). Não é necessário separar radicalmente — como o faz a maioria dos autores — o blues cantado e o blues instrumental hgado ao jazz. Mais correto seria dizer que, um pouco como o spiritual, o blues engendrou duas correntes paralelas, entre as quais circulam informações. O blues rural cantado não se teria convertido no blues urbano das grandes cidades, se (pondo-se de lado, é claro, os fenômenos de migração Sul-Norte e de proletarização urbana) não se houvesse manifestado a influência instrumental do jazz. Da mesma forma, o jazz não teria criado raízes tão profundas no blues sem o papel desempenhado pelas cantoras de blues nos espetáculos ambulantes de music-hall, acompanhadas desde o início da década de 1920 pelos melhores músicos de jazz (nessa época, Armstrong gravou nos estúdios com grandes cantoras de blues como Bessie Smith. Clara Smith, Trixie Smith e "Ma" Rainey). Mas, sobretudo, o blues não teria penetrado tão profundamente o espírito do jazz instrumental, de Armstrong a Archie Shepp, se os jazzmen negros não houvessem nele encontrado um irresistível sentimento de identidade cultural e o reflexo querido dé uma condição contestada e da sua dificuldade de viver. Para os negros americanos, o blues está sempre por perto, sempre rondando; se não se manifesta de pronto, é porque aguarda pacientemente sua hora. Como escreveu Ellington: The blues is the accompaniment ~| To the world's greatest duet: r bis A man and a woman going steady. And if neither of them feels like singin' 'em The blues just vamps till ready. J
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U M A MÚSICA DE SALÃO E DE SALOON: O RAGTIME
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"Se considerarmos o ragtime como jazz, e não parece haver razões estilísticas contra isso..." Quem escreveu estas linhas? Um crítico musical parisiense deslumbrado pela descoberta da nova "música negra" vinda da América? Não. O juízo hipotético foi pronunciado por Frank Tirro, da Duke University, em um trabalho universitário profusamente documentado que se intitula Jazz, a History (1977), cujo último capítulo trata do free jazz "O ragtime, ao contrário do que afirmam numerosas 'autoridades' na matéria, foi a primeira forma de jazz." Desta vez é um pianista moderno que assim se expressa num livro publicado em 1983, Jazz Piano, a Jazz History. Billy Taylor, nascido em 1921, que trabalhou com músicos como Dizzy Gillespie, Charlie Parker e Charlie Mingus. Há aí um modo novo de encarar o ragtime. Na verdade, a maioria dos autores até hoje mostrou-se de acordo em pensar que o ragtime é uma espécie de pré-jazz, que só se torna verdadeiramente jazz com o aparecimento do estilo stride, shout ou rent-party, muito mais flexível, introduzido pelos pioneiros da grande escola ne2
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' O blues é o acompanhamento / Para o maior dueto do mundo: / Um homem e uma mulher que estão juntos. / E se nenhum dos dois sente vontade de cantá-lo / O blues só (az preludiar até que chegue a hora. (N. T.)
Ragtime, rag. As duas palavras são sinônimas. Etimológicamente, faz-se derivar esta palavra do adjetivo ragged, "entrecortado", "áspero", "abrupto", "irregular", "desordenado". Foi a impressão queficounos primeiros ouvintes ao ouvirem o desacordo rítmico entre a mão esquerda, que marca o tempo, e a mão direita, que se esbalda em síncopes. O substantivo plural rags designava também fragmentos de melodias do tipo cantado nas plantações, (extraída de Schafer e Riedel, TlieArt of Ragtime, 1973.)
- Shout. Literalmente, "grito". Em suas origens, o shout ou ringshoutera uma dança de roda dos escravos. A palavra tornou-se sinônimo de peça executada com entusiasmo e designa também um estilo pianístico, o da escola negra de Nova York.
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gra de piano de Nova York. É bem verdade que Carolina Shout, composta e gravada em 1921 por James P. Johnson, tem um suingue magnífico, ao passo que nos ragtimes de Scott Joplin, de James Scott e de Joseph Lamb, seja qual for a maneira como são tocados, sempré fica uma certa rigidez imposta pela própria escrita, com esse acúmulo de síncopes num ritmo 2/4. Mas também é verdade que Joplin, embora coroado "King of Ragtime", não é seu inventor; teria sido mais justo qué o chamassem de pai do ragtime clássico. A preponderância assumida pelo classic ragtime na história se explica por diversos fatores. Basta mencionarmos os dois principais: a rápida difusão que teve por toda a América branca graças a seu encontro histórico com o piano mecânico (Pianola, Victrola e outros player-pianos que tocavam as gravações em piano rolls [rolos de pianola] ); e sua forma altamente estruturada, que forçosamente agradava aos ouvidos dos brancos. É o que poderíamos chamar de seu aspecto de "música de salão", o que não exclui o fato de que as pessoas tenham dançado nos salões com essa música. Em 1897 apareceu o primeiro ragtime impresso, Mississipi Rag, composição de um maestro branco de Chicago, William Krell. Veio em seguida Harlem Rag, de autoria do pianista negro Thomas Turpin, nascido na Georgia e que se fixou em Saint-Louis, no Missouri. Em 1899, Scott Joplin, negro também, nascido no Texas e trabalhando, como Turpin, no Missouri, notadamente em Saint-Louis e em Sedaba, pubhcou seu primeiro ragtime, Original Rags, seguido no mesmo ano por Maple Leaf Rag, considerado o arquétipo do ragtime, não apenas porque teve imenso sucesso ainda em vida do autor, mas também porque passou a integrar o repertório do jazz, aí se mantendo por muito tempo. Não obstante ser em grande parte um autodidata, Joplin havia tido aulas com um músico alemão que o iniciou nos compositores europeus. É um fato importante, pois encontramos nos seus rags uma preocupação com a perfeição formal, uma seriedade e uma delicadeza que fazem pensar em Chopin e no Brahms das valsas, que ele devia conhecer. O classic ragtime, tal como foi codificado e ilustrado principalmente pelo que se chamou a Magnificent Trinity, a trindade magnífica (Scott Joplin [1868-1917], James Scott [1886-1938] e o branco Joseph Lamb [1887-1960]), obedece regras muito rigorosas, que toleram apenas certas variantes. A primeira regra é a do andamento, que deve ser moderado. Tempo di mareia, Slow March Time. viam-se estas indicações muitas vezes no alto das partituras. E Joplin não raro fazia constar uma advertência aos intérpretes: "Do not play this piece fast. It is never right to play ragtime fast" [Não toque esta peça em andamento rápido. Jamais se deve tocar o ragtime com rapidez]. A segunda regra diz respeito à estrutura. O ragtime clássico compõe-se de muitos strains, ou melodias, que se desenvolvem em enunciados de dezesseis compassos com repetição idêntica. A passagem do primeiro para o segundo strain, ou do segundo para o terceiro, envolve quase sempre uma mudança de tonalidade.
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Às vezes, depois do segundo strain, encontra-se um interlúdio de quatro compassos, com ou sem modulação. O terceiro strain, conhecido como "trio" — de acordo com a terminologia em uso para as marchas militares, nas quais essa passagem, tocada por três instrumentos, era o ponto alto da peça —, em geral é o mais brilhante. Depois vem o quarto strain, que pode ser uma repetição do primeiro — fala-se, neste caso, de ragtime circular —, ou que pode apresentar uma nova melodia (e, então, trata-se de um ragtime linear). Maple Leaf Rag, por exemplo, pode ser assim esquematizado: AA BB A/CC DD. Cada letra representa dezesseis compassos. Os A e os B são na tonalidade de lá bemol, o trio (CC) é em ré bemol, e o último strain (DD) retorna a lá bemol. Como exemplo de rag linear, pode ser citado — sempre de Joplin -— The Ragtime Dance (1902), que se esquematiza da seguinte forma: Intro / AA BB CC D E F, estrutura pouco usual por não haver repetição dos três últimos strains (D E F). Os AA são em si bemol, com os BB passa-se a mi bemol e essa tonalidade mantém-se até o final. Outra obra de Joplin, Felicity Rag, pode servir como exemplo de rag circular (AA BB Al CC Interlúdio AA). A estrutura, tipicamente ocidental, está calcada nas marchas tocadas pelas brass bands, numerosas nos Estados Unidos nessa época. Com uma inovação: a introduzida pelos rags lineares. A marcha, como se sabe, volta quase sempre ao seu ponto de partida. Desde a década de 1880, Joplin havia certamente escutado fanfarras e harmonias militares, tais como as de Gilmore e, sobretudo, as de John Philip Sousa. Aliás, também aí aconteceu um fenômeno de fertilização cruzada, porque as bandas que tocavam marchas iriam em breve inscrever em seu repertório cakewalks e ragtimes. Arthur Pryor, o trombonista virtuose de Sousa (e que deveria suceder-lhe na direção da banda), era apaixonado por sincopação e escreveu numerosos arranjos de cakewalk. Mais tarde, James Reese Europe, que dirigiu a primeira orquestra militar de negros, escreveu um Castle House Rag para sua banda; enviada à Europa na Primeira Guerra Mundial, ela se incorporou ao 369° Regimento francês de Infantaria, participando dos combates. Apesar da má qualidade da tomada de som, gravações feitas em 1913 e 1914 permitem-nos notar um extraordinário baterista, Buddy Gilmore, do qual se poderia dizer que seu senso metronômico e polirrítmico ainda é quase africano, enquanto a utilização que faz das síncopes já anuncia o jazz. Tem-se a impressão de que, nessa banda militar, ele era o único capaz de sincopar com desenvoltura, e que lutava contra a rigidez de seus companheiros. Teria sido essa a razão que o levou, alguns anos mais 1
Cakewalk. Literalmente: "passo do bolo". Dança de fazenda executada por escravos diante dos amos e dos convidados, na qual o prêmio atribuído ao melhor dançarino era um bolo. Essa dança entrou em moda, na respeitável sociedade branca, em fins do século XDC. Ritmicamente ela é em 2/4, sendo considerada uma das fontes do ragtime. At a Georgia Campmeeting, marcha composta em 1897 por Kerry Mills, traz sob o título a seguinte menção: "Marcha característica que pode ser usada com bons resultados como um two-step, uma polca ou um cak&valk"
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tarde, a matar o regente da banda? Gostaríamos de imaginar que sim... mas deve ter sido, muito mais prosaicamente, por questões de salario, de jogo ou de mulher. Voltando ao ragtime clássico: como defini-lo? Para Sacher e Riedel, autoridades no assunto, ele é a moldagem artística de fragmentos de melodias populares negras, mas também de material de minstrelsy, e sua organização uma estrutura que faz lembrar a da quadrilha. Nesse sentido, na história da música negra americana, o ragtime representa uma forma em equilíbrio precário entre as tradições populares rurais e as formas urbanas mais sofisticadas. Em tal moldagem identifica-se o desejo de fazer reconhecer e aceitar essa música pela sociedade branca. Mas não há polimento que possa apagar do ragtime, mesmo clássico, sua característica rítmica principal — o fato de encontrar-se nele uma incessante polirritmia de origem africana. Sobre um ritmo em 2/4 fortemente marcado pela mão esquerda (influência da marcha, sem dúvida alguma, mas também sobrevivência de um continuum rítmico africano), a mão direita toca uma melodia muito sincopada, que se baseia numa seqüência teórica de oito semicolcheias por compasso, acentuadas segundo um descompasso ternário (esquema de Stearns): Direita
1 2 3 4 5 6 7 8 1 2 3 4 5 6 7 8 1 2 3 4 5 6 7 8 1
Esquerda 1
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Para Borneman, essa maneira de dividir o compasso tem mais a ver com a métrica do que com a acentuação propriamente dita, pela qual se desvendam "uma origem e uma abordagem incontestavelmente africanas". Enfim, no interesse do jazz, o que todo mundo se pergunta sobre o ragtime é se ele já tinha suingue em seus primordios. Ao que parece, a resposta é sim e não. Uma das grandes frustrações do musicólogo de jazz é ter à sua disposição um tesouro tal como os ragtimes de Joplin gravados por seu compositor em 1910, mas — lástima! — gravados para piano mecânico. Até que ponto podemos atribuir ao processo primitivo de gravação e até que ponto à interpretação de Joplin, a sensação de rigidez que nos transmitem essas composições? Jamais o saberemos. O que sabemos, em compensação, é que Joplin tocou durante muito tempo nos bailes populares do Missouri (notadamente em Sedalia, no cabaré Maple Leaf, de possível propriedade de um canadense;porque a folha de ácer [maple leaf é o símbolo nacional do Canadá) e que ele havia trabalhado antes no conjunto dos Christy's Minstrels. Temos também boas razões para pensar que seus ragtimes, por mais formalmente perfeitos que fossem, eram destinados à dança, porque certas partituras — nas quais a mão esquerda, só marca um tempo, o primeiro — trazem assinalada durante dois compassos (é o que se chama de stop-time) a indicação "stamp", que quer dizer: "bata com o pé". Não há a menor dúvida: essas passagens
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estavam previstas para o brilho dos dançarinos de salão, ou, no cabaré, para deixar que um astro do show mostrasse todo o seu virtuosismo, talvez na dança de soft shoe, ancestral do sapateado, que consistia em esfregar as solas, em ritmos complexos, sobre o assoalho ou sobre uma camada de areia, de que resultava um som comparável ao que produzem, na orquestra de jazz, as vassourinhas esfregando a caixa clara. The Ragtime Dance é a mais perfeita ilustração disso: depois de diversos strains em stop-time, Joplin deixa um break nos dois últimos compassos do último strain, com o objetivo de permitir ao dançarino terminar brilhantemente e colher os aplausos da assistência. Mas, nunca é demais repetir: Joplin e Joseph Scott apenas levaram a uma espécie de perfeição formal uma música que já existia desde muito antes. Em todo o Meio Oeste, com efeito, e mesmo no Texas, o ragtime popular era conhecido em cabarés e espeluncas, nos acampamentos de mineiros e de lenhadores, nas barrei houses onde certamente esteve lado a lado com o blues dos pianistas honky-tonk que, tendo adaptado ao seu instrumento o estilo dos negros tocarem guitarra, preparavam o advento do futuro boogie-woogie. Esse encontro foi fecundo. Com os grandes movimentos de migração da mãode-obra negra para as cidades industriais do Norte, tradições musicais se deslocaram, enriquecendo-se de elementos novos nos portos fluviais e nos grandes centros ferroviários por onde passaram. Não resta dúvida de que todos esses pianistas, rivalizando uns com os outros no tumulto barulhento das espeluncas e na euforia do álcool, deviam desviar-se das partituras, tocar de memória, improvisar — fatores propícios a um suingue mais desenvolto. Isso lhes permitia tocar com maior espontaneidade, flexibilidade e arrebatamento a música que, por assim dizer, ia brotando dos seus dedos. É também muito provável que tais ambientes os tenham impelido a tocar em andamento cada vez mais rápido. É esse ragtime, oragpopular, que, tendo chegado a Nova York por via das migrações, se tornou verdadeiramente jazz (diversamente da difusão dos piano rolls, que engendrou uma forma decadente, o novelty ragtime, espécie de "ragtime de variedades", devidamente explorado pela indústria da música, com grande consumo por parte do público branco; esse novelty rag, que em pouco tempo passou a ser tocado a toda velocidade em pianos deliberadamente desafinados e sem feltros, acha-se distanciado tanto do ragtime clássico quanto do piano tocado em estilo stride). Em breve, mais ou menos por toda parte, o ragtime para piano passou a ser escrito em ritmo 4/4, perdendo assim a rigidez e o caráter pesado que lhe vinham 1
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Honky-tonk. Estilo primitivo de piano, no qual se reconhece a influência da técnica de guitarra dos cantores de blues arcaicos. É o ancestral do boogie-woogie. Sinônimo: barrel-house. Boogie-woogie. Estilo de bluespara piano, em ritmo 4/4, no qual a mão esquerda toca um ostinato baseado numa seqüência "colcheia pontuada — semicolcheia".
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da marcha militar. Mas o novo estilo, dito stride, se impôs sobretudo em Nova York. O termo vem do verbo to stride, caminhar a passos largos, e descreve o movimento da mão esquerda do pianista, que marca o baixo nos primeiro e terceiro tempos do compasso, baixo a que respondem, uma oitava acima, acordes no segundo e quarto tempos. É aí que acontece a ruptura com os acentos iguais de quatro colcheias por compassos de 2/4 do ragtime tradicional. Esse novo estilo se desenvolveu nas jam sessions que se realizavam a altas horas nos cabarés do Harlem, onde os pianistas faziam fila diante do piano, aguardando sua vez de brilhar, mas também nas rent parties [festas para o aluguel], recepções informais dadas no Harlem por particulares com o objetivo de levantar um pouco de dinheiro para pagar o aluguel de suas moradias. Os maiores pianistas dessa escola de Nova York foram James P. Johnson (1894-1955), Willie "The Lion" Smith (1897-1973) e Thomas "Fats" Waller (1904-1943), mas houve muitos outros que, por terem gravado menos, hoje não são tão conhecidos. Paralelamente, esse ragtime popular, mais "negro" — no sentido de que se adaptava menos ao gosto dos brancos —, impunha-se nas orquestras. Um dos mais antigos pioneiros de Nova Orleans, Buddy Bolden, ignorava a palavra "jazz" e, como todos os seus contemporâneos, tocava ragtime — mas em orquestra. Nos meios urbanos efervescentes de Nova York (onde, para fazer-se respeitar, era preciso não dar a impressão de ainda ter nas solas uns restos da lama do Mississipi), os contornos do ragtime clássico continuaram respeitados por muito tempo, mesmo nas orquestras de puro jazz. Ali era preciso ser slick ("estar por dentro", "estar na onda", "despachado" à maneira urbana). Apesar disso, a grande orquestra muito slick de Fletcher Henderson gravou em 1927 Sensation Stump, peça de um jazz suntuoso, em que fulguravam solos de grande inventividade por músicos da estatura de Coleman Hawkins, Tommy Ladnier, Jimmy Harrison e Buster Bailey. Ora, essa peça segue o perfil clássico de ragtime: AA (em dó), BB (em fá), CC (em si bemol), Interlúdio trazendo de volta a tonalidade de dó, A (em dó), BB (em fá), cada letra representando dezesseis compassos. No mesmo dia, porém, foi gravada Fidgety Feet, concebida segundo o figurino do ragtime. Nela, temos o exemplo de uma transformação que já se produzira anos antes, notadamente com "King" Oliver {Snake Rag, 1923): o aparecimento — depois de dois strains de dezesseis compassos com repetição — de um motivo em 32 compassos estruturados como um todo. Ou seja, não há resolução no décimo quinto e no décimo sexto compassos, e a progressão harmônica evolui de maneira autônoma do vigésimo compasso até o fim. 1
Jam session. Reunião de músicos vindos de diferentes orquestras e que tocam juntos pelo prazer de tocar, depois das horas de trabalho. A palavra jam não deve ser aqui entendida propriamente no sentido de "geléia" (o que se explicaria pela mistura dos músicos), mas no de "engarrafamento", como no caso do tráfego, com os músicos embolados sobre o pódio ou fazendo fila para ter sua vez de tocar.
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Não devemos subestimar a importância dessa estrutura em ABÁC. É ela que vai liberar o sofista improvisador, oferecendo-lhe a possibilidade de expressar-se mais longamente e de "pensar" para além do quadro limitado de dezesseis compassos repetidos. Liberdade e desafio novos, que Jimmy Harrison dominou magistralmente no disco citado, num dos mais belos solos de trombone já gravados ao longo da história do jazz. Note-se que essa estrutura será por muito tempo conhecida como "stomp". Ora, a palavra stomp não existe nem no inglês falado na Inglaterra nem no dos Estados Unidos. Pode tratar-se de uma deformação, pelo linguajar dos negros, do verbo to stamp, bater o pé, indicação que já vimos figurar em certos ragtimes clássicos. O termo desapareceu na década de 1930, mas a estrutura continuou e serviu de modelo a uma porção de canções fabricadas em série pela indústria de variedades dos brancos americanos, canções que serão retomadas e gravadas pelos grandes jazzistas negros, que as transcenderam, cada um à sua maneira.
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"O jazz nasceu em Nova Orleans." Esta afirmação tradicional, repetida pelo pianista Jelly Roll Morton em 1938, teve valor de axioma durante muito tempo. De uns tempos para cá, temos boas razões para pensar que o jazz nasceu ao mesmo tempo em diversos lugares espalhados pelos Estados Unidos -— sobretudo se não estabelecermos distinção radical, de essência, entre o ragtime orquestral e o jazz, distinção que não há como sustentar. Tornou-se de bom tom minimizar a importância de Nova Orleans, lançando suspeitas de romantismo contra aqueles que não procedem assim. Não resta dúvida de que o jazz apareceu em diversos lugares ao mesmo tempo, notadamente em Kansas City (Missouri) e em Nova York, onde a influência do ragtime era muito forte no início do século. O jazz, como se sabe, não é uma música de sacristía. Tal como Nova Orleans, "the most wicked city" [a mais pecaminosa das cidades], Kansas City tinha tudo para permitir que o jazz prosperasse no meio do vício, da ilegalidade e da corrupção. No começo do século, esse porto fluvial, que vivera momentos movimentados durante a Guerra de Secessão, ainda cultivava e honrava a memória de seus heróis de faroeste, como Wild Bill Hickock e Wyatt Earp, além de Jesse James e outros salteadores de estrada. Em 1898, essa cidade, que seria dominada por dois vereadores corruptos, os irmãos Jim e Tom Pendergast, mantinha 600 saloons (com suas atividades anexas, o jogo e a prostituição) e 147 bordéis que empregavam 544 mulheres — números que deixam a perder de vista os de Storyville, o bairro alegre de Nova Orleans. A influência do blues texano deve ter-se exercido aí desde cedo, já que a cidade era local de passagem obrigatória do
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comércio da carne entre os campos de criação de gado no Texas e os matadouros de Chicago. No entanto, Leroy Ostranski, que vasculhou os arquivos relacionados com esse período, observa que "dado o relativo isolamento cultural de Kansas City na década de 1890, a música que aí se fazia não devia ter nada de extraordinário". A gente da cidade gostava especialmente das marchas de Sousa. Nova Orleans, o grande centro da Luisiana, nunca soube o que fosse "isolamento cultural". Se o jazz não nasceu apenas ali, nasceu ali um pouco mais do que em qualquer outro lugar. Jamais saberemos com exatidão o que se passou nessa cidade no começo do século, mas com certeza algo diferente aconteceu ali. Nova Orleans tinha tudo para ser o berço de uma nova música. Era uma cidade festiva, onde a música tinha muita importância e grande consumo. Esse gosto pela música, pelos desfiles e pelas festas não era recente, como em Kansas City, nem tampouco estava associado, como lá, ao cheiro do gado. A cidade promovia bailes de máscaras desde 1743. Desde essa época a efervescência musical não cessou mais, não obstante ter Nova Orleans passado por várias nacionalidades sucessivas (primeiro francesa, depois espanhola, depois francesa de novo, entre 1800 e 1803, quando Bonaparte vendeu a Luisiana ao presidente americano Thomas Jefferson). Além disso, apesar dos diferentes Codes Noirs e Black Codes promulgados para restringir a hberdade dos negros e proibir notadamente os casamentos mistos, a cidade era um tal cadinho cultural, um tal centro de imigração, que nela as distinções eram mais móveis que em outras partes. Oficialmente detestada pelos anglosaxões, a miscigenação fora correntemente praticada por franceses e espanhóis. Disso resultara uma classe de crioulos de cor (descendentes mestiços de europeus nas colônias de além-mar) que tinha privilégios, dava aos filhos boa educação musical e servia como "classe-tampão" entre os brancos e os negros verdadeiramente "negros". A vitória do Norte, em 1865, pôs fim a essa coabitação. Logo o Código Legislativo n° 111 da Luisiana estipulou que quem tivesse origem negra, por mais remota que fosse, seria considerado negro. Foi uma dura provação para os crioulos de cor, na verdade racistas. Eles eram artesãos e funcionários, mas exerciam também profissões liberais, e muitas centenas possuíam plantações em que usavam mão-de-obra de escravos negros. Na crise econômica posterior à Guerra de Secessão, tiveram que ceder seu ganha-pão aos brancos empobrecidos, passando a misturar-se mais na população negra da cidade alta. Tendo recebido boa formação musical e instrumental, muitos fizeram-se músicos, para desespero de seus parentes "respeitáveis". Assim, sem choques e sem hostilidades, encontraram-se a graciosa fluidez do estilo crioulo e o áspero responsório negro. Então aconteceu um fenômeno de que todas as testemunhas da época, notadamente os músicos em suas lembranças (Pops Foster, Jelly Roll Morton, Sidney Bechet e outros), nos deixam adivinhar as hesitações e as formas múltiplas. A supremacia de Nova Orleans é atestada também pelos testemunhos gravados. Uma orquestra de Nova Orleans, a Original Dixieland Jazz Band, um quinteto de
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brancos, se apresentou em Chicago em 1916 e triunfou no Reisenweber's Cafe de Nova York em 1917, impondo pela primeira vez a palavra jass e gravando o que é considerado o primeiro disco de jazz, em 26 de fevereiro de 1917, para a marca Victor. Como observa James Lincoln Collier, pode-se dizer em termos mais gerais: 1
Sem nenhuma exceção, todos os discos de jazz gravados antes de 1924 e talvez mesmo antes de 1925, por m ú s i c o s de cor ou por m ú s i c o s brancos, foram realizados por gente de Nova Orleans ou da região circunvizinha, ou então por m ú s i c o s que imitavam em todos os aspectos o estüo de Nova Orleans.
Por último, devemos assinalar que a história de Nova Orleans — rica em documentos relativos à música, o que não acontece com a de Kansas City — nos esclarece sobre outra questão misteriosa: como se passa da marcha ao suingue. Vamos tentar responder em poucas palavras, analisando dois ângulos da questão. Em primeiro lugar, os conjuntos iniciais de jazz não punham suingue (no sentido que hoje se dá à palavra) em suas interpretações. O suingue da seção rítmica foise definindo no curso das décadas de 1920 e 1930, quando uma pulsação maleável tomou o lugar de uma batida sincopada. Segundo: diversamente das pesadas marchas napoleónicas que acentuam fortemente o primeiro tempo, a marcha militar americana é decomposta, isto é, tem um sentimento de 4/4, com o bombo ("grande caixa") marcando os tempos fortes e os tambores sublinhando os contratempos. (É o que explica, aliás, que as "balizas" americanas, cujos joelhos parecem colhidos no ar pelos contratempos, desfilem como um pônei ensinado que alterna enfaticamente a elevação dos dianteiros, ao passo que as "balizas" francesas, com as solas das botas atraídas para o chão nos tempos fortes, parecem cavalos de puxar carroça.) Ora, os primeiros pioneiros do jazz tocaram e desfilaram, quase todos, em brass-bands [bandas de metais]. Armstrong, que nos deu seu testemunho da música tocada nos enterros, destacou a facilidade com que se passava, na mesma fanfarra, de um liino de caráter recolhido a uma peça alegre, fortemente ritmada e sincopada. Uma rápida olhada nas grandes brass-bands de Nova Orleans no começo do século basta para nos convencer de que ali se encontravam músicos que pertencem incontestavelmente à história do jazz. No primeiro decênio de nosso século, por exemplo, Freddie Keppard (trompetista de que não possuímos nenhuma gravação dessa época, mas que na década de 1920 tocou com a orquestra
Numerosas etimologias foram propostas para a palavra jazz. Procuraram-se conotações sexuais (spasm), anedóticas (um músico de outrora ter-se-ia chamado Jasbo ou Jazzbo), africanas (palavras próximas constariam de certas línguas africanas), crioulas (o francês "jaser") e muitas outras. Em 1975, o critico francês Hugues Panassié propôs uma etimologia defendida pelo vibrafonista Lionel Hampton, que lhe fora transmitida por um velho negro de Nova Orleans. A palavra viria de jackass (asno, burrico, mas "burro" também no sentido de idiota, imbecil); daí: "música de imbecis". Na década de 1960, ouvimos essa explicação pela boca do grande clarinetista Albert Nicholas, nascido em 1900 em Nova Orleans. Ela é duplamente sedutora: fonéticamente, porque a palavra jackass, no linguajar sulista, pronuncia-se como uma só sílaba, quase sem emitir o "ck"; gráficamente, porque explica o fato de a palavra ter aparecido impressa, nas primeiras vezes (1917), como jass e não jazz.
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de jazz de Erskine Tate em Chicago, onde Armstrong também atuou) era o regente da Olympia Band, tendo trabalhado ainda na Original Creole Band de Bill Johnson; Sidney Bechet tocava na Eagle Band; de 1905 a 1912, Bunk Johnson tocou na Superior Band, enquantoj para a Magnolia Band, trabalhava Joe Oliver, mestre de Louis Armstrong e na época ainda não reconhecido como "King" Oliver. Que aconteceu entre a época em que Joe Oliver tocava marchas e quaclrilhas na Magnolia Band e o momento em que, em Chicago, ele gravou Dippermouth Blues, esplêndida peça de jazz . Nessa época, sua orquestra do Royal Garden Cafe, formada exclusivamente por músicos do Sul, recém-incorporara um jovem trompetista desconhecido, de 23 anos, que viera de Nova Orleans e tinha postura de homem do campo, chamado Louis Armstrong. Evitando minúcias técnicas, digamos que aconteceu isto: a mistura estava no ponto, e, como na boa cozinha, o toque de mestre do chef— no caso, dos chefs, pois foram muitos — limitou-se a dar um estilo pessoal a esse molho que saíra a gosto, com todos os ingredientes (cakewalk, ragtime, blues, marchas militares e canções de plantação), tendo abdicado de uma parte de sua personalidade para fúndir-se num sabor global. O que vem depois é história conhecida. A nova música vinda do Sul se impôs em Chicago, mas também em Nova York, onde já encontrou uma sólida infraestrutura. Milagre da história: a invenção do disco fonográfico atingiu um estágio de apuro técnico que lhe permitia intervir para que essa música, em grande parte improvisada, agora pudesse ser distribuída. Assim, fabricam-se e difúndem-se arquivos que, de um lado, oferecem a quem quer tocar jazz um estoque de informações facilmente disponível e, de outro, servem para criar e alimentar uma memória coletiva. Desde 1924, o pianista Clarence Williams, também da Luisiana, faz gravações com Armstrong e Sidney Bechet. No ano seguinte, Armstrong grava com a orquestra nova-iorquina de Fletcher Henderson (nascido na Geórgia, no Sul). Louis volta a Chicago para alçar vôo com suas próprias asas e gravar sob seu nome, com seu conjunto dos Hot Five, de 1925 a 1928, as primeiras obras-primas imortais do jazz (Cornet Shop Suey, 1925; Tight Like This, 1928). Virando as costas corajosamente para o estilo convencional de Paul Whiteman, então na moda, Fletcher Henderson inventou, tateando, uma linguagem para grande orquestra, que incorporou o estilo de improvisação coletiva de Nova Orleans sem negligenciar um equilíbrio ainda primitivo entre as massas sonoras das diferentes seções da orquestra (metais e" palhetas). Enquanto isso, um jovem de Washington, Edward Kenney Ellington, abordou pelo outro extremo o problema da escrita e do arranjo orquestral: começou com cinco, seis, sete e depois oito músicos, sempre juntando um novo elemento à medida que a qualidade do som ficava como desejava. Inúmeras orquestras se formaram em todo o país, buscando soluções que se inspiravam em Henderson ou em Ellington. Nessa época, não obstante as lamentáveis imitações feitas pelos brancos, o jazz era a música dos negros. Mas estamos nos Estados Unidos, onde a música e o 7
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show-business são antes de tudo mercadorias que devem dar lucro àqueles que, conhecendo como funciona o sistema, o exploram. Em 1919, o Congresso votou a Lei Seca, só abolida em 1933. Como a proibição estendia-se também a todas as bebidas alcoólicas leves e mundanas (cerveja, sherry etc.), o grande público atirouse aos álcoois de contrabando, fortes e adulterados. Nas cidades onde políticos e policiais eram quase todos corruptos, a enorme demanda favoreceu o reino dos gángsteres e de suas quadrilhas, ora rivais, ora associadas. Costuma-se esquecer a importância dos gángsteres no desenvolvimento do jazz. Ronald Morris, numa obra escrita em 1980, Jazz and the Underworld [O jazz e o submundo], chamou a atenção para isso: Quando pensamos em Duke Ellington, Charlie Parker, Louis Armstrong, Bix Beiderbecke e King Oliver, pensamos numa certa genialidade musical, numa criatividade sem limites. (...) E assim chegamos à conclusão de que, num mundo que aprecia os talentos musicais fora de série, esses homens, e outros como eles, alcançaram a celebridade tãosomente graças a seu mérito e à sua contribuição inovadora. Essa hipótese, embora natural, não coincide com a realidade. O fato é que, no caso deles, o êxito individual pouco teve a ver com o talento inato, com a habilidade técnica — e nem sequer com a vontade de fazer sucesso. A chave está na circunstância de que um grande valor foi atribuído à música que eles tocavam por certos admiradores crapulosos, dispostos a pagar fortunas para ouvi-la e que determinaram economicamente sua esfera de influência.
Não é muito fisonjeiro para os gênios de Armstrong e Ellington, mas é a verdade. Os gángsteres, sobretudo as gangues italianas e judias, adoravam a nova música, não eram racistas e sabiam ser pródigas. Al Capone, quando chegava ao Terrace Cafe de Chicago, enfiava uma nota de cem dólares no bolso do smoking de Earl Hines, pianista e regente de orquestra. Além disso, graças às vantagens financeiras, sociais e jurídicas que concediam aos músicos por eles empregados nos cabarés sob seu controle, esses gángsteres garantiram uma segurança de emprego que, por sua vez, tornou possível a formação de orquestras bem entrosadas, com seu estilo próprio. Morris não hesita em compará-los aos grandes mecenas do Renascimento. O jazz era negro, dizíamos. Não resta dúvida de que havia um bom número de músicos brancos célebres, principalmente em Nova York. Mas não enganavam ninguém, fosse pela imitação servil que faziam dos negros, fosse pela ânsia — dentro duma tradição que remontava a Stephen Foster — de "moldar o jazz ao gosto das pessoas educadas". No primeiro caso havia um deslocamento de valores: os efeitos de surdina, o trabalho do timbre e a rouquidão na voz, por exemplo •— sentidos pelos negros, segundo a tradição africana, como elementos expressivos de grande dramaticidade — na interpretação dos brancos tornavam-se efeitos que pretendiam ser cômicos, e que eram percebidos como tais pelo público branco (orquestra Ted Lewis, por exemplo). No segundo caso, tinha-se um jazz sem dúvida bastante elaborado, mas anêmico (Red Nichols, Miff Mole).
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Em Chicago, porém, aconteceu um milagre. Brancos ainda bem garotos, em sua maioria colegiais, que passavam o dia todo escutando não apenas os discos dos New Orleans Rhythm Kings, orquestra branca do Sul, mas também — e com que paixão, a crer em certos testemunhos! — os de Armstrong e de Bessie Smith, começaram a tocar. Quase todos tinham em comum a chcunstância de serem filhos de imigrantes europeus, ou seja, haviam nascido nos Estados Unidos de pais vindos da Irlanda, da Alemanha e das comunidades judaicas da Europa Central. Culturalmente disponíveis, seduzidos, colhidos pelo cacfinho então irresistivelmente dinâmico da civilização norte-americana, eles investiram no jazz todo o gosto tradicional que seus pais tinham pela música. Assim se formou um movimento — de fronteiras dificilmente definíveis — que ficou conhecido como o "estilo Chicago", talvez a única oportunidade na história do jazz em que os brancos contribuíram com algo verdadeiramente construtivo: nesse momento, as sensibilidades alemãs, judias e irlandesas foram lançadas nos moldes da violência e da agressividade brancas norte-americanas, tendo como modelo a música flexível e descontraída dos negros do Sul. O resultado foi explosivo. Certos discos dão testemunho do encontro entre a implacável violência desses ianques de extração recente e a flexível agressividade dos músicos negros do Sul; é o caso daquelas gravações em que um clarinetista branco, Pee Wee Russell, enfrenta com desenvoltura um trompetista da Luisiana, Henry "Red" Allen (que, embora nascido já com o século começado, em 1908, trabalhou numa brass band, a Excelsior Band, e depois nos river boats que subiam o Mississipi, antes de se firmar como rival de Armstrong). A depressão de 1929 coincidiu com uma evolução do jazz que certamente teria sido produzida mesmo na ausência da crise econômica. O jazz tornou-se uma música muito popular. Divulgado pelo disco e pelo rádio nascentes, passou a interessar a um público cada vez mais numeroso, que gostava de poder dançar a música que o fascinava, sem, para tanto, ter que se meter em cabarés mantidos por gángsteres, dos quais às vezes não se conseguia sair vivo. Os homens de negócios —os gángsteres antes de todos — perceberam a oportunidade que se oferecia. Chegara o momento de abrir imensos dancings. A aparelhagem de som não era, entretanto, o que é hoje: era impossível fazer dançar mil ou duas mil pessoas com a música de pequenos conjuntos. Para produzir volume sonoro suficiente, as orquestras cresceram, cristafizando-se a forma que, com uma ou outra diferença, continua a definir até hoje uma big band: três, quatro ou cinco trompetes; dois, três ou quatro trombones; quatro ou cinco saxofones (geralmente, dois altos, dois tenores e um barítono), mais uma seção rítmica completa, composta de um piano (em geral, o regente da orquestra), uma guitarra (que substituiu o banjo), um contrabaixo de cordas (que substituiu a tuba ou o hélicon) e uma bateria. Essa modificação morfológica da orquestra acarretou uma mudança estilística. Recolocou-se o problema do arranjo: como obter volume sem suprimir a necessária tensão que resultava das seqüências de timbres diferentes e de solos improvisa-
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dos? Todos os regentes de orquestra — com exceção de Duke Ellington, que continuou a triturar sua sombria e dramática palheta — escolheram a solução mais evidente, mais fácil e mais eficaz: a oposição sistemática dos naipes — metais contra palhetas, trompetes contra trombones, trompetes contra palhetas, trombones contra palhetas. Assim nasceu o que os norte-americanos chamaram de The Swing Era, a era do swing. Aqui é preciso abrir um parênteses para explicar os dois sentidos da palavra swing. Para os americanos, como acabamos de ver, a palavra designa muitas vezes um estilo de jazz para grande orquestra, por oposição à palavra "jazz" reservada aos pequenos conjuntos e quase um sinônimo, nesse contexto, de estilo Nova Orleans ou Dixieland. Mas o termo swing, mesmo para os americanos, designa também um fenômeno rítmico próprio do jazz, que é muito difícil de definir. Podese dizer, grosso modo, que o suingue é um "balanço", como a palavra em inglês o indica: assiste-se a uma forte tensão rítmica sob a vigilância constante de um elemento de calma, do que resulta a inquietante impressão de que o andamento vai acelerar-se, par a par com a sensação reconfortante de que ele está sendo respeitado. Na orquestra, a seção rítmica é a central energética encarregada de fornecer essa pulsação (e certas seções rítmicas, como em Count Basie e Jimmie Lunceford principalmente, ergueram-se a um tal nível de potência, de controle e de perfeição, que são consideradas arquétipos), mas não é a única a fornecer o suingue. Os naipes e os sofistas também o produzem com um fraseado que, mesmo quando contesta a disposição perfeita dos valores rítmicos, deve subentendê-la. Com os movimentos sucessivos de migração de mão-de-obra proveniente do Sul, Nova Orleans perdeu sua importância como foco de criação do jazz. Daí por diante, Chicago e Nova York passaram a disputar entre si a supremacia, que coube finalmente a esta última: Nova York, a Big Apple, cidade que faz e desfaz reputações. Nesse meio tempo, porém, Kansas City tornou-se um centro de jazz muito ativo, com um estilo que lhe é próprio. Lá, sob o efeito de uma longa tradição cujas origens vimos mais acima, o blues implantou-se sólidamente no jazz instrumental, com características bem negras, em especial a ênfase posta nos riffs, esses curtos motivos melódico-rítmicos repetitivos que descendem em linha reta do canto responsorial africano transformado pelo spiritual e pelo blues. Os músicos locais estavam em contato com as grandes vedetes que vinham do Norte por ocasião de turnês e soirées dançantes. Depois do trabalho, músicos de um lado e do outro travavam entre si heróicas batalhas instrumentais que se prolongavam até horas avançadas. Entre as mais famosas orquestras de Kansas City, a de Count Basie se impôs rapidamente em Nova York, onde introduziu sangue novo no feitio de interpretação associado à grande orquestra, que, apesar de Ellington e Lunceford, estava tendendo a estereotipar-se. 1
Ver nota à página 1097 (N. T.)
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Uma ruptura ocorreu no início da década de 1940, por iniciativa de um grupo de músicos de grande valor: o guitarrista Charlie Christian, o pianista Thelonious Monk, o baterista Kenny Clarke e, sobretudo, o trompetista Dizzy Gillespie e o saxofonista-alto Charrie Parker (que fez o seu aprendizado em Kansas City). Cansados de estar sempre tocando mais ou menos a mesma coisa, esses inovadores contestaram o repertório habitual e ao mesmo tempo impuseram uma concepção rítmica mais complexa e um sistema harmônico muito elaborado. É o que chamamos a revolução do Be Bop, ou Bop — à qual o jazz contemporâneo, quando não renega a harmonia tonai, deve tudo. Depois da morte prematura de Charlie Parker, aos 35 anos, o próprio estilo bop estereotipou-se. Já se esboçara uma reação, o movimento "coof (na gíria dos músicos da época, cool, fresco, significa "descontraído") que, embora contasse com algumas figuras proeminentes negras, propunha uma estética discreta e contida, com a qual atraiu, em maioria, jazzmen brancos — um deles o grande saxofonista-tenor Stan Getz. Uma contra-reação logo se articulou, um movimento de retorno às fontes negras, o estilo funky, ilustrado notadamente pelo pianista Horace Silver e pelo baterista Art Blakey, paralelamente com um movimento que ficou conhecido como hard-bop, o bop duro, que se opunha ao cool e à sua extensão, principalmente branca, chamada de estilo "westcoasf, porque se manifestou sobretudo na Califórnia. Esse limitado resumo de quarenta anos de um jazz que, sem distinção de escolas, deve ser globalmente designado como o jazz clássico requer uma observação: com a perspectiva que nos dá o tempo, nada permite fazer qualquer revisão da ordem hierárquica em que foram reconhecidos os grandes criadores dessa música. Sem falar dos três gênios incontestes que se situam num plano à parte (Louis Armstrong, Duke Ellington e Charlie Parker), podemos afirmar que, em cada período, os contemporâneos não se enganaram. Uma lista exaustiva seria longa demais. Para não sobrecarregar estas páginas, seja dito, em resumo, que os maiores trompetistas históricos continuam sendo Bubber Miley, Cootie Williams, Henry Allen, Roy Eldridge, Dizzy Gillespie, Miles Davis, Cfifford Brown e Fats Navarro; os maiores trombonistas, Jimmy Harrison, Dickie Wells e J. J. Johnson; os maiores clarinetistas, Sidney Bechet, Johnny Dodds, Jimmie Noone e Barney Bigard; os maiores saxofonistas-altos, Johnny Hodges e Benny Carter; os maiores saxofonistas-tenores, Coleman Hawkins, Lester Young, Ben Webster, Sonny Rollins, o branco Stan Getz e, pairando sobre o jazz clássico e o free jazz, o imenso John Coltrane; os maiores pianistas, James P. Johnson, Earl Hines, Fats Waller, Art Tatum, Teddy Wilson, Bud Powell e Thelonious Monk; os maiores guitarristas, Charlie Christian e o francês cigano Django Reinhardt; os maiores contrabaixistas, Pops Foster, Wellman Braud, Walter Page, Jimmy Blanton, Ray Brown e o branco Scott la Faro; os maiores bateristas, Zutty Singleton, Chick Webb, James Crawford, Jo Jones, Cozy Cole, Sid Catlett, Kenny Clarke, Max Roach e Elvin Jones; as maiores cantoras, Bessie Smith, Bilfie Holiday, Ella Fitzgerald e Sarah Vaughan.
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Vê-se que nesta lista limitada, certamente um pouco arbitrária e forçosamente injusta, todos os músicos, com exceção de três, são negros. Como então, diante de tal evidência, continuar pretendendo, à maneira de uns quantos, que o jazz seja a música de todo mundo? Toda a história do jazz, pelo contrário, demonstra não somente que os grandes foram, em maioria esmagadora, negros americanos, mas também — o que não é senão outra faceta dessa realidade -— que, apesar de pressões econômicas e comerciais, os negros sempre buscaram criar uma música de contracultura, uma linguagem que lhes era tão própria quanto a linguagem que falavam, e que foi sempre recuperada, não raro com imenso talento, pelos brancos. Com o bop, tem-se a impressão de que os negros, que começavam a sentir-se frustrados e espoliados demais, disseram para si próprios: "Desta vez, o Branco não vai nos seguir." No que se enganaram: mais uma vez, os brancos — que não têm medo da complicação harmônica — seguiram a criação negra e tiraram proveito dela. Mas os negros não se confessaram vencidos. Outras rupturas vêm por aí. Apesar das aparências, apesar de algumas tentativas de ampliar as formas, apesar do alto nível de complexidade harmônica a que chegou, o jazz marca passo, repisando as mesmas aquisições sob aspectos diferentes. Tornou-se, entretanto, sofisticado demais, a ponto de ter perdido o apoio do grande público das classes populares negras, que se voltaram para o rhythm and blues, mais próximo das fontes, depois para a soul music (literalmente: "música da alma" [subentendido: "negra"]), música em que essas classes se reencontram para, de algum modo, celebrar um humanismo negro. Na passagem, uma arte se perdeu: a da dança de jazz dos negros, que, sem desfazer os vínculos com as fontes mais antigas, havia atingido, nas décadas de 1930 e 1940, uma absoluta perfeição rítmica e gestual. (Quando se viu dançar um homem como, por exemplo, Bill "Bojangles" Robinson, a impressão que sempre se tem, ao olhar para Fred Astaire ou Gene Kelly, é um pouco a de que eles são ligeiramente artríticos ou de que estão preocupados com não perder um trem.) Uma vez que adquiriu direito de cidadania e respeitabilidade, o jazz não mais propõe à juventude legitimamente contestatória um modelo de contracultura. Criou-se um vazio, habilmente manipulado pela mídia, e nele se instalou um novo modelo de contracultura, o rock and roll sob todas as suas formas, com seus heróis marginais. Paralelamente à necessidade de renovação das formas, que se vinha fazendo sentir desde alguns anos, uma grande onda de reivindicação violenta, em maior ou menor grau, sacudiu os círculos negros decepcionados com o fracasso da política oficial de integração racial e econômica. Essa dupla efervescência, político-social e artística, suscitou um foguetório de inovações revolucionárias que questionaram o jazz clássico. Foi a revolução do que, por comodidade, foi chamado Free Jazz, o jazz livre, mas também a New Thing, a "coisa nova", que muitos músicos negros americanos, ciosos de mostrar que não romperam com suas raízes, preferirão chamar de The New Black Music ou The Great Black Music.
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Nem o trompetista Miles Davis, nem o contrabaixista e compositor Charles Mingus, nem o saxofonista-alto e clarinetista-baixo Eric Dolphy fazem parte do movimento "free jazz", do qual mantiveram distância. Mingus chegou a fazer julgamentos severos sobre ele. O grande sax-tenor John Coltrane, que, de certo modo, acabou por "pegar o trem andando", não pode ser considerado um participante do movimento. Entretanto, cada um deles, à sua maneira, o preparou. Em 1958, Miles Davis, saído do bop e ex-companheiro de Charlie Parker, gravou com um sexteto (em que se encontrava Coltrane) uma peça intitulada Milestones. Ela desconcertou a maioria dos críticos da época, que lhe censuraram por uma grande pobreza harmônica. O esquema de composição já era insólito: AABBA, cada letra representando oito compassos, ou seja, quarenta compassos ao todo, em lugar do esquema clássico em AABA de 32 compassos. Mas — o que é mais curioso — a improvisação se desenvolvia apenas sobre dois extended chords [acordes prolongados], como foi chamado mais tarde esse procedimento. As passagens em A repousavam num acorde de sétima em sol menor (sol, lá, si bemol, dó, ré, mi, fá) e aquelas em B, num acorde de sétima em lá menor (lá, si, dó, ré, mi, fá, sol). Em pouco tempo percebeu-se que esses extended chords correspondiam respectivamente ao modo dórico em sol e ao modo eólio em lá. Miles Davis acabava de abrir as portas à improvisação modal. Essa inovação deveria ter muitas conseqüências para o desenvolvimento futuro do free jazz. Ekkehard Jost observou que, com um sistema em que o movimento vertical dos acordes era reduzido ao mínimo, descobria-se uma liberdade horizontal decorrente do fato de que "a abo-
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lição da harmonia funcional tornava inútil a divisão esquemática em estruturas de oito, doze ou dezesseis compassos". Em Milestones, Davis ainda conservava grupos de oito compassos, mas ele sentiu que isso não seria mais necessário. Certa vez, declarou: Quando se toca assim, pode-se continuar indefinidamente. N ã o é preciso preocupar-se com encadeamentos h a r m ô n i c o s e a gente pode se concentrar na linha [horizontal]... Quando a gente se baseia nos acordes, sabe-se que ao fim dos 32 compassos n ã o h á mais acordes e que é preciso repetir o que se acabou de fazer, com variantes.
Davis descobriu que o novo sistema lançava um desafio à invenção melódica. Essa intuição foi confirmada um ano mais tarde com So What e sobretudo com Flamenco Sketches, onde o sistema de oito compassos repetitivos foi completamente abandonado, já que os chorus improvisados são sucessivamente de 24 compassos (Davis), 24 compassos (Coltrane), 33 compassos (Cannonball Adderley), 28 compassos (Bill Evans) e 22 compassos (Davis). O sax-tenor John Coltrane, nascido em 1926, domina com sua esmagadora estatura toda essa época, até a morte prematura ocorrida em 1967. Proveniente do rhythm and blues e influenciado por Lester Young e Coleman Hawkins, trabalhou durante muito tempo com Miles Davis e Thelonious Monk. Para muitos, ele é — com justiça, parece-nos — considerado o quarto gigante que o jazz aguardava depois de Armstrong, Ellington e Parker. Levou às ultimas conseqüências a exploração do sistema modal, em improvisos de longa duração que durante muito tempo passaram por desconcertantes, não pelo fato propriamente de serem longos, mas porque a improvisação modal, situando-se no livre curso do tempo e não no tempo dividido em compassos, não dá ao ouvinte — numa primeira audição, pelo menos — nenhum ponto de apoio ou de articulação que permita perceber uma direção, uma orientação, ou, como diz Boulez, uma "trajetória". Coltrane assinou irrefutáveis obras-primas, notadamente índia (1961), Africa (1962) e A Love Supreme (1964). Charles Mingus, por sua vez, pode ser considerado, assim como Eric Dolphy, um importante demolidor do jazz clássico. Alimentou-se nas mais diversas fontes: trabalhou com IGd Ory, trombonista de Nova Orleans, com Armstrong, com o vibrafonista Red Norvo e com o pianista Art Tatum, assim como com os hoppers Charhe Parker e Dizzy Gillespie, mas conservou de sua infância inesquecíveis lembranças dos cantos responsoriais na igreja de sua paróquia, em Watts, subúrbiogueto de Los Angeles. Com suas diferentes orquestras, criou um estilo heteróclito em que se reuniam todas essas influências e mais a de Duke Ellington, que ele 1
Rhythm and blues. Estilo de jazz popular à base de blues, com ritmo muito fortemente marcado, bem aceito pelo grande público negro na década de 1950.0 rock and roll pode ser em grande parte considerado — no início, pelo menos — como sua imitação levada a efeito pelos jovens brancos americanos.
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venerava. Excelente contrabaixista, dotado de personalidade autoritária e trabalhada por muitas contradições, impôs inovações no tratamento do andamento e da forma musicais, assim como uma nova maneira de abordar a improvisação coletiva (há muito esquecida), que favorece o aparecimento de estruturas polirrítmicas animadas de uma autonomia em relação ao tema e que utiliza por vezes todos os elementos da orquestra, e não apenas os de sopro. Por esta última característica, ele já anunciava a distribuição de responsabilidades iguais para os membros da orquestra, que se observa nos conjuntos defreejazz. Curiosamente, Mingus permaneceu muito fiel às estruturas clássicas, notadamente ao blues de doze compassos. Mas introduziu nessas estruturas desordens controladas, bem como "acordes prolongados" que constituem algo no gênero deformatasno quadro da peça executada, e que, sem propriamente suprimir a coerção exercida pela quadratura, contestam-na, afrouxando, por assim dizer, o apertão do "torniquete". Em suma, ofreejazz estava no ar. O primeiro a associar oficialmente seu nome a esse termo foi o sax-alto Omette Coleman. Nascido em 1930 no Texas, ele pegou a prática do instrumento tocando, tal como Coltrane, em conjuntos de rhythm and blues e diversas outras orquestras, onde parece ter sempre desagradado por sua sonoridade tão particular. O músicos cansaram de adverti-lo que não conhecia nem respeitava as progressões harmônicas e que tocava de forma desafinada. Em 1958, a sorte finalmente lhe sorriu: gravou com seu nome dois álbuns que fizeram a crítica virar de cabeça para baixo — Something Else e Tomorrow is the Question. A intenção está nitidamente declarada: por trás dos jogos com a montagem dos temas e das improvisações, bem como com a montagem dos encadeamentos harmônicos, existe uma vontade deliberada de destruir o sentimento da estrutura, da direção e da tonalidade. Um exemplo de tais distorções encontra-se em Bird Food, que manipula a forma do blues, moldando-a entretanto na forma da "song" em AABA, com a variação de que cada A parafraseia o blues, o primeiro A preenchendo nove compassos e meio, o segundo onze e o terceiro dez. O passo decisivo foi dado dois anos mais tarde, com um álbum que se intitula, sem ambigüidade, Free Jazz. No álbum estão reunidos dois quartetos (para cada um deles, um trómpete, um instrumento de palheta — o sax-alto de Coleman e a clarineta baixa de Dolphy — , um contrabaixo e uma bateria) que tocam longas passagens totalmente improvisadas, ligadas entre si por blocos curtos, provavelmente escritos e baseados no conceito colemaniano de "centro tonai", que funciona como uma espécie de ímã. Perdeu-se o sentimento do compasso, e o próprio andamento, que não se mexe, está assegurado por uma das seções rítmicas (o contrabaixista Charlie Haden e o baterista Ed Blackwell) mas sob a contestação constante da outra seção rítmica (o contrabaixista Scott la Faro e o baterista Billy Higgins). Com o pianista Cecil Taylor, mais um passo foi dado. Enquanto Coltrane e mesmo Omette Coleman continuam a "suingar" constantemente — ou seja, criam e alimentam um conflito entre o ritmo fundamental e o ritmo da melodia —,
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Taylor, em seu anseio por libertar-se de toda e qualquer coerção rítmica, investe sua criatividade e sua força na criação de ondas de energia que, sucedendo-se umas às outras, vão determinar tanto a fisionomia externa como a tensão interna de uma peça. Como observa Jost, Taylor introduziu uma alternância de tensão e estagnação onde antes havia alternância de tensão e descanso. Trata-se, portanto, de uma ruptura completa com o que se pensava ser — o que muitos ainda pensam ser — uma das características essenciais do jazz, a permanência de um conflito, mesmo quando um dos elementos desse conflito está momentaneamente subentendido. Nascido em 1933 numa família da burguesia negra de Nova York, Taylor recebeu uma formação clássica e desde muito cedo ouviu a música dos compositores europeus modernos. Admirava Schõnberg, Berg, Webern e, especialmente, Bartók e Stravinski. Também andou muito tempo fascinado por dois pianistas de jazz brancos: Dave Brubeck — pela "densidade de suas harmonias", conforme disse — e Lennie Tristano, por seu domínio do atonafismo. Ele contou que descobriu de repente o "verdadeiro jazz', o de Ellington e dos pianistas influenciados por Bud Powell, como Horace Silver e Walter Bishop. Concluiu, então, que havia dois tipos de jazz, o negro e o branco. Daí por diante, esforçou-se por inserir sua concepção de música no jazz. O jazz não saiu ileso dessa operação: De fato, embora seus admiradores incondicionais não gostem que se diga isto, o fraseado de Taylor não tem qualquer resquício de suingue, já tendo sido comparado ao das toccatas de Bach. Mas pode-se dizer que o ímpeto com que se sucedem seus "cachos" sonoros e a maneira muito pessoal de abordar o instrumento, que combina paradoxalmente um tratamento bem elaborado das ressonâncias harmônicas e uma utilização do piano como instrumento de percussão, determinam, através da energia assim consumida, uma espécie de desequilíbrio controlado que cria uma tensão comparável, no final das contas, à do suingue (discos: Unit Structures, Conquistador, 1966). Entre as outras personalidades que desempenharam um papel importante no movimento do free jazz, deve ser citado o trompetista Don Cherry. Mais do que qualquer outro, ele buscou sua inspiração nas músicas orientais, a ponto — é a crítica que se lhe pode fazer, não obstante sua inegável faculdade de invenção — de encerrar-se num sistema de contemplação com o qual elimina o sentimento de motricidade que estaríamos no direito de esperar do jazz, mesmo no sentido mais amplo da palavra. A ambição de Cherry, como a de certos jazzmen europeus, parece ser suprimir a tensão, mais do que organizar o conflito, isto é, o drama sem o qual não há grande música. Mas são sobretudo os saxofones-tenor que vão ocupar o primeiro plano na "new thing", alijando para o fundo de cena um instrumento que foi durante muito tempo o rei do jazz, o trómpete. Jost explica as razões dessa penetração usurpadora. Os jazzmen negros, como se sabe, sempre fizeram os mstrumentos dizer mais e outra coisa do que aquilo a que os havia destinado o fabricante ocidental. Para os músicos de free jazz, entretanto, que desejam sair das categorias tradicionais, é
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preciso que o instrumento diga verdadeiramente o indizível. Ora, graças a um enorme trabalho, os saxofonistas, em especial os tenores, estenderam até bem longe os limites de seu instrumento, notadamente ao descobrir a possibilidade de emitir duas ou três notas juntas e ao ganhar um espaço sonoro até então inexplorado, no agudo como no grave — o que não conseguiram fazer os trompetes. Estes haviam chegado aos limites do superagudo mas estavam sabendo muito bem que, ao procurar estender-se, no grave, para além de certas notas, tirariam toda a expressividade e toda a agressividade do timbre do instrumento. Por isso, é sobretudo entre os sax-tenores que encontramos as grandes "locomotivas" do free jazz. Citemos Albert Ayler, talvez o mais "free" de todos, que iniciou sua carreira no conjunto do cantor de blues Little Walter Jacobs, e que também morreu cedo demais, com 34 anos. Citemos Pharoah Sanders, que tocou com Coltrane. Mas o mais atraente desses tenores é talvez Archie Shepp, nascido em 1937. Também formado no rhythm and blues, jamais perdia de vista o fato de que o free jazz não seria o que era sem as aquisições do jazz puro e simples. Cada vez que tocava, é como se lançasse uma ponte entre Ellington, que ele idolatrava, e a criação atonal de um delírio controlado. Não podemos tampouco deixar de mencionar dois grupos inteiramente originais, tão originais que jamais fizeram escola: o Art Ensemble of Chicago, que, composto de quatro multiinstrumentistas, apresentava-se em cena com todo um cerimonial de vestimentas e maquilagens africanas, e a grande orquestra de Sun Ra, que, vivendo marginalmente em comunidade, procurava elevar a grande arte negra ao nível da "percepção galáctica" da música das esferas. Curiosamente, jamais se viram tantos bons músicos brancos como nesse movimento, cujas fontes eram as mais afro-americanas. Entre os mais criativos, fiquemos com o contrabaixista Charlie Haden — que participou da aventura histórica do disco free Jazz lado a lado com Omette Coleman — e a pianista-compositora Carla Bley. De sua colaboração nasceu em 1969 um belo álbum, Liberation Music Orchestra. Desde então, Carla Bley prossegue em seu caminho, escrevendo e fazendo tocar uma música que se inspira nas mais diversas fontes, do blues aos itafianismos, mas que é sempre forte, sensível e estimulante. Também diversificadíssima nas suas fontes é a inspiração de Anthony Braxton, que tanto pode avkinhar-se do ragtime como escrever suntuosos arranjos para grande orquestra que transbordam de swing (no sentido clássico da palavra), ou ainda entregar-se a pesquisas que nada têm a ver com o jazz e que seria mais apropriado desenvolver num estúdio de "música contemporânea" {Silence, 1969). Na Europa, assiste-se ao mesmo esfacelamento do conceito de jazz. Ao lado de jovens músicos que, seduzidos pela riqueza harmônica do bop, trazem de volta à moda essa maneira de tocar — sem se dar conta de que, ao procederem assim, estão participando de um revival comparável àquele dos jovens músicos brancos que, na década de 1940, imitaram até nos defeitos técnicos de gravação o estilo
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nova-orleans de "King" Oliver —, encontramos um grande número de músicos verdadeiramente criadores que se preocupam em fazer uma música que ainda não tenha sido tocada, sejam quais forem as conseqüências disso do ponto de vista de sua relação com o jazz. "Não me parece que seja tão importante saber se o que eu toco é ainda jazz ou não", diz quase textualmente o saxofonista François Jeanneau. O que não impede que Jeanneau, da mesma forma que Jean-Louis Chautemps, Michel Portal, Didier Levallet e muitos outros notáveis músicos franceses, toque o mais das vezes um tipo de música que, por mais sofisticado e cerebral que pareça em certas ocasiões, provoca naqueles que conhecem e amam o jazz clássico um movimento de adesão total. Mas, quando ouvimos os músicos contemporâneos, temos freqüentemente a impressão de estar diante de pesquisadores que, a não ser por algumas qualidades de timbre, de ataque e de ordenação da ênfase rítmica, parecem não conhecer o jazz. Não é uma censura que caiba fazer ao pianista virtuose Martial Solai, que, mesmo quando procura criar formas em que se possam misturar a "música contemporânea" e o jazz, não esquece nunca de que este tem de mover-se com suingue. Com efeito, está acontecendo algo importante neste momento. O Ocidente musical, tendo feito a volta completa a todas as possibilidades que lhe restavam depois dessa prodigiosa aventura que foi a exploração do sistema tonal e de suas conseqüências atonais, viu-se inquieto, desorientado, sem conseguir respirar. Foi então que tomou consciência de um mundo exterior que não era a simples inversão do Ocidente, nem algo que servisse apenas para fazer o Ocidente sobressair; como já acontecera antes aos etnólogos e aos pintores, descobriu aí uma abundância de riquezas que ele se esforça por integrar à sua substância, sem que disso resulte uma perda de identidade. Enfim, é bom que o jazz ofereça um terreno privilegiado para esses fecundos encontros — mesmo que ele tenha de deixar aí uma parte de sua identidade.
