CODO, W., SAMPAIO, J. & HITOMI, A. Indivíduo, trabalho e sofrimento. Petrópolis: Vozes, 2ª edição, 1994.
INDIVÍDUO
TRABALHO E SOFRIMENTO
UMA ABORDAGEM INTERDISCIPLINAR
WANDERLEY CODO JOSÉ JACKSON COELHO SAMPAIO ALBERTO HARUYOSHI HITOMI
SUMÁRIO APRESENTAÇÃO PREFÁCIO: Jurandir Freire Costa INTRODUÇÃO: Wanderley Codo PARTE I - INDIVÍDUO E SOCIEDADE Capítulo 1. Em busca da Psicologia (Onde se percorre as dificuldades da Psicologia em encontrar seu próprio objeto) Capítulo 2. Um velho Handicap (Onde se descobrem falhas, suas razões e as dificuldades de supera-las) Capítulo 3. O Homem não é um ser Social/ Uma abordagem Marxista. (Onde se freqüenta a história em busca do indivíduo e se tenta impedir alguns psicólogos afoitos de eliminá-lo) Capítulo 4. Psicologia, Atividade e Trabalho (Quando o trabalho é oferecido como categoria capaz de romper um velho impasse) PARTE II - OS TRABALHOS DO TRABALHO Capítulo 5. A Magia do Trabalho: (Quando o trabalho, revisitado, se apresenta múltiplo, mágico) Capítulo 6. Trabalho e Identidade: (Onde se caminha por entre o cartão de ponto e o trabalhador) Capítulo 7. Em busca de um marco teórico (Um guia de sobrevivência na selva situada entre o que Marx disse e o que se diz que Marx disse) Capítulo 8. A evolução histórica do Trabalho (Onde se percorre, a passo ligeiro, a distância entre a Mule Jenny e o Computador.) Capítulo 9. Processo de trabalho e a construção da subjetividade. (De como o Trabalho faz o Homem, que faz o Trabalho, que faz o Homem, que faz...) Capítulo 10. A perplexidade contemporânea: Informática e Automação (Onde se adverte para a possibilidade de O Trabalho, quem diria, desaparecer.) PARTE III - TRABALHO E SOFRIMENTO Capítulo 11. Afeto e Trabalho: (Quando se redesenham os limites entre o lar, doce lar, e a empresa) Capítulo 12. A Questão Epidemiológica: (Onde se mostra que, para contabilizar a doença mental é preciso saber o que é doença mental) Capítulo 13. O Trabalho na Entrevista Psiquiátrica: (Quando, enfim, o trabalho comparece no consultório do terapeuta) Capítulo 14. Trabalho e Saúde Mental: (Onde se busca uma definição de doença mental, quiçá mais próxima da vida) BIBLIOGRAFIA
PREFÁCIO
Entre-se Entre-se numa livraria, livraria, numa biblioteca ou numa sala de aula, no Brasil de hoje hoje.. Proc Procur uree-se se ou perg pergun unte te-s -see onde onde está está a Psic Psicol olog ogia ia Ma Marx rxis ista ta.. As esta estant ntes es provavelmente ficarão mudas. Nada ou quase nada tem sido escrito ou dito sobre o tema. Mudaram os tempos ou mudamos nós, os acadêmicos? Quais as razões desta ausência eloqüente? Por que o silêncio em torno de Marx? Algumas respostas podem ser esboçadas, a título de hipóteses. Em primeiro lugar, podemos pensar que o meio universitário tornou-se, por uma outra razão, mais conservador, política ou teoricamente. Esta Esta expl explic icaç ação ão nã nãoo
seria eria sat satisfa isfató tóri ria. a. A
hipó hipóte tese se do rec recrude rudesc sciime ment ntoo
do
conservadorismo, por si só, não daria conta do vazio de reflexão marxista sobre a Psicologia. Pode-se perfeitamente imaginar uma teoria marxista político-conceitualmente conservadora, como pode-se pensar em teorias não marxistas político-conceitualmente revolucionárias ou radicais. Os exemplos, nos dois casos, são facilmente encontráveis na prática clínica ou na teoria das psicoterapias disponíveis no mercado de idéias. Vejamos Vejamos uma segu segunda nda hipó hipótese tese.. O refluxo refluxo do pens pensamen amento to marxis marxista ta deve dever-se r-se-ia -ia ao desinteresse deste pensamento pela questão ou por sua incapacidade de competir com teorias concorrentes. concorrentes. Tal hipótese, igualmente igualmente plausível, plausível, também encontraria encontraria obstáculos obstáculos para afirmar-se plenamente. A tradição marxista, no terreno da Psicologia, dispõe de pesos-pesados intelectuais, que vão desde a genialidade precursora e ortodoxa de um Politzer até a atualidade heterodoxa e inequivocamente respeitável de um Habermas, que que carr carreg egaa nos nos om ombr bros os,, nada nada ma mais is,, nada nada me meno nos, s, que que a hera heranç nçaa da Esco Escola la de Frankfurt. Não é por falta de patrono, nem de chancela científica que a Psicologia marxista tornou-se tímida e inibida em seu aparecimento público. Resta uma terceira hipótese. hipótese. O imaginário acadêmico acadêmico estaria saturado ou monopolizado monopolizado por uma avalanche sem precedentes de formulações estruturalistas, formalistas ou idealistas de estudos sobre sobre o indiv indivíd íduo uo e a subj subjeti etivi vidad dade, e, que de deix ixari ariam am pou pouca ca ma marg rgem em de ma manob nobra ra ao pensamen pens amento to psi psicoló cológic gicoo marxis marxista. ta. Psicaná Psicanális lise, e, Antropol Antropologia ogia,, Sociolog Sociologia ia ou Filosof Filosofia, ia, conc concebi ebidas das de dentr ntroo des destes tes pa parad radig igmas mas,, estar estaria iam m hipno hipnotiz tizand andoo a cons consci ciênc ência ia dos profissionais ligados à área, impedindo-os de olhar de lado e ver alguma coisa a mais,
além do permitido pelas idéias dominantes. É possível que esta hipótese tenha um quê de verdade. Mas como entender esta pretensa hegemonia do pensamento a-histórico na Psicologia, se, agora, mais que nunca, fomos expostos a uma enxurrada de estudos históricos sobre a construção social dos sujeitos? Vivemos ou não a era de Ariés, Flandrin, Foucault, Castel, Donzelot, Richard Sennett, Jos van Ussel, sem falar nos magistrais trabalhos de Georg Simmel ou Norbert Elia? E, como se não bastasse toda esta bateria histórico-construtivista, bem próxima do caudal prático-social da definição marxista do sujeito, não temos, de quebra, a presença de um Basaglia ou da filiação deleuzo-nietzscheana, para contestar o formalismo estruturalista ou idealista das psicologias reinantes na produção acadêmica? Por que, pergunto, ainda assim, a Psicologia Marxista não reafirmou seu direito de cidade no universo das psicologias? Com o presente trabalho, acredito, uma primeira resposta acaba de ser dada a estas interrogações. Os autores emprenham-se na tarefa de sustentar as teses de uma Psicologia fundada em Marx, com um vigor inusitado, no panorama intelectual brasileiro. Até então, raras, honrosas e solitárias exceções procuraram manter aceso o gosto por uma investigação, que corria o risco de diluir-se no esquecimento ou nos votos de boas intenções. Porém, uma diferença separa este trabalho da maioria de seus predecessores; e ela é fundamental. Não se pensa, aqui, retomar o freudo-Marxismo, nem a démarche politzeriana, por demais comprometida com a Fenomenologia, a Gestalt e o Behaviorismo. Vai-se direto a Marx. E, em Marx, toca-se o coração do edifício marxista: o trabalho. Este é o desassombro que fascina e cativa o leitor. Dispensam-se os rodeios e os compromissos que, tradicionalmente, cercaram as abordagens marxistas da Psicologia. A intenção é trazer à tona aquilo que o Marxismo tem de essencial: o homem produzindo, pelo trabalho, as condições de sua existência e de sua consciência. Donde, a opção teórico-metodológica. Depois de uma recapitulação das categorias marxistas de homem, indivíduo, atividade, trabalho e sociedade, chega-se ao exemplo de indivíduos concretos, em situações concretas de trabalho. Nada de abstrações invisíveis a olho nu ou inaudíveis ao ouvido humano. Trabalho e indivíduo estão lá, evidentes no modo de aparecer social, e desta visibilidade compartilhada com quem queira ver, extrai-se as peças de convicção da tese defendida. O sujeito, seus afetos e sentimentos, chamam-se "um bancário"; seu trabalho é "um trabalho num banco".
A partir daí, são derivadas proposições sobre Psicologia, Psicopatologia, loucura, saúde e doença mental. Em que e por que isto representa um avanço, na produção teórica sobre Psicologia Marxista? Penso que a novidade está, em primeiro lugar, no desaparecimento dos habituais circunlóquios fundacionalistas, tão ciosamente cultivados pelo saudosismo idealista. Os autores não se preocupam em perguntar quais são os fundamentos últimos e transcendentes, capazes de garantir a verdade de suas afirmações sobre a natureza do sujeito e do objeto. Tampouco pretendem retirar do saber prático e politicamente engajado que adotam, critérios universais de validação de qualquer proposição, em qualquer mundo possível, sobre o sujeito. Desde o início, deixam claro o lugar de onde falam e as razões do porque falam da maneira que falam. Não se subtrai ao leitor os interesses que condicionam o conhecimento. Em segundo lugar, a tese teórica quer tornar-se prática clínica, se assim posso falar, sem comprometer a originalidade da "clínica" que os autores defendem. Fala-se de um caso; de um problema humano, onde os afetos e sofrimentos de um indivíduo trabalhador são apresentados na nudez de quem não teme ser criticado, corrigido ou retificado naquilo que diz, faz ou crê. Não se pode exigir maior prova de boa-vontade e honestidade intelectuais. Porque são honestos e competentes para defenderem seus pontos de vista, os autores teorizam a Psicologia marxista de um modo novo, que nos permite aprender umas tantas coisas, concordando com algumas e discordando de outras. Pessoalmente, como psicanalista, (e só posso falar enquanto tal), acho que os melhores trechos do estudo são aqueles consagrados às noções de trabalho, atividade, homem, indivíduo, e aqueles onde são descritos e interpretados os casos clínicos escolhidos para ilustrarem a teoria. Nestes trechos, aparecem com nitidez o que julgo serem as maiores virtudes do trabalho, e os pontos que, a meu ver, necessitam de desdobramentos posteriores. Analisemos alguns exemplos. No tópico intitulado "O homem não é um ser social", os autores dialogam, com a Psicanálise e o Behaviorismo, ao mesmo tempo em que criticam uma leitura a baixo custo das relações conceituais entre homem e indivíduo, no interior da teoria marxista. Não faz sentido, dizem eles, abstrair ou reificar, por um lado, o homem e, por outro, a sociedade, como se fossem termos dicotômicos ou entidades metafísicas, desde sempre e para sempre existentes, uma ao lado da outra. Na dialética marxista, "o indivíduo aparece como uma totalidade que se realiza ao
mesmo tempo que se exterioriza por outra totalidade, a sociedade. O homem aparece aqui como um todo-parte em si e se realizando pela sua outra face ao mesmo tempo. Assim, a vida genérica (social) e a vida particular aparecem em tensão mutuamente realizadora, nunca em relação de subsunção". Imaginar o indivíduo como um "atomon" ou "como uma partícula em repouso", numa visão estática de suas condições de existência ou da consciência desta existência, significa retirá-lo do movimento permanente de sua produção e reprodução histórica, para conferir-lhe um estatuto objetivista, como no Behaviorismo, ou um estatuto biologista, como na Psicanálise. Do Behaviorismo, nada diremos além de assinalar que certas visões behavioristas da análise das condutas psicológicas, como é o caso do behaviorismo metodológico e não o do metafísico, dificilmente, em minha opinião, entrariam em choque com o marxismo, na medida em que também buscam critérios públicos, históricos ou contextuais para a compreensão, descrição ou explicação do sentido de tais condutas. Quanto à psicanálise, acho que os autores se equivocam quando insistem no caráter “biologista” da concepção freudiana do indivíduo. Este suposto biologismo psicanalítico, muitas vezes identificado no texto à animalidade da sexualidade freudiana, é fruto de uma leitura parcial de Freud. Não teria receio de contrapor a esta interpretação da psicanálise uma outra, onde diria que a sexualidade humana é um produto da “hominização cultural”, que o sujeito está “sujeito”a escolhas sexuais arbitrárias e não instintivamente determinadas. Vista deste ângulo, boa parte da crítica dirigida à Psicanálise, no trabalho, carece de pertinência. Se conflito existe entre Psicologia Marxista e Psicanálise (e acredito que ele exista), os pólos de discussão devem ser buscados em outra esfera. A tensão intelectual entre as disciplinas, para ser fértil, deve previamente dissipar malentendidos. O indivíduo, para Freud, nem é uma realidade biológica e animal, nem uma mônada preexistente à entrada do homem na cultura, e ainda menos uma realidade estática, com predicados positivos e universais, se por isso entendemos a afirmação da existência de uma entidade metafísica, conhecida aprioristicamente, de modo indubitável e incorrigível. Psicanálise não é uma ontologia do indivíduo ou do inconsciente, embora possa concordar com os autores que isto nem sempre fica explícito em Freud, como em muitos de seus seguidores. Do mesmo modo, quando se afirma, em certas passagens, que Alma, Mente, Consciência, Inconsciente etc. são erros do pensamento psicológico estático, que
tenta "predicar o impredicável", como psicanalista só posso estar de acordo em gênero e número com o que é dito. Esta afirmação, diga-se de pronto, é afim de uma outra, onde se diz que "cada gesto ou palavra é sempre inserida em uma miríade de significados, reporta sempre aos vários eus convivendo dentro de mim". Pois bem, esta afirmação seria perfeitamente aceitável por qualquer psicanalista razoavelmente informado dos princípios de sua disciplina. Não vejo em que o combate ao essencialismo e ao mentalismo, subjacente a certas concepções psicológicas do indivíduo, poderia levar de roldão a Psicanálise. Neste aspecto, penso eu, Freud e Marx não teriam por que se desentender. De outro prisma, as considerações dos autores também me parecem dignas de uma discussão mais aprofundada. Desta vez, não para criticar opiniões com as quais não concordo, mas para apontar para horizontes de pesquisa ricos em promessas teóricas. Refiro-me às afirmações feitas sobre a linguagem. Num dado momento, é afirmado: "A linguagem é tão velha como a consciência, a linguagem é a consciência prática, a consciência real que existe também para os outros homens, e que, portanto, começa a existir também para mim mesmo; a linguagem nasce, como a consciência, da necessidade, como um produto da relação com os outros homens". Em outra parte, volta-se a dizer: "A linguagem, originalmente seu desenvolvimento se identifica como o dos instrumentos de trabalho, modo de intervenção no outro, por isso do outro em mim, conforma o homem à imagem e semelhança dos seus pares". A estas proposições genéricas sobre a linguagem, seguem-se exemplos de usos concretos de frases ou expressões. O caso da expressão "bom dia", analisado pelos autores, numa das melhores e mais felizes páginas, mostra um caminho de reflexão sobre a linguagem em Psicologia, em tudo e por tudo promissor. A articulação da linguagem com as "formas de vida", para falar como Wittgenstein, é demonstrada de modo a excluir qualquer ambição universalista sobre a pretensa natureza de "uma linguagem mãe de todas as linguagens possíveis". Neste sentido, só lamento a falta de referências à Bakhtin, que dentro da melhor tradição marxista, antecipou a discussão atual sobre a natureza da linguagem, discussão que reputo indispensável a qualquer teoria psicológica sobre o sujeito ou o indivíduo. Também neste caso, acredito que um confronto entre Psicanálise e Marxismo seria útil a ambos.
O terceiro exemplo do que considero pontos altos do estudo, além da crítica à noção de indivíduo e as reflexões sobre a linguagem, diz respeito ao trabalho. No que é dito sobre o trabalho, não de forma genérica, mas na exemplaridade do caso clínico, dois tópicos me chamaram atenção. O primeiro, concerne às relações entre trabalho e sublimação. Em certo trecho, é afirmado: "Como regra geral, e exatamente ao contrário do que Freud dizia, não se trata de o envolvimento no trabalho significar uma sublimação de necessidades sexuais mal satisfeitas, mas sim da impossibilidade de satisfação emocional afetiva no trabalho, inventar uma sexualidade onipresente, convertida em única forma de expressão de si. Quem duvidar, basta ouvir um trabalhador burocrático típico e suas insatisfações, o papel onisciente que empresta ao sexo, e depois ouvir um destes raros trabalhadores que têm a chance de se apaixonar pelo trabalho, como um artista plástico, por exemplo, e perceber como ali a sexualidade não é mais do que forma de encontro. O trabalho quanto mais vazio mais constrói a teoria da pansexualidade, ressuscita Freud com o auxílio dos psicólogos e psiquiatras, que como Taylor e Ford, não sabem enxergar o trabalho como ato humano, além e acima da mercadoria da alienação". Para um psicanalista, a afirmação é discutível, por isso, mesmo, instigante. Desde já, fica aberta uma via inestimável de investigação para a Psicologia e para a Psicanálise. Postulando a distinção entre trabalho alienado e não alienado, os autores imputam ao primeiro a carga de portar a sexualidade sublimada de Freud. Freud, parecem afirmar, atirou no que viu e errou no que não viu. A sublimação é produto da alienação do trabalho, por quanto significa sexualização daquilo que deveria ser apenas vivido como "satisfação emocional afetiva", no trabalho. Ora, ao contrário do que foi afirmado, Freud, em muitos momentos de sua obra, entendeu a sublimação como produto da dessexualização da libido. E, como observaram certos autores, com esta conceituação, chegou mesmo a situar a sublimação além de princípio do prazer. Por outro lado, elegendo o exemplo da obra de arte e do artista, como um caso bemsucedido de realização da "satisfação emocional afetiva" no trabalho, os autores, sem querer, aproximaram-se de uma das posturas teóricas mais criticadas em Freud, qual seja a de considerar a sublimação impossível para a massa de indivíduos submetidos a condições precárias de trabalho e subsistência. Como bom liberal da "Viena fin-desiécle", ele entendia que a sublimação era privilégio dos que podiam ter acesso ao que
considerava como a forma não ilusória de satisfação cultural, as artes e a ciência. Foi esta, aliás, uma das razões de sua dissensão com Reich. A sublimação, vista pela Psicanálise atual, perdeu seu halo de nobreza habsburgueana. O que no estudo é chamado de "satisfação emocional afetiva no trabalho" é o que, em Psicanálise, compreende-se como sublimação. A sexualidade referida no caso clínico, nunca poderia ser descrita como sexualidade sublimada, já que era uma sexualidade compulsiva, expressão do sintoma neurótico do sujeito. Não é a natureza do trabalho por si, manual, intelectual, artístico ou científica, que define quais investimentos sexuais serão sublimados ou compulsivamente neuróticos. É a forma como a sexualidade, obedecendo às injunções das instâncias ideais e contornando a resistência do narcisismo egóico, investe certos objetos culturais, que caracteriza o processo sublimatório. Em contrapartida, penso que os autores levantam um problema sério, tanto para a Psicanálise quanto para o Marxismo, quando trazem a situação do trabalho do céu das idéias para a vida social concreta. Para a Psicanálise, o problema é o seguinte: em que medida, considerando o trabalho desvinculado de modo de produção social, é possível colocá-lo, ipso facto, como condição de sublimação, só pelo fato de ser uma atividade cultural? Em que medida, as condições reais do trabalho tendem ou não a predispor esta atividade e tornar-se uma fonte de satisfação (na acepção psicanalítica) neurótica ou perversa, para quem venda sua força de trabalho e para quem compra esta força? Para o Marxismo, a questão é ainda mais complicada. Pois, se a Psicanálise, teórico-metodologicamente,
consegue
separar, mesmo
através
de
mediações
conceituais complexas, desalienação social e "desalienação individual", no Marxismo esta linha divisória é extremamente difícil de ser pensada. No entanto, se a psicologia marxista quer tornar-se "clínica", esta pergunta não pode ficar sem resposta, ou, pelo menos, não pode ser escamoteada. Para esclarecer o que interrogo, tomemos os exemplos mostrados no caso clínico. O artista é dado como modelo de uma relação de trabalho desalienado, e, portanto, de uma situação afetiva individual vem resolvida. Mas, o que significa dizer que o trabalho artístico, numa sociedade capitalista, permite ao indivíduo realizar-se enquanto produtor de um trabalho não alienado? Significa que o artista escapa ao modo de produção social? Significa que seu trabalho não está submetido, ainda que de modo diverso do trabalho assalariado, às leis de troca do regime capitalista? E quanto ao trabalho assalariado? Ao exemplo do bancário, citada no texto? No momento em que o bancário toma consciência de que seus sintomas eram
produzidos por sua situação de trabalhador alienado, como veremos adiante, e abre mão da sexualidade compulsiva que manifestava, neste momento trabalho e trabalhador deixaram de ser alienados? Se assim for, desalienação é sinônimo de tomada de consciência intelectual das condições de alienação? E, mesmo supondo que o dito trabalhador resolvesse militar num partido político ou num sindicato, a assunção de seus interesses ou consciência de classe garantiria a prevenção de neurose? Em suma, quais os mecanismos psíquicos que fazem com que um dado trabalhador, consciente da natureza alienada de seu trabalho, ainda assim fabrique neuroses, enquanto um outro, mergulhado na alienação social cotidiana, ainda assim tenha uma vida afetiva equilibrada e satisfatória, diante de seus ideais? Só uma sociedade totalmente desalienada seria capaz de promover a satisfação emocional afetiva dos sujeitos? Mas que sociedade é esta, concebida fora das circunstâncias reais em que é produzida pelos homens trabalhadores, seus produtores históricos? Esta sociedade é mais ou menos idealista que aquela concebida por pensadores como Freud ou outros representantes do pensamento liberal, formalista ou essencialsita? Estas questões são abordadas no trabalho, e, em minha opinião, pedem maiores esclarecimentos. Em segundo lugar, e, por fim, o caso clínico trazido como exemplo do valor do trabalho, na definição do sujeito e de sua psicopatologia, é interessante porque realça outras ligações entre Psicanálise e Marxismo que são controversas e merecem ser melhor exploradas. Concluindo a análise do problema apresentado pelo cliente, um bancário, que, entre outras coisas, queixava-se de impotência sexual diante da esposa, dizem os autores: "Eu e B, com a ajuda da supervisão, pudemos entender o processo minimamente. O tipo de trabalho no banco impede as manifestações do afeto. Por questões de personalidade, B não se envolvia nas recuperações sorrateiras já citadas acima (trata-se do que no texto é denominado "modos de reapropriação afetiva secundária, como participação em lutas sindicais; em grupos que freqüentam bares, no fim do expediente; em grupos de "fofocas" etc), ao contrário, reproduzia o binômio casatrabalho, razão e emoção, até que a demanda afetiva emocional no trabalho subiu a um nível insuportável e B, teve que expressá-la ("abaixo a gerentada"). A coação veio tão forte quanto a reação emocional, o que de nova deixa-lhe sem canal de expressão. A amante vinha suprir a lacuna: por um lado se vingava do banco "traindo" os seus colegas como fora traído, por outro, encontrava um locus afetivo onde podia se expressar sem comprometer as relações em casa, recompondo um vínculo de expressão das coisas do
trabalho. Ao surgir a oportunidade do contato semiterapêutico conosco, a necessidade da amante se desfazia, nossas conversas passavam a cumprir este papel". As perguntas que surgem, de imediato, quando se lê o texto são: que "questões de personalidade são essas, que impediram B de recorrer à "reapropriação afetiva secundária", e levaram-no a fabricar ansiedades e impotência sexual? Como explicá-las a partir das categorias trabalho e afeto? Além disso, que artefato teórico explica a passagem da "traição", que deveria ser a traição ao banco e aos colegas bancários, para a traição da esposa? Que regras de equivalência entram em jogo, permitindo que a mesma palavra ou o mesmo vivido emocional, "traição", apliquem-se ao banco e à esposa? Finalmente, por que o contato "semiterapêutico", desfez a necessidade dos encontros sexuais insatisfatórios com a amante? Como entender que o objeto ou pessoa X, a amante, possa ser substituída com proveito afetivo pelo objeto ou pessoa Y, terapeuta? Obviamente, a realidade dos fatos depende dos óculos que se usa para vê-la. Só posso entender a maneira como a resolução do caso foi explicada, supondo que o aparelho conceitual psicanalítico agiu à revelia da consciência dos autores. Será que sem a familiaridade com noções psicanalíticas como deslocamento, condensação, transferência, sexualidade psicanalítica etc., o fenômeno seria entendido e analisado da mesma forma? A naturalidade com que diz que a esposa traída substitui ou representa o banco que se desejava trair; a naturalidade com que se afirma a pronta substituição da amante pelo terapeuta, seriam possíveis num universo cultural absolutamente estranho à Psicanálise? Tenho dúvidas. Para concluir, uma última observação. Em meio a tanta repetição do mesmo, um trabalho deste tipo, pela novidade, pode parecer um convidado sem convite ou cartão de membro do clube. Neste caso, com perdão do cacoete de ofício, só poderia repetir o que cantou o músico popular: "Narciso acha feio o que não é espelho". Reserva de mercado e cadeira cativa não têm lugar no clube da cultura. Quem duvidar, leia este trabalho. Jurandir Freire Costa
INTRODUÇÃO Este livro fecha um ciclo de trabalho de dez anos. Desde 1979, quando estudamos uma indústria metalúrgica de São Paulo (1), nos interessava os vínculos entre a superestrutura econômica e o comportamento individual. Com Selligman díziamos: "É mentira que a crise ecônomica de 1929 tenha gerado suicídios, gerou algum mecanismo psicológico que por sua vez gerou o suicídio" (2). Dali apareceu a necessidade de organizar o livro Psicologia Social/ O Homem em Movimento (3), onde nos coube a parte dedicada ao estudo do trabalho. Fundamentalmente ali introduzíamos a necessidade de a Psicologia tomar como uma das categorias centrais de análise o trabalho humano. Depois disto escrevemos O que é Alienação e em seguida Corpolatria, ambos editados pela Brasiliense. O primeiro buscando precisar o conceito e o segundo buscando utilizar o arsenal recolhido no estudo do trabalho para a compreensão de um fenômeno cultural típico no Brasil. Deste primeiro grande movimento herdamos algumas certezas: a) A necessidade de reler abordagens clássicas em Psicologia. b) A impossibilidade de uma tradução total e literal de Marx para o território psi. c) A imposição de uma equipe interdisciplinar para assumir a empreita de tais estudos. Um segundo grande movimento se inicia ao eleger o tema Saúde Mental e Trabalho como locus previlegiado de atuação. Assim se iniciou, pelo DIESAT um estudo com os aeronautas (4) e depois o estudo com os bancários. O principal salto de qualidade foi a realização de um projeto encaminhado e aprovado pelo Ministério da Saúde, que nos possibilitou enfim a montagem da sonhada equipe interdisciplinar. O trabalho que ora vem a público retrata, com o máximo de fidelidade possível estes dois momentos de vida e pesquisa. O amálgama que realiza nem sempre é fiel à cronologia, vários textos construídos em vários momentos da trajetória reaparecem, sua origem anterior incorporada e reatualizada, vida e pesquisa de colegas incorporadas. O que importa ressaltar aqui é que o leitor está diante de um texto que faz as vezes de porto: momento de chegada e de partida, anunciando as prendas conquistadas e prometendo outras aventuras, Nem sempre textos com o grau de terminalidade que o autor sonhou, nem sempre a coerência que o leitor espera.
O trabalho, são muitos, aqui se tentou rastreá-lo, passear por onde ele aparece. Nem sempre foi possível: registre-se a ausência da Ergonomia, da Economia, da Antropologia, saúde-se a presença da Psicologia, da Sociologia, da Epidemiologia e da Psiquiatria. Este livro ensaia uma reflexão interdisciplinar. Tentamos uma equipe que evite se transformar em agrupamento cujo desígnio é o rateio da realidade entre os vários especialistas, implicando em uma compartimentalização que é o avesso dos seus objetivos, recusando-se a se transformar em pugilato, em arena conceitual onde todos perdem. O problema central passa a ser a manutenção de um debate franco visando intercompreensão do fenômeno, simultaneamente com uma rigorosa constituição das áreas de conhecimento postas em interconexão: fundamentalmente um exercício de combate cotidiano ao dogmatismo e um exercício também cotidiano capaz de romper as fronteiras do especialista. O produto deste nosso trabalho aqui está, que se julgue se conseguimos cumprir a tarefa. A instalação da equipe interdisciplinar se ancora em erro: superestimamos o estado de desenvolvimento científico de cada uma das áreas envolvidas no projeto. Contávamos com a perspectiva de intercruzamento da Psicologia Social, Psicologia Organizacional, Psiquiatria, Epidemiologia Psiquiátrica, Sociologia de Trabalho. Fomos descobrindo a cada passo que nenhuma destas áreas oferecia território seguro que pudesse lastrear as pesquisas sobre Saúde Mental e Trabalho, havia que inventar instrumentos, formular releituras, encetar avanços teóricos e metodológicos. O que se iniciava sob a égide de tentativa de aplicação de um método já acordado se revelou parto de uma concepção científica. Este livro é escravo dos obstáculos que o caminho ofereceu. O Trabalho vem sendo maltratado pelas ciências humanas, ausente da Psicopatologia, reduzido às suas dimensões abstratas pela Sociologia, tornado efêmero pela Psicologia, instrumentalizado pela Psicologia Organizacional. Quase que esquecemos da sua magia, do seu feitiço, da sua beleza. É que a maldição da ciência é imitar a vida e o trabalho vem sendo maltratado pela vida. Sobre o trabalho paira a inscrição de Dante: "Deixai aqui toda esperança, oh vós que entrais.'" Inscrição que, para a ciência, se transmuta em: "Porque gastar os olhos por onde reina a desesperança". Mesmo assim, quem raspar a superfície amarga que
veste o trabalho haverá de reencontrar a vida, o jeito dos homens inventarem a identidade. Eis a pretensão e o limite deste texto: re-orientar a visão para o esquecido e saber que ainda é impossível deslumbrar todo o universo que se esconde por trás do departamento de pessoal. Se o Trabalho voltar a merecer espanto, este livro se justificará. Wanderley Codo Abril/1992
PARTE I. INDIVIDUO E SOCIEDADE
CAPITULO I
EM BUSCA DA PSICOLOGIA Façamos aqui um exercício de imaginação: Tentemos explicar a nós mesmos as diferentes áreas, linhas, abordagens, em que se subdivide a Psicologia hoje. São tantas e tão distanciadas, vez por outra se inventam "novas Psicologias", que a primeira sensação é de desânimo. Existe uma Psicologia fisiológica, e aí haveríamos de nos convencer da existência de um gesto humano, uma ação, um comportamento não fisiológico, ou seja, apesar da Biologia. Só assim a criação de uma área se justifica. Estaríamos muito próximos, sem dúvida, ao Espírito que Descartes formulava, e mesmo ele foi empurrado pela coerência a localizá-lo na glândula pineal. Tal e qual ocorre com a Psicologia Social, obrigada a inventar um ser apesar das relações sociais que o conformam e que o exprimem. Talvez venha daí a paixão dos psicólogos por ratos, planárias, macacos, animais com a propriedade curiosa de não questionarem (pelo menos imediatamente) a Epistemologia e o pesquisador. É preciso fundamentar uma Psicologia imune à experiência, ao delimitar a Psicologia Experimental, ou apesar do eu, ao se inaugurar uma "self psychology". O problema está em que estas áreas não são áreas, no sentido de uma delimitação do fenômeno a ser abordado, são concepções diferentes a respeito do mesmo fenômeno e de suas determinações. Assim a Psicologia Fisiológica e a Social, por exemplo, se dividem na medida em que concebem o ser humano enquanto determinado biológica e socialmente. Em outras palavras, ao invés de um esforço interdisciplinar em torno de objeto tão complexo, o que resta da parafernália quase teórica dos psicólogos é o esgarçar do próprio objeto, um verdadeiro exercício de dissecção. Ao se entrar sucessivamente em um laboratório de Psicobiologia e numa clínica psiquiátrica tem-se a certeza de que os profissionais envolvidos estão lidando com sujeitos distintos, o homem em estudo reaparece como Frankenstein, mal costurado e com vocação para destruir seu criador.
O eixo desta dança consiste em aproximar nosso objeto de estudo ora da Biologia ora da Sociologia, não raro provocando nos psicólogos o mal estar típico de quem encontra ameaçada a própria identidade, provocando explicações do tipo "porque o que estamos fazendo deve ser considerado Psicologia". Estamos, quer gostemos ou não, na desconfortável situação de praticantes de uma ciência em busca do seu próprio objeto. É possível assumir por pressuposto que esse verdadeiro caleidoscópio ainda componha uma ciência, no sentido da busca pela compreensão de um objeto? Em outras palavras, apesar das idiossincrasias, quaisquer que sejam, é possível ainda falar em Psicologia? Se abstrairmos de cada uma destas várias abordagens as divergências com que psicólogos e psiquiatras costumam nos divertir, se olharmos não para o método mas para o objeto de estudo, a unidade se refaz em um piscar de olhos. O problema teórico é sempre o mesmo: como desenvolver uma ciência do indivíduo. A demarcação de territórios entre Biologia e Sociologia, enquanto for possível, se exerce na medida em que nossas preocupações se afastem da espécie ou do gênero, como querem os biólogos. Toda vez que nos preocupamos com as diferenças entre a aprendizagem de um sujeito em relação ao outro ou quando nos debruçamos sobre os efeitos que a ideologia exerce sobre este ou aquele indivíduo, estaremos no território da Psicologia. O desafio da Psicologia é o da construção de uma ciência do indivíduo. Mas como empreender uma ciência do indivíduo? Ciência pressupõe a descoberta de leis gerais, de regularidades; como submeter o indivíduo, único por definição, a uma compreensão que no momento mesmo em que se engendra destrói a característica fundamental que o distingue dos outros universos. Ou ainda, se um objeto se caracteriza exatamente por ser igual a si mesmo (Gianotti, 1983), como construir um objeto a partir de um ser que se distingue exatamente pela eterna diferença de si? A tentativa do Behaviorismo, por ex., não foi um projeto de uma Psicologia sem sujeito? Desenhar leis que expliquem o comportamento apesar do agente que se comporta? A Psicanálise não teve que se reportar a uma longínqua e obscura rede instintiva, torná-la dona dos homens, para se permitir estudar o Homem apesar dele mesmo? A chamada
Psicologia Humanista tem marcado sua resistência através da recusa sistemática do método científico, inventando, como em Rogers, um sujeito apesar do mundo. Quem se disponha a escrever a História da Psicologia será obrigado a reproduzir uma autêntica epopéia semelhante a um jogo de esconde-esconde, a eterna construção de um objeto de estudo que insiste em ser outro no momento em que a reflexão o detecta, e pior, se metamorfoseia pelo exercício mesmo de congelamento que a ciência precisa compor para reconhecer-se enquanto tal. Em primeira instância o indivíduo aparece como indivisível, tal e qual o ponto para a geometria, a partida antes da qual a Psicologia se esfuma, depois da qual se resolve. Entretanto a impressão se desfaz ao primeiro toque, como a esfinge pelo avesso, que, quando decifrada, se devora. Nos limites estreitos da Etimologia se revela a contradição: "indivíduo = (lógica) Sujeito lógico que admite predicados, não podendo porém ele mesmo ser predicado de nenhum outro" (Ferreira, 1975). Como pensar em Psicologia, uma ciência do que seria um "sujeito puro", essência última, impredicável. Agora é possível entender a eterna confusão metodológica que habita a introdução dos compêndios de Psicologia desde Wundt; ou a recusa de Pavlov em pensar a Psicologia, construtor por ironia de uma teoria a qual até hoje a Psicologia paga seu justo tributo. A dança que os psicólogos são obrigados a realizar, entre a Biologia e a Sociologia, entre o comportamento e a consciência, determinantes externos ou internos da conduta, é uma discussão que por si não tem significado exceto como reflexo das dificuldades epistemológicas com que nos habituamos a conviver. É que a tentativa de encontrar regularidades por entre as diferenças nos tem empurrado ao ancoramento, ora na Sociologia, ora na Biologia, invariavelmente com o mesmo resultado: a Psicologia promove o culto do que deseja explicar ou implica em uma tentativa de transformar o sujeito em objeto, o indivíduo em igual a seu outro, agora destruindo o que prometia compreender. Seja qualquer a vertente, um absurdo lógico. Em outras palavras a Psicologia parece ter se tornado vítima da maldição de Descartes. É dele a classificação das "coisas" em cogitans e resistans. Condenando o cogito à incognoscibilidade, o sujeito do conhecimento não se poderia tornar em objeto, pois, por conhecer, não poderia ser conhecido.
Parece que a única forma de captar o indivíduo é buscar o movimento da individualização. Ou seja, há que abandonar a ilusão de um indivíduo posto apesar da história, algo como um a priori da Humanidade. Ao contrário, preferimos partir do processo de individualização: "O ser é o devir" (Heráclito); "A verdade não está no início, nem na chegada, está na trajetória" (Guimarães Rosa), acreditando que, apenas no movimento, na ciranda mágica que a História insiste em desenhar, só aí o indivíduo poderá se revelar às nossas consciências. Antes ainda de enfrentar o problema, deve ser útil uma ligeira vista d'olhos em algumas das contradições que apenas apontamos acima. Exclusivamente com preocupações paradigmáticas, vejamos como o indivíduo aparece, ou desaparece, na Psicanálise. Na única citação, em toda a sua obra, aos trabalhos de Marx, Freud comentava: "Não se compreende em geral como é possível prescindir dos fatores psicológicos enquanto se trata de reações de seres humanos vivos(...) que não podem fazer outra coisa senão por em jogo seus impulsos instintivos de auto-preservação, sua agressividade, sua necessidade de amor e sua tendência a conquistar prazer e a evitar o desprazer(...) Se alguém pudesse indicar com detalhe como estes distintos fatores, a disposição instintiva, geralmente humana, suas variantes raciais, e suas transformações culturais, inibem ou fomentam sob as condições da ordenação social, da atividade profissional e as possibilidades aquisitivas: se alguém pudesse fazê-lo assim" (Freud, 1975). Aqui parece ficar particularmente claro o que o conjunto da obra psicanalítica busca desdobrar. Psicologia é sinônimo do jogo de impulsos instintuais, um animal pulsando no homem apesar dele. "Podemos comparar o Eu, em sua relação com o Id, ao cavaleiro que dirige e freia a força de sua cavalgadura, superior à sua (...) mas assim como o cavaleiro se vê obrigado, vez por outra, a deixar-se conduzir para onde seu cavalo quer, também o eu se mostra forçado em algumas ocasiões a transformar em ação a vontade do Id, como se fosse a sua própria" (Freud, 1975). O que traduzimos por Id (ello) na obra de Freud corresponde no original a "Es"; um pronome na terceira pessoa, equivalente ao inglês "It". Um outro não humano, o
"Homo freudianus", vive perseguindo ou sendo perseguido por um animal em si, fonte a um só tempo de suas mazelas e sua realização realização possível, síntese mágica do inferno e/ou do paraíso. Só é possível compreender o indivíduo se buscarmos em determinações biológicas, estranhas a ele, seu modo de ser. Por questões de método expositivo, expositivo, abandonamos até agora a questão da dinâmica tal e qual se revela na Psicanálise e tomamos como referência apenas seus pres pressu supo post stos os te teór óric icos os.. Trat Tratam amos os de perc perceb eber er que que a nece necess ssid idad adee de enco encont ntra rar r regularidades, fazer uma ciência do indivíduo, obriga Freud a se retirar do seu território para pode poderr exp explic licá-lo á-lo,, predica predicarr o imp impredi redicáve cável.l. Com esses esses pressup pressuposto ostoss teó teóric ricos os a Psicanálise Psicanálise termina por destruir o objeto que elegeu. Posto como uma espécie espécie a serviço de seus próprios instintos, o "Homo psicanaliticus" não se arvora a nada mais do que a eterna reapresentação das idiossincrasias daqueles. Cada gesto, cada palavra dita ou não, só pode ser interpretada como uma manifestação de um animal que não está ali, um instinto que me determina porque eu não o (me) conheço. Talvez por isso Freud só pudesse enxergar com extremo pessimismo pessimismo qualquer tentativa de libertar libertar os homens de suas neuroses, exatamente quando as mesmas são reconhecidas tendo origem na estrutura social (ver Mal Estar na Civilização, in Freud, 1975). Agora Agora pode podemos mos retornar retornar à dinâ dinâmic micaa psi psicana canalít lítica: ica: as des descobe cobertas rtas de Freud têm se mostrado, quando nos referimos ao modo de atuação dos seres humanos, bastan bas tante te sóli sólidas das.. No ent entan anto, to, curio curiosa samen mente, te, o mod modoo de inte interv rvenç enção ão ana analílítitico co te tem m seguido rumo contrário ao desenvolvimento desenvolvimento da teoria psicanalítica. psicanalítica. Senão vejamos: vejamos: qual foi a principal discussão introduzida por Jung? A origem do Id. Ao introduzir a questão do arquétipo não desloca a determinação do comportamento de uma obscura biologicidade biologicidade para um território senão controlável, pelo menos predizível, na medida em que desloca do eixo da história natural para a história dos homens? E quanto a Wilhelm Reich? Partindo das descobertas básicas da Psicanálise, Reich se contrapôs exatamente nas conseqüên conseqüências cias sociais sociais da apl aplicaç icação ão daqu daquela ela teo teoria ria e, por consegui conseguinte, nte, propõe propõe sua reform reformul ulaç ação, ão, prin princi cipal palmen mente te qua quanto nto ao carát caráter er inev inevitá itáve vell da repre repress ssão ão en enqua quanto nto promotora promotora do desenvolvimento desenvolvimento humano. Por ele haveria um trabalho a ser realizado que implicaria em uma revolução, destruir a sociedade opressiva (o capitalismo) e construir em seu seu luga lugarr um umaa soci socied edad adee que que seri seriaa incl inclus usiv ivee sexu sexual alme ment ntee livr livre. e. Pala Palavr vras as semelhantes poderiam ser ditas sobre a obra de Marcuse e toda a Escola de Frankfurt.
Mais Ma is mo moder dernam nament entee ou outr tros os freu freudom domarx arxis istas tas enc encar arreg regara aram-s m-see da me mesm smaa ta taref refa: a: recupe recuperar rar o mo modu duss ope operan randi di da propo propost staa psic psicana analít lític ica, a, ap apesa esarr de des descar carta tarr seus seus fu funda ndamen mento toss te teóri óricos cos.. Nã Nãoo é prec precis isoo porém porém se report reportar ar a grande grandess te tent ntati ativa vass de reformulação para observarmos este fenômeno: mesmo os psicanalistas ortodoxos têm seguido uma trilha bastante curiosa, todos se utilizam do complexo de Édipo embora nenhum deles acredite no mito de refeição totêmica, ou fica sequer na inelutabilidade destaa esp dest específ ecífica ica dinâ dinâmic micaa fam famili iliar. ar. Portanto Portanto há uma cul cultura tura psi psicana canalít lítica ica informa informada da fundamenta fundamentalmente lmente pelo exercício cotidiano da interpretação, que segue relendo as obras do velho mestre mestre e relativizando relativizando os seus pressupostos pressupostos teóricos, ouso afirmar, sempre no sentido sent ido do aban abandono, dono, embo embora ra inút inútil, il, do det determi erminis nismo mo biol biológic ógicoo est estrit ritoo senso senso que é flagran flagrante te em qual qualquer quer das formul formulaçõe açõess freudia freudianas. nas. Se é pos possív sível el um corpo corpo teórico teórico conservar conservar sua operacionalidade operacionalidade descartando os principais principais postulados, é coisa que deve tirar o sono dos psicanalistas e não o nosso. A nós cabe destacar que nunca faltou a Freud, como soe acontecer com um grande cientista, respeito respeito pelo que ocorre frente aos seus olhos. Talvez daí alguns adeptos mais afoitos tenham concluído que a Psicanálise é "dialética". Ocorre que Freud se esforçou para registrar e intervir no movimento (real) que os seus clientes podiam mostrar e este movimento só poderia ser apreendido integralmente com uma metodologia dialética, o que absolutamente significa que Freud a tenhaa utiliz tenh utilizado. ado. Con Conser serva-s va-see com comoo modo de interv intervençã ençãoo as descober descobertas tas relati relativas vas à dinâmica da personalidade que devemos a Psicanálise, por que a mesma é filha de um olho particularmente particularmente arguto. Descartam-se Descartam-se paulatinamente os pressupostos pressupostos teóricos, teóricos, principalmente principalmente quando os mesmos incorrem na tentativa de sitiar sitiar a determinação determinação última do indi indiví víduo duo no te terr rreno eno bio-d bio-diá iáfan fanoo que Freud Freud inven inventou tou.. Do pon ponto to de vist vistaa teó teóri rico co cont continu inuamo amoss órfão órfãos, s, obriga obrigados dos ao exer exercí cíci cioo de um umaa ciên ciênci ciaa sem sem obj objeto eto.. Em sua sua autobiografia, autobiografia, editada em 1935, Freud mesmo reconhece reconhece que ocupou seus últimos anos com "problemas culturais... embora a explicação última resida na Psicanálise". Estes estu estudos dos,, ainda ainda que orig origina inados dos na Psic Psicaná análilise se e que se afa afast stam am mu muititoo del dela, a, ta talv lvez ez tenham despertado mais simpatia do público que a própria Psicanálise. Lucidamente Freud reconhece em sua própria produção teórica um afastamento de sua rota original. Não é curioso o fato de que, até para seu criador, a Psicanálise, quando se radicaliza, perde seu local teórico original? O nom nomee da de deter termi mina nação ção biol biológi ógica ca do ser ser hu human manoo para para Freud Freud foi a sexualidade, sexualidade, mesmo que, pelas mesmas razões apontadas acima, o sentido literal tenha
dado lugar a uma energia libidinal mais genérica. genérica. Até o final a Psicanálise Psicanálise se marca pelo veredito de Breuer que tanto impressionou seu jovem discípulo: "Pennis eretus repitatur". Tran Transpi spira ra de tod todaa a cultu cultura ra psic psicana analílítitica ca a idéia idéia de um umaa sexual sexualida idade de imanente, no sentido de uma existência apesar da sociabilidade, ou pelo menos, para além da sociabilidade. Seu estatuto biológico é sempre ressaltado em apoio à tese da imanência da sexualidade: por ser do homem, a sexualidade explica o homem. Seria necessariamente assim? Que seja uma analogia: comer é uma atividade biológica intrinsecamente ligada aos seres humanos, por isso ganha imanência? Como explicar por exemplo o jejum político, a abstinência, o regime estético, a obesidade? Ou ainda como equiparar o office boy que engole rapidamente um sanduíche a um jantar de comemoração de aniversário? A voracidade de um desnutrido com a voracidade de bem alimentados em banquete de luxo? Onde encontrar um nexo heurístico capaz de enredar toda esta mirí miríade ade de signi signifificad cados os qu quee o come comerr assu assume? me? Em lugar lugar nen nenhum hum.. Por Por ser ser at atri ribut butoo biológico de um ser social o comer está condenado à realização através da estrutura social onde se incrustra. Se falamos de uma sociedade onde impera a divisão de clas classe ses, s, ou outro tross prato pratos, s, a pres presenç ençaa ou não de serv serviç içai ais, s, os ta talh lhere eress ut utililiz izado ados, s, a quantidade ou qualidade dos alimentos, enfim o próprio comer se faz imantar de toda a sociabilidade, apresentando-se como síntese mágica de toda a existência humana. Um jantar a dois, a luz de velas, regado a vinho, denuncia meu nível de renda e a relação afetiva que tenho ou aspiro com minha acompanhante. Por sua relação ontológica com a humanidade o comer aparece com um caráter sempre sincrético da sociabilidade, tão indissolúvel que é possível classificar os seres humanos por seus hábitos à mesa. No entanto, para desespero dos positivistas, sempre correlacionado com a sociabilidade, em nenhu nen hum m mo mome mento nto po poder deria ia expl explic icá-l á-la. a. Nã Nãoo de deter termi mina na as clas classes ses soci sociais ais,, em embo bora ra indissoluvelmente ligada a elas. Tantas vezes a aparência aparece que corre o risco de ser confundida com a essência. Não estaria ocorrendo o mesmo com a sexualidade?
