Filosofia
De Marilena Chaui
Ed. Ática, São Paulo, 2000.
Unidade 7 - As ciências Capítulo 18 - O ideal científico e a razão instrumental O ideal científico O percurso que fizemos no estudo das ciências evidencia a eistência de um ideal científico! em"ora continuidades e rupturas marquem os con#ecimentos cient$ficos, a ciência % a confian&a que a cultura ocidental deposita depo sita na razão como capacidade para con#ecer a realidade, mesmo que esta, afinal, ten#a que ser inteiramente constru$da pela pr'pria atividade racional. ( l')ica que re)e o pensamento cient$fico contempor*neo est+ centrada na id%ia de demonstra&ão e prova, a partir da defini&ão ou constru&ão do o"eto do con#ecimento por suas propriedades e fun&-es e da posi&ão do sueito do con#ecimento, atrav%s das opera&-es de an+lise, s$ntese e interpreta&ão. interpre ta&ão. ( ciência contempor*nea fundase! na distin&ão entre sueito e o"eto do con#ecimento, que permite esta"elecer a id%ia de o"etividade, isto %, de independência dos fen/menos em rela&ão ao sueito que con#ece e a)e na id%ia de m%todo como um conunto de re)ras, normas e procedimentos )erais, que servem para definir ou construir o o"eto e para o autocontrole do pensamento durante a investi)a&ão e, ap's esta, para a confirma&ão ou falsifica&ão dos resultados o"tidos. ( id%ia de m%todo tem como pressuposto que o pensamento o"edece universalmente a certos princ$pios internos 1 identidade, nãocontradi&ão, terceiro eclu$do, razão suficiente 1 dos quais dependem o con#ecimento da verdade e a eclusão do falso. ( verdade pode ser compreendida sea como correspondência necess+ria entre os conceitos e a realidade, re alidade, sea como coerência interna dos pr'prios conceitos nas opera&-es de an+lise e s$ntese, isto %, de passa)em do todo compleo s suas partes constituintes ou de passa)em das partes ao todo que as eplica e determina. O o"eto cient$fico % um fen/meno su"metido an+lise e s$ntese, que descrevem os fatos o"servados ou constroem a pr'pria entidade o"etiva como um campo de rela&-es internas necess+rias, isto %, uma estrutura que pode ser con#ecida em seus elementos, suas propriedades, suas fun&-es e seus modos de permanência ou de transforma&ão na id%ia de lei do fen/meno, isto %, de re)ularidades e const*ncias universais e necess+rias, que definem o modo de ser e de comportarse do o"eto, sea este tomado como um campo separado dos demais, sea tomado em suas rela&-es com outros o"etos ou campos de realidade. ( lei cient$fica define o que % o fato fen/meno ou o o"eto constru$do pelas opera&-es cient$ficas. Em outras palavras, a lei cient$fica diz como o o"eto se constitui, como se comporta, por que e como permanece, por que e como se transforma, so"re quais fen/menos atua e de quais sofre a&ão. ( lei define o o"eto se)undo um sistema compleo de rela&-es necess+rias de causalidade, complementaridade, inclusão e eclusão. ( id%ia de lei visa a marcar o car+ter necess+rio do o"eto e a afastar as id%ias de acaso, contin)ência, indetermina&ão, oferecendo o o"eto como completamente determinado pelo pensamento ou completamente con#ecido ou o u co)nosc$vel no uso de instrumentos tecnol')icos e não simplesmente t%cnicos. Os instrumentos t%cnicos são prolon)amentos de capacidades do corpo #umano e destinamse a aument+las na rela&ão do nosso corpo com o mundo. Os ●
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instrumentos tecnol')icos são ciência cristalizada em o"etos materiais, nada possuem em comum com as capacidades e aptid-es do corpo #umano visam a intervir nos fen/menos estudados e mesmo a construir o pr'prio o"eto o "eto cient$fico destinamse a dominar e transformar o mundo e não simplesmente a facilitar a rela&ão do #omem com o mundo. ( tecnolo)ia confere ciência precisão e controle dos resultados, aplica&ão pr+tica e interdisciplinaridade. O caso da "iolo)ia )en%tica )en% tica revela como a tecnolo)ia da f$sica, da qu$mica e da ci"ern%tica determinaram uma atividade interdisciplinar que resultou em desco"ertas e mudan&as na "iolo)ia na cria&ão de uma lin)ua)em espec$fica e pr'pria, distante da lin)ua)em cotidiana e da lin)ua)em liter+ria. ( ciência procura pro cura afastar os dados qualitativos e perceptivoemotivos dos o"etos ou dos fen/menos, para )uardar ou construir apenas seus aspectos quantitativos e relacionais.