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PEQUENA HISTÓRIA DO
ROCK'N'ROLL
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Podemos situar o nascimento do rock'n'roll nos Estados Unidos por volta de 1955, ano em que Rock Around the Clock, de Bill Haley, foi popularizado pelo filme Sementes de Violência, de Richard Brooks, e deu a volta ao mundo. O termo rock'n'roll foi inventado em 1952 pelo disc-jockey Alan Freed para designar uma música inspirada no rhythm and blues negro de Joe Turner ou Roy Brown, forma de jazz vocal que se prestava à dança e era muito popular junto ao público negro, a que se misturaram alguns elementos do country & western, música branca e essencialmente rural. Bem depressa o rock'n'roll tornou-se um fenômeno de massas, reflexo das aspirações de uma geração de "rebeldes sem causa" (para usarmos o título do filme com James Dean) e, depois, das gerações seguintes. Seu primeiro grande astro, a partir de 1956, foi Elvis Presley, além de cantor, um símbolo sexual. Característica que não se desmentiu daí por diante, já que o rock tornou-se um estilo de vida, uma atitude, tanto quanto um gênero musical. Elvis destronou rapidamente Bill Haley, velho e comportado demais, e semeou o escândalo nos Estados Unidos dos anos 50, com seus requebros lascivos que lhe valeram o apelido de "Elvis the Pelvis". Domesticado pelo serviço militar, ele passou quase toda a década de 1960 em Hollywood, fazendo um número incalculável de filmes bobocas. Só voltou aos palcos em 1968, cantando regularmente nos cassinos de Las Vegas até sua morte, em 1977. Ele se havia tornado uma instituição norte-americana, e nada restava da hostilidade que despertara no começo de sua carreira.
Rock'n'roll. Literalmente: "balançar (embalar) e rolar". Expressão da gíria dos negros, com conotação sexual.
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No rastro do king Presley proliferou toda uma série de rockers cuja influência ainda se faz sentir: Jerry Lee Lewis, o "Killer", que desmontava seu piano em mil pedacinhos, ao aplicar-lhe a colossal energia de seu estilo; Gene Vincent, que foi o primeiro a vestir-se de couro negro e em cuja voz ressoava uma secreta melancolia; Eddie Cochran, que poderia tornar-se um sério rival de Presley, não fosse o acidente de táxi que o matou em 1960; Buddy Holly, um texano capaz de impressionar tanto pelo suingue como pela delicadeza, morto num acidente de avião em 1959; finalmente, os Everly Brothers, próximos da "hillbilly", a música das montanhas, especialistas em harmonias suaves. Essa primeira leva do rock'n'roll permitiu também, com toda a justiça, que certos cantores negros saíssem do gueto dos "race records", em que estavam confinados, e se impusessem ao público jovem e branco. O mais esfuziante deles era Little Richard, pianista desenfreado e que dava o seu recado cantando aos berros, frenéticamente dividido entre sua homossexualidade extrovertida e o medo da danação que o fez voltar-se muitas vezes para a religião e tornar-se pastor. Outro pianista, Fats Domino, soube transnfitir o gosto de viver de Nova Orleans com uma música amavelmente descontraída. Ray Charles, o "Genius", lançou uma ponte ligando o gospel o rhythm'n blues e o rock'n'roll Chuck Berry,finalmente,fez-se o cronista da América adolescente, com espírito e humor, escrevendo dezenas de clássicos como Johnny B. Goode, em que assentou as bases do estilo de guitarra rock, derivado do blues. Paralelamente ao rock'n'roll o gênero negro mais popular na virada de decênio 1950-1960 foi o doo-wop, descendente do gospel e que explorava contrastes e harmonias vocais, em conjuntos como os Platters (intérpretes do famoso Only You), os Drifters, Frankie Lymon 8c The Teenagers e os Coasters, cujas canções são como curtas-metragens burlescos para os ouvidos. Alguns brancos adaptaram-se a esse estilo, os mais célebres continuando a ser Dion 8c The Belmonts e o grupo Four Seasons. Quanto ao mais, o rock parece ter perdido um pouco do seu fôlego no início da década de 1960. Alguns de seus astros desapareceram, outros afastaram-se por causa de aborrecimentos com a Justiça, como foi o caso com Chuck Berry e Jerry Lee Lewis. As canções adocicadas prevaleceram, com Frankie Avalon, Fabian ou Ricky Nelson. Durante um verão, o twist atacou com Chubby Checker, Joey Dee, Gary "US" Bonds e os Isley Brothers. A moda durou pouco. Mas um raio de sol foi emitido do Brill Building, prédio nova-iorquino onde se enclausurava uma pléiade de compositores e produtores de talento, como Phil Spector, Gerry Goffin e Carole King, Barry Mann e Cynthia Weil, para fabricar em série os sucessos estrelados por grupos femininos charmosos como as Crystals, as Ronetes, as Dixie Cups e as Shangri-La's. 1
Twist, de to twist "revolver-se", "contorcer-se". Dança caracterizada por uma rotação pronunciada dos quadris.
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Em face do recuo demonstrado pelo rock, uma nova geração voltou-se para o folk, que impressiona como manifestação mais autêntica, desligada das contingências comerciais. Pete Seeger e Woody Guthrie, que escreveram numerosas "protest-songs" [canções de protesto] a partir de década de 1930, são os pais espirituais desse renascimento folk urbano, centralizado em Nova York. A Guerra do Vietnã se anunciava e mobilizava as energias. A grande figura dessa renovação do folk foi Bob Dylan, de início muito infuenciado por Woody Guthrie. Nem todos gostam de sua voz rouca e de sua gaita incisiva, mas das canções, popularizadas por Peter, Paul and Mary, não há quem não goste. Com o tempo, Dylan evoluiu da guitarra acústica para a formação de um grupo de rock— a excelente The Band— e deixou os textos engajados, preferindo outros mais pessoais e poéticos, o que foi recebido como uma traição por certos aficionados do folk. Toda a sua carreira foi marcada por reformulações e reposicionamentos, que fazem dele um personagem dos mais audaciosos e apaixonantes da história do rock. Joan Baez foi sua companheira por um tempo, e continua sendo a cantora folk mais conhecida, ainda que possa haver quem não a considere a mais interessante. Pode-se preferir-lhe Judy Collins, por exemplo, incomparável descobridora de talentos, que foi a primeira a cantar Leonard Cohen, o poeta canadense, e Joni Mitchell. O maior sucesso comercial já registrado pelo folk foi o da dupla Simon 8c Garfunkel, confirmado depois de uma longa separação nos anos 1970, e que deixou na sombra nomes como Phil Ochs, extremamente incisivo, ou Tom Paxton. A renovação do rock, contrariando toda expectativa, veio da Grã-Bretanha — mais precisamente, de Liverpool — com os Beatles, a partir de 1963. Até então, mesmo sendo popular no Reino Unido, o rock ainda nada havia produzido de decisivo por lá. Cantores como Cliff Richard ou Billy Fury haviam adotado o estilo dos pioneiros americanos do rock, sem dar-lhe qualquer contribuição própria. Somente os Shadows, acompanhadores de Cliff Richard, haviam conseguido impor seus instrumentais - caracterizados pelo emprego de guitarras estridentes. O advento dos Beatles iria marcar uma nova era: a dos grupos de músicos que são compositores, letristas e intérpretes das próprias canções, imitados e adulados. De início, John Lennon, Paul McCartney, George Harrison e Ringo Starr interpretavam simples e luminosas canções de amor, influenciadas tanto pelos Everly Brothers como pelo rhythm'n'blues negro. Exerceram uma sedução que atingiu igualmente a geração dos pais e a dos filhos, por efeito de suas melodias apuradas, da discreta elegância com que se vestiam e do seu senso de humor, vitoriosos mundo afora. Na esteira deles, veio a explosão. Centenas de grupos se revelaram, muitos deles influenciados pelo blues — mais particularmente, pela escola de Chicago, a de 1
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Folk: forma abreviada de folk-song, canção do folclore ou neste inspirada.
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Instrumental Peça sem intervenção vocal.
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Muddy Waters, Jimmy Reed, Elmore James — e pelo "jungle rock" de Bo Diddley. Um desses grupos tornou-se legendário: os RoUing Stones, nome tirado de um blues de Muddy Waters. Legendário não apenas pela qualidade deles como músicos, mas pela imagem muito forte de revolta que passavam, mostrando todo o seu pouco caso pelo establishment — até o momento em que se juntaram a ele. A imprensa os fez rivais dos Beatles, apesar da amizade que ligava os dois conjuntos. Num segundo plano, a rivalidade pegou fogo entre o grupo dos Animais, orientado pelo cantor Eric Burdon, de uma negritude mais entranhada do que se ele tivesse nascido negro; os Them, de onde surgiu Van Morrison; o Spencer Davis Group, que começou suas atividades tendo à frente um rapazote de dezesseis anos (o superdotado Stevie Winwood), os Yardbirds, que lançaram três dos mais notáveis guitarristas ingleses (Eric Clapton, Jeff Beck e Jimmy Page), os Pretty Tilings, ainda mais selvagens que os Rolling Stones, e Manfred Mann, que se voltou para uma pop-music mais comercial. Todos esses grupos conseguiram inverter o sentido das trocas musicais transatlânticas, a ponto de nos Estados Unidos chegar-se a falar numa invasão britânica. Mesmo conjuntos menos interessantes, de menos personalidade, como os Herman's Hermits ou o Dave Clark Five, defenderam-se bem no mercado, juntamente com os grupos que tocavam para agradar comercialmente, do tipo dos Zombies, dos Searchers (que utilizavam guitarras de doze cordas), dos Hollies ou dos enérgicos Troggs. Em Londres, começou o consumo das pílulas de anfetamina, que dão a energia necessária para dançar a noite inteira, ouvindo grupos como os ICinks, cáusticos comentaristas da sociedade inglesa, ou os Who, que eram notícia e centralizavam atenções destruindo guitarras em seus espetáculos ou apresentando-se em trajes talhados na bandeira inglesa. Esse público de jovens elegantes foi conhecido na época como sendo os "mods" forma abreviada de "modernos". Eram apreciadores da soul music negra americana, descendente do rhythm'n'blues e que conheceu sua fase áurea em meados da década de 1960. Seus dois centros de atração são o Sul, particularmente o Tennessee, e Detroit. O pai inconteste da escola soul sulista é James Brown, que fez sucesso com uma orquestra afeiçoada aos ritmos repetitivos mas que também é capaz de cantar baladas emocionantes. Essa escola sulista, que não se distanciou das raízes gospel desenvolveu-se apoiada em duas gravadoras, Stax e Atlantic, cujos diferentes cantores utilizavam os mesmos acompanhadores, o que lhes dava um som facilmente reconhecível. Os mais famosos foram Otis Redding, morto num acidente de aviação em 1967, Wilson Pickett, Sam Cooke, Solomon Burke, Joe Tex, Arthur Conley, Sam 8c Dave, e a cantora Aretha Franklin. 1
Soul music Literalmente, música da alma. Combinação de gospel e de rhythm'n'blues.
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A música soul de Detroit, sob o domínio da gravadora Tamla-Motown, é mais sofisticada e não hesita em lançar mão de grandes orquestras. O dono da Tamla, esse visionário chamado Berry Gordy, propôs-se desde o início o objetivo de fazer dançar o país inteiro, sem distinção de raça, objetivo que alcançou graças a um "faro" seguro. Desempenhou um papel menos espetacular que o de Martin Luther King para a integração negra, mas não menos importante. A ele deve-se o impulso dado a talentos como os de Stevie Wonder, Diana Ross com The Suprêmes, Smokey Robinson 8c The Miracles, Marvin Gaye, The Temptations, The Four Tops, Martha Reeves 8c The Vandellas, ou The Jackson Five. Toda a soul music não está concentrada, no entanto, nesses dois pólos. Nova Orleans continuou a ser uma cidade capaz de mostrar suingue, com Lee Dorsey, o arranjador Allen Toussaint e os Meters. E há que mencionar ainda Ike e Tina Turner, especialistas em retomar músicas que foram sucessos brancos, às quais eles insuflam um suplemento de alma. Uma vez passado o choque inicial da invasão britânica, os norte-americanos decidiram dar a réphca. Certos grupos tentaram conjugar com acerto a influência dos Beatles e de Bob Dylan, dando origem ao "folk-rock", como os Byrds, que deixaram sua marca num bom número de conjuntos da década de 1980, e os Loving' Spoonful. Outros procuraram desajeitadamente reproduzir o som dos ingleses nas garagens de seus pais, esforçando-se por tocar rhythm'n'blues, e deram o melhor de si mesmos numa única canção que acabava passando à posteridade, como foi o caso dos Standells ou dos Count Five. A partir de 1966, todos esses conjuntos viram sua música evoluir sob a influência de drogas alucinógenas. O movimento hippie estava nascendo, pregando paz, amor e novos valores menos egoístas. O LSD, considerado um meio privilegiado de ampliar os limites do espírito, também rompeu com os limites das canções de três minutos. O improviso surgiu pela primeira vez no rock, qualificado como psicodélico. Sua "terra prometida" era a Califórnia e, mais precisamente, São Francisco, onde nasceu o fenômeno hippie. O conjunto Grateful Dead executou concertos de oito a doze horas, a duração de uma "viagem" de ácido (LSD). O Jefferson Airplane se destacou por suas tomadas de posição política radicais, enquanto os estudantes de Berkeley, galvanizados por seu combate à Guerra do Vietnã, pensaram estar em condições de fazer a revolução. O Quicksilver Messenger Service fez-se notar por suas versões intermináveis dos clássicos de Bo Diddley e por seu guitarrista John Cipollina, cujo fino dedilhado caracterizava-se pelo emprego que fazia do vibrato manual. Los Angeles não ficou para trás, dando muitos dos melhores grupos psicodéhcos, como Love, o refinadíssimo Spirit e os Doors. Estes últimos ganharam fama por intermédio de seu cantor Jim Morrison, que um jornalista apelidou de "o rouxinol edipiano da América", poeta hábil em fazer brotar a violência e a sensualidade.
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Em Nova York, o psicodelismo assumiu cores sombrias com o Velvet Underground, que reuniu Lou Reed e John Cale e se comprazia em estridencias para pintar com o realismo mais apavorante a vida dos miseráveis da "Grande Maçã". Mesmo um grupo saudável como os Beach Boys, que começaram cantando as alegrias do surfe, não escapou à moda psicodélica, e um dos resultados foi uma obra-prima do rock, Good Vibrations. As mais diversas linhagens musicais deram sua contribuição. O blues, com o grupo Canned Heat, por exemplo. A soul, com Sly 8c The Family Stone. A Inglaterra do Swinging London, das minissaias e de Harold Wilson não podia permanecer insensível a essa fermentação de além-mar; mesmo os maiores grupos reagiram a ela. Vimos os Beatles produzirem seu álbum mais original e barroco, Sgt. Pepper's Lonely Hearts Club Band, os Rolling Stones se enredarem em grande confusão, e os Who criarem uma ópera-rock delirante, Tommy. Novos nomes entraram em cartaz, como o conjunto Pink Floyd, e sobretudo Jimi Hendrix, guitarrista negro americano expatriado. Muitos ainda o consideram como o melhor instrumentista que o rock já teve. Não resta dúvida de que ele abriu novos caminhos para a guitarra elétrica, tirando partido de todos os efeitos eletrônicos tornados possíveis pela amphficação. Faleceu prematuramente com a idade de 27 anos, em 1970, vítima de uma intoxicação medicamentosa. O final da década de 1960 foi a época dos grandes festivais, os de Woodstock e de Monterey nos Estados Unidos, o da ilha de Wight na Inglaterra, que reuniram até 500 mil pessoas, numa fraternidade eufórica. A entrada no novo decênio foi fatal para a utopia hippie, cuja chama se mantivera acesa por muito tempo, e marcou o fim de uma certa unanimidade no rock. Como um símbolo disso, os Beatles separaram-se em 1970 e John Lennon cantou "o sonho acabou" em seu primeiro disco solo. Diante do desencanto que sobreveio, cada um procurou uma solução de acordo com o próprio temperamento. E o rock esfacelou-se em diversas correntes mais ou menos antagônicas, cada uma pretendendo ser a encarnação mais justa do movimento. Um grupo como o Creedence Clearwater Revival, de São Francisco, deu as costas aos excessos psicodélicos de seus pares, optando por voltar ao rigor dos pioneiros do rock, com enorme sucesso. Outros preferiram tocar o blues, só então descoberto por um público que jamais havia tido contato com ele durante a década de 1960. Os Bluebreakers de John Mayall, autêntico conservatório do blues inglês, e a Butterfield Blues Band nos Estados Unidos haviam revelado B. B. King, T. Bone Walker ou John Lee Hooker a um público branco e jovem, suscitando vocações e um "blues-boom", ilustrado por Fletwood Mac (da primeira fase), Savoy Brown, Free e o guitarrista texano e albino Johnny Winter. Tentativas de aproximar o rock e o jazz das big bands surgiram com grupos que incluíam um naipe de metais em suas orquestras, a exemplo do Chicago Transit Authority, do Blood Sweat8c Tears, do Flock e do If.
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Outros tomaram as bases do blues, superamphficando-o e sobrecarregando-o, criando o hard rock, ou rock duro, que contra ventos e marés (e contra a crítica) continua a ser uma das correntes mais maciçamente populares do rock. Foi assim que nasceram: o efêmero Cream, reunião de três instrumentistas superdotados, entre os quais Eric Clapton; o Jeff Beck Group e o Led Zeppelin, dirigidos por um antigo guitarrista dos Yardbirds; o Black Sabbath e o Deep Purple, que se singularizou acrescentando um dedo de influências clássicas. São os fundadores da escola hard inglesa. Em seus primordios, o hard americano pohtizara-se deliberadamente — com o conjunto Steppenwolf, suas diatribes contra a hipocrisia e a voz rascante de seu líder, John Kay, alemão do Leste que passou para o Ocidente, o MC5 e os Stooges de Detroit — antes de aderir ao sistema. Sua violência extremada voltou-se para proporcionar uma catarse, por vezes embrutecedora. Os grupos de hard continuaram a surgir com o passar dos anos. Entre os mais interessantes musicalmente, podemos citar, nos Estados Unidos, o Cactus e o Mountain, ainda bem próximos do blues, o Blue Oyster Cult, um dos raros conjuntos desse gênero a conservar o suingue e um certo senso de humor, o Aerosmith, inspirado pelos Rolling Stones, o Cheap Trick, com melodias não raro atraentes, e Ted Nugent, guitarrista pitoresco; na Inglaterra, o conjunto Thin Lizzy, que apresentava a particularidade de ter um líder negro; na Alemanha, os Scorpions; e, na Austrália, o AC/DC, grupo favorito de muito jovens graças a seu guitarrista de calças curtas. Também no início dos anos 70, uma corrente country-rock surgiu nos Estados Unidos, em sintonia com a sensibilidade ecológica nascente, enaltecendo as alegrias do retorno à natureza sobre um fundo de doces harmonias vocais e de pedal-steel guitar, espécie de guitarra havaiana tomada de empréstimo ao country & western. Os Byrds haviam precedido o movimento, impulsionados por Gram Parsons, que se desligou do conjunto para fundar os Flying Burrito Brothers, com o Buffalo Springfield. Vamos encontrar membros desses dois grupos no Crosby, Stills Nash 8c Young, um dos "supergrupos" — como eram chamados os conjuntos formados por músicos já conhecidos anteriormente, muito em moda nessa época — mais perfeitos de então. Outros grupos dessa linhagem obtiveram imenso sucesso, como os Eagles ou os Doobie Brothers, assim como numerosos cantores um tanto perdidos na contemplação do próprio umbigo, tais como James Taylor e Jackson Browne, e cantoras de voz luminosa como Linda Ronstadt, Emmylou Harris e Joni Mitchell, esta última tendo seguido urna apaixonante evolução musical em direção ao jazz moderno. Uma das tentações mais difundidas quando terminou o sonho hippie foi a de dar certa respeitabilidade ao rock por meio de tentativas de casá-lo com a música clássica. Esse casamento de galinha com peixe deu resultados o mais das vezes duvidosos, especialmente quando era a obra de "virtuoses" que sacrificavam a musicalidade ao exibicionismo, o que não os impediu de alcançar grande sucesso comercial. As piores aberrações foram cometidas por Emerson, Lake 8c Palmer e
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pelo Yes. Houve casos, entretanto, em que a utilização de urna orquestra sinfônica parece ter funcionado, como com os Moody Blues e sobretudo com Procol Harum. Outros tiveram uma atitude mais interessante, como King Crimson, que soube digerir habilmente as lições de Bartók e de Stravinski; o Gentle Giant, espécie de orquestra de câmara elétrica; o Genesis, cujo líder Peter Gabriel passou a imagem de um trovador moderno, ou o Van Der Craaf Generator, autor de torturados poemas eletrônicos, da mesma forma como na música clássica se pode falar de poemas sinfônicos. Mais difícil de classificar era o grupo Traffic, formado em torno de Stevie Winwood, que buscava sua inspiração tanto nessa corrente "progressista" como no folclore ou no jazz. Toda uma família de grupos de Canterbury, cujos membros se eqüivaliam e eram perfeitamente substituíveis de orquestra para orquestra, deu sua contribuição para o avanço musical do rock o Soft Machine, os bizarros Henry Cow, Hatfield & The North, os doces doidões de Gong e Caravan. E o rock começou a juntar-se à música contemporânea eletroacústica graças à difusão dos sintetizadores. Isso aconteceu, em primeiro lugar, na Alemanha, cadinho da música dita "planante", evocando quer os espaços siderais quer a sensação que se experimenta depois de haver abusado ligeiramente do haxixe, sob a batuta do Tangerine Dream, do Popol-Vuh e de Klaus Schulze. Outros grupos alemães utilizaram a eletrônica de maneira mais agressiva, prefigurando a "música industrial", como o Kraffwerk, o Fausto ou o Can. Diante desse surto de seriedade, a parte mais jovem do público inglês revidou, dando todo o apoio ao glitter-rock ou rock das lantejoulas, simples, para não dizer simplista, e muito mais divertido, com suas vestimentas exibicionistas. Os mais velhos torciam o nariz, falando em mau gosto e em incompetência: o rock reencontrava assim sua função primeira de ultraje. Slade grafava todos os títulos de suas canções com erros ortográficos propositais, Gary Glitter aparecia como a caricatura de um herói de ficção científica dos anos 50, Marc Bolán, o cantor do T. Rex, era a coqueluche das mocinhas, fazendo repetir-se a histeria que rodeava os Beatles em seus primordios, Elton John ostentava os óculos mais grotescos que se possa imaginar, Rod Stewart vestia cetim. Londres voltava a divertir-se. Talentos autênticos surgiram desse movimento, o menor dos quais não foi certamente David Bowie, que soube criar para si uma identidade mutante, que se alterava a cada dois ou três anos, sempre com uma antecedência de alguns meses em relação ao que ditava a moda. Também formado no glitter, Bryan Ferry criou um personagem de dandy apoiado no luxo ostensivo de seu conjunto Roxy Music. Nos Estados Unidos, Alice Cooper pressentira o movimento lançando-se num rock grand-guignol, logo seguido pelo Kiss, um grupo de hard rock com os músicos maquilados como super-heróis de histórias em quadrinhos, e os New York Dolls, acintosamente maquilados e falsamente bissexuais, tocando um rock obsceno. A relativa ausência de fenômenos marcantes fez dos meados da década de 1970
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um período bastante calmo. Muitos músicos de jazz experimentaram o "jazz-rock" que, com raras exceções, não passou de uma estéril demonstração de virtuosimo, bem longe de alcançar a força das experiências de Miles Davis no início do decênio. O Weather Report, contudo, e a Mahavishnu Orchestra de John McLaughlin souberam aliar a energia do rock à inspiração do jazz, assim como Frank Zappa, fac-totum genial, que tanto é capaz de compor peças clássicas como canções satíricas, passando por todas as faixas intermediárias imagináveis. Nos Estados Unidos, a soul-music está esvaziada, o selo Philadelphia International impõe um som "xaroposo" com Harold Melvin & The Blue Notes ou os Three Degrees, que enfrenta a concorrência da música mais vigorosa de Al Green e de War, ex-acompanhadores de Eric Burdon. Raras individualidadesfizeramsua aparição no rock Bruce Springsteen, lírico cantor do sonho americano; Bob Seger e a J. Geils Band, que não esqueceram as raízes negras do rock, Tom Petty, com seu sorriso sanguinário e uma guitarra que soa como chicotadas; Fletwood Mac, que renegou o blues do início de sua carreira em proveito de uma música macia, perfeita para escutar-se no rádio do carro; Steely Dan, que nos faz lembrar que rock e inteligência não são incompatíveis. Como único movimento de alguma envergadura, os estados do Sul proporcionam uma música alegre embebida no blues e no country, com os Allman Brothers, Lynyrd Skynyrd, ZZ Top e J. J. Cale, o rei do rock "laid-back" ("descontraído"), que influenciou consideravelmente Eric Clapton. O único vento novo soprou da Jamaica, com o surgimento do reggae e de seu profeta Bob Marley: o ritmo característico, muito sincopado, popularizou-se junto com a mensagem "rasta" que ele veicula, preconizando o retorno dos negros à África e um misticismo inabalável. Além de Marley, suas figuras de proa são o Burning Spear, muito próximo das raízes africanas; Jimmy Cliff, o universalista; Toots & The Maytals, de vozes muito soul Peter Tosh, antigo companheiro de Marley, e Gregory Isaacs, cantor de voz suave, calorosa e sensual. Depois da conflagração glitter, a Grã-Bretanha recaiu na sonolência, perturbada pouca coisa por alguns grupos que se negam ao comercialismo, tocando em pubs enfumaçados um rhythm'n'blues nervoso, à maneira de Dr. Feelgood ou de Ducks Deluxe, e que prenunciam o grande movimento que fez do final dos anos 70 uma era de regeneração do rock. Filhos da crise econômica e do desemprego, os punks varreram tudo à sua passagem a partir de 1977... ou esforçaram-se por fazê-lo. Rejeitaram as estrelas e a competência técnica, clamaram em alto e bom som que era mais importante ter algo a dizer do que saber como dizê-lo. Usam os cabelos curtos, rompendo com os estereótipos hippies, e cantam o cinza urbano e o tédio. A urgência e a provocação estão na ordem do dia. Os Sex Pistols escandalizaram insultando a rainha em plena celebração de seu jubileu, o Clash fez de suas canções panfletos esquerdistas, os Stranglers manipularam fantasmas sádicos, os Buzzcocks proclamaram a dificuldade de amar quando reina o egoísmo, os Jam pareceram ser novos Who. Como
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em 1963, novos grupos estouravam a cada semana, pelo menos na Inglaterra. Os Estados Unidos não acompanharam o pique, anestesiados pelos programadores de rádio sobreviventes da era hippie. Somente Nova York ferveu junto com os ingleses. Patti Smith, poetisa e ex-crítica, trabalhou na soldagem de hippies com punks. Os Ramones retomaram uma linha de ingenuidade, o Television lembra simultaneamente a força dramática dos Doors e a liberdade de expressão de John Coltrane, Richard Hell inventou o conceito de "geração do nada", os Heartbreakers reatualizaram o espírito de Chuck Berry e Blondie o dos conjuntos femininos, o Talking Heads fez-se apóstolo de uma música soul pálida e psicótica, Devo se propôs a regressar em direção ao futuro e Mink DeVille cantou uma Nova York fantasmagor izada. A música negra, por sua vez, aderiu ao estilo discoteca, adotando um ritmo metronômico, com Donna Summer e Boney M . O filme Saturday Night Fever [Os embalos de sábado à noite] firmou definitivamente o gênero, em detrimento dos roqueiros. Pouco a pouco, o impacto do punk se diluiu, dando origem a uma multidão de modas que coincidem em parte umas com as outras. Diante de sua diversidade, fala-se em new wave, multiforme e esfacelada. Grupos punks continuam a aparecer, como os deliciosos Undertones ou os Stiff Little Fingers. O Police consegue fazer a fusão de reggae com punk, os Pretenders retornam a um rock muito melodioso. Um novo underground se cria, com o surgimento de pequenas gravadoras independentes e artesanais, que permitem a todos exprimir-se. Isso inclui desde os ruídos angustiantes do Throbbing Gristle à expressão convulsiva e desesperada do Joy Division, passando pelo rock cristalino — e às vezes reminiscente do psicodelismo — do U2 e do Echo & The Bunymen, reflexos da confusão adolescente diante de uma crise que é tão moral como econômica. Uma corrente neoprogressista torna a dar importância à técnica instrumental, com o Magazine, o Simple Minds e o Ultravox. Cantores inspirados no movimento punk evoluem por caminhos pessoais, como Elvis Costello, Joe Jackson, Ian Dury e Graham Parker. Se a crise deprime uma parte dos jovens ingleses, há outros a quem ela dá vontade de dançar para melhor esquecê-la. O ska, antepassado do reggae, reencontra uma nova juventude com os conjuntos, ditos "two tone", que integram músicos negros e brancos, como o Specials, o Madness e The Beat. Eles assinalam o início de uma nova convergência entre as músicas populares negras e brancas, em resposta a uma onda crescente de racismo na Inglaterra, com o resultado, dessa vez, de provocar um real intercâmbio. Os "neo-românticos" adaptam o funk que sucedeu ao estilo discoteca e aos sintetizadores, adotando vestimentas espalhafatosas no gênero de fantasias de. pirata ou de nobre da corte de Luís XV, como o Human League, o Visage ou o Dépêche Mode. Alguns voltam-se para os ritmos "tribais" da África, como é o caso do Adam 8c The Ants ou do Bow Wow Wow, o que permite
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que africanos como Feia Anikulapo Kuti ou King Sunny Adé conquistem um novo público. Os negros americanos não rejeitam as aquisições do rock e da eletrônica no funk, graças a Chick, Earth Wind 8c Fire, Prince, Michael Jackson, George Clinton e Rick James. No espírito, um fenômeno comparável ao do punk acontece no Bronx, o bairro mais desamparado de Nova York. Os jovens do gueto, sem condições de ter instrumentos, habituam-se a contar sua vida misturando as melhores passagens de seus discos favoritos: é o "rap", literalmente "papo", "conversa". Mas o rock propriamente dito continua vivo, mergulhando de novo em sua história a fim de permanecer jovem. Há conjuntos que simultaneamente fazem reviver os anos 50, como os Stray Cats, os meados dos anos 60, como os Plimsouls e os Fleshstones, os anos glitter, como o grupo Bauhaus, e até mesmo os anos punk. Pode-se ver nisto indícios de uma falta de inspiração, ou o sinal de que essa música sabe manter vivas suas jovens tradições — provavelmente, até que uma reviravolta promova novo questionamento radical.
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OS INICIADORES
Se por música contemporânea entende-se a produção dos compositores vivos, essa música começa com a geração nascida entre 1900 e 1920, que sucedeu a geração dos criadores (Schõnberg e seus discípulos, Stravinski, Bartók, Varèse), e antes da geração de compositores nascidos em torno de 1925. Dessa geração, que tinha idade para combater na guerra de 1939-1945, certos grandes representantes, como Luigi Dallapiccola, Benjamin Britten, André Jolivet ou Dimitri Chostakovitch (de quem tratamos em capítulo anterior), já desapareceram. Outros, como John Cage ou Pierre Schaeffer, só apareceram mais adiante. Todos acham-se hoje ligados ao que chamamos de música viva. Continuam afirmando uma presença exemplar e exigente para com os mais moços, pois situam-se na linha de frente daqueles que, apesar de terem forjado para si uma linguagem pessoal, não recusam a herança da tradição, desde que não seja a dos vienenses ou a de Varèse — sem que isso signifique subestimar estes últimos. Eles também são imitadores, mas num plano inteiramente outro. Como uma forma de recusar-se a conhecer melhor e a apreciar os criadores de hoje, é comum os melómanos, cujos gostos permanecem fixados nas músicas de outrera e de pouco tempo atrás, pretenderem crer que a música contemporânea está comandada por preocupações intelectuais ressecantes e por pesquisas cujo interesse é estritamente técnico. Ora, na geração daqueles que tinham entre 35 e 25 anos quando estourou a Segunda Guerra Mundial, e também na dos mais novos, é flagrante como se generaliza e se aprofunda uma preocupação dominante com os valores humanos mais autênticos, na crise trágica da civilização. Cada um a seu modo e de acordo com seu temperamento, eles tomaram consciência do questionamento dos valores tradicionais, das novas necessidades (psico-
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lógicas ou espirituais, como quiserem) de uma humanidade torturada pelas guerras, ditaduras e violências de toda espécie. Necessidades intelectuais mas, mais ainda, afetivas. Conscientizaram-se de que a música poderia—e, portanto, deveria— dar uma contribuição para esse "suplemento de alma" (na expressão de Bergson) a que o mundo aspira. Em seu todo, talvez a música jamais tenha sido menos inumana e menos frivola do que nesta segunda metade do século XX. Jamais ela se preocupou tanto em corresponder às mutações e às exigências dos sentimentos e das imaginações. Não resta dúvida de que nem sempre ela foi bem-sucedida nesses esforços, mas isso é outra história. Queremos deixar claro desde o início, nesta última parte de nossa História da música ocidental: nossos leitores devem saber que as músicas de seus contemporâneos foram escritas para eles, e não em função de uma estética abstrata e intemporal. O grupo da Jeune-France Em 1936, quatro jovens músicos franceses fundaram o grupo da Jeune-France, retomando assim o título usado em outros tempos por Berlioz. Yves Baudrier (nascido em 1906) foi o instigador do grupo; encontramos ao seu lado DanielLesur (nascido em 1908), André Jolivet (1905-1974) e Olivier Messiaen (nascido em 1908). O objetivo da Jeune-France, tal como o definiu Yves Baudrier, era "propagar as obras isentas de qualquer banalidade, sejam de vanguarda ou acadêmicas, lutar para restitair à arte seus valores humanistas, e, finalmente, criar uma música viva". Razões dessa tomada de posição: "Com as condições de vida tornando-se cada vez mais duras, mecânicas e impessoais, a música tem a obrigação de trazer sua violência espiritual e suas reações generosas àqueles que a amam." O primeiro concerto dos "quatro irmãozinhos espiritualistas" (no dizer de André Coeuroy) realizou-se em 3 de junho de 1936. Paul Valéry, François Mauriac e Georges Duhamel estavam presentes. "Havia o receio de que não viesse ninguém, mas o mundo musical parisiense, sempre um. pouco sádico, veio em peso assistir para ter certeza de que não havia ninguém", contou Claude Rostand. A guerra veio contrariar dolorosamente os projetos da Jeune-France, que, como grupo, desapareceu na tormenta. DANIEL-LESUR Além de numerosas e importantes funções que desempenhou (no rádio, na ópera, na direção do Departamento de Música do Ministério da Cultura), Daniel-Lesur compôs abundantemente música de câmara, vocal e sinfônica, sem falar nas três grandes obras para o palco: um balé. Ie Bal du destin [O baile do destino, 1956]; Andrea del Sarto, ópera inspirada em Musset, que se tomou a grande obra de sua vida (a partitura foi concebida inicialmente como música de cena, depois como
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poema sinfônico e, finalmente, em 1969, como ópera); em 1982, concluiu para a Ópera de Paris Ondine, ópera sobre texto de Giraudoux. ANDRÉ JOLIVET
Depois de ter sido aluno de Paul Le Fiem, André Jolivet foi, de 1930 a 1933, o único discípulo autêntico e direto de Edgar Varèse, numa época em que este só se deparava na França com sarcasmos e incompreensão. Em entrevista a A. Goléa, Jolivet afirmou: O estudo, com Varèse, de todos os aspectos da escrita moderna, levara-me a adotar um certo número de princípios de Schõnberg, que utilizei sempre de acordo com as exigências de minha expressão pessoal. (...) Os pontos essenciais que rétive de Varèse são a acústica, o ritmo e a orquestração. (...) A acústica, quero dizer, as disposições instrumentais que dão os melhores resultados sonoros. (...) Varèse submeteu-me a uma disciplina atonal mais severa que a dos dodecafonistas.
Depois do Quarteto para cordas de 1934, primeira obra francesa a utilizar séries dodecafônicas de maneira refletida e coerente, em 1935 Jolivet compôs Mana, ciclo de cinco peças curtas para piano, uma partitura típica de um artista para quem a música era encantararía, "manifestação diretamente relacionada com o sistema cósmico universal e expressão mágica da religiosidade dos agrupamentos humanos". De um mesmo retorno às fontes originais dão prova as Cinq incantations [Cinco encantações] para flauta solo (1936) e as Cinq danses rituelles [Cinco danças rituais, 1939] para orquestra. A guerra inspirou-lhe notadamente as Trois complaintes du soldat [Três lamentações do soldado, 1940] e a Messe pour le jour de paix [Missa para o dia da paz, 1940]. Sua própria concepção da escrita foi sendo elaborada pouco a pouco, como ele mesmo descreveu: Uma linguagem atonal que se apóia em notas, acordes, grupos sonoros,ritmos— elementos-chave, todos eles, em torno dos quais a massa em movimento da música se organiza e toma corpo. Formas renovadas em que o desenvolvimento assume posição preponderante, comandando não só a melodia como a harmonia, os grupos rítmicos e mesmo as massas sonoras, e em que a renovação atinge também a própria escrita instrumental, pelo emprego de instrumentos com sonoridades novas, como as ondas eletrônicas e os instrumentos exóticos.
Nem especulativo nem teórico como Messiaen, mas senhor de um forte temperamento, depois de 1945 Jolivet continuou a fazer gravitar o essencial de sua produção em torno de duas fontes fundamentais da arte dos sons: a prece e a dança. As obras importantes desse período são duas Sonatas para piano, mais de dez concertos, três sinfonias (de 1953 a 1964), Cérémonial [Cerimonial, 1968] para seis percussões em homenagem a Varèse, o oratório La Vérité de Jeanne [A verdade de Jeanne, 1956] e o extraordinário Êpithalame [Epitalamio, 1956] para orquestra vo-
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cal em doze partes (vozes), comentário — de obsédante força e de mágico fascínio — sobre um episódio do Cântico dos Cânticos. Disse Honegger: "Jolivet possui o dom maior e indispensável a quem maneja uma pena: o da magia e do poder de comunicação." Muitas obras produzidas depois revelam esse poder de comunicação: Le Cœur de la matière [O coração da matéria, 1965], cantata inspirada em Teilhard de Chardin, Ascèses (1966), Douze inventions pour douze instruments [Doze invenções para doze instrumentos, 1966]. É de lamentar-se que André Jolivet não tenha podido terminar Le Lieutenant perdu [O tenente perdido], ópera mágica e fantasmagórica baseada no romance de Marcel Schneider. Olivier Messiaen Filho de Pierre Messiaen, o tradutor de Shakespeare para o francês, e da poetisa Cécile Sauvage, Olivier Messiaen nasceu em Avignon em 1908, mas passou grande parte de sua infância em Grenoble, tendo guardado uma afeição profunda pelo Delfinado, região de seus longos retiros solitários. Paul Dukas foi seu professor de composição e Marcel Dupré seu professor de órgão no Conservatório de Paris, onde estudou de 1919 a 1930. Em 1929, Messiaen foi recusado para o Prêmio de Roma. Espírito surpreendentemente aberto, ele se interessou na época pelos ritmos hindus e gregos, apaixonando-se pela arte do Oriente, que descobriu na Exposição Colonial de 1931. Nesse mesmo ano, foi nomeado titular do órgão da igreja da Trindade, em Paris, posto que ocupou por quase cinqüenta anos. Seus Huit préludes [Oito prelúdios] para piano datam de 1929. Messiaen estabeleceu aí uma relação entre os sons e as cores, correspondência que procurou fixar sob a influência do pintor Blanc-Gatti. As Offrandes oubliées [Oferendas esquecidas, 1930] receberam do autor o subtítulo de "meditação sinfônica". Hymne [Hino, 1932], L'Ascension [A ascensão], concebida primeiramente para orquestra (1933) e depois para órgão (1934), La Nativité du Seigneur [A Natividade do Senhor, 1935], Les Corps glorieux [Os corpos gloriosos,1939, sete visões breves da vida dos ressuscitados] são as grandes obras para órgão que impressionam no período anterior à guerra. Em 1936, ano em que participou da fundação da Jeune-France, Messiaen compôs também (texto e música) os Poèmes pour Mi [Poemas para Mi], dedicados à violinista e compositora Claire Delbos, sua mulher. Em 1937 nasceu Pascal, seu único filho. Claire Delbos morreu em 1957, de uma doença psíquica que a manteve internada durante vários anos. Este foi o drama mais profundo da vida do compositor. Feito prisioneiro em 1940, Olivier Messiaen compôs e fez executar pelos companheiros de cativeiro uma de suas obras-primas, o Quatuor pour la fin du temps [Quarteto para o fim dos tempos, 1941], para violino, clarineta, violoncelo e pía-
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no. Não deve causar surpresa a referência poética ao Apocalipse de São João, pois a fome experimentada pelo prisioneiro não era estranha à concepção da obra: "A ausência de alimentação dava-me sonhos coloridos. Eu via o arco-íris do anjo e bizarros torvelinhos de cores." Tendo retornado, foi nomeado professor de harmonia do Conservatório de Paris em 1941 e depois, em 1947, professor de estética e de análise musical e rítmica, cadeira que em 1966 passou a denominar-se composição. Messiaen não hesitou em extravasar os quadros dos programas oficiais, abordando em aula, por exemplo, o serialismo. Fez do seu ensino uma experiência fundamental para toda a geração dos compositores do após-guerra, pesando assim fortemente sobre os destinos da música européia e unindo a dons pedagógicos excepcionais um respeito escrupuloso pela liberdade de cada um. Yvonne Loriod, Pierre Boulez, Karlheinz Stockhausen, Maurice Le Roux, Serge Nigg, Jean-Louis Martinet participaram de sua primeira geração de alunos. De 1943 datam as Visions de l'Amen [Visões do Amém] para dois pianos; de 1943-1944, as Trois petites liturgies de laprésence divine [Três pequenas liturgias da presença divina] para piano, ondas Martenot, coro de mulheres e orquestra; de 1944, o ciclo pianístico Vingt regards sur l'Enfant Jésus [Vinte olhares sobre o Menino Jesus]; de 1946-1948, a Turangalïla-Symphonie, a mais colossal e a mais longa (dez movimentos) de todas as sinfomas francesas, da qual diz seu autor: "É um canto de amor e um hino à alegria. É ainda um vasto contraponto de ritmos. Ela usa, particularmente, dois procedimentos rítmicos que foram inovações quando de sua criação: os ritmos não retroativos e as personagens rítmicas." De 1949, os Cinq rechants [Cinco cantos novos] para doze vozes mistas, homenagem ao Printemps [Primavera] de Claude Le Jeune, "a obra manifestamente mais carnal de Olivier Messiaen", segundo seu biógrafo Harry Halbreich. Estas duas últimas obras formam, com Harawi para canto e piano, a trilogia que o compositor denomina de Tristan et Yseult [Tristão e Isolda], inspirada pela descoberta de seu amor pela pianista Yvonne Loriod, com quem se casou em 1962. Em 1949-1950 foram escritos os Quatre études de rythme [Quatro estudos de ritmo] para piano, o segundo dos quais, intitulado Mode de valeurs et d'intensités [Modo de valores e de intensidades], utilizava pela primeira vez a técnica serial não somente para as alturas de som como também para as durações, os ataques e as intensidades. Messiaen já não retornou ao serialismo, mas o caminho ficou aberto para o "serialismo integral" pós-weberniano: foi depois de ter ouvido Mode de valeurs et d'intensités em sessão dos cursos de verão de Darmstadt para a música nova, em 1951, que Stockhausen escreveu aquela que ele próprio considerou por muito tempo sua primeira obra, Kreuzspiel. Desde então, o estilo de Messiaen decantou-se, sem com isso perder seu caráter flamejante. Sua inspiração explorou em maior profundidade — e, por vezes, sintetizou — as três fontes principais que sempre lhe serviram: sua fé católica (ele se
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pretende uni teólogo dos sons e um exegeta dos mistérios de sua religião); os cantos dos pássaros que, a partir dessa época, ele começou a estudar sistematicamente e que conseguiu integrar em sua linguagem graças a um sistema de transposição dotado de uma lógica e uma engenhosidade tão espantosas quanto a sutileza de ouvido que tornou tal transposição possível; por fim, os ritmos e os modos das músicas tradicionais da índia, de Bali, do Japão e da América Andina. Messiaen jamais esqueceu o quanto deve, sob esse aspecto, a seu professor Maurice Emmanuel (1862-1938), o descobridor dos modos gregos antigos, o músico de Prométhée enchaîné [Prometeu acorrentado], de Salamine (inspiradas em Esquilo) e, sobretudo, autor da História da linguagem musical (1911) e de A música grega antiga (1913). Sobre a relação entre sua fé e sua música, Olivier Messiaen assim se explicou no Prefácio à retrospectiva de suas obras, de 1978: As pesquisas científicas, as provas matemáticas, as experiências biológicas acumuladas não nos salvaram da incerteza. Pelo contrário, aumentaram nossa ignorância, mostrando sempre novas realidades por baixo do que acreditávamos ser a realidade. A única realidade que existe é de uma outra ordem: situa-se no domínio da Fé. É pelo encontro com um Outro que podemos compreendê-la. Mas é preciso passar pela Morte e pela Ressurreição, o que supõe um salto para fora do tempo. Muito estranhamente, a música é capaz de nos preparar para isso, como imagem, como reflexo, como símbolo. Com efeito, a música é um perpétuo diálogo entre o espaço e o tempo, entre o som e a cor; o espaço é um complexo de tempos superpostos, os complexos de sons existem simultaneamente como complexos de cores. O músico — que pensa, vê, ouve e fala por meio desses conceitos fundamentais — pode, em certa medida, aproximar-se do Além. E , como diz Santo Tomás, a música nos conduz a Deus, "por lacuna de verdade", até o dia em que Ele próprio venha a nos deslumbrar "por excesso de verdade". Tal pode ser o sentido-significação e também o sentido-direção da música.
Messiaen também escreveu sobre a importância do canto dos pássaros em sua obra: Para mim, toda a música está aí. A música livre, anônima, improvisada por gosto, para saudar o sol que se levanta, para seduzir a bem-amada, (...) para atravessar o tempo e o espaço e fazer generosos e providenciais contrapontos com seus vizinhos de habitat. (...) O canto dos pássaros está acima dos sonhos do poeta e, sobretudo, muito acima do músico que tenta transcrevê-lo.
Os dados técnicos de sua. produção, os modos que inventou, seus "ritmos não retroativos" foram por ele longamente explicados na Técnica de minha linguagem musical obra teórica publicada em 1944, em que se autodefiniu como "compositor de música e ritmicista". Depois dos Quatre études de rythme [Quatro estudos de ritmo], o que produziu até os nossos dias é vastíssimo. Em 1950, a Messe de la Pentecôte [Missa de
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Pentecostés] para órgão. Em 1951 ainda o órgão está presente com o Livre d'orgue [Livro de órgão]. Em 1953, o Réveil des oiseaux [Despertar dos pássaros]. Em 1956, os Oiseaux exotiques [Pássaros exóticos]. Em 1956-1958, o Catalogue d'oiseaux [Catálogo de pássaros], segundo grande ciclo pianístico, é dedicado "a seus modelos alados, à pianista Yvonne Loriod". 1960 é o ano de Chronochromie [Cronocromia] para orquestra, em que Messiaen elabora sua teoria das relações entre cores e durações e cuja primeira audição foi um escândalo, havendo uma passagem em que dezoito cantos de pássaros se superpõem simultaneamente. Sept Haï-Kaï [Sete haicais] é o resultado de um autêntico coup de foudre pelo Japão, que ele visitara pela primeira vez; a dedicatória demonstra seu entusiasmo: "A Yvonne Loriod, a Pierre Boulez, a madame Fumi Yamaguchi, a Seiji Osawa, a Yoritsné Matsudaïra, a Sadao Bekku e Mitsuahaki Hayama, ao ornitólogo Hoshino, às paisagens, às músicas e a todos os pássaros do Japão." Vêm em seguida Couleurs de la cité céleste [Cores da cidade celeste, 1963], Et exspecto ressurectionem mortuorum [E espero a ressurreição dos mortos], resultado de uma encomenda de André Malraux (1964), uma obra que se constrói no espaço e que Messiaen gostaria de ouvir tocada em frente à geleira de Meiji. Muitas de suas obras sinfônicas dão lugar de destaque à percussão: o oratório La Transfiguration de Notre Seigneur Jésus-Christ [A transfiguração de Nosso Senhor Jesus Cristo, 1969]; a Méditation sur le mystère de la Sainte Trinité [Meditação sobre o mistério da Santíssima Trindade], conjunto de nove peças para órgão, construídas em cima de correspondências entre sons e letras e sobre uma extensão do alfabeto (1972); La Fauvette des jardins [A toutinegra dos jardins] para piano (1972); Des Canyons aux étoiles [Dos canyons às estrelas, 1971-1974], ciclo de doze peças para piano e conjunto instrumental, composto em seguida a uma viagem a Utah (Estados Unidos), onde uma montanha recebeu a partir de então seu nome. Ao término de oito anos de trabalho, ele produziu a realização suprema de sua obra com Saint François d'Assise [São Francisco de Assis], levada pela primeira vez na Ópera de Paris em 28 de novembro de 1983. Sua produção prosseguiu, tendo-nos dado em 1986 seu Le Livre du Saint Sacrement [O livro do Santo Sacramento] para órgão.
Alguns independentes MARCELLANDOWSKI "O misticismo e o amor são os dois temas da música", diz também Marcel Landowski (nascido em 1915), compositor engajado em numerosas Batalhaspela música (título de uma obra autobiográfica). Seu trabalho dá testemunho de uma preocupação humanista-espiritualista que questiona o mundo: a Symphonie Jean de La Peur [Sinfonia João do Medo, 1949], primeira de uma série de quatro, a
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ópera Le Fou [O louco, 1956], a Messe de l'aurore [Missa da aurora, 1977], Un Enfant appelle [Uma criança chama, 1979], peça para soprano, violoncelo e orquestra. A música na França lhe deve a instalação de uma míxa-estrutura regional sob a forma de orquestras, conservatórios e óperas, e o apoio que dele essas instituições continuaram recebendo sempre. Ele escreveu em 1979: É muito freqüente lamentar-se o fosso que existe entre o público e a música de nosso tempo (o que só tem feito agravar-se cada ano nos mtimos cinqüenta anos). A razão desse corte provém do profundo mal-estar de nossa sociedade desarraigada de sua cultura tradicional e que não encontrou ainda o mundo em que vive. Reencontrar esse caminho no mais fundo da alma popular, trazê-la — porque ela terá sentido a verdadeira necessidade de sua participação — a uma vida cultural de seu tempo: tal é, sem dúvida, uma das missões essenciais dos dirigentes de hoje.
É a uma preocupação dessa ordem que corresponde o afresco lírico de acentos épicos: Montségur, grande ópera histórica, levada à cena pela primeira vez em Toulouse, em fevereiro de 1985. JEHAN ALAIN
Muito impregnado, ele também, de uma tradição cristãfamiliar, Jehan Alain (nascido em 1911), aluno de Marcel Dupré, tal como o foi Obvier Messiaen, morreu em combate em 1940. Organista como o pai, Albert, e como depois seriam sua irmã Marie-Claire e seu irmão Obvier, escreveu principalmente para seu instrumento, mas também para o piano: Litanies [Litanias, 1938], Requiem (1938), Trois danses [Três danças, 1939], Prière pour nous autres charnels [Oração para nós sob a tentação da carne, 1939], obras que permitiam esperar muito do futuro do compositor. IGOR MARKEV1TCH Um ano mais moço que Jehan Alain, Igor Markevitch (1912-1983), de origem ucraniana, após um inicio de carreira explosivo com Icare [ícaro, 1933], Le Paradis perdu [O paraíso perdido, 1935], Laurent le Magnifique [Lourenço o Magnífico, 1940] e outras peças, parou de compor ao terminar a guerra, em que desempenhara papel dos mais ativos na Resistência Italiana. Surgido como um meteroro e como um jovem prodígio no universo da composição (evoluindo então no universo de Diaghilev e de Cocteau), considerou em seguida que chegara ao fim uma certa "história" da música e consagrou-se à sua função de regente de orquestra com uma exigência de perfeição que fez dele, nesse domínio, um dos maiores. O paradoxo foi que esse músico, que afirmava não acreditar num futuro da música, esteve à frente, como regente, das novas obras surgidas de jovens compositores (de Pierre Boulez, notadamente).
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Henri Dutilleux A implacável severidade de que Henri Dutilleux sempre deu provas em relação à sua arte teve como resultado uma produção pouco abundante mas de excepcional densidade. Ele escreveu: Há, em suma, dualidade entre dois traços de minha natureza que têm sido freqüentemente observados: o desejo ardente de comunicar e de transmitir, ao mesmo tempo que uma necessidade feroz de solidão e de meditação.