A História do Bicho Dentro do Homem Recordemos um pouco a História. O surgimento da Psicanálise coincide com a revoluç revolução ão ind indust ustrial rial,, particu particular larment mentee com o surgim surgiment entoo das fáb fábric ricas as mai maiss ou
menos como as conhecemos hoje, transformadoras de trabalho em mercadoria. O sistema se faz portador da contradição entre a liberdade (no consumo) e a expropriação (na produção). De fato o Capitalismo inventa o consumidor livre, depende dele, a partir do trabalhador dissociado do próprio trabalho, do que também depende. "O primado da alienação" (Marx & Engels, s/d). O trabalho é portador da subjetividade humana apesar do homem. A partir da possibilidade de transcendência podemos nos reconhecer pois o exercício da subjetividade humana depende da objetivação de si no trabalho (Codo, 1987 b). Ao apresentar o trabalho ao trabalhador como um elemento estranho, o ser humano fica impedido de exercer a sua transcendência e a possibilidade de hominização fica sitiada na reprodução da força de trabalho: comer, dormir, fornicar, atividades que cohabitamos com os animais. Por isso, "no Capitalismo o homem se sente um animal quando exerce atividades humanas e humano quando exerce atividades animais" e, ato contínuo, "passa a perseguir ou ser perseguido por sua animalidade, fonte de todo o prazer, modo de ressubjetivação possível, e a fugir de todo o trabalho, fonte de toda a tortura, ladrão de si mesmo" (Codo, 1987 b). De um ponto de vista mais concreto (con-crescere), as sociedades précapitalistas não apresentavam uma delimitação nítida entre a produção e a reprodução da força de trabalho. Se em muitas ocasiões, como no Feudalismo, a família, locus de reprodução, era também uma unidade produtiva, no Capitalismo a grande indústria vem tornar autônomas as duas estruturas: a família e o trabalho passam a ter como único ponto tangencial o salário, circunscrevendo o exercício da hominidade à reprodução e desumanizando o trabalho. Eis o duplo homem que se deita no divã de Freud: em busca da hominização pelo animal em si, animalizado no que tem de humano. A teoria só poderia enunciar a sexualidade como motor e motivo da vida, a sociabilidade inelutavelmente como repressão do ser. O animal é bom, a sociedade é que não permite a ele exercer esta bondade; ou, o que é mesmo, o animal é destrutivo, a sociedade o contém. De qualquer maneira dois homens dentro do homem, em luta de vida e morte, o eu consigo mesmo.
A cisão entre o homem do homem e o animal do homem, razão e paixão, amor e trabalho, é um produto histórico, ou seja, depende do desenvolvimento das relações de produção. Apenas no Capitalismo se transforma em conflito com os sinais invertidos: O animal como desígnio, o homem exorcizado. O mundo invertido pelo capital reproduz-se na teoria psicanalítica também de cabeça para baixo, o que é episódico na história da humanidade surge em Freud como transcendental (o trabalho como tortura, a sexualidade como reduto da felicidade). A busca da felicidade, ao produzir o mundo com as próprias mãos (trabalho), em Freud aparece como patologia. Tecnicamente falando, buscar o animal do homem é rigorosamente uma "sublimação" em uma sociedade que impede o reconhecimento de si pelo trabalho. Na Psicanálise, o trabalho que é Eros em sua legítima expressão, por ora submetido à tortura, aparece como sintoma de morte, maldição eterna, embora ainda promotora da hominidade. Até agora a que chegamos? É a história e não a genitália o berço das nossas fantasias. Se hoje a sexualidade aparece ao cientista atento como mentora da subjetividade humana é porque este mesmo momento histórico roubou do homem seu vir a ser, sua alteridade, deixando-o a mercê do próprio umbigo.
A Subjetividade Sitiada É uma característica do Capitalismo a ruptura entre trabalho e afetividade, que se concretiza em uma divisão de papéis entre o homem e a mulher, onde o homem aparece como portador da "razão capitalista", isto é, o fetiche da mercadoria, e a mulher como representante da afetividade do casal, talvez por isso tenha sido ela o principal sujeito ao divã. Assim se estabelece na mulher o gosto estético apurado, uma sensibilidade maior, uma tendência a privilegiar a intuição, a sexualidade estrito senso como meio de expressão afetiva. Enquanto no homem uma tendência à objetividade, a moda com características instrumentais, uma tendência à dedução e análise, a afetividade como meio para atingir a sexualidade, uma ênfase genital ao lidar com sexo. No entanto o próprio desenvolvimento do sistema demanda um alastramento das relações de produção por todas as necessidades humanas: o que ocorreu durante a história foi a subjetividade mesma, a esfera da reprodução da força de
trabalho, ser transformada em mercadoria. Assim a pornografia, que há vinte anos atrás cumpria uma função quase didática na iniciação sexual do adolescente (Da Matta), rapidamente assume a perspectiva de um próspero mercado multinacional, que se sofistica tecnicamente a largos passos, ou seja, apropria-se objetivamente (transforma em mercadoria) o próprio exercício da subjetividade. Outros exemplos seriam encontrados na proliferação das telenovelas, reapresentando competentemente os dramas
afetivos
cotidianos,
autêntica
indústria
de
sonhos,
hoje
também
multinacionalizada. Paralelamente se observa a entrada da mulher no mercado de trabalho, por um lado passo importante para a igualdade entre homens e mulheres, por outro submetendo a mulher às relações capitalistas de produção, desprovidas da possibilidade de subjetivação do trabalho, inaugurando assim uma crise da reprodução da força de trabalho. Na medida em que a reprodução vai sendo assumida pelo Estado ou pela iniciativa privada, a mulher deixa de comparecer como portadora da afetividade nas relações familiares, seu único representante até a pouco. Simplificamente pode-se dizer que a família atual se encontra órfã da afetividade. Se a alienação do trabalho sitiou toda a expressão afetiva na família, ao transformar a família pelo ingresso da mulher na produção, desmonta-se a clássica divisão de papéis e esboroa-se a possibilidade do afeto permanecer na família. É lá que deve estar, mas o lá não mais é ali. Por último, mas não menos importante, o quadro atual é de crise no Capitalismo, ou seja o trabalho morto ganha supremacia sobre o trabalho vivo, vide o papel dos juros, dívida externa e inflação na economia dos paises latino-americanos. Com isso cresce assustadoramente os trabalhadores sem produto, administradores de trabalho morto; burocratas, vendedores, boa parte do setor terciário da economia. A característica principal destes trabalhos é que o único valor de uso que produzem é o próprio valor de troca, o capital. Assim é o trabalho do bancário, por exemplo, que produz, em última instância, capital, cujo valor social se circunscreve a si mesmo, na própria geração de mais capital. Do ponto de vista psicológico, se a sociabilidade do homem é possibilitada pela materialização de si no produto, a ausência do produto empurra ao homem de encontro a si mesmo, ou melhor à impossibilidade de reconhecimento entre o si mesmo e o mundo. Arquiteta-se uma sociedade narcísica como bem analisou Lasch (1983). Outra vez o prazer animal reaparece como reduto
possível da existência, paralela e complementarmente à impossibilidade de estabelecer vínculos permanentes, durando para além do encanto imediatamente sexual. Evidentemente os aspectos positivos deste quadro são a eliminação de estereótipos. Homens e mulheres tendem a se tornarem iguais na medida em que se igualam suas condições de trabalho. Mas há um custo: a orfandade do afeto. Os resultados mais aparentes deste quadro se revelam em uma sociedade com profunda crise familiar, explosão de sexualidade como um fim em si mesmo, crescimento avassalador da pornografia, culto ao narcisismo, dificuldade cada vez maior de organização política. E como não poderia deixar de ser, a Psicanálise (ao contrário do que queria Freud) se transformando em uma "visão de mundo". A mensagem (pouco oculta) parece ser: a felicidade reside em encontrar o animal do homem, a sexualidade é sinônimo de subjetividade, a afetividade se torna sinônimo de prazer libidinal. Foi Freud mesmo que nos ensinou o conceito de regressão: impedido de reencontrar-se com o outro pela alienação do trabalho, resta ao homem modos mais primitivos de recuperação da alteridade. Como uma criança que retorna à chupeta quando nasce o irmão mais novo, recorremos ao sexo (o outro mais imediato à disposição quando a subjetividade embutida no trabalho nos escapa das mãos). Nem a criança recupera a atenção dos pais pela chupeta, mera portadora simbólica do afeto, muito menos recuperamos a hominidade pelo exercício obsessivo do animal em nós, menos ainda pela teoria do animal no homem, uma Psicanálise estrito senso que Freud mesmo abandonou ao ver amadurecidas suas formulações. Foi o trabalho que impediu o encontro do outro, mas é ali onde ele se encontra que poderá haver recuperação do outro, da alteridade que sou Eu. Mas a Psicanálise não foi, durante a história, a única tentativa de uma Psicologia Radical. Ela divide o cetro com o Behaviorismo, seu arquiinimigo nos repetitivos Congressos de Psicologia. Evidentemente enquanto Psicologia Radical, o comportamentalismo só poderia exorcizar de sua análise o próprio objeto de estudo. Não se trata novamente uma Psicologia sem sujeito? Não está posto fora do indivíduo sua própria manifestação e determinação? Não é no expurgo de qualquer teleologia que Skinner funda sua ciência? Se em Freud o homem aparece quase como um pretexto para o exercício do instinto, em Skinner aparece como mera rearticulação das idiossincrasias de um meio que atua além e apesar do sujeito. Coerentemente Skinner
se obri obriga ga a elim elimin inar ar do seu seu univ univer erso so te teór óric icoo conc concei eito toss como como o de libe liberd rdad adee ou consciência. Outra vez o indivíduo se esfuma, aparece como um mero momento de articulação biunívoca entre estímulos e respostas, sequer pode se apresentar como elemento sintetizador, sintetizador, ressignifica ressignificando ndo o meio. A menos que este exercício exercício se ancore em outras associações arbitrárias deslocadas no tempo, determinado estímulo comparece destacado hoje pelo condicionamento, condicionamento, ou seja mantendo-se estranho estranho a determinação determinação do indi indivíd víduo, uo, me mero ro repr repres esent entant antee de asso associ ciaç ações ões ant anter erio iores res.. A crít crític icaa inte interna rna des dessa sa dessubjetivação dessubjetivação de uma ciência do sujeito sujeito está feita por Gianotti, Gianotti, é ele quem nos lembra que "existe mais na Psicologia do que a subjetividade, existe o trabalho dos homens, existe a História, em suma, ver em cada parcela do real uma coisa a mão, cuja presença não se esgota na neutralidade neutralidade do estím estímulo, ulo, simples membro membro indiferente de um conjunto, mas vibra no seu relacionamento com o outro, na medida em que aparece, enquanto momentos diferentes em posições diversas, no interior de múltiplas ações. Não é tão somente um objeto provido de sentido, simplesmente por que existe no cruzamento de referências noemáticas de que uma consciência soberana tem; é antes de tudo uma coisa que se da na qualidade terminal de um sistema produtivo, que, se na verdade funciona no seu dorso, precisa comparecer nela determinando-a formalmente como um de seus momentos. Só assim anima a conduta, pois sua face desvela a presença de outras condutas passadas ou futuras. futuras. A coisa é o sintoma de múlti múltiplas plas ações". (Gianotti, (Gianotti, 1974). Existiria Existiria ainda a chamada terceira força, a Psicologia Psicologia Existencialista, Existencialista, a ser analisada caso esta corrente não fosse apenas uma insistência insistência em reafirmar e reafirmar e reafirmar a existência do indivíduo, por vezes assumindo até a conspiração ingênua de consciên consciência cia revolta revoltada da com a cruelda crueldade de da ciê ciência ncia.. No deba debate te com Skinner, Skinner, Rog Rogers ers afirma que "se a ciência tiver razão e puder controlar o comportamento do ser humano, eu me recuso a acreditar nisso". nisso". Ante a contradição contradição de uma ciência do indivíduo, Rogers prefere, como na religião, exercer o culto do que desejaria explicar. O indi indiví vídu duoo é a no noss ssaa to tota talilida dade de con onccreta reta,, sínt síntes esee de mú múlltipl tiplas as determinações. determinações. As determinações determinações mais próximas próximas são ambientais, familiares e pessoais, pessoais, que constituem seu entorno e sua biografia. Nessas determinações estão processos soci sociai aiss ma mais is am ampl plos os que nel nelas as exis existe tem m me media diatitizad zados os,, enq enquan uanto to pa part rtic icul ular ariz izaç ação, ão, singularização singularização de processos processos mais amplos. Mas apenas na singularização singularização tais processos
podem pode m ser compreendi compreendidos, dos, já que o sin singula gulariz rizar-s ar-se, e, o ind indivi ividual dualizar izar-se -se é a própria própria totalidade a ser apreendida. O homem não é um ser social, é um ser que constrói sua individualidade em sociedade. O todo só é a partir de suas partes. Ao ensaiar a busca do indivíduo, sem respeitar sua inserção como todoparte, a Psicologia promove o culto ou a eliminação do seu próprio objeto. Mesmo quando a teoria admite a sociabilidade como ponto de partida, a questão não fica resol resolvi vida da,, isto isto por qu quee o indiv indivídu íduoo não é me mero ro produt produtoo soci social al ou me mero ro ser ser soci social al.. Indivíduo e sociedade são a negação um do outro, embora o indivíduo tenha uma essê essênc ncia ia ob objet jetiv ivaa soci social al e a soci socieda edade de te tenha nha um umaa essên essênci ciaa subje subjetitiva va e hu huma mana. na. Indivíduo Indivíduo e sociedade se equivalem equivalem e se distinguem, concomitantement concomitantemente, e, numa relação de contradição ou dupla negação.
O Que é Indivíduo? A palavra indivíduo é uma tradução latina do atomon grego, de Demócrito, Demócrito, o que não pode ser dividido. Já Boécio definia indivíduo como multiplamente aplicável ao que não pode ser subdividido, de modo nenhum, como a Unidade ou o Espírito; ao que, por sua solidez, não pode ser dividido, como o aço; e ao que, tendo predicação própria, não se identifica com outras semelhantes. Qua uand ndo, o, no sen ensso comu comum, m, há refe referê rênc ncia ia ao indi indivvíduo íduo,, tam ambé bém m tran transpa sparec recee esta esta idé idéia ia de uni unici cidad dade. e. Qu Quand andoo algué alguém m nos pe pede de "resp "respei eite te a minha minha individualidade" individualidade",, parece dizer "repare, sou diferente de você e quero ser visto como tal". O risco de "perder" a individualidade individualidade é o perigo de se confundir com o outro, eliminar as diferenças que me distanciam dele. Pelo étimo ou pelo cotidiano eis uma primeira aproximação ao problema, ser um indivíduo é ser (exclusivamente) igual a si mesmo, diferente do outro. Perguntar se certo homem é um indivíduo demanda responder se posso diferenciá-lo de todos os outros homens que conheço. Ora, a definição de indivíduo é portanto negativa: um não outro, outro, a se caracte caracteriz rizar ar por cascata cascata de exclusõ exclusões: es: sou um homem como você, você, mas tenho cabelos castanhos; sou castanho como você, mas sou professor; sou professor como você, mas ensino Psicologia Social, sou como você, mas ... per omnia. Das infinitas exclusões e apenas delas arquiteta-se o indivíduo.
No entanto o processo mesmo de exclusão pressupõe identidades, como o exem exempl ploo aci acima acab acabaa reve revela land ndo. o. A me mera ra exc exclusã lusão, o, se radi radica cal, l, implic plicaa na impredicabilidade. Estaríamos perante a impossibilidade lógica de análise, quiçá de mera refe referê rênc ncia ia.. A exis existê tênc ncia ia me mesm smaa do indi indiví vídu duoo dema demand ndaa agor agoraa a cons constr truç ução ão de identidades, é perante os homens que Pedro se identifica enquanto Pedro, é perante os professores que recorto a diferença entre eles e eu, outra vez indefinidamente, cada exclusão referida impondo outra identidade. Não viemos da constatação de que a referência ao indivíduo se marca pela diferença? Agora somos obrigados a definí-lo pela igualdade. Como evitar o loop? Somos homens, iguais ente si, por isso diferentes? Somos individualidades, porque identificados entre si? Portanto é licito perguntar: um igual ao outro, definido como um não outro? É que a existência mesma do indivíduo pressupõe o outro, mas não só, press pressupõ upõee a minha minha exis existên tênci ciaa ape apesar sar do out outro. ro. Co Como mo já vimo vimos, s, a del delim imititaç ação ão do indivíduo é, em primeira instância negativa, ou não outro, por isso necessariamente um não eu. A negaç negação ão primár primária ia do out outro ro que compõe a ind indivi ividual dualidade idade demand demandaa a min minha ha negação, ou seja, o indivíduo só crava a sua existência a partir de um processo de dupla negação, de si e do outro. Se apresenta agora como um não-não outro, ou o que é o mesmo um duplo espelhamento espelhamento de si no outro e do outro em si. Assim: sou professor professor na medida da existência de alunos que só o são na medida da existência do professor; minha existência existência enquanto tal, parte e nega a existência existência dos meus alunos, parte porque nega e vice-versa, ou seja a minha existência se crava no centro da dupla afirmação de mim pelo outro e vice-versa, a dupla negação minha e do outro. Em câmara lenta, para que eu seja um indivíduo tenho que me diferenciar diferenciar de você, o faço na medida em que além de cabelos castanhos também sou professor, esta segunda identidade me nega como diferente de outros. Identifiquei-me com vários outros, por isso me diferencio dos alunos, quando me apresento como "Professor de Psicolo Psicologia gia Social Social", ", expu expulso lso da minha minha ind indivi ividual dualidad idadee aquel aqueles es igua iguais is que até aqui a compunham através de uma outra negação de minhas diferenças, e, o que é o mesmo, me igualando a outros tantos como eu. Da maneira mais sintética, indivíduo e sociedade são a negação um do outro embora no indivíduo apareça uma essência objetiva social e na sociedade uma
essência subjetiva e humana. Em outras palavras indivíduo e sociedade se equivalem e se distinguem concomitantemente, numa relação de contradição ou dupla negação. Como queria Horkheimmer "a vida humana é, essencialmente, convivência", mas ao contrário de suas deduções, isto não "põe em dúvida o conceito do indivíduo como unidade social fundamental"; ao contrário dizíamos, repousa na sociedade o único modo de existência possível da individualidade. Por sua vez não há sociedade possível se não repousar no duplo, ou melhor, no múltiplo espelhamento de indivíduos. Avancemos mais um pouco. Até aqui o quadro montado se assemelha a uma infinita série de círculos concêntricos, e o indivíduo representado pelo menor deles; sou ser humano, entre eles masculino, entre eles adulto, entre eles professor, de Psicologia Social, na Universidade X, na Faculdade Y, Departamento Z, para o sexto semestre, etc ... etc. Pena que a vida seja mais complicada. Além de tudo isto, gosto de música, como milhares de outros não professores; sou casado, como tantos homens e mulheres. Destrói-se portanto o efeito concêntrico. A única forma de compreensão do indivíduo é capturar o movimento de dupla negação/afirmação em que consiste a sociabilidade. O primeiro quesito necessário para a conformação e a compreensão do indivíduo é, portanto, as condições objetivas da existência do homem além dele mesmo. Na verdade construir sua objetividade através da impressão de si fora de si, de início, arrancando a sobrevivência das árvores, depois produzindo árvores idênticas às suas necessidades, e por essa via encontrar no outro o reflexo de si. A construção do indivíduo é a história do trabalho. Inicialmente o indivíduo aparece como uma repositário dos vários outros. A dissolução da aparência das reposições se dá através do trabalho, o trabalho é portanto maneira do indivíduo existir, objetivar-se e, ao objetivar-se, se subjetivar. Evidentemente não se tentaria reduzir a Psicologia ao estudo do trabalho humano, mas, sem dúvida, seria igualmente impossível realizar Psicologia na ausência de sua análise.
CAPITULO II
UM VELHO HANDICAP Se fosse possível sintetizar a imagem do ser humano que a Psicologia e a Psiquiatria vem desenhando em todos esses anos, teríamos
um quadro bastante
semelhante ao dos modernos personagens de telenovela: o "Homo psicologicus" é um animal que não trabalha, sempre envolvido em intermináveis conflitos familiares, às voltas com paixões ou à procura das mesmas, onde pais e filhos se divertem em intertransformar-se. Quando a vida insiste em introduzir o trabalho como problema para o ser humano, o psicólogo ou psiquiatra insistem em minimizá-lo, transformam o patrão num ardil, numa metáfora que significa o pai. Em resumo, o saber psicológico se mantém pudicamente afastado das relações de produção, ou seja, do homem concreto, e tem se exilado na família como único instrumento de análise social do homem. Por outro lado, articula-se o que já foi chamado de Psicologia Industrial Organizacional e que insiste em inventar um ser humano desprovido de afetos, assexuado; ou, como na Teoria das Relações Humanas, em instrumentalizar o afeto como forma de aumentar a produtividade. A terminologia se inverte; ao invés de conflitos existenciais o profissional lida com "motivação", "seleção", "treinamento". Aqui todo esforço consiste em transformar o indivíduo em instrumento de trabalho. O mais correto seria dizer transformar o trabalho em força de trabalho. E quando este indivíduo se mostra agressivo, é por estar desadaptado à estrutura da produção. O máximo de esforço que se observa é o seu encaminhamento para um psicólogo clínico ou para um psiquiatra, situado estrategicamente fora da fábrica, onde o nosso herói volta a recordar a família e a sexualidade. O mais curioso é que mesmo em uma Psicologia que já se chamou de Psicologia do Trabalho, a categoria trabalho está ausente, como se sua tarefa fosse colocar a ciência a serviço do Trabalho, este que se apresenta sem que se saiba o que significa e/ou poderia significar para o ser humano. Há psicólogos que se ocupam da vida para além dos portões da fábrica sem nunca se perguntarem o que ocorre do outro lado, e há psicólogos, sitiados fábrica adentro, impotentes para olhar o mundo depois do fim da jornada de trabalho. Teoricamente esta esquizofrenia se traduz em duas concepções distintas do homem: fora da fábrica a busca é marcada pelo conteúdo emocional - o homem é
interpretado a partir de sua irracionalidade, cada vez mais fortalecendo a investigação do inconsciente, ao mesmo tempo em que se afirma que o mesmo é incognoscível. Em Jung (1983), por exemplo, a formulação é didática: "o inconsciente é o objeto da Psicologia e nunca poderá ser revelado". Isso transforma nossa ciência na eterna procura por um cego, em quarto escuro, de um gato preto que talvez não esteja lá. Aqui a sexualidade surge com toda sua pujança, determina o comportamento humano, deve ser objeto de uma eterna investigação, assumindo, em última instância, caráter mágico de elixir alquímico. Ou ainda, verdadeira pedra filosofal detentora de todos os nossos segredos. Tudo se passa como se através da sexualidade pudesse se revelar o mapa do paraíso ou do inferno. A Psicologia que se constrói fora do trabalho recorta no ser humano o seu caráter irracional, não se cansa de revelar um animal dentro do homem, ávido por manifestar-se e impedido pela sociabilidade. A outra Psicologia se faz acompanhar de um outro ser humano. Dentro do trabalho a teoria busca "motivação”, “liderança", "fadiga", "quociente de inteligência", "análise de desempenho", "treinamento", "habilidade". Toda estrutura teórica se funda na racionalidade humana, o modelo de ser humano bem adaptado se assemelha ao de um eunuco: ao cruzar o Departamento de Pessoal, o homem perde a família, o afeto, motores da Psicologia externa, e ressurge como força de trabalho, o que importa agora é a eficiência, a produtividade. Caso este instrumento de trabalho insistir em carregar para seu posto as idiossincrasias afetivas, será aconselhado a procurar psicoterapia. No consultório, por sua vez, o profissional lhe ensina pacientemente que as alusões que faz ao seu trabalho não passam de deslocamentos, projeções, provavelmente oriundas de traumas infantis. Dentro do trabalho o homem que aparece ao terapeuta é recortado nos seus aspectos racionais tão esquizofrenicamente quanto foi o anterior; de um lado razão, de outro emoção, de um lado ser produtivo, do outro animal insatisfeito. Infelizmente a síndrome telenovelística não tem raízes apenas nas teorizações dos psicólogos, que não têm feito outra coisa senão reproduzir especularmente as condições sociais em que trabalham. A cisão Vida x Trabalho, e seu correlato imediato, a ruptura Homem do Homem (racional) x Animal no Homem (irracional), tem suas raízes na História, berço eterno de nossas fantasias. Se quisermos entender a dissincronia entre Psicologia (Ciência do Homem) e trabalho (a marca que torna o homem parecido consigo mesmo), teremos de
rever a inserção do homem na produção, e a partir daí compreender qual ser humano deitou-se e se deita no divã. O surgimento do operariado enquanto classe e a hegemonia política do capital só puderam se desenvolver através do seguinte processo: para que o trabalho pudesse ser comprado, era necessário que o trabalhador fosse livre, era preciso destruir o Feudalismo, ou seja, a posse do indivíduo, e transformá-la em coisa totalmente distinta, a posse do trabalho de fato. Liberdade, Igualdade, Fraternidade. Na análise de Sweezy (1986): no Feudalismo havia os que eram possuídos; no Capitalismo, os que não possuem. Tomar o trabalho e pagar por ele pressupõe um homem livre e consciente de suas ações. Antes, a classe exploradora possuía o sujeito que explorava como propriedade, se acaso o senhor feudal perdesse parte de sua terra, iria com ela seus servos também, os homens eram os meios de produção feudal, os trabalhadores estavam presos à terra e ao domínio dos nobres. Ao mesmo tempo, de posse dos meios de produção, garantiam sua sobrevivência, independentemente da troca, que ali assumia um caráter secundário. No Capitalismo as coisas são diferentes, é preciso libertar os trabalhadores da terra, ou seja, despojá-los para que se tornem duplamente dependentes do capital, de um lado livres para vender sua força de trabalho, de outro subordinados ao comércio de produtos necessários à sobrevivência. Para o desenvolvimento do comércio passa a ser essencial a liberdade de consumo. O homem do Capitalismo passou a ter duas vidas, se apresenta como cidadão livre e, ao mesmo tempo, tem seu trabalho expropriado. Eis a cisão tal e qual aparece na Psicologia. Não há mais o que explicar: controlar o outro passa a ser um imposição histórica. Por outro lado uma outra Psicologia ensaia a reapropriação do homem e parece afirmar: "não somos donos de nós, é preciso que nos encontremos!". Nesta corrente se encontra a Psicanálise: o homem é controlado por forças que não conhece nem controla, é um estranho perante si mesmo. Se o sistema capitalista retirou o homem do centro de si pela apropriação do trabalho, a Psicologia toma para si a reinvenção da perda ao se deparar com um homem que não se conhece.
As relações sociais expropriam do homem o direito sobre o próprio destino, a decorrência teórica que se impõe é que o Behaviorismo e a Psicologia Industrial (ciência da ação do homem) coloquem toda sua ênfase no meio ambiente, mais do que isso, na necessidade de racionalizar o meio social. Paralelamente, a Psicanálise se impõe a busca de um animal dentro do homem, os instintos, o prazer, o inconsciente. Como vimos, o animal passa a ser sinônimo da liberdade humana. O homem produz sua própria existência na medida em que trabalha, arquitetando a estrutura social com suas próprias mãos, a mesma estrutura que lhe servirá de habitat; o homem é o meio ambiente do homem. Ocorre que a evolução da forças produtivas, principalmente com o surgimento do capital, operou uma inversão. Trabalho, sinônimo de hominização, portanto liberdade, se transformou em estranhamento, perda de si, portanto tortura. Com a internacionalização da economia o comércio exige que a animalidade do homem (o que cohabitamos com os nossos antecedentes biológicos, nosso ser natural) permaneça livre: comer, beber, dormir, fornicar, apresentados como símbolos de liberdade. A Psicologia parida nessa e por essa estrutura social não tinha escapatória. Posta diante desse ser humano, põe-se compreendê-lo como aparece e com isso eleva a reificação ao estatuto de ciência. Aqui o homem, já de início, surge cindido em dois; sua sociabilidade e sua biologicidade antagonizadas e, para Freud, em luta de vida ou morte. O que nos é humano, o trabalho, assume o estatuto de um demônio a ser exorcizado. O que é animal se reapresenta como sinônimo de humanidade. Vem daí o fato de a Psicologia até agora ter apresentado a relação saúde/doença mental como um esdrúxulo balé que tem como pano de fundo o ócio. A esta altura nossa tarefa neste texto impõe um digressão: necessário se faz dirigir a atenção para a questão da doença mental, ou, de maneira mais restrita, o que antecede a classificação de um "set" de comportamentos como característico de uma "doença"? Que seja o exemplo do Narcisismo, tal como Freud o definiu. Em sua época o fenômeno era considerado como uma patologia, passível de intervenção terapêutica. Por quê?
Apesar das crises cíclicas, o Capitalismo estava em expansão, ou seja, promovendo o desenvolvimento das forças produtivas. Em tais condições é fácil compreender a preocupação social que subjaz à classificação do Narcisismo como conduta a ser erradicada; era preciso deslocar o conjunto do esforço social para a produção. Hoje, não só o problema desapareceu da órbita das preocupações da Psicopatologia como começam a surgir linhas psicoterapêuticas que tendem a se transformar em uma "Pedagogia Narcísica", onde o critério de saúde mental é a autoadmiração. Por quê? Hoje o Capitalismo se encontra marcado por queda de produção (recessão), o que implica na valorização do trabalho morto (capital financeiro, juros etc) em contraposição ao trabalho vivo (produção propriamente dita, investimentos industriais). Nesta circunstância é necessário a promoção do desemprego e o investimento de capital em áreas improdutivas, como a guerra e a pornografia, por exemplo. Ora, com isto a moral burguesa tende a gravitar de uma valorização ao trabalho e á renúncia de si, como na época de Freud, para uma supervalorização de certa ociosidade que assume o simpático eufemismo de "prazer". De novo os reflexos na Psicopatologia são evidentes, Narcisismo deixa de ser reconhecido com doença mental e se transforma em critério e/ou via para a saúde mental. Que conclusões extrair deste sucinto exemplo? 1) A distinção saúde/doença mental é histórica, ou seja, não resiste às mudanças sociais e econômicas de um período a outro. 2) O motivo determinante da dança que a nosologia é obrigada a realizar é sempre econômico. Isto não significa uma subordinação da superestrutura à infraestrutura, ou qualquer relação simples linear, mas apenas que as causas últimas do fenômeno podem e devem ser encontrada nas transformações infraestruturais. 3) Que uma determinada nosologia adquire, por esta ótica, a propriedade de revelar pelo avesso a estrutura do momento histórico que lhe serviu de leito. Assim, a inclusão ou não do Narcisismo como patologia em uma determinada sociedade nos revela a divisão de trabalho e/ou de papéis entre os sexos.
4) Por último, e mais importante: a classificação psicopatológica depende de um projeto político. Não se prende, e nem poderia, à mera tradução técnica de uma sintomatologia atual. Ao contrário, se arrasta necessariamente pelo devir social representado hoje. Ao aconselhar a contemplação do eu como forma de diminuição do desconforto apresentado por determinado cliente, um terapeuta se torna (quer queira ou não) portador de um vir-a-ser embutido na praxis social contemporânea. Dito isto, é possível a explicitação dos critérios que permitem identificar qual "set" de comportamentos e/ou representações constitui hoje "doença mental", e porque. Qualquer estudioso sabe que tem obrigação de partir de alguns pressupostos sem o qual o seu trabalho se torna impossível. Um biólogo que queira estudar uma espécie animal, um tamanduá bandeira, por exemplo, deve partir do que a espécie é, ou seja, do que ela se diferencia de um não-tamanduá bandeira. Caso esta resposta não seja possível, há que partir do que o animal faz, como sobrevive. Mais que isto: os biólogos sabem que uma resposta leva a outra. Destes parâmetros a Psicologia (também) não escapa. O que diferencia os homens dos outros animais? O trabalho. Como sobrevivem? Pelo trabalho. Qualquer que seja a resposta a tais questões, impossível será o afastamento das condições concretas em que este homem vive. No entanto a Psicologia tem se esforçado por se construir enquanto ciência na ausência da categoria trabalho, o que equivale a tentar compreender o homem apesar da sua vida. Mas nem tudo é estranhamento no universo "psi". Quais as contribuições que podemos recolher da intervenção de psicólogos ou psiquiatras que, nestes anos, tenham procurado entender o homem em nexo com o trabalho? Tomemos o conceito de stress. Oriundo da Bioquímica e da Fisiologia, refere-se a um conjunto de reações do organismo em situação de ataque/defesa contra qualquer fator que venha perturbar seu equilíbrio homeostático (Houssay, 1969). Isto pressupõe ter o organismo a possibilidade de manter um status quo, pois senão um mínimo de estabilidade para reconhecimento de identidade não ocorreria, mas também a de se re-equilibrar em novo nível, pois senão o crescimento não ocorreria. Além do
stress ter duplo aspecto (conservador/ transformador), os indicadores usáveis para medí-lo são as quantidades sorológicas de determinadas substâncias, as catecolaminas, liberadas para a corrente sanguínea por ocasião de um desequilíbrio mas que "desconhecem" a natureza prazerosa ou dolorosa do estímulo que
originou o
desequilíbrio. Por exemplo, o volume de adrenalina liberado para o sangue pode ser o mesmo, quer o indivíduo se emocione intensamente por presenciar um assassinato ou por ganhar sozinho na Loteria Esportiva. Assim, a mensuração deste indicador, sem a devida compreensão contextual e sem a dimensão do significado, perde qualquer valor explicativo. Muita responsabilidade ou a falta dela, carência de participação em decisões ou excesso de decisões a tomar, "role conflict", "role ambiguity", relacionamento com superior hierárquico ou com colegas, carga mental quantitativa ou qualitativa, falta de clareza dos objetivos, pressão do relacionamento ou falta de suporte social adequado etc etc etc, AFINAL, TUDO PROVOCA STRESS? Na falta de compreensão sobre o trabalho, os pesquisadores da área saem à cata indiscriminada de fenômenos e encontram sempre pólos de conflito que na verdade não sabem identificar. É que, em última instância, o que está em jogo é a apropriação homens de seu próprio destino. O caráter do trabalho precisa ser recuperado plenamente, até para revalorizar o conceito de stress, desde a origem empírica e genérica, hoje pouco discriminatória, camufladora, espécie de placebo, de panacéia, inimigo inventado na ignorância do inimigo real. Sob a rubrica de Saúde Mental o quadro se apresenta mais complexo: A forma mais óbvia de estudar as interrelações entre Saúde Mental e Trabalho seria um exame do já vasto material recolhido pela Psicopatologia e a partir daí estudar as interrelações entre os termos da equação. Tal caminho se revela imediatamente impossível. Por exemplo, que se tome para exame uma anamnese, que dados é possível recolher ali? Podemos saber quais foram os problemas de gravidez que a mãe do futuro cliente teve antes que este filho nascesse, como foi sua curiosidade pelos órgãos genitais na primeira infância, qual a atitude dos pais perante a masturbação, se os pais desejavam ou não a criança etc etc etc. Todas estas informações são evidentemente importantes, mas, sobre o trabalho? As únicas perguntas que se faz são se o indivíduo
trabalha, qual sua profissão e mais duas ou três generalidades da mesma ordem. O clínico se contenta com a informação de que o cliente é comerciário, por exemplo, o que literalmente não revela nada sobre o seu cotidiano profissional. Vários estudos de caso são publicados, onde a única informação sobre o fantástico universo que se revela ante alguém que tenha se preocupado em estudar o trabalho, aparece para o clínico mais ou menos assim: situação econômica mediana. Não é necessário detalhar mais este quadro, o trabalho não tem a mínima importância do ponto de vista do universo clínico, e, como vimos, não poderia ser de outra forma, se é na família que psicólogos e psiquiatras aprenderam a ler todo o significado da existência humana, se é através do desenvolvimento sexual que o homem se revela perante si mesmo, é de se esperar que o modo de sobrevivência concreta do ser que se apresenta aos nossos serviços técnicos seja submetido à mesma higienização das telenovelas, isto é, ausente da construção de sua própria existência. O mesmo quadro aparece nas próprias concepções etiológicas. Se testarmos um determinado grupo profissional quanto ao aparecimento de determinadas características psicopatológicas, haverá sempre quem pergunte: será que não se tratava de pessoas já "doentes" e que por isso "escolheram" este trabalho? Apesar da desatenção, vez por outra se impõe a vida: −
Em 1917, quando Freud publicava suas Noções Introdutórias de Psicanálise, o primeiro número do Mental Hygiene Journal alertava para distúrbios emocionais e de personalidade desenvolvidos pelos desempregados, por conta do desemprego.
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Em 1919, a Engineering Foundation of New York, solicitou investigação sobre distúrbios emocionais do trabalho e,
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em 1933, no Brasil, com base na existência de uma suposta "psiconeurose bancária", a jornada de trabalho dos bancários foi reduzida para 6 horas/dia. Ocorre que a área Saúde Mental e Trabalho não tem conseguido se
desvencilhar do impasse que apontamos aqui. Por estar inserida, e não poderia ser de outra forma, no arcabouço teórico das ciências que lhe dão origem, reaparecem os velhos fantasmas. Classicamente os estudos sobre etiologia da doença mental se encontram ligados a uma metodologia que privilegia, quando não exclusivista, casos
individu indi viduais ais,, para não diz dizer er ind indivi ividual dualiza izantes ntes.. Em toda a perspec perspectiv tivaa psi psicana canalít lítica ica,, a inserção do indivíduo como trabalhador prima pela ausência sistemática. Do outro lado, estudos epidemiológicos preocupados com as condições e/ou organização do trabalho, realizam aproximações quase sociológicas do problema, onde desaparece a dinâmica individual da Psicopatologia. Aqui tem lugar as condições de trabalho cotidianas, mas a inserção delas no modo de produção capitalista terminam por se esfumarem. Enfim, e infelizmente, as pesquisas sobre Saúde Mental e Trabalho, não podem se dar ao luxo de se instalarem como um ramo aplicado da Psicologia ou da Psiquiatria. Elas obrigam a por em questão o conjunto do arcabouço teórico construído até agora para explicar o processo saúde/doença mental, mais ainda, nos obrigam a reorientar toda a concepção de ser humano. A conclusão é singela. A vida dos homens sem dúvida não se reduz ao trabalho, mas também não pode ser compreendida na sua ausência. Onde quer que estejam as causas do sofrimento dos homens, estarão em suas próprias vidas.
CAPITULO III
O HOMEM NÃO É UM SER SOCIAL Um dos riscos do ofício de qualquer cientista é tornar-se vítima do que deu certo. Como as palavras têm vocação universalizante, universalizante, algumas boas palavras tendem a nos ent entusia usiasma smarr e ato ato-con -contínu tínuoo serem serem carregad carregadas as por mares mares est estranh ranhos, os, a produzi produzir r conclusõ conclusões es aind aindaa mai maiss est estranha ranhas. s. Assim Assim foi com Freud, Freud, por exe exemplo mplo,, ao est estende ender r corr corret etame amente nte o conc concei eito to de sexua sexualilidad dade, e, ver-s ver-se-i e-iaa sem sem dúv dúvida ida surp surpree reend ndido ido com com psicanalistas psicanalistas atuais, convictos convictos de que raspando um pouquinho cada gesto do homem se encontrará encontrará o pênis do pai. Assim Assim é com a teoria marxista, marxista, tantas vezes esposada ou abandonada por pe perm rmititir ir a comp compree reensã nsãoo da soci sociab abililida idade, de, am amiúd iúdee sucu sucumbe mbe ant antee o que de me melho lhor r conquistou, daí tantos neomarxistas se dedicarem a inventar o mito da sociabilidade natural natu ral,, acredit acreditando ando hone honestam stamente ente que assim assim est estari ariam am com combate batendo ndo o idea idealis lismo, mo, a metafísica do homem natural. Os textos se iniciam com a constatação de que o "o home homem m é um ser ser soci social al"" para para te term rmin inar ar depo depois is de árdu árduas as refl reflex exõe õess conc conclu luin indo do galh galhar arda dame ment ntee que que "o home homem m é um ser ser soci social al". ". Pouc Poucaa dist distân ânci ciaa sepa separa ra esta esta compreensão de sociabilidade da conotação do homem como ser gregário, tanto é assim que se coloca em pauta a questão da "comunidade", "comunidade", do "grupo", tudo se passa como se, da dada da um umaa fili filiaç ação ão do ind ndiv ivíd íduo uo a este este ou aq aque uele le grup grupam amen ento to o prob proble lema ma da determinação do comportamento estivesse resolvido a priori. Parece oportuno rever esta questão em Marx, mas antes uma advertência. A pior maneira de escrever é aquela que permanece obsessivamente presa a citações, entrecortando texto próprio e alheio. Se a escolha recai sobre esta maneira é porque tantas vezes se escreve sobre o que disseram disseram que alguém disse que Marx teria teria dito que se torna imperativo ir direto à fonte. Como Marx formula formula a questão da sociabilidade do homem, ou, para Marx, o homem é um ser social? O único lugar em que esta afirmação aparece em Marx é no Terceiro Manuscrito (Marx, 1985 a), onde o problema colocado é o de uma crítica da economia
polít pol ític ica, a, pa parti rticu cular larmen mente te ao conc conceit eitoo de prop proprie riedad dadee priv privada ada em Rica Ricardo rdo e nos Fisiocratas. "Tem "Temos os vist vistoo como como,, dado dado o pres pressu supo post stoo da supe supera raçã çãoo posi posititiva va da propriedade privada, o homem produz ao homem: como o objeto, que é a realização imediata da sua individualidade, é ao mesmo tempo sua própria existência para outro homem, a existência deste e a existência deste para ele. Mas, igualmente, tanto material de trabalho como o homem enquanto sujeito são, ao mesmo tempo, resultado e ponto de partida do movimento ... O caráter social é, pois, o caráter geral de todo o movimento; assi assim m como como é a soci socieda edade de me mesm smaa que produz produz o hom homem em enq enquan uanto to hom homem em,, assi assim m também é produzida por ele". Algo a destacar nas primeiras linhas. Trata-se de uma reflexão que parte do 'pressuposto da superação positiva da propriedade privada', isto é, o comunismo. A partir daí o 'caráter social', a sociabilidade mesma, só crava sua existência a partir da interrelação entre os homens e, como se vê adiante, do homem para consigo mesmo. Não se trata de uma relação de anterioridade conformadora conformadora da existência existência humana. Além diss disso, o, já se colo coloca ca aqui aqui a coex coexis istê tênc ncia ia dial dialét étic icaa de duas duas to tota talilida dade des, s, home homem m e socieda sociedade, de, suj sujeito eito e mov movime imento nto social social,, interm intermedia ediadas das pelo trabalh trabalho, o, ação hum humana ana concreta. Se as relações de produção se situam aquém da 'superação positiva da propriedade privada', varia, como se verá a seguir, a interrelação entre indivíduos e sociedade. "A ativida atividade de e o praze prazerr são são ta tamb mbém ém sociai sociais, s, tan tanto to em seu mo modo do de existência como em seu conteúdo; atividade social e prazer social. A essência humana da natureza não existe mais que para o homem social, pois só assim existe para ele como vínculo com o homem, como existência sua para o outro e existência do outro para ele, como elemento vital da realidade humana; só existe como fundamento de sua própria existência. existência. Só então se converte para ele sua existência existência humana, a natureza em homem. A sociedade é pois, a plena unidade essencial do homem com a natureza, a verdadeira ressurreição da natureza, o naturalismo realizado do homem e o realizado humanismo da natureza". Não só é necessário considerar a sociedade como unidade essencial do homem com a natureza, mas também o avesso, o homem só pode comparecer na análise anál ise com comoo unid unidade ade essenc essencial, ial, sín síntes tesee represe representat ntativa iva da socieda sociedade. de. A din dinâmi âmica ca
homem-sociedade crava as existências de um e do outro no que Gianotti (1983) viria a chamar de 'um duplo espelhamento' onde cada qual se perfaz pelo outro. "A atividade social e o prazer social não existem, nem muito menos, na forma única de uma atividade imediatamente comunitária e de um prazer imediatamente comunitário, se bem que a atividade comunitária e o prazer comunitário, ou seja a atividade e o prazer que se exteriorizam e se afirmam imediatamente em real sociedade com outros homens, se realizarão onde se queira que aquela expressão imediata da sociabilidade se funde na essência de seu ser e se adeque a sua natureza". A atividade humana como "atividade imediatamente comunitária" não aparece como a forma dominante de manifestação da sociabilidade. Veremos adiante que apenas na comunidade primitiva, segundo Marx, é possível imaginar este ser imediatamente gregário, social estrito senso, exatamente porque as condições da produção ainda não permitiram ao homem o alcance da hominidade. "Porém inclusive quando eu atuo cientificamente etc, em uma atividade que eu mesmo não posso levar ao término em comunidade imediata com outros, também sou social, porque atuo enquanto homem. Não só o material de minha atividade (como o idioma, subordinado ao que opera o pensador) me é dado como produto social, senão que minha própria existência é atividade social, porque o que eu faço o faço para a sociedade e com consciência de ser um ente social". Minha consciência geral é só a forma teórica daquilo cuja forma viva é a comunidade real, é o ser social, tanto que hoje em dia consciência real é uma abstração da vida real e como tal se lhe enfrenta. Portanto a atividade de minha consciência geral como tal, é minha existência teórica como ser social. Esta frase, pinçada do contexto, pode sofrer leitura reducionista, qualquer coisa
semelhante
a
"se
compreendermos
como
funciona
a
sociedade,
compreenderemos o comportamento dos homens", ou ainda o indivíduo nada é do que um reflexo da sociedade". Vejamos como Marx a declina. "Deve-se evitar antes de tudo o fazer (..) da 'sociedade' uma abstração frente ao indivíduo. O indivíduo é o ser social, sua exteriorização vital (ainda que não apareça na forma imediata de uma exteriorização vital comunitária, cumprida em união com outros), é assim uma exteriorização e afirmação da vida social. A vida individual e a
vida genérica do homem não são distintas, por mais que, necessariamente, o modo de existência da vida individual seja um modo mais particular ou mais geral da vida genérica, ou seja a vida genérica uma vida individual mais particular ou geral"."... O homem assim, por mais que seja um indivíduo particular (e justamente é sua particularidade a que faz dele um indivíduo e um ser individual real) é na mesma medida, a totalidade, a totalidade ideal, a existência subjetiva da sociedade pensada e sentida para si, do mesmo modo que também na realidade existe como instituição e prazer da existência social e como uma totalidade de exteriorização vital humana". Não se afirma aqui "o homem é um ser social', mas sim, 'o indivíduo é o ser social", coisa muito distinta, como se vê, na primeira afirmação o primeiro termo (homem) aparece em uma relação de inclusão com o segundo (ser social), tudo se passa como se o "o homem" fosse um particular incluso em um universal, a sociedade. Nega-se aqui a universalidade do homem ou, o que é o mesmo, submete-se sua universalidade à sociabilidade. Marx nunca faria isto. Assim como não se deve "fazer uma abstração da sociedade perante o indivíduo, também não é possível o contrário, ou seja abstrair o indivíduo frente à sociedade, muito menos no capitalismo, onde "as coisas chegaram a tal ponto que o homem já se relaciona apenas consigo mesmo" (Marx, 1985 a). O indivíduo aparece como uma totalidade, que se realiza ao mesmo tempo que se exterioriza por outra totalidade, a sociedade. O homem aparece aqui como um todo-parte, em si e se realizando pela sua outra face ao mesmo tempo. Assim a vida genérica (social) e a vida particular aparecem em tensão mutuamente realizadora, nunca em relação de subsunção. Não só Marx nunca trabalhou com a "idéia" de que o indivíduo seria categorialmente submetido às forças sociais, como também a criticou em Feuerbach..."A teoria materialista de que os homens são produto das circunstâncias e da educação... esquece que são os homens, precisamente, os que fazem mudar as circunstâncias e que o próprio educador precisa ser educado"(Marx & Engels, s/d) O homem não aparece, portanto, como um "ser social" mas como um ser que constrói sua individualidade em sociedade. Como se verá a seguir é apenas no
marco do Capitalismo que a individualidade pode ser pensada. Não se realiza e menos ainda pode ser compreendida fora da evolução das relações de produção. Ainda no terreno do Terceiro Manuscrito, posta a distinção do homem genérico (a sociedade à qual a moderna Psicologia Social quer reduzir o homem) e o homem concreto, o indivíduo, a um só tempo síntese e sintetizado da e pela sociedade. "Na indústria material costumeira... temos perante nós, sob a forma de objetos sensíveis ou sob a forma de alienação, as forças essenciais objetivas do homem. Uma Psicologia para a qual permaneça fechado este livro, isto é, justamente a parte mais atual e acessível da História, não pode torna-se uma ciência efetiva, provida de conteúdo e real. O que se pode pensar de uma ciência que orgulhosamente faz abstração desta grande parte do trabalho humano e não se sente incompleta, enquanto a tão propagada riqueza do atuar humano não lhe diz outra coisa que não seja o que se pode, talvez, dizer em uma só palavra: necessidade, vulgar necessidade?" É um recado direto, inequívoco, aos psicólogos. Marx não fazia uma Psicologia, mas estava atento a ela e a suas necessidades. "Pode-se referir a consciência, a religião e a tudo o que se quiser como distinção entre os homens e os animais; porém esta distinção só começa a existir quando os homens iniciam a produção dos seus meios de vida, passo em frente que é conseqüência de sua organização corporal. Ao produzir os seus meios de existência, os homens produzem a sua própria vida material". É tentador acrescentar sociabilidade à lista de referências. Quando o problema posto é a busca do traço distintivo do homem, o que permite ao ser humano tornar-se humano, o que emerge é a produção da própria existência. Trabalho, em síntese, dupla transformação de si e do mundo (ou do outro), que caminha em direção a engendrar o homem, este ser de necessidades e imaginação, capaz de construir suas condições e existência, portanto sua sociabilidade. "A forma como os homens produzem esses meios depende em primeiro lugar da natureza, isto é dos meios de existência já elaborados e que lhes é necessário reproduzir..." Depende da natureza, mas não se subordina a ela. Marx aponta que a natureza adquire o estatuto de anterioridade necessária, mas o modo de
desenvolvimento do homem é capaz de conquistar autonomia em relação aos seus vínculos naturais. Assim, é preciso "não considerar esse modo de produção deste único ponto de vista, isto é, enquanto mera reprodução da existência física dos indivíduos. Pelo contrário, já constitui um modo determinado de atividade de tais indivíduos, uma forma determinada de manifestar a sua vida, um modo de vida determinado. A forma como os indivíduos manifestam a sua vida reflete exatamente aquilo que são. O que são coincide portanto com a sua produção, isto é, tanto com aquilo que produzem como com a forma como produzem. Aquilo que os indivíduos são depende portanto das condições materiais de sua produção". A produção dos meios de existência segue marcada com o traço distintivo entre os homens e os animais, em referência ao indivíduo, não mais a uma 'sociedade' compreendida como sinônimo de 'gregariedade', como acontece com as formigas, os macacos ou as abelhas. A construção da individualidade pelas vias da produção, eis o processo de hominização. A seguir distinguem-se premissas históricas a percorrer no processo de hominização. "A primeira premissa de toda existência humana e também, portanto, de toda história, é que os homens se encontrem para fazer história, em condições de poder viver. Pois bem, para viver faz falta antes tudo comida, bebida, moradia e roupa. O primeiro fato histórico é, portanto, a produção dos meios indispensáveis para a satisfação destas necessidades, ou seja, a produção material mesma, e não cabe dúvida de que este é um fato histórico, uma condição fundamental de toda a história, que como hoje ou a mil anos se necessita cumprir todos os dias e todas as horas, simplesmente para assegurar a vida dos homens." "O segundo é que a satisfação desta primeira necessidade, a ação de satisfazê-la e a aquisição de instrumentos necessários para isto conduz a novas necessidades, e esta criação de necessidades novas constitui o primeiro fato histórico." Aqui se explica melhor o caráter da relação com a natureza: posta como anterioridade, dona geradora de outras determinações fundamentais.