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( lin)ua)em cotidiana e a liter+ria são conotativas e polissêmicas, isto %, nelas as palavras possuem m3ltiplos si)nificados simult*neos, su"entendidos, am"i)4idades e eprimem tanto o sueito quanto as coisas, ou sea, eprimem as rela&-es vividas entre o sueito e o mundo qualitativo de sons, cores, formas, for mas, odores, valores, sentimentos, etc. 5as ciências, por%m, sons e cores são eplicados como varia&ão no comprimento das ondas sonoras e luminosas, o"servadas e medidas no la"orat'rio. 6alores e sentimentos são eplicados pelas an+lises do corpo vivido e da consciência, feitas pela psicolo)ia pelas an+lises da estrutura e or)aniza&ão da sociedade, feitas pela sociolo)ia e pela antropolo)ia. ( lin)ua)em cient$fica destaca o o"eto das rela&-es r ela&-es com o sueito, separao da eperiência vivida cotidiana e constr'i uma lin)ua)em puramente denotativa para eprimir sem am"i)4idades as leis do o"eto. O sim"olismo cient$fico rompe com o sim"olismo da lin)ua)em cotidiana construindo uma lin)ua)em pr'pria, com s$m"olos un$vocos e denotativos, de si)nificado 3nico e universal. ( ciência constr'i o al)oritmo e fala atrav%s dos al)oritmos ou de uma com"inat'ria de estilo matem+tico. 7ustamente por serem estes os principais tra&os do ideal cient$fico, podemos compreender por que eistem os pro"lemas epistemol')icos eaminados nos cap$tulos precedentes. Em outras palavras, o ideal de cientificidade imp-e s id%ias crit%rios e finalidades que, quando impedidos de se concretizarem, for&am rupturas e mudan&as te'ricas profundas, fazendo desaparecer campos e disciplinas cient$ficos ou levando ao sur)imento de o"etos, m%todos, disciplinas e campos de investi)a&ão novos.
Ciência desinteressada e utilitarismo Desde a 8enascen&a 1 isto %, desde o #umanismo, que colocava o #omem no centro do 9niverso e afirmava seu poder para con#ecer e dominar a realidade 1 duas concep&-es so"re o valor da ciência estiveram sempre em confronto. ( primeira delas, que c#amaremos de ideal do con#ecimento desinteressado, afirma que o valor de uma ciência encontrase na qualidade, no ri)or e na eatidão, na coerência e na verdade de uma teoria, independentemente de sua aplica&ão pr+tica. ( teoria cient$fica vale por trazer con#ecimentos novos so"re fatos descon#ecidos, por ampliar o sa"er #umano so"re a realidade e não por ser aplic+vel praticamente. Em outras palavras, % por ser verdadeira que a ciência pode ser aplicada na pr+tica, mas o uso da ciência % conseq4ência e não causa do con#ecimento cient$fico. ( se)unda concep&ão, con#ecida como utilitarismo, ao contr+rio, afirma que o valor de uma ciência encontrase na quantidade de aplica&-es pr+ticas que possa permitir. : o uso ou a utilidade imediata dos con#ecimentos que prova a verdade de uma teoria cient$fica e l#e confere valor. Os con#ecimentos são procurados para