Nascido em 1916 em Angers, pelos acasos da guerra, Henri Dutilleux foi de uma família originária do Norte da França. Como esta retornasse a Douai em 1919, ele fez nessa cidade todos os seus primeiros estudos musicais, concluídos no Conservatório de Paris. Prêmio de Roma em 1938, só aproveitou uns poucos meses da permanência a que tinha direito em Villa Médicis. Destruiu suas primeiras obras, estragadas, a seu ver, pelo excesso de facilidade. Com a Sonata para piano (1948) teve consciência de haver dado um passo que o aproximava da grande forma. Na verdade, segue-se-lhe pouco depois sua Sinfonia n° 1 (1951), em que pretendeu "pôr de lado as estruturas estreitamente referentes à forma clássica"; essa obra levantou uma questão sobre o tempo musical, propondo um outro tempo, iniciando-se com ela uma característica da reflexão ulterior de Dutilleux. A percepção do silêncio, ligada ao tempo, passou a ser uma constante da busca do compositor; essa abordagem do silêncio está na introdução da sinfonia: aberta com o lento surgimento dos sons que se desprendem do silêncio inicial, a obra termina com uma recaída nesse silêncio. Le Loup [O lobo], balé sobre argumento de Jean Anouilh, foi composto em 1953 para a companhia de Roland Petit. Essa partitura, que o compositor considerou inseparável dos elementos cênicos, jamais foi tocada nas salas de concerto, por expressa recusa de Dutilleux. A Sinfonia n° 2, dita Le Double [O duplo], resultou de uma encomenda da Fundação Koussevitsky para celebrar o 75° aniversário da Orquestra de Boston. Charles Munch dirigiu a primeira audição da obra em Boston, em 1959. Dutilleux inaugurou com essa sinfonia uma nova disposição da orquestra, ou, mais exatamente, de uma parte da orquestra: doze músicos, representando as famílias da orquestra, foram instalados na forma de um arco de círculo diante do regente para dialogar com o tutti orquestral. "Trata-se", diz o autor, "de dois personagens num só, um sendo como que o reflexo do outro. Não tem nada a ver com um concerto grosso. Ao contrário, fiz questão de evitar qualquer analogia com esquemas neoclássicos." Outra orquestra norte-americana, a de Cleveland, com George Szell como regente, encomendou a Dutilleux uma obra em que os instrumentos de sopro (madeiras e metais) seriam privilegiados. O resultado foi, em 1965, Les Métaboles [Os metábolos], de discurso rigorosamente atonal, em que as figuras engendram-se
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umas às outras segundo o princípio de um "tempo circular". Vêm em seguida Deuxfiguresde résonances [Duasfigurasde ressonâncias] para dois pianos (1969), a que se acrescentarão em 1972 três outras Figures de résonances. Em Aix-en-Provence, sob a regência de Serge Baudo e com o concurso de Rostropovitch, ocorreu em 1970 a primeira audição de Tout un monde lointain [Todo um mundo longínquo], título baudelairiano para uma obra que une o violoncelo solo à orquestra. O primeiro grande acontecimento do ano musical de 1977 em Paris foi a primeira audição de Ainsi la nuit [Assim seja a noite], quarteto de cordas composto na intenção do Quarteto Juillard, norte-americano. Dutilleux esteve ocupado nessa obra durante mais de cinco anos: O processo da m e m ó r i a desempenha aí u m papel importante, como na maioria de m i nhas partituras. N a medida em que eu ia avançando no trabalho, cada vez mais se afirmava seu caráter p o é t i c o , embora meu ponto de partida se houvesse limitado a u m a série de estudos formais. Tudo se transformou então, insensivelmente, numa espécie de visão noturna. D a í o título Ainsi la nuit.
A obra seguinte, Timbres, espaces, mouvement [Timbres, espaços, movimento, 1978], levou como subtítulo La Nuit étoilée [A noite estrelada] e fez explícita referência a um quadro de Van Gogh. Foi concebida para uma grande orquestra de que se achavam ausentes violinos e violas. Foi a segunda obra de Dutilleux que, em curto lapso de tempo, fez menção à noite. Note-se simplesmente que, pouco antes, Dutilleux havia sofrido gravíssimos distúrbios oculares; sem querer evocar uma relação direta de causa e efeito, não terá a música intervindo como um desafio inconsciente a esse universo noturno que, além do mais, está voltado para o silêncio? Proposição que Dutilleux rejeitaria, sem dúvida — num nível mais literal, pelo menos —, ele que repelia qualquer música que fosse "programática" ou contivesse "mensagem", da mesma forma que não aceitava estruturas pré-fabricadas para a música. O fato de inventar m ú s i c a (que é u m a necessidade mas, sem dúvida, t a m b é m uma utopia) tem ligação — para a l é m do necessário trabalho artesanal, se possível cotidiano — com uma forma de cerimônia, com algo quase sagrado, que encerra u m a grande parte de mistério e magia.
A esse respeito, Dutilleux gostava de citar um provérbio chinês: "Se o que você tem a dizer não é mais belo que o silêncio, cale-se." Nos anos 80, esse grande silencioso tinha diante de si muitos projetos: um concerto para violino previsto para o fim de 1985; uma obra para orquestra de cordas, Instantanés [Instantâneos], a ser tocada em 1986, no 80° aniversário de Paul Sacher, regente suíço e verdadeiro mecenas da música contemporânea; uma obra para voz solista, coro e orquestra, encomendada pela Füarmônica de Berlim para as comemorações de
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seu centenário (1988). Compôs em homenagem a Peter Pears, para o festival fundado por Benjamín Britten, For Aldeburgh, peça para oboé, cravo e percussão. Maurice Ohana O que aproxima Henri Dutilleux e Maurice Ohana — compositores tão diferentes em suas estéticas — é, em primeiro lugar, sua absoluta independência enquanto criadores, sua recusa em participar de grupos estéticos. Além disso, há também a simplicidade, ou ascèse, de seu modo de vida, com o imperioso desejo de experimentar longos períodos de recolhimento fora de Paris, onde vivem, para reencontrar o contato com a natureza, "interrogada e interrogada numa insistência sem fim", diz Ohana. Ambos buscam o contato com um certo silêncio favorável à criação: as margens do rio Loire, para Dutilleux, a Bretanha, para Ohana. Só a partir de 1963 Henri Dutilleux cogitou de renunciar a qualquer emprego remunerado fora de seu trabalho de compositor (ocupou durante muito tempo o cargo de diretor de música na Rádio) para entregar-se livremente à criação; sua mulher, Geneviève Joy, pianista e professora no Conservatório de Paris, deu apoio total à decisão. Já Maurice Ohana, pode-se dizer que viveu sempre única e exclusivamente para criar. Uma situação bastante rara no século XX, é bom notar. De origem andaluza, mas fixado em Bayonne (França) desde menino, Maurice Ohana, nascido em 1914 em Casablanca, praticava desde a adolescência a leitura ao piano, a quatro mãos, dos quartetos de Beethoven; em suas primeiras obras, ele se revelou um herdeiro direto do Manuel de Falia da última fase (a quem jamais chegou a conhecer); juntamente com Debussy, o espanhol é um dos raros compositores que Ohana reconhece ter exercido influência sobre seu processo criador. Excelente pianista, confessa sua predileção por Chopin e Scarlatti. Somente em 1946 se fixou em Paris. Já havia escrito em Roma (onde participou dofimda guerra, incorporado ao exército britânico) uma Sonate monodique [Sonata monódica, 1944], e em Paris fundara com alguns amigos o grupo Zodiaque [Zodíaco] em prol da liberdade da linguagem musical e "contra todos os esteticismos tkânicos". Afirmou seu temperamento poético e dramático com Llanto por Ignacio Sanchez Méfias [Pranto por Ignacio Sanchez Mejias, 1950], uma "liturgia do touro", ritual de morte sobre um poema de Federico García Lorca, para barítono, recitante, coro e orquestra. "Todas as minhas obras avançam lentamente através de uma visão de conjunto, de que cada urna revela um fragmento. Mas eu já possuía essa visão no ponto de partida e dela ainda não consegui captar mais que alguns aspectos." Ao longo dos anos, Ohana criou para si próprio uma linguagem pessoal, rebelde a toda influência germânica — inclusive o dodecafonismo —, identificando-se, pelo contrário, com um lirismo mediterrâneo (africano, grego, ibérico). A referência à Andaluzia tornou-se um lugar-comum da crítica a propósito da obra de Maurice
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Ohana. Vale notar, porém, que se trata nesse caso de uni lugar mítico. Odile Marcel escreveu: Ohana desperta, reinventandp-a, u m a Andaluzia adormecida em sua recusa, para cantar-lhe a força e a majestade antigas. A Andaluzia como mito, tais são talvez a intenção e a mensagem do universo ohaniano. (...) É que, para Ohana, a Andaluzia é essencialmente u m lugar portador de civilização: uma encruzilhada histórica, diversas idades da cultura ao mesmo tempo. Andaluzia significa uma i m e n s i d ã o cultural, u m a diversidade
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(1981) é um grande movimento sem interrupção, em que o piano, exaurido em todas as suas possibilidades, leva à extrema exuberância a multiplicidade dos timbres, dos ataques, das seqüências de um célere brilhantismo e dos contrastes, num percurso que deixa uma certa parte de liberdade à invenção do intérprete, um pouco à maneira dos grandes solistas de jazz como Count Basie ou Fats Waller. Registre-se, ainda, para o piano, seus Douze études d'interprétation [Doze estudos de interpretação, 1983-1985].
e u m a riqueza: ela pode então ser uma matriz e u m território.
Regida por uma idéia poética, a arte de Maurice Ohana, aguda nos contornos, ao mesmo tempo rigorosa e sutil, situa-se à margem das correntes atuais, sem deixar de mover-se na ambiência sonora da música pós-serial. Citemos Cantigas (1954) para coro, solista e orquestra, homenagem à grande cultura musical da corte do rei Afonso o Sábio, de Castela; os Études choréographiques [Estudos coreográficos, 1955], levados pela primeira vez pelo Grupo de Percussões de Estrasburgo; Syllabaire pour Phèdre [Silabário para Fedra, 1967], ópera camerística inspirada em Eurípides, que recorre também à eletroacústica ("essas técnicas interessam-me como análise espectral do som e dos ritmos"); Sibylle [Sibila, 1968], em que a voz é inteiramente vocalizada e onde intervém igualmente a eletroacústica; Cris [Gritos] para doze vozes a capela e percussão (1968), nova pesquisa sobre as possibilidades da voz humana. A preocupação constante de Maurice Ohana com a renovação do timbre e do som leva-o a explorar instrumentos um tanto inusitados (a citara, por exemplo) e o mundo dos microintervalos como o terço de tom, como em Tombeau de Debussy [Homenagem a Debussy, 1962] para orquestra e sohstas, uma obra dedicada a Henri Dutilleux. Escreveu em seguida uma série de Vinte e quatro prelúdios para piano (1973), Lys des madrigaux [Lírios dos madrigais, 1976] para vozes de mulher e conjunto instrumental, Office des oracles [Oficio dos oráculos, 1974] para três grupos vocais e três grupos instrumentais, reflexão sobre o futuro da prática musical, e uma Missa (1977) em que optou por usar o texto em latim, assim explicando: O texto sagrado, arquétipo por excelência, criado através dos tempos por homens inspirados, acresce à sua evidente espiritualidade um valor fonético cujos poderes e m i s t é rios pedem o vocalise, a salmodia, a antifonia e o responsório, maneira de cantar que falou ao instinto de todos os povos em todos os tempos.
Sobre um texto de Odile Marcel, filósofa e romancista, que se tornou sua mulher, ele realizou uma obra de "teatro musical", Les Trois contes de l'honorable fleur [Os três contos da flor honorável]. Foi ainda Odile Marcel quem escreveu o libreto da grande ópera La Célestine [A Celestina], encenada em 1988, baseada na tragicomédia de Fernando de Rojas (século XV). O Concerto para piano e orquestra
Os germânicos Na Alemanha, o muniquense Karl Amadeus Hartmann (1905-1963), espírito notavelmente aberto, foi aluno de Webern e sobretudo de Scherchen. Tão logo terminou a Segunda Guerra Mundial, tornou-se um dos mais ardorosos defensores da nova música, fundando, para melhor defendê-la, a associação Música Viva. Retirado da vida musical alemã enquanto durou o longo período nazista, tinha tudo para, em seguida, ser uma figura de proa nos círculos de divulgação dessa música. Já em 1935, com sua única ópera, Simplicius Simplicissimus, manifestara convicções pacifistas; em 1936, concluiu sua Sinfonia n° 1. A última delas, a Oitava, foi escrita entre 1960 e 1963. Por essa grande massa compacta sinfônica, e a despeito de seu trabalho como propagandista das músicas novas, inscreveu-se na grande tradição das sinfonias alemãs, a mesma que, não muito antes dele, haviam sustentado Mahler e Bruckner. Dois anos mais velho que Hartmann, Boris Blacher (1903-1975) esteve muito tempo à frente da Escola de Música de Berlim e exerceu influência preponderante sobre muitas gerações de compositores (de Gottfried von Einem a Isang Yun). Ficou conhecido por suas pesquisas sobre o ritmo, especialmente em Sete estudos sobre os metros variáveis. Desde 1950, tomou o partido do dodecafonismo, com Lysistrata. Como já o havia feito Ernst Krenek, aproximou-se do jazz {Jazz Kolorature, 1929; Dois poemas para quarteto de jazz, 1957). Buscou a renovação da linguagem no domínio lírico {Ópera abstrata n° 1, 1953). Wolfgang Former, nascido em 1907, também foi um notável pedagogo, como muitos outros músicos alemães (foi quem formou, entre outros, H.W Henze). Participou do esforço desenvolvido por K.A. Hartmann pelo reconhecimento das músicas vivas. Saint-John Perse, Lorca e Beckett foram os inspiradores de algumas de suas grandes obras líricas {Canto de nascimento, 1958; Bodas de sangue, 1957; Elisabeth Tudor, 1972). Gottfried von Einem, cidadão austríaco nascido na Suíça em 1918, tornou-se famoso desde 1974 com sua ópera A morte de Danton, baseada no drama de Georg
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Büchner e estreada no Festival de Salzburgo daquele ano. A obra, depois de percorrer as cenas líricas do mundo inteiro, tornou-se ópera de repertório. Foi Boris Blacher, seu professor, quem elaborou o libreto da ópera de seu jovem discípulo, cujo talento admirava. Ele também escreveu o libreto de Der Zerrisene em 1964. Gottfried von Einem, essencialmente um dramaturgo, escreveu bastante para o palco (balés e óperas), mas A morte de Danton, seu opus 6, inspirado na peça de Georg Büchner, continua sendo sua obra mais conhecida, juntamente com O processo, sobre o texto de Kafka. Rolf Liebermann, nascido em Zurique em 1910, aluno de Hermann Scherchen, depois seu assistente, homem de grande ação no rádio (Zurique) e na ópera (Hamburgo, Paris) é, como compositor, bem representativo de uma geração que ao atingir a idade adulta voltou-se com curiosidade para horizontes novos: Concerto para jazz-band e orquestra em 1954, Concerto das máquinas em 1964, depois de ter tentado a ópera, com Leonora 40/45 (1952) e Penelope (1954).
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Nesses anos, Dallapiccola era u m ponto de referência, n ã o apenas musical. Foi ele, mais talvez que qualquer outro, quem incansável e conscientemente soldou as relações da m ú s i c a italiana com a cultura musical européia.
GIACINTO SCELSI Scelsi, compositor e poeta, depois de haver praticado a técnica dodecafonista, orientou suas pesquisas, muito influenciadas pelo conhecimento dos músicos asiáticos, para os fenômenos da percepção sonora: "Aquele que não penetra no interior, no âmago do som, pode ser que seja um perfeito artesão, um grande técnico, mas jamais será um verdadeiro artista, um verdadeiro músico." Sua obra mais famosa, de 1959, dá testemunho dessa pesquisa: Quatro fragmentos sobre uma nota só. A aventura profética de Scelsi apaixonou certos compositores da geração seguinte, em especial Gyõrgy Ligeti, que lhe dedicou admiração profunda. Personagem místico, voltado para uma música de certo modo estática, manteve-se voluntariamente na sombra. Embora nascido em 1905, continua até hoje sem ter sido descoberto pelo grande público.
Os italianos LUIGI DALLAPICCOIA Nascidos no mesmo ano (1904), Golfredo Petrassi e Luigi Dallapiccola (1904¬ 1975) são os dois compositores italianos mais importantes de sua geração. Petrassi, mais ligado a Hindemith e a Bartók, só beirou o dodecafonismo tardia e transitoriamente. Dallapiccola tinha outro estofo em matéria de audácia: com Scelsi, seu compatriota e contemporâneo nascido em 1905, foi um dos raros compositores, antes de 1945, a mostrar interesse pelo caminho aberto por Schõnberg e a escrever música dodecafônica serial. Parte de sua infância, passada em Graz, na Áustria, preparou-o especialmente para uma abertura em relação ao desenvolvimento da música alemã. A ópera em um ato Volo di notte (1937-1939), baseada em Vol de nuit [Vôo noturno] de Saint-Exupéry, obra de uma grande elevação espiritual, fez sua reputação. A adesão ao dodecafonismo tornou-se completa, pode-se dizer, com o ciclo das Liriche greche [Líricas gregas] para soprano (1942-1945) e sobretudo com sua segunda ópera 17 prigionero [O prisioneiro, 1944-1948], sobre texto de Vilhers de risle-Adam, partitura que assinala uma presença obsessiva do tema da condição de cativo. De um dodecafonismo cada vez mais rigoroso deu testemunho, a seguir, Job [Jó, 1950], representação sagrada em um ato, os Canti di Uberazione [Cantos de libertação, 1955] para coros e orquestra ou ainda o Concerto per la notte di Natale [Concerto para a noite de Natal, 1956], para orquestra de câmara e soprano. Dallapiccola, que em 1968 escreveu sua terceira ópera, Ulysse [Ulisses], foi um dos compositores mais preocupados com os problemas artísticos e éticos fundamentais. Luciano Berio escreveu em 1981:
GIAN CARLO MENOTTI Pouco mais jovem (nasceu em 1911), Gian Cario Menotti escolheu um caminho mais fácil para obter o reconhecimento púbhco imediato: o da produção musical ligada ao teatro. The Medium [O médium, 1946], The Consul [O cônsul, 1950], ambos de grande eficácia dramática, estão entre suas óperas mais famosas. Menotti é um dos raros compositores que, a exemplo de Gershwin — como este, muitas vezes taxado de músico pouco sério, popular —, fizeram sucesso em Nova York junto ao público da Broadway. É também um dos raros compositores que se interessaram desde cedo em escrever para a mídia (rádio e televisão); citemos, entre outras, sua ópera para a televisão Amahl and the Night Visitors [Amahl e os visitantes da noite, 1951]. Gosta também de escrever óperas para crianças. Ativo em todos os domínios, fundou em 1958 o Festival dos Dois Mundos, em Spoleto.
Os ingleses MICHAEL TIPPETT O londrino Michael Tippett (nascido em 1905, de pai originário da Cornualha) demonstra as mesmas preocupações humanistas que um Hartmann ou um Dallapiccola. Diretor do Morley College (onde ensinou a arte coral do século XVI) até 1951, tornou-se conhecido com o Concerto for Double String Orchestra [Concerto para dupla orquestra de cordas, 1939] e com o oratório antinazista A Child of Our Time [Um filho de nosso tempo, 1941]. Escreveu o libreto desse oratório sob a direção de T. S. Eliot, que ele considerava seu "pai espiritual". Muito diretamente
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engajado na historia de sua época, Tippett, antes da guerra, dirigiu uma orquestra de músicos desempregados. Esteve próximo do trotskismo, depois do Partido Comunista, até tornar-se, em 1940, um conscientious objector. Sensível ao jazz, música dos oprimidos, não conseguia conceber sua obra fora de uma perspectiva humanista. De seu primeiro período criador fazem parte a Sinfonia n°l (1945) e três notáveis quartetos de cordas. Com The Midsummer Marriage [O casamento de verão,1952], sua primeira ópera, ele chegou ao apogeu de seu estilo "linear e lírico". O estilo que desenvolveu em seguida foi sempre de uma grande complexidade rítmica, porém mais vertical e mais dinâmico que antes, inicialmente com sua Sinfonia n° 2 (1957), depois sobretudo com a ópera King Priam [O rei Príamo, 1962] e a cantata The Vision of Saint Augustin [A visão de Santo Agostinho, 1965], que alguns consideram sua obra-prima. A uma terceira ópera, The Knot Garden [O jardim Knot, 1965-1969], sucederam a Sinfonia n" 3 (1972) e a Sonata n° 3 para piano (1973). Uma quarta ópera, The Ice Break [A quebra do gelo] e a Sinfonia n° 4 foram criadas em 1977-1978. Um importante oratório, The Mask of Time [A máscara do tempo] teve sua primeira audição em 1984. Personalidade complexa, autor de obras relativamente pouco numerosas mas sempre significativas, Michael Tippett foi durante muito tempo eclipsado, em seu país e sobretudo no plano internacional, por Benjamin Britten. BENJAMIN BRITTEN
Mais tradicional e principalmente de temperamento mais eclético, Benjamin Britten (1913-1976) soube realizar uma hábil síntese de influências, por vezes contraditórias. Compôs para orquestra (por exemplo, The Young Person's Guide to the Orchestra [Guia do jovem para a orquestra], conhecido também como Variações e fuga sobre um tema de Purcell), para a voz (Illuminations [Iluminações], para tenor e cordas, sobre texto de Rimbaud, sendo que tanto esta obra como a Sinfonia de requiem foram compostas nos Estados Unidos quando Britten aí esteve de 1939 a 1942). No entanto, ninguém põe em dúvida o fato de que as óperas dominam sua produção: não há como negar-lhe um senso eficaz do teatro. De Peter Grimes (1945) a Death in Venice [Morte em Veneza, 1973], baseada em Thomas Mann, passando por The Rape ofLucretia [O estupro de Lucrécia, 1946] e The Turn of the Screw [A volta do parafuso, 1954], inspirada em Henry James, mais de dez óperas foram compostas, algumas das quais — como Curlew River [Rio Curlew, 1967] — influenciadas pelo Nô japonês. Uma delas, Owen Wingrave (1971), foi originariamente concebida para a televisão. Em 1948, Britten foi o fundador do Festival de Aldeburgh, cidade que escolheu para morar e onde estreou, em 1949, süa ópera para crianças Let's Make an Opera [Façamos uma ópera]. Fundou também o English Opera Group, conjunto de ópera de câmara destinado a percorrer a Grã-Bretanha para divulgar suas obras e em
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que ele atuou ao mesmo tempo como diretor artístico, regente de orquestra e compositor. Foi esse grupo que apresentou pela primeira vez em Veneza, durante o Festival de Música Contemporânea, sua ópera The Turn of the Screw. A solidão dentro da sociedade e a transgressão dos tabus são temas psicológicos amplamente desenvolvidos nas obras líricas de Britten (Billy Bud em 1951; Peter Grimes em 1945, que lhe foi encomendada por Kussevitsky, etc.): provavelmente é algo que tem a ver com a homossexualidade declarada de Britten, vivida com dificuldade na Grã-Bretanha de antes da guerra e que deve ter influenciado seu projeto de emigração para os Estados Unidos. Esse grande pacifista voltou, no entanto, à Inglaterra, onde imediatamente o desobrigaram do serviço militar. Vinte anos depois, em 1962, escreveu o War Requiem [Requiem para a guerra] para a consagração da nova catedral de Conventry, destruída pelo conflito mundial. Os poloneses
WITOLD LUTOSLAWSKI
O polonês Witold Lutoslawski, nascido em 1913, foi contemporâneo exato de Britten. Muito influenciado, de início, por Szymanowski, "o primeiro compositor contemporâneo que me abriu as portas desse mundo misterioso que era a linguagem do século XX" em seguida deu preferência aos impressionistas franceses, bem como Bartók, Stravinski e Prokofiev. Concluídos seus estudos, Lutoslawski pretendia estudar na França com a grande pedagoga Nadia Boulanger (1887-1979). A guerra tornou o projeto irrealizável. Depois de ter-se orientado para a politonalidade, como nas Variações sobre um tema de Paganini para dois pianos (1941), e em seguida para um neoclassicismo com tinturas de folclorismo, como na Sinfonia n" 1 (1941-1947), influenciada por Roussel, segundo ele próprio disse, ou em seu Tríptico silesiano para soprano e orquestra (1951), sua linguagem passou por uma forte evolução. Ele se tornou o traço de união entre a tradição da Polônia e a escola atual de seu país. Com a Música fúnebre em memória de Bartók (1958) surge em Lutoslawski uma primeira forma de atonalismo serial. O prólogo e o epílogo dessa obra em quatro partes para orquestra de câmara baseiam-se numa série utilizada em cânone. Aberto a todas as instigações, ele escreveu pouco depois uma obra que se vale do aleatório (Jogos venezianos, 1960), mostrada em primeira audição no Festival de Veneza de 1962. A evolução para a escrita serial prosseguiu com os Três poemas de Henri Michaux pata coro e orquestra (1963). "Reconheço todo o mundo onírico criado por Michaux como muito próximo do meu. Nele, foi o criador de sonhos que me atraiu." A produção tem sido constante desde então. Um Quarteto de cordas (1964); Palavras tecidas para tenor, cordas, harpa, piano e percussão, sobre um poema de Jean-François Chabrun (1965); a Sinfonia n°2 (1967); Livro para orquestra (1968);
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um Concerto para violoncelo (1970) composto por encomenda de Rostropovitch; Prelúdio e fuga para treze instrumentos de cordas (1972); os Espaços do sono paia. barítono e orquestra, sobre poemas de Desnos (1975); um Concerto duplo para orquestra, harpa e oboé (1980) e a Sinfonia n° 3 (1983). Inimigo de todos os tabus, Lutoslawski pregou sempre o direito à abertura mais ampla. Impôs-se como conselheiro e pai espiritual da geração recente de compositores poloneses.
GRAZYNA BACEWICZ Também nascida em 1913, Grazyna Bacewicz morreu em plena força de sua criatividade, em 1969. Violinista virtuose, terminara seus estudos em Paris, na Escola Normal de Música, sob a orientação de Nadia Boulanger. Temperamento vigoroso e generoso, escreveu muito para as cordas; seu Quarteto n° 4 (1950) abre-se para a escrita serial, buscando "um novo rigor de forma, uma nova disciplina mais atraente que a m^ciplina convencional do mundo tonai". Não se deixava mtimidar pelas formas de maior envergadura, como a ópera e o balé, tendo sido justamente um balé (O desejo, 1968, com argumento tirado do Désir attrapé par la queue [Desejo apanhado pela cauda], peça surrealista de Picasso) a última coisa que escreveu.
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Logo depois da guerra, dois fenômenos se produziram, ambos com efeitos decisivos por muito tempo: a irrupção da música serial — que, quase no início, assume as dimensões de uma torrente irresistível —e os primeiros ensaios, mais modestos, de uma busca metódica em direção ao que se denominou música concreta e música eletrônica e, por fim, de eletroacústica. Os dois fenômenos foram quase simultâneos: a abertura do curso de verão de Darmstadt e o livro de René Leibowitz sobre Schõnberg e sua escola inauguraram o primeiro, em 1946; os Études [Estudos, 1948] de Pierre Schaeffer assinalaram o aparecimento do segundo. Passados mais de quarenta anos desses acontecimentos, parece difícil ao historiador da música falar dos dois ao mesmo tempo sem incorrer em confusões desastrosas, razão pela qual retornaremos à "revolução eletroacústica" num capítulo posterior. Mas, ao abrirmos o presente capítulo, é necessário lembrar a concorrência. Tanto mais que, como veremos, muitos compositores que haviam abraçado com fervor o serialismo pós-weberniano dele se afastaram mais cedo ou mais tarde, em maior ou menor grau, recorrendo, em nível maior ou menor, aos recursos da eletroacústica. Não se pode dizer que a divisão entre essas duas modernidades tenha conseguido criar compartimentos sistematicamente estanques. Mas a osmose, quando ocorreu, foi mais a favor da eletroacústica que do serialismo, o que justifica a ordem que aqui adotamos. Voltando ao início da torrente serial, é necessário lembrar em que conjuntura histórica ela se deu. O nazismo havia proscrito muitos tipos de música que declarava decadentes e degenerados; mas em nenhum outro caso a perseguição foi tão encarniçada como contra a Escola de Viena. Era natural que, tendo sido derrubada a "besta imunda" de que fala Brecht, se projetasse sobre Schõnberg, Berg e Webern
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a auréola de mártires do antifascismo e que suas obras — com execução proibida durante anos na Alemanha e em toda a Europa ocupada pelo nazismo — resplandecessem favorecidas por um novo brilho e frescor. Para toda uma jovem geração, havia ali um tesouro à espera de ser libertado e descoberto. Um tesouro que, para a nova Europa surgida do caos e do pesadelo, parecia ser a revelação de uma ordem racional e de um rigor fecundo. Algo como um novo classicismo que romperia com os clichês e as receitas do passado, abrindo novas perspectivas para as arquiteturas formais da composição. Nem Stravinski, nem Bartók, nem Varèse podiam na época assumir uma tal função magistral: eles não tinham a oferecer nem método nem sistema. Mais do que Berg, suspeito de ainda conservar bastante do romantismo, Schõnberg e Webern foram os fundadores do novo classicismo. Não tardou muito para que Webern, menos teórico e mais inventivo na exploração do sistema, se tornasse a estrela polar única daqueles que receberão a denominação de pós-webernianos. Já em fevereiro de 1952, Pierre Boulez trabalhou na eliminação da figura do "pai" com um artigo que teve grande repercussão: "Schõnberg está morto." É verdade que a predileção de Boulez por Webern foi quase imediata. Mas não podemos esquecer que logo no início os primeiros apóstolos do serialismo dodecafonista começaram como evangelistas da Boa Nova segundo Schõnberg. "Fiz uma descoberta que vai garantir a predominância da música alemã pelos próximos cem anos", escreveu Schõnberg em 1921. Logo em seguida à destruição do Reich hitlerista (que se pretendia garantido por nada menos que um milêmo), chegou a criar-se a impressão (ilusória) de que a profecia do músico judeu vienense estava começando a cumprir-se. Na França, o processo serial revelou-se aos jovens compositores por meio de um aluno de Schõnberg e de Webern, René Leibowitz, que organizou um curso particular de iniciação à Escola de Viena. Leibowitz (1913-1972), compositor de origem polonesa, exerceu uma influência considerável nos círculos parisienses do imediato após-guerra; além do mais, registrou seus conhecimentos e reflexões em obras pedagógicas excelentes (as duas primeiras são hoje referências imprescindíveis: Schõnberg et son école [Schõnberg e sua escola] em 1946 e Introduction à la musique de douze sons [Introdução à música de doze sons] em 1949). A partir de 1948, Leibowitz participou também dos cursos de verão internacionais para a música nova no Kranischsteiner Institut de Darmstadt, Alemanha Ocidental, instituídos dois anos antes, em 1946. Em Paris, ô compositor Max Deutsch (1892-1982), de origem austríaca, também ele aluno de Schõnberg, efetuou um trabalho pedagógico de abordagem da música dodecafônica junto a numerosos jovens músicos. No alvorecer da década de 1950, Jean Barraqué, Pierre Boulez, Karlheinz Stockhausen, Bruno Maderna, Luciano Berio, Luigi Nono, Hans Werner Henze e outros cerraram fileiras entusiásticamente com a corrente serial. Em seguida, a maioria desses compositores moderou essa adesão ou introduziu nela modificações significativas.
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Jean Barraqué O único a conservar-se "puro" foi Jean Barraqué (1928-1973), que durante toda a vida não se permitiu ultrapassar as normas dessa técnica rigorosa; ao termo de uma existência que representa uma aventura solitaria excepcional, deixou concluídas apenas seis obras. Aluno da maîtrise de Notre Dame, admirador apaixonado de Beethoven, Schubert, Nietzsche e Debussy — ao qual consagrou uma monografia e um estudo crítico —, era de uma exigência implacável no tocante à técnica da escrita: "Não deve haver nenhum divórcio entre a expressão e a técnica. Todo grande compositor sempre foi um grande técnico." Sua obra visa à grande forma, num sentido arquitetônico; fazia espontaneamente o elogio da "grandiloqüência", um termo que lhe era caro e que ele queria reabilitar: "Nosso século impõe a grandeza e mesmo, digamos, a grandiloqüência." Com base na abordagem serial, ele constrói seu próprio sistema de utilização da série: Séquence [Seqüência, 1950-1955] para vozes e orquestra, e a Sonata para piano (1950-1952) que ele próprio gostava de relacionar com as últimas sonatas de Beethoven (em especial, com a Opus 106), desenvolveram o princípio das séries derivadas a que deu o nome de "séries proliferantes". A m ú s i c a procede rigorosamente pela transformação progressiva de seus próprios elementos numa invenção sempre vigilante, cuja aparente espontaneidade e livre expansão permitem u m a espécie de improviso controlado.
Jean Barraqué morreu antes de realizar sua grande obra "total", destinada quase que por definição a não se concluir: La Mort de Virgile [A morte de Virgílio], concebida a partir de 1955 para formações múltiplas e complexas que reuniam solistas, conjuntos vocais, coros, grupos de câmara, diversas orquestras, tudo apoiado em técnicas eletroacústicas. O título dessa vasta arquitetura compósita é o mesmo do livro de Hermann Broch que, tratando da Eneida de Virgílio, desenvolve uma estética e uma ética do inconcluso. Au-delà du hasard [Para além do acaso, 1959], Chant après chant [Canto após canto, 1966], Le Temps reconstitué [O tempo reconstituído, 1968] pertencem à grande obra A morte de Virgílio. O Concerto para clarineta (1968) situa-se à margem desse conjunto. Les Portiques de feu [Os pórticos de fogo], os Hymnes à Plotia, Lysanias, prolongamentos previstos para A morte de Virgílio, ficaram inacabados. O próprio compositor dizia pouco antes de morrer: "Toda grande obra é uma obra voltada para a morte, sem deixar de assumir a criação da vida, o que me parece um ciclo inteiramente normal e, no plano mítico, perfeitamemte válido." Barraqué, romântico dos tempos modernos, morreu no momento em que, depois de anos muito difíceis, devia manifestar-se o reconhecimento de sua criação por parte da sociedade. A Ópera de Berlim encomendara-lhe uma obra e ele projetava escrever para o palco L'Homme couché [O homem deitado].
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Os serialistas franceses da primeira hora De temperamento generoso, Jean-Louis Martinet (nascido em 1912) também se iniciou na música serial por orientação de René Leibowitz, depois de já ter volumosa bagagem como compositor; mas, interessado em atingir um público mais vasto, bem depressa tentou uma síntese de linguagem que o aproximasse mais de Bartók. O poema sinfônico Orphée [Orfeu, 1944], Sept poèmes de René Char [Sete poemas de René Char, 1951] e sobretudo os fragmentos sinfônicos Prométhée [Prometeu, 1947], que em sua época deram provas de um belo vigor de concepção, figuram entre as obras mais significativas por ele produzidas. Nascido em 1924, também discípulo de René Leibowitz, Serge Nigg foi dos primeiros compositores na França a utilizar espontaneamente a técnica serial em suas Variations pour piano et dix instruments [Variações para piano e dez instrumentos, 1947] e Deux pièces pour piano [Duas peças para piano, 1947]. Antes, como aluno de Messiaen, havia escrito Timour [Timor, 1944] e um Concerto para cordas, piano e percussões (1947). Fundador, com Louis Durey e Charles Koechlin, da Associação dos Músicos Progressistas (1949), Serge Nigg iria desviar-se do serialismo para defender uma música mais envolvida com a história de seu tempo (Pour un poète captif'[Para um poeta cativo, 1950] tem sua fonte na obra de Nazim Hikmet). Retornou, então, à tonalidade. Por fim, fora de qualquer grupo estético ou ideológico, criou para si um estilo inteiramente pessoal, atonal, no qual o desejo de expressividade e dramaticidade se exprime numa escrita fina, nervosa, por vezes violenta, e em que abundam as referências poéticas e plásticas: o Concerto para violino e orquestra (1957), a Sinfonia Jérôme Bosch (1960), o Chant du dépossédé [Canto do desapossado, 1964] sobre notas do Tombeau d'Anatole [Homenagem a Anatole] de Mallarmé, Visage d'Axel [Face de Axel] que se inspira em Villiers de l'Isle-Adam (1967), Fulgur que põe em música o Héliogabale de Artaud, Million d'oiseaux d'or [Um milhão de pássaros de ouro], título que ele foi buscar no Bateau ivre [Barco ébrio] de Rimbaud (1980). Depois de haver explorado brilhantemente a linguagem sinfônica, Serge Nigg voltou-se pela primeira vez para o quarteto de cordas. Tecnicamente, ele define seu Quatuor [Quarteto, 1983] como uma "organização bem compacta do total cromático cuja base é material comum à obra inteira e que lhe assegura a unidade". Segue-se uma obra para instrumento solista, sua Sonata n° 3 para piano (1984) em que, "como de hábito, a escolha de intervalos cromáticos serve de base estrutural e determina a unidade harmônica e melódica da obra". Maurice Le Roux assistiu às aulas de Messiaen no Conservatório de Paris como colega de classe de Pierre Boulez. Um ano mais velho que Serge Nigg (é de 1923), foi, como este, um dos primeiros compositores a trabalhar com a técnica serial:
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a Invention à deux voix [Invenção a duas vozes] data de 1948. Au Pays de la magie [No reino da magia, 1951 ], sobre poemas de Henri Michaux, e sobretudo Le Cercle des métamorphoses [O círculo das metamorfoses, 1953], que causou escândalo em sua primeira audição, figuram entre as partituras importantes das primeiras expressões seriais na França. Como regente, Maurice Le Roux foi um ardoroso propagandista da música de seu tempo, tendo escrito muitos textos sobre o assunto. Pierre Boulez Nascido em 1925, Pierre Boulez é o mais ilustre dos franceses que se lançaram a compor no momento da descoberta da Escola de Viena. Levou o desenvolvimento da lógica serial a seus últimos limites. Terminados seus estudos secundários, hesitou entre a matemática e a música. Escolheu a música (contra a opção de preparar-se para a Escola Pohtécnica) mas conservou o amor pela matemática. Ainda aluno de Messiaen e de Leibowitz, escreveu suas primeiras obras: em 1946, Sonatina para flauta e piano, Sonata n° 1 para piano, Visage nuptial [Rosto nupcial]; em 1947, Soleil des eaux [Sol das águas]; nestas duas últimas obras, que recorrem em grande parte à voz, Boulez utilizou poemas de René Char, de quem apreciava a força das imagens; voltou à mesma fonte, mais tarde, para compor Le Marteau sans maître [O martelo sem senhor, 1954]. Nessa época dos seus vinte anos, Pierre Boulez foi contratado por Jean-Louis Barrault para exercer a função de diretor da música de cena do teatro do Odeon. "Eriçado e sedutor como um gato novo (...), estava permanentemente em carne viva, entranhas à mostra, as garras todas de fora, possuído por forças interiores", recorda Barrault. O teatro deu-lhe a oportunidade de formar-se no ofício de regente. Em 1953, Pierre Boulez fundou os Concertos do Petit Marigny, que em 1954 se tornaram o Domaine Musical, quando se mudaram para o Grand Théâtre Marigny; esse emprendimento, tornado possível graças à hospitalidade de JeanLouis Barrault, assinalou um dos dados de temperamento característicos de Pierre Boulez: sua necessidade de agir, sua vontade de eficácia. A vocação do Domaine Musical é clara: dar a conhecer a música contemporânea — especialmente a música da Escola de Viena — ao público parisiense. Pierre Boulez permaneceu em sua direção até 1967. Gilbert Amy foi seu sucessor até a dissolução do Domaine em 1973. Além das obras da Escola de Viena, o Domaine apresentou, ao longo de vinte anos, cerca de 250 obras novas de uns 75 jovens compositores de países diversos. A direção do Domaine Musical abriu para Boulez o caminho da regência; durante uma década, ele fez nesse campo uma carreña brilhante e internacional (notadamente à frente da Filarmônica de Nova York e da orquestra da BBC), consagrándole a esse novo ofício de maneira quase exclusiva até 1977, depois de ter
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saído violentamente da França em 1966, azedado com a recusa que Malraux opôs às propostas do plano de reestruturação da vida musical francesa, que ele elaborara junto com Jean Vilar e Maurice Béjart. Instigado pela obra de Messiaen Mode de valeurs et d'intensités [Modo de valores e de intensidades], a estender o princípio serial a todos os parâmetros do som — altura, duração, inensidade e timbre —, Boulez também fez da série o motor gerador das estruturas formais. Paralelamente, prosseguiu no caminho aberto por Debussy na direção de uma pesquisa com sonoridades novas: a formação instrumental do Marteau sans maître demonstra uma vontade de romper com as organizações sonoras tradicionais do Ocidente. Como ele mesmo escreveu, o xilofone transpõe o balafo (marimba do Senegal) africano, o vibrafone se reporta ao g a m e l ã o balinês, a guitarra recorda o koto japonês, (...) sem que, entretanto, nem a estilística nem o próprio emprego dos instrumentos estejam ligados de forma alguma às tradições dessas diferentes civilizações musicais.
Na sua relação da voz com o conjunto instrumental, Le Marteau sans maître tem o propósito de levar adiante a pesquisa de Schõnberg em Pierrot lunaire [Pierrô lunar]. Um pouco mais tarde, com Pli selon pli (1957-1960), em que Boulez se serve de textos de Mallarmé, outra fonte literária importante de sua criação, ele estabeleceu entre o soprano e a orquestra esse mesmo tipo de pesquisa numa relação nova entre o texto poético e a música, indo "da irrigação ao amálgama". Depois da Sonata n° 2 para piano (1948), do Livre pour quatuor [Livro para quarteto, 1949], do primeiro livro das Structures pour deux pianos [Estruturas para dois pianos, 1952] — que, originariamente, tinha um título tomado emprestado a um quadro de Paul Klee, A la limite du pays fertile [Na fronteira do país fértil] —, três obras fundamentais da era serial, Pierre Boulez abriu-se a um novo domínio de investigação e colocou o problema das relações entre o compositor e seu intérprete; introduziu na forma de sua Sonata n° 3 para piano (1957) a noção de aléa [aleatorio], deixando à livre escolha do intérprete a disposição de certos elementos móveis. Mais tarde, tentado de novo pela aparelhagem eletroacústica, com que já se defrontara nos anos 50 (Poésie pour pouvoir [Poesia para poder], que faz referência a Henri Michaux, 1958), ele procurou estabelecer em Explosante-Fixe (1972), para oito instrumentos e halofone, uma reciprocidade de influência de um instrumento a outro. O princípio combinatório é o mesmo que havia presidido à concepção de Domaines [Domínios, 1968], onde uma clarineta suscita o diálogo com diversos grupos instrumentais. Em 1972, Pierre Boulez aceitou a proposta do presidente Georges Pompidou para fundar e dirigir um instituto onde lhe fosse possível empreender e coordenar as pesquisas que insistia em declarar necessárias.
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A pesquisa é a forma mais resistente e, por vezes, a mais louca, da utopia. (...) É o que me permite, é o que me impele irresistivelmente a sonhar minha revolução, pelo menos tanto quanto a construí-la.
Esse instituto, ativo desde 1975, é o Institut de Recherche et de Coordination Acoustique/Musique (IRCAM), instalado em Paris no Centro Pompidou. Referindo-se ao seu novo retorno a Paris, disse Boulez: H á dez anos, quase quinze, o tempo que tenho para meus trabalhos pessoais é pequeno, a regência tendo-me envolvido em compromissos que me afastavam da c o m p o s i ç ã o ; hoje quero voltar ao que é minha p r e o c u p a ç ã o essencial, a c o m p o s i ç ã o .
De fato, suas novas obras rarearam, em conseqüência da importância assumida por suas funções como regente. Mesmo assim, houve "retomadas" e "extensões" de obras mais antigas, como o Livre pour cordes [Livro para cordas, 1968], baseado no Livre pour quatuor [Livro para quarteto, 1949], Éclats multiples [Estilhaços múltiplos, 1970], oriundos de Éclat (1964), para quinze instrumentos, ou Notations [Notações, 1980], remanejamento de peças inéditas para piano, datadas de 1945; e houve algumas obras inteiramente novas, como o Rituel in memoriam Maderna (1975), para orquestra, ou como Cummings ist der Dichter (1970), partitura construída em cima de textos do poeta americano e.e. cummings, que o fez descobrir John Cage e foi o primeiro elo de uma obra de muito maior envergadura. Não se pense, no entanto, que o ofício de regente não tenha contribuído com nada para sua obra pessoal; muito pelo contrário, como demonstra seu próprio testemunho: As relações entre o i n d i v í d u o e a coletividade n u m grupo de intérpretes são algo que se pode resolver com s o l u ç õ e s muito mais flexíveis, mais eficazes e mais sutis que aquelas de que se havia cogitado até então: a simples obediência a u m maestro que, de u m ponto de vista central, coordena a atividade de certo n ú m e r o de m ú s i c o s . Foi a grande experiência por que passei e que, me parece, influenciou todas as minhas obras seguintes.
Concebido e realizado em função das possibilidades técnicas que passara a oferecer o IRCAM (notadamente um novo computador musical de funcionamento muito rápido, a máquina denominada 4 X, inventada e realizada por Giuseppe Di Giugno e sua equipe), Répons [Responsório, 1981-1984] oferece, segundo Boulez, uma alternância de execução coletiva e execução individual. (...) O tratamento eletroacústico que se aplica aos solistas (sons naturais, sons amplificados, sons transformados) torna mais complexo o jogo de "respostas" entre os sons puros do conjunto instrumental e os sons artificiais das fitas magnéticas.
Répons (ainda que deva ser considerado inacabado em seu estado atual, ao escrever-se este livro) parece resumir todo o processo lógico e racionalmente controlado da criação de Pierre Boulez, o qual entretanto só faz sentido por ter
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em sua base um ardente desejo (sua utopia) de prospecção e de descobrimentos de novas terras desconhecidas. Invertendo a fórmula de Rimbaud, Boulez afirma: "Trata-se de chegar ao desconhecido pelo disciplinamento de todos os sentidos. O músico faz-se vidente por um longo, imenso e refletido disciplinamento de todos os sentidos." Como se vê, Pierre Boulez tinha, além do mais, uma atração pela fórmula, pela escrita literária. Basta 1er seus textos, reflexões de um compositor de hoje sobre o acervo de experiência musical que adquiriu—Penser la musique aujourd'hui [Pensar a música hoje, 1963], Relevés d'apprenti [Notas de aprendiz, 1966], Par volonté et par hasard [Por vontade própria e por acaso, 1975], Points de repère [Pontos de referência, 1981] — para perceber que Pierre Boulez é, ao mesmo tempo, um teórico notável e um excelente escritor. Bernd Alois Zimmermann "Sou o mais velho dos jovens músicos", tinha costume de dizer, não sem ironia, Bernd Alois Zimmermann. Se por "jovem músico" ele entendia alguém que, ao findar a Segunda Guerra Mundial, fora sensível à Escola de Viena e dela recebera o impulso para seu próprio trabalho como compositor, não resta dúvida de que, nascido em 1918, ele era mais velho em relação à fabulosa geração de 1925 (Boulez, Stockhausen, Nono, Berio, etc). Mas igualava-se aos companheiros mais novos, como descobridor — que foi — da Escola de Viena, como participante das sessões de Darmstadt e como aluno de René Leibowitz. Renano, tal como Stockhausen, toda sua vida se desenrolou em torno de Colônia, à sombra daqueles dois compositores, seus compatriotas, um e outro com caminhos muito diversos na música, Stockhausen e Henze. Bernd Alois Zimmermann pôs fim à sua existência em agosto de 1970, aos 52 anos de idade. Dias antes, havia concluído uma "ação eclesiástica" (baseada num texto bíblico, para recitante, solista e orquestra) com a citação do coral de Bach Es istgenug [Já basta]. Profundamente cristão, sensível à história do mundo como à da sociedade contemporânea, pessimista por natureza, estava aberto a todas as sugestões em sua arte e recusava-se com energia a ficar limitado a uma única técnica. Às vezes, afirmou essa atitude em gestos que pareciam paradoxais: é o caso de seu Concerto para oboé, de 1952, uma obra serial "em homenagem a Igor Stravinski". Com a curiosidade voltada para toda música nova, escreveu em 1954 um Concerto para trómpete (cujo título verdadeiro é Nobody Knows the Trouble I've Seen [Ninguém sabe os tormentos que conheci]), uma homenagem ao jazz e ao negro-spiritual. Nos dez últimos anos de sua vida, Zimmermann orientou-se para uma música que ele definia como "pluralista". Ou seja, aceitou a superposição de estilos diferentes, tentativa que bem demonstra seu desejo de dominar o tempo e fazê-lo parar segundo um conceito que formula como "a forma esférica do tempo".
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Sua grande ópera, Die Soldaten [Os soldados], terminada em 1960, só foi encenada cinco anos mais tarde e lhe assegurou a fama. Polêmica e violenta, a ópera, inspirada no drama de Reinhard Lenz, poeta do Sturm und Drang, apresenta um perfeito e espetacular exemplo do pluralismo de Zimmermann. Sobre ela, escreveu Harms Zender: Timbre rico, brilhante em seu virtuosismo, a que se juntam ascese, despojamento, ortodoxia serial e citação clássica, jazz e ruídos concretos gravados em fita, (...) é justamente a assimetria formal do conjunto e a interpenetração dos diversos campos estilísticos que fazem a força dessa obra.
Citemos ainda Contrastes (1953), As ceias do rei Ubu (1968), Canto di speranza (1952-1957), cantata para violoncelo inspirada em Ezra Pound, Concerto para violoncelo (1966) em forma de pas de trois, Requiem para um jovem poeta (1969) e a curiosa Ode à liberdade [ou Ode a Eleutéria, ou Die Befristeten, 1967], em forma de dança macabra, para quinteto de jazz. Hans Werner Henze Nascido em 1926, Hans Werner Henze conheceu uma vida mais fácil e uma fama muito mais imediata do que o companheiro Zimmermann. Depois de estudos feitos em Heidelberg, tornou-se aluno, em Paris, de Darius Milhaud e de René Leibowitz, que reencontrou em Darmstadt. No fervor de sua descoberta dos músicos da Escola de Viena, chegou a converter à técnica serial seu próprio professor, o notável pedagogo Wolfgang Former. No teatro — e em toda forma musical que tivesse a ver com o teatro — residia o interesse fundamental de Henze, porque ele correspondia mais intimamente à sua vontade de comunicação com um grande público. "Nunca será demais o esforço que eu faça para escrever com simplicidade", ele disse aos estudantes que o interrogavam. Henze, autor de seis sinfonias (1947-1968), de numerosas obras orquestrais e de câmara, é no entanto, antes de mais nada, um músico do palco. "Minhas óperas representam um ponto máximo de concentração de minha capacidade de expressão. O teatro lírico parece-me o meio mais completo para transnfitir o que tenho a dizer a um vasto público." Sua vontade de engajamento tornou-o na música o paralelo de Brecht na poesia. O compositor não repelia essa aproximação, particularmente sensível à intenção didática de algumas de suas obras, por exemplo em suas Moralitaten concebidas como Lehrstücken de Brecht, ou em El cimarrón (ou de como um escravo pode tornar-se um líder revolucionário). As preocupações serialísticas rapidamente se desvaneceram nessa busca da simplicidade estilística, para grande indignação dos compositores seus confrades e contemporâneos, que condenaram o rumo que ele escolheu. Talentoso, bem dotado, generoso e sincero, passou também a imagem de um compositor pouco exigente.
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Entre seus grandes sucessos: Boulevard Solitude [Boulevard Solidão, 1951], ópera surrealista sobre o tema de Manon Lescaut, DerPrinz von Hamburg [O príncipe von Homburgo, 1958], Elegia para jovens amantes (1961), óperas inspiradas em Heist e em Auden; no dominio das obras corais, BeingBeautous [Ser bonito], com base nas Illuminations [Iluminações] de Rimbaud (1963), As musas sicilianas (1966), A jangada da "Medusa" (1968), homenagem a Che Guevara, e A gata inglesa (1980-1982), comédia de costumes inspirada em Balzac. Karlheinz Stockhausen Renano como Bernd Alois Zimmermann, dois anos mais novo que Hans Werner Henze, Karlheinz Stockhausen (nascido em 1928 nas cercanias de Colônia) é a personalidade mais forte da música contemporânea em seu país e, segundo disse Claude Rostand em 1970, "com Pierre Boulez, é uma das duasfigurasde proa do movimento musical formado em seguida à Segunda Guerra Mundial". Pode ser visto como um "compositor-encrazilhada" de meados do século XX, a tal ponto interessou-se sucessivamente por todas as correntes principais surgidas em nossa época. Se fosse possível sugerir que Pierre Boulez, em sua busca permanente da forma, representa um certo espírito "clássico" — com todas as reservas que suscita essa sugestão —, Stockhausen representaria certamente uma versão moderna do barroco alemão em seu aspecto explosivo e sua projeção no espaço, características que encontramos na aventura da criação de Stockhausen, flamejante até o misticismo. Podem-se imaginar infância e adolescência mais trágicas que as do jovem Karlheinz? A mãe neurasténica assassinada, o pai desaparecido na tempestade da guerra, a mais terrível das misérias... Eu sou, ao que se diz, um "artista bem sucedido". Pertenço ao establishment e, claro, sou "de direita". Que besteira! Quer dizer então que não serviu para nada terem vindo buscar minha mãe, quando eu mal sabia falar, para assassiná-la por decreto de Estado, apenas porque ela representava uma boca inútil em tempos de guerra? Quer dizer que não serviu para nada meu pai ter morrido depois de lutar no exército durante seis anos, e ter morrido a morte que se diz ser a dos heróis? Para nada apanhei, quando criança, de todos os estranhos imagináveis, para nada vivi, aos dezesseis anos, dia após dia, num hospital do front, as crueldades mais inumanas, a morte patética de milhares de feridos graves, de queimados pelo fósforo, de corpos mutilados de forma atroz? Então não serviu para nada ver jovens de minha idade, velhos, civis e supostos desertores pendurados nos fios telefônicos? Ter-me acocorado nos abrigos subterrâneos durante anos, ter respirado a podridão de 30 mil, 40 mil, 50 mil cadáveres nas cidades arrasadas? Não serviu para nada ter sido, sucessivamente, trabalhador não qualificado, operário de fábrica, ladrão de batatas e de carvão, depois por mais cinco anos e todas as noites pianista de cabaré para traficantes do mercado negro e soldados da ocupação? Não serviu para nada, desde que terminou essa grande guerra, ter vivido o restabelecimento repugnante e voraz do milagre econômico, o imenso esquecimento, o medo da bomba atômica, as
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expulsões, as torturas, a opressão exercida sobre tantos países por tantas guerras limitadas, e ter vivido tudo isso sem poder opor-lhe mais que a impotência? Arrumado na vida... bem-sucedido... Que querem dizer com isso, façam-me o favor!?
O interesse desse texto, redigido em 1971, não é anedótico. Ele permite compreender como o jovem Stockhausen compreendeu — e a guerra não fica fora disso — que "chegamos a um período de mutação para o homem". Isso esclarece o projeto do Stockhausen maduro: Que pode um compositor fazer de melhor do que criar universos musicais que sejam mais que um simples reflexo da humanidade contemporânea tal como ela é, que manifestem a visão de um mundo melhor, universos musicais em que os sons, os fragmentos, os objets trouvés se reconciliem uns com os outros para realizarem, todos juntos, esse Mundo Onico, o único capaz de ir ao encontro da missão divina da Unidade? (...) Conheço esse caminho infinitamente lento que leva do homem inconsciente ao homem consciente, do animal que está em nós até o ser iluminado que sabe por que vive e a que aspira. É bom que se saiba que minha música tem laços diretos com essa evolução.
Depois dos estudos musicais em Colônia, Stockhausen foi a Paris (1952-1953); já era autor de muitas partituras {Kreuzspiel em 1951, Schlagtrio e Punkte em 1952). Em Paris, foi aluno de Darius Milhaud e, sobretudo, de Messiaen, fez contato com o grupo de música concreta da Rádio e Televisão Francesa e tornou-se amigo de Pierre Boulez. Desde 1951, a obra de Messiaen, Mode de valeurs et d'intensités, revelada em Darmstadt, lhe serviu de modelo para o tipo de composição serial de seus primeiros trabalhos. Mas Stockhausen renunciou logo à técnica serial para lançar-se em itinerários audaciosos e variados. "Sou muito curioso por natureza; o que não me é familiar me atrai", disse mais tarde. No domínio da eletroacústica — Stockhausen assumiu em 1953 o cargo de diretor do estúdio da Rádio Colônia — suas pesquisas, manifestadas notadamente em obras como Gesange der Jünglinge in Feuerofen [Canto dos adolescentes na fornalha, 1956] ou Kontakt [Contato, 1960], determinaram novas orientações para uma linguagem sonora em gestação. O Canto dos adolescentes estabelecia a relação entre sons eletrônicos e a voz de um garoto. Superpus essa voz para com ela fazer as partes de um coro de crianças, e todas as alturas de sons estavam calculadas para compor escalas não cromáticas. Era a primeira vez em que se podia abordar um mundo novo onde estão misturados o mundo tradicional da música vocal e o mundo da música eletrônica.
O Canto dos adolescentes tornou-se logo obra de referência. No tocante à escrita de Stockhausen, é interessante acompanhá-la etapa por etapa ao longo de seus Klavierstücke, onze peças para piano compostas de 1952 a 1956, nas quais faz experimentos com o andamento, a duração, o aleatório, etc. A peça XI, composta em 1956 (as peças IX e X foram terminadas em seguida a ela), é a mais famosa do conjunto. Assim escreveu A. Boucourechliev:
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É das primeiras obras que p r o p õ e m u m novo conceito da forma musical — o de forma aberta, variável. Dezenove estruturas acham-se dispostas n u m a folha de formato bem grande. O pianista deve tocá-las numa ordem deixada ao acaso — logo, nunca a mesma de uma execução para outra (e de u m intérprete para outro). H á indicações de andamento, intensidade, modo de ataque ao final de cada estrutura, aplicáveis à estrutura subseqüente. (...) Assim que o olhar do pianista se fixa pela terceira vez sobre a mesma estrutura, a obra está concluída.
