´ , Historia Filosofia e Sociologia da ~ Educacao ç Faculdade Educacional da Lapa (Organização)
2ª Edição Curitiba 2016
Ficha Catalográfica elaborada pela Fael. Biliotecária Biliote cária – Cassiana Souza CRB9/1501
H673
História, filosofia e sociologia da educação/ Organização da Faculdade Educacional da Lapa. – 2. ed. – Curitiba: Fael, 2016. . 302 p.: il. ISBN: 978-85-60531-50-9 978-85-60531-50-9 1.História da educação 2. Filosoa da educação 3. Sociologia da educação CDD 370
Direitos dea edição edi ção reservados à Fael. É proibida a reprodução total ou parcial dea obra sem autorização expressa da Fael.
FAEL Direção de Produção Coordenação Editorial Projeto Gráfco Capa Imagem Capa Arte-Final
Fernando Santos de Moraes Sarmento Raquel Andrade Lorenz Sandro Niemicz Evelyn Caroline dos Santos Betim Shuerstock.com/nathapol HPS Evelyn Caroline dos Santos Betim
Apresentação
C�������� (�) ��������� (�) S��� ��� ����� à disciplina de História, Filosofia e Sociologia da Educação! Neste livro, foram organizados textos de profissionais com experiência na área de educação, notadamente ligados ao ensino da história, da filosofia e sociologia da educação, edu cação, com o objetivo de fornecer uma base teórica que possibilite ao estudante o entendimento do processo educacional construído historicamente. Mas, o objetivo citado acima não é único, pois diante da compreensão dos temas, procura-se também proporcionar ao estudante uma reflexão crítica que possa alicerçar o presente e que possa contribuir para a uma visão de futuro, onde por certo novas transformações irão ocorrer na educação brasileira, sendo o professor, professor, senão o principal, um dos principais atores deste processo de mudanças.
História, Filosoa e Sociologia da Educação
No que se refere a história da educação, será apresentado um recorte temático da história da educação no Brasil, passando pelo Brasil- Colônia ate os anos de 1930 do século XX e depois de 1930 até o Regime Militar, para em seguida estudar o período de redemocratização do Brasil. A Educação Contemporânea no Brasil também será abordada, bem como os pensamentos e movimentos histórico-sociais pela educação. Será destacado o histórico de lutas do movimento quilombola e do movimento negro que historicamente estiveram à margem da sociedade, muito embora estejam entre os principais protagonistas da nossa história. Da mesma forma é o reconhecimento da educação indígena e as políticas públicas para a área. No capítulo que trata da cidadania, direitos humanos e o direito à educação, será dado destaque para o estudo de sua origem histórica e a legislação atual e os princípios que a caracterizam enquanto tal e dos aspectos da realidade que a tornam mais ou menos efetiva. Na parte da filosofia da educação serão abordados o homem e sua relação com o mundo, uma vez que o homem, além de pertencer à natureza é um ser cultural, pois pois pode agir no mundo e realizar realizar transformações. Nesse enfoque será trabalhada a importância da filosofia da educação e em capítulo à parte, como a filosofia pode dar suporte para a reflexão crítica do educador. Finalizando o livro, serão trabalhos assuntos ligados a Sociologia e Antropologia para a Educação. Assim, esperamos esper amos que os conteúdos possam ser de extrema valia para o aprendizado acadêmico e para a vida dos futuros profissionais da educação. Bons estudos! Geovani da Rocha Gonçalves 1
Organizador 1. Bacharel em Direito (2000) pela Universidade Estadual de Ponta Ponta Grossa – UEPG e Licenciatura em Filosofia (2011) pelo Centro Universitário Claretiano - CEUCLAR, especialista em Direito Civil e Empresarial (2003) (20 03) pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUC/PR) e em Gestão Pública Municipal (2011) pela Universidade Estadual de Ponta Grossa - UEPG. Especialista em Educação, Diversidade e Cidadania (2014) pela FAEL/PR. Atua como Procurador e professor de Filosofia e Ética, na Faculdade Educacional da Lapa (FAEL/PR).
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Sumário 1
História da educação:conceito | 7
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Educação no Brasil: Brasil: da Colônia aos anos de 1930 do século XX | 19
3
Educação no Brasil: Brasil: de 1930 ao Regime Militar | 49
4
Educação no Brasil: Brasil: o período de redemocratização redemocratização | 73
5
Educação Educaçã o contemporânea no Brasil | 91
6
Pensamentos e movimentos históricosociais pela educação | 111
7
Educação Quilombola e Afrodescendente: políticas e projetos pro jetos | 131
8
Educação Indígena: políticas púlicas, diretos direto s e práticas pedagógicas pedagó gicas | 153
9
Cidadania, direitos humanos humanos e o direito à educação | 173
10
O homem e sua relação com o mundo: Filosoa e Educação | 191
11
A losoa como suporte para a reexão crítica do educador | 243
12
Sociologia e Antropologia Antropologia para a Educação | 253 Referências | 289
1 História da educação: conceito Alicia Mariani Mariani Lucio Landes Landes da Silva
P�� ��� � estudo da História da educação é algo importante na formação de profissionais da educação? Você Você já parou para pensar nisso? Saiba que a situação atual do sistema de ensino, no Brasil, é resultado de uma construção histórica, política e social. N���� ��������, ��������������� ��������������� o que é história da educação, suas origens e relações com as áreas das ciências sociais. VeriVerificaremos, ainda, as últimas mudanças no estudo e no olhar que os historiadores lançam sobre o passado, para entender as civilizações: a chamada Nova História. Consequentemente, veremos qual a relação da Nova História com a história da educação.
História, Filosofa e Sociologia da Educação
Por fim, vamos conhecer os objetos de estudo que este es te campo da história e da educação tem enfatizado (suas fontes, objetos e temas trabalhados, atualmente, nas universidades).
1.1 História da educação: suas origens e relações A origem da história da educação tem seus estudos atrelados ao campo da pedagogia. Inicialmente, o interesse sobre os assuntos escolares só se fazia presente nos cursos de formação de professores. Como disciplina, ela surgiu no final do século XIX, em universidades da Europa. Era um assunto mais presente na pedagogia, porque, nesse período, a história voltava suas pesquisas para assuntos econômicos e políticos. A história tradicional não se preocupava com assuntos sociais ou culturais. Dessa forma, a escola ficava fora de seu foco de interesse. Sendo estudada pela pedagogia, a história da educação servia mais como uma coletânea de informações do que uma análise. Listavam os fatos, as leis, os pensadores, mas quase sempre não se historiava 1 o conteúdo. ambém era chamada de história da pedagogia. Segundo Lopes (2009), a história da educação começou a ser problematizada no campo da sociologia, observe: o caráter histórico da educação é dado de forma sistematizada por Émile Durkhein (1858-1917) em sua Educação e sociologia , o que não significa, absolutamente, que antes disso não se encontrem trabalhos de Educação de caráter histórico. No entanto, Durkhein já anuncia o quadro teórico no qual por muitos anos se inscreverá a História da Educação [...] A educação é, na concepção positivista durkheinamiana, uma coisa social, que cumpre, assim, esse enunciado em obediência à regra mais fundamental de seu método sociológico, qual seja, a de considerar os fatos sociais como coisas (LOPES, 2009, p. 19).
Se a educação tinha um caráter social, por que torná-la descritiva e factual? Se ela possuía agentes ativos, poderia ser contada apenas por meio de Entende-se aqui o verbo historiar como o ato de analisar a história e compreender compreender suas relações com outras áreas. 1
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História História da educação: conceito
dados e datas? Começa a surgir a necessidade necessi dade de estabelecer as relações sociais e culturais presentes no âmbito escolar. Ou seja, outras áreas do conhecimento começaram a estudar temas relacionados à educação.
1.2 Nova História e história da educação Há aproximadamente trinta anos, ocorreu, gradativamente, uma mudança no foco de pesquisa da história e, consequentemente, da história da educação. Anteriormente, a história era pensada apenas pelo viés econômico e quantitativo. Não havia outras fontes para o seu estudo, es tudo, a não ser as oficiais (lembramos que as fontes históricas são os relatos do passado). Documentos escritos, imagens, monumentos, objetos arqueológicos e entrevistas podem ser considerados pistas do que já aconteceu. Os historiadores analisam essas fontes para construir sua narrativa. No entanto, para a história tradicional, apenas as fontes oficiais poderiam ser consideradas confiáveis. Estas últimas referem-se a documentos produzidos por órgãos oficiais, como o governo, ministério, prefeituras, entre outros (exemplos deste tipo de fonte: leis, atas, publicações do governo em geral). odos que estudaram no antigo “ensino primário e secundário se cundário”, ”, ou “1º “1 º e 2º grau”, devem recordar como a história era estudada. Quem estudou neste período ou já ouviu falar sobre isso lembra-se de como eram realizados os grandes eventos cívicos e de como eram exaltados os grandes vultos da história brasileira. Exaltava-se certos nomes (quase em sua totalidade pessoas envolvidas na política) e menosprezava-se a participação de outros sujeitos da história. De acordo com Chartier (1998), antes de 1980, a história dominante estava fundamentada por dois pontos de vista: o estruturalista e o estatístico. O primeiro discorria acerca dos grandes discursos, da história das estruturas e das normas coletivas, bem como utilização de sistemas de posições, sem ater-se às particularidades individuais, marginalizadas por gênero e classe. O último procurava dar à história um tom de ciência social, ao aplicar procedimentos de contagens e estimativas numéricas: a seriação. ser iação. A chamada Nova Nova História enfrentou o desafio de provocar um afastamento das ciências sociais. Reviu seus conceitos e mudou as antigas – 9 –
História, Filosofa e Sociologia da Educação
visões para outras, como a preocupação com as redes de sociabilidade, as situações vividas e as estratégias singulares. Neste sentido, a micro-história entra como a abordagem do normal, do excepcional e das particularidades, pois, sendo ela um estudo das sociedades, estes novos objetos devem ser examinados em pequena escala. A micro-história é o estudo de objetos selecionados na história. Por exemplo: um pesquisador não consegue estudar a história de todas as escolas de um estado. Ele escolhe uma determinada escola, para estudar o seu caso específico e, dentro desta análise, faz as possíveis relações com o sistema educacional desse estado. Os grandes heróis dão espaço aos anônimos, o que não desestrutura a história, pois sabe-se que a coletividade não desfigura o indivíduo. ais indivíduos e sociedades estão inseridos em um espaço de sociabilidades marcado por diferenças e dependências. Contudo, para entender essas relações, a história precisa enfrentar outro desafio, o de abrir o leque para novos espaços de pesquisa, fontes, análises e conceitos. Não é possível conhecer as relações sociais e culturais analisando apenas tabelas, gráficos ou outras fontes numéricas. Outros documentos do passado começam a merecer a atenção do historiador. historiador. Cabe ao historiador explorar estes signos e o universo de símbolos presentes na “linguagem das linguagens”, decifrando os seus significados, que são encontrados nas fontes, sejam elas quais forem, pois, na perspectiva cultural, qualquer produção humana foi produzida em um ambiente cultural (BURMESER, 2003) e pode ser utilizada para conhecer e compreender as relações sociais. Este tipo de análise trouxe para a historiografia uma mudança, mais do que metodológica, conceitual. Conceitual no sentido de que são s ão estudadas as relações da micro-história em detrimento da macro. Ou seja, as coletividades são deixadas de lado para dar espaço às questões do indivíduo, gerando um campo de possibilidades maior com o estudo da singularidade, das regularidades e das resistências existentes em um espaço que, sabe-se, não é determinado nem determinante. Desta forma, os papéis sociais não são definidos a priori e e as divergências são permitidas em territórios fluídos e não fixos, proporcionando ao investigador uma análise mais interdisciplinar. – 10 –
História História da educação: conceito
Como exemplo desta mudança de visão da história podemos citar que, na historiografia tradicional, as relações de escravidão eram vistas como fixas. O senhor de engenho era o soberano que mandava no submisso escravo. e scravo. Atualmente, temos estudos que revelam as contradições desta relação. Sabemos das fugas de escravos, de suas insubmissões, das relações conjugais entre brancos e negros e de acordos, concessões existentes entre senhor e escravos, de escravos que tinham seu próprio ganho e também possuíam seus escravos. Ou seja, os papéis sociais não são predefinidos. Dentro da regra existem exceções que devem ser conhecidas e estudadas.
Dentre os historiadores contemporâneos conceituados encontramos Carlo Ginzburg, Emmanuel Le Roy Ladurie, Robert Darnton, Jacques Revel e outros. Mesmo mantendo estilos diferentes (como a divergência sobre a utilização da escala de análises), eles realizam estudos sobre o cultural e possuem pontos em comum. Um desses pontos é o abandono das análises firmadas nos modelos explicativos. Para alguns não se pode abandonar certos princípios básicos, para outros, o “tempo das incertezas” é um momento propício de estimulação da criatividade e das possibilidades (palavras-chave desta corrente) de análises, fontes, vieses e escrita. Para muitos destes estudiosos, tempos novos merecem uma Nova Nova História, firmada na máxima de d e que “a história é sempre filha de seu tempo”. tempo”. Uma última característica da historiografia contemporânea é a tendência de redescobrir autores já esquecidos e reler os clássicos, mas é claro que essa leitura se dá a partir de um olhar atual, de nosso tempo. As mudanças na historiografia influenciaram algumas das transformações ocorridas na história da educação. Como já mencionado, na década de 1930, ela não passava de uma disciplina escolar. Presente no curso de formação de professores, estava fortemente marcada pela filosofia e possuía um caráter – 11 –
História, Filosofa e Sociologia da Educação
formativo e moralizador. Já na década de 50 do século XX começaram a surgir os estudos na área da história da educação, porém eram voltados para um “presentismo pragmatista”. Neste viés: o atrelamento originário da disciplina a objetivos institucionais de formação de professores e pedagogos dificultou, até muito recentemente, a sua constituição como área de investigação historiográfica capaz de se autodelimitar e de definir, com base em sua própria prática, questões, temas e objetos. Isso tornou a disciplina frágil diante das demandas postas a partir de outros campos de investigação sobre educação que hegemonizaram a produção da pesquisa, a partir da instalação dos Programas de Pós-Graduação, na década de 70; o que, do meu ponto de vista, reforçou a dificuldade de a disciplina definir-se a partir de questões postas do seu interior (CARVALHO, 2003, p. 330).
Como já afirmamos, nos últimos trinta anos a historiografia da educação brasileira tem realizado debates sobre estudos voltados para a cultura, mais especificamente a cultura escolar. Sob a influência de autores estrangeiros (como André Chervel, Alain Chopin, Anne-Marie Chartier, Pierre Caspard, Jean Hérbrand, Hérbrand, Dominique Dominique Julia, Julia, António Novoa, Novoa, Pierre Pierre Bourdieu, Bourdieu, Roger Chartier, entre outros) os pesquisadores brasileiros começaram a se dedicar aos estudos voltados para aspectos culturais. Dentre esses autores podemos destacar: José Mário Pires Azanha, Azanh a, Denice Catani, Catan i, Cynthia P. P. de Souza, Marta Maria Chagas de Carvalho, Car valho, Luciano Faria Filho, Rosa Fátima Fátima de Souza, Maria Lúcia Hilsdorf, Clarice Nunes e Diana Gonçalves Vidal. Saiba mais
O presentismo pragmatista afirma que um estudo deve servir apenas para resolver, praticamente, um problema atual. Nesta visão, a história da educação servia apenas para responder a questões imediatas e acabava deixando de lado a análise historiográfica e as relações mais profundas de investigação do passado. Procurava apenas respostas práticas sobre o que estava acontecendo. – 12 –
História História da educação: conceito
Marta Maria Chagas de Carvalho e Clarice Nunes são, de acordo com Vidal (2005), autoras que trilharam um caminho de interlocução muito próximo entre história da educação e a produção francesa do campo histórico. Assim, entrelaçaram a história cultural com os interesses dos saberes pedagógicos. Sobre a relação entre história da educação e história e, ainda, história da educação e história cultural, Carvalho Car valho afirma: é, entretanto, do inusitado prestígio adquirido pela produção historiográfica nos dias atuais que a disciplina extrai forças para se renovar. As redefinições dos objetos e dos critérios de rigor científico que transformam essa produção vêm tendo enorme impacto na História da Educação, matizando a pertinência dela ao campo das chamadas ciências da educação e fortalecendo seu estatuto de saber historiográfico especializado. [...] Nesse processo, são, sobretudo, as perspectivas abertas e as questões lançadas pela chamada Nova História Cultural que vêm redesenhando as fronteiras e redefinindo objetos da História da Educação (CARVALHO, 2005, p. 32).
Podemos observar que as mudanças ocorridas na historiografia a partir dos anos 80 do século XX provocaram reflexos na maneira de escrever a história educacional. A história cultural ampliou o leque de possibilidades de novos temas, objetos e o uso de fontes que antes eram desprezadas e afastou-se da história tradicional, que privilegiava a exaltação de grandes heróis e dos documentos oficiais. Com essa reviravolta, a história da educação, que era secundarizada apenas como uma disciplina escolar, começou a ganhar mais visibilidade a partir do momento em que voltou suas preocupações para as questões culturais e sociais. Desta maneira, fontes, como livros de chamadas, fotografias, objetos pedagógicos, entre outros, passaram a fazer parte dos estudos historiográficos, enriquecendo os trabalhos acadêmicos e tornando-os mais interessantes, pois já não eram apenas pragmáticos e presentistas. Outro fator que mudou a forma de se escrever a história da educação foi a incorporação de conceitos advindos da história, sociologia, antropologia e outras áreas das ciências sociais e humanas. Autores como Roger Chartier, Dominique Julia, Guy Vincent, Viñao Frago e Michel De Certeau estão sendo utilizados como referencial teórico em diversos – 13 –
História, Filosofa e Sociologia da Educação
trabalhos acadêmicos. ais autores não concordam totalmente na definição do termo cultura ou cultura escolar es colar.. Entretanto, chegam a um acordo para afirmar que o pesquisador, pesquisador, ao analisar uma instituição, indivíduo ou grupo, não pode desprezar a análise do contexto histórico. Isso deve ser realizado conjuntamente com as questões que envolvem o cultural e o social. Poderíamos, ainda, citar as contribuições de Norberto Elias, Pierre Bourdieu, Michel Foucault, André Chervel, Edward Tompson, Anne-Marie Chartier. Apesar Apes ar de, atualme atua lmente nte,, estar est ar presen pre sente te como uma discip dis ciplin linaa dos curcur sos de licenciatura, a história da educação ainda não recebe a devida atenção. Nos cursos de pós-graduação de Educação existem linhas de pesquisa em história e historiografia. Nos cursos de História, a educação pode aparecer, também, como uma linha de pesquisa ou temática. Para Lopes (2009), a pedagogia precisa tomar para si a responsabilidade do estudo da história da educação. Citando e concordando com alguns autores, ela acredita que os melhores trabalhos de história da economia foram escritos por economistas (e não por historiadores). Desta forma, a história da educação deve ser escrita por pessoas da área, que já dominam o conteúdo. Por isso, afirma: [...] trata-se de enfrentar, então, a questão da formação do pesquisador da História da Educação, tarefa ainda não assumida de forma mais generalizada pelos cursos de educação e de pedagogia. Na verdade, o educador ou pedagogo, não recebendo formação específica nem a metodologia da pesquisa histórica nem das teorias da História, dificilmente pode tornar-se um historiador. [...] A ciência da história exige rigor e método; para o crescente entendimento da História da Educação, que deve ser escrita através de pesquisas rigorosas que obedeçam aos critérios e as exigências da própria ciência da história (LOPES, ( LOPES, 2009, p. 39).
Será que somente os pedagogos deveriam escrever esse tipo de história ou, ainda, que os historiadores não conheçam nada de educação? Como escrever um texto com relações históricas sem saber os métodos da pesquisa histórica? Como historiar a educação, sem conhecer as relações educacionais? Existe um longo caminho a ser percorrido nessa área. – 14 –
História História da educação: conceito
Certo é que podemos perceber que, por meio de mudanças metodológicas e conceituais, a história da educação vem ampliando o seu campo de pesquisa, atuação e participação em eventos e publicações, conferindo a si mais credibilidade entre os estudiosos da educação e entre os historiadores. São muitas as dificuldades que permaneceram das linhas tradicionais de pesquisa, porém a história da educação está caminhando por rumos mais claros e evidentes ao privilegiar a cultura escolar, sem abandonar as visões sobre os demais aspectos nos quais a educação está envolvida (político, social, econômico, histórico, e outros).
1.3 História da educação: objeto de estudo Quais são os novos temas abordados pela cultura escolar? udo que possui uma história e pode ser contextualizado para se compreender a realidade educacional pode ser estudado. Conheça alguns aspectos estudados pela atual história da educação. 2
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Arquitetura escolar e história das instituições escolares (estudo (es tudo de plantas escolares; como eram construídos os colégios e escolas; as mudanças e permanências no espaço escolar ao longo dos anos; locais e modos de construção; entre outros). empos escolares (exemplos de estudo: organização e objetivo do calendário escolar; divisão dos horários de aula; o recreio; atividades que aconteciam nas férias). Relações de gênero na escola (divisão da escola entre meninos e meninas, as análises sobre escolas de meninos e escolas de meninas; as diferenças entre os uniformes masculinos e femininos; e outros). Intelectuais da educação (um exemplo deste estudo é a análise das ideias de pensadores envolvidos diretamente ou não com a escola). Escola e poder (as relações de poder existentes dentro da escola; a ligação da escola com instâncias maiores, como o Estado, entre outras situações). Legislação educacional (estudo das leis, decretos e documentos oficiais sobre a educação). – 15 –
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Projetos educacionais não escolares (projetos educativos desenvolvidos pela mídia, por empresas ou pelo governo, entre outros).
A escola e a religião (escolas religiosas, escolas dirigidas por religiosos, a influência da religião na educação, etc.).
Visto as mudanças pelas quais passaram a história da educação e alguns de seus objetos de estudo, surge uma indagação: por que estudar as relações escolares através do tempo? Observe estas perguntas: Por que temos um determinado grupo de disciplinas escolares para estudar? Por que estudamos em um horário dividido por aulas, intervalos e períodos manhã, tarde, noite ou integral? Qual a justificativa dos currículos escolares? Ou melhor: para que serve a história da educação? entando dar pistas sobre uma possível resposta, Lopes (2009, p. 43-44) afirma que: Antoine Léon 2 considera a abordagem histórica dos fatos da educação um indi spensável instrumento de análise das situações do presente, devido à preocupação em relativizar os problemas atuais. Considera-a ainda como uma fase preliminar da ação, ao evidenciar a ambiguidade de todas as inovações, ao apontar os conflitos que pontuam todo o processo evolutivo e ao introduzir a exigência de longo prazo na avaliação dos efeitos educacionais.
Nesta visão, estudamos a história da educação para compreender as relações do presente. Para Lopes (2009), o pesquisador está comprometido com os problemas educacionais de hoje. Por Por isso, o seu olhar volta-se para o passado, para descobrir onde esse problema surgiu e para tentar resolvê-lo. No entanto, a história da educação não pode ser considerada pragmática. Ela não serve para resolver problemas, apesar de poder encontrá-los. A história histór ia da educação nos faz compreender compreen der o presente. present e. Faz com que entendamos por que as nossas escolas e instituições são o que são. Por exemplo: o estudo das leis educacionais nos faz compreender a organização da escola através do tempo. Ela é um instrumento de conhecimento e, quando possível, de ação. Lopes faz referência referência à obra obra de Antonie Léon, Introdução à História da Educação (Lisboa: Dom Quixote Quixote,, 1983).
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História História da educação: conceito
Da teoria para a prática Durante a leitura deste capítulo, compreendemos que a “história é filha de seu tempo”, o que significa dizer que a maneira como olhamos o passado está relacionada com os fatos que vivemos hoje. Em uma época em que a economia e a política predominavam, os estudos históricos estavam voltados para isso. Em outra época, na qual a preocupação era com as relações socioculturais, o olhar era diferenciado. Compreendemos que o estudo da história da educação também segue esse princípio. Dentro desta perspectiva, produza um texto sobre a sua própria história escolar. Utilize-se de sua fonte de memória sobre a sua trajetória educacional e liste as lembranças que possui de sua escola, dos métodos utilizados, dos professores, dos uniformes, das mobilhas da sala de aula, dos materiais escolares e dos conteúdos estudados. Saiba que estará produzindo um texto de história da educação. Apesar de suas lembranças serem singulares, ao final da produção, perceberá que tudo o que escreveu está relacionado a um contexto histórico dentro de uma estrutura governamental e legal de seu período. Além disso, o estudo das arquiteturas escolares também faz parte da pesquis pe squisaa em Hist História ória da Educaçã Edu cação. o. Levando Le vando essa essass informações em consideração pesquise fotografias, plantas ou outros registros iconográficos de duas escolas distintas: uma que tenha sido construída há mais de trinta anos e outra edificada há menos de dez anos. Estabeleça as semelhanças e diferenças arquitetônicas e como isso pode estar ligado ao o contexto histórico em que as escolas foram construídas. Pontos a serem pensados: data, local, material utilizado para a construção, tipo da instituição (pública ou privada), etc.
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História, Filosofa e Sociologia da Educação
Síntese Vimos, neste capítulo, que as origens da história da educação estão na pedagogia, mas, ao longo dos anos, também tornaram-se objeto de interesse de outras ciências sociais, como a história. Entendemos que o estudo da história passou por um processo de transformações nos últimos trinta anos, que mudaram seu foco de pesquisa. Atualmente, a Nova História privilegia as relações sociais e culturais, e não somente os aspectos políticos e econômicos como acontecia anteriormente. Outro assunto apresentado neste capítulo foi objeto de estudo da História da Educação, o qual, conforme observamos, envolve tudo o que se refere ao passado do ensino e da educação: legislação, tempos escolares, arquitetura, relações de gênero e outros temas. Devemos compreender a importância da História da Educação, para compreender, compreender, também, as atuais relações educacionais.
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2 Educação no Brasil: da Colônia aos anos de 1930 do século XX Alicia Mariani Mariani Lucio Landes Landes da Silva
A���� �� ������� dos portugueses, nosso país era habitado por diversos povos nativos. Os indígenas possuíam suas maneiras de transmitir seus conhecimentos, rituais e cultura para as futuras gerações. Podemos dizer que eles tinham um sistema informal de ensino, pois a educação acontecia na explicação ou no exemplo de algo transmitido de pais para filhos, ou dos mais velhos velhos para os mais novos.
História, Filosofa e Sociologia da Educação
N���� ��������, �������, vamos nos dedicar a conhecer e compreender um panorama da História da Educação do Brasil a partir do início da colonização. Nosso foco é a educação formal e a maneira como ela foi oferecida pela religião e pelo Estado. Inicialmente, vamos entender como as Grandes Navegações Navegações e a Reforma Protestante influenciaram na chegada dos portugueses ao nosso país e qual a sua relação com a educação religiosa existente no início da colonização. Depois de observar o que foi o ensino jesuítico, conheceremos as mudanças ocorridas com as reformas lideradas pelo Marquês de Pombal. Veremos a influência da chegada da família real ao Brasil, a educação durante o Império e a Primeira República.
2.1 Grandes Navegações e a Reforma Ref orma Protestante Para entender os primórdios da educação no Brasil, é necessário conhecer o cenário que antecedeu a chegada dos portugueses em nosso país. Na civilização do ocidente medieval europeu a Igreja católica procurava controlar o acesso à informação religiosa, moral e científica. A alfabetização estava destinada quase exclusivamente a uma parcela dos religiosos e todos os cientistas deveriam estar submissos aos preceitos da Igreja. Qualquer conduta contrária seria considerada heresia e poderia ser julgada e punida pelo ribunal ribunal da Inquisição. A partir par tir do século séc ulo XI, a Revolução Revol ução Comerci Come rcial, al, as Cruzad Cru zadas as e os avanços do Humanismo deram abertura às transformações ocorridas na Europa. As Grandes Navegações foram uma dessas mudanças e, neste caso, Portugal estava em uma posição geográfica favorável. Dom João I de Avis procurava poder ao promover grandes conquistas que desbravavam o Oceano Atlântico. Parte dessa expansão aconteceu nas costas africanas, contornando o continente e chegando à Índia em 1498. Era a chamada rota de comércio das especiarias. Segundo Francisco Filho (2004), a chegada dos portugueses ao Brasil foi apenas um coroamento das conquistas, visto que outros domínios já haviam sido realizados ao longo dos últimos cem anos. Continuando, o autor afirma que: – 20 –
analisando de maneira ampla os acontecimentos, acontecimentos, notamos que a Idade Moderna (1453-1789) (1453-1789) já estava caminhando a passos firmes e o Mercantilismo Mercantilismo (1ª fase do capitalismo) fornecia as bases de pensamento econômico, amparado por um Estado poderoso, que possuía exército, polícia, justiça, cunhava moeda, tinha contornos territoriais definidos, com balança comercial favorável, estoque de metais, apoiando as exportações, promovendo promovendo a exaltação do nacionalismo, adotando colônias para fornecer matérias-primas e obedecer o estatuto dos monopólios estabelecido pela Coroa. No tocante à educação, a hegemonia das Sete Artes Liberais, Trivium (Gramática, Dialética e Retórica) e Quadrivium (Aritmética, Geometria, Música Música e Astronomia) estruturadas durante a Idade Média da Europa Ocidental (Século V ao XV), já não atendia as necessidades do novo momento histórico. As ideias de Santo omás de Aquino (1224-1274), procurando superar a dicotomia fé-razão, não encontravam tantos seguidores, isto é, a Escolástica estava em decadência, depois de muitos séculos de soberania no campo educacional (FRANCISCO FILHO, 2004, p. 10-11).
A economi eco nomiaa e o comérci comé rcioo estava est avam m mudand mud andoo e, com isso, iss o, o pensamento educacional. Uma nova configuração de sociedade estava surgindo. Outro fator que contribuiu para tal transformação foi a revolução tecnológica da imprensa a partir de Gutenberg 3. Ao produzir literatura em maior escala, aumentou-se o acesso ao conhecimento. O que estava restrito ao campo religioso passou a ser manuseado pelos leigos. A burguesia, classe em ascensão, tinha o desejo de ser alfabetizada para conseguir ler os textos clássicos e religiosos. Neste contexto surgiram movimentos contrários à Igreja Católica, que seriam chamados de Reforma Protestante. O primeiro deles foi liderado pelo monge agostiniano Martinho Lutero, que, em 1517, declarou-se descontente com as práticas católicas (como a venda de indulgências) e escreveu 95 teses como forma de denunciar a corrupção que observava. 3 Em 1455 o alemão Johannes Johannes Gutenberg criou a tipografia. A partir de então os textos que antes eram somente manuscritos passaram a ser impressos por meio de peças metálicas que recebiam tintas para serem transferidas por pressão para o papel. O primeiro livro impresso pelo inventor foi a Bíblia. Esse método ampliou a reprodução de materiais e tornou a transmissão do conhecimento mais dinâmica e veloz.
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História, Filosofa e Sociologia da Educação
A Reforma Protestante condenava a avareza, a usura e o paganismo. ambém criticava a Igreja quanto a não deixar os seus fiéis fazerem a leitura e tirarem a sua própria interpretação dos textos sagrados. Lutero começou a traduzir a Bíblia para o alemão e incentivou a sua leitura. A Reforma não mudou apenas a forma como enxergar a religião, ela conseguiu mexer com as ditas estruturas educacionais, já que a leitura e a escrita não eram mais privilégio dos religiosos. Com a Reforma Protestante e o Humanismo ganhando cada vez mais adeptos, a Igreja incentivou as Grandes Navegações no objetivo de conquistar territórios para a evangelização de novos fiéis. A Igreja estava perdendo território missionário e precisava expandir seus horizontes. A colonização do Brasil foi um meio para que os clérigos católicos conseguissem aumentar o número de membros da Igreja. Assim, começa a história da educação em território colonial, como veremos a seguir. seguir.
2.2 Educação jesuítica Enquanto a Europa passava por movimentos de Contrarreforma, um grupo de estudantes da Universidade de Paris (liderados por Inácio de Loyola) uniu-se, em 1534, para montar uma congregação interessada em combater o avanço da Reforma Protestante. Este grupo ficou reconhecido através de bula papal, no ano de 1540. Na intenção de ser um instrumento contra as ideias protestantes, a então chamada Companhia de Jesus procurou manter a estratégia de, por meio de seus ensinamentos cristãos, converter pessoas ao catolicismo. Logo, a Companhia de Jesus tornou-se uma congregação religiosa poderosa e eficiente. Possuía um caráter de milícia. Eram os soldados de Cristo em favor da fé católica. Embora submetidos à autoridade do papa, os jesuítas viviam em uma ordem religiosa, mas podiam transitar em espaços seculares. Inicialmente, as suas atividades estavam voltadas somente para a caridade. Ensinavam os “ignorantes”, aqueles que não tinham conhecimento da fé e da linguagem e que de outra maneira não teriam acesso a elas. inham inham – 22 –
uma visão de combate perante o meio social, estavam dispostos a militar em favor de sua fé. Segundo Neto (2008), seus principais fundamentos eram: [...] a busca pela perfeição humana por intermédio da palavra de Deus e a vontade dos homens; a obediência absoluta e sem limites aos superiores; a disciplina severa e rígida; a hierarquia baseada na estrutura militar; e a valorização da aptidão pessoal de seus membros (SHIGUNOV NEO; MACIEL, 2008, [s. p.]).
Inicialmente, o interesse na evangelização era espiritual. Desejava-se a pregação, confissão e catequização. No entanto, gradativamente, a intenção de ensinar foi ocupando espaços maiores no projeto jesuíta. Depois de se fazer presente em países como Portugal, Espanha e Alemanha, a Companhia de Jesus desembarcou no Brasil, no ano de 1549. Chegou à Bahia trazida pelo governador-geral omé omé de Souza. O primeiro líder jesuíta no Brasil foi o sacerdote Manuel da Nóbrega. Os jesuítas desembarcaram no Brasil com o objetivo de catequizar os povos nativos e educá-los para que se tornassem pessoas civilizadas (na visão do europeu). Os indígenas precisavam sair do seu aparente ócio para uma postura produtiva. De início, o indígena foi visto como o“bom gentio”, mas a sua falta de insubordinação foi logo encaradacomo um empecilho. Sair do sistema de sobrevivência para o de acumulação não era algo fácil de ser ensinado pelos jesuítas. Em concordância com Shigunov Neto e Maciel (2008, [s. p.]), que partem do pressuposto de que “o fenômeno educacional não é um fenômeno independente e autônomo da realidade social de determinado momento histórico [...]”, acredita-se que o projeto de educação jesuítica no Brasil não se resumiu apenas a catequizar e ensinar a ler e a escrever em português. Os jesuítas contribuíram com os planos do rei de Portugal Portugal em transformar a estrutura da sociedade presente na colônia. A Ordem dos Jesuítas atendia aos interesses da Igreja e do Estado. Desta forma, o projeto educacional jesuítico contribuiu para o processo de colonização almejado pelo o governo português. – 23 –
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Dica de Leitura A missão Um mercador de escravos indígenas arrepende-se de seus atos e torna-se missionário jesuíta em uma das missões na América do Sul. A MISSÃO. Direção de Roland Joffé. Estados Unidos; Reino Unido: Flashstar, 1986. 1 filme (125 min), sonoro, legenda, color., 35 mm,
O ensino não pretendia mudar politicamente a sociedade, era alheio à realidade social e estritamente voltado para a filosofia. Atendia aos interesses portugueses e não incitava uma nova organização dentro desta sociedade fundada na agricultura rudimentar e no trabalho escravo (ROMANELLI, 2010, p. 34). Em agosto de 1549, foi fundada, na Bahia, a primeira escola de “ler e escrever” no Brasil. Primeiramente, Primeiramente, havia a necessidade de alfabetizar os indígenas na língua portuguesa, para, então, transmitir a doutrina católica. Após esta primeira fase, os jesuítas dariam oportunidade para decidir entre o ensino médio e o ensino profissionalizante. Manuel da Nóbrega mandava construir aldeias de catequização próximas das cidades e vilas portuguesas. Eram habitadas pelos indígenas e pelos padres jesuítas. Essas aldeias tinham três objetivos: objetivo doutrinário – que visava ensinar a religião e a prática cristã aos índios; objetivo econômico – visava instituir o hábito do trabalho como princípio fundamental na formação da sociedade brasileira; objetivo político – visava utilizar os índios convertidos contra os ataques dos índios selvagens e, também, dos inimigos externos (SHIGUNOV NEO; MACIEL, 2008, [s. p.]).
Apesa Apesarr de querer querer inserir inserir o indíge indígena na no proces processo so produt produtivo ivo do trabalho trabalho,, a Companhia de Jesus sempre defendeu a liberdade dos nativos. Porém, não fazia frente contrária à escravatura por causa da relação com a Coroa Portuguesa. Neste sentido, até certo ponto, o padre Manuel da Nóbrega ficou conhecido como grande defensor dos indígenas. Coube a ele a contribuição da fundação – 24 –
de diversas escolas no Brasil (cinco de instrução elementar: São Paulo de Piratininga, Porto Seguro, Seguro, Ilhéus, São Vicente e Espírito Santo; e três colégios: Bahia, Pernambuco e Rio de Janeiro). Figura 1 - A fundação de São Paulo, de Antonio Parreiras. O povoamento de São Paulo começou no dia 25 de março de 1554, juntamente com a construção de um colégio jesuíta.
Fonte: Fundação de São São Paulo, 1913. Antonio Parreiras. Parreiras. Pinacoteca Pinacoteca Municipal de São
Paulo. Óleo sobre tela. 179 x 279,5 cm.
Com o crescimento das escolas da Companhia de Jesus surgiu a necessidade de adotar um método para unificar o trabalho educacional dos padres jesuítas. Em 1599, ficou pronto um conjunto de regras que procurava normatizar as ações da Ordem. As fontes de ensinamento eram Aristóteles e Santo omás de Aquino, além da influência do Renascimento. O foco era a formação humanista e literária. O método utilizado pelos jesuítas era o Ratio Atque Institutio Studiorum Societatis Jesu, mais conhecido como Ratio Studiorum, composto por uma coletânea de 467 regras que procuravam estabelecer uma definição do trabalho pedagógico dos jesuítas. Em 1584, uma comissão ficou responsável por organizar e codificar as informações e experiências aconte– 25 –
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cidas no Colégio Romano e em outras escolas. Em 1586, o anteprojeto foi submetido a críticas e a uma nova comissão. Em 1591, tornou-se um texto redigido e, em 8 de janeiro de 1599, foi promulgado o texto do Ratio Studiorum. Ele estabelecia todo o método de ensino (incluindo currículo e orientações educacionais e administrativas) a ser seguido pelos padres jesuítas. As orientações deveriam ser aplicadas na Colônia e na metrópole e em todos os locais em que estavam estabelecidos. Figura 2 - Capa do método jesuítico Ratio Studiorum.
Sua estrutura oferecia três cursos em dois níveis distintos: di stintos: a. “os “os estudos inferiores”, que compreendiam o ensino secundário. al ensino durava entre cinco e seis anos. Estava destinado à formação clássica, humanista e literária; – 26 –
b. os estudos superiores que ofereciam o curso de teologia e o de filosofia, que duravam três anos. Shigunov Neto Neto e Maciel (2008) afirmam que, enquanto o ensino universitário estava destinado à formação profissional do homem, os cursos secundários formavam o homem para viver na sociedade. Para Ribeiro, o Ratio Studiorum foi adaptado no Brasil para atender às especificidades da Colônia. Começava pelo aprendizado da língua portuguesa (ler e escrever) e a catequização; já a continuação do ensino era opcional: podia-se aprender canto orfeônico, música instrumental, aprendizado profissional e agrícola e aulas de gramática. Havia Havia até mesmo a possibilidade possibilidade de realizar uma viagem de estudos à Europa (RIBEIRO, (RIBEIRO, 1998, p. 21-22). Francisco Filho faz um resumo de como acontecia o ensino em escolas jesuítas: “A “A metodologia de ensino começava com uma preleção. Nas classes elementares após a leitura era feito o resumo do texto, oprofessor tirava as dúvidas. Mais tarde chegava-se à retórica, à arteda ar teda composição, à sintaxe e ao estilo; o professor aceitava o diálogo.” diálogo.” (FRANCISCO FILHO, 2004, p. 32). 32 ). Além dos indígenas, outras pessoas poderiam frequentar as escolas jesuíticas. Mamelucos e órfãos poderiam ser alunos internos e alguns filhos fil hos de colonos, alunos externos. empos depois, já mais consolidada no Brasil, a Companhia deu instrução para alunos provenientes da burguesia urbana, como os filhos dos donos de engenho (esses filhos da burguesia poderiam prosseguir seus estudos superiores em universidades na Europa). Foi em 1550 e 1551 que chegaram ao Brasil os meninos do Colégio de Jesus Órfãos de de Lisboa. Com a autorização autorização de Lisboa e a ajuda do governador governador omé de Souza, que doou as terras para a construção, construção , eles viveram e estudaram em uma espécie de confraria chamada de Colégio dos Meninos de Jesus. Chambouleyron (1999) lembra que essa instituição institui ção vivia uma situação jurídica ambígua, pois, ao mesmo tempo em que era religiosa, também tinha um caráter civil, por se tratar de um local que cuidava de órfão (sujeito a uma legislação específica). Esses meninos eram ensinados a ser “pequenos catequistas e doutrinadores”, acompanhando os padres nas procissões e romarias, auxiliando no ato de levar a palavra de Deus aos nativos (CHAMBOULEYRON, 1999). No entanto, essa mistura mistura de caráter religioso religioso e civil não era bem-vista por moradores portugueses que viviam no Brasil. O fato da Ordem Jesu– 27 –
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íta ampliar o seu patrimônio físico e financeiro era questionado. Assim, na segunda metade de 1550, a Companhia de Jesus em todo o mundo decidiu deixar os encargos com meninos órfãos e o Colégio dos Meninos de Jesus passou a se chamar Colégio de Jesus, tendo o caráter de um colégio canônico. Os ideais propostos pela nova constituição da Companhia de Jesus (1556) firmavam a proibição de manter nos internatos estudantes leigos que não desejassem seguir a vocação religiosa. Como Manuel da Nóbrega não concordava com isso, ocorreram alguns desentendimentos. Além de tal problema, críticas externas surgiram. Os adversários políticos dos jesuítas os acusavam de tornarem o pensamento intelectual uniforme, dogmático e abstrato. Criticavam a ausência das ciências e das línguas modernas (como o francês) no plano de estudo e rejeitavam o excesso de literatura e retórica (AZEVEDO, 1976, p. 48). O pensamento iluminista que ganhava força na Europa ajudou a reforçar a necessidade de se acabar com o modelo de educação jesuíta. Segundo Shigunov Neto e Maciel (2008), as causas da expulsão dos jesuítas foram políticas/ideológicas e educacionais. Veja Veja as consideraões dos autores sobre as causas da expulsão em 1759: política – os jesuítas representavam um empecilho aos interesses do Estado Moderno, além de ser detentora de grande poder econômico, cobiçado pelo Estado; educacional – a necessidade da educação formar um novo homem – o comerciante e o homem burguês, e não mais o homem cristão –, pois os princípios liberais e o movimento iluminista trazem consigo novos ideais e uma nova filosofia de vida. [...] A Companhia de Jesus teve suas atividades suspensas na Colônia brasileira a partir de 1759, com o Decreto-lei de 3 de setembro de 1759 promulgado pelo Rei D. José I. Com a promulgação da lei, o Ministro de Estado, Marquês de Pombal, exilava de Portugal e da colônia brasileira a Companhia de Jesus, Jesus, confiscando confiscando para para a coroa portuguesa portuguesa todos os seus seus bens materiais e financeiros. Quando da assinatura do decreto pelo Marquês de Pombal, havia no Brasil 670 membros da Companhia de Jesus, incluindo noviços e estudantes, sendo repatriados para Portugal 417. Permaneceram Permaneceram no Brasil 253 membros, entre aqueles que ainda não haviam recebido ordens ou os noviços que foram induzidos a deixarem a ordem religiosa (SHIGUNOV NEO; MACIEL, 2008, [s. p.]).
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Os jesuítas podem ser considerados os prim pr imei eiro ross pr prof ofes esso sore ress em te terr rrit itór ório io br bras asil ilei eiro ro.. Contribuíram com o plano do governo português de transformar a estrutura da sociedade brasileira. Catequizaram indígenas e ofereceram educação para pa ra um umaa pe pequ quen enaa pa parc rcel elaa da po popu pula laçã ção. o.
A partir partir de 1564 1564 foram foram instal instaladas adas escolas escolas dentro dentro das vilas, vilas, como foi ocaso do Colégio da Bahia e do Colégio de São Paulo de Piratininga.Chambouleyron (1999, p. 78-79) ressalta que as escolas autorizadas pelo rei de Portugal (que tinham alvará para funcionamento e recebiam uma dotação para sustento, manutenção e despesas) eram muito diferentes das escolas que ficavam localizadas nas aldeias. Há relatos de que os alunos chegaram a visitar as cadeias para levar a palavra de Deus aos encarcerados. Além disso, nessas escolas era possível observar a presença de cerimoniais acadêmicos portugueses, ou seja, atividades como encenações, disputas, interesse em continuar os estudos, recepções de autoridades e procissões eram práticas presentes nas escolas da vila. Muito se fala e se estuda sobre a presença dos jesuítas na história da educação; no entanto, outras ordens religiosas católicas, como os franciscanos, tiveram importante participação no processo educacional ocorrido em território brasileiro. Parte deste silêncio sobre as demais ordens religiosas pode se dar ao fato de haver uma abundância de fontes historiográficas sobre os jesuítas e, em contraponto, uma aparente escassez de fontes sobre as demais ordens religiosas. No entanto, quebrando os paradigmas e rompendo o silêncio sobre o assunto, autores como Sangenis Sangenis (2004) apontam para a atuação atuação dos franciscanos e outros grupos religiosos. Sangenis ressalta o fato de que, ao acompanhar as caravelas do primeiro desembarque ao Brasil, podemos considerar que os franciscanos representaram a primeira ordem religiosa católica que atuou na evangelização e educação do povo nativo. Para Para o autor, não há dúvidas sobre a importância dos franciscanos para a educação brasileira, já que: foram os franciscanos os fundadores da primeira escola em território brasileiro, os iniciadores das missões junto aos indígenas, os sistematizadores de línguas nativas, os idealizadores
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de uma Igreja autenticamente ameríndia, os estudiosos de nossa história, da flora e da fauna, os propagadores de um cristianismo confraternizante, os promotores da educação e da cultura. A participação franciscana, na América e no Brasil, é tão expressiva que aludir ao terceiro franciscano Cristovão Colombo, descobridor deste Continente, ou a Frei Henrique Soares, que, em nossa terra, plantou a primeira cruz, parecenos mera referência retórica (SANGENIS, 2004, [s. p.]).
Segundo o autor, autor, os franciscanos tiveram uma atuação contínua e ininterrupta na história da educação brasileira, em diferentes di ferentes níveis educacionais, por isso é importante ressaltar a sua participação na construção educativa de nosso país. Dica de Leitura Para aprofundar o conhecimento sobre a atuação dos franciscanos na educação brasileira e suas relações com a ordem dos jesuítas, sugerimos a leitura a seguir. SANGENIS, L. F. C. Gênese do pensamento único em educação: franciscanismo e jesuitismo na história da educação brasileira. bras ileira. Petró polis, Rio de Janeiro: Vozes, 2006.
É interessante ressaltar a existência de outras ordens religiosas, além do fato de que elas estiveram presentes em toda a história da educação brasileira até os dias de hoje. Ao mesmo tempo, verificamos que, em determinado momento, a Companhia de Jesus (especialmente) já não atendia aos anseios da Corte Portuguesa. A partir de então, podemos observar uma nova forma de pensamento educacional ganhando espaço no Brasil, como veremos a seguir.