resolver pro"lemas pr+ticos e estes determinam não s' o aparecimento de uma ciência, mas tam"%m suas transforma&-es no decorrer do tempo. (s duas concep&-es são verdadeiras, mas parciais. Se uma teoria cient$fica fosse ela"orada apenas por suas finalidades pr+ticas imediatas, in3meras pesquisas amais teriam sido feitas feitas e in3meros fen/menos amais amais teriam sido con#ecidos, pois, com freq4ência, os con#ecimentos te'ricos estão mais avan&ados do que as capacidades t%cnicas de uma %poca e, em )eral, )er al, sua aplica&ão s' % perce"ida e s' % poss$vel muito tempo depois de #aver sido ela"orada. 5o entanto, se uma teoria cient$fica não for capaz de suscitar aplica&-es, se não for capaz de permitir o sur)imento de o"etos t%cnicos e tecnol')icos, instrumentos, utens$lios, m+quinas, medicamentos, de resolver pro"lemas importantes para os seres #umanos, então seremos o"ri)ados a dizer que a t%cnica e a tecnolo)ia são ce)as, incertas, arriscadas e peri)osas, porque são pr+ticas sem "ases te'ricas se)uras. 5a realidade, teoria e pr+tica cient$ficas estão relacionadas na concep&ão moderna e contempor*nea de ciência, mesmo que uma possa estar mais avan&ada do que a outra. ( distin&ão e a rela&ão entre ciência pura e ciência aplicada pode solucionar o impasse ou o confronto entre as duas concep&-es so"re o valor das teorias cient$ficas, )arantindo, por um lado, que uma teoria possa e deva ser ela"orada sem a preocupa&ão com fins pr+ticos imediatos, em"ora possa, mais tarde, contri"uir para eles e, por outro lado, )arantindo o car+ter cient$fico de teorias constru$das diretamente com finalidades pr+ticas, as quais podem, por sua vez, suscitar investi)a&-es puramente te'ricas. Podese dizer que são pro"lemas pr o"lemas e dificuldades t%cnicas e pr+ticas que suscitam o desenvolvimento de con#ecimentos te'ricos. Sa"emos, por eemplo, que o qu$mico ;avoisier decidiu estudar o fen/meno da com"ustão para resolver pro"lemas econ/micos da cidade de Paris, que
loren&a. 5o entanto, o que sempre se verifica % que a eplica&ão cient$fica e a teoria aca"am con#ecendo muito mais fatos e rela&-es do que o que era necess+rio para solucionar o pro"lema pr+tico, de tal modo que as pesquisas te'ricas vão avan&ando + sem a preocupa&ão pr+tica, em"ora comecem a sur)ir e a suscitar, tempos depois, solu&-es pr+ticas para pro"lemas novos. (ssim, por eemplo, passouse muito tempo at% que a teoria eletroma)n%tica de ?ertz levasse s t%cnicas de radiodifusão.
A ideoloia cientificista O senso comum, i)norando as compleas rela&-es entre as teorias cient$ficas e as t%cnicas, entre ciência pura e ciência aplicada, entre teoria e pr+tica e entre verdade e utilidade, tende a identificar as ciências com os resultados de suas aplica&-es. Essa identifica&ão desem"oca numa atitude con#ecida como cientificismo, isto %, fusão entre ciência e t!cnica e a ilusão da neutralidade científica. Eaminemos "revemente cada um desses aspectos que constituem a ideolo)ia da ciência na sociedade contempor*nea.
O cientificismo O cientificismo % a cren&a infundada de que a ciência pode e deve con#ecer tudo, que, de fato, con#ece tudo e % a eplica&ão causal das leis da realidade tal como esta % em si mesma.