Como o Canto dos adolescentes, o Klavierstück n° XI tornou-se referência obrigatória (da mesma forma e pela mesma razão que a Sonata n° 3 para piano de Pierre Boulez, ligeiramente mais tardia). O tempo musical é também uma das preocupações fundamentais de Stockhausen. Em Zeitmasze (1956), para pequeno conjunto instrumental, os intérpretes tocam simultaneamente em andamentos diferentes, uns acelerando no momento em que outros retardam a marcha. Na orquestra, é o espaço que comanda as estruturas de Gruppen (1956), definidas por seu autor como uma "estrutura temporal e espacial de timbres": A separação espacial dos três grupos orquestrais resultava antes de mais nada da superp o s i ç ã o de muitas camadas temporais executadas em andamentos diferentes, o que teria sido impossível de u m a só orquestra tocar. Isso levou a u m a c o n c e p ç ã o inteiramente nova da m ú s i c a instrumental no espaço: o processo completo dessa m ú s i c a foi co-determinado pelas disposições espaciais, pela direção e pelo movimento do som como no Canto dos adolescentes.
Idêntica preocupação de espacializar preside à elaboração de obras como Momente [Momento, 1962] para soprano, quatro conjuntos vocais e treze instrumentistas, ou Mixtur (1964). Nesta última obra, além do mais, os timbres dos instrumentos são transformados "ao vivo" por aparelhos eletrônicos chamados moduladores em anéis. Desse modo, disse Stockhausen, uma c o m p o s i ç ã o diferenciada de timbres, tal como até agora eu s ó havia podido realizar no d o m í n i o da m ú s i c a eletrônica, torna-se possível com a utilização de instrumentos tradicionais. (...) U m novo desenvolvimento parece-me daqui por diante aberto à m ú sica instrumental, em c o n s e q ü ê n c i a do fato de suas qualidades insubstituíveis — em primeiro lugar, sua variabilidade histórica, sua "vida" — combinarem-se com as aquisições da m ú s i c a eletrônica numa nova unidade.
Hymnen (1966-1969) mistura música eletrônica, música concreta e instrumentistas em torno dos hinos nacionais de todos os países. Stockhausen explicou:
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Hymnen comporta quatro "regiões", a primeira das quais com dois centros: a Internacional e a Marselhesa. A obra é dedicada a Pierre Boulez. Stockhausen, que sempre dedicou grande parte de seu tempo ao ensino, estimulou numerosos discípulos. Em 1964, fundou um pequeno grupo de intérpretes voltados para a prática tanto de música eletrônica como instrumental. Seus cursos no exterior levaram-no até a índia e Bali, cujas civilizações lhe causaram profunda impressão e suscitaram obras marcadas pelo misticismo — como Inori (1973¬ 1974), para dois sofistas e grande orquestra, a que Stockhausen deu o subtítulo de "Adoração". Depois de haver atravessado em 1968 uma grave crise pessoal que o conduziu, diz ele, às portas da morte e do suicídio, Stockhausen forjou para si uma nova filosofia, "supra-religiosa". Em 1970, durante 183 dias e à razão de cinco horas e meia por dia, executou suas próprias obras com vinte solistas de diferentes países e todos os recursos da eletrônica no auditório do pavilhão alemão na Exposição Universal de Osaka. Segundo as estatísticas japonesas, cerca de 5 milhões de ouvintes entraram em contato, nessa ocasião, com a música de Stockhausen. É o caso de ver-se aí uma relação de causa e efeito? De qualquer modo, a intenção cósmica se desenvolve na criação de Stockhausen. Sternklang, em 1971, para ser tocada à noite e ao ar livre, é uma música sagrada "que exige do ouvinte concentração e imersão no todo cósmico". Trans, para orquestra, ainda de 1971, pretende ser uma obra metafísica — nascida, aliás, diretamente de um sonho do compositor. Desde fins dos anos 70, o gosto proverbial de Stockhausen por mudar de estilo, muitas vezes comparado ao de Picasso, e que já o levou a extremos entre música não escrita (período intuitivo, em que a partitura se reduzia a umas poucas linhas de texto incitativo) e música hiperdetenninada e calculada (como a de Mantra, para dois pianistas, de 1970), estabilizou-se num certo número de projetos de enorme envergadura, que unem a mística, os números e um simbolismo muito pessoal. Tierkreis (1975-1976), Sirius (1975-1976) — que se baseia em doze melodias do zodíaco e pretende ser uma mensagem lançada ao cosmo — e, finalmente, a ópera gigantesca Licht [Luz], que pretendia terminar em quinze anos e que se anunciava mais longa do que a Tetralogía de Wagner (a execução completa devia durar uma semana; dois dos sete dias já estão concluídos no momento em que fazemos este registro: Donnerstag e Samstag), são alguns dos monumentos dessa última tendência, marcada pela preocupação de passar uma mensagem de comunicação cósmica numa linguagem teatral carregada de simbolismo e de intenções ocultas. A propósito de Sirius, ele confidenciou:
Eles s ã o carregados com tempo, com história — com passado, presente e futuro. N u m a é p o c a em que de bom grado confundimos universalidade e uniformidade, eles d ã o ê n -
Minha m ú s i c a n ã o traz u m a mensagem, mas deve ser utilizada por aqueles que queiram
fase à subjetividade dos povos. É indispensável distinguir a subjetividade — e a intera-
superar-se para atingir u m estágio em que eles sejam idênticos a essa música; então eles
ção de diversos temas musicais — da separação e do isolamento individualista. A com-
p o d e r ã o experimentar tudo o que acontece.
p o s i ç ã o Hymnen n ã o é uma colagem.
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Ele acrescentou: "Componho novas obras, mas ainda não estou lá onde minha música está." Stockhausen publicou quatro volumes de seus próprios textos (1963, 1964, 1970 e 1978). A partir de 1978, Stockhausen compôs aos poucos uma ópera, Luz, concebida para durar uma semana. ** *
Naturalmente, no universo germânico posterior à Segunda Guerra Mundial, a história da música não pode limitar-se às expressões de três personalidades notáveis. A criação dos cursos de verão em Darmstadt, que durante anos foram dirigidos por Wolfgang Steinecke (1910-1961), alcançou grande repercussão internacional (donde seu enorme interesse). Com a exceção de Stockhausen, os músicos da Alemanha e da Áustria (embora ali tenha nascido a "Escola de Viena") talvez não tenham sido os pilares mais importantes sobre os quais passou a repousar a difusão das novas idéias. Mas seria injusto esquecer aqui os papéis assumidos após a guerra por Giselher Klebe (nascido em 1925) na Alemanha, Klaus Huber (nascido em 1924) na Suíça alemã e Friedrich Cerha (nascido em 1926) na Áustria, personalidades eminentes e compositores engajados nos rumos da nova música. O mesmo se deu na ex-República Democrática da Alemanha, onde o compositor Rudolf Wagner-Regeny (1903-1969), alemão de origem romena, formou seu aluno Paul Heinz Dittrich (nascido em 1930), a partir de 1958, na escuta e na leitura das obras dos "três vienenses" e na dos jovens compositores dos anos 50. P. H. Dittrich tornou-se o mais importante expoente da música avançada em seu país. Bruno Maderna Na Itália, os "estrondosos anos 50", segundo a vigorosa expressão de Luciano Berio, ordenaram-se numa trilogia indissociável: Bruno Maderna (1920-1973), Luigi Nono (nascido em 1924) e Luciano Berio (nascido em 1925). Nos dois primeiros, os venezianos Maderna e Nono, os anos de formação foram marcados pela forte presença, à frente do Conservatório de Veneza, no período de 1939 a 1952, de um pedagogo notável (além de compositor e musicólogo), com abertura de espírito igualmente extraordinária: Gian Francesco Malipiero (1882-1973), uma das personalidades mais representativas da vida musical italiana na primeira metade do século XX. "Em 1953, Stockhausen era o pivô técnico dos Ferien Kurse [de Darmstadt], Pousseur constituía seu reservatório especulativo, Boulez, o espírito analítico, e Maderna, o pai benevolente" (Luciano Berio). "Em termos físicos, Bruno tinha o
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aspecto de um pequeno paquiderme. Mas, paradoxalmente, aquela massa bonachona parecia ser de uma leveza extraordinária. Tudo nele era só inteligência, finura, humor e fantasia" (Pierre Boulez). A personalidade de Bruno Maderna, transbordante de vida, granjeou-lhe a simpatia e a amizade de seus colegas compositores. Menino prodígio, ele começara a ganhar a vida, já aos seis anos de idade, tocando violino nos bares; aos onze, fizera seu primeiro concerto como regente de orquestra nas praças de Verona. Ao terminar seus estudos (em Veneza, Milão, Roma e Siena), voltara a Veneza para aprimorar a composição com Malipiero e, paralelamente, aperfeiçoar a regência orquestral com Hermann Scherchen (1891¬ 1966). Na Itália, Maderna foi o iniciador do movimento pós-weberniano. Nono, de quem foi professor por um breve período, e Berio, a quem só veio a conhecer em 1953, não esconderam a influência que receberam dele. Bruno Maderna foi um dos primeiros compositores a associar a música em fita magnética com a música instrumental, ao se juntar a Berio, em 1956, no Studio di Finologia Musicale que este acabara de fundar. Retomou então uma obra escrita anteriormente, Musica su due dimensioni, para lhe dar nova versão, para flauta de fita magnética (1957). Em pouco tempo, ampliou o campo de sua investigação de modo a abranger a arte lírica, com Hyperion (1964), baseado em Hõlderlin. Tal como Pierre Boulez, Bruno Maderna afirmou-se muito depressa como um dos melhores regentes de sua geração. Receptivo à música de todas as épocas, fez questão de fazer reviverem as músicas do passado (Monteverdi, Josquin Des Prés, Rameau), bem como de dar vida à do presente, da qual foi um dos melhores propagandistas. Inimigo de todos os dogmas, não sentía nenhuma ruptura entre o passado musical e o presente contemporâneo. Assim, pôde ministrar (no Conservatorio de Roterdam, em 1968) uma série de cursos sobre "as relações entre a música do humanismo e do Renascimento e a música contemporânea". Sua carreira de regente prejudicou sua obra como compositor. Maderna abordou a música aleatória, que lhe parecia interessante por seu princípio de uma nova liberdade; dessa opção decorreram Quadrivium (1969), para quatro percussionistas e quatro grupos orquestrais, onde a liberdade da execução fica a critério do regente, e sobretudo o Terceiro concerto para oboé, sua última obra (1973), na qual o regente ou os instrumentistas servem-se a seu critério de um reservatório de materiais sonoros, organizados por famílias de timbres. No fim de sua partitura, Maderna escreveu: "Nesse clima, o autor prevê e espera que o solista e o regente encontrem um modo feliz de concluir a peça." Ele acabara de apresentar, no Festival da Holanda de 1973, sua ópera Satyricon, de um ato, baseada em Petrônio, quando descobriu ser portador de um câncer pulmonar. Morreu em Darmstadt, onde fixara residência, alguns meses depois. Deixou em projeto um Concerto para orquestra, violoncelo e piano.
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Luigi Nono Foi Maderna, portanto, após os estudos feitos com Malipiero e antes de Scherchen, quem guiou Luigi Nono em seus primeiros passos seriais. Já em 1950, Nono compôs, numa série shõnberguiana, Variações canónicas, que provocaram um escândalo na época de sua criação, e ainda a Polifonica-monodica-ritmica, no ano seguinte, Incontri, em 1954, e Canti, em 1955, todas elas músicas instrumentais pertencentes ao mesmo processo e que, pela atenção dada pelo compositor às durações como princípio de organização, merecem o epíteto de "pontilhistas pós-dodecafônicas". O engajamento de Luigi Nono no marxismo e sua militância no Partido Comunista Italiano (em cujo comitê central ele ingressaria mais tarde) responderam pela singularidade de sua trajetória. Talvez tenha sido por intermédio de suas pesquisas sobre a voz, que o fascinava tanto quanto a Berio, que Nono uniu seu engajamento político, de autenticidade indiscutível, e sua exigência de compositor. Segundo ele, a arte vocal era estreitamente dependente, em suas formas e sua evolução, das forças sociais e históricas que a suscitavam. Nono fez questão de libertar a voz, para lhe permitir que exprimisse, através das novas possibilidades que lhe eram oferecidas, uma realidade atual. Suas composições apoiaram-se de preferência em poetas contemporâneos, como Garcia Lorca e Pablo Neruda, no caso de España en el corazón (1952), e Paul Éluard, no caso de A vitória de Guernica (1954). Em 1956, Il canto sospeso, para três solistas, coral misto e orquestra, escrito com base nas cartas de despedida de membros da Resistência condenados à morte durante a Segunda Guerra Mundial, foi a obra mais exemplar e mais rematada desse tipo de elaboração. Nono escreveu: Definir uma cultura como momento de conscientização, de luta, de provocação, de discussão, de participação. Essa postura pressupõe a utüização crítica de instrumentos e de linguagens historicamente aceitos ou inventados, a recusa de qualquer concessão eurocêntrica ou aristocrática da cultura e da linguagem, u m m é t o d o de trabalho baseado num ensaio em comum com as forças sociais: antes, durante e depois. Antes, para compreender quem se é, onde se está, do que se trata e por que se escolhe u m campo de
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refugiado que, por onde quer que passe, encontra a mesma intolerância que o fizera fugir de seu próprio país. Perseguindo a lógica retilínea de sua trajetória, Luigi Nono saiu em campo para colher o material que seria tratado pela eletroacústica, como em Lafabbrica illuminata (1965), que recorre a sons de vozes e ruídos gravados numa fábrica, posteriormente mesclados com sons eletrônicos e submetidos a numerosas transformações. Também nesse caso, o sucesso foi indiscutível. A floresta é jovem e cheia de vida (1966), para fita magnética, clarineta, voz e chapas de bronze, obedece a essa mesma vontade de teatrafização do cotidiano (a obra é dedicada aos problemas do Terceiro Mundo), tratada com uma preocupação de renovação e questionamento de todos os componentes sonoros. Nessa produção muito homogênea, citamos ainda Non consumiamo Marx (1969), para voz e gravação em fita; Al gran sole carico d'amore (1975), nova ação cênica (para a qual o próprio Nono reuniu textos que vão de Marx a Louise Michel, Rimbaud e Brecht) em torno do tema dasfigurasfemininas nas lutas revolucionárias e, particularmente, na Comuna de Paris; Sofferte onde serene (1976); Fragment stille a Diotima (1980) e Prometeu (1984). Luigi Nono, que em 1955 casou-se com Nuria, a filha de Schõnberg, e com ela teve dois filhos, permaneceu morando em Veneza, na ilha de Giudecca, de população operária. Quando lhe perguntam qual é sua obra favorita, ele responde: o mar. Palavra de poeta que vive de frente para a lagoa.
Luciano Berio Ao contrário de Maderna e Nono, Luciano Berio não é veneziano. Natural da Ligúrgia (nasceu em Onegha, em 1925), tornou-se, em 1952, aluno de Luigi Dallapiccola, a quem conhecera em Tanglewood, nos Estados Unidos! Antes disso, fez seus estudos em Milão. Só em 1953 travou conhecimento com Bruno Maderna, no mesmo ano em que, indo pela primeira vez a Darmstadt, ah conheceu ao mesmo tempo Boulez, Stockhausen e Pousseur. Berio escreveu:
trabalho. (...) Durante, para compreender como e de qual "ponto de vista" se escreve, e por que e para quem. Depois, para verificar a "circulação" do produto e seus diferentes
Havia então uma necessidade comum de mudar, esclarecer, aprofundar e desenvolver a
"consumos" por públicos diferentes, aos quais se faz e dos quais se recebe uma provo-
experiência serial, a necessidade, para alguns, de rejeitar a história, e para outros, mais
cação, u m a participação.
responsáveis, de relê-la e de n ã o mais aceitar nada às cegas. Cada u m de n ó s deu uma
Eis aí um programa exigente, que pressupõe um profundo questionamento do material, do conteúdo formal e da exploração da obra. Foi em virtude desses mesmos princípios que Nono voltou-se rapidamente para explorar as possibilidades oferecidas pela gravação em fita magnética. Intolleranza, ação cênica para orquestra, coro, cantores sofistas, declamadores e fita magnética, obra poderosa, nascida em 1960, provocou escândalo, tanto pela novidade da linguagem e do material sonoro quanto por sua vontade de engajamento ideológico. É a história de um
contribuição diferente para u m a importante evolução da música.
A partir de 1954, entretanto, com uma obra ambiciosa, Nones — inicialmente pensada como um oratório baseado num poema de Auden, e depois transformada em obra para orquestra —-, Berio realizou aquilo a que chamou um "exorcismo" em relação à influência de Darmstadt e de Maderna: "Desenvolvi o que era, para mim, o ponto central da pesquisa e da paixão musical: a possibilidade de pensar musicalmente em termos de processo, e não de forma ou de método."
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Em pouco tempo, Berio, que então trabalhava na Rádio e Televisão Italiana (RAI), em Milão, preocupado em ampliar o campo das investigações sonoras, fundou o Studio di Fonología no âmbito da RAI, onde a ele se foram juntar Maderna e, mais tarde, Nono. Apesar de uma atividade externa transbordante (ele também respondia pela direção de uma revista e das temporadas de concerto que lhe estavam associadas, os Incontri Musicali), a criação de Berio passou por uma expansão espetacular, numa série de obras em que as novas possibilidades eletrônicas juntaram-se a suas pesquisas sobre a voz e se integraram nelas. Foi o que aconteceu com Thema, omaggio a Joyce (1958), obra eletroacústica cujo material de base é vocal, e com Rosto (1961). Em Círculos (1960), para voz feminina, harpa e percussão, em Passagio (1962), para soprano, dois coros e orquestra, ou em Epifanía (1963), para orquestra e vozes femininas, Berio destacou as leis de interdependência que se criam entre as sigriificações de um texto literário e sua transposição musical. Em 1950, Berio casou-se com a grande artista que foi Cathy Berberian (1925¬ 1983), cantora predominantemente preocupada em abrir novos caminhos para a expressão vocal. Quando lhe indagaram se a presença de Cathy Berberian a seu lado o incitara a compor mais para a voz, o compositor respondeu: "É difícil dizer, mas o certo é que, se eu a conheci, foi justamente porque me sentia atraído pela expressão vocal." Berio também se interessou pela música popular de todos os países, como em Folk Songs (1964), antologia de canções de tradição oral. A partir do fim dos anos 60, ele reintegrou em sua linguagem elementos da tradição, propondo uma música lírica, calorosa, estruturada e eficaz, que é uma das mais vivas da atualidade: as etapas dessa evolução foram, entre outras, Laborintus II (de 1965) e Sinfonia (1968), para orquestra e oito vozes, célebre por sua gigantesca "colagem", na qual desfila toda a música ocidental, e que o próprio compositor definiu, não sem um certo humor, como "um documentário sobre um objeto encontrado". Laborintus II já se valera de um "catálogo de referências" que não deixou de se relacionar com uma certa concepção "teatral" da obra. Opera, que ao cabo de quinze anos de trabalho chegaria a sua conclusão cênica em 1970, nos Estados Unidos, e em 1977, na Itália, é uma "invenção a três vozes", disse Berio, sobre três temas míticos: um mito antigo — o de Orfeu — e dois mitos provenientes da realidade concreta do nosso cotidiano: o naufrágio do Titanic e um pavilhão hospitalar de doentes incuráveis. O título da obra faz referência ao plural de opus e significa, portanto, trabalhos. Na mesma época (1976), Berio elaborou Coro, para quarenta vozes e quarenta instrumentistas, sendo cada voz medida com um instrumento. Coro, obra para concerto, retomou e ampliou, de acordo com uma prática muito freqüente em Berio, um dos caminhos abertos por Folk Songs: a aproximação da música popular, mas ressaltando que aqui se trata de tomar como base de trabalho as técnicas próprias e os comportamentos desta: "Trata-se de um coro de técnicas diversas, que vão do Lied à canção, das heterofonias africanas à
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polifonia." Citemos ainda Bewegung (1971), para orquestra, Points on a Curve to Find (1974), para piano e 23 instrumentos, A Ronne (1974), música eletroacústica que integra a voz, La vera storia (1978), um novo impulso para a ópera, Acordes (1981) e uma nova ópera, Un re in ascolto (1984), para avaliar bem a riqueza e a diversidade da invenção criadora de Berio. Convém acrescentar mais uma dimensão a sua pesquisa: aquela que, através do virtuosismo do intérprete, pretende questionar sua relação com o instrumento e levar este último a seus limites extremos. Esse é o sentido das Sequenze, peças curtas de enorme dificuldade de execução (nove compostas entre 1958 e 1980), cada qual destinada a um instrumento solista diferente: Sequenza I , para flauta (1958); II, para harpa (1964); III, para voz (1965); IV, para piano (1966); V, para trombone (1966); VI, para viola (1967); VII, para oboé (1968); VIII, para percussão (1975); e IX, para clarineta e filtro digital (1980). Fiel a seu princípio, muitas vezes Berio veio depois dar seguimento a suas Sequenze com Chemins que retomam o mesmo procedimento, ampliando-o para orquestra. Ele escreveu: De hábito, pronuncia-se com desdém a palavra virtuosismo. Como atribuo um lugar muito elevado à função pedagógica, à aprendizagem e ao respeito pelo trabalho, dou grande importância ao virtuosismo, mas sob a condição de tomar esse conceito num sentido bastante amplo, não apenas um virtuosismo digital, mas também um virtuosismo intelectual, um virtuosismo de escuta. Na série das Sequenze, o virtuosismo é, acima de tudo, um virtuosismo mental. Cada Sequenza é um comentário sobre a história do próprio instrumento: ao mesmo tempo, harmoniza-se com a história do instrumento e inova para esse instrumento; o virtuosismo sem conteúdo "espiritual" não tem o menor interesse para mim.
Berio é um apaixonado pela história da música; para ele, Monteverdi continua sendo "o maior inventor de toda a história", os cadernos de Beethoven o fascinam, e Mahler, "que parece haver carregado o peso de toda a história da música", lhe é muito próximo. No plano hterário, ele demonstra uma vastíssima curiosidade, atestada por toda a sua criação (onde se destacam as presenças de Joyce, e.e. cummings, E. Sanguinetti, Auden, Proust, Móntale, Eliot, Machado, Brecht, Neruda, etc.). "O que me agrada em Monteverdi", diz Berio, "é essa aliança extraordinária de rigor e liberdade, é a riqueza de sua matéria musical", cumprimento este que pode ser aplicado a diversas obras e, em seu conjunto, à trajetória de Berio — inventiva, audaciosa e, ao mesmo tempo, rigorosa, calorosa e não raro compassiva —, como sucede com uma de suas obras mais justificadamente célebres, King (1967), para uma voz e cinco instrumentistas, em homenagem a Martin Luther King. Estou convencido de que muitas pessoas são atraídas pela música porque^entem, ainda que inconscientemente e de maneira obscura, que ela também pode tornar-se símbolo da possibilidade de uma leitura consolatoria e até, talvez, utópica do mundo. Na música,
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o rumor da historia, que aflora continuamente na c o n s c i ê n c i a dos i n d i v í d u o s responsáveis, é modulado e transcrito em tempos e d i m e n s õ e s diferentes.
Franco Donatoni Ligeiramente mais jovem que Berio, Franco Donatoni (nascido em Verona em 1927) também conheceu Maderna em 1953 e, em seguida, participou dos cursos de Darmstadt, só que depois de Nono e de Berio. Sua importante obra, centrada na atenção dada ao material sonoro, compraz-se com o "acaso", com os "processos automáticos" (o que sucede, em particular, com Puppenspiel n° 2, de 1965) e com a "degeneração dos materiais". "A dúvida e a negação", que ele professa e que com freqüência norteiam seu gesto criador, aproximá-lo-iam de uma certa escola norte-americana. "Somente a não-obra consegue comover, porque é subjetiva, morre logo ao nascer e só faz mostrar-se mais preciosa em sua fuga" (Franco Donatoni). Houve quem falasse, a propósito de Donatoni, em "esmigalhamento do material", em "revanche do material"; para ele, esse próprio esmigalhamento deve, em cada instante, forçar a atenção prestada ao material em si: "Os materiais libertos compõem-se deles mesmos em imagens", disse o compositor, fazendo referência a suas obras Toy (1977) ou Spiri (1977). Às vezes, Donatoni"adota atitudes extremas: suas próprias obras tornam-se material para outras, como no caso de Lamé, para violoncelo, Lem, para contrabaixo, e Rima, para piano, que se tornaram material para Alamari, trio para violoncelo, contrabaixo e piano (1983). Essa concepção do material acaba gerando sua própria forma de lirismo. Podemos encontrar sua equivalência literária, verbal, no texto que o compositor propõe para a escuta de uma de suas obras (To Earle Two, para duas orquestras, 1971): Que me perdoe o ouvinte se a c o m p o s i ç ã o fúnebre, deprimente e depressiva, desértica e sepulcral n ã o oferece, em sua árida paisagem, senão imagens de afogamentos, de desmoronamentos, de e s b o ç o larvar e de apagamento precoce: o exercício sobre a matéria inerte, a abstenção com respeito à forma, a perda de identidade e a celebração da derrota s ó podem encontrar no luto, na obra soturna, o som mortal do auto-aniquilamento. N ã o penso no desfecho ao ser obrigado a afirmar que, para m i m , To Earle Two foi uma experiência capital — renúncia radical à aparência, erro necessário a retificar, desligamento mal compreendido do fruto do próprio trabalho, eclipse lunar total, corrida em torno das águas paradas da imaginação.
A palavra final, sempre do compositor, é: "Quando Psiquê morre, Amor se liberta." Henri Pousseur Na Bélgica, Henri Pousseur, nascido em Malmédy em 1929, e cuja dupla cultura, germânica e francófona, seria admirada por Berio, deixou-se fascinar muito cedo por Webern. Conheceu Boulez em 1950, ao concluir seus estudos em Liège e Bru-
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xelas, e Boulez o acolheu nos concertos do Domaine desde a segunda temporada; dois anos depois, Pousseur conheceu Stockhausen e, no ano, seguinte, Berio; a partir de 1956, juntou-se a este no Studio di Fonología de Milão; depois disso, já em 1957, fundou o Estúdio Eletrônico de Bruxelas, mas seus primeiros passos na música eletrônica foram dados ao lado de Stockhausen, no Estúdio de Colônia. Esses elementos biográficos mostram claramente a trama apertada do tecido cultural em que se moveu, se escorou e se influenciou a geração dos compositores que chegaram à idade adulta depois da Segunda Guerra Mundial, geração esta que fez voarem pelos ares, alegremente, todas as fronteiras geográficas e estéticas do passado. Depois de um quinteto em memória de Webern (1955) e da Sinfonia para quinze instrumentos, do mesmo ano, que foi praticamente executada no Domaine Musical, Pousseur voltou-se, com Scambi, obra composta em Milão, para as formas abertas, que se tornariam objeto de sua pesquisa fundamental. "A obra aberta" (em Scambi, podem-se ouvir dezesseis seqüências independentes numa ordem não predeterminada, ou superpostas umas às outras) representa, para Pousseur, um "princípio esperança", para retomarmos a expressão do filósofo marxista Ernst Bloch, a quem o compositor se referiu freqüentemente. Mobile (1957), para dois pianos, e Répons (1960), para sete músicos, obedecem a essa mesma preocupação com a abertura e a mobilidade. Por conseguinte, é fácil compreender de que modo a direção tomada por Pousseur levou-o a conhecer o escritor Michel Butor, movido, por seu lado, pela mesma preocupação com a mobilidade, aplicada a seus próprios escritos. A partir de 1960, instaurou-se entre o compositor e o escritor uma colaboração que iria revelar-se extremamente fecunda. A ópera Votre Faust (1961-1967) foi concebida em colaboração com Butor; nela, Pousseur demonstra, em especial, de que maneira os sucessivos estágios da linguagem musical, passados vários séculos, podem hoje refletir-se para nós, em relação uns aos outros, de maneira dialética. Através de uma concepção não dogmática do serialismo, Pousseur procura incorporar em sua obra tanto as novas dimensões da eletrônica quanto os princípios dos sistemas do passado no que eles comportam de mais dinâmico, sem parar no efeito de colagem. Em Votre Faust (cujo sucesso geraria diversos prolongamentos sobre o mesmo tema), onde a forma móbil é aplicada ao gênero operístico e onde o próprio público é levado a fazer opções, Pousseur expõe as ligações orgânicas que existem entre as épocas marcantes do pensamento musical e seus mitos. Obras como as Éphémérides d'Icare (1970) ou Icare apprenti são um convite a fazer coexistirem ativamente os estilos harmônicos, a fim de que sejam sublinhadas suas complementaridades e superadas as oposições demasiadamente esquemáticas entre consonância e dissonância, som puro e ruído. Paralelamente à composição e às responsabilidades pedagógicas que assumiu na Bélgica e na França, Henri Pousseur realizou pesquisas teóricas sobre a prática musical (sociologia e pedagogia). Sua obra escrita é importante, desde os Escritos
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de Alban Berg, apresentados já em 1957, até a Apoteose de Rameau ou os Fragmentos teóricos I sobre a música experimental e até os próprios textos que ele compôs para suas obras, como o Processo do jovem cão (outro título: Petrus Hebratcus), de 1964, tema de uma ópera humorística sobre a arte de Schõnberg, escrita e composta para celebrar o centenário de nascimento desse compositor.
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A REVOLUÇÃO ELETROACÚSTICA
Boa parte dos instrumentos inventados durante o século XX baseia-se na utilização da eletricidade: na França, um dos mais famosos é a onda Martenot, inventada por Maurice Martenot em 1928. E a eletrônica foi cada vez mais usada como prolongamento ou complemento da prática instrumental; graças às possibilidades, por ela trazidas, de uma modulação diferente da matéria sonora, a eletroacústica abre aos músicos um campo de proporções vastíssimas. Mas a contribuição mais importante pode muito bem residir nestes recursos hoje ao alcance de todos: o microfone e o aparelho de gravação. Não apenas porque permitem captar ou criar outros sons, mas também e sobretudo porque fixam os sons, permitindo compor, montar e trabalhar em cima da matéria viva deles, e não através da figura interposta de uma partitura. Parece que essa novidade ainda não foi bem percebida. As pessoas continuam a confundir a "música gravada em fita" com um simples meio de gerar "novos sons"—no que ela vem sendo cada vez mais alcançada e suplantada pelos meios de manipulação e de criação do som eletrônico "direto" ou "ao vivo" ("live electronic music"). Na verdade, sua dimensão própria, de que nem sempre ela mesma tem consciência, é a imagem sonora, com qualidades de espaço, textura e densidade impossíveis de reproduzir por meio de uma notação (da mesma forma como a qualidade de uma imagem cinematográfica não pode ser traduzida ou transposta por nenhum outro meio e, notadamente, por nenhum texto). Foi necessária a intervenção de máquinas capazes de reproduzir e registrar o som (o toca-discos, em primeiro lugar, depois o gravador de fita) para que nas-
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cesse a música eletroacústica, anunciada desde o princípio do século por múltiplas experiências pioneiras ( Jorg Mager, Walter Ruttman, os "bruitistes" italianos, John Cage, etc.). Os primeiros grupos dé pesquisa sobre o som não instrumental gravado se estabeleceram na Europa. Em Paris (1948) e em Colônia (1953) nasceram os dois primeiros "estúdios" eletroacústicos: o grupo de música concreta criado por Pierre Schaeffer (nascido em 1910), na Rádio e Televisão Francesa (RTF), e o de música eletrônica no estúdio da Westdeutsche Rundfunk de Colônia, com a equipe de Herbert Eimert (1897-1973). A "música concreta" extrai seus materiais da gravação (em estúdio, trabalhando sobre corpos sonoros, ou em "externas") de sons diversos — ou seja, a partir do microfone; a música eletrônica os extrai gravando sons produzidos por geradores de freqüência (e que, por definição, só podem existir com a ajuda de um altofalante; não têm, pois, existência acústica natural no ar, ou seja, existência prévia à sua gravação). As duas músicas opõem-se, como se vê, menos por questões de técnicas do que por suas estéticas: uma (a concreta) tem que estar atenta à observação do material, é empírica e sem notação prévia; a outra (a música eletrônica dessa época) é predeterminada na partitura, baseando-se em cálculos sobre as combinações de freqüência. Os estúdios eletrônicos multiplicaram-se no mundo, e o uso do som eletrônico acabou por prevalecer, embora com outro espírito (muito mais empírico) e com recursos inteiramente diversos daqueles com que contavam os pioneiros de Colônia (sintetizadores e computadores, muito mais ricos de possibilidades nos timbres). Esse abandono do som concreto gravado não se fez sem empobrecer a música; compostas, todas elas, com os mesmos aparelhos e os mesmos programas de computador, as músicas eletroacústicas tendem a ficar muito parecidas umas com as outras. A expressão "música eletroacústica" terminou sendo adotada no fim dos anos 50 para designar, de modo geral, a música gravada em fita, música em que doravante os sons "concretos" (captados por microfones) e os sons eletrônicos dignavam-se a conviver, ainda que fosse para se opor Uns aos outros — mas, por vezes, também, para alcançar uma fusão —, dentro de uma mesma obra, de um mesmo perfil estilístico. A obra que é sempre citada como inaugural da música eletroacústica é o Gesange der Jiinglinge [Canto dos adolescentes], composto em 1956 por Karlheinz Stockhausen, em que o autor procura realizar —- ele próprio assim o diz — uma continuidade, uma fusão entre a voz manipulada e multiplicada de um garoto lendo a Bíblia (material "concreto") e os sons eletrônicos. Em sentido estrito, a música eletroacústica seria, portanto, m ú s i c a para fita magnética realizada em estúdio, por meio de gravadores, com base em sons de origem acústica (captados por microfone) ou eletrônica, manipulados ou n ã o , e combinados, montados, superpostos etc, de maneira a ter como resultado final obras fixadas no suporte da fita magnética, como o filme sobre a película. Isso n ã o impede que
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p e r m a n e ç a m suscetíveis de ser interpretadas em concerto, numa certa medida, pelo emprego de orquestras de alto-falantes.
Essa é a definição escolhida por Michel Chion no início de seu excelente livro La Musique électro-acoustique [A música eletroacústica], incluído na coleção Que sais-je?. O nascimento da música concreta Na apresentação que fez recentemente de uma série de concertos que mostravam os primordios da música eletroacústica, Michel Chion lançou uma pergunta pertinente: Por que veio a ser Paris o lugar de nascimento dessa música? Talvez por uma certa tradição de sensualismo musical, de atenção à substância sonora, que já se encontrava em Berlioz ou em Debussy. Passados trinta anos, a m ú s i c a concreta continuou sendo uma iniciativa tipicamente francesa, pouco exportada até hoje. Seu particularismo resistiu a todas as reviravoltas estéticas, aos modos sucessivos da escrita. Ficou como uma m ú s i c a quase selvagem. Aos olhos de uma certa vanguarda oficial, parece perpetuar o escândalo de uma espécie de "favela" musical à margem das cidades novas: n ã o importa se com ou sem fundamento, é essa a idéia que muitos ainda fazem a seu respeito. É o caso de negar esse particularismo? N ã o . Se é verdade que a m ú s i c a concreta n ã o foi feita propriamente para ir contra as outras m ú s i c a s (ela até refina e renova as c o n d i ç õ e s para sua audição), ela, por outro lado, reclama u m ouvido novo, uma outra disponibilidade: revoluciona a experiência de ouvir, requer u m ouvinte menos acomodado, que n ã o mais se contente com os critérios tradicionais de audição.
Em Paris, a música concreta nasceu de um incidente técnico: um sulco de disco obstruído. Esse fragmento incansavelmente repetido, verdadeiro objeto sonoro destacado de seu contexto, despertou em Pierre Schaeffer -— então engenheiromúsico da Rádio e Televisão Francesa — o desejo de fabricar outros no gênero, só que voluntariamente. Daí a gravar "ruídos" foi um passo, que Schaeffer deu com entusiasmo. Suas primeiras experiências foram feitas com a ajuda de toca-discos. Os sons foram separados (cortados) dos precedentes, escutados na marcha inversa de seu desenrolar, etc. Nasceram assim, em 1948, as primeiras manipulações com base em música "concreta" e os primeiros Études de Pierre Schaeffer: Étude aux chemins-de-fer [Estudo na estrada-de-ferro], Étude aux tourniquets [Estudo com torniquetes]. No mesmo ano, Pierre Henry associou-se aos trabalhos de Pierre Schaeffer. Compuseram juntos a Symphonie pour un homme seul [Sinfonia para um homem só], primeira sinfonia de música concreta, revelada em 1950 a um público estupefato. Para compreender essa aventura francesa, de que Pierre Schaeffer foi o genial iniciador e que em pouco tempo se tornou uma aventura coletiva, é preciso fixar
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alguns pontos de referência nos dez primeiros anos da música concreta. Em 18 de abril de 1948, surgiu pela primeira vez o termo música concreta num texto de Pierre Schaeffer, para acentuar a dependência em que nos encontramos, não mais com respeito às abstrações sonoras, mas aos sons concretos, tomados como objetos inteiros, irredutíveis a tal ou qual componente do solfejo.
Foi a época das primeiras "mixagens", das transposições do som em velocidades diferentes (78 r.p.m., 33 r.p.m.), das leituras do som em marcha invertida; Pierre Schaeffer compôs seus primeiros Études (Noire, Violette, Chemin-de-fer, Tourniquet, etc.). Em 20 de junho, realizou-se o primeiro "concerto de ruídos" na rádio. Em 1950, Schaeffer recebeu seu primeiro gravador de fita; 18 de março: primeiro concerto público de música concreta, com a apresentação da Sinfonia para um homem só de Pierre Schaeffer e Pierre Henry. Em 1951, os dois compuseram Orphée 51 [Orfeu 51], utilizando potenciómetros pela primeira vez. Em outubro desse ano, os estatutos do Grupo de Pesquisas de Música Concreta foram aprovados pelo diretor da rádio; Boulez entrou para o Grupo e realizou Étude sur un son [Estudo sobre um som]. Em 1952, Pierre Schaeffer publica A la Recherche d'une musique concrète [Em busca de uma música concreta], que inclui notadamente os dois primeiros e apaixonantes "diários" sobre seus trabalhos. Olivier Messiaen entrou para o grupo e compôs Timbres durées. Nos Estados Unidos, Mercê Cunningham elaborou uma coreografia para a Sinfonia para um homem só. 1953: aperfeiçoamento de novas técnicas de "micromontagem de amostras milimétricas de fita magnética". Stockhausen escreveu em Paris Étude aux mille collants. Jean Barraqué: Étude. André Hodeir: fazz etjazz. A estréia do Orfeu, "ópera concreta" de Schaeffer e Henry, no Festival de Donaueschingen, desencadeou tremendo tumulto. Schaeffer escreveu: O combate cessou por falta de combatentes. Nofim,só restou um pessoal refinado e favorável: era o exército francês de ocupação, que nos veio dar os parabéns. Foi assim que perdemos a batalha de Donaueschingen e que durante anos submergimos sob o peso da reprovação internacional, enquanto se erguia, no céu de Colônia, uma aurora propícia ao inimigo hereditário e eletrônico.
1954: realização de Déserts [Desertos] de Varèse, em que pela primeira vez a orquestra encontrou "sons organizados". A apresentação pública da obra em Paris, sob a regência de Hermann Scherchen, foi um escândalo sem precedentes; Varèse, arrasado, refugiou-se na casa do jovem Xenakis. 1955: coreografia de Béjart para a Sinfonia para um homem só. 1957: ingresso do primeiro compositor iugoslavo no
Tomamos emprestados os elementos dessa cronologia ao Répertoire acousmatique de l'INA GRM, estabelecido em 1980.
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grupo — Ivo Malee, que compôs Mavena. 1958: o grupo de pesquisas de música concreta passa a chamar-se grupo de pesquisas musicais (GRM). Luc Ferrari compôs para o grupo dois Études; Iannis Xenakis compôs Diamorphoses; Pierre Schaeffer, Étude aux sons animés [Estudo dos sons animados]. 1960: criação de um Serviço de Pesquisa da Rádio e Televisão Francesa, ao qual se integrou o GRM; em junho, realizou-se em Paris um Festival da Pesquisa, onde foram tocadas as obras criadas dentro do grupo por Michel Philippot, André Boucourechliev, FrançoisBernard Mâche e Iannis Xenakis. Esse quadro cronológico dá a medida da efervescência que rodeava o nascimento das primeiras obras concretas, da pobreza de recursos de que dispunham os pesquisadores, do interesse imediato dos compositores que viviam em Paris ou na proximidade da França — ainda que alguns deles viessem a referir-se depois a esses trabalhos qualificando-os como "remendos miseráveis" (Stockhausen) —, bem como da imediata repercussão internacional das primeiras apresentações. Pierre Schaeffer Nascido em Nancy em 1910, Pierre Schaeffer entrou para o rádio logo que saiu da Escola Politécnica em 1934. Sua reflexão sobre os recursos radiofônicos e sua curiosidade natural levaram-no a tornar-se "o pai da música concreta" e um compositor nesse gênero inteiramente novo da eletroacústica. "Quem nos diz", escreveu em 1948, "que durante os cinqüenta últimos anos uma música nova não se vem inventando a si mesma?" Seu engajamento na aventura concreta tentou responder a essa pergunta. Além das obras já citadas, pertencentes aos primeiros anos da música concreta, Pierre Schaeffer, depois de passar anos sem compor, escreveu em 1958¬ 1959 três novos Études (aux allures [dos andamentos], aux sons animés [dos sons animados], aux objets [dos objetos]) e, em 1975, após nova e longa interrupção, o Trièdre fertile [Triedro fértil]. Este último representou uma revolução em sua escrita, pois nele Schaeffer renunciou à sua radical decisão anterior de só utilizar sons "concretos" manipulados e passou a recorrer ao material eletrônico (o sintetizador). O tempo da música concreta estava encerrado. Pierre Schaeffer achava mesmo que o tempo da composição de autor já tinha ficado para trás e que se abria o tempo dos pesquisadores. Enquanto música "de época", esta música [concreta] só cobriu um breve período histórico. Mas sua contribuição essencial tem a ver com algo muito mais importante do que a invenção técnica, por um lado, ou o repertório das obras, por outro. Sua contribuição, mesmo não excluindo esses dois aspectos, sugere um modo inovador de abordar o fenômeno musical, na teoria como na prática. Rompe com as idéias feitas, une o fazer ao ouvir, equilibra o abstrato e o concreto, e à iniciativa artística da criação associa a disciplina — ainda não assimilada, sem dúvida — de um novo modo de conhecimento.
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Ciência ou arte? É este problema, para ele fundamental, que Pierre Schaeffer julga ter respondido na grande obra em que traçou uma reflexão sobre sua experiência musical, o Traité des objets musicaux [Tratado dos objetos musicais, 1966], que se pretende "ensaio interdisciphnar" e em que o autor passa "da experiência musical para a experiência humana". Livro austero, mal recebido, e que, segundo Michel Chion, desmascara os mais ou menos, os de certo modo, enfim, os truques de prestidigitação por meio dos quais os que dizem ser possível e desejável o advento de uma m ú s i c a eletroacústica "científica" escamoteiam as falhas de sua utopia. Noutras palavras: se houvesse sido levada em conta a lição do Tratado, haveria que, como diz Lacan, "deslocar o discurso" de muita gente.
Paralelamente ao Tratado, Schaeffer reuniu o material para um Solfège des objets sonores [Solfejo dos objetos sonoros, 1967], com exemplos musicais e textos. Em 1968, assumiu uma cadeira no Conservatório de Paris, que passou a receber grande afluência de jovens estudantes. Não obstante ser por paixão e por profissão um homem da comunicação, Pierre Schaeffer passou por muitas decepções nesse terreno. Sua experiência muitas vezes foi mal compreendida pelos músicos acostumados à partitura. Em certos casos, os contatos conseguiram ser piores ainda com os serialistas sectários. Seu temperamento difícil e intransigente fez com que dele se afastassem muitos de seus alunos; sua necessidade de catalogar e arquivar os sons desagradou a outros tantos. Em 1975, foi afastado do Serviço de Pesquisa da Rádio e Televisão Francesa, de que era diretor desde 1958; escreveu a esse respeito um livro violento, Les Antennes de Jéricho [As antenas de Jericó]; como uma confirmação do título dado à sua sinfonia dos primeiros anos de aventura musical, ele se sentia um homem só; mas isso não o levou a questionar a validade de seu enfoque musical, um enfoque científico também e, talvez antes de tudo, filosófico e poético. Em carta a Albert Richard, escrita em 1977, Pierre Schaeffer escreveu: Quanto mais procuro u m eco, mais me chega em seu lugar uma careta. Esse sofrimento inveterado, esse aguilhão, já n ã o há como eu me desfazer dele. Seria o caso de calar-me por completo e nada dizer do que sei? (...) Por que me recusei finalmente a compor m ú s i c a com os meios que fui o primeiro a descobrir? Seria por respeito à música, ou por duvidar de m i m mesmo? N ã o seria ainda mais pretensioso querer somente saber, e preferir fazer com que outros façam? E esse segredo, n ã o de todo esclarecido, eu deveria guardá-lo de u m a vez para causar inveja, em lugar de criar invejosos por u m a revelação incompleta dele? Isto nos leva de volta à música e ao destino que ela nos reserva. Os paradoxos aparecem gritantes: os m ú s i c o s são surdos e maldosos. E abrem os ouvidos e o coração. São pobres infelizes. E participam de uma certa grandeza incomensurável. (...) Acontece-lhes o que pode haver de màis c ô m i c o no mundo: eles passam do tantã e da corda de tripa ao sintetizador e à informática, do analfabetismo à matemática superior. É que eles repetem sempre Orfeu — esse Cristo que renunciou à religião — , que
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corre atrás da mulher de sua vida cometendo todos os erros e inabilidades possíveis. Os monstros, mais terríveis do que eram então, continuam a encantar, as regras do jogo continuam estúpidas. É preciso, portanto, insistir em ir adiante sem se voltar para trás. Mas, e Eurídice? Vem vindo? A música, enquanto isso, ficou retida nos infernos?
Pierre Henry Primero "rebento" de Pierre Schaeffer, Pierre Henry veio a ser algo assim como seu "filho espiritual". Ouviu o "concerto de ruídos" transmitido no rádio em 1948 e juntou-se a Pierre Schaeffer quando este, em 1950, estava à procura de um baterista para elaborar a Sinfonia para um homem só ("Procurávamos um baterista, estávamos fartos de bater canhestramente em caixas, de arranhar corpos sonoros, e então me veio a idéia: afinal de contas, o Conservatório forma bons bateristas! Acho que foi nesse momento que alguém me falou de Pierre Henry" [P.S.].) Nascido em Paris em 1927, Pierre Henry era de fato aluno do Conservatório; praticava a percussão, no início tomava aulas de piano, freqüentou a classe de análise de Messiaen. Já então buscava uma nova abordagem do som e dos timbres. Tendo chegado, ele também, ao ponto de "preparar" um piano sem conhecer nada de John Cage, compôs um Petit ballet mécanique [Pequeno balé mecânico, 1949] para piano preparado. Cinéfilo inveterado, Pierre Henry estendeu suas reflexões à relação do som com a imagem, à produção de novas imagens sonoras. Estava, por conseguinte, mais do que qualificado para compreender a música "concreta" e lançar-se à aventura de sua realização lado a lado com o próprio inventor. Ele o seguiu até 1958, data em que rompeu violentamente com Schaeffer e fundou seu próprio estúdio. Sinfoniapara um homem só (1950), Orfeu (1951), que se tornaria Orfeu 53 para a apresentação em Donaueschingen e de que Pierre Henry extraiu para si próprio Le Voile d'Orphée [O véu de Orfeu, 1954], foram as duas obras capitais do início da música concreta, compostas por Pierre Henry em colaboração com Pierre Schaeffer. Isso não o impediu de realizar por sua própria conta Microphone bien tempéré [Microfone bem temperado, 1950-1952], Concert des ambigüités [Concerto das ambigüidades, 1951] e Haut voltage [Alta voltagem, 1956] para Maurice Béjart. Foi o primeiro encontro entre ambos, não o último. Totalmente engajado nesse empreendimento, Pierre Henry usou grande ardor verbal. Em 1950, escreveu: A m ú s i c a deve transportar-se da esfera da arte (musicalmente falando) para o d o m í n i o da angústia sagrada. Se as c o n v e n ç õ e s musicais, a harmonia, a c o m p o s i ç ã o , as regras, os n ú m e r o s , o lado m a t e m á t i c o e as formas tinham u m sentido em relação ao Absoluto, hoje a m ú s i c a s ó pode ter sentido relacionada com os gritos, o riso, o sexo, a morte. Tudo isso nos p õ e em c o m u n i c a ç ã o com o c ó s m i c o , ou seja, com a matéria viva dos mundos trabalhados pelo fogo. É preciso seguir imediatamemte u m a direção que leve ao orgânico puro. Sob esse ponto de vista, a m ú s i c a foi muito menos longe do que a poesia ou a
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pintura, ela ainda não ousou destruir-se a si própria para viver. Para viver com maior intensidade, como o faz todo fenômeno verdadeiramente vivo.
Pierre Henry, amigo de muitos pintores e escultores, concebia seu trabalho à imagem do trabalho do cineasta: Sou como um filme enquanto se processa. Levantamento do universo sonoro, depois o trabalho em cima da forma geral em nível técnico (tomada de som), montagem, mixagem. Tento organizar minha linguagem, faço muitas pesquisas de forma, porque nem a sintaxe nem o vocabulário são fixados a priori. Que será a obra definitiva? Uma série de mutações que resultam de tendências que se vão aos poucos definindo e amadurecem lentamente.
A partir do momento em que Pierre Henry criou, da estaca zero, seu próprio estúdio, denominado Application de Procédés Sonores de Musique Électroacoustique [Aplicação de Processos Sonoros de Música Eletroacústica, ou Apsome], sem material nem subvenção de qualquer espécie e vivendo em grande dificuldade, ele alcançou uma nova dimensão em sua criação. Ampliou a linguagem, criou sons eletrônicos, elaborou uma síntese entre a música eletrônica e a música concreta, com uma envergadura muito diferente da que apresentava a tentativa anteriormente feita com Haut voltage, e criou três obras-primas de seu catálogo: La Noire à soixante (1961), "experiência de estruturação do tempo", Variations pour une porte et un soupir [Variações para uma porta e um suspiro, 1963] e Voyage [Viagem, 1962], grande affesco onírico inspirado no Livro dos mortos tibetano. Em muitas de suas obras, Pierre Henry foi à caça do alento humano em seus redutos mais inacessíveis, tirando efeitos sonoros, extraordinários (Granulométrie [Granulometria], 1967). Teve François Duffêne como cúmplice nessa busca. Paralelamente a esses grandes trabalhos, Pierre Henry arquivou uma fantástica sonoteca, repositório de uma profusão de sons colhidos ou fabricados por ele e que representam sua memória musical, resultado de milhares de horas de trabalho. A primeira encomenda oficial lhe foi feita em 1968. Ele compôs L'Apocalypse [O apocalipse], tema imenso que corresponde à sua disposição criadora, nova obra-prima de arquitetura sonora e de invenção com a matéria do som. Pouco a pouco, Pierre Henry, cujo trabalho ao longo dos anos foi o de um grande sohtário, conquistou finalmente o status de compositor aos olhos de seus pares instrumentalistas. Tornou-se autor renomado, e suas obras, que ele passou a apresentar em concertos públicos a uma audiência predominantemente de jovens, fizeram grande sucesso. Sempre rigoroso consigo mesmo, dedicou-se — talvez para compensar essa glória súbita—a um trabalho de ascese com Mouvement-Rythme-Êtude [MovimentoRitmo-Estudo, 1970], compôs a Sinfonia n" 2 (1972), mas também flertou com as músicas mais populares, criando jerks e rocks eletrônicos: Messe pour le temps présent [Missa para o tempo presente, 1967], La Reine verte [A rainha verde, 1963].
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Acontece, também, que esse solitário queria "que alguma coisa se passe entre mim, meus aparelhos e as pessoas", o que não estava em contradição com a busca do absoluto que o movia. Cada vez mais sua criação orientou-se no rumo de uma concepção de grande cerimonial sonoro e visual. Cérémonie II [Cerimônia II] passou a chamar-se, em 1970, Sinfonia ritual; Futuristie [Futuristia, 1975] foi uma manifestação sonora e visual; Dieu [Deus, 1977], "ação de vozes e de gestos inspirada em Victor Hugo", foi um marco nessa nova linha estilística; a esses trabalhos seguiram-se Noces chimiques [Núpcias químicas], espetáculo para a Ópera de Paris, de que ele foi ao mesmo tempo autor e diretor, Paradis perdu [Paraíso perdido, 1983], Hugo-Symphonie [Sinfonia-Hugo, 1985]. Sigo em busca do absoluto, do infinito, de um outro conceito do tempo. (...) Tento integrar em minha música o mundo espiritual. Nela estão presentes a vida e muitas vezes a morte, e o para além da morte. Está presente o som que persigo até o süêncio, que parte do silêncio. Isto eu chamo meditar —• com meu corpo, minhas mãos, meus recursos.
Ivo Malee Compositor iugoslavo nascido em Zagreb em 1925, Ivo Malee é o melhor exemplo da profunda influência que a descoberta da música eletrônica pôde ter sobre os processos criativos de um artista com início de carreira tradicional, mas particularmente motivado pela reflexão sobre a evolução do homem e da arte. Ivo Malee, regente de orquestra e já com uma bagagem de composições em seu país natal, viajou em 1955 a Paris, onde conheceu Pierre Schaeffer. Escreveu a peça Mavena para o grupo de música concreta, voltou à Iugoslávia e retornou à França, onde se fixou em definitivo, sempre percorrendo um caminho de compositor independente. Esse caniinho, que passou pela aprendizagem de um novo material e por sua manipulação (criação do material, leis de montagem), orientou toda sua atividade criadora. O trabalho em cima da fita magnética alimentou e transformou a escrita instrumental, orientou o compositor na direção de obras "mistas", em que se mesclam sons instrumentais (ou vocais) e sons eletrônicos. Ivo Malee revelou-se um dos compositores mais originais nesse enfoque, e a composição eletrônica beneficiou-se da ciência instrumental do compositor. Reflets [Reflexos, 1960] e Dahovi (1961) pertencem à música concreta, mas já Sigma (1963), obra para orquestra, está construída sobre uma interrogação feita pelo próprio Malee: Em contato com a matéria sonora gravada em fita e proveniente de fontes sonoras as mais diversas, ao mesmo tempo que familiarizado com as manipulações eletroacústicas que a transformavam, levantei para mim mesmo a seguinte questão: seria possível abordar com uma atitude análoga o domínio da música instrumental?
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A Cantate pour elle [Cantata para ela, 1966] levou ainda mais longe o jogo das influências e dos condicionamentos mútuos dos elementos de composição; a obra mistura a voz de soprano e a harpa à fita magnética (elaborada com base na harpa gravada). A novidade do enfoque sonoro e a liberdade da postura adotada tornaram-na de imediato uma obra de referência obrigatória, justificando o que a seu respeito havia comentado o compositor: "Em vez de querer surpreender, limiteime a escutar e a seguir a bela lição que recebe quem dá as costas ao 'normal' para ir procurar junto aos extremos o que pode ser feito com o que não se deve fazer'.' Os "3 L" (Luminétude, Lumina, Lied, 1966-1970), dependentes e interdependentes, oferecem uma síntese das experiências. Lumina é o coração dessa síntese: o som gravado confronta-se com o som vivo de um conjunto de cordas, não para dialogar, mas "para que as duas fontes sonoras condicionem-se, choquem-se e até mesmo se violem ou irradiem, em suma, a fim de que existam juntas, vivam..." Luminétude é a busca de material, funciona como um prolegómeno da obra. Lied extrapola Lumina e confia a dezoito vozes, que enfrentam o conjunto de cordas, o papel antes confiado à fita. Mais tarde, em Dodecameron (1970), as doze vozes, todas solistas, deixam de ser apenas "instrumentos" para funcionar como geradores de sons, prolongando assim a experiência de Lied. O compositor qualifica como "cruciais" esses anos que vão de 1966 a 1971, em que está incluída também a realização de Orai, para recitante comediante e orquestra (1967), cuja fonte de inspiração é o livro Nadja de André Breton, uma obra paroxística que se propõe organizar um delírio. Victor Hugo, un contre tous [Vítor Hugo, um contra todos, 1971] prolonga essa experiência, dando-lhe a mais ampla e espetacular dimensão: Dois atores, coros, orquestra e fita magnética demonstram, em suma, que a orquestra e a voz podem realizar efeitos, criar u m clima, explorar u m universo que n ã o são menos insólitos, novos, inauditos — no sentido próprio da palavra — do que aqueles que até aqui estavam reservados à m ú s i c a concreta, à m ú s i c a eletrônica ou a uma mescla dessas duas técnicas.
A lógica e o caminho seguido por esse ponto de vista são exemplares. Malee vai em frente. Mas, depois de tantos esforços, ele retorna ao trabalho ascético em cima da fita, com uma obra carregada de angústia, Trióla (1978), subintitulada "Sinfonia para mim mesmo". Em seguida, "reconverte-se", tirando do computador um Recitativo (1980) e um Carillon choral (1981). Vox voeis f. (1979) enaltecia mais uma vez a voz de mulher tantas vezes presente em sua obra: "Que beleza, a mulher, uma festa!" Mais adiante, de novo a alternância entre música eletroacústica e instrumental. Week-end [Fim de semana, 1982] foi composto para fita magnética e três sintetizadores; Ottava bassa (1983) é um concerto para orquestra de grande vulto e contrabaixo (amplificado); Afraca (1985) foi feito para solo de percussão e fita.
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Um grande sonho poético alimenta essa obra, que, ao longo do seu desenvolvimento, mantém uma postura rigorosa e exemplar, aberta para o choque da descoberta. Malee escreveu: A l g u é m dizia recentemente que "o cheiro do mundo mudou". E u acrescentaria que o som t a m b é m . Frente à soberba cidade da m ú s i c a ocidental do passado, construída sobre as poderosas e misteriosas regras de sua gama, eis que se ergue a nova música, bárbara e sem sistema algum, mas integrando, sublimando o antigo, abrindo-se para o universo de todas as músicas e de tudo o que soa, no sonho de ainda poder dizer quem somos, descobrir-nos, compreender-nos. Nessa cidade (que é minha e onde quero morar), na desordem e na exigência de suas ruas sem nome, as linhas tímidas e ainda raras de algumas avenidas futuras fazem-se por vezes sentir. Desde já minha esperança passeia por elas.