2.3 Reforma Pombalina No século XVIII, Portugal estava atrasado em relação aos países considerados as potências da época. O país queria passar de uma posição mercantil para outra industrial. A Inglaterra, por exemplo, destacava-se por sua indus– 30 –
trialização e avanços tecnológicos. Nesse cenário, um ministro português surgiu para causar muitas transformações no país: país : Sebastião José de Carvalho, o Marquês de Pombal. Pombal esteve no poder de 1750 a 1777 e foi o responsável pelas mudanças ocorridas na economia, educação e administração adminis tração de Portugal Portugal e suas colônias. Apesar de serem influenciadas pelo Iluminismo, as reformas pombalinas atendiam aos interesses do Estado e nada tinham de compromisso com a liberdade individual do cidadão. Boto (2010, s.p.) afirma que a “escola pombalina não era conduzida pela utopia daemancipação”. Com suas medidas, Pombal pretendia colocar Portugal em uma posição de destaque entre as metrópoles europeias. Uma das ações foi tentar forçar o progresso da industrialização no país, além de incentivar a construção naval. Passou-se a cobrar impostos altíssimos de produtos importados para forçar o avanço interno industrial. Segundo Maciel e Shigunov Neto (2006, [s. p.]), podemos destacar que: as principais medidas implementadas pelo marquês, por intermédio do Alvará de 28 de junho de 1759, foram: total destruição da organização da educação jesuítica e sua metodologia de ensino, tanto no Brasil quanto em Portugal; instituição de aulas de gramática latina, de grego e de retórica; criação de cargo de ‘diretor de estudos’ – pretendia-se que fosse um órgão administrativo de orientação e fiscalização do ensino; introdução das aulas régias – aulas isoladas que substituíram o curso secundário de humanidades criado pelos jesuítas; realização de concurso para escolha de professores para ministrarem as aulas régias; aprovação e instituição das aulas de comércio.
Pombal realizou mudanças na educação e decidiu expulsar os jesuítas de Portugal e de suas colônias (escolas de outras ordens religiosas continuaram existindo). A sociedade que estava surgindo não necessitava mais de um cidadão cristão. As prioridades e princípios mudaram e um novo homem precisava surgir para atender às modificações dos Estados modernos. O Brasil mudou a cobrança de impostos e investiu na organização da mineração e extração. ransferiu ransferiu a capital de Salvador para o Rio de Janeiro. Janeiro. As capitanias hereditárias que ainda eram particulares foram compradas pela Coroa e transformadas em capitanias reais. Com relação aos indígenas, Pom– 31 –
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bal foi o responsável por legalizar o fim de sua escravidão, em 1755, o que desagradou os proprietários de escravos indígenas e os jesuítas. Ao libertar os indígenas e expulsar os jesuítas, pretendia-se libertar a população local das amarras do catolicismo e miscigenar colonos e indígenas para gerar um povoamento estratégico em terras brasileiras. Extintos os colégios jesuítas 4, a maior parcela do ensino passou a ficar sob a responsabilidade do Estado. O fato de a educação ser laica não queria dizer que atendia aos interesses dos cidadãos, pelo contrário, o Estado queria garantir seu absolutismo, controlando, inclusive, o material didático. Enquanto mudanças ocorriam em Portugal, o Brasil ficava estagnado. Somente dezessete anos após a expulsão dos jesuítas, o Brasil conseguiu ter novamente o ensino, porém, de uma maneira fragmentada e desarticulada. Surgiu no país a escola pública de responsabilidade do Estado. Professores leigos e despreparados ministravam aulas avulsas (ou aulas régias) de Latim, Grego, Retórica ou Filosofia, que não possuíam conexão. Segundo a definição de Fonseca, redigida em forma de verbete no site da da Unicamp, as aulas régias: [...] compreendiam o estudo das humanidades, sendo pertencentes ao Estado e não mais restritas à Igreja – foi a primeira forma do sistema sistema de ensino público público no Brasil. Apesar da novidade imposta pela Reforma de Estudos realizada pelo Marquês de Pombal, em 1759, o primeiro concurso para professor somente foi realizado em 1760 e as primeiras aulas efetivamente implantadas em 1774, de Filosofia Racional e Moral. Em 1772 foi criado o Subsídio Literário, um imposto que incidia sobre a produção do vinho e da carne, destinado à manutenção dessas aulas isoladas. Na prática o sistema das Aulas Régias Régias pouco alterou a realidade educacional educacional no Brasil, tampouco se constituiu em uma oferta de educação popular, ficando restrita às elites locais. Ao rei cabia a criação dessas aulas isoladas e a nomeação dos professores, que levavam quase um ano para a percepção de seus ordenados, arcando eles próprios com a sua manutenção. Azevedo [1943, p. 315] menciona a abertura de uma aula régia de desenho e de figura, em 1800, nas principais cidades da orla marítima e em 4 É importante ressaltar que a Igreja Igreja católica continuou atuando nas colônias após a expulsão expulsão dos jesuítas. Continuaram realizando atividades as Ordens religiosas, como os franciscanos e beneditinos, por exemplo.
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algumas raras do planalto e do sertão. Em 1816 consta que o pintor Manoel da Costa Athaíde solicitou uma aula régia de desenho em Vila Rica, obtendo a aprovação. A permanência praticamente inalterada do sistema das Aulas Régias no Brasil da virada do século XVIII para o seguinte, estendendo-se ainda durante o primeiro reinado, deveu-se à continuidade dos modelos de pensamento em nossa elite cultural. Existiu um grande descompasso entre o pretendido pelo governo monárquico – tanto o português quanto o brasileiro, após a independência – e aquilo que as condições sociais e econômicas viriam permitir, dentro de um modelo produtivo excludente, escravista e pautado em uma mentalidade que contribuía para se perpetrar tal situação. (CARDOSO, 2004 apud FONSECA, 2012, [s. p.]).
Dica de Leitura Para aprofundar o conhecimento sobre as aulas régias e compreender melhor a educação nesse período histórico, leia CARDOSO, T. M. R. F. L. As luzes da educação: fundamentos, raízes históricas e prática das aulas régias no Rio de Janeiro 1759-1834. Bragança Paulista: Editora da Universidade São Francisco, 200
Dentro deste sistema, os alunos, filhos de uma pequena elite, eram educados para serem os novos nobres. O ensino procurava ser facilitado, pois a entrada no ensino superior era o almejado. Maciel e Shigunov Neto (2006, [s. p.]) fazem uma crítica contundente à Reforma Pombalina educacional, dizendo que ela: [...] pode ser avaliada como sendo bastante desastrosa para a Educação brasileira e, também, em certa medida para a Educação em Portugal, pois destruiu uma organização educacional já consolidada e com resultados, ainda que discutíveis e contestáveis, e não implementou uma reforma que garantisse um novo sistema educacional. Portanto, a crítica que se pode formular nesse sentido, e que vale para nossos dias, refere-se
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à destruição de uma proposta educacional em favor de outra, sem que esta tivesse condições de realizar a sua consolidação.
Desta feita, podemos concluir que a Reforma Pombalina não foi um avanço na educação brasileira. Ao criticar a estrutura religiosa do ensino jesuítico, ela desarticulou o ensino existente no Brasil. O país vem colhendo de longa data este tipo de erro: querer implantar novas tendências em detrimento de outras, sem ponderar o que é significativo e o que deve ser s er abandonado. Passadas as reformas pombalinas, o Brasil recebeu a família real portuguesa, o que modificou o cenário político, social, econômico e, consequentemente, educacional.
2.4 Educação no Brasil: da sede da Coroa para o Império No início do século XIX, Inglaterra e França estavam em guerra. Na tentativa de destruir economicamente a Inglaterra, o imperador francês Napoleão Bonaparte proibiu os países de fazerem comércio com os britânicos. Portugal, que mantinha uma estreita relação financeira com esse país, continuou negociando com seu parceiro. Por Por causa da pressão francesa e das invasões de Napoleão, o rei de Portugal decidiu levar sua família e cerca de dez mil pessoas consigo para o Brasil. Em 1808, chegou a família real portuguesa. O país deixava de ser uma simples s imples colônia para se tornar a sede do Império português. A Corte, que tinha sido transferida de Salvador para o Rio de Janeiro, começou a se modernizar. modernizar. Ruas foram abertas e pavimentadas, construções foram erguidas. Nessa época foram construídos oJardim oJardim Botânico, o Museu Nacional Nacional e a Imprensa Régia, e o acervo da biblioteca de Portugal foi trazido para o Rio de Janeiro. Janeiro. A sede estava ficando moderna. O pensamento do mercantilismo deu lugar ao liberalismo inglês, baseado na industrialização. Adam Smith, um dos intelectuais mais citados, defendia que cada nação deveria ser livre para fazer o comércio daquilo que “produz mais e melhor, e fazer troca do excedente por produtos oferecidos por outras nações” (FRANCISCO FILHO, 2004, p. 42). A Inglaterra teve muita influência sobre o Brasil durante esse período. Apesar da abertura dos portos brasileiros para todas as nações, o país britânico continuava obtendo – 34 –
privilégios. Os produtos ingleses eram os que pagavam menos impostos para serem importados. A elite brasileira comprava produtos supérfluos só para sentir-se “europeia civilizada civil izada”. ”. Devido aos conflitos na Europa, a família real e as elites (brasileira e europeia recém-chegada) não podiam enviar seus filhos ao local para cursar o ensino superior. O novo contexto exigiu a reformulação do pensamento educacional. Instituições de ensino superior e técnico precisavam ser abertas no Brasil para atender a essa fatia da população. Foram criadas instituições como as elencadas a seguir. Academia Real da Marinha, 1808. Cursos de Cirurgia, Medicina e Anatomia, 1809. Cursos técnicos de Agricultura e Indústria. Academia Real Militar Militar,, 1810. Laboratório de Química, 1812. Curso de Agricultura, 1814. Escola Real de Ciências, Artes e Ofícios, 1816. Apesar das mudanças ocorridas no ensino superior, superior, a educação continuou deixando as classes menos favorecidas de lado. A educação elementar “não sofreu modificação, os cuidados continuaram a ser com o conhecimento superior [...]. Não houve alteração na linha adotada durante a colonização [...]” (FRANCISCO FILHO, 2004, p. 46). Em 1822, o Brasil deixou de ser governado por Portugal. Sua independência foi liderada pelo futuro sucessor do trono português. Dom Pedro I tornou-se o primeiro imperador do Brasil, em uma ação planejada e desejada (ao contrário do que muitos livros de d e história trouxeram antes de 1990). Cursos superiores, técnicos e escolas religiosas, colégios públicos e particulares continuaram sendo abertos na tentativa de acompanhar o crescimento da elite brasileira. O discurso sobre a educação podia parecer eficiente, mas na realidade faltavam verbas e a população menos abonada continuava sendo esquecida. A elite estudava por meio das aulas avulsas, muitas das vezes ministradas nas escolas confessionais. Francisco Filho (2004, p. 62-63) afirma: 2 2 2 2 2 2 2
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em 1834 o Ato Adicional à Constituição de 1824 centralizou o ensino superior no governo Imperial e deu às províncias o direito de legislar e promover o ensino primário e secundário. [...] As escolas de primeiras letras tiveram pouca ascensão [...] As meninas da elite recebiam educação sobre afazeres domésticos e as meninas das camadas mais pobres só recebiam a educação informal de mãe para filha. [...] Foi instituído o ensino parcelado. Nas bancas das faculdades eram feitas avaliações para ingresso no ensino superior. A preparação, anterior, ficava por conta do aluno, que não precisava frequentar o ensino seriado. Somente a elite tinha condições de pagar professores ou um colégio religioso.
As mulhere mulh eress continu cont inuavam avam sendo sen do educada edu cadass para par a o lar e o foco do governo estava voltado para o ensino superior. A maioria dos colégios secundários estava nas mãos de instituições particulares e só as elites poderiam pagar seus estudos. Muitos desses colégios acabaram sendo apenas um curso preparatório para o ensino superior. As famílias ricas queriam acelerar o acesso acess o de seus filhos ao “rol “rol dos homens cultos” (ROMANELLI, 2010, p. 41). A partir de 1840, o Brasil passou a ser governado por D. Pedro II, que, por meio de um golpe de maioridade, assumiu o governo com 14 anos. Chamamos este período de Segundo Reinado, o qual se estendeu até a Proclamação da República, em 1889. Durante seu governo, aconteceram muitas manifestações políticas e sociais, entre elas o fim da Guerra dos Farrapos, a Revolução Praieira e a Guerra do Paraguai. Saiba mais
A Guerra do Paraguai (1864-1870) proporcionou a discussão entre as camadas pobres e escravas sobre o direito de acesso à educação. Nos navios os “homens comuns” compartilhavam do mesmo sofrimento e desenvolviam com a mesma capacidade as atividades dos jovens oficiais. Um movimento de classe começava a surgir.culos para chegar à forma “definitiva”, que conhecemos até hoje.
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Foi durante o Segundo Reinado que o Brasil viu aumentar, significativamente, a produção de café. Os fazendeiros, conhecidos como barões do café, enriqueceram por meio do trabalho escravo nas lavouras; ostentaram seu poder econômico e político e com suas riquezas favoreceram a industrialização no país, sobretudo nos estados de São Paulo Paulo e Rio de Janeiro. Devido às discussões em âmbito internacional, os discursos abolicionistas chegaram ao Brasil. Durante o Segundo Reinado, podemos destacar: 2
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Lei Eusébio de Queiróz (1850) – extinção oficial do tráfico de escravos no Brasil; Lei do Ventre Ventre Livre (1871) – liberdade dos filhos de escravos nascidos após a promulgação da lei; Lei dos Sexagenários (1885) – liberdade aos escravos que completassem 65 anos de idade; Lei Áurea (1888) – abolição da escravidão assinada pela Princesa Isabel, filha do Imperador D. Pedro II.
Com o fim da escravidão sendo anunciado desde 1850, os fazendeiros precisariam substituir a mão de obra que existia em suas lavouras e, por isso, começou a acontecer um grande movimento imigratório. Imigrantes vindos, principalmente, da Europa chegavam de navio ao país com a promessa de trabalho e moradia garantidos. No entanto, ao aportarem em terras brasileiras, a realidade não parecia ser tão promissora. A maioria passou a trabalhar em fazendas de café e alguns poucos conseguiram se estabelecer como comerciantes ou industriais. Houve, também, uma abertura na liberdade religiosa. Nosso país já não era mais exclusivamente católico (se ignorarmos as manifestações religiosas dos povos indígenas e africanos que aqui já existam), pois muitos dos imigrantes recém-chegados traziam, em suas bagagens, seus anseios, cultura e religião. Desta forma, além dos grupos de evangelização católica, começaram a chegar ao país grupos de missionários protestantes, a fim de levar os seus dogmas a países da América. A cidade de Petrópolis, no Rio de Janeiro, recebeu a sua primeira turma de Escola Dominical (ensino da Bíblia mediante preceitos protestantes) no ano de 1855, por intermédio do casal de missio– 37 –
História, Filosofa e Sociologia da Educação
nários escoceses Sarah e Robert Kalley. Para ensinar a Bíblia, consequentemente, eles precisavam alfabetizar as pessoas que frequentavam as aulas. Via-se, assim, a oportunidade de evangelizar e ensinar. Em 1959, chegou ao Brasil o missionário presbiteriano Simonton, que, entre outras coisas, tinha a missão de uma escola, escola , um seminário e um jornal 5. Basicamente, a proposta de evangelização trazida por ele era: 1) a santidade da igreja deve ser ciosamente mantida no testemunho de cada crente; 2) é preciso inundar o Brasil de Bíblias, livros e folhetos; 3) cada crente deve comunicar o evangelho a outra pessoa; 4) é necessário formar um ministério nacional idôneo; 5) escolas paroquianas para os filhos dos crentes devem ser estabelecidas (CÉSAR, 2000, p. 89).
A evangelização pessoal e nas igrejas alcançou um grupo de pessoas menos favorecidas que tiveram a oportunidade de serem alfabetizadas para, basicamente, ler a Bíblia. As escolas seriam a oportunidade dos protestantes de também alcançar as classes mais abastadas. Em 1869, foi fundada, em Campinas, pelo reverendo Nash Morton, a primeira escola presbiteriana chamada de Colégio Internacional. A instituição tinha como um de seus objetivos atender aos filhos dos presbiterianos assegurando a continuidade da cultura e religião. Em 1870, também fundada pelos presbiterianos, surgiu a Escola Americana, possuindo características como classes mistas de meninos e meninas e uma nova pedagogia de ensino. Essa escola começou a ganhar visibilidade pela dita di ta qualidade de ensino, que contava com professores qualificados. Uma das pessoas que teve sua atenção voltada para o colégio foi o advogado Jonh Teron Mackenzie, que realizou doações em vida e em herança para que a instituição crescesse. Em 1896, ela passou a abrigar o curso superior de engenharia e tornou a se chamar Mackenzie College6. 5 Este primeiro jornal protestante chamava-se Imprensa Imprensa Evangélica Evangélica e circulou entre 1864 a 1892. 6 O Mackenzie College é atualmente atualmente dividido ente a Universidade Universidade Presbiteriana Mackenzie Mackenzie e o Colégio Presbiteriano Mackenzie. Para saber informações sobre essas instituições acesse: www.mackenzie.br e www.emack.com.br.
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Figura 3 - Escola. Ginásio Anglo-Brasileiro. Aula de física e química. São Paulo, 1910. a i h p a r g o n o c I o ã ç u d o r p e R
Figura 4 - Instituto Granbery, Juiz de Fora, Minas Gerais, 1946. y r e b n a r G o t u t i t s n I
Já os metodistas fundaram seu primeiro colégio no ano de 1881, mantendo relações estreitas com a elite republicana. O Colégio Piracicabano era elogiado por manter um grupo de professores seletos, formados nos Estados Unidos ou na Europa. Mesquida (1994) lembra que esses professores eram – 39 –
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chamados por fazendeiros para ensinar, em casa, as primeiras letras a seus filhos, tecnologias agrícolas ou mesmo religião, por isso o prestígio e proximidade das elites de Piracicaba e região. Entre as características do Colégio Piracicabano estavam: prédios próprios, com arquitetura que os distinguia pelas salas amplas e construídas especificamente para o ensino. As classes eram mistas. As carteiras de estudante passaram a ser individuais. Havia salas especiais para música, geografia, com imensa quantidade de mapas, cartazes com esqueleto do corpo humano, pesos e medidas para o ensino do sistema métrico, microscópios. E, já no colégio Piracicabano, as disciplinas eram latim, português, inglês, francês, gramática, caligrafia, aritmética, matemática, álgebra, geometria, astronomia, cosmografia, geografia, história universal, história do Brasil, história sagrada, literatura, botânica, física, química, zoologia, mineralogia, desenho, música, piano, costura, bordado e ginástica (ELIAS, 2005, p. 82).
O Colégio Piracicabano tinha à sua frente a missionária Martha Hite Watts, Watts, que ajudaria ajudaria a criar e liderar outros outros colégios colégios como: como: Colégio Colégio Americano Americano de Petrópolis (1895); Colégio Mineiro em Juiz de Fora (1902); Colégio Izabela Hendrix Hendrix em Belo Horizonte Horizonte (1905). Foi também nesta época que surgiram os kindergarten ou, em nossa tradução, jardins de infância, destinados à educação das crianças pequenas, de zero a seis anos. Cardoso Filho afirma que o primeiro jardim de infância do Brasil surgiu em 1862, na cidade de Castro, no interior do Paraná (CARDOSO FILHO, FILHO, 2009, p. 49). O mais conhecido deles é o Colégio Menezes Vieira (1875-1887), fundado pelo médico e educador Joaquim José José de Menezes Vieira. Outros jardins de infância conhecidos pela historiografia surgiram em 1877, em São Paulo, Paulo, na Escola Americana e no Colégio Piracicabano.
2.5 Educação na República Velha Chamamos de República Velha ou Primeira República o período que vai de 1889 a 1930, quando o Brasil proclamou a sua independência e passou a ser governado por presidentes. Durante este período histórico, podemos ressaltar o surgimento dos grupos escolares, instituições de ensino primário que existiram até o ano de 1971. Os grupos escolares surgiram no – 40 –
estado de São Paulo e representavam o ideal republicano presente na educação. Estes locais educativos procuravam ser modelares e padronizadores da educação primária completa. Utilizavam um ensino enciclopédico e seus métodos e processos pedagógicos eram considerados modernos para a época (SOUZA, 1996). Souza (1996, p. 118) afirma que, em 1929, já havia 297 grupos escolares no estado de São Paulo, sendo 47 instalados na capital e 250 localizados nas demais cidades. Estudos recentes da história da educação têm percebido que o modelo de grupo escolar de São Paulo acabou sendo uma tentativa de padronização para os demais estados, ou seja, muitas das características presentes nesses grupos foram incorporadas por outros estados brasileiros. Nas palavras de Souza e Faria Filho (2006), esta inovação significou uma transformação da organização da educação pública dos estados brasileiros, assim: o novo modelo de escola exigia altos investimentos, pois pressupunha a edificação de espaços próprios e adequados para pa ra o funcionamento das escolas, professores habilitados, mobiliário moderno e abundante material didático. A racionalidade e a uniformidade perpassavam todos os aspectos da ordenação escolar, desde o agrupamento homogêneo das crianças (alunos) em turmas mediante a classificação pelo grau de conhecimento, consolidando a noção de classe e série, o estabelecimento de programas de ensino (distribuição ordenada de atividades e dos saberes escolares), a atribuição de cada classe a um professor, a adoção de uma estrutura burocrática hierarquizada – uma rede de poderes, de vigilância e de controle envolvendo professores, diretores, porteiros, serventes, inspetores, delegados e diretores de ensino. Perpassavam também a ordem disciplinar impingida aos alunos – asseio, ordem, obediência, prêmios e castigos (SOUZA; FARIA FILHO, 2006, p. 28).
Como vimos, a instalação deste modelo de escola possuía um custo muito alto. Era necessária uma arquitetura escolar específica, um mobiliário considerado moderno, professores preparados e, por este motivo, somente os estados de maior posse financeira conseguiram implantar a proposta dos grupos escolares com mais sucesso. Souza e Faria Filho (2006) destacam São Paulo, Minas Gerais e Pará como os estados que conseguiram ampliar, significativamente, as vagas e implantar um sistema moderno de ensino. – 41 –
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Nos estados de melhores condições, a construção dos prédios dos grupos escolares era grandiosa. A arquitetura era inovadora: as divisões do ambiente, o pátio escolar, a separação entre a rua e a sala de aula geravam uma postura diferenciada entre ter um comportamento de criança na rua e outro como aluno na escola. No entanto, os demais estados, apesar de também contarem com grupos escolares (talvez não tão suntuosos), dividiam o sistema primário com as já existentes escolas isoladas. Dica de Leitura Para saber mais sobre os grupos escolares indicamos a seguinte leitura: BENCOSTTA, M. L. Grupos escolares no Brasil: um novo modelo de escola primária. In: STEPHANOU, M.; BASTOS, M. H. C. História e memórias da educação no Brasil. Século XX. Petrópolis: Editora Vozes, 2005. v. 3.
Figura 5 - Grupo Escolar Dom Pedro II, Ouro Preto/MG, década de 20 do século XX. I I o r d e P m o D l a u d a t s E a l o c s E – M P A
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Figura 6 - Sala de aula. Rio de Janeiro, 22 de outubro de 1914. a i h p a r g o n o c I o ã ç u d o r p e R
Figura 7 - Instituto Muniz Barreto (escola – sala de aula só para meninos). Rio de Janeiro, 1904. a i h p a r g o n o c I o ã ç u d o r p e R
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História, Filosofa e Sociologia da Educação
Com relação ao período histórico, os cafeicultores paulistas e fazendeiros mineiros detinham o poder político. Eles revezavam-se na presidência e controlavam o cenário econômico brasileiro. Este sistema ficou conhecido como política do café com leite. A presidência do Senado e da Câmara dos Deputados Federais ficava dividida entre os políticos do Rio de Janeiro e do Rio Grande do Sul. Existiam muitas fraudes nas eleições e não havia uma fidelidade aos partidos políticos. Francisco Filho Filho (2004, p. 76) resume o período afirmando que: tudo tinha como alicerce o coronelismo, que nomeava autoridades e altos funcionários e em troca apoiava os candidatos aceitos pelas bases do governo. [...] O voto era de “cabresto” e os coronéis tinham “pequenos exércitos particulares armados” para manter a segurança. [...] Nesse período surgiram alguns movimentos de peso, o enentismo enentismo em 1922 e depois a Coluna Prestes, no campo militar. No plano intelectual surge a Semana de Arte Moderna, também em 1922, alterando os rumos da cultura.
No campo educacional, logo no início da República, em 1890, Ben jamim Constant troca a tradição humanista pelos princípios positivistas. Segundo Francisco Filho (2004), o ensino era seriado, enciclopédico, obrigatório e gratuito. Novas disciplinas passaram a fazer parte do currículo: Política, Economia, Noções de Sociologia, Direito e Ciências. O ensino passava pela tendência de imitar a educação francesa. Com o fim do Império, o Colégio Dom Pedro II teve seu nome mudado para Ginásio Nacional. Era a tentativa de modernizar o país e esquecer as antigas estruturas. Vamos observar no quadro a seguir algumas leis e reformas que ocorreram neste período. Quadro 1 Nome e data
Reforma Epitácio Pessoa – 1901
Objetivos legais •
O ensino secundário continuava preparando para o ensino superior;
•
O ensino secundário passava a ter seis anos de duração;
•
Continuava a liberdade de ensino.
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Nome e data
Lei Orgânica Rivadávia Corrêa – 1911
Reforma de Carlos Maximiliano – 1915
Lei Rocha Vaz – 1925
Objetivos legais ensino;
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Ofereceu autonomia aos estabelecimentos de
•
Muitos estabelecimentos de ensino voltaram ministrar um ensino parcelado, o que pode ser considerado um retrocesso;
•
Fim do caráter oficial do ensino;
•
Volta dos exames de admissão para o ensino superior;
•
O estado não controlava a emissão de títulos e diplomas.
•
Cancelava as alterações de 1911;
•
Cancelava o ensino parcelado;
•
Obrigava a conclusão do curso secundário para ter acesso ao curso superior;
•
Criava o vestibular para ingressar no curso superior.
•
Última lei antes da Era Vargas;
•
Era contrária às ideias da Escola Nova;
•
Considerada reacionária e conservadora;
•
O Estado controlava ideologicamente através de inspeções e autorizações;
•
Moral e Cívica tornou-se disciplina obrigatória na escola primária e secundária.
Como pudemos observar no quadro, ocorreram algumas mudanças na educação brasileira. Parte dos interesses imperiais foi substituída pelos novos objetivos da oligarquia café com leite. O discurso da República deu abertura para a discussão de uma escola gratuita para todos. Porém, Porém, a elite continuou sendo educada e os menos favorecidos continuavam deixados à parte. É certo que, em sua maioria, os ideais humanistas foram substituídos pelo Positivismo, mas o ensino ainda ai nda estava longe de preparar cidadãos atuantes e conscientesde seu papel na sociedade. Ainda havia um longo caminho para ampliar a democratização do ensino. – 45 –
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Outro assunto discutido na época foi o aumento significativo de mulheres procurando ser professoras professoras de escolas primárias. Elas procuravam as escolas normais para “obter conhecimentos, preparo para a vida no lar e também ter uma profissão que lhes permitisse permitis se sobreviver com seu próprio rendimento” (ALMEIDA, 2009, [s. p.]). O Positivismo, que regia a tendência educacional, valorizava a mulher moralmente (apesar de vê-la como ser frágil e incapaz) e sua função de professora muito se assemelhava à de mãe, por isso era socialmente aceita. Os homens que se formavam nas escolas normais procuravam cargos de direção e chefia nas escolas. e scolas. Na época, época, houve uma discussão discussão sobre a introdução de classes mistas na escola primária. Se uma professora ministrasse aulas para meninos e meninas, a sua formação também deveria estar voltada para os assuntos e conhecimentos do universo masculino. Apesar de opiniões contrárias, e o conhecimento de “assuntos” que eram considerados exclusivos do sexo oposto, o “instinto maternal” superou as críticas. As professoras seriam mais afáveis e protetoras no desempenho desse papel. Era a mulher ganhando espaço na educação brasileira. No próximo capítulo, abordaremos os acontecimentos ocorridos entre 1930 e o período do Regime Militar. Militar. Da Teoria para a prática Vimos, neste capítulo, que os jesuítas, juntamente com outros religiosos, foram os primeiros professores em território brasileiro. Formaram e catequizaram uma parcela da população do país. Quando já não atendiam mais às necessidades da Coroa Portuguesa, acabaram sendo expulsos de suas colônias. Sabe-se que outras ordens religiosas puderam continuar exercendo suas atividades, no entanto, apesar da expulsão da Companhia de Jesus e da repressão realizada, a Ordem, posteriormente, no século XIX, voltou a exercer suas atividades e, hoje, atua, inclusive, no âmbito educacional. Realize uma breve pesquisa sobre a presente atuação dos jesuítas no Brasil. Procure saber se em sua região existem escolas lideradas pelos jesuítas e quais são os princípios organizadores e norteadores
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pelos jesuítas e quais são s ão os princípios organizadores e norteadores dessas instituições educacionais. Veja, também, com quais níveis de educação essa ordem religiosa está envolvida.
Síntese O início da educação brasileira foi dirigido pelos padres jesuítas, que procuravam novos fiéis da Igreja católica e transmitiam sua religião e cultura baseados na obra de Aristóteles e Santo omás de Aquino. Com a tentativa de modernidade, liderada por Marquês de Pombal, eles foram expulsos e a educação ficou fragmentada, nas mãos de professores, geralmente, despreparados. A partir parti r de 1808, com a chegada da família famíli a real ao Brasil, Brasil , houve a preocupação de investir no ensino superior, já que a Corte e a elite não estavam indo à Europa para finalizar seus estudos. O Império continuou privilegiando o ensino superior em detrimento do primário e secundário. A República Repúblic a Velha tentou romper com as antigas estruturas estrut uras do Império e investiu nas ideias positivistas e na discussão das escolas gratuitas, apesar do ensino ainda ser algo inalcançado pela maioria da população.
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História, Filosofa e Sociologia da Educação
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3 Educação no Brasil: de 1930 ao Regime Militar Alicia Mariani Mariani Lucio Landes Landes da Silva
O ������ XX trouxe mudanças significativas para a história do Brasil, bem como para a história da educação brasileira. Os avanços alcançados pela Revolução Industrial, as guerras mundiais, os pensamentos sociais e políticos transformaram esse século em uma profusão de informações e acontecimentos. N���� ��������, ����������� três momentos diferentes da educação brasileira paralelamente a três momentos históricos distintos: a Era Vargas, Vargas, o período de democratização e o Regime Militar. Militar. N� �������� ����� do capítulo, capítu lo, veremos como com o Getúlio VarVargas conseguiu permanecer no poder durante quinze anos, quais foram suas medidas educacionais e a proposta de seu Ministério da Educação. Depois, encontraremos o momento em que o Brasil passou por um período de democratização, no qual o país procurou se modernizar (apesar das dívidas externas) e promul-
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gou a Lei de Diretrizes e Bases da Educação, em 1961. Para encerrar, o tema abordado será o período do Regime Militar e seus reflexos no contexto educacional.
3.1 A educação e a Era Vargas A partir de 1930, a política regida pelas estruturas estruturas rurais começou a perder força. O Coronelismo e a política oligárquica, conduzida pelas famílias ricas de Minas Gerais e São Paulo, começaram a entrar em decadência. Um novo Estado estava configurando-se no cenário nacional. A agricultura deu espaço para um novo movimento: o da industrialização. A aristocracia aristocraci a rural voltava-se voltava-s e para os investimentos investiment os na industrialização industrial ização e a política dos governadores, o Coronelismo e a política do café com leite já não atendiam atendi am aos seus interesses. interes ses. Esta nova burguesia burgues ia saiu do campo e migrou para os centros urbanos que estavam em ascensão. No campo das ideias também aconteceram mudanças. O ideário ideári o marxista e anarquista já havia conquistado adeptos. A fundação do Partido Comunista, o enentismo e a Semana de Arte Moderna também influenciaram o pensamento da época. No campo educacional, surgiu a Escola Nova, Nova, que estudaremos com mais dedicação no capítulo 5 deste livro. O ano de 1930 era de eleições presidenciais, no entanto, prevendo a decadência da aliança da política café com leite, os paulistas decidiram romper com o acordo e indicaram Júlio Prestes para o cargo. Os mineiros aliaram-se ao Rio Grande do Sul Sul e lançaram a candidatura de Getúlio VarVargas. Júlio Prestes venceu as eleições, porém, uma série de acontecimentos foi aumentando a rivalidade entre os partidos, culminando no assassinato de João Pessoa (vice de Getúlio Vargas Vargas nas eleições). Vargas aproveitou a situação unindo-se aos tenentes no movimento enentismo e, em 3 de outubro, seguiram rumo ao Rio de Janeiro, para impedir a posse de Júlio Prestes. Antes de chegar ao Rio, Vargas recebeu a notícia de que o então presidente Washington Luís havia sido deposto por uma junta militar. Vargas tornou-se o novo presidente do Brasil. O governo de Getúlio Vargas Vargas passou por algumas fases. Observe o quadro: – 50 –
Educação no Brasil: de 1930 ao Regime Militar
Quadro 1 Nome Governo provisório
Governo constitucional
Estado Novo
Período
1930-1934
1934-1937
Características e acontecimentos •
Política de valorização do café.
•
Conseguiu transformar os paulistas em seus aliados.
•
Início do populismo.
•
Ideias fascistas e anticomunistas.
•
Culto ao líder e valorização do nacionalismo.
•
Plano Cohen.
•
Regime Militar.
•
Criação da Vale do Rio Doce, investimentos na siderúrgica nacional e a formação do conselho nacional de petróleo.
•
Consolidação das Leis Trabalhistas.
•
Segunda Guerra Mundial.
1937-1945
Vargas tornou-se o líder supremo do país. Um ditador que reprimia com censura tudo e todos que se posicionassem contrários às suas ordens. Apesar de apoiar os Estados Unidos durante a Segunda Guerra Mundial, Mundial, ele era simpatizante das ideias fascistas e nazistas, vindas, respectivamente, da Itália e Alemanha. O momento histórico exigiu mudanças na sociedade e, consequentemente, na educação. Havia o interesse de romper com as antigas estruturas do ensino. A sociedade, predominantemente rural, passou a se tornar mais industrializada e necessitou de uma nova mão de obra. O analfabetismo precisava ser diminuído, pois o trabalhador urbano teria que ter conhecimento e preparo para desenvolver as suas funções. Nessa época, foi criado o ensino supletivo para alfabetizar os trabalhadores que não tiveram oportunidade de estudar durante a infância e a juventude. Apesar da criação do ensino supletivo, a alfabetização não foi prioridade, o que estava em foco era a educação das elites. O ministro Capanema, por exemplo, acreditava que “com verdadeiras eli-tes se resolveria não somente o problema do ensino primário, mas o da mobilização de elementos capazes de movimen– 51 –
História, Filosofa e Sociologia da Educação
tar, tar, desenvolver, dirigir e aperfeiçoar todo o mecanismo de nossa civilização” (BOMENY, (BOMENY, 1999, p.139). Essa elite seria preparada e selecionada no ensino ens ino secundário esua instrução completa se daria no ensino superior. Francisco Filho (2004, p. 86) faz uma crítica a este sistema de ensino, afirmando que: algumas coisas não mudaram, persistiu no seio da escola um sistema dual. De um lado, escolas preparando para carreiras universitárias, do outro, escolas preparando para a força de trabalho. Eram escolas para as classes médias e ricas e outra diferenciada para os mais pobres, os trabalhadores. Esse sistema ainda perdura neste início do século XXI. Foram criados, também, cursos rápidos e rapidíssimos para treinamento dos trabalhadores das diversas profissões emergentes. Em geral, era uma população urbana procedente da área rural, empurrada para as cidades pelas sucessivas ondas de êxodo rural, que se avolumava.
O Ministério da Educação e Saúde Pública foi criado em 1930 e nomeou Francisco Campos como seu responsável. Em 1931, foi realizada a reforma do Ensino Secundário, que pretendia preparar o aluno não só para a entrada na universidade, universidade, mas também a entrada em vários setores da sociedade. 2
Foi estabelecido o ensino seriado e de frequência obrigatória. O funcionamento ficou dividido da seguinte maneira:
2
Grupo Escolar7: quatro anos; ensino primário, obrigatório e gratuito;
2
1º Ciclo do ensino secundário: cinco anos;
2
2º Ciclo do ensino secundário (pré-universitário): dois anos.
Esse sistema acabou sendo popularmente conhecido como 452. Segundo Francisco Filho (2004, p. 88), muitos estudiosos apontam falhas no sistema educacional alegando que prosseguiu dando uma importância e valorização ao ensino superior em detrimento dos outros níveis. O ensino técnico continuou sendo desvalorizado e a estrutura do 7 Os primeiros Grupos Grupos escolares já haviam sido sido instalados no final do século XIX, como como é o caso do Primeiro Grupo Escolar de Campinas, de 1897, que, em 1917, foi denominado Grupo Escolar Francisco Glicério e, atualmente, chama-se Escola Estadual Francisco Glicério.
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Educação no Brasil: de 1930 ao Regime Militar
primário e secundário prosseguiam sendo seletivas. “As decisões foram excessivamente centralizadas, dificultando a articulação e continuidade entre os níveis ní veis de ensino.” ensino.” Depois do golpe de Estado, em 1937, um aspecto que se destacou no governo de Vargas Vargas foi o clima de guerra e militarização permeando a população. Vargas Vargas utilizou-se do discurso de guerra para poder mani-pular e controlar as ações do povo. Essa militarização também envolveu a educação do país, cuja juventude foi mobilizada por meio do projeto de Organização NacioNacional da Juventude, chefiado pelo Minis-tério da Justiça. Em certo sentido, as ideias organizadas pelo ministro Francisco Campos estavam pautadas no fascismo e no nazismo e em organização similar, que acontecia em Portugal. Seria uma organização paramilitar, que arregimentaria a juventude a favor da nação (BOMENY, 1999, p. 147). Esse projeto alcançou espaço nas escolas utilizando-se, principalmente, das disciplinas de Educação Física e Educação Moral e Cívica. Era o jovem aluno/soldado, defensor da nação, preparado fisicamente e moralmente para reconhecer o seu país com patriotismo e devoção. Em 1940, foi instituída pelo Decreto-Lei n. 2.072 a Juventude Brasileira. Assim, a forte militarização que surgiu em 1938 foi, gradativamente, deixada de lado. Em 1938, havia um projeto do ministro Francisco Campos paraa orga par organiz nizar ar a Juve Juventu ntude de Bra Brasil sileir eira. a. O proj projeto eto de Org Organi anizazação Nacional da Juventude tinha o objetivo de unir os jovens brasil bra sileir eiros os em um umaa orga organiz nizaçã açãoo para paramil milita itarr muit muitoo seme semelha lhante nte à que existia em países fascistas. No entanto, o ministro Eurico Dutra contrariou a tentativa paramilitar e questionou os ideais, classificando-os como estranhos à ideologia brasileira. Em março de 1940, durante o ministério de Gustavo Capanema, foi instituída a Juventude Brasileira, obscurecendo o caráter de milícia, tentando tornar-se um movimento cívico de culto aos símbolos nacionais. Com a entrada do Brasil na Segunda Guerra Mundial, a organização esvaziou-se e, em 1945, deixou
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História, Filosofa e Sociologia da Educação
de existir. Para saber mais sobre a Juventude Brasileira, leia o capítulo 4 da obra de Schwartzman (2000). SCHWARTZMAN, S. Tempos de Capanema. São Paulo: Paz e Terra, 2000. .
Figura 1 - Desfile da Juventude por ocasião da visita de Capanema a Curitiba, 14 de outubro de 1943. a m e n a p a C o v a t s u G o v i u q r A – C O P D C – V G F
Figura 2 - Desfile da Juventude Juventude Brasileira durante durante o Estado Novo, foto de Peter Langue. a m e n a p a C o v a t s u G o v i u q r A – C O P D C – V G F
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Educação no Brasil: de 1930 ao Regime Militar
Romanelli (2010, p. 157) destaca que, em 1937, as “lutas ideológicas em torno dos problemas educacionais entraram em uma espécie de hibernação”, ção”, pois apesar de intelectuais ainda lutarem no campo das ideias para uma melhoria no ensino, estavam fadados a uma luta individual, já que esta não poderia se concretizar em um movimento social. A Constituição de 1934, que afirmava que a educação era um dever do Estado, foi substituída pela Constituição de 1937, que não outorgava obrigação ao ele, o que, segundo a autora, foi uma conquista das mentalidades conservadoras e dos moldes do regime do Estado Novo. Em 1942, outras mudanças ocorreram a partir do ministério de Gustavo Capanema, foram as chamadas Reformas de Gustavo Capanema. Ele realizou reformas em diferentes níveis da educação. Veja a seguir a lista de algumas destas leis orgânicas do ensino e acontecimentos relacionados à educação. 2
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Decreto-Lei n. 4.048, de 22 de janeiro de 1942: criação do Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial – Senai. Decreto-Lei n. 4.073, de 30 de janeiro de 1942: regulamentação do Ensino Industrial. Decreto-Lei n. 6.141, de 28 de dezembro de 1943: regulamentação do Ensino Comercial. Os cursos técnicos tinham duração de três ou quatro anos. Eram cursos técnicos do 2º ciclo do ensino secundário: administração, comércio, propaganda, contabilidade, estatística e secretariado. Decreto-Lei n. 4.244, de 9 de abril de 1942: regulamentação do ensino secundário. O 1º ciclo do ensino secundário passou a se chamar ginasial e o 2º ciclo de colegial. Este último ficou reestruturado como Clássico e Científico. Em 1943, a CL (Consolidação das Leis de rabalho) exigiu a implantação de creches em empresas para os filhos de funcionários. Fundação da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), em 1943. – 55 –
História, Filosofa e Sociologia da Educação 2
O ano de 1944 marcou a criação da Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos, que divulgava as orientações do Instituto Nacional de Estudos Pedagógicos (Inep).
Decreto-Lei n. 8.529/46: regulamentação do ensino primário. Voltado para crianças de 7 a 12 anos, o ensino era dividido em elementar (4 anos) e complementar (mais um ano). Os adultos e adolescentes que não tiveram oportunidade para estudar podiam cursar o ensino primário supletivo, em dois anos. Sobre o ministério de Gustavo Capanema Bomeny (1999) afirma que foi o: 2
ministério dos modernistas, dos Pioneiros da Escola Nova, de músicos e poetas. Mas foi também o ministério que perseguiu comunistas, que fechou a Universidade do Distrito Federal (UDF), de vida ativa e curta, expressão dos setores liberais da intelectualidade do Rio de Janeiro (1935-1939). Foi, ainda, o ministério que apoiou a política nacionalizante de repressão às escolas dos núcleos estrangeiros existentes no Brasil. O ministério Capanema nos desafia ao refinamento da análise e a escapar das associações mais apressadas entre políticas e comportamentos e entre os limites das ações dos atores diante da imponderabilidade dos processos (BOMENY, (BOMENY, 1999, p. 137).
Dentro desta análise podemos destacar que o ministério de Gustavo Capanema foi marcado pela ideologia do Estado Novo ou, então, que ele mesmo ajudou a marcar esta ideologia. As reformas propostas pelo ministério de Capanema estavam, basicamente, focadas nos níveis secundário e superior. O ensino primário, mais uma vez, acabou por ser esquecido. Porém, no que se propõem as reformas, podem ser consideradas bem-sucedidas. A visão pautada para o ensino secundário era de formar um “novo homem”. Ora, um Estado Novo, pautado no nacionalismo e paternalismo precisava de um novo cidadão e de novos profissionais para atender a esta sociedade emergente. Cidadão culto ou trabalhador técnico? Ensino clássico ou prático? Estas dúvidas opostas (ou complementares) permearam o pensamento de estruturação do novo ensino secundário. Segundo Bomeny (1999, p. 138): confrontavam-se nesse momento posições distintas a respeito do teor que se deveria imprimir à formação dos jovens cidadãos. Educação humanista versus educação técnica; ensino generalizante e clássico
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Educação no Brasil: de 1930 ao Regime Militar versus ensino profissionalizante são pares de oposição (falsa oposi-
ção?) que até hoje permanecem como desafios à reforma do ensino secundário. O Estado Novo resolveria o problema com uma solução engenhosa. Ao lado da reforma do ensino secundário, onde acabou prevalecendo a matriz clássica humanista, montou-se todo um sistema de ensino profissional, de ensino industrial que deu origem ao que conhecemos hoje como “Sistema S”, ou seja, os Senai, Senac, Sesi etc. Coroando todo o empreendimento, o ministério reestruturaria o ensino superior, criando e dando corpo ao projeto universitário.
Uma nova identidade estava sendo forjada. Para isso, um sentimento de nacionalidade ou de brasilidade estava sendo embutido nas mentes e nas ações dos trabalhadores. A ideologia estado-novista era transmitida por meio da cultura, das ações sociais e, agora, por meio da educação. Podemos afirmar que: politização da educação, holismo pedagógico ou educação integral i ntegral são termos que traduzem o ethos estado-novista. A concepção de democracia que os atores políticos e ideólogos do Estado Novo defendiam se articulava precisamente na crítica ao individualismo desagregador, desagregador, conflitivo, efêmero e excessivamente pragmático. Democracia se refere à totalidade, à comunhão de uma ideia, à integração de cidadãos em um estado benfeitor e condutor das mentalidades (BOMENY, 1999, p. 164).
Neste sentido, o sistema educacional brasileiro servia de um meio de propagação do plano de controle nacionalista de Getúlio Vargas. Vargas. Democracia era a união da nação brasileira e um dos meios de pregação deste ethos era era via educação. Para alcançar o intuito de unificar o país em um só sentimento, o Ministério da Educação acabava esbarrando em dois obstáculos: [...] a sobrevivência de uma prática regionalista e a presença de núcleos estrangeiros nas zonas de colonização. À primeira dificuldade o Estado deveria responder com um projeto de padronização do ensino e de centralização de atividades escolares pela defesa da unidade de programas, de material didático etc. [...] A segunda dificuldade exigiria intervenção mais enérgica: tratava-se de “homogeneizar” a população, afastando, assim, o risco de impedimento do grande projeto de identidade nacional. A esta última intervenção convencionou-se chamar a questão da nacionalização do ensino , ou na terminologia da época, “abrasileiramento” do ensino (BOMENY, 1999, p. 151-152, grifos do autor).
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História, Filosofa e Sociologia da Educação
Estas duas questões foram combatidas durante o governo do Estado Novo. Escolas de imigrantes foram fechadas, a obrigatoriedade do uso da língua portuguesa foi reforçada e a unificação do sentimento de brasilidade foi imposta. No entanto, Vargas não ficaria muito tempo mais no governo, pois um período de democratização estaria por vir, como veremos adiante.
3.2 Educação e o período de democratização Durante os últimos anos do período ditatorial do governo de Getúlio Vargas houve manifestações favoráveis à democratização do país. Em 1943, o Manifesto dos Mineiros foi assinado por políticos e profissionais liberais. Em 1944, a oposição começou a organizar o partido que mais tarde seria conhecido como União Democrática Nacional (UND). No mesmo ano, o Brasil já estava diretamente envolvido com a Segunda Guerra Mundial. Apesar de ser simpatizante das ideias fascistas e nazistas, Vargas Vargas aliou-se ali ou-se aos Estados Unidos e enviou a Força Expedicionária Brasileira para combater os fascistas e nazistas na Itália. Um ato adicional foi assinado por ele, em 1945, convocando eleições diretas. Alguns partidos organizaram-se, como o Partido rabalhista Brasileiro (PB), União Democrática Brasileira (UDN), Partido Comunista Brasileiro (PCB) e Partido Social Democrático (PSD). A continuidade de Vargas no poder parecia anunciada. O PB divulgou o “Queremismo”, movimento daqueles que queriam que Vargas continuasse no poder. No entanto, os partidos contrários articularam-se para que os rumos da política mudassem e, em 29 de outubro do mesmo ano, o presidente Getúlio Vargas Vargas acabou sendo deposto pelos militares. Entraram na disputa o Brigadeiro Eduardo Gomes (UDN) e o General Eurico Gaspar Dutra (PB e PSD), este último saiu eleito como o novo presidente do Brasil. A partir de seu governo o país passou a apresentar uma política econômica voltada para o capital financeiro internacional, consequência do mundo Pós-Guerra, baseado em uma nova ordem mundial. No âmbito educacional, em 1946, a nova Constituição determinou a obrigatoriedade do ensino primário e fixou que a educação como “direito de – 58 –
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todos”. Outros ocorridos durante o mandato de Dutra, em 1946, são destacados a seguir. Ministro da Educação Raul Leitão da Cunha baixou os Decretos-lei. 2 2
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Decreto-Lei n. 8.529, de 2 de janeiro, regulamentava o ensino primário. Decreto-Lei n. 8.530, de 2 de janeiro, regulamentava o ensino normal. Decretos-Lei n. 8.621 e n. 8.622, de 10 de janeiro, criavam o Senac (Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial). Decreto-Lei n. 9.613, de 20 de agosto, regulamentava o ensino agrícola. Fundação da Universidade Federal de Pernambuco e a Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.