(o contr+rio dos cientistas, que não cessam de enfrentar o"st+culos epistemol')icos, pro"lemas e eni)mas, o senso comum cientificista desem"oca numa ideolo)ia e numa mitolo)ia da ciência. "deoloia da ciência ! cren&a no pro)resso e na evolu&ão dos con#ecimentos que,
um dia, eplicarão totalmente a realidade e permitirão manipul+la tecnicamente, sem limites para a a&ão #umana. Mitoloia da ciência! cren&a na ciência como se fosse ma)ia e poderio ilimitado so"re as coisas e os #omens, dandol#e o lu)ar que muitos costumam dar s reli)i-es, isto %, um conunto doutrin+rio de verdades intemporais, a"solutas e inquestion+veis. ( ideolo)ia e a mitolo)ia cientificistas encaram a ciência não pelo prisma do tra"al#o do con#ecimento, mas pelo prisma dos resultados @apresentados como espetaculares e miraculososA e so"retudo como uma forma de poder social e de controle do pensamento #umano. Por este motivo, aceitam a ideoloia da competência, isto %, a id%ia de que #+, na sociedade, os que sa"em e os que não sa"em, que os primeiros são competentes e têm o direito de mandar e de eercer poderes, enquanto os demais são incompetentes, devendo o"edecer e ser mandados. Em resumo, a sociedade deve ser diri)ida e comandada pelos que Bsa"emC e os demais devem eecutar eecutar as tarefas que l#es são são ordenadas.
A ilusão da neutralidade da ciência omo a ciência se caracteriza pela separa&ão e pela distin&ão entre o sueito do con#ecimento e o o"eto como a ciência se caracteriza por retirar dos o"etos do con#ecimento os elementos su"etivos como os procedimentos cient$ficos de o"serva&ão, eperimenta&ão e interpreta&ão procuram alcan&ar o o"eto real r eal ou o o"eto constru$do como modelo aproimado do real e, enfim, como os resultados o"tidos por uma ciência não dependem da "oa ou m+ vontade do cientista nem de suas pai-es, estamos convencidos de que a ciência % neutra ou imparcial. Diz razão o que as coisas são em si mesmas. Desinteressadamente. Essa ima)em da neutralidade cient$fica % ilus'ria. uando o cientista escol#e uma certa defini&ão de seu o"eto, decide usar um determinado m%todo e espera o"ter certos resultados, sua atividade não % neutra nem imparcial, mas feita por escol#as precisas. 6amos tomar três eemplos que nos audarão a esclarecer este ponto. O racismo não % apenas uma ideolo)ia social e pol$tica. : tam"%m uma teoria que se pretende cient$fica, apoiada em o"serva&-es, dados e leis conse)uidas com a "iolo)ia, a psicolo)ia, a sociolo)ia. : uma certa maneira de construir tais dados, de sorte a transformar diferen&as %tnicas e culturais em diferen&as "iol')icas naturais imut+veis e separar os seres #umanos em superiores e inferiores, dando aos primeiros ustificativas para eplorar, dominar e mesmo eterminar os se)undos. Por que op%rnico teve que esconder os resultados de suas pesquisas e
@ela"oradas por Ptolomeu e (rist'telesA serviam 1 independentemente da vontade de Ptolomeu e de (rist'teles, % verdade 1 a uma sociedade e a uma concep&ão do poder que se viram amea&adas por uma nova concep&ão cient$fica. 9m 3ltimo eemplo pode ser dado atrav%s da antropolo)ia. Durante muito tempo, os antrop'lo)os afirmaram que #avia duas formas de pensamento cientificamente o"serv+veis e com leis diferentes! o pensamento l')icoracional dos civilizados @europeus "rancos adultosA e o pensamento pr%l')ico pr %l')ico e pr%racional dos selva)ens ou primitivos @africanos, $ndios, tri"os australianasA. O primeiro era considerado superior, verdadeiro e evolu$do o se)undo, inferior, falso, supersticioso e atrasado, ca"endo aos "rancos europeus BauiliarC os selva)ens BprimitivosC a a"andonar sua cultura e adquirir a cultura Bevolu$daC dos colonizadores. O mel#or camin#o para