Parmegiani, Bayle, Ferrari, Mâche De Henri Sauguet (nascido em 1901), que realizou no grupo de pesquisas musicais seu Aspect sentimental em 1956, e do colorista Olivier Messiaen, já célebre pedagogo para toda uma geração e que em 1952 tentou uma experiência com Timbresdurées, até os jovens François-Bernard Mâche (nascido em 1935) ou François Bayle (nascido em 1932) que encontraram no grupo, logo no início dos anos 60, um terreno favorável para iniciar-se nas lides de compositor, passando por um vasto leque de músicos provenientes de horizontes os mais diversos, o que se viu foi que os vinte primeiros anos de existência do grupo de música concreta — depois rebatizado como grupo de pesquisas musicais — representaram uma abertura excepcional. Hoje podemos apreciar a força de seu impacto sobre duas ou mesmo três gerações de músicos. Nesses primeiros anos de descobertas, posturas tão típicas em suas diferenças — como são as de Pierre Henry e de Ivo Malee — podem ser consideradas simbólicas perante seus confrades, às vezes um pouco mais jovens. Em termos esquemáticos, aí reconhecemos aqueles que se desenvolverão seguindo o caminho exclusivo da criação sobre fita magnética e aqueles que serão tentados pela utilização da música em fita associada a outros elementos musicais. Vindo do som (ele trabalhava como engenheiro de som no rádio), Bernard Parmegiani, nascido em Paris em 1927, entrou para o grupo em 1959; só raras vezes utilizou o som instrumental em suas próprias criações (Violontries 1963¬ 1964). Para desenvolver-se em obras de grande força, escolheu como meio natural a música eletrônica, empenhando-se em trabalhar "o som da matéria": Capture éphémère [Captura efêmera, 1967], Pour en finir avec le pouvoir d'Orphée [Para acabar de uma vez com o poder de Orfeu, 1972], De natura sonorum [Da natureza dos sons, 1975], Dedans-dehors [Dentro-fora, 1976], Mass-Media Sons [Mídia sons, 1978-1979], ação dramática que pôs em cena os sons como personagens; e,
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finalmente, Exercisme (1984), um título que tem tudo para confundir-se com exorcismo. François Bayle, nascido em Tamatave, Madagascar, no ano de 1932, realizou uma obra importante, trabalhando apenas com música eletrônica, depois de uma primeira etapa em que se dedicou à composição instrumental e à utilização desta como material de manipulação (Vapeurs [Vapores], 1961), ou como elemento de obras "mistas" (Archipel [Arquipélago], 1963). Depois de Pierre Schaeffer e no mesmo plano de Pierre Henry, foi quem deu maior contribuição à música eletroacústica. Em 1966 sucedeu a Pierre Schaeffer na direção do grupo de pesquisas musicais, onde ingressara em 1961. Inventor de formas, iniciador de uma poética do gênero, desbravador de técnicas novas, compositor extremamente refinado e pessoal, Bayle soube construir uma obra que se impõe como uma das mais originais nesse domínio, compondo peças que atingem por vezes grandes proporções, como Jeita (1970), L'Expérience acoustique [A experiência acústica, 1969-1972], Grande polyphonie [Grande polifonia, 1975], Érosphère [Erosfera, 1980], Les Couleurs de la nuit [As cores da noite, 1983], Son-Vitesse-Lumière [Som-VelocidadeLuz, 1980-1983] etc. Por outro lado, desde cedo manifestou interesse pela relação entre música e imagem, demonstrado em Espaces inhabitables [Espaços inabitáveis, 1973], em colaboração com M . Treguer, Galaxie [Galáxia, 1964], com P. Kamler, e Lignes et points [Linhas e pontos, 1966], ainda com Kamler. Aconteceu de Bernard Parmegiani e François Bayle proporem-se a realizar juntos uma obra comum: escolhida para esse fim a Divina comédia de Dante, Parmegiani escreveu o Inferno (1972), Bayle o Purgatório (1972), e os dois juntos o Paraíso (1974). Muito envolvido, desde os começos de sua atividade criadora, com os trabalhos do grupo de pesquisas musicais (Étude aux accidents [Estudos com acidentes], Étude aux sons tendus [Estudos com sons estendidos], Étude floue [Estudo gracioso], 1958), Luc Ferrari, nascido em Paris em 1929, realizou depois obras importantes com a eletrônica, como Tautologies I e 1/(1961) e Hétérozygote (1964), onde introduziu sons de natureza realista, "primeira peça de um gênero que chamei de música anedótica" e marco de revolta contra o academicismo de estúdio. Desde então a criação de Luc Ferrari seguiu por um caminho solitário em múltiplas direções — obras puramente instrumentais, obras mistas, obras de teatro musical, obras improvisadas, que supõem uma atitude geral anticonformista e subversiva.
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Natural e provocador, Ferrari reclama também o direito a uma música que vise a dar prazer. "Que bordel, essa sociedade puritana que põe o prazer no inferno", faz ele dizer à recitante do seu fournal intime [Diário íntimo, 1983], sucessivamente convertido em livro, partitura e representação teatral. Tendo ingressado no grupo de pesquisas musicais também em 1958, FrançoisBernard Mâche, nascido em Clermont-Ferrand em 1935, é o homem das múltiplas aberturas; formado em letras, entrou no mesmo ano para o Conservatório, onde recebeu aulas de Messiaen, e para o grupo. Enquanto Préludes [Prelúdios, 1959] e Terre de Feu [Terra de Fogo, 1963] foram escritos para fita magnética, Volumes (1960) relacionou a fita com um conjunto de tambores, pianos e percussões; foi sua primeira experiência de obra "mista", o gênero que lhe será mais familiar. Mas François-Bernard Mâche, em busca do ponto de encontro "entre o pensamento e o real sonoro", onde se situa para ele a música, utilizou a maior parte do tempo sons brutos e naturais (palavra, animais, elementos etc.) que introduziu na fita magnética quase sem submetê-los a qualquer manipulação. Ao mesmo tempo que reduziu em suas obras a fita magnética à categoria de suporte de sons naturais gravados e conservados, ele se valeu desse recurso para fazer com que instrumentos tocassem ao vivo, ao som da fita gravada, emitindo comentários ou imitações estilizadas desses mesmos sons. Esse enfoque inscreveu-se numa problemática da natureza e da cultura e numa concepção que tinha como objetivo arrancar a música do modelo estreitante da "linguagem". Synergies [Sinergias, 1963], Rituel d'oubli [Ritual de esquecimento, 1969], Korwar (1972), Naluan (1974) foram compostos para fita e conjuntos instrumentais diversos. Républiques [Repúblicas, 1969], para orquestra simplesmente. Danaé [Dânae, 1970], para doze vozes e conjunto de percussões. Com Les Mangeurs d'ombre [Os comedores de sombra, 1979] e Temboctou [Tombuctu, 1982], François-Bernard Mâche aproximou-se do teatro musical. Paralelamente às suas composições, Mâche desenvolveu um importante estudo filosófico e estético sobre as relações entre o mito e a música. Esses quatro compositores participaram, com mais alguns outros, de uma experiência realizada no âmbito do grupo de pesquisas musicais em 1963, a do concerto coletivo: nove músicos (Bayle, Canton, Ferrari, Malee, Parmegiani, Carson, Mâche, Marie e Tuong) compuseram nove peças individuais, mas que não partiam de idéias próprias de cada um e sim de propostas feitas pelos outros compositores do grupo (Mâche inspirando-se em seqüências concebidas por Bayle e Malee, Ferrari guiando-se pelas de Phihppot e Carson, etc.). Mâche escreveu: Que eu saiba, n ã o houve até hoje, entre compositores, as trocas de substância que ocor-
O que me interessa é u m a subversão da escrita, (...) a e x p e r i m e n t a ç ã o de uma nova
reram durante u m ano entre os nove participantes dessa experiência. Partilhávamos os
simplicidade [na i m p r o v i s a ç ã o ] , em que nenhuma camuflagem seja possível; as portas
gostos, certos parti pris, certos achados, mas jamais as próprias partituras. Pois é o que
estão abertas para a i n v e n ç ã o espontânea. Desse modo pode surgir outra complexidade,
acabamos de fazer, sem querer duvidar de nada, a n ã o ser das idéias preconcebidas.
que n ã o se v ê ñ a fachada, que é preciso buscar em profundidade, dentro do momento.
Claro que era u m empreendimento temerário: nesse festim bárbaro, é r a m o s ao mesmo
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tempo os alimentos e os convivas. Vez por outra, mais de u m chegou a sentir náuseas; no entanto, acabamos por tomar gosto pela coisa.
Com essa experiência das mais insólitas — que, aliás, nunca mais se renovou — encerraram-se, de certo modo, os tempos "heróicos", tempestuosos e frutíferos, da música eletroacústica lançada em órbita por Pierre Schaeffer em 1948.
A expansão mundial da música eletrônica Embora o grupo parisiense seja historicamente o primeiro a existir de maneira informal desde 1948, só em 1951 recebeu seu estatuto de grupo de pesquisas de música concreta. Em janeiro de 1953, em Colônia, também à sombra do rádio e sob o impulso dos trabalhos conduzidos por um professor da Universidade de Bonn, Werner Meyer Eppler, foi fundado o estúdio de música eletrônica da NWDR, dirigido pelo dr. Eimert. Juntou-se a ele Karlheinz Stockhausen, que já havia trabalhado e produzido no grupo parisiense. No Estúdio de Colônia ele realizou em 1956 o Canto dos adolescentes, primeira das grandes obras musicais da era eletrônica (não concreta). Nos Estados Unidos, também se abriu em 1953, dentro da Universidade de Columbia (Nova York), um laboratório de música experimental ligado ao Departamento de Música. Os pioneiros foram os professores Luening e Ussachevsky. Eml954, Hermann Scherchen, regente de orquestra apaixonado pela música contemporânea (antes da guerra já fundara uma orquestra com o sugestivo título de Ars Viva), criou em Gravesano (Suíça) um estúdio experimental que se tornou centro de reuniões para muitos músicos — entre outros, Iannis Xenakis. A personalidade exemplar desse grande maestro merece destaque. Nascido em Berlim em 1891, Hermann Scherchen morreu em 1966. Militou a favor da música nova durante toda a vida, lançando três revistas sobre assuntos musicais: Meios na Alemanha, Musica Viva na Bélgica (em 1933) e os Gravesaner Blatter a partir de 1956. Elas pretenderam formular uma síntese dos trabalhos realizados em seu estúdio ou das pesquisas que lhes eram afins. Pedagogo entusiasta, contribuiu para a. formação de numerosos compositores (Hartmann, Maderna, Liebermann, Nono, Dallapiccola, Xenakis). Regente de orquestra, começou sua carreira trabalhando junto com Schõnberg em Pierrot lunaire, depois, ao mesmo tempo que dirigia um coral de operários, batalhava em defesa da contemporaneidade, divulgando as obras de Berg, Webern, Varèse e Xenakis. 1954 foi também o ano de fundação em Tóquio do primeiro estúdio de música experimental, inspirado nos modelos de Paris e Colônia. Lá trabalharam notadamente Toshiro Mayuzumi (nascido em 1929) e Toru Takemitsu (nascido em 1930), talvez o mais representativo dos músicos japoneses da primeira geração do após-guerra.
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O movimento atingia então uma tal importância que o Festival de Donaueschingen de 1954, foi consagrado às músicas eletrônica e concreta. No ano seguinte, a rádio italiana (RAI) criou em sua estação milanesa o Studio di Fonología, onde se encontraram Berio e Maderna. Boucourechliev e Pousseur vieram também trabalhar ali. Em 1958, Pousseur fundou em Bruxelas um estúdio, o APELAC. Extremamente motivada, a Polônia foi a primeira a instalar um centro experimental no âmbito da União de Compositores. Em 1957, um estúdio experimental foi inaugurado na rádio de Varsóvia, ficando a direção a cargo de Josef Patkovski. A Inglaterra acompanhou o movimento (com a BBC), a Holanda (com os primeiros experimentos do laboratório Philips), depois a Suécia e outros países. Assim, graças muitas vezes a instituições radiofônicas, a música eletrônica afirmou-se no universo dos compositores e dos pesquisadores. E não descuidou de progredir na técnica da abordagem e da fabricação do som. O esforço em prol da criação de novos instrumentos — que se manifestou com as pesquisas de Theremin em 1920, com o trautônio do engenheiro Trautwein em 1930, com as ondas Martenot em 1928 — prosseguiu com as "estruturas sonoras ecológicas" de Bernard Baschet, e sobretudo com a amplificação elétrica doravante adaptável aos instrumentos. Nos anos 50, intensificaram-se as pesquisas para fazer com que um instrumento elétrico pudesse intervir sobre a própria estrutura do som. O melocórdio do Estúdio de Música Eletrônica de Colônia, inventado em 1954, permite controlar o ataque e o decréscimo do som. Em 1955 e em 1959, dois engenheiros da RCA construíram nos Estados Unidos duas versões de "um sintetizador de música eletrônica regulável e controlado por uma grande fita de papel perfurado. Esse sintetizador foi usado por Milton Babbitt no Columbia/Princeton Electronic Music Center" (J. Pierce). Começava assim a era do sintetizador — gerador de freqüências —, com todas as facilidades que vieram no seu rastro. Mas a vinda do sintetizador trouxe também o desejo de utilizar o computador em diversas operações: comando dos instrumentos, análise musicológica, síntese sonora etc. Em 1956, realizou-se a primeira obra de composição inteiramente automática e programada, a Suite Illiac, assim chamada por ser este o nome do computador que a calculou. Foi uma experiência de Lejaren Hiller, que se tornou o pai ou, pelo menos, o verdadeiro precursor da composição automática no mundo. Em 1958, Hiller e o matemático Isaacson, seu colaborador, fundaram o estúdio de música experimental da Universidade de Ilhnois. Suas pesquisas os levaram a criar o Music Stimulator Interpreter for Compositional (MUSICOMP). No prolongamento dessas pesquisas, e trabalhando com os computadores da Bell Telephon Company, Max Mathews e John R. Pierce conseguiram, no final dos anos 50,
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gerar, graças ao computador, u m a série determinada de amostras [de ondas da palavra]. Tornava-se possível, em princípio, sintetizar qualquer onda sonora. E m princípio, todos os obstáculos à geração do som eletrônico haviam sido transpostos, situando-se os limites, daí para a frente, na escolha dos sons a serem produzidos. N a verdade, esses sons precisam ser especificados, n ã o em termos de instrumentos ou de indicações de interpretação, mas em termos de detalhes sobre a natureza da onda. J. Pierce
Estava nascendo a música programada, automática, informatizada.
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Na época em que Pierre Barbaud recorria ao termo "algorítmica" para qualificar sua música, Iannis Xenakis (de quem falaremos mais no capítulo seguinte) propôs uma teoria da música "estocástica". Em Vers une métamusique [Com vistas a uma metamúsica], escreveu em 1967: "A serviço da música, como de toda atividade humana criadora, o pensamento científico e matemático deve amalgamar-se diretamente com a intuição." Nicole Lachartre comentou: U m a c o n c e p ç ã o revolucionária da música, baseada nas leis universais do cálculo das probabilidades e da lógica. À m ú s i c a 'estocástica' [do grego stochosr. "alvo", "objetivo"]
Na França, Pierre Barbaud, nascido em 1911, foi o primeiro músico a propor, em 1950, "a introdução do pensamento matemático e dos métodos que dele decorrem na composição musical". Em 1958, fundou o grupo de música algorítmica, com Roger Blanchard e, mais adiante, Janine Charbonnier. Partindo do princípio de que "jamais um homem de gênio, por mais excepcional que seja, substituirá a máquina", Pierre Barbaud imaginou os chamados programas Algol; fez uma dúzia deles, graças à receptividade que encontrou na empresa Bull (depois Bull-General Electric). Ele formulou de forma precisa seu pensamento em duas publicações: La Composition automatique [A composição automática, 1966] e La Musique, discipline scientifique [A música, m^ciphna científica, 1968]. Submeter o surgimento de acontecimentos sonoros simples ou compostos a u m cálculo,
Xenakis aplica a lei dos grandes n ú m e r o s , especificando que, quanto mais numerosos os f e n ô m e n o s , mais se dirigem a u m objetivo determinado.
Trabalhando em máquina IBM, Xenakis realizou entre 1958 e 1964 uma série de obras, ora instrumentais, ora eletroacústicas, com seu programa "estocástico": ST/10, Amorsima-Morsima, Morsima-Amorsima, ST/48, Astrées, Eonta. Nessa mesma época, Michel Philippot (nascido em 1925), cientista e músico, vindo do serialismo mas bastante interessado — como pudemos ver no presente capítulo — nas primeiras experiências de música concreta [Étude, 1952], concebeu uma "máquina imaginária" que, segundo F. Brown, pretendia lançar as bases de uma metodologia análoga a u m controle de processo cibernético, em
atacar com todas as forças o que se convencionou chamar de "inspiração", canalizar o
que a programação e a m á q u i n a permanecem exteriores. Essa m á q u i n a imaginária, rea-
acaso em organogramas, substituir por uma atividade encarada lucidamente a passivi-
lizável, mas jamais construída, análoga a uma m á q u i n a de Turing (para a pesquisa l ó g i -
dade mística do compositor diante da "musa" — tais s ã o as idéias que afloram neste
ca), mas cujos conceitos s ã o compatíveis com uma realização técnica, permite a seu
período.
inventor descrever com todo rigor o fato composicional em sua integralidade.
Em 1973, Pierre Barbaud associou-se com o especialista em acústica F. Brown e o perito em informática G. Klein, para fundar o grupo BBK e ampliar sua esfera de investigação, sempre com a ajuda das máquinas Buli. Ele trabalhou daí por diante no Institut National de Recherche en Informatique et en Automatique (Instituto Nacional de Pesquisa em Informática e em Automatização, ENRIA). Foi Allan Resnais, na esfera do cinema, quem primeiro prestou atenção aos trabalhos de Pierre Barbaud; este compôs para o cineasta as músicas de Le Mystère de l'atelier 15 [O mistério do ateliê 15] e Le Chant du Styrène, em 1957 e 1958. Pierre Barbaud traduziu para instrumentos suas músicas concebidas pelo cálculo matemático: French Gagaku, Mu-Joken, num período inicial de sua produção, e depois Machinamentumfirminiense(1971), uma obra que ele preza muito (para três grupos de seis instrumentos), e Terra ignota ubi sunt leones [Terra ignota povoada por leões, 1973]. Somente em 1974, quando enfim dispôs de um conversor numérico analógico, Pierre Barbaud não precisou mais fazer sua transcrição instrumental a mão, depois de decodificar os resultados.
Essa máquina-procedimento que Pliifippot diz "de disciplina mental que o compositor aplica a si próprio" pode também determinar obras pictóricas, além de musicais, e tende a definir uma estética matemática; o objetivo consiste em "esforçar-se para descobrir as regras que presidem à estrutura do objeto estético, em dar eventualmente uma expressão matemática dessas regras, em delas tirar um modelo que permita uma verificação lógica ou experimental". Entre as obras de Philippot que demonstram seu interesse pela organização da linguagem e dos sons, registremos Composition ZVpara orquestra (1982), Quarteto para cordas n" 2 (1982), Concerto para violino (1984) e sobretudo Les Carrés magiques [Os quadrados mágicos, 1983], para orquestra, em homenagem ao matemático Évariste Gallois. Jean-Étienne Marie, nascido em 1917, reivindica a honra de haver sido o primeiro compositor a misturar instrumentos e fita magnética na França (Polygraphie, 1957), ou orquestra e fita (Images Thanaques, 1961, por encomenda de Igor Markevitch), "dentro de um sincronismo rigoroso que representava uma reação contra os aleatórios schaefferianos". Também esteve presente no grupo de música
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concreta, tendo participado de seus trabalhos (Expérience ambiguë [Experiência ambígua], 1962). Um apaixonado pelo universo dos microintervalos e pelo trabalho de Julian Carrillo nesse domínio ( Tombeau de Julian Carrillo [Homenagem a Julian Carrillo], 1966), ele fundou em 1968 o Centre International de Recherche Musicale (Centro Internacional de Pesquisa Musical, CIRM) para "permitir que os compositores explorem o mundo dos microintervalos por meio da eletroacústica". Imaginou e construiu um instrumento a que deu o nome de complexe expérimental de recherche musical [complexo experimental de pesquisa musical, CERM], sintetizador portátil afinado em microintervalos não temperados. "A união de sintetizador e informática", ele disse, "parece-me impor a necessidade de repensar a música em nossos dias." Em 1976, ele publicou importante volume, L'Homme musical [O homem musical], em que faz a síntese de suas reflexões e de sua postura artística.
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Na história da música, encontramos em cada época clãs, escolas e querelas, mas não pode haver dicotomía à maneira de Yalta. Ao evocarmos "a nebulosa de Darmstadt", reunimos os compositores para os quais a descoberta da Escola de Viena constituiu o coup de foudre inicial de sua juventude: vimos que, em seguida, muitos deles tomaram liberdades crescentes em relação ao serialismo pós-weberniano. Mas devemos acrescentar que os cursos de verão de Darmstadt não eram sectários; muitos outros jovens músicos também o freqüentaram e com grande proveito, ainda que só tenham feito um estágio de iniciação no serialismo, logo tratando de seguir outros rumos. Da mesma forma, muitos mestres ensinaram ali, sem ter nada a ver com a Escola de Viena: o ilustre exemplo de Varèse, em 1950, é prova disso. Da mesma forma, muitos jovens compositores não tardaram a manifestar vivo interesse pela "revolução eletroacústica". Vieram trabalhar, por maiores ou menores períodos — às vezes, em várias ocasiões —, nos estúdios de Paris, de Colônia, de Milão ou em outros mais, sem ter a impressão ou a vontade de estar cerrando fileiras sob uma bandeira exclusiva. O que chama atenção nessa prodigiosa "geração de 1925" (mais exatamente, de 1918 a 1933), quase inesgotável em gênios e em grandes talentos, é sua repugnância por rótulos restritivos. A maior parte dos itinerários foi marcada pela liberdade, a curiosidade sempre desperta, o gosto pelas experiências novas, a necessidade de renovar-se para se encontrar (quase se inventar) ainda mais. A despeito de inevitáveis choques e desentendimentos, a amizade se internacionalizou cada vez mais. Aos compositores da "Europa dos Seis" de outrora, que ficaram com um espaço maior nos dois capítulos precedentes, responderam os criadores originários de outros pontos do mapa ou que de lá não se afastaram.
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Mais do que responderam: suas iniciativas foram, em mais de um caso, decisivas. Cada um se deu conta — e esse sentimento só fez aumentar — de que sua aventura, para seguir adiante, precisava da fraternidade do trabalho. O presente capítulo ainda se limita à Europa; no seguinte, abordaremos os caminhos e as ações do outro lado do Atlântico, as descobertas feitas, a renovação de suas problemáticas e o caráter saudável de suas contestações. A França ANDRÉ BOUCOURECHLIEV A grande idéia poética que se inscreve na obra de André Boucourechhev é a da forma aberta, com o conceito de Arquipélago imediatamente associado a seu trabalho de compositor. Ele causou sensação entre 1967 e 1970, quando se tornaram conhecidas as diferentes "ilhas" musicais que compõem esse arquipélago. Nascido em Sofia em 1925, André Boucourechhev veio para Paris, com uma bolsa para concluir seus estudos de piano. Nunca mais partiu. Interessou-se pelo que havia de mais novo em matéria de perspectivas abertas à música. Seus contatos com os contemporâneos (Maderna, Berio, Boulez) que conheceu (em Paris, em Milão ou em Darmstadt) foram determinantes para ele como compositor, sem que em momento algum se sentisse dependente de um sistema serial. Voltou-se em primeiro lugar para a eletroacústica (Texte I,1957, no Estúdio de Fonología de Milão, junto a Berio; Texte II, 1959, no Grupo de Pesquisas Musicais da Rádio e Televisão Francesa). Veio em seguida a série de obras instrumentáis reunidas sob a designação genérica de Archipels [Arquipélagos] (I para dois pianos e percussões, 1967; II para quarteto de cordas, 1969; III para percussões, 1969; IV para piano, 1969; (An)archipel para seis instrumentos concertantes, 1970). O compositor assim descreveu, quase como um poeta, as grandes folhas da partitura do primeiro Arquipélago:
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tica e aos processos acústicos de seus primeiros anos. Mas, para essa pungente lamentação sobre a morte de Anatole, filho de Mallarmé (Serge Nigg compôs, sobre o mesmo tema, o Chant du dépossédé [Canto do desapossado]), Boucourechhev recorreu à massa coral e a recitantes. Expandindo ainda mais seu domínio de pesquisa, chegou em 1978 à ópera, com Le Nom d'Œdipe [O nome de Édipo], sobre um texto de Hélène Cixous. Projetou uma nova ópera, Un Amour cruel [Um amor cruel], inspirada em Tanizuki. De 1979 a 1983 escreveu a série dos Orions (I, II, III), respectivamente para órgão, para piano, para piano mais cinco metais e percussões. Também interessou-se pela voz: Lir de neige [Leito de neve, 1984], para soprano e dezenove instrumentistas. Beethoveniano de coração e espírito, prestou uma dupla homenagem a Beethoven, com Ombres [Sombras, 1970], obra para conjunto de cordas, nascida da leitura dos quartetos para cordas de Beethoven, e com uma monografia sobre o gênio germânico (Beethoven, 1963), notável ensaio de análise com base nos critérios mais novos da consciência musical contemporânea. Ele já havia escrito um Schumann em 1956; publicou um Stravinski em 1982. Tanto pela força evocativa de suas imagens como pela forma precisa com que se expressa, Boucourechfiev revela-se um autêntico escritor. MARIUS CONSTANT Constant seguiu um caminho sob vários aspectos paralelo ao de seu contemporâneo Boucourechhev. Nascido em Bucareste em 1925, terminou seus estudos no Conservatório de Paris, onde foi aluno de Messiaen, antes de freqüentar o grupo de pesquisas musicais da Rádio e Televisão Francesa. Jamais sentiu necessidade de reportar-se ao universo do serialismo; sua obra foi guiada por um espírito de "abertura" que o levou até mesmo à improvisação coletiva. Depois da pesquisa de timbre que representam os Vinte e quatro prelúdios para orquestra, o trabalho de Marius Constant se voltou para o aleatório. Segundo Claude Rostand,
Elas estão concebidas como grandes cartas de navegação sobre as quais os quatro intér-
Les Chants de Maldoror [Os cantos de Maldoror, 1962] explora o d o m í n i o do aleatório,
pretes são chamados a escolher, orientar, modificar incessantemente o rumo que devem
partindo de u m texto p o é t i c o (o de Lautréamont). Winds [Ventos, 1968] reflete a liber-
seguir. O trajeto entre as ilhas do arquipélago jamais se repete, sempre novo a seus olhos.
dade de escolhas in abstracto inspirada pelo jogo de timbres dos instrumentos de sopro.
Nessas águas incertas, sem faróis nem bóias de luz, eles, no entanto, n ã o navegam à
E em Traits [Setas, 1969] a improvisação renova a velha fórmula surrealista do cadavre
deriva: n ã o se v ê e m nem trocam sinais para orientação m ú t u a ; simplesmente se escu-
exquis.
tam, às vezes l a n ç a m chamados uns aos outros com a música. Nessa estreita c o m u n h ã o musical de todos os instantes traçam sua rota imprevisível, mas partilhada. A m í n i m a decisão que um toma engaja totalmente a do outro. Quero dizer: essa d e p e n d ê n c i a em
A fonte do interesse de Constant pela improvisação coletiva está na sedução que o jazz e os músicos de jazz exercem sobre ele:
que eles exercem sua liberdade de escolha exclui qualquer idéia de acaso.
Com Faces (1971), Boucourechhev chega às margens da composição para grande orquestra; com Amers (1972-1973), que inspira Saint-John Perse, reúne um conjunto de dezenove instrumentos. Com Thrène (1973-1974), retorna à fita magné-
Adotando outra técnica, eu quis mostrar que os instrumentistas clássicos podiam rivalizar com os jazzmen. (...) Faço questão de deixar claro que a improvisação coletiva n ã o é uma liberação, uma catarse, u m a explosão, como tampouco é o surgimento de uma arte nova. É u m exercício difícil, que s ó pode ser praticado por profissionais de elite, que
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produz objetos efêmeros, mas que, da mesma forma que u m psicodrama, revela elementos profundos e insuspeitados do d o m í n i o da criação, da projeção e da interpretação.
O gesto musical de Marius Constant harmoniza-se, portanto, com a interpretação de um corpo coletivo; ele próprio é um excelente regente de orquestra, fundador do Ensemble Art Nova, com o qual divulga o que há de mais novo em matéria de repertório. Mas seu interesse estende-se também às artes do espetáculo. Já em Les Chants de Maldoror era um dançarino-regente de orquestra que, diante do recitante e dos instrumentistas, marcava sua própria coreografia. Ele prosseguiu nesse espírito, escrevendo para o balé (com o pensamento em Maurice Béjart, em Roland Petit) e para o teatro musical; ainda e sempre atraído pelo jazz, fez com Martial Solai experiências mistas para músicos de jazz em combinação com músicos "clássicos". FRANCIS MIROGLIO O princípio da forma "aberta e móvel" também seduziu Francis Miroglio (compositor francês nascido em 1924 e outro que passou por Darmstadt). Ele colaborou com artistas plásticos como Miró ou Calder (Projeçõespara quarteto de cordas com dispositivos de pinturas de Miró ad libitum, 1966), procurando assim estabelecer um "simbolismo da associação do visual e do auditivo". Strates éclatées [Estratos despedaçados] para orquestra (1973), Horizons courbes [Horizontes curvos] para conjunto instrumental variável (1978)... títulos que sugerem um universo visual. Não é de surpreender, portanto, que Miroglio também tenha sido tentado pela abordagem do teatro musical. CLAUDE BALLIF Nascido em 1924 na Alemanha — situação relativamente rara para um compositor francês e que o aproxima do jovem Varèse —, Claude Ballif passou muitos anos em Berlim e em Hamburgo. Ao terminar seus estudos, trabalhou com Boris Blacher (1903-1975) e Hermann Scherchen, freqüentou o curso de Darmstadt e aprofundou-se no estudo da música dos doze sons, o que ele considerava uma "necessidade". Depois disso, esse ex-aluno de Messiaen escreveu seu próprio tratado, Introduction à la metatonalité [Introdução à metatonafidade, 1953], em que defende o emprego de uma escala de onze sons. Esteve entre os primeiros que introduziram o acaso numa partitura (Phrases sur le souffle [Frases sobre o sopro], 1958). Mas soltou ainda mais seu talento entregando-se à inspiração lírica confortada por uma fé mística. Compôs vastos aíreseos orquestrais e vocais onde se propunha a "construir, ele mesmo, seu próprio caos": A cor et à cri [Com trompa e voz, 1962], La Vie du monde qui vient [A vida do mundo que vem, 1972] e Fantasio, dos quais se pode dizer que se situam mais na
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descendência de um Mahler que na de seus predecessores imediatos. Em 1972, Cendres [Cinzas], para seis percussionistas, e, de 1978 a 1980, Un coup de dés, Mallarmé [Um lance de dados, Mallarmé], para coro, instrumentos e fita magnética, manifestam a mesma independência de pensamento. Finalmente, uma ópera, Dracoula [Drácula], em 1984. E m minha música, eu falo, conto essa ou aquela história. U m a sonata é u m romance, uma síntese de formas, jogos de opostos, u m passeio como em Schubert. (...) A obra c o m e ç a e termina com algo sonoro, sejam quais forem os suportes escolhidos: vozes, instrumentos ou alguma novidade que esteja em moda. Que o som venha para fora, de dentro de m i m e que eu o escute com meus próprios ouvidos! Os dos outros n ã o tardarão a escutá-lo.
Compreende-se que ele seja um apaixonado pela personalidade e pela arte de Hector Berlioz, sobre quem escreveu um livro de tom muito pessoal. Claude Ballif é antes que tudo um temperamento, irredutível e consciente de sua singularidade, mas violentamente projetado em direção aos outros. Desse temperamento ele expressou o que possui de mais lúcido e de mais generoso em Voyage de mon oreille [Viagem de meu ouvido, 1979]: Mostro aqui os seixos que fui apanhando em meu caminho, que é uma mistura de tudo, entre acasos e necessidades, firmes intenções e "liberdade reencontrada a gosto". Sempre oscilante, do esforço solitário para o mergulho no grande todo: oferecer sua música, cujas idéias são indissociáveis da oferenda em si mesma.
BETSY JOLAS Antes de também se tornar aluna de Messiaen, Betsy Jolas, nascida em Paris em 1926, havia tido a chance de viver nos Estados Unidos seus anos de colegial e seus primeiros anos de estudos musicais. Lá, graças à sua participação nos trabalhos de um importante coral, adquiriu notável conhecimento das músicas polifónicas antigas (Josquin Des Prés e Orlando de Lassus), cuja influência ela reconheceu ter sido determinante em seu enfoque de composição e na atração que sente pela voz como instrumento. Sua dupla formação, na França e nos Estados Unidos, permitiu-lhe considerar com um certo distanciamento a compartimentação em "escolas" e "grupos" que ocorreu na Europa do imediato após-guerra. Jamais sentiu-se tentada pelo serialismo: "Era para mim como um purgatório, e eu me perguntava se havia mesmo necessidade de passar por aquilo." Tampouco se preocupou com formas "abertas" ou com o "aleatório". Seu pensamento se orientou antes de mais nada para um universo sonoro, para uma magia sonora, que era o que lhe importava tentar traduzir, trazendo para fora de seu sonho. Suas obras, sempre de uma escrita muito precisa, orientaram-se em boa parte no sentido de pesquisar a voz: Quarteto II (1964) para soprano e trio de cor-
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das e Sonata a 12 (1971); ou tentaram uma abordagem instrumental à imagem da voz, como em D'un Opéra de voyage [De uma ópera de viagem, 1976], para 22 instrumentos, e How Now (1973) para octeto. O mesmo espírito, ao mesmo tempo despreocupado e laborioso, caracterizou certas peças como Stances [Estrofes, 1978], para piano e orquestra, e a ópera Le Pavillon au bord de la rivière [O pavilhão à beira do rio, 1975], sobre um texto de Kuan Han Chin, em que ela justapôs as diferentes técnicas da arte vocal com grande refinamento e notável desenvoltura. Também aconteceu de ela ficar atenta às propriedades e sonoridades de certos instrumentos, como foi o caso da série dos Épisodes ( I a VI, 1964¬ 1984). Só começo a trabalhar quando tenho a visão da forma (não o detalhe). Deixo essa visão ir passando uma porção de vezes dentro de mim. Como a vista que a gente tem do alto de um avião. Vêem-se paisagens imensas,florestas,rios, mas o detalhe escapa. CHARLES CHAYNES
A atração pela voz também motivou uma parte importante da criação de Charles Chaynes, nascido em 1925, pelo menos na etapa mais nova dessa criação, depois de ele haver escrito muita música instrumental. Com Quatre poèmes de Sappho [Quatro poemas de Safo, 1968], Pour un monde noir [Por um mundo negro, 1978], sobre textos africanos e antilhanos, e a ópera Erzsebet (1983), Charles Chaynes abriu para si um caminho novo, em sintonia com essa intenção emocional que governou sua música e que pressupunha o primado do elemento emotivo sobre a técnica pura numa linguagem serial mais livre. "Parto sempre de uma série de base, mas sem utilização rigorosa. Essa série é um material à minha disposição, mas não é o único." As Peintures noires [Pinturas negras, 1975] para orquestra, inspiradas em Goya, da mesma forma que M'zab (1972) para piano — em que o compositor mostra-se receptivo para a música árabe —, demonstram a abertura artística de Chaynes e sua curiosidade no que diz respeito à renovação dos timbres. O que alimenta o compositor que sou é um certo estimulante necessário, proveniente de fora da música: e o mais das vezes é a poesia que funciona como tal. Ou alguma obra de arte. Ou lugares privilegiados. Não há como deixar de mencionar uma influência profunda, que é a da arte antiga, em especial a arte etrusca.
Em 1987, desenvolveu o projeto de uma nova ópera, Bodas de sangue, extraída da peça de Lorca, de que fez, ele próprio, o libreto. JACQUES CHARPENTIER
Charpentier partiu para as índias muito jovem: tinha vinte anos quando descobriu Calcutá (1953-1954). De volta a Paris (onde nasceu em 1933), terminou seus estudos musicais e freqüentou a classe de Olivier Messiaen, que justamente nessa
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época dava um curso sobre os ritmos da índia. Messiaen o encorajou a escrever seus Études karnatiques para piano, obra que, passados trinta anos, continua original e excepcional. O projeto inicial era escrever 72 estudos "karnáticos" de uma enfiada; na verdade, 24 foram compostos entre 1957 e 1961. Os outros 48 só escreveu mais de vinte anos depois, em 1984: O piano é tratado como percussão ou em escalonamento de ressonâncias, à maneira da tabla ou da vina. Trata-se de uma obra semfim.De fato, Jacques Charpentier atribuiuse o encargo de escrever uma peça de piano para cada modo "karnático", (...) sendo 72 o número desses modos. Nessa obra, a pesquisa de ritmos hindus avizinha-se de outras pesquisas de forma ou de escrita. O conjunto se afasta dos diferentes sistemas atualmente em voga: cada peça impõe o modo no qual foi escrita e os procedimentos decorrentes do seu uso. (O. Messiaen)
A maneira de seu mestre, Jacques Charpentier inscreve-se na linhagem e na tradição dos organistas franceses. Escreveu muito para seu instrumento. Sempre curioso, compôs também uma ópera em langue d'oc, Béatris, que estreou em Aixen-Provence em 1971. A Espanha Situando-se fora de sistemas de composição considerados excessivamente coercitivos e orientados para um nível de abstração grande demais, numerosos compositores esforçaram-se para desenvolver uma linguagem mais flexível que, sem renegar as contribuições do método serial, fosse posta a serviço de novas formas de expressividade e permitisse aos exécutantes uma atuação menos repetitiva, mais espontânea — e mesmo variável — na interpretação das peças. Dois compositores espanhóis, ambos nascidos em 1930, simbolizam esses eixos de pesquisa. CRISTOBAL HALFFTER Nascido em Madri, onde foi diretor do Conservatório antes de renunciar a seu cargo para consagrar-se inteiramente à composição, Cristobal Halffter teve como ponto de partida um propósito de escrita serial (Sonata para violino, 1959), de que se desligou em seguida. Suas obras, reveladoras de um estilo vigoroso, orientam-se no sentido de uma vontade de expressão que deseja refletir a consciência de um homem — e de um místico — de nossos dias: Llanto para las victimas de la violencia (1970-1971), para conjunto de câmara e dispositivo eletroacústico; Requiem por la libertad imaginada (1971), para grande orquestra; Gaudium etspes [Alegria e esperança, 1973-1974], para coro e fita magnética; Elegios a la muerte de tres poetas españoles (1974-1975); Officium Defunctorum (1977), para coro e orquestra; Tiento (1980), para orquestra; e a ópera Maria Pineda, baseada em Lorca.
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A morte inscreve-se no centro do universo poético do compositor, assim como no centro de sua obra: Nós, espanhóis, passamos a vida a brincar com a morte; pensem nas touradas! (...) Sinto-me espanhol demais e, por isso, a morte me é próxima. A morte, tal como a concebo, é a nossa fusão no cosmo; ela contém em si a promessa da vida dos outros.
Foi a autenticidade do engajamento dele no propósito de assumir sua época, assim como sua qualidade de "vanguardista" espanhol, num momento histórico em que não era fácil sê-lo, que o fez escrever para a Organização das Nações Unidas, em 1968, a cantata Yes, Speak Out [Fale!] sobre um texto de Norman Corwin. LUIS DE PABLO
Luis de Pablo nasceu em Bilbao, num meio menos tradicionalmente musical que o de Cristobal Halffter, cuja família tem toda uma linhagem de musicistas; isso o torna mais representativo das dificuldades que os jovens compositores espanhóis dessa geração tiveram que vencer para alcançar as correntes de idéias que agitavam seus confrades europeus. Compositor autodidata, mas de uma cultura geral enciclopédica, ele tomou conhecimento das pesquisas musicais que então se efetuavam (as de Maurice Ohana, Jean-Étienne Marie, Pierre Schaeffer, Pierre Henry etc.) graças às eventuais e curtas passagens de músicos estrangeiros pela Espanha — quase sempre franceses, aliás — ou à leitura de hvros importados (os de Leibowitz, entre outros). Em 1958, alguns compositores espanhóis, ardendo de curiosidade, agruparam-se sob o rótulo de Nueva Musica. Luis de Pablo estava entre eles, assim como Cristobal Halffter. No ano seguinte, Luis de Pablo pôde ir a Darmstadt. Com certo atraso, incorporou-se daí por diante à vanguarda musical européia. Animador excepcional, que reivindicava para a Espanha o direito de viver em sintonia com as idéias contemporâneas, ele fundou o grupo Tiempo y Musica, cujo objetivo era difundir a música jovem. Pouco mais tarde, em 1965, tendo questionado a escrita serial e descoberto o interesse das formas móveis, fundou o grupo Alea, em que introduziu a música eletrônica. Embora Movil (1958), para dois pianos, ainda pertença aos princípios seriais, Radial (1960), para orquestra de câmara, e Polar (1961), para conjunto de câmara, assinalam as primeiras tentativas em direção à obra móvel. A série dos Modiãos (1965-1967), para diversos conjuntos instrumentais, deixa a porta aberta a uma certa liberdade do intérprete. Muito interessado em cinema, Luis de Pablo voltou-se também para o teatro musical com Por diversos motivos {1969'-197'0), "ação cênica" para soprano, atores e três pianos. Depois, escreveu Very Gentle [Muito suave, 1973-1974] para soprano, contrabaixo e instrumentos, um Concerto para piano e orquestra (1979) e uma ópera, Kiu, sobre uma cidade imaginária.
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A Hungria GYÕRGY LIGETI
Húngaro nascido na Transilvânia romena em 1923, tendo feito todos os seus estudos em Budapeste, Gyõrgy Ligeti ignorava qualquer pesquisa que pudesse estar sendo feita fora das fronteiras de seu país. Ockeghem, Bartók e Debussy eram seus mestres; de Stravinski esperava muito, depois de uma vez ter ouvido A sagração da primavera sem jamais ter visto a partitura, e conhecendo também Petruchka. No entanto, compunha obras suficientemente audaciosas e pessoais para que fosse admissível retirá-las da sombra das gavetas: tal era o caso de seu Quarteto para cordas n° 1 (1953). A insurreição húngara de 1956 fez de Gyõrgy Ligeti um emigrado. Sua primeira escala foi Colônia, onde trabalhou no estúdio de música eletrônica. Iniciou-se nessa linguagem, inteiramente nova para ele. Estudou com espírito crítico a escrita serial. Em 1959, fixou-se em Viena, e aí adquiriu a nacionalidade austríaca. Mudou-se depois para Hamburgo. Suas primeiras obras importantes datam do fim dos anos 50. Com Apparitions [Aparições, 1960], Atmosphères [Atmosferas, 1961] e Lontano (1967), obras para orquestra, Ligeti se afirmou como um compositor dos mais avançados. A linguagem musical elaborada nessas obras é nova, não mais baseada na ordem melódica e harmônica mas numa percepção macroscópica do material sonoro. Ele constrói superfícies estáticas que se modificam imperceptivelmente e sonha com uma música que possa fluir de modo contínuo, como se não tivesse nem começo nem fim e representasse apenas um corte em algo preexistente. O espaço criado por Ligeti é imaginário, e sua essência é totalmente diversa dos espaços reais que regem a estrutura de certas obras de Cage ou de Stockhausen (a disposição física, por exemplo, das três orquestras de Gruppen, de Stockhausen, desempenha um papel formal na obra). Ligeti, ao contrário, sugere o espaço por associações de timbres; como acontece no célebre Requiem (1963-1965), cuja música, sofisticadamente misturada com a de Atmosphères e a de Lux aeterna (1966), foi utilizada em passagens do filme 2001, uma odisséia no espaço. Numa concepção de extremo refinamento, ela continua a explorar essa técnica particular que Ligeti chama de "superfície de timbres", ao mesmo tempo estática e movimentada, assim como um estilo "entrecortado" que o compositor já anteriormente empregara no trabalho cênico que realizou com Aventures (1962). Aventures, seguido quase imediatamente por Nouvelles aventures (1965), para três solistas e sete instrumentistas, é uma peça de tremendo virtuosismo, toda construída em cima de fonemas. Tal como acontecera com o Requiem, Aventures — talvez pela audácia de sua proposta — tornou-se imediatamente célebre. Ligeti, que jamais buscou a publicidade gratuita, aceitou-a de bom grado, defendendo o conceito de "elitismo democrático":
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Não creio que minha música seja erudita, mas sem dúvida é uma música por vezes complexa, que pretende situar-se num alto nível. Sou contra toda elite aristocrática, e está claro que posso também fazer música "popular", mas esta não é a que escrevo. Isso significa que eu escreva música elitista? Pode ser, mas elitista-democrática. Ou seja, cada um deve ser capaz de penetrar nela, mediante um esforço. Nunca procurei agradar quem quer que fosse. Quero fazer uma música sem qualquer concessão.
Uma série de peças instrumentais como o Concerto para violoncelo (1966), os dois Quartetos para cordas (1968 e 1969), as Ramifications [Raimficações, 1969], para orquestra de cordas, o Concerto de câmara, (1969-1970), Clocks and Clouds [Relógios e nuvens, 1972-1973], para vozes solistas e orquestra, San Francisco Polyphony (1973-1974), o Selbsportrait(l976), para piano, dão testemunho da associação muito pessoal, em seu estilo, entre uma concepção mecânica do ritmo (os "clocks" a que alude o título de uma de suas obras) e um emprego da matéria sonora no que ela tem de mais difuso (as "clouds"). O burlesco na vivacidade é uma dimensão já aparente em Aventures. Ligeti não vê problema em recorrer mais uma vez a essa fórmula, sempre com o mesmo virtuosismo, numa ópera, Le Grand macabre [O grande macabro], encomenda da Ópera de Estocolmo, baseada no texto da La Ballade du grand macabre de Michel de Ghelderode. A partitura ficou pronta em 1977, depois de três anos de trabalho. A música e a palavra funcionam sem subentendidos psicológicos. Le Grand macabre pertence mais propriamente à tradição das danças macabras medievais, dos mistérios e do guignol, do teatro de feira e das periferias. A peça de Ghelderode já tinha um parentesco com o Ubu roi [Ubu rei] de Jarry. Esforcei-me por reencontrar o panache, que logo se percebe, de Jarry.
O empreedimento é outro sucesso de Ligeti. Diversas companhias renovam a encenação do espetáculo suntuoso e delirante. Depois, ele trabalhou em nova ópera, A tempestade, inspirada na peça de Shakespeare. Sua criatividade está resolutamente voltada para o futuro da música: Só o espírito criador, que está sempre se renovando, é capaz de evitar e combater a rigidez e a paralisação, o novo academicismo; não há como escolher o repouso ou o retrocesso sem sucumbir à ilusão de um terreno firme que não existe.
GYÕRGY KURTAG
Nascido em 1926, Gyõrgy Kurtag permaneceu em seu país, tornando-se o mais eminente representante da escola húngara. Ele só reconhece sua obra a partir do Quarteto n° 1 (1959), escrito depois de haver passado dois anos em Paris, onde trabalhou notadamente com Olivier Messiaen e depois de ter descoberto a música da Escola de Viena. Les Dires de Peter Bornemisza [Os dizeres de Peter Bornemisza], concerto para piano e soprano (trabalhou cinco anos nessa obra, terminada em
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1968) deram-lhe fama internacional. Kurtag gosta de empregar o zimbalão, instrumento tradicional da Hungria, sem fazer quaisquer associações com a música folclórica, como em En Souvenir d'un crépuscule d'hiver [Em lembrança de um crepúsculo de inverno, 1969] e como já acontecia em Huit duos [Oito duos, 1961], para violino e zimbalão — depois, no grande afresco lírico que constituem as Messages de feue demoiselle R.V. Troussova [Mensagens da falecida Mlle. R.V. Trussova, 1980], baseadas em 21 poemas de Pvimma Dalos, surpreendente seqüência de Lieder para soprano e conjunto instrumental com zimbalão incluído.
A Polônia A tendência, na maior parte da música atual, é cada obra envolver a concepção de uma forma que lhe é própria; dá-se o mesmo com a instrumentação, com o material sonoro que lhe é atribuído: raramente corresponde às convenções preexistentes. O desejo de personalizar cada obra provocou uma pesquisa de renovação e uma diversificação crescente dos recursos sonoros. Doravante, os instrumentos já não são explorados apenas em função do papel que lhes é atribuído numa dada época; consideram-se "corpos sonoros" que devem ser aproveitados segundo suas múltiplas facetas. KRYZTOF PENDERECKI O compositor polonês Kryztof Penderecki, hoje mundialmente conhecido, nasceu em 1933. Foi um dos que caracterizaram mais fortemente a experimentação de novas qualidades instrumentais e orquestrais a partir dos anos 50. Foram, aliás, a novidade e a originalidade de sua linguagem, mostradas nos Lamentos à memória das vítimas de Hiroshima (1960), que primeiro atraíram para o compositor a atenção internacional. A obra foi concebida para um conjunto de 52 instrumentos de cordas. A pesquisa em torno dos sons (o emprego de clusters), em torno do timbre dos instrumentos de cordas {glissandi, toques nas cordas com a madeira do arco, fricção das cordas), e mesmo em torno de objetos passíveis de uso musical (sirenes, assobios, máquina de escrever, campainha elétrica etc.) imbrica-se com a exploração das grandes massas orquestrais, a forma e o timbre atuando reciprocamente no sentido de fundir-se, de criar juntos uma nova linguagem que procede por blocos sonoros ou por "lençóis de som". Mais tarde, obras de inspiração fitúrgica, notadamente a Paixão segundo São Lucas (1963-1965), iriam mostrar sua aptidão para unir características estilísticas muito diversificadas e ultrapassar a oposição tantas vezes proclamada entre os vocabulários musicais tradicional e experimental. Ele persiste no gênero com peças como o duplo oratório Utrenja [O sepultamento, 1969-1970], Ressurreição (1970¬ 1971), um Magnificat (1973-1974), um Despertar de Jacó (1974), um Te Deum (1979), etc. Suas duas óperas, Os diabos de Loudun (1968-1969) e Paradise Lost
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[Paraíso perdido, 1976-1978], também tratam de temas religiosos. Algumas obras instrumentais são ligeiramente "neoclássicas" em espírito, como um Concerto para violoncelo e orquestra (1972) e um outro para violino (1976-1977). Passando parte de sua vida nos Estados Unidos e parte na Polônia, Penderecki nem por isso se sente menos engajado em relação a seu país. A prova nos é dada pelo Lacrymosa que escreveu para a inauguração do Monumento às Vítimas de Gdansk. O próprio compositor qualifica como "patrióticas" as obras de sua fase mais recente. Acham-se neste caso o Te Deum, dedicado ao papa João Paulo I I (1980), o já mencionado Lacrymosa e o grande Réquiem polonês (1982). Todas essas obras se referem, por um jogo de citações e de alusões, à história secular da Polônia. "Não sou indiferente à minha época; tomo partido. Se minha música for capaz de, já não digo mudar o homem, mas de ajudá-lo um pouco, tanto melhor." Sua ópera Máscara negra (1986) pretende romper com as preocupações anteriores. "Podem considerar minha música como sendo uma confissão, sem que eu veja nisso algum inconveniente", ele diz. "Sob este aspecto, sou um romântico." A verdade é que, historicamente falando, Penderecki teve sorte. Fazendo uma entrada triunfal no mundo dos criadores, em 1959, depois que três obras suas foram premiadas de uma só vez (Estrofes, Salmos de Davi e Emanações) dentre as duzentas de autores com pseudônimos enviadas para o concurso de jovens compositores organizado pela União dos Compositores Poloneses, Penderecki beneficiou-se do período do "degelo" (que começou em 1956), quando, ao cabo de dez anos de travessia do deserto, a política cultural abriu-se para a música nova. "De 1945 a 1948, houve 43 audições mundiais de obras de compositores poloneses. De 1948 a 1956, nenhuma", constata o especialista Jean-Paul Couchoud. Basta dizer que os compositores com um pouco mais de idade que Penderecki não encontraram as mesmas possibilidades de desenvolver sua arte, como as que foram oferecidas a um jovem de 26 anos em 1959.
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na cabeça, sofreu as seqüelas disso pelo resto da vida; Baird, prisioneiro num campo de concentração, de que fugiu e em que o torturaram quando foi recapturado, adquiriu no confinamento uma doença da medula de que nunca se recuperou. Ambos participaram do "Grupo 49" que, sob pretexto de "realismo socialista", reivindicava uma estética próxima daquela do "Grupo dos Seis" francês (Serocki havia sido aluno de Nadia Boulanger na França); isto não os impediu de serem os primeiros a buscar nas técnicas seriais inspiração para suas composições. "Poderia dizer que, em certo sentido, minhas obras sucessivas não são mais que uma espécie de caderno de anotações, nrinha autobiografia escrita em sons", afirmou Baird. Seu Concerto para piano e a Suíte de orquestra Colas Breugnon (1950 e 1951), que pertencem a uma primeira fase, juntamente com as Quatro experiências para orquestra ( 1956) e as Expressões para violino e orquestra ( 1959) — primeiras abordagens do serialismo —, são obras de referência obrigatória. Também o são a Música concertante (1958), Episódios (1959), para cordas e percussão, e sobretudo Segmenti (1960-1961), para orquestra de câmara, de Kazimierz Serocki. Este não teme aventurar-se em universos remotos dos novos mundos sonoros; seu Improviso fantástico (1973) reúne seis sintetizadores, três ou seis bandolins e 35 instrumentos de percussão. Seria injusto não citar, ao lado dessas fortes personalidades, a de Henryk Mikolaj Gorecki, contemporâneo exato de Penderecki (nasceu em 1933) e compositor da safra do após-1956. Pontilhismo weberniano, atenção aos timbres, intenção expressiva — são a marca constante de sua escrita, igualmente presente em Scontri (1960), para orquéstra, em Genesis (1964), cantos instrumentais para quinze exécutantes, ou em Sinfonia das lamentações (1976), para soprano e orquestra. A ex-União Soviética
SEROCKI, BAIRD E GORECKI Em 1956, os nomes de dois compositores, Kazimierz Serocki (1922-1981) e Tadeusz Baird (1928-1981), dentre os mais vigorosos de sua geração, acham-se ligados à origem do Festival de Outono de Varsóvia, verdadeira janela aberta para o mundo e a modernidade. Para se ter uma idéia do impacto dessa imciativa, é bom lembrar o que nos diz sobre a época o ilustre e veterano colega Witold Lutoslawski: Até aquele ano, o público p o l o n ê s jamais ouvira certas obras-primas da m ú s i c a do s é culo XX, reconhecidas em todo o resto do mundo como autênticos clássicos. N ã o conhecia a Sagração
da primavera.
N ã o conhecia nenhuma
obra de compositores
como
Webern, Varèse, Ives.
Tanto Serocki como Baird haviam passado por duras experiências durante a Segunda Guerra Mundial. Participaram da insurreição de Varsóvia; Serocki, ferido
Essa visão panorâmica da música polonesa — considerada necessária em virtude da abertura sempre manifestada nesse país e, particularmente, da vitalidade da jovem música polonesa do após-guerra — oferece um termo de comparação para medir as dificuldades de percurso que a história da música atravessou em muitos países do Leste Europeu. Não que a música tenha deixado de progredir notavelmente dentro dessas instituições, orquestras, óperas, conservatórios, corais etc; não que tenham escasseado exécutantes e virtuoses de primeiríssima ordem; não que tenham faltado bons compositores que se expressassem nas estéticas fartamente exploradas pelas gerações anteriores. Mas a informação sobre as músicas que subentendem uma ruptura com o passado, a pesquisa e a expressão de estéticas novas não são encontradas ou são malvistas e não se levam em consideração. A liberdade do criador se acha questionada, na medida da curiosidade que ele possa demonstrar.
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"Não existe vanguarda entre nós", declarou em 1979 Tikhon Khrennikov, primeiro-secretário da União dos Compositores da URSS, a uma jornalista ocidental a quem enaltecia o papel de "modelos" que Prokofiev e Chostakovitch continuavam a desempenhar. Isso não quer dizer que tenham deixado de fazer-se, aqui e ali, pesquisas sobre os timbres, as formas ou até mesmo sobre uma música puramente experimental; daí a importância que assumem, para nós, os compositores que representam fermentos de aventura tanto nesse país como nos outros países socialistas. Edison Denisov, nascido na Sibéria em 1929, matemático por formação, é um exemplo desses compositores; seus concidadãos o reconhecem como tal. Serialista no começo de sua carreira (Sonatapara violino epiano, 1963), Denisov sempre foi muito atento às músicas da Europa Ocidental, empenhando-se em mostrá-las a seus alunos do Conservatório de Moscou. Em sua própria obra, trabalhou com o aleatório, e mesmo com a colagem (Crescendo e diminuendo, 1965) ou com os microintervalos (Paintings, para orquestra, 1970; Aquarela, para 24 instrumentos de cordas, 1975). Grande admirador de Boris Vian, compôs inspirado nele La Vie en rouge [A vida em vermelho, 1975], para uma formação igual à do Pierrot lunaire [Pierrô lunar] de Schõnberg e uma ópera baseada em outro livro de Boris Vian: L'Écume des jours [A espuma dos dias, 1981]. Valentin Silvestrov, nascido em 1937, Alfred Schnitke, nascido em 1934, e Sofia Goubaídolina, sua contemporânea, representam as novas figuras de proa da abertura estética em seu país, como representava a estoniana Arvo Part, nascida èm 1935, emigrada em 1979. Assim se delineou uma segunda geração de após-guerra que, na verdade, constituiu uma vanguarda oficiosa. Esses compositores expressaram-se mais freqüentemente na esfera da música de câmara do que na esfera sinfônica; foi a maneira que encontraram de ser mais facilmente tocados.