"O terceiro elemento que aqui intervém desde o princípio no desenvolvimento histórico é o fato de que os homens que renovam diariamente sua própria vida começam ao mesmo tempo a criar a outros homens, a procriar: é a relação entre marido e mulher, entre pais e filhos, a família. Esta família, que no principio constitui a única relação social, mais tarde quando as necessidades, ao se multiplicarem, criam novas relações sociais, e, por sua vez, ao aumentar o censo humano, brotam novas necessidades, passa a ser uma relação secundária.” A sociabilidade mesma aparece como produto da produção e/ou das necessidades que ela engendra. "A produção da vida, tanto da própria no trabalho, como da alheia na procriação, se manifesta imediatamente como uma dupla relação: por um lado, como uma relação natural, e por outro, como uma relação social - social no sentido que por esta palavra se entenda a cooperação de diversos indivíduos, quaisquer que sejam suas condições, de qualquer modo e para qualquer fim. De onde se depreende que um determinado modo de produção ou uma determinada fase industrial leva sempre aparelhado um determinado modo de cooperação ou um determinado patamar social, modo de cooperação que é por sua vez uma força produtiva, soma das forças produtivas acessíveis ao homem, o que condiciona o estado social. A história da humanidade se elabora, portanto deve ser estudada, sempre em conexão com a história da indústria e do comércio". Eis a delimitação mais clara do que Marx compreendia como social, "a cooperação de diversos indivíduos" na produção material da própria existência. Trata-se de indivíduos postos em relação uns com os outros, que se percebem de alguma maneira (veremos como) como tais. Por sua vez esta cooperação não é nada mais nada menos do que o estágio de desenvolvimento das forças produtivas. "Somente agora, depois de haver considerado já quatro momentos, quatro aspectos das relações originais históricas, nos damos conta que o homem tem também consciência. Mas tampouco esta é desde o princípio uma consciência pura. O espírito já se encontra prenhe de matéria, que aqui se manifesta sob a forma de camadas de ar em movimento, de sons, em uma palavra, sob a forma de linguagem. A linguagem é tão velha como a consciência: a linguagem é a consciência prática, a consciência real, que existe também para os outros homens e que, portanto, começa a existir também para
mim mesmo; a linguagem nasce, como a consciência da necessidade, como um produto da relação com os outros homens. Onde existe uma atitude, ela existe para mim, pois o animal não tem atitudes com relação a nada, ou no geral, podemos mesmo dizer que tenha atitude alguma. Para o animal, suas relações com os outros não existem como tais. A consciência, portanto, é já de antemão um produto social, e o seguirá sendo enquanto seres humanos". Eis um conceito caro à Psicologia Social: atitude. Etimologicamente estamos diante de uma 'representação', utilizada de início para se referir a atores em cena (Martin-Baró, 1983). Este significado percorre todas as principais formulações sobre o conceito. Em Allport também. Ora, representação pressupõe a minha existência, a do outro, a do outro em mim e a minha no outro; isto é, interdependência e cooperação. Outra vez, em busca da delimitação da especificidade humana, somos obrigados a recorrer ao jogo de duplo espelhamento que atravessa a sociabilidade. Até agora nos confrontamos, basicamente com o Terceiro Manuscrito. Analisar a Ideologia Alemã permitirá compreender a propriedade como um processo. No texto original faltam quatro páginas, provavelmente comidas pelos ratos, o que não prejudica a compreensão geral: o trabalho já está posto como modo de hominização, trata-se de ver como evolui o homem. "Se manifesta aqui, portanto, a diferença entre os instrumentos de produção naturais e os criados pela civilização. O campo e a água, por exemplo, podem ser considerados como instrumentos naturais de produção. No primeiro caso, quando se trata de instrumentos naturais de produção, os indivíduos se vêm subordinados a natureza; no segundo caso, a um produto do seu trabalho. Por isto, no primeiro caso, a propriedade (territorial) aparece também como um poder direto e surgido da natureza, e, no segundo caso, como poder do trabalho, especialmente do trabalho acumulado, do capital. O primeiro caso pressupõe que os indivíduos apareçam agrupados por qualquer vínculo, seja da família, da tribo, da terra etc; no segundo caso, ao contrário, supõe-se que sejam independentes um dos outros e relacionados somente por meio do intercâmbio. No primeiro caso, o intercâmbio é fundamentalmente um intercâmbio entre os homens e a natureza, aonde se troca o trabalho dos primeiros pelos produtos da última: no segundo caso trata-se antes de tudo de troca entre os homens".
A evolução do homem, para Marx, vai se dar através do desenvolvimento da produção, leia-se, o controle cada vez maior da natureza, pela destruição do caráter meramente gregário. Sob o capital encontramos indivíduos que "se supõem independentemente uns em relação aos outros e relacionados apenas através do intercâmbio". Não seria exagero marcar a hominidade, ou seja, reconhecer como seu traço distintivo a individualidade construída historicamente pelo trabalho. Assume-se como tarefa agora como possível a reconstituição da história do indivíduo a partir da produção, consumo e troca. Partindo da crítica do truísmo "o homem é um ser social", encontramos em Marx uma formulação radicalmente distinta; o eixo não está na mera redução pela abstração do homem à sua sociabilidade, ao contrário, a tarefa é exatamente a de compreender, também pela abstração, o desenvolvimento da individualidade interpenetrado pela sociabilidade. Por isso Marx se obriga a insistir que a única forma de compreensão do indivíduo é capturar o movimento de dupla negação/afirmação em que consiste a sociabilidade. O primeiro quesito necessário para a conformação, portanto a compreensão do indivíduo, só poderia ser portanto as condições da existência do homem além dele mesmo, uma marca de si no mundo, a construção de
sua
subjetividade através da impressão de si fora de si. O homem é um ser apesar de si, um ser transcendente. A todos nós é possível pensar o homem genérico, como são e como deveriam ser: "brasileiro gosta mesmo é de futebol", "homem que é homem não chora", "mulher que preze não deve...". Cada gesto ou palavra é sempre inserida em uma miríade de significados, reportando-se sempre aos vários eus convivendo dentro do eu. Os gestos cravam significados apesar da presença do sujeito e além da sua existência. Na feira, a presença do consumidor já está lá antes mesmo dele sair de casa, e permanece lá quando retorna, por ter adquirido alguma coisa e deixado lá um representante financeiro de si, o dinheiro. Dizer um poema, por exemplo, faz de mim o representante de incontáveis outros, pela voz do declamador os outros são impostos e depois que ele sai fica um ritmo, uma idéia, um jeito de articular sentidos. Só agora é possível falar em atitude.
O homem se diferencia dos animais por sua transcendência, e, o que neste contexto é fundamental, marca sua individualidade exatamente pelo exercício da transcendência. É a partir da possibilidade de expressão objetiva da subjetividade que alguém se diferencia do outro. Vem da Antropologia a constatação de que a nossa sobrevivência depende do desenvolvimento (simultâneo, parece) da linguagem, dos instrumentos de trabalho e da cooperação. Aqui não nos importa reconstruir a História estrita da hominização, mesmo porque é tarefa que a Arqueologia vem amargando há anos e anos, fóssil sobre fóssil. Importa deslindar as implicações dessa tríade no processo de individualização (modo do indivíduo torna-se ele mesmo). Que seja a cooperação, o ser gregário que marca nossa existência desde os primórdios; é condição necessária para o homem, mas sem dúvida insuficiente. Aqui estaríamos tal e qual as formigas, abelhas ou babuínos, que sucumbem sem os seus pares, recortam seu vir-a-ser a partir de uma "comunidade" e nem por isso se aproximam da hominidade. A cooperação humana advém do processo de divisão do trabalho, ela é sua especificidade, neste sentido tornase ocioso discutir a cooperação em si. Originalmente o desenvolvimento da linguagem se identifica com o dos instrumentos de trabalho, modo de intervenção no outro, por isso do outro em mim, conformando o homem à imagem e semelhança de seus pares. Ainda hoje, apesar ou por causa de seu desenvolvimento, valem para a linguagem as mesmas reflexões que serão feitas sobre o instrumento de trabalho. Evidentemente não se poderia reduzir a linguagem a esta função, mas não se pode, por certo, ignorá-la. Vejamos a questão dos instrumentos de trabalho. Aqui estamos a priori no território da hominidade, nenhum animal o utiliza. Que seja um machado por exemplo. De início a mera aplicação do poder do braço parte e se explica pela mão que o engedra. Nenhuma ruptura entre o ser e o gesto. Mas, por isso mesmo o machado congela o gesto, implica em uma existência da mão além dela mesma, a mão que abate um animal, que alimenta um homem, agora repousa na ausência do criador. Ocorre que a existência mesma do instrumento é recorrente, pressupõe a ação não realizada, o projeto da ação, ou seja, o gesto do homem posto diante de si na sua ausência, em outras palavras o instrumento é produto e produtor da transcendência. A articulação específica desde movimento é um problema que os arqueólogos devem resolver. No
espaço deste capítulo basta constatar que o grau de desenvolvimento das relações de produção implica em um nível de transcendência possível, já na fase a que nos reportamos, ainda o território estrito da caça e coleta, não haverá modo de reconhecimento de si que se adiante aos parceiros da mesma horda, o indivíduo aqui "pertence a horda como a abelha pertence a colméia". Sou a minha gente e vice-versa. Se um membro é injuriado, toda a horda deve vingar-se. Ocorre que a existência mesma do instrumento é recorrente. Pressupõe a ação não realizada, o projeto da ação. O instrumento é produto e produtor da transcendência. O próximo passo é o da despersonalização estrito senso do instrumento. Ele passa a pertencer não ao indivíduo que o fabricou mas à coletividade que se beneficiar dele, o que se dá pela sofisticação técnica que impõe uma divisão do trabalho. Agora a dialética entre o homem e o seu outro fora de si ganha uma dimensão que engloba a coletividade a que pertence. Um recém nascido encontra posto diante de si um universo composto pela ação alheia, toda a vida da comunidade congelada em cada instrumento e remetendo ao novo componente da tribo o desígnio de representante sincrético de todo o passado e todo o futuro. O homem é uma miríade composta e reposta infinitamente por todos os seus pares. A esta altura deve estar claro que o grau de desenvolvimento das relações de produção define a individualidade possível. O primeiro quesito necessário para a conformação é portanto a compreensão do indivíduo e a construção da subjetividade humana. A história do indivíduo é a história do trabalho, ou ainda, a história contemporânea do homem se expressa na realização da sociabilidade individual mediada pelas relações de produção. O Capital (Marx, s/d), como se sabe, foi publicado por Marx até seu primeiro tomo, os outros dois foram compilados e por vezes escrito por Engels, depois da morte de Marx. Nos Grundrisses (Marx, 1985 b), além de termos a certeza da homogeneidade de autor, ainda ganhamos a liberdade do texto. Temas se entrecruzam, idéias são registradas para elaboração posterior, outras áreas que não a Economia Política são contempladas com generosidade.
Nos Grundrisses nos deparamos com um Marx, que Martin Nicolaus chamou de 'desconhecido', a traçar as interrelações entre indivíduo e sociedade, reconquistando a história da individualidade até o desenvolvimento do Capitalismo. (Discorrendo sobre o dinheiro, nas comunidades primitivas...) "... As relações de dependência pessoal (de início sobre uma base totalmente natural) são as primeiras formas sociais, aonde a produtividade humana se desenvolve somente em um âmbito restrito e em lugares isolados..." Ali as carências obrigavam a associação restrita entre os membros da horda e mais do que isto a possibilidade de representação do outro em si e de si no outro, ou seja, a constituição da individualidade se realiza, e só poderia, no aspecto vital acessível, construindo uma identidade do indivíduo em fusão com o seu coletivo imediato. Se a troca se limita à tribo, a exteriorização de si também se limitará à tribo. Eis aí um ser social. "... A independência pessoal fundada na dependência com respeito às coisas é a segunda forma importante na qual chega a constituir-se um sistema de metabolismo social geral, um sistema de relações universais, de necessidades e capacidades universais. A livre individualidade, fundada no desenvolvimento universal dos indivíduos e na subordinação de sua produtividade coletiva, social, como patrimônio social, constitui o terceiro estágio". Este terceiro estágio é o "do comércio, do luxo, do dinheiro, do valor de troca" enfim é o Capitalismo. (Porque..) "...A dependência mútua e generalizada dos indivíduos reciprocamente indiferentes constitui seu nexo social. Este nexo social se expressa no valor de troca, e só nele a atividade própria ou o produto se transformam para cada indivíduo em uma atividade ou em um produto para ele mesmo..." É o dinheiro universal que instala o indivíduo universal, "seu nexo social cada um o carrega no bolso". O tema é recorrente, por todo o Grudrisses. Podemos reencontrá-lo no caderno B, em relação com a lei de apropriação. "Esta diversidade natural dos indivíduos e de suas necessidades constitui o motivo de sua integração social como sujeitos do intercâmbio. No ato de troca estes se enfrentam como pessoas que se reconhecem mutuamente como proprietários, como
pessoas cuja vontade impregna as mercadorias, e para as quais a apropriação recíproca mediante a alienação recíproca só se opera neste ato em virtude da sua vontade comum, e por conseguinte, em essência, por intermédio do contrato. Se introduz aqui o momento jurídico da pessoa e da liberdade inerente a ela. Por isto que no período romano se define corretamente o servus como alguém que não pode adquirir por meio do intercâmbio. Se o humano se constitui na medida em que se objetiva, no tempo histórico da objetivação universal, moeda universal, troca universal, aqui e só aqui é possível a individualidade universal galgada a partir da alienação universal. Vale lembrar, o Capitalismo tem a mesma idade da Psicologia e Jung já nos disse que na Idade Média não existia o inconsciente. Em Marx o homem não é um ser social, ao contrário, a história até o Capitalismo destrói as relações gregárias e as repõe como individualidade, pela troca universal de produtos e necessidades. Ser para o outro permitiu ao homem se construir como sujeito livre, na exata medida da interrelação entre todos os homens do mundo. Por ora há que se concluir pela impossibilidade de abandonar a tensão perene que Marx percebe entre o indivíduo e a sociedade, e, não menos importante, que é impossível a compreensão do indivíduo apesar da Economia, a menos que se queira fazer ciência como os mágicos: retirando coelhos da cartola sem explicar como foram parar ali.
CAPÍTULO IV
PSICOLOGIA, TRABALHO E ATIVIDADE A delimitação do objeto em uma ciência, isto é, a constituição desta ciência, não é um acontecimento natural. O universo não aguarda apenas que o homem classifique os eventos e os distribua, ao contrário, a construção do universo científico só é possível com uma intervenção criativa do homem. A história tem demonstrado que uma ciência só avança quando logra uma definição operacional capaz de impulsionar as descobertas. Assim faz sentido a discussão metateórica, revendo e posicionando sempre o universo científico e suas categorias centrais de análise. Basta conferir a clássica discussão entre as teorias mecânica e ondulatória da luz, na Física, para se ter um exemplo vivo da riqueza que este plano de análise pode propiciar ao desenvolvimento científico. Como qualquer ciência, a Psicologia foi obrigada a amargar longos descaminhos até uma definição mais clara de seu objeto. Aqui ganhou importância a caracterização da ciência como restrita ao sujeito (cognição, consciência, alma, espírito) ou a determinação pelo "meio" (comportamento, reflexo, contingências). A História se encarregou de mostrar que qualquer uma das tentativas termina em impasse: ou desaparece o sujeito da ação ou ele se torna inexpugnável. Felizmente este impasse faz parte da História da Psicologia, hoje já aprendemos que o objeto de nossa ciência não é um meio ambiente capaz de determinar o indivíduo apesar dele e muito menos o sujeito auto-determinante apesar do mundo. A Psicologia moderna se desenvolve consciente que o seu objeto está na interrelação entre o sujeito e o objeto, na dupla conformação entre o homem e o mundo, exatamente na tensão entre um e outro. Cada gesto, ação ou comportamento interessam na exata medida em que transforma o indivíduo à imagem e semelhança do mundo e o mundo à imagem e semelhança do indivíduo. É aqui que ganha relevância o trabalho de Leontiev (1978). É aqui também que se compreende seu esforço na definição e sistematização da categoria atividade como epicentro da Psicologia. Era preciso "compreender psicologicamente as categorias mais importantes para estruturar um sistema não contraditório da Psicologia como ciência concreta, acerca do nascimento, funcionamento e estruturação do reflexo
psíquico da realidade" (...) "a análise psicológica da atividade ... consiste ... em introduzir na Psicologia unidades de análise tais que impliquem o reflexo psíquico em sua inseparabilidade dos aspectos da atividade humana que o engendra e que são mediatizados por ele (...) esta posição exige reestruturar todo o aparato conceitual da Psicologia". Evidentemente não cabe a Leontiev, nem a ninguém, o mérito isolado por estas descobertas. É da ciência o modo de produção coletivo, e ele vai-se definindo na contenda e na cooperação. Cabe ressaltar como exemplos na Psicologia ocidental o modo pelo qual Psicanálise e Behaviorismo, vieram relativizando alguns conceitos até que empiricamente eles se aproximassem da dupla relação entre homem e natureza que frisamos em outra parte. Na Psicanálise, pesquisadores como Erik Erikson, Jung e Lacan relativizaram as descobertas de Freud, tornando-as sensíveis à História. No Behaviorismo, Seligman, Bandura e o próprio Skinner vem introduzindo conceitos como "desamparo, imitação ou comportamento encoberto" que reapropriam o indivíduo no que antes era apenas contingência. O mérito de Leontiev, nada desprezível, foi o de explicitar e sistematizar a dupla relação homem-mundo como elemento de constituição da Psicologia, tornando em ferramenta de trabalho o que antes era "exercício inconsciente" de adaptação do modelo às exigências empíricas. Talvez agora, lastreados no trabalho de Leontiev e nas pesquisas que a sua produção engendrou seja possível aprofundar esta análise: qual a diferença entre as categorias trabalho e atividade? E depois, qual a vantagem teórica da separação do trabalho como categoria de análise. Vejamos: Como trabalho e atividade aparecem na Etimologia (Cunha, 1982)? Trabalho: torturar, derivado de tripalium (instrumento de tortura). Da idéia inicial de "sofrer" passou-se a idéia de esforçar-se, lutar, pugnar e, por fim, trabalhar; ocupar-se de algum mister, "exercer o seu oficio" (latim tripaliare - entrada no português sec. XIII). Atividade: que exerce a ação, que age, vivo, ágil (latim activitas - entrada no português sec. XVI). Praxis: aquilo que se pratica habitualmente, rotina (latim praxis-is, derivado do grego).
Atuar: exercer atividade, estar em atividade, agir (latim actuare, entrada no português séc. XVII) Produto: aquilo que é produzido pela natureza, resultado de qualquer atividade humana, física ou mental (latim productum - entrada no português l8l3). A palavra atividade, no sentido corrente, aparece como sinônimo de ação, profissão, trabalho, buscar alguma coisa etc. Entre as ciências tem aparecido mais amiúde na Física, Físico-química, Fisiologia, Geofísica, Biologia, Medicina, Economia e Astronomia. Em um dos seus sentidos atribuído pela filosofia a palavra aparece como "qualidade de ser em atos". A palavra trabalho (que aparece na língua portuguesa tres séculos antes da palavra atividade), no sentido corrente, é encontrada como sinônimo de atividade, ocupação, ofício, profissão, tarefa, distinguindo-se de lazer, e aparecendo ainda como resultado de uma determinada ação. Em vários idiomas a palavra trabalho aparece freqüentemente com duplo significado: ação-esforço e moléstia-fadiga (sofrimento). Werner Sombart define trabalho: "desgaste de energia destinado a obter um objeto fora do homem". Em Schonberg: "manifestação de uma força a fim de criar algo útil". Além das referências anteriores, o Bachem Staatslexikon descreve trabalho como "um esforço humano que implica sacrifício e dor, moléstia e sofrimento, e que determina a produção ou conservação de um bem ou de uma utilidade". Savtchenko (1974), em Que é Trabalho, o define como "atividade racional do homem na produção dos bens materiais e espirituais". Num primeiro momento, a impressão que fica é que o trabalho humano é necessariamente uma atividade, mas nem toda atividade humana é trabalho. Há uma correspondência necessária entre o trabalho e a produção de um determinado bem (material ou espiritual), que atividade não estabelece.
Etimologicamente falando a
palavra trabalho aparece vinculada a um produto enquanto a palavra atividade não. Daí a última poder ser aplicada indistintamente para homens e animais e a primeira restringirse aos homens. Vazquez (1977) assim define atividade: "Atividade é aqui sinônimo de ação, entendida também como ato ou conjunto de atos que modificam uma matéria exterior ou que é imanente ao agente. Exatamente por sua generalidade, essa
caracterização da atividade não especifica o tipo de agente (físico, biológico, ou humano) nem a natureza da matéria prima sobre a qual atua (corpo físico, ser vivo, vivência psíquica, grupo, relação ou instituição social), bem como não determina a espécie de atos (físicos, psíquicos, sociais) que levam a certa transformação. O resultado da atividade, isto é, seu produto, também se dá em diversos níveis: pode ser uma nova partícula, um conceito, um instrumento, uma obra artística ou um novo sistema social." Em seguida ressalta que "O trabalho é atividade humana, governada pela consciência, ou seja por fins idealmente postos antes da execução propriamente dita. Enquanto tal, esta atividade não pode ser separada do objeto e produto em que atua, não é uma consciência pura, mas material concreta". Os psicólogos que o antecederam e também Leontiev vão colher a categoria atividade tal e qual ela está formulada em Marx (1978), nas Teses contra Feuerbach. Voltemos a esta origem e vejamos como ali se estabelece a relação entre trabalho e atividade. No acerto de contas com o que ficou conhecido com Ideologia Alemã, na parte dedicada a Feuerbach, Marx & Engels (s/d) escrevem: "O defeito fundamental de todo o materialismo anterior - incluindo o de Feuerbach - é que só concebe o objeto da realidade, da sensoriedade, sob a forma de objeto (objekt) ou de contemplação, mas não como atividade sensorial humana, como prática, de um modo subjetivo. Feuerbach quer os objetos sensíveis, realmente distintos dos objetos conceituais; mas tampouco concebe a atividade humana como uma atividade objetiva". É bom recordar que este é o texto citado por Leontiev no início de sua discussão sobre atividade. Sobre trabalho, Marx (s/d), em O Capital, afirma: "O trabalho, como criador de valores-de-uso, como trabalho útil, é indispensável à existência do homem quaisquer que sejam as formas de sociedade - é necessidade natural e eterna de efetivar o intercâmbio material entre o homem e a natureza, e, portanto, de manter a vida humana (...) Antes de tudo, o trabalho é um processo de que participam o homem e a natureza, processo em que o ser humano com sua própria ação, impulsiona, regula e controla seu intercâmbio material com a natureza. Defronta-se com a natureza como uma de suas forças. Põe em movimento as forças naturais de seu corpo, braços e pernas, cabeça e mãos, a fim de apropriar-se dos recursos da natureza, imprimindo-lhes forma útil à vida humana. Atuando assim sobre a natureza externa e modificando-a, ao
mesmo tempo modifica sua própria natureza externa. Desenvolve as potencialidades nela adormecidas e submete ao seu domínio o jogo das forças naturais". Ao discutir as diferenças entre o animal e o homem, em Dialética da Natureza, Engels (1976) aponta: "O animal apenas utiliza a natureza, nela produzindo modificações somente por sua presença; o homem a submete, pondo-a a serviço de seus fins determinados, imprimindo-lhes as modificações que julga necessárias, isto é, domina a natureza. E esta é a diferença essencial e decisiva entre o homem e os demais animais; e, por outro lado, é o trabalho que determina essa diferença". Não há e não poderia haver em Marx uma teoria da atividade. O conceito de atividade em seus escritos sempre apareceu mal delimitado, sequer havia razão para precisá-lo. Nem ele ou Engels se preocuparam em construir uma Psicologia. O conceito de trabalho foi melhor definido, por ser objeto privilegiado de análise. As considerações acima nos permitem deduzir: 1) A atividade, como afirma Leontiev, é categoria central para a compreensão do homem. 2) A atividade se estende por toda a esfera biológica, incluindo o ser humano, enquanto o trabalho é especificamente humano. 3) A atividade, como a análise etimológica anteviu, pode ser considerada como uma categoria geral na qual o trabalho, como categoria específica, se inclui. Leontiev, ao discorrer sobre os impasses da Psicologia, fala que "a atividade, em sua forma inicial e básica, é a atividade sensorial pratica durante a qual os homens se põem em contato prático com os objetos do mundo circundante, experimentam eles mesmos as resistências destes objetos e atuam sobre eles, subordinando-se às suas propriedades objetivas". Ou ainda: "A atividade aparece como um processo no qual se concretiza a transição sujeito-objeto". Até aqui é impossível distinguir-se entre trabalho e atividade, tanto assim que Leontiev se socorre da citação de Marx - "na produção se objetiviza a personalidade, no consumo se subjetiviza o objeto" - onde o assunto obviamente é trabalho. Mais adiante: "a atividade integra o objeto de estudo da Psicologia, enquanto uma função especial, a função de situar o homem na realidade objetiva e de transformar esta em uma forma da subjetividade. Aqui Leontiev circunscreve a atividade na mesma definição marxiana de trabalho genérico.
Todo o capítulo introdutório de Leontiev (1978), onde a tarefa proposta é a de apresentação das bases da teoria psicológica que o resto do texto irá desenvolver, se refere a atividade e trabalho como sinônimos, ou a um e outro, alternativamente, sem a preocupação de estabelecimento de distinções. O mesmo ocorre por todo o capítulo sobre atividade. Mas ao enfrentar a categoria consciência, é o trabalho que aparece com valor heurístico. Em síntese: O desenvolvimento de uma Psicologia concreta seria impensável sem a sistematização leontieviana da categoria atividade, cada vez mais fica claro o seu papel nodal na análise da dinâmica subjetividade/objetividade que caracteriza cada gesto humano. A formulação da categoria atividade, baseada no marxismo, situa no mesmo patamar heurístico a atividade no geral e o trabalho entendido no sentido genérico postulado por Marx como abstração necessária. Enquanto categoria eixo, a atividade demanda desdobramentos previstos pelo próprio Leontiev. Pretendemos analisar agora as diferenças entre trabalho e atividade, visando perguntar se existem razões empíricas para o estabelecimento da categoria trabalho com estatuto teórico próprio. Que seja um exemplo: tomemos a emissão de uma expressão qualquer, como "bom dia", escolhida apenas por ser comum. Ao dizer "bom dia" em uma situação corriqueira, ao passar por uma pessoa conhecida, estou realizando uma atividade: é uma modificação em mim enquanto sujeito que é determinada pela presença do outro, mas não exclusivamente (a alguém que eu não simpatizo posso não cumprimentar) e que determina o comportamento do outro. Uma modificação no indivíduo determinada e determinante de modificações em seu meio-ambiente, em um sentido físico-químico e social. A este nível de análise não há razões para separar os animais e os seres humanos. Os primeiros também emitem sinais destinados a outros de sua espécie, que também implicam em uma relação de dupla transformação. Mesmo a este nível o assunto pode e deve interessar à Psicologia: as influências culturais do ato de cumprimentar ou não, as diferenças de entonação para um homem ou uma mulher, a quantidade de energia, as associações necessárias etc. Em uma abordagem destes fenômenos baseada no arsenal teórico de Leontiev estaríamos nos referindo a reflexos psíquicos, articulando percepções, sensações e atividade, estudando suas múltiplas determinações, no limite do que ele chamava forma geneticamente primária da atividade.
Mas ainda não estamos falando de trabalho. Embora dizer "bom dia" seja um ato humano, não resta nele nenhuma manifestação de transcendência, nada se alterou em mim ou em meu interlocutor que não seja efêmero, nada restou ali depois que cruzei com ele na rua, não há, em última instância, neste gesto, um produto que permaneça. Em uma outra situação social, mesmo que apenas ligeiramente diferente, dizer o mesmo "bom dia" pode merecer análise completamente diferente. Suponha que agora estou em uma campanha cívica para evitar que os banhistas despejem lixo na praia. Motivado por razões de ordem ecológica me engajei como voluntário e minha obrigação é a de abordar desconhecidos em uma praia para conscientizá-los do significado de deixar uma lata de cerveja ao léu. Agora a mesma expressão "bom dia" mudou de caráter, não é mais apenas uma atividade; faz parte de um projeto de transformação da natureza e dos homens, implica de fato nesta transformação, imprime minha marca no mundo e possibilita que o mundo me marque na presença daquele desconhecido, daquela campanha, e/ou daquela praia. Aqui se está perante "um processo de que participam o homem e a natureza, processo em que o ser humano com sua própria ação, impulsiona, regula e controla", em pleno território do que o marxismo se acostumou a chamar de trabalho genérico. Evidentemente continua sendo uma atividade e poderia ser estudada assim, mas também pode e deve ser objeto da Psicologia nesta sua dimensão particular, enquanto trabalho genérico. Todo o arsenal acumulado em Psicologia Social tem sido dedicado a compreender fenômenos semelhantes. O que importa destacar aqui é que estamos perante uma situação em que, para desespero dos Behavioristas, os mesmos estímulos e respostas estão presentes e no entanto só se pode compreender os resultados alterando-se completamente o parâmetro da análise. A inclusão desta atividade no contexto de trabalho genérico é a que lhe transmite possibilidades de compreensão. Mas as complicações não param aqui. Imagine ainda que as mesmas palavras sejam ditas por uma apresentadora de televisão na publicidade de um sabão: além dos dois níveis de análise anterior, agora o cumprimento deve ser compreendido também na esfera do trabalho concreto, criador de valor de uso, e também numa sociedade baseada na mercadoria, enquanto valor de troca. Agora comparecem categorias como alienação, processo de trabalho, enfim todo o arsenal imprescindível
para compreender as relações entre produção e consumo. A ingênua expressão aparece agora permeada e permeando o conjunto das relações de produção.
PARTE II
OS TRABALHOS DO TRABALHO
CAPÍTULO V
A MAGIA DO TRABALHO
Os estudos que até hoje se dispuseram a compreender o trabalho, parecem esquecer que o trabalho é mágico, ou seja, é sempre sincrético de um universo latente, escondido aos olhos do observador ingênuo, sempre não é o que aparece, sempre se parece com o que não é. O trabalho é mágico por que é duplo, carrega em si a maldição da mercadoria, a fantasmagoria do dinheiro: De um lado aparece como valor de uso, realizador de produtos capazes de atender necessidades humanas, de outro como valor de troca, pago por salário, criador de mercadoria e ele mesmo uma mercadoria no mercado. O trabalho é duplo, e tem sido enfocado como se fosse simples: a partir das tarefas que enceta ou, no máximo, das relações sociais que promove. Fala-se em rotina, liderança, motivação, stress, enfim fazendo desaparecer a mercadoria, ou a alienação que a mercadoria porta. Administra-se o caráter contraditório do trabalho, o antagonismo entre o valor de uso e o valor de troca pela singela eliminação de um dos pólos antitéticos. Enquanto valor de troca, como qualquer outra mercadoria amarga-se a universalização do trabalho humano, a possibilidade de extensão do significado do gesto a qualquer dos homens do planeta: ou seja a abstração radical do trabalho específico construída pela equivalência de todos os trabalhos, troca universal, dinheiro. Trabalho enquanto valor de uso é o ato de depositar significado humano à natureza, construção de significado pessoal e intransferível, individual. Se trabalhamos em cooperação, se o nosso trabalho implica na transmissão de um significado social à natureza, então traçamos nossa individualidade nesta extensa trama de espelhamentos que se desenha a cada momento, se igualando e se diferenciando de cada um e de todos. A tensão inevitável que se estabelece entre o trabalho como valor de uso (aqui entendido como sinônimo de trabalho concreto) e valor de troca (trabalho abstrato)
representa necessariamente um fator determinante na conformação da identidade do trabalhador. Nossa experiência tem revelado que o processo de trabalho não enfrenta de modo homogêneo a contradição que apontávamos no duplo caráter do trabalho, e que, muito menos o modo de articulação entre suas duas faces se torna visível a priori. Ocorre que a dupla convivência do valor de uso e valor de troca que compõe a mercadoria é intrinsecamente contraditória, senão vejamos.
Valor de Uso
Valor de Troca
Atende a necessidades humanas;
Vale pela sua reversibilidade com
portanto, é infinitamente diversificado
qualquer outra mercadoria, homogeniza
como elas. Um mesmo produto pode
produtos distintos que obedecem a
atender à necessidade distinta para
necessidades
seres humanos distintos. Assim, uma
desigual, indiferencia tudo o que era
camisa pode representar um valor
distinto. Sob a hegemonia do valor de
estético, status, agasalho, homenagem
troca, nenhuma diferença há entre o
a um terceiro. As mercadorias, portanto,
sapato
devem carregar em si a possibilidade de assumirem todas estas faces.
e
distintas,
o
motel.
especificidade,
a
necessidades,
só
equaliza
Ignora
multivariação se
o
a das
estabelece,
enquanto tal, quando as apaga.
Tudo se diferencia de tudo pelo valor de uso e tudo se iguala com tudo pelo valor de troca. No entanto convivemos sem nenhum problema com esta esquizofrenia. Imaginemos a compra de um sapato, por exemplo: Quando alguém vai à loja, compara os preços, a qualidade do couro, o acabamento etc. Enfim atua rigorosamente medindo e comparando, ou seja, equalizando todos os sapatos ao seu redor, este está caro por que o couro é igual ao daquele que por sua vez é melhor acabado que o outro; pechincha com o comerciante, mostra as diferenças entre um e outro par. Existe aqui um consumidor que troca coisas iguais em valores iguais, tal sapato custa tantos cruzeiros e vai comprá-lo ao invés de um paletó ou um jantar. Assim que chega em casa, rasga o pacote, guarda a nota fiscal, põe-se na frente do espelho e, pronto, em um passe de mágica este mesmo sapato passa a ser único, encantado que foi pelo uso naquele pé, torna-se portador de afeto, estética, função e valor únicos. Se uma crise financeira obrigar seu dono a vendê-lo, eis de novo o sapato caindo na vala comum do valor de troca, comparado com todos os outros sapatos, servindo a todos os pés, competindo com todos os outros produtos do mundo. Se o dono resolve presenteá-lo a um amigo, ei-lo se transmutando, mudando de significados, palco e cenário outra vez, ei-lo outro. No entanto existe uma mercadoria que não dispõe desta flexibilidade, não se transmuta assim a gosto do freguês, exatamente por que é também o freguês. Tratase da força de trabalho. Por exemplo, entre os aeronautas, a divisão de trabalho protege pilotos e mecânicos de bordo do cotejamento público com o usuário, às custas da exposição do comissário de bordo, imputando-lhe a tarefa de representante da empresa perante o consumidor. Neste posto de trabalho se realiza um sincretismo das contradições do trabalho, um sincretismo das polarizações entre o consumidor e a empresa prestadora do serviço. A função do comissário de bordo é imediatamente dupla: para o consumidor, a venda de serviços quase supérfluos; para a empresa, sua face visível, seu representante. Os significados reais do trabalho se escondem, e não são revelados ao primeiro olhar, dependem de uma análise rigorosa, exaustiva, onde são obrigatórias a observação do quotidiano, as representações do trabalhador, os desígnios da empresa. O trabalho enquanto valor de uso, trabalho concreto, não se comporta de maneira homogênea em relação ao seu outro, o trabalho enquanto valor de troca,
trabalho abstrato. Cabe aqui então arriscar uma taxonomia destes dois trabalhos injetados dentro do trabalho.
Trabalho Abstrato O trabalho dentro do sistema capitalista é considerado produtivo na medida em que produz capital, entra no circuito de produção de mercadorias, realiza mais valia, entra em circulação, produz mais valor (Marx, s/d). Aqui estamos falando no trabalho tornado abstrato, desaparecendo, a este nível de análise, as funções sociais ou as necessidades humanas, e com elas a especificidade do trabalhador - no lugar delas se faz presente a força de trabalho aplicada ao produto, e o tempo de produção alugado ao capital, salário e jornada de trabalho negociados no mercado. Esta negociação engloba o trabalho acumulado na figura de um trabalhador em particular.
Assim,
nenhuma diferença entre a compra no mercado de um datilógrafo ou de um soldador, ambos valem enquanto força de trabalho capaz de realizar mercadoria, ambos são pagos pelo valor da reprodução desta mesma força de trabalho. O salário se diferencia na medida em que esta ou aquela função necessita de um tempo de trabalho acumulado maior ou menor. Se um curso de um ano ou um treinamento anterior de uma semana forem necessários se refletirão na folha salarial. Uma das decorrências óbvias deste quadro é que o trabalhador interessa ao capital pela sua capacidade de conversão de trabalho em capital, apesar da especificidade desta ou daquela mercadoria. São as leis do mercado (oferta e procura) que definem a importância deste ou daquele profissional. Se uma marcenaria, em uma determinada conjuntura econômica, avalia como mais lucrativo o deslocamento de capital para os investimentos financeiros, ao invés da ampliação do seu parque industrial, pode apresentar um crescimento de capital, apesar da estagnação do nível de emprego e/ou da capacidade produtiva, ou ainda valorizar diferencialmente este ou aquele produto apesar da injeção concreta de trabalho concreto realizada. Em um banco, a bateria de caixas pode ocupar grande parte dos funcionários de uma agência enquanto o setor de investimentos, captação e venda de dinheiro que de longe é o setor mais lucrativo, tenha baixa ocupação. Mas não variam os salários, porque não varia o custo da reprodução da força de trabalho. Instala-se um paradoxo: mais lucro não significa mais trabalho injetado na mercadoria (no banco o dinheiro). Situação impossível do ponto de vista econômico, não fosse um segundo paradoxo a explicar o primeiro: é que, para captar em níveis suficientes os recurso de onde extrai sua principal mais valia,
um banco necessita cumprir função social junto ao público consumidor, atendê-lo em sua demanda de depositar e movimentar economias. A realização do trabalho abstrato (capital) depende indiretamente da realização do trabalho concreto (prestação de serviços ao consumidor). Teoricamente, na ausência de aferição de mais valia significativa, se encontra no rol de prestação de serviços do banco um item "deposito a vista" cuja vantagem para o cliente é o serviço e para o banco "acesso aos demais produtos; tradição e credibilidade do banco". Uma primeira conclusão: Quanto mais se diversifica a economia, quanto mais o setor financeiro assume importância, quanto maior o nível de automação e maior a complexidade da divisão de trabalho, isto é, quanto mais o sistema capitalista "evolui", maior a independência aparente entre o trabalho concreto (realização de valor de uso) e o trabalho abstrato (realização de valor de troca). Apesar de já aparente, quando gravitamos na órbita da economia política, esta ruptura assume importância decisiva, quando entramos no território da Saúde Mental e Trabalho, na exata medida em que assume, como veremos, dimensões sociais definitivas, intervindo na determinação da identidade e no controle do trabalhador sobre o produto do seu trabalho. A análise do Trabalho a partir de suas determinações enquanto abstrato implica na problematização do salário, o valor da força de trabalho do mercado e a possibilidade de reapropriação na esfera do consumo, o salário materializa no cotidiano o trabalhador enquanto mercadoria. Além disso, se impõe o estudo da jornada de trabalho, tempo de trabalho socialmente necessário e tempo excedente. Para o trabalhador a jornada organiza suas possibilidades de uso do tempo livre na reprodução da força de trabalho e consumo.
Trabalho Concreto O trabalho enquanto valor de uso também tem a sua história, sempre determinada pelas relações de produção, se confundindo com ela, mas tem história específica. É possível ao historiador traçar o desenvolvimento da produção propriamente dita, da maquinaria, da divisão social do trabalho, e encontrará a cada passo do seu caminho, obviamente, a economia se imiscuindo. Mas ao mesmo tempo poderá dispor, ao final do percurso, de um contorno concreto do desenvolvimento do trabalho. Chamemos esta evolução de processo de trabalho, do trem a vapor ao trem eletroeletrônico, do barro ao ferro e deste ao aço, do ábaco ao computador.