perce"er a impossi"ilidade de uma ciência neutra % levar em considera&ão o modo como a pesquisa cient$fica se realiza em nosso tempo. Durante s%culos, os cientistas tra"al#aram individualmente @mesmo que possu$ssem auiliares e disc$pulosA em seus pequenos la"orat'rios. Suas pesquisas eram custeadas ou por eles mesmos ou por reis, no"res e "ur)ueses ricos, que deseavam a )l'ria de patrocinar desco"ertas e as vanta)ens pr+ticas que delas poderiam advir. Por sua vez, o senso comum social ol#ava o cientista como in#entor e ênio . ?oe, os cientistas tra"al#am coletivamente, em equipes, nos )randes la"orat'rios universit+rios, nos dos institutos de pesquisa e nos das )randes empresas transnacionais que participam de um sistema con#ecido como compleo industrial militar. (s pesquisas são financiadas pelo Estado @nas universidades e institutosA, pelas empresas privadas @em seus la"orat'riosA e por am"os @nos centros de investi)a&ão do compleo industrialmilitarA. São pesquisas que ei)em altos investimentos econ/micos e das quais se esperam resultados que a opinião p3"lica nem sempre con#ece. (l%m disso, os cientistas de uma mesma +rea de investi)a&ão competem por recursos, tendem a fazer se)redo de suas desco"ertas, pois dependem delas para conse)uir fundos e vencer a competi&ão com outros. Sa"emos, #oe, que a maioria dos resultados cient$ficos que usamos em nossa vida cotidiana 1 m+quinas, rem%dios, fertilizantes, produtos de limpeza e de #i)iene, materiais sint%ticos, computadores 1 tiveram como ori)em investi)a&-es militares e estrat%)icas, competi&-es econ/micas entre )randes empresas transnacionais e competi&-es pol$ticas entre )randes Estados. Huito do que usamos em nosso cotidiano prov%m de pesquisas nucleares, "acteriol')icas e espaciais. O senso comum social, a)ora, vê o cientista como enenheiro e mao, em roupas "rancas no interior de )randes la"orat'rios repletos de o"etos incompreens$veis, rodeado de outros cientistas, fazendo c+lculos misteriosos diante de dezenas de computadores. =anto na visão anterior 1 o cientista como inventor e )ênio solit+rio 1 quanto na atual 1 o cientista como mem"ro de uma equipe de en)en#eiros e ma)os , o senso comum vê a ciência desli)ada do conteto das condi&-es de sua realiza&ão e de suas finalidades. Eis porque tende a acreditar na neutralidade cient$fica, na id%ia de que o 3nico compromisso da ciência % o con#ecimento verdadeiro e desinteressado e a solu&ão correta de nossos pro"lemas. ( ideolo)ia cientificista usa essa ima)em idealizada para consolidar a da neutralidade cient$fica, dissimulando, com isso, a ori)em e a finalidade da maioria das pesquisas, destinadas a controlar a 5atureza e a sociedade se)undo os interesses dos )rupos que controlam os financiamentos dos la"orat'rios.
A razão instrumental Por que #+ uma ideolo)ia e uma mitolo)ia da ciênciaG
uando estudamos a teoria do con#ecimento, eaminamos a no&ão de ideolo)ia como l')ica social ima)in+ria de ocultamento da realidade #ist'rica. (o estudarmos o nascimento da >ilosofia, eaminamos a diferen&a entre mythos e logos, isto %, entre a eplica&ão antropom'rfica e m+)ica do mundo e a eplica&ão racional. uando estudamos a razão, vimos que al)uns fil'sofos alemães, reunidos na Escola de >ranIfurt, descreveram a racionalidade ocidental como instrumentaliza&ão da razão. Se reunirmos esses v+rios estudos que fizemos at% aqui, poderemos responder per)unta so"re a ideolo)iza&ão e a mitolo)iza&ão da ciência. ( razão instrumental 1 que os franIfurtianos, como (dorno, Harcuse e ?orI#eimer tam"%m desi)naram com a epressão razão iluminista 1 nasce quando o sueito do con#ecimento toma a decisão de que con#ecer % dominar e controlar a 5atureza e os seres #umanos. (ssim, por eemplo, e emplo, o fil'sofo >rancis Jacon, no in$cio do s%culo K6FF, criou uma epressão para referirse ao o"eto do con#ecimento cient$fico! Ba 5atureza atormentadaC. (tormentar a 5atureza % fazêla rea)ir a condi&-es artificiais, criadas pelo #omem. O la"orat'rio cient$fico % a maneira paradi)m+tica de efetuar esse tormento, pois, nele, plantas, animais, metais, l$quidos, )ases, etc. são su"metidos a condi&-es de investi)a&ão totalmente diversas das naturais, de maneira a fazer com que a eperimenta&ão supere a eperiência, desco"rindo formas, causas, efeitos que não poderiam ser con#ecidos se cont+ssemos apenas com a atividade espont*nea da 5atureza. (tormentar a 5atureza % con#ecer seus se)redos se)r edos para domin+la e transform+la. O tormento da realidade aumenta com a ciência contempor*nea, uma vez que esta não se contenta em con#ecer as coisas e os seres #umanos, mas os constr'i artificialmente e aplica os resultados dessa constru&ão ao mundo f$sico, "iol')ico e #umano @ps$quico, social, pol$tico, #ist'ricoA. (ssim, por eemplo, a or)aniza&ão do processo de tra"al#o nas ind3strias apresentase como cient$fica porque % "aseada em conceitos da psicolo)ia, da sociolo)ia, da economia, que permitem per mitem dominar e controlar o tra"al#o #umano so" todos os aspectos @controle so"re o corpo e o esp$rito dos tra"al#adoresA, a fim de que a produtividade sea a maior poss$vel para render lucros ao capital. 5a medida em que a razão se torna instrumental, a ciência vai deiando de ser uma forma de acesso aos con#ecimentos verdadeiros para tornarse tor narse um instrumento de domina&ão, poder e eplora&ão. Para que não sea perce"ida como tal, passa a ser sustentada pela ideolo)ia cientificista, que, atrav%s da escola e scola e dos meios de comunica&ão de massa, desem"oca na mitolo)ia cientificista. =odavia, devemos distin)uir entre o momento da investi)a&ão cient$fica propriamente dita e o da ideolo)iza&ãomitolo)iza&ão de uma ciência. 9m eemplo poder+ auiliarnos a perce"er essa diferen&a. uando DarLin ela"ora a teoria "iol')ica da evolu&ão das esp%cies, o modelo de eplica&ão usado por ele permitia pe rmitia l#e supor que o processo evolutivo ocorria por sele&ão natural dos mais aptos so"revivência. Ora, na mesma %poca, a sociedade capitalista estava convencida de que o pro)resso social e #ist'rico provin#a da competi&ão e da concorrência dos indiv$duos, se)undo a lei econ/mica da oferta e da procura. 9m fil'sofo, Spencer, aplicou, então, a teoria darLiniana sociedade! nesta, os mais BaptosC @isto %, os mais capazes de competir e concorrerA tornamse tor namse naturalmente superiores aos outros, vencendoos em riqueza, privil%)ios e poder. (o transpor uma teoria "iol')ica para uma eplica&ão filos'fica so"re a essência da sociedade, Spencer transformou a teoria científica da evolu&ão em ideoloia evolucionista. Por quêG Em primeiro lu)ar, porque )eneralizou para toda a realidade resultados o"tidos num campo particular de con#ecimentos espec$ficos. Em se)undo lu)ar, porque tomou conceitos referentes a fatos naturais e os converteu em fatos sociais, como se não #ouvesse diferen&a entre 5atureza e sociedade. 9ma
vez criada a ideolo)ia evolucionista, o evolucionismo tornouse teoria da ?ist'ria e, a se)uir, mitolo)ia cient$fica do pro)resso #umano. ( no&ão de razão instrumental nos permite compreender! a transforma&ão de uma ciência em ideolo)ia ideo lo)ia e mito social, isto %, em senso comum cientificista que a ideolo)ia da ciência não se reduz transforma&ão de uma teoria cient$fica em ideolo)ia, mas encontrase na pr'pria ciência, quando esta % conce"ida como instrumento de domina&ão, controle e poder so"re a 5atureza e a sociedade que as id%ias de pro)resso t%cnico e neutralidade cient$fica pertencem ao campo da ideolo)ia cientificista. ●