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Papel semelhante pode atribuir-se, na Iugoslávia (país muito mais aberto para o exterior), ao compositor Milko Kelemen, nascido em 1924 e fundador da Bienal de Zagreb. Sua importante obra vocal recorre a textos de Sartre, Camus, Jarry e Arrabal. Influenciado por Bartók, adotou em sua obra as técnicas de escrita mais modernas. Iannis Xenakis Tendo começado a compor tardiamente, com absoluta independência de todas as correntes surgidas a partir da escola de Viena, desde o início original em seus princípios e teorias de composição, Iannis Xenakis, nascido em 1922, compositor francês de origem grega (se bem que nascido na Romênia), é um dos mais importantes criadores musicais desta segunda metade do século XX. Com seu exemplo solitário, abriu carninhos novos para o desenvolvimento da música. Formado na Escola Politécnica de Atenas, Xenakis escolheu a música depois de ter tido uma experiência dura. Seus anos de estudo não foram fáceis. Participando ativamente da Resistência em seu país, foi gravemente ferido e condenado à morte, mas conseguiu ir para Paris em 1947. Aí ganhou a vida como arquiteto e colaborou durante doze anos com Le Corbusier (é seu, notadamente, o projeto para o pavilhão Philips na Exposição Internacional de Bruxelas). E m contato com Le Corbusier, descobri que os problemas que ele levantava em arquitetura eram os mesmos com que me defrontava na música, de forma que de repente me tornei arquiteto. (...) Formado em engenharia, sabia c a l c u l a r — o que é muito raro tanto na esfera da arquitetura como na da música. Tudo c o m e ç o u a convergir. Interessei-me n ã o s ó por questões arquitetônicas e musicais, mas t a m b é m por questões filosóficas. Tudo aquilo de que eu n ã o havia podido tomar consciência, por n ã o ter estudado regularmente e por força das circunstâncias, fui descobrindo por m i m mesmo, reagrupando
Tchecoslováquia e Iugoslávia Marek Kopelent, nascido em 1932, durante muito tempo animador da Musica Viva Pragensis, demonstrou, na antiga Tchecoslováquia, a mesma abertura que Denisov na ex-União Soviética. Boulez, Berio e Nono influenciaram-no diretamente. Seu compatriota Tindrich Feld, nascido em 1925, também pode ser considerado um inovador, ainda que se esforce mais por conciliar o passado e o presente da música. Esses dois compositores beneficiaram-se do exemplo que lhes deu o veterano Miloslav Kabelac (1908-1979), para cuja obra convergiram as influências de Alois Haba e de Schõnberg (um verdadeiro modelo para ele). Suas Oito invenções paia instrumentos de percussão, escritas para as Percussões de Estrasburgo em 1965, causaram sensação. Mas foi, antes de mais nada, um sinfonista (oito sinfonias). De 1968 até sua morte, não se ouviu mais falar nele em seu país.
durante esse tempo elementos do passado.
Depois de ter vagueado um pouco à procura de orientação musical, Xenakis conheceu Messiaen em 1951. Perguntou-lhe se precisava começar os estudos musicais partindo da base mais elementar. A reação de Messiaen foi salvadora: Fiz uma coisa horrível, extraordinária, que n ã o faria com nenhuma outra pessoa, porque minha o p i n i ã o é que se deve fazer harmonia, aprender a ouvir e a fazer contraponto. No entanto esse era u m homem tão fora do comum! Disse para ele: " N ã o , você já está com trinta anos, tem a sorte de ser grego, de ter feito matemática, de ter feito arquitetura. Aproveite essas coisas e trate de usá-las em sua música." Acho que ele acabou fazendo isso.
Ao mesmo tempo, Xenakis tentou integrar-se no grupo de pesquisas musicais, na rádio, onde, um ano mais tarde, fez a primeira audição de Diamorphoses. Dois encontros foram determinantes para sua evolução ulterior: com Varèse, que tinha
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vindo à França para a primeira apresentação de Déserts [Desertos], e com Hermann Scherchen, que durante anos apoiou os projetos de Xenakis, ajudando-o a revelar suas obras e a redigir seus escritos teóricos. Em 1953, Xenakis se casou com Françoise — heroína da Resistência —, ajudando-a a conscientizar-se de sua vocação de escritora. A filha de ambos, Mâhki, é pintora. A primeira obra reveladora da arte de Xenakis, Metastasis (1954), para orquestra, provocou um escândalo quando de sua primeira execução em Donaueschingen em 1955. Teve origem numa recordação sonora, como escreveu Xenakis: Atenas... uma manifestação antinazista... centenas de milhares de pessoas salmodiando um slogan que se repete à maneira de u m hino gigantesco. Depois, o combate contra o inimigo. O ritmo explode n u m caos enorme de sons agudos; o silvo das balas; o pipocar das metralhadoras. O s sons c o m e ç a m a rarear. Pouco a pouco, o silêncio recai sobre a cidade. Encarados apenas do ponto de vista auditivo, e desligados de qualquer outro aspecto, esses acontecimentos sonoros formados por u m grande n ú m e r o de sons particulares n ã o são perceptíveis separadamente; mas é s ó voltar a reuni-los e o novo som que se forma pode ser percebido em sua integralidade.
Estão aí formulados os princípios que passaram a reger sua criação. Tomando sempre como ponto de partida o material sonoro, ele organiza sua música em massas que se movem, para as quais utiliza um vocabulário apoiado em imagens: "nuvens", "galáxias". Xenakis determina os "estados" dessas massas — a saber: sua densidade, o número de acontecimentos que elas contêm, as transformações gradativas da matéria sonora —, recorrendo a leis matemáticas. Em Metastasis (1954) ou em Pithoprakta (1956), ele emprega o cálculo das probabilidades, ou método estocástico, termo matemático que foi então associado pela primeira vez a um ato musical; em Achorripsis(l957), as leis de Poisson geram distribuições por densidade no interior de "nuvens sonoras"; em Stratégie (1962), para duas orquestras e dois regentes, aplica-se a teoria matemática dos jogos; em Nomos Gamma (1969), a teoria dos conjuntos e a teoria dos crivos, etc. Posteriormente, a fim de ganhar tempo na fixação de parâmetros para o som, ele utiliza o gráfico (música "simbólica") e o computador (música "dgorítmica") em Herma (1961), para piano, Ponta (1964), para piano e metais, Akrata (1965), para instrumentos de sopro. Também se preocupa de maneira original com o problema do espaço: em Terretektorh (1966), a orquestra está espalhada no meio do público; o ouvinte encontra-se, portanto, no centro da ação musical, recebendo por todos os lados as investidas do mundo sonoro. Xenakis demonstra a plasticidade e a modernidade da orquestra sinfônica, capaz de distribuir a música a partir de noventa fontes disseminadas no espaço, o que a eletroacústica ainda não está em condições de realizar, a não ser que lance mão de recursos consideráveis. Embora concebido com base na matemática e teorizado em textos eruditos (Musique formelle, 1963; Musique-Architecture, 1971; Arts/Sciences, Alliages, 1979), Orné-
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todo criador de Xenakis pretende abrir um novo caminho para a compreensão do fato musical. Dirige-se tanto à sensibilidade dos ouvintes como à sua inteligência. Obras como Nuits [Noites, 1968], para doze vozes mistas, dedicada a todos os deportados políticos conhecidos e desconhecidos, que expressa a angústia do homem de hoje diante de qualquer sistema de opressão; ou, num sentido inverso, obras como Polytopes (vários foram compostos desde a Exposição Internacional de Montreal), que criam uma nova arquitetura sonora onde se associam a luz e os raios laser, conseguiram emocionar um público amplo. É significativo que em maio de 1968, nos muros do Conservatório de Paris, tenha brotado uma inscrição como esta, expressão espontânea do desejo de seguir em frente: "Xenakis, não Gounod!" Descobrindo o Japão, depois fazendo visitas freqüentes aos Estados Unidos, Xenakis tomou consciência de em poucos anos haver-se tornado importante personalidade no mundo da música. A novidade do enfoque sonoro, a liberdade dos princípios assumidos como ponto de partida, o rigor dos planos e da conduta, impõem-se à atenção e dão à sua música um caráter de evidência. A técnica das mais científicas e a imaginação das mais utópicas, de que ela se nutre, unem-se em obras de grande clareza, o que não costuma ser próprio das obras musicais contemporâneas: uma clareza que continua a afirmar-se na maioria das obras que Xenakis, doravante assoberbado de encomendas, realizou para diversas formações desde o final dos anos 60: Persephassa (1969), para seis percussionistas; Antikhthon (1974), para orquestra; Jonchaies (1977), para orquestra muito grande; Nekuia (1980), para coro e orquestra; Aïs (1980), para barítono, percussão e orquestra; Embelie (1981), para viola; Para a paz (1982), para coro misto, fita magnética e recitantes; Shaar (1983), para grande orquestra de cordas; Lichens (1984), para orquestra; Alax (1985), para três grandes orquestras. Jogando um pouco com os duplos sentidos, pode-se chamar de "abstração lírica" essa maneira de conjugar métodos extremamente abstratos, formalistas, superminuciosos, com uma expressão deliberadamente dionisíaca. "Sou um grego clássico no século XX", Xenakis gosta de dizer. É à Grécia que se refere a maioria dos títulos de suas obras. É à literatura grega que ele recorre sempre que se trata de compor música para o palco ou simplesmente para massas corais: Antígona (Polla ta áhina, 1962), As suplicantes (Hiketides, 1964), Orestes (1965-1966), Helena (1977), Em Colônia (1977). Apenas Medéia (1967) faz uma opção pela latinidade: Xenakis preferiu o texto de Séneca o Trágico ao de Eurípides. Apaixonado pelo espaço, Xenakis, que em cada verão se aventura no mar bem longe do litoral, embarcado no seu frágil caiaque, tem o senso do grande espetáculo ao ar livre. Ele o demonstrou com Persépolis, espetáculo luminoso e sonoro, realizado em 1971 por ocasião da abertura do Festival de Chiraz. A fita magnética apoiava a atuação das crianças portadoras de tochas nas colinas que circundam o local. Grande ritual noturno, ligado às forças telúricas, mas que se abria para uma visão cósmica. Um gesto que Xenakis gostaria de renovar noutros lugares. Por
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exemplo: "Criar auroras boreais nas regiões temperadas graças a raios eletromagnéticos; mas há o temor de que isso possa causar danos à camada de ozônio." É uma forma de retomar seu projeto de arquitetura utópica: o da cidade cósmica. "A era das artes científicas e filosóficas começou. Doravante, o músico dever ser um fabricante de teses filosóficas e de arquiteturas globais, de combinações de estruturas (formas) e de matrizes sonoras", diz Xenakis. E mais: Parece-me chegada a hora de utilizar o enorme poder que o homem forjou para si, não mais para transformar o universo diretamente, mas para transformá-lo pela transformação mental do homem. (...) Os artistas poderiam exercer uma função de guias na conquista do mental, se aceitassem tornar-se pensadores universais, apoiados em conhecimentos científicos. (...) A música é um meio de transformar as categorias mentais do homem.
Quem pretender realizar um inventário completo da obra de Xenakis não pode esquecer de incluir seu grande trabalho para permitir que todos, e notadamente as crianças desde a mais tenra idade, abordem a criação musical a partir de uma máquina que associa o desenho à linha sonora. Estou me referindo à Unité Polyagogique d'Informatique et de Composition [Unidade Poliagógica de Informática e de Composição, UPIC], uma tabuleta gráfica eletrônica ligada a um minicomputador e seus periféricos. Objetivo: pôr ao alcance de todos a prática e o exercício da criação. Esse instrumento revolucionário chegou a ser comercializado: o UPIC foi construído no âmbito do Centre d'Études de Mathématique et Automatique Musicales [Centro de Estudos de Matemática e Automatização Musicais, CEMAMU], fundado por Xenakis em 1966. "Em música", ele diz, "de nada adianta fazer teorias. É preciso fazer música." Nouritza Matossian, biógrafo de Xenakis, escreveu: Xenakis jamais deixou de ser um combatente da Resistência. Apenas transportou seu campo de batalha para a música, transformou o combate físico e político numa luta de idéias e de sons, em que forjou sua própria estética com uma violência poética de que jamais cessou de dar provas. O gesto da música é a dinâmica de sua vida. Iannis Xenakis é o último compositor heróico.
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O conceito de forma aberta é da maior importância para a música das duas últimas décadas. Compreendida por certos músicos como tendo suas raízes na obra poética de Mallarmé e nas formas romanescas de James Joyce, através do que foi qualificado como work in progress [obra em evolução], foi preciso muito tempo para essa concepção tornar-se aceita no domínio da música, pois ela questiona o estatuto da obra enquanto "objeto" com limites rigorosamente definidos, assim como a hierarquia que sempre se admitiu existir entre o compositor, o intérprete e, até certo ponto, o ouvinte. Ela é marcada pelo emprego de formas móveis — que pressupõem um maior ou menor número de possibilidades de percurso para o intérprete a partir de seqüências musicais determinadas, como se vê no KlavierstückXI ( 1956), de Stockhausen, ou na Sonata n° 3 (1955-1956), de Boulez, que inovaram nesse domínio, seguidos pelos Arquipélagos de Boucourechilev, o Concerto n" 3 para oboé de Maderna ou certas obras de Francis Miroglio. O conceito de forma aberta foi levado às últimas conseqüências no trabalho do compositor americano John Cage. Entretanto, talvez não baste partir da noção de obra aberta para compreender o alcance do choque causado na história recente da música por aqueles que escolhemos chamar de "provocadores" (sem qualquer intenção pejorativa ou restritiva quanto ao autêntico valor de seus emprendimentos) e que, se fôssemos filósofos, poderíamos muito bem chamar de praticantes da recusa estimulante. Há uma pergunta que todos nos fazemos, sem que encontremos uma resposta clara: no período imediato que se seguiu à Primeira Guerra Mundial, por que o movimento dadá e o surrealismo, que revolucionaram as letras e as artes visuais, não repercutiram, não encontraram equivalente no terreno da música? (Pois Satie
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e os "Seis" como tampouco as inconseqüências e os exibiciomsmos de Cocteau, nada tiveram em comum com um surrealismo digno deste nome.) Um princípio de resposta poderia ser sugerido: era mais fácil dinamitar a carga conceituai e lógica das palavras e das frases, a carga figurativa e significante das cores e dos volumes, do que a carga imponderável e, no entanto, tão coercitiva dos aglomerados sonoros. A força da linguagem e das imagens poderia restaurar-se, nova, na intimidade com o cotidiano e no mergulho até o fundo do inconsciente depois de haver feito tábula rasa das estéticas aprendidas. Como o Shiva da mitologia hindu, o surrealismo destruía o passado para libertar um futuro que ele se proibia de promulgar. Mas, se aderisse a uma tal promessa de libertação, a música não se arriscaria a, pura e simplesmente, volatilizar-se? Não há de ter sido por acaso que John Cage anotou: "Método de escrita musical: estudar Duchamp." De La Mariée mise à nu par ses célibataires, même, de Marcel Duchamp, às extravagantes e tranqüilas excentricidades (ou que assim pareceram de início) de Cage, a afinidade é fácil de perceber. Não foi por mera coincidência que a primeira resposta musical à provocação surrealista se deu no momento em que a música inventava fazer-se concreta ou eletrônica, e, por conseguinte, adivinhava que poderia dispensar todas as peias associadas ao uso dos mstrumentos sem com isso volatilizar-se. Certamente, não foi o acaso que decidiu que essa resposta, pelo menos sob sua forma mais deliberada (eu diria: mais jovialmente feroz), viesse dos Estados Unidos. Do país onde o passado tinha o melhor tratamento nos museus sem que isso significasse impor o peso de sua tradição; onde a vitalidade transbordante de uma nação ainda jovem necessitava de menos teorias e conceitos para sacramentar experiências e aventuras; onde a alegria de avançar em direção a uma "nova fronteira" musical envolvia a necessidade de recorrer ao desrespeito para melhor abolir qualquer barreira entre os especialistas da coisa musical e aqueles que, até então, não passavam de seus consumidores. Não era preciso cavar muito fundo para encontrar "o terreno sob o calçamento". Sob a subversão mais chocante, aparecia essa intuição básica surrealista —e já romântica: que, como a poesia, a música tem que ser vivida antes de produzida. . Os Estados Unidos, no início do século XX, já haviam inventado um Charles Ives, personagem espetacular que dificilmente teria podido surgir na Europa; mas sua postura como criador permanecera marginal, e sua fama não chegara a atravessar o oceano. Na primeira metade do século XX, os compositores americanos ainda se voltavam para a Europa, onde vinham completar seus estudos. No Conservatório americano de Fontainebleau, por exemplo, fundado em 1921, Nadia Boulanger (1887¬ 1979) deu aulas de harmonia, de contraponto e de composição até ofimda vida; essa extraordinária pedagoga da música irradiou sua influência pelos quatro cantos do mundo, com alunos de umas vinte nacionalidades diferentes — mas o
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maior número foi de jovens músicos provenientes dos Estados Unidos, ou que ela conheceu nos Estados Unidos durante as freqüentes visitas que fez ao país a partir de 1921. Seu primeiro aluno americano foi, em 1921, Aaron Copland (nascido em 1900), o mais oficial dos compositores célebres nos Estados Unidos, cuja estética deve muito ao conhecimento que travou com o "Grupo dos Seis" francês. Antes de vir para a França, ele se havia interessado pela música de jazz, que se acha integrada em suas próprias composições. Nos anos 30, voltou-se para um estilo mais austero, depois para obras mais facilmente compreensíveis, ligadas ao teatro. Após a Segunda Guerra Mundial, Copland mostrou em suas composições um interesse autêntico pelas novas teorias serialistas. Eliott Carter (nascido em Nova York em 1908) também mostrou esse interesse um pouco mais tarde. Autor de três notáveis Quartetos para cordas (1951, 1959, 1973), entre outras obras, numa produção que fez questão de manter reduzida, Carter, que nunca parou de evoluir em seu estilo, preocupou-se inicialmente com os dados rítmicos, para depois aproximar-se do conceito de "atuação", de Ives; ele se referia a seus instrumentistas como a "atores de um roteiro", nisso revelando-se um predecessor não só de Kagel como de Bussotti no caminho que levou a um teatro instrumental, com a diferença de que se manteve nos limites da música pura. Por fazer de cada peça o objeto de uma longa elaboração, produziu uma obra pequena, numericamente falando. É importante lembrar, além dos Quartetos, a Sonata para violoncelo e piano (1948), construída segundo o mesmo princípio circular utilizado por Joyce em Finnegan's Wake, obra forte escrita num período de mutação e de libertação do estilo no compositor; nunca esquecendo a originalidade das Peças para timbales (1949-1966) e o ciclo de melodias A Mirror on which to Dwell [Um espelho para refletir], sobre poemas de Elisabeth Bishop (1976). Leonard Bernstein (nascido em 1918), autor de West Side Story, também foi aluno de Nadia Boulanger, depois de estudar com Walter Piston em Harvard, como Eliott Carter. Quanto a Virgil Thomson (nascido em 1896), egresso de Harvard, ele também aluno de Nadia Boulanger, morou entre 1925 e 1940 na França, onde conheceu Satie e Cocteau. Muito interessado na música dos negros norte-americanos, dela se serviu como fonte para sua ópera Four Saints in Three Acts [Quatro santos em três atos, 1934], sobre um hbreto de Gertrude Stein. A mesma escritora lhe forneceu ainda o hbreto de sua segunda ópera, The Mother of Us All [A mãe de todos nós]. Para a última de suas óperas e a mais ambiciosa (Lord Byron, 1968), valeuse de um hbreto de Jarck Larson. Samuel Barber (nascido em 1910), outro dos grandes compositores americanos vindos de uma sólida tradição "clássica ocidental", representa o tipo de compositor que se formou inteiramente nos Estados Unidos, ainda que tenha vivido um bom tempo em Roma, graças a um prêmio. Egresso do neo-romantismo, foi atraído
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para a politonalidade. Em 1949, com sua grande Sonata para piano dedicada a Horowitz, fez uma incursão — que não passou daí — nas terras do dodecafonismo. Gesto experimental foi também o do estranho Colon Nancarrow, nascido em 1912 e que praticamente só compôs música para pianola (obras de uma escrita extremamente virtuosística), marcando furo por furo diretamente nos rolos. Excombatente da Guerra Civil na Espanha, onde serviu na brigada Lincoln, viveu depois no México como exilado. Na medida em que sua obra foi sendo descoberta, provocou a ackrúração dos maiores compositores, sobretudo de Ligeti: "A maior descoberta desde Webern e Ives, algo importante para toda a história da música." Milton Babbitt (nascido em 1916) representa o tipo do compositor-pesquisador e foi um dos grandes teóricos americanos das novas músicas, do dodecafonismo (como era de se esperar) mas também de tudo o que associa a matemática à música. Babbitt foi um dos fundadores do Centro de Música Eletrônica das Universidades de Columbia/Princeton e compôs para sintetizadoresVision and Prayer [Visão e oração, 1961], Philomel (1964), Correspondences [Correspondências, 1967], Phonemena (1974). Milton Babbitt é muito representativo de uma certa tendência dos Estados Unidos em sua busca científica. Mas, quer se trate de um ou de outro desses importantes compositores, de nenhum deles se pode dizer, como de Ives anteriormente ou como de Cage, que tenha inventado um "gesto" que em pouco tempo viesse a ser reivindicado como propriamente americano. John Cage Nascido em Los Angeles em 1912, John Cage também seguiu o impulso de ir buscar na Europa as motivações para seu ofício de músico. Aos dezenove anos, trabalhou o piano em Paris com Lazare Lévy, descobriu Scriabin, Stravinski e Satie. Passou em seguida à Califórnia, onde, por muitos anos, foi aluno de Schõnberg. Desde 1949 ficou conhecendo, em Paris, Pierre Schaeffer e Pierre Boulez; daí por diante, manteve-se ligado a tudo o que se produziu de novo em música nos quatro cantos do mundo. Por outro lado, já em 1937 havia composto Construction in Metal [Construção em metal] para gamelões, chapas de ferro, peças de freios de automóvel, etc; em 1939, realizara a primeira de todas as músicas eletrônicas com Imaginary Landscape I [Paisagem imaginária I]; em 1941-1942, teve a idéia de criar um "centro de música experimental"; 1949, sobretudo, assinala a composição das extraordinárias Sonatas e interludios para piano preparado, verdadeira orquestra de percussão que depende de um único instrumento e um único intérprete. Quando Schõnberg censurou o fato de Cage não apreciar a harmonia e asseverou-lhe que compor sem conhecer as suas leis era o mesmo que investir com cabeçadas contra uma parede, Cage deu-lhe esta resposta insolente: "Passarei o resto de minha vida dando cabeçadas contra as paredes."
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Esses experimentos, só tardiamente conhecidos na Europa, são suficientes para explicar por que John Cage é visto como um compositor cujas pesquisas abriram caminhos que se revelaram especialmente fecundos para as gerações subseqüentes. Essas pesquisas possuem fortes afinidades com aquelas dos pintores de sua geração, como Rauschenberg e Jasper Johns, ou do coreógrafo Merce Curmingham, com o qual, aliás, ele colaborou em muitas ocasiões. Também vale lembrar em John Cage a atenção que dedicou a Duchamp e a Miró, e, no domínio da música, a Varèse. O trabalho feito em cima da percussão desprendeu Cage das estruturas schõnberguianas: o som e o ritmo assumem posição privilegiada, o conceito de tonalidade ou atonafidade perde sua hegemonia, pois, para Cage, "representa uma obstrução, um fechamento". Desse passo em diante, é a noção de tempo musical que se mostra essencial: "O sentimento da durée [duração] veio-me de uma consideração da natureza do som; sentia-o como tendo quatro dimensões: altura, intensidade, timbre e duração." Essa reflexão, desenvolvida com lógica e alimentada pelos novos conhecimentos obtidos junto à sabedoria oriental (zen japonês e também taoísmo chinês), determinou em Cage a nova importância concedida ao silêncio como elemento constitutivo do fato musical. Mas, como o silêncio absoluto não existe (experiência verificada por Cage em 1951 numa "câmara surda" em que ele teve a revelação de todos os ruídos de seu corpo), conclui-se que o silêncio é percepção e, utilizado como tal, pressupõe a mdeterminação. "A problemática do silêncio desemboca no acaso", diz Daniel Charles, que tão bem analisou a perspectiva pela qual se orienta o trabalho de Cage: M ú s i c a experimental, no fim das contas; mas n ã o na acepção científica do termo: nela nada h á que provar nem descobrir, e Cage n ã o é u m obstetra do som. Longe de visar a um resultado, a experiência
consiste em o b t ê - l o diretamente, sem desvios para chegar
até ele. E os procedimentos usados podem parecer u m desafio à inteligência: eles levam ao teatro instrumental, à m í m i c a e à pantomima. Cage é o inventor do happening... Seu objetivo, em todos os níveis, é passar por cima dos aspectos intelectuais da escolha.
Mais do que um "jogo" em torno do tempo, Cage prefere considerar que se trata de uma "celebração do tempo". É nesse sentido que devemos compreender determinadas obras que causaram escândalo — e que continuam causando — como o famoso 4'33, para um ou diversos músicos que não produzem som algum, ou outras do mesmo tipo, chamadas por Cage de "minhas obras silenciosas", e que estão longe de representar um jogo gratuito. Em última análise, é o conceito de obra que está sendo questionado. De fato, Cage submete à elaboração do intérprete um "processo" que cada músico — seja ele um profissional ou não — realiza, de acordo com suas aptidões e suas faculdades de imaginação. Não é o caso de o compositor controlar em minúcias o resultado de sua obra, seu impacto sobre o público: o papel que lhe cabe é mais o de
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um catalisador; nesse particular, o conceito de direito de propriedade precisa ser reconsiderado. Em Imaginary Landscape IV, Cage lança mão de doze aparelhos de rádio, 24 exécutantes e um regente. Em Imaginary Landscape V, ele faz uma colagem com 42 discos de jazz. O acaso, já introduzido nessas obras, tem lugar primordial nas 84 Peças para piano compostas entre 1952 e 1956 e que aspiravam a ser obras "sem intenções". No Concerto para piano, o procedimento é levado ainda mais longe: as treze vozes instrumentais são independentes umas das outras, podem ser utilizadas ou não, não são coordenadas entre si, o tempo de seu desenrolar é livre, etc. O próprio Cage escreveu: Minha intenção era reunir nessa peça diferenças extremas, como as que encontramos reunidas no mundo natural, por exemplo numaflorestaou numa rua. É claro, cada um tem liberdade de criar sua própria experiência. (...) Ao sair do teatro, o ouvinte é então capaz de transpor esse fenômeno para a vida; este é o valor fundamental dessa experiência. (...) Sim, considero essa obra como estando in progress e não me passa pela cabeça concebê-la jamais como terminada, mesmo que cada execução me pareça definitiva.
Em Variations [Variações, 1958-1966], a relação espaço-tempo é posta em questão, usando-se um material gráfico reduzido a uns poucos sinais e colocado sobre folhas transparentes a serem superpostas. A liberdade dos atores-músicos é tal que lhes permite deslocar-se e até ir embora no decorrer da obra. Bird-Cage [Gaiola de passarinho, 1972], Music-Circus (1970-1973), Lecture on the Weather [Aula sobre o clima, 1976], Empty Words [Palavras vazias, 1973-1976], Études australes [Estudos austrais, 1976], Roatorio (1980, inspirado no Finnegan's Wake de Joyce) dão prosseguimento a esse trabalho, freqüentemente com recursos mais consideráveis — aqueles que o sucesso internacional de Cage lhe permitem obter. Os jogos inventados por Cage visam a deixar que os sons se produzam (o movimento do happening na esfera do teatro foi em grande parte provocado pelas posições de Cage em música), de preferência a pôr em equação suas propriedades e sua organização. Por outro lado, as tentativas de Cage incidem sobre muitos outros domínios, além do da música, suscitando múltiplas interpenetrações das disciplinas artísticas, sem que se procure um paralelismo entre elas. Cage é autor de diversos livros em que o assunto tratado desliza continuamente de tomadas de posição teóricas para textos em que se cruzam modos de expressão poética e plástica (Silence, Journal). Acrescente-se que John Cage é um grande especialista no mundo dos cogumelos. Palavras dele: "A beleza cresce agora em toda parte onde a gente se dê ao trabalho de olhar. (Isto é uma descoberta americana.)" A influência de Cage foi nefasta? Foi benéfica? Uma pergunta que continua produzindo montes de respostas e comentários. Numa apresentação escrita sobre
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o ciclo de concertos organizados em Paris pelo IRCAM, sob o título de "Passagem do Século XX", Susan Bradshaw pôs a questão em termos serenos: O caráter extremamente aleatório dessas pesquisas que visam a uma expressão musical neoprimitiva — caráter que é menos imposto à sociedade do que provocado por ela — não conheceu equivalente na música européia antes do final dos anos 50. (...) A chegada de John Cage teve um efeito inebriante não apenas sobre a vanguarda propriamente dita, mas — na medida em que as ondas de sua influência continuaram a propagar-se — sobre compositores de militâncias muito diversas, por toda a Europa. No entanto, todas as liberdades são míticas se não estiverem sob controle de uma disciplina. Os conceitos composicionais de Cage, mesmo sob sua forma mais aleatória, comportam uma disciplina mental particular, disciplina de intenção que nada tem a ver com o negativismo encontrado numa torrente aparentemente semfimde composições "livres". (...) Esses resultados negativos, devidos à influência persistente de Cage sobre a música de nosso tempo, são talvez inevitáveis. Mas não diminuem em nada os aspectos positivos de sua intervenção — ou seja, em primeiro lugar, as reações suscitadas por sua maneira implícita de não levar a sério uma sociedade musical que se deixava pouco a pouco sufocar pela restrição de seus próprios tabus. Quase de um dia para outro, os compositores começaram a emergir da crisálida de sua identidade coletiva — identidade que, verdade seja dita, os melhores dentre eles jamais haviam endossado e à qual os piores não sobreviveram por muito tempo.
Na esteira de Cage John Cage não tardou a ver formar-se à sua volta um grupo de jovens compositores. O primeiro deles foi David Tudor, nascido em 1926. Muito interessado no desenvolvimento da tape music, trabalhou com Cage desde 1948 e associou-se em 1951 ao projeto para um Centro de Música Experimental; excelente pianista, difundiu as obras importantes dos compositores europeus contemporâneos. Em 1951, Morton Feldman conheceu Cage; também nascido em 1926, tendo feito sérios estudos de pintura, permaneceu muito próximo da expressão plástica e dos jovens pintores de Nova York. Suas partituras gráficas levam títulos como Projection I (1950), Marginal Intersection [Intersecção marginal, 1951]. Ulteriormente, sua música orientou-se na direção de uma concepção mais nrinimalista, mas continuou voltada para uma pesquisa sobre o som. Eml952, Feldman afirmou: "Meu desejo não era compor, mas sim projetar sons no tempo, livres de quaisquer retóricas composicionais." Reivindicou também o direito à novidade: "Para mim, não é o que acontece na obra de arte que a torna interessante; é o fato de jamais ter ouvido algo semelhante." Sua música caracteriza-se por uma grande vontade de economia sonora, um material muito concentrado, nuanças ínfimas, que se impõem à escuta e forçam uma reflexão sobre o tempo. É o caso de Crippled Symmetry [Simetria inválida, 1983] para flauta, glockenspiel e piano, que não dura menos de noventa minutos.
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Christian Wolff, americano nascido na França em 1934, em pouco tempo se juntou a David Tudor e Morton Feldman; trabalhando algum tempo com eles, desenvolveu e levou às ultimas conseqüências as mesmas preocupações de Feldman, partituras gráficas ou verbais, indicações mínimas para uma música que visa a uma grande simplicidade, à liberdade do som. As partituras de Morton Feldman, como aquelas de Christian Wolff, tornam-se visualmente algo assim como "mapas" que permitem a cada um estabelecer uma estratégia de execuções cujas fronteiras não se acham delimitadas de antemão. Sem dúvida, trata-se de novas categorias de execuções, às quais é interessante assistir como ouvintes (consumidores), mas que sobretudo não estão reservadas a uma corporação de especialistas; como nelas há um apelo para a criatividade, essas tentativas são levadas a desempenhar sua função no contexto da pedagogia e a ampliar a abordagem da prática musical. O fato de transgredirem as separações entre as diferentes técnicas artísticas repercute sobre a ambigüidade de seus conteúdos. A atitude mais radical está personificada, sem dúvida, por Earle Brown (nascido em 1926), que não demora a juntar-se a Cage, Tudor, Feldman e Wolff. Engenheiro e matemático, admirador de Varèse e de Ives, que simbolizam para ele o sopro vital em sua generosidade essencial, admirador talvez ainda maior de uma certa forma de pintura (Pollock), Brown descobriu nos mobiles de Calder uma fonte de inspiração e uma razão que justificava seu interesse na forma "aberta". Suas partituras deixaram de usar qualquer sinal convencional. December 52 propõe apenas linhas de proporções diferentes e dispostas diferentemente umas em relação às outras, que instigam a uma improvisação. Reina, soberano, o aleatório. Em geral, as notações inventadas por Brown (por exemplo, em Folio, 1952-1953), acompanhadas, como todas as partituras desse tipo, de um texto introdutório com esclarecimentos sobre as intenções do projeto, constituem autênticos stimuli (não só no nível psicológico) para que os músicos possam expressar-se por meio de seu próprio mundo sonoro, o que implica tocar seus instrumentos só ou em grupo, sem estar subordinados a um estilo de música imposto nem recair nos "clichês" que são a conseqüência inevitável de uma prática rotineira e passiva. Entre as realizações mais recentes de Earle Brown, destacam-se partituras como Calder Piece (1965), para quatro percussionistas regidos por... um mobile de Calder, Cross Sections [Perfil, 1973], para orquestra, Small Piece [Pequena peça, 1975], para coro. Agrupado em torno da postura musical de Cage, seu pai espiritual, esse quarteto de compositores — três deles nascidos em 1926, três perfeitamente a par da atividade musical na Europa do após-guerra, alguns (Earle Brown) tendo freqüentado também os cursos de verão de Darmstadt ou o grupo de pesquisas musicais parisiense — propõe-se a ser, daí por diante, o representante de "uma escola americana". Nos gestos e expressões dessa escola e dos criadores que a compõem está
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pressuposta uma ruptura evidente com os dados tradicionais da música pela rejeição da forma, a novidade da notação, as propostas aleatórias, a prioridade concedida ao som, a recusa de qualquer conceimalização: trata-se de "retirar a música de seu domínio conceituai para colocá-la na sensação puramente fisiológica do som" (Feldman). São atitudes muito mais radicais do que aquelas encontradas nos compositores europeus de então. Inventores de novos "gestos" da música, esses compositores também reconhecem em tais inovações uma afirmação de sua diferença, ou seja, da especificidade de sua identidade americana, notadamente no fato de que ela representa uma dupla orientação: a fraternidade para com as outras artes e a abertura para um grande público não especializado.
Maurício Kagel Em 1968, Kagel declarou: Os europeus t ê m o velho hábito de codificar cedo demais a história da m ú s i c a . Faziam isso já nos anos 60 com u m cuidado meticuloso e um cinismo pedante que passava em silêncio pelos primordios da história da m ú s i c a nova. Porque, pela primeira vez, esses primordios n ã o se situavam na Europa, mas sim do outro lado do Atlântico.
"Do outro lado do Atlântico" é o mesmo que dizer Cage; é dele que Kagel está falando nesse texto, do Cage que "não leva a sério", no qual se reconhece em parte Maurício Kagel, compositor alemão contemporâneo, judeu da Argentina, onde nasceu em 1931, na véspera de Natal. Dessa situação, em que ele se sente "estrangeiro na Argentina, latino-americano na Europa", segundo suas próprias palavras, nasce um olhar que se volta para o inverso das coisas, o tema da inversão que serve de base para grande parte de sua criação. Mauricio Kagel, depois de estudos particulares (piano, violoncelo, órgão, canto, regência de orquestra), não conseguiu ingressar no Conservatório de Buenos Aires. Entrou então para a universidade, estudou filosofia e literatura (J.L. Borges foi um de seus professores). Desde essa época e durante seis anos permaneceu intimamente ligado à vida musical de Buenos Aires, incorporando-se ao grupo de música contemporânea, onde fez seus primeiros contatos com as possibilidades eletroacústicas. Tornou-se regente de orquestra na Ópera e, paralelamente, fundou a Cinemateca Argentina. Por essa época, assinou suas primeiras obras como compositor, mas é o Sexteto para cordas (1953-1957) que ele hoje considera como sua obra inicial. Ela o revelou na Alemanha. Recebeu uma bolsa (1957) para ir trabalhar no país, do qual não se afastou mais (na época, teria preferido morar na França). Desde então, aos poucos mas com extrema regularidade, forjou para si uma obra que soa como um desafio, que aspira a ser pluridisciplinar, que é feita de humor, que assume por vezes um caráter de absurdo, que pretende uma atitude de
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"não levar a sério", que recusa qualquer confinamento, quaisquer categorias estabelecidas, estéticas limitativas e compiladas, para tornar-se uma grande dramaturgia do mundo, descrita com a ajuda dos sons da música. A vastíssima cultura de Kagel, musical mas também literária e histórica, é uma das fontes desse permanente questionamento da história e dessa interrogação sobre a estética. Em 1964, escreveu: É inelutável a necessidade de proceder a uma revisão radical das crenças, dos mitos e dos conceitos codificados que se acumularam ao longo dos quinze ú l t i m o s anos. Por outro lado, a história musical, já (precipitadamente) fixada, deve ser n ã o apenas revista mas "atualizada" por meio de acelerações outras que n ã o aquelas a que nos habituamos. A incrível aceleração da história musical obriga-nos a u m a c o n t í n u a interrogação dos processos do pensamento, dos m é t o d o s de c o m p o s i ç ã o , dos tipos de p r o d u ç ã o sonora e das práticas do concerto de hoje.
"Farsa/antifarsa" "teatro antitotal", seja qual for a fórmula pela qual o defina, Kagel inventa um novo teatro da música, que prefere chamar de "teatro instrumental" e que requer muito dos instrumentistas intérpretes. A participação de cada um é escrita e descrita com extrema minúcia. Desde que se instalou em Colônia, o músico manteve-se hgado ao Estúdio Eletroacústico. Surgiram, nessa época, Transición le II (1958-1959) em que intervém os sons eletrônicos (Kagel, por sinal, fundou em Colônia o Conjunto para a Música Nova). Suas primeiras composições européias são instrumentais; Música para instrumentos da Renascença (1966) e Quarteto para cordas I/II (1967) têm o propósito de levar ao extremo as propostas instrumentais legadas pela história; mas não demora muito e a dimensão teatral intervém, o mais das vezes em obras que põem em ação alguns instrumentos combinados com outras fontes sonoras. A orquestra tem relativamente pouco espaço na obra de Kagel. Match (1964), Em cena (1960), Atem (1970), Acústica (1968-1970), Zwei Mann Orchester (1971¬ 1973), Bestiarium (1974-1975), Kantrimiusik (1973-1974), Exposition (1978) solicitam, cada um, um tipo de reflexão e de comportamento que é sempre diferente, particular, por parte do compositor e dos participantes. Há que ressaltar, também, a pesquisa constante sobre o emprego de timbres novos, inusitados, exóticos, difíceis de aceitar, como uma experiência pedagógica sobre o objeto musicável: Dressur(l977), para trio de percussão sobre instrumentos de madeira, Ornithologica multiplicata (1968), para pássaros, Exotica (1972), para instrumentos não europeus, etc. Pode acontecer, também, de as obras serem inteiramente silenciosas; a atitude teatral torna-se então música do tempo, num sentido bem diferente daquele de Cage: o silêncio funciona como elemento de uma dramaturgia e não implica — como em Cage — o "em si" da escuta. Der Schall (1968), para cinco músicos (em silêncio), nasceu do choque da invasão da Tchecoslováquia; num outro sentido,
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Déménagement (1977), espetáculo para maquinistas (operários de teatro), nasceu ocasionalmente durante o Festival de Metz. Algumas obras, dentre as mais importantes dos últimos anos, estão concebidas como grandes representações teatrais em que a música e a ação são estreita e reciprocamente dependentes. Mare nostrum (1975) conta a descoberta, pacificação e conversão do espaço mediterrâneo por uma tribo da Amazônia: mais uma vez a inversão, como nas humorísticas Marchas para não conseguir a vitória (1981); Staatstheater (1970), verdadeira dissecação da ópera como gênero, reúne nove obras cênicas; Aus Deutschland (1981) é uma Lieder Opera; Die Erschópfung der WeZrsubintitula-se "ilusão cênica" e toma por tema "a descriação do mundo"; A traição oral (1983) é uma epopéia musical sobre o diabo. Em todos esses casos, luzes, figurinos, acessórios, etc. entram como elementos constituintes na partitura. Kagel não se consagrou apenas à obra destinada a ser representada no palco: Privât (1968), para ouvinte(s) só(s), contém uma série de propostas que dizem respeito às relações com os objetos que nos rodeiam no dia-a-dia e se revelam capazes de produzir uma porção de efeitos insuspeitados se conseguirmos encarálos por outros ângulos que não o utilitário. Probe [Ensaio] comporta preciosas sugestões dirigidas a indivíduos que se reúnem com o objetivo de realizar um acontecimento musical — descartada cuidadosamente toda alusão demagógica. Imaginação é o que não falta a Maurício Kagel. Acrescentem-se as séries de obras concebidas diretamente para a televisão ( O tribuno, 1977, que faz a denúncia de um discurso totalitário), os numerosos filmes realizados (Ludwig Van, homenagem a Beethoven, 1969), onde Kagel introduz alterações de velocidade nas relações entre som e imagem e mostra como as técnicas cinematográficas podem realçar certas qualidades da execução musical, em lugar de se aterem a usá-la funcionalmente. "Não creio que exista um humor que não seja crítico, todo humorista profissional é um moralista profissional", diz Kagel que, como um Cândido de Voltaire em seu trajeto pelo mundo e por uma atividade proteiforme, faz presente o sonho utópico de uma civilização melhor. "Um país das maravilhas? Um nada utópico? Um produto da imaginação? Não resta dúvida." Um sonho alimentado pelo K(l)agelied (trocadilho em que entram Klage [lamento], Kagel e Lied [melodia]), ou seja: pelo canto de lamentação de Kagel, oitava parte de Die Erschópfung der Welt — sonho alimentado pela própria dor do compositor, que escreveu em 1971: Minha melancolia faz parte de meu humor. Todos os que t ê m humor e o expressam publicamente sabem o quanto deve ser levado a sério esse f e n ô m e n o , e tudo o que escrevo é determinado por essa ética sem a qual eu n ã o poderia escrever nada.
É também o que tantas vezes confere à música de Kagel uma doçura apavorante, como se se tratasse de uma música da compaixão.
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Dieter Schnebel O compositor alemão Dieter Schnebel, nascido em 1930, é quem, na Europa, se acha mais próximo das posições assumidas por John Cage e Mauricio Kagel. Compositor, musicólogo, teólogo e pastor protestante, Schnebel é um dos compositores pós-seriahstas mais importantes da Alemanha. Vivamente interessado nos trabamos de Stockhausen, ajudou este a publicar seus textos teóricos. Depois, no final dos anos 50, descobriu Cage e apaixonou-se pela jovem música americana, que revelou a seus alunos. Nos anos 60, a relação entre teatro e música, na obra de Kagel, desponta como um novo centro de interesse e leva o musicólogo alemão a escrever um volume de análise sobre o trabalho de Kagel. Dieter Schnebel imprime, então, à sua própria postura como compositor um caráter experimental, cuja intenção é muitas vezes pedagógica e onde a música se torna uma ação integrada a um universo cotidiano. As Radiofonías (iniciadas em 1970) são realizadas com base em elementos tomados de empréstimo à escuta do rádio e postos em relação entre si. A música está presente, portanto, no trivial. Foi no domínio da voz que Schnebel realizou seus trabalhos mais significativos. Neles, os recursos vocais já não se restringem ao registro do cantado, mas cobrem todas as modalidades de expressão, que vão do riso ao grito (por exemplo em suas Glossolalias, 1959-1961). Da mesma forma, ele desmonta todas as possibilidades do sopro e da respiração (Atemzüge, 1970-1971). Schnebel foi um dos primeiros compositores a ignorar as fronteiras entre música e teatro e dos primeiros que tentaram uma verdadeira fusão entre músicos e público. Em sua obra, cada gesto pode ser interpretado de múltiplas maneiras pelo ouvinte-espectador. Este, tanto pode concentrar sua atenção no resultado sonoro provocado por uma ação instrumental como percebê-la enquanto acontecimento visual, ou passar constantemente de um tipo de percepção para o outro. Schnebel está consciente do fato de que uma peça de música representada em cena é um acontecimento que extravasa a especificidade sonora; esse acontecimento tem uma dimensão muito mais global, participando ao mesmo tempo da natureza do tempo e do espaço. Foram essas dimensões que Schnebel tentou explorar em "séries" como as peças audiovisuais Raüme (1963-1967), as Produktionsprozesse, as Maulwerke (1968¬ 1974), a ação musical Kòrpersprache (1979-1980), onde já não há som, apenas movimentos corporais, e também a Schulmusik (iniciada em 1973), ciclo "pedagógico destinado aos alunos de um liceu (não-músicos incluídos), a título de criação coletiva. A obra de um compositor como o francês Henri Chopin, poeta nascido em 1922, que hoje faz audiopoemas, segue um caminho paralelo. Vindo das letras, Henri Chopin continua fiel ao material vocal, mas recorre à eletroacústica para acossá-lo e, manipulando-o, manifestar todas as suas possibilidades até o extremo do inaudível.
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Sylvano Bussotti "Numa época em que tudo parece negar a arte, a única maneira de salvá-la é levar ao paroxismo, ao extremo de si mesmo, o artesão, o intérprete, o criador", declarou Bussotti. Ele não falhou no cumprimento desse princípio, realizando uma obra que é, toda ela, uma encenação do amor e da morte. Ex-violinista prodígio, diretor de teatro, decorador, desenhista, calígrafo, roteirista, figurinista, músico, narrador e ainda... compositor, Sylvano Bussotti, italiano nascido em Florença no ano de 1931, representa, dentro de uma estética inteiramente diversa, uma corrente paralela àquelas que motivaram Cage em direção aos gestos da música e Kagel a perseguir a implicação teatral da música instrumental. Muito influenciado pelo dadaísmo e por Cage, Bussotti é, antes que tudo, um homem de teatro que vive o teatro como um lugar de liberdade, individual ou coletiva, e como um cerimonial próprio para exorcizar fantasmas. No teatro, a música encontra, ela também, uma nova hberdade, longe da "rígida aridez" dos sistemas, seriais notadamente, pelos quais ele passou. Sua proposta é no sentido de uma abordagem da execução instrumental com incidências manifestamente sexuahzadas; o teatro que daí emana alimenta-se de um erotismo provocador, suscetível de exibir a intimidade da relação com o corpo, na execução musical e dentro de situações coletivas por ele engendradas. "Minha maneira de abordar a música é muito sexual", ele diz. E mais: "Acho que uma música enquanto tal deve ser tão sexual quanto possível; caso contrário, não é música." Mas Bussotti é sobretudo um lírico sofisticado, apaixonado pelas vozes, pelas belas sonoridades, cinzelador de belos objetos musicais: A paixão de Sade (1966), "mistério de câmara com quadros vivos", Peça de carne II ( 1960), The Rara Requiem (1969), o balé Bergkristall [Montanha de cristal, 1972-1973], a ópera Lorenzaccio (1972), II catalogo e questo (1980), Le Racine, pianobarpour Phèdre (1980).
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Um verdadeiro labirinto de tendências se delineia através das criações da geração de compositores nascidos por volta de 1925. Ele se ramifica ainda mais com os compositores nascidos nas décadas seguintes. Entretanto, uma idéia parece predominar em meio a esse labirinto: a da relatividade dos sistemas. Será o caso de lamentar um tal estilhaçamento, que faz com que os melómanos de hoje não possam esperar qualquer ponto de referência estável nem uma linha diretriz, devendo abrir-se um caminho pessoal por entre os dédalos de trajetórias fortemente divergentes que representam as pesquisas atuais? Jamais pareceu tão grande o afastamento entre as vias de abordagem da composição musical. Mas, justamente em função do pluralismo de suas opções, a música contemporânea deveria estar à altura de corresponder às aspirações mais diversas — com a condição de que o ensino e a informação acompanhassem seus passos, ou até mesmo estabelecessem um diálogo com ela. Trata-se de uma situação paradoxal: aos olhos (e aos ouvidos) do melómano desejoso de empreender uma exploração sistemática, o labirinto pode parecer inextricável, quando, na verdade, está constituído pelo embaralhamento de aspirações e empreendimentos que tendem — cada um por um caminho diferente — para a abertura da música, estendida quase até o seu dilaceramento. Aliás, muito freqüentemente, essa música toma hoje por objeto, por eixo, as próprias condições de sua produção e representação: ela se auto-analisa, em obras "críticas" que visam, o mais das vezes, desmontar o mecanismo do ato musical.
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Para uma geração de compositores nascidos dez anos depois da fabulosa geração de 1925 — ou seja, na segunda metade dos anos 30 — , alguns dos quais aparecem hoje quase como "clássicos" da música, já não se pode falar de pós-webernismo mas, com mais propriedade, de pós^boulezismo e até mesmo de pós-xenakismo, para os que vieram um pouco mais tarde. As estruturas criadas pelos companheiros mais antigos, os concertos do Domaine Musical, assim como os concertos pelo rádio, muito contribuíram para revelar rapidamente esses novos compositores. Vários deles, por sinal, foram formados como regentes de orquestra por Pierre Boulez nos cursos que deu na Basiléia. É o caso, notadamente, de Gilbert Amy, nascido em 1936, figura de proa dessa geração, que sucedeu a Boulez, em 1967, na direção do Domaine Musical, até a associação dissolver-se em 1973. Marc Vignal escreveu: Nele parecem fundir-se duas naturezas de artista: de u m lado, o herdeiro de Boulez, com o que isso implica de lucidez e inteligência, mas t a m b é m de rigor e austeridade; de outro, o explorador ardente da suntuosidade e do refinamento da grande orquestra, com u m a predileção por certas regiões obscuras e pelos registros graves.
Gilbert Amy teve um reconhecimento rápido como compositor (sua Cantate brève [Cantata breve] foi executada pela primeira vez em Donaueschingen em 1957, seguida da Sonata e de Epigramas, para piano, em 1960 e 1961, e de Antifonias, para duas orquestras, em 1963). Com notável regularidade sua obra cresce na elaboração de um pensamento poético que se afirma cada vez mais; como exemplos, basta citarmos Cette Étoile incline à s'incliner [Esta estrela inclina a se inclinar, 1970], cujo título vem de uma obra de Paul Klee e que combina com diversos instrumentos a fita magnética e um coro de homens, ou ainda, dez anos mais tarde, Une Saison en enfer [Uma temporada no inferno], com base em Rimbaud, sua partitura mais ambiciosa até hoje. Dois anos mais velho do que Gilbert Amy, Jean-Pierre Guézec, nascido em 1934 e prematuramente desaparecido em 1971, era uma das grandes esperanças de sua geração. Aluno de Messiaen, cultivava como ele associações de sons e cores: Architectures colorées [Arquiteturas coloridas, 1964], Ensemble multicolore [Conjunto multicor, 1965], Successif simultané [Sucessivo simultâneo, 1968]. Esta última obra, talvez a mais significativa, inspira-se muito livremente nas técnicas de estruturação do espaço, tal como ele as percebeu em Mondrian ou em Vasarely. Assim como Gilbert Amy, Paul Mefano, nascido em 1937, realizou uma dupla carreira de compositor e regente, mas nesta última atividade devotou-se quase exclusivamente à defesa da música contemporânea. Temperamento arrebatado, muito aberto a todas as formas novas da música, moveu-se inteiramente à vontade no terreno experimental. De Madrigal (1962) a Ondes Espaces Mouvements [Ondas Espaços Movimentos, 1976], passando por Intersection [Intersecção, 1970], as obras foram numerosas, ecléticas, às vezes inesperadas, sempre generosas no seu fôlego.
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Mais caótico, mas só na aparência, feito de rejeições por vezes violentas, o método de Jean-Claude Eloy, nascido em 1938 — e, sem dúvida, a personalidade mais forte de sua geração —, não faz concessões. Ligado à esfera de influência serialista em seus primeiros anos (Équivalences [Equivalências], 1963), ele não tardou a renegar com ardor o que chamou de "tagarefice serial", despedindo-se das séries com Faisceaux-Diffractions [Feixes-Difrações, 1970], que já se voltava em direção ao Oriente. Essa direção foi confirmada com Kamakala (1971, para três orquestras, três regentes e cinco coros), música meditativa, e sobretudo com Shanti (1972-1973) e Gaku-No-Michi (1977-1978), duas obras de vastíssimas dimensões, realizadas com recursos eletroacústicos, às quais vieram juntar-se finalmente Yo-In, combinação de percussões e música eletroacústica (1982), em que se traduziram as emoções do compositor em face da descoberta de um "novo mundo" mental, geográfico e sonoro. Jean-Claude Eloy sempre quis atingir grandes massas: "Compor é para mim um ato emocional de comunicação. Reivindico de modo absoluto essa intenção. Não tenho receio de dizer que encaro minha música como expressiva!" Seguindo um caminho muito solitário, Gérard Masson (nascido em 1936) concebeu uma música ampla, deliberadamente sinfônica (Dans le deuil des vagues [No luto das ondas] l e II, 1966-1968; Hymnopsie, 1972), com caráter grave e refinado. Berlioz, Varèse e Stockhausen foram as fontes de inspiração do compositor. Acontece-lhe também de aludir aos antigos em suas combinações instrumentais, como é o caso em W3A6M4 (1983) que faz violino e viola deffontarem-se com a orquestra, à maneira da Sinfonia concertante K 364, de Mozart. Na Bélgica, Jacques Calonne, nascido em 1930, inscreveu-se na esfera de influência de Stockhausen e de Boulez. Mas foi sob a influência de Pousseur que se determinaram as carreiras de Pierre Bartholomé, nascido em 1937, e de Philippe Boesmans, nascido em 1936, autor da ópera Gilles de Rais, estreada no Théâtre Royal de la Monnaie em 1983. Desde suas primeiras obras, Sonnances (1963), Upon La-Mi (1969), Philippe Boesmans, constatando o impasse a que a prática serial levava e unindo audácia e rigor, reintroduziu certos princípios de "musicalidade" no próprio cerne do processo serial (consonâncias, periodicidades rítmicas, intervalos curtos, movimentos conjuntos). A influência de Henri Pousseur também foi determinante, um pouco mais tarde, para o francês Jean-Yves Bosseur, nascido em 1947, filósofo de formação, que concebe sua música como estando "aberta" para a literatura, o teatro e as artes plásticas (ele é notadamente autor de livros-partituras) e se orienta no rumo de amplas "ações musicais". É de sua autoria, em colaboração com Dominique Bosseur, Révolutions musicales [Revoluções musicais], um dos melhores e mais estimulantes livros sobre música contemporânea. Tom Phillips, nascido em 1937, pintor e músico, representou na Inglaterra um perfil estilístico um tanto semelhante. Como promessas de descompartimentação, as músicas assim criadas, utó-
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picas, constituem uma continuação e um prolongamento do método procedente de Cage, interiorizando-o de certa maneira. Como já o fora para Henri Pousseur, a colaboração com Michel Butor foi muito importante, e em parte determinante, para René Koering, nascido em 1940. O escritor funcionou como um espelho da reflexão do músico sobre a história (MaWer, 1971; Elseneur, 1980). Como viver a música e ensiná-la no alvorecer dos anos 70? A pergunta estava longe de ser simples para muitos compositores, marcados em seus anos de formação por sistemas que questionaram tão logo chegaram à idade adulta. Michel Decoust, nascido em 1936, proclamou com volência em 1973 que "a experiência do serialismo foi um dos maiores fracassos de minha vida", e daí por diante pautou sua criação por outros dados (espaço, eletroacústica). Alain Louvier, nascido em 1945, foi tentado pela exploração dos microintervalos (Clavecin non tempéré [Cravo não temperado], 1979; Casta Diva, 1980). Fernand Vandenbogaerde, nascido em 1946, traduziu em eletroacústica (Jeux de temps [Jogos de tempo], 1977; Kaléidoscope [Caleidoscópio], 1976) intenções amadurecidas na freqüentação da música de Xenakis. Esses três compositores assumiram funções pedagógicas importantes. Cada método composicional tende a inscrever-se fora de qualquer sistema, a individuahzar-se ao extremo, posicionando-se cada compositor nas regiões preferidas de seu universo imaginativo. Jacques Lenot, nascido em 1945, quer traduzir com indiscutível mestria "uma expressividade próxima das obras virtuosísticas do passado" (Sonata para piano, 1971, a que se seguem mais quatro, respectivamente em 1978,1979,1980 e 1982). Gérard Grisey, nascido em 1946, imagina uma nova espacialização da música e pretende "por meio da acústica e da psicologia da percepção, descobrir uma escrita em evolução contínua na qual o lugar dado ao objeto sonoro seja da mesma importância — ou mais importante, até — que sua própria estrutura" (D'Eau et de pierre [Sobre a água e a pedra], 1972; Dérives [Derivas], 1974; Espaces acoustiques [Espaços acústicos], 1980). Michèle Reverdy, nascida em 1943, modela formas que, um pouco à maneira do pintor e do escultor, se revelam a ela a partir de um material de base selecionado, "tentando trabalhar incessantemente a mesma argila original a fim de obter efeitos caleidoscópicos" (Espaces, 1975; Kaléidoscope, 1975; Mimodrame, 1981).