Chamamos processo de trabalho ao conjunto de operações realizadas por um ou vários trabalhadores, orientados para a produção de uma mercadoria ou realização de um serviço. Ambos, mercadorias e serviços são reconhecidos pela sociedade consumidora como valores de uso, individual ou coletivo. Exemplo: O processo de trabalho do qual resulta a fabricação de um ônibus ou um caminhão, e que aglutina dezenas de trabalhadores numa unidade industrial automobilística. Trata-se, aliás, de um dos mais complexos processos de trabalho existentes, que introduziu a produção robotizada, até há pouco tempo inimaginável. Ou ainda, o conjunto de operações técnicas do qual resulta a produção de açúcar ou álcool. Estas operações realizadas por centenas de trabalhadores, se estendem com nova tecnologia, para as atividades de corte mecanizado da cana-de-açúcar, o que redefinirá o perfil desse processo de trabalho a curto prazo. Não se trata aqui de construir a história do processo de trabalho, apenas de localizar suas tendências, como amparo conceitual à tese a ser desenvolvida. Qual a direção geral desta história? Por onde evolui o trabalho concreto? 1. da artesania à grande indústria internacionalizada. 2. da substituição da força física pela maquinaria. 3. do trabalho individual ao trabalho coletivo Por decorrência temos: O valor de uso, que antes se espelhava imediatamente no consumidor, passa a levar em conta a necessidade da humanidade em sentido genérico. Assim, do cesteiro que produzia o seu artefato a gosto e tato do freguês, quando a necessidade deste sujeito comparecia fisicamente dentro do processo produtivo, até uma indústria de sacos plásticos onde a necessidade de acomodação dos guardados comparece de maneira genérica e o consumidor que decida se o utiliza para bonecas ou tomates. A intercorrência cada vez mais generalizada da mediação técnica entre o produtor e o produto, que se traduz por uma coletivização, uma socialização da produção. A técnica deixa de comparecer como atributo deste ou daquele trabalhador engenhoso e passa a significar patrimônio de toda a humanidade. Antes, a habilidade do marceneiro, a intimidade com a madeira, sua face particular no produto; agora, a serra elétrica, portadora do know-how de marceneiros, eletricistas, mecânicos, o espírito de todos os trabalhadores reapresentado na mão deste marceneiro em particular. Antes, o confronto
entre a história da arte individual enfrentando a natureza bruta; agora, o trabalhador como correia de transmissão entre dois universos, já promiscuídos pela história do homem. Aqueles que confundem alienação com desconhecimento do processo produtivo, transformando o conceito em um exercício meramente psicologista, como Erich Frohm, poderiam pelo menos perceber que a artesania é coisa do passado. Não haverá luta ideológica capaz de fazer com que a humanidade abandone o trator em troca da enxada, em troca do controle individual sobre o processo produtivo. Tanto faz se o olho se dirige à produção ou ao consumo. A tendência geral se reproduz - O trabalho se universaliza, sempre será o metabolismo entre homem e natureza que Marx apontou. Antes, um tour de force entre este homem e este produto: agora, um conluio gigantesco onde comparecem todos os homens, toda a técnica, todas as forças do universo. O trabalho real é o metabolismo, não mais deste indivíduo, mas de toda a humanidade com a natureza. Um Exemplo Depois de declinar o duplo caráter do trabalho e o antagonismo entre valor de uso e valor de troca, talvez valha a pena operacionalizar a análise através de um exemplo, pelo menos com objetivos de explanação: Que seja um banco estatal: Como qualquer empresa capitalista o banco estatal vive uma ruptura radical entre valor de uso e valor de troca. O recebimento de carnês cumpre sua função social (valor de uso) na medida em que economiza tempo e aborrecimentos para o usuário. Já para as empresas que emitem carnês, o valor de uso deste serviço e o de ampliação da sua rede de clientes. Para o banco o serviço interessa na medida em que é possível a aplicação do dinheiro dos carnês, nos dias que se intercalam entre o recebimento na boca do caixa e o dia do vencimento. A lucratividade desta operação depende dos níveis de inflação, em uma relação diretamente proporcional. Por ocasião do Plano Cruzado, os bancos introduziram taxas por julgarem que os serviços não interessariam mais a partir da queda, pelo menos nominal, da inflação. De maneira mais ou menos sutil este serviço pode ser oferecido, com maior ou menor competência, velocidade ou burocratização, dependendo do interesse pontual em um determinado momento econômico. Infelizmente, as dificuldades de análise não param aqui. Ao refinarmos a investigação perceberemos que um grande banco estatal cumpre pelo menos três ou quatro desígnios empresariais distintos. Vejamos:
Como banco estatal, ele se vê obrigado a oferecer serviços que não se ligam necessariamente ao acúmulo de mais valia, podendo em alguns casos inclusive ser responsáveis por déficit. Este é o caso do crédito agrícola, onde o banco intervém no mercado agrícola do país comprando a preços mínimos estabelecidos pelo governo federal - o objetivo desta política é, por um lado proteger o agricultor das grandes oscilações de mercado e, por outro lado, proteger a nação do desabastecimento deste ou daquele produto essencial. Deste modo, um determinado ano que apresentasse superprodução e, conseqüentemente, queda de preço de um produto, poderia desincentivar os agricultores ao plantio de quantidades suficientes daquele produto no ano seguinte. O preço mínimo garante as taxas de lucro do agricultor para que a produção se estabilize. O banco realiza estas operações com fundos advindos do mercado financeiro, retirando uma parcela significativa do capital que poderia ser aplicado na inversão de mais valia, para utilizá-lo em uma atividade que por definição é deficitária. Outros serviços se enquadram nesta função social do banco, que aqui aparece como braço financeiro de política social. Trata-se de executar as operações necessárias para que esta ou aquela prioridade política se concretize. Como empresa do setor financeiro da economia, sua função precípua é a de atuar junto aos setores produtivos, industriais por exemplo, subsidiando e viabilizando suas atividades. É o caso da cobrança de títulos. Uma determinada empresa pode transferir ao banco a cobrança de seus títulos em outras cidades, serviço este viabilizado pelo grande número e extensão geográfica de cobertura de suas agência no país e no exterior, e com isto ampliar geograficamente seu mercado sem o ônus da montagem de um setor especializado em cobranças, ramificado por onde a empresa tivesse interesses. Ou ainda os empréstimos a pessoas jurídicas para implantação ou implementação de meios de produção. Colocando-se entre parênteses estes dois objetivos, o banco é uma empresa como qualquer outra, que visa a realização de lucro e que por isto entra na disputa de mercado com os seus pares em busca da captação de depósitos a vista. Agora lhe interessa quanto de mais valor se recolhe no final do percurso, o incremento do real capital. Por exemplo, alguns bancos comerciais operam a informática como forma de vender facilidades aos seus clientes e com isto abocanhar fatia maior do mercado. Para fazer frente a esta concorrência o banco pode instalar sistema de informações pelo telefone, aumentando a comodidade do cliente na medida em que evita o seu deslocamento até a agência, procurando equivaler-se à comodidade oferecida pela
eletrônica dos seus concorrentes. Na disputa pelo mercado entram a propaganda, a sedução realizada por funcionários, as comissões, como em qualquer outra instituição do ramo. Chamemos a estes três bancos em um, de social, financeiro e empresarial. Evidentemente nenhum destes bancos tem independência, a divisão aqui obedece apenas a motivos de exposição. Ainda como tal continuemos a análise. O dilaceramento do trabalho entre valor de uso e valor de troca não se revela imediatamente aos olhos do observador, por mais atento que este esteja, muito pelo contrário, se esconde zelosamente dentro das gavetas mais protegidas dos altos executivos. No caso dos bancos repousa seguro, protegido pela cândida rubrica de "sigilo bancário". Focalizemos mais de perto este jogo de esconde-esconde. Para o banco estatal, a função explicitada dos preços mínimos agrícolas, é o de "proteger o agricultor dos azares da safra e/ou do mercado e ao mesmo tempo garantir o abastecimento". Aqui todos os agricultores são iguais perante a lei. Mas, de fato, o cotidiano das decisões econômicas de governo garante que alguns sejam mais iguais que outros. Se por exemplo, o mercado internacional de soja sofresse uma retração, pela descoberta de algum equivalente mais vantajoso, o governo poderia tomar a medida de redução dos preços para refrear o plantio, provocando um prejuízo que desanimasse o produtor mais renitente, ou ainda, se o mercado está em alta, nada fazer, deixando que as próprias leis de mercado estabeleçam preço competitivo. Isto no plano macro - econômico e/ou político. No plano micro, uma determinada categoria profissional pode ter apoiado explicitamente um candidato oponente do governo federal em uma eleição importante e sofrer por isso as represálias dos governantes via estrangulamento financeiro; ou ainda um produtor específico pode ser um contribuinte generoso dos fundos de campanha de um candidato vitorioso e receber por isso um tratamento diferenciado nos empréstimos. A este nível de análise estamos supondo uma coordenação entre os níveis federais estaduais e municipais, o que está longe da verdade. É comum que a política federal aconselhe o "desincentivo" de um determinado setor da economia enquanto as forças políticas municipais impõe o "incentivo" deste mesmo setor, e o qüiproquó se arrasta infinitamente, sempre em segredo, sempre irrevelado por definição. Igual destino terão os bancos "financeiro" e "empresarial" que se articulam dentro do banco estatal.
Ocorre que também não há compatibilidade tácita, longe disto, entre os três bancos no banco: como "empresa" se afastaria das atividades de alto custo e/ou baixa lucratividade; como "social" se aproximaria das atividades independentemente de sua taxa de lucro, na medida em que pudessem operar objetivos políticos; como "financeiro" oscila dependendo da produção internacional de mercadoria. São, pelo menos, três grandes fontes de determinação ativas e relativamente independentes: O mercado financeiro nacional e internacional. O desenvolvimento das forças produtivas nacionais e internacionais e a política nacional e internacional. O quadro agora está complexo o suficiente para impor uma síntese: Observe-se o diagrama abaixo. VALOR DE USO VALOR DE TROCA B-EMPRESA B-EMPRESA B-SOCIAL B-SOCIAL B-FINANCEIRO B-FINANCEIRO Ou seja, cada um dos três bancos se exerce pelo antagonismo entre valor de uso e valor de troca, e cada um deles pode vir a desenvolver antagonismos com o outro, pela face do seu valor de uso e\ou pela face do seu valor de troca. São três bancos. Valor de uso e valor de troca conflitam em cada um (3 possibilidades), valor de uso de um conflita com valor de uso dos outros dois (3 possibilidades), valor de troca de um conflita com valor de troca dos outros dois (3 possibilidades), valor de uso de um conflita com valor de troca dos outros dois (6 possibilidades). São 15 eixos conflituais dominantes. Teoricamente falando, cada decisão do trabalho cotidiano só poderia ser tomada a partir do exame objetivo de cada uma destas possibilidades de conflito. É evidente que na prática as coisas não se passam assim. Como o banco operacionaliza no cotidiano de trabalho este absurdo funcional? As decisões são tomadas, as ações são realizadas com lastro na experiência concreta dos administradores e, por isso, ao se tornarem administráveis para a gerência, fornecem um mote para a compreensão do
processo de trabalho. Infelizmente para o pesquisador esta operacionalização é idiossincrática e depende, portanto, da pesquisa empírica de cada grupo de instituições, por ramo da produção, quando não de cada organização em si. Praticamente, a empresa sabe bem administrar o confronto entre os dois trabalhos do trabalho: O trabalhador vale exatamente o necessário para a reprodução dele mesmo, ou seja, vale pelo seu valor de troca; assim se este trabalho necessita de especialização, o trabalhador especializado será pago pela sua reprodução mais um quantum que vale teoricamente pelo custo de sua produção enquanto especialista. Isto é verdade apenas no plano da economia política, mesmo o mais frio dos capitalistas é obrigado a considerar o valor de uso da força de trabalho, que aqui é a sua possibilidade concreta de possuir mais valor. Deste modo, se um ferramenteiro vale dez dinheiros no mercado, o capitalista monta uma parafernália em seleção de pessoal para escolher, por exemplo, um que seja mais rápido. O raciocínio vale para a demanda da balconista mais bonita, da secretária mais eficiente etc. Administrar o antagonismo entre o valor de uso e o valor de troca, quando a mercadoria é a própria força de trabalho, é a função do setor da empresa que é chamado, eufemista e metaforicamente de "Relações Humanas", assessorado de perto pela "Psicologia Organizacional". No plano teórico, o problema dos dois trabalhos não oferece problemas maiores para a Economia Política pós Marx. Nenhuma diferença entre a mercadoria força de trabalho e a mercadoria sapato: O trabalhador enquanto produtor, agente metabólico das transformações de si e do mundo, desaparece ao atravessar o portão da fábrica, volta a recuperar a individualidade enquanto consumidor. Enquanto assalariado não importa se marceneiro ou ator, importa o custo da força de meu trabalho no mercado, medido por sua vez pelo tempo de trabalho. Somos todos iguais, indiferenciáveis. "A produção produz o homem não apenas como uma mercadoria, como mercadoria-homem, como homem em função de mercadoria, mas que o produz, além do mais, de acordo com esta determinação, como ser desumanizado tanto física como espiritualmente (...) Seu produto é a mercadoria com consciência de si mesma e com atividade própria (...) a mercadoria humana (...), por isto "Os homens apagam-se frente ao trabalho.(...) Não se deve dizer que uma hora (de trabalho) de um homem vale uma hora de um outro homem, mas que um homem de
uma hora vale um outro homem de uma hora. O tempo é tudo, o homem não é mais nada; é, no máximo, a carcaça do tempo”. Fora do trabalho enquanto consumidor o homem se metamorfoseia, livre, carregado de afetos, significados. Sinteticamente, diremos: o Homem é desapropriado de si no trabalho e se reapropria de si no consumo. A esfera do trabalho é a esfera da produção, a do consumo é a reprodução. Urge lembrar, estamos no terreno da economia política. Até aqui podemos nos deparar com um círculo fechado; o jogo simétrico entre desapropriação e reapropriação põe a roda em movimento: uso -troca - uso - troca, compramos produzimos - compramos - produzimos, necessidades - mercadorias - necessidades. A Fórmula é clássica, M-D-M e depois D-M-D. Se é verdade que boa parte da economia política pode ser explicada com o desdobramento desta dança. Para a Psicologia, a Sociologia, para as ciências sociais, os problemas começam aqui. Senão vejamos, em cada um destes momentos o trabalho segue sendo duplo. dentro da fábrica o sapateiro continua produzindo sapatos (uso) enquanto engorda a algibeira do patrão (troca). Seu trabalho continua dependendo de seus gestos, inda que ínfimos (trabalho concreto) enquanto acrescenta valor ao valor (trabalho abstrato). Idem para o consumo, a reprodução da força de trabalho. É aqui que as Ciências Sociais, no geral e a Psicologia em particular se perdem. Perante o trabalho alienado, quando o produto se divorcia do produtor e portanto o produtor se afasta de si mesmo estamos lidando com um fenômeno que equivale à morte (física, psicológica ou "social") do trabalhador. O problema é que o trabalhador não morreu em nenhum destes sentidos, continua lá, com seus sentimentos, esperanças, sonhos, fantasias. Até agora tem-se abusado da ideologia para rastrear esta insistência em sobreviver: se o trabalhador persegue melhorar sua vida, tome ideologia, se prefere uma máquina que lhe diminua o esforço físico, tome ideologia. O modelo é pobre e mal disfarça nossa incompetência. Perante o trabalhador concreto, realizador de si e do mundo, prenhe de existências e fantasias, quase sempre sucumbe a trágica constatação do trabalho alienado. Passa-se a estudar representações, atitudes, opiniões, em última instância
robinsonadas, mesmo que se dedique a grupos mais ou menos extensos, se inventa a "comunidade" a "instituição", persegue-se o imaginário. O fraseado pomposo diverte a princípio, logo depois cansa.
CAPÍTULO VI
TRABALHO E IDENTIDADE Em uma formulação sintética, a utilização do método científico para a compreensão dos homens obriga o pensador a responder a uma única questão: como o homem se hominiza? Isto é, como nos parecemos conosco, ou ainda, e também o que é o mesmo, como nos diferenciamos perante o outro e nos igualamos com ele? Por esta via, formulou-se o mito do homem natural, as concepções religiosas, por outro lado foi possível constatar a inevitabilidade do estudo das relações sociais. Assim, uma das primeiras formulações em Sociologia e Psicologia Social foram os conceitos de papel e status, literatura que rapidamente foi abandonada pelas críticas que sofreu, fundamentalmente porque inventava o que era preciso compreender, partia de uma cristalização de momentos históricos, tomava como dado o que sempre foi um processo e, por isso, apagava o modo de constituição da trama social. Pouco a pouco o conceito de papel social foi sendo substituído com vantagens pelo conceito de identidade social, vindo a ganhar em um estudo recente de Ciampa (1987) uma formulação madura o suficiente para ocupar o estatuto de categoria analítica central em Psicologia Social. Ciampa reconhece o caráter "ideológico" (no sentido de falsa consciência) dos estudos anteriores e se propõe a virar o disco. Interessa-lhe o processo de construção da identidade, por isso lhe é possível recuperar o fato de que nos tornamos parecidos conosco na medida em que a existência social traça um perene jogo de espelhamentos, diferenciações e igualdades que me definem em relação com o conjunto da humanidade: “... Em cada momento de minha existência, embora seja uma totalidade, manifesta-se uma parte de mim como desdobramento das múltiplas determinações a que estou sujeito. Quando estou frente a meu filho, relaciono-me como pai; com meu pai, como filho; e assim por diante. Contudo, meu filho não me vê apenas como pai, nem meu pai apenas me vê como filho; nem eu compareço frente aos outros apenas como portador de um único papel, mas sim como o representante de mim, com todas minhas determinações que me tornam um indivíduo concreto. Desta forma, estabelece-se uma intrincada rede de representações que permeia todas as relações, onde cada identidade reflete outra identidade, desaparecendo qualquer possibilidade de se estabelecer um fundamento originário para cada uma delas(...) Este jogo de reflexões múltiplas que
estrutura as relações sociais é mantida pela atividade dos indivíduos, de tal forma que é lícito dizer-se que as identidades, no seu conjunto, refletem a estrutura social ao mesmo tempo que reagem sobre ela conservando-a ou a transformando(...) Assim, a identidade que se constitui no produto de um permanente processo de identificação aparece como um dado e não como um dar-se constante que expressa o movimento(...) Ou seja, só posso comparecer no mundo frente a outrem efetivamente como represente do meu ser real quando ocorrer a negação da negação, entendida como deixar de presentificar uma apresentação de mim que foi cristalizada em momentos anteriores - deixar de repor uma identidade pressuposta - ser movimento, ser processo, ou, para utilizar uma palavra mais sugestiva se bem que polêmica, ser metamorfose." Esta formulação tem o mérito de colocar a questão em movimento, orientar as análises possíveis: impossível estudar identidade na ausência da história, inútil descolar a categoria identidade da categoria atividade (Leontiev, 1978). Um grande passo para qualquer ciência - Sabemos agora como perguntar. No entanto, se é preciso reconhecer e configurar o caleidoscópio de representações que compõe a identidade, também não basta a mera constatação da "metamorfose". É preciso conhecer suas leis, atuar no sentido de restabelecer os nexos causais, evoluir da perplexidade à ciência. Agora emerge o trabalho como categoria central de análise. O que os seres humanos fazem é produzir suas condições de existência e ao produzirem-na materialmente geram e criam valores de uso, definem sua existência na medida em que a exercem, em metabolismo com a natureza, construindo a si mesmo na medida em que arrancam do mundo o seu modo de ser. No entanto, se o trabalho nunca abandona sua origem, ao mesmo tempo se inscreve na história dos homens; na exata medida em que ele mesmo significa a história dos homens. Em outras palavras para a análise do trabalho é necessário circunscrevê-lo em um modo de produção específico (aqui o capitalismo), e perceber que agora é preciso desdobrar a análise: O trabalho ganha um duplo significado. O trabalho dentro do sistema capitalista é considerado produtivo na medida em que produz capital, entra no circuito de produção de mercadorias, realiza mais valia, entra em circulação. Quando considerado enquanto produtor de mercadorias, ele mesmo como mercadoria, quando aparece sob a forma de valor de troca, o trabalho perde sua
especificidade e o vínculo estreito que mantinha com a construção da subjetividade do trabalhador, deixa de ser o "metabolismo" entre o Homem e a natureza a que se referia Marx, para plasmar uma outra identidade, uma outra subjetividade, a de vendedor da força de trabalho. Trata-se aqui de vendedores de sua força humana real que se identifica com a capacidade dos homens produzirem sua existência. E o trabalho é aqui tomado, principalmente, como a capacidade humana comercializada e geradora de valores materiais socialmente reconhecidos em sua utilidade social - valores de troca. Essa capacidade se define conceitualmente como força de trabalho quando estivermos nos referindo ao trabalhador que a vende e de trabalho abstrato a este modo de aparecer, que é real enquanto atividade produtiva indiferenciada. No entanto a existência mesma da força de trabalho e do trabalho abstrato só se realiza na sociedade, só compõe e hegemoniza o trabalho na medida em que satisfaz necessidades humanas ("do estômago ou da fantasia"), ou seja, enquanto subsistir como produtor de valores de uso. E aqui torna-se possível a coexistência do que se chama de trabalho concreto, recolocado sob o ponto de vista do fazer específico, da produção deste ou daquele objeto de uso humano, e do trabalho abstrato. O trabalho abstrato não é visível, mas é real e condição de criação de valores cristalizados em cada mercadoria, independente do valor de troca que elas possam assumir nas pressões e contrapressões do mercado. Assim o trabalho abstrato conforma uma identidade do trabalhador perante o mercado, e em última instância perante a sociedade. Na medida em que o indivíduo aparece como vendedor da força de trabalho qualificada socialmente pelo trabalho abstrato, essa mesma força é précondição da possibilidade do trabalhador realizar-se como gerador de valores de uso, pelo trabalho concreto. Se o trabalho se apresenta delimitado por este momento histórico, se é o que é na medida em que se imbrica com a mercadoria, se a constituição do trabalho abstrato divide os homens em donos dos meios de produção e vendedores da força de trabalho, então o modelo de análise nos empurra imediatamente para a questão das classes sociais. A pergunta passa a ser, qual o papel da composição de classes na conformação da identidade do trabalhador? Aqui se impõe uma digressão: existem duas classes sociais fundamentais, os donos dos meios de produção e os vendedores da força de trabalho. Esta afirmação de Marx, pedra de toque de sua teoria, é fundamental e correta. Acontece que assume
poder heurístico na análise do capital, o que não significa absolutamente que seja transferível, assim sem mais, para qualquer outro território científico. Por exemplo, na política, a classe operária desaparece enquanto sujeito para reaparecer no partido político, apenas na sua ação, não na declaração de princípios. Porque apenas a ação política recompõe os nexos que a alienação, a polícia e o cotidiano competitivo dissolveram. Antes da revolução, fora do seu universo estrito, a análise política de classes sociais deve levar em conta interesses, ideologias e representações antagônicas entre as classes. A classe social na sua pureza teórica aparece no momento estrito da tomada do poder, tem portanto valor heurístico limitado; agora ganha relevância o estudo de manifestações ideológicas, por exemplo, de setores de classe, como as mulheres donas de casa ou os paulistanos urbanos, os caipiras, o nordestino emigrado, exemplos desdobrando-se infinitamente. Em síntese, o conceito de classe social é referência teórica primeira, e por isto representa conceito genérico, inútil quando abstraído do universo concreto onde se opera a análise. Então, classe social, tomada neste sentido, é conceito que se relaciona com a propriedade e com o poder. Se a pergunta fundamental continua sendo: como se constitui a identidade do trabalhador na sociedade capitalista, é necessário retomar o conceito de classe social em sua complexidade concreta e considerar a subjetividade, as representações - os conflitos representações versus condições materiais - e o modo como se expressam no quotidiano. É que o indivíduo não é só portador daquela capacidade de sobreviver e representar sua sobrevivência, como é da especialização social dessa capacidade, como divisão do trabalho corporificada que permeia a linguagem, os instrumentos, o pensamento, a consciência. Essa especialização define a relação do indivíduo trabalhador com seu instrumento de trabalho e com outros indivíduos trabalhadores profissionalizados. A partir da investigação do processo de trabalho que os envolve pode-se reconstruir seu fazer e sua consciência; ganham novos significados, rotinas e horários. O gesto do homem é um gesto no mundo, inserido necessariamente nessas relações de produção desenvolvidas pelo ser humano. Se perguntarmos quando um indivíduo revela seu saber produtivo, a resposta será: no fazer produtivo, no fazer socialmente valorizado.
Se nas sociedades capitalistas esse fazer se dá sob a forma de trabalho assalariado e capital, se tudo é revestido de uma ou outra forma, ambas não deixam de ser relações concretas entre seres sociais determinados. A condição de sujeito determinado acaba por delimitar o saber e o fazer. Optando pela identificação desse saber produtivo junto aos trabalhadores assalariados é perante o capital que sua dimensão se explicita. É ainda nessa unidade com o capital que os trabalhadores reunidos expressarão sua condição de existência enquanto trabalhadores assalariados em geral, enquanto trabalhadores singulares de perfil produtivo diferenciado. A dualidade do trabalho como mercadoria, como valor de uso e valor de troca tem correspondência imediata com seu modo de expressão, como trabalho concreto e abstrato, segundo seu valor perante a sociedade. O trabalho abstrato que não é visível, mas é real e condição de criação de valores cristalizados em cada mercadoria, independente do valor de troca que elas possam assumir nas pressões e contrapressões do mercado. O trabalho abstrato como forma de atividade humana é referência para identificar a atividade profissional de cada categoria e, nessa medida, a concepção do trabalho abstrato em Marx torna-se categoria explicativa, na busca da compreensão da subjetividade humana. Forma de produção, setores de produção, ramos de atividade produtiva, unidades empresariais de produção ou serviços, trabalhadores integrados como categoria profissional a essas unidades, todos esses planos da realidade social podem ser apreendidos através da unidade dialética entre trabalho abstrato e concreto neles corporificada. Todo indivíduo é portador dessa dupla dimensão social e explicita sua potência social quando se integra, principalmente ao mercado de trabalho a ele próximo. Esse mercado é o espaço social ocupado pelos detentores do capital, compradores da força de trabalho dos indivíduos que reúnem saber produtivo, mas que não são possuidores de meios materiais de realização desse saber. O que pode, então, interessar à Psicologia Social e à Psicopatologia é exatamente como esse saber produtivo se realiza ao nível do cotidiano de cada indivíduo trabalhador assalariado e no que o seu dia a dia transforma esse saber e sua potência transformadora. A esta altura do percurso vale a pena repisar algumas referências desta análise: Não estaremos investigando a condição de trabalho a partir de uma análise ideal
da força de trabalho. Nosso locus é o do conflito capital/trabalho, portanto, estaremos passando pelo capital, como referência. Na Psicologia, por exemplo, não é possível partir do conceito de classe social como uma totalidade genérica, sob pena de substituir a existência concreta dos homens pela representação social da história na consciência humana e atribuir-lhe um estatuto de determinação última que efetivamente não se sustenta. Agora o indivíduo, objeto da análise poderá ser um como dez, como uma centena, mas sempre será tomado em sua individualidade histórica. Cada trabalhador em sua singularidade pode revelar seu cotidiano de trabalho, tomando como referência seu próprio fazer produtivo e a forma de apropriação desse fazer pela unidade capitalista de produção a que se integra.
CAPÍTULO VII
EM BUSCA DE UM MARCO TEORICO
Impossível discutir processo de Trabalho sem enfocar centralmente a obra de Marx. Além e apesar de uma opção metodológica, que sem dúvida é a nossa, aqui se trata singelamente da constatação de que é ali que a temática mais se desenvolveu. Entretanto, as contribuições de Marx têm sido profundamente questionadas nos últimos tempos: o destino do leste europeu, as críticas ao autoritarismo do modelo leninista de partido político, a perplexidade dos economistas, marxistas inclusive, sobre os rumo ou a falta de rumo da economia ocidental, traz consigo, como é natural e saudável, um questionamento dos postulados marxistas. Qualquer obra pode e deve ser questionada, principalmente quando é uma grande obra. Aliás, o que define uma grande obra é exatamente sua generosidade. Não é o que ocorre com a obra de Freud? Quantas leituras antagônicas entre si os seus escritos permitem e efetivamente se realizaram? Do nosso ponto de vista, quanto ao marxismo, temos a observar o seguinte: O leninismo está em questão e a leitura feita por Lenin foi a face mais visível e atuante do marxismo, na medida em que se configurou como sistema de poder. No entanto o leninismo é apenas uma leitura e uma prática do marxismo e que sequer destaca o que, no plano da economia política, foram as suas melhores contribuições. É preciso distinguir a obra de Marx de uma de suas leituras se quisermos avaliá-la com precisão. Por outro lado, assim como grande parte dos psicanalistas e dos seus críticos não leu com a atenção necessária a obra de Freud, também boa parte dos marxistas e seus críticos não dedicou a Marx a atenção que os seus escritos merecem. Procuramos dar esta atenção aqui, com um duplo objetivo: 1. Por à prova as descobertas de Marx sobre o processo de trabalho; 2. Nos inserirmos no debate sobre a atualidade ou não das formulações marxianas. Um artigo de Habermas (1983), publicado originalmente em 1968, intitulado Técnica e Ciência enquanto Ideologia, apresenta uma notável tese acerca do papel da ciência e da tecnologia na criação do valor:
"Com a pesquisa industrial em grande escala, ciência, técnica e valorização foram inseridas no mesmo sistema. Ao mesmo tempo, a industrialização ligase a uma pesquisa encomendada pelo Estado que favorece, em primeira linha, o progresso científico e técnico no setor militar. De lá as informações voltam para os setores de produção de bens civis. Assim, técnica e ciência tornam-se a principal força produtiva, com o que caem por terra as condições de aplicação da teoria do valor do trabalho de Marx. Não é mais sensato querer calcular as verbas de capital, para investimentos em pesquisa e desenvolvimento, à base da força de trabalho não qualificado (simples), se o progresso técnico-científico tornou-se uma fonte independente de mais valia, face à qual, a única fonte de mais-valia considerada por Marx, a força de trabalho dos produtores imediatos, perde cada vez mais seu peso" (págs 330-1) Para Habermas, como vemos, o progresso técnico-científico tornou-se a principal fonte de mais-valia e não mais a força de trabalho. É importante notar que não apenas ao nível da produção social em geral isto seria verdade - a predominância da ciência e da tecnologia nos processos de formação do valor e valorização - mas, inclusive, e principalmente - e é o que nos interessa - ao nível do próprio processo de trabalho. O trabalho, a atividade orientada para a produção de utilidades não mais governa, individual ou coletivamente, o processo de trabalho. Um exemplo desse novo estágio do desenvolvimento das forças produtivas é a automação industrial. Uma das aplicações da automação é representada pela máquina ferramenta de controle numérico (MFCN). A automação modifica o processo de trabalho e com ele o papel do trabalhador. Na MFCN as operações são automáticas, é a máquina que realiza as operações sobre os objetos de trabalho, inclusive a preparação e o controle de qualidade, e não mais o operador da máquina, o trabalhador. Ao operador cabe principalmente a supervisão e controle geral do processo de trabalho. A força de trabalho integrada a esse novo processo produtivo, antes qualificada em operações mecânicas, na operação de MF convencionais, é substituída por força de trabalho ocupada em programação e controle, qualificada em eletrônica. Neste caso, entre o homem e a natureza existe uma nova mediação, não apenas o instrumento de trabalho, não apenas a máquina, mas entre eles um programa que controla a máquina. Habermas diz que, neste novo estágio, "caem por terra as condições de aplicação da teoria do valor do trabalho de Marx". Cairão também as análises marxianas do processo de trabalho? Examinemos essas questões a partir do próprio Marx. A Análise Marxiana da Grande Indústria
Pelo menos em dois capítulos de O Capital, Marx (s/d) define processo de trabalho. No capítulo V do livro I, a primeira definição: "Antes de tudo, o trabalho é um processo entre o homem e a natureza, um processo em que o homem, por sua própria ação, media, regula, controla seu metabolismo com a Natureza". Mais adiante, define seus elementos simples: "Os elementos simples do processo de trabalho são a atividade orientada a um fim ou o trabalho mesmo, seu objeto e seus meios". Imaginemos agora o trabalho de um operador de torno, de uma máquina ferramenta. É possível identificar esses elementos simples? Existiria correspondência entre os elementos simples do processo de trabalho e a atividade e meios do operador? A correspondência abaixo é válida? Objeto de trabalho = Peça metálica. Meio de Trabalho = Torno. Atividade orientada = Operação da máquina. Fim = Peça torneada. O objeto de trabalho é realmente a peça a ser torneada, porém, a máquina ferramenta não é, de modo algum, o meio de trabalho para o operador, pois não é ele quem irá, através de sua habilidade e destreza tornear a peça. Esta destreza e habilidade são propriedades da máquina. Nem mesmo "a atividade orientada a um fim" representa a vontade do operador, é uma finalidade já objetivada no regulador automático que controla a MF. O próprio mecanismo não é sequer produto do operador direto, mas síntese de diversos trabalhos sociais. A definição de processo de trabalho do capítulo V não nos satisfaz, é evidente; e nem a Marx. Passemos, pois, à segunda definição contida no capítulo XIV, também do livro I: "O processo de trabalho foi considerado primeiramente em abstrato (ver capítulo V), independente de suas formas históricas, como processo entre o homem e a natureza. Disse-se aí: 'Considerando-se o processo inteiro de trabalho do ponto de vista de seu resultado, então parecem ambos, meio e objeto de trabalho, como meios de produção, e o trabalho mesmo como trabalho produtivo.' E na nota 7 foi complementado:
'Essa determinação de trabalho produtivo, tal como resulta do ponto de vista do processo simples de trabalho, não basta, de modo algum, para o processo de produção capitalista. (...) Na medida em que o processo de trabalho é puramente individual, o mesmo trabalhador reúne todas as funções que mais tarde se separam. (...) Como no sistema natural, cabeça e mãos estão interligados, o processo de trabalho une o trabalho manual com o trabalho intelectual. Mais tarde se separam até se oporem como inimigos. O produto transforma-se, sobretudo do produto direto do trabalhador individual em social, em produto comum de um trabalhador coletivo, isto é, de um pessoal combinado de trabalho, cujos membros se encontram mais perto ou mais longe da manipulação do objeto de trabalho". Logo a seguir Marx acrescenta: "Para trabalhar produtivamente, já não é necessário, agora, pôr pessoalmente a mão na obra, basta ser órgão do trabalhador coletivo, executando qualquer uma de suas subfunções". A primeira definição de Marx - a do capítulo V - foi uma definição abstrata, "independente de suas formas históricas". É uma definição que serve para definir o processo de trabalho em qualquer modo de produção, em qualquer período histórico. O homem desta definição que se apropria da natureza não é o indivíduo, mas sim a espécie humana, a apropriação social dos recursos natural. A análise que efetuamos atrás mostra-se agora absurda, pois os termos da identidade não se equivaliam. Para definir processo de trabalho sob o modo de produção capitalista estão pressupostos, portanto, entre outros: Compra e venda da força de trabalho: regulamentadas, juridicamente, através de um contrato de trabalho Organização capitalista do trabalho: divisão do trabalho manual e intelectual. Divisão parcelar do trabalho: o que significa a constituição do trabalhador coletivo e a consequente fragmentação e desqualificação do trabalhador individual. Maquinaria desenvolvida Apenas depois de ter abordado esses elementos, que não são simplesmente lógicos, mas resultado do processo de desenvolvimento histórico é que é possível tratar do processo de trabalho em moldes exclusivamente capitalistas, e com isso a redefinição do processo de trabalho e do trabalho produtivo:
"Apenas é produtivo o trabalhador que produz mais-valia para o capitalista ou serve à auto-valorização do capital. Se for permitido um exemplo fora da esfera da produção material, então um mestre escola é um trabalhador produtivo se ele não apenas trabalha as cabeças das crianças, mas extenua a si mesmo para enriquecer o empresário. O fato de que este último tenha investido numa fábrica de ensinar, em vez de numa fábrica de salsichas, não altera nada na relação. O conceito de trabalho produtivo, portanto, não encerra de modo algum apenas uma relação entre trabalhador e produto do trabalho, mas também uma relação especificamente social, formada historicamente, a qual marca o trabalhador como meio direto de valorização do capital". Dada a segunda definição, de que maneira montaríamos nossa equação dos elementos simples do processo de trabalho para análise da atividade do operador do torno? Examinemos agora o processo de trabalho com base nos novos elementos e pressupostos. Saem os termos "trabalhador" e "meios de trabalho" e entram os termos "trabalhador
coletivo",
"subfunções",
"maquinaria"
e
"organização
capitalista".
Permanecem: "objeto de trabalho", "atividade orientada" e "fim". Estão pressupostos: A compra e venda da força de trabalho: a força de trabalho principal é a de profissionais qualificados em mecânica. Força de trabalho é definida por Marx como o conjunto de faculdades físicas e intelectuais existentes na corporalidade, na personalidade viva de um homem. Para o capital, o mercado de trabalho é o supermercado de habilidades, aptidões, destrezas, conhecimentos, em uma palavra, qualificações disponíveis na forma de mercadoria. As condições históricas que permitiram que o conjunto de faculdades humanas se transformasse em mercadoria foram analisadas por Marx nos Grundrisse. Somente no modo de produção capitalista o trabalhador possui apenas uma existência subjetiva, a qual entra em negociação quando se comercializa a força de trabalho. Essa relação econômica de compra e venda expressa-se enquanto relação jurídica através do contrato de trabalho. por meio dele um trabalhador se compromete a trabalhar durante certo período - o que configura a jornada de trabalho em troca de um salário. Troca-se tempo de existência pelo meio hegemônico de reprodução: o salário. Trabalhador coletivo: constituído por engenheiros, operários de manutenção, mecânicos, operadores etc. O operador do torno executa uma das subfunções do
trabalhador coletivo, o sujeito efetivo do processo de trabalho. Não produz diretamente o produto, está envolvido em seu processo de produção. Organização capitalista: no caso poderia ser uma indústria do setor metalmecânico, produtora de componentes eletrônicos. Maquinaria desenvolvida: A MF é composta de três elementos: a fonte de energia, o mecanismo de transmissão e as ferramentas responsáveis pelas
operações de
torneamento da peça. Objeto de trabalho: peça de metal Atividade orientada do operador: não é mais o torneamento da peça, mas o controle desse torneamento através de operações e regulagens. Fim - peça torneada que já esta projetada, objetivada no sistema mecânico. Com a segunda definição de Marx é possível analisar o trabalho industrial contemporâneo, a aplicação desenvolvida da ciência e da tecnologia, na forma de processos de produção automáticos. Marx não analisou, é claro, a automação industrial que desenvolveu-se a partir dos anos 50 do século XX. A fábrica automática e o sistema automático de maquinaria do tempo de Marx são regidos pelo princípio do controle automático, ou seja, pela mecanização, os movimentos são sincronizados, as operações rigidamente cronometradas e a seqüência é invariável. Qual é o papel do trabalho no sistema automático de maquinaria? E qual sua contribuição para o processo de valorização? Marx abordou essas questões em O Capital (Marx, s/d) e nos Grundrisse (Marx, 1985 b). Em O Capital, capítulo XIII do livro I, Marx diz: "Como qualquer outro componente do capital constante, a maquinaria não cria valor, mas transfere seu próprio valor ao produto, ela se constitui num componente de valor do mesmo. Ao invés de barateá-lo, encarece-o proporcionalmente a seu próprio valor". Logo em seguida: "É preciso, agora, observar inicialmente que a maquinaria sempre entra por inteiro no processo de trabalho e sempre apenas em parte no processo de valorização. Ela nunca agrega mais valor do que em média perde por seu desgaste. Há,
portanto, grande diferença entre o valor da máquina e a parcela que ela transfere periodicamente para o produto". E complementa: "Deduzamos de ambas, da maquinaria e da ferramenta, seus custos médios diários ou a componente de valor que, mediante o desgaste médio diário e o consumo de materiais acessórios, como óleo, carvão, etc., agregam ao produto, então verificaremos que atuam de graça, exatamente da mesma forma que forças naturais sem acréscimo de trabalho humano. Quanto maior o âmbito de atuação da maquinaria em relação ao da ferramenta, tanto maior o âmbito de seu serviço não-pago, em comparação com o da ferramenta. Só na grande indústria o homem aprende a fazer o produto de seu trabalho anterior, já objetivado, atuar gratuitamente em larga escala como uma força da Natureza". Marx afirma que descontado o custo médio diário do desgaste e consumo, a maquinaria, mais que a ferramenta, atua de graça, como uma força natural, mais na grande indústria de produção de larga escala, do que nas pequenas de produção discreta. Nos Grundrisse, Marx (1985 b) abordou a relação entre o desenvolvimento tecno-científico e a produção de mais-valia da seguinte forma: "O trabalho já não aparece tanto como recluso ao processo de produção, melhor dizer que o homem se comporta como supervisor e regulador com respeito ao processo de produção mesmo (...)(...) O trabalhador já não introduz o objeto natural modificado, como escala intermediária, entre a coisa e si mesmo, mas sim insere o processo natural, ao que transforma em industrial, como meio entre si mesmo e a natureza inorgânica, a qual domina. Se apresenta ao lado do processo de produção, em lugar de ser seu agente principal". As invenções se tornam um ramo produtivo, o desenvolvimento consciente da ciência e a sua aplicação técnica a serviço do capital: "As invenções se convertem então em ramo da atividade econômica e a aplicação da ciência à produção imediata mesma se torna critério que determina e incita a esta. Não é ao largo desta via, contudo, que tem surgido em geral a maquinaria, e menos ainda a via que segue em detalhe a mesma, durante sua progressão. Esse caminho é a análise através da divisão do trabalho, a qual transforma já em mecânicas as operações dos operários, cada vez mais, de tal modo que em certo ponto o mecanismo pode introduzir-se em lugar deles".
Nos esboços de O Capital já está posto o trabalho enquanto mero supervisor e regulador do processo de produção e a mais-valia enquanto base miserável do valor. Porém, é justamente quando o trabalho assume esta posição, a compreensão e domínio da natureza se torna a principal força produtiva, o que Marx identifica com a possibilidade do desenvolvimento pleno, ou quase pleno, do indivíduo social. Neste momento, o tempo de trabalho deixa de se equivaler à riqueza social: "O sobretrabalho da massa deixa de ser condição para o desenvolvimento da riqueza social, assim como o não-trabalho de uns poucos deixa de sê-lo para o desenvolvimento dos poderes gerais do intelecto humano. Com ele (o novo estágio) se esfuma a produção fundada no valor de troca, e o processo de produção material imediato deixa de ser a forma de necessidade apremiante e o antagonismo. Desenvolvimento livre das individualidades, e por fim, não redução de tempo de trabalho necessário com objetivo de por mais-trabalho, mas sim, em geral, redução do trabalho necessário da sociedade a um mínimo, ao qual corresponde então à formação artística, científica, etc., dos indivíduos graças ao tempo que se tornou livre e aos meios criados para todos. O capital mesmo é a contradição em processo". Este novo estágio de desenvolvimento das forças produtivas, o sistema automático de maquinaria, tem conseqüências evidentes para o processo de trabalho e para o trabalhador: "A máquina em nenhum aspecto aparece como meio de trabalho para o operário individual. Sua diferença específica de modo algum é, como no meio de trabalho, a de transmitir ao objeto a atividade do operário, ao invés esta atividade se encontra posta de tal maneira que não faz mais que transmitir à matéria prima o trabalho ou ação da máquina, que vigia e preserva de avarias". "(...) A máquina, dona em lugar do operário da habilidade e da força, é ela mesma a virtuosa, possui uma alma própria presente nas leis mecânicas que operam nela, e assim como o operário consome comestíveis, ela consome carvão, óleo etc. (matérias instrumentais) com vistas a seu automovimento contínuo. A atividade do operário, reduzida a uma mera abstração da atividade, está determinada e regulada em todos os aspectos pelo movimento da maquinaria, e não o inverso. A ciência que obriga aos membros inanimados da máquina mercê à sua construção - a operar como um autômato, conforme a um fim - não existe na consciência do operário, mas sim opera através da máquina, como poder alheio, como poder da máquina mesmo sobre aquele".
"O processo de produção deixou de ser processo de trabalho no sentido de ser controlado pelo trabalho como unidade dominante". Chegamos, aparentemente, a um momento paradoxal da nossa investigação: as afirmações de Habermas e Marx coincidem plenamente! Antes, contudo, de aceitarmos essa conclusão, devemos examinar o problema mais detidamente. Na verdade não é uma única questão, são pelo menos duas: 1a.) Participação da força de trabalho e da maquinaria no processo de trabalho. Para Marx o sistema automático de maquinaria - a aplicação consciente da compreensão da natureza - entra inteiramente no processo de trabalho, o trabalhador executa as funções de supervisão e vigilância, e, por isso, o processo de produção deixou de ser governado pelo trabalho. Este "entrar inteiramente no processo de trabalho" se refere à capacidade produtiva da maquinaria e não à criação do valor. 2a.) Contribuição da maquinaria para a formação do valor. Devemos admitir que as formulações de Marx apresentam certa dubiedade. Por um lado, a sua posição é inequívoca: "A mais-valia só se origina da parte variável do capital e vimos que a massa da mais-valia é determinada por dois fatores, a taxa de mais-valia e a massa de trabalhadores ocupados (...) (A produção mecanizada) transforma parte do capital, que antes era variável, isto é, que se convertia em força de trabalho viva, em maquinaria, portanto em capital constante, que não produz mais-valia" (Marx, livro I, s/d). A maquinaria produz apenas mais-valia relativa ao baratear ou substituir a força de trabalho empregada no processo de produção. Por outro lado, as expressões "atuar gratuitamente" e "serviço não-pago" poderiam dar a entender que elas colocam em relação a capacidade produtiva da maquinaria e o valor transferido ao produto. A dubiedade nasce não apenas dos termos utilizados - gratuito, não-pago - mas principalmente por estarem inseridos no item 2 do capítulo da maquinaria: "Transferência de valor da maquinaria ao produto". A aparente contradição se resolve ao seguirmos o curso do raciocínio de Marx. Afirma ele no início do item 2: "Viu-se que as forças produtivas decorrentes da cooperação e da divisão do trabalho nada custam ao capital. São forças naturais do trabalho social. Forças
naturais como vapor, água etc. que são apropriadas em seu para uso em processos produtivos, também nada custam". O novo estágio de desenvolvimento das forças produtivas que Habermas anuncia - a interdependência entre ciência e produção industrial - já está posto por Marx. Assim como a cooperação e a divisão do trabalho, também a ciência se tornou uma força produtiva conscientemente aplicada. Entre a produção industrial em larga escala e a ciência existe a tecnologia: "Uma vez descobertas, a lei do desvio da agulha magnética no campo de ação de uma corrente elétrica ou a lei da indução do magnetismo no ferro em torno do qual circula uma corrente elétrica já não custam um centavo. Mas, para exploração dessas leis pela telegrafia etc., é preciso uma aparelhagem muito cara e extensa". Dessa forma, a frase, antes enigmática, torna-se clara: A aplicação da ciência, a reprodução conceitual de processos e forças naturais na forma de princípios ou leis científicas, nada custam ao capital, atua de graça, realiza trabalho não-pago. O que custa é a aplicação científica desses princípios científicos, "a aparelhagem", por vezes "muito cara e extensa". O que Marx quer ressaltar é o predomínio da "compreensão e domínio da natureza enquanto principal força produtiva, não enquanto "fonte independente de valor". Nesse sentido, as formulações dos Grundrisse, mais extensas e mais aprofundadas, são muito mais claras que o trecho de O Capital. A predominância da ciência e da tecnologia no processo de produção, em relação ao trabalho, não é apenas um momento negativo. Ela representa a tendência crescente da socialização da produção. O trabalho que não mais governa o processo de produção é o dos trabalhadores diretos, o que significa o enriquecimento do trabalhador coletivo: "A maquinaria, com algumas exceções a serem aventadas posteriormente, só funciona com base no trabalho imediatamente socializado ou coletivo. O caráter cooperativo do processo de trabalho torna-se agora, portanto, uma necessidade técnica ditada pela natureza do próprio meio de trabalho." Segundo Marx, os principais efeitos da produção mecanizada são a apropriação, pelo capital, de força de trabalho infantil e feminina e a intensificação e prolongamento da jornada de trabalho. Na medida em que a maquinaria prescinde da força e da habilidade para a execução do processo de trabalho, o capital pode fazer uso de mão-de-obra suplementar. Seu principal efeito é a desvalorização da força de
trabalho. Esta desvalorização é conseguida, também indiretamente, ao baratear as mercadorias que entram em sua reprodução. O princípio da mecanização e o controle automático revolucionam de tal modo o processo de produção que todos os seus elementos são redefinidos, ou seja, assumem formas adequadas a esse novo estágio de desenvolvimento dos meios de produção, a base adequada de existência do capital fixo. A divisão do trabalho torna-se essencialmente técnica: "A medida que na fábrica automática ressurge a divisão de trabalho, ela é, antes de tudo, distribuição dos trabalhadores entre as máquinas especializadas e de massas de trabalhadores, que no entanto não formam grupos articulados, entre os diversos departamentos da fábrica, onde trabalham em máquinas-ferramentas da mesma espécie, enfileiradas umas ao lado das outras, ocorrendo, portanto, apenas cooperação simples entre eles. O grupo articulado da manufatura é substituído pela conexão do operário principal com alguns poucos auxiliares." "Da especialidade por toda a vida em manejar uma ferramenta parcial surge, agora, a especialidade por toda a vida em servir a uma máquina parcial." O que na mercadoria era caráter fetichista, seu caráter fantasmagórico, revela-se como poder efetivo do sistema de maquinaria sobre o trabalhador: "Na manufatura e no artesanato, o trabalhador se serve da ferramenta; na fábrica, ele serve a máquina. Lá, é dele que parte o movimento do meio de trabalho; aqui ele precisa acompanhar o movimento. Na manufatura, os trabalhadores constituem membros de um mecanismo vivo. Na fábrica, há um mecanismo morto, independente deles, ao qual são incorporados como um apêndice vivo (...) (...) Enquanto o trabalho em máquinas agride o sistema nervoso ao máximo, ele reprime o jogo polivalente dos músculos e confisca toda a livre atividade corpórea e espiritual. Mesmo a facilitação do trabalho torna-se um meio de tortura, pois a máquina não livra o trabalhador do trabalho, mas seu trabalho de conteúdo. (...) Não é o trabalhador quem usa as condições de trabalho, mas, que, pelo contrário, são as condições de trabalho que usam o trabalhador: só, porém, com a maquinaria é que essa inversão ganha realidade tecnicamente palpável." Com a maquinaria dá-se o acabamento da expropriação do saber operário com a cisão radical entre trabalho manual e intelectual:
"A separação entre as potências espirituais do processo de produção e o trabalho manual, bem como a transformação das mesmas em poderes do capital sobre o trabalho, se complementa, como já foi indicado antes, na grande indústria erguida sobre a base da maquinaria". Os meios e métodos de controle do processo de trabalho, ou seja, o exercício do poder do capital sobre o trabalho também se alteram modificando a disciplina, surgindo a figura do supervisor: "A subordinação técnica do operário ao andamento uniforme do meio de trabalho e a composição peculiar do corpo de trabalho por indivíduos de ambos os sexos e dos mais diversos níveis etários geram uma disciplina de caserna, que evolui para um regime fabril completo, e desenvolvem inteiramente o trabalho de supervisão, já antes aventado, portanto ao mesmo tempo a divisão dos trabalhadores em trabalhadores manuais e supervisores do trabalho, em soldados rasos da indústria e sub-oficiais da indústria". Além do que, "a maquinaria oferece à gerência a oportunidade de fazer por meios inteiramente mecânicos aquilo que anteriormente pretendera fazer pelos meios organizacionais e disciplinares" (Braverman, 1981). Os métodos de controle organizacionais e disciplinares não desaparecem, pelo contrário, são agora codificados na forma de regulamentos que impessoalizam ainda mais o controle, retornando a Marx (s/d): "O código fabril, em que o capital formula, por lei privada e autoridade própria, sua autocracia sobre seus trabalhadores, sem a divisão dos poderes tão clara fora daí à burguesia e sem o ainda mais amado sistema representativo, é apenas a caricatura capitalista da regulação social do processo de trabalho, que se torna necessária com a cooperação em grande escala e a utilização de meios coletivos de trabalho, notadamente a maquinaria. No lugar do chicote do feitor de escravos surge o manual de penalidades do supervisor. Todas as penalidades se resolvem, naturalmente, em penas pecuniárias e descontos de salários, e a sagacidade legislativa desses Licurgos fabris faz com que a violação de suas leis lhes seja onde possível mais rendosa do que a sua observância".