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Confusão entre ciência e t!cnica 6imos que a ciência moderna e contempor*nea transforma a t%cnica em tecnolo)ia, isto %, passa da m+quinautens$lio m+quina como instrumento de precisão, que permite con#ecimentos mais eatos e novos con#ecimentos. Essa transforma&ão traz duas conseq4ências principais! a primeira se refere ao con#ecimento cient$fico e a se)unda, ao estatuto dos o"etos o "etos t%cnicos! M. o con#ecimento cient$fico % conce"ido como l$ica da in#en%ão @para a solu&ão de pro"lemas te'ricos e pr+ticosA e como l$ica da constru%ão @de o"etos te'ricosA, )ra&as possi"ilidade de estudar os fen/menos sem depender apenas dos recursos de nossa percep&ão e de nossa inteli)ência. : assim que, por eemplo,
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são o"etos que possuem em si mesmos o princ$pio de sua re)ula&ão, manuten&ão e transforma&ão. (s m+quinas anti)as dependiam de for&as eternas para realizar suas fun&-es @alavancas, polias, manivelas, for&a muscular de seres #umanos ou de animais, for&a #idr+ulica, etc.A. (s m+quinas modernas são aut/matos porque, dado o impulso eletroeletr/nico inicial, realizam por si mesmas todas as opera&-es para as quais foram pro)ramadas, incluindo a corre&ão de sua pr'pria a&ão, a realimenta&ão de ener)ia, a transforma&ão. São autore)uladas e autoconservadas, porque possuem em si mesmas as informa&-es necess+rias ao seu funcionamento ●
como conseq4ência, não são propriamente um o"eto sin)ular ou individual, mas um sistema de o&'etos interli)ados por comandos rec$procos são sistemas que, uma vez pro)ramados, pro)r amados, realizam opera&-es te'ricas compleas, que modificam o conte3do dos pr'prios pr 'prios con#ecimentos cient$ficos, isto %, os o"etos t%cnicotecnol')icos fazem parte do tra"al#o te'rico. ●
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Ora, o senso comum social i)nora essas transforma&-es da ciência e da t%cnica e con#ece apenas seus resultados mais imediatos! os o"etos que podem po dem ser usados por n's @m+quina de lavar, videogame , televisão a ca"o, m+quina de calcular, computador, ro"/ industrial, etc.A. omo, para us+los, precisamos rece"er um conunto de informa&-es detal#adas e sofisticadas, tendemos a identificar o con#ecimento cient$fico com seus efeitos tecnol')icos. om isso, deiamos de perce"er o essencial, isto %, que as ciências passaram a fazer parte das for&as econ/micas produtivas da sociedade e troueram mudan&as sociais de )rande porte na divisão social do tra"al#o, na produ&ão e na distri"ui&ão dos o"etos, na forma de consumilos. 5ão perce"emos que as pesquisas cient$ficas são financiadas por empresas e )overnos, demandando )randes somas de recursos que retornam, )ra&as aos resultados o"tidos, na forma de lucro e poder para os a)entes financiadores. Por não perce"ermos o poderio econ/mico das ciências, lutamos para ter acesso, para possuir e consumir os o"etos tecnol')icos, mas não lutamos pelo direito de acesso tanto aos con#ecimentos como s pesquisas cient$ficas, nem lutamos pelo direito de decidir seu modo de inser&ão na vida econ/mica e pol$tica de uma sociedade. Eis porque, entre outros efeitos de nossa confusão entre ciência e tecnolo)ia, aceitamos, no Jrasil, pol$ticas educacionais que profissionalizam os ovens no se)undo )rau 1 portanto, antes que ten#am podido ter acesso s ciências propriamente ditas 1 e que destinam poucos recursos p3"licos s +reas de pesquisa nas universidades 1 portanto, mantendo os cientistas na mera condi&ão de reprodutores de ciências produzidas em outros pa$ses e sociedades.