As evoluções também são múltiplas nos diversos países europeus. Na Inglaterra, seu país de origem, Harrison Birtwistle, nascido em 1934, adquiriu rápida notoriedade, por seu talento Urico (Punch and Judy, 1968). Richard Rodney Bennett, nascido em 1936, depois de ter-se curvado ao serialismo e de ter trabalhado em Paris com Pierre Boulez, voltou-se com predileção para
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a ópera (The hedge [A saliência], The Mines of Sulphur [As minas de enxofre], A Penny for a Song [Um centavo por uma música] foram escritas entre 1960 e 1966). Brian Ferneyhough, nascido em 1943, tornou-se a figura de proa da música britânica no início dos anos 80. Tendo assimilado notavelmente os princípios e as técnicas da escrita serial — que deixaram marcas na escrita complexa de suas obras —, passou-os pelo crivo de sua própria subjetividade, de sua vontade expressionista. Dentro dessa mesma linha, levou ao extremo as possibilidades mstrumentais até atingir "um virtuosismo paroxístico". Brian Ferneyhough é um músico que cultiva a "grande forma"; define-se como um "místico cético" e representa, entre os compositores dessa geração, um elemento dos mais autocríticos quanto à evolução da música. De sua obra já considerável, podemos dizer que as seguintes peças assinalam etapas importantes: Sonatas para quarteto de cordas (1967), Funérailles I e II (1969-1980), Time and Motion Study [Estudo sobre tempo e movimento, 1971¬ 1976], Transit [Trânsito, 1975], e Carceri d'Invenzione I,IIeïï (1982-1985). Na Itália, Giuseppe Sinopoli, nascido em 1947, aluno de Donatoni, terminou seus estudos de medicina e cirurgia ao mesmo tempo em que seguia em música um curso pós-serial e que se preparava para ser regente de orquestra. Depois de compor e ensinar bastante, Sinopoli foi professor de música eletrônica (e de composição) no Conservatório de Veneza,finalmenteinstalando-se em Viena. Realizada ao longo das diversas etapas desse percurso tão completo, a obra de Sinopoli se edificou sobre vastos planos numa grande riqueza polifónica (Tombeau d'Armor [Homenagem a Armor] Ja III, 1975-1978; Souvenir à la mémoire [Recordação da memória], 1974; hou Salomé, 1981) Muito diferente é o perfil da obra do siciliano Salvatpre Sciarrino, também nascido em 1947, compositor autodidata que criou um universo sonoro de extremo refinamento, muito colorido na maneira como se deixa abordar, procedendo em geral por mínimas e imperceptíveis variações. Os títulos das obras refletem o mais das vezes o frescor de seu conteúdo: Clair de lune [Luar], 1976; Di Zefiro e Pan, 1976; Fauno chefioschia aun merlo, 1980. Tomas Marco, nascido em Madri em 1942, e Emmanuel Nunes, nascido em Lisboa em 1941 — e cuja obra para orquestra, Ruf, causou tão forte impressão no Festival de Royan em 1977 — representam as correntes pós-seriais da península ibérica. York Hõller, nascido em 1944, que foi aluno de Zimmermann, é um dos únicos representantes alemães. A influência de Stockhausen também foi importante na formação do seu estilo, voltado em grande parte para a eletrônica (Horizont, 1971; Median, 1975). Konrad Boehmer, nascido em 1941 em Berlim, foi viver na Holanda, onde, depois de ter trabalhado o material eletrônico, escreveu obras politicamente engajadas, que constituem um dos elementos de sua corajosa reflexão crítica sobre a situação da música de hoje. Sua obra mais importante é a ópera
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Doktor Faustus (1980-1983). Rolf Gelhaard, também alemão, nascido em 1943, desenvolve pesquisas acústicas com base na música eletrônica. Não deveria causar espanto ver reunidos em Montreal, em 1961, compositores como John Cage ou Morton Feldman, presentes na qualidade de vizinhos. E foi Ricardo Kagel quem regeu Anerca, do compositor canadense Serge Garant (1929¬ 1986), uma das figuras dominantes da música canadense contemporânea, em concerto que causou escândalo pelo repertório composto com métodos aleatórios. Em conjunto, a música canadense da época inspirava-se, mais do que nos Estados Unidos, num tipo pós-weberniano de composição. Era o caso, por exemplo, de John Weinzweig (nascido em 1913) e, numa certa medida, de Gilles Tremblay (nascido em 1932). Este último identificou em Varèse e Messiaen aqueles que o "despertaram"; foi aluno de Messiaen em Paris (tal como Serge Garant) e trabalhou algum tempo no grupo de pesquisas musicais da Rádio e Televisão Francesa. Aluno de Tremblay e natural de Quebec, Claude Vivier (1948-1983), que em seguida veio para a Europa trabalhar com Stockhausen e no estúdio de sonologia de Utrecht, forjou para si um estilo muito pessoal, à procura de uma simplicidade expressiva de tom mais autêntico. Uma das mais brilhantes esperanças da música canadense, Claude Vivier ainda não havia completado 35 anos quando morreu assassinado em Paris. O serialismo foi, no entanto, o ponto de partida do compositor e pianista americano Frederic Rzewski, natural de Massachusetts (1938). Logo fugiu à sua influência para tentar expressar uma música que se pretende "mais próxima do real", seja pelo uso de técnicas de improvisação, seja pela preocupação sociológica de abertura para o mundo contemporâneo: Corning Together [Reunião, 1972] referese a um massacre numa prisão americana; T7xe People Will Never Be Defeated [O povo jamais será vencido, 1977] diz respeito à historia do Chile e à sua cultura. "Essa música não é nem clássica nem comercial. Pertence, dir-se-ia, a uma espécie de realismo popular em que estão combinados os elementos da tradição clássica européia com a música folclórica americana." Isolado no México, Julio Estrada, nascido em 1943, aluno de Messiaen, tendo seguido os cursos de verão de Darmstadt, situa-se mais propriamente na filiação de Xenakis. Defensor, no México, dasnovas formas de música de um modo geral, escolheu para si pesquisar no domínio dos timbres, da espacialização (Canto naciente, 1978) e, cada vez mais, da eletroacústica. ** *
Nessa evolução, já muito diversificada, em que a atenção cada vez mais dirigida ao timbre confere uma importância suprema a esse parâmetro da escrita (segundo
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os critérios serialistas), em que a eletroacústica introduz a um outro tipo de escuta, em que os representantes mais antigos (Berio, notadamente) tentaram recuar os limites da execução instrumental, assistimos a uma verdadeira derrubada das barreiras que separavam a função de instrumentista daquela de compositor. Numerosos são os mstrumentistas que, para estender ainda mais as possibilidades sonoras de seu instrumento, passaram a compor. Um exemplo que se destaca é o de Vinko Globokar (de origem iugoslava mas nascido na França em 1934), virtuose do trombone, que vai estender seu esmero virtuosístico muito além dos problemas técnicos da execução, ao gesto propriamente da execução, à própria interpretação e mesmo à improvisação coletiva como sociodrama (Drama, 1971; Ausstrahlungen, 1972; Un Jour comme un autre [Um dia como outro], teatro musical, 1979). Da mesma forma, o compositor argentino Carlos Roqué Alsina, nascido em 1941, chegou à composição por intermédio de seu instrumento, o piano, de que é um virtuose. Nada há que estranhar, portanto, no fato de se reunirem, em 1969, para fundar o conjunto New Phonic Art — dedicado à improvisação e à livre execução conjunta — os compositores Globokar e Alsina, lado a lado com os instrumentistas Jean-Pierre Drouet (percussionista) e Michel Portal (clarinetista). Da mesma forma, questões de sopro inerentes a seu ofício de oboísta motivam certas obras do músico suíço Heinz Holliger, nascido em 1939 (Pneuma, 1970; Cardiophonie, 1971, em que o oboé se junta às pulsações cardíacas e à respiração amplificada). Em alguns compositores mais jovens, como Alain Louvier (Études pour agresseurs [Estudos para agressores], para diversos conjuntos) e Marc Monnet, nascido em 1947 (Pour six pianistes [Para seis pianistas], 1974), constatamos o mesmo interesse em levar ao extremo as possibilidades da execução instrumental. O interesse pelo instrumento, pelas novas sonoridades, acarreta também a curiosidade por utilizar instrumentos insólitos: antigos sinos orientais, em Alain Kremski, nascido em 1940; o zimbalão, no alsaciano Detlef Kiefièr, nascido em 1944; os carrilhões, em Renaud Gagneux, nascido em 1947, que foi aluno de Dutilleux e compositor de grande imaginação; ou, ainda, os modelos de harpa eólia concebidos e fabricados na Alemanha pelo italiano Mario Bertoncini, nascido em 1932. *** A distância que vai dessa nova concepção do gesto e da prática instrumental a um teatro da música não constitui uma fronteira estanque — como, aliás, não existem mais fronteiras estanques entre outros gêneros de música quaisquer. Ligeti, Kagel e Schnebel já se haviam engajado no caminho de uma teatralização da música, preocupação que tampouco era estranha a Pousseur ou a Nono. O "teatro musical", termo híbrido, que passa a existir como gênero, atraiu a atenção de numerosos compositores que nele encontraram um amplo campo de expe-
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rienda musical ao mesmo tempo que um terreno propício à sua curiosidade literária. Não por acaso, Globokar e Holliger chegaram ao teatro musical (o primeiro, com Un Jour comme un autre, 1979; o último, com Va-et-vient [Vaivém], 1980). A França teve como pioneiro no gênero, aparentemente tão livre, um dos compositores de escrita mais rigorosa, nitidamente influenciada pelo serialismo: Claude Prey, nascido em 1925. Segundo ele, a música no teatro está chamada a exercer uma dupla função. À pesquisa cênica, ela fornece u m m é t o d o (série, p e r m u t a ç ã o , variação, c o m p o s i ç ã o ) que permite a n o t a ç ã o e o controle de u m d o m í n i o ampliado ( e n t o n a ç ã o , distâncias, mas t a m b é m níveis de linguagem, silêncios, gestos). À representação dramática ela oferece o elemento ativo do canto e da variação de estilo, cobrindo toda a gama da paródia, permitindo u m teatro de "distanciamento variável" e libertando assim o ator de seu paradoxo.
Sua obra-prima é, sem dúvida, Les Liaisons dangereuses [As ligações perigosas, 1974], precedida por outras realizações espetaculares (Le Cœur révélateur [O coração revelador], 1962; e Donna Mobile, 1972). Adrienne Clostre, nascida em 1922, seguiu um caminho paralelo e não se intimidou em abordar temas difíceis, até mesmo filosóficos, por meio do teatro musical (Julien l'Apostat [Juliano o Apóstata], 1971; Nietzsche, 1975; Kierkegaard, 1983; Scenes de la vie italienne [Cenas da vida italiana], 1982). Na Inglaterra, um dos grandes protagonistas desse gênero, Peter Maxwell Davies, nascido em 1934, compositor por sinal proteiforme, atingiu a fama internacional com suas Eight Songs for a Mad King [Oito canções para um rei louco, 1969], exercício de alto virtuosismo em que uma voz solista exprime todos os estados do delírio e da loucura, a que se seguiram a ópera Taverner (1970) e Le Jongleur de Notre-Dame [O prestidigitador de Notre Dame, 1974], dois momentos de uma farta produção teatral que se mostra por vezes provocativa (Notre-Damedes-Fleurs, 1966). Em Amsterdã, Peter Schat, nascido em 1935, realizou com Labirinto (1966) um espetáculo que aspira a ser "total" — música, filme e balé reunidos num dispositivo cênico complexo, adaptado ao tema da obra. Em 1969, Peter Schat, com a colaboração sobretudo de Louis Andriessen, realizou uma "ópera coletiva": Reconstrução. A liberdade do teatro musical, com relação à ópera de repertório, torna-o particularmente apto a mergulhar na sociedade contemporânea: seja encontrando nela parceiros amadores e um público novo, seja — o que é mais freqüente — extraindo dela os temas e as motivações que inspirarão suas obras e manifestarão, o mais das vezes, um olhar crítico dirigido a essa sociedade. É o caso do trabalho dos compositores holandeses já citados. É o caso, também, do compositor austríaco Dieter Kaufmann, nascido em 1941, que fundou seu próprio grupo de teatro
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musical, o K. und K. Experimental Studio, para ter condições de apresentar ao grande público suas obras multimídias. É o mesmo caso de Georges Aperghis, nascido na Grécia em 1945, que fundou em 1976 o Atelier Théâtre et Musique (ATEM) na cidade dé Bagnolete e elaborou com habitantes locais — uma equipe de atores — verdadeiras ações musicais nascidas do cotidiano (Pièceperdue [Peça perdida], 1979). Proveniente da composição instrumental, Aperghis logo se voltou para o teatro musical, com o desejo de nele realizar "um trabalho crítico e ver a vida do dia-a-dia como uma grande partitura". Ele é um dos compositores que mais trabalharam nesse sentido, autor de espetáculos que despertaram um interesse constante: Histoire du nécromancien Hieronimo [História do necromante Jerónimo, 1971]; Jacques le Fataliste [Jacques o Fatalista, 1974]; Histoire de loups [Historia de lobos, 1976]; La Bouteille à la mer [A garrafa lançada ao mar, 1976]; Je vous dis queje suis mort [Estou lhe dizendo que morri, 1979]; Liebestod, un opéra [Morte de amor, uma ópera, 1981]; L'Écharpe rouge [A echarpe vermelha, 1984]; e a série magnífica das Récitations [Recitações]. Ori ginário do Marrocos, o compositor Ahmed Essyad, nascido em 1938, promoveu, por meio de Le Collier des ruses [O colar de artimanhas, 1977], a união da poesia árabe do século XI com o teatro musical contemporâneo. Persistiu em seu intento com L'Eau [A água, 1985], grande ópera construída no tempo e no espírito de um conto não europeu. Depois de haver procurado expressar-se em múltiplas direções, Luc Ferrari encontrou no teatro musical uma possibilidade de realizar com um novo público esse diálogo que buscava há tanto tempo (Société I, ou le pouvoir déshabillé [Sociedade I , ou o poder sem roupagens], 1981). Devem ser assinalados dois campos próximos do teatro musical, para os quais começa a voltar-se o interesse dos compositores de hoje, cada um desses campos exigindo um cuidado e uma escrita muito particulares. Estou me referindo às partituras concebidas diretamente para a televisão e àquelas que se destinam ao teatro infantil. Mencionaremos aqui apenas dois exemplos franceses simbólicos dessas novas iniciativas: o oratório dramático Les Perses [Os persas], baseado em Esquilo, do compositor Jean Prodromides (nascido em 1927; consagrou-se às músicas de espetáculos, balés, óperas —- como HH. Ulysse, 1984) que causou sensação quando projetado na tela pequena em 1961; e Les Travaux d'Hercule [Os trabamos de Hércules, 1981], composto por Antoine Duhamel (nascido em 1925), como resultado de um esforço para fazer com que as crianças participassem de um empreendimento de criação musical. É de lamentar-se que os compositores não recebam com maior freqüência propostas para exercer seus talentos e suas imaginações nessas áreas, como costumam fazer, por sinal, para o cinema. (Sobre as relações da música com o cinema, que remontam a épocas bem mais antigas, remetemos o leitor à obra de Alain Lacombe e Claude Rocie, La Musique du film, 1979.)
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A geografia do desenvolvimento da música eletroacústica evoluiu com rapidez extraordinaria. Os centros de pesquisas e os grupos experimentáis multipli¬ caram-se pelo mundo inteiro. Para só citarmos alguns dentre os mais importantes: em 1964, o Estúdio de Música Eletrônica da Universidade do Estado de Utrecht (Holanda), animado por Michael Gottfried Koenig (nascido na Alemanha em 1926) e que em poucos anos tornou-se um centro muito conhecido; o americano Frederic Rzewski, de quem já tratamos, contribuiu para a fundação do grupo romano Musica Elletronica Viva em 1966; o Feedback Studio na Alemanha e o Sonic Art Group nos Estados Unidos atenderam à mesma necessidade da prática da "música eletrônica viva", de modo que, de certa forma, a composição se modele ao sabor das trocas entre os parceiros do grupo, e não em obediência a uma música rigorosamente escrita. Na Áustria, Dieter Kaufmann, o mesmo que se interessou por teatro musical, deu novo impulso à música eletroacústica; na Suíça, Jacques Guyonnet, nascido em 1933, fundou em 1959 o Estúdio de Música Contemporânea em Genebra, onde criou em 1974 um seminário de composição. Na França, ao lado do grupo de pesquisas musicais, novos centros apareceram com o correr dos anos: em 1969, em Marselha, criou-se o Grupo de Música Experimental de Marselha (GMEM), fundado por Marcel Frémiot e animado em seguida por Georges Boeuf e Lucien Bertofina; Marselha possui também um Laboratório de Mecânica e de Acústica Informática (LMA) fundado por Jean-Claude Risset. Em 1970, os compositores Christian Clozier e Françoise Barrière (nascidos em 1945 e 1944, respectivamente) fundaram o Grupo de Música Experimental de Bourges (GMEB), centro de criação e difusão. Em Metz, Claude Lefebvre (nascido em 1931), condiscípulo de Gilbert Amy e de Jean-Claude Eloy no Conservatorio de Paris, criou o Estúdio de Música Eletroacústica de Lorena, que se tornou em 1972 o Centre Européen pour la Recherche Musicale [Centro Europeu de Pesquisa Musical, CERM]. Pululam as siglas! A mais importante dessas siglas é o Institut de Recherche et Coordination Acoustique/Musique [Instituto de Pesquisa e Coordenação Acústica/Música, IRCAM] cuja fundação foi decidida em 1970 e cuja direção Pierre Boulez aceitou. Os primeiros trabalhos só foram realizados em 1975. John Chowning, pesquisador e compositor americano nascido em 1934 e dirigente do Center for Computer Research in Music and Acoustics [Centro de Pesquisa Computadorizada em Música e Acústica] fundado em 1975 na Universidade de Stanford (EUA), colaborou com o IRCAM, tal como Jean-Claude Risset, que já contava com anos de prática nos laboratórios científicos americanos, trabalhando com Max Mathews, criador do programa para computador Music V, um dos mais utilizados no mundo. Mantendo relações diretas com as técnicas de ponta dos laboratórios americanos, o IRCAM tem por objetivo tornar-se um verdadeiro centro internacional de pesquisa. Giuseppe Di Giugno, de sua equipe, inventou e construiu ali um processador numé-
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rico em tempo real, de altíssimo desempenho, o processador 4 X. Para essa nova ferramenta de trabalho, Pierre Boulez concebeu Répons [Responsório, 1981-1984]. O IRCAM atraiu compositores de muitos países. Jonathan Harvey (Inglaterra), Tod Machover (EUA), Mesias Maiguashca (Equador), York Holier (Alemanha), Morton Subotnick (EUA) estão entre os que foram criar suas obras no Instituto. Hoje, são muitos os que utilizam a eletroacústica — combinando-a, por vezes, com outros recursos — como meio de expressão privilegiado em sua criação. Dependendo das possibilidades que se oferecem, eles circulam de um para outro desses centros de produção. No âmbito do GRM, Guy Reibel, nascido em 1936, expressou-se fartamente pela eletroacústica, demonstrando um interesse muito grande em escrita vocal e nas "representações" vocais concebidas tanto para cantores profissionais quanto para amadores {Vertiges [Vertigens], 1969; Granulations-sillage [Granulações-vestígio], 1976; Tryptique électro-acoustique [Tríptico eletroacústico], 1973-1974). Jean Schwarz, nascido em 1939, também trabalhou no âmbito do GRM, mas produziu certo número de obras por seus próprios meios. Sua criação reflete uma abertura para o jazz, para o balé (para o trabalho de Carolyn Carlson, especialmente): Don Quichotte (1976), Surrounding [Rodeio] ou "crônica americana" ( 1979), Year of the Horse [Ano do cavalo, 1978]. Jacques Lejeune, nascido em 1940, ingressou no GRM em 1968. Gosta de usar como ponto de partida, em seus trabalhos, materiais recolhidos na natureza, que ele combina com material mais abstrato. Parages [Linhagens, 1973-1974] é uma das obras mais simbólicas de sua postura. Edgardo Canton, nascido em 1934 {Animal-Animal, de 1962, A Cheval vers la lune s'en va à la lagune [A cavalo para a lua lá se vai a lagoa, 1970]) e Beatriz Ferreyra, nascida em 1937 {Demeures aquatiques [Domicílios aquáticos, 1967], Orviétan, de 1974), ambos argentinos que vieram trabalhar no GRM, demonstram a audiência internacional que em pouco tempo o grupo obteve, ainda que esses compositores tenham escolhido em seguida caminhos independentes. Também é o caso de dois compositores mais jovens: Alain Savouret, nascido em 1942, que, dos Études aux sons réalistes [Estudos com sons realistas, 1969] à monumental Sonate baroque [Sonata barroca, 1974], afirmou-se como uma das imaginações mais férteis da eletroacústica; Michel Chion, nascido em 1947, que se situa (conforme ele mesmo diz) na linha de Pierre Henry, vê e pensa "grande"; sua música é como "uma música em cinemascope"; seu Requiem (1973), "grande espetáculo auricular", teve repercussão internacional. Navegando entre os laboratórios Bell nos Estados Unidos, o GRM, o IRCAM e o centro da Universidade de Marselha-Luminy, o pioneiro francês em música de computador, Jean-Claude Risset (nascido em 1938), utiliza sons sintéticos calculados com base no programa Music V, mas também instrumentos ou vozes integrados a esses novos recursos sonoros {Dialogues [Diálogos], 1975; Inharmoniques [Inarmónicos], 1977; Moments newtoniens [Momentos newtonianos], 1977).
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Vindos de horizontes diversos, três compositores se uniram em 1977 para formar o Collectif de Recherche Instrumentale et de Synthèse Sonore [Coletivo de Pesquisa Instrumental e de Síntese Sonora, CRISS]. Alain Bancquart, nascido em 1934, investiga as estruturas parasseriais, viaja nos microintervalos (Thrène II 1976, L'Amant déserté [O amante abandonado], 1978). Hugues Dufourt, nascido em 1943, licenciado em filosofia, depois de haver escrito obras de envergadura para instrumentos tradicionais (Erewon, 1977; L'Orage [A tormenta], 1977), associou, no impressionante Saturne (1979), a eletrônica aos instrumentos, o que não o impediu de voltar à grande orquestra (Surgir, 1980-1984) para uma considerável exploração do instrumento-orquestra. O mais jovem, Tristan Murail, nascido em 1947, influenciado por sua prática nas ondas Martenot, sempre procurou estabelecer um clima poético pessoal, situado fora de qualquer referência a um universo pós-serial, no próprio som e em suas possibilidades de lentas transformações (La Dérive des continents [A deriva dos continentes], 1973; Sables [Areias], 1975; Les Courants de l'espace [As correntes do espaço], 1979; Désintégration [Desintegração], 1982). É um pouco à mesma família de compositores que pertence Michael Levinas, nascido em 1949, excelente pianista, que mistura de bom grado, numa obra já considerável, o som elétrico aos instrumentos (Concerto pour un piano-espace [Concerto para um piano-espaço], 1977; Dans un espace souterrain [Num espaço subterrâneo], 1977; Ouverture pour une fête étrange [Abertura para uma festa estranha], 1979; La Conférence des oiseaux [A conferência dos pássaros], 1985, que, graças aos novos recursos elétricos, exploram as possibilidades desconhecidas da organologia). *** Os Estados Unidos voltaram a desempenhar seu papel de detonador na música. Toda uma parcela de compositores, não diretamente interessados nas discussões e no palavrório em torno dos problemas de escrita e de linguagem de seus confrades europeus, engajaram-se nos caminhos abertos por Morton Feldman ou Earle Brown e, simplificando ao extremo os dados de partida da composição, criaram essa corrente de música dita "repetitiva", que não renega a tonalidade, é construída sobre um princípio rítmico, desenrola-se por variações imperceptíveis e onde a eletrônica muitas vezes está presente, misturada com os instrumentos. Os três representantes mais eminentes dessa nova escola são Terry Riley, nascido em 1935, Steve Reich e Philip Glass, ambos de 1936. A postura de Steve Reich é a mais completa e a mais interessante. Nascido no meio judeu de Nova York, Reich começou por admirar Bartók e Webern (por sua clareza), foi aluno de Berio no Mills College da Califórnia, mas considerou, nessa época, que a música dodecafônica perdera o sentido essencial da pulsação.
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Forçou-se a escrever obras seriais, fugiu do serialismo, exerceu sua atividade de músico relacionando-a com uma tomada de consciência política em improvisações coletivas provenientes da tradição dos minstrels. Finalmente, em 1964, compôs Music for Piano and Tape [Música para piano e fita]; em seguida, vieram suas primeiras músicas repetitivas (Piano Phase, 1967; Violon Phase, 1967); criou, então, seu próprio conjunto de músicos, para o qual elaborou as grandes obras, daí por diante referência obrigatória: Music for 18 Musicians [Música para 18 músicos, 1976], Music for Large Ensemble [Música para conjunto grande, 1978]. "Reconhecido como uma das figuras de proa da 'música nova' americana, Steve Reich não acredita na música experimental e se reporta constantemente à tradição" (Bérénice Reynaud). Vale acrescentar que essa tradição não é somente européia; a música de Reich integra ativamente as descobertas de outras tradições, o gamelão de Bali, músicas africanas, e mesmo a cantilação hebraica etc. Não foi Reich mas sim Riley quem fez, com In C [Em dó maior, 1966], a primeira abertura para o grande público. (Lembremos aqui o aforismo, talvez irônico, do próprio Schõnberg: "Continuará sendo possível fazer muita música boa em dó maior.") Glass, que fundou em 1968 um grupo de música para instrumentos com amplificadores e criou com One One sua primeira obra "aditiva", fez em seguida músicas para os espetáculos de Bob Wilson (Einstein on the Beach [Einstein na praia], 1976) e com elas firmou sua reputação internacional. Uma tal concepção da música não deixou de impressionar a Europa. O holandês Louis Andriessen, nascido em 1939, realizou obras baseadas nos mesmos princípios. Em certa medidãTmas dentro de uma concepção bem mais ampla, o polonês Zygmunt Krauze, nascido em 1938, procurou estabelecer uma música quase pictórica "em torno de um material único, em formas homogênas e claras, decididamente não contrastadas". Um conceito inteiramente novo aparece, também nos Estados Unidos mas quase paralelamente na Europa, ligado ao fenômeno da poluição sonora e à nova percepção do silêncio. Podemos ver aí também uma conseqüência da tendência à espacialização manifestada por numerosos compositores em suas músicas: tratase do conceito de "meio ambiente sonoro", ou de "paisagem sonora". Murray Schafer, compositor canadense nascido em 1933, é um dos seus iniciadores. Publicou, por sinal, uma obra de peso, Le Paysage sonore [A paisagem sonora], resultado de pesquisas que dirigiu sobre o assunto. Murray Schafer imagina músicas postas em situação no espaço (sobre os lagos, de uma colina a outra, etc.), que vão ao encontro de certas atitudes instintivas de Ives, dão-lhes contornos mais precisos, desenvolvendo-as sobre outras bases. Nos Estados Unidos, é o compositor e percussionista Max Neuhaus, nascido em 1939, quem conduz pesquisas paralelas sobre a percepção acústica e instala pontos de música nos logradouros públicos, em metrôs, esquinas etc, onde essa música, para ser captada, depende da percepção do transeunte. Encarado por este
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ângulo, o som torna-se meio de comunicação. Neuhaus trabalha também com a propagação e a utilização do som em meio subaquático. Na Europa, interesses da mesma ordem atraem músicos como Pierre Mariétan, Nicolas Frize, Michel Redolfi ou o compositor eletroacústico René Bastían. Experiências já foram realizadas em locais urbanos, nas colinas dos Vosgos, em piscinas. Estamos diante dos primeiros passos de uma m^ciplina fadada a grandes desenvolvimentos em futuro próximo. ** *
Se é inegável que a interpenetração do Oriente e dos Estados Unidos exerceu um papel importante na "música nova" americana, tampouco se dever subestimar os efeitos da troca efetuada permanentemente entre a música européia e as músicas orientais. Vimos como a descoberta do Japão e de Bali marcaram compositores como Stockhausen ou Jean-Claude Éloy, para só falar de dois deles. Vale observar que, na direção oposta, os compositores do Extremo Oriente (Japão, Coréia, Vietnã) tentaram estabelecer uma síntese entre dois mundos sonoros vindos de civilizações diferentes. Assistimos ao nascimento de um sincretismo musical. O primeiro deles a trabalhar nesse sentido foi Isang Yun, coreano nascido em 1917, cuja vida apresentou episódios trágicos ("seqüestrado" na Alemanha, onde morava, foi envolvido num processo político na Coréia do Sul, esteve preso por muito tempo, foi condenado à morte e, finalmente, posto em liberdade). Desde o início dos anos 60, Isang Yun associava musicalmente elementos vindos das duas culturas (Loyang, 1962; i?éafc,1966). Nascido em 1929, o japonês Teizo Matsumura se propõe a traduzir por meio da orquestra ocidental o caráter da vida asiática (Sinfonia, 1965). Tom Takemitsu, o mais importante compositor japonês atual, nascido em 1930, admirador de Debussy e de Messiaen, gosta de pôr em contato os instrumentos provindos das duas culturas (Novembersteps, para biwa [alaúde japonês], shakuhachi [flauta de bambu japonesa] e orquestra, 1967; Autumn [Outono], idem, 1974). Makoto Shinohara, nascido em Osaka em 1931, aluno de Messiaen e de Stockhausen, tem uma atitude mais ocidental em suas intenções expressivas, assim como Yoshihisa Taira, nascido em 1938, cuja obra é inteiramente realizada na Europa mas pretende "respirar" segundo dados propriamente orientais. É também este o desejo de Ton That Tiet, nascido èm Hué em 1933, fixado na França e cuja música se refere à filosofia chinesa. Akira Tamba, japonês também fixado na França, nascido em 1932, estudou longamente as "estruturas musicais do Nó", sobre as quais escreveu importante obra. Segundo ele mesmo, situa-se na convergência "das pesquisas musicais atuais levadas a efeito no Ocidente e de uma tradição musical japonesa, curiosamente moderna, se bem que remonte a antes do século XIII".
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Em Nguyen Thien Dao, nascido em Hanói em 1940, é a percepção do tempo, tal como vivido no Oriente, que continua a se exprimir em toda a sua obra: "Esforçome por sair do tempo e do espaço em que vivo. Onde quer que esteja, tento não viver esse tempo e esse espaço determinados. O silêncio permite que eu me transporte para outro espaço, algures." Os temas literários e poéticos vindos do Vietnã alimentam suas obras. Mais moço, Susumu Yoshida, nascido em 1947, representa uma nova geração de jovens compositores, mas em suas primeiras obras procura estabelecer um vínculo com fontes de inspiração popular japonesas.
*** Uma história não é um ensaio. Quando ela não se concede a facilidade de encerrar a tarefa a uma distância respeitosa do presente, quando ela continua avançando, com o risco que envolve a falta de qualquer perspectiva, precisa parar, ou melhor, interromper-se: não há ponto final para uma atividade musical em pleno curso. Mas como, de qualquer maneira, um fim tem que ser dado, evocaremos aqui — antes de deixar para Michel Chion o encargo de tentar um balanço como só o pode fazer um homem do ofício em sua jovem maturidade — as personalidades de três compositores: porque suas orientações são muito diferentes e porque, justamente, só têm em comum o fato de haverem nascido depois de 1950. Na Alemanha, Wolfgang Rihm, nascido em 1952, dando as costas resolutamente a toda experiência de vanguarda ("convertida no academicismo de hoje"), preconiza o retorno a uma música que seja continuação do passado, escrita de maneira expressiva e clara, em harmonias tradicionais e que dê testemunho da experiência humana. Em torno dele e de sua obra já abundante forja-se o conceito de "nova simplicidade", que faz de Wolfgang Rihm (e também de Manfred Trojahn, seu compatriota nascido em 1949) o novo herói do grande público musical germânico. Na França, Philippe Manoury, também de 1952, ex-aluno de Ivo Malee, consagra boa parte do seu tempo ao trabalho com computador. Em função disso já viajou muito, notadamente à América do Sul, e propôs um tema de pesquisa ao IRCAM. Sua obra, instrumental até 1980, orientou-se para a prática do eletroniclive [música eletrônica executada ao vivo] (Jupiter 1987). Pascal Dusapin, o mais jovem, nasceu em 1955; foi aluno de Xenakis, e a abordagem da música aprendida com o mestre exerceu grande influência sobre sua própria vocação de compositor. Sua obra, já abundante em domínios diversos (orquestra, pequenos conjuntos, quarteto de cordas, etc), constrói-se como um gesto de grande concentração que libera energia sonora. "O que vem da música? Estou sempre me fazendo esta pergunta, afimde não deixar que minhas preocupações formais se sobreponham ao gesto instrumental."
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E já se delineia a geração dos anos 60: são seus representantes a francesa Suzanne Giraud (nascida em 1958) e o inglês George Benjamin (nascido em 1960), dois compositores freqüentemente tocados nos encontros internacionais e representativos de uma nova geração que aspira a ver-se livre de todos os modelos. A guisa de balanço O início dos anos 80 é uma boa data para tentar uma apreciação dos resultados dessa "revolução musical" que vem sendo anunciada já há algum tempo. Não se tem exemplo de uma expressão artística que haja permanecido em estado de "revolução permanente" durante período tão longo. Além do mais, para promover a música contemporânea, um slogan como "escutem seu século" (quando o século está justamente chegando ao fim) é um fato que demonstra a existência de um certo constrangimento: por um lado, a revolução musical permanece sempre como em expectativa, precisando de um reconhecimento; por outro, os pontos de partida que ela reivindica como seus aeham-se cada vez mais distantes no tempo: em breve completarão um século! Forçosamente chega a hora de uma pausa, de fazer um balanço, em que se apreciam as aquisições que devem ser conservadas ao mesmo tempo que é preciso reintegrar certas tradições. É o que se passa com a música dita de vanguarda, para a qual já não podemos nos contentar com classificações propostas há vinte ou trinta anos. Chegou a hora em que cada um põe sua contribuição à música contemporânea sobre a mesa e todos se servem de tudo. Há um sincretismo em boa parte da produção musical atual, encontra-se de tudo um pouco, nada é exclusivo, diferente. Pelo menos do lado europeu (os americanos são mais inteiriços e mais sistemáticos), é difícil encontrarmos obras baseadas na aplicação sistemática de alguns princípios e de algumas recusas. As classificações que prevaleciam há dez anos, e que serviam para distribuir os compositores em "escolas", revelaram-se cada vez menos válidas. O currículo de muitos compositores de hoje compõe-se freqüentemente de uma série de incursões sucessivas em tudo "o que se fazia" em determinada época: Fulano começou como serialista logo depois da guerra, mais adiante entrou na fase do aleatório, flertou com o teatro musical, a eletroacústica, a multimídia, antes de reintegrar o tonai — sem perder o passo, na medida em que essas correntes iam fazendo sua aparição. Mas, no final dos anos 70 e início dos 80, é possível perceber certas tendências que se sobressaem: uma delas é o retorno ao "bom som", ao som redondo, pleno, que os mstrumentos produzem naturalmente quando tocados de maneira normal: os efeitos "bruitistes" ["barulhistas"] que pululavam na música instrumental dos anos 60 (bater no dorso do violino, soprar nos tubos dos instrumentos de
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sopro sem usar a embocadura) são menos freqüentes e, de qualquer modo, visam à produção de um som menos esganiçado, menos disperso, mais compacto. O interesse pelo trabalho com a sonoridade desloca-se para as pesquisas efetuadas no computador, e diminui a ânsia de torturar os mstrumentos para arrancar-lhes sons diferentes daqueles para os quais são feitos. Por outro lado, o método dodecafônico serial foi abandonado muito mais depressa do que se esperava, e pela grande maioria daqueles que o haviam adotado depois da Segunda Guerra Mundial. Não resta dúvida de que sua principal justificativa caiu com o fim da proibição antitonal. De Berio a Stockhausen, passando por Xenakis, Penderecki e Pierre Henry, a tonalidade foi muitas vezes reintegrada, com as escalas diatónicas, e às vezes mesmo com as funções harmônicas tradicionais (músicas repetitivas de Phil Glass, de Steve Reich). Na maioria dos casos, é uma tonalidade "estática", à maneira de Debussy, não hierárquica, que não retoma as funções harmônicas habituais, o ciclo das modulações, etc. Esse fenômeno de reintegração da tonalidade dentro de um universo sonoro mais vasto, que inclui seqüências atonais, ou "ruídos" (sons de altura não definida e fixa), é quase geral, mas não tem sido teorizado nem levado em conta no discurso que os compositores e os críticos desenvolvem sobre a música. O que não o impede de existir. O retorno à tradição chega a ser reivindicado por boa parte da "vanguarda" musical: por exemplo, os "pós-modernos" anglo-saxões (Gavin Bryars) que o praticam com humor e promovem uma música "sem pretensão", evocando o programa similar do "Grupo dos Seis"; ou compositores independentes como Luc Ferrari, George Crumb ou Michel Chion que, seguindo caminhos diversos, manifestaram reservas em relação ao conceito de "vanguarda", dentro do qual haviam iniciado suas atividades; na Alemanha, a jovem geração neo-romântica, mesmo neomahleriana (Manfred Trojahn, Wolfgang Rihm), cuja fama não ultrapassou ainda asfronteirasdesse país. Boa parte dos "repetitivos" americanos, como Philip Glass ou Steve Reich, pode reivindicar esse retorno às fontes tonais que os americanos foram os primeiros a ousar empreender. Claro que é preciso levar em conta, nessas correntes, todo um lado "reativo", fadado a ser passageiro. Em tais condições, pode-se perguntar se a vanguarda ainda reconhece um objetivo conjunto, e qual seria ele. De qualquer forma, já não é um objetivo que se defina pela negação (a recusa de formas convencionais). Cada um faz pé firme em torno da afirmação de que só existem experiências singulares e que as escolas já não significam grande coisa. Mas, ao mesmo tempo, essa vanguarda tenta um novo esforço (o último?) para dar a si mesma uma "bandeira", um tema de congraçamento; esse papel de congraçador foi dado ao computador, enriquecido por todas as suas possibilidades recém-adquiridas. Na verdade, desde o início dos anos 60 o computador vem sendo utilizado para compor e para sintetizar sons, mas no fim dos anos 70 os progressos foram tais, que qualquer pessoa passou a ter acesso ao computador. No entanto, o computa-
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dor criador de novos sons (e é esta dimensão que prevalece hoje) nada oferece que seja de natureza a parecer-se com coisa alguma, a não ser uma certa monotonia que, no estado atual das pesquisas, ele confere a tudo o que permite criar. Teoricamente, dá meios para "fazer-se tudo", mas esse fazer-se tudo, na prática, reduzse a um certo número de novas possibilidades sonoras sobre cuja maneira de usar ele não oferece, por si mesmo, qualquer orientação. Essas novas possibilidades vêm juntar-se a uma infinidade de outros recursos que o compositor contemporâneo tem à sua disposição sem saber mais o que fazer deles. Além disso, curiosamente, as obras musicais produzidas com base nessas pesquisas são de estilo muito clássico, muito familiar em seu modo de discurso (evocando a "tagarelice serial" vituperada por Jean-Claude Eloy). Aqueles que produzem sons por meios inteiramente novos parecem querer provar que sabem inseri-los em estruturas musicais clássicas. Um outro tema, entretanto, está no ar, associado muitas vezes às possibilidades do computador: é o retorno ao material sonoro considerado em si mesmo, em sua microtextura, em sua continuidade interna, na pressuposição de que a lógica do discurso musical nasceria da observação dessa matéria, um pouco à maneira de certos pintores que, para decidir sobre os rumos da composição, deixam-se inspirar e conduzir pela matéria que trabalham. Essa preocupação de trabalhar "no som", e não mais apenas "com os sons", é reivindicada por compositores como Tristan Murail, Gérard Grisey e muitos outros. Isso cria um problema central para a música do Ocidente: o de determinar um discurso musical, ou melhor, um processo fundado em evoluções infinitesimais e sobretudo contínuas, ao contrário do pensamento descontínuo, combinatório e discursivo que até então presidiu a composição musical. As músicas "discursivas" de uns opõem-se às "músicas-processo" dos outros, estas últimas fazendo ouvir estados que se transformam e se ligam indissoluvelmente ("glissements"), vastas evoluções sem costura. Ligeti, Xenakis, Bayle, Henry, Cage, os repetitivos americanos etc. acham-se entre os exploradores desse pensamento "contínuo" na música contemporânea. Paralelamente, em obras, em experiências, em métodos, a música contemporânea continua a colocar diretamente p problema de seu estatuto social: é o sentido de numerosas experiências de animação musicais, obras "participacionistas", feitas para provocar o público. É também uma das preocupações presentes no interesse recente pelo meio ambiente sonoro cotidiano: seja que se trate de inventariá-lo, de conservá-lo, de estudá-lo (pesquisas do canadense-inglês Robert Murray Schafer, projetos de "urbanismo sonoro" concebidos por arquitetos e músicos); seja que o compositor utilize os logradouros públicos ou a paisagem natural para aí instalar suas obras e seus "dispositivos", explorándoos possibilidades de tais lugares (Alwin Lucier, Maryanne Amacher; na França, Nicolas Frize, Michel Redolfi e seus concertos "subaquáticos" para ouvintes imersos na água); seja, ainda, que se grave a
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realidade sonora natural a fim de aproveitá-la como matéria de obras para fita magnética (Luc Ferrari, Knud Viktor, Clozier). O desejo nostálgico do compositor contemporâneo é integrar-se numa sociedade que, em geral, não lhe reserva mais que uma posição marginal, ao mesmo tempo luxuosa (porque subvencionada) e pouco gratificante (pouco público, poucas críticas, poucas honrarías e poucos direitos autorais). Mas nem por isso ele deve esquecer que o que lhe é pedido, acima de tudo, não é tanto que seja direta e imediatamente útil, mas que tenha algo a dizer e se arrisque a fazê-lo.