CAPÍTULO VIII
A EVOLUÇÃO HISTORICA DO TRABALHO
Os desenvolvimentos analisados por Marx do sistema automático de maquinaria compreendem o período da primeira fase da Revolução Industrial - que se estendeu aproximadamente de 1750 a 1860 - e o início da segunda fase da Revolução industrial, a partir de 1860. A Revolução Técno-Científica inicia-se nas últimas décadas do século XIX. No que se refere a controle automático, "o primeiro regulador automático de que se tem notícia é o regulador centrífugo em 1775, por James Watt, para o controle automático de velocidade das máquinas a vapor" (Santos, 1979). Somente em 1868, Maxwell, "utilizando o cálculo diferencial, estabeleceu a primeira análise matemática do comportamento de um sistema máquina-regulador, Por volta de 1900 aparecem outros reguladores e servo-mecanismos aplicados à máquina a vapor, a turbinas e a alguns processos" (Santos, 1979). A que nível estava o controle automático que Marx analisa? Braverman (1981) coloca a questão da seguinte forma: "Com o surgimento da indústria moderna, escreveu Marx, as formas diversas, aparentemente desconexas e petrificadas dos processos industriais dissolveram-se em tantas outras aplicações conscientes e sistemáticas da ciência natural para a consecução de efeitos proveitosos". Mas, como muitas das mais esclarecedoras observações de Marx, esta era, em seus dias, mais previsão e introvisão profética do que uma descrição da ciência natural. A era das 'aplicações conscientes e sistemáticas da ciência natural' havia escassamente anunciado sua chegada quando essas palavras foram publicadas em 1867. Braverman tem razão, se compararmos uma máquina-ferramenta com uma máquina-ferramenta de controle numérico (MFCN), se compararmos o princípio do controle automático com a automação. A preocupação de Braverman (1981) é distinguir a Revolução Industrial vivida por Marx, que foi impulsionada pela aplicação generalizada da energia do vapor, da Revolução Tecno-Científica - sustentada pelo quadrinômio aço-eletricidade-petróleomotor de explosão e da Revolução Microeletrônica que possibilitou a automação industrial e a informatização dos escritórios. Diz ainda que "a revolução técnico-científica (...) não pode ser compreendida em termos de inovações específicas - como no caso da
Revolução Industrial, que pode ser corretamente caracterizada por um punhado de invenções básicas - mas deve ser compreendida em sua totalidade como um modo de produção no qual a ciência deve ser compreendida em sua totalidade como um modo de produção no qual a ciência e as investigações exaustivas da engenharia foram integradas como parte de um funcionamento normal (...), na transformação da própria ciência em capital". Habermas e Braverman sublinham o mesmo ponto: as transformações sofridas pelo modo de produção capitalista a partir do Capital de Marx. O que mais surpreende, no entanto, é que tanto na fábrica automática de Marx, quanto na "automação em seu uso capitalista" de Palloix, a função do trabalhador é a de supervisão e controle geral do processo de trabalho. É evidente que entre um e outro existem cem anos de história, dois princípios revolucionários diferentes que regem o sistema autônomo de máquinas: a mecanização e a automação. Outro notável fato é que a lapidar frase de Marx, de que o "processo de produção deixou de ser processo de trabalho", até onde sabemos, não integre o texto de O Capital. Este é um problema que apenas levantaremos e deixaremos aos historiadores marxistas a difícil tarefa de responderem. Braverman, ao que parece, subestima a sistema automático de máquinas do tempo de Marx, pois, como vimos, é ela uma das bases efetivas, historicamente desenvolvida, que possibilita a construção de uma nova sociedade. Sem entender este ponto, as previsões de Marx confundir-se-iam com meras profecias. Um sistema automático de maquinaria não pode ser explicado por um "punhado de invenções básicas". "As ferramentas específicas dos diferentes trabalhadores parciais (...) transformaram-se agora nas ferramentas de máquinas de trabalho especificadas" (Marx, s/d). O desenvolvimento dessas ferramentas mecânicas só pode ser conseguido através da análise rigorosa, ou seja, científica, da divisão e da organização do trabalho da manufatura, superando, assim, a divisão subjetiva do trabalho e tornando-a divisão objetiva, o que possibilita, por sua vez, a construção de um autêntico sistema cooperativo de máquinas. Isso só é conseguido graças à aplicação técnica de princípios conscientemente desenvolvidos: "O processo global é aqui considerado objetivamente, em si e por si, analisado em suas fases constituintes, e o problema de levar a cabo cada processo parcial e de combinar os diversos processos parciais é resolvido por meio da aplicação
técnica da mecânica, química, etc, no que, naturalmente, a concepção teórica precisa ser, depois como antes, aperfeiçoada pela experiência prática acumulada em larga escala" (Marx, s/d). Na maquinaria podemos ver o desenvolvimento e a revolução proporcionada pela mecanização em substituir funções antes exclusivamente humanas. "Toda maquinaria desenvolvida" - nos diz Marx (1983) - "constitui-se de três partes essencialmente distintas: a máquina-motriz, o mecanismo de transmissão, finalmente a máquina-ferramenta ou máquina de trabalho. (...) É dessa parte da maquinaria que se origina a revolução industrial do século XVIII. Ela constitui ainda todo dia o ponto de partida, sempre que artesanato ou manufatura passam à produção mecanizada". A revolução industrial é, essencialmente, revolução dos instrumentos de trabalho, o surgimento de "ferramentas mecânicas". Analisemos duas de suas partes e vejamos de que modo elas substituem funções antes exclusivas do trabalhador. A máquina motriz substituiu e potenciou o que antes era obtido através de energia muscular humana para o manejo dos instrumentos de trabalho. Além disso, máquinaferramenta, executa com suas ferramentas as mesmas operações que o trabalhador executava antes com ferramentas semelhantes" (Marx, s/d). É esta característica da maquinaria que fez com que o processo de trabalho não mais governasse o processo de produção
e,
conseqüentemente,
provocasse
a
inversão,
não
apenas
das
individualidades, mas da própria relação subjetividade-objetividade exposta por Marx na análise da grande indústria: "Não é o trabalhador quem usa as condições de trabalho, são as condições de trabalho que usam o trabalhador. Só com a maquinaria essa invenção ganha realidade tecnicamente palpável". A máquina-ferramenta permite que o processo de trabalho prescinda da habilidade do trabalhador para dar forma ao objeto de trabalho ou, visto de outro ângulo, transforma essa habilidade numa característica técnica do equipamento. Com a automação industrial, uma quarta parte foi introduzida nesse sistema de máquinas descrito por Marx: o computador. Energia e habilidade já foram plenamente substituídos, o computador supera as funções sensoriais e cognitivas, como medição, cálculos e ajustes. Marx (s/d), numa nota no capítulo da maquinaria indagava:
"(...) Darwin atraiu o interesse para a história da tecnologia da Natureza, isto é, para a formação dos órgãos de plantas e animais como instrumentos de produção para a vida de plantas e animais. Será que não merece igual atenção a história da formação dos órgãos perceptivos do homem social, base material de toda organização social específica?(...)".
CAPÍTULO IX
PROCESSO DE TRABALHO E A CONSTRUÇÃO DA SUBJETIVIDADE
Quando falamos em processo de trabalho, sublinhamos o aspecto qualitativo do trabalho, seu conteúdo: a produção de utilidades que irão satisfazer necessidades humanas. Porém, na sociedade capitalista, o produto do trabalho não é um simples produto ou utilidade, é, antes, uma mercadoria, que tem como destino ser vendida e comprada no mercado. E, para que ela seja negociada, deve possuir valor; valor este que lhe é incorporado também pelo trabalho, não mais pelo processo de trabalho, mas pelo aspecto quantitativo do trabalho, pelo trabalho enquanto trabalho abstrato, o tempo socialmente necessário para a produção da mercadoria. Dizer que o produto do trabalho é uma mercadoria equivale a dizer que ele é unidade do processo de trabalho e do processo de formação de valor. Utilidade e valor, qualidade e quantidade, concreto e abstrato, conteúdo e forma, indivíduo e sociedade tornam-se, através do trabalho, unidades, tornam-se mercadorias. O estudo do processo de trabalho em seus elementos simples, não deve, portanto, dissociá-lo do que compõe sua unidade fundamental, o processo de produção de mercadorias, ou melhor, a forma capitalista de produção de mercadorias. Ao falarmos de produção, a atividade torna-se força de trabalho em movimento e os instrumentos e objetos tornam-se meios de produção, propriedades do capitalista. A organização (indústria, empresa, instituição) representa, então, a síntese da existência puramente objetiva do trabalhador e da existência objetivada do capitalista. Mercadoria, produção e organização são, enfim, os elementos complexos da investigação do processo de trabalho. No entanto, a sua determinação enquanto trabalho abstrato, enquanto mercadoria, não elimina o caráter qualitativo, concreto do trabalho, seu valor de uso, antes, prescinde dele em um primeiro momento. Para que um trabalho se torne mercadoria precisa atender alguma necessidade humana, "do estômago ou da fantasia". Nesta primeira leitura o trabalho-mercadoria, depende, se subsume ao trabalho concreto.
Historicamente a relação é inversa, o trabalho só aparece como produtivo enquanto valor de troca, quando subsume, quando faz desaparecer na trama social, o seu valor de uso para encontrar em seu lugar a capacidade de gerar valor. Uma dupla tensão, o valor de uso apaga, destrói, o valor de troca, ao mesmo tempo precisa dele. O valor de troca destrói o valor de uso e igualmente precisa dele. Esta interdeterminação cria um campo de força no qual o processo de trabalho se instala e através do qual pode ser compreendido. Voltemos a nossa definição inicial: Processo de Trabalho é uma atividade orientada a um fim, valor de uso, e acrescentemos, que se desenvolve no confronto com o valor de troca do trabalho. Pois bem, na trama social entre as classes o trabalhador comparece com a face ligada ao valor de uso do trabalho e o dono dos meios de produção se confunde com a forma valor. Vejamos empiricamente como se dá este processo. O Gesto Tomemos o gesto produtivo propriamente dito: A palavra gesto é utilizada aqui como tática de diferenciação da palavra comportamento marcada pelo uso na teoria Behaviorista, onde comparece definindo os atos do organismo apesar da teleologia. Ao falarmos em gesto pretendemos enfatizar o significado da atividade humana, seu conteúdo simbólico e necessariamente teleológico, admitimos a priori que a ação do trabalhador não é determinada em última instância na esfera dele mesmo, ao contrário, é externa ao que
os behavioristas chamavam de situação de estímulo.
Poderíamos ter escolhido a palavra ação, como fez Leontiev, na medida em que ela tem o mesmo significado teleológico que quisemos resguardar, "gesto" apenas se diferencia neste contexto, de ação, na medida em que a última se refere à atividade em geral, enquanto a primeira se insere no contexto de uma atividade específica: o trabalho Ao nível do gesto a relação é interna ao próprio trabalho e se determina por uma divisão de competências entre o capital e o trabalhador, intermediadas fundamentalmente pela tecnologia: a pergunta passa a ser, quanto da competência do trabalhador pode determinar ritmo, precisão ou aperfeiçoamento do trabalho. Em um ponto do continuum, o trabalho artesanal carregado de subjetividade, gerador do mestre, dono das suas habilidades e do seu resultado; em outro ponto, a determinação pela máquina, de tempo, ritmo e passos do qual a tarefa se compõe. O que cabe investigar aqui é a dinâmica objetividade/subjetividade deste ou daquele posto de trabalho em
particular. Assim, por exemplo, embora o nível de alienação de um metalúrgico em uma linha de montagem e o de um marceneiro em empresa de médio porte sejam indiferenciáveis de um ponto de vista geral, o grau de controle que cada um destes trabalhadores tem sobre seu trabalho, o sentido de perda e/ou recuperação do conteúdo subjetivo impregnado no produto, fará com que as relações do trabalhador com seu trabalho, evidentemente, se apresentem de formas distintas, devendo, portanto resultar em conseqüências psicológicas distintas. O gesto produtivo tem sido analisado pela Ergonomia, e dela emana uma trajetória didática da velha esperança, herdada de Taylor, de constituir uma ciência específica e bem delimitada do universo do trabalho: Nascida de uma concepção técnica estrita de adaptação do Homem às necessidades industriais, rapidamente é obrigada a se haver com a Engenharia Industrial, a Fisiologia, a Economia, a Psicosociologia, a ponto de ser definida hoje como uma "arte" e se considerar intrinsecamente interdisciplinar* . É do trabalho ser ancho, como a linha do horizonte, seus segredos sempre estão um pouco a frente. Aqui, é de bom senso evitar ilusões, partir a priori da desilusão em tentar circunscrever o gesto, assumir a priori sua múltipla determinação. A rotina que tantas vezes tem sido apontada como fonte de stress no trabalho, assume uma face de instrumento de combate ao mesmo stress. Por exemplo: no exercício de fazer tricô, após o expediente, que reinstala, agora ludicamente, a rotina e o estereótipo do escritório; no bombardeamento de informações avidamente procurado pelo usuário de vídeo-jogos nos momentos de lazer, o mesmo bombardeamento recusado no trabalho com informática, por elevar a carga mental a nível insuportável. É possível examinar o gesto produtivo a partir de variados ângulos e objetivos, pela empresa ou pelo trabalhador, pela segurança ou produtividade, etc. Qualquer que seja o ponto de vista, a contradição será a mesma: Enquanto mercadoria como qualquer outra é portador de valor de troca, comparece aqui indiferenciado e indiferenciável (força de trabalho) como a mercadoria; tanto faz vender leite, livros ou dinheiro, tanto faz comprar um artesão, um burocrata ou um poeta. No entanto a realização social do valor de troca demanda o valor de uso, é preciso que o leite alimente as crianças, os livros o espírito e o dinheiro o capitalista para que possam se transformar em mais valor, o mesmo é verdade para os burocratas e poetas. A dupla convivência (valor de uso e troca) que compõe o valor se transforma, no plano do gesto do trabalhador, em batalha campal, em confronto inesgotável e cotidiano, senão vejamos:
O trabalho é mais caro (troca) quanto mais precioso (uso) e vice-versa, mais barato (troca) quanto mais descartável (uso). Assim, interessa a empresa torná-lo impreciso, independente da habilidade do trabalhador, e ao trabalhador exatamente o contrário: um confronto entre trabalho e força de trabalho. O trabalho vale mais (troca) quanto mais trabalho estiver acumulado na história do trabalhador (uso), no jargão dos departamentos de pessoal isto se chama especialização. Interessa ao trabalhador concentrar em sua figura a acumulação da competência para trocá-la por mais salário, à empresa interessa substituir a experiência pessoal pela experiência genérica acumulada na maquinaria, tornar o trabalhador substituível. Como se dá esta luta? Em primeiro lugar pelo que chamaremos de confronto entre o hábito e a habilidade. Hábito significará, para nós, o mesmo que significa para o Aurélio (Ferreira, 1975): disposição duradoura adquirida pela disposição freqüente de um ato. A ênfase é dada na rotina, portanto não se trata de nenhum envolvimento do que poderíamos chamar de habilidade, que, segundo o mesmo dicionário, significa: aptidão para alguma coisa, competência. Para explicar a distinção, podemos utilizar o velho exemplo de caixa de Skinner, onde teríamos, em dois momentos diferentes do condicionamento do animal, o significado destas duas expressões. Falaremos em habilidade ao examinar, por exemplo, o tempo necessário para o animal aprender a tarefa (o número de gotas utilizadas na modelagem). Quando mais hábil o sujeito for, menor o número de tentativas, supondo obviamente o comportamento do experimentador, como constante. Falaremos em hábito ao tomar o próprio condicionamento já estabelecido em uma freqüência constante. Diremos que o animal está mais habituado quanto menos oscilações houver na curva de freqüência. No plano da atividade humana, diferenciamse facilmente os dois conceitos apontados aqui. Falemos em hábito de fumar, em habilidade de escrever, ou ainda, hábito de escrever, quando se trata de escrever constantemente a um amigo, por exemplo, ou habilidade quando se trata de aprender a escrever. A estrutura da fábrica é montada de forma a exigir o hábito e diminuir a habilidade. A minimização da tarefa, a própria divisão de trabalho, é mais eficiente quanto menos contar com envolvimento de habilidades específicas do trabalhador e, por contraposição, tornar a tarefa dependente da rotina do hábito. Nesse sentido, a tarefa do
departamento de treinamento não é a de ensinar mas sim o de expor o operário a uma situação que, no limite, independe de aprendizagem específica. Quer pela "eliminação do trabalhador", quer sofisticando os seus mecanismos de controle, a proposta, o objetivo, é sempre o mesmo: o de transformação de trabalho em força de trabalho. Obviamente essa relação não é linear, nem a distinção hábito e habilidade envolve categorias mutuamente exclusivas, e, por conseqüência, a transformação de trabalho em força de trabalho não se realiza senão de forma contraditória. É unânime, entre os operários, a valorização de treinamento. Fala-se muito em "ter uma profissão", e os operários buscam os cursos da especialização, quer os que são promovidos na própria fábrica, e também instituições como o SENAI, SESI etc, quer mesmo cursos remunerados na área de eletrônica. Quando um operário tem a chance de realizar qualquer um desses cursos, não a perde, e se orgulha de ter sido "escolhido" para a especialização. O departamento de treinamento é visto quase como um benefício para um operário, naturalmente porque a necessidade de especialização se identifica como um aumento de salário, mas não se limita a isso, como veremos a seguir. É comum explicar essa busca de especialização sob uma perspectiva de ascensão do operário na hierarquia da indústria. O indivíduo estaria contaminado por uma ideologia estranha à sua própria classe (burguesa), assumindo a perspectiva competitiva incentivada pelo sistema capitalista. Não se trata apenas disto, a necessidade de especialização pode ser vista enquanto perspectiva de ascensão, na indústria, mas não diretamente ligada às relações de poder e/ou a questão salarial, mas vinculada diretamente ao controle sobre o produto. O exemplo da busca por um trabalho no setor de controle de qualidade nas indústrias eletrônicas é claro: não há diferença salarial entre C.Q., e o consertador, mas há diferença evidente no que tange, I - ao controle sobre o próprio processo de solução e II - ao "ser necessário para a fábrica". A especialização aparece principalmente como um mecanismo de preservação do indivíduo no emprego, ao mesmo tempo em que implica o controle maior, pelo operário, do processo de produção, na medida em que aumenta o seu conhecimento dos processos e tarefas que existem na linha de montagem, sua capacidade de intervenção no produto realizado e, como soe acontecer, seu poder de barganha com a fábrica. Em uma palavra, ocorre com os operários processo inverso ao descrito anteriormente com a fábrica. Trata-se de uma valorização da habilidade contra o hábito,
a busca do treinamento, da especialização, da profissão, é a busca do resgate do significado original do trabalho e da possibilidade de substituição imediata que a fábrica engendra através dos processos de produção. Existem outros mecanismos, menos claros, em que esse processo ocorre. Um deles é o que poderemos chamar de supervalorização da própria função. Observando um consertador em fábrica de eletrodomésticos, podemos caracterizar seu trabalho como bastante simples: êle precisa examinar duas ou três curvas de um osciloscópio e separar peças boas das ruins. Entretanto, quando entrevistado ele pode se referir "aos milhões de curvas do osciloscópio", com o qual trabalha e que constituem "um trabalho difícil que exige usar muito a cuca". Diga-se de passagem que essa valorização de "usar a cabeça" aparece, de forma mais ou menos clara, em várias ocasiões, supervalorizando os testes de seleção, os cursos de especialização realizados, enfim, sempre que houver chance de auto-valorização. Como se viu, a fábrica não busca uma "adaptação" do Homem à máquina, pois isto implicaria se submeter ao empregado, na mesma medida em que consegue submetê-lo; ao contrário, a fábrica busca prescindir do trabalhador e não transformá-lo à sua imagem e semelhança. O engajamento da Fábrica na luta pela "eliminação" do trabalhador, enquanto elemento ativo na relação Homem-natureza, por outro lado, cria, ato contínuo, um movimento de resistência no operário, que o leva na direção de supervalorizar o Hábito, em contraposição à habilidade, usando os instrumentos de que dispõe: um curso, o tempo de profissão ou a fantasia. A apropriação da natureza se dá pela negação do trabalho mesmo que regurgita trabalho acumulado. A reapropriação do trabalho se dá pela negação do gesto fragmentado e/ou a luta pela reconquista do trabalho enquanto forma de reapropriação da natureza.
A Tarefa Agora é necessário enfocar a cooperação entre os trabalhadores, a divisão de trabalho longitudinal dentro de uma empresa. Chamaremos a este nível de análise de tarefa.
Pela sua difusão e importância nas indústrias contemporâneas, enfoquemos a linha de montagem. A linha de montagem é, por excelência, um dispositivo que secciona o trabalho , permite que os operários, em conjunto, produzam um televisor, sem que nenhum deles precise do menor conhecimento de eletrônica. Ocorre que a linha, ao mesmo tempo que fraciona o trabalho, impõe um ritmo coletivo à produção, que não pode ser modificado, sob pena de comprometer a seção inteira. Isto coloca a necessidade de "reservas", operários treinados em todas as tarefas da linha, capazes de substituir qualquer interrupção ou de recuperar o ritmo em caso de atraso. O controle sobre a tarefa, roubado pela linha de montagem reaparece no "reserva". O mesmo acontece com o revisor, o troca-peças, o consertador, o controle de qualidade. Todas essas são funções que implicam, por definição, controle sobre o produto, e todas elas, em si mesmas, espécies de subprodutos "bastardos" da fragmentação do trabalho. Se colocarmos por um momento entre parênteses seu significado histórico, a máquina pode ser considerada como um instrumento que potencia a ação do homem, como qualquer ferramenta o faz. Neste sentido, a máquina não é mais do que uma ferramenta "ideal", ou seja, a função da ferramenta é a de ampliar a força do homem, estender a capacidade do seu corpo, aumentar sua força (e.g. uma alavanca). A máquina, na medida em que pode aumentar quase indefinidamente a capacidade do homem e/ou reduzir ao máximo seu esforço, continua servindo às mesmas funções de uma forma ampliada. Ao reintroduzirmos a máquina no contexto histórico do Capitalismo, onde ocorre uma cisão entre a força de trabalho e a posse dos meios de produção, a maquinaria passa a exercer função oposta à que está descrita acima. Passa a substituir o trabalhador ou a diminuir, em muito, a importância do trabalho ("basta apertar um botão"). Mas, o que é a máquina senão trabalho acumulado? No plano da sua construção, assim como na sua manutenção. E eis de novo o mesmo caráter contraditório: a máquina, instrumento de "minimização da tarefa" é "tarefa acumulada" e exige conhecimento acumulado que se traduz na especialização do mecânico de manutenção.
Retomando: o objetivo do capital, de transformar o trabalho em força de trabalho (esforço que estamos chamando de "eliminação do trabalho"), se concretiza pela divisão da tarefa e/ou pela maquinaria, ambas geradoras de uma diminuição drástica na importância do trabalhador individual na produção, e ato contínuo, da capacidade de controle do trabalhador. Como em toda a natureza, a capacidade de controle sobre o meio não se perde, se transforma, ressurge dentro da própria gama de funções dentro da fábrica. A transformação do trabalho em mercadoria, ao "eliminar" o trabalhador individual como agente de transformação do meio imediato, recria o trabalhador enquanto classe social, agente de transformação da História, porque "dono coletivo" da força de trabalho. Na fábrica, a apropriação do trabalho se materializa pela apropriação do trabalho concreto, produto e produtor de capital. O roubo de trabalho se faz pelo trabalho acumulado. A máquina é trabalho acumulado, que elimina trabalho e recria o mecânico de manutenção. A fábrica, dona do gesto apropriado, é agente da reapropriação do gesto pelo trabalhador. A Empresa Enquanto Grupo Ao observador de uma situação de trabalho, o primeiro aspecto que se apresenta é o fato de ali estarem várias pessoas organizadas para um fim comum. É possível, e tem sido comum, interpretar uma empresa assim, nos seus determinantes institucionais. Como qualquer outra instituição a empresa elabora todo um conjunto de normas, a que o trabalhador deve se submeter. Comumente estas normas são apresentadas já no primeiro momento ao trabalhador, em rituais de "boas vindas" da empresa, por exemplo, uma "semana de integração", onde se entra em contato com o conjunto das normas de convivência. O processo de trabalho, compreendido enquanto análise das relações sociais na empresa, tem acumulado vasta literatura nos últimos anos, e quase se confunde com toda uma área da Psicologia chamada de "Psicologia Organizacional". A fusão foi tanta que as várias concepções de grupo social, desdobradas em técnicas de dinâmica de grupo, relações humanas, grupos de encontro e sensibilização freqüentam o
cotidiano das empresas: Um jovem psicólogo fantasiado de executivo e se comportando como um show man, declinando esforços e sorrisos para convencer os trabalhadores, em geral chefes e gerentes, de que a vida depende de se ter ouvidos apurados para os queixumes alheios. Essencialmente, o limite estrutural destas ou daquelas práticas de "relações humanas na empresa" tem sido exatamente a insistência em emudecer, nas suas concepções de trabalho, quem diria, o trabalho mesmo. Tudo se passa como se a situação de trabalho pudesse ser reduzida à sua face visível: um grupamento humano enredado em uma ação comum. É preciso destacar aqui uma concepção oposta. As relações humanas na empresa estão determinadas pela organização do trabalho e raramente podem ser compreendidas sem elas, assim, quando a fábrica publica um manual de integração e exerce um controle sobre o comportamento que o sujeito deve ter no banheiro, o objetivo parece ser o de manutenção de padrões de higiene aceitáveis para a vida coletiva; quando disciplina a circulação pelos corredores da linha de montagem, o objetivo pode ser o de preservação da segurança do trabalhador. Entretanto, estas normas do bem conviver se estabelecem a partir da posição que estes ou aqueles indivíduos ocupam na estrutura produtiva, o resultado final será sempre algum tipo de intervenção no comportamento do trabalhador e\ou nas relações sociais de trabalho. O trabalhador aparece na organização ocupando um cargo e desempenhando uma função. Ele já encontra, à sua espera, uma série de tarefas que deve cumprir. Encontra, também, os objetivos e os meios com os quais terá que produzir uma utilidade, um produto. Em outras palavras: o seu trabalho já está determinado. A êle só resta trabalhar. Dada a divisão do trabalho, o produto do trabalho só pode ser obra desse trabalhador coletivo, quer seja pela composição mecânica de produtos parciais autônomos, quer seja pela seqüência de processos e manipulações conexas. A tarefa de cada trabalhador é a determinação concreta das metas, dos objetivos organizacionais, que são, em última instância, o lucro, a valorização do capital. As inúmeras atividades, e, por vezes, as várias categorias profissionais que trabalham numa organização, devem sua unidade ao fato de terem vendido sua força de trabalho ao mesmo capital. Nem mesmo os objetivos e instrumentos de trabalho aparecem como tais, mas sim na figura de capital fixo, na forma de maquinaria, prédios, instalações.
Em resumo, a organização e todos os trabalhadores estão empenhados na produção de mercadorias e esta produção é de responsabilidade do capital, é tarefa da gerência, a administração de mercadorias, quer seja força de trabalho, maquinaria e instalações. A forma de administrar umas e outras é diferente e possui também um custo diferente. Para que a produção não cesse, as máquinas e equipamentos devem ter manutenção periódica, lubrificação, reparo, troca de peças ou substituição. As engrenagens devem funcionar. O mesmo ocorre com a força de trabalho, o chamado "pessoal". São necessárias normas de conduta e segurança, regras de disciplina hierárquica. Uma fábrica que estudamos normatiza, através de um "manual de integração", desde as conversas formais e informais com qualquer ocupante do espaço da indústria, até o uso de absorvente higiênico feminino. Essas normas estão sempre devidamente acompanhadas de instruções precisas, minuciosas. Esse código inclui o movimento estrito senso, ou seja, a circulação dentro da secção ou intersecções, a proibição pura e simples da saída do local de trabalho, salvo "casos de urgência"; disciplina as conversas entre os operários, proibindo-as em horários de produção, e limita as conversas com os superiores à comunicação formal. A intervenção que nos parece mais violenta, no entanto, é a que chamamos de transformação do evento privado em evento público: cujo resultado implica em reduzir, a níveis mínimos, a privacidade do operário. Os horários em que deve ir ao sanitário, o tempo que permanece ali e sua conduta na satisfação das próprias necessidades são objeto de normalização pela fábrica. O mesmo se dá na escolha da roupa, tipo de penteado etc. ("Deixe a vaidade para fora do trabalho"). A linguagem utilizada pelos manuais e pelos supervisores oscila entre autoritária e paternalista ("Quando o boné lhe é entregue, creia, não se trata de enfeite, visa protegê-la, evitar que seus cabelos sejam arrancados pela máquina no enrolamento"), como se o pressuposto básico fosse o de total irresponsabilidade do operário sobre os seus próprios movimentos. Além de violência que transpira da leitura dos manuais de "integração" e do depoimento dos operários, manifestadas no plano do controle sobre o outro, há algumas características que é necessário ressaltar:
As normas para ida ao banheiro, por exemplo, não são muito diferentes de qualquer código não escrito, em qualquer grupamento humano. Ou mesmo as normas escritas de uma instituição como a escola, por exemplo. As diferenças entre o código de conduta da fábrica e o código de outros espaços, que abriguem número relativamente grande de pessoas, não se devem ao conteúdo das normas, mas às formas de decisão e/ou aplicação de sanções. Trata-se de burocratizar, no sentido weberiano. Para Weber (citado por Lefort, 1970) "burocratização é a racionalização das atividades coletivas, manifesta entre outras coisas na concentração desmedida das unidades de produção e, em geral, de todas as administrações, no desenvolvimento dentro delas de um sistema de regras impessoais, tanto no que se refere à definição de funções, determinação de responsabilidades, como ao ordenamento da carreira". Uma adolescente que fosse considerada indiscreta em seus hábitos higiênicos poderia ser punida numa casa de família, mas seguramente esta punição não se encontra escrita em nenhum código de domínio público. Já o tipo de controle que a fábrica usa para garantir higiene e condições de trabalho acarreta, como subproduto, a invasão da privacidade do operário. A característica burocratizada da estrutura empresarial e a subseqüente transformação do evento privado em evento público transformam as relações institucionais em, não raro, um exercício de apropriação da privacidade. É muito comum os movimentos reivindicatórios dentro das unidades produtivas começarem com uma transgressão individual ou coletiva a estas normas dentro da fábrica. Exemplo digno de nota foi o de uma greve que se iniciou a partir da proibição da saída de um grupo de operários, na hora do almoço, para tomar um aperitivo no bar em frente. Outros depoimentos dão uma idéia clara do papel destacado que as restrições de movimento ocupam nas reivindicações, e da ira que provoca esse tipo de apropriação. Outro exemplo: certo operário que, ao burlar vigilância para tomar café, foi surpreendido e repreendido individualmente, mas, ato contínuo, sua disputa pessoal com a chefia ganhou dimensões coletivas. Ocorre que a apropriação do produto do trabalho do operário encontra vários prepostos entre o gesto e o consumo; entre eles poderíamos citar a tecnoburocracia da empresa, os mecanismos de marketing e toda a estrutura comercial, que exercem uma mediação física, inclusive, no processo de expropriação. O mesmo pode ser dito para o que chamamos de apropriação do gesto, que se inicia no exterior, passa pela "inteligentzia" nacional e é transformada pelo departamento de engenharia industrial em "modus operandi" do roubo do gesto na fábrica. Em síntese, a apropriação
é sempre mediada, o que transfere por vezes a reivindicação e/ou a revolta para estas diversas instâncias de mediação. No caso das relações sociais dentro da empresa, porque burocratizada e autoritária, a relação de apropriação aparece não mediada, a expropriação é direta. O contramestre, o supervisor de produção, vigia cotidianamente os movimentos do trabalhador. A apropriação se dá sem meias palavras, o que combina a violência da desprivatização do comportamento do operário, apontada acima, com a presença direta e cotidiana dos agentes da opressão. Retomemos a questão. Não há nada que diferencie essa "alienação da privacidade" de outras formas que a alienação tome dentro da fábrica. Muito menos podemos diferenciá-la, sob o ponto de vista da reivindicação operária. Encontra-se, na indústria, além de uma apropriação do produto do trabalho e do gesto, uma apropriação das relações sociais de produção, que envolve a privacidade do trabalhador. Apesar de ser fundamentalmente idêntica, nos processos, a outras formas de apropriação, apresenta algumas características que se destacam: seu caráter imediato (não mediatizado) e de intervenção direta no cotidiano. Para efeitos de paradigma, tomemos as normas disciplinares. Em primeiro lugar vejamos a forma escrita: As normas se apresentam devidamente acompanhadas de suas respectivas sanções, vestidas de uma linguagem autoritária, severa. O pressuposto do conjunto de normas, publicado no manual de integração, parece ser o de que em cada comportamento do operário, em cada momento, deve estar o controle da produção. Pois bem, tomadas em conjunto, tais normas são impossíveis de serem obedecidas à risca. Vejamos, por exemplo, os atrasos na hora da entrada (tolerância de 5 minutos por três vezes ao mês). Ora, o turn over da fábrica seria muito maior, se esta regra fosse rigorosamente cumprida; o mesmo poderíamos dizer sobre a circulação dentro da fábrica ou em outros pontos. Quando se observa através de entrevistas o discurso das pessoas envolvidas diretamente com o cumprimento e fiscalização de tais regras, o quadro se apresenta drasticamente diferente. Fala-se muito em complacência, em "jeitinho"; a linguagem, antes absolutizada, aparece agora com um colorido relativo, tudo depende do momento, da pessoa envolvida, do modo como cada contramestre encara o problema. Enfim, as normas relativizadas. Os critérios que orientam a relativização são claros, e aparecem de forma transparente nas respostas do chefe de Seleção de Pessoal: "Se ele atrasa, para ele o
motivo de demissão é o atraso, para nós é a greve". O espaço existente entre a formulação rigorosa das regras e a relativa complacência de aplicação é utilizado como uma espécie de carta guardada na manga, à mão da fábrica, para quando for necessário demitir ou punir de qualquer forma um operário, a despeito de qualquer legislação que por ventura possa proteger o trabalhador. As regras são criadas não para serem seguidas, e sim como instrumento adicional de controle, fantasmagórico, pairando na fábrica, sobre os trabalhadores. Se a gênese da relativização das normas se encontra onde a apontamos, a sua utilidade transcende a mera utilização em casos de exceção, e ganha o status de um trunfo adicional no cotidiano da fábrica. Ocorre que a não aplicação das punições disponíveis também é um instrumento de controle, pois cria uma relação de dependência pessoal entre o operário "perdoado" e o chefe "compreensivo", transformando o direito ao trabalho em dívida pessoal, acumulando "favores" que poderão ser cobrados quando interessar à fábrica ou ao chefe em particular. Ao mesmo tempo que é investimento que garante obediência futura, a relativização garante, ou tenta garantir, uma sobrevivência no presente, ao colocar o trabalhador na condição de devedor. É este o espaço que se abre para o que os operários chamam de "puxasaquismo", pequenos favores, bajulações, presentes, convites para batizado, enfim, um pequeno poder que pode ser exercido pelo contramestre em seu benefício pessoal, ao menos no plano do "prestígio", o que, em última instância, significa controle sobre o outro. É bom lembrar que um contramestre que "não esqueceu de onde veio", que "não abusa do seu poder", é muito bem considerado pelo trabalhador. Do ponto de vista do operário, poderemos notar a forma que assume a reivindicação de normas rigorosas. O trabalhador aspira à eliminação de espaço que existe entre a formulação e o cumprimento cotidiano de cada regra;"se é lei, é lei para todos". O trabalhador é contra a relativização, ou melhor, contra o sobrecontrole que a relativização implica. Quando saiu a primeira edição do Case History , de Skinner, ele próprio fez publicar no American Psychologist um “cartoon” que, muito tempo depois, seria reproduzido no Time. Trata-se de dois ratos em uma caixa de condicionamento, um deles dizendo ao outro: - "Consegui condicionar este sujeito aí em cima, toda vez que aperto a barra, ele me manda uma bolota de comida.”
Constatado, a nível de humor, o caráter contraditório do controle (Controlar o outro é se submeter a ele) nunca, parece, foi assumido enquanto categoria de análise na psicologia. Trata-se do mesmo fenômeno no contexto da fábrica. A norma rígida é faca que corta para qualquer lado que se lhe aponte. Pune-se o operário quando em erro, ao mesmo tempo orienta por onde o mesmo pode ou não pode caminhar; coíbe injustiças, ou, pelo menos, fornece instrumentos de luta contra elas; recupera a dignidade do trabalhador na medida em que desloca as relações com seus chefes imediatos do plano do favoritismo pessoal para o cumprimento (por vezes mútuo, chefia/empregado, como no caso das normas relativas à segurança) de "leis bem estabelecidas"; e , por último, permite a reivindicação coletiva de alteração destas mesmas regras, quando consideradas inadequadas ou injustas. Categoria Profissional* Todas as relações sociais aparecem como relações de troca. A mercadoria assumiu a hegemonia econômica, tornou-se o fundamento da sociabilidade: passa a comparecer como mediação inelutável no relacionamento entre os homens e do homem consigo mesmo. Neste contexto, o salário, o pagamento pelo tempo de trabalho vendido para a empresa, passa a representar para o trabalhador o vínculo entre a produção e o consumo, uma forma de reapropriação da sua identidade como sujeito. Uma determinada faixa salarial determina o acesso à educação, à cultura, a formas de utilização do tempo livre, criação e satisfação de necessidades. O salário, e com ele o locus que se ocupa na rede de profissões, aparece como fundamento da cidadania possível. "Cada qual carrega sua identidade social no bolso", dizia Marx. Um determinado padrão de inserção enquanto força de trabalho tende a permanecer constante na vida do trabalhador, sua presença como consumidor instala um determinado nível e possibilidades de realização como cidadão. Assim, porque constantes, estas determinações tendem a desaparecer do horizonte científico de interpretação. Se nas sociedades capitalistas o fazer se envolucra sob a forma de trabalho assalariado e capital, se tudo é revestido de uma ou outra forma, ambas não deixam de ser relações concretas entre seres sociais determinados. A condição de sujeito determinado acaba por delimitar o saber e o fazer. Optando pela identificação desse saber produtivo junto aos trabalhadores assalariados, é perante o capital que sua dimensão se explicita. É ainda nessa unidade com o capital que os trabalhadores
reunidos expressarão sua condição de existência enquanto trabalhadores assalariados em geral, enquanto trabalhadores singulares de perfil produtivo diferenciado. A essa diferenciação, que também expressa um determinado modo de ser dos trabalhadores assalariados, pode-se denominar categoria profissional. Se estudada no seu dia a dia, através de sua jornada de trabalho, configurada pela relação trabalho assalariado e capital, este aparecendo sob a expressão jurídica de empresa. Se observada em seu fazer material, em suas ações individualizadas na rede de operações que executa, lado a lado com outros trabalhadores, cujas relações serão sempre mediadas por ferramentas, máquinas, mercadorias, ou, ainda, por instalações, das mais simples às mais complexas, A categoria profissional aparece, em um primeiro momento, como parcela da força de trabalho potencial extraída do mercado de trabalho, articulada a determinado tipo de capital, integrada a uma unidade empresarial. Mas através da análise da rotatividade, da experiência quotidiana e da representação dos trabalhadores sobre o trabalho, observa-se que ela definitivamente se constitui dentro de um determinado ramo de produção, onde o trabalhador realiza a experiência de classe social. É uma mediação para o exercício de classe, é um modo de expressão das relações de classe, que só podem ser entendidas na unidade em que a contradição capital/trabalho acontece, pois é força de trabalho em realização, não trabalho potencial. Quanto mais intensa for sua integração no processo de trabalho, mais revelará as condições de existência. As categorias profissionais na literatura sociológica não
assumiram
significado dominante nos estudos desses últimos vinte anos. Os trabalhadores foram tomados como população em permanente fluxo migratório ou como base dos movimentos políticos sindicais. Na década de setenta, a temática deslocou-se para o papel do Estado na realização dos objetivos econômicos dominantes e na constituição de uma nova ordem democrático-liberal, como se enuncia em Ianni (1963) e Cardoso (1969). Anos depois surgem estudos sobre a dinâmica dos setores fundamentais da economia revelando alteração no perfil da demanda social, da produção e do consumo da força de trabalho, da dimensão do tempo de trabalho necessário para a geração de excedentes, realizados por Singer (1979). Mas seu esforço não ganha a solidariedade das demais ciências sociais, como aponta a bibliografia especializada contemporânea a sua obra.