Vargas voltou ao poder nas eleições de 1950, com o apoio dos sindicalistas. O país voltou à prática do populismo e muitos acreditavam que ele desejava manter-se no poder mediante algum ato de intervenção. inter venção. O país passou por um período de desenvolvimento, no qual foi criada a Petrobrás, Petrobrás, Eletrobrás e BNDE (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico). Apesar do desenvolvimento, Getúlio sofreu oposição de empresários nacionais e de empresários ligados ao capital estrangeiro. ambém em 1950, a Lei n. 1.076 iria a mudar barreira existente no ensino técnico, até então marginalizado. Até 1950 quem cursava o ensino técnico era obrigado a fazer também o ensino secundário, para podercursar o ensino superior. Com a nova lei, os ensinos técnicos e secundários tornaram-se equivalentes. A Lei n. 1.821/53 permitia a entrada, no ensino superior, dos alunos que concluíssem o 2º ciclo, desde que fizessem exames das disciplinas que não haviam cursado no ensino secundário (ginasial e colegial). Porém, Porém, a equivalência só aconteceu em 1961, com a Lei n. 4.024, que incluiu o ensino industrial, comercial e agrícola no ensino médio. Depois do episódio da Rua do onelero, Vargas suicidou-se, em 24 de agosto de 1954, e seu vice, Café Filho, assumiu o poder. Dezesseis meses depois desse acontecimento , o país passou a ser governado por Juscelino Kubitschek. – 59 –
História, Filosofa e Sociologia da Educação
Saiba mais
O atentado da Rua do Tonelero foi a tentativa de assassinato do político e jornalista Carlos Lacerda. Ele era um dos maiores opositores de Getúlio Vargas e o acusou de ter armado a emboscada em frente à sua residência.
Seu governo foi marcado por metas de desenvolvimento. A capital do Brasil foi transferida para a recém-projetada Brasília. Hidrelétricas foram construídas e indústrias de bens duráveis foram instaladas (como automobilísticas e de eletrodomésticos); no entanto, a dívida externa, o desemprego e a inflação aumentaram. Em 1961, subiu ao poder o presidente Jânio da Silva Quadros. Seu governo foi marcado pelo populismo caricato. Aproximou-se de países socialistas, como Cuba, URSS e China. Depois de seis meses, em 25 de agosto de 1961, Quadros acabou renunciando e deixando a cadeira presidencial para seu vice João Belchior Marques Goulart. odo esse cenário político influenciou as decisões em relação à educação brasileira, pois já no ano de d e 1948 o ministro Clemente Mariani havia enviado um projeto de lei educacional, projeto esse que foi regulamentado somente em1961. Após muitas discussões entre católicos e adeptos da Escola Nova, entre simpatizantes do centralismo e os contrários a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, a lei foi aprovada, mas na prática, segundo Francisco Filho (2004), não trouxe grandes mudanças em relação à Lei Orgânica de Capanema (FRANCISCO FILHO, 2004, p. p. 104). A educação, a partir da Lei n. 4.024/61, ficou assim organizada: organizada: Quadro 2 Nomenclatura
Duração
Abrangência
Pré-primário.
Crianças com até seis anos de idade.
Englobava escolas maternais e jardins de infância.
Ensino primário.
Mínimo quatro anos.
Crianças com sete anos ou mais.
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Educação no Brasil: de 1930 ao Regime Militar
Nomenclatura
Duração
Abrangência
Dois ciclos. Ensino secundário.
Ginasial: mínimo de quatro anos.
Abrangia toda a antiga estrutura do ensino médio, incluindo cursos técnicos e normal.
Colegial: mínimo três anos. Ensino superior.
Considerava aulas, pesquisa e extensão.
Graduação e pós-graduação.
Fonte: Adaptado da Lei n. 4.024/61 e Francisco Filho (2004, p. 104-105).
Romanelli (2010) lembra que a promulgação da lei gerou diversos sentimentos. Houve aqueles que a encararam como a “carta libertadora da educação nacional”, até aqueles que a viram de forma pessimista. pess imista. Ainda ressalta que nenhuma lei educacional pode, por si só, ser cocretizada com sucesso se não faz parte de um pojeto geral de reformas existentes. Ou seja, depende da infraestrutura e da adequação da lei às reais necessidades a ela destinadas. “Enfim, a eficácia de uma lei depende dos homens que a aplicam.” aplicam.” (ROMANELLI, (ROMANELLI, 2010, p. 185). Certo é que, segundo a autora, a lei de 1961 praticamente anulou a obrigatoriedade do ensino primário, com seu Art. 30. Neste sentido, podemos perceber que, em determinados aspectos, as pectos, a lei acabou retrocedendo e anulando direitos já conquistados. Observe o Art. 30 da Lei de Diretrizes e Bases da Educação de 1961: Art. 30. Parágrafo único – Constituem casos de isenção (da obrigatoriedade), além de outros previstos em lei: [...] c. comprovado estado de pobreza do pai ou responsável; d. insuficiência de escolas;”. e. matrículas encerradas; f. doença ou anomalia grave da criança. (BRASIL, 1961)
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História, Filosofa e Sociologia da Educação
Em uma sociedade em que a maioria da população mal tinha condições para sobreviver, a educação seria algo fora do alcance de muitos. Segundo Romanelli (2010, p. 188), a “sua única vantagem talvez esteja no fato de não ter prescrito um currículo fixo e rígido para todo território nacional, em cada nível e ramo”. Na verdade, essa abertura se deu praticamente na teoria da própria lei, pois, na prática, os governos estaduais não modificaram, em geral, seus programas, por falta de professores, por exemplo. O mundo passava pelo período da Guerra Fria e, apesar de ser latifundiário, Jango (como ficou conhecido João Goulart), era simpatizante das ideias socialistas. Foi responsável pelo estabelecimento do regime parlamentar no Brasil; porém, em 1963 o país volta a ser republicano. republicano. Seu governo realizou algumas reformas de base nas áreas agrária, política e educacional (como a LDB, de 1961), em meio as oposições. A situação política do país acabou se tornando tornando insustentável e, em 31 de março de 1964, Jango foi deposto pelos militares. A história do Brasil entrou em uma nova fase, como veremos no próximo tópico deste capítulo.
3.3 A educação e o Regime Militar A instabilidade do governo de João Goulart, Goulart, juntamente com a insatisfação em relação às suas promessas de diminuir a inflação do país e realizar uma reforma de base na economia, agricultura e educação, atrelados ao medo da classe média de que o socialismo fosse instituído no país, gera-ram movimentos sociais e manifestações contrários ao governo de Jango. Jango. Em 31 de março de 1964, os militares tomaram o poder e passaram a comandar o Brasil. O general Humberto de Alencar Castelo Branco assumiu a Presidência da República. Apesar de seu discurso de posse estar voltado para a promessa de defender a democracia do país, seu governo foi marcado por medidas autoritárias. Dissolveu os partidos políticos e acabou com as eleições diretas para presidente. Como a antiga constituição já não atendia aos anseios do Regime Militar, em 1967 foi promulgada uma nova Constituição, moldada aos interesses militares. Arthur da Costa e Silva assumiu o governo em 1967 sob protestos e insatisfação popular. popular. Os estudantes da União Nacional Nacional de Estudantes (UNE) – 62 –
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organizaram manifestações e passeatas demonstrando o seu repúdio ao controle autoritário instalado no país. Em Minas Gerais e São Paulo, operários entraram em greve. Um clima de guerrilha urbana assombrava o governo, que tomou uma medida radical para tentar conter os insatisfeitos. Em 1968, foi instituído o Ato Institucional Número 5 (AI-5), o mais duro e repressivo de todos os atos. Com o auge da repressão, reforçou-se a ideia de nacionalismo. Não muito diferente do que já havia acontecido durante o Estado Novo, esse governo militar ditatorial apropriou-se de algumas disciplinas escolares para tentar controlar a população e condicioná-la aos seus interesses. A disciplina de Educação Física, velha conhecida do Ministério de Guerra, foi novamente utilizada para treinar a população à obediência, mas, também, para afastá-la da vida política. A lógica era que um jovem que estivesse envolvido com treinos e atividades desportivas não teria tempo para engajar-se em movimentos de esquerda. A disciplina de Educação Moral e Cívica também foi voltada para a dominação das massas. Cunha e Góes nos trazem uma listagem li stagem dos objetivos dessa disciplina, pautada nas “tradições nacionais”. Vejamos: Vejamos: a. a defesa do princípio democrático, por meio meio da preser-vação do espírito religioso, da dignidade da pessoa humana e do amor à liberdade com responsabilidade, sob a inspiração de Deus; b. a preservação, preservação, o fortalecimento e a projeção dos valores espirituais e éticos da nacionalidade; c. o fortalecimento fortalecimento da unidade nacional nacional e do sentimento sentimento de solidariedade humana; d. o culto à Pátria, Pátria, aos seus seus símbolos, tradições, instituições, e aos grandes vultos de sua história; e. o aprimoramento aprimoramento do caráter, caráter, com apoio na moral, na dedicação à família e à comunidade; f. a compreensão compreensão dos direitos e deveres dos brasileiros brasileiros e o conhecimento da organização sociopolítico-econômica do País; g. o preparo preparo do cidadão para o exercício exercício das atividades cívicas, com fundamento na moral, no patriotismo e na ação construtiva visando ao bem comum; h. o culto da obediência à lei, da fidelidade ao trabalho e da integração da comunidade (CUNHA; GÓES, 2002, p. 73).
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História, Filosofa e Sociologia da Educação
A disciplina seria ministrada do ensino primário ao ensino superior e pós-graduação (no ensino superior teria o nome de Estudos de Problemas Brasileiros). A disciplina era uma mistura do catolicismo conservador, do movimento reacionário e dos ideários nacionalistas. De 31 de agosto a 30 de outubro de 1969, devido à doença de Costa e Silva, o país passou a ser comandado por uma Junta Militar formada por ministros: Aurélio de Lira avares (Exército), Márcio de Sousa e Melo (Aeronáutica) e Augusto Rademaker (Marinha). Considerado o presidente mais repressivo do período do Regime, Emílio Garrastazu Médici foi eleito pela Junta Militar em 1969. Em seu mandato, que se estendeu até 1974, áreas da cultura e imprensa foram duramente censuradas. Jornais, revistas, teatros, compositores, filmes foram recriminados e proibidos de chegarem ao seu público. Foi um período bastante turbulento para o país, gerando investigações, investigações, até os dias atuais, atuais, sobre os fatos ocorridos, ocorridos, tanto pelos repressores quanto quanto pelos reprimidos. reprimidos. Igualmente é fato que a oposição ao Regime Regime Militar também fez uso da força e de atos terroristas. Em contrapartida, aconteceu o chamado “milagre econômico”, econômico”, no qual a economia do país cresceu e recursos foram investidos na infraestrutura. Grandes obras foram realizadas (como a Rodovia ransamazô-nica e a Ponte Rio-Niterói) e milhares de empregos foram gerados, No entanto, este crescimento teve um preço alto a ser pago. A dívida externa do país cresceu muito e os prejuízos arrastaram-se por vários anos. Francisco Filho (2004, p. 116) nos lembra que entre 1960 e 1970 o número de analfabetos do país praticamente estacionou. E continua, ao afirmar que: a educação por essa época passou a ter caráter compensatório, teria de contribuir decisivamente para romper com o atraso da nossa sociedade. Foram assinados acordos internacionais para orientação do esquema a ser seguido.
Não há como afirmar que a educação privilegiava as camadas marginalizadas da sociedade, assim como, anteriormente, isso também não aconteceu. Os intuitos eram outros. Nesta época de crescimento econômico e abertura de novas vagas de emprego, o país necessitava de um grande número de mão de obra especializada. Foi neste contexto que o tecnicismo ganhou força. – 64 –
Educação no Brasil: de 1930 ao Regime Militar
O regime político implantado em 1964 veio reforçar o desejo de aceleramento da economia do país, aumentando o capitalismo e consolidando uma sociedade urbano-industrial que já vinha sendo delimitada del imitada pelo “milagre “milagre econômico”. Neste sentido, Ferreira Junior e Bittar (2008) afirmam que o projeto de educação que aconteceu durante o Regime Militar estava intrinsecamente ligado à economia brasileira. Os autores ainda ressaltam que: na esteira desse processo, o regime militar implantou as reformas educacionais de 1968, a Lei n. 5.540, que reformou a universidade, e a de 1971, a Lei n. 5.692, que estabeleceu o sistema nacional de 1º e 2º graus, pois ambas tinham como escopo estabelecer uma ligação orgânica entre aumento da eficiência produtiva do trabalho e a modernização autoritária das relações capitalistas de produção. Ou seja, depois damaterialização dessas diretivas no âmbito educacional. A sucessão dos fatos surgiu a seguinte linha do tempo: Plano de Ação Econômica do Governo (1964-1966), Plano Decenal deDesenvolvimento Econômico e Social (1967-1976), Programa Estratégico de Desenvolvimento (1968-1970), ReformaUniversitária ReformaUniversitária (1968) e Lei de Diretrizes e Bases para o Ensinode 1º e 2º graus (1971). Ou seja: no contexto da estratégiade crescimento acelerado e autoritário do capitalismo brasileiro, adotada duramente no Regime militar, a educaçãoseguia a lógica dos interesses interesses econômicos (FERREIRAJUNIOR; BIAR, BIAR, 2008, p. 340-341).
Seguindo esta lógica, o governo trocava os políticos pelos técnicos nos ministérios. Havia o anseio de transformar o país em um estado de “grande potência” e, para tanto, a administração começou a ser comparada com a de uma grande empresa, em que os técnicos especialistas assumiriam os papéis antes destinados aos políticos. Na educação, seguindo estes mesmos princípios, os tecnocratas (como ficaram conhecidos esses técnicos) aplicavam a “teoria do capital humano”. De acordo com esta teoria, a educação era um bem de consumo, ou seja, seus valores estavam ligados ao caráter econômico. Esta relação direta entre educação e economia acontecia “na medida em que atribuía a primeira a capacidade de incrementar a produtividade da segunda. Portanto, a educação deveria ser condicionada pela lógica que determinava o crescimento econômico da sociedade capitalista” (FERREIRA JUNIOR; BIAR, 2008, p. 344). Com um discurso unilateral, a educação era posta como a atividade capaz de “maximizar a produtividade do PIB, independente da dis– 65 –
História, Filosofa e Sociologia da Educação
tribuição da renda nacional”, no entanto, podemos dizer que esta lógica de ação pretendida pelos tecnocratas do governo fracassou. al fracasso ocorreu, pois, apesar de tentar criar um grupo de mão de obra integrado ao sistema produtivo, não conseguiu modificar a realidade brasileira de analfabetismo (FERREIRA JUNIOR; BIAR, 2008, p. 350-351). Ensinava-se pouco e mal. À população em geral eram oferecidas noções básicas de uma formação técnica. Em contrapartida, os índices de analfabetismo não baixavam satisfatoriamente e a grande massa do povo continuava sem acesso ao universo de um conhecimento mais profundo e libertador. Durante este período foram promulgadas duas importantes leis educacionais: a Reforma Universitária de 1968 e a Lei n. 5.692/71, que fixou a Lei De Diretrizes e Bases para o Ensino de 1º e 2º Grau. Saiba mais
A Teoria do Capital Humano surgiu em meados dos anos 50 do século XX, nos Estados Unidos. Seu autor, Theodore W. Schultz, dizia que o trabalho humano hu mano realizado por meio da qualificação adquirida pela educação ampliava a produção econômica.
O contexto do Regime Militar fez aflorar vários movimentos de contestação entre professores e alunos do ensino superior; por outro lado, em alguns casos, as Universidades também colaboraram com o governo, cedendo seus professores para a formação do quadro dosMinistérios, por exemplo. A União Nacional dos Estudantes (UNE) ganhava força ao lutar por seus direitos e reivindicar mais vagas e verbas; assim, os confrontos com o exército tornaram-se cada vez mais frequentes. De acordo com Sousa (2008, p. 119): Na tentativa tentativa de minimizar os descontentamentos, o governo governo militar firmou vários acordos com os norte-americanos, por intermédio da Agency for Internacional Internacional Development Development dos Estados Unidos (Usaid). Devido a esses acordos, foi constituída a Equipe de Assessoria de Planejamento do Ensino Superior (EAPES), que em 1968, produziria um documento sobre as reais carências da área educacional brasileira, apontando soluções. O encaminhamento
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Educação no Brasil: de 1930 ao Regime Militar
dado ao Ensino Superior era essencialmente privatizante e elitista, tendo em vista que a partir dos anos 1960 o Estado passou a ter a iniciativa privada como parceira na oferta de ensino superior. Então, a política de educação superior começou a adquirir contornos em que a diferenciação entre o público e o privado tendeu a ser frágil e diluída, em virtude da confluência de alguns fatores.
Como visto, o ensino superior estava abrindo mais ainda as suas portas para as instituições particulares. As vagas das universidades particulares deveriam atender aos alunos oriundos das classes menos favorecidas que não conseguiriam entrar nas universidades públicas. Além disso, as preocupações estavam voltadas para o mercado de trabalho. Como lembra Germano (1994), a reforma do ensino universitário visava: 1) Controle político e ideológico da educação escolar, em todos os níveis [...] 2) Estabelecimento de uma relação direta e imediata, segundo a “eoria do Capital Humano”, entre educação e produção capitalista e que aparece de forma mais evidente na reforma do ensino do 2° grau, através da pretensa profissionalização. 3) Incentivo à pesquisa vinculada a acumulação de capital. 4) Descomprometimento com o financiamento da educação pública e gratuita, negando, na prática, o discurso de valorização da educação escolar e concorrendo decisivamente para a corrupção e privatização do ensino, transformada em negócio rendoso e subsidiado pelo Estado. Dessa forma, o Regime delega e incentiva a participação do setor privado na expansão do sistema educacional e desqualifica a escola pública de 1º e 2º graus, sobretudo (GERMANO, 1994, p. 105).
A Lei n. 5.540, de novembro de 1968, e o Decreto-lei n. 464, de 11 de janeiro de 1969, fizeram fixar em lei as seguintes seguintes mudanças: 2
o ensino superior deveria funcionar preferencialmente em Universidades;
2
estimulou a privatização;
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criou a departamentalização e deu fim às cátedras;
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criou a matrícula por disciplina;
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adotou o vestibular unificado e classificatório;
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regulamentou os cursos de pós-graduação.
Segundo as afirmações de Germano (2000), verifica-se que: – 67 –
História, Filosofa e Sociologia da Educação
com efeito, a reforma assimilou certas demandas e reivindicações oriundas do movimento estudantil e de parcela do professorado. Ao mesmo tempo incorporou, embora de forma desfigurada, experiências tidas como renovadoras, como a desenvolvida na UnB. [...] A reforma acarretou, finalmente, a efetiva implantação da pós-graduação, tornando possível a pesquisa universitária, ainda que permeada de notórios limites. [...] apesar dos golpes desferidos na educação pelo Regime Militar, a reforma universitária contém, sem dúvida, elementos de renovação, sobretudo na pós-graduação. Ao mesmo tempo que o estado exercia o mais severo controle político-ideológico da educação, possibilitava, contraditoriamente, o exercício da crítica social e política, não somente ao regime político vigente no país, mas também do próprio capitalismo no âmbito universitário. Estamos nos referindo, evidentemente, à pós-graduação em Ciências Humanas. Por sua vez, isso revela que o aspecto restaurador [da ordem] não elimina a possibilidade de ocorrerem mudanças efetivas, que se tornam matrizes de novas modificações, segundo Gramsci (1977, p. 767 apud GERMANO, 2000, p. 145-148).
Com esta citação podemos concluir que o período de Regime Militar no Brasil não excluiu por completo as vozes de luta e resistência. A busca pela melhoria do ensino superior foi um exemplo disso. Outra lei importante oriunda deste período foi, como vimos, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação n. 5.692, de 11 de agosto de 1971. Ela veio fixar as normas para a educação de 1º e 2º grau. Em seu Art. 1º podemos observar o seu objetivo geral: Art. 1º. O ensino de 1º e 2º graus tem por objetivo geral proporcionar ao educando a formação necessária ao desenvolvimento de suas potencialidades como elemento de autorrealização, qualificação para o trabalho e preparo para o exercício consciente da cidadania (BRASIL, 1971, [s. p.]).
A lei aumenta aume ntava va a obrigat obr igatorie oriedad dadee escolar esc olar para par a oito oit o anos ano s (assim (as sim os alunos deveriam permanecer na escola dos 7 aos 14 anos) e o ano letivo deveria ter 180 dias. O ensino de 1º grau teria uma duração de oito anos e uma carga horária de 720 horas anuais. Esse nível era obrigatório, destinado às crianças e pré-adolescentes. Já o ensino de 2º grau podia durar 3 ou 4 anos. Os cursos cursos de três anos teriam uma carga horária de – 68 –
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2.200 horas e os de quatro seriam de 2.900 horas, destinados à formação do adolescente. Seguindo a lógica educacional do período do Regime Militar, os cursos eram destinados à inicialização ou ao ensino profissional/técnico.
Os Artigos 4 e 5 fixavam as normatizações em relação aos conteúdos curriculares e às disciplinas, determinando o seguinte: Art. 4º Os currículos currículo s de 1º e 2º graus terão um núcleo comum, obrigatório em âmbito nacional, e uma parte diversificada para atender, conforme as necessidades e possibilidades concretas, às peculiaridades locais, aos planos dos estabelecimentos estabelecimentos e às diferenças individuais dos alunos. Art. 5º As disciplinas, áreas de estudo e atividades que resultem resultem das matérias fixadas na forma do artigo anterior, com as disposições necessárias ao seu relacionamento, ordenação e sequência, constituirão para cada grau o currículo pleno do estabelecimento. §1º Observadas as normas de cada sistema de ensino, o currículo pleno terá uma parte de educação geral e outra de formação especial, sendo organizado de modo que: a. no ensino ensino de primeiro grau, grau, a parte de educação geral geral seja seja excluexclusiva nas séries iniciais e predominantes nas finais; b. no ensino de segundo grau, predomine predomine a parte de formação especial. § 2º A parte de formação especial de currículo: a. terá o objetivo de sondagem de aptidões e iniciação para o trabalho, no ensino de 1º grau, e de habilitação profissional, no ensino de 2º grau; b. será fixada, quando se destina a iniciação e habilitação profissioprofissional, em consonância com as necessidades do mercado de trabalho local ou regional, à vista de levantamentos periodicamente renovados (BRASIL, 1971, [s. p.]).
Além das disciplinas comuns e da parte diversificada, a lei trouxe a inclusão das seguintes disciplinas na grade curricular: Educação Moral e Cívica, Educação Física, Educação Artística e Programas de Saúde. Sobre as disciplinas comuns, podemos observar o quadro elaborado por Romanelli (2010), que traz um resumo acerca dos conteúdos destinados ao 1º e 2º grau. – 69 –
História, Filosofa e Sociologia da Educação
Quadro 3 1º grau Núcleo
2º grau
Atividades
Áreas de estudo
Disciplinas
1ªs, 2ªs, 3ªs, 4ªs e 5ªs
6ªs, 7ªs e 8ªs.
1ªs, 2ªs, 3ªs e 4ªs.
1. Comunicação 1. Comunicação e Expressão e Expressão
1. Língua Portuguesa
2. Estudos Sociais
1. Integração Social
2. Estudos Sociais
2. Iniciação às Ciências
1. Matemática
3. Ciências
2. Ciências
1. Língua Portuguesa 2. Literatura Brasileira 1. História 2. Geografia 3. Organização Social e Política Brasileira 1. Matemática 2. Ciências Físicas e Biológicas
Fonte: Romanelli (2010, p. 253).
As disciplinas de História, Organização Organização Social e Política Política Brasileira, Educação Moral e Cívica e a Educação Física colaboraram para a formação do cidadão almejado pelo governo ditatorial. O ensino de 1º grau, mas, principalmente, o de 2º grau, procurava formar técnicos, ou seja, profissionais de áreas específicas que formariam uma grande massa de trabalhadores não graduados. A esses trabalhadores restaria uma remuneração baixa, o que encorpava o número de trabalhadores, mas não onerava os empregadores, seguindo a lógica do capitalismo e da eoria do Capital Humano. Humano. Em 1974, o General Ernesto Geisel tornou-se o novo presidente em pleno fim do “milagre econômico”. econômico”. Os empréstimos estrangeiros diminuíram devido à recessão mundial e à crise do petróleo. Vendo-se neste cenário, Geisel anunciou que começaria uma lenta e gradual abertura política no país (o que gerou insatisfação por parte dos militares – 70 –
Educação no Brasil: de 1930 ao Regime Militar
linha dura). Uma das medidas que indicou a abertura foi o fim do AI-58 e a restauração dos habeas corpus . A democracia estava chegando aos poucos. Entre 1979 e 1985 o Brasil teve o seu último presidente no Regime Militar, o general João Baptista Figueiredo. Ele continuou o processo de abertura política realizando a Lei da Anistia; também o pluripartidarismo foi reestabelecido. Enquanto a recessão e a inflação aumentavam, novos partidos e sindicatos começaram a ganhar poder na política nacional. O movimento “Diretas Já”, lançado em 1984, encontrou milhares de adeptos e exigiu as eleições diretas para presidente. Em 1985, por meio de uma eleição indireta, o Colégio Eleitoral elegeu ancredo ancredo Neves como presidente do país; porém, ele veio a falecer antes da posse e seu vice, José Sarney, assumiu o governo como o primeiro presidente do período democrático após o Regime Militar. Da Teoria para a prát ica Durante o período de Getúlio Vargas e do Regime Militar, a disciplina de Educação Física era vista como uma preparação civil-militar. Os jovens jov ens est estud udant antes es era eram m con consid sidera erados dos sol soldad dados os qu quee dev deveri eriam am ser tre treina inados dos e condicionados para defender a sua nação. A disciplina de Educação Moral e Cívica também era um meio de interferência do Estado dentro das escolas. Vultos nacionais, símbolos e hinos eram ensinados nas escolas com o objetivo de implantar o sentimento nacionalista, obrigando obrigando uma dedicação patriota de todos os alunos/cidadão alunos/cidadãos. s. Quando você estudou, como eram ministradas as aulas de Educação Física? Atualmente, como esta disciplina é vista pelo governo, professores e alunos?
O AI-5 (Ato Institucional n. 5) foi instituído em 13 de dezembro dezembro de 1968, durante o governo do presidente Costa e Silva, e vigorou até dezembro de 1978. Ele ampliava o poder do presidente e contrariava várias garantias da constituição brasileira. Suas determinações fizeram com que a censura e a repressão exercida durante o período do Regime Militar aumentassem. O seu 5º Art. suspendia direitos políticos e o Art. 10 suspendia a garantia de habeas corpus no no caso de crimes políticos. A imprensa, o teatro, o cinema e a música foram fora m rigorosamente censurados e punidos.
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História, Filosofa e Sociologia da Educação
Faça uma breve pesquisa em sit sites es, livros ou revistas especializadas no tema, para verificar se aconteceram mudanças ou não na forma de pensar e executar esta disciplina. Se desejar, pode realizar uma visita a uma escola, para conversar com professores e alunos da área.
O século XX representou profundas transformações na sociedade brasileira. As mudanças no cotidiano das pessoas influenciaram, inclusive, a educação. A sociedade, anteriormente rural, passou a viver na cidade e a trabalhar na área urbana. O ensino básico começou a ser ofertado gradativamente para a população e o analfabetismo começou a ser “combatido” combatido” como um mal que assolava a nação. Durante este período, o país passou por dois momentos ditatoriais, nos quais o nacionalismo foi embutido na mentalidade da sociedade por meio de propagandas, ações governamentais e até das disciplinas escolares (como Educação Física e Educação Moral e Cívica). As leis educacionais, durante o Regime Militar, Militar, estavam voltadas para a eoria do Capital Humano e seguiam a lógica de ensinar para aumentar a produtividade do país. Assim, por meio de pouca formação técnica, profissionais foram “preparados” “preparados” para ser mão de obra especializada, sem, necessariamente, passar pelo ensino superior.
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4 Educação no Brasil: o período de redemocratização Alicia Mariani Mariani Lucio Landes Landes da Silva
O� ������� � as expectativas, com o fim do Regime Militar, eram muito grandes. O país estaria liberto da censura, opressão e repressão para entrar em um período per íodo de redemocratização, segundo o qual o povo poderia participar dos rumos da política nacional. No entanto, os desafios a serem enfrentados eram igualmente grandes: inflação e dívida externa estavam entre eles. C��� � ������ modelo político já estava ultrapassado, a herança de sua legislação, consequentemente, também necessitava ser trocada. Neste momento, os intelectuais e políticos de direita e esquerda reuniram-se para discutir a nova Constituição Brasileira, que seria aprovada em 1988. Não encaramos a promulgação da Constituição como rupturas com as amarras do passado, no entanto, foram grandes os avanços proporcionados por ela, inclusive no tocante à educação.
História, Filosofa e Sociologia da Educação
A década de 1990 viria permeada por uma educação pautada na lógica do mercado. Ou seja, concordamos com a afirmação dos autores que aqui serão apresentados de que a Lei de Diretrizes e Bases, aprovada em 1996, estava pautada na lógica mercadológica, na qual a educação serve para aumentar a produtividade da economia.
4.1 Breve contexto histórico e educacional Como já afirmamos no capítulo anterior, a partir de 1979 começou, gradativamente, a abertura política do país. Intelectuais, artistas e políticos engajaram-se para que a democracia voltasse a ter seu devido lugar no Brasil. Em 1984, grandes comícios foram realizados em favor das “Diretas Já” (movimento que lutava pelas eleições diretas e pelo voto secreto). Em 1985, foi eleito, de maneira indireta, o presidente ancredo ancredo Neves, que faleceu antes de assumir o governo. Seu vice, José Sarney, Sarney, assumiu a presidência da república em meio às turbulências da transição democrática, juntamente com a alta inflação e as constantes greves. Nesta época, vários partidos foram reorganizados e legalizados, inclusive os de cunho comunista. Uma nova Constituição para o país foi promulgada, em 1988, e, apesar de trazer algumas novidades, manteve-se, em parte, conservadora em certos “direitos antigos e obsoletos” (FRANCISCO FILHO, 2004, p.133). Em 1989, foi realizada a tão esperada eleição direta para presidente. Nesta eleição, o ex-prefeito de Maceió e ex-governador de Alagoas, Fernando Collor de Melo venceu o segundo turno com 34 milhões de votos. Com seu tipo carismático, de postura jovem e atlética (assim vendida pelos meios de comunicação) tentou convencer a população de que seria um “caçador de marajás”, ou seja, que iria conseguir acabar com a corrupção no país. Collor era adepto do neoliberalismo, bloqueou aplicações financeiras e depósitos bancários por dezoito meses, investiu na importação e congelou salários e preços. Suas medidas prejudicaram milhares de brasileiros, gerando um clima de insatisfação. No tocante à educação, em 1991, Collor lançou os Centros Integrados de Apoio à criança, os CIACs, baseado no projeto dos Centros Integrados – 74 –
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de Educação Pública (CIEPs), que já existiam no Rio de Janeiro. Esses centros faziam parte do “Projeto Minha Gente”. inham oobjetivo de atender a crianças e adolescentes nos aspectos que envolvessem educação em tempo integral, saúde, lazer, cursos, etc. Foram construídas cerca de 5 mil escolas neste formato. Houve várias críticas ao investimento, que chegou a dois milhões de dólares por unidade. Muitos defendiam que seria mais viável investir este dinheiro nas escolas já existentes. Com o fim do governo Collor, o ministro Murílio Hingel continuou o projeto com algumas mudanças. A partir de 1992, sua s ua nomenclatura foi mudada para Centros de Atenção Integral à Criança (CAICs). Figura 1- Centro de Atenção a Criança e ao Adolescente (CAIC), que foi implantado em 1992. J R R F U
O fato de não ter a maioria parlamentar e não estabelecer um bom diálogo com o Congresso Nacional, Nacional, fez com o governo de Fernando Collor começasse a se s e desestabilizar. Escândalos políticos envolvendo seu irmão, Pedro Collor, e o político Paulo Cesar Faria foram investigados por uma CPI (Comissão Parlamentar de Inquérito). Era o início do fim do governo Collor. – 75 –
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Para completar a situação, milhares de pessoas descontentes com seu governo (em sua maioria estudantes) foram para as ruas, em um movimento chamado “caras pintadas”, e exigiram o impeachment do presidente. Em 1992, o presidente Collor renunciou ao cargo e seu vice, Itamar Franco, assumiu a presidência. Itamar Franco realizou, em seu governo, uma significativa mudança para a economia brasileira. Em 1994, juntamente com o Ministro da Fazenda Fazenda Fernando Henrique Cardoso, realizou o Plano Real, o que gerou, além de outras medidas, a adoção da atual moeda brasileira, o Real. Na época a moeda em vigência era o Cruzeiro Real. Respeitado por sua intelectualidade e por sua participação no Plano Real, Fernando Henrique Cardoso ganhou as eleições para a presidência da república em 1994. Foi em seu governo que mudanças mais profundas aconteceram na educação brasileira. Um exemplo é a Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB) n. 9.394, de 1996, como veremos melhor a seguir. Frigotto e Ciavatta analisam o governo de Fernando Henrique Cardoso e definem seu projeto neoconservador da seguinte maneira: o conjunto de pressupostos assumidos e partilhados pelo projeto econômico-social do Governo Cardoso é extraído da cartilha neoliWashington e pode ser resumido nos seguintes: beral do Consenso de Washington primeiramente que acabaram as polaridades, a luta de classes, as ideologias, as utopias igualitárias e as políticas de Estado nelas baseadas. A segunda ideia-matriz é a de que estamos em um novo tempo – da globalização, da modernidade competitiva, de reestruturação produtiva, de reengenharia –, do qual estamos defasados e ao qual devemos ajustar-nos. Este ajustamento deve dar-se não mediante políticas protecionistas, intervencionistas ou estatistas, mas de acordo com as leis do mercado globalizado, mundial (FRIGOO; (FRIGOO; CIAVA CIAVAA, A, 2003, p. 105-106).
O governo passou a ter um caráter privado. O país abandonou o Regime civil-militar e passou a ser regido pelo Regime da ideologia do mercado (FRIGOO; CIAV CIAVAA, 2002). Este pensamento pen samento mercadológ me rcadológico ico refletiu-se reflet iu-se na educação em uma perspectiva pedagógica “individualista, dualista e fragmentária, coerente com o ideário da desregulamentação, flexibilização e privatização e com o desmonte dos direitos sociais, ordenados por uma uma perspectiva de compromisso social coletivo” (FRIGOO; CIAVAA, 2003, p. 108). – 76 –
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Não casualmente, os Parâmetros Curriculares Nacionais tratam de habilidades e competências como mecanismos de avaliação. Apesar de certas turbulências, neoliberalismo e outros outros fatores, Fernando Fernando Henrique conseguiu (aparentemente) manter um governo tranquilo ao ponto de conseguir a reeleição e governar o país por mais quatro anos. De forma geral, geral, a década de 1990 foi um período em que o Brasil foi “pressionado” a superar as altas taxas de analfabetismo, já que, naquele momento, ainda era um dos países com a maior taxa de cidadãos analfabetos. Foi nesta década, também, que o país estreitou seus laços com os interesses do Banco Mundial, retomando a teoria do capital humano e dando atenção às relações de custo/benefício. Ou seja, a educação deveria diminuir a pobreza e, em contrapartida, aumentaria a produtividade, preparando trabalhadores (FRIGOO; CIAV CIAVAA 2003, p. 100). 100 ).
4.2 Constituição de 1988 e a educação A Constituição de 1988 trouxe, em sua redação, um avanço em relação às anteriores, pois, em seu texto, ela declarou o direito à educação. No entanto, a permanência na escola e as condições para tal ainda foram pontos esquecidos. Reportando-se ao momento histórico, lembramos que a sociedade dos anos 80 do século XX estava em busca de uma democratização. A Constituição refletia este desejo de romper com as amarras do militarismo e promover a plena cidadania, porém, os laços com o passado político conservador eram muito fortes. Com a tentativa de ser a mais democrática possível, a lei apresentou seu Art. 205 afirmando que “a educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho” (BRASIL, 1988, [s. p.]). Prosseguindo o seu discurso, o Art. 206 trouxe as finalidades a que se destina a educação brasileira. Em seu texto podemos observar os intuitos legais: I – igualdade de condições para o acesso e permanência na escola; II – liberdade de aprender, aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber;
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III – pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas, e coexistência de instituições públicas e privadas de ensino; IV – gratuidade do ensino público em estabelecimentos oficiais; V – valorização dos profissionais da educação escolar, garantidos, na forma da lei, planos de carreira, com ingresso exclusivamente por concurso público de provas e títulos, aos das redes públicas (Redação dada pela Emenda Constitucional n. 53, de 2006); VI – gestão democrática do ensino público, na forma da lei; VII – garantia de padrão de qualidade; VIII – piso salarial profissional nacional para os profissionais da educação escolar pública, nos termos de lei federal (Incluído pela Emenda Constitucional n. 53, de 2006) (BRASIL, 1988, [s. p.]).
Reflita Apesar de em seu texto lermos os termos “igualdade”, “liberdade”, “valorização”, “qualidade”, sabemos que a educação brasileira ainda tem um longo caminho para chegar ao ideário da Constituição. Na prática, os índices ainda revelam um grande número de pessoas fora da escola, sem condições de acesso ou permanência. A legalização já aconteceu em 1988, esperamos agora por sua realização plena, ainda que pareça utopia.
Como lembra Oliveira (1999), os principais mecanismos que reforçam o direito à educação estão presentes no Art. 208. Conforme o texto original de 1988, o: I – ensino fundamental, obrigatório e gratuito, inclusive para os que a ele não tiveram acesso na idade própria; II – progressiva extensão da obrigatoriedade e gratuidade ao ensino médio. III – atendimento educacional especializado aos portadores de deficiência, preferencialmente na rede regular de ensino;
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IV – atendimento em creche e pré-escola às crianças de zero a seis anos de idade; V – acesso aos níveis mais elevados do ensino, da pesquisa e da criação artística, segundo a capacidade de cada um; VI – oferta de ensino noturno regular, adequado às condições do educando; VII – atendimento ao educando, no ensino fundamental, através de programas suplementares de material didático-escolar, transporte, alimentação e assistência à saúde (BRASIL, 1988, [s. p.]).
Podemos destacar alguns comentários em relação a estes incisos do Art. Art . 208: 20 8: 2
2
2
1º O ensino médio se tornou gratuito com a Emenda Constitucional n. 14, de 1996, porém, ainda não era considerado obrigatório. Somente em 2009 uma emenda constitucional aprovou a obrigatoriedade gradativa do Ensino Médio, no entanto, e ntanto, os governos têm até 2016 para fazer as adequações; 2º Ainda não temos um ensino completamente especializado para receber portadores de deficiências na rede regular de ensino. Em determinados casos esses alunos acabam sendo excluídos, ao invés de incluídos, já que nem todas as instituições de ensino possuem profissionais qualificados e ambiente planejado e adequado para receber esses alunos; 3º Conflitos entre municípios e estados trazem trazem prejuízos para os alunos no que se refere ao direito de transporte, alimentação e assisassi stência à saúde. A precariedade desses serviços, em certas cidades brasileiras, estampam diariamente os noticiários.
Na mesma perspectiva de melhora da qualidade de ensino, o Art. 214 trazia a meta de estabelecer “o plano nacional de educação, de duração plurianual, visando à articulação e ao desenvolvimento do ensino em seus diversos níveis e à integração das ações do Poder Público” (BRASIL, 1988, [s. p.]). Esse plano estaria responsável pela: I – erradicação do analfabetismo; II – universalização do atendimento escolar; III – melhoria da qualidade do ensino;
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História, Filosofa e Sociologia da Educação
IV – formação para o trabalho; V – promoção humanística, científica e tecnológica do País (BRASIL, 1988, [s. p.]).
Compreendemos que essas finalidades do Plano Nacional de Educação ainda vêm sendo aos poucos conquistadas. Apesar das taxas terem diminuído, o analfabetismo não foi “erradicado” e nem todos têm um ensino de qualidade, entre outras questões. Os demais artigos da Constituição estão listados a seguir e são comentados para que possamos conhecer de forma geral todos os pontos relacionados à educação. Vejamos. Quadro 1 Comentário/ Complemento
Artigo
Texto legal
207
“As universidades gozam de autonomia didático-científica, administrativa e de gestão financeira e patrimonial, e obedecerão ao princípio de indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão.” “O ensino é livre à iniciativa privada, atendidas as seguintes condições:
209
I – cumprimento das normas gerais da educação nacional; II – autorização e avaliação de qualidade pelo Poder Público.”
210
“Serão fixados conteúdos mínimos para o ensino fundamental, de maneira maneira a assegurar formação básica comum e respeito aos valores culturais e artísticos, nacionais e regionais.”
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As universidades podem contratar seus próprios professores dentro do processo da lei. O ensino superior é algo novo dentro das Constituições.
Obrigação das instituições privadas de se submeterem ao Poder Público.
O ensino religioso aparece como disciplina facultativa. Afirma-se a língua portuguesa como a língua oficial ensinada nas escolas, salvo em comunidades indígenas que têm liberdade para utilizar a língua materna e seus próprios métodos de aprendizagem.
Educação no Brasil: o período de redemocratização redemocratização
Artigo
Comentário/ Complemento
Texto legal
211
“A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios organizarão em regime de colaboração seus sistemas de ensino.”
Com a redação atualizada em 2006 pela Emenda Constitucional n. 14, os municípios ficam responsáveis pela educação infantil e ensino fundamental e os estados e Distrito Federal atuarão no ensino fundamental e médio.
212
“A União aplicará, anualmente, nunca menos de dezoito, e os Estados, o Distrito Federal e os Municípios vinte e cinco por cento, no mínimo, da receita resultante de impostos, compreendida a proveniente de transferências, na manutenção e desenvolvimento do ensino.”
Fixou que o investimento da União seria de 18% e dos Estados, Municípios e Distrito Federal seriam de 25% da receita de impostos.
“Os recursos públicos serão destinados às escolas públicas, podendo ser dirigidos a escolas comunitárias, confessionais ou filantrópicas, definidas em lei, que:
213
I – comprovem finalidade não lucrativa e apliquem seus excedentes financeiros em educação; II – assegurem a destinação de seu patrimônio a outra escola comunitária, comunitária, filantrópica ou confessional, ou ao Poder Público, no caso de encerramento de suas atividades.”
Fonte: BRASIL (1988, [s. p.]).
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Os recursos não são de exclusividade das escolas públicas.
História, Filosofa e Sociologia da Educação
A Constituição foi um avanço para a sociedade brasileira em muitos aspectos. Na área da educação ela significou a chamada de atenção e a responsabilização do Estado em questões antes deixadas à margem.
A próxima próxima Lei específi específica ca sobre sobre a educaçã educaçãoo seria seria promulg promulgada ada oito anos anos mais mais tarde, em 1996. É o assunto que abordaremos na próxima seção.
4.3 Lei de Diretrizes e Bases da Educação Com a promulgação da Constituição de 1988, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação de 1961 foi considerada em desuso e, por isso, uma nova lei precisava atender aos anseios do momento histórico presente. Em 1992, o senador Darcy Ribeiro apresentou um projeto de reformulação da educação brasileira, destinado a fixar diretrizes e bases para a educação nacional. No entanto, esse projeto seria sancionado pelo presidente somente oito anos depois, em 20 de dezembro de 1996, sob o n. 9.394. Estudiosos como Otranto, Frigotto e Ciavatta criticam a forma como a nova LDB foi promulgada, já que veio a atender mais à lógica mercadológica do governo do que à ideologia dos educadores. Ainda em 1996, pouco antes da lei ser aprovada, Otranto (1996) fez a seguinte crítica: assistimos, então, perplexos, a um confronto inusitado, entre um pro jeto que é fruto de seis anos de amplos debates, debates, que se não é o ideal de todos, pelo menos traduz a reivindicações de muitos, com um outro de autor único, que só recentemente se submeteu a pouquíssimos debates, apenas sob grande pressão de outros parlamentares e dos segmentos organizados da sociedade civil ci vil (ORANO, (ORANO, 1996, [s. p.]).
A autora referia-se à comparação entre o substitutivo Cid Sabóia e o substitutivo Darcy Ribeiro. A primeira sugestão da nova Lei Cid Sabóia já tramitava no Congresso há mais tempo e havia sido submetida à discussão e opinião de diversos intelectuais da educação, enquanto a outra proposta – Darcy Ribeiro – retirava do Estado grande parte de sua responsabilidade. – 82 –
Educação no Brasil: o período de redemocratização redemocratização
Mesmo não representando as reais necessidades da educação no Brasil, a Lei Darcy Ribeiro foi promulgada no final de 1996. Neste mesmo sentido, acredita-se que até 1994 havia uma discussão democrática de construção da Lei, no entanto, a partir de 1995 a mudança ocorrida no Congresso e no Senado, bem como a “coalizão conservadora que elegeu Fernando Henrique Cardoso deram novos rumos para os projetos de lei, em disputa no legislativo nacional, que estavam debatendo a nova LDB” (ABREU, 2011, p. 56). A nova nova LDB trouxe inovações em relação às leis anteriores, uma uma delas foi a inclusão da educação infantil (creches e pré-escolas) na educação básica. Ela está baseada no princípio de direito universal de educação para todos – apesar de sabermos que, na prática, isso ainda é algo aguardado. Após sua redação inicial, inicia l, sua estrutura estru tura ficou com 92 9 2 artigos a rtigos organizaorgani zados da seguinte forma: ítulo ítulo I – Da educação; ítulo ítulo II – Dos Princípios e Fins da Educação Nacional; ítulo ítulo III – Do Direito à Educação e do Dever de Educar; ítulo ítulo IV – Da Organização da Educação Nacional; ítulo ítulo V – Dos Níveis e das Modalidades de Educação e Ensino; Capítulo I – Da Composição dos Níveis Escolares; Capítulo II – Da Educação Básica; Seção I – Das Disposições Gerais; Seção II – Da Educação Infantil; Seção III – Do Ensino Fundamental; Seção IV – Do Ensino Médio; Seção V – Da Educação de Jovens e Adultos; Capítulo III – Da Educação Profissional; Capítulo IV – Da Educação Superior; Capítulo V – Da Educação Especial; ítulo VI – Dos Profissionais da Educação; ítulo ítulo VII – Dos Recursos Financeiros; ítulo ítulo VIII – Das Disposições Gerais; e ítulo ítulo IX – Das Disposições ransitórias.
Outra novidade da lei foi a divisão do ensino em dois níveis: educação básica e ensino superior. A educação básica é dividida em três etapas: educação infantil, ensino fundamental e ensino médio. O ensino fundamental f undamental é de obrigatoriedade e tem a sua oferta garantida pela lei..
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História, Filosofa e Sociologia da Educação
Santos nos fornece uma listagem das principais novidades da Lei n. 9.394/96, bem como os seus principais artigos: •
gestão democrática do ensino público e progressiva autonomia pedagógica e administrativa das unidades escolares – Art. 3º e 15;
•
ensino fundamental e gratuito – Art. 4º;
•
carga horária mínima de oitocentas horas distribuídas em duzentos dias na educação básica – Art. 24;
•
previsão de um núcleo comum para o currículo do ensino ensino funfundamental e do médio e uma parte diversificada em função das especificidades regionais e locais – Art. 26;
•
formação de docentes para atuar na educação básica de nível superior – Art. 62;
•
formação de especialistas da educação em curso superior de pedagogia ou pós-graduação – Art. 64;
•
a União deve gastar, no mínimo, 18%, e os estados estados e municípios, no mínimo, 25% de seus respectivos orçamentos na manutenção e desenvolvimento do ensino público – Art. 69;
•
o dinheiro público pode financiar escolas comunitárias, confessionais e filantrópicas – Art. 77;
•
previsão da criação criação do Plano Nacional da Educação Educação – Art. 87 87 (SANOS, 2011, p. 80).
Segundo a nova LDB, a educação infantil – primeira etapa da educação básica – está destinada às crianças de 0 a 5 anos, sendo atendidas integralmente sob a responsabilidade do município. As orientações da lei referentes à educação infantil estão expressas em seus Arts. 29, 30 e 31, como podemos ler a seguir: Art. 29 A educação infantil, primeira etapa da educação básica, tem como finalidade o desenvolvimento integral da criança até seis anos de idade, em seus aspectos físico, psicológico, intelectual e social, complementando a ação da família e da comunidade. Art. 30 A educação educação infantil será oferecida em: I – creches, creches, ou entidades equivalentes, para crianças de até três anos de idade; II – pré-escolas, para as crianças de quatro a seis anos de idade. Art. 31 31 Na Na educação educação infantil infantil a avaliação avaliação far-se-á far-se-á mediante mediante acompanh acompanhaamento e registro do seu desenvolvimento, sem o objetivo de promoção, mesmo para o acesso ao ensino fundamental (BRASIL, 1996, [s. p.]).