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INDICE ONOMÁSTICO (COMPOSITORES)
A
ALSINA, Carlos Roqué, 1221
ABEL, Cari Friedrich, 514, 530
AMACHER, Maryanne, 1232
ABELARDO, 158, 182, 193
AMADEI, Filippo, 483
ADAM, Adolphe, 692, 693, 709, 891
AMY, Gilbert, 1147, 1216, 1225
ADAM DE LA HALLE, 172, 179, 191
ANDREA DA FIRENZE, 208
ADDERLEY, Carmonball, 1106
ANDREA DEI SERVI
ADÉ, King Sunny, 1121 AFONSO X, rei da Espanha (dito "O sábio"), 181, 1136
v. Andrea da Firenze ANDREU, Jean-François v. Dandrieu, Jean-François
AGINCOURT, François d', 379, 383
ANDRIESSEN, Louis, 1222, 1227
AGOSTINI, Paolo, 347
ANDRIEU, E , 211
AGRICOLA, Alexandre, 247
ANFOSSI, Pasquale, 534, 561
AGRICOLA, Martin, 290
ANGLEBERT, Jean-Baptiste-Henri d', 373
AHLE, Johann Rudolf, 322
ANIMUCCIA, Giovanni, 255
AICHINGER, Gregor, 292
ANTHEIL,-George, 1050
ALAIN, Jehan, 816, 1132
APERGHIS, Georges, 1223
ALAMANDA, 163 ALBENIZ, Isaac, 933, 934, 935, 936, 937 ALBERCH VILA, Pedro, 260 ALBINONI, Tomaso, 355, 429, 439, 353 ALBRECHTSBERGER, Johann Georg, 533, 602 ALFANO, Francesco, 893 ALKAN, Charles Valentin, 690 ALLEN, Henry "Red", 1100, 1102
APOSTEL, H. E., 988 AQUIN, Louis-Claude d', 379, 383 ARBEAU, Thoinot (Jehan Tabouret), 241, 274, 275 ARCADELT, Jacques, 252, 253, 270 ARMSTRONG, Louis, 1069, 1079, 1086, 1098¬ 1100, 1102, 1106 ARNAUD DANIEL, 162 ASPELMEYER, Franz, 533
Historia da tmisica ocidental
1236
índice
1237
onomástico
ASTON, Hugh, 309
B A N C H I E R I , Adriano, 259, 272 BANCQUART, Alain, 1226
BELGIOJOSO, Baltassaro de v. Beaujoyeux, Balthasar de
BIZET, Georges, 693, 710, 793, 796, 799, 801¬
ATTAINGNANT, Pierre, 243, 245, 249, 250, 252,
BARBAUD, Pierre, 1180, 1181
BELIN, Julien, 269
BLACHER, Boris, 1137, 1186
BARBER, Samuel, 1203
BELLINI, Vincenzo, 648, 650, 673,675-677, 680, 710
BLACKWELL, Ed, 1107
BARDI, Giovanni de, 82, 239, 257, 258, 328
BENDA, Georg, 536
BLANTON, Jimmy, 1102
AUDRAN, Edmond, 800
BARRAQUÉ, Jean, 617, 1144, 1145, 1168
BENDUSI, Francesco, 274
BLEY, Carla, 1109
AURIC, Georges, 928, 950
BARRAUD, Henry, 955
BENEVOLL Orazio, 347
BLISS, Arthur, 943
AVALON, Frankie, 1112
BARRIÈRE, Françoise 1224,
BENJAMIN, George, 1230
BLOCH, Ernest, 1009, 1010
B A R T H O L I N O DA PADOVA, 208
BENNETT, Richard Rodney, 1218
BLONDEL DE NESLE, 168
BARTHOLOMÉ, Pierre, 1217
BERG, Alban, 291, 334, 548, 724, 757, 774, 803, 862, 864, 865, 867, 872, 905, 917, 973, 974, 976, 977, 981, 985, 987-994, 996, 997, 1001, 1004, 1009, 1054, 1108, 1143, 1144, 1178
BLOW, John, 401, 403, 404, 407
266, 268, 269, 271, 274 AUBER, Daniel François Esprit, 651, 691, 692, 693, 694, 695 AUDEFROI LE BASTARD, 173
AYLER, Albert, 1109 AZALAIS DE PORCAIRAGES, 163
BARBERIIS, Melchior de, 268
BACEWICZ, Grazyna, 1142
BARTÓK, Bela, 29,30,60,83,116,117,617,738, 753, 846, 882, 901, 917, 929, 957, 960, 963¬ 971, 1024, 1034, 1108, 1118, 1125, 1138, 1141, 1144, 1146, 1191, 1197, 1226
BACH, Carl Philipp Emanuel, 74, 93, 111, 460,
BASIE, Count, 1082, 1083, 1101, 1137
B BABITT, Milton, 1179, 1204
468, 475, 527, 528, 529, 530, 531, 541
BASSANO, Giovanni, 271, 287
BACH (família), 364, 372, 395, 454-456, 529, 530
BASTIAN, René,1228
BACH, Johann Christian, 113, 513, 527, 530, 531, 544, 545, 568, 570
BAUDRIER, Yves, 1126
BATTEN, Adrian, 302
BERIO, Luciano, 43, 1001, 1138, 1144, 1150, 1156-1158, 1159-1161, 1162, 1163, 1179, 1184, 1196, 1221, 1226, 1231 BERKELEY, Lennox, 943 BERLIN, Irving, 1051
803, 833, 887, 888, 891, 908
BLANCHARD, Roger, 1180
BOCCHERINI, Luigi, 23, 440, 514, 535, 934 BOEHMER, Konrad, 1219 BOËLY, Alexandre François, 689 BOESMANS, Philippe, 1217 BOESSET, Antoine, 370 BOESSET, Jean-Baptiste, 362 BOEUF, Georges, 1224 BÕHM, Georg, 457, 459
B E A U L I E U , Lambert de, 264
BERLIOZ, Louis Hector, 8,29, 30, 31, 33,35, 39, 78, 84, 94, 95, 539, 591, 594, 625, 634, 649, 653, 664, 670-672, 689, 691, 692, 699-711, 717, 728, 746, 748, 749, 752, 760, 765, 779, 784, 795-797, 802, 808, 823, 829, 832, 838, 850, 871, 903, 909, 939, 955, 1054, 1059, 1060, 1126, 1167, 1187, 1217
B E A U V A R L E T - C H A R P E N T I E R , 589
BERNARD DE VENTADOUR, 162, 164, 165, 169
B E C H E T , Sidney, 1096, 1098, 1102
BERNIER, Nicolas, 82, 380, 383
BECK, Franz, 541
BERNSTEIN, Leonard, 1058, 1203
BECK, Jeff, 1114
BERRY, Chuck, 1112, 1120
BÉCOURT, 588
BERTOLINA, Lucien, 1224
BORRONO, 271
BERTON, Henri, 583, 586
BOSSEUR, Jean-Yves, 120, 1217
BERTONCINI, Mario, 1221
BOSSINENSIS, Francisais, 268
BERTRAND, Antoine de, 262
BOUCOURECHLIEV, André, 617, 726, 1153,
BALLARD, Robert, 245, 252, 261, 413
BEETHOVEN, Ludwig van, 11, 29,35,36, 64,71¬ 77, 79, 80, 83, 86, 89-97, 100, 110, 115, 116, 398, 475, 491, 492, 510, 511, 515, 516, 518, 519, 523, 524, 535, 536, 546-554, 562-565, 592, 593, 599-622, 623-629, 631-634, 637, 640, 641, 649, 651, 653, 656, 661, 663, 664, 668-670, 676, 690, 699-701, 706, 707, 709, 715, 716, 723-725, 731, 735, 740, 746, 748, 749, 752, 758, 762, 768, 784-786, 788, 796, 801, 802, 812, 814, 820, 825, 829, 844, 846, 854, 880, 887, 904, 952, 966, 969, 977, 1019, 1020, 1034, 1039, 1050, 1054, 1059, 1062, 1066, 1135, 1161, 1185, 1211
BALLIF, Claude, 705, 706, 711, 1186, 1187
B E I D E R B E C K E , Bix, 1099
BAX, Arnold, 942
BACH, Johann Christoph, 527, 529, 530
BAYLE, François, 1175-1177, 1232
BACH, Johann Sebastian, 10, 11, 27, 35, 41, 53, 64-68, 72, 73, 75, 82, 83, 85-87, 89, 90, 95, 116, 232, 290, 291, 317, 318, 335, 348, 350, 355, 372, 375, 376, 379, 383, 385, 386, 391¬ 395, 397, 411, 414, 419, 421, 428, 433, 434, 437, 438, 453-478, 487, 493, 509, 510, S B SIS, 519, 527-530, 541, 543-545, 547, 553, 565, 578, 599, 640, 662, 713-715, 717, 733, 737, 738, 748, 784-789, 796, 798, 807, 810, 829, 879, 880, 883, 884, 908, 950, 961, 964, 966,993,1005,1006,1009,1019,1021,1034, 1039, 1045, 1066, 1108, 1150
BEAUJOYEUX, Balthasar de (Baltassaro de Belgiojoso), 366
BACH, Wilhelm Friedemann, 464,470,527,528 BACH, Wilhelm Friedrich Ernst, 530 BAILEY, Buster, 1081, 1092 BAILLOT, Pierre, 690 BAIRD, Tadeusz, 1194, 1195 BALAKIREV, Mili, 821, 822, 825, 826, 828, 834, 925, 928 BALBASTRE, Claude, 496
BERTRAND DE BORN, 163, 167 BERWALD, Franz, 846 BÉSARD, Jean-Baptiste, 268, 308, 362, 363 BIBER, Heinrich Ignaz Franz, 397, 398 BIGARD, Barney, 1102 BINCHOIS, Gilles, 217, 228, 229, 231, 243, 244, 293 BIRTWISTLE, Harrison, 1218 BISHOP, Walter, 1108
BOIELDIEU, François Adrien, 583, 691, 692, 693, 694, 739, 820 BOÏTO, Arrigo, 686, 874, 886, 887, 891 BOLAN, Marc, 1118 BONDS, Gary "US", 1112 BONI, Guillaume, 262 BONONCINI, Giovanni, 354, 483, 353 BORDES, Charles, 810, 814 BORODIN, Aleksandr Porfirevitch, 756, 821, 822, 823, 824, 825
1169, 1179, 1184, 1185, 1201 BOULANGER, Lili, 955 BOULANGER, Nadia, 955, 1141, 1142, 1195, 1202, 1203 BOULEZ, Pierre, 39, 61, 92, 700, 869, 877, 905, 913, 931, 950, 974, 977, 981, 992, 993, 1001, 1058, 1106, 1129, 1131, 1132, 1144, 1146, 1147-1150, 1152-1157, 1159, 1162, 1163, 1168, 1184, 1196, 1201, 1204, 1216-1218, 1224, 1225
1238
BOULOGNE, Joseph
Historia da música ocidental
BYRD, William, 300-302, 304, 305, 309, 310
v. Saint-Georges, Joseph Boulogne BOURGEOIS, Loys, 282 BOWIE, David, 1118 BOYVIN, Jacques, 252 BRAHMS, Johannes, 76, 82, 92, 94, 379, 504, 653, 726, 735, 774, 777, 779-781, 783-791, 796, 803, 840, 844,. 850, 851, 853, 857, 858, 867, 869, 879, 880, 882, 883, 887, 939, 940, 943, 964, 980, 988, 1003, 1088
CASPARKERLE, Johann, 394 CASTILLON DE SAINT-VICTOR, Alexis de, 811
CABA, Eduardo, 1045
CASTRO, Jean de, 262
CABEZON, Antonio de, 108, 267, 272, 276
CATALANI, Alfredo, 887, 888
CACCINI, Giulio, 109, 239, 257, 258, 328, 332, 361, 362
CATEL, Charles Simon, 583, 586, 594
CADÉAC, Pierre, 274, 281
CAVALIERI, Emilio de, 83, 239, 257, 258, 328, 332, 347
BRAUD, Wellmann, 1102 BRAXTON, Antony, 1109
CAIETAIN, Fabrice Marin, 262, 264
BRÉVTLLE, Pierre de, 810
BRANT, Henry, 1050, 1051 BRASSART, Jehan, 214
CARTER, Eliott, 1203
C
CAGE, John, 28, 29, 120, 121, 949, 1050, 1051, 1125, 1149, 1166, 1171, 1191, 1201, 1202, 1204-1207, 1208-1210, 1212, 1213, 1218, 1220, 1232
1239
Indice onomástico
CATLETT, Sid, 1102
CAVALLI, Pier Francesco, 82,321,339,342,344¬ 345, 361, 369, 396
CHERUBINI, Luigi, 82, 564, 583-586, 588, 590, 594, 595, 647, 648-650, 692-694, 701, 706, 715, 740, 746, 808 CHION, Michel, 1167, 1170, 1225, 1229, 1231 CHOPIN, Frédéric, 92,95,96,437,492,510,623, 676, 690, 704, 714, 724-726, 727, 728, 730, 737-744, 746, 748-750, 753, 774, 883, 898, 907, 913, 915, 926, 960, 1059, 1088, 1135 CHOPIN, Henri, 43, 1212 CHOSTAKOVITCH, Dimitri, 831, 896, 1025¬ 1029, 1031, 1033-1040, 1041, 1125, 1196 CHOWNING, John, 1224
CAVAZZONI, Girolamo, 267
CHRISTIAN, Charlie, 1102 CICONIA, Johannes, 214
CALDARA, Antonio, 342, 398
CAVAZZONI, Marc Antonio (dito Marc Antonio da Bologna), 266, 271
BRIDGE, Frank, 942
CALE, J.J., 1119
CERCAMON, 162
BRITTEN, Benjamin, 942,943,1125,1135,1140, 1141
CALE, John, 1116
CEREROLS, Joan, 288
CIMA, Paolo, 353, 356
CALONNE, Jacques, 1217
CERHA, Friedrich, 992, 1156
CIMAROSA, Domenico, 441, 448, 449-450, 451,
BROWN, Earle, 119, 120, 1208, 1226
CAMARE, Aurel de
CERTON, Pierre, 249-252, 261, 281
BROWN, James, 1114
'
v. Auber, Daniel François Esprit
CIGADA, 180 CILEA, Francesco, 888-890
535, 561, 651, 820
CESARIS, Johannes, 213
CIPOLLINA, John, 1115
BROWN, Roy, 1111
CAMBEFORT, Jean de, 362
CESTI, Antonio, 321, 339, 342, 344, 396
CLAPTON, Eric, 1114, 1117, 1119
BROWN, Savoy, 1116
CAMBERT, Robert, 321, 362, 368, 400
CHABRIER, Emmanuel, 78, 664, 810, 816-818, 925, 1012
CLARA D'ANDUZE, 163
BROWNE, Jackson, 1117 BRUBECK, Dave, 1108
CAMBINI, Giuseppe Maria, 534, 583-585, 588, 590, 592
BRUCH, Max, 791
CAMPION, Thomas, 306
BRUCKNER, Anton, 82, 94, 555, 641, 777-781,
CAMPIONI, Charles-Antoine, 542
789, 808, 857, 1137
CHAMBONNIÈRES, Jacques (Jacques Champion de Chambonnières), 111, 319,363,366,372, 400
CLARKE, Jeremiah, 407 CLARKE, Kenny, 1102 CLEMENS NON PAPA, 251, 267, 279, 281
CHAMPION DE CHAMBONNIÈRES, Jacques v. Chambonnières, Jacques
CLEMENTI, Muzio, 663 CLÉRAMBAULT, Louis-Nicolas, 380, 383
BRUDIEU, Jean, 260
CAMPRA, André, 41,82,379,380,383,413,494, 503
CHAMPION, Jacques, 363
CLIFF, Jimmy, 1119
BRUHNS, Nicolaus, 394
CANIS, Cornelius, 280
CHARBONNIER, Janine, 1180
CLINTON, George, 1121
BRUMEL, Antoine, 243, 277, 279
CANNABICH, Christian, 532
CHARDAVOINE, Jehan, 252
CLIQUET-PLEYEL, Henri, 949
BRUNEAU, Alfred, 800
CANTELOUBE, Joseph, 814
CHARLES, Ray, 1112
CLOSTRE, Adrienne, 1222
BRYARS, Gavin, 1231
CANTON, Edgardo, 1177, 1225
CHARPENTIER (família), 364
CLOZIER, Christian, 1224, 1233
BUCHNER, Hans, 265
CAPLET, André, 915, 926
CHARPENTIER, Gustave, 799, 800
COCHRAN, Eddy, 1112
BULL, John, 309, 350
CARA, Marco, 247
CHARPENTIER, Jacques, 1188, 1189
COLE, Cozy, 1102
CARISSIMI, Giacomo, 82,83,345,348-349,361, 371, 390, 401
CHARPENTIER, Marc-Antoine, 80, 82, 83, 113,
COLEMAN, Omette, 1107, 1109
CARMEN, Johannes, 213
CHAUSSON, Ernest, 78, 811, 812, 816, 911
CARPENTER, John Alden, 1048
CHAUTEMPS, Jean-Louis, 1110
COLLINS, Judy, 1113 COLTRANE, John, 1065,1102,1105-1107,1109, 1120
CARRILLO, Julian, 1044,1182
CHAVEZ, Carlos, 1044
COMPÈRE, Loyset, 243, 244, 247
CARSON, Philippe, 1177
CHAYNES, Charles, 1188
CONLEY, Arthur, 1114
CHECKER, Chubby, 1112
CONON DE BÉTHUNE, 168
CARTER, Benny, 1102
CHERRY, Don, 1108
CONSEIL, Jean, 274
BURDON, Eric, 1114, 1119 BUSONI, Dante Michelangiolo Benvenuto Ferruccio, 844, 881-884, 959, 1004, 1007, 1054, 1059 BUSSOTTI, Sylvano, 121, 1203, 1213 BUUS, Jacques, 266, 272 BUXTEHUDE, Dietrich, 82, 291, 394-396, 397, 457,478,843,459
348, 361, 371-372, 379, 382, 471, 813
1240
História da música ocidental
índice
onomástico
1241
DAN, Steely, 1119
DIÉ, condessa, 163
COOPER, Alice, 1118
D A N C H E T , 413
DIETER, Christian Ludwig, 519
COPLAND, Aaron, 1048, 1203
D A N D R I E U , Jean-François, 379, 383
DI GIUGNO, Giuseppe, 1224
COPPINI, Alessandro, 247
D A N I E L - L E S U R , 1126
DISTLER, Hugo, 1006
COQUARD, Arthur, 810
DARGOMIJSKI, Aleksandr, 820, 821, 825
DITTERSDORF, Carl Ditters von, 516, 533, 542
CORELLI, Arcangelo, 111, 353-357, 374, 375,
D A U V E R G N E , Antoine, 496, 535
DITTRICH, Paul Heinz, 1156
E
DAVI, rei, 133, 154, 199
Divms, Antoine, 281
EAST, Michael, 302
CORNYSHE, William, 297, 304
DAVID, Félicien, 692, 710, 747
DIXON, Charlie, 1081
ECCARD, Johannes, 292
CORRETTE, Michel, 380
DAVTES, Peter Maxwell, 1222
DIXON, George Washington, 1078
ECKARD, Johann Gottfried, 536
DAVIS, Miles, 1102, 1105, 1106, 1119
DODDS, Johnny, 1102
EGK, Werner, 1007
DAZA, Esteban, 268
DOHNANYI, Ernõ, 964, 968
EIMERT, Herbert, 1166, 1178 EINEM, Gottfried von, 1137, 1138
DOMINO, Fats, 1112
EISLER, Hanns, 1007, 1008
DONATO, Baldassare, 255
ELDRIDGE, Roy, 1102
DONATONI, Franco, 1162, 1219
ELGAR, Edward, 940, 941
DONIZETTI, Gaetano, xv, 648, 650, 651, 673¬
COUPERIN, Louis, 365, 366
DEBUSSY, Claude-Achille, 37, 41, 43, 51-53, 60, 69, 75, 78, 80, 88, 95, 96, 150, 377, 378, 438, 625,664,728,796,799-801,808,809,811,812, 817, 818, 826, 829, 852, 872, 873, 882, 897, 901-905,907-915,917-923,926,928,931,935, 937, 941, 943, 947, 950, 953, 958, 959, 966, 1012, 1014, 1016, 1023, 1054, 1059, 1060, 1135, 1145, 1148, 1167, 1191, 1228, 1231
DOLPHY, Eric, 1105-1107
ELLINGTON, Duke (Edward Kennedy Ellington), 943, 1079, 1082, 1086, 1099, 1101, 1102, 1106, 1108, 1109
COURVILLE, Thibaut de, 264
D E C O U S T , Michel, 1218
COVERDALE, Miles, 296
DEE, Joey, 1112
DOWLAND, John, 305, 306, 308, 310, 407
COWELL, Henry, 28, 1050, 1051
DELALANDE, Michel-Richard, 82, 372, 373,
DU CAURROY, Eustache, 264,273,274,331,370
CONSTANT, Marius, 1185, 1186
428, 439, 479, 497
CORTECCIA, Francesco, 258 COSTELEY, Guillaume, 262 COSTELLO, Elvis, 1120 COUCY, castelão de (Coucy, Regnault), 168 COUPERIN (familia), 364-366, 382 COUPERIN, François, 82, 84, 86, 109, 111, 360, 363, 364-366, 372-379, 383, 459, 493, 496, 497, 817
CRAMER, Wilhelm, 532
379, 382, 383, 412
CRAS, Jean, 814
D E L B O S , Claire, 1128
CRAWFORD, James, 1102
D E L I B E S , Léo, 800, 807, 809
CRÉQUILLON, Thomas, 251,260,267,273,280,
D E L I U S , Frederick, 882, 941
281
D E M A C H Y , 114
CRIMSON, King, 1118
DENISOV, Edison, 1196
CROCE, Giovanni, 259, 287
D E R I N G , Richard, 302, 308
CRUMB, George, 1231
DÉSAUGIERS, Marc Antoine, 586
CUBIÈRES, 588
DESMAREST, Henry, 502
CUI, César Antonovitch, 821, 822, 825
DÉSORMIÈRE, Roger, 949, 950
CUVELIER, 213
DE SOTO, 272
CZERNY, Cari, 96, 549, 746 D
DES PRÉS, Josquin, 81,217, 225, 229, 230, 243¬ 247, 250, 251, 262, 266-268, 276-279, 280, 281, 284, 286, 333, 462, 1157, 1187
DALAYRAC, Nicolas, 506, 536, 583, 586, 589 DALCROZE, Jacques
677, 680, 681, 690, 775, 894, 1043 DORNEL, Antoine, 379 DORSEY, Lee, 1115
DUFAY, Guillaume, 81, 107, 132, 213-215, 217¬ 231, 233, 244, 293, 1059 DUFOURT, Hugues, 1226 DUHAMEL, Antoine, 1223 DUKAS, Paul, 812, 866, 910, 914,917, 920,921¬ 923, 935, 937, 955, 959, 1012, 1044, 1128 DU MAGE, Pierre, 383 DU MONT, Henri, 370, 371 DUNI, Egidio Romualdo, 535 DUNSTABLE, John, 107, 215, 216, 277, 293, 303 DUPARC, Henri, 69, 78, 811, 812, 814, 816 DUPRÉ, Marcel, 815, 1128, 1132 DURANTE, Francesco, 438
DVORAK, Antonin, 664, 837,839, 840,939,957, 980 DYLAN, Bob, 1113, 1115
ÉLOY, Jean-Claude, 1217, 1224, 1228, 1232 EMERSON, 1049 EMMANUEL, Maurice, 1130 EMMET, Daniel Decatur, 1079 ENESCU, Georges, 961 ESSYAD, Ahmed, 1223 ESTRADA, Julio, 1220 ESTRÉES, Jean d', 274, 275 EUROPE, James Reese, 1089 EVANS, Bill, 1106
F FABINI, Eduardo, 1046 FALLA, Manuel de, 846, 901, 926, 928,933-935, 936, 937, 1014, 1016, 1135 FARNABY, Giles, 309, 310 FAURÉ, Gabriel, 69, 78, 80, 96, 797, 799, 800, 882, 890, 917, 918-921, 923, 926, 947, 953
DUREY, Louis, 950, 1146
FAYRFAX, Robert, 297, 301, 304
DESSAU, Paul, 1007, 1008
DURUFLÉ, Maurice, 815, 955
FELD, Jindrich, 1196
DESTOUCHES, André Cardinal, 380, 502
DURY.Ian, 1120
FELDMAN, Morton, 120,1207-1209,1220,1226
D E U T S C H , Max, 1144
DUSAPIN, Pascal, 1229
FERAGUT, Beltram, 214
DALLACASA, Girolamo, 270
D E V I E N N E , François, 583, 586, 594
DUSAUSOIR, 588
FERNEYHOUGH, Brian, 1219
DALLAPICCOLA, Luigi, 83, 977, 990, 1125,
D E V I L A , 272
DUSEK, Frantisek Xaver, 516
FERRABOSCO, Alfonso, 304
D E V I L L E , Mink, 1120
DUTILLEUX, Henri, 950, 1133, 1134, 1135, 1136, 1221
FERRAND, viúva, 588
v. Jaques-Dalcroze, Emile
1138, 1139, 1159, 1178 DALZA, Joan Ambrosio, 268, 271
D I D D L E Y , Bo, 1115
FERRARI, Benedetto, 339
1242
Historia da música ocidental
GINASTERA, Alberto, 1046
FERRARI, Luc, 120, 1169, 1175-1177, 1223, 1231, 1233
G
FERREYRA, Beatriz, 1225
GABRIELI, Andrea, 108, 256, 257, 267, 271-273,
FERRY, Bryan, 1118 FESTA, Costanzo, 253 FESTA, Sebastiano, 253
GABRIEL, Peter, 1118 287, 330, 336, 349, 352, 353 GABRIELI, Giovanni, 108, 271-273, 287, 336, 349, 350, 352, 353, 386-388, 392
GIORDANO, Umberto, 889, 890 GIOVANNI DA CASCIA, 208 GIOVANNI DA FIRENZE v. Giovanni da Cascia GIRAUD, Suzanne, 1230
FÉVTN, Antoine de, 244, 248, 268, 279
GACE BRULE, 168, 171
GIROUST, 583
FIBICH, Zdenek, 841
GAGLIANO, 328, 334
GLASS, Philip, 1226, 1227, 1231
FIELD, John, 96, 741, 743
GAGNEUX, Renaud, 1221
GLAZUNOV, Aleksandr Konstantinovitch, 823,
FILTZ, Anton, 532
GALILEI, Vincenzo, 109, 257, 282, 328, 331
FINCK, Heinrich, 245
GALLET, Luciano, 1045
GLIÈRE, Reinhold, 896, 1040
FINCK, Hermann, 108, 291
GALLUS
GLINKA, Mikhail Ivanovitch, 648,703,819,820,
FINZI, Gerald, 943 FISCHER, Johann Raspar Ferdinand, 397 FLECHA, Mateo (o Jovem), 260 FLECHA, Mateo (o Velho), 260 FLOTOW, Friedrich von, 651, 776 FONTAINE, Pierre, 228 FORMÉ, Nicolas, 370 FORQUERAY, Antoine, 380, FORTNER, Wolfgang, 1137, 1151 FOSTER, Stephen, 1079,1099 FOULQUES DE MARSEILLE, 163 FRAMERY, Nicolas-Etienne, 536
v. Handl, Jacob
1243
Índice onomástico
895, 896, 1033
821, 825, 1025, 1029, 1040
GRIEG, Edvard, 843, 844-846, 882, 939, 941 GRIFFIN, Bessie, 1076 GRIGNY, Nicolas de, 364, 373, 383, 459 GRIMACHE, 213 GRISEY, Gérard, 1218,1232 GUERRERO, Francisco, 260, 268, 280 GUÉZEC, Jean-Pierre, 1216 GUIDO D'AREZZO, 102,103,127,145,146,147¬ 150, 186 GUILHEM DE MONTANHAGOL, 163 GUILLAUME IX, duque da Aquitânia v. Guillaume de Poitiers GUILLAUME D'AMIENS, 191 GUILLAUME DE FERRIÈRES, 168
GALUPPI, Baldassare, 439, 445, 451, 534
GLITTER, Gary, 1118
GUILLAUME DE POITIERS, 162, 168, 181
GANASSI, Sylvestro di, 270
GLOBOKAR, Vinko, 1221, 1222
GUILLAUME LE VINIER, 173
GARANT, Serge, 1220
GLUCK, Christoph Willibald, 94, 111, 113, 339, 387, 445, 450, 492, 506, 510, 527, 530, 535, 536-539, 540, 570, 573, 585, 595, 647, 695,
GUILLET, Charles, 273,274
GARSENDA DE FORCALQUIER, 163 GASPARINI, Francesco, 424, 434 GASSMANN, Florian, 513, 533
699, 700, 794, 829
GUILLOT DE PROVINS, 180 GUILMANT, Alexandre, 815 GUIRAUD, Ernest, 795, 908, 921
GAULCEM FAIDIT, 163
GOFFIN, Gerry, 1112
GUIRAUT DE BORNELH, 163
GAULTIER, Denis, 363
GOLDBERG, Johann Gottlieb, 473
GURNEY, Ivor, 943
GAUTHIER DE CHÂTILLON, 182
GOLDMARK, Karoly, 854, 855
GUTHRIE, Woody, 1113
GAUTHIER DE COINCY, 171, 181
GOMBERT, Nicolas, 251,260,267,279-281,286,
GUY, Buddy, 1083
GAUTHIER DE DARGIES, 168
335
GUYON, 281
GAYE, Marvin, 1115
GOMES, Antonio Carlos, 885, 886
GUYONNET, Jacques, 1224
GAZZANIGA, Giuseppe, 561
GOODMAN, Benny, 1082
GYROWETZ, Adalbert, 516
GELHAARD, Rolf, 1220
FRANCHOIS, Johannes, 214
GORECKI, Henryk Mikolaj, 1194, 1195
GEMINIANI, Francesco, 355, 439
FRANCK, César, 672, 805-811, 812, 814, 815,
GOSSEC, François-Joseph, 77,82,113,417,418,
GEOFFROY DE SAINT-VICTOR, 182
FRANCESCO DA MILANO, 241, 262, 268, 271, 272
817, 846, 910, 922, 947
GERHARD, Roberto, 942
FRANCK, Melchior, 291
GERMI, 257
FRÉMIOT, Marcel, 1224
GERSHWIN, George, 1047, 1048, 1066, 1139
FRESCOBALDI, Girolamo, 109, 114, 115, 272,
GERVAISE, Claude, 274
336, 350, 394, 438, 457, 459
GESUALDO, Carlo, 255, 256, 287, 1021
514, 533, 583-590, 591, 592, 593-595 GOUBAIDOLINA, Sofia, 1196
H HABA, Alois, 117, 959, 1044, 1196 HADEN, Charlie, 1107, 1109
GRABU, Louis, 400, 404
HAENDEL, Georg Friedrich, 38, 42, 64, 75, 83, 111, 113, 115, 345, 348, 355, 396, 397, 408, 411, 434, 435, 441, 443, 446, 456, 460, 462, 473-476, 477-492, 509, 528, 541, 570, 640, 641, 715, 717, 737, 796, 939, 942, 1005
GRANADOS, Enrique, 933, 934, 935, 936
HAHN, Reynaldo, 570, 801
GRANDI, Alessandro, 353
GOUDIMEL, Claude, 132, 261, 282 GOUNOD, Charles, 40, 693, 793, 795, 797-799, 800-802, 807,818, 939,1199
FRIEDRICH VON HAUSE, 180
GETZ, Stan, 1102
FRIEGER, Adam, 393
GHIZEGHEM, Hayne van, 228
FRIZE, Nicolas, 1228, 1232
GIBBONS, Christopher, 401
FROBERGER, Johann Jacob, 84, 350, 394, 395,
GIBBONS, Ellis, 305 GIBBONS, Orlando, 302,305,308,309,400,402, 406
GREEN, Al, 1119
HALÉVY, François Fromental, 651, 691, 693, 694, 705, 710, 802
GREEN, Charlie, 1081
HALEY, Bill, 1111
GILLES, Jean, 383
GRETCHANINOV, Alexandre Tikhonovitch, 896
GILLESPIE, Dizzy, 1087, 1102, 1106
GRÉTRY, André-Modeste, 77,112,506,536,583,
397, 472 FRYE, Walter, 216 FUENTELLANA, Miguel de, 268, 272 FURY, Billy, 1113 FUX, Johann Joseph, 398, 543, 557
GILMORE, Buddy, 1089
GRENON, Nicolas, 228
584, 588, 590, 591, 592, 594, 813
HALFFTER, Cristobal, 1189, 1190 HANDL, Jacob (dito Gallus), 490 HANDY, William Christopher, 1081-1083 HARRIS, Emmylou, 1117
1244
Historia da música ocidental
1245
Indice onomástico
JAMES, Elmore, 1114
KING, Carole, 1112
HARRISON, Jimmy, 1092, 1093, 1102
HOFFMANN, E.T.A. (dito Kreisler), 624, 625, 628, 631, 724-726, 728, 834, 861
JAMES, Rick, 1121
KLEBE, Giselher, 1156
HARRISON, Lou, 1051
HOFMANN, Leopold, 516, 533
JANÁCEK, Leos, 901, 957, 958
KODÁLY, Zoltán, 753, 929, 957, 960, 965-968
HARSANYI, Tibor, 954
HOLLER, York, 1219, 1225
JANEQUIN, Clément, 132, 242, 249-251, 261,
KOECHLIN, Charles, 919, 1146
HARRISON, George, 1113
HARTMANN, Karl Amadeus, 1137, 1139, 1178 HARTY, Hamilton, 942 HARVEY, Jonathan, 1225 HASPROIS, 213 HASSE, Johann Adolf, 38, 396, 397, 441, 445 HASSLER, Hans Leo, 291,292, 322 HAWKINS, Coleman, 1081, 1092, 1102, 1106 HAYDN, Franz Joseph, xiii, xiv, 23,29,35,72-75, 83, 86, 87, 90, 92, 93, 95-97, 398, 419-421, 436, 451, 475, 492, 498, 509-511, 514-523, 525-533, 535, 536, 539-554, 557-566, 567, 569, 574-576, 578, 584, 592, 600-602, 608, 619, 623, 626, 627, 631-633, 652, 654, 663, 701, 715, 717, 723, 731, 746, 864, 907, 964, 977, 985, 1020 HAYDN, Johann Michael, 533, 544, 566, 567, 571, 627 HEIDSIECK, Bernard, 43
HOLLIGER, Heinz, 1221, 1222 HOLLY, Buddy, 1112 HOLMÈS, Augusta (dita Hermann Zenta), 809, 810, 918 HOLST, Gustav, 942 HOLZBAUER, Ignaz, 530, 532, 533 HONAUER, 536 HONEGGER, Arthur, 83, 84, 117, 813, 920, 942, 950, 951, 952, 955, 1128
267, 268, 273, 281, 308, 361, 377 JAQUES-DALCROZE, Emile, 1010
KOERING, René, 1218
JAUFRÉ RUDEL, 162, 164, 165
KOPELENT, Marek, 1196
JEAN BODEL, 173
KORNGOLD, Erich Wolfgang, 1008, 1009
JEAN DE MURS, 127, 195
KRAUZE, Zygmunt, 1227
JEANNEAU, François, 1110 JEHAN BRETEL, 178 JOHN, Elton, 1118
HOOKER, John Lee, 1116
JOHNSON, Bill, 1098
HOTTETERRE (familia), 5, 6
JOHNSON, Bunk, 1098
HOTTETERRE, Jean, 380
JOHNSON, James P. 1088, 1092, 1102
HOWLIN' WOLF, 1083
JOHNSON, J. J., 1102
HUBER, Klaus, 1156
JOLAS, Betsy, 1187
HUMMEL, Johann Nepomuk, 518, 565, 623,
JOLIVET, André, 1056, 1125, 1126, 1127, 1128
624, 631, 738, 741 HUMPERDINCK, Engelbert, 776 HUMPHREY, Pelham, 400-402
JOMMELLI, Niccolo, 448, 537 JONES, Jo, 1102 JOPLIN, Scott, 88, 1088, 1089, 1090, 1091
I
HELL, Richard, 1120
IBERT, Jacques, 954
HENDERSON, Fletcher, 1081, 1092, 1098
INDY, Vincent d', 664, 809, 810, 811, 812, 813, 814, 817, 861, 882, 908, 910, 912, 919, 920, 923, 937, 947, 953, 954, 1045, 1053
K
INGEGNIERI, Marc-Antoine, 257, 329
KABALEVSKI, Dimitri, 1040, 1041
HENZE, Hans Werner, 990, 1137, 1144, 1150, 1151, 1152
IRELAND, John, 942
KABELAC, Miroslav, 1196
ISAAC, Heinrich, 245-247, 276, 279, 995
KAGEL, Mauricio, 33,43,121,1046,1203,1209¬
HÉROLD, Louis Joseph Ferdinand, 690,691,692
ISAACS, Gregory, 1119
HIGGINS, Billy, 1107
IVES, Charles, xii, 28, 863, 1048-1050, 1051, 1052, 1194, 1202-1204, 1208
HENRY, Pierre, 617, 1167, 1168, 1171, 1172, 1175, 1176, 1190, 1225, 1231, 1232
HILAIRE, 158 HILLER, Ferdinand von, 717, 740 HILLER, Johann Adam, 419, 880 HILLER, Lejaren, 1179 HINDEMITH, Paul, 880, 881, 1003-1006, 1009, 1138 HINES, Earl, 1102
JOSQUIN DES PRÉS v. Des Prés, Josquin
1211, 1212, 1213, 1221 KAUFMANN, Dieter, 1222, 1224 KAY, John, 1117 KELEMEN, Milko, 1197
JACKSON, Joe, 1120 JACKSON, Michael, 1121 JACOB, Clément, dom v. Jacob, Maxime JACOB, Maxime (dom Clément Jacob), 949
HINGSTON, John, 401-403
JACOBS, Little Walter, 1109
HODEIR, André, 1168
JACOPO DA BOLOGNA, 208
HODGES, Johnny, 1102
JADIN, Louis, 583, 586
KREMSKI, Alain, 1221 KRENEK, Ernst, 1008, 1009, 1137 KREUTZER, Rodolphe, 608, 649 KRIEGER, Johann, 397, 459 KRUMPHOLZ, Johann Baptist, 602 KUHLAU, Friedrich, 846 KUHNAU, Johann, 82, 317, 386, 397 KURTAG, Gyõrgy, 1192, 1193 KUSSER, Johann Sigismund, 396 KUTI, Fela Anikulapo, 1121
L LA BARRE, Michel de, 380 LADNIER, Tommy, 1092 LADRÉ, 588 LA FARO, Scott, 1102, 1107
KEISER, Reinhart, 396, 397, 413, 478
J
KRELL, William, 1088
JONES, Elvin, 1102
HEINRICH VON MOHRUNGEN, 180
HENDRLX, Jimi, 1116
KOENIG, Michael Gottfried, 1224
KEPPARD, Freddie, 1097 KERLE, Jacobus de, 283 KERLL, Johann Gaspar, 322, 394 KHATCHATURIAN, Aram Illitch, 1027, 1036,
LAJTHA, László, 954 LALO, Edouard, 796, 797, 810, 845 LAMB, Joseph, 1088 LAMBERT, Constant, 943 LAMBERT, Michel, 362 LANDINI, Francesco, 208, 214 LANDOWSKI, Marcel, 1131 LANGLAIS, Jean, 816 LANNER, Josef, 774 LANTINS, Arnold de, 214 LANTINS, Hugo de, 214 LA RUE, Pierre de, 243, 245, 279
KIEFFER, Dedef, 1221
LASSUS, Orlando de, 108, 132, 217, 238, 239, 240, 255, 260-262, 267, 273, 281-284, 285, 286, 287, 292, 331, 388, 391, 785, 1187
KING, B. B. 1116
LAWES, Henry, 400
1040
1246
Historia da música ocidental
LAWES, William, 400
704, 707-710, 714, 716, 717, 727, 728, 730,
LEBÈGUE, Nicolas-Antoine, 364
731, 733, 734, 740-742, 744, 745-756, 758, 762, 763, 766, 774, 779, 781, 784, 802, 806,
L E CAMUS, Sébastien, 362 LECHNER, Leonhard, 292, 388 LECLAIR, Jean-Marie, 380, 381
1247
índice onomástico
866, 867, 871, 880, 882, 903, 981, 982, 1009, 1030, 1137, 1161, 1187
MATHESON, Johann, 82, 414, 472, 545 MATTEIS, Nicola, 407
807, 829, 833, 838-840, 844, 845, 850, 869¬
MAIGUASHCA, Mesías, 1225
MAUDUIT, Jacques, 264, 331, 370
871, 882-884, 903, 909, 913, 918, 926, 928,
MAILLARD, Jean, 281
MAYALL, John, 1116
931, 935, 964, 966, 976
MAINERIO, Giorgio, 237, 274, 276
MAYR, Johann, 648, 651
LECOCQ, Charles, 800
LITAIZE, Gaston, 816
MALASPINA, 180
MAYUZUMI, Toshiro, 1178
LEDBETTER, Huddy "Leadbelly", 1083
LOCATELLI, Antonio, 381, 439
MALEC, Ivo, 1169, 1173-1175, 1177, 1229
MAZZINGHI, 113
LEDUC, Simon, 533
LOCKE, Matthew, 400, 404
MALIPIERO, Gian Francesco, 1156, 1158
MCCARTNEY, Paul, 1113
LEE, Nathanael, 404
LOEWE, Karl, 715
MALVEZZI, Cristofano, 239, 258
MCLAUGHLIN, John, 1119
LEFEBVRE, Claude, 1224
LOLLI, Antonio, 439
MANELLI, 339
LOPEZ BUCHARDO, Carlos, 1046
MÉFANO, Paul, 1216
L E F L E M , Paul, 1127 LEGRENZI, Giovanni, 344, 349, 354, 423, 353
LORTZING, Albert, 776
LEHAR, Franz, 776
LOURIÉ, Arthur Vincent, 899
LEIBOWITZ, René, 339, 901, 996, 1000, 1008, 1143, 1144, 1146, 1147, 1150, 1151, 1190 LE JEUNE, Claude, 263, 264, 273, 331, 1129 LEJEUNE, Jacques, 1225 LEKEU, Guillaume, 811, 813
MANICOURT, Pierre de, 280 MANN, Barry, 1112 MANN, Manfred, 1114
LOUVTER, Alain, 1218, 1221
MANOURY, Philippe, 1229
LÜBECK, Vincent, 394, 459 LUCIER, Alwin, 1232 LUENING, Otto, 1178
MENDELSSOHN, Jacob Ludwig Félix, 39,77,80, 94, 115, 116, 290, 510, 592, 626, 663, 664,
MARCABRU, 162, 173
672, 702, 703, 707, 713-719, 725, 728, 730¬
MARCELLO, Benedetto, 355, 439, 459
322, 344, 351, 359, 361, 367, 368-372, 374,
590, 591, 592, 594, 692 MELVIN, Harold, 1119
MARAIS, Marin, 114, 380
LULLY, Jean-Baptiste, 22, 38, 41, 79, 82, 317,
LEMÍÈRE/589
MÉHUL, Etienne-Nicolas, 77, 82, 539, 583-586,
733, 740, 742, 779, 791, 796, 802, 939
MARCHAND, Louis, 383, 459
MENOTTI, Gian Carlo, 1139
375, 379, 380, 382, 395, 397, 400, 404, 412,
MARCO, Tomas, 1219
MERBECKE, John, 296
LENNON, John, 1113, 1116
441, 456, 459, 462, 473, 475, 494, 496-499,
MARENZIO, Luca, 100, 239, 256, 258, 260, 305,
MERULO, Claudio, 108, 267, 271, 272, 286, 287,
LENORMAND, 589
502, 503, 535, 538, 690, 695, 697, 923
329, 330
336
LENOT, Jacques, 1218
LUNCEFORD, Jimmie, 1082, 1101
MARIA DE VENTADOUR, 163
MESSAGER, André, 800, 801, 912
LEO, Leonardo, 445
LUPI, J., 274, 278, 281
MARIE, Jean-Étienne, 1177, 1181, 1190
MESSIAEN, Olivier, 815,897,913,923,935,954,
LUTERO, Martinho, 281,289-292,296,466,469
MARIÉTAN, Pierre, 1228
LEONCAVALLO, Ruggiero, 888, 889 LÉONIN, 188, 189, 1059 LE ROUX, Maurice, 1129, 1146, 1147 LEROUX, Xavier, 801 LE ROY, Adrian, 245, 252, 261-263, 269
LUTOSLAWSKI, Witold, 1141, 1142, 1194
MARKEVITCH, Igor, 1132, 1181
LUTYENS, Elisabeth, 943
MARLE, Nicolas de, 236, 237, 281
LUZZASCHI, Luzzascho, 256, 257
MARLEY, Bob, 1119
LYMON, Frankie, 1112
MARTIN, Franck, 1009, 1010 MARTINET, Jean-Louis, 1129, 1146
LESUEUR, Jean-François, 583, 586, 590, 594, 595, 650, 689, 690, 701 LEVALLET, Didier, 1110 LEVTNAS, Michael, 1226 LEWIS, Jerry Lee, 1112 LEWIS, Ted, 1099 LIADOV, Anatol Konstantionovitch, 896 LIEBERMANN, Rolf, 1138, 1178 LIGETI, Gyõrgy, 43,117,1139,1191,1192,1204, 1221, 1232
M
MARTINI, Johann Paul Aegidius
MACHAUT, Guillaume de, 133, 170, 195, 198¬ 206,208,211,218,219,223,277,1014,1020, 1059
v. Schwarzendorf MARTINI, Padre Giovanni Battista, 530, 543, 569, 571, 584, 652, 807, 890
MÂCHE, François-Bernard, 1169, 1175, 1177
1146,
1147, 1153, 1168, 1171, 1175, 1177, 1185, 1187, 1188, 1192, 1197, 1216, 1220, 1228 MEYERBEER, Giacomo, 290, 650, 651, 655, 692, 695, 696, 705, 739, 759, 760, 794, 855 MIASKOVSKI, Nikolai, 896 MICHELI, Romano, 347 MIGOT, Georges, 955 MIHALOVICI, Marcel, 953, 954 MILAN, Luis, 268, 272 MILEY, Bubber, 1102
MARTINU, Bohuslav, 954, 957, 958, 959
MACHOVER, Tod, 1225 MADERNA, Bruno, 1144,
1013, 1126, 1127, 1128-1131, 1132,
1156, 1157,
1158¬
1160, 1162, 1178, 1179, 1184, 1201 MAESTRO PIERO, 208 MAGER, Jorg, 1166
MASCAGNI, Pietro, 889, 890 MASSÉ, Victor, 800 MASSENET, Jules, 795, 799, 800, 803, 807, 810, 814, 818, 833, 887, 888, 908, 919
LISINSKI, Vatroslav, 667
MAGNARD, Albéric, 814
MASSON, Gérard, 1217
LISZT, Franz, xiv, 39,82, 83,92,94-96,115,309, 437, 492, 555, 623, 665, 668, 669, 690, 702-
MAHLER, Gustav, 39, 76, 94, 555, 628, 774, 775,
MATHEWS, Max, 1224
781, 789, 810, 831, 849, 850, 854, 857-865,
MATSUMURA, Teizo, 1228 MATTEI, Stanislao, padre, 652, 673
MILHAUD, Darius, 53, 80, 809, 846, 928, 943, 950, 951, 952, 1004, 1024, 1045, 1151, 1153 MILTON, John, 302 MINGUS, Charlie, 1087, 1105-1107 MIROGLIO, Francis, 1186, 1201 MITCHELL, Joni, 1113, 1117 MODENA, Julio Segni da, 272 MODERNE, Jacques, 243, 250, 260, 272, 274
1248
Historia da música ocidental
MOERAN, Ernest, 943
MURAIL, Tristan, 1226, 1232
MOLE, Miff, 1099
MURET, Marc-Antoine, 261
MOLINE, 588
MUSSORGSKI, Modest Petrovitch, 41, 707, 728,
MONIUSZKO, Stanislas, 960 MONK, Thelonius, 1102, 1106 MONN, Georg Mathias, 533, 545 MONNET, Marc, 1221 MONSIGNY, Pierre-Alexandre, 536
MONTEVERDI, Claudio, 35,42, 65, 74, 75, 254, 256-259, 305, 306, 318, 322, 327, 329-339, 342-348, 385-387, 442, 813, 1020,
OFFENBACH, Jacques, 624, 689, 690, 692, 774¬ 776, 793-795, 802 OHANA, Maurice, 1135, 1136, 1190
1059,
1157, 1161 MOORE, Douglas, 1048 MORALES, Cristóbal de, 268, 279, 280, 281 MORLAYE, Guillaume, 269 MORLEY, Thomas, 302, 305, 309, 310 MORNABLE, 252 MORRISON, Jim, 1115
1025, 1029, 1034, 1035, 1041
ONSLOW, Georges, 690
PERGOLESI, Giovanni Battista, 81, 396, 441,
ORDONEZ, Carlos, 533
447, 448, 476, 495, 502, 503, 509, 527, 534, 675, 1005, 1016
N
ORFF, Carl, 1006, 1007
NANCARROW, Colon, 1204
ORTIZ, Diego, 270, 276
PERI, Jacopo, 109, 239, 257, 258, 328, 332, 333,
NARVAEZ, Luis de, 268, 272, 276, 281
P
PÉROTIN, 105, 188-190, 192, 206, 1059
NASCO, 255
PABLO, Luis de, 1190
NAVARRO, Fats, 1102
PACHELBEL, Johann, 65, 82, 291, 394, 395, 459
NAVOIGILLE (irmãos), 584
PADEREWSKI, Ignacy, 960
NEEFE, Christian Gortlob, 599, 619
PADOVANO, Annibale, 272, 273
NEIDHART VON REUENTHAL, 181
PAËR, Ferdinando, 595, 651, 740, 746
PHILIDOR, Anne Danican, 380, 514
NELSON, Ricky, 1112
PAGANINI, Niccolo, 19, 39, 439, 634, 668, 690,
PHILIDOR, François-André Danican, 506, 536
NEUHAUS, Max, 1227, 1228 NGUYEN, Thien Dao, 1229 NICHOLS, Red, 1099 NICOLAI, Otto, 776
MORTON, Robert, 216, 228
NICOLAU, São, 158
MOSCHELES, Ignaz, 668, 722, 723, 806, 844
NICOLO DA PERUGIA, 208
MOSSOLOV, Alexandre, 899, 900
NIEDERMEYER, Antonin, 690, 797, 800
MOULINIÉ, Etienne, 362, 370
NIELSEN, Carl, 846
MOULU, Pierre, 248
NIGG, Serge, 1129, 1146, 1185
MOZART, Leopold, 111, 536,567,569,571,574,
1231
821, 824, 825-829, 831, 910, 929, 958, 966,
NICOLAI, Philipp, 291
MOUTON, Jean, 244, 248, 281
PENDERECKI, Kryztof, 118, 1193, 1194, 1195,
PEPPING, Ernst, 1006
MORTON, Jelly Roll, 1095
MOURET, Jean-Joseph, 380, 383, 502
PEIRE VIDAL DE TOULOUSE, 163
OLIVER, Joe "King", 1065,1092,1098,1099,1110
347
NARDINI, Pietro, 439
MONTE, Philippe de, 255, 260, 262, 287
1249
índice onomástico
703, 706, 740, 746
PETRASSI, Golfredo, 1138 PETTY, Tom, 1119 PEZEL, Johann, 397 PFÍTZNER, Hans, 879, 880, 881, 884, 1005
PHILIPPE DE GRÈVE, 182
PAGE, Jimmy, 1114
PHILIPPOT, Michel, 1020, 1169, 1177, 1181
PAGE, Walter, 1102
PHILLIPS, Tom, 1217
PAIEN, Thomas, 204
PICCINNI, Niccolo, 448, 534, 538, 539, 561, 585
PAISIELLO, Giovanni, 448, 449, 535, 561, 595,
PIERRE DE MOLINS, 213
651, 654, 820
PIIS, cidadão, 588, 589
PALADIN, Jean-Paul, 271
PISADOR, Diego, 268, 272
PALESTRINA, Giovanni Pier Luigi da, 81, 255, 281-285, 301, 330, 333, 346, 347, 398, 462,
PISENDEL, Johann Georg, 397
662, 785, 829, 881
PITOU, 588 PLEYEL, Ignaz, 519, 562, 663
NINOT LE PETIT, 244
PALLAV1CINO, 331, 332
NIVERS, Guillaume-Gabriel, 364
PARABOSCO, Hieronimo, 272
PONCE, Manuel, 1044
NONO, Luigi, 83, 877, 977, 1057, 1144, 1156¬
PARADISI, Pier Domenico, 439
PONCHIELLI, Amilcare, 886, 891
PARKER, Charlie, 1087, 1099, 1102, 1105, 1106
PONIATOWSKI, principe, 710
1160, 1162, 1178, 1196
577
NOONE, Jimmie, 1102
PARKER, Graham, 1120
PORPORA, Nicola, 342, 441, 557, 558
NORDRAAK, Richard, 844
PARMEGIANI, Bernard, 1175-1177
PORTAL, Michel, 1110, 1221
86, 87, 89-93, 95-97, 110, 111, 114, 386, 397,
NORVO, Red, 1106
PARRY, Charles Hubert, 939
PORTER, Cole, 1051
398, 404, 417, 419, 420, 445, 447-449, 451,
NUGENT, Ted, 1117
PARSONS, Gram, 1117
POULENC, Francis, 818, 928, 950, 952, 953
491, 492, 496, 498, 509-511, 514-518, 520,
NUNES, Emmanuel, 1219
PART, Arvo, 1196
POUSSEUR, Henri, 997, 999, 1001, 1156, 1159,
521, 523, 525, 526, 529-531, 533-536, 539¬
NYERT, Pierre de, 345, 361, 362
PARTCH, Harry, 1050, 1051
MOZART, Wolfgang Amadeus, xiii, xiv, 8,11,29, 30, 36, 40, 41, 43, 51, 57, 61, 68, 70, 72-80,
541, 543-554, 560-562, 564-566, 567-581,
1162, 1163, 1179, 1217, 1218
PASSEREAU, 250, 267
POWELL, Bud, 1102, 1108
O
PATTON, Charley, 1082
POWER, Leonel, 215, 277
668, 690, 715, 723, 731, 737, 738, 746, 748,
OBOUHOV, Nicolai, 899,900
PAXTON, Tom, 1113
PRAETORIUS, Michael, 275, 288, 291, 292, 328
758, 784, 795, 801, 806, 825, 837, 858, 870,
OBRECHT, Jacob, 247
PAZ, Juan Carlos, 1046
PRESLEY, Elvis, 1111, 1112
872-874, 876, 880, 884, 907, 935, 964, 976,
OCHS, Phil, 1113
PEDRELL, Felipe, 934, 935
977, 1021, 1023, 1217 •
OCKEGHEM, Johannes, 81, 217, 222, 226, 229¬
PEIRE ROGER, 162
585, 592, 600-603, 605, 608, 613, 619, 623, 626-628, 631-634, 647, 648, 652-654, 663,
MUFFAT, Georg, 394, 395, 397
234, 243, 244, 278, 333, 1009, 1191
PREY, Claude, 1222 PRODROMIDES, Jean, 1223
1250
PROKOFIEV, Serguei Sergueievitch, 8,80,83,92, 896, 1023-1031, 1037, 1040, 1141, 1196 PUCCINI, Giacomo, 519, 648, 800, 871, 885, 887-889, 890-894, 1004, 1009 PUGNANI, Gaetano, 439, 542 PURCELL, Daniel, 402 PURCELL, Henry, 385, 401, 402-408
Historia da música ocidental
REUTTER, Hermann, 1006
673-675, 677, 680, 685, 690, 691, 695, 710,
REVERDY, Michèle, 1218
1019
1204
REYER, Ernest, 801
ROUGET DE L'ISLE, 584, 586, 589
SCHAFER, Murray, 1227, 1232
RICARDO I
ROUSSEAU, Jean-Jacques, 38, 79, 149, 377, 415,
SCHAT, Peter,1222
471, 495, 501-505, 535, 540, 570, 589, 591,
v. Ricardo Coração de Leão
595, 819
RICARDO CORAÇÃO DE LEÃO, rei da Inglaterra
RICHARD, Cliff, 1113 RICHARD, Littie, 1112 RICHARD DE SEMILLI, 168
RABAUD, Henri, 800 RACHMANINOV, Serge Vassilievitch, 895,1026, 1028
RICHTER, Franz Xaver, 532 RIGAUT DE BARBEZIEUX, 162, 164 RIHM, Wolfgang, 1229, 1231
RAIMBAUD DE VAQUEIRAS, 163, 179
RILEY, Terry, 1226, 1227
RAINEY, Gertrude "Ma", 1083, 1086
RIMSKI-KORSAKOV, Nicolai Andreievitch, 821, 822, 823, 824, 825, 827, 831, 832, 871, 887,
RAISON, André, 364
1166-1168,
1169, 1170, 1171, 1173, 1176, 1178, 1190,
RICHAFORT, Jean, 281
R
1143,
716, 739, 740, 759, 794, 801, 825, 890, 894,
ROUSSEL, Albert, 814, 816, 917, 919, 923, 954, 958, 959, 1046, 1053, 1141
RICE, Thomas "Daddy", 1078
QUANTZ, Johann Joachim, 112, 115
SCHAEFFER, Pierre, 1125,
REUTTER, Johann Georg (o Jovem), 398
(Ricardo I), 168
Q
1251
Indice onomástico
895, 925, 929, 931, 1012, 1023, 1030
ROVETTA, 787 RUBBRA, Edmund, 943
SCHEIBE, Johann Adolf, 414, 545 SCHEIDEMANN, Heinrich, 394 SCHEIDT, Samuel, 291, 393 SCHEIN, Johann Hermann, 291, 393 SCHERCHEN, Hermann, 988, 1058, 1137, 1138, 1157, 1158, 1168, 1178, 1186, 1198
RUBINSTEIN, Anton, 821 RUFFO, Vincenzo, 255, 283, 329 RUSHING, Jimmy, 1083 RUSSEL, Pee Wee, 1100 RUSSOLO, Luigi, 1004 RUTTMAN, Walter, 1166 RZEWSKI, Frederic, 1220, 1224
SCHMELZER, Johann Heinrich, 397 SCHMITT, Florent, 919, 926 SCHNEBEL, Dieter, 43, 121, 1212, 1221 SCHNITKE, Alfred, 1196 SCHOBERT, Johann, 417, 536, 568 SCHÕNBERG, Arnold, 8, 43, 52, 76, 79, 83, 84, 92, 117, 141, 526, 548, 756, 757, 781, 791, 846, 860, 861, 863, 865-867, 877, 897, 901,
S
903-905, 917, 921, 929, 931, 966, 973-977,
RIPPE, Albert de, 240, 268, 269, 271, 272
SACCHINI, Antonio, 448, 592
979-985, 987-992, 995-999,
450, 493-499, 502, 504-506, 509, 535, 536,
RISSET, Jean-Claude, 1224, 1225
SAINT-GEORGES, Joseph Boulogne (dito O
1009, 1010, 1014, 1020, 1024, 1030, 1037,
538, 545, 587, 690, 813, 817, 879, 915, 923,
RIVIER, Jean, 955
RAMEAU, Jean-Philippe, 8,41,65,72,75,79,82, 87,94,111,114,115,369,383,415,418,436,
1157 RAVEL, Maurice, 28, 52, 69, 87, 796, 828, 871, 897, 917-920, 925-931, 935, 937, 942, 943, 947, 948, 954, 1012, 1014 RAVENCROFT, Thomas, 308 REDDING, Otis, 1114 REDOLFI, Michel, 1228, 1232
ROACH, Max, 1102 ROBERDAY, François, 364
REGER, Max, 879, 880, 884, 1003 REIBEL, Guy, 1225 REICH, Steve, 1226, 1227, 1231
809-812,816,818,833,917,918,920,939,947 SALIERI, Antonio, 565, 602
RODRIGO, Joaquin, 937
SAMMARTINI, Giovanni Battista, 93, 439, 440,
ROGERS, Richard, 1051
87,90,92,94,96,97,110,398,492,511,518, 646, 670, 675, 715-717, 721, 723, 724, 728,
ROLLINS, Sonny, 1102
SANDRIN, Pierre, 242, 250-252, 261, 267, 269,
730, 752, 777, 825, 827, 851-854, 928, 943,
270
ROPARTZ, Guy, 811, 813
SANTA CRUZ WILSON, Domingo, 1046
RORE, Cyprien de, 254, 267, 270, 278,286, 329,
SARTI, Giuseppe, 520, 547, 561, 648
336 ROSENMÜLLER, Johann, 396, 397
SATIE, Erik, 121, 818, 909, 910, 925, 928, 943, 947-950, 952, 1014, 1051, 1201, 1203, 1204
ROSLAVETZ, Nicolai, 899, 1024
SAUGUET, Henri, 949, 955, 1175
REICHARDT, Johann Friedrich, 416
ROSSI, Luigi, 82, 317, 321, 345, 361, 362, 369,
SCANDELLO, 260
RESPIGHI, Ottorino, 887
SCHUBERT, Franz, 11, 20, 23, 73, 76, 77, 79, 80, 555, 600, 604, 617, 623-625, 627, 629, 631¬
REICHA, Anton, 592, 690, 701, 746
REINMAR DER ALTE, 180
1178, 1196, 1204, 1227 SCHREKER, Franz, 1004, 1008, 1009
SANDERS, Pharoah, 1109
SAVOURET, Alain, 1225
REINKEN, Johann Adam, 394, 457, 459
1046, 1047, 1051, 1054, 1062, 1108, 1125, 1127, 1138, 1143, 1144, 1148, 1159, 1164,
ROGNIONO, Richardo, 271
ROSENTHAL, Manuel, 955
REINHARDT, Django, 1102
1007,
514, 530, 535, 536
RONSTADT, Linda, 1117 REEVES, Martha, 1115
SAINT-SAËNS, Camille, 30, 693, 796, 803, 807,
ROBINSON, Smokey, 1115
REED, Jimmy, 1114 REED, Lou, 1116
Cavaleiro de Saint-Georges), 533, 584
1004,
390 ROSSI, Salomone, 353, 354 ROSSINI, Gioacchino, 8, 41, 70, 115, 448, 544, 615, 629, 637, 639, 647, 648, 650, 651-657,
SCARLATTI, Alessandro, 75, 82, 83, 342, 345, 346, 433, 434, 436, 443, 503 SCARLATTI, Domenico, 38, 91, 346, 433-438, 439, 456, 509, 934 SCELSI, Giacinto, 1138, 1139
973, 1047, 1145, 1187 SCHUMANN, Robert, 28, 76, 80, 92, 94, 96, 115, 492, 510, 592, 600, 624, 625, 641, 644, 670¬ 672, 714, 717, 721-735, 738-740, 742, 746, 750, 752, 759, 779, 784, 785, 787-789, 802, 825, 851, 853, 880, 926, 935, 964, 988, 1010 SCHÜTZ, Heinrich, 82, 288, 292, 322, 338, 348, 385-392, 393, 394, 396, 475, 565, 662, 787, 788, 1059 SCHWARZ, Jean, 1225 SCHWARZENDORF
(Johann
Martini), 583 SCIARRINO, Salvatore, 1219
Paul
Aegidius
1252
Historia da música ocidental
1253
índice onomástico
STEADMAN, Frances, 1076
TATUM, Art, 1102, 1106
TUDOR, David, 1207, 1208
SCOTT, Joseph, 1091
STEFFANI, Agostíno, 322
TAVERNER, John, 297, 298, 301, 302, 304
TUNDER, Franz, 394
SCRIABIN, Alexandre, 895, 897, 898, 899, 1028,
STEINECKE, Wolfgang, 1156
TAYLOR, Cecil, 1107, 1108
TUONG, 1177
STEWART, Rod, 1118
TAYLOR, James, 1117
TURINA, Joaquin, 937
STILL, William Grant, 1048
TCHAIKOVSKI, Piotr Ditch, 820, 831-835, 882,
TURNER, Ike, 1115
SCOTT, James, 1088
1204 SEEGER, Pete, 1113 SEGER, Bob, 1119
913,977,1001,1129,1144,1150,1152-1156,
TCHEREPNIN, Alexandre, 954
TURNER, Tina, 1115
1159, 1163, 1166, 1168, 1169, 1178, 1191,
TCHEREPNIN, Nicolai Hirolaievitch, 827, 896, 954
TURPIN, Thomas, 1088
1201, 1212, 1217, 1219, 1220, 1228, 1231 STRADELLA, Alessandro, 82, 345, 353, 355, 424
TELEMANN, Georg Philipp, 82, 355, 375, 396,
SENFL, Ludwig, 245, 291 SENLECHES, 213 SERINI, G . B., 530 SERMISY, Claudin de, 242, 249, 250, 269 SEROCKI, Kazimierz, 1194, 1195 SERRES, Louis de, 810
STRAUSS, Johann (filho), 88, 774
427, 460, 473, 474-476, 489, 509, 513, 528
STRAUSS, Johann (pai), 774
TENORISTA, Paolo, 208
STRAUSS, Richard, 78, 95, 519, 590, 774, 789,
TERMEN, Liev
SESSION, Roger, 1051
866, 867, 869-877, 879, 880, 889, 890, 905, 964, 976, 1004, 1006, 1054
SÉVERAC, Déodat de, 814 SHEPP, Archie, 1086,1109
TURNER, Joe, 1111
STOCKHAUSEN, Karlheinz, 117, 118, 120, 877,
895, 908, 1018, 1025, 1028
206, 290, 443, 676, 750, 818, 820, 828, 829, 831, 884, 896, 899, 908, 917, 919, 926, 928,
SHINOHARA, Makoto, 1228
u UCELLINI, Marco, 353, 356 USSACHEVSKY, Vladimir, 1178
v. Theremin, Léon TERTRE, Etienne du, 274
STRAVINSKI, Igor, 29, 37, 79, 84, 88, 117, 150,
SHEPPERD, John, 298, 302
TYE, Christopher, 297, 298, 301
VAILLANT, Jehan, 211, 213
THALBERG, Sigismond, 746
929, 931, 943, 950, 954, 959, 966, 976, 1004,
THEILE, Johann, 396
SIBELIUS, Jean, 92, 94, 865, 882, 901-905, 921
1005, 1007, 1011-1022, 1023, 1026,
THEREMIN, Léon (Liev Termen), 899,
SILVER, Horace, 1102, 1108
1044, 1054, 1055, 1062, 1066, 1108, 1118,
SILVESTROV, Valentin, 1196
1125, 1141, 1150, 1191, 1204,
1030,
V
TEX, Joe, 1114
VALCOURT, 589 1051,
1179 THIBAUT DE CHAMPAGNE, 169, 173
VALDERRÁBANO, Enríquez de, 268, 276 VANDENBOGAERDE, Fernand, 1218 VANHAL, Jan Krtitel, -516, 533
SINGLETON, Zutty, 1102
STRIGGIO, Alessandro (pai), 258, 259
THOMAS, Ambroise, 709, 800, 807, 908, 920
VAN MORRISON, 1114
SINOPOLI, Giuseppe, 1219
SUBOTNICK, Morton, 1225
THOMSON, Virgil, 1051, 1203
VARESE, Edgar, xv, 29, 56, 117, 617, 707, 813,
SULLIVAN, Arthur, 939
TIBOR D'ORANGE, 163
SUMMER, Donna, 1120
TIPPETT, Michael, 1139, 1140
SUPPÊ, Franz von, 774, 775
TITELOUZE, Jean, 364
SUSATO, Tielman, 243, 245, 251, 274
TOESCHI, Johann Baptist, 532
SMETANA, Bedrich, 837, 838, 839, 840, 957 SMITH, Willie "The Lion", 1092 SOLAGE, 213 SOLAL, Martial, 1110, 1186 SOLER, Antonio, padre, 934 SORDEL, 163, 180
SUZOY, 213 SWEELINCK, Jan Pieterszoon, 309, 393, 395 SZYMANOWSKI, Karol, 960, 1141
SOUSA, John Philip, 1089, 1096 SPECTOR, Phil, 1112 SPINACCINO, 268, 271 SPOHR, Ludwig, 626, 628, 664, 741 SPONTINI, Gasparo, 648, 650, 651, 689, 691, 709, 739 SPRINGSTEEN, Bruce, 1119
884, 899, 905, 917, 959, 1053-1062, 1125, 1127, 1144, 1168, 1178, 1183, 1186, 1194, 1197, 1205, 1208, 1217, 1220 VASQUEZ, Juan, 260, 268 VECCHI, Orazio, 259, 286, 305, 331
TOESCHI, Karl Joseph, 532, 542 VENANTIUS FORTUNATUS, 182 TOMKTNS, Thomas, 302 VENEGAS DE HENESTROSA, 267 TON, That Tiet, 1228 VERACINI, Francesco Maria, 445 TORELLI, Giuseppe, 353, 355-357, 429
T
TORRE, Francisco de la, 265
TABOUROT, Jehan
VERDI, Giuseppe, 41, 43, 75, 436, 565,648, 667, TOSH, Peter, 1119
v. Arbeau, Thoinot TAILLEFERRE, Germaine, 950 TAIRA, Yoshihisa, 1228 TAKEMITSU, Toru, 1178, 1228
STAMITZ, Anton, 532
TALLIS, Thomas, 297, 300, 301
STAMITZ, Cari, 532
TAMBA, Akira, 1228
VERDELOT, Philippe, 253, 268, 281
TOURNEMIRE, Charles, 815, 816 TOUSSAINT, Allen, 1115 TRABACI, Giovanni, 350 TRAETTA, Tommaso, 450, 537, 561 TREMBLAY, Gilles, 1220
673, 677-687, 696, 795, 799, 874, 885-887, 890, 891, 893, 894, 909 VICENTINO, Nicola, 254, 262, 282, 283, 328, 329 VICTORIA, Tomas Luis de, 81, 280, 284, 285, 286, 462, 933
TRISTANO, Lennie, 1108
VIDE, Jacobus, 228
STAMITZ, Johann, 93, 514, 532, 533
TANSMAN, Alexandre, 954
STANFORD, Charles Villiers, 939
TAPISSIER, 213
TROIANO, Massimo, 240
VIERNE, Louis, 815
STARR, Ringo, 1113
TARTTNI, Giuseppe, 111, 439, 440
TROJAHN, Manfred, 1229, 1231
VIKTOR, Knud, 1233
TATE, Erskine, 1098
TROMBOCINO, Bartolomeo, 247
VILLA-LOBOS, Heitor, 1044, 1045
STARZER, Joseph, 533
1255 Índice onomástico 1254
Historia da música ocidental ZIMMERMANN, Bernd Alois, 1150, 1151, 1152 ZANDONAI, Richard, 890
VINCENT, Gene, 1112
WEBSTER, Ben, 1102
VINDELLA, 268
WEELKES, Thomas, 302, 305, 308
VIOTTI, Giovanni Bartista, 534, 584
WEIL, Cynthia, 1112
VITRY, Philippe de, 105, 195, 198,202
WEILL, Kurt, 291, 483, 1007, 1008
VIVALDI, Antonio Lucio, 8, 89, 341, 345, 353,
WEINZWEIG, John, 1220
355, 357, 397, 423-431, 434, 439-441, 443, 459, 463, 473, 474 VIVIER, Claude, 1220
ZAPPA, Frank, 1119
ZUMSTEEG, Johann Rudolf, 644 ZELTER, Carl Friedrich, 627, 7 Í 5 , 725 Z Z T O P , 1119 ZEMLINSKY, Alexander von, 865, 866, 867, ! 991
WELLS, Dickie, 1102 WERNER, Gregorius, 558 WERT, Jacques de, 255, 256, 258, 287, 330, 331 WHITE, Robert, 302
VOGLER, Georg Joseph (abade Vogler), 533,
VRANICKY, Paul, 592
WIDOR, Charles Marie, 815, 1053 WIENER, Jean, 12 WILBYE, John, 305 WILLAERT, Adrian, 108,251,254,268,272,279,
W
287, 329, 336
WAGENSEIL, Georg Christoph, 533,536,542,545 WAGNER, Richard, 35-37, 39-41, 43, 51, 68, 75,
WILLIAMS, Alberto, 1046
76, 78, 94, 181,339, 564, 590, 593, 625, 626,
WILLIAMS, Clarence, 1098
628-630, 657, 661, 670, 672, 690, 691, 693,
WILLIAMS, Cootie, 1102
695, 696, 700, 706, 707, 710, 733, 734, 749,
WILLIAMS, RalphVaughan, 942
750, 752, 753, 755, 756, 757-770, 774, 777¬ 779, 781, 788, 789, 791, 795-797, 801, 807,
WILSON, Teddy, 1102
808, 811, 816-818, 833, 844-846, 849, 851,
WINTER, Johnny, 1116
855, 857, 867, 869-873, 880, 881, 886, 891,
WINWOOD, Stevie, 1114, 1118
898, 908, 909, 911-913, 918, 922, 940, 941,
WOLF, Hugo, 76, 644, 781, 788, 789, 849-854,
943, 973, 974, 980, 988, 989, 1155 WAGNER-REGENY, Rudolf, 1156 WAILLY, Paul de, 810 . WALKER, T. Bone, 1116
857, 881, 943 WOLF-FERRARI, Ermanno, 890 WOLFF, CHRISTIAN, 120, 1208 WONDER, Stevie, 1115
WALLER, Thomas "Fats", 1069,1092,1102,1137 WALTER, Johann, 290, 291
WYSCHNEGRADSKY, Ivan, 117, 899, 900, 1044
WALTER VON DER VOGELWEIDE, 180 WALTON, William, 943 WARLOCK, Peter, 943
X XENAKIS, Iannis, 617, 1058, 1061, 1168, 1178,
WATERS, Muddy, 1114
1181, 1197-1200, 1218, 1220, 1229,
WATESKI, Domenico, 112
1232
WEBB, Chick, 1102
Y
WEBER, Carl Maria von, 518,536,564,620,623, "
YOSHIDA, Susumu, 1229
625, 626-630, 631, 633, 636, 639, 661, 699,
YOUNG, Lester, 1102, 1106
701, 709, 715, 716, 722, 725, 732, 738, 739, 748, 752, 758, 774, 791, 926, 939 WEBERN, Anton, 52, 206, 548, 757, 904, 914, 917, 973, 974, 977, 981, 988, 990, 995-1002,
YSAYE, Eugène, 807 YUN, Isang, 1137, 1228
1007, 1021, 1054, 1062, 1108, 1137, 1143,
z
1144, 1162, 1163, 1178, 1194, 1204, 1226
ZACHOW, Friedrich, 477, 489
ZIPOLI, Domenico, 438
ZARLINO, Giuseffo, 328, 329, 331, 333, 336
VOGEL, 592
540, 627
ZINGARELLI, Nicola Antonio, 595
1231,
Este livro foi impresso na cidade de São Paulo, em novembro de 1997, pela Lis Gráfica e Editora para a Editora Nova Fronteira. Os fotolitos do miolo e da capa foram feitos pela Minion Tipografia Editorial. 2
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O papel do miolo é offset 75g/m e o da capa, cartão supremo 250g/m . Não encontrando este livro nas livrarias, pedir pelo reembolso postal à Editora Nova Fronteira S.A. Rua Bambina, 25 - Botafogo - 22251-050 - Rio de Janeiro