A literatura internacional na área da sociologia do trabalho é vasta e consagrada na investigação dessa temática. É o caso da escola de Naville, fundada a partir
de seus estudos sobre formação profissional e vida média do trabalhador
produtivo na França, desdobrada no livro Le Nouveau Leviathan (Naville, 1970) e na edição do Traité de Sociologie du Travail (Friedman & Naville, 1973). São do Traité... as seguintes referências históricas: Veltz apontou caminhos para o entendimento da informatização das indústrias manufatureiras e da intelectualização da produção. Pharo estudou a inserção profissional diferenciada dos trabalhadores e a consciência profissional implícita nas opções de compromisso com o mercado de trabalho. Broda identificou três fontes de fundamentação do diagnóstico psicossocial de categorias profissionais, a saber: pressão horária, pressão hierárquica e tipo profissional. Esses esforços recentes voltam-se ao
de perspectiva
entendimento da dramaticidade
implícita à integração profissional das personagens coletivas, que são as categorias profissionais, no universo da produção capitalista. O conceito de categoria profissional não tem significado unívoco. Para o Sindicato dos Bancários, quem trabalha dentro de um banco é bancário, seja caixa ou vigia. Para o Sindicato da Alimentação, padeiros e operários de usina de álcool formam homogeneamente numa mesma categoria. É sempre preciso perguntar qual o nível analítico (econômico? político? psicológico?), qual o momento de ação (greve? guerra? produção de representações?) e qual o sujeito (Estado? governo? capital? empresário? força de trabalho? trabalhador?). Para Estado, capital e força de trabalho, fundamentais serão as categorias que realizem suas lógicas de reprodução. Para empresário e trabalhador, a lógica será permeada pelas variáveis de produção das representações, o que remete para consciência política dos sujeitos e para suas biografias. Se tomada em sua individualidade, trabalhador a trabalhador, no seu existir peculiar, na equação que esse trabalhador constrói perante o real e o imaginário de seu cotidiano, na associação ou dissociação que essa equação possa significar perante sua subjetividade, esse indivíduo não se integra a um circuito seu, e só seu, no mundo da produção, mas ele também não deixa de ser uma individualidade concreta, uma personalidade. Ele tem nome, cor, sexo, idade, e tudo é parte da subjetividade presente em sua existência. E será junto a outros trabalhadores que ela se manifestará, ao mesmo tempo em que essa unidade só vem à tona na sociedade capitalista, no espaço construído pelos assalariados unidos ao capital. É certo que essa unidade é
contraditória, mas é somente nela que o trabalhador se torna expressão social do seu significado como trabalhador, que o processo de trabalho imprime à sua existência. A dualidade do trabalho como mercadoria, como valor de uso e valor de troca tem correspondência imediata com seu modo de expressão, como trabalho concreto e abstrato, segundo seu valor perante a sociedade. O trabalho abstrato, que não é visível mas é real e condição de criação de valores cristalizados em cada mercadoria, independente do valor de troca que elas possam assumir nas pressões e contrapressões do mercado. O trabalho abstrato, como forma de atividade humana, é referência para identificar a atividade profissional de cada categoria e, nessa medida, a concepção do trabalho abstrato em Marx torna-se categoria explicativa. Forma de produção, setores de produção, ramos de atividade produtiva, unidades empresariais de produção ou serviços, trabalhadores integrados como categoria profissional a essas unidades. Todos esses planos da realidade social podem ser apreendidos através da unidade dialética entre trabalho abstrato e concreto nelas corporificada. Todo indivíduo é portador dessa dupla dimensão social, e se explicita sua potência social quando se integra, principalmente ao mercado de trabalho a ele próximo. Esse mercado é o espaço social ocupado pelos detentores do capital, compradores da força de trabalho dos indivíduos que reúnem saber produtivo mas que não são possuidores de meios materiais de realização desse saber. O que pode, então, interessar à psicologia social e à Psicopatologia é exatamente como esse fazer produtivo se realiza em nível do cotidiano de cada indivíduo trabalhador assalariado, e no que o seu dia a dia transforma esse fazer, sua potência transformadora. Em outras palavras, pode haver uma preocupação desses campos de investigação em estudar o impacto do trabalho cotidiano na reprodução do equilíbrio individual necessário a sua continuidade. Se é coerente o raciocínio até aqui desenvolvido, pode-se afirmar que as categorias profissionais são objetos privilegiados do trabalho interdisciplinar, na investigação de processo sociais amplos, psíquicos, psicopatológicos e epidemiológicos. Como objetos privilegiados, permitem revelar, no trabalho de campo e da reflexão teórica, a própria dimensão de classe da qual são portadoras. Esta afirmação demanda uma demonstração empírica, tomemos o exemplo de uma metalúrgica do ramo da eletrônica, vejamos apenas o aspecto salarial
na composição desta categoria profissional, perguntando sempre sobre suas mediações na composição da identidade do trabalhador: Consultemos apenas o "manual de descrição de função". Em primeiro lugar, a empresa diferencia entre cargo e função. O primeiro define o salário e a posição do trabalhador na hierarquia da empresa, o segundo define as tarefas que o trabalhador realizará. O que está em jogo quando se fala em “cargo" é o trabalho abstrato; quando se fala em função a referência passa a ser o trabalho concreto. O que merece destaque aqui é o fato do duplo significado do trabalho (valor de uso e valor de troca) ocupar espaços diferentes na própria organização do capital. Tanto é assim que cargo e função logram independência operacional para os trabalhadores, ambos podem estar realizando trabalhos diferentes e são enquadrados no mesmo cargo se o valor arbitrado para a força de trabalho alugada pela empresa apresentar equivalência. Os fatores que entram na composição do cargo são: instrução, experiência anterior, grau de responsabilidade, grau de desgaste e grau de risco. 1) O grau de instrução: "Este fator avalia o grau mínimo de conhecimento em termos de cultura geral e/ou técnicas exigidas para o exercício satisfatório do cargo. Esses conhecimentos podem ser adquiridos através de ensino escolar e/ou cursos sistemáticos e/ou estudos independentes". A empresa contabiliza e transforma em salário o trabalho anterior injetado na mercadoria trabalhador, pontuando em número de anos necessários para esta ou aquela formação específica. 2) Experiência anterior: O período de tempo necessário para que o ocupante do cargo venha a executar corretamente as tarefas atinentes ao mesmo; quando o cargo assim o exigir, devem-se considerar os conhecimentos adquiridos em outras funções mais o período de adaptação. Aqui também se considera quanto tempo de trabalho anterior se apresenta acumulado, mas com uma diferença: em instrução, a experiência acumulada é genérica, não está presa ao exercício desta função em particular, portanto, faz parte do patrimônio do trabalhador, transferível com ele a outras situações de trabalho. Já em "experiência anterior" este mesmo tempo injetado não se transfere com facilidade para outro ramo da produção, dependendo do nível de avanço tecnológico, sequer para outra empresa. Ora, instrução e experiência são exigências de qualificação para o exercício do trabalho nesta empresa e ao mesmo tempo como tais, são componentes
que se arrastam para a vida do trabalhador, além e apesar do limite estrito da jornada: os metalúrgicos se reconhecem enquanto tais, e, a partir daí, definem jargão e cultura, modos de apresentação social, roupas e hábitos coletivos, o acesso a informações e bens de consumo, diferenciadamente. 3) Esforço físico: "Dividido em níveis de 1 a 4, do esforço físico quase inexistente o – o ocupante que normalmente trabalha sentado(...) – até o cargo que exige do seu ocupante um esforço físico bastante elevado: assume normalmente posições incômodas e maneja pesos elevados, que, combinados, acarretam-lhe um desgaste físico intenso ao final da jornada de trabalho" 4) Segurança: "Em que o ocupante do cargo está sujeito a sofrer e/ou provocar acidentes de natureza grave, tais como esmagamentos, fraturas...” Aqui as coisas ficam cristalinas: está incluído na definição do cargo estritamente o grau de desgaste da mercadoria força de trabalho. Transfere-se para a composição da identidade do trabalhador, condicionantes físicos e mentais que irão defini-lo perante si mesmo e os outros com quem entrar em contato – por exemplo: seus medos e seus arroubos são estruturados a partir de sua categoria profissional. Exemplo drástico pode ser encontrado no que Dejours (1987) chamou de "ideologia defensiva" em trabalhadores da construção civil, onde a cultura do heroísmo e a desqualificação dos acidentes graves aparece como forma de convivência cotidiana com o risco. Uma das decorrências óbvias deste quadro é que o trabalhador interessa ao capital pela sua capacidade de conversão de trabalho em capital, apesar da especificidade desta ou daquela mercadoria. Em outras palavras, são as leis do mercado que definem a importância deste ou daquele profissional. Se uma marcenaria, em uma determinada conjuntura econômica, avalia como mais lucrativo o deslocamento de capital para os investimentos financeiros, ao invés de ampliar seu parque industrial, pode in limine apresentar um crescimento de capital apesar da estagnação do nível de emprego e/ou da capacidade produtiva, ou ainda, valorizar diferencialmente este ou aquele produto, apesar da injeção concreta de trabalho concreto realizada, porque a economia, sob a égide do capital financeiro, necessariamente desencadeia no processo de acumulação de capital um circuito de reprodução parcialmente descolado do setor produtivo. O dramático é o que a parcela financeira do capital termina por determinar o desenvolvimento da produção.
Uma primeira conclusão é possível retirar até aqui: Quanto
mais se
diversifica a economia, quanto mais o setor financeiro assume importância, quanto maior o nível de automação, maior a complexidade da divisão de trabalho, isto é, quanto mais o sistema capitalista "evolui", maior a independência aparente entre o trabalho concreto (realização de valor de uso) e o trabalho abstrato (realização de valor de troca). Apesar de aparente, quando na órbita da economia política, esta ruptura assume importância decisiva, se transforma em real, quando entramos no território da construção da identidade do trabalhador, na exata medida em que assume, como veremos, dimensões sociais definitivas, intervindo na determinação da identidade e no controle do trabalhador sobre o produto de seu trabalho. Se o processo de trabalho assume um aspecto dominantemente abstrato, a questão se recoloca a nível de qualificação do trabalhador em particular. A especificidade do trabalho concreto ao subordinar-se ao trabalho abstrato subverte a condição de realização cotidiana do trabalhador concreto (sua especificidade). O que era gênio e arte se configura agora como categoria profissional. Assim, o metabolismo individual e intransferível entre homem e natureza, que marca a construção da subjetividade humana, se re-encontra plasmado em um grupo de detentores de certa especialização, um quantum de trabalho acumulado e qualificado em sua representação social. De um ponto de vista empírico as primeiras manifestações de reconhecimento da identidade estão postas no salário pré-definido pelo mercado. Assim, um metalúrgico mandrilhador vale mais do que um torneiro mecânico, um professor universitário vale mais do que um professor primário, e assim por quantas categorias ou subcategorias profissionais houver. A permanência de um trabalhador em uma categoria profissional instala um jogo de espelhamentos na trama social, que a torna referência conceitual obrigatória na análise do fenômeno da identidade social.
CAPÍTULO VI
A PERPLEXIDADE CONTEMPORÂNEA: INFORMÁTICA E AUTOMAÇÃO
Santos (1979) define automação como um sistema que, "com base em informações, calcula a ação corretiva mais apropriada (...). Um sistema de automação comporta-se exatamente como um operador humano, o qual, utilizando as funções sensoriais, pensa e executa a ação mais apropriada". Estabelece a analogia entre as funcões sensoriais e cognitivas do homem e as funções do sistema de automação do seguinte modo: Sistema de automação
Operador humano
Informação ou comunicação Computação
Impressão sensorial Raciocínio
Controle (Santos, 1979)
ação
Em primeiro lugar, o computador – por exemplo numa MFCN – reduz ainda mais a necessidade de intervenção manual no preparo, medições e correções no processo de trabalho pelo operador humano. Em segundo lugar, o computador permite realizar com o trabalho intelectual, através do processamento automático de dados, o que a maquinaria realizou com o trabalho industrial, ou seja, inversão do papel do trabalhador do escritório em relação às condições de trabalho. Para Rattner (1985), por exemplo, "em vez de utilizar-se da máquina como insumo auxiliar, o ser humano se torna acessório e fonte de informação para o computador". Sistemas
CAD/CAM
(Computer
Aided
Design/Computer
Aided
Manufacturing) ou, como denominam alguns, sistemas CIM (Computer Integrated Manufacturing), realizam a integração do projeto automático com a produção automática. No lugar das fábricas de Marx, temos as fábricas e empresas computadorizadas nas duas pontas, no projeto e na produção. Quais as principais alterações provocadas pela automação na estrutura produtiva?
A primeira e mais evidente é a eliminação pura e simples de algumas profissões. Outra já nos foi apontada por Palloix: a substituição de força de trabalho qualificada em mecânica por qualificada em eletrônica. O supervisor torna-se duplamente dispensável: as decisões que antes tomava são agora parte do software, o controle que exercia sobre os trabalhadores é agora realizado pelo controle das informações, pelo controle de qualidade e pelo monitoramento do desempenho. A ausência do supervisor e sua substituição pelo controle informático situado no interior do trabalho mesmo traz, pelo menos, duas conseqüências importantes para o trabalhador: 1) torna mais eficiente o controle, diminuindo ou eliminando as falhas de controle próprias da inserção contraditória do supervisor (trabalhador com função controladora sobre trabalhadores), reduzindo assim a eficácia do contracontrole e 2) mantido e aprofundado o controle, desaparece a figura física do controlador, o algoz desaparece em meio a uma tecnoburocracia simpática e impessoal, o que faz com que o trabalhador se obrigue a uma vigilância eterna contra um "inimigo" abstrato. A cooperação e o caráter socializado também aumentam. A cooperação e a interação não têm mais como base os estágios de transformação da matéria no processo produtivo, mas sim a troca de informações. É evidente que essas informações podem ser, além de dados sobre o funcionamento do sistema, sobre estágios do processo produtivo. Mas não existe, por exemplo, uma peça que seja síntese do trabalho direto dos trabalhadores, como na manufatura orgânica de Marx. A própria linha de montagem tende a ser substituída por pequenos grupos de trabalho, nos quais as tarefas podem ser reagrupadas. Se o engenho pessoal, a habilidade do trabalhador, jaz na máquina, a destruição da linha de montagem torna-se possível, como nos grupos autônomos das modernas técnicas de gerenciamento, exatamente pela possibilidade de substituição radical de qualquer trabalhador, pela inexistência da especialização no interior da própria tarefa, seu deslocamento, como veremos, para fora da produção propriamente dita. Por outro lado, a necessidade de troca de informações impõe a destruição da linha de montagem e obriga a fábrica moderna a permitir e/ou demandar maior autonomia do
trabalhador coletivo (um grupo de funções) em detrimento do controle pessoal do trabalhador sobre sua máquina e/ou função. A especialização continua a existir, mas ela é ainda mais restrita e pode ser até deslocada do local formal de produção. Por exemplo, a assistência técnica de analistas e programadores. Proliferam firmas de assessoria, por exemplo, na produção e manutenção de software, que levam a uma situação de estranhamento da própria estrutura produtiva sobre o processo de produção. Se antes o trabalhador não tinha acesso aos "segredos" a que se referia Poulantzas, agora ninguém o tem; se antes o trabalhador de uma indústria de eletrodomésticos sonhava com um curso de eletricidade que lhe poderia permitir compreender algo sobre seus gestos, agora a máquina se apresenta plenipotenciária, incólume a qualquer esforço de compreensão. A própria produção se torna uma abstração. Dina (1987) escreve: "Na opinião de muitos estamos às vésperas de uma marginalização definitiva do setor industrial em favor do setor terciário, da extinção da classe operária e do desaparecimento do trabalho industrial ou até do trabalho simplesmente. Mas aquele que sem dúvida tende a desaparecer é o trabalho aplicado diretamente ao processo produtivo; por outro lado, o trabalho dedicado ao modelamento. À coordenação, ao tratamento de símbolos continua crescendo (...)". O trabalho se torna cada vez mais uma abstração do que ainda hoje concebemos como processo de trabalho, ele se torna cada vez mais interação, mediação simbólica pela linguagem. Mas o que significa exatamente isso? Trata-se de um drástico esvaziamento do conteúdo da atividade humana, que denominamos trabalho, ou apenas uma mudança de patamar, a execução de funções abstratas de controle e supervisão geral? Quando, rigorosamente falando, não existem nem objetos de trabalho nem instrumentos nem teleologia que governa diretamente o processo de trabalho, e, quando a máquina associada a um programa conduz o processo inteiro de produção, pode-se falar ou pensar em trabalho? Mas, não é esta a conseqüência necessária da categoria trabalho abstrato? A apropriação do trabalho morto posto em função do trabalho vivo não se faz necessariamente sob a ameaça de que o gesto presente se subsuma ao gesto pretérito?
A equivalência, D=M=D (dinheiro, mercadoria, dinheiro) não vem marcando a história da moeda pelo afã de encontrar a fórmula D=D+ (dinheiro = a mais dinheiro)? O que já se chamou de "não-trabalho" não representa, hoje, a nova forma de socialização e novo princípio de construção da identidade. Ela é ainda hoje definida e subordinada a uma ocupação. O fim ou abstração crescente do trabalho não teve como conseqüência o enriquecimento do indivíduo, o desenvolvimento universal dos indivíduos através da ciência, da arte, da cultura, dos esporte etc. Há algo de podre no reino do capital. Por um lado, as alterações históricas no processo de trabalho fazem com que a ênfase seja deslocada das variáveis do processo de trabalho para as da organização produtiva como um todo. Por outro lado, a relação de compra e venda de força de trabalho faz ainda com que o trabalho seja uma relação de poder, na forma de hierarquia ou delegação diferencial de poder, e não uma interação real – embora efetiva – uma interação cooperativa, agora pressuposto necessário do processo de produção.
PARTE III. TRABALHO E SOFRIMENTO
CAPÍTULO XI
AFETO E TRABALHO A nossa casa está repleta de fantasmas. A mesa onde escrevemos foi construída por um marceneiro que depositou ali um pouco da sua alma. Foi aqui que conversamos com as pessoas de quem gostamos, e um pouco deste gostar impregnou a madeira. Aqui nos angustiamos com um momento difícil de viver, e agora a mesa, os móveis, repõem a angústia. Este quadro foi presente de uma pessoa, seu uso povoa o cotidiano de lembranças, símbolos que nos traduzem. Objeto por objeto traz a carga inexorável da história: quando um relacionamento se estabelece vai contaminando, busca contaminar as coisas em torno; inventa uma canção que reapropria uma música executada naquele baile...; acumula guardados "inúteis"; um bilhete mal escrito em um guardanapo, a camisa do primeiro encontro. Quando se rompe um relacionamento, é preciso construir o divórcio com as coisas, quase sempre mudar de casa ou mudar a casa: uma canção com letra de Vitor Martins descreve o percurso: "Quebrei o teu prato, tranquei o teu quarto, bebi teu licor. Arrumei a sala, já fiz tua mala, pus no corredor. Eu limpei minha vida, te tirei do meu corpo, te tirei das entranhas, fiz um tipo de aborto... E por fim nosso caso acabou, está morto..." A referência escancara as marcas que a vida vai inventando, o significado transposto do eu, do ele, para as coisas, a indistinção entre o mundo e cada um de nós: a fusão contraditória entre a objetividade e a subjetividade, ser enquanto ser no mundo, com o mundo, pelo mundo. Por ora é preciso não confundir esta transcendência, o existir fora de si, com o fetiche a que Marx se referia. Ali o indivíduo se substitui pela coisa, passa a inexistir (desistir?) às custas da existência das coisas, tornadas independentes, com vida própria apesar do autor. Aqui é o indivíduo que se externaliza, se universaliza, conquista a existência na medida em que imanta o mundo com os seus afetos, aqui o que está em discussão é o velho metabolismo homem-natureza, que faz de cada um de nós um ser plural, porque histórico: estamos falando de práxis, no sentido mais ligeiro desta palavra, como atividade humana. O ponto de partida é singelo: toda atividade humana está condenada à mediação.
É ao mesmo tempo
objetiva,
subjetiva e
transubjetiva,
implica
necessariamente nestas três dimensões. Ao mesmo tempo em que as mediações estão presentes, há no gesto do homem as reações imediatizadas, ou imediatas: meu contato
com o outro, ao mesmo tempo em que espalha pelas coisas os fantasmas das pessoas, carrega um sentido primevo, o outro imediato. Chamemos de afeto, no sentido de "afetar, tocar", do latim affectare, a este contato imediato (1), para constatar que mesmo ele aparece ao ser humano mediatizado, crivado pela transcendência. Pouca atenção tem sido dedicada a esta dimensão humana em Psicologia. Goffman (1974) detectou o problema pelo seu avesso. Ao percorrer a deterioração da identidade, atinge o resgate que a instituição total opera nos “estojos de identidade”, “os internados podem ser obrigados a mudar de cela uma vez por ano, a fim de que não fiquem ligados a ela (...), há uma deformação pessoal que decorre do fato de a pessoa perder seu conjunto de identidade (...) são formas de desfiguração e de profanação através das quais o sentido simbólico (...) deixa de confirmar sua concepção anterior do eu”. Só quando o cristal se quebra é que sua estrutura se torna visível, como lembrava Freud. Deste modo, é mais fácil perceber a importância destas mediações cotidianas quando as perdemos. Bosi (1983), ao revisitar a memória dos velhos, soube apreender estas dimensões afetivas do espaço; a casa, as coisas, "o centro geométrico do mundo". E no trabalho, como atua ali este universo de simbolizações que espalhamos pelos lugares, este coabitar pelos outros imediato e mediatizado ao mesmo tempo? O que acontece com qualquer trabalhador do ponto de vista afetivo? Qualquer que seja o modo de produção ou a tarefa, existe sempre uma transferência de subjetividade ao produto: trabalhar é impor à natureza a nossa face, o mundo fica mais parecido conosco e portando nossa subjetividade depositada ali, fora de nós, nos representando. Quem duvidar tome qualquer guia turístico que se preocupe em descrever o povo de um país, não há outro jeito senão descrever seu trabalho: a arquitetura, a cultura, a alimentação. Quando trabalhamos em condições gratificantes, gostamos do produto realizado, alguns até se apaixonam por ele, como os escritores, por exemplo. Mas quando trabalhamos subjugados, subjugados, imprimimos raiva ao produto. Por mais alienado que seja o trabalho, por mais antipáticas que sejam estas ou aquelas pessoas, sempre a carga afetiva despejada entre as escrivaninhas ou as bancadas é grande: sedução ou intriga, afeto ou picardia, fofoca ou solidariedade,
carinho ou demagogia, sorriso ou polidez. Não se trata de um mero acidente cultural, estamos falando nem mais nem menos da sobrevivência. Como historicamente o trabalho vem conformando o afeto? É possível distinguir grosseiramente três períodos, três cortes distintos nas relações afeto-trabalho: 1. Originalmente encontramos a fusão entre afeto e trabalho. Os homens marcavam a sua lança e eram enterrados com ela. Antes da divisão em classes sociais o trabalho se enquadra no que Marx, no V CAPÍTULO de O Capital (s/d), chamou de "trabalho genérico, o metabolismo entre o homem e a natureza". Ali o instrumento de trabalho comparece como a presença do outro e a onipresença do sujeito perante o outro2. O escambo é a forma simbólica por excelência da tríplice fusão entre a dupla transformação do mundo objetivo e do sujeito, a igualmente dupla transformação euoutro, mundo transubjetivo, a subjetividade construída neste amálgama. Vale a pena referendar empiricamente o que está colocado acima: Jeness recolheu dos indígenas que estudou o seguinte relato, "sabemos o que fazem os animais...porque, antigamente os homens se casavam com eles e adquiriam este saber de suas esposas animais...há milhares de anos e há muito tempo que os próprios animais nos instruíram..." o texto é citado por Lévi-Strauss (1970), ilustrando o "sentimento de identificação profundo" com a natureza, para depois comentar que "os seres que o pensamento indígena reveste de significado são concebidos como a apresentar certo parentesco com o homem... um saber desinteressado e atento, afetuoso e terno, adquirido e transmitido em um clima conjugal e filial...". A fusão entre os homens, e destes com a natureza, aparece sempre que se observa uma comunidade primitiva, definida como Gianotti (1983) o fez por "bastar-se a si mesma". Não é obrigatório recuar tanto na história para documentar este tipo de relação homemnatureza-homem: uma criança carrega de afeto, animiza o pedaço de pano velho que carrega ao dormir, conversa com ele, assim ficando mais fácil suportar a ausência dos pais quando o velho e sujo trapo está presente; ou ainda o homem enamorado que guarda com carinho na gaveta do escritório o primeiro presente, mesmo que coisa supérflua, inútil, que recebeu da amada, para ser revisitado toda vez que a presença se impuser apesar do cotidiano. Se identificamos como "primitiva" esta fusão dialética com o afeto, isto quer dizer primeiro, e não ultrapassado pela história.
2
Para uma análise mais detalhada d as relações com o instrumento de trabalho, veja Codo (1987 a)
2. Com o surgimento da escravidão se instala uma dinâmica cujo centro é a existência definida pelo outro. Os afetos se anulam ao se reapresentarem com a face do senhor. O escudo é o arquétipo por excelência. A fidelidade se confunde com a grandeza de espírito, como Sancho Pança cravando sua individualidade na onipresença de Don Quixote. Ontogeneticamente aqui encontramos a confusão que uma criança opera entre o seu corpo e o da mãe; a perda de identidade que a mulher experimenta ao fazer do casamento profissão, perde o nome e as vontades, passa a se representar social e pessoalmente pela sua família, juridicamente pelo sobrenome do marido; ou ainda o ser apaixonado que só tem olhos para a amada, adivinha o que ela pensa, sente como ela sente, como descreveu Tolstoi. Até aqui, embora com vetores distintos, em uma situação e outra não ocorre cisão entre afeto e trabalho. Da comunidade primitiva até a crise da Idade Média não havia distinção entre a estrutura produtiva e a estrutura reprodutiva. Na casa grande ou na senzala as pessoas viviam em promiscuidade entre o outro imediato e as mediações do outro, porque não havia ruptura entre o produto e o produtor do trabalho, não havia alienação3. 3. A cisão entre o afeto e o trabalho. Com o advento do capitalismo o mundo enfrenta pela primeira vez a ruptura entre a produção da existência e a reprodução da vida. O mundo do trabalho e o mundo do afeto passam a se desenvolver em dois universos distintos, a fábrica e o lar. Quando o modo de produção separa o produtor de seu produto, transforma os trabalhos diferentes, portanto portadores de subjetividades diferentes em iguais, mercadoria como 3
Esta tese é polêmica e mal-discutida pelos marxistas. A opinião dominante é de que a alienação existe desde que a divisão de classes exista. Portanto, o homem primitivo já estaria se alienando no chefe da tribo ou no xamã. Sem, talvez, o aprofundamento necessário, Gianotti (1983) defende tese oposta: “Só é possível falarmos em alienação no capitalismo”. Neste texto acatamos a posição de Gianotti. Consideremos a diferença entre alienação e expropriação: quando o trabalho é vendido por um preço menor que o seu valor, quando o capitalista realiza lucro sobre o trabalho de outrem, ‘só aí se estará criando condições para as alienações produtor/produto e produtor/si mesmo. A expropriação não faz o sujeito estranho a si mesmo, a expropriação anula o sujeito. Quando um ladrão rouba uma bicicleta, não aliena o roubado da coisa roubada, nem aliena o roubado de si mesmo, o que faz é tomar parte dele, ora, neste caso desaparece a tensão entre ser e não-ser. Marx (s/d) dizia que, na comunidade primitiva, o indivíduo “pertence à tribo como a abelha pertence à colméia”. Sobre o escravo podemos dizer que não poderia estar alienado, pois não era indivíduo, era objeto de produção e consumo, como um arado. Lembrando Aristóteles, em A Política, o escravo era intrumento parlante (o boi, semiparlante; o arado, mudo). Esta discussão se encontra melhor desdobrada em Codo (1987b).
qualquer outra a ser vendida no mercado, transformação do trabalho em força de trabalho, impedindo a subjetivação do indivíduo no trabalho e empurrando o ser subjetivo do homem para fora da fábrica, restrito ao lar. De um ponto de vista formal, ao subsumir o trabalho ao capital, o capitalismo subsume o afeto ao trabalho, pela eliminação do primeiro. A bancada de um operário, a mesa de um digitador ou a bateria de caixas de um banco, são quase tão empobrecidas do ponto de vista das marcas afetivas quanto as instituições totais descritas por Goffman (1974), aqui também, vez por outra, os uniformes despem o trabalhador dos seus "estojos de identidade", o melhor trabalho é o que se torna capaz de eliminar a marca pessoal do trabalhador: o gesto perdeu o estilo. Transformado em força de trabalho, plasmando as diferenças que ele mesmo inventou, agindo como agente indiferenciador perante o mercado, como valor de troca, trabalho e trabalhador significam a mesma coisa, quantidade de trabalho injetada na mercadoria. No entanto, de um ponto de vista genérico, o trabalho sempre será um exercício "metabólico" entre o homem e o meio e, por isto, o demiurgo do sincretismo entre a objetividade e a subjetividade: através dele o homem realiza no mundo sua transcendência e realiza a si mesmo pelas mesmas vias, se conforma na medida em que transforma o universo, se confirma na medida em que se exerce. Portanto, se o foco estiver centrado no trabalhador, há que discernir que o trabalho permanece como portador da identidade, no sentido de articulação da percepção de si perante o mundo. A desafetivação impetrada pela lógica da acumulação não se dá sem luta, pelo contrário, instala-se no território do trabalho um enfrentamento de guerrilha, a busca de reafetivação também cotidiana. 1. Nas fofocas e ironias distribuídas na hora do cafezinho, repouso do trabalho, espaço para a reconquista da individualidade. Ali se comenta com picardia a roupa que este ou aquele usa, a forma como esta ou aquela se senta, os olhares do chefe, os óculos do cliente. 2. O privilégio de distribuir marcas pessoais pelo trabalho passa a corresponder, com raras exceções, a uma disposição hierárquica. Assim, no escritório, o chefe tem sala própria, quadros na parede, fotografia da família sobre a mesa, cartão personalizado guardado em caixinhas idem, revistas sobre o seu hobby; já sua secretária, em geral, tem sua mesa em um lugar de passagem pública, resta-lhe uma gaveta para os seus guardados e a possibilidade de imprimir o seu jeito na organização
do arquivo, e com que disposição ela toma posse deste expediente. Dela ao office boy, que não tem mesa, gavetas ou sequer escolhe a roupa de trabalho. Nas profissões onde esta hierarquia não se manifesta, onde as marcas afetivas se expõem, chega a ser emblemático o uso do espaço de maneira a reafetivar o cotidiano: o motorista de caminhão com as suas fotos no painel ("papai não corra"), o revestimento em cores vivas da cabine, os penduricalhos no espelho retrovisor; ou os borracheiros, os mecânicos em suas pequenas oficinas, paredes repletas de recortes de revista, mulheres nuas em poses provocantes. 3. Quanto mais o trabalho se afasta do seu espaço genérico, do metabolismo entre homem e natureza, quanto menos o trabalhador tem acesso psicológico ao produto do seu trabalho, mas se desenvolvem vias "deslocadas", canais imediatos para a expressão afetiva da tensão cotidiana, a tensão permanece e o afeto explode, a sedução generosamente distribuída nas relações interpessoais ou a intriga farta pelos bares depois do expediente, a afetividade usurpada do trabalho regurgita com a mesma força nas relações sociais de produção, imantando estas últimas com uma carga afetiva particular que compõem a rotina do trabalhador. Um trabalhador pode e luta por ascensão profissional, o que representa, qualquer que seja seu conteúdo ideológico, uma forma de reassumir o controle. O mesmo ocorre afetivamente, ou seja, redes de sedução apelidadas candidamente, pelos psicólogos, de relações informais no trabalho, desempenham um papel de luta pelo poder de si e do outro, constituindo-se em "armas secretas" não previstas no organograma. Assim, muito mais nos escritórios do que nas oficinas, muito mais nos bancos do que nas marcenarias, ergue-se uma abrangente rede de sedução, onde todos fingem se interessar sexualmente por todos e cada um tenta se atualizar sobre quem seduz a quem; olhares indiscretos ao decote da secretária se transformam em polêmica no bar da esquina ao final do expediente. As relações de produção se arquitetam de maneira a operar uma ruptura entre o afeto e o trabalho, tornando o primeiro restrito ao lar e a família, expulsando o segundo da produção, assim o trabalho ficaria desafetivado, portanto insuportável. A isto o trabalhador reage com tática de guerrilha, reafetivando o seu ambiente de trabalho, inventando laços, resistindo à impessoalidade do trabalho. O desígnio de ruptura entre razão e paixão não pode se realizar sob pena de eliminar o sentido humano do trabalho, os afetos se recriam clandestinamente. Neste sentido estamos diante de uma contradição: Sob o capital, o trabalho reaparece duplo, ainda conformador da
interrelação entre objetividade e subjetividade, constituinte da identidade, ao mesmo tempo e antagonicamente revela uma face alienada, transformado em força de trabalho, plasmando as diferenças que ele mesmo inventou, agindo como agente indiferenciador perante o mercado. Como valor de troca, trabalho e trabalhador significam quantidade de trabalho injetada na mercadoria. Como valor de uso não perde e não pode perder sua dimensão conformadora da identidade, também afetiva, igualmente subjetiva: nenhum dos pólos, valor de uso ou valor de troca pode desaparecer, embora um deles só possa sobreviver pela eliminação do outro. Afeto e trabalho aparecem agora como siameses e inimigos. Até agora tratamos da questão de maneira isolada, afeto no trabalho, afeto na família; foi necessário pela lógica da exposição, mas as coisas não se passam assim. Que seja um estudo de caso. Estamos a alguns anos estudando Trabalho e Saúde Mental dos bancários. Como seu objeto de trabalho são as relações humanas e seu produto é abstrato, a única opção que sobra é a afetivação das próprias relações humanas. Um exemplo cotidiano, destes que todos nós já enfrentamos, pode esclarecer melhor. A primeira vez em que um de nós se viu as voltas com a tarefa de conseguir um Cheque Especial, ou seja, conquistar o direito à dívida, as coisas se passaram mais ou menos assim: fez amizade com o rapaz que trabalhava no caixa, que a certa altura lembrou (quase como um conselho íntimo, camarada) que o privilégio existia e poderia ser conseguido; recomendou falar com o gerente, mas que seria melhor se fizesse acompanhar de algum professor da Faculdade onde trabalhava, e que estivesse em boas graças com o "homem". Só então, com esta apresentação feita por um amigo comum de prestígio, as coisas se tornariam mais fáceis. O sentimento de gratidão para com aquele bancário foi tão grande que, curiosamente, ninguém se lembrou de reparar que ele segredava estes mistérios por causa saldo médio. Conselho seguido, dirigiram-se à sorridente secretária que, depois das apresentações de praxe e mais algumas amenidades, (como era bonita a secretária!) informou que, infelizmente, o gerente estava muito ocupado naquele momento, mas o subgerente poderia atender, com toda satisfação. Abandonou-os na cadeira por rápidos momentos, dirigiu-se à mesa do subgerente, trocou rápidas palavras e ao retornar abria as portas do Banco. Outras apresentações, outros afagos, mais um cafezinho, e o patrono da candidatura, que estava ali emprestando prestígio-mercadoria a um amigo, entrou no assunto. Um novo cidadão normal, consumidor, endividável, saia feliz daquelas salas de granito e
cortinados, sem se dar conta das reais motivações que determinam a concessão de Cheque Especial. A rede afetiva descrita acima não é privilégio do cliente. No mundo dos negócios, no "frio" mundo das finanças, as possibilidades de carreira, de ascensão no trabalho, se fazem acompanhar, invariavelmente, do princípio do QI, ou seja "Quem Indicou". Estar bem com os chefes é uma obrigação profissional, o que implica em transformar tolerabilidade em mercadoria, em anestesiar o espírito para que fiquem toleráveis as piadas velhas, sem graça, infinitamente repetidas, de um gerente antipático qualquer. Os caixas que entrevistamos atribuem suas dificuldades à necessidade de, por características do trabalho, se dedicarem à bajulação das chefias. A sedução, tal e qual o dinheiro, é moeda corrente nos bancos. Mesmo que imaginária, a sedução circula abertamente em paralelo com as relações hierárquicas. Ocorre que o desenvolvimento das relações de produção obedeceu, em qualquer setor, bancos inclusive, à mesma regra geral: a fragmentação horizontal da tarefa. Esta mesma divisão recria uma correspondente hierarquização transversal do trabalho. Assim, a calça vestida agora foi produzida em seções, uma delas apenas fez o corte, outra costurou, outra realizou o acabamento, assim por diante no que chamamos plano
horizontal.
Paralelamente,
et pour cause,
arquiteta-se
uma
estrutura
necessariamente hierárquica e burocratizada, tal qual entendida por Weber, que fragmenta o processo de decisão; cada encarregado tem parcela, às vezes ínfima, de poder, ao mesmo tempo em que representa todo o poder do Capital. Esta articulação do poder pessoal dos prepostos de direção e do patrão maior desenvolve uma dialética complicadíssima que não é nosso objeto aqui. É de se esperar que tal hierarquização se apresente mais complexa quanto mais o trabalho for dependente de decisões cotidianas, e simplifique-se quando a produção puder definir-se a priori, em planejamento mais a médio prazo. Assim, uma fábrica pode aventurar-se a simplificar a hierarquia quando conta com uma produção constante, enquanto que um banco se obriga a estratificar o trabalho na exata medida da flutuação e multivariação de suas atividades. Para os bancos, setor sensível às flutuações cotidianas do seu mercado, a divisão transversal do trabalho se torna um imperativo. Micro, mini e maxi decisões são tomadas minuto a minuto, o que torna as divisões longitudinal e transversal quase equânimes, tanto em tamanho quanto em importância. Ora, este processo de decisão
assim hierarquizado e burocratizado apresenta um caráter profundamente contraditório; por um lado, é um mecanismo de expropriação - a responsabilidade sobre o próprio gesto roubada da linha de montagem é reapropriada pela burocracia encetando novas expropriações - por outro lado, estas expropriações são reinteradas reapropriações, porque a antipatia de um chefete pode ser fatal para um contínuo. Cada nova seção criada esmigalha o trabalho e com ele a possibilidade de autonomia do trabalhador, tal e qual inventa um novo chefete a quem este trabalhador se obriga a prestar reverência. A lida cotidiana com decisões arquiteta uma generosa rede afetiva que necessariamente tem que funcionar como uma segunda moeda corrente nas relações de trabalho. Desembocamos no reconhecimento da carga afetiva que uma decisão necessariamente envolve. Por último, cabe ressaltar: a afetividade usurpada do trabalho do bancário regurgita com a mesma força nas relações sociais de produção do bancário, imantando estas últimas com uma carga afetiva particular que compõe, do mesmo modo que a compensação de cheques, a rotina do trabalhador. O bancário se encontra perante um trabalho altamente tensiogênico, cotidianamente repetitivo, porém demandando uma precisão fundamental. A complexa hierarquia fornece um canal imediato para a expressão afetiva da tensão cotidiana, a tensão permanece e o afeto explode, perde o objeto, retorna perante si mesmo. O que era fuga se transforma em arma, envenena com a própria saliva, destrói o que deveria preservar, ou seja, a afetividade. Antes a sedução generosamente distribuída nas relações interpessoais ou a intriga farta pelos bares depois do expediente, hoje os consultórios dos psiquiatras e psicólogos conveniados. Ao mesmo tempo em que este mecanismo de usurpação ocorre, se desenha um complexo exercício de controle sobre o próprio trabalho que toma a forma de hierarquia e/ou burocracia. Assim, o trabalhador se engalfinha com outros trabalhadores em ingente luta por ascensão profissional, imediatamente buscando melhorar renda, mediatamente buscando mudar a escala de poder, reassumir controle sobre seus próprios gestos e objetivos. O mesmo ocorre nas chamadas relações informais, ou seja, toda a trama social-afetiva que descrevemos, enquanto significa uma expropriação da afetividade, também, e pela mesma razão, desempenha um papel de luta pelo poder de si e do outro. O sorriso protocolar do bancário é carregado necessariamente desta ambigüidade: por um lado, uma subordinação extra; por outro, a esperança de submeter quem decide. Não poderia ser de outra forma. Todo processo de decisão, os psicólogos sabem bem disso, é necessariamente carregado de
emocionalidade. Não é isso que quer dizer os estudos motivacionais que falam em "flight or fight?” Ou o que Festinger soube explorar na Teoria da Dissonância Cognitiva? Não importa aqui declinar os mecanismos pelos quais a decisão é carregada de afetividade, basta-nos constatar que sempre o é. Portanto ao reconhecer uma estrutura de tomada de decisão dentro do banco, estamos fatalmente identificando a via por onde o afeto se reapresenta. Ao saber que estudamos Saúde Mental e Trabalho e que os bancários eram um de nossos casos em análise, um trabalhador de banco estatal veio nos procurar. Sua demanda era terapêutica e nosso grupo lhe parecia uma forma de tentar abordar os seus problemas sem o custo alto que uma psicoterapia envolve, além de pressupor que teríamos mais conhecimentos específicos sobre trabalho. Explicamos que nosso objetivo não era terapêutico, embora pudéssemos ajudá-lo na medida em que talvez compreendêssemos melhor, realmente, o seu trabalho, e acordamos em que conversaríamos sobre os problemas que estava enfrentando. Pedimos supervisão a especialista em Psicoterapia e, caso houvesse necessidade de formalizar tratamento, faríamos as indicações devidas. Durante as primeiras conversas foi ficando claro que o caso não era tão caracteristicamente clínico e pudemos continuar no nível de contrato da pesquisa. 1. A queixa. B reclamava de impotência situacional. Não conseguia há alguns meses se relacionar sexualmente com a esposa. Antes disto nunca tivera dificuldades, se relacionava muito bem com ela e dizia amá-la. Tudo que pudemos apurar falava em direção a um relacionamento bastante carinhoso, com um nível de erotização bastante satisfatório. Para ele a impotência se devia ao fato de sua esposa ter descoberto uma amante sua, ter brigado com ele e com a amante de forma "escandalosa". Enfim, o conflito afetivo o teria deixado impossibilitado de retomar as relações sexuais com a mulher. 2. A história de trabalho. Pessoa pacata, avessa a aventuras, B trabalhava na terra administrando fazendas até que conhecera sua mulher e planejara casar-se. Então, como o emprego de administrador não lhe fornecia estabilidade, segurança, resolve fazer um concurso para banco estatal e fora aprovado. Não se envolveu nunca em lutas sindicais, não cultivava o hábito muito comum entre os bancários de passar pelo bar com os colegas depois da jornada de trabalho, falava pouco durante o
expediente e menos ainda se envolvia em "fofocas" e "conversas inúteis". Muito dedicado, competente, ascendeu rapidamente na carreira, atingindo o cargo de subchefe de serviços, acima do qual restava o cargo de chefe do posto de serviços onde trabalhava. B não tinha modos de reapropriação afetiva secundários muito comuns nos escritórios, não participava das rodas informais, não fazia o jogo de sedução habituais, não participava de sindicato ou associações, não gostava de política nem desenvolveu um hobby forte qualquer, seu circuito afetivo se fechava no relacionamento familiar e na competência no trabalho, uma das esferas intervindo rapidamente na outra, "da casa para o trabalho e do trabalho para casa". A esta altura surgiu uma forte possibilidade de ascensão, seu chefe imediato se aposentara, além dele havia apenas mais um subchefe. B havia conquistado o direito moral à promoção, todos reconheciam sua honestidade e competência, o que não ocorria com o outro candidato natural ao cargo. O chefe já manifestara sua preferência por ele, chegando a indicá-lo aos escalões superiores. Eis que o outro subchefe busca a indicação de um político influente na cidade e consegue, por vias transversas, a própria ascensão. B não reclamou, engoliu a derrota em silêncio como era de seu feitio, embora sabendo-a injusta. Até que em uma festa de confraternização do banco, algumas doses de álcool a mais o traíram, Ao subirem os gerentes para uma saudação ao evento, B gritou da platéia: "Abaixo a gerentada". O gesto rendeu-lhe uma suspensão e, pelo regulamento, a impossibilidade de ascensão funcional nos próximos três anos. Outra vez respondeu com o silêncio. 3.Afetivamente, com a família sua relação apresentava dificuldades. Estava taciturno, sem paciência com os netos, com os filhos, com a mulher. Neste momento surge o "affair" com a esposa de um funcionário do banco que culminaria com a descoberta pela própria esposa e com a crise de impotência. 4.Hipótese inicial de trabalho. De início tudo parecia indicar a dinâmica comum de um casamento tradicional; um relacionamento protocolar em casa contrabalançado por uma amante realizadora a nível sexual, a frustração do relacionamento extraconjugal contamina o relacionamento em casa, isto tudo agravado por problemas no trabalho. Os fatos nos fizeram abandonar rapidamente esta primeira leitura:
A) Como já foi dito o seu relacionamento sexual com a esposa nada tinha de protocolar, era bastante envolvente e carinhoso, ao contrário, e surpreendentemente, o envolvimento sexual com a amante é que se relatava como frio, quase uma obrigação do papel. Referia muitas conversas onde ele falava da própria vida e ouvia sobre a dela. Papel próximo de um amigo clandestino. B) Duas semanas (duas sessões) de conversa depois, B reaparece dizendo que não pretendia mais encontrar a amante, não estava interessado, voltara a se relacionar sexualmente com a mulher, freqüentaram um motel dias atrás. Evidentemente, mudança tão súbita poderia detonar suspeita de dissimulação. Mas, pelo que foi possível aferir, a mudança era real. Como entender o processo? O tipo de trabalho no banco impede as manifestações do afeto. Por questões ligadas à personalidade estruturada anteriormente (lembrar que B entra no banco após longa história de escolaridade, trato profissional com produção agrícola e vida amorosa), ele não se envolvia nas recuperações sorrateiras já citadas acima, ao contrário reproduzia o binômio casa-trabalho, razão e emoção, até que a demanda afetiva emocional no trabalho subiu a um nível insuportável e teve que expressá-la ("abaixo a gerentada"). A coação veio tão forte quanto a reação emocional, o que de novo deixou-lhe sem canal de expressão. A amante veio suprir a lacuna: por um lado se vingava do banco "traindo" os seus colegas como fora traído, por outro, encontrava um locus afetivo onde podia se expressar sem comprometer as relações em casa, recompondo um vínculo de expressão das coisas do trabalho. Ao surgir a oportunidade do contato semiterapêutico conosco, a necessidade da amante se desfazia, nossas conversas passavam a cumprir este papel. O improvisado terapeuta conhecia a realidade do banco para compreender suas queixas, prestar atenção aos seus sonhos de voltar a se dedicar à terra, comprando um sítio nos arredores, e o que era melhor, sem clandestinidade ou riscos de comprometer suas relações com a esposa. Mais sucinto do que deveria, este caso foi relatado aqui por ser paradigmático do que é preciso apontar. Entre a impossibilidade formal de expressão do afeto e o caráter necessariamente afetivo, o trabalho escolhe a via da ruptura: lugar do afeto é em casa, sitiado na reprodução da força de trabalho; família, mulher e filhos. Com isto é muito comum que a afetividade tome o caminho regressivo, deslocada do trabalho volte a se depositar nos relacionamentos primários, freqüentemente na órbita sexual.
Cada trabalho, dependendo do ramo de produção em que está inserido e de outras variáveis como as relações sociais de produção e da própria cultura organizacional, cada organização portanto, desenha uma forma de impedimento e atocontínuo de reapropriação do afeto: As creches , por exemplo, caminham em um limite muito estreito entre a produção e a reprodução; algumas empresas públicas terminam desenvolvendo verdadeiros guetos afetivos, onde toda a raiva e as paixões se expressam em acirrada dimensão; outras organizam times de futebol que se degladiam com empresas transformadas em rivais - os exemplos são infindáveis. Como regra geral, exatamente ao contrário do que Freud dizia, não se trata de o envolvimento no trabalho significar uma sublimação de necessidades sexuais mal satisfeitas, mas sim da impossibilidade de satisfação emocional afetiva no trabalho inventar uma sexualidade onipresente, convertida em única forma de expressão de si. Quem duvidar basta ouvir um trabalhador burocrático típico e suas insatisfações, o papel onisciente que empresta ao sexo, e depois ouvir um destes raros trabalhadores que têm a chance de se apaixonar pelo trabalho, e perceber como ali a sexualidade não é mais do que outra forma de encontro. O trabalho, quanto mais vazio, mas constrói a teoria da pansexualidade, ressuscita Freud com o auxílio dos psicólogos e psiquiatras, que como Taylor e Ford, não sabem enxergar o trabalho como ato humano, além e acima da mercadoria, da alienação.
CAPÍTULO XII
A QUESTÃO EPIDEMIOLÓGICA
Que afazeres a Epidemiologia abarca? Que concepções sobre produção, distribuição, população, saúde, doença, ela articula? Quantas vezes uma Epidemiologia, a serviço de uma Medicina do coletivo, nasceu e morreu? De quantos modos renasceu? Que social é este que ela vasculha quando tenta mensurar a vária face das condições de existência? Há pelo menos dois momentos únicos no passado, separados por séculos de afirmação de práticas mágicas (quando o achado nas vísceras de um pássaro afirmava o que aconteceria na saúde dos povos), corporativas (os médicos em luta contra os charlatães, garantindo reserva de poderes) e individualísticas (intervenção sobre cada sujeito, sobre cada mal estar de um sujeito - sucessos pontuais), que se destacam como paradigmáticos do processo contraditório característico da história da Epidemiologia, como, aliás, de toda História. 1. Hipócrates, o sagrado pai da Medicina, que viveu entre o séc. IV e III AC, em pelo menos três textos4, constrói a idéia de que a dinâmica das doenças passa pela dinâmica das populações, e que a intervenção individualizada no doente pode aliviá-lo, pode até salvá-lo, mas não afeta as possibilidades do adoecer. Os discípulos de Hipócrates, priorizando a questão política da luta contra os "charlatães", buscam legitimidade na cura imediata de cada cidadão, afirmando um corpo profissional com prestígio social e poder de pressão. É provavelmente entre estes discípulos que surge o Juramento imputado a Hipócrates, cuja versão original fazia parte de um ritual iniciático, senha para entrada em comunidade autoprotetora. As necessidades práticas com que se deparam os discípulos de Hipócrates, no bojo das convulsões sociais que expressavam as grandes mudanças do mundo helênico, no alvorecer da dominação romana e do cristianismo, concretizam outros desdobramentos para as proposições da Escola de Cós. A investigação e a 4
“Sobre a doença sagrada”, que trata da epilepsia e da lógica física do adoecer. Ares, águas e lugares, que apresenta as bases de uma concepção que poderíamos chamar de ecológica sobre a distribuição das doenças. Epidemia, sobre a repetição de padrões de morbidade entre os povos Citas.
prática clínica que poderiam fundamentar uma medicina do coletivo nascem e morrem com Hipócrates. 2. John Snow, considerado pai da Epidemiologia, habitante da Inglaterra na antevéspera da Revolução Industrial, através de uma compreensão capaz de integrar a cidade de Londres, o rio Tâmisa, três epidemias de cólera. (1847, 1849 e 1854) e o sistema privado de distribuição de água, equacionou a relação água/Cólera, antes mesmo da identificação do micróbio por Pasteur. Mas outros pesquisadores, retomando a tradição miasmática, que via nas emanações, nos ares e cheiros que subiam dos baixios e dos pântanos, o veículo distribuidor de doenças, provam que a equação estava errada, que a relação era altitude/cólera (Ar fresco das alturas = saúde; ar pútrido dos baixios = doença). O reforço da tradição miasmática permite que as empresas privadas de distribuição de água, principalmente as que recolhiam água na vazante do rio, depois dele servir de esgoto a toda Londres, continuassem operando em paz por mais inumeráveis óbitos. Outra vez os fundamentos que poderiam possibilitar uma medicina do coletivo nasciam e morriam. Mas por pouco tempo, pois estávamos em época de superaceleração da História. Esta rápida vista d'olhos não permite que nos detenhamos sobre o papel de Virchow, por exemplo, ou a participação de um não médico nesta história, como Engels (1978), que publicou "A Situação da Classe Trabalhadora na Inglaterra em 1848", importante levantamento do perfil sanitário de um grupo populacional, sócioeconomicamente qualificado. Santana (1982), Santana e Almeida Filho (1988), sistematizando dados desenvolvidos por Foucault, Canguilhem, Rosen e Cassel, nos permitem deduzir que vários processos históricos se fundiam tornando irreversível o surgimento de uma medicina do coletivo: a clínica médica se consolidava, a estatística médica buscava romper impasses decorrentes do descritivismo e da transposição do modelo das epidemias para a esfera do psíquico, a polícia médica se desdobrava em medicina das cidades e em medicina da força de trabalho. O povo, como elemento produtivo, não poderia morrer fora do campo de batalha, fora da fábrica, sem o Estado saber e autorizar.