O pro&lema do uso das ciências (l%m do pro"lema anterior, isto %, de teorias cient$ficas serem formuladas a partir de certas decis-es e escol#as do cientista ou do la"orat'rio onde tra"al#am os cientistas, com conseq4ências s%rias para os seres #umanos, um outro pro"lema tam"%m % trazido pelas ciências! o de seu uso. 6imos que uma teoria cient$fica pode nascer para dar resposta a um pro"lema pr+tico ou t%cnico. 6imos tam"%m que a investi)a&ão cient$fica pode ir avan&ando para desco"ertas de fen/menos e rela&-es que + não possuem rela&ão direta com os pro"lemas pr+ticos iniciais e, como conseq4ência, % freq4ente uma teoria estar muito mais avan&ada do que as t%cnicas e tecnolo)ias que poderão aplic+la. Huitas vezes, ali+s, o cientista sequer ima)ina que a teoria ter+ aplica&ão pr+tica. : eatamente isso que torna o uso da ciência al)o delicado, que, em )eral, escapa das mãos dos pr'prios pesquisadores. : assim, por eemplo, que a microf$sica ou f$sica qu*ntica desem"oca na fa"rica&ão das armas nucleares a "ioqu$mica e a )en%tica, na de armas "acteriol')icas. =eorias so"re a luz e o som permitem a constru&ão de sat%lites artificiais, que, se são conect+veis instantaneamente em todo o )lo"o terrestre para a comunica&ão e informa&ão, tam"%m são respons+veis por espiona)em militar e por )uerras com armas tele)uiadas. 9ma das caracter$sticas mais novas da ciência est+ em que as pesquisas pe squisas cient$ficas passaram a fazer parte das for&as produtivas da sociedade, isto %, da economia. ( automa&ão, a informatiza&ão, a telecomunica&ão determinam formas de poder econ/mico, modos de or)anizar o tra"al#o industrial e os servi&os, criam profiss-es e ocupa&-es novas, destroem profiss-es e ocupa&-es anti)as, introduzem a
velocidade na produ&ão de mercadorias e em sua distri"ui&ão e consumo, modificando padr-es industriais, comerciais e estilos de vida. ( ciência tornouse parte inte)rante e indispens+vel da atividade econ/mica. =ornouse a)ente econ/mico e pol$tico. (l%m de fazer parte essencial da atividade econ/mica, a ciência tam"%m passou a fazer parte do poder pol$tico. 5ão % por acaso, por eemplo, que )overnos criem minist%rios e secretarias de ciência e tecnolo)ia e que destinem ver"as para financiar pesquisas civis e militares. Do mesmo modo que as )randes empresas financiam pesquisas e at% criam centros e la"orat'rios de investi)a&ão cient$fica, assim tam"%m os )overnos determinam quais as ciências que irão ser desenvolvidas e, nelas, quais as pesquisas que serão financiadas. Essa nova posi&ão das ciências na sociedade contempor*nea, al%m de indicar que % m$nimo ou quase ineistente o )rau de neutralidade e de li"erdade dos cientistas, indica tam"%m que o uso das ciências define os recursos financeiros que nelas serão investidos. ( sociedade, por%m, não luta pelo direito de interferir nas decis-es de empresas e )overnos quando estes decidem financiar um tipo de pesquisa em vez de outra. Dessa maneira, o campo cient$fico tornase cada vez mais distante da sociedade sem que esta encontre meios para orientar o uso das ciências, pois este % definido antes do in$cio das pr'prias pesquisas e fora do controle que a sociedade poderia eercer so"re ele. 9m eemplo de luta social para intervir nas decis-es so"re as pesquisas e seus usos encontrase nos movimentos ecol')icos e em muitos movimentos sociais li)ados a reivindica&-es de direitos. De um modo )eral, por%m, a ideolo)ia cientificista tende a ser muito mais forte do que eles e a limitar os resultados que deseariam o"ter.