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Educação no Brasil: o período de redemocratização redemocratização
A educação infantil acaba sendo um espaço de ensinar e educar, educar, atendendo, em parte, às necessidades da realidade dos trabalhadores brasileiros. Muitas famílias que trabalham precisam de um local para deixar suas crianças em segurança. Até certo ponto, as creches e pré-escolas também realizam essa função de cuidar da criança. O ensino fundamental, de caráter obrigatório e direito de todo cidadão, ficou organizado de maneira que o aluno tenha direito a 800 horas de aula, distribuídas, no mínimo, em 200 dias letivos; a carga horária mínima é de quatro horas diárias, sendo ampliadas para período integral, conforme possibilidade do estabelecimento; ensino ministrado na língua portuguesa, assegurando, contudo, contudo, às comunidades indígenas o aprendizado de sua língua materna; que o ensino seja presencial, ocorrendo a distância somente em situações emergenciais ou em casos de complementação do estudo. Estas orientações legais sobre o ensino fundamental estão descritas a seguir, nos Arts. 32 e 34. Art. 32º O ensino fundamental, com duração mínima de oito o ito anos, obrigatório e gratuito na escola pública, terá por po r objetivo a formação básica do cidadão, mediante: I – o desenvolvimento da capacidade de aprender, tendo como meios básicos o pleno domínio da leitura, da escrita e do cálculo; II – a compreensão do ambiente natural e social, do sistema político, da tecnologia, das artes e dos valores em que se fundamenta a sociedade; III – o desenvolvimento da capacidade de aprendizagem, tendo em vista a aquisição de conhecimentos e habilidades e a formação de atitudes e valores; IV – o fortalecimento dos vínculos de família, dos laços de solidariedade humana e de tolerância recíproca em que se assenta a vida social. § 1º É facultado aos sistemas de ensino desdobrar o ensino fundamental em ciclos. § 2º Os estabelecimentos que utilizam progressão regular por série podem adotar no ensino fundamental o regime de progressão continuada, sem prejuízo da avaliação do processo de ensino-aprendizagem, observadas as normas do respectivo sistema de ensino. § 3º O ensino fundamental regular será ministrado em língua portuguesa, assegurada às comunidades indígenas a utilização de suas línguas maternas e processos próprios de aprendizagem.
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História, Filosofa e Sociologia da Educação
§ 4º O ensino fundamental será presencial, sendo o ensino a distância utilizado como complementação da aprendizagem ou em situações emergenciais. Art. 34º A jornada escolar no ensino fundamental incluirá pelo menos quatro horas de trabalho efetivo em sala de aula, sendo progressivamente ampliado o período de permanência na escola. § 1º São ressalvados os casos do ensino noturno e das formas alternativas de organização autorizadas nesta Lei. § 2º O ensino fundamental será ministrado progressivamente em tempo integral, a critério dos sistemas de ensino (BRASIL, 1996, [s. p.]).
Em 2006, com a Lei n. 11.274, o ensino fundamental passou de oito para nove anos de obrigatoriedade. As crianças passaram a entrar no ensino fundamental com um ano de antecedência, aos seis anos de idade. Os municípios tiveram até o ano de 2010 para iniciar esta transição, transi ção, assegurando às crianças o direito a um ano a mais de aprendizagem. Na antiga disposição, o aluno estudaria da 1ª à 8ª série. Com a nova organização, entrou em vigor outra nomenclatura: os alunos estudam do 1º ao 9º ano. udo isso demandou uma corrida dos municípios e estados para organizarem toda a proposta de ensino para os nove anos, ampliando o atendimento, contratando profissionais e arrumando espaço físico para atender à nova demanda. Este processo, apesar de iniciado, ainda está em andamento. O ensino médio era uma garantia de formação rápida, visto que nem todos os estudantes vislumbravam a oportunidade de continuar seus estudos e entrar no ensino superior. Como já vimos, o contexto histórico no qual surgiu a nova LDB era pautado em uma lógica mercadológica, em que as habilidades e competências eram voltadas para a formação geral básica destinada à preparação do trabalho. As orientações da Lei foram: Art. 35. O ensino médio, etapa etapa final da educação básica, com duração mínima de três anos, terá como finalidades: f inalidades: I – a consolidação e o aprofundamento dos conhecimentos adquiridos no ensino fundamental, possibilitando o prosseguimento de estudos; II – a preparação básica para o trabalho e a cidadania do educando, para continuar aprendendo, de modo a ser capaz de se adaptar
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Educação no Brasil: o período de redemocratização redemocratização
com flexibilidade a novas condições de ocupação ou aperfeiçoamento posteriores; III – o aprimoramento do educando como pessoa humana, incluindo a formação ética e o desenvolvimento da autonomia intelectual e do pensamento crítico; IV – a compreensão dos fundamentos científico-tecnológicos dos processos produtivos, relacionando a teoria com a prática, no ensino de cada disciplina BRASIL, 1996.
Já o Art. 36 trouxe trouxe as definições do que seria estudado no Ensino Ensino Médio, Médio, vejamos: Art. 36. O currículo do ensino médio observará o disposto na Seção I deste Capítulo e as seguintes diretrizes: I – destacará a educação tecnológica básica, a compreensão do significado da ciência, das letras e das artes; o processo histórico de transformação da sociedade e da cultura; a língua portuguesa como instrumento de comunicação, acesso ao conhecimento e exercício da cidadania; II – adotará metodologias de ensino e de avaliação que estimulem a iniciativa dos estudantes; III – será incluída uma língua estrangeira moderna, como disciplina obrigatória, escolhida pela comunidade escolar, e uma segunda, em caráter optativo, dentro das disponibilidades da instituição. §1º Os conteúdos, as metodologias e as formas de avaliação serão organizados de tal forma que ao final do ensino médio o educando demonstre: I – domínio dos princípios científicos e tecnológicos que presidem a produção moderna; II – conhecimento das formas contemporâneas de linguagem; III – domínio dos conhecimentos de Filosofia e de Sociologia necessários ao exercício da cidadania cid adania (BRASIL, 1996, [s. p.]).
Assim, Assim, um ensino ensino que procura procurasse sse ofertar ofertar conhecime conhecimento nto geral geral e específico específico aumentou a demanda, o que fez com que as turmas do período noturno tivessem suas vagas ampliadas (SANOS, (SANOS, 2011, p. 90). Apesar de parecer parecer ter caráter conclusivo, conclusivo, pois “consolida “consolida”” o que foi foi apreendido no ensino fundam ental, o ensino médio apareceu como uma “preparação básica para o trabalho e a cidadania” cidadania” e base para o prosseguimento e aperfeiçoamento de estudos posteriores (BRASIL, 1996[s. p.]). – 87 –
História, Filosofa e Sociologia da Educação
Dica de Leitura Para saber mais e aprofundar as discussões e análises sobre a educação nas constituições brasileiras e LDB, leia: ABREU, D. C. Políticas públicas e legislação educacional. Curitiba: Fael, 2011. .
Quanto ao ensino superior, as orientações são de que as instituições podem ser privadas ou públicas (federais, estaduais ou municipais), desde que todas estejam registradas e credenciadas pelo Ministério da Educação. O Art. 43 da nova LDB n. 9.394/96 é o que normatiza sobre o Ensino Superior, em seu texto ele define como sendo sua finalidade: I – estimular a criação cultural e o desenvolvimento do espírito científico e do pensamento p ensamento reflexivo; II – formar diplomados nas diferentes áreas do conhecimento, aptos para a inserção, em setores profissionais, e para a participação no desenvolvimento da sociedade brasileira, e colaborar na sua formação contínua; III – incentivar o trabalho de pesquisa e investigação científica, visando o desenvolvimento da ciência e da tecnologia e da criação e difusão da cultura, e, desse modo, desenvolver o entendimento do homem e do meio em que vive; IV – promover a divulgação de conhecimentos culturais, científicos e técnicos que constituem patrimônio da humanidade e comunicar o saber através do ensino, de publicações ou de outras formas de comunicação; V – suscitar o desejo permanente de aperfeiçoamento cultural e profissional e possibilitar a correspondente concretização, integrando os conhecimentos que vão sendo adquiridos em uma estrutura intelectual sistematizadora do conhecimento de cada geração; VI – estimular o conhecimento dos problemas do mundo presente, em particular os nacionais e regionais, prestar serviços especializados à comunidade e estabelecer com esta uma relação de reciprocidade; VII – promover a extensão, aberta à participação da população, visando à difusão das conquistas e benefícios resultantes da criação cultural e da pesquisa científica geradas na instituição (BRASIL, 1996, [s. p.]).
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Educação no Brasil: o período de redemocratização redemocratização
No interior destes níveis da educação existem algumas modalidades de ensino previstas pela nova LDB para atender a situações diferenciadas, são elas: 2
educação de jovens e adultos;
2
educação profissional;
2
educação especial;
2
educação a distância (EaD). Dica de Leitura Depois de publicada, a Lei n. 9.394/96 sofreu algumas modificações em seu texto original, que podem ser verificadas no link . BRASIL. Lei n. 9.934, de 20 de dezembro de 1996. Estabelece as diretrizes e bases da educação nacional. Brasília, 20 dez. 1996. Disponível em: . Acesso em: 11 nov. 2012.
Da teoria para a prática Os Centros Integrados de Apoio à Criança – os CIACs - foram implantados a partir de 1991 pelo governo Collor. Eram baseados no projeto dos Centros Integrados de Educação Pública (CIEPs), que já existiam no Rio de Janeiro. Como já vimos no decorrer desse capítulo, a construção dos CIACs (que seriam chamados posteriormente de CAICs) foi duramente criticada por especialistas que alegaram que o investimento altíssimo poderia ter sido aplicado em instituições já existentes. Pesquise se em sua região foi construído algum CAIC e verifique qual a sua situação atual. Ainda está em funcionamento? Que ativida
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História, Filosofa e Sociologia da Educação
des são desenvolvidas no espaço construído? Que instituição mantém a parte física e humana que ali existem? Caso não exista algum em sua região, ou próximo a ela, pesquise nos sites dos Conselhos Estaduais e descubra onde ainda existe, ou existiam. Entre em contato com eles para realizar sua pesquisa.
Síntese Neste capítulo, estudamos um panorama da educação brasileira depois do fim do Regime Militar no país. Vimos um breve histórico dos primeiros governos do período da abertura política e algumas de suas realizações. Como mais significativo encontramos a Constituição de 1988 e a Lei de Bases e Diretrizes da Educação de 1996. A Constituição de 1988 foi um marco na história do país, pois estabeleceu as leis para a nova sociedade democrática. Em Em seus arts. 205 a 213, a Constituição trata da educação como (em parte) responsabilidade do Estado, aprova a obrigatoriedade gradativa do ensino médio (que está em andamento) e inclui a educação infantil e o ensino superior. Sobre a nova Lei de Diretrizes e Bases da Educação de 1996, estudiosos como Otranto (1996), Frigotto e Ciavatta (2003) afirmam que a Lei foi aprovada sem a discussão necessária dos intelectuais da educação. Na verdade, ela veio a atender mais aos interesses mercadológicos do que às reais necessidades educacionais. Podemos encerrar lembrando que taxas de analfabetismo, evasão escolar e falta de recursos destinados à educação são alguns dos problemas que os governos brasileiros ainda precisam dar conta de resolver.
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5 Educação contemporânea no Brasil Alicia Ma�iani Lucio Landes da Silva
A �������� ������������� brasileira é um desafio. Vivemos um momento de intensa transformação da sociedade como consequência da globalização e da chamada era da comunicação. Atualmente, existe uma discussão sobre o uso das tecnologias em salas de aula. Professores perguntam-se até que ponto os aparelhos tecnológicos devem fazer parte do cotidiano escolar. Alunos requerem a utilização de tais aparelhos como parte de seu material. Em certas regiões do país, professores, alunos e a população, de maneira geral, não têm acesso acesso a toda esta tecnologia. Vivemos em um mundo global e tecnológico, mas que ainda, infelizmente, não alcançou todas as regiões geográficas e classes sociais.
História, Filosofa e Sociologia da Educação
De outro lado, temos uma falta de definição metodológica. Professores misturam os métodos que receberam, enquanto estudantes, com aqueles sobre os quais foram orientados a lecionar. Quando perguntados, respondem: “eu misturo um pouco de tudo”. Realmente, o século XXI trouxe novidades e incertezas para a educação. Atreladas a este cenário, ainda vamos verificar algumas mudanças ocorridas a partir da década de 1990, como a política neoliberal, os financiamentos da educação, o mundo globalizado, a sociedade da informação e algumas leis educacionais.
5.1 Política neoliberal e agências internacionais A educação brasileira, a partir dos anos de 1990, leva a crer que foi marcada pela intensa presença do capitalismo, em que o Estado assinala a sua participação com ações de políticas públicas, para manter a reprodução do capital. Neste contexto de fim do Regime Militar e abertura política, chegam ao Brasil as ideias do neoliberalismo. O governo brasileiro das duas últimas décadas do século XX e da primeira do século XXI começou a delegar parte de suas funções para o mercado e empresas privadas. Sobretudo no governo de Itamar Franco e Fernando Henrique Cardoso, intensificaram-se as privatizações de organizações estatais e a procura de financiamentos para manter sua política de governo. Era o Estado de atuação mínima. A teoria neoliberal estimula a competição e a liberdade do comércio, pois, segundo ela, quando o mercado tem livre funcionamento, cresce, gera empregos e aumenta o acúmulo de capital. Em contrapartida, o Estado corta gastos com a privatização de setores, como usinas de energia, indústrias de base, construção e administração de estradas e portos, e enxuga as despesas referentes à saúde, moradia e educação. Em outras palavras, “[...] os direitos sociais tornam-se mercadorias e o movimento econômico restringe a esfera social da cidadania em favor da projeção do mercado” (GIRON, 2008, p. 19). Privatizam-se as instituições e até a escola torna-se um empreendimento comercial. Como o Estado não se sente o responsável por atender toda a demanda educacional, escolas públicas são crescentemente deixadas de lado, – 92 –
Educação contemporânea no Brasil
funcionários são “trocados” “trocados” por voluntários (pois a sociedade também teria o dever de ajudar) e escolas particulares ganham espaço e competem por alunos/clientes. Agências internacionais e, principalmente, o Banco Mundial tornam-se os grandes prestadores de empréstimos para a educação dos países pobres e, dentre esta lista, encontra-se o Brasil. Os financiamentos não são ingênuos e livres de interesses. Instituições como o Banco Mundial veem estas “ajudas” como um controle do capitalismo. O ato de investir na educação não pressupõe a sua democratização. A visão está voltada para dar condições mínimas para as classes subjugadas, que se transformariam em uma massa de trabalhadores que fazem as empresas e instituições privadas manterem seu ritmo de trabalho. Há, ainda, uma preocupação das potências mundiais (em destaque os EUA) de atender, minimamente, aos países pobres, para não gerar um povo revoltoso ou revolucionário. Saiba mais
O neoliberalismo é uma teoria criada em 1947, por Friedrich August Von Hayek. Foi inicialmente aplicada nos governos de Margareth Thatcher (Reino Unido) e Ronald Reagan (Estados Unidos). O neoliberalismo parte do princípio de que o mercado regula a sociedade. s ociedade. O mercado tem um papel mínimo, restando a ele e às empresas privadas o papel de atender à sociedade.
As consequências desta política podem ser duramente percebidas na educação brasileira. Como sustenta Andrioli (2002), podemos levantar alguns pontos que refletem essas consequências: 1 – Menos recursos, por dois motivos principais: a) diminuição da arrecadação (através de isenções, incentivos, sonegação); b) não aplicação dos recursos e descumprimento de leis; 2 – Prioridade no Ensino Fundamental, como responsabilidade dos Estados e Municípios (a Educação Infantil é delegada aos municípios); 3 – O rápido e barato é apresentado como critério de eficiência;
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4 – Formação menos abrangente e mais profissionalizante; 5 – A maior marca da subordinação profissionalizante é a reforma do ensino médio e profissionalizante; 6 – Privatização do ensino; 7 – Municipalização e “escolarização” do ensino, com o Estado repassando adiante sua responsabilidade (os custos são repassados às prefeituras e às próprias escolas); 8 – Aceleração da aprovação para desocupar vagas, tendo o agravante da menor qualidade; 9 – Aumento de matrículas, como jogo de marketing (são feitas apenas mais inscrições, pois não há estrutura efetiva para novas vagas); 10 – A sociedade civil deve adotar os “órfãos” do Estado (por exemplo, o programa “Amigos da Escola”). Se as pessoas não tiverem acesso à escola a culpa é colocada na sociedade que “não se organizou”, isentando, assim, o governo de sua responsabilidade com a educação; 11 – O Ensino Médio dividido entre educação regular e profissionalizante, com a tendência de priorizar este último: “mais ‘mão ‘mão de obra’ obra’ e menos consciência crítica”; crítica”; 12 – A autonomia é apenas administrativa. As avaliações, livros didáticos, currículos, programas, conteúdos, cursos de formação, critérios de “controle” “controle” e fiscalização continuam dirigidos e centralizados. Mas, no que se refere à parte financeira (como infraestrutura, merenda, transporte), passa a ser descentralizada; 13 – Produtividade e eficiência empresarial (máximo resultado com o menor custo): não interessa o conhecimento crítico; 14 – Nova linguagem, com a utilização de termos neoliberais na educação; 15 – Modismo da qualidade total (no estilo das empresas privadas) na escola pública, a partir de 1980; 16 – Os PCNs (Parâmetros Curriculares Nacionais) são ambíguos (possuem 2 visões contraditórias), pois se, por um lado, aparece uma preocupação com as questões sociais, com a presença dos temas transversais como proposta pedagógica e a participação de intelectuais progressistas, por outro, há todo um caráter de adequação ao sistema de qualidade total e a retirada do Estado. É importante recordar que os PCNs surgiram já no início início do 1º mandato de FHC, quando foi reunido um grupo de intelectuais da Espanha,
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Educação contemporânea no Brasil
Chile, Argentina, Bolívia e outros países que já tinham realizado suas reformas neoliberais, para iniciar esse e sse processo no Brasil. A parte considerada progressista não funciona, já que a proposta não vem acompanhada de políticas que assegurem sua efetiva implantação, ficando na dependência das instâncias da sociedade civil e dos próprios professores. 17 – Mudança do termo “igualdade social” para “equidade social”, ou seja, não há mais a preocupação com a igualdade como direito de todos, mas somente a “amenização” da desigualdade; 18 – Privatização das Universidades; 19 – Nova LDB (Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional) determinando as competências da federação, transferindo responsabilidades aos Estados e Municípios; 20 – Parcerias com a sociedade civil (empresas privadas e organizações sociais) (ANDRIOLI, 2002, [s. p.]).
Transferência de responsabilidades, parcerias, foco longe da qualidade, priorização de uma educação rápida e, de preferência, sem repetência, entre outros fatores lidos anteriormente, marcaram a política e o período, e permanecem até os dias atuais. Lamentavelmente, podemos visualizar que, por trás de um discurso de ajuda internacional, o que realmente aconteceu foi um controle das potências em relação aos países periféricos, sendo normal a ausência do Estado. Tentando Tentando “remar contra a maré”, movimentos e educadores posicionaram-se contra este sistema. A busca pela democracia e qualidade de ensino permeou a história da educação brasileira, como descrito no capítulo anterior. anterior. No entanto, entanto, essa luta foi e é muito difícil mediante os instrumentos legais e ações do Estado. Dica de Leitura Para ampliar o estudo e conhecimento sobre a atuação das agências multinacionais e sua interferência na educação brasileira é interessante a leitura da obra citada: OLIVEIRA, R. de. Agências multinacionais e a educação profissional brasileira. Campinas: Alínea, 2006
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História, Filosofa e Sociologia da Educação
5.2 Mundo globalizado e sociedade de comunicação Concomitantemente às práticas neoliberais, anda a chamada globalização, influência de métodos e recursos. Vivemos um período em que o mundo está interligado, no sentido positivo ou negativo, dependendo do ponto de vista. Atualmente, as notícias e informações podem transitar de uma parte do mundo para outra em fração de segundos. A era da comunicação (por meio do rádio, telefone, televisão e, principalmente, da internet) faz o mundo estar interligado. O fluxo de informações tornou-se cada vez maior, a sua transmissão também tenta seguir o mesmo ritmo. Por outro lado, a globalização também procura transmitir uma homogeneidade cultural e uma política mundial. Além de afetar o âmbito político, econômico e social, a globalização alcança o espaço da educação. Neste sentido, Dale (2004) apresenta duas abordagens que relacionam a globalização e a educação. A primeira, chamada de Cultura Educacional Mundial Comum, (CEMC), criada por John Meyer, Meyer, “defende que o desenvolvimento dos sistemas educativos nacionais e as curriculares se explicam através de modelos universais de educação, de estado e de sociedade, mais do que através de fatores nacionais distintivos” (DALE, 2004, p. 425). A segunda abordagem, desenvolvida pelo autor através de estudos recentes sobre economia política internacional, é chamada de Agenda Global Estruturada para a Educação (AGEE). Nestes últimos estudos de Dale, baseia-se em trabalhos recentes de economia política internacional que encaram “a mudança de natureza da economia capitalista mundial como a força directora da globalização e procuram estabelecer o seus efeitos, ainda que intensamente mediados pelo local, sobre os sistemas educativos” educativos” (DALE, 2004, p. 426). Baseada no estudo de Dale (2004), Enes (2010) apresenta uma síntese comparativa entre a AGEE e a CEMC: a diferença fundamental entre as abordagens CEMC e AGEE reside na compreensão da natureza do fenômeno global. Para a CEMC, a globalização é um reflexo da cultura ocidental, baseada em torno de um conjunto particular de valores que penetram em todas as regiões da vida moderna. Para a AGEE, a globalização é um conjunto de d e dispositivos político-econômicos para organização da economia global,
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conduzido pela necessidade de manter o sistema capitalista, mais do que qualquer conjunto de valores. Outro aspecto relevante das discussões apontadas por Dale (2004) é a teoria da agência e o parque das organizações internacionais que, como estratégia, explicam dados sobre o crescimento dos sistemas educativos, e deixam de lado os fatores econômicos e funcionais do estado nação. Utilizam como argumento a autoridade dos cientistas e especialistas que, com racionalidade técnica, podem acelerar o processo de padronização educacional, por meio de grupos, corpos científicos e profissionais. Esse argumento é ideal para a operação de processos de imitação, difusão de modelos e categorias como deseja a globalização. Essa estratégia é encontrada no trabalho de organizações como a UNESCO, a Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico – OCDE, o Banco Mundial e muitas outras que assumem uma pertença global (ENES, 2010, p. 4-5).
Enes (2010) continua sua reflexão afirmando que, apesar do anseio de estabelecer padrões globais para a educação, sabemos que nela não existe uma técnica “para implementar um ‘fazer’ padronizado. Há muitos modelos de desenvolvimento, e na adoção de um desses modelos é mais baseado na política do que nos fundamentos fu ndamentos técnicos” técnicos” (ENES, 2010, p. 5). Acima podemos conhecer duas teorias teorias sobre a globalização e a educação. educação. Porém, de maneira mais comum, também podemos perceber a globalização e a sociedade de comunicação como algo que interliga a escola ao restante do mundo. Nesta visão, os atuais educadores precisam ter a consciência de que, atualmente, é quase impossível viver isoladamente i soladamente (ainda que este isolamento mantenha relações de convivência e importância local). Livros didáticos, internet, correio, jornais e outros meios de comunicação fazem o ser humano entrar em contato, diariamente, com novos conhecimentos, novas culturas e novas informações. Um profissional da educação dificilmente consegue usufruir das possibilidades de estar ligado ao que acontece no mundo sem dominar a utilização dos recursos tecnológicos. Cada vez mais temos acompanhado a chegada da inclusão digital nas salas de aula, na tentativa de alcançar padrões do que já acontece em muitos países. Uma sociedade globalizada é uma sociedade conectada. Como exemplo desta prática conectada, encontramos cursos a distância, transmitidos por diversas mídias. Com uma sociedade na qual a tecnologia está em constante evolução, a formação não é estática e, muito – 97 –
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menos, tem um fim (no sentido de esgotar). Ela passa por um processo de formação continuada. Vivemos em uma sociedade em que os meios de comunicação têm tomado parte do convívio das pessoas. E as relações sociais e o convívio podem ser mais virtuais do que presenciais. O que não devemos esquecer é que ainda existe um número expressivo de brasileiros que não têm acesso a estas tecnologias, assim, o mundo globalizado é, por efeito, um universo excludente, individualista (paradoxalmente) e competitivo.
5.3 As novas leis educacionais Depois da promulgação da LDB de 1996, novas leis foram inseridas no contexto educacional, como forma de complementar a organização da escola e do magistério. Dentre elas, podemos citar a Lei n. 10.172, de 9 de janeiro de 2001, que aprova o Plano Nacional de Educação (PNE), a Lei n. 11.494, de 20 de junho de 2007, que regulamenta o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização Valorização dos Profissionais da Educação (Fundeb) e a Lei n. 10.639, de janeiro de 2003, que estabelece diretrizes e bases da educação nacional e trata da obrigatoriedade da inclusão do tema “história e cultura afro-brasileira” afro-brasileira” no currículo oficial da rede de ensino. Sobre a Lei n. 10.172/2001 o plano traz os seguintes objetivos: a elevação global do nível de escolaridade da população; a melhoria da qualidade do ensino em todos os níveis; a redução das desigualdades sociais e regionais no tocante ao acesso e à permanência, com sucesso, na educação pública; a democratização da gestão do ensino público, nos estabelecimentos oficiais, obedecendo aos princípios da participação dos profissionais da educação na elaboração do projeto pedagógico da escola; e a participação das comunidades escolar e local em conselhos escolares ou equivalentes (BRASIL, 2001). Logo a seguir, na descrição dos intuitos propostos, o texto legal já introduz uma justificativa do grau de dificuldade que é transportar para a prática estes objetivos. Alega que “os recursos financeiros são limitados e que a capacidade para responder ao desafio de oferecer uma educação compatível, na extensão e na qualidade, à dos países desenvolvidos precisa ser construída constante e progressivamente [...]” (BRASIL, 2001). – 98 –
Educação contemporânea no Brasil
Justificado que a contemplação do texto legal não será tarefa imediata e até (aparentemente) possível, a lei propõe que alguns aspectos passem a ser a prioridade do plano, conforme o “dever constitucional e as necessidades sociais”. Veja Veja na íntegra do texto legal quais são os princípios: 1. Garantia de ensino fundamental obrigatório de oito anos a todas as crianças de 7 a 14 anos, assegurando o seu ingresso e permanência na escola e a conclusão desse ensino. Essa prioridade inclui o necessário
esforço dos sistemas de ensino para que todas obtenham a formação mínima para o exercício da cidadania e para o usufruto do patrimônio cultural da sociedade moderna. O processo pedagógico deverá ser adequado às necessidades dos alunos e corresponder a um ensino socialmente significativo. Prioridade de tempo integral para as crianças das camadas sociais mais necessitadas. 2. Garantia de ensino fundamental a todos os que a ele não tiveram acesso na idade própria ou que não o concluíram . A erradicação do analfabetismo faz parte dessa prioridade, considerando-se a alfabetização de jovens e adultos como ponto de partida e parte intrínseca desse nível de ensino. A alfabetização dessa população p opulação é entendida no sentido amplo de domínio dos instrumentos básicos da cultura letrada, das operações matemáticas elementares, da evolução histórica da sociedade humana, da diversidade do espaço físico e político mundial e da constituição da sociedade brasileira. Envolve, ainda, a formação do cidadão responsável e consciente de seus direitos e deveres. Ampliação ção do atendimen atendimento to nos demais níveis níveis de ensino ensino – a educação 3. Amplia infantil, o ensino médio e a educação superior. Está prevista a extensão da escolaridade obrigatória para crianças de seis anos de idade, quer na educação infantil, quer no ensino fundamental, e a gradual extensão do acesso ao ensino médio para todos os jovens que completam o nível anterior, como também para os jovens e adultos que não cursaram os níveis de ensino nas idades próprias. Para as demais séries e para os outros níveis, são definidas metas de ampliação dos percentuais de atendimento da respectiva faixa etária. A ampliação do atendimento, neste plano, significa maior acesso, ou seja, garantia crescente de vagas e, simultaneamente, oportunidade de formação que corresponda às necessidades das diferentes faixas etárias, assim como, nos níveis mais elevados, às necessidades da sociedade, no que se refere a lideranças científicas e tecnológicas, artísticas e culturais, políticas e intelectuais, empresariais e sindicais, além das demandas do mercado de trabalho. Faz parte dessa prioridade a garantia de oportunidades de educação profissional complementar à
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educação básica, que conduza ao permanente desenvolvimento de aptidões para a vida produtiva, integrada às diferentes formas de educação, ao trabalho, à ciência e à tecnologia. 4. Valorização dos profissionais da educação . Particular atenção deverá ser dada à formação inicial e continuada, em especial dos professores. Faz parte dessa valorização a garantia das condições adequadas de trabalho, entre elas o tempo para estudo e preparação das aulas, salário digno, com piso salarial e carreira de magistério. 5. Desenvolvimento de sistemas de informação e de avaliação em todos os níveis e modalidades de ensino, inclusive educação profissional, contemplando também o aperfeiçoamento dos processos de coleta e difusão dos dados, como instrumentos indispensáveis para a gestão do sistema educacional e melhoria do ensino (BRASIL, 2001, grifos do autor).
Assim, como prioridades temos a obrigatoriedade de oito anos escolares e scolares para o ensino fundamental, garantia de acesso à escola para aqueles que não a frequentaram em idade escolar adequada (priorizando ( priorizando o fim do analfabetismo), o atendimento progressivo à educação infantil, ensino médio e ensino superior, valorização do profissional do magistério magi stério (formação, tempo para preparar aula, salário, condições de trabalho, etc.) e desenvolvimento de sistemas de informação e de avaliação. Sabemos que essas prioridades estão distantes de serem concretizadas. Ainda há um longo caminho para que a Lei esteja completamente em prática, no entanto, o fato dela existir já é um passo. Após estas apresentações, a Lei reflete sobre os níveis de ensino, as modalidades de ensino, o magistério da educação básica e o financiamento e gestão em três níveis: diagnóstico, diretrizes, objetivos e metas. Dica de Leitura O espaço não permite uma explanação detalhada deste conteúdo, mas o leitor poderá conferir o texto integral da Lei n. 10.172/2001 no site do planalto do governo, acessando o link . br/ccivil_03/Leis/LEIS_2001/L10172.ht m>. BRASIL. Lei n. 10.172, de 9 de janeiro de 2001. Aprova o Plano
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Educação contemporânea no Brasil
Nacional de Educação e dá outras providências. Brasília, jan. 2001. Disponível em: .. Acesso em: 14 nov. 2012 LEIS_2001/L10172.htm>
A Constituição de 1988 promulgou que 25% da receita dos impostos deveriam estar destinados para a Educação. Em 1996, 60% desse percentual foi vinculado ao ensino fundamental, mediante Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e de Valorização do Magistério (Fundef), que funcionou de 1997 até 2006, quando foi substituído pelo Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (Fundeb). Sena (2008) nos traz uma listagem que permite visualizar as características do Fundeb que foram adotadas diretamente do Fundef: • • • • • •
• •
natureza contábil do fundo; contas únicas e específicas com repasses automáticos; âmbito de cada estado, sem comunicação de recursos para além das fronteiras estaduais; aplicação de diferentes ponderações para etapas e modalidades de ensino e tipos de estabelecimento; controle social e acompanhamento exercido por conselhos nas três esferas federativas; destinação a ações de manutenção e desenvolvimento do ensino na educação básica (Art. 70 da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional – LDB); possibilidade de retificação dos dados do censo por demanda dos entes federados; complementação da União (SENA, 2008, p. 322).
O projeto do Fundeb está programado para funcionar de 2007 a 2020, atuando em toda a educação básica – da creche ao ensino médio e pretende redistribuir os recursos da educação. Essa distribuição é realizada de acordo com o censo escolar do ano anterior de cada escola. O Fundeb está presente em todos os estados e no Distrito Federal. A sua renda é composta de 20% das receitas do Fundo de Participação dos Estados (FPE); Fundo de Participação dos Municípios (FPM); Imposto de Circulação – 101 –
História, Filosofa e Sociologia da Educação
de Mercadorias e Serviços (ICMS); Imposto sobre Produtos Industrializados, proporcional às exportações (IPIexp); Desoneração das Exportações (LC n. 87/96); Imposto sobre Transmissão Causa Mortis e Doações (ITCMD); Imposto sobre Propriedade de Veículos Automotores (IPVA); e de cota parte de 50% do Imposto Territorial Territorial Rural (ITR) devida aos municípios. Conforme informações do site oficial oficial do governo, o aporte de recursos do governo federal destinados ao Fundeb alcançou suas metas numéricas em apenas três anos de funcionamento. Observe o quadro: Quadro 1 Receita/Ano
2007
2008
2009
FPE
16,66%
18,33%
20%
FPM
16,66%
18,33%
20%
ICMS
16,66%
18,33%
20%
IPIexp
16,66%
18,33%
20%
Desoneração Exportações
16,66%
18,33%
20%
ITCMD
6,66%
13,33%
20%
IPVA
6,66%
13,33%
20%
ITR – Cota Municipal
6,66%
13,33%
20%
Complementação da União
R$ 2 bilhões
R$ 3,2 bilhões
R$ 5,1 bilhões
2010/2020
10%
Fonte: FNDE (2012, [s. p.]).
Os valores são definidos anualmente e também levam em consideração fatores de ponderação que podem variar de acordo com desdobramentos da educação básica, como sugere a lista a seguir. 1. Creche pública em tempo integral 2. Creche pública em tempo parcial 3. Creche conveniada em tempo integral 4. Creche conveniada em tempo parcial – 102 –
Educação contemporânea no Brasil
5. Pré-escola em tempo integral 6. Pré-escola em tempo parcial 7. Anos iniciais do ensino fundamental urbano 8. Anos iniciais do ensino fundamental no campo 9. Anos finais do ensino fundamental urbano 10. Anos finais do ensino fundamental no campo 11. Ensino fundamental em tempo tempo integral 12. Ensino médio urbano 13. Ensino médio no campo 14. Ensino médio em tempo integral 15. Ensino médio médio integrado à educação profissional 16. Educação especial 17. Educação indígena e quilombola 18. Educação de jovens e adultos com avaliação no processo 19. Educação de jovens jovens e adultos integrada à educação profissional de nível médio, com avaliação no processo. Não nos alongaremos na discussão sobre o Fundef, visto que o tema já foi mais amplamente abordado no livro Políticas Políticas Públicas e Legislação Educacional , de Diana Cristina de Abreu. Para finalizar esta seção, queremos mencionar que, em meio a tantas discussões sobre as práticas neoliberais e o processo de globalização que invade o século XXI, algumas discussões, no sentido de valorar e respeitar o ser humano, ainda tentam florescer. Para complementar a Lei de Diretrizes e Bases da Educação de 1996, foram publicadas emendas e reformulados artigos. Como exemplo, apontamos a Lei n. 10.639, de 9 de janeiro de 2003, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no currículo oficial da rede de ensino a obrigatoriedade da temática “história e cultura afro-brasileira”. afro-brasileira”. A Lei estabelece, em seus artigos e parágrafos, que: – 103 –
História, Filosofa e Sociologia da Educação
Art. 26-A Nos estabelecimentos estabele cimentos de ensino fundamental e médio, oficiais e particulares, torna-se obrigatório o ensino sobre História e Cultura Afro-Brasileira. § 1 o O conteúdo programático a que se refere o caput deste deste Art. incluirá o estudo da História da África e dos Africanos, a luta dos negros no Brasil, a cultura negra brasileira e o negro na formação da sociedade nacional, resgatando a contribuição do povo negro nas áreas social, econômica e política pertinentes à História do Brasil. § 2o Os conteúdos referentes à História e Cultura Afro-Brasileira serão ministrados no âmbito de todo o currículo escolar, em especial nas áreas de Educação Artística e de Literatura e História Brasileiras. Art. 79-B. O calendário escolar incluirá o dia 20 de novembro como “Dia Nacional da Consciência Negra” (BRASIL, 2003).
É notório que a Lei reflete reflete uma luta do movimento movimento social negro. Para Rocha (2006), ao analisarmos a Lei, podemos vislumbrar vis lumbrar dois pontos de partida. Ela pode ser considerada uma política afirmativa que representa avanços significativos na educação e relações sociais? Ou ela faz parte de uma estratégia das políticas dominantes de financiamento que dão uma falsa autonomia, sentido e significado mínimo para os países dominados? Até que ponto a Lei representa uma luta ou uma concessão? Nosso país é fruto da herança da miscigenação que aconteceu entre povos (principalmente na mistura entre índios, europeus e africanos). Devido ao intenso processo de escravidão, o Brasil é um dos lugares com a maior quantidade de afrodescendentes. A contribuição do povo africano em todos os aspectos da cultura brasileira brasi leira é inegável. Muito tempo foi desperdiçado ao se deixar de lado o estudo e a valorização desta contribuição social. Seria muita ingenuidade imaginar que a Lei só foi aprovada porque instâncias maiores queriam dar um mínimo significado para as classes populares brasileiras, como se dessem um pouco de felicidade para abafar possíveis revoltas sociais (como o pensamento neoliberal poderia imaginar). A Lei reflete uma intensa luta pela igualdade das relações raciais e sociais. Pressões e discussões foram calorosamente realizadas até a publicação do texto legal. Se isso precisou tornar-se obrigatório é porque, na prática, o tema não era considerado natural ou corriqueiro. Foi necessária uma lei para “forçar” “forçar” escolas e educadores a darem o devido valor para o assunto. Desta feita, concordamos com a afirmação de Rocha (2006, p. 113): – 104 –
Educação contemporânea no Brasil
[...] nosso entendimento é o de que a Lei 10.639/03, se trabalhada dentro da perspectiva da superação da ideologia de dominação racial, pode constituir-se como um instrumento importante, no campo do currículo, para a explicitação das contradições presentes no sistema econômico do capital. Aliando o específico ao universal, na na perspectiva de superação das bases constitutivas das desigualdades raciais e sociais. Assim posto, os conteúdos relacionados à cultura e à história da África e dos negros brasileiros poderão atuar no sentido de expor as lacunas e as ideias que fundamentaram a ideologia de dominação racial. [...] Ao explicitar as lacunas, os silêncios, a base constitutiva da ideologia de dominação racial, a Lei colocará em xeque pilares estruturais da produção das desigualdades raciais e sociais no país e, consequentemente, pilares que dão sustentação ao atual ordenamento econômico mundial.
A lei é um instrumento contraideológico, que busca uma afirmação racial, inter-racial e de aceitação de identidades. Em busca da superação do preconceito e do conhecimento histórico de um povo, a história da África, dos africanos e dos descendentes de africanos é, hoje, um conteúdo obrigatório em todas as escolas do Brasil. Um dos entraves da transmissão desse conteúdo é que nem todos os professores possuem formação adequada, já que profissionais formados há anos não tiveram, em sua matriz curricular de magistério ou faculdade, este tema, pois, em nível de formação de educadores, isso também só se tornou mais visível depois da Lei. Cursos de História, de graduação e pós-graduação, reorganizaram-se para contemplar o conteúdo. Os livros didáticos, essencialmente os de História, são crivados pelos analistas do MEC, um dos critérios é a presença do estudo sobre a cultura afro-brasileira (e indígena) desprendida de estigmas e preconceitos. Para não cair em conflitos com outros grupos etnorraciais que poderiam receber igual ênfase na legislação educacional (por alegar semelhante importância na contribuição do povo brasileiro), a Lei n. 9.394/96, no Art. 25, parágrafo 4º, afirma que “o ensino da história e do Brasil levará em conta as contribuições das diferentes culturas e etnias para a formação do povo brasileiro, especialmente das matrizes indígenas, africanas e europeias” (BRASIL, 1996). Em 2008, por conta de discussões, luta de representantes de grupos indígenas e valorização do povo (que já habitava nessas terras antes de serem chamadas de Brasil) foi reformulada a redação do Art. 26 com a Lei n. 11.645/2008 para o seguinte texto: – 105 –
História, Filosofa e Sociologia da Educação
Art. 26-A 2 6-A Nos estabelecimentos estabelecime ntos de ensino fundamental f undamental e de ensino médio, públicos e privados, torna-se obrigatório o estudo da história e cultura afro-brasileira e indígena. § 1 o O conteúdo programático a que se refere este artigo incluirá diversos aspectos da história e da cultura que caracterizam a formação da população brasileira, a partir desses dois grupos étnicos, tais como o estudo da história da África e dos africanos, a luta dos negros e dos povos indígenas no Brasil, a cultura negra e indígena brasileira bra sileira e o negro e o índio na formação da sociedade nacional, resgatando as suas contribuições nas áreas social, econômica e política, pertinentes à história do Brasil. § 2o Os conteúdos referentes à história e cultura afro-brasileira e dos povos indígenas brasileiros serão ministrados no âmbito de todo o currículo escolar, em especial nas áreas de educação artística e de literatura e história brasileiras” (NR).
Assim Ass im a Lei n. 11.645 11. 645,, de 10 de março març o de 2008, 200 8, modifi mod ificou cou e complementou a Lei n. 10.639 (que já em 2003 incluía a obrigatoriedade da temática História e Cultura Afro-Brasileira no currículo oficial da Rede de Ensino), ampliando a obrigatoriedade para o ensino dos povos indígenas na formação da sociedade, bem como as suas contribuições. Cabe, agora, a escola formar cidadãos conscientes de sua história e diversidade cultural, acabando com as práticas de discriminação, racismo e violência. Pois as leis não servem apenas de uma afirmação social, mas porque não dizer, dizer, de transformação.
5.4 Desafios e perspectivas Apesar Apesar de todas as concepç concepções ões educac educacionais ionais,, de todos todos os moviment movimentos os pela pela educação e do (a nosso ver) pouco investimento, a educação brasileira ainda tem muitos desafios pela frente. Nosso país ainda possui pessoas pess oas analfabetas ou analfabetas funcionais (que sabem ler, mas não compreendem a língua). Nossas escolas continuam tendo prédios antigos e sem estrutura e nossos profissionais da educação permanecem esperando a remuneração almejada. Se fôssemos listar todos os desafios que a educação brasileira ainda tem para superar, faríamos uma longa lista, mas vamos elencar apenas alguns pontos, para deixar como provocação e reflexão para o leitor. leitor. – 106 –
Educação contemporânea no Brasil
Reformulação da lei em aspectos inoperantes. Discussão de uma legislação que represente o pensamento educacional e não o político. Definição clara de uma proposta pedagógica adequada para a realidade brasileira. Preparação adequada e competente de profissionais da educação. Contratação de funcionários formados e capacitados para o ato de lecionar. Revisão da estrutura funcional das instituições de ensino. Democratização verdadeira e acesso à escola pública. Valorização do profissional da educação em aspectos como tempo de trabalho, condições e salário. Atendimento Atendi mento adequado adequa do a alunos, alunos , respeitando respei tando suas necessidanecess idades especiais. Construção de escolas equipadas e adequadas para a realidade. Criação de meios coerentes de fiscalização e avaliação do sistema escolar. Melhoria da relação escola X família X comunidade. Enfim, são inúmeros os pontos a serem pensados. Além de todas as questões políticas e burocráticas, precisamos considerar que, em uma sociedade de informação, as metodologias e formas de aprender precisam ser reavaliadas. Gadotti (2000), pautado nas ideias de Jacques Delore (1998), faz uma reflexão sobre a educação do futuro. O autor aponta alguns princípios que devemos seguir para caminhar na educação do século XXI: aprender a conhecer; aprender a fazer; aprender a viver juntos; aprender a ser. Baseado nas informações levantadas por Gadotti (2000, p. 9-11), verificamos as particularidades de cada pilar anteriormente citado. 2 2
2
2 2
2 2 2
2
2 2
2
Quadro 2 Pilar
Aprender a conhecer
Princípio
Aprender a compreender, a pensar. Reinventar o pensar e reinventar o futuro. É mais do que aprender a aprender.
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História, Filosofa e Sociologia da Educação
Pilar
Princípio
Aprender a fazer
Competência para enfrentar situações. Trabalho em equipe. Vai além da qualificação profissional (lembrando que muitos dos afazeres hoje são substituídos por máquinas).
Aprender a viver juntos
Viver em conjunto. Administrar conflitos. Participar de projetos comuns.
Aprender a ser
Desenvolvimento pleno do ser humano: criatividade, espiritualidade, inteligência, iniciativa, pensamento autônomo e crítico, entre outros fatores.
Fonte: Gadotti
(2000, p. 9-10).
O autor completa seu pensamento citando algumas categorias necessárias para que a educação se desenvolva, como exemplo: 2
cidadania;
2
planetariedade;
2
sustentabilidade;
2
virtualidade;
2
globalização;
2
transdisciplinariedade;
2
dialogicidade ou dialeticidade.
O certo é que a educação brasileira já conseguiu superar muitos desafios educacionais. Retornando ao início deste livro, quando verificamos as ações desenvolvidas pelos jesuítas com objetivos de catequização e de dominação, passamos por tendências tradicionais, religiosas, laicas, que privilegiavam ora o professor, ora o aluno, que procuravam a transformação da sociedade ou a sua manutenção. Se quisermos vislumbrar um futuro melhor para a educação brasileira, um dos primeiros passos será cumprirmos o papel de cidadãos, no exercício da democracia, de maneira consciente e ativa. É importante escolhermos melhor nossos representantes políticos, que, afinal, estarão criando, promul– 108 –
Educação contemporânea no Brasil
gando, assinando e vetando as leis que podem beneficiar a população brasileira. Cabem, também, aos cursos de formação de profissionais da educação capacitar educadores capazes de romper com as amarras do sistema e colaborarem para uma transformação social. Ou seja, a educação brasileira brasil eira é responsabilidade de todos. Da Teoria para a prática A Lei n. 10.639/2003 decretou, em calendário escolar, a inclusão do “Dia da Consciência Negra”. A data foi escolhida por fazer alusão ao dia da morte de Zumbi dos Palmares, em 1695. Zumbi foi um dos líderes mais conhecidos do movimento negro de resistência da escravidão. Ele era o líder do Quilombo de Palmares, um refúgio tão grande que estudiosos estimam que tivesse o tamanho aproximado do país de Portugal. Essa lei vigora na prática? As escolas realizam alguma comemoração no dia 20 de novembro? É uma lembrança isolada e realizada somente no dia ou existem práticas diárias de conscientização? Verifique, em uma escola, estas questões e aproveite para analisar o livro didático de História selecionado pela instituição, verificando se ele traz informações sobre a cultura afro-indígena e sob qual perspectiva elas são expressas.
Síntese No decorrer do capítulo, montamos um breve panorama de pontos que interferiram na educação brasileira a partir de 1990. Observamos que, com a política neoliberal, a educação passou a ser tratada como uma mercadoria comercial. De maneira crescente, o governo federal procurou isentar-se de suas responsabilidades, realizando financiamentos e deslocando o compromisso para outras instâncias. Verificamos que a globalização pode ser vista como algo positivo ou negativo. Positivo, por interligar os povos e realizar a comunicação entre – 109 –
História, Filosofa e Sociologia da Educação
todos, transmitindo informações cada vez mais rápidas. Negativo, por querer igualar as condutas sociais e espalhar modelos a serem seguidos. Com as novas legislações, grupos sociais antes marginalizados conseguiram reconhecimento e espaço no currículo escolar. O estudo obrigatório da cultura afro-indígena representou o rompimento de barreiras sociais e valorização da identidade nacional. Por fim, provocamos a reflexão sobre pontos e atitudes que precisam ser s er tomadas para uma educação do futuro.
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6 Pensamentos e movimentos históricosociais pela educação Alicia Ma�iani Lucio Landes da Silva
N� �������� �������� conhecemos quatro tendências ou concepções da educação: tradicional religiosa e laica, Escola Nova e a Pedagogia Tecnicista. Tecnicista. Em continuação, trataremos de outras concepções que influenciaram a educação brasileira. A diferença é que, nesse capítulo, além de falar sobre a tendência pedagógica, conheceremos um pouco dos seus autores e de movimentos pela educação. N�� �������� �����, as teorias e teóricos que aqui veremos são frutos do final do século XIX e decorrer do século XX. Recebemos influências de intelectuais da educação da Europa, mas também podemos ressaltar a importância de nossos pensadores brasileiros. A� ������� ���������� ���� ������ ao longo deste texto são: a educação “montessoriana”, o Marxismo e a educação, o Construtivismo, a pedagogia libertadora, além do movimento de educação de base. A luta pela democratização do ensino irá perpassar esses temas e
História, Filosofa e Sociologia da Educação
veremos as contribuições para a educação brasileira e até as influências que tais teorias tiveram entre si.
6.1 Educação montessoriana A educação montessoriana teve importante influência nos estudos educacionais e nas escolas do Brasil. Este pensamento pedagógico foi criado pela médica e educadora Maria Montessori. De nacionalidade italiana, a educadora tinha como foco inicial de estudos acerca da aprendizagem de crianças especiais – o que se estendeu para as crianças ditas normais. Saiba mais
Maria Montessori fazia parte do grupo de intelectuais europeus que estava buscando uma “nova educação”. Em 1946, Paris sediou o primeiro Congresso da Educação Nova.
Na Itália, ela fundou, em 1907, a Casa dei Bambini , centros de educação mais completos que as antigas escolas de instrução. As casas eram destinadas à educação pré-escolar, mas também se estendiam para crianças da segunda infância. Os materiais utilizados estimulavam os aspectos motores e sensoriais da criança, com jogos atrativos. Figura 1 - Maria Montessori. s o d i n U s o d a t s E s o d o s s e r g n o C o d a c e t o i l b i B
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Pensamentos e movimentos histórico-sociais pela educação
Montessori focava seus estudos, principalmente, nos aspectos biológicos de aprendizagem, por isso, sua concepção de educação era pautada no desenvolvimento e crescimento. Segundo suas conclusões, a educação ajuda o indivíduo a socializar-se e desenvolver a personalidade integral. Na concepção de Montessori, a escola era um local de maior liberdade, não deveria ter carteiras fixas, premiações ou castigos. O aluno precisava sentir-se livre para estudar e crescer. crescer. Ela defendia que a escola deveria de veria oferecer uma “educação para a vida”, pois seu método respeitaria as etapas de desenvolvimento e das faixas etárias dos alunos. Segundo Francisco Filho (2004, p. 168): Montessori desejava criar um homem consciente, integrado à natureza, com corpo e alma em harmonia, com capacidade capaci dade para refletir, dialogar, amar, com sensibilidade, feliz, procurando a autoconstrução, inteligente, criativo, comunicativo, com mente consciente, capaz de comparar, de viver a sua própria vida, encarnando a cultura, caminhando para a autorrealização, com raciocínio natural, com habilidade para leitura, exercícios para a lógica, para valores e virtudes, com visão ampla, etc.
Os alunos poderiam escolher os jogos jogos e atividades com materiais que a educadora italiana havia criado para estimular a aprendizagem. Não caberia ao professor intervir nesta aprendizagem, caberia a ele, na sala, s ala, acompanhar o desenvolvimento e potencial de cada um. Segundo Cambi (1999, p. 475), o método de Montessori teve mais aceitação e ficou mais conhecido no exterior do que na própria Itália, onde encontrou “forte resistência, em consequência da hegemonia idealista na cultura filosófica e pedagógica”. pedagógica”. Não podemos definir com precisão quem foi o responsável por trazer as ideias de Maria Montessori para o Brasil. Um dos primeiros indícios data de 1915, quando o Dr. Miguel Calmon Dupin e Almeida realizou uma palestra na Bahia, divulgando os princípios da educadora italiana (ALMEIDA; ALVES, ALVES, 2010). Desde 1937, diversas escolas com este método foram instaladas em nosso país, como a Casa da Infância do Menino Jesus, que estava sob a responsabilidade da Liga das Senhoras Católicas de São Paulo. A chegada das escolas montessorianas no Brasil não ocorreu como nos ideários originais. Enquanto na Itália esse método atendeu a crianças desprovidas de condições financeiras, aqui no Brasil não existia uma estrutura para montar escolas com o ambiente e materiais adequados. O custo era alto e isso – 113 –
História, Filosofa e Sociologia da Educação
fez com que somente escolas particulares tivessem condições de equipar sua instituição para desenvolver o método em sua plenitude. A educação montessoriana ajudou a mudar o pensamento e as práticas de educadores brasileiros que antes adotavam a educação tradicional. No entanto, não adiantava o aluno frequentar a pré-escola montessoriana e depois ter que estudar em uma escola comum, que não tinha os mesmos padrões de atendimento, materiais e quantidade de funcionários como na primeira escola (FRANCISCO FILHO, 2004, p. 168). A concepção de educação proposta por Maria Montessori ajudou a mudar a maneira de pensar a criança e a escola e influenciou as mudanças da Escola Tradicional Tradicional para a Escola Nova. Até hoje essas ideias influenciam o pensamento de muitos educadores. Segundo informações do site da da Organização Montessori do Brasil, em 2012 existiam 57 escolas filiadas a esta organização. Elas ficam nos seguintes estados: seis no Rio Grande do Sul; quatro em Santa Catarina; uma no Paraná; uma no Mato Grosso do Sul; nove em São Paulo; dez no Rio de Janeiro; três em Minas Gerais; três no Distrito Federal; onze na Bahia; uma em Alagoas; duas em Pernambuco; uma no Piauí; três no Maranhão; e duas no Pará. Saiba mais
Para saber mais sobre a atual situação das propostas montessorianas no Brasil, acesse o site da Organização Montessori no Brasil: .
6.2 Marxismo e a educação O século XIX marca, na Europa, a ascensão da burguesia ao poder. poder. Esta classe conseguiu o status de de privilegiada e começou a dominar a classe pobre. Neste contexto surgiram Marx e Engels, teóricos que passaram a analisar os pensamentos de Hegel, o passado histórico e sua evolução política e econômica, além das teorias utópicas. – 114 –
Pensamentos e movimentos histórico-sociais pela educação
Em 1848, lançaram O manifesto comunista e e publicaram, trinta anos depois, os escritos de O capital . Em linhas gerais, a teoria marxista acredita que a sociedade é formada por duas classes principais: a dominante e a dominada. A classe dominante seria aquela formada pela burguesia, aquela que detém o poder e o capital (a riqueza). ri queza). A classe dominada seria formada pela grande massa de trabalhadores que vendem a sua mão de obra por um mísero salário. Tal teoria possui teor anticapitalista. Rapidamente, ganhou adeptos e espalhou-se pela Europa. Países utilizaram-se do discurso marxista para promover mudanças e revoluções. Em 1917, a Rússia tornou-se socialista – na verdade, incorporou o socialismo real. Algo semelhante ocorre na China, em 1949. Depois da Segunda Guerra Mundial, Cuba, Moçambique e Angola passaram a adotar este mesmo sistema. Como lembra Francisco Filho (2004), as ideias de Marx foram um tanto distorcidas, pois os governos autoritários passaram a manipular a população por meio do discurso do socialismo/comunismo. O fato de abolir a propriedade privada não significava o sucesso da implantação do socialismo. Segundo o autor, estas tentativas práticas marxistas foram equivocadas, pois: fazendo uma análise rápida, não é difícil verificar que o socialismo real estava muito distante dos ideais de Marx. Simplificou tudo, pensando que apenas abolindo a propriedade privada, tudo estaria resolvido; criou uma burocracia muito mais parasitária que a burguesia existente no capitalismo; continuou acreditando no fatalismo histórico, isto é, que depois de esgotado o capitalismo, naturalmente aconteceria o socialismo e depois como por um passe de mágica cairia no comunismo, quando a sociedade de iguais não teria nem mesmo necessidade do Estado. Na prática o socialismo real é apenas o capitalismo de estado, e Marx ficaria muito triste, se estivesse vivo, para ver a aplicação prática de suas teorias (FRANCISCO FILHO, 2004, p. 170).
Há um ditado recorrente no meio acadêmico: “o problema não é o marxismo, são os marxistas”. Ou seja, as falhas não estavam nas ideias de Marx, mas nas formas como elas foram aplicadas. Além Alé m de d e ser s er adotad ado tada, a, em alguns alg uns países paí ses,, na n a vida v ida prátic prá tica, a, a teor t eoria ia marmar xista foi utilizada como meio de mudança intelectual, sobretudo de áreas – 115 –
História, Filosofa e Sociologia da Educação
de história, sociologia, filosofia e outras ciências sociais, áreas notadamente influenciadas pelos pensamentos de igualdade social de Marx e Engels (1978). Para Marx, a educação era usada pela burguesia como meio de dominação, na qual a classe dominante controlava o conhecimento adquirido da classe dominada. A escola que servia aos interesses do capitalismo só poderia se tornar um ambiente de transformação quando quebrasse as amarras da alienação e dominação. Marx pregava uma educação que não fosse destinada a uma classe específica. O conhecimento técnico e industrial deveria chegar a todos. Somente uma escola que rompesse com as amarras do capitalismo poderia promover uma mudança social. Os problemas educacionais passaram a ser considerados problemas de ordem histórica. Para superar a fase do capitalismo e das desigualdades sociais, os educadores deveriam ser agentes ativos e conhecedores do processo histórico. Segundo Marx e Engels (1978; 1997), as classes dominantes escolhem o conteúdo a ser transmitido e limitam o conhecimento dos operários, e isso se prolonga no decorrer da história. A tradição das gerações passadas atormentaria como um pesadelo a geração atual. Somente uma escola feita por educadores não alienados poderia mudar essa situação. Seria a chance de mudar do capitalismo para o socialismo, para um dia chegar ao ideal de sociedade que era o comunismo. A educação seria um agente de libertação, principalmente das ideologias dominantes. Neste sentido, podemos dizer que, apesar de não ser um teórico exclusivo da educação, Marx (em seus poucos escritos sobre ela) nos propõe uma política-educacional. As ideia id eiass marxis mar xistas tas começa co meçaram ram a ser se r amplame ampl amente nte divul di vulgad gadas as no Brasil Bra sil a partir de 1930, pelo Partido Comunista do Brasil. Paschoal Lemme foi um dos principais educadores a difundir o Marxismo. Atualmente, Atualme nte, as ideias marxistas mar xistas estão est ão presentes no estudo estud o da história da educação, entre outras áreas sociais. O Novo Marxismo, ou a Nova Esquerda Inglesa, reúne um grupo de intelectuais que se baseiam nos pensamentos de Marx para elaborar suas perspectivas de análise e pesquisa. Entre eles estão: Raymond Williams (1921-1988), Edward Thompson (1923-1993), Eric – 116 –
Pensamentos e movimentos histórico-sociais pela educação
Hobsbawn (1917-), Cristopher Hill (1912-2003), Perry Anderson (1928-) (192 8-) e Maurice Dobb (1900-1976).
6.3 Construtivismo O Construtivismo foi aplicado à educação, mas teve suas origens na psicologia. Seus fundamentos estão baseados nos estudos de Jean Piaget, Emília Ferreiro e Vygotsky Vygotsky.. A ênfase está no aspecto cognitivo do aluno e, por isso, is so, o conhecimento das etapas do desenvolvimento é tão importante. Segundo Piaget (apud DAVIS; OLIVEIRA, 1991, p. 56), o desenvolvimento humano engloba quatro etapas: a sociomotora, a pré-operatória, a operatório-concreta e a operatório formal. É importante respeitar estas etapas para que a aprendizagem ocorra de maneira natural. De acordo com Davis e Oliveira (1991, p. 56): Piaget acredita que a aprendizagem subordina-se ao desenvolvimento e tem pouco impacto sobre ele. Com isso, ele minimiza o papel da interação social. Vygotski, ao contrário, postula que desenvolvimento e aprendizagem são processos que se influenciam reciprocamente, de modo que, quanto mais aprendizagem, mais desenvolvimento.
Para o Construtivismo, o saber, como o próprio nome diz, é construído pelo aluno mediante formulação de hipóteses e a resolução do problema. O aluno socializa-se, busca, investiga e a “socialização da criança é ao mesmo tempo o processo de sua individualização, de formação de sua personalidade” (ARIAS; YERA, 1996, p. 11). Nesta perspectiva, o papel do professor não é de transmitir o conhecimento, mas estimular o aluno a ir em busca de sua autonomia intelectual. Ele é um “instigador”. A avaliação é construída ao longo das aulas, por isso as provas não fazem parte da proposta inicial do Construtivismo, no entanto, grande parte dos professores acabam incorporando o conceito de construção e transformando-o em avaliações escritas. Nesse contexto, a prova tem um peso menor do que as aplicadas na Escola Tradicional Tradicional e não pode ser realizada por uma pessoa de fora do cotidiano de sala de aula (uma coordenadora, por exemplo, como poderia acontecer acontecer na Escola Tradicional). Tradicional). – 117 –
História, Filosofa e Sociologia da Educação
O erro não é visto como algo negativo, mas como parte do processo. O aluno acaba errando algumas vezes na tentativa de acertar e construir o seu conhecimento. Um exemplo clássico é quando uma criança de 4 ou 5 anos pega uma bola de massinha de modelar e a transforma em uma cobrinha. Ela acha que a cobrinha tem mais massa do que a bola por ser mais comprida. A criança não errou, esse é apenas o raciocínio próprio de sua idade. Seu desenvolvimento intelectual será evidenciado ao amadurecer para a próxima etapa de desenvolvimento. Isso não significa que a escola não deva corrigir o aluno. Quando necessária, a correção é feita como meio de proporcionar a aprendizagem e não como forma de censura. A criança pode, inclusive, ser retida de ano, caso não demonstre condições de acompanhar a série seguinte. Ao contrário da Escola Tradicional, Tradicional, a competição não é estimulada. O convívio e as atitudes de cooperação entre os alunos são valorizados. O estímulo para avançar nos estudos fica por conta do educando encarar seus desafios pessoais. A rigidez rigid ez no ensino, ensin o, tão almejada almeja da na Escola Tradicional, radici onal, é aqui criticada. A escola deve ser um ambiente acolhedor e estimulante. Além das provas, o uso de materiais didáticos que não façam parte do cotidiano do aluno é condenado. O ensino deve ser significativo e espontâneo. O aluno deve estar rodeado de materiais que façam parte de seu universo pessoal. pess oal. As atividades de pesquisa em grupo gr upo também representam parte importante do processo de aprendizagem. Emília Ferreiro (apud NOVA ESCOLA, 1995) utiliza-se das teorias de Piaget e as transfere para o estudo do processo de alfabetização de crianças, chegando à conclusão de que uma criança pode ser alfabetizada espontaneamente, desde que esteja em um ambiente estimulador e propício. Veja como acontece a alfabetização na visão de Ferreiro. Quadro 1 Fase
Aptidões
Exemplo
Pré-silábica
A criança não relaciona a fala com a escrita. Escreve a letra que lhe soou mais “simpática”.
Ao escutar a palavra BONECA, escreve BBBBBBB ou OOOOOO.
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Pensamentos e movimentos histórico-sociais pela educação
Fase
Silábica
Aptidões
Tem sua própria interpretação da letra e atribui um valor silábico.
Exemplo
Pode escrever BONECA da seguinte maneira: BNA (B=BO, N=NE e A=CA).
Silábicoalfabética
Oscila entre a fase silábica e alfabética. Faz sílabas completas com mais frequência.
BONECA pode ser escrita =
Alfabética
Domina o valor das letras e das sílabas.
Escreve BONECA corretamente.
BONEK.
Fonte: adaptado de Ferreiro (apud NOVA ESCOLA, 1995, [s. p.]).
As práticas construtivistas já estavam presentes no Brasil, mas tornaram-se mais efetivas com a Constituição de 1988 e a Lei de Diretrizes e Bases da Educação de 1996, influenciadas por elas. Com a abertura democrática no país, assim como todos os ramos da sociedade, a educação edu cação estava procurando novos horizontes e possibilidades. As ideias construtivistas, principalmente o método de alfabetização de Emília Ferreiro, foram ganham espaço nas escolas brasileiras. Cada vez mais os professores aderiam à nova prática pedagógica sem ao menos saber com segurança como aplicá-la. Como afirmamos anteriormente, a educação é dinâmica e práticas pedagógicas não substituem por completo as suas antecessoras. Assim, podemos observar a coexistência de métodos tradicionais e construtivistas. Não é tão comum encontrar uma escola pública que tenha espaço e material adequado, número de alunos pequeno e professor preparado para ministrar aulas dentro desta proposta. O que ocorre, em muitos casos, é a mistura de diferentes práticas pedagógicas, que refletem a formação inicial, profissional e as experiências diárias de cada professor.
6.4 Movimento de Educação de Base O objetivo de uma educação de qualidade e acessível a todos permeou a luta de diversos teóricos educacionais. Muito possuem sonho de ver uma – 119 –
História, Filosofa e Sociologia da Educação
escola aberta para todos, em que não exista o analfabetismo e a igualdade possa alcançar os lares. A educação edu cação de base seria o mínimo que um cidadão deveria receber de conhecimentos, considerando suas necessidades pessoais, “mas levando em conta os problemas da coletividade, e promovendo a busca de soluções para essas necessidades e esses problemas, através de métodos ativos” (FÁVERO, 2004, p. 2). Desde 1947, a Unesco, por exemplo, promoveu programas voltados para a educação de adultos. Ela defendia a educação gratuita, universal e obrigatória para as crianças. Recomendava-se que, assim como existiam as escolas tradicionais para as crianças, deveria haver escolas de educação de base para adultos. Já, em 1950, bispos bispo s brasile bra sileiros iros da região reg ião do d o Nordeste Nordest e realizara real izaram m expeexp eriências educativas por meio de programas de rádio. O Movimento de Educação de Base (MEB) foi criado em 1961, pela Conferência Nacional de Bispos do Brasil (CNBB). Era um programa de educação de base através de escolas radiofônicas. O programa de rádio deveria alcançar regiões subdesenvolvidas. Sua fundação teve o apoio e a parceria do presidente da República Jânio Quadros e de diversos ministros da época. Sua atuação abrangia estados do Norte, Nordeste e Centro-Oeste. Tinha como objetivo realizar uma educação que superasse a visão materialista. A formação humana deveria acontecer em todas as dimensões: política, social, cultural, espiritual, moral, etc. Até 1962 as escolas radiofônicas englobavam o ensino da leitura e escrita com aulas de Português, Matemática, Orientação Agrícola, Economia Doméstica, Educação Cívica e Religiosa e Organização Comunitária. O ensino pretendia ser uma ponte de integração social, baseado nos parâmetros da Unesco. No entanto, as aulas ministradas encontravam-se longe da realidade dos trabalhadores rurais que a escutavam. Com a realização de pesquisas, estudos, conversas e trocas de experiências, o MEB foi aprofundando suas ideias e, em 1962, com o Encontro Nacional de Coordenadores, traçou um novo plano de ação para o movimento. Os objetivos eram: – 120 –
Pensamentos e movimentos histórico-sociais pela educação
1º – Alfabetização e iniciação em conhecimentos que se traduzam no comportamento prático de cada homem e da comunidade, no que se refere: à saúde e à alimentação (higiene); ao modo de viver (habitação, família, comunidade); às relações com os semelhantes (associativismo); ao trabalho (informação profissional); ao crescimento espiritual. 2º – Conscientização do povo, levando-o a descobrir o valor próprio de cada homem; despertar para os seus próprios problemas e provocar uma mudança de situação; buscar soluções, caminhando por seus próprios pés; assumir responsabilidades no soerguimento de suas comunidades. 3º – Animação dos grupos de representação, promoção e pressão. 4º – Valorização da cultura popular, pesquisando, aproveitando e divulgando as riquezas culturais próprias do povo (MEB, 1962c, p. 1).
Realizadas as mudanças de objetivos, o MEB consegue mais apoio financeiro e aumenta seu atendimento. Segundo Fávero (2004), o período áureo de sua atuação ocorreu entre 1961 a 1966. Segundo dados levantados em relatórios oficiais do MEB pelo autor, a abrangência do movimento foi a seguinte: a) O número de escolas radiofônicas variou de 2.687, em dezembro de 1961, ao máximo de 7.353, em setembro de 1963. A ampliação do noticiário oficial “A Voz do Brasil” de 30 para 60 minutos, em meados de 1963, comprometeu o melhor horário para as aulas e ocasionou uma queda brusca no número de escolas: 5.573 em dezembro de 1963. Em março de 1964, no entanto, eram novamente 6.260 e, apesar de todas as crises, em dezembro de 1965 ainda existiam mais de 4.500 escolas radiofônicas. b) No início de 1964, ponto alto das estatísticas, o trabalho era realizado em 14 Estados: Amazonas, Pará, Maranhão, Piauí, Ceará, Rio Grande do Norte, Paraíba, Pernambuco, Alagoas, Sergipe, Bahia, Minas Gerais, Goiás, Mato Grosso e no Território Território de Rondônia. Nessas unidades da federação, funcionavam 60 Sistemas de Educação de Base e igual número de Equipes Locais, atingindo cerca de 500 municípios, em 1963. c) As Equipes Locais reuniam cerca de 500 pessoas, entre pessoal administrativo e técnico, inclusive supervisores municipais. Por sua vez, o Secretariado Nacional, com sede no Rio de Janeiro, contratava outras 50 pessoas, quase todas em tempo integral.
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d) Em cinco anos, cerca cerca de 320 mil alunos concluíram concluíram o ciclo ciclo de alfabetização, dos quais quais quase 120 mil só em 1963. 29 emissoras irradiavam programas e aulas do MEB, estimando-se estimando-se de 5 a 8 milhões de pessoas direta e indiretamente indiretamente atingidas por essas emissões. e) No período estudado, foram realizados realizados 35 treinamentos para 871 professores, supervisores e animadores das Equipes Locais, em uma média de dez dias por treinamento. treinamento. E, de 1961 a 1965, 518 trein treinaamentos para 13.771 monitores de escolas radiofônicas e animadores do grupo de base, com duração média de quatro dias por treinamento (FÁVERO, 2004, p. 13).
Os dados são expressivos e nos mostram um grande alcance. O que era para ser uma proposta de cinco anos de existência já completou seus cinquenta anos. O MEB ainda está em funcionamento e, atualmente, está presente no Ceará, Piauí, Amazonas, Roraima, Distrito Federal e no Norte e Nordeste de Minas Gerais. Saiba mais
Para obter mais informações dobre o MEB, acesse o site oficial: .
Segundo seu site 1 oficial, a presente missão do MEB é “Contribuir para a promoção humana integral e superação da desigualdade social por meio de programas de educação popular libertadora ao longo da vida”. Sua metodologia está referenciada na obra de Paulo Freire no que se refere à alfabetização de adultos. Pelo fato do próximo tópico tratar da pedagogia de Paulo Freire, Freire, consequentemente, compreenderemos melhor como o ensino e a alfabetização de adultos acontece recentemente no ensino do d o MEB.
6.5 Paulo Freire e a educação O educador Paulo Freire nasceu em 1921, em Recife, Pernambuco. Formou-se na Escola de Direito de Recife, mas, rapidamente, desistiu de advogar. Apaixonou-se pela educação com a experiência que teve como 1 Disponível em: . br/index.php/missao>. Acesso em: 29 março 2013.
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Pensamentos e movimentos histórico-sociais pela educação
professor de português do Colégio Oswaldo Cruz (no qual ele foi aluno do ensino secundário). Em 1947, tornou-se diretor do setor de Educação e Cultura do Sesi de Pernambuco e de 1954 a 1957 esteve à frente da superintendência desta instituição. No ano de 1960, já com o título de doutor, foi nomeado para o cargo de professor efetivo de Filosofia e História da Educação na Universidade do Recife. Participou, em 1960, do Movimento de Cultura Popular (MCP) que aconteceu no Recife e, dois anos depois, foi diretor do Serviço de Extensão e Cultura (SEC) da Universidade do Recife. Em 1963, foi presidente da Comissão Nacional de Cultura Popular e, em 1964, tornou-se coordenador do Programa Nacional de Alfabetização. Seus estudos voltados para a alfabetização de adultos só começaram a ficar conhecidos no Brasil em “1963, quando o seu método de alfabetização de adultos foi divulgado em ampla campanha publicitária promovida pela Secretaria de Educação do Estado do Rio Grande do Norte” (BEISIEGEL, 2010, p. 14). Com o início do Regime Militar, Freire pediu exílio político para o Chile, onde ficou até 1969. Neste período, trabalhou no Instituto de Pesquisa e Treinamento Agrária, no Escritório Especial para a Educação de Adultos, na Universidade Católica de Santiago e no escritório regional da Unesco. Lecionou em Harvard, nos Estados Unidos, em 1970. Voltou para o Brasil em 1980, onde lecionou na PUC-SP, Unicamp e USP. Figura 2 - Paulo Freire. a s o r d e P l e B / s s e r p a h l o F
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Esta descrição de vida e atuação nos serve para compreender a importância do educador brasileiro no cenário da educação mundial. Seus estudos contribuíram para pensar uma educação que se libertasse liber tasse das amarras das desigualdades. Freire foi mais um pensador que se utilizou do Marxismo para desenvolver suas ideias. Por isso, para ele, a educação era um ato político. Com ela, o cidadão poderia libertar-se da opressão da classe dominante. Preocupado com a marginalização e a exclusão, ele voltou sua preocupação para a formação das classes populares e desenvolveu um método de ensino para jovens e adultos. Dica de Leitura Para aprofundar o conhecimento sobre os estudos de Paulo Freire, sugerimos a leitura da obra Pedagogia do oprimido. FREIRE, P. Pedagogia do oprimido. 18. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988.
Freire firmava sua visão no pensamento cristão. Para ele, o homem era criação divina e devia viver de forma consciente no espaço e tempo em que estava inserido. A escola seria um meio pelo qual o homem alcançaria esta consciência, conforme lembra Beisiegel (2010, p. 30): Entre os numerosos temas do pensamento cristão renovador envolvidos nas reflexões entre educação e humanização, o tema do comprometimento do homem com a sua realidade prevalece sobre os demais. Aberto para o mundo, criador de cultura no âmbito das relações que mantém com os outros homens, com o mundo e com o Criador, é enquanto interfere que o homem realiza plenamente sua humanidade. Mas as possibilidades de interferência do homem se definiam e encontravam limitações no interior de uma realidade histórica e social determinada. E somente a formação e o desenvolvimento de uma consciência capaz de apreender criticamente as características dessa realidade particular possibilitariam o exercício de sua atuação criadora.
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Pensamentos e movimentos histórico-sociais pela educação
Desta feita, seria dentro do processo educativo que o homem conseguiria alcançar a plenitude de humanidade. Com consciência, poderia interagir com a natureza e com os outros homens e, consequentemente, interferir na sua realidade. A educação é agente transformador da sociedade. Como princípio de democracia, Freire propõe uma educação com base no diálogo, desprovida de opressão e violência. Isso reflete em muitos aspectos o momento histórico vivido – Regime Militar. Militar. Ele critica a educação tradicional, chamando-a de “educação bancária”, bancária”, ou seja, os alunos são méritos depositários do saber. De acordo com a concepção freireana, ninguém educa ninguém e ninguém se educa sozinho, pois a educação é um ato de amor e de comunhão entre os homens. Foi por este discurso de mobilização da sociedade e sentimento de libertação que Freire precisou ficar exilado, porque foi considerado subversivo pelo governo da época. Acreditava que a própria nomenclatura utilizada no ambiente escolar era uma forma de dominação e opressão, por isso, em seu método de alfabetização de adultos, sugeriu uma mudança de nomes. Figura 3
Classes Alunos
Círculos de cultura
Participantes dos grupos de discussões
Professores Aula Programa
Coordenadores de debates Debate ou diálogo Situações existenciais
Professor e aluno são entendidos como sujeitos ativos do conhecimento. O professor é aquele que coordena os debates e consegue adaptar o encaminhamento da aula conforme as necessidades e características do grupo, permitindo que o aluno participe ativamente. Por meio de grupos de discussões, conversas e entrevistas são selecionadas “palavras geradoras” (provenientes do cotidiano dos alunos) para engatilhar o estudo da língua portuguesa e demais disciplinas. – 125 –
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Visando a um melhor aproveitamento, aproveitamento, esse grupo de “‘palavras “‘palavras geradoras’ deveria conter todas as possibilidades silábicas da língua, para permitir o estudo das diferentes situações que pudessem vir a ocorrer durante a leitura e escrita” escrita” (BEISIEGEL, 2010, p. 49). As palavras que surgiam no diálogo eram exploradas na ordem do grau de complexidade de leitura e escrita. Apresentava-se a palavra, uma imagem que a representasse, sua divisão silábica, a família silábica de cada sílaba, e assim por diante. Este método dispensava o preparo rígido de aulas e conteúdos, visto que o assunto a ser trabalhado partia das expectativas e xpectativas do cotidiano do adulto trabalhador a ser alfabetizado. Neste sentido, a avaliação também não era formal ou fixa. Ela acontecia na prática vivenciada entre professor e aluno, mediante trabalhos escritos e autoavaliações que os educandos faziam e que refletiam suas compreensões e reflexões sobre o tema estudado. estudad o. O grupo de alunos, de certa forma, realizava a avaliação firmando um “compromisso” com a prática social.
6.6 Pedagogia Histórico-Crítica Em pleno período do Regime Militar, surge, também, um novo pensamento educacional: a Pedagogia Histórico-Crítica. Podemos assinalar seu marco teórico em 1979. Esta prática é assim chamada por Saviani (seu principal representante) por motivos simples: histórico por se tratar de um pensamento que acredita que a educação tem o poder de interferir na sociedade e pode ser agente de transformação da história; e crítica por se tratar de uma perspectiva consciente de sua ação educacional na sociedade. Segundo o autor, esta concepção nasceu do anseio de propor algo novo, pois a Escola Nova e a Tradicional já não correspondiam as necessidades do presente contexto histórico (Saviani, 2007). Focando a transformação da sociedade, esta prática oferece a interação entre a realidade concreta e o conteúdo. Percebe o conteúdo como uma produção construída historicamente e socialmente pelos homens, pretendendo superar as antigas visões não críticas ou reprodutivistas do saber. Assim como como outros outros pensamentos pensamentos educacionais, educacionais, este se propõe propõe a universalizar o ensino e vai além alé m ao afirmar que a escola é o local onde todas as cama– 126 –
Pensamentos e movimentos histórico-sociais pela educação
das sociais podem obter o saber universal. Este saber faz o aluno compreender a sua realidade para poder atuar criticamente e democraticamente no sentido de transformar a sua realidade. A relação entre professor e aluno é dinâmica. Neste pensamento, tanto professor quanto aluno são sujeitos ativos, seres sócio-históricos que fazem parte de uma determinada classe social. O professor é aquele que direciona, interfere e cria condições de aprendizagem, ou seja, ele interage junto ao aluno na aquisição do conhecimento. A interação professor e aluno é estimulada por meio do diálogo. TrabaTrabalhos que envolvam debates, leituras, discussões, conversas, exposições, trabalhos em grupos e individuais marcam a metodologia de ensino. As provas provas tradicionais não fazem parte desta prática. prática. A avaliação avaliação não está voltada somente para o aprendizado do aluno. Por meio de uma avaliação permanente e contínua (diagnóstica) o professor percebe o desenrolar de sua prática pedagógica e pode reformular ou interferir para que o aprendizado aconteça de maneira mais eficaz. Ao mesmo tempo, o aluno recebe o resultado de sua avaliação para programar mudanças na sua forma de aprender. Esta tendência utiliza-se de el elementos ementos provenientes da filosofia, psicologia e da didática. Suas influências vêm dos estudos do Materialismo Histórico-Dialético (de origem do pensamento de Marx) e da Teoria Histórico-Cultural de Vygotsky. Utiliza-se, portanto, de dois teóricos que anteriormente embasaram outros pensamentos da educação. No site da da Unicamp Saviani possui um link de glossário publicado sobre o verbete “Pedagogia Histórico-Crítica”. -Crítica”. Em linhas gerais, o próprio intelectual define que: essa pedagogia é tributária da concepção dialética, especificamente especificam ente na versão do materialismo histórico, tendo fortes afinidades, no que se refere às suas bases psicológicas, com a psicologia histórico-cultural desenvolvida pela “Escola de Vigotski”. A educação é entendida como o ato de produzir, direta e intencionalmente, em cada indivíduo singular, a humanidade que é produzida histórica e coletivamente pelo conjunto dos homens. Em outros termos, isso significa que a educação é entendida como mediação no seio da prática social global. A prática social se põe, portanto, como o ponto de partida e o ponto de chegada da prática educativa. Daí decorre um método pedagógico que parte da prática social onde professor professo r e aluno se encontram igualmente inseridos, ocupando, porém, posições distintas, condição para
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História, Filosofa e Sociologia da Educação
que travem uma relação fecunda na compreensão e encaminhamento da solução dos problemas postos pela prática social, cabendo aos momentos intermediários do método identificar as questões suscitadas pela prática social (problematização), dispor os instrumentos teóricos e práticos para a sua compreensão e solução (instrumentação) e viabilizar sua incorporação como elementos integrantes da própria vida dos alunos (catarse) (SAVIANI, (SAVIANI, 2012, [s. p.]).
É neste sentido que surge um método de aprendizagem pautado em cinco passos: prática social, problematização, instrumentalização, catarse e prática social. Vejamos Vejamos como cada um desenvolve-se. 2
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Prática social – é o ponto de partida, no qual professor e aluno demonstram seus conhecimentos sobre o conteúdo (cada um em nível diferente). O docente apresenta o conteúdo, verifica o conhecimento prévio dos alunos e instiga-os a saberem mais. Problematização – momento de verificar a importância do conteúdo estudado e de problematizá-lo, ou seja, lançar mão de questões que devem ser resolvidas para satisfazer a prática social. Instrumentalização – ocorre a mediação pedagógica, professor irá mediar o aluno ao conhecimento científico, abstrato e formal. Os alunos fazem uma comparação mental entre sua vivência e o conhecimento a fim de formar um novo conteúdo. Catarse – através dos conhecimentos adquiridos no passo anterior, o aluno faz um resumo de tudo que aprendeu por meio de uma avaliação escrita ou oral, formal ou informal, refletindo em uma tomada de consciência. Prática social – é o ponto de chegada, no qual o aluno volta-se para a prática social com um conteúdo concreto já organizado. Com o conhecimento, ele pode atuar fora da sala de aula, consciente do seu papel transformador na sociedade.
Todos estes passos pretendem alcançar os objetivos a que se propõe a educação histórico-crítica e, neste caminho, Saviani (2008) define que a tarefa dessa proposta pedagógica implica: a) Identificação das formas mais desenvolvidas em que se expressa o saber objetivo produzido historicamente, reconhecendo as
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Pensamentos e movimentos histórico-sociais pela educação
condições de sua produção e compreendendo as suas principais manifestações, bem como as tendências atuais de transformação. b) Conversão do saber objetivo em saber escolar, de modo que se torne assimilável pelos alunos no espaço e tempo escolares. c) Provimento de meios necessários para que os alunos não apenas assimilem o saber objetivo enquanto resultado, mas aprendam o processo de sua produção, bem como as tendências de sua transformação (SAVIANI, 2008, p. 9).
Podemos concluir que a Pedagogia Histórico-Crítica pretende desenvolver cidadãos conscientes de seu lugar histórico e social, que consiga transformar o saber objetivo em saber escolar e que não apenas assimilem estes conteúdos, mas que consigam utilizá-los como formas de transformação da sociedade.
Da teoria para a prática O Construtivismo tem seus princípios vindos da psicologia, por isso uma das preocupações é respeitar as fases do desenvolvimento da criança. Piaget e Vygotsky são os principais pensadores que apresentam as bases desta teoria. Nesta perspectiva, o aluno passou a ser um agente de investigação. O conhecimento não está pronto, ele é construído. Mesmo entendendo que não existe um modelo fixo e rígido de metodologia do Construtivismo, pois o conhecimento não é programado, podemos conhecer alguns planos de aula que refletem esta concepção pedagógica. Pesquise experiências pedagógicas construtivistas realizadas por pro sites es ou por meio de entrevistas, depois trace um fessores e alunos, em sit parale par alelo lo com a teoria teoria de Piaget Piaget e Vygotsk Vygotsky, y, para para verific verificar ar se a bas basee do Construtivismo está sendo empregada nas práticas ditas pertencentes a este movimento educacional.
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História, Filosofa e Sociologia da Educação
Síntese Podemos afirmar que os pensamentos pedagógicos aqui explanados são frutos do contexto histórico, social e econômico. As contribuições de Maria Montessori refletiam o anseio europeu de uma educação diferenciada, que atendesse às aspirações da nova vida moderna do século XX. Assim como os estudos da médica e educadora Montessori foram transportados para a educação, as análises psicológicas de Piaget, Vyigotsy e Emília Ferreiro foram levadas para a Teoria Teoria do Construtivismo. Essa última teoria influenciou duas legislações brasileiras e se faz presente (ainda que não no seu sentido original) em muitas escolas do país. Marx, por sua vez, apesar de ser um estudioso das relações de poder e das estruturas, teve sua teoria transportada para o campo educacional influenciando, inclusive, outros pensadores, como Paulo Freire. Verificamos que as teorias desenvolvidas no século XX, apesar de diferentes entre si, trazem algo em comum: o desejo de tornar o ensino mais significativo e democrática para o aluno (embora a falta de recursos e de estrutura das escolas públicas não permitam per mitam a implantação plena dos métodos de ensino). Para encerrar, relembramos que, em determinados momentos, essas teorias coexistiram, ou seja, uma não veio para substituir a outra.
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7 Educação Quilombola e Afrodescendente: políticas e projetos projetos Cassius Marcelus Cruz
Estamos acostumados a pensar o conhecimento, a escola e o processo educativo a partir do referencial epistêmico e cultural do mundo ocidental. Façamos o exercício de questionar esses três elementos: o conhecimento ocidental, de matriz eurocêntrica, é o único conhecimento legítimo? A escola e os processos educativos, que nela se desenvolvem, poderiam ser construídos por meio de outros referenciais epistêmicos? Ampliemos as perguntas: as populações indígenas e africanas possuem conhecimentos específicos produzidos historicamente a partir de seu pertencimento etnorracial 1? Possuem ou possuíam processos educativos específicos? Caso essa resposta seja positiva, quais elementos constituem essa especifici1 O conceito etnorracial abrange o uso político e histórico do conceito de raça para
mobilização do movimento social negro, e o conceito etnia como categoria ligada à dimensão cultural e identitária dos grupos étnicos afrodescendentes.
História, Filosofa e Sociologia da Educação
dade? Essas são algumas das questões que devem orientar a reflexão do texto e das aulas sobre educação afrodescendente e quilombola. Antes de se aprofundar nessas questões, reflitamos sobre os processos históricos com os quais elas estão envolvidas.
7.1 Colonialismo, colonialidade e descolonialidade descolonialid ade do saber Durante quatro séculos, o continente americano esteve submetido a um sistema político, econômico e ideológico que consolidou relações sociais e etnorraciais que, em certa medida, continuam estruturando a sociedade contemporânea: o colonialismo moderno. O processo de dominação dos povos indígenas e o tráfico de escravizados, iniciados no século XVI sob o regime colonial, não se restringiram à exploração econômica dos povos submetidos ao projeto das metrópoles europeias, mas se expandiram para a dominação intelectual, epistêmica e cultural, que corroboraram para o processo de marginalização social dos povos explorados. Como aponta Fannon (1961), ao abordar os efeitos psicológicos do colonialismo, os povos escravizados não foram excluídos apenas da perspectiva de direitos e privilégios, mas também da possibilidade de manutenção de seus pensamentos e valores. Nesse sentido, é necessário compreender que a dominação política e a exploração econômica, levadas a cabo pelo empreendimento colonial europeu, foram acompanhadas de uma tentativa voraz de subtração da condição de ser humano – sujeito de vida, cultura e história –, do indígena e do africano. Esses são aspectos fundamentais a serem pensados pelas perspectivas emancipatórias de educação que denunciam os processos sociais de opressão e anunciam práticas pedagógicas libertadoras, tal qual a pedagogia freireana. Andreola (1999), ao apontar nas obras de Paulo Freire o caráter interdisciplinar de denúncia à opressão, identifica que a obra do pedagogo – além de desvelar os aspectos econômicos e políticos dessa opressão – aborda as dimensões psicológica, antropológico-cultural, ontológica e pedagógica da opressão colonialista. – 132 –
Educação Quilombola e Afrodescendente: políticas e projetos
Do ponto de vista psicológico, assim como Fanon (1982, p. 21) – ao afirmar que “El mundo colonial es un mundo cortado en dos” –, Andreola aponta a denúncia freireana ao modo como a opressão gera uma “dualidade existencial” do oprimido, tornando-se “seres duplos e contraditórios” (1999, p. 73), que hospedam em si o opressor, num misto de rejeição e admiração. No que diz respeito às dimensões antropológico-culturais da opressão, Andreola (1999, p. 73) diz que elas “se resumem naquilo que Freire denomina cultura do silêncio, como interdição da palavra, do idioma, do gesto, da arte e dos valores culturais do oprimido (grifo do autor)”. Em relação à África, a cultura do silêncio se traduz naquilo que Freire (1978) denominava “desafricanização”. Essa estratégia de ação para subordinar os povos africanos, como todo empreendimento ideológico, abrangia todas as esferas da vida social, inclusive a escolar. A face escolar da desafricanização foi vivenciada por várias gerações de africanos durante todo o período escravista e colonial, perdurando até o século XX. O historiador e antropólogo africano Hampâté Bâ, quando criança, retrata sua experiência nas escolas dos colonizadores franceses na África, cuja participação, aliás, era compulsória: Não saberia descrever por que processo os novos alunos logo aprendiam a falar o francês, porque o mestre não traduzia para a língua local absolutamente nada das lições que ministrava. A não ser em algum caso especial, estávamos proibidos de falar as línguas maternas na escola, e quem fosse pego em flagrante delito via-se paramentado com um cartaz car taz infamante que chamávamos de o “símbolo” (2003, p. 228).
Essa interdição da palavra, que é a “cultura do silêncio”, é também uma interdição do ser. Isso nos remete à “dimensão ontológica” ontológica” da opressão colonialista. Ao circunscrever o sujeito africano aos limites da escravidão, impedi-lo de expressar-se autenticamente e ser mais do que o projeto colonial o deixa ser, a opressão o “desumaniza”, rouba-lhe a humanidade e lhe reduz à condição de coisa (ANDREOLA, 1999, p. 75). Nesse sentido, a educação formal, instrumento de homogeneização imposto pelo colonialismo, circunscrevia os povos colonizados aos limites dos objetivos de seus projetos políticos e econômicos. Historicamente, a educação escolar no Brasil tem se caracterizado pelo que Freire denomina de educação bancária, em que: – 133 –
História, Filosofa e Sociologia da Educação
a) o educador é o que educa; os educandos, os que são educados; b) o educador é o que sabe; os educandos, os que não sabem; c) o educador é o que pensa; os educandos os pensados; d) o educador, o que diz a palavra; os educandos, os que a escutam docilmente; e) o educador é o que disciplina; os educandos, os disciplinados; f) o educador é o que opta e prescreve sua opção; os educandos, os que seguem a prescrição; g) o educador é o que atua; os educandos, os que têm a ilusão de que atuam, na atuação do educador; h) o educador escolhe o conteúdo programático; os educandos, jamais ouvidos nesta escolha, se acomodam a ele; i) o educador identifica a autoridade do saber com sua autoridade funcional, que opõe antagonicamente à liberdade dos educandos; estes de vem adaptar-se às determiUnações daquele; j) o educador, finalmente, é o sujeito do processo; os educandos, meros objetos (FREIRE, 1987, p. 59).
A educação bancária reproduz a dimensão pedagógica da opressão, que objetiva estimular a cultura do silêncio. Na ação colonialista, a dimensão pedagógica da opressão provocou a desarticulação dos processos educacionais que transmitem os conhecimentos tradicionais dos povos oprimidos. Como ressalta o historiador africano Hampaté Bâ (2004, p. 5): Uma grande perturbação no campo cultural foi a ruptura progressiva da transmissão dos conhecimentos tradicionais. Até então, essa transmissão era feita f eita oralmente de uma geração a outra por meio das iniciações de ofício e das escolas corânicas. As oficinas artesanais, por exemplo, eram verdadeiras escolas tradicionais, onde se ensinava não apenas uma tecnologia, mas todo um conjunto de conhecimentos científicos e culturais ligados ao ofício. O aprendiz de ferreiro, que trabalhava silenciosamente ao lado de seu mestre, tinha acesso por meio do simbolismo dos instrumentos da forja uma explicação particular do mundo e do papel do homem no Universo, fundado na ideia de responsabilidade e interdependência de todas as coisas. Ele recebe, além disso, um conjunto de conhecimentos concretos sobre, geologia, mineralogia, botânica e toda uma educação comportamental.
As dimensões psicológica, antropológico-cultural, ontológica e pedagógica da opressão colonialista são elementos que podem ser associados ao conceito de colonialidade do poder cunhado por Quijano (2005), ao apontar a centralidade da ideia de raça como classificadora social da população mun– 134 –
Educação Quilombola e Afrodescendente: políticas e projetos
dial, corroborando, assim, para a compreensão do conceito de colonialidade epistêmica ou do saber. saber. Como destaca Damázio (2009, p. 2) A perspectiva de superioridade/inferioridade além de estar na base do conceito de superioridade étnica, também implica a superioridade epistêmica. O conhecimento produzido pelo homem branco é geralmente qualificado como científico, objetivo e racional, enquanto aquele produzido por homens de cor (ou mulheres) é mágico, subjetivo e irracional. Esta dimensão, a colonialidade epistêmica ou do saber, não apenas estabelece o eurocentrismo como perspectiva única do conhecimento, mas também descarta as outras produções intelectuais.
Foi com a consolidação da ciência moderna, a partir do século XVIII, e a suposta neutralidade, a qual atribui a sua posição de produtora de conhecimento universal para além dos condicionantes locais e temporais, que foi possível situar-se no que Castro Gomes denomina de epistemologia do ponto zero e ter o poder de nomear pela primeira vez o mundo; de traçar fronteiras para estabelecer quais conhecimentos são legítimos e quais são ilegítimos, definindo quais comportamentos são normais e quais são patológicos. Por isso o ponto zero é o do começo epistemológico absoluto, mas também o do controle econômico e social sobre o mundo. Localizar-se no ponto zero equivale a ter o poder de instituir, tuir, de representar, representar, de construir uma visão sobre o mundo social e natural reconhecida como legítima e autorizada pelo Estado. Trata-se de uma representação no qual os varões ilustrados se definem a si mesmos como observadores neutros e imparciais da realidade (CASTRO GOMES apud DAMAZIO, 2009, p. 110).
A colonialidade do poder e a colonialidade epistêmica, ou do saber, saber, não se restringem ao colonialismo, ou seja, ao período colonial, mas constituem-se elementos estruturantes dos regimes que se estabelecem após esse período. Exemplo disso pode ser percebido com a construção do regime republicano no Brasil. Com a difusão das teorias raciais no Brasil, ao final do século XIX, o pro jeto de “branqueamento” “branqueamento” da sociedade articulou-se ao projeto político-eco– 135 –
História, Filosofa e Sociologia da Educação
nômico do novo regime, ou seja, consolidou-se na mentalidade da elite nacional a tese de que o desenvolvimento político, econômico e cultural do país dependia do aumento da quantidade de europeus no país. Assim, o processo de substituição da mão de obra negra escravizada pela mão de obra europeia imigrante estava, também, relacionada ao “apagamento” das marcas culturais africanas e indígenas e ao enraizamento da cultura dos imigrantes. As consequências evidentes desse processo podem ser percebidas pelos dados derivados das pesquisas sobre a condição social da população negra, que retratam o grau de marginalização social e de desigualdade etnorracial ao qual essa parcela da população brasileira é submetida. Considerando que a colonialidade epistêmica possui possu i relações diretas com as dimensões psicológica, antropológico-cultural, ontológica e pedagógica da opressão colonialista, e que é parte estruturante da sociedade contemporânea, podemos pensar em processos e práticas educativas que rompam com esses elementos de opressão social e etnorracial? Quais princípios deveriam orientar tais processos e práticas? Freire (1978), em contraposição aos efeitos da invasão cultural na África, Á frica, afirma a necessidade de descolonização das mentes e reafricanização das mentalidades. Essa perspectiva apontada por Freire tem sido desenvolvida por teóricos latino-americanos, que vem adotando os conceitos de descolonialidade e interculturalidade. Enquanto a descolonialidade implica no desvelamento da lógica da reprodução da matriz colonial do poder, numa tentativa de ruptura com os efeitos totalitários das subjetividades e categorias de pensamento ocidentais (DAMÁZIO, 2009), a interculturalidade apresenta-se como proposta política social, ética e intelectual, originada nos grupos etnorraciais e arraigada em suas lógicas próprias. É necessário destacar que o conceito de interculturalidade diverge das perspectivas liberais do multiculturalismo, pois não se restringe ao reconhecimento, tolerância e incorporação da diferença na ordem vigente. Como aponta Damázio (2009, p. 114): A meta não é simplesmente reconhecer, reconhecer, tolerar nem tampouco incorporar o diferente dentro da matriz e estruturas estabelecidas, mas é implodir a diferença nas estruturas colo-
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niais do poder como provocação, proposta, processo e pro jeto. Trata-se Trata-se de refundar as estruturas sociais, epistêmicas e de existência que colocam em cena lógicas, práticas e modos culturais diversos de pensar e viver. Por isso a interculturalidade não é um fato dado, mas algo em permanente caminho e construção. Mais que um conceito de inter-relação ou comunicação, significa potência e indica construir e fazer incidir pensamentos, vozes, saberes, práticas, e poderes sociais “outros”.
Não se trata, todavia, em uma negação do pensamento ocidental de matriz europeia, mas da explicitação de suas dimensões de dominação e no questionamento de sua hegemonia enquanto discurso produtor de verdades e realidades universais. A interculturalidade intercultur alidade e a descolonialidade descoloniali dade do saber sabe r são categorias categori as que se articulam às lutas dos movimentos indígenas e afrodescendentes2, na denúncia da opressão colonialista e no anúncio das possibilidades de reorganização das relações sociais e etnorraciais, a partir das lógicas próprias persistentes nesses grupos. Dessa forma, apresentam-se como categorias potenciais para a construção de processos e práticas educativas ed ucativas que rompam com os elementos de opressão social e etnorracial. No que se refere à presença negra no Brasil, tal proposta pode articular-se a partir de um processo dialógico com as comunidades afro-brasileiras, compreendidas aqui como coletivos com identidades etnorraciais que desenvolvem ações culturais, políticas, econômicas e religiosas, dotadas ou não de territórios delimitados, tais como as comunidades quilombolas, os povos das religiões de matriz africana, os grupos de capoeira, as escolas de samba e as diversas formas coletivas de expressão política e/ou cultural afro-brasileira. Apesar do processo de exclusão e marginalização social, segmentos da população negra têm experimentado, historicamente, processos educativos específicos, a despeito das dificuldades de acesso e permanência à educação 2 O termo “afrodescendente” se refere aos/às descendentes de africanos(as) na diáspora, em
contextos de aproximação política e cultural, e é utilizado como correlato de negros(as) (ou, às vezes “pretos”) “pretos”) nos países de língua portuguesa, como o Brasil, de african american, na língua inglesa, em países como Estados Unidos (onde se usa também o termo black) (BRASIL, 2006, p. 215).
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escolar que lhes foram impostas ao longo da história. Dentre essas experiências de educação do negro3, podemos destacar: 2
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as atividades realizadas pelas irmandades negras, durante os séculos XVIII e XIX, ou por organizações negras, negras, como a Frente Frente Negra Negra e o Teatro Experimental do Negro, durante o século XX; iniciativas de indivíduos negros com maior nível de educação formal, como o caso ocorrido em 1853, quando o educador negro Pretextato dos Passos Silva 4 apresentou requerimento à Corte, no Rio de Janeiro, solicitando autorização para “criação de uma escola destinada a meninos pretos e pardos”; pardos”; as experiências das inúmeras organizações que foram criadas a partir da década de 70 do século XX que, além da crítica à política educacional, passaram a desenvolver processos educativos autônomos, tomando como base o estudo de história e cultura africana e produzindo práticas educativas associadas à elevação da autoestima da população negra, através, por exemplo, dos grupos de dança ou blocos carnavalescos afro-brasileiros; as experiências de educação não escolar destinadas à manutenção e fortalecimento dos laços ancestrais que permitem a persistente presença dos territórios das religiões de matriz africana e das comunidades quilombolas, definidos anteriormente como processos educacionais de transmissão de conhecimentos tradicionais.
Entretanto, desconsiderando os casos em que conseguiram articular-se à educação escolar, escolar, essas experiências foram e continuam sendo deslegitimadas 3 O conceito de negro aqui empregado tem base política, etnossemântica e ideológiga, e não
biológica. Trata-se de um conceito reapropriado pelos movimentos negros, já que, no período colonial, distinguia-se do termo preto por indicar o s sujeitos africanos escravizados ou descendentes que tinham uma postura de resistência frente à escravidão. Em contraposição a brancos e mestiços, o conceito de negro define pessoas com aparência marcadamente negroide. 4 O referido educador apresentou requerimento, acompanhado de lista de assinatura dos pais das
crianças negras, onde “argumenta que, sendo ele negro e compreendendo a vida daquelas crianças, poderia ‘ensinar com perfeição e sem coação’. [...] Pretextato implantou e trabalhou em sua escola por mais de 20 anos” (CUNHA JR, 200 2001). 1).
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Educação Quilombola e Afrodescendente: políticas e projetos
enquanto processos educativos que conferem conhecimentos, não apenas de base étnica, mas também de base universal. O que confere a esses diversos grupos uma identidade comum? Existe de fato uma cultura afro-brasileira, ou existem culturas afro-brasileiras? Como desenvolver práticas educativas específicas, ancoradas na interculturalidade e na descolonialidade do saber a partir desses coletivos? Para responder a essas perguntas, é necessário compreender os processos de desterritorialização e reterritorialização da cultura africana e as africanidades, que afirmam a afrodescendência no Brasil.
7.2 Os processos de desterritorialização e reterritorialização da cultura africana, africanidades e afrodescendência no Brasil Um dos processos derivados do colonialismo foi a desterritorialização e reterritorialização 5 da cultura africana a partir do escravismo, ou seja, o fluxo cultural derivado da escravização de africanos para o continente americano. Ao falarmos de desterritorialização e reterritorialização da cultura africana no Brasil, devemos levar em consideração que os grupos africanos que foram forçosamente trazidos da África para a América, a partir do século XIX, tiveram suas culturas constituídas antes do contato com os europeus. Trata-se, pois, de conhecer a história e a cultura dos povos africanos não apenas a partir de sua inserção no sistema colonial, mas, sobretudo, a partir da reconfiguração de elementos estruturantes das culturas dos povos africanos na diáspora 6, considerando suas permanências e transformações a partir das interações que se instauraram no período colonial. 5 OLIVEIRA, E. D. Cosmovisão africana no Brasil: elementos para uma filosofia
afrodescendente. Fortaleza: LCR, 2003.. 6 Diáspora é uma palavra de origem grega que significa “dispersão”, designada, inicialmente,
“principalmente aos movimentos espontâneos dos judeus pelo mundo, hoje aplica-se também à desagregação que compulsoriamente, por força do tráfico de escravos, espalhou negros africanos por todo o continente” (LOPES, 2004, p. 235).
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História, Filosofa e Sociologia da Educação
Tal abordagem vem sendo adotada pelos pesquisadores das africanidades brasileiras e da afrodescendência 7, entre eles, Henrique Cunha Jr., Petronilh Petron ilhaa Beatri Bea trizz Gonçalv Gonç alves es e Silva, Sil va, Álvaro Álv aro Risoli Ris oli e Válter ált er Silvér Sil vério, io, responsáveis, segundo Cunha Jr. (2002) pelo uso mais sistematizado dos referidos conceitos. Tomando como referência os trabalhos de Chek Anta Diop, defende-se que a tese da existência de uma matriz cultural africana que se diversifica de acordo com os contextos históricos, geográficos e econômicos do continente africano, pode ser aplicada para outros contextos que receberam um contingente significativo de africanos escravizados, ou seja, também na América é possível verificar uma (re)elaboração da matriz cultural africana. Assim: Os elementos de base africana passam no Brasil pelas restrições econômicas e políticas do escravismo e do capitalismo racista. É essencial, na compreensão da problemática afrodescendente brasileira, o entendimento das restrições do político-econômico, uma vez que admitimos que a (re)elaboração destas culturas foi realizada sob forças de pressões e dominação. É essencial ao conceito de Africanidades Brasileiras a ideia de (re)elaboração. As Africanidades Brasileiras são (re)processamentos pensados, produzidos no coletivo e nas individualidades, que deram novo teor às culturas de origem (CUNHA JR., 2001).
É a esse processo de reelaboração da matriz cultural africana que Oliveira (2003) se refere ao tratar de territorialização, desterritorialização e reterritorialização da cultura africana no Brasil. Compreende-se como matriz cultural africana, ou como cosmovisão africana, determinadas concepções e experiências (de território, universo, força vital, palavr a, tempo, ancestralidade, família, entre outras) comuns e estruturantes na organi7 “As Africanidades Brasileiras são (re)processamentos pensados, produzidos no coletivo e nas
individualidades, que deram novo teor às culturas de origem” africanas a partir de “reeleaborações” – do “candomblé, da capoeira angola e dos quilombos”. Trata-se da “existência de um conjunto amplo, indo do pensamento brasileiro à base material da cultura brasileira. [...] formam um paradigma poderoso para revisão dos conceitos e preconceitos vigentes na cultura brasileira. Forjam-se nas ações e nos discursos processados pelas camadas “racizadas” [...]. Produzem espaço de liberdade intelectual, livre dos racismos e dos conceitos produzidos nos processos da dominação historicamente vigentes na cultura brasileira. As Afrodescendências instruem sobre a diversidade étnica brasileira, livre dos racialismos, reconhecedora da presença ampla, diversa, múltipla e estruturada, de uma etnia predominante afrodescendente” (CUNHA JR., 2009).
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Educação Quilombola e Afrodescendente: políticas e projetos
zação social, política e cultural das sociedades africanas, antes da invasão europeia que, “apesar das modificações e rupturas, seguem estruturando as concepções de vida dos africanos e seus descendentes espalhados pelo mundo depois da Diáspora Negra” (OLIVEIRA, 2003, p. 40). As africanidades são as formas diversificadas diversifi cadas como essas concepções e experiências se reelaboram nos contextos em que os africanos escravizados e seus descendentes foram forçosamente inseridos, como as comunidades quilombolas no Brasil. Enquanto as africanidades brasileiras apresentam-se como elementos produzidos nessa dinâmica de (re)elaboração da matriz cultural africana e de suas diversificações, o conceito de afrodescendência nos remete aos processos identitários associados ao que chamamos inicialmente de desterritorialização e reterritorialização da cultura africana. O conceito da Afrodescendência […] tem por base a história e os processos de formação de identidade afrodescendente. As populações resultantes de imigrações forçadas devido ao sistema de produção do escravismo criminoso têm uma história em comum no Brasil. São originárias de um território de formação histórica e cultural comum que é o continente africano, a história e a cultura africanas. Esta população estabelece novas relações sociais e sofre as transformações condicionadas, de certa maneira, pelo sistema escravista e depois pelo capitalismo racista. Nestes processos sociais produzem novas identidades que resultam de uma origem comum e de uma história de contornos comuns. Afrodescendência é um conceito de base étnica dado pela história sociológica dessas populações. Os contornos desta identidade afrodescendente são de natureza política e cultural (CUNHA JR., 2001).
A afrodescendência aborda, então, as identidades produzidas, por exemexemplo, nas religiões de matriz africana, nas diversas comunidades de terras de preto, mocambos, lugar de preto, dentre outras designações das comunidades que hoje identificam-se como quilombolas, e nas diversas formas de expressão, coletivas ou individuais, associadas à base cultural africana. A abordagem dessas identidades envolve, também, as análises dos processos de dominação e de marginalização social da população negra – dentre eles o racismo antinegro – que acarretam consequências no campo estrutural das relações de trabalho, da cultura e da educação (CUNHA JR., 2006). – 141 –
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Nessa perspectiva, a educação afrodescendente pode ser considerada como o processo educativo que emerge dos territórios afrodescendentes, afirma identidades étnicas, propiciou e propicia a reelaboração das culturas afro-brasileiras e inscreve as africanidades nos territórios da diáspora negra. A educaç edu cação ão quilom qui lombol bolaa é compree comp reendi ndida, da, aqui, aqu i, como a singul sin gulari arizazação da educação afrodescendente em quilombos, ou seja, os processos educativos que emergem desses territórios. Como a maioria das comunidades quilombolas localiza-se no campo, incorpora, então, as especificidades (histórico, conflitos, contradições, potencialidades e demandas) desse contexto. Dessa maneira, para pensarmos uma educação quilombola e afrodescendente é necessário compreender, inicialmente, a definição de quilombo.
7.3 Quilombo: conceito político e científico em construção Ao abordar o conceito conceito de quilombo deve-se, inicialmente, inicialmente, compreender que ele possui variações de acordo com as disciplinas, com os campos e os contextos em que foi elaborado e que, atualmente, a definição desse conceito está diretamente relacionada com a demanda de regularização fundiária dos territórios dos grupos que se autodefinem como Comunidades remanescentes de quilombo. Nesse sentido, como aponta Leite (2000, p. 333), “falar dos quilombos e dos quilombolas no cenário político atual é, portanto, falar de uma luta política e, consequentemente, uma reflexão científica em processo de construção”. construção”. Segundo Clóvis Moura, a primeira referência a quilombo em documentos oficiais portugueses data de 1559, mas só em 1740 o Conselho Ultramarino define-o como “toda habitação de negros fugidos que passem de cinco, em parte despovoada, ainda que não tenham ranchos levantados nem se achem pilões neles” (MOURA, 1987, p. 16). Essa definição de quilombo, produzida pelas autoridades portuguesas para referirem-se aos agrupamentos negros livres do domínio colonial e que coloca a fuga e fixação na terra como centralidade do conceito, foi a abordagem predominante na historiografia brasileira. – 142 –
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Para além das abordagens historiográficas podemos identificar, ao final da década de 70 do século XX, frente ao contexto de reabertura política e de constituição dos movimentos negros contemporâneos, a emergência de outras abordagens. Nesse momento, “intelectuais envolvidos com o ’estudo da cultura negra’ e a construção de uma identidade negra [...] apresentam uma noção de quilombo que é correlata das formulações empreendidas no âmbito do movimento negro e tentam aplicá-la aos seus estudos e reflexões” (RATTS, 2006, p. 312). Dentre eles, podemos destacar Beatriz Nascimento, Nascimento, Ney Lopes e Abdias do Nascimento. Algumas das características das produções desses pesquisadores são: a recuperação dos sentidos atribuídos ao termo quilombo em sua origem africana, o apontamento de suas continuidades e especificidades no contexto histórico brasileiro e, por fim, sua utilização como instrumental conceitual operativo na transformação das condições sociais da população afro-brasileira. Abdias Nascimento é o defensor dessa última posição, em que quilombo é assumido explicitamente como: Um instrumental conceitual operativo [que] se coloca, pois, na pauta das necessidades imediatas da gente negra brasileira. Ele não deve e não pode ser o fruto de uma maquinação cerebral arbitrária, falsa e abstrata. Nem tampouco pode ser um elenco de princípios importados, elaborados a partir de contextos e de realidades diferentes. A cristalização dos nossos conceitos, definições e princípios deve exprimir a vivência de cultura da coletividade negra. Só assim estaremos incorporando nossa integridade de ser total, em nosso tempo histórico, enriquecendo e aumentando nossa capacidade de luta. Onde poderemos encontrar essa vivência de cultura coletiva? Nos quilombos (1991, p. 206).
Parte dos movimentos sociais negros buscou essa vivência de cultura coletiva nas terras de preto, mocambos, lugar de preto, dentre outras designações de comunidades negras rurais. Locais onde as questões fundiárias e etnorraciais presentes no país se cruzam e fornecem outra abordagem do conceito de quilombo.
7.4 Quilombo: direito ao território e a igualdade etnorracial A questão fundiária e a questão etnorracial são elementos estruturantes da desigualdade no país. Desde a perspectiva jurídica, podemos situar a Lei de – 143 –
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Terras, de 1850, e a Lei Euzébio de Queiróz como os marcos legais legitimadores do latifúndio e da desigualdade etnorracial. Por meio da Lei de Terras, que determinou que a aquisição da terra no país deveria ocorrer através de compra, as camadas populares formadas, sobretudo por indígenas, africanos escravizados e afrodescendentes, têm o acesso a terra limitados pela condição econômica e social em que se situavam. No que se refere à Lei Euzébio de Queiróz, que estipulava o fim do tráfico internacional de escravos, iniciou-se um lento processo de abolição da escravidão. Ambos os processos se articulavam com a substituição do trabalho cativo do africano e dos afrodescendentes escravizados pelo trabalho livre e assalariado dos imigrantes europeus. Devemos salientar que a política de substituição da mão de obra escravizada pela mão de obra livre assalariada orientou-se, de um lado, por uma política de ação afirmativa para garantir as condições estruturais para a vinda e inserção econômica dos imigrantes europeus e, de outro, pela inexistência de políticas reparatórias dos ex-escravizados após a abolição. Apesar da ausência de políticas reparatórias, um contingente significativo de africanos escravizados e de libertos tiveram acesso à terra por meio de processos diferenciados, como a criação de comunidades de escravizados que fugiam do cativeiro; criação de comunidades em terras doadas por senhores escravocratas a seus escravizados; doação de terras por serviços prestados ao poder público ou, até mesmo, por meio da aquisição de terra após inúmeras maneiras de pecúlios, dentre outras inúmeras maneiras. As comunidades criadas por essas inúmeras formas de acesso à terra criaram territórios e estabeleceram práticas econômicas, políticas e culturais próprias, através da reelaboração dos elementos da base cultural africana, delineadas pelos contextos em que se inseriram. Entretanto, essas comunidades negras, localizadas majoritariamente no campo, não tiveram a garantia de permanecer em seus territórios. A demanda por regularização regularização dos territórios das comunidades comunidades negras só encontra base legal um século após a abolição da escravidão, com a promulgação da Constituição de 1988, em que se define, no Art. 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, que aos “remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos”. – 144 –
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É necessário ressaltar que, a princípio, princípi o, os sujeitos que historicamente demandavam a regularização de seu território não se identificavam, necessariamente, como remanescentes das comunidades de quilombo. Essa categoria jurídica surge surg e no contexto da Assembleia Nacional Constituinte e deriva da mobilização de militantes e parlamentares negros, que de mandavam “a abertura de um espaço jurídico para proteção das comunidades negras rurais r urais remanescentes” (BANDEIRA, 1991, p. 18). Tal Tal mobilização é decorrente da pressão social exercida por essas comunidades e articula a demanda de regularização fundiária a um processo de afirmação de identidade étnica 8. Momento significativo para a organização das comunidades negras rurais, hoje denominadas de comunidades remanescentes de quilombo, foi o projeto “Comunidades Negras no Meio Rural Maranhense” iniciado em 1983 pelo Centro de Cultura Negra do Maranhão, sob coordenação da historiadora e ex-presidente da instituição, Mundinha Araújo. Desse projeto derivou a realização do 1º Encontro de Comunidades Negras Rurais, realizado em 1986, em São Luiz. Nesse encontro, que teve como tema central “O Negro e a Constituição Brasileira”, Brasileira”, foram elaboradas propostas com enfoque na situação fundiária das comunidades negras rurais. Essas propostas foram apresentadas na Convenção Nacional “O Negro e a Constituinte” – convocada pelo MNU e realizada em 1986 – e encaminhadas no Congresso Nacional pela deputada Benedita da Silva (PT/RJ). O Art. 68 do ADCTs, da Constituição de 1988, deriva dessas reivindicações. Entretanto, a categoria jurídica que define os sujeitos desse direito ficou sendo a de remanescentes das comunidades de quilombo, e não a de comunidades negras rurais ou das demais designações dos grupos que demandavam a regularização de suas terras. Intensifica-se então uma “política das identidades”, na qual esses grupos passam a se autodeclarar como comunidades remanescentes de quilombo. 8 Como aponta Almeida (2005, p. 17), “o processo social de afirmação étnica, referido aos
chamados quilombolas, não se desencadeia necessariamente a partir da Constituição de 1988, uma vez que ela própria é resultante de intensas mobilizações, acirrados conflitos e lutas sociais que impuseram as denominadas terras de preto, mocambos, lugar de preto e outras designações que consolidaram de certo modo diferentes modalidades de territorialização das comunidades remanescentes de quilombos.
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Diante do impasse que começou a se estabelecer, a Associação Brasileira de Antropologia (ABA) é convocada pelo Ministério Público Federal, em 1994, para dar seu parecer em relação às situações já conhecidas e enfocadas nas pesquisas sobre quilombos. O conceito de quilombo passou a ser mais abrangente. Segundo o documento da ABA, Quilombo tem novos significados na literatura especializada, também para grupos, indivíduos e organizações. Ainda que tenha conteúdo histórico, vem sendo ressemantizado para designar a situação presente dos segmentos negros em regiões e contextos do Brasil. Quilombo não se refere a resíduos ou resquícios arqueológicos de ocupação temporal ou de comprovação biológica. Também não se trata de grupos isolados ou de população estritamente homogênea. Nem sempre foram constituídos a partir de movimentos insurrecionais ou rebelados. Sobretudo consistem em grupos que desenvolveram práticas cotidianas de resistência na manutenção e na reprodução de modos de vida característicos, e na consolidação de território próprio. A identidade desses grupos não se define por tamanho nem número de membros, mas por experiência vivida e versões compartilhadas de sua trajetória comum e da continuidade como grupo. Constituem grupos étnicos conceituados pela antropologia como tipo organizacional que confere pertencimento por normas e meios de afiliação ou exclusão (O’DWYER, 1995, p. 1).
Essa definição da ABA fundamenta a concepção de quilombo presente no Decreto n. 4.887/03, que regulamenta o procedimento de titulação dos territórios quilombolas. Segundo esse decreto, remanescentes de quilombos são os grupos etnorraciais, segundo critérios de autoatribuição, com trajetória histórica própria, dotados de relações territoriais específicas, com presunção de ancestralidade negra relacionada com a resistência à opressão histórica sofrida.
Essa concepção é mais abrangente do que a definição consolidada historicamente de quilombo enquanto reduto de escravos fugidos, e engloba inúmeros processos de territorialização das populações afrodescendentes. Populações que, além do direito de regularização de seu território, possuem o direito de uma educação escolar específica, que contribua para o fortalecimento de sua identidade étnica e cultural. – 146 –
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Dessa forma, às perspectivas de escolarização que emergem dos quilombos somam-se as reivindicações históricas dos movimentos negros por uma educação afrodescendente das relações etnorraciais, que se articulam com as reivindicações de escolarização dos movimentos sociais do campo. Assim, Assim , na proposta propos ta de educação educaç ão escolar escola r quilombola quilo mbola que vem se consolidando na pauta de reivindicação do movimento quilombola, a escola passa a ser um instrumento fundamental para a manutenção e desenvolvimento dessas comunidades e deve articular, entre outros aspectos, práticas educativas voltadas: 2
à superação das desigualdades etnorracias;
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à afirmação de identidades étnicas;
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à valorização e fortalecimento dos processos de inscrição das culturas afro-brasileiras no país; à luta comunitária por regularização de seus territórios ancestrais.
A seguir, seguir, será analisada a legislação que garante aos quilombolas o direito a uma política educacional diferenciada.
7.5 Referenciais legais e metodológicos para a educação afrodescendente e quilombola Como vimos anteriormente, a preocupação com a escolarização da população negra pode ser percebida já em 1853, quando o educador negro, Pretextato dos Passos Silva, requeriu requer iu à Corte a criação de uma escola esco la destinada a meninos pretos e pardos. Essa preocupação está presente, também, no 1º Congresso Nacional do Negro Brasileiro, realizado no Rio de Janeiro, em 1950, pelo Teatro Experimental do Negro, em que é reivindicado no documento final: “o estímulo ao estudo das reminiscências africanas no país, bem como dos meios de remoção das dificuldades dos brasileiros de cor e a formação de institutos de pesquisas públicas e particulares com esse objetivo” (NASCIMENTO, 2008, p. 139). Essas e outras reivindicações – como a do 1º Congresso Nacional do Negro, realizado em Porto Alegre, em 1958, pela Sociedade Floresta Aurora, – 147 –
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no qual um dos temas centrais de discussão foi “a necessidade de alfabetização frente à situação atual do Brasil” (GOMES, 2009) – só foram acolhidas pelo poder público federal em 2003, com a sanção da Lei Lei n. 10.639, que altera a Lei de Diretrizes e Bases da Educação e inclui no currículo oficial da rede de ensino a obrigatoriedade da temática “história e cultura afro-brasileira 9”, e com a instituição das Diretrizes Curriculares Nacionais para Educação das Relações Etnorraciais Etnorraciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-brasileira Afro-brasileira e Africana, pelo Conselho Nacional de Educação, em 2004.
Entretanto, no caso das comunidades quilombolas e das comunidades de terreiro ou religiões de matriz africana, além dessas referências, devemos considerar a Convenção n. 169 da Organização Org anização Internacional do Trabalho, Trabalho, o Decreto n. 6.040/07 e as Diretrizes Operacionais para uma Educação Básica do Campo, como legislações que garantem o direito a uma organização escolar coerente com a cultura e com os processos próprios de educação existentes nessas comunidades.
7.6 Lei n. 10.639/03 e DCNs para educação das relações etnorraciais e para o ensino de história e cultura afro-brasileira e africana As legislações referentes à educação das relações etnorraciais e para o ensino de história e cultura afro-brasileira e africana, que embasam a educação quilombola e afrodescendente, além de estarem ligadas à demanda histórica anteriormente apresentada, embasam-se nas produções de pesquisadores vinculados aos movimentos sociais negros. Desde a década de 70 do século XX, essas pesquisas vêm abordando e denunciando as práticas e os efeitos do racismo no processo de escolarização e apontando a necessidade de (re) educação das relações etnorraciais existentes no Brasil. Essas abordagens contribuem para perceber como o racismo e a desigualdade etnorracial é reproduzida no ambiente escolar por meio: 2
da representação de negros, negras e indígenas nos livros didáticos;
9 Em 2007 2007 se torna obrigatóri ob rigatório, o, também, através atr avés da Lei n. 11.645/07 11.645/07 que complementa complemen ta
o Artigo 26A da LDB, o ensino de história e cultura indígena.
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da distribuição desigual de atenção e afeto de professoras para crianças de grupos étnicos diferenciados; da ausência de conteúdos de história e cultura afro-brasileira, africana e indígena no currículo das escolas; das práticas pedagógicas homogeneizantes, ou seja, que desconsideram a diversidade etnorracial, de gênero e orientação sexual existente nas escolas, dentre outros elementos do processo de escolarização.
Na perspectiva da educação das relações etnorraciais, trata-se de pensar como, por meio da inclusão i nclusão de novos conteúdos no currículo e da mudança das práticas pedagógicas, a educação brasileira deve escolarizar e contribuir para criar relações etnorraciais mais harmônicas entre educandas de grupos etnorraciais diversos, contribuindo assim para a eliminação das práticas de racismo. Uma abordagem complementar à da educação das relações etnorraciais é a educação afrodescendente. Enquanto a educação das relações etnorraciais utiliza-se do conceito histórico e politicamente construído de raça 10, as abordagens da afrodescendência dão centralidade à cultura e a etnia 11, esta compreendida enquanto categoria histórico-sociológica articulada aos processos históricos e à dinâmica das relações sociais e simbólicas do sistema capitalista: As relações rela ções capital capi talista istass não implic imp licam am apenas ape nas em capital capi tal econômico, mas abrange o capital simbólico. A etnia faz parte das relações capitalista, por isto denominamos o capitalismo racista. O conceito de etnia afrodescendente é fundamental devido o fato de englobar processos his10 “As ciências naturais contemporâneas negam as raças biológicas, referindo-se a espécie
humana, porém, as ciências sociais, reconhecendo as desigualdades historicamente produzidas com base no fenótipo das pessoas, especialmente em países que escravizaram africanos(as) tem optado pela manutenção do termo raça como uma construção social que abrange essas diferenças e os significados a elas atribuídos que estão na base do racismo. [...]. O que se define raça codifica um olhar político para a história do negro no Brasil” (BRASIL, 2006, p. 222). 11 Nas ciências sociais, em especial a Antropologia, a “etnia” emerge após a II Guerra, em
contraposição ao termo “raça” que as ciências da natureza passaram a considerar inadequadas para tratar das diferenças entre grupos humanos. Etnia é um grupo social que considera ter origem e cultura comuns e, portanto, identidade marcada por traços distintivos (BRASIL, 2006, p. 218).
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tóricos, deste do campo das ideias as praticas sociais de apropriação dos bens sociais, materiais m ateriais e imateriais. Nesta construção histórica sociológica da dominação ocidental, o fator político predomina sobre o econômico, invertendo neste sentido a lógica marxista, sem, no entanto negá-la, mas procurando ultrapassá-la para realizar uma explicação consistente da situação da população afrodescendente (CUNHA JR, 2001).
Nas abordagens afrodescendentes, não se trata apenas de entender o negro no Brasil, mas o Brasil a partir dos afrodescendentes (OLIVEIRA, 2007, p. 270). Nessa perspectiva, a própria educação é abordada pelo enfoque das africanidades e da afrodescendência. Como na Pedagogia do Baobá, proposta por Oliveira, “busca-se pensar a educação através do repertório cultural de origem africana e não simplesmente s implesmente pensar o negro na educação brasileira brasilei ra”” (2007, p. 271). Nas críticas da descolonialidade do saber, trata-se de questionar a hegemonia epistêmica eurocêntrica e enfrentar a epistemologia do racismo, pois: A escola esc ola,, de fato, fat o, é um espaço espa ço de conflito confl ito e confront conf rontoo de visões de mundo díspares. Etnocêntrica, ela privilegiou os saberes e os valores eurocêntricos e, mais contemporaneamente, norte-americanos. Por isso não se pode apenas tratar do negro no Brasil, pois corre-se o risco de manter estes mesmos pressupostos filosófico-culturais no trato da questão. É preciso enfrentar a epistemologia do racismo pois o “principal problema encontrado no processo de ensino e aprendizado da História Africana não é relativo à história e sua complexidade, mas é com relação aos preconceitos adquiridos num processo de informação desinformada sobre a África” (CUNHA JR, 2002, p. 58) (OLIVEIRA, 2007, p. 272).
Como enfatizam as Diretrizes Curriculares Nacionais para Educação das Relações Etnorraciais para o Ensino de História e Cultura Afro-brasileira e Africana, não se trata de substituir um olhar eurocêntrico por outro afrocêntrico, nem de descartar os conhecimentos historicamente produzidos e sistematizados pela ciência ocidental, mas, como enfatiza Lopes da Silva (2002, p. 28), de compreender que “a escola deve ser considerada não apenas ‘o espaço para a apropriação do saber sistematizado’, como entendem algumas concepções pedagógicas, mas também o espaço de reapropriação da cultura – 150 –
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produzida pelos grupos sociais e étnicos excluídos12, como as comunidades quilombolas, incluindo aqui os elementos que compõem epistemologias e pedagogias específicas. Dentre as determinações definidas pelas referidas diretrizes que legitimam esse enfoque, destacamos: 2
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O ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana, evitando-se distorções, envolverá articulação entre passado, presente e futuro no âmbito de experiências, construções e pensamentos produzidos em diferentes circunstâncias e realidades do povo negro. É um meio privilegiado para a educação das relações etnorraciais e tem por objetivos o reconhecimento e valorização da identidade, história e cultura dos afro-brasileiros, garantia de seus direitos de cidadãos, reconhecimento e igual valorização das raízes africanas da nação brasileira, ao lado das indígenas, europeias, asiáticas. O ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana se fará por diferentes meios, em atividades curriculares ou não, em que: se explicitem, busquem compreender e interpretar, na perspectiva de quem o formule, diferentes formas de expressão e de organização de raciocínios e pensamentos de raiz da cultura africana; promovam-se oportunidades de diálogo em que se conheçam, se ponham em comunicação diferentes sistemas simbólicos e estruturas conceituais, bem como se busquem formas de convivência respeitosa, além da construção de projeto de sociedade em que todos se sintam encorajados a expor, expor, defender sua especificidade etnorracial e a buscar garantias para que todos o façam; – sejam incentivadas atividades em que pessoas – estudantes, professores, servidores, integrantes da comunidade externa aos estabelecimentos de ensino – de diferentes culturas interatuem e se interpretem reciprocamente, respeitando os valores, visões de mundo, raciocínios e pensamentos de cada um. O ensino de Cultura Afro-Brasileira destacará o jeito próprio de ser, viver e pensar manifestado tanto no dia a dia, quanto em
histori camente marginalizados aqueles grupos 12 Considera-se, aqui, grupos sociais e étnicos historicamente que, ao longo da história do país, não tiveram acesso igualitário aos direitos sociais e aos serviços públicos.
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História, Filosofa e Sociologia da Educação
celebrações como congadas, moçambiques, ensaios, maracatus, rodas de samba, entre outras (BRASIL, 2006). Diante dessas determinações, destacamos as seguintes providências que devem ser tomadas pelos sistemas de ensino e pelos estabelecimentos de educação básica para execução dessas determinações: 2
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Registro da história não contada dos negros brasileiros, tais como em remanescentes de quilombos, comunidades e territórios negros urbanos e rurais. Organização de centros de documentação, bibliotecas, midiotecas, museus, exposições em que se divulguem valores, pensamentos, jeitos de ser e viver dos diferentes grupos etnorraciais brasileiros, particularmente dos afrodescendentes. Identificação, com o apoio dos Núcleos de Estudos Afro-Brasileiros, de fontes de conhecimentos de origem africana, a fim de selecionarem-se conteúdos e procedimentos de ensino e de aprendizagens; Incentivo, pelos sistemas de ensino, a pesquisas sobre processos educativos orientados por valores, visões de mundo, conhecimentos afro-brasileiros e indígenas, com o objetivo de ampliação e fortalecimento de bases teóricas para a educação brasileira. Oferta de Educação Fundamental em áreas de remanescentes de quilombos, contando as escolas com professores e pessoal administrativo que se disponham a conhecer física e culturalmente a comunidade e a formar-se para trabalhar com suas especificidades (BRASIL, 2006).
A execução dessas determinações e providências, em áreas quilombolas, devem potencializar o reconhecimento de lógicas, práticas e modos culturais diversos de pensar e viver, contribuindo, assim, para uma proposta de educação quilombola e afrodescendente alinhada com a perspectiva de descolonialidade do saber e para um projeto de sociedade intercultural. Devemos compreender, compreender, entretanto, que apenas ofertar a Educação Fundamental em áreas de remanescentes de quilombos não é garantia de que a escola seja quilombola, ou seja, que esteja articulada com o projeto político de desenvolvimento socioeconômico e cultural da comunidade. Uma escola no quilombo não é necessariamente uma escola do quilombo. – 152 –
8 Educação Indígena: políticas públicas, diretos diretos e práticas práticas pedagógicas Lilianny Rodriguez Barreto dos Passos
No Brasil, durante séculos, a diversidade sociocultural dos povos indígenas era vista como um entrave ao modelo de memória, história e identidade que o Estado brasileiro pretendia construir para a Nação: positivista 1, homogênea e nacional. Em outras palavras, as línguas, as crenças, os rituais, os conhecimentos e a produção material dos povos indígenas não contribuíam para a imagem que se pretendia construir da Nação brasileira. 1 Nessa
perspectiva valoriza-se, sobretudo, a história política, oficial, cronológica, dos grandes heróis que lutaram bravamente na construção da pátria brasileira.
História, Filosofa e Sociologia da Educação
Nessa perspectiva, compreende-se que o respeito, a valorização e a salvaguarda 2 dos bens culturais dos povos indígenas não eram do interesse do Estado brasileiro. Nesse sentido, primeiro o Estado português e posteriormente o brasileiro, desenvolveram políticas e ações com o objetivo de destruir a diversidade sociocultural dos povos indígenas. Nesse processo, a educação escolar foi um importante instrumento utilizado pelo Estado. Através da escola, foram transmitidos os valores e os códigos da sociedade não indígena, principalmente, a língua portuguesa e os ensinamentos do evangelho. Mais que isso, em vários contextos, a escola reprimia, coagia e punia aqueles que insistiam em usar a língua indígena e praticar seus rituais. De fato, pode-se afirmar que durante séculos a educação escolar voltada aos povos indígenas esteve a serviço dos interesses Estado brasileiro. Entretanto, no cenário atual, através de um conjunto de documentos legais, assegura-se como direito dos povos indígenas, que as políticas e ações de educação escolar e, sobretudo a escola indígena, esteja a serviço dos ideais e interesses das comunidades. Atualmente, a educação escolar e as escolas indígenas, são importantes instrumentos políticos dos povos indígenas, através do qual ainda adquirem os conhecimentos, códigos e valores não indígenas, como por exemplo, a escrita e a matemática. Contudo, esses recursos são utilizados em favor de suas lutas por demarcação de terras, em suas reivindicações por políticas educacionais que atenda seus interesses e atendimento a saúde diferenciada. Ou seja, atualmente, a educação escolar e a escola indígena é um importante instrumento para as negociações em contextos de relações interétnicas, acima de tudo, com o Estado brasileiro. brasi leiro. É bem verdade que esse conjunto de documentos legais propõe e garante políticas públicas e ações para professores indígenas e escolas inseridas no interior das Terras Terras Indígenas. Entretanto, outros contextos precisam de especial atenção, como exemplo, as escolas e os professores não indígenas que recebem alunos indígenas fora de suas terras. Nesse sentido, neste artigo 2 Segundo
estabelece o Artigo nº 2, da Convenção para a Salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial , de 2003, “Entende-se por “salvaguarda” “salvaguarda” as medidas que visam garantir a viabilidade do patrimônio cultural imaterial, tais como a identificação, a documentação, a investigação, a preservação, a proteção, a promoção, a valorização, a transmissão – essencialmente por meio da educação formal e não-formal – e revitalização deste patrimônio em seus diversos aspectos”. – 154 –
Educação Indígena: políticas públicas, diretos e práticas pedagógicas
busco também, através das mesmas orientações e diretrizes legais, fornecer alguns subsídios para a reflexão acerca das práticas pedagógicas em escolas que recebem alunos indígenas fora de suas terras.
8.1 Os povos indígenas: direitos, políticas públicas e ações educacionais Nos primeiros séculos de colonização do território brasileiro, missionários e evangélicos foram os responsáveis pelo processo de catequese dos povos indígenas. Destaca-se nesse período, a atuação dos missionários da Companhia de Jesus que investiram no processo de “assimilação” 3 dos povos indígenas. Para tanto, construíram escolas e internatos voltados a transmitir os códigos e os valores da sociedade não indígena, tais como, a história, a língua portuguesa e, sobretudo, os ensinamentos do evangelho (FERREIRA, 2001, p. 72-73). Esse modelo de educação se estendeu por aproximadamente quatro séculos, e tinha como objetivo destruir a diversidade sociocultural dos povos indígenas. Ferreira (2001, p. 72-73) citando Fernandes (1975, p. 25-27), observa que em seus trabalhos os missionários “[...] concentraram esforços para destruir instituições nativas, como o xamanismo e os sistemas de parentesco, instaurando relações de submissão e dominação e perpetuando, de forma crescente, desigualdades sociais”. O primeiro momento de políticas oficiais de educação escolar indígena está diretamente relacionado à criação do Serviço de Proteção ao Índio (SPI) 4, em 1910. A política indigenista oficial implementada pela instituição, foi marcada pela tutela, na medida em os povos indígenas eram, juridicamente, considerados “incapazes”. Seguindo os mesmos propósitos assimilacionistas dos missionários, o Estado pretendia a civilização, pacificação e integração dos povos indígenas. Nesse sentido, a educação escolar foi um poderoso ins3 Para missionários, evangélicos e o
Estado português os povos indígenas deveriam “assimilar” aspectos do modo de vida europeu, tais como, o modelo econômico, as crenças, os valores, etc. 4 Órgão indigenista oficial criado para intermediar as relações entre o Estado brasileiro e os povos indígenas. Em 1967, o órgão foi substituído pela Fundação Nacional do Índio (FUNAI). – 155 –
História, Filosofa e Sociologia da Educação
trumento do Estado e exerceu papel fundamental no processo de controle e submissão dos povos indígenas. Como método de civilização, as políticas oficiais proibiam os povos indígenas de praticar seus rituais e de se expressar nas suas línguas indígenas. Ou seja, eram impossibilitados de reproduzir sua organização sociocosmológica, seus sistemas de crenças e suas especificidades lingüísticas. Cabe destacar que, para tal, em muitos contextos utilizou-se de métodos violentos de coerção. No No entanto, também com apoio de missionários e evangélicos, a política de pacificação5, ao longo do século XX, deu-se através do intenso processo de conversão dos povos indígenas às igrejas cristãs. Como método de integração, o SPI demarcou aldeamentos e os povos indígenas encontraram dificuldades em desenvolver sua economia, historicamente, baseada na caça, na pesca, na coleta de frutos e cultivo do milho, atividades estas diretamente organizadas a partir par tir da estrutura familiar. Como meio de sobrevivência, a política indigenista de integração, inseriu os indígenas à economia regional como trabalhadores assalariados, contratados como mão-de-obra em fazendas agrícolas. Para tanto, nesse período, destacam-se os programas educacionais instituídos pelo SPI destinados à produção agrícola 6 dos povos indígenas, como meio de integração destes à economia regional. Quanto à política de educação escolar, nessa primeira fase, destaca-se a partir da criação da FUNAI, em 1967, a parceria da instituição com o Summer Institute of Linguistics (SIL)7 e outras missões evangélicas. Apoiados pelo órgão indigenista o SIL assumiu a responsabilidade pela educação escolar indígena até a década de 1980. 5 A política de “pacificação” incluía também alterações no sistema de chefia indígena. Em outros
tempos, a chefia estava ancorada na organização do parentesco. Atualmente, esta passou a ser exercida pelo cacique, representando politicamente a totalidade das relações internas e externas da aldeia. Além do cacique, a organização política das aldeias conta com o apoio das lideranças (diretamente ligadas às chefias familiares). 6 Segundo Ferreira (2001, p. 75), o SPI criou “Clubes Agrícolas”, buscando amenizar a imagem
negativa da escola para os povos indígenas. 7 Organização
cristã, norte-americana, voltada aos estudos e pesquisas de línguas, entre elas as línguas indígenas. A organização tem como objetivo traduzir a Bíblia para essas línguas com o propósito de evangelizar os mais diferentes povos. – 156 –
Educação Indígena: políticas públicas, diretos e práticas pedagógicas
Ferreira (2001, p. 77) destaca que FUNAI e missão tinham interesses bem definidos através dessa de ssa parceria. Segundo Ferreira (2001, p. 77), ancorada no Estatuto do Índio (1973), que obrigava o ensino das línguas indígenas na escola, assim como, na Convenção de Genebra (1967), que orientava sobre a proteção dos povos indígenas, a FUNAI através dessa parceria pretendia garantir o ensino das línguas indígenas na escola e construir uma política de respeito a sociodiversidade lingüística desses povos, reconhecida, principalmente, no contexto internacional. Nesse sentido, com apoio da FUNAI, ou seja, da política oficial do Estado brasileiro, o SIL investiu na educação escolar bilíngue. Como método, os alunos indígenas eram alfabetizados em suas línguas indígenas e, posteriormente, a língua portuguesa era, gradativamente, aprendida. No entanto, os missionários seguiam os mesmos princípios dos tempos da colonização: através do conhecimento e domínio das línguas indígenas, procuravam transmitir os valores da sociedade não indígena 8, principalmente, a conversão às religiões cristãs e a integração econômica dos povos indígenas (Ferreira, 2001, p. 77). Ferreira (2001) aponta significativas críticas que recaíram sobre esse modelo de educação escolar indígena implementada pela FUNAI: “Conjugando linguística e proselitismo, este modelo educacional colocou-se, em última análise, a serviço das políticas governamentais de integração dos povos indígenas à sociedade nacional” (2001, p. 79). E mais, “As escolas, nesse sentido, eram desconectadas da realidade indígena”, colaborando na dominação e desrespeito da diversidade sociocultural desses povos (2001, p. 80-83). Entretanto, vale lembrar que nesse período, o SIL empreendeu a descrição linguística, traduziu o evangelho e produziu material pedagógico nas línguas indígenas. No caso de algumas línguas, este foi o único trabalho linguístico realizado até o presente momento. Desse modo, embora o material produzido tenha cunho religioso, muitas escolas indígenas, ainda utilizam as análises linguísticas, a ortografia e o material pedagógico produzido por este instituto. 8 Como
metodologia de ensino, o processo de alfabetização das crianças indígenas era realizado por professores não indígenas, e os indígenas eram contratados como “monitores bilíngues”, isto é, serviam apenas como tradutores de uma língua à outra. – 157 –
História, Filosofa e Sociologia da Educação
Como desdobramento dessa política de civilização e pacificação empreendida pelo SPI-FUNAI, atualmente, observa-se que as comunidades e a escola indígena apresentam variados contextos sociolinguísticos. Primeiramente, nos contextos em que se proibia o uso da língua indígena, os alunos indígenas foram alfabetizados em português. Desse modo, atualmente, dominam a leitura e a escrita nessa língua, porém sentem sérias dificuldades no domínio das mesmas habilidades em relação à língua indígena. Vale Vale ressaltar que, nos cenários onde os métodos de imposição dos códigos não indígenas foram arduamente aplicados, a língua portuguesa passou a ser a primeira língua de sociabilidade de toda a comunidade indígena. Paradoxalmente, nos contextos em que o SIL atuou, a língua indígena foi utilizada no processo de alfabetização escolar. Desse modo, nesses cenários, os alunos indígenas possuem habilidades na leitura e escrita das línguas indígenas, e encontram dificuldades com a língua portuguesa. Além da língua, outros aspectos da cultura dos povos povos indígenas sofreram sofreram intervenções do SPI-FUNAI e SIL. A política desenvolvida pelos órgãos atingiu de sobremaneira sobre o abandono dos rituais, ri tuais, das danças, dos cantos, do sistema de crenças, na produção do artesanato. Através da política de integração, a nova relação com o trabalho interferiu, diretamente, na economia de reciprocidade familiar, familiar, característica entre os povos indígenas. Desses fatos, na concepção não indígena, atualmente, os povos indígenas, em alguns contextos, se apresentam bastante desorganizados no que tange a padrões culturais conceitualmente elaborados como tradicionais. De fato, atualmente, a diferença entre, entre, indígenas e não indígenas, pode não ser percebida inicialmente. Por compartilharem e dominarem os conhecimentos, os valores e os códigos da sociedade não indígena, como a língua portuguesa, o acesso e uso de recursos materiais, a crença em religiões cristãs, como também o grande número de casamentos interétnicos, é comum classificá-los de mestiços e aculturados, atribuir-lhes interesses segundo os princípios e lógicas da economia capitalista. Vale lembrar, como apontado no primeiro artigo desta de sta disciplina, que as representações historicamente construídas pelos não indígenas, em nada colaboram para se compreender o contexto contemporâneo das comunidades indígenas, na medida em que acentuam os estereótipos e reforçam preconceitos. Mais que isso, esses julgamentos etnocêntricos, em nada cola– 158 –
Educação Indígena: políticas públicas, diretos e práticas pedagógicas
boram para uma educação escolar que atenda os sujeitos da diversidade. Inegavelmente, o contato com a sociedade não-indígena alterou os costumes dos povos indígenas. No entanto, a escola tem o papel de superar o conceito estático de cultura, assim como, os preconceitos, e buscar compreender a contemporaneidade dos povos indígenas através da perspectiva desses povos (SAHLINS, 1997). É bem verdade que nos discursos di scursos dos povos indígenas aparecem também elaborações quanto as suas “perdas culturais”, culturais”, como efeito do contato com a sociedade não indígena. Entre estes, a relação com o passado é marcada pela perda da da língua, dos rituais, dos cantos, da medicina tradicional, da religião, dos territórios. Como desdobramento desse discurso reivindicam através de políticas públicas a preservação da sua cultura . No entanto, segundo Albert (2002), cultura é, é, também, uma categoria que passa pela ressignificação dos povos indígenas Observa-se que esta retórica de perda cultural opera em momentos específicos de política de relações interétnicas, como nos encontros entre as lideranças indígenas, entre organizações indígenas e com representantes de instituições do Estado. Nesse espaço político “é preciso falar de si, trazer seus representantes e mostrar sua cultura” (MOREIRA, 2005, p. 9). Assim, nesse cenário, se elegem os “verdadeiros conhecedores das tradições”, os modos de representar a “verdadeira indianidade” e a necessidade de “preservá-la”. Nesse sentido, se em outros tempos a escola teve papel fundamental na desestruturação da organização sociocultural indígena, veremos que, atualmente, para os povos indígenas essa instituição é apreendida como espaço de revitalização de tais aspectos. Isto é, a escola tem papel fundamental na revitalização das línguas, das danças, dos cantos, do artesanato e na produção agrícola. Impõe-se aí, um grande desafio para não apenas para o Estado, para os professores e os alunos indígenas. A segunda seg unda fase fas e de políti pol íticas cas e ações açõe s educac edu cacion ionais ais voltada vol tadass aos povos indígenas compreende o contexto de redemocratização do país, isto é, entre o final dos anos de 1970 e início de 1980. Nesse período a articulação entre organizações não governamentais 9 e o movimento indí9 Entre
as organizações não governamentais destacam-se a Comissão Pró-Índio de São Paulo (CPI/SP), o Centro Ecumênico de Documentação e Informação (CEDI), a Associação Nacional – 159 –
História, Filosofa e Sociologia da Educação
gena defendiam uma educação escolar indígena voltada aos interesses e ao respeito às especificidades socioculturais desses povos. Nesse cenário, segundo Ferreira (2001, p. 87) surgiram projetos alternativos e encontros de educação para índios. índios. Ressalta-se o para , na medida em que, embora as pautas dos encontros girassem em torno da discussão dos direitos, necessidades e especificidades de cada comunidade, os eventos aconteciam sem a participação dos indígenas. De todo modo, esses encontros foram extremamente significativos para uma mudança nas diretrizes políticas que orientam as ações educacionais voltadas aos povos indígenas, na medida em que impulsionaram a mobilização indígena, na luta pela garantia legal de seus direitos à diferença. A terceira fase de d e políticas públicas educacionais para os povos indígenas está diretamente relacionada a esse contexto de lutas e reivindicações do movimento indígena, que se iniciou na década de 80. Nesse cenário, o movimento indígena apropriou-se das categorias cultura e e etnia 10, transformando-as em pano de fundo para um conjunto de reivindicações (SAHLINS, 1997, p.125). Segundo Sahlins (1997), na contemporaneidade o culturalismo dos povos indígenas, acentuado nos contextos de relações interétnicas, pode ser compreendido como uma constante reivindicação pelo seu direito à diferença. Diferenças expressas na continuidade histórica, em suas práticas e organização social, no modo como estabelecem suas relações, seja no interior ou com outros grupos, nas concepções de tradição, na diversidade das relações econômicas, religiosas ou com o Estado (SAHLINS, 1997, p. 136). Os povos indígenas estenderam a defesa de seus direitos e interesses para além do cotidiano das aldeias, buscando o reconhecimento legal de sua de Apoio ao Índio (ANAÍ), Centro de Trabalho Indigenista (CTI) e Operação Amazônia Nativa (OPAN) (FERREIRA, 2001, p. 87). 10 De
fato, atualmente, a palavra “cultura” e “etnia” são ouvidas com freqüência no discurso dos povos indígenas. Note-se, entretanto, que não se pode simplificar o discurso indígena, a simples reprodução de categorias não-indígenas. De acordo com Albert, “o discurso indígena das últimas décadas se funda em um duplo enraizamento simbólico: numa auto-objetivação por meio das categorias brancas da etnificação (“território”, “cultura”, “meio ambiente”) e numa reelaboração cosmológica dos fatos e efeitos do contato.” (2002, p. 242). Ou seja, há que se compreender também nesses discursos a reelaboração destas categorias a partir dos esquemas sociocosmológicos indígenas. – 160 –
Educação Indígena: políticas públicas, diretos e práticas pedagógicas
diversidade cultural e étnica. Em suas lutas, nesse período, reivindicavam políticas públicas e ações que, efetivamente, atendessem suas especificidades socioculturais 11 e também garantissem a valorização de sua cultura e e o fortalecimento de suas identidades étnicas . Para tanto, a educação escolar tornou-se um importante instrumento político dos povos indígenas. Nesse contexto, lideranças indígenas passaram a reivindicar a construção de uma política nacional de educação escolar indígena em acordo com as especificidades das suas organizações sociais, com o contexto de cada comunidade, que colabore na construção da autonomia e na valorização de seu patrimônio cultural, material e imaterial. Nesse contexto, não apenas no Brasil, mas em todos os continentes o intenso movimento político das lideranças indígenas, com apoio de diversos setores da sociedade civil, culminou no reconhecimento legal da diversidade sociocultural dos povos indígenas. O marco desse reconhecimento foi a promulgação da Constituição Federal da República de 1988, que garantiu no Art. 210 que “o ensino fundamental será ministrado em língua portuguesa, assegurada as comunidades indígenas também a utilização de suas línguas maternas e processos próprios de aprendizagem”. No Art. 231, “são reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens be ns”. No Brasil, a partir da Constituição Federal, promulgada em 1988, um conjunto de leis, decretos e portarias interministeriais garante aos povos indígenas, juridicamente, uma série de direitos em relação aos seus territórios, à educação diferenciada, atendimento específico de saúde e ao respeito, valorização e salvaguarda de suas especificidades socioculturais. No sentido de construir um entendimento acerca desse novo momento, identifico nesse artigo os documentos legais que orientam as políticas públicas nacionais e ações de educação escolar indígena. Esta abordagem é relevante considerando que as ações e políticas devem estar es tar ancoradas nas dire11
Nesse período, o movimento indígena, em todo o país, promoveu encontros entre as lideranças indígenas, que passaram a buscar soluções para a defesa de seus territórios, o respeito à sociodiversidade linguística e cultural, assistência médica e atendimento escolar específico e diferenciado. – 161 –
História, Filosofa e Sociologia da Educação
trizes apresentadas nesses documentos. Como apontado na introdução, os documentos legais estão voltados ao atendimento escolar no interior das comunidades indígena. Entretanto, esses documentos, podem ser um horizonte para a reflexão de uma pedagogia que atenda as especificidades escolares desses povos, nos contextos em que estão fora de suas terras indígenas. Cabe também uma reflexão crítica acerca desses documentos, ou seja, cabe refletir até que ponto no cotidiano da comunidade está assegurado, efetivamente, a construção de uma educação escolar, que respeita e valoriza a diversidade sociocultural. Após a promulgação da Constituição Federal, uma série de leis, decretos e resoluções, passou a regulamentar e garantir aos povos indígenas direitos específicos em relação à educação escolar, na construção de uma escola intercultural, bilíngue, diferenciada e e de qualidade. Entre os documentos 12, destacam-se: 2
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O Decreto Presidencial n. 26 , de 1991, que transferiu da FUNAI para o Ministério da Educação a responsabilidade pela coordenação das ações de educação escolar indígena, através das Secretarias Estaduais ou Municipais de Educação. Além disso, reconheceu a diversidade sociocultural e linguística dos povos indígenas. Como desdobramento desse decreto, a Portaria Interministerial MJ/MEC n. 559, também de 1991, garante aos povos indígenas: a educação escolar básica, laica e diferenciada, que respeite e fortaleça os costumes, tradições, línguas, processos próprios de aprendizagem e as organizações sociais específicas; es pecíficas; a educação escolar intercultural, isto é, o acesso aos códigos da sociedade não indígena; o ensino bilíngue, em português e na língua indígena;
12 Além
dos documentos nacionais, há também uma série de documentos internacionais que garantem direitos específicos para os povos indígenas. Entre eles, a Convenção sobre os Povos Indígenas – OIT 169, adotada em 1989, a Convenção para a Salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial , de 2003, a Declaração das Nações Unidas sobre os Povos Indígenas, concluída em 2006, a Estratégia de Meio Termo, finalizada em 2007 e a Declaração Universal Universal dos Direitos Linguísticos, de 1996. – 162 –
Educação Indígena: políticas públicas, diretos e práticas pedagógicas 2
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a criação no Ministério da Educação, da Coordenação Nacional de Educação Indígena; educação escolar com conteúdos curriculares, calendário, metodologias, materiais didáticos, e avaliação adequada à realidade sociocultural de cada grupo étnico; educação escolar que respeite ao ciclo de produção econômica e as manifestações socioculturais das comunidades indígenas; critérios específicos para a formação de professores indígenas e de profissionais envolvidos nessa modalidade de ensino; escolas indígenas de ensino fundamental no interior das áreas indígenas. A Lei n. 9.394 – Diretrizes Diretrizes e Bases da Educação Nacional Nacional (LDBEN), de 1996, assim como a Constituição assegura o direito
do ensino escolar nas línguas maternas e reconhece a pluralidade de práticas pedagógicas nas escolas indígenas através dos processos próprios de ensino aprendizagem dos povos indígenas. Além disso, assegura o direito a uma educação ed ucação escolar sobretudo valorize a história, a memória, as línguas, e os conhecimentos dos povos indígenas na garantia de fortalecer os processos de afirmação de suas identidades étnicas. 2
O Parecer n. 14 – Diretrizes Curriculares Nacionais da Educação Escolar Indígena Indígena , de 1999, cria a categoria Escola Indígena no sis-
tema de ensino e define critérios critéri os para sua administração. Estabelece ao Estado13 a oferta da educação escolar indígena, e ao Sistema Estadual de Ensino a sua criação, autorização, reconhecimento, credenciamento, supervisão e avaliação em consonância com a legislação federal. Este documento ressalta a necessidade de regularizar as formas de contratação dos professores indígenas e estabelece diretrizes para a formação dos professores indígenas. i ndígenas. 2
A Resolução n. 03/CEB-CNE 03/CEB- CNE , de 1999, reconhece às escolas
indígenas normas e ordenamentos jurídicos próprios, estabelece e reforça o atendimento escolar ofertado por solicitação da 13 Através das Secretarias Municipais ou Estaduais de Ensino.
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História, Filosofa e Sociologia da Educação
comunidade, ou com anuência desta. Garante as comunidades indígenas participação na organização da escola, na definição do modelo de gestão, calendário escolar diferenciado, projeto político-pedagógico próprio, formação específica para os professores indígenas e atividade docente exercida, prioritariamente, por professores indígenas. 2
O Plano Nacional de Educação (PNE), Lei n. 10.172 , de 2001
reforça direitos garantidos em documentos anteriores. Além disso, assegura a autonomia das escolas indígenas, e transporte escolar, livros didáticos, bibliotecas e merenda que atenda as especificidades da comunidade escolar indígena. Estabelece a regulamentação nos sistemas de ensino da criação da categoria Professor Indígena, e a formação destes em nível superior. Além desses documento documentoss legais, legais, cabe destacar também a Lei n. 11.645, 11.645, de 2008, que estabelece em seu artigo n. 26: “Nos estabelecimentos de Ensino Fundamental e de Ensino Médio, públicos e privados, torna-se obrigatório o estudo da história e cultura afro-brasileira e indígena”. Com essa lei, o Estado brasileiro procura desconstruir os estereótipos, e ampliar as reflexões sobre esses povos nas escolas não indígenas. Desse modo, essa lei visa ampliar a visibilidade, garantir o respeito e a valorização dos aspectos referentes a cultura dos povos indígenas. Da análise desse conjunto de documentos legais e de garantias de direito, pode-se afirmar que de fato houve uma mudança significativa nas diretrizes que orientam as políticas públicas voltadas à educação ed ucação escolar indígena. Atualmente, há também, nacional e internacionalmente, uma preocupação em garantir a esses povos a continuidade da reprodução de suas especificidades socioculturais. Ou seja, atualmente todas as políticas e projetos voltados aos povos indígenas, devem assegurar e respeitar o seu direito à diferença. Entretanto, apenas a legislação não garante a construção efetiva de uma educação escolar indígena que atenda os interesses das comunidades. Vale lembrar que os conceitos em torno do qual se constrói essa legislação educacional, tais como, revitalização revitalização cultura cultu ra l, l, identidade, autonomia , interculturalidade, etnodesenvolvimento, bilinguismo, específica , é elaborada a partir de concepções não indígenas. Além disso, no contexto atual, verifica-se que – 164 –
Educação Indígena: políticas públicas, diretos e práticas pedagógicas
há vários atores envolvidos na política educacional que estão ancorados na burocracia legal. Por outro lado, há a dinâmica específica das organizações sociocosmológicas indígenas, onde a legislação e estes conceitos muitas vezes, encontram significados diferenciados (GALLOIS, 2005). Desse modo, podese afirmar que entre os envolvidos na educação escolar, entre indígenas e não indígenas, tem-se uma relação marcada por diferentes perspectivas frente a essas categorias. E, sobretudo, diferentes expectativas frente à educação escolar e à escola. De todo modo, na perspectiva indígena, como também para os não indígenas, os a educação escolar passou a ter um papel político fundamental na construção da autonomia e autodeterminação dos povos indígenas, na medida em que, legalmente, garantiu-se a participação da comunidade na organização e gestão da escola indígena. Garantiu-se também a participação em todas as etapas de construção de políticas e projetos voltados as comunidades indígenas. Mais que isso, com a conquista dos direitos legais, se pode afirmar que a histórica política oficial de educação escolar para a dominação e submissão dos povos indígenas, foi superada na medida em que os indígenas passam a ser os responsáveis pela construção das diretrizes educacionais de sua própria escola. Entretanto, cabe observar que ainda em muitos contextos, subvertendo a legislação vigente, inúmeras instituições valem-se da prerrogativa de anuência da comunidade para desenvolver ações e políticas apenas através da “consulta” consulta” as aldeias.
8.3 A educação escolar indígena em escolas não indígenas: propostas de práticas pedagógicas Como apontado acima, na Portaria Interministerial MJ/MEC n. 559, de 1991, a obrigatoriedade de oferta de educação escolar para os povos indígena recai sobre o Estado brasileiro, mais precisamente, das Secretarias Estaduais de Educação. Esta Portaria garante também, a oferta de ensino fundamental no interior das Terras Terras Indígenas. No entanto, observa-se que grande parte das escolas indígenas brasileiras, o atendimento escolar está limitado às séries iniciais do ensino fundamental. Desse modo, para dar continuidade aos estudos, – 165 –
História, Filosofa e Sociologia da Educação
os alunos indígenas, precisam se deslocar para escolas fora de suas terras, isto é, complementam seus estudos em escolas não indígenas14. Entretanto, segundo Both, se a escola não indígena, reproduzir um modelo de educação monoculturalista, corre-se o risco de os alunos indígenas não se reconhecerem nelas (2009, p. 99). Segundo Silva e Grupioni, a educação escolar deve colaborar na “[...] afirmação da possibilidade e análise das condições necessárias para o convívio construtivo entre segmentos diferenciados da população brasileira, visto como processo marcado pelo conhecimento mútuo, pela aceitação das diferenças, pelo diálogo” (2004, p. 15). Desse modo, os professores e as escolas não indígenas, devem estar preparados para construir conhecimentos críticos acerca diversidade sociocultural e linguística que permeia o cotidiano da escola, assim como, da sociedade brasileira: O papel do professor é encarado na escola como o ator que direciona e conduz o processo de ensino, domina o conteúdo, contribui para que o estudante supere o universo do sendo comum. Essa visão, como se pode perceber, associa-se a pedagogia histórico-crítica ou pedagogia crítico-social dos conteúdos (SILVA, 1999, p. 86 apud BOTH, 2009, p. 99).
Como apontado no primeiro artigo, primeiramente, cabe aos professores buscar informações acerca desse contexto de diversidade, elaborar conceitos científicos acerca desses aspectos e nesse sentido construir uma prática pedagógica voltada a inclusão dos alunos indígena. Ressaltando novamente, sobre os povos indígenas vale refletir sobre: Qual o contexto sociolinguístico em que estão inseridos? Ou seja, o
português é a primeira ou segunda língua de sociabilidade utilizada pela comunidade? Dessa informação se compreende as diferentes di ferentes dificuldades que os alunos indígenas apresentam, ou não, frente aos seus processos de alfabetização, escrita e leitura na língua portuguesa. Quais os significados que adquirem em suas comunidades a língua indígena? Segundo relatos dos povos indígenas, observa-se que em muitos con-
textos, os alunos indígenas, quando fora de suas terras, são proibidos de se 14 Cresce
também, cotidianamente, o número de indígenas desaldeados, vivendo em ambientes urbanos e que, inevitavelmente, inevitavelmente, frequentam as escolas não indígenas. – 166 –
Educação Indígena: políticas públicas, diretos e práticas pedagógicas
expressarem em suas línguas. Como vimos anteriormente, através da língua os povos indígenas expressam e constroem elementos de identidade coletiva. Desse modo, a escola deve respeitar a comunicação entre os alunos indígenas em suas línguas. ] Nos sistemas de crenças dos povos indígenas estão expressos os valo-
res, códigos e a visão de mundo, transmitidos pela comunidade aos alunos indígenas. Os tabus (alimentares, na primeira mestruação, nascimento das crianças, antes da caça, etc.) e rituais fazem parte do cotidiano. Os rituais estabelecem importantes momentos de passagem e nos permite entender as diferentes fases da vida em que se encontram os alunos. Segundo Silva (2002, p. 21), “O estudo das categorias de idade socialmente definidas, das etapas do ciclo de vida e do processo de aprendizado e formação da pessoa continua continua útil como via de acesso à compreensão da categoria “criança” “criança” e seu lugar e sentido em contextos socioculturais específicos”. Os povos indígenas, geralmente, casam-se e tem filhos muito cedo e esses rituais marcam a entrada na fase adulta. Esse conjunto de crenças, tabus e rituais estão presentes nas escolas marcando, as relações sociais com a sociedade não indígena e, sobretudo, na frequência e permanência dos alunos. Como organizam sua sociedade? Importante saber também, qual o
espaço que os alunos indígenas ocupam nessa comunidade. Em quais relações hierárquicas, políticas e quais os recursos que estes possuem. Em muitos casos, o acesso a educação escolar é um importante recurso na construção de futuras lideranças políticas. Como produzem seus alimentos, quais os seus meios de subsistência? Os
povos indígenas estabelecem diferentes relações com a produção de alimentos e com a alimentação, marcada constantemente, pelos tabus e rituais religiosos. Nesse sentido, cabe pode-se compreender as relações que estabelecem com a merenda da escola. Em muitos contextos, as crianças participam par ticipam ativamente da produção econômica. Desse modo, deve-se observar a frequência dos alunos, na medida em que, podem se afastar por longos períodos. Qual o significado da educação escolar para as comunidades indígenas?
Diferentemente da educação escolar não indígena, para os povos indígenas a – 167 –
História, Filosofa e Sociologia da Educação
educação escolar assume um caráter coletivo. Nesses contextos, os saberes da escola servem de instrumento a toda comunidade. De que maneira, em que momentos e por quem são transmitidos os conhecimentos? Ou seja, quais os métodos de ensino aprendizagem mais
valorizados nas sociedades indígenas? Como vimos anteriormente, a transmissão de conhecimentos entre os povos indígenas adquire momentos e métodos específicos. Nessas sociedades, o aprendizado através das narrativas mitológicas e da oralidade ocupa um espaço central. Mais que isso, os povos indígenas constituem-se como sociedades ágrafas. Desse modo, se pode compreender não apenas as dificuldades encontradas com a escrita, mas também, quais os sentidos que imprimem quando registram suas próprias histórias. Dessas reflexões pode-se apontar os desafios enfrentados pelos professores, pela escola e também pelos alunos indígenas em contextos escolares fora de suas terras. Dentre as principais dificuldades dos alunos indígenas, destaca-se o domínio da língua portuguesa, da escrita e concepções da matemática. Além disso, disso, como como visto visto anteriormente, anteriormente, os povos povos indígenas indígenas possuem diferentes diferentes concepções acerca de sua história. Mais que isso, entre os povos indígenas, os conhecimentos e saberes não estão compartimentados, hierarquizados ou organizados em disciplinas. Nas narrativas mitológicas desses povos estão conceitualmente elaborados, conhecimentos que a sociedade não indígena costuma classificar como botânica, matemática, ciências, medicina, mas também concepções de chefia, hierarquia e sistemas de crenças. A escola deve dar também especial atenção ao sistema de avaliação dos alunos indígenas. Deve-se evitar a constante oposição estabelecida na avaliação escolar e consolidada na perspectiva ocidental, de sucesso e fracasso. Buscando superar essa dicotomia, a avaliação dos alunos indígenas, deve ser contínua, no dia a dia, valorizando seu rendimento em todos os momentos (BOTH, 2009). Sobretudo, Sobretudo, a escola deve valorizar a expressão oral dos alunos indígenas, considerando que este é o método de transmissão de conhecimentos mais valorizado nas comunidades. Para os professores e a escola não indígena, há o desafio de construir coletivamente uma proposta pedagógica que inclua os sujeitos da diversidade, no sentido de superar os séculos de exclusão. Para tanto, a legislação nos aponta alguns horizontes. – 168 –
Educação Indígena: políticas públicas, diretos e práticas pedagógicas
Assim como nas escolas indígenas, a escola não indígena deve incluir na proposta pedagógica a interculturalidade. Ou seja, os conhecimentos e saberes dos alunos indígenas devem permear os conteúdos e o cotidiano da escola com o mesmo status de igualdade que os conhecimentos não indígenas. Em outras palavras, há que se valorizar em sala de aula, as contribuições e os conhecimentos dos alunos indígenas, ou seja, os mitos, as histórias, a botânica, a geografia, o artesanato e a matemática indígena. Outro importante recurso destacar as contribuições e a influência dos povos indígenas na formação da cultura brasileira. Ainda em relação relação as escolas escolas indígenas, Tassinari (2001, p. 67-68) elabora conceitualmente, a definição de escola de “fronteira”: “fronteira”: [...] enquanto “fronteira” é extremamente útil por englobar tanto o reconhecimento das possibilidades de troca e intercâmbio de conhecimentos e fluxo de pessoal quanto o entendimento de situações de interdição dessa troca. Porém, essas interdições não constituem meras barreiras estáveis, mas funcionam também de forma dinâmica, fornecendo material que vem reforçar diferenças ou manter distinções étnicas. É por meio dessas zonas proibidas de diálogo que valores ou critérios de distinção entre os povos em contato são criados ou repensados. Falando concretamente, são esses limites que reforçam preconceitos de ambos os lados. Do ponto de vista da atuação prática nas escolas, o reconhecimentos dos limites e das “zonas interditadas” é um primeiro passo para redirecionar a atuação, e somente uma avaliação de cada caso poderá decidir o que fazer: se é possível superar essas barreiras ou se é o caso simplesmente de procurar contorná-las, ou de buscar outras alternativas”. alternativas”.
É nesse sentido, através das trocas entre diferentes culturas e da consciência de seus limites, que a escola não indígena pode construir um constante diálogo entre os diferentes sujeitos que compõem o cenário escolar. escolar.
Síntese No Brasil, desde o início da colonização e posteriormente, com a criação do Serviço de Proteção ao Índio, em 1910, a cultura dos povos indígenas foi desvalorizada no processo de construção da identidade e da história – 169 –
História, Filosofa e Sociologia da Educação
da nação brasileira. Durante esse período, o respeito, a valorização e salvaguarda das especificidades socioculturais desses povos não eram objeto de interesse do Estado brasileiro. Ao contrário, com políticas de civilização, civilização, pacificação e integração , as ações voltaram-se no sentido de negar e destruir a diversidade cultural. Para tanto, a educação escolar contribuiu, significativamente, na consolidação desse processo. Através do ensino na língua portuguesa, ou nas línguas indígenas, transmitiram-se os valores e os códigos da sociedade não indígena. Entre eles, os valores da economia de mercado e a conversão às religiões cristãs. Entretanto, uma mudança significativa nas diretrizes e políticas, voltadas ao respeito e valorização do patrimônio cultural indígena teve inicio no final dos anos de 1970. Nesse período, cabe destacar a revisão no conceito de cultura, que passou a orientar os trabalhos de etnologia brasileira, através do pressuposto desenvolvido por Sahlins (1997) no qual define cultura como como uma dinâmica de construção simbólica, historicamente negociada pelos atores de uma sociedade. Mais que isso, cabe destacar também a autoconsciência cultural dos povos indígenas, que passaram a ressignificar as categorias cultura e etnia , como bandeira em nome de sua autodeterminação, lutas e reivindicações em busca do reconhecimento legal da diferença. Nesse contexto, o protagonismo do movimento indígena, voltou-se para reivindicações de ações, políticas públicas e projetos que efetivamente atendessem suas especificidades. Destaca-se como reivindicação, a construção de uma política de atendimento escolar, específica e diferenciada que reconhece, valoriza e mantém a diversidade sociocultural e linguística. Como desdobramento desse contexto, consolidou-se a garantia jurídica de valorização e salvaguarda de sua diversidade cultural. A partir da Constituição Federal de 1988, um conjunto de instrumentos i nstrumentos legais garante que ações e políticas, voltadas aos povos indígenas, sejam desenvolvidas no sentido de respeitar, valorizar e reafirmar suas especificidades socioculturais. Desse modo, modificam-se as relações e negociações entre os povos indígenas e o Estado brasileiro, brasi leiro, como também, com não indígenas envolvidos nos projetos (PASSOS, 2007). Nota-se que as relações entre estes são permeadas por diferentes concepções, em torno de economia, natureza, tradição, cultura , educação, – 170 –
Educação Indígena: políticas públicas, diretos e práticas pedagógicas
saúde e autonomia indígena. Em outros termos, é entre economia do dom e de mercado, estrutura e história, “tradição” e modernidade que estão envolvidas as negociações e as relações entre o Estado e a educação escolar indígena. Desse modo, embora os povos indígenas tenham conquistado importantes direitos legais, há inúmeras contradições entre a burocracia legal, estatal e ambiental e a lógica da organização sóciocosmológica ameríndia. Nesse sentido, a escola abre a possibilidade de compreender as relações e as diferentes lógicas que orientam os projetos e anseios das comunidades indígenas. A partir desse contexto, rompe-se também com a histórica educação escolar para os os povos indígenas. Estes a partir de então, passam a participar de todo o processo de implementação de políticas públicas. Para os povos indígenas, a educação escolar, escolar, também ressignificada na contemporaneidade, transforma-se num poderoso instrumento político, através do qual adquirem conhecimentos importantes, para suas lutas, reivindicações, sobretudo, nos contextos de relações interétnicas com o Estado brasileiro. brasilei ro. Embora a legislação educacional garanta direitos específicos às escolas inseridas no interior i nterior das Terras Terras Indígenas, as escolas não indígenas, que recebem alunos indígenas também precisam refletir sobre seu contexto de diversidade. Cabe reforçar que, como garantido na Portaria Interministerial MJ/ MEC n. 559, de 1991, os professores não indígenas que recebem alunos indígenas, também tem assegurado o direito de formação específica, ofertado pelo Estado. Buscando superar uma educação monoculturalista, que exclui os diferentes sujeitos da diversidade, as escolas não indígenas, devem construir, coletivamente com estes, uma educação escolar em diálogo com seus valores e códigos sociais. E mais, seus conhecimentos e saberes devem fazer parte do cotidiano de suas práticas escolares. Nesse sentido, a interculturalidade, torna-se uma proposta interessante. Através das trocas entre diferentes culturas, sem desconsiderar seus limites, desafios e a reflexão crítica, a escola não indígena pode construir um constante diálogo entre os diferentes sujeitos que compõem o cenário escolar. escolar.
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História, Filosofa e Sociologia da Educação
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9 Cidadania, direitos direitos humanos e o direito à educação Ana Cristina Cristina Gipiela Pienta Pienta
O ������� � educação está intrinsecamente ligado à materialização dos direitos de cidadania próprios do Estado moderno e encontra na legislação um poderoso instrumento para sua consolidação. Cabe lembrar que a aprovação do texto legal é elemento importante, mas não suficiente para a realização do direito. Assim, além da legislação, é fundamental a ação da população com vistas à efetivação dos dispositivos legais. N� ���� ����������, o direito à educação está disposto na Constituição Federal de 1988 e em suas emendas. Contudo, não é possível imaginar que exista uma relação direta e linear entre a lei e a realidade. Portanto, a reflexão sobre a educação como um direito social exige, necessariamente, o estudo de sua origem histórica, da legislação atual, dos princípios que a caracterizam enquanto tal e dos aspectos da realidade que a tornam mais ou menos efetiva.
História, Filosofa e Sociologia da Educação
9.1 Concepção de cidadania: elementos para uma retrospectiva histórica O termo cidadania foi construído ao longo da história da humanidade, sua origem remonta à civilização grega e seu significado assumiu distintos sentidos em diferentes tempos e sociedades. Como já vimos no capítulo 1 deste livro, na Antiguidade Grega era considerado cidadão o homem, adulto, livre e proprietário, que tinha o direito de participar da vida política da polis . Assim, o nascimento da ideia de cidadania é acompanhado da criação do espaço público na perspectiva de existência de uma esfera de vida comum aos cidadãos. Cury (2007, p. 37) ressalta que a polis se caracterizava “como a comunidade de pessoas, livres e iguais, politicamente organizadas, capazes de decidir na agora 11 os destinos da comunidade.” comunidade.” Dessa forma, forma, pode se compreender que o cidadão é o indivíduo que possui o direito de exercer a cidadania e, portanto, participar das decisões políticas tomadas coletivamente e em nome de toda a comunidade. Cabe lembrar que essa classificação excluía as mulheres, crianças, escravos e estrangeiros, tornando a cidadania um direito de poucos. Para Bendix (1996, p. 110), “à parte algumas exceções notáveis, a cidadania a princípio exclui todas as pessoas social e economicamente dependentes”. O espaço público, da polis , se contrapõe ao espaço privado, da família, e se materializa como espaço de liberdade, contrapondo-se à dimensão de necessidade que caracteriza a ação familiar, como explica Arendt (2007), já citada no capítulo 1. A liberdade, naquele momento histórico, se definia pela possibilidade de participação nos processos decisórios que envolviam a vida política da comunidade. Vale lembrar que essa concepção de liberdade é muito distinta do conceito atualmente disseminado, pois hoje a ideia de liberdade está intimamente relacionada aos direitos individuais de ir e vir, manifestação de opiniões, credo religioso, propriedade. É possível verificar, assim, uma transposição do conceito de liberdade da esfera pública para a esfera privada. 1 A agora era um espaço para o encontro dos cidadãos, onde eram tomadas as decisões relacionadas à vida pública. públi ca. ambém ambém pode ser se r entendida como um espaço propício para a circulação de pessoas e mercadorias, como uma praça. – 174 –
Cidadania, direitos humanos e o direito à educação
A polis diferenciava diferenciava se da família pelo fato de somente conhecer «iguais», ao passo que a família era o centro da mais severa se vera desigualdade. Ser livre significava ao mesmo tempo não estar sujeito às necessidades da vida nem ao comando de outro e também não comandar. Não significava domínio, como também não significava submissão. Assim, dentro da esfera da família, a liberdade não existia, pois o chefe da família, seu dominante, só era considerado livre na medida em que tinha a faculdade de deixar o lar e ingressar na esfera política, onde todos eram iguais (AREND, 2007, p. 41 42).
Além de se situar unicamente na esfera pública, a liberdade estava associada também à definição de igualdade, pois dependia da compreensão de cada cidadão como um indivíduo com igual poder de intervenção e decisão em relação aos demais. A liberdade, nessa perspectiva, é, em certa medida, condicionada pela esfera pública e pela relação estabelecida com os outros homens considerados igualmente livres. O Império Romano contribuiu para a disseminação desses princípios, mas o fez de forma a estabelecer uma distinção entre cidadania e liberdade. Em casos de crime e condenação, o indivíduo poderia perder o direito à cidadania, à participação nas decisões políticas, sem perder o direito à liberdade. O direito à liberdade também poderia ser reduzido, chegando, no limite, à determinação de redução do cidadão a escravo 2 . Dessa forma, cidadania e liberdade tornaram- se objeto de concessão ou cassação, dependendo da situação. O período medieval, que se construiu a partir da queda do Império Romano 3 , caracterizou-se pela supressão da esfera pública e concentração de todas as questões concernentes à vida no espaço privado da família. As famílias, regidas pelos senhores feudais, passaram a ter grande poder sobre as decisões que impactavam a vida da população, sem que os indivíduos pudessem expressar seus interesses e opiniões. 3
A transferênci transferênciaa de todas as atividades atividades humanas para a esfera privada e o ajustamento de todas as relações humanas segundo o molde familiar teve profundas repercussões [...]. O conceito medieval de «bem comum», longe de indicar a existência de uma esfera política, reconhecia apenas que os indivíduos privados têm interesses materiais e espirituais em comum, e só podem conservar sua privatividade e 2 Para conhecer mais sobre esse processo, ver Cury (2007) e Bovero (2002). 3 Ver análises construídas no capítulo 1 desta obra. – 175 –
História, Filosofa e Sociologia da Educação
cuidar de seus próprios próprios negócios quando um deles se encarrega de zelar por esses interesses comuns. O que distingue da realidade moderna esta atitude essencialmente cristã em relação à política não é tanto o reconhecimento de um «bem comum» quanto a exclusividade da esfera privada e a ausência daquela esfera curiosamente híbrida híbri da que chamamos de «sociedade», na qual os interesses privados assumem importância pública (AREND, 2007, p. 44 45).
Assim, é possível afirmar que, na Idade Média, os servos são condicionados, desde a infância, à ideia de serem comandados à imagem da hierarquia e ao aspecto da obediência. É importante lembrar que todo o direito medieval está baseado na hereditariedade. Nos países onde reina a desigualdade permanente de condições e oportunidades, os senhores obtêm de seus serviçais uma obediência pronta, completa, respeitosa e fácil. Os trabalhadores ocupam uma posição subordinada, da qual eles não podem sair. O processo de modernização da sociedade tem início justamente com o fim da era medieval, a disseminação dos ideais iluministas, a constituição do Estado nação e fortalecimento de sua soberania, a retomada da importância da esfera pública, o estabelecimento de direitos e deveres concernentes a todas as pessoas adultas consideradas cidadãs. Ao mesmo tempo, a consolidação do modo de produção capitalista, a urbanização e a industrialização também foram determinantes para a modernização, além da substituição do direito hereditário pelo contrato social. A grande novidade trazida pela modernidade será o reconhecimento do ser humano como portador de determinados direitos inalienáveis: os direitos do homem. [...] A modernidade acaba por se marcar pela ideia de direitos universais do homem e cuja essência igualitária na vida e na liberdade deve ser reconhecida pelo direito positivo (CURY, 2007, p. 41).
Assim, considera se que os direitos do homem, estabelecidos inicialmente e defendidos pela Declaração de 1789, no coração da Revolução – 176 –
Cidadania, direitos humanos e o direito à educação
Francesa, antecedem e anunciam os direitos de cidadania. Considerá-los como inalienáveis indica a aceitação da igualdade irrestrita entre os seres humanos, superando a visão de mundo sectária do período medieval. Essa nova concepção proclama a construção de um mundo mais cosmopolita, no sentido da integração e inclusão dos diferentes. No entanto, esse processo de transformação social não se dá de maneira uniforme e, tampouco, concomitante em todos os países. Com a intenção de conhecer as diferenças entre os processos de modernização da sociedade europeia e norte americana, Alexis de ocqueville (1840) percebe que nas sociedades aristocráticas, identificadas como as europeias, os homens se comunicam muito pouco com os demais, o que fortalece as relações hierárquicas. Já nas sociedades democráticas, como a norte americana, essa situação se modifica, pois, embora continuem existindo privilégios, a possibilidade de conquistá-los e a mobilidade entre os grupos sociais criam uma proximidade entre os indivíduos que compõem a sociedade. Essa possibilidade de mobilidade social e de conquistar privilégios pode ser compreendida como consequência da consolidação e ampliação dos direitos e deveres a todos os cidadãos, que passam a estabelecer uma relação mais direta com o Estado e se tornam legalmente iguais perante o soberano. A análise da transformação da sociedade medieval e sua estrutura política rumo à sociedade com a estrutura política moderna indica a existência de [...] tendências simultâneas à igualdade e a uma autoridade governamental de âmbito nacional. A constituição de um Estado nação moderno é tipicamente a origem dos direitos de cidadania, e esses direitos são um símbolo da igualdade de âmbito nacional (BENDIX, 1996, p. 135).
Portanto, não é possível analisar a construção da cidadania isolada do princípio de igualdade, visto que, na sua origem, os direitos de cidadania são estabelecidos a partir da definição de direitos iguais perante a lei. É importante salientar a diferença entre igualdade formal, definida pela legislação, e igualdade real, construída nas relações sociais, pois não há uma transposição direta e linear dos dispositivos legais para a realidade. Outra contradição presente nesse processo é a concomitância entre igualdade legal e desigualdade social e econômica. O dilema entre essas duas dimensões acompanhou os debates e o processo de constituição das nações – 177 –
História, Filosofa e Sociologia da Educação
durante todo o século XIX. Verifica se que “a igualdade formal perante a lei beneficia a princípio apenas aqueles cuja independência i ndependência social e econômica os habilita a tirar proveito de seus direitos legais [...]” (BENDIX, 1996, p. 135), deixando a classe trabalhadora em situação de maior precariedade de vida do que os servos medievais. A igualdade legalmente estabelecida pelos princípios de cidadania se desenvolve ao mesmo tempo em que as desigualdades de classe se fortalecem. No processo de formação de cada Estado nação é possível identificar movimentos dos diferentes grupos e classes sociais no sentido de reivindicar, pressionar, negociar com os demais a extensão dos direitos para além das classes privilegiadas. Nessa dinâmica, percebe-se a importância do direito de associação (sindical, por exemplo) e de educação formal como fundamentais para a entrada da classe trabalhadora na política nacional. rataremos da questão da educação mais à frente, mas é importante ressaltar que Esses direitos são também um produto dos processos sociais levados adiante pelos segmentos da classe trabalhadora, que viram nele um meio de participação na vida econômica, social e política. pol ítica. Algumas tendências afirmam a educação como um momento de reforma social em cujo horizonte estaria a sociedade socialista. Para outras tendências, a educação, própria da classe operária e conduzida por ela, indicava uma contestação da sociedade capitalista e antecipação da nova sociedade.
A história da classe trabalhadora, contada por vários historiadores historiadores como E. P. Tompson ou Eric Hobsbawn, aponta que a educação se apresentava como uma bandeira de luta de vários partidos, movimentos radicais populares e de vários programas políticos de governo (CURY (CURY, 2002, p. 253). Para compreender o avanço possibilitado pelos direitos de cidadania, é preciso reconhecer os movimentos criados pela ampliação dos direitos civis, políticos e sociais, como distinções dos direitos de cidadania. Entre os direitos civis, Marshall (1967) destaca a liberdade pessoal, de fala, pensamento e crenças, o direito à propriedade e à justiça. Entre os direitos políticos, o autor enuncia o voto e o emprego em serviço público; e entre os direitos sociais estão o bem estar, a segurança, o direito a uma vida civilizada e o acesso à herança social. Marshall (1967) procura identificar a evolução histórica dessas três dimensões da cidadania, concluindo que o século XVIII propiciou o – 178 –
Cidadania, direitos humanos e o direito à educação
desenvolvimento dos direitos civis; o século XIX foi palco do estabelecimento de direitos políticos; e o século XX possibilitou a extensão da cidadania para a dimensão social. Ainda que a tipologia criada por Marshall date de meados do século XX, continua atual e quase unanimemente aceita entre os teóricos da área. Uma das críticas a essa teorização reside na característica evolutiva do pensamento apresentado, que indica a existência de etapas sequenciais na consolidação de cada uma dessas três dimensões. Nessa perspectiva, a radicalização da cidadania implica necessariamente na garantia e universalização dos direitos humanos, ou seja, na compreensão de cada ser humano em particular como um sujeito de direitos que não podem lhe ser subtraídos. O consenso construído em torno da defesa dos direitos humanos ultrapassa os limites e as fronteiras de cada Estado nação, assumindo uma feição universal e generalizada. Sugestão de Leitura
BOBBIO, N. A era dos direitos. Rio de Janeiro: Campus, 1992.
Assim, os direitos direitos humanos humanos se constituem constituem como um horizonte horizonte a ser alcançado na construção da convivência humana. Para Cury (2007, p. 43), “esse conceito continua sendo o patamar mais fundo pelo qual se combatem todas as formas e modalidades de discriminação, inclusive de pertença étnica e, por ele, pode se, então, assegurar o direito à diferença”. diferença”. Desse ponto de vista, a garantia universal dos direitos do homem poderia se manifestar como uma possibilidade de superação das desigualdades, com vistas ao respeito às diferenças. O autor indica, ainda, que compreende os direitos humanos como direitos universais e os direitos de cidadania como particulares, pois esses são vinculados ao Estado nação de origem de cada indivíduo. Se cada Estado nação possui uma trajetória de desenvolvimento econômico, cultural, político e social que lhe é peculiar, possuirá também uma história própria no processo de definição dos direitos de cidadania. Porém, não é possível pensar a cidadania apenas como condição legal, como o conjunto de leis de determinado país que dispõe sobre os direitos – 179 –
História, Filosofa e Sociologia da Educação
dos cidadãos, pois à legislação devem corresponder ações efetivas para a garantia de realização desses direitos na prática cotidiana dos indivíduos. É essa materialização dos direitos em políticas que se realizam e atendem às demandas da população que confere concretude e realidade à cidadania. Cabe lembrar que a própria legislação reflete o avanço e o amadurecimento político da sociedade, ao mesmo tempo em que abre caminhos para novos avanços, em um movimento contínuo de transposição de barreiras, avanços, retrocessos e disputas entre grupos sociais com interesses antagônicos. O processo de tramitação da legislação também encerra grandes disputas e dissensos, o que exige a construção de consensos possíveis para sua aprovação. Outra forma de compreender a cidadania, além de sua definição como condição legal, é tomá la como atividade desejável, como um exercício ético, fundamentado em valores emancipatórios. Gentili (2000, p. 147) defende essa compreensão assinalando a importância de entender que “a cidadania se constrói socialmente como um espaço de valores, de ações e de instituições comuns que integram os indivíduos, permitindo seu mútuo reconhecimento como membros de uma comunidade”. Cabe ressaltar que a definição legal é imprescindível para a garantia dos direitos de cidadania em suas diferentes dimensões, mas não é suficiente. Como ensina Oliveira (2001), já possuímos uma legislação que defende os direitos civis, políticos e sociais, então precisamos de pessoas que lutem para a efetivação desses direitos, ou seja, para transformar a lei em ação prática.
9.2 Educação como direito de cidadania A educação pode ser compreendida como um dos direitos sociais fundamentais para a conquista da cidadania, por vários motivos, mas talvez o mais importante seja a constatação de que o acesso à educação é, muitas vezes, condição para o acesso a outros direitos sociais, civis e políticos. Essa relevância da escolaridade se manifesta nas possibilidades de compreensão e atuação sobre a realidade a partir das oportunidades construídas por meio do acesso à leitura e à escrita, aos rudimentos das ciências sociais e naturais, às diferentes linguagens, a visões abrangentes do mundo que nos cerca. Historicamente, nas sociedades ocidentais, ao mesmo tempo em que a escolarização se configura configu ra como direito se estabelece também como – 180 –
Cidadania, direitos humanos e o direito à educação
dever. Assim, podemos afirmar que o direito à educação não pode ser isolado do dever de frequentar a escola. Isso nos leva a compreender, por um lado, o papel do Poder Público na oferta de escolarização para a população 44 e, por outro, o papel das famílias na garantia de frequência e permanência das crianças e adolescentes em idade escolar em instituições de educação e ensino. A Constituição Imperial brasileira, aprovada em 1824, foi uma das primeiras no mundo a estabelecer o direito à educação para toda a população5 , determinando em seu Art. 179 (BRASIL, 1824): Art. 179. A inviolabilidade dos Direitos Civis, e Politicos dos Cidadãos Brazileiros, que tem por base a liberdade, a segurança individual, e a propriedade, é garantida pela Constituição do Imperio, pela maneira seguinte. [...] ddddd XXXII. A Instrucção Instrucção primaria, primaria, e gratuita gratuita a todos os os Cidadãos. Cidadãos.
É preciso distinguir o texto legal da realização do direito à instrução primária, pois, apesar de instituir a sua gratuidade, não houve uma política que tornasse o dispositivo legal verdadeiramente efetivo. A educação inicial da população ficava a cargo das províncias, que possuíam poucos recursos e interesses para investir em escolarização. Ainda que as constituições consti tuições seguintes segui ntes tenham apresentado apresen tado avanços e retrocessos em relação à definição do direito formal à educação, cabe ressaltar que o Brasil iniciou o século XX com 65,3% da população analfabeta, sem qualquer direito à instrução. O analfabetismo tornou se uma preocupação das políticas públicas nacionais com o processo de consolidação da República e da democracia. Não podemos esquecer que o país teve dois longos períodos de ditadura durante o século XX e que esses períodos omitiram, sobretudo, os direitos políticos da população, mas mesmo os governos de exceção não conseguiram reduzir a importância da educação como direito social. 4 No Brasil, com a aprovação da Emenda Constitucional n. 59/2009, a educação básica passou a ser obrigatória dos 4 aos 17 anos de idade. 5 A esse respeito, é interessante verificar as análises sobre a Constituição mexicana, de 1917, e a Constituição de Weimar, de 1919. – 181 –
História, Filosofa e Sociologia da Educação
O século XX, no Brasil, concentra as principais ações e políticas para a democratização do acesso à educação. Para a reflexão sobre os movimentos que levaram à expansão do tempo de obrigatoriedade de ensino brasileiro, Bruel (2010) apresenta um quadro com as alterações na legislação que trata do ensino fundamental durante o período republicano, de 1891 até 2009. Quadro
O ensino fundamental na legislação brasileira no período republicano. Disposição
Conteúdo da legislação em relação à
legal
obrigatoriedade e gratuidade
1891
CF
Laicidade do ensino ministrado nos estabelecimentos públicos.
1934
CF216
Ensino primário integral gratuito e de frequência obrigatória. Tendência à gratuidade do ensino ulterior ao primário.
CF
Ensino primário obrigatório. Garantia de gratuidade apenas aos que alegam “escassez de recursos”. Contribuição mensal dos estudantes para a “caixa escolar”.
CF
Ensino primário obrigatório, ministrado na língua nacional e gratuito para todos. Ensino ulterior ao primário gratuito aos que comprovam insuficiência de recursos.
Ano
1937
1946
1961
1967
1971
LDB n. 4.024
CF
Lei n. 5.692
Ensino primário com, no mínimo, quatro séries anuais de duração, podendo ser estendido para seis séries pelos sistemas de ensino, obrigatório a partir dos sete anos de idade. Isenção aos que comprovam estado de pobreza, quando houver insuficiência de escolas ou a criança apresentar doença grave. Ensino primário obrigatório para todos, dos 7 aos 14 anos, e gratuito nas escolas oficiais. Ensino ulterior ao primário gratuito aos que comprovam insuficiência de recursos. Substituição da gratuidade por distribuição de bolsas de estudos. Ensino de 1° grau com oito anos de duração, obrigatório e gratuito dos 7 aos 14 anos de idade. Gratuidade nos níveis ulteriores para os que provam insuficiência de recursos e não tenham repetido mais de um ano letivo.
1988
CF
Ensino fundamental obrigatório e gratuito até para os que não tiveram acesso na idade própria. Gratuidade do ensino público em estabelecimentos oficiais.
1996
EC n. 14
Ensino fundamental obrigatório e gratuito, assegurada a gratuidade para os que não tiveram acesso na idade própria.
6
Constituição Federal – 182 –
Cidadania, direitos humanos e o direito à educação
Ano
1996
2006
2009
Disposição
Conteúdo da legislação em relação à
legal
obrigatoriedade e gratuidade
LDB
Ensino fundamental obrigatório e gratuito até para os que não tiveram acesso na idade própria, com, no mínimo, oito anos de duração. Gratuidade do ensino público em estabelecimentos oficiais.
n. 9.394 Lei n. 11.274 EC n. 59
Altera a LDB n. 9.394/96, estabelecendo o ensino fundamental com nove anos de duração, obrigatório e gratuito na escola pública, a partir dos seis anos de idade. Educação básica obrigatória e gratuita dos 4 aos 17 anos de idade, assegurada a gratuidade para os que não tiveram acesso na idade própria.
Fonte: Bruel (2010, p. 154 155).
Analisan Analisando do o quadro quadro pode se perceber perceber que a primeira primeira legislaç legislação ão a estabele estabelecer cer um tempo mínimo de obrigatoriedade de frequência, relacionada ao ensino primário, foi a Constituição Federal de 1934, 110 anos depois da Constituição Imperial, que estabeleceu a gratuidade da instrução primária. Verifica se, portanto, que os princípios de gratuidade e obrigatoriedade não se estabelecem de forma concomitante na história de expansão da educação brasileira. Cabe ressaltar que as constituições aprovadas nos períodos ditatoriais, em 1937 e 1967, não primavam pela manutenção da gratuidade do ensino, garantindo a apenas aos alunos que alegassem escassez de recursos (CF de 1937, aprovada durante o Estado Novo) ou, então, transformando-a em bolsas de estudo (CF de 1967, aprovada durante a ditadura militar). A exceção está na Lei n. 5.692/71, aprovada em plena ditadura, que define a extensão do período de obrigatoriedade para oito anos e flexibiliza a gratuidade apenas aos níveis posteriores ao obrigatório. obrig atório. Sugestão de Leitura
BRUEL, A. L. Políticas e legislação da educação básica no Brasil. Curitiba: Ibpex, 2010.
Com o fim do período ditatorial e a abertura democrática, os movimentos sociais voltaram a se organizar e explicitar as demandas pela recuperação dos direitos políticos – cassados durante o regime de exceção – e ampliação dos direitos civis e sociais, o que marcou a história dos anos 80 do – 183 –
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século XX. Em decorrência desse movimento de efervescência democrática, muitas das reivindicações da sociedade civil foram incorporadas ao texto da Constituição Federal, aprovada em 1988, que, por isso, ficou conhecida como a “Constituição Cidadã”. Em um período caracterizado mundialmente como de retrocesso em relação aos direitos sociais, devido à incorporação dos princípios do neoliberalismo na condução das políticas de diferentes nações, o Brasil aprovou uma constituição que ampliou consideravelmente os direitos dos cidadãos. O Art. 5º da CF estabelece os direitos civis e políticos fundamentais dos cidadãos brasileiros e estrangeiros residentes no Brasil, reconhecendo o princípio de igualdade perante a lei. O caput do do Art. 5º (BRASIL, 1988) dispõe textualmente que “todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade [...]”, e se desdobra em 78 incisos que detalham os termos sob os quais a igualdade de todos se estabelece. É importante lembrar que a igualdade legal não exclui a desigualdade em outros aspectos da vida humana. A CF reserva todo o Capítulo II para a descrição dos direitos sociais da população. O caput do do Art. 6º determina que “são direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação68 , o trabalho, a moradia 79 , o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição” (BRASIL, 1988). Especificamente sobre os direitos relacionados à educação, Oliveira assinala que A declaração declaração do Direito Direito à Educação Educação é particularmente particularmente detalhada na Constituição Federal (CF) da República Federativa do Brasil, de 1988, representando um salto de qualidade com relação à legislação anterior, com maior precisão da redação e detalhamento, introduzindo se, até mesmo, os instrumentos jurídicos para a sua garantia. Entretanto, o 8 A alimentação é um direito social incluído no texto desse artigo por meio da EC n. 64 (BRASIL, 2010). 9 A moradia é um direito social inserido nesse artigo por meio das mudanças aprovadas com a EC n. 26 (BRASIL, 2000). – 184 –
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acesso, a permanência e o sucesso na escola fundamental continuam como promessa não efetivada (OLIVEIRA, 1998, p. 61).
Da análise realizada por Oliveira, depreende se que o direito à educação toma novos contornos qualitativos. Ainda que a obrigatoriedade tenha-se 10 , há outras questões que mantido nos oito anos de ensino fundamental 810 contribuem para a ampliação desse direito. Entre elas, podemos ressaltar os itens estabelecidos como dever do Estado por meio do Art. 208 da CF (BRASIL, 1988): 2
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A maior abrangência da gratuidade, que foi estendida a todos os estabelecimentos públicos de ensino. A garantia de oferta da educação gratuita gr atuita para as pessoas que não tiveram acesso na idade própria, superando a limitação de idade entre 7 e 14 anos presente na legislação anterior. A definição defini ção do ensino fundamental fundam ental (e posteriormen poster iormente te do ensino ensin o obrigatório) como direito público subjetivo, incluindo responsabilização da autoridade competente pela sua não oferta. Assim, o ensino passa a ser reconhecido como direito inalienável de todo cidadão brasileiro e o Estado passa a ser responsabilizado por sua oferta. A ideia de progressiva universalização do ensino médio, indicando uma preocupação com a continuidade da escolarização, o que deixou espaço para a definição do conceito de educação básica estabelecido posteriormente pela LDB n. 9.394/96. A extensão da obrigatoriedade do ensino à educação básica dos 4 aos 17 anos de idade, ampliando o tempo de escolaridade obrigatório que antes da aprovação da EC n. 59/09 se limitava ao ensino fundamental. O início do período obrigatório na etapa de educação infantil aos quatro anos de idade tem gerado muitas polêmicas por não se configurar como consenso entre legisladores e intelectuais da educação.
10 Sobre a alteração do tempo de escolaridade obrigatória depois da CF 1988, com a finalidade de expandi lo, ver o Plano Nacional de Educação (Lei n. 10.172/01), a Lei n. 11.274/06 e a Emenda Constitucional n. 59/09. – 185 –
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O atendimento especializado às pessoas com deficiência. Mesmo que esse tema ainda seja alvo de muitas discussões e dissensões, foi importante o seu reconhecimento pela CF. A oferta de ensino noturno regular adequado às condições dos alunos e o atendimento aos estudantes por meio de programas suplementares indicam a preocupação do Poder Público com a satisfação das necessidades dos alunos, a fim de garantir g arantir a sua permanência no sistema de ensino.
Como já vimos, a maior inovação presente na CF de 1988 não reside na definição da gratuidade do ensino, prevista já na Constituição Imperial, tampouco no tempo de educação obrigatória, pois o texto aprovado em 1988 mantém os oito anos já determinados pela Lei n. 5.692/71, 5. 692/71, mas na determinação dos mecanismos da justiça por meio dos quais a realização do direito à educação pode ser requerida. Sobre isso, Oliveira (1998, p. 65) afirma que O que é inovador, para além de uma maior explicitação dos direitos e de uma maior precisão jurídica, evidenciada pela redação, é a previsão dos mecanismos capazes de garantir os direitos anteriormente enunciados, estes sim, verdadeira novidade. São eles o mandado de segurança coletivo, o mandado de injunção e a ação civil pública.
A partir da CF de 1988, portanto, a população passa a ter reconhecido como inalienável o direito à educação e se estabelece o sistema de justiça como espaço para discussão sobre a realização desse direito. O mandado de 11 e o mandado de injunção1012 12 são direitos segurança coletivo911 direitos previstos no Art. 13 5º da Constituição, e a ação civil pública 113 está prevista no Art. 129, ao dispor sobre as funções do Ministério Público. 11 Conforme Art. 5º da CF de 1988, inciso LXX, “o mandado de segurança coletivo cole tivo pode ser impetrado por: a) partido político com representação no Congresso Nacional; b) organização sindical, entidade de classe ou associação legalmente constituída e em funcionamento há, pelo menos, um ano, em defesa dos interesses de seus membros ou associado”. 12 Conforme Art. 5º da CF de 1988, inciso LXXI, “conceder se á mandado de injunção sempre que a falta de norma regulamentadora torne inviável o exercício dos direitos e liberdades constitucionais e das prerrogativas inerentes à nacionalidade, à soberania e à cidadania”. 13 Conforme Art. 129 da CF de 1988, “são funções institucionais do Ministério Público: [...] III – promover o inquérito civil e a ação civil pública, para a proteção do patrimônio público e social, do meio ambiente e de outros interesses difusos e coletivos” (BRASIL, 1988). – 186 –
Cidadania, direitos humanos e o direito à educação
Dessa forma, se consolida a reciprocidade entre o direito à educação como um direito social e o dever do Poder Público enquanto ente responsável pela garantia desse direito. Compreende se que a ação do Estado sobre a educação não se esgota na oferta de vagas, mas abrange a garantia de acesso a elas, permanência na escola e um padrão mínimo de qualidade de ensino. Assim, não se pode falar em garantia do direito à edu cação sem matrícula em instituição de educação ou de ensino reconhecida pelo Poder Público, continuidade dos estudos com vistas à conclusão, pelo menos, da educação básica, padrão de qualidade que se reflita em e m aprendizagem efetiva do aluno.
Essa discussão sobre o direito à educação suscita, de um lado, a reflexão sobre a necessidade de busca da igualdade, no sentido de garantir condições e oportunidades iguais para todos os indivíduos, com o intuito de superar a discriminação, a segregação, os privilégios e construir uma educação mais universal e democrática. Por outro lado, não faz sentido a defesa de uma igualdade tão absoluta e abstrata que perca de vista as diferenças individuais e sufoque os sujeitos. Esse dilema, que pode se apresentar como paradoxal, encerra uma questão de fundamental importância: os perigos de relativização de todos os princípios universalizantes, levando à confusão entre os conceitos de diferença e desigualdade. Assim, a defesa de uma educação que possibilite a construção de uma sociedade mais justa e democrática é, necessariamente, aquela que garanta a emancipação dos sujeitos. Para possibilitar essa emancipação, é fundamental que o processo de escolarização atenda às suas necessidades necessi dades de aprendizagem, levando-os à superação de seus limites e à construção de um conhecimento que possua caráter sistemático, histórico e crítico. O conhecimento pode se materializar em instrumento de desenvolvimento omnilateral do ser humano e, por isso mesmo, de fortalecimento da justiça social. Uma educação que instrumentalize os cidadãos para que possam compreender melhor a realidade em que se inserem e agir sobre ela, – 187 –
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transformando-a, a fim reduzir as desigualdades promovidas pela lógica de organização da sociedade capitalista, é fundamental para promover o necessário empoderamento da população. A redistribuição dos bens materiais e culturais, dos saberes e poderes, das oportunidades e condições de existência são essenciais para a democracia e a cidadania. Nesse sentido, reafirma-se a relevância do papel do Estado, enquanto ente que representa a esfera pública constituída, e de sua intervenção por meio de políticas públicas destinadas a garantir os direitos fundamentais da população, entre os quais se encontra a educação. Pois, isoladamente, a escolarização pode ter pouco impacto sobre a garantia dos demais direitos ou mesmo sobre o processo de democratização da sociedade. É preciso pensar a educação no conjunto das políticas sociais, integrando e coordenando as ações do Poder Público nas diferentes dimensões da vida cidadã. Dica de Filme
O filme intitulado Sociedade dos poetas mortos apresenta uma história fictícia desenrolada em uma tradicional escola secundária. Um professor com atitudes pouco convencionais procura mostrar aos alunos que o conhecimento pode ser mais intrigante do que o currículo proposto pela escola. As consequências são desafiadoras e inquietantes, tanto para os alunos quanto para quem assiste ao filme. O filme, mostra que existem novas formas de ensinar. SOCIEDADE dos poetas mortos. Direção de Peter Weir. EUA: Buena Vista Pictures, 1989. 1 filme (129 min.).
Da teoria para a prática
Escolha uma das questões relacionadas à garantia do direito à educação, considerando as disposições do Art. 208 da CF de 1988 ou outro aspecto legalmente instituído. Procure – 188 –
Cidadania, direitos humanos e o direito à educação
em reportagens de jornais/revistas e em sites oficiais , que apresentam indicadores de realização da educação no país, informações que comprovem, ou não, a realização desse direito. Compare o texto legal com os dados obtidos e avalie o que poderia ou deveria ser feito para atender integralmente às necessidades da população, a fim de garantir a plena plen a efetivação do direito à educação.
Síntese Neste capítulo discutimos a consolidação do direito à educação edu cação como um direito de cidadania. A análise histórica do processo de definição de cidadania mostra se de grande importância para a compreensão do movimento da sociedade em torno da definição dos direitos sociais. Como a legislação é o instrumento por excelência para a definição dos direitos, a reflexão sobre as constituições federais do Brasil, em especial a aprovada em 1988, em vigor, orientou a análise sobre elementos da política nacional voltados à realização do direito à educação.
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História, Filosofa e Sociologia da Educação
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10 O homem e sua relação com o mundo: Filosofa e Educação Carlos Euclides Marques
E������ ��������� ��� viagem que passará por diversas abordagens da vertente essencialista ou metafísica da pedagogia. Veremos mais detalhadamente o significado desta terminologia: “essencialista” ou “metafísica”. Por ora, basta indicarmos que são abordagens focadas em concepções filosóficas que buscam a essência do ser humano e das coisas no mundo. Para chegarmos a tais
História, Filosofa e Sociologia da Educação
abordagens, primeiramente, explicitaremos o que é Filosofia e o que é Educação, termos que compõem o nome desta disciplina: Filosofia da Educação. Veremos, também, como Educação e Cultura se relacionam a certas formas de Educação não-formais. Avançando no assunto, entraremos no mundo da Antiguidade Grega, inicialmente, tratando das tradições míticas de Homero e Hesíodo. Esta primeira incursão no mundo grego será o mote para abordarmos a passagem do Mito à Filosofia, apresentando alguns pensadores originários: os pré-socráticos. Daí em diante, veremos com mais detalhes a abordagem dos sofistas, a de Sócrates e de Platão, que se confundem, e a de Aristóteles. Depois de um rápido apontar para o período Helenístico, vislumbraremos a mentalidade medieval e caracterizaremos a Patrística e a Escolástica, centrando, um pouco mais, em um expoente de cada corrente, respectivmente, Santo Agostinho e São Tomás de Aquino. Em todo este trajeto temos por objetivo caracterizar, principalmente, os diferentes enfoques da abordagem essencialista ou metafísica, que, ainda hoje, está por trás de certos discursos e práticas pedagógicas. Então, preparados(as)?
10.1 Para início de conversa Ao começar começar uma disciplina de Filosofia da Educação, Educação, uma primeira pergunta que pode vir à mente é: “O que é Filosofia da Educação?”. Eis uma questão de difícil resposta. Mas, para não deixarmos nossa caminhada sem pontos de partida, vamos apontar algumas possibilidades de resposta. Primeiro, reforçando que os caminhos adotados são alguns dos muitos possíveis para dar conta de uma resposta a esta pergunta. Numa olhada rápida, vemos dois termos centrais: Filosofia e Educação. Uma estratégia é, primeiro, tomarmos cada um separadamente. Então, definimos Filosofia e depois Educação. Isso, entretanto, não torna a tarefa mais simples. Mas vamos seguir neste caminho.
10.2 Definindo a Filosofia Talvez em razão do advento a dvento da obrigatoriedade obrigatori edade da Filosofia no currículo currí culo do Ensino Médio, a partir da Lei no 11.684, de 2 de junho de 2008, alguns – 192 –
O homem e sua relação com o mundo: Filosofa e Educação
já tenham algum contato com a Filosofia como disciplina. disciplina . Nessa Nessa perspectiva, podemos partir de abordagens comuns em manuais de Filosofia destinados ao Ensino Médio. Estes, geralmente, indicam que há muitas definições possíveis para o termo Filosofia. E começam diferenciando o uso coloquial do termo de seu uso técnico, mais acadêmico. Assim, certamente não é o sentido de filosofia como “estratégia de atuação” ou “sabedoria de vida” ou “visão de mundo”, preenchimentos que encontramos no senso comum 1, que queremos aqui. Mais uma entre as estratégias adotadas por esses manuais é recuperar a etimologia do termo Filosofia. Nesta, encontramos dois radicais gregos: philos e sophia . O primeiro podemos traduzir por amigo, apaixonado; o segundo, por sabedoria. Assim, a Filosofia seria a amizade pela sabedoria, a paixão pela sabedoria. Isso remete à busca pelo saber. Entretanto, assim como as definições do senso comum, esta não dá conta, propriamente, de uma definição mais técnica do termo Filosofia, pois um cientista ou mesmo um religioso podem ser apaixonados por determinado saber e buscar, constantemente, meios para dar conta desse saber, seja este a explicação de um fenômeno natural, seja em relação ao sagrado. Também encontramos, nos livros didáticos de Filosofia, esta estratégia que a toma como uma atitude, uma reflexão sobre o mundo, sobre a realidade. É partindo desta perspectiva que Dermeval Saviani, num texto originariamente escrito para estudantes da disciplina de Filosofia da Educação I do curso de Pedagogia da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) em 1973 e, mais tarde, publicado como primeiro capítulo de seu livro Educação: do senso comum à consciência filosófica , apresenta uma definição de Filosofia. Atentemos para ela: Com efeito, se a filosofia é realmente uma reflexão sobre os problemas que a realidade apresenta, entretanto ela não é qualquer tipo de reflexão. Para que uma reflexão possa ser adjetivada de filosófica, é preciso que se satisfaça uma série de exigências que vou resumir em apenas três requisitos: a radicalidade, o rigor e a globalidade. Quero dizer, em 1 Conhecimento adquirido pela tradição e acrescido pela experiência do dia a dia; conjunto de ideias, preceitos, técnicas que permitem a interpretação da realidade; conhecimento espontâneo, por vezes, pouco sistematizado e contraditório. – 193 –
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suma, que a reflexão filosófica, para ser tal, deve ser radical, rigorosa e de conjunto. Radical:
Em primeiro lugar, exige-se que o problema seja colocado em termos radicais, entendida a palavra radical no seu sentido mais próprio e imediato. Quer dizer, é preciso que se vá até às raízes da questão, até seus fundamentos. Em outras palavras, exige-se que se opere uma reflexão em profundidade. Rigorosa:
Em segundo lugar e como que para garantir a primeira exigência, deve-se proceder com rigor, ou seja, sistematicamente, segundo métodos determinados, colocando-se em questão as conclusões da sabedoria popular e as generalizações apressadas que a ciência pode ensejar. De conjunto:
Em terceiro lugar, o problema não pode ser examinado de modo parcial, mas numa perspectiva de conjunto, relacionando-se o aspecto em questão com os demais aspectos do contexto em que está inserido. É neste ponto que a filosofia se distingue da ciência de um modo mais marcante. Com efeito, ao contrário da ciência, a filosofia não tem objeto determinado; ela dirige-se a qualquer aspecto da realidade, desde que seja problemático; seu campo de ação é o problema, esteja estej a onde estiver. Melhor dizendo, seu campo de ação é o problema enquanto não se sabe ainda onde ele está; por isso se diz que a filosofia é busca. [...] Além disso, enquanto a ciência isola o seu aspecto do contexto e o analisa separadamente, a filosofia, embora dirigindo-se às vezes apenas a uma parcela da realidade, insere-a no contexto e a examina em função do con junto. junt o. (SAVIANI, (S AVIANI, 2007, p. 20- 21).
Reforça ainda o autor que esses termos – radical, rigorosa, de conjunto – não podem ser vistos em separado para definir Filosofia. Dessa forma, nem todo tipo de reflexão é filosófica, assim como nem toda avaliação rigorosa ou de conjunto o é. Se ficarmos com essa definição de Saviani, veremos que Filosofia da Educação é “uma “uma reflexão radical, rigorosa e de conjunto sobre a Educação”. Educação”. Resta, então, pensarmos a noção de Educação. Todos nós temos um sentido para este termo: Educação. Alguns o tomam como sinônimo de instrução; outros, de postura moral; outros, ainda, como a transmissão do legado de uma tradição. – 194 –
O homem e sua relação com o mundo: Filosofa e Educação
Fonte: REMBRANDT,
Harmensz van Rijn. Filósofo meditando , 1632. Louvre,
Paris, França.
Num sentido mais amplo, Educação se aproxima de certo sentido do termo Cultura, pois, assim como este, é um diferenciador do ser humano em relação aos outros seres não humanos. Admite-se, geralmente, que o ser humano se caracteriza não só por responder aos estímulos do meio a sua volta, mas também por alterar este meio e transmitir suas experiências às gerações seguintes. O conjunto de técnicas, práticas, teorias, instituições, preceitos morais e intelectuais é visto pela Antropologia como Cultura. Entendendo Cultura neste sentido é que podemos ver o ser humano como um produtor de Cultura e, consequentemente, de Educação.
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História, Filosofa e Sociologia da Educação
Nossa caminhada, doravante, deve ter em vista esta breve apresentação das noções de Filosofia e Educação. Ao longo dos próximos capítulos, veremos, de forma mais detalhada, diferentes abordagens, predominantemente as filosóficas, sobre a Educação, passando por aspectos práticos e teóricos. Vamos em frente?
10.3 A cultura antiga e a Educação Se olharmos para história da humanidade, veremos uma diversidade de culturas e modos de vida: divisão de trabalho; tratos sociais; hábitos alimentares e de vestuário; valores; manifestações artísticas. Cada cultura tem formas específicas de transmitir seu legado. Essas “formas de transmissão“ do legado cultural podemos chamar “educação”. É bom lembrar, entretanto, que este vocabulário não se restringe a algo formalmente institucionalizado. De fato, por milhares de anos, o ser humano transmitiu seu legado cultural de modo mais espontâneo. Não existiam profissionais especializados, escolas, teorias educacionais ou leis – no sentido jurídico – específicas para dar conta de processos que consideramos, hoje, partes de nossas vidas. O “educar” poderia ser: um adestramento para uma atividade que era passada de pai para filho; um conjunto de preceitos religiosos-morais aglutinadores de terminados grupos. Esse aspecto as pecto do educar, alguns autores denominam “educação difusa”; difusa”; outros “educação não formal” ou “informal”, em oposição à educação formal, mais característica nas sociedades letradas que estabeleceram instituições, como a escola, para transmitir o legado cultural sistematizado. Pensar a educação sistematicamente, teorizando seus fundamentos e suas práticas, não é algo que encontramos desde os primórdios da humanidade. Na realidade, se tomarmos a história da humanidade, tal perspectiva é tardia, ou seja, muito mais próxima, cronologicamente, de nós do que pensamos. Diante da diversidade cultural, mencionada anteriormente, precisamos ter muito cuidado com a temática que temos pela frente. O ato de educar é produto de cada concepção de mundo que predomina em determinado tempo, lugar e cultura. Esse ato assume distintas formas, produzindo diferentes pedagogias. Cabe esclarecer que a Pedagogia, entendida como área de conhecimento, já é uma forma sistemática e teorizada – 196 –
O homem e sua relação com o mundo: Filosofa e Educação
do ato educacional, uma Ciência da Educação. As diferentes pedagogias só podem ser bem compreendidas se analisadas à luz de determinado momento histórico, ideias e valores que a fundamentam. Se desprezarmos esses aspectos em nossa reflexão, estaremos fadados a julgar uma cultura a partir de outra e a cometer algum tipo de preconceito. O que implicaria não entendermos adequadamente nosso objeto de estudo.
Aliando essas ideias às da Introdução, vislumbramos uma tarefa para a Filosofia da Educação, a saber: compreender ideias, fundamentos e princípios que sustentam as variadas concepções pedagógicas.
Encontramos a “educação difusa” ou “não formal” nas sociedades tribais, nas práticas de trabalho menos especializadas, nas brincadeiras infantis, nas relações familiares e entre amigos, na transmissão das regras de comportamentos morais e em outros tratos sociais 2. É bom frisar que, mesmo no espaço acadêmico, encontramos essa forma de “educação”. “educação”. Em geral, esse modo do ato de educar, principalmente nas sociedades tribais e nas civilizações da Antiguidade, tem maior teor de transmissão do legado cultural, de adestramento, e gera poucas modificações ao longo do tempo. Tal Tal tipo de “educação” é mais estável, está vel, mais estático. es tático. Contudo, Contud o, isso não significa que, também aqui, ao longo da história, não encontremos mudanças, apenas que tais mudanças são mais demoradas e sutis. Esse aspecto de maior estabilidade, como já foi apontado, encontramos em certos procedimentos educacionais de algumas das grandes civilizações antigas. Nas sociedades do Antigo Oriente, por exemplo, temos o predomínio de um tradicionalismo pedagógico. Mas o que é isto? O tradicionalismo pedagógico consiste na transmissão de uma doutrina sagrada; uma sabedoria conquistada pela prática, objetivando conduzir o indivíduo à virtude e à felicidade. Aqui, a educação se caracteriza pela busca da perfeição espiritual, 2 Refere-se a normas de conduta, comportamentos normativos não morais ou legais (Direito) relacionados à forma de se portar à mesa, de se dirigir a outrem, de se vestir; à pontualidade etc. – 197 –
História, Filosofa e Sociologia da Educação
que, por sua vez, é identificada como único caminho para a virtude e a vida feliz. Temos, nessas culturas, o mestre ou preceptor como figura exemplar, ou seja, que os discípulos e a própria sociedade devem tomar com modelo. Essa prática se liga à visão mítica do mundo, que perpassa, ainda hoje, a Religião. Seguindo as ideias anteriores, podemos traçar pontes entre Mito e Educação. Lembrando que a perspectiva mítica é anterior à perspectiva filosófica e mais ainda à perspectiva científica, podemos compreender a perspectiva mítica não como algo falso ou uma construção mirabolante, mas como uma forma de conhecimento, uma visão de mundo, um conjunto de práticas e valores que agregam certos grupos humanos. É característica da tradição mítica a transmissão do legado cultural por artifícios mnemônicos, ou seja, por meio de técnicas de memorização, que privilegiam aspectos sonoros, por vezes, aliados a aspectos gestuais e imagéticos 3. Dessa forma, há um privilégio da memória sonora e gestual-visual aliada a esta. Até porque a maior parte dos membros dessas sociedades não dominam sistemas de escrita. Não é à toa que, predominantemente, se manifestam por meio de poemas recitados musicalmente, não raro acompanhados por certos tipos de instrumentos musicais. Exemplos disso são os mantras, as leituras repetidas de textos sagrados, os cânticos e a liturgia nas missas, as epopeias, as narrativas dos bardos 4 e trovadores. De forma similar, poderíamos incluir as cantigas de trabalho, as canções que transmitem valores sobre as relações amorosas etc. Para entendermos um pouco mais a mentalidade mítica, devemos perguntar: Qual o papel (função) do mito? Como o mito funciona (suas características)? Primeiramente, como toda forma de conhecimento (modos de ver o mundo), o homem, ao produzir mitos, ou seja, a consciência mítica, procura: dar sentido à vida; ordenar as relações entre si e o Universo, geralmente sacralizado (divinizado), e entre os fenômenos deste; justificar e consolidar práticas sociais (relações de trabalho, casamento, condutas e posições sociais etc.); “explicar” as origens do Universo, dos seres vivos e de práticas sociais estabelecidas. 2
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3 Relativo à imagem; que se revela pela imagem. 4 Nas sociedades celta e gaulesa eram os recitadores dos poemas épicos. – 198 –
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Desse modo, o ser humano se sente mais seguro no mundo. O que difere o pensamento mítico das outras formas de conhecimento é como este se organiza, suas bases, seus instrumentos. Para Para reforçar o que já foi dito e complementar, tomemos o que diz Chaui (1996, p. 161-163), baseada no antropólogo Claude Lévi-Strauss: O mito possui três características gerais: 1. Função explicativa: o presente é explicado por alguma al guma ação passada
cujos efeitos permaneceram no tempo. [...]; 2. Função organizativa: o mito organiza as relações sociais (de paren-
tesco, de alianças, de trocas, de sexo, de idade, de poder etc.) de modo a legitimar e garantir a permanência permanência de um sistema complexo de proibições e permissões. permissões. [...]; [.. .]; 3. Função compensatória: o mito narra uma situação passada, que é
a negação do presente e que serve tanto para compensar os humanos de alguma perda como para garantir-lhes que um erro passado foi corrigido no presente, de modo a oferecer uma visão estabilizada e regularizada regularizada da Natureza e da vida comunitária.
Podemos perceber que a narrativa mítica não é uma falsificação do real, uma mentira ou mera alegoria ‒ no sentido de figura de retórica ‒, mas uma mentalidade, uma visão de mundo, uma consciência que encontramos, ainda hoje, arraigada em nossas vidas. Dica de Leitura
Para aprofundar um pouco mais essa visão sobre o Mito, uma leitura recomendável é Mito e realidade, de Mircea Eliade.
Quando pensamos a passagem do Mito à Filosofa, por volta do século VI a.C., na Grécia Antiga, começamos refletindo sobre esta es ta tradição, a mítica, já apontado para aspectos característicos do filosofar. filosofar. Eis por que partimos dos poemas homéricos. Os poemas atribuídos a Homero (século IX a.C. aproximadamente) constituíram a fonte primária da educação grega desde os primórdios da – 199 –
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formação da mentalidade grega. O papel dessas narrativas era transmitir a história, a cultura e a relação dos seres humanos com o sagrado por meio da perspectiva mítica. A Ilíada cantava cantava os feitos heroicos dos gregos contra os povos do Oriente e a Odisseia evocava evocava a força das tradições familiares e dos costumes domésticos. Os mitos, sejam das sociedades tribais, tribais , sejam dos povos da Antiguidade, têm a função de revelar a faceta intuitiva da compreensão da realidade e de transmitir valores e ensinamentos por meio de imagens, personagens e de narrativas carregadas de grandes façanhas heroicas. Nisso os chamados poemas homéricos foram exemplares dentro da sociedade grega, desde a suas recônditas origens até os tempos de decadência da mentalidade grega antiga, no período Helenístico. Mesmo Platão, filósofo do período Clássico, que por diversas vezes apresenta posições contrárias à paideia 5 homérica, em alguns momentos reconhece Homero como “mestre da Hélade6”. Saiba mais
Homero, para os estudiosos, é uma figura de procedência discutida. A ele são atribuídas a Ilíada e a Odisseia, que, aceitando a vertente interpretativa mais difundida hoje quanto à questão da gênesis das obras homéricas, não foram escritas por um único homem, mas são – a Ilíada e a Odisseia – construções coletivas de longos anos de compilações e rearranjos de narrativas orais. Logo, obra construída por séculos para chegar à forma “definitiva”, que conhecemos até hoje.
5 Palavra grega que pode ser traduzida por Educação. Mas, conforme Jaeger (1989, p. 1), tem uma conotação muito mais complexa para o mundo grego, na Antiguidade: “ Paidéia , não é apenas um nome simbólico; é a única designação exacta do tema histórico nela estudado. Este tema é, de facto, difícil de definir: como outros conceitos de grande amplidão (por exemplo os de filosofia ou ou cultura ) [...]. O seu conteúdo e significado só se nos revelam plenamente plenamente quando lemos a sua história e lhes seguimos o esforço para conseguirem plasmar-se na realidade.” 6 Refere-se à Grécia, donde seu derivado heleno como sinônimo de grego. – 200 –
O homem e sua relação com o mundo: Filosofa e Educação
Outro expoente importante da cultura mítica grega é Hesíodo, que escreveu Os trabalhos e os dias e Teogonia . Parte do que temos da gênesis dos deuses gregos vem dos escritos desse poeta, que viveu por volta do século VIII a.C., na região da Beócia. Enquanto Homero retrata o ambiente aristocrático, Hesíodo retrata o ambiente do campo, a vida dura do agricultor. Nas obras do primeiro, os valores transmitidos são os dos guerreiros e de seu ambiente: o vigor físico, o preparo para a batalha, a coragem e a inteligência para estratégias bélicas. Já nas obras de Hesíodo, são os valores do campo: a perseverança no trabalhos do dia a dia, mesmo diante das intempéries, a esperança. Isso quanto ao universo masculino. Também quanto ao universo feminino encontramos diferenças entre ambos. Nas narrativas do primeiro, vemos a mulher bela e prendada, com seus dotes domésticos, fiel ao marido e que administra a casa e cuida dos filhos. Nos escritos de Hesíodo, ela aparece como um castigo dos deuses, mais uma boca a ser alimentada, o ser que levará os homens à perdição. De um lado temos a figura de Penélope, esposa de Odisseu ou Ulisses; de outro, Pandora, Pandora, aquela mandada pelos deuses como castigo, que, ao abrir uma jarra ‒ variantes da narrativa dizem caixa ‒, deixa escapar todos os males da humanidade. Saiba mais
Como nosso foco não é principalmente a “educação difusa” ou “infor “in formal mal”” e a men mental talida idade de mítica, mítica, o que por ora ora foi apr aprese esenta ntado do é suficiente para se ter uma ideia desses aspectos. Para um maior aprofundamento recomendamos a leitura dos tópicos “Cultura e Educação da nobreza homérica”, “Homero como educador” e “Hesío “He síodo do e a vid vidaa do campo”, campo”, da obra obra de Wern Werner er Jaeger Jaeger,, Paideia: a formação do homem grego. Imagens contemporâneas sobre as narrativas homéricas encontramos no cinema, por exemplo, nos filmes: Odisseia (1997); Helena de Tróia: paixão e guerra (2003); T Trói róiaa (2004).
Já que estamo est amoss nos pautand paut andoo na Filosofia Filos ofia da Educaçã Educ ação, o, é o nascinas cimento da filosofia grega que nos interessa mais, pois é a Filosofia que trará à Educação, até a nossa época, características fundamentais para o desen– 201 –
História, Filosofa e Sociologia da Educação
volvimento de concepções pedagógicas ao longo do desenvolvimento da civilização ocidental. Tomando por foco, no próximo tópico, a filosofia grega na Antiguidade e seus principais expoentes, vamos identificar os traços fundamentais das chamadas pedagogias essencialistas ou metafísicas. Mas, antes de avançarmos, é preciso explicitar o que caracteriza as pedagogias essencialistas ou metafísicas. Para tanto, tomemos algumas passagens do livro Filosofia da Educação, de Maria Lúcia de Arruda Aranha: Na tradição filosófica em que predomina a concepção essencialista ou metafísica, herdada dos gregos ‒ e que ainda hoje persiste em algumas teorias pedagógicas ‒ busca-se a unidade na multiplicidade dos seres, ou seja, a essência que que caracteriza cada coisa. Também o conceito de humanidade é compreendido a partir de uma natureza imutável: apesar de constatadas diferenças entre os seres humanos, existiria uma essência humana, um modelo a ser atingido. [...] Essas pedagogias tinham como característica o enfoque metafísico próprio da filosofia antiga, que acentuava a atitude teórica de análise dos conceitos universais. Segundo essa perspectiva, educar seria desenvolver as potencialidades da natureza humana, fazendo cada um tender para a perfeição, para aquilo que pode vir a ser. (ARANHA, 2006, p. 150-151).
10.4 Do nascimento da Filosofia à tradição socrática Foi com os pensadores originais ou pré-socráticos, que nasceu a Filosofia como um modo de buscar a sabedoria através de uma reflexão orientada pela razão. Esses pensadores buscavam um princípio fundamental, conforme interpretação aristotélica, para a existência de todos as coisas. Aqui, antes ant es de avançarm a vançarmos, os, cabe cab e esclarecer escla recer como c omo entendemos ente ndemos a noção de princípio fundamental. O termo grego que pode ser traduzido por princípio é arkhé . Conforme explica Marilena Chaui, em Introdução à história da filosofia : – 202 –
O homem e sua relação com o mundo: Filosofa e Educação
Esta palavra possui dois grandes significados principais: 1) o que está à frente e por isso é o começo ou o princípio de tudo; 2) o que está à frente e por isso o comando de todo o restante. No primeiro siginificado, arkhé é é fundamento, origem, princípio, o que está no princípio ou na origem, o que está no começo de modo absoluto, ponto de partida de um caminho; fundamento das ações e ponto final a que elas chegam ou retornam. No segundo caso, arkhé é é comando, poder, autoridade, magistratura; coletivamente significa: o governo, por extensão, reino, império. [...] Os dois sentidos estão fundidos na cosmologia e, posteriormente, na metafísica de Aristóteles. É o princípio absoluto, eterno, idêntico e incorruptível de todas as coisas cois as e que governa/comanda a realidade. (2002, p. 495-496).
Percebemos, no significado de arkhé , uma conotação essencialista ou metafísica. Entretanto, cabe uma ressalva: esses termos ‒ essencialista e metafísica ‒ não são empregados no período da Filosofia nascente e mesmo no período Clássico para identificar tais concepções. Voltemos aos pensadores originários. Ao buscarem um princípio não divinizado e usarem a reflexão orientada pela razão, rompem com as explicações míticas sobre o universo. Mas essa ruptura não é imediata, pois, se analisarmos melhor, veremos certo parentesco entre algumas respostas dos pensadores da Filosofia nascente e as narrativas míticas. Talvez, Talvez, um dos aspectos mais gritantes seja o fato de, em sua maioria, aquilo que nos restou dos escritos desses pensadores ‒ os fragmentos e as doxografias ‒ estão em poesia. Ainda assim, cabe indicar que a questão das semelhanças e diferenças entre as narrativas da mitologia grega e as hipóteses defendidas pelos pensadores da Filosofia nascente não é questão fechada e encontramos posições divergentes sobre o tema. Porém, tal digressão não é nosso foco. É pensando a passagem do Mito à Filosofia como algo lento e gradual que vislumbramos a substituição do mýthos ‒ ‒ termo grego que traduzimos por: ação de recitar; palavra; discurso; mensagem; mito ‒ pela afirmação do ‒ termo grego que podemos traduzir por: palavra; discurso, razão ‒ e, lógos ‒ com isso, o nascer da mentalidade Ocidental. Notadamente, esses dois termos gregos carregam a possibilidade de serem traduzidos por palavra, discurso. Entretanto, são discursos com modos diferentes de operar. Enquanto o primeiro tem um caráter mais intuitivo, mas “fechado”, o segundo é mais racional, aberto às críticas. – 203 –
História, Filosofa e Sociologia da Educação
Um exemplo claro dessa “abertura às críticas” é a sequência de hipóteses apresentadas pelos três primeiros filósofos, todos da cidade de Mileto. Para Tales, “Tudo é água”. Já Anaximandro, o filósofo na sequência de Tales, estabelece uma arkhé mais mais abstrata se comparada à água: o ápeiron ‒ termo grego que traduzimos por: ilimitado, indeterminado. i ndeterminado. Parecendo Parecendo fazer uma mediana entre seus antecessores, Anaxímenes diz ser o ar o princípio de tudo. Notemos que há uma passagem de um princípio mais concreto ‒ a água ‒ para um mais abstrato ‒ o ápeiron ‒, caracterizando um primeiro movimento da “abertura às críticas”. Por fim, numa segunda passagem, temos o ar como elemento primordial, que não é tão concreto como a água nem tão abstrato como o ápeiron. Assim, comparando a mentalidade mítica e a filosófica nascente, o que temos são duas formas de conhecimento, cada qual pautada em fundamentos diferentes mesmo que encontremos algumas similaridades entre elas. É esse aspecto próprio da filosofia nascente, a reflexão racional, que conduz, já na tradição filosófica grega, ao aparecimento da pedagogia num sentido mais técnico, como Ciência da Educação. Há em alguns fragmentos dos pensadores originários elementos que são indicativos de uma tradição que começa a tentar se colocar no lugar da paideia homérica e hesiódica. Típico disso são as críticas de Heráclito de Éfeso (cerca de 540-470 a.C.) às tradições que o precederam. Vejamos Vejamos um fragmento: Estão iludidos os homens quanto ao conhecimento das coisas visíveis, mais ou menos como Homero, que foi o homem mais sábio que todos os helenos. Pois enganaram-no meninos que matando piolhos lhe disseram: o que vimos e pegamos é o que largamos, e o que não vimos nem pegamos é o que trazemos conosco. (HIPÓLITO, Refutações, fragmento 56, IX, 9).
Alguns desses filósofos filósofos pré-socráticos pré-socráticos foram líderes de movimentos políticos que propagavam ideais transformadores para as sociedades da época. Exemplos destes são Pitágoras e os pitagóricos que viam a harmonia cósmica como modelo para encontrarmos a harmonia nas relações humanas. A origem de tudo estava nos números, diziam eles. Entendendo por números, principalmente, as relações de proporções. Assim, para os pitagóricos, descobrir a harmonia constitutiva do cosmo possibilitaria traçar, na concordância com essa harmonia cósmica, regras para a vida individual e política. Há aí um entendimento de que o macro (cosmo) se reflete no micro (vida humana). – 204 –
O homem e sua relação com o mundo: Filosofa e Educação
Embora predomine, nos fragmentos dos pensadores originários, a temática da cosmologia e da busca de um princípio natural, não divino, encontramos em alguns deles conselhos para uma vida regrada e comedida; regras para a convivência social e política harmoniosas e mesmo orientações alimentares. Entretanto, essas temáticas mais antropológicas são mais características do período seguinte, denominado, na História da Filosofia, Socrático ou Antropológico, que corresponde, geralmente, ao período Clássico da historiografia tradicional. É bom entendermos melhor aquilo que tomamos por princípios naturais como uma remissão a outra noção muito importante para compreendermos o pensamento da Filosofia nascente que é a de phýsis ‒ ‒ natureza. Para esclarecer melhor essa noção, tomemos uma passagem de Chaui (2002, p. 509): Possui três sentidos principais: 1) processo de nascimento, surgimento, crescimento de um ser [...]; 2) disposição espontânea e natureza própria de um ser; características naturais e essenciais de um ser [...]; 3) força originária criadora de todos os seres, responsável pelo surgimento, transformação e perecimento deles. A phýsis é é o fundo inesgotável de onde vem o kósmos ; e é o fundo perene para onde regressam todas as coisas, a realidade primeira e última de todas as coisas. Opõe-se a nómos [regra, [regra, lei, norma].
Com a retomada do comércio, a invenção da escrita alfabética, o advento de leis escritas, culminando com o aparecimento e desenvolvimento da cidade-estado ( pólis pólis ) como estrutura predominante na organização sociopolítica do mundo grego ‒ fatores que ocorreram ao longo do período Arcaico (aproximadamente do século VIII ao VI a.C.) ‒, novas preocupações apareceram. Isso levou alguns estudiosos contemporâneos a afirmarem que: “A “A filosofia é filha da ”. Esse mote se torna muito mais significativo no período Clássico (entre os pólis ”. séculos V e IV a. C.), no qual Atenas floresce como uma pujante pólis . 10.4.1 Sofistas: os primeiros professores
Depois da vitória dos gregos sobre os persas, fechando as Guerras Médicas (entre 490 e 479 a.C.), a acrópole de Atenas é reconstruída no comando de Péricles ‒ grande general e, consequentemente, estrategista 7. Reformas políticas, aos poucos, levam ao aparecimento da democracia. Esses fatos, além de propiciarem a ascensão de outras classes sociais atenienses que não a 7 Lembrar que a palavra estrategista vem do grego estrategos . – 205 –
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aristocracia, atraem, para Atenas, uma diversidade de pessoas: comerciantes, músicos, escultores, pintores, arquitetos e pensadores de diferentes matizes. Entre estes estão os sofistas. Mas quem foram esses homens e qual a importância deles para o desenvolvimento des envolvimento da pedagogia? Os sofistas foram pensadores itinerantes, conhecidos, principalmente, como mestres de Retórica e Oratória, que cobravam por seus ensinamentos, aspecto que os coloca como os primeiros professores particulares.
Em sua grande maioria os sofistas não são atenienses. Diferentemente dos pensadores originários, os sofistas estabeleceram uma cisão entre as leis da natureza ( phýsis ). Para eles, as leis phýsis ) e as leis do universo humano ( nómos ). do universo humano não são a priori nem nem se mantêm sempre as mesmas. Ao contrário das leis cósmicas, as do universo humano são arbitrárias, conforme a sofística. Dessa forma, não há para os sofistas, no universo humano, valores universalmente válidos. Aquilo que um determinado grupo social vê como bom, justo ou belo pode ser, para outro grupo social, ruim, injusto ou feio. O que faz uma dada sociedade assumir determinados valores são convenções estabelecidas por estratégias de convencimento e o valor atribuído por certa sociedade para isso ou aquilo não é, no fundo, melhor ou pior que os atribuídos por outra sociedade. Tal Tal visão expressa dois princípios: o relativismo e o humanismo, ou antropocentrismo. Apesar do relativismo e do antropocentrismo, há quem veja na sofística aspectos da pedagogia essencialista ou metafísica, como indica esta passagem de Aranha (2006, p. 150): Os filósofos sofistas (século V a.C.) eram educadores, mas, quando ensinavam retórica, a arte de bem falar, na verdade estavam voltados para a formação do homem público, capaz de defender com argumentos suas idéias - e convencer os demais - na assembléia democrática.
No mundo da Atenas democrática, tais princípios ‒ relativismo e humanismo ‒ combinam com os da própria democracia: a isonomia e a isegoria . Para entender melhor essas noções e a de nómos , já utilizada, – 206 –
O homem e sua relação com o mundo: Filosofa e Educação
tomemos o glossário de termos gregos, apresentado por Chauí (2002, p. 503-506): Nómos: Regra, lei, norma. O primeiro sentido desta palavra é aquilo
que se possui por partilha, aquilo que se usa porque atribuído por uma partilha; por extensão: uso, costume conforme ao uso ou ao costume. Esta conformidade ao costume passa a significar a norma ou regra costumeira de um comportamento de um grupo, as convenções sociais que o grupo estabelece para seus membros. Mais adiante: opinião geral, máxima geral, regra de conduta. [...] Nómos opõe-se opõe-se a physis : o nómos é é o que é por convenção, por acordo e decisão dos humanos, enquanto physis é é o que é por natureza, por si mesmo independentemente da decisão ou vontade dos homens. Os sofistas dirão que tudo é pelo nómos , tudo é por convenção. Palavra composta de dois elementos: ise -,-, que vem de isos (igual, igual em número e em força; igualmente repartido, ter parte igual; justo, equitável, equilibrado, nivelado), e - goria , derivada do verbo agoreúo (falar em público, falar numa assembléia, discursar em público). É o direito de cada cidadão de dizer sua opinião na assembléia democrática. É a liberdade de expressão que cada um possui e de que todos os cidadãos desfrutam. Isegoría:
Isonomía: Palavra composta por ise - (ver isegoría ) e -nomia , vinda de
nómos (ver (ver nómos ). ). Inicialmente, significa repartição igual; a seguir,
significa igualdade de direitos perante a lei no regime democrático.
O regime democrático se pauta pelos debates na assembleia, que envolvem todos os cidadãos atenienses, que devem ter habilidades próprias da Retórica e da Oratória. Logo, essas, para o regime democrático, são de fundamental importância. Entre os grandes sofistas se destacam Protágoras de Abdera e Górgias de Leontinos. O primeiro afirma que: “O homem é a medida de todas as coisas, das que são como são e das que não são como não são”. O que Protágoras está afirmando é que o ser humano é quem atribui valores a todas as coisas e diz que as coisas são dessa ou daquela forma, pois, se há uma essência das coisas, tal essência não é passível de ser conhecida pelo ser humano. Por que o ser humano não tem conhecimento da essência das coisas? Porque, segundo a sofística, das coisas o ser humano só tem aquilo que lhe aparece, ou seja, o fenômeno. Ainda há o fato de ser a partir da linguagem que os seres humanos – 207 –
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tentam dizer o que são as coisas. E a linguagem não é a coisa em si. Dizer “casa” não é sentir, essencialmente, uma casa. O segunda afirma: “Nada existe que possa ser conhecido; se pudesse ser conhecido não poderia ser comunicado; se pudesse ser comunicado não poderia ser compreendido”. Górgias é mais radical que Protágoras; ele apresenta a impossibilidade do conhecimento, prenunciando o ceticismo do período Helenístico. Notemos que ambos os fragmentos nos colocam perante problemas relativos à possibilidade do conhecimento e a função da linguagem humana no processo de comunicação da experiência sobre o mundo. Ou seja, questões ligadas à pedagogia. Não bastasse isso, os sofistas foram os primeiros a elaborar uma educação intelectual desligada da educação do corpo. Lembremos que até então a educação grega combinava a educação do corpo com a educação da alma: para a primeira a ginástica; para a segunda, a música ‒ aqui, sinônimo de poesia. E, como atenta Aranha (1996, p. 43), os sofistas alargam a noção de paideia , que inicialmente se referia à educação da criança, passando, como os sofistas, a se referir, também, à educação continuada do adulto.
Os sofistas foram os primeiros a sistematizar um currículo educacional, composto de gramática, retórica e dialética; e, na linha dos pitagóricos, aritmética, geometria, astronomia e música. Tal proposta é a precursora da tradicional divisão das Sete Artes Liberais, que, na Idade Média, será a base o currículo escolar, dividido em Trivium e Quadrivium, dos quais voltaremos a falar mais à frente.
A sofística não foi muito bem-vista pelos filósofos do período Clássico: Clás sico: Sócrates, Platão e Aristóteles. A impressão que a tríade deixou sobre a sofística foi de tal forma negativa que a imagem predominante por muito tempo na História da Filosofia leva a crer que os sofistas foram apenas um bando de charlatões, preocupados apenas em enriquecer. O prejuízo decorrente dessa imagem foi, em parte, a perda das obras atribuídas a esses pensadores, res– 208 –
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tando de suas hipóteses esparsos fragmentos e alusões nos textos de seus opositores, como encontramos, por exemplo, nos Diálogos de Platão. O próprio termo sofista e seu derivado passaram a ter conotações pejorativas. Embora, por vezes, esqueçamos que o termo sofisticado venha de sophisés , que traduzimos por sofista, e também, numa tradição anterior ao advento da sofística, que significava sábio, excelente em uma arte ou técnica, sensato, prudente. 10.4.2 A questão socrática
Como vimos, um dos opositores da sofística foi Sócrates. Mas quem foi esse filósofo e que legado nos deixou? De Sócrates não temos nada escrito, pois este, seguindo à risca a sua visão sobre o texto escrito ‒ para ele, uma imitação da palavra falada e, como tal, algo menor, que não contribuía muito para a busca do saber ‒, nada escreveu. O que temos a repeito de Sócrates nos foi deixado, predominantemente, por seu mais ilustre discípulo, Platão. Mas também temos os relatos de Xenofontes. Ambos, Platão e