Este processo leva à constituição de um conjunto de saberes e práticas que compõe a medicina científica, no primeiro lustro do séc. XX: individualística, biologicista, medicamentosa, técnica, mediada por instrumentos, experimentalista, incisivamente
intervencionista,
buscando a
patologia
na condição patógena,
desdobrando o sujeito até ao código genético, reconstruindo o sujeito na engenharia de sua veterinária. Suas deslumbrantes conquistas só mais tarde começam a deixar ver preços a pagar. A medicina científica substituiu o fetiche das abstrações metafísicas, disciplinares, morais, pelo fetiche da estatística. Porém o sentido da estatística é dado pela realidade que ela mede, pela lógica sócio-cultural que ela recorta artificialmente. A Tecnologização, especialização, altos custos, privatização da assistência, competição monopolista das indústrias farmacêutica e de equipamentos, contração do alcance social, aumento da pressão política de novas populações que alcançam o estatuto de cidadania, possibilitam a eclosão de uma crise grave na medicina científica. A partir dos anos 30, o retorno ao social busca na Epidemiologia um instrumento tático. Mas que social? Que Epidemiologia? Se o pesquisador pensar o social a partir da concepção funcionalista, defenderá unidade metodológica, pois verá o social como similar ao natural; recuará diante do esforço de compreender a essência dos fenômenos; proporá um pesquisador virgem de valores, ingênuo, papel em branco a captar, a ser impressionado pelas características puras do objeto; entenderá a sociedade como sistema natural composto por partes interdependentes e equilibradas; buscará catalogar o fenômeno como função ou disfunção em referência à manutenção do status quo do sistema. Fiel ao estudo do comportamento explícito (sinais), entenderá sintoma como algo que acontece no sujeito e não como algo também criado pelo sujeito. Fiel a conhecimento que só existe enquanto mensurabilidade, entenderá, por exemplo, a relação saúde/doença, como quantidades diferentes de uma mesma realidade, apresentando um continuum entre ponta e ponta. A proposta é que nos empenhemos na métrica de sintomas, na construção de síndromes descritivas de aparências, esquecendo a complexidade do real recortado, as significações e seus determinantes. Se o pesquisador pensar o social a partir da concepção compreensiva, defenderá diversidade metodológica, pois natural e social geram valores específicos; aceitará que é possível compreender a essência dos fenômenos, mas como tipos básicos, a-históricos; proporá um pesquisador que imponha características ao objeto,
mas que atinja a objetividade pela explicitação dos valores próprios; entenderá sociedade como conjunto de relações humanas com significado, conjunto complexo que se apresenta simples ao estudo, se não for percebido que ali se exibe um nível e que a partir de qualquer nível é possível alcançar os outros, mais ainda, que os significados descobertos valem para aquele nível e para aquele objetivo; buscará recortar o social sempre a partir da única unidade empírica, concreta, possível que é o indivíduo. Poucas investigações exercitam esta concepção na área da saúde, e as que o fazem se congelam no esforço singelo de classificar tipos, baseados em freqüência, habitualidade e em analogia de aparências. Este pesquisador entenderá a relação saúde/doença como qualidades diferentes da realidade vital, mas realidade referida a uma ontogênese que repete a filogênese, sem embutir sequer a noção de evolução. Se o pesquisador pensar o social a partir da concepção dialética, defenderá diversidade metodológica, pois também defenderá que natural e social geram valores específicos; aceitará que é possível compreender a essência dos fenômenos, através de um processo de construção da compreensão a cada situação histórica concreta - tomando a aparência, criticando a aparência, entendendo-a como face da essência, referindo-a a outras situações estruturadoras, explicadoras; acatará a relação subjetividade/objetividade como problemática, interdependente: o sujeito faz a coisa e a coisa faz o sujeito; saberá que não há ciência neutra pois é impossível pensá-la sem sua aplicabilidade; verá sociedade como modo de produção das condições de existência, dinâmico, histórico, regido pela contradição, cuja compreensão requer que se apreenda a rede hierarquizada de determinações que integram os fenômenos. Este pesquisador entenderá a relação saúde/doença como processo, e processo histórico-social, qualidades diferentes de outro processo histórico-social que é a realidade vital dos seres humanos. Aqui estaremos constituindo unidades de estudo - totalidade de estudo - a ser posta em referência com outras totalidades que lhes determinem. Grosso modo, poderíamos listar três paradigmas de compreensão do social: A) Um fiat do social sobre anterioridade natural. Se tomarmos a história da vida, o corte apresenta algum sentido real. Social e espécie humana estão interligados, o homem não existe desde sempre, o homem se desenvolve a partir da história biológica. Mas se tomarmos a história do homem, não há como identificar uma conversão datável
ou defensável do homem-bicho em homem-homem. Por outro lado, estaríamos aceitando também um fiat do natural sobre anterioridade metafísica. B) Um social natural. O homem seria naturalmente social, a sociabilidade como instinto. Mesmo fascinado pelo desenvolvimento da genética, não é possível supor o isolamento do cromossoma da sociabilidade, o fator zeta-delta-35, por exemplo, da sociabilidade. Esta compreensão implica em aceitar as expressões da sociabilidade como arranjos de elementos de um ou algumas formas básicas. Não teríamos como escapar de algumas condenações: a guerra, o egoísmo, a pobreza, a civilização como perversora do bom selvagem. C) Um social como construção permanente. Homem e Sociedade são totalidades complementares, interdependentes e contraditórias, um traspassando o outro. Através da transformação da natureza, partindo de determinadas relações e visando satisfação de determinadas necessidades, a criação de outras relações e outras necessidades. Social = conjunto problemático de processos, relações e instituições, que se interdeterminam, se explicam, se significam. O social que a Epidemiologia do primeiro lustro do séc. XX vai conceber, embutido na rubrica de "ambiente", reafirma a alienação produtor/produto que perpassa toda a vida econômica. O social passa a ser elemento da tríade ecológica agentehospedeiro-ambiente, expropriando o homem do que ele faz, repositório estanque de variáveis intervenientes ou desencadeantes, estranhas, resistentes a mensuração, quase não reconhecidas como científicas. A criação da Society for the Study of Social Problems, em Chicago, 1941, expressa o momento. Ganha-se muito em técnica. Perdese em compreensão. A Epidemiologia se torna capaz de identificar, colher, mensurar e associar dados, mas, abismada no jogo de imagens, toma como conseqüência a premissa, como ponto de luz o reflexo. "O que é uma complicação separada daquilo que ela complica? O que é um sintoma sem seu contexto?" (Canguilhem, 1982). Está na hora de recuperarmos outra história, a da aplicação da Epidemiologia aos transtornos mentais. Através de Benjamim Rush, a Psiquiatria traduz o modelo epidemiológico de estudo das epidemias, aquela que toma forma no correr do séc. XVIII, e para adequar-se à nova natureza de fenômenos propõe o conceito de "epidemia moral". Através da Psiquiatria francesa e alemã de fins do séc. XIX, aquela que ficará marcada pelo nome de Kraepelin, é literalmente traduzido, sem nenhuma indenização na
alfândega científica, o modelo da unicausalidade microbiana, e então, primeiro todos os transtornos mentais viram caudatários da sífilis, mais tarde da epilepsia. Através de Kaplan & Sadock, a Psiquiatria traduz o modelo epidemiológico da tríade ecológica, aquele desenvolvido por Leavell & Clark, nos dourados anos 50 de nosso século. Asfixiada entre a moralidade, a causalidade biológica (uma veterinária do homem) e a história natural, a Epidemiologia psiquiátrica engatinha. Que fatores objetivos permitiram este atraso? - A baixa esperança de vida, o não controle das doenças infectocontagiosas, as agressões grosseiramente mecânicas que o corpo enfrentava e a facilidade em colher e mensurar evento único, destacavam mortalidade como indicador privilegiado. Exceto se posta em relação com alguns suicídios, não se morre de doença mental. - Os processos de trabalho exigindo músculos, suor, pedaços de membros, sangue e a extensão da jornada, tanto hipertrofiavam o trabalho concreto que o fazia emergir como sinônimo de trabalho, subsumindo as formas de assalariamento e exploração. A fadiga física esgotava o trabalhador antes da fadiga mental se expressar. Não é possível colher e mensurar uma virtualidade. - A experiência de Durkheim (1973), realizando o primeiro inquérito nacional sobre estatística de suicídios, buscou superar os dados colhidos em serviço, indo ao campo social com um conceito do fenômeno por investigar. Interessa notar que esta saída dos serviços para a sociedade é experiência que permaneceu isolada. As pesquisas continuaram centradas nos serviços, acatando como diagnóstico o mecanismo de auto-denúncia ou de denúncia oriunda do grupo de suporte social do denunciado: doente mental é aquele que é atendido em serviços para atender doentes mentais. Pura tautologia. A Epidemiologia evolui de doutrina médica das epidemias para a consideração de fases endêmicas das doenças epidêmicas, em seguida passa a contemplar as doenças infecciosas não epidêmicas e as doenças não transmissíveis, rigorosamente acompanhando a natureza dos problemas que pressionavam por solução. Pela metade do século XX, as doenças crônico-degenerativas, as doenças mentais e os acidentes de trânsito, surgem como demanda social, pressionando por solução no campo da ciência. A natureza destes novos problemas exige nova compreensão da relação saúde/doença e força expansão dos objetivos da Epidemiologia:
Análise econômico-social; Diagnóstico comunitário; Estima de riscos; Base para decisões administrativas; Base para educação sanitária; O lugar do trabalho na determinação. Na América Latina, a trajetória é simétrica, a única diferença é o atraso. Os cem anos da morte de Benjamim Rush já haviam sido comemorados quando Rodrigues (l939) lança mão do conceito de "epidemia moral" para explicar o contágio mental de Antônio Conselheiro sobre Canudos, e Lucena (1940) aplica o conceito a um episódio de fanatismo messiânico em Panelas/Pe. Exceto por alguns poucos núcleos a pesquisa em Epidemiologia psiquiátrica no Brasil é "incipiente (...) carecendo de um tratamento metodológico e analítico mais cuidadoso, aprofundado (...) O impacto da Epidemiologia psiquiátrica brasileira, de resto, tanto na comunidade científica como nas esferas de planejamento e definição das políticas de saúde mental, tem sido, até o momento, mínimo”.(Santana et alii, 1988). Durante os anos 70, na América Latina, em torno de nomes como Asa Laurell (México), Jaime Breilh (Equador), Anamaria Tambellini (Brasil) e Juan Garcia (Argentina) começa a se consolidar uma crítica e vital corrente de Epidemiologia Social, visando superar a orientação pragmático-positivista, tentando solucionar teoricamente alguns problemas: - Passar do nível sensorial do conhecimento (sensopercepção e representação) para o lógico (conceito e raciocínio). - Elaborar
o
conceito
de determinação complexa,
aplicado
à
Epidemiologia, e seus níveis de mediação, visando o desvendamento do processo saúde/doença. - Integrar a análise estatística (distribuição, equivalências, inferência lógica, testes de significação, multivariância) com a análise histórica (modo de produção, estrutura, processo, contexto, níveis de significado).
- Redefinir universo e unidade de observação. Quando e em qual população, tanto tempo como população não mais tomados como naturais, aleatórios ou agregado espontâneo de elementos homogêneos. Tomando Breilh (l983) como guia, podemos destacar alguns princípios básicos e realizar uma provisória definição de Epidemiologia. Princípios: - A realidade objetiva das populações, da saúde e da doença, se encontram em processo de mudança permanente. - A investigação epidemiológica precisa reconhecer e acompanhar esta dinâmica. - O processo aparente não pode ser desconectado de suas determinações gerais. - O objeto de estudo deve ser construído logicamente, não apenas descrito.
Definição
Epidemiologia é a ciência que estuda distribuição, determinação e modos de expressão do processo saúde/doença, serializando e hierarquizando valores (que permitem diferentes possibilidades de saúde e sobrevivência) e contra-valores (que permitem diferentes possibilidades de doença e morte), em relação a momento histórico e população significativa. A investigação epidemiológica objetiva construir perfil de reprodução social (produção + reprodução) dos diferentes grupos sócio-econômicos (classe social realizada no quotidiano dos agentes produtivos) e perfil de características psicológicas e psicopatológicas (no caso da Epidemiologia psiquiátrica), buscando, criticamente, compreender o segundo pelo primeiro. Este conceito desdobra os conceitos de distribuição (prevalência, incidência, coeficientes, índices, curvas etc.) e de determinação (seqüência integrada de mediadores, qualidades constituintes do fenômeno, riscos, probabilidades, tendências, modos de expressão, curso, mortalidade, morbidade). Também desdobra os conceitos de processo saúde/doença (concepção
concreta que revela o caráter dinâmico da realidade objetiva e implica em saúde e doença como qualidades diferentes da experiência vital, apartada das concepções de normal/não normal, bem x mal). Deste modo é possível superar a concepção causal uni, multi, tríade ecológica - e superar, tanto a oposição entre fisiológico, psicológico, social e econômico, como a redução de um ao outro. Neste momento duas discussões se colocam: O que entenderemos como processo saúde/doença mental, normal x não normal, sintoma/doença/personalidade? O que entenderemos por população? A primeira questão se refere à natureza do fenômeno que se pretende estudar, a segunda se refere à totalidade significadora, isto é, ao enquadramento de referência.
Saúde/Doença Mental
O saber psicológico-psiquiátrico é grandemente composto por valores e ideologias, em torno de um específico psicopatológico, que existe objetivamente mas que tem sido (só pode ser?) definido pelos seus efeitos, como acontece, por exemplo, com a Energia. Assim, como saltar do achado empírico, da ocorrência clínica individual para a formulação de uma lei geral e de um regulamento higiênico preventivo? Pais e/ou legisladores, informados pela teoria que propõe ser a prática homoerótica infanto-juvenil uma espécie de vacina contra a prática homossexual adulta, poderão liberar o relacionamento homoerótico infanto-juvenil e até estimulá-lo. Pais e/ou legisladores, informados pela teoria que propõe ser a prática homoerótica infanto-juvenil um precoce experimento que determinará fixação e conduzirá à homossexualidade adulta, reprimirão com rigor a prática homoerótica infanto-juvenil. Em ambos os casos, pais e/ou legisladores, estarão respaldados por um marco teórico legitimado, determinados em combater a homossexualidade e imbuídos de espírito preventivista. Se na história de vida de alguns hebefrênicos, encontramos terem eles presenciado, aos quatro anos de idade, cenas de cópula entre os pais, poderemos criar norma pedagógica pressupondo que presenciar cena de cópula paterna pode causar Hebefrenia? Consideremos primeiro que uma cena primária traumática não precisa ser presenciada, basta ser imaginada; em seguida consideremos que numa vida cultural onde o sexo seja naturalizado, a visão de sua prática não constituiria choque; que
mesmo onde o sexo foi desnaturalizado e privatizado, a criança necessitará de um contexto prévio modelador da compreensão que terá da cena: Se via os pais aos abraços, beijos e brincadeiras, a nova cena será entendida como brincadeira; se via os pais em ódio e ranger de dentes, aos gritos e tapas, a nova cena pode ser entendida como papai está matando mamãe. Portanto, não podemos falar de doença mental sem falar de saúde mental, sem falar da sociedade que as constitui e constitui o saber que as define, sem falar do Estado que implementa as políticas de assistência e prevenção. Com o avanço dos conhecimentos sobre Saneamento, Nutrição e Profilaxia; com o avanço da oferta de Serviços de Saúde e de subsídios financeiros compensatórios; com a transformação do trabalhador em fiscal de qualidade da produção de máquina e em observador de visores luminosos; com a urbanização acelerada e o processo de especialização dos saberes, obrigando a cooperação em equipe, conflitando com identidade individualística competitiva; teremos novas formas contingentes de adoecer e morrer, deslocando-as na direção dos problemas crônico-degenerativos, e novas formas de sofrer a condição humana, na direção dos sofrimentos psíquicos. Há que reconhecer, no entanto, que o esforço de inserir a compreensão da loucura no universo da história foi um remédio que quase matou o doente. Houve quem, como Thenon (1974), considerasse o "eu" como um mero preconceito científico, algo semelhante a "se a Psicologia é uma ciência que nasceu a partir da existência da burguesia, deve desaparecer com ela". Como se a linguagem, que apareceu com a pedra lascada, desaparecesse automaticamente na conquista do neolítico. Utilizando os instrumentos da Epidemiologia, para cobertura de massa, realização de screenings mais ou menos sofisticados, o que realmente acontece? Uma descrição de tendências, uma classificação de possibilidades. Mas se já é difícil chegarmos a bons acordos no que tange a descrições, a dificuldade se multiplicando na hora do julgamento de valor: este entorno de tristezas; perdas de objeto, objetividades e objetivos; e constrangimentos afetivos; podemos chamar depressão - mas será traço de personalidade, reação conjuntural ou doença? Há que questionar a natureza do fenômeno estudado, não tomá-lo como símile aos biopatológicos e desenhar a investigação desdobrando-a em vários níveis que se intercritiquem: corte de tendências sobre população, aprofundamentos amostrais para significação das tendências, acompanhamentos longitudinais sobre população, estudos
individuais de caso. Transversal em dois níveis + longitudinal em dois níveis + estudos de caso. O objeto é complexo e dinâmico, a investigação está obrigada a ser complexa e dinâmica.
População
Nos "Grundrisse", Marx (1985 b) trata de população como categoria a ser concebida pelo resultado de múltiplas determinações. Deste modo não podemos entender população como massa sem forma, indiferenciada, pois desabaríamos no vazio. A lógica econômica, através da demanda por trabalho, determina crescimento e distribuição e natureza das populações, população necessária, população excedente e a expressão dos diferentes modos como reproduzem as condições de existência. É claro que não estamos passeando por simplorismos e reducionismos: não lidamos aqui com relações lineares de causa-efeito. Classe Social é, portanto, referência teórica primeira, categoria explicativa, abstrata, genérica, do modo como população agrega suas heterogeneidades em um determinado modo de produção. A rigor, sob o capitalismo, emerge historicamente, na luta política, duas classes: a que possui e a que não possui os meios de produção. Para a investigação do processo saúde/doença mental é necessário tomar classe social concretamente, como se apresenta no quotidiano da vida das pessoas, compondo unidade de organização da identidade. É em cada ramo de produção que o trabalhador realiza a experiência de classe social. A classe se realiza como classe em determinado ramo de produção e dentro de uma determinada unidade capital/trabalho (empresa). Portanto, a categoria explicativa mais próximo do processo saúde/doença, o fenômeno estudado, é categoria profissional - força de trabalho em realização, com intensidade diretamente proporcional à integração no processo de trabalho, integração esta
diretamente proporcionadora das condições de existência. Categoria profissional muda a cada mudança de desenvolvimento da força de trabalho e das relações de produção. Um dos principais esforços da Epidemiologia, hoje, é estabelecer população cuja dinâmica explique os atributos encontrados nos levantamentos empíricos. Do latim, "populatione" (der. populo), o Dicionário de Sociologia (Globo, 1974) conceitua população a partir das idéias de conjunto, tempo determinado, área convencionalmente determinada: agregatoriedade e arbitrário de tempo e de lugar, vetores resultantes das oposições natalidade X mortalidade, imigração X emigração, quantidade X meios disponíveis de subsistência. A composição interna é dada por atributos biológicos como idade, sexo e raça, e por atributos sociais como renda, profissão e religião. Que concepção de social pode ser extraída deste conceito? Provavelmente um primeiro funcionalismo organicista, diretamente calcado em Spencer. de um território (cruzando agregação e arbitrário de lugar); Biológica comunidade de seres vivos em permanente troca de material genético (cruzando presença de vida e herança); Estatística - conjunto infinito ou de grande magnitude, cujas propriedades são investigadas por meio de subconjuntos (possibilidade de conhecimento senão por extrapolação, mas de que modo recortar subconjuntos que permitam extrapolação rigorosa?). O natural não tem significado, pois o homem é o ambiente do homem. Breilh (1983) defende que o mais complexo submete o menos complexo a suas leis e determinações, portanto o social submete o orgânico, que por sua vez já submetera o inorgânico. O aleatório está sempre postulando limite a incognoscibilidade. Algo, fora do visto, pode mudar tudo. O ausente determina o presente. A Epidemiologia tem se mantido prisioneira do natural e do aleatório, como podemos ver desde as definições da Associação Internacional de Epidemiologia, passando pelos manuais de Epidemiologia mais usados no ensino médico brasileiro, até a Encyclopaedia Britannica (1979): "População Humana - grupo de pessoas usualmente estudado e classificado tendo por base a composição biológica(...) taxas de nascimento e morte são limitadas pela disponibilidade alimentar, efeito das doenças e outros fatores ambientais (...)afetados adicionalmente por costumes sociais e políticas de controle de natalidade."
Na concepção malthusiana (Malthus: "An Essay on the Principle of Population..."), população é uma espécie de bolha assassina, em inescapável, permanente, geométrica expansão, devorando todos os nutrientes do mundo, a implodir finalmente quando estes acabarem. O modo como a questão da população tem sido colocada gerou violento debate ao correr do século XIX, chegando aos nossos dias, opondo "otimistas" (Clapham, McCulloch, Ashton - Hayek), "pessimistas de direita" (Ricardo, Malthus) e "pessimistas de esquerda" (Marx, Toynbee, Hammond). O fato é que a população crescia por queda da mortalidade geral. Mas porque a mortalidade geral caia? Por aumento do consumo alimentar per capita? Mas como, se não havia mecanismos distributivistas eficazes de investimento e de consumo? Por maior regularidade das ofertas, abolindo as fomes periódicas? Mas deixar de morrer de fome não significa deixar de viver subnutrido. Hobsbawn (1981) surpreende o consumo de leite, manteiga e carne caindo em média 40%, e o consumo de pão, farinha e batata subindo em média 50%, na Inglaterra do século XIX. Além do mais, que péssimas distribuições as médias são capazes de encobrir. Questões como desemprego, subemprego, trabalho informal, asilamento de pobres e nomadismo, não eram consideradas. Engels (1978) calcula a população economicamente ativa como sendo 30% da população inglesa, e distribuída em três partes iguais: estavelmente empregada, intermitentemente empregada, completamente desempregada. O que vemos? O modo de produção e a demanda por trabalho determinando a heterogeneidade da população. Cada possibilidade de relação com o processo produtivo levando a possibilidades diferentes de alimentar-se, habitar, adoecer e morrer. Fatores como sexo, idade, raça, servindo como pretexto eventual, racionalização, para exclusões do mercado de trabalho. Os estudos com cortes naturais (idade, sexo, raça, geografia) ou aleatórios (sorteio, fluxo de passagem em determinada hora ou lugar) permitem avaliar distribuições, magnitudes e circunscrever hipóteses. Os estudos com corte por população significativa (categoria profissional, p.ex.) permitem estabelecer nexos de produção, série e hierarquia das determinações, principalmente se forem estudos longitudinais. O perfil de reprodução social de cada categoria profissional oferece elementos para a compreensão das modalidades de desgaste, das modalidades de repouso, da intensidade de exposição a benefícios e riscos, volume de renda (portanto,
volume e qualidade de consumo), necessidade ou não de trabalho complementar e explica o perfil epidemiológico, categoria analítica que "expressa as contradições, a produção e a distribuição dos eventos referentes ao processo saúde/doença" (Breilh, 1983). O fenômeno que a Epidemiologia estuda é distribuição e determinação do processo saúde/doença. Sua totalidade, contra a qual o fenômeno é estudado, é população. Mas é preciso concretizar população historicamente, através do modo como produz suas condições de existência, daí a adoção do conceito de classe social. É preciso abandonar a fantasia de uma população "natural", mesmo em Marx no prefácio de Para a Crítica da Economia Política, texto saudado contemporaneamente por seu caráter metodológico, se aponta a "população" como um mau início para se pensar cientificamente. Por maiores que sejam os esforços de parcimônia, uma população é necessariamente construída. Compreende-la como massa sem forma, indiferenciada, seria desabar no vazio. No terreno da Epidemiologia o aviso parte de Breilh: Inútil aspirar a neutralidade, a pergunta correta deve ser, qual o viés que melhor atende às aspirações do projeto científico? O aleatório está sempre postulando limite a incognoscibilidade. Algo, fora do visto, pode mudar tudo. O ausente determina o presente. É preciso insistir, as perguntas sobre os homens estão condenadas ao modo de ser dos homens. Um indivíduo não tem medo de ladrão porque mora em um condomínio fechado de alto luxo, antes mora ali porque tem medo de ladrão, e só é portador deste medo privilegiado porque tem o que perder. Ao epidemiólogo cabe perguntar pela forma de sobrevivência dos homens ou deste grupo de homens antes de saber em que sítio geográfico se instala ou que fenômenos da ordem da saúde apresenta. A lógica econômica, através da demanda por trabalho, determina crescimento e distribuição das populações, classes sociais, população necessária, população excedente. É claro que não estamos passeando por simplorismos e reducionismos: não lidamos aqui com relações lineares de causa-efeito. Aqui a referência tem história, estamos lidando com o conceito de classe social, no entanto é preciso considerar queClasse Social é referência teórica primeira, por isto mesmo abstrata, genérica. A rigor, sob o capitalismo, emerge historicamente, na luta política, duas classes: a que possui e a que não possui os meios de produção. Para
a investigação do processo saúde/doença mental é necessário tomar classe social concretamente, como se apresenta no quotidiano da vida das pessoas, compondo unidade de organização da identidade. É em cada ramo de produção que o trabalhador realiza a experiência de classe social. A classe se realiza como classe em determinado ramo de produção e dentro de uma determinada unidade capital/trabalho (empresa). Portanto, a categoria analítica que se destaca como população significativa é categoria profissional - força de trabalho em realização, com intensidade diretamente proporcional à integração no processo de trabalho, integração esta diretamente proporcionadora das condições de existência. Categoria profissional muda a cada mudança de desenvolvimento da força produtivas e das relações de produção. O que vemos? O modo de produção e a demanda por trabalho determinando a heterogeneidade da população. Cada possibilidade de relação com o processo produtivo levando a possibilidades diferentes de alimentar-se, habitar, adoecer e morrer. Fatores como sexo, idade, raça, servindo como pretexto eventual, racionalização, para exclusões do mercado de trabalho. O que vemos? A inserção cotidiana neste modo de produção, expresso na categoria profissional, determinando, de modo complexo e multintermediado, uma cultura, uma política, uma moral, espelhando aquelas possibilidades de alimentar-se, habitar, adoecer e morrer. Uma velha anedota encontra um bêbado procurando a chave perdida de sua casa , depois de muita busca, alguém lhe pergunta se tinha certeza que perdera a chave ali. Resposta -"Não, a perdi em frente à minha casa, mas ali estava muito escuro, é mais fácil procurá-la aqui, debaixo da luz". Tal e qual na anedota, também na Epidemiologia tem havido mais luz pelos bairros, pelas amostras aleatórias de população, pelos hospitais, e o trabalho aparece como variável talvez desencadeante. Também aqui as determinações do viver e do adoecer do Homem estão no território escurecido do trabalho alienado, foi aqui que as chaves se perderam. É mais difícil, sem dúvida, mas a vida não nos oferece outra chance: Ou construímos nossas populações colados na produção dos homens, no seu trabalho, na sua categoria profissional, ou nos resta o pasmo.
CAPÍTULO XIII
O TRABALHO NA ENTREVISTA PSIQUIÁTRICA
Por milênios os homens nasceram, viveram, adoeceram e morreram tão inexoravelmente quanto o transcurso do dia ou das estações. Mas, se tudo morre, porque não a doença? Porque não a morte? De algum momento neolítico até a velha Grécia procedeu-se, de modo mais contemplativo ou interventivo, em acordo com lentas mudanças de concepção sobre o homem, a tentativas de matar a doença, de matar a morte. Mas o sujeito não era sujeito do que ocorria, era apenas um lugar templo, arena ou praça - para a expressão de forças cósmicas. E o sagrado combatia o sagrado: determinados homens especiais punham entre parênteses o doente e interrogavam o cosmo através do vôo dos pássaros, da disposição de pedras sobre o solo, das vísceras de animais aquáticos. As disposições eram interpretadas e daí emergiam causas, possibilidades de manipulação, conseqüências. A Grécia torna o sujeito do que lhe ocorre. É a ele que se interroga. É dele que parte o interpretável, como se pode depreender dos aforismas hipocráticos. Mas sem descolamento total do sagrado: anamnesis - reconstituição comemorativa de evento sagrado, recuperação do perdido pela memória, combate à perda de memória que é a morte, celebração da recuperação da vida (Encyclopaedia Britannica, 1979). Embora o Dicionário Etimológico (Cunha, 1987) encontre anamnese como figura de retórica pela qual se finge recordar algo esquecido, ele próprio afirma que a palavra entra em nossa língua, em l858, já com o sentido de entrevista médica, e pontua sua longa migração: grego - latim tardio - francês - português, apenas com a transformação do "is" final em "e". Interessa assinalar que o sujeito passa a ser sujeito, mas não sabe; fala, enumera, mas é um outro que compreende, e esta compreensão pode ser o máximo que se atinja. Também interessa assinalar o caráter de dramatização, de "como se", que o significado da figura de retórica introduz. Fernando Pessoa nos diz que é possível fingir que é dor a dor que deveras podemos sentir.
No Aurélio (Ferreira, 1975) encontramos a definição de anamnese como instrumento médico - informação acerca do princípio e evolução de uma doença até o primeiro registro. Outro fato que surge para assinalar é o caráter da anamnese como reconstituição da história de algo que ocorre no doente, antes do olhar do médico, o olhar que analisa, interpreta, compreende e registra. Ora, estudar a anamnese é estudar a relação do médico com seu cliente, as concepções sobre o homem, a transformação do invisível mágico no supostamente visível pela tecnologia de ponta, a transformação do corpo a corpo com as forças míticas no corpo a corpo com a pletora burocrática e ideológica. O sujeito posto entre parênteses, depois presentificado no corpo físico, é novamente posto entre parênteses, pois a relação se deteriora e, através de máquinas, vê-se o que o doente não vê, através dele, para além dele. Esta
arte
que
interpreta
queixas,
seqüências
temporais
de
acontecimentos, sinais e sintomas; esta arte inquisitiva que tem por objetivo restaurar normalidades fisiológicas prejudicadas; esta arte que aplica saberes antigos, extensos e variados; assoma no século XVIII com o nome de Clínica. A Clínica sai do fisiológico, incorpora o psicológico, descobre ambiente e circunstâncias, escotomiza ou globaliza os elementos, considera as queixas como pura expressão de algo físico apesar do sujeito ou como construção de uma subjetividade ativa, se afirma como ciência positiva ou se nega pela impossibilidade de universalização do achado idiossincrático, passa a constituir tenso campo de disputas entre profissões, para, finalmente, cair em pelo menos três impasses cruciais: - O doente é atomizado (organismo, órgão, tecido, célula, molécula, partícula subatômica) enquanto o clínico é substituído por um olhar pretensamente sem afeto (não catatímico) ou ideologia (neutro), mas muito lucrativo para a indústria de equipamentos. - O doente é repartido em áreas de competência, como em linha industrial de montagem (biológico, psicológico, sociológico), cada uma referida a um especialista, cego de todos os sentidos em tudo o que não diga respeito ao manual de sua especialidade. Cada sujeito multiplica mercados, tantos quanto necessários para justificar transformação de parte de saber em negócio de corporação. - A doença é concebida como realidade diferente da saúde ou como quantidade diferente de uma mesma realidade ("hipo", "híper", "dis", "a", "para"); como
todas tendo mesma causa (pan/etiologia), cada doença uma causa (mono/etiologia) ou certa relação seqüencial entre causas associadas (multi/etiologia). Daí sendo possível isolar o fenômeno e isolar o que o detona. Machado de Assis há tempos nos ensina que a beleza da mosca azul está numa inefável relação entre a mosca, a vida e a luz, não em um dos inumeráveis elementos componentes: ao fim da dissecação resta apenas a massa nojenta de um inseto morto. Como atingir o atomizado, disputado e dissecado? Recuperando sua unidade, através de concepção teórica que possa integrar a vária face dos fenômenos, capaz de serializá-los e hierarquizá-los? Não. O que se vê é a adesão ao fragmento. A bibliografia sobre a relação clínico/cliente e sobre a entrevista clínica oscila entre a burocracia (modelos de preenchimento sistemático obrigatório para a memorização de alunos), o laissez faire (espontaneidade, contratransferência e sensibilidade do clínico é que seriam seu instrumento) e fragmentação da própria teoria e seus aparelhos de operacionalização (cada fragmento referido a cada pedaço do sujeito esquartejado).De reconstrução globalizadora de história, a anamnese se volve métrica de sintomas, escala quantitativa de elemento, congeladora de aparências, fetichizadora. Gorden (l987), tenta exaurir o assunto, o que se torna impossível por não fazer referência explícita à entrevista médica, mas seu escopo é encontrar o esqueleto básico do diálogo investigativo: como tem intenção benigna, eticamente justificada, não se confunde com inquisição policial; por pretender interpretar determinada realidade, não apenas retratá-la,distingui-se do inquérito de opinião; e desde que disciplina expressão de idéias, sentimentos, atitudes, não se confunde com conversação comum. Ser diretiva, ou não diretiva, estruturada ou não estruturada, superficial ou profunda, médica, psicológica ou psiquiátrica, decorre exclusivamente da variação de objetivos. O autor chama atenção para o ritual mas em referência ao quotidiano, que a entrevista com objetivo precisaria quebrar. Esquece que anamnese é ritual para recuperar tanto o que encontrou forma de expressão como latência informe. Nesta armadilha MacKinnon & Michels (l981) não caem: os dados emergem de observação participante e de inferência subjetiva; o que faz sentido não é o dado, é o dado e seu significado; não há palavra, frase ou declaração com significado indiscutível; a entrevista clínica é a arte de uma
ciência e que sensações, representações, avaliações subjetivas do médico e do cliente, não podem, sob hipótese alguma, serem afastados ou subestimados. Os manuais (Alexander, Solomon, Kaplan, Betta, Insua, Spoerri, Van den Berg, Nobre de Melo, Paim, Frota Pinto, Miranda Sá Jr.) mais usados no ensino psiquiátrico brasileiro, rigorosa e coerentemente submetem a entrevista clínica ao modelo psicopatológico que defendem, não priorizando preocupação com a história do instrumento e o relacionamento entre suas mudanças e as mudanças dos modelos psicopatológicos. O conjunto de títulos arrolados pelo Index Medicus (Cumulated. Subject Index) de l979 a l988, sob as rubricas Interview (241 títulos) e Psychological Interview (306 títulos), concentra aproximadamente 60% do interesse em questões técnicas (tipo e duração de treinamentos, custos de treinamento e aplicação, extensão, natureza das questões - se abertas ou fechadas, por exemplo -, validação, normatização, apoio secundário - se com auxílio de hipnose ou drogas, por exemplo - e meio - uso de gravador, vídeo, telefone, computador), 30% do interesse em questões mais estruturais tais como isolamento de objetivos específicos (AIDS, alcoolismo, drogadictos, gestantes, depressão, ansiedade, sintomas negativos, distúrbios afetivos, psicose) ou suposto impacto de variáveis sócio-culturais (divergência ou convergência de raça, classe, sexo, idade, entre entrevistador e entrevistado), restando 10% para uma gama variada de outros interesses, entre eles os históricos. Apenas três (3) títulos, aproximadamente meio por cento (0,5%), destacam história da construção de um instrumento específico, mas sem referência à história da entrevista médica. A anamnese paira psicopaticamente num hoje eternizado, prisioneira de pressupostos tidos como naturais, amnésica. Que problemas, então, podem ser destacados? a) A anamnese burocratizou seu ritual e não sabe mais por que pergunta. É rotina... desde Hipócrates se pergunta isso. b) A anamnese esquadrinha na realidade o que justifique seus pressupostos. Fiel à lógica paranóide, acha o que queria encontrar. c) A anamnese entra para o rol dos instrumentos de precisão, fita milimétrica, balança de pesar angstrom. Quantifica cada elemento da mosca e da luz, achando que desvendou a beleza do brilho azul.
d) A anamnese se volve metafísica do sintoma, puro evento que acontece no ser, apesar dele e de sua história, acontecimento e não criação, coisa e não processo. O ritual de ressignificação se perdeu.
Instrumento/Teoria Operacionalizada?
Nenhuma técnica é neutra pois não está separada de sua aplicabilidade, mas sempre oferece resultados práticos e não é transposição mecânica nem da própria teoria que lhe gera. Portanto, é possível acatarmos resultados da técnica sem que, com isto, se confirme o método e o pressuposto. O desafio colocado é o de re-equacionar a entrevista médica, de modo a que ela dê conta do sintoma como criação, da concepção de processo saúde/doença e, como o objetivo é a clínica psicológica e psiquiátrica, que seja capaz de contemplar todos os prováveis lugares de organização da identidade (corpo, família, infância, sexualidade, trabalho). O instrumento verifica e pode ultrapassar os limites da teoria. O aprofundamento destas questões é tarefa de metodólogos. É imperativo, porém, a realização do levantamento de alguns problemas, pois, para que a ciência seja democratizável, há que ser claro o processo pelo qual seus produtos são conseguidos. O primeiro problema é isolar o que é da ordem da relação saúde/doença, do que é da ordem da relação normal/não normal (freqüência, permanência, hábito, prevalência) e do que é da ordem da relação bem/mal (valor, moral, ética, ideologia). Para realizar este isolamento é conveniente sistematizar um quadro, esboçado e ampliado a partir de discussões fundamentais efetuadas por Canguilhem (1982).
Concepção adoecer
Ontológica (localizante,
sobre
o
Concepção circunstância
Causa
sobre
Concepção
sobre
relação normal/patológico
Compartimentação (realidades diferentes
circunscritora)
e opostas)
Dinâmica
Ocasião
(totalizante do e no
Continuum (quantidades
ser)
diferentes de uma mesma realidade) Concreta (integradora,
historicizadora)
Determinação complexa (processo e conflito)
Interação contraditória (qualidades diferentes de uma mesma realidade)
E é também de Canguilhem (l982) que surge a melhor das definições: "Saúde é um conjunto de seguranças para o presente e de seguros para prevenir o futuro. É guia regulador das possibilidades de reação. A vida está, habitualmente, aquém de suas possibilidades, porém, se necessário, mostra-se superior à capacidade presumida (...) Uma norma de vida é superior a outra quando comporta o que esta última permite e também o que ela não permite (...) Doença consiste numa redução da margem de tolerância às infidelidades do meio”. Ocorre que a Clínica não descobre verdades desconhecidas, apenas sistematiza e apresenta o estoque de conhecimentos adquiridos. No campo do adquirido estão os consensos sociais em torno do que é relevante, do que é transcendente, das concepções sobre doença, suas circunstâncias e suas relações com a vida. Portanto, o trabalho, como formador do homem e cúmplice de todos os seus comportamentos, não comparece na anamnese senão lateralmente, porque lateralmente trabalho comparecia nas concepções sobre a vida. Ramazzini, em 1700, introduz no questionário hipocrático a pergunta "Qual sua ocupação?". Mas é Kraepelin (1856 - 1926), máximo expoente da concepção ontológica, que, expurgando de Pinel (1745 - 1826) a dimensão mais evidente do disciplinamento moral e acresce competência técnica sobre o biológico e a sistemática nosológica,se associa a ele para marcar cada gesto da Psiquiatria atual. No que diz respeito a trabalho, marca um passo atrás com relação a Ramazzini. Em "Nosographia Philosophica", obra de 1795, Pinel sistematiza propostas para a entrevista e a relação médico/cliente, que coloca o tema trabalho como pretexto de aproximação. A seguinte sistematização é extraída de Foucault (l980):
O aprendizado sobre a doença deve ser realizado no leito do doente. O médico busca a compreensão da doença e as possibilidades de cura com lógica, decência, doçura e piedade. O interrogatório deve ser iniciado por tudo o que não seja doença: pátria, clima, família, profissão, doenças anteriores etc. O procedimento de investigação evolui da análise das funções vitais (respiração, pulso, temperatura), para as funções naturais (sede, apetite, excreção) e para as funções animais (sentidos, faculdades, sono, dor). A partir destas propostas, Pinel procede à organização de um esquema ideal para o inquérito clínico: Momento visual - observar estado e manifestações. Momento da linguagem - observar tempo, recordações, hábitos, desenvolvimentos encadeiados das queixas, profissão. Momento da percepção - dar-se conta do que esteja a acontecer e realiza evolução. Momento da prescrição - prognóstico e acompanhamento. Momento visual - retorno ao primeiro momento, no caso de óbito, observar estado e manifestações indiretas do cadáver. Em linhas gerais, pondo o trabalho como pretexto de aproximação, este é o esquema praticado no quotidiano atual da clínica psiquiátrica, em paralelo quase imissível com as práticas psicanalíticas. Freud descobre o continente do inconsciente, revelando a especificidade, a autonomia, a complexidade multi-unívoca do psíquico.Não se descola da concepção ontogênica, pois funda um início, gênese, no olhar vinculador da mãe e no olhar estruturador do pai, sem se perguntar que pai e mãe são estes, quais seus próprios inícios, porque olham deste ou daquele modo. Não se descola da tradição de Comte/Broussais/Ribot, pois, como eles, acredita na doença como momento experimental natural, melhor momento para identificação das dinâmicas da vida (o funcionamento genérico do psiquismo é extraído do que a neurose lhe propõe). Mas ultrapassa o ontogênico quando expressa a continuidade qualitativa entre saúde e doença, o não estranhamento destes termos de relação, a intimidade contraditória deles,
e ultrapassa o positivismo quando afirma que o fenômeno é sintoma, carecedor de interpretação ressignificadora. Procurando superar a artesania, a mágica, o mito do espontaneísmo, que nem estão em Freud, mas viraram prática corporativo-protetora, Gear & Liendo (1976), constatam que um desenho diagnóstico preciso e a programação planificada do tratamento psicanalítico favorecem enquadramento, simultaneamente mais profundo e mais flexível, para as possibilidades logísticas de cada cliente.Então sugerem um programa para o relacionamento terapêutico: Interpretação fundamental. criação do distanciamento com o tema do cliente egodistonização do monotema construção histórica. interpretação de transferência. interpretação edípica direta. pontuação de transferência. interpretação de transferência invertida. interpretação edipiana invertida. desenho do conflito. desenho do círculo vicioso. desenho do conflito induzido pelo cliente. interpretação prospectiva. Atitude psicoterapêutica fundamental (Conotação). contra-estilo fundamental. dramatização verbal da transferência. Enquadramento fundamental. Enquadramento do enquadramento fundamental. Metacomunicação. meta-interpretação.
meta-situação. especificação. Ora, é possível que a partir deste programa se engendre algo como uma folie a deux. Há como que dois monotemas em ação, cada qual pretendendo subsumir o outro: paralisia e suas determinações X Complexo de Édipo e suas determinações, por exemplo. Todo o restante é fantasma. Não importa que tenha existência fora da subjetividade do sujeito, importa apenas o que se encontra no psiquismo, independente do modo como terá ido parar lá. Família - Infância - Sexualidade, Pai/Mãe - Filho Espírito Santo. Mas a Trindade se humaniza com lutas, apóstolos, igrejas. Apóstolos que eram pescadores, por isto puderam pescar almas, não caçar almas, não esculpir almas. Não se pode exigir de Freud que visse o que não existia, pois o mundo do trabalho estava fora da neurose vitoriana que inaugurou o divã. Mas a Psicologia, a Psiquiatria e a Psicanálise enfrentam os homens de hoje. Quem se posta diante destes homens nada vê se não tiver trabalho como categoria analítica.
Trabalho como Categoria Clínica
A realidade da vida assume complexidades tais que somente quando recortada por bisturi epistemológico a laser, em níveis analíticos que, por sua vez, podem inaugurar vastas áreas de saber, expõe-se à inteligência da vida sem ofuscá-la. Cada nível analítico desdobra variáveis, o que, também por sua vez, remete a instrumentos capazes de delimitá-las e discriminá-las em fatores, na busca dos operantes. Como trabalho aparece como categoria filosófica, econômica, sociológica e psicológica, é fato discutido em outros textos, convém definir o modo como aparece na clínica, isto é, trabalho como categoria psicopatológica. Sendo trabalho um dos lugares sociais possibilitadores e estruturadores de identidade, que extensão de possibilidades e estruturações, primárias e secundárias, sucessivas ou simultâneas, ele gera?
Pelo menos quatro expressões, que não rompem com a tradição mas instauram novos significados, podem ser usadas para a tentativa de circunscrever o modo como trabalho se expressa na clínica: Estreitamento do campo da consciência. Tanto esta expressão, como a original "campo da consciência", tomadas de empréstimo a Janet (l975),permitem designar o que ocorre quanto às chances (expansão, redução) de uma mesma consciência pessoal reunir fenômenos psíquicos, simultaneamente.O trabalho que entra na história individual após adolescência e escolaridade extensa, após consolidação de mundividência estranha ao mundo do trabalho (moral, existencial), será menos capaz de catalisar os fenômenos psíquicos na direção de seus processos, será menos capaz de impor pautas, trilhas, trilhos, que o trabalho do camponês, por exemplo, que entra em sua vida junto com as primeiras "ereções de urina". Um processo de trabalho repetitivo, automático, fragmentado, será muito mais capaz de enfrentar e vencer outros estímulos, reduzindo o campo da consciência a um espasmo doloroso, que aquele que permita elaboração de vias duplas de relação. O momento de entrada direta na vida individual e a natureza do processo de trabalho determinam a amplitude da ação do trabalho sobre o campo da consciência. Prontidão paranóide. Esta expressão, tomada de empréstimo a Fanon (1978), permite designar o que ocorre na organização da representação sobre o tempo efetuada pelo trabalhador e passada para seus relacionamentos. Caso submeta os instrumentos e o processo ao seu tempo biológico prévio ou submeta seu ritmo ao ritmo dos instrumentos e processo; caso o tempo seja vivido como tempo produtivo ou como tempo preparatório para que outro produza; caso paire livre de uma hierarquia direta ou esteja na base de uma pirâmide de incitadores/fiscalizadores; caso o tempo de produção seja artesanal, em haustos ligados ao tempo natural prévio, ou tempo artificial, ainda não experienciado como natural, onde segundo seja molécula de tempo capaz de separar o sucesso ou fracasso do trabalho; estar-se-á num ponto ou noutro do eixo do tempo, mas tempo sem passado, presentificado no ato, futurizado no vir-a-ser do produto ou de sua ausência. Controle, hierarquia e presença ou ausência de produto, determinam o que ocorre na organização da representação sobre o tempo. Catexe objetal.
Esta expressão, tomada de empréstimo à Psicanálise, permite designar o que ocorre na vinculação trabalhador/trabalho, na maior ou menor possibilidade do trabalhador projetar sua subjetividade no que ele faz. O produto estranha porções do produtor. Vinícius de Moraes lembra ao operário em construção que tudo em volta carrega marcas de sua mão. A existência destas marcas autoriza o espelhamento do trabalhador no trabalho, tornando familiar o exótico, recuperando em outro nível a onipotência infantil e a totalidade do saber sobre o que faz. Se a marca e o saber são impedidos, o trabalhador morre. Fadiga. Durante o século XIX, a fadiga foi compreendida como esgotamento muscular, perda ou ganho de substâncias, corrigível por repouso. Mas em seguida fadiga foi aproximada de intensidade de trabalho, de ritmo, relativamente independente da extensão das jornadas. No século XX, fadiga passa a ser entendida como resposta genérica ao estresse, totalizante, envolvendo ritmo, extensão, controle e saber, não aliviada por repouso ou sono. Cansaço e sensação de vazio invadem a vida inteira do trabalhador, portanto o trabalho exige ser visto em sua dupla dimensão (concreto e abstrato) e a extração exploratória de sobre trabalho exige ser vista em sua dupla dimensão (absoluta e relativa). Não é somente a percepção investigadora que descobre novos desdobramentos, é o modo de organização do trabalho que simultaneamente vai inventando novas formas de viver e sofrer. Estafa - esta pequena loucura disseminada pelos interstícios da alegria e do prazer, conceito que caiu na boca do povo e designa corte de mal-estares - traz a neurastenia dos ociosos vitorianos, para o dia-a-dia dos produtivos, em tempo de capitalismo monopolista informatizado. Considerando a
elaboração individual e
coletiva
de desígnios,
constituidores de comunidades de destino, tanto no espaço da família, da infância, da sexualidade e do trabalho, podem ocorrer experiências dramáticas de sucesso quando já se suspeitava fracasso, de fracasso quando se suspeitava sucesso, de fracasso armadilhado (ardil automutilador), de sucesso sem empenho, de fracasso independente dos esforços individuais e micro-coletivos.Estas experiências dramáticas podem construir vias dolorosas. O trabalho está aí, tão capaz de gerar tais experiências quanto qualquer outro lugar, e mais ainda, quando é posto no centro de organização do mundo. O mundo do trabalho ocupa o mundo.
Síntese
O que se propõe não é novo. É uma nova concepção de uso do velho instrumento. É a recuperação do ritual significador concebido pela Escola de Cós. Alguns corolários deduzidos dos aforismas hipocráticos nos servem de guia: a compreensão da medicina depende da compreensão dos homens; é a vida, não a coisa, o que devemos estudar; o que acontece no corpo é também repercussão do que acontece no cérebro; a vida é um processo contínuo. A anamnese não deve substituir um enviesamento por outro. É preciso integrar os espaços de organização da identidade (corpo, família, infância, sexualidade, trabalho), aceitar a discriminatividade colocada pelas teorias que se ocuparam primariamente de corpo, família, infância e sexualidade, oferecendo a discriminatividade considerada para trabalho: matéria prima, gesto, tarefa, processo, atividade, produto, divisão, hierarquia, salário, jornada, instrumento, controle, saber, marca, modo de produção. Se um jovem de classe média urbana chega ao trabalho depois da adolescência, das epifanias sexuais e de décadas de exposição ao disciplinamento escolar; o jovem operário chega à escola, às epifanias sexuais e à adolescência, depois do trabalho, a partir da identidade de trabalhador. E todos já se relacionavam com mãe e pai a partir das possibilidades que a inserção deles no mundo do trabalho configurava. O trabalho remete o sujeito e a fábrica de sujeitos para chances determinadas de alimentar-se, morar, desenvolver prontidão para a tecnologia social acumulada, usar o tempo não comprado para o trabalho, ser saudável e apropriar-se do destino e da felicidade. Uma anamnese, qualquer que seja, não explica o mundo. Apenas expressa e organiza as representações que clínico e cliente fazem dele. Na consciência não se encontra dor gástrica, mas uma representação da dor gástrica, com julgamento de transcendência e do estatuto social do corpo, da dor e do sujeito. A anamnese sistematiza discursos. É preciso expulsar do discurso médico a ausência do Trabalho Humano, aproximar representação da vida e vida reapresentada.
CAPÍTULO XIV
TRABALHO E SAUDE MENTAL Loucura Loucura, esta obscura palavra, o que designa? Bruxos, gênios, extravagantes, ateus nas teocracias, religiosos em sociedades laicas, opositores políticos, contemplativos, recusadores de todo gênero... quantos habitaram e habitam o obscuro desta palavra? Se a criança de dois anos coloca o dedo em tomada elétrica - loucura. Se o rapaz pobre desdenha sedução de moça rica - loucura. Se o habilidoso artesão de miniaturas em marfim não põe em mercado sua habilidade - loucura. Se o explorado não aceita ser "salvo" por uma elite populista - loucura. A loucura tem quase o tamanho do universo. O que não é loucura? Parece ser a estreita fresta da imagem idealizada que uma sociedade tem de si mesma, o que, havendo divisão de classe, corresponde ao particular dos dominantes imposto sobre todos nós. Erasmo de Rotterdam a elogiava. Savonarola a anatemizava. Ora voz de deus, ora possessão demoníaca. Ora capacidade humana de transcendência, ora revelação da mais poderosa animalidade. Receita: Tomar a conduta que realize freqüência, habitualidade e utilidade segundo interesse capaz de se constituir como poder. Elegê-la como tipo ideal. Criar lei e polícia da lei. Vestir tudo nesta camisa de força. Estigmatizar o que não puder suportála. Loucura - o que não se ajusta, o que escapa por cima ou por baixo, o que implode ou explode, os restos cortados por exceder o tamanho da cama de Procusto, os tendões estirados a ferro e fogo para completá-la. Loucura - étimo obscuro, de origem polêmica. Doidice - étimo obscuro, de origem polêmica. Maluquice - étimo obscuro, de origem polêmica. Pirado - deverbal de pirar, escapar, esgueirar-se, escapulir.
Gira - deverbal de girar, rotar, volteiar, circunlóquio. Demente - sem inteligência,sem espírito, sem alma. Lunático - aquele que vive no mundo da lua. Alienado - aquele que transfere para outrem o domínio de si. O ciclo está completo: aquele que escapa, se esgueira, escapole, é aquele que precisa ser dominado. Exceto uns poucos - todos loucos. Loucura está aí, neste mundo indomado. Designa o que não é razão triunfante. É categoria sociológica e antropológica, não psicológica (embora tenha aí representação), muito menos psicopatológica (embora parte possa por aí se cristalizar). Enquanto fenômeno é sempre na subjetividade e no comportamento dos indivíduos que podemos encontrá-la, mas inúmeros fenômenos podem estar referidos a uma categoria que lhes explique, e não é por expressar-se no individual que exija para explicar-se uma categoria psicológica. Cada saber que se constitui corta a matéria do que pode transformar em objeto. Paixão e doença já não são a mesma coisa, mas o que são? Quem se apropriará da paixão e da doença, seja lá o que forem? Psicopatologia - paixão, doença, do alento, do sopro da vida. As Religiões, no processo de institucionalização, foram desenvolvendo instrumentos, cada vez mais considerados como objetivos e confiáveis, visando discriminar possessão divina de imperfeição humana. A Igreja não poderia se consolidar como intermediária necessária se a todo momento deus estivesse intervindo diretamente através de porta-vozes espontâneos. O processo de desenvolvimento do sistema jurídico também resultou no desenvolvimento de instrumentos, cada vez mais considerados como objetivos e confiáveis, para discriminar responsabilidade e irresponsabilidade perante a lei, capacidade e incapacidade de compreender os pactos sociais. O sistema jurídico não poderia se orientar, se a todo momento sua racionalidade fosse posta em dúvida. A ordem econômica capitalista, industrial, como qualquer ordem instituída, pôde engendrar, no processo de suas práticas, agentes e instrumentos de enquadramento que pudessem disciplinar as pessoas aos novos espaços de trabalho,
às novas representações de tempo e identidade, e que permitisse legitimar a exclusão de população excedente, variável a cada momento econômico. No palco europeu, pelo correr dos séculos XVII e XVIII, como podemos depreender de Foucault (1972), estas contradições se dilataram e se contraíram até a precisão milimétrica da especialização. Tem-se o conceito e seu zelador, mas o que o signo significa e o zelador zela? Constroem-se distinções, demarcam-se fronteiras, em jogo o monopólio da razão. O jogo, porém, não é apenas ideológico. Algo objetivo, concreto, emerge, se aclara, se transmuta em nova inter-relação entre o eu e o mundo. Duas tendências buscam hegemonia: Loucura é um todo a ser extirpado ou contido poderosamente. Há que delimitar o gueto da loucura, enquadrá-la em local fechado de onde não possa importunar as cidades. Loucura é uma heterogeneidade que desdobra oposição, desvio, paixão e doença. Há que apropriar a oposição na política ou na polícia. Desvio e paixão na arte ou na religião... e a doença na Medicina. Cada objeto, um agente e um mercado. Doença Mental e Psiquiatria nascem uma para a outra, uma da outra, dentro da lógica expansiva da racionalidade e da mercadoria. O universo da loucura se volve continente da doença mental.
Doença Mental
Agora o étimo é reconhecível, o significado delimitado, muda a pergunta: afinal, o que é doença mental? Ergue-se outra vez a mesma torre de babel. A tal ponto que torna-se rigorosamente impossível uma revisão bibliográfica do tema, na exata medida em que isto implicaria em uma releitura de toda a Psicologia, Psicopatologia e Psiquiatria que se produziu desde os fins do século XIX, pelo menos. Autores como Kaplan & Sadock (1986), sentem-se a vontade para escrever um clássico handbook sobre Psicopatologia sem uma definição sequer do conceito tema do livro; deixam claro em sua exposição, essencialmente descritiva, que doença mental é o que se apresenta perante o psiquiatra como tal. Tomam os distúrbios e perturbações arrolados no DSM III como fatos naturais da vida social, não foram produzidos, sempre existiram. Aqui e em
outras fontes assiste-se a uma estranha inversão da prática científica, parte-se do que se deveria explicar: se os homens se apresentam com esta ou aquela sintomatologia, pressupõe-se uma doença mental, uma forma de tratamento, para só depois tentar explicá-la. Esta contradição autoriza autores como Szasz (1978), por exemplo, a considerar toda uma ciência constituída, a Psiquiatria, como nada mais do que um mito. Canguilhem (1982) aponta três modos de compreender a relação existente entre saúde e doença: a) São opostos, realidades diferentes, capazes até de fundar Ciências diferentes (Psicologia e Psicopatologia, p.ex.); b) São pontos extremos de uma escala mensurável quantitativamente ( muito, de um atributo de saúde, o faria atributo de doença, p.ex.); c) Qualidades diferentes de uma mesma realidade, formas de expressão do dinamismo vital (o que não faz doença ser saúde, mas a definí-las estarão presentes valores: estatuto social do corpo, da doença, do doente, do tratador). Estes três modos se articulam com três concepções sobre produção da doença: Ontogênica - localizante, definindo saúde a partir do estudo da doença, limitada à análise dos eventos associados ao momento anterior ao surgimento da doença ou à história de vida do indivíduo isolado. Dinâmica - totalizante, incorporando a idéia de multicausalidade, deixa o órgão e toma o indivíduo como um todo, mas se mantém limitado ao indivíduo. Concreta - ultrapassa a idéia de causalidade para a de determinação complexa, incorpora na análise os processos sociais, culturais e econômicos nos quais o indivíduo se insere e completa a relação entre realidade dos objetos e realidade das representações, aqui se opta por esta terceira visão, o que por si só, como se verá, não resolve automaticamente o problema. O que há de acúmulo nesta última concepção poderia ser sumarizado assim: Saúde e Doença não são fenômenos isolados que possam ser definidos em si mesmos, pois estão profundamente vinculados ao contexto sócio-econômicocultural, tanto em suas produções como na percepção do saber que investiga e propõe soluções. Todas as concepções de doença pressupõem norma objetiva que permita determinar modelo referencial. Isto fica superlativamente evidente quando a questão é Doença Mental. Machado et alii (1978) afirmam que, para medir o que é ou não é razoável em uma conduta, será preciso compará-la com ela mesma e com outros comportamentos comumente aceitos em cada sociedade e em dado momento histórico.
Esse critério comparativo - ao mesmo tempo possibilidade de estabelecer a norma a partir da observação do desvio, e promovê-la autoritariamente na prática - permite articular história individual e história da sociedade, entendendo-as como mudança progressiva e interdependente. "Então é possível pensar que Saúde Mental e Doença Mental são conceitos que emergem da noção de bem estar coletivo. Anormal é uma virtualidade inscrita no próprio processo de constituição do Normal, carecendo, portanto de instrumental médico, psicológico, filosófico, sociológico, antropológico, econômico e político para ser compreendido". (Sampaio, 1988). Breilh (1983) adota como princípio que a realidade objetiva se encontra em mudança permanente, que o motor da mudança é a contradição, que a relação Saúde/Doença é elemento da vida social e que há uma escala crescente de complexidade entre processos inorgânicos, processos orgânicos e processos sociais. O processo mais complexo incorpora os anteriores, submetendo-os a suas próprias determinações e leis. Portanto, no caso humano, o social submete e determina o orgânico (que por sua vez já submetera e determinara o inorgânico). Além de a todos unificar através da diversidade. A investigação do biológico e do psicológico jamais podem despojá-los de suas dimensões sociais. Seja qual for o conjunto preponderante de sinais e sintomas, seja qual for o conjunto de variáveis causais diretamente operantes, só há doença mental quando a história psíquica do indivíduo perde relação com a história da sociedade, quando as reciprocidades e as compartilhações implícitas de significados se rompem, quando o conflito entre as histórias se torna permanente na irresolução, esta não é sequer compreendida e o sujeito é invadido pela dor sem estímulo concreto é "invadido por uma experiência de paralisação ou descontinuidade da percepção de sua própria vida como curso coerente" (Moffatt, 1987). Parece ser possível, apesar do território movediço, recuperar o que há de comum, de consenso, de tácito entre o cipoal que coabita no terreno da definição de doença mental...Variam as nosologias, as etiologias, a clínica e a profilática, mas todas as formulações partem de um ponto em comum, porque empírico. Quando falamos em sofrimento psíquico estamos falando em algum tipo de ruptura entre a subjetividade e a objetividade, um divórcio entre o eu e o mundo, entre o eu e o outro, já consubstanciado intrasubjetivamente, entre eu e eu, e nas tentativas de superar o divórcio.
Esta discussão não é nova, podemos, surpreendê-la em vários momentos e em vários lugares, na Fenomenologia e na Psicanálise, por exemplo. Para
Jaspers
(1987)
o
indivíduo
não
se
reduz
a
conceitos
psicopatológicos; considera que avaliações éticas, estéticas e metafísicas são estranhas à Psicopatologia; que sua meta é o homem, a alma do homem e como ela se objetiva (vivências, condições, nexos, relações e modos de exteriorização). Lançando mão de um diagrama baseado em Aldebrecht, explora a distinção entre desvio indiferente de estado vital (saúde) e desvio com prejuízo e caráter de perigo do processo vital (doença). Excluindo a história e tomando como ocorrendo na objetividade o que ocorre na representação (subjetividade), Jaspers está falando de objetividade e subjetividade, ruptura e reapropriação. Anna Freud (1978) afirma que não há Psicanálise se id, ego e superego se encontrarem em harmonia, calma, satisfação; que o id só é acessível através dos estados que a existência de conflito (tensão, desprazer) provocam no ego; que o superego, na ausência de conflito, indiferencia-se de ego; que é necessário distinguir instinto, de representação ideacional do instinto, de afeto associado ao instinto e de representação ideacional deste afeto associado. Ora, as defesas estão sendo tomadas como técnicas de que o ego se serve em conflitos que possam redundar em neurose e não determinado tipo de defesa como neurose; certa harmonia está sendo buscada como sinônimo de saúde, sendo o desequilíbrio tomado como patologia e não como condição necessária para a construção da consciência; elementos internos e externos estão sendo contrapostos e não a própria interrelação como sendo o sujeito; mas Anna Freud está falando de objetividade e subjetividade, ruptura e reapropriação. Perigos para o processo vital; conflitos entre ego, id e superego; ausência de relação entre respostas e conseqüências; dissonância cognitiva - diversos postulados teóricos, uma mesma constatação: a ruptura entre sujeito-objeto, homem-mundo, eu-eu, eu-outro, a ruptura entre a objetividade e a subjetividade. O consenso é parco, mas basta para seguir adiante.
A consciência
Objetividade, aqui o mundo apesar do sujeito, e subjetividade, o sujeito abstraído do mundo que o cerca, são inatingíveis na ausência de uma compreensão, por mais rápida que seja, da consciência, locus onde a interrelação entre o subjetivo e o objetivo se expressa. Enquanto uma parede branca significar para minha percepção apenas uma parede branca, não poderemos falar em consciência, é preciso que a minha intervenção construa um significado para a parede que transcenda ela mesma, apenas quando for mais ou diferente dela mesma para mim é que torno-me um ser consciente, a parede pode ser bela, triste, importante, asséptica. Agora sim é possível fazer Psicologia e é obrigatório investigar a consciência. "A consciência é, desde o início, um produto social. No início é consciência do meio sensível mais próximo, é consciência de conexões limitadas com outros e coisas”.(Marx, s/d). Como é que as coisas e os outros vão adquirindo transcendência? Como ganham significado? Na exata medida em que sou um ser histórico e na dependência desta historicidade. A capacidade humana, pelo trabalho e pela linguagem, de incorporar a história e ser incorporado por ela, constrói cotidianamente outras paredes dentro da parede branca, outra parede para cada indivíduo que se apresentar. A ação humana individual e coletiva, passada e futura, vai redefinindo as coisas, os homens, o mundo. Mas não é qualquer ação humana que tem esta propriedade. É preciso que a mesma seja promotora de alguma transformação perene na natureza ou nos homens, é preciso que tenha um produto, que seja trabalho (dupla relação de transformação entre o homem e o mundo, metabolismo do homem com a natureza (Marx, cap. V, s/d). Tanto de um ponto de vista individual ou coletivo, é a experiência do trabalho que estabelecerá relevâncias, destacará fatos e significados, diferenciará alguns objetos de outros na percepção. Leontiev (1978) marca esta diferenciação com a alegoria entre o machado e a árvore: Quando a ação de derrubar a árvore ocorre, é portadora de algo que não está na árvore ou no machado, a diferença de consistência entre um e outro. Eis o locus da consciência. O produto (árvore derrubada), o machado (instrumento de trabalho), ação anterior congelada e reapropriada por este homem, permitem a construção de outras
árvores dentro da árvore, mais mole ou dura, por exemplo, e de outros machados no machado. Diremos: a atividade é sincrônica, o trabalho é diacrônico. No plano da atividade, por exemplo, beber água, é perfeitamente possível empreender a análise no plano estrito do encadeamento estímulos e respostas. Não se demanda aqui a busca do significado porque a ação mesma não é significadora, ou seja, não tem transcendência. Até aqui estamos no terreno natural, onde coabitamos com os animais. Quando o trabalho introduz a ação passada dentro da ação presente, o machado congela e historiciza a ação alheia e a minha, os gestos significam, e não podemos abandonar a diacronia sob o risco de perder a ação mesma. Ocorre que a presença do trabalho na história dos homens instala mais do que a diacronia, instala também a possibilidade formal da diacronia para qualquer ação humana. O que faz com que, em um corte transversal, qualquer atividade possa ser prenhe de significados e portanto produtora e produzida pela consciência: o mesmo beber água pode se imiscuir de quaisquer significados. Por azar do pesquisador, aqui os limites são fluídos, lábeis, e não há avanço teórico que permita uma delimitação a priori dos seus significados. Por azar sim, mas não por culpa do pesquisador, os limites é que são lábeis, é do próprio fenômeno da consciência a sua fluidez. Um exemplo: Ao andar na rua você tem condições fisiológicas de perceber milhões de coisas, de conhecer outras, e de ter consciência de outras tantas. Mas traçar uma delimitação entre um nível e outro só é possível em uma determinada situação específica, com validade heurística também circunscrita a esta situação, esta pessoa, neste momento.
Da diacronia à ruptura
A diacronia sujeito e objeto é filha da historicidade, do trabalho, e instala por sua vez a consciência. Posta a diacronia estão colocadas por sua vez as condições, a possibilidade formal para a ocorrência da dissincronia, quando sujeito e objeto já não
se enfrentam em simetria: agora a parede que jaz à minha frente se transmuta à minha imagem e semelhança, várias paredes, cada qual ressignificada pela história ocupa a parede que o meu ser natural reconhece. Uma síntese: o animal do homem é sincrônico, o homem do homem é diacrônico, por isto o viver do homem é dissincrônico. Sujeito e objeto constroem entre si uma invisível rede de significações, dupla transformação homem-natureza: a vida de todos nós é fundada em uma permanente tensão sujeito-objeto possibilitada pelo trabalho. Através do trabalho a diacronia, por isto uma tensão sempre dissincrônica entre o homem e a natureza, agora encontramos as condições formais para que ocorra a ruptura entre o sujeito e o objeto, portanto do sujeito consigo mesmo. Eis a definição provisória de sofrimento psíquico absorvida da literatura. Por via quantitativa, de mais ou de menos: o medo de assalto que chega a impedir alguém de andar na rua, a necessidade de limpeza que obriga o sujeito a banhar-se sempre que alguém lhe toque. Ou por via qualitativa: o amigo que eu imagino querer me roubar, as nesgas da parede que me perseguem. Quando a dissincronia se transformar em ruptura, estaremos falando em sofrimento psíquico, doença mental. É curioso como, a partir desta formulação alguns clássicos problemas da Psicologia perdem totalmente o sentido: sobre a determinação interna ou externa da doença mental por exemplo, qualquer das duas respostas clássicas se equivoca na medida em que o problema é exatamente a tensão entre o sujeito e objeto, a dupla transformação homem-meio. A consciência precede a ação ou é produto dela? Também não seria possível coisa ou outra: a ação é produto e produtora da consciência, a consciência é produto e produtora da ação, outra vez uma só se define em nexo com a outra. A discussão assume ares de escolástica. Mas voltemos à nossa primeira definição de doença mental: É a ruptura entre a subjetividade e a objetividade: a lógica paranóide que, através da dissincronia entre a parede branca e a parede para este sujeito inventa a falsa existência de um monstro interplanetário espertamente disfarçado. Esta primeira aproximação faz avançar a compreensão do problema, mas ainda é enganadora: Até agora reconhecemos a diversidade do subjetivo, sabemos até
algo de como ela se instala, mas partimos do pressuposto da unicidade do objetivo, o que não é verdadeiro: o objetivo também é múltiplo. Até aqui atingimos, e a literatura já havia atingido, uma subjetividade múltipla, dinâmica, contraditória, as paredes brancas puderam ser sempre várias e antagônicas entre si, mas congelou-se a objetividade. Dizíamos no início que havia concordância entre todas as teorias quanto á ruptura entre a objetividade e a subjetividade na definição da doença mental, aqui a concordância se acaba. A Psiquiatria clássica, por exemplo, partiu sempre do pressuposto da unicidade do mundo objetivo, ocorrido o estranhamento era no indivíduo que deveríamos busca-lo. Algumas psicologias e psiquiatrias "críticas" também, chegou-se a formular a tese de que a doença mental não passava de uma invenção destes ou daqueles poderosos para excluir os descontentes. Já a Psicanálise e o Behaviorismo reconhecem a pluralidade do mundo objetivo. A primeira fez da tensão entre objetividades distintas, entre a cultura e a biologia, seu principal locus de atenção, o que, diga-se, permite que ainda hoje seja uma teoria atual; o Behaviorismo coloca no centro de sua teoria a possibilidade da realidade adquirir significados antes aleatórios para o sujeito. Dissemos, o objetivo é múltiplo. A cultura é objetiva, e a biologia também: para enfocar a tensão preferida pela Psicanálise, o corpo sente prazer sexual e a cultura o considera sujo e indigno. Ainda nossa gasta parede branca se insere objetivamente em estruturas objetivas múltiplas, recebe dos hospitais a marca da assepsia, dos velórios a tristeza, da moda a beleza, ou a feiúra, dependendo do contexto, da hora e do lugar. E quem já esteve doente, já enlutou e acompanha os movimentos da estética, está literalmente sob a égide de muitas paredes brancas quando se defronta com cada parede branca. Se existir algo que possa ser considerado de mecanismo básico para a sobrevivência do ser humano será esta possibilidade de conviver com a multiplicidade. Ou o ser humano arranja meios de conviver com o belo e o feio, o alegre e o triste, simultaneamente, ou não estaríamos aqui para contar a história. Os homens tiveram de encontrar, durante toda a sua evolução, mecanismos de convivência com a ruptura entre a objetividade e a subjetividade.
Da ruptura à reapropriação
Desde os primórdios, as sociedades humanas estruturam modos de reapropriação entre o Sujeito e o objeto. A religião, do Latim re-ligare, ligar outra vez, foi uma das formas que o homem encontrou para conviver com a ruptura S-O; todos caçamos o animal, mas o chefe tem o direito de comer primeiro, por que o chefe tem a proteção dos deuses. E quantos hoje não suportam o insuportável à espera ou graças ao reino dos céus? Quantos também, a partir de Puebla, não lutam em condições desiguais pela justiça como um princípio divino? A religião é sempre re-ligação, modo de reapropriação da dinâmica S-O. Não seria esta a função social da ideologia? Toda religião é uma ideologia mas nem toda ideologia é uma religião: Por exemplo, quando se obriga as mulheres a conviver com suas necessidades sexuais e a proibição de sentir prazer, pode-se suportar o drama elaborando o significado de que a mulher ao buscar prazer se torna indigna, impura, não merece respeito. Como o homem mesmo se apresenta como mediação obrigatória para o controle da natureza, se o meio ambiente do homem é também o outro, a objetividade do homem já se apresenta dupla: a natureza e a estrutura social. Através da linguagem, a ideologia opera emprestando universalidade abstrata ao que é particular concreto. Assim, se as mulheres em um determinado momento histórico, pela história mesma da divisão de trabalho entre os sexos, não estão preparadas para este ou aquele trabalho, o nível ideológico engendra algo como: “Isto não é trabalho de mulher”, tomando universal - eu seja, descolado do momento histórico -e abstrato- ou seja, independente desta ou daquela mulher em particular um conceito, ou um preconceito que acaba tendo função, neste caso, conservadora. Aqui interessa destacar o papel da ideologia na recuperação simbólica do metabolismo homem-natureza, operando uma sutura na relação S-O. Na medida em que nasce no esteio da dupla objetividade, social-natural, passa a ter função homogeneizadora da contradição impedindo a ruptura. A ideologia nasce e evolui com as relações de produção, para ocupar cada vez mais importância no capitalismoonde a produção se apresenta sob a égide da
mercadoria, o trabalho sob a forma de trabalho alienado. Adora o trabalhador se estranha perante o seu produto¡ portanto, perante si mesmo. Agora o trabalho aparece como seu próprio inimigo. Do ponto de vista psicológico, estamos falando em ruptura S-O. Agora a doença mental ameaça todos nós, daí por que a ideologia gessa a ser o dinamismo central de convivência com a ruptura, embora insuficiente. Onde houver uma contradição haverá necessariamente a atuação de modos de reapropriação: a fábrica inventa a classe operária, que inventa o sindicato, que inventa a greve, que inventa o partido de classe... No capitalismo, o trabalho se organize cooperativamente e engendra ao mesmo tempo competição obrigatória; a contradição, neste plano, é insolúvel. Ato contínuo, aumentam de importância, por exemplo, os esportes que fazem por exercer um forte sentimento cooperativo e ritualizam a competição, tornando-a lúdica e quiçá inofensiva. Ou as gangs adolescentes etc. Qualquer que seja a forma, sempre repondo um grupo social, onde a dialética cooperação/ competição volte a operar sob controle dos indivíduos. Se o modo de produção cinde afeto e razão, expulsando o afeto do trabalho, o trabalhador busca reapropriar-se do afeto, então a sedução da secretária passa a ser assunto obrigatório nas rodai informais de trabalhadores, vasta rede de erotização pousa entre os escritórios. Quanto mais o gesto se fragmenta, carregando com ele o autor, se o homem perde o controle sobre o processo de trabalho, floresce simultaneamente a indústria do hobby, oferecendo a oportunidade da ação se recompor, início-meio-fim sob a tutela caprichosa do autor, por sua arte e para o seu gozo. Se a produção da vida escapa das mãos, se é preciso viver um dia de cada vez, conquistando hoje o alimento de hoje, ritualiza-se a segurança: a televisão colorida, a roupa nova para que os amigos invejem, a casa própria, embora através de dívidas eternas, o carro novo. Se o trabalho feito mercadoria expulsa o projeto, o sonho, se revela a cada dia que o futuro nos escapa, eis uma enxurrada de telenovelas, cartomantes, horóscopos, eis a fantasia reinventando o devir. E assim, per omnia.
Se a ruptura passa a ser inerente às formas de organização da produção, se se torna onipresente, é preciso que o ser humano encontre mecanismos também suficientemente lábeis para que possa conviver com as rupturas. Tais mecanismos podem preencher a nível real ou mágico as necessidades de retomada da tensão S-O perdida na vida cotidiana. Real, quando exerce uma atuação de retorno sobre o locus da ruptura: a atuação sindical, por exemplo, objetiva a imediata melhoria das condições salariais ou de trabalho que estão provocando o problema. Mágica, quando retoma o controle, instaura a reapropriação, na ausência do set que desenha a ruptura e sem possibilidades de retorno à situação-locus: no esporte, como o futebol, estruturam-se equipes lado a lado em disputa feroz por um objetivo pactuado, toma-se a performance estritamente dependente da competência e ritualiza-se a disputa.
Modos de reapropriação a nível individual
Não é apenas na trama social que se desenham modos de reapropriação. É preciso atingir o nível individual, encontrar as maneiras que um sujeito em particular busca se proteger contra a ruptura S-O. Eles existem, e vasta tem sido a contribuição que a psicologia e a psiquiatria vêem oferecendo. Skinner, maneando as formas de controle e contracontrole, Selligman apontando o desamparo aprendido, os traços de personalidade tantas vezes catalogados, a dissonância cognitiva de Festinger, o conformismo de Asch, a batalha campal entre o id, o ego e o superego na psicanálise. Enfim, quem procurar nas psicologias a presença da dialética ruptura e reapropriação, correria o risco de percorrer toda a psicologia mesma. Que seja apenas uma ilustração, tomemos uma das descobertas mais instigantes de Freud, sistematizada por sua filha, os chamados mecanismos de defesa do ego. Um deles, a regressão: A presença da ruptura S-O retira o controle do indivíduo sobre o seu meio e sobre si mesmo. Uma das possibilidades de reapropriação é simplesmente o retorno a uma situação onde algum controle era detido. Todos nós já vivemos isto: É muito comum um gerente, ao se deparar com situações neste momento insolúveis, brigar com a secretária por um papel de somenos importância, ou fazer uma inspeção na unidade que dirige buscando encontrar pequenos problemas que saiba resolver; um trabalhador em
mecânica de automóveis, que, ao encontrar motor cujo defeito não consegue descobrir, inventa inusitado ciúme da mulher. Como se vê, o fenômeno não se restringe a um retomo à infância. A sexualidade pode ser uma das formas, pois a sedução da moça, vizinha de trabalho, em momento particularmente difícil, pode ser uma alternativa regressiva. Existem formas instituídas socialmente que estabelecem possibilidades de regressão a formas de sociabilidade anterior, cotidianamente utilizadas. Se a ruptura S-0 não encontrar uma destas formas socialmente disponíveis - um hobby, um esporte, uma religião - se restar a reapropriação solitária, incompartilhável, estaremos no vestíbulo da doença mental. Por que então não denominamos mecanismos de defesa e sim modos de reapropriação à dialética que vínhamos apontando? Sem dúvida, seria merecida homenagem. O problema é que Freud vai vincular sua descoberta à história natural do homem, pulsões, instinto, sexualidade, o que, do nosso ponto de vista, impediu que percebêssemos a extensão da descoberta. A etiologia que a psicanálise engendra a protege da tarefa de enfrentar a história, e com ela o trabalho dos homens, modo de construir a si mesmo. No entanto, se a ênfase for colocada na dinâmica eu-mundo, os mecanismos de defesa, como qualquer boa descoberta empírica, resistem e transcendem as fixações teóricas do autor.
Doença mental: solitária e dolorosa forma de reapropriação
Constatamos que a literatura vem considerando doença mental como a ruptura sujeito-objeto. Por isso nos obrigamos a rastrear a existência da dissincronia entre eu e o mundo que a consciência engendra. Pelo caminho se revelou que a ruptura é muito mais antiga que a doença mental, que as sociedades encontraram modos de reapropriação e os institucionalizaram, prevenindo a dor de enfrentar o estranhamento de si mesmo. Agora é possível discordar: doença mental não é a ruptura entre o sujeito é o objeto, entre o sujeito e o outro, do sujeito consigo mesmo. A doença mental ocorre tendo por base a ruptura, mas apenas quando "falham" os modos de reapropriação. De onde o risco da ruptura do homem consigo mesmo espreita? Onde se escondem os riscos do sofrimento psíquico? Onde quer que haja momentos
significativos. Significar é uma palavra de origem latina composta de signo, "marcar com um sinal", "pôr um sinal em", "imprimir", "gravar", e ficare, do verbo "fado feci, fartum”, “fazer, executar, mar, produzir, fabricar, trabalhar”. A etimologia fala por si. O homem é um ser genérico, que faz a si mesmo ao fazer o mundo, e é um ser transcendente, só se realiza quando se toma um outro. O homem também é um ser que produz significados. Onde buscar a compreensão do homem senão na forma como v homem produz sua própria vida? O trabalho é o momento significativo do homem, é a possibilidade da felicidade, da liberdade, da loucura e da doença mental. Evidentemente, a infância também o é, mas não qualquer momento da infância, apenas aqueles significativos, onde o fazer-se no e pelo mundo comparece (daí a presença forte dos pais no delírio, porque é com os pais que primeiro transformamos e somos transformados). Na sexualidade também, e também quando esta é significativa. Sobre a infância e a sexualidade já se sabe muito, já se esquadrinhou seus efeitos, seus modos de comparecimento no sofrimento psíquico. Sobre o trabalho, pouco ou nada se disse. É que paralelamente à alienação, divórcio entre o homem e o produto do homem, foi se concretizando a cisão entre o trabalho e o afeto, a razão e a paixão: o afeto, a paixão, a liberdade, ficaram sitiados na reprodução da força de trabalho, expulsos da produção. Este homem, obrigado a recolher do trabalho os pedaços de sua subjetividade empurrado a manifestar-se apenas depois do expediente, só pode expressar o suo sofrimento depois que soa o apito, depois do cartão de ponto. Este homem aparece condenado, no mais das vezes, a se expressar na reprodução, despejá-la na família, representá-la nos limites de sua casa. E aí expressará o que for possível: dependência, violência, doença. Uma jornada de trabalho que obrigue o sujeito a trabalhar quando os outros repousam e a repousar quando seus pares trabalham; tarefas maiores ou menores do que o cérebro humano possa suportar; relações de trabalha despejando mensagens contraditórias; uma brutal ruptura salarial provocada pelo desemprego ou subemprego, que desaloja o sujeito do seu patamar de sobrevivência: possibilidades de sofrimento psíquico que aparecem ao profissional sempre travestidas, outra dor ocupa o espaço da dor real. E quantos projetos terapêuticos atacam o espelho sem roçar sequer a fímbria do que ele espelha? E quantos projetos terapêuticos tomam a ruptura como natural e se acumpliciam com as táticas de adoecimento que deveriam estar resolvendo?
Recuperando o caminho traçado: partimos da consideração de que a alienação universaliza a ruptura entre o sujeito e o objeto; lembramos que a objetividade, para o homem, constantemente é o outro, pelo menos está sempre mediada pelo outro; esta ruptura entre o homem e o mundo significa sempre uma ruptura do homem consigo mesmo. Depois constatamos que a presença da ruptura é insuportável, o que obriga os homens a
construírem modos de reapropriação,
coletivos ou minimamente
compartilhados, que cumprem eficazmente a função de restabelecer a tensão S-O. Quando a história individual entrar em conflito permanente com a história social, quando o modo de reapropriação implicar em cada vez mais ruptura, quando a magnitude da ruptura, ou o seu momento individual de ocorrência, impedirem a reapropriação, ou quando se bloquearem rituais de recuperação sem maior sofrimento psíquico, estaremos no território da doença mental. É a partir do trabalho que se estruturam as representações e a relação delas com a história: tempo, vínculo e espaço de organização da identidade. Se a psicopatologia puder superar o estágio pré-científico em se encontra; se loucura e doença mental não forem mais ideológica e moralmente confundidas; se a doença mental não estiver sempre onde a colocamos c sempre a colocarmos onde não estamos; se a psicologia for possível, terá de perseguir o homem por onde n homem se faz: o indivíduo como ponto de partida, o trabalho como nexo, a reapropriação coletiva da existência como desígnio.
Esboço de uma taxonomia dos modos de reapropriação
Urge testar o modelo, visitar o sintoma, ver até que ponto a teoria pode ser cúmplice da vida. Tomemos um posto de trabalho muito comum em nossos dias: digitador de terminal de vídeo. O processo de trabalho está sob supervisão da máquina, o software é desenhado de tal maneira que a qualquer momento é possível saber quantos toques o operador deu e em que velocidade.
O controle sobre o trabalhador sempre existiu. O trabalhador sempre desenvolveu mecanismos relativamente eficientes de lidar com ele: modos de reapropriação eficazes.
Este trabalhador trabalhador vai ao banheiro e aproveita aproveita para driblar driblar o tempo, aquele organize seus colegas para reivindicar pausas, o outro resolve ser o mais rápido do grupo, ou se inventa um chiste contra os controladores etc. etc. etc.
Mas aqui a situação situação é qualitativamente qualitativamente distinta: distinta: o controle controle existe e é mais intenso, porém o controlador sumiu! Onde o cronometrista, o olhar atento do supervisor, o setor demarcado demarcado que controla a qualidade? A informática dificulta dificulta sobremaneira sobremaneira os mecanismos mecanismos de contracontrole contracontrole do trabalho na medida em que torna o controle onipresente e abstrato.
A situ situaç ação ão é de risc riscoo do pont pontoo de vist vistaa da saúd saúdee me ment ntal al do trab trabal alha hado dor: r: tornaram-se ineficazes os modos de reapropriação habituais. Está posta a ruptura S-O. Veremos adiante que riscos de adoecimento mental acompanham este quadro, por ora vejamos como operam os modos de reapropriação tendo como referência esta situação de risco. Os modos de reapropriação, tanto institucionais quanto individuais, operam suturas entre o sujeito e o objeto, que podem ser classificados assim: Quanto ao seu conteúdo se diferenciam entre efetivos e mágicos. Efetivos, quando enfrentam a contradição tal e qual se apresenta. Um grup grupo o de traba trabalha lhador dores es se organ organiz iza a para para reduz reduzir ir o tempo tempo de traba trabalho lho e espaçar mais adequadamente adequadamente as pausas. Outro intensifica intensifica o número de toques e depois deixa a máquina ligada para tomar um café.
Mági Má gico cos, s, qua quando ndo reapr reapres esent entam am a cont contrad radiç ição ão sob sob out outra ra fo form rma, a, ou sob sob out outro ro conteúdo. Quando chega à seção o relatório diário das estatísticas de cada digitador, um grupo se dedica a rir dos números de seus colegas e/ou de si mesmo, mesmo, ali um puxa- saco que ultrapassa a média, aqui um "mole" "mole" que nunca a alcança, outro grupo se recusa até a ver o relatório.
Quanto ao espaço onde operam, podem ser redutores redutores ou deslocadores. deslocadores. Redutore Redutores, s, quan quando do operam operam uma sim simpli plific ficação ação da con contrad tradição ição visando visando torna-la torna-la operacional. Este trabalhador se culpa pela "fraca" performance de hoje, lembra-se que não dormiu dormiu direito direito ou bebeu bebeu na noite noite anterio anterior, r, resumi resumindo ndo o confli conflito to capital capital-trabal -trabalho ho pelo pelo
apagamento simbólico simbólico do capital, capital, condenando o trabalho à responsabilidade responsabilidade solitária solitária de todo o processo. Ou o contrário, acusando o setor de processamento, a empresa, a chefe de plantão. Agora, foi o trabalhador trabalhador que desapareceu. desapareceu.
Deslocadores, quando transfere a dinâmica do conflito para sets distintos de onde ocorre. A briga com a namorada o chute no cachorro, as possibilidades são vastas e sobejamente conhecidas.
E, por último, quanto à dimensão temporal, podem ser coetâneos, retrospectivos ou prospectivos. Coetâneos, Coetâneos, quando a contradição é suposta como solúvel no tempo presente. També Também m vast vastas as e conhe conhecid cidas as poss possibi ibili lidad dades: es: tanto tantos s cons consum umos os e traba trabalho lhos s compulsivos, tantos paraísos químicos, tantas urgências corporais.
Retrospectivos, quando a saída é retorno ã situação anterior sobre a qual havia controle. Ah! os bons velhos tempos, a busca do tempo perdido, dentro do próprio trabalho ou anterior à entrada no mercado mercado de trabalho. trabalho.
Prospectivos, Prospectivos, quando o estado presente é suportado, suportado, taticamente, pela solução no futuro. Depoi Depois s desse desse empre emprego, go, lice licenci nciado ado,, aposen aposentad tado, o, ou enri enrique queci cido do pela pela lote loteria ria,, conseguirá se realizar. Quiçá depois desta vida.
Não é po poss ssív ível el sup upor or a exi existên stênci ciaa de mo modo doss de reap reapro ropr priiação ação pu puro ros, s, paradigmáticos de cada um dos sete cortes propostos. A manifestação empírica os combinará
e
recombinará,
visitando
todas
as
associações
factíveis:
mágico-redutor-coetâneo, efetivo-deslocador-prospectivo etc. etc. etc. E quanto à doença mental, propriamente dita, o que estaria acontecendo nesta situação concreta de trabalho? Aplicamos Aplicamos um inventário inventário psicológico, psicológico, descritivo e multi multifásico fásico (MMPI), em todos os digitadores digitadores de um centro de processamento de dados de uma grande empresa bancária, e o destaque da escala paranóia foi inequívoco. Estes trabalhadores apresentaram a esca escala la sign signifi ifica cativ tivame amente nte ma mais is comp comprom romet etida ida qua quando ndo comp compara arados dos com com os out outros ros trabalhadores da mesma empresa. Por quê?
Antes de ser um sintoma ou doença, a paranóia é uma lógica. Se há sofrimento, é por perseguição oriunda de fonte externa, sem por que e sem por quem. O indivíduo se previne. Mas a situação concreta, geradora dos elementos incorporáveis à lógica, não muda. As suspeitas aumentam. O ciclo se refaz ampliado. Reto Re tome memo moss o proc proces esso so de trab trabal alho ho do digi digita tado dor. r. Nã Nãoo é impr impres essi sion onan ante te a semelhança entre a lógica paranóide e o tipo de relação de controle que a informática esta estabe bele lece ce com com o digi digita tado dor? r? Ali Ali algo algo cont contro rola la,, ma mass não não se sabe sabe como como oper opera, a, é oniprese onip resente, nte, imp imperi erioso. oso. Ao trabalh trabalhador ador torna-s torna-see nece necessár ssário io escapar escapar dest destee con control trole, e, mesmo que seja cumprindo as exigências. Claro, melhor seria não cumpri-Ias, mas a sobrevivência sobrevivência depende deste jogo. Dispondo de uma epidemiologia nacional sobre paranóia, poderíamos desenhar o seguinte quadro: Certa proporção de sujeitos apresentaria paranóia especializada, universalizada, recorrente, como patologia. Outra proporção apresentaria paranóia elevada, evidente mas sem possibilidade de reconhe reconhecim cimento ento com comoo doen doença, ça, talvez talvez marca marca dest destacad acadaa na personal personalidad idade, e, talvez talvez reação conjuntural. Comportamento Comportamento paranóide. Reação paranóide. Ainda Ainda out outra ra propo proporç rção ão apres apresent entari ariaa ma marca rcass difus difusas as,, pou pouco co pe perc rcept eptív ívei eiss ao instrumento de investigação, presença acatada como previsível, normal, senão saudável, pelas hipóteses que nortearam a construção dos instrumentos. A prontidão paranóide concebida como necessária em sociedade excludente e competitiva. É quase certo que os primeiros se encontrassem fora da produção: licenciados, aposentados, desempregados. Os segundos, se por acaso ou competência de algum mecanismo de seleção (deliberado ou intuitivo) se encontrassem exercendo a função de digitador, poderiam estar est ar razoave razoavelmen lmente te adapt adaptados ados.. Alguns Alguns psi psiquia quiatras tras e psi psicólo cólogos gos con conclui cluiria riam m sob sobre re vocação, escolha, right man in the right place. O que aconteceria com os terceiros, portadores de paranóia em sintonia com a vida cotidiano, se chegassem à função de digitador? Esgotados os modos de reapropriação, aos segundos caberia a multiplicação do risco risco de se tornarem tornarem primeiro primeiros, s, aos tercei terceiros ros cab caberia eria a probabil probabilidad idadee cresce crescente nte de instalação da lógica paranóide.
Quando detectamos a contradição que ameaça a tensão sujeito-objeto, é preciso procurar quais os modos de reapropriação possíveis. Se passarmos uma vista d'olhos nos exemplos de modos de reapropriação citados acima, veremos que muitos deles aumentam a probabilidade de instalação da lógica paranóide! Todos os trabalhadores de digitação estariam por isso condenados à paranóia? A resposta é não. Estamos dizendo apenas que ser digitador aumenta os riscos de entrada no "loop" da lógica paranóide. Se os mecanismos de reapropriação falharem... Imaginemos: o digitador começa a detectar pequenos sinais na máquina que poderiam indicar a forma coma ela mede seus toques, um tipo de erro que o software não previra, ou pequenos sinais no rosto do supervisor que permitiriam antecipar-se a punições. E o resultado de todo este investimento fosse...aperfeiçoar o software... e/ou a performance da supervisor.
Ou se a escolha recair em um modo de reapropriação que, ao invés de evitar, amplia o circuito da perda de controle. Filia-se a uma seita religiosa que prega serem todas as mulheres enviadas do demônio, à espreita de qualquer deslize dos homens para enviá-los ao sofrimento eterno.
Claro, o processo é muito mais complexo, porém esperamos que os seus elementos básicos se deixem ver com o exercício que ora damos por terminado. É hora de submeter as idéias ao crivo da prática. Parar por aqui, esperar pelas críticas. Registre-se pelo menos mais uma tentativa de aproximar a psicologia, ciência dos homens, da vida dos homens mesmos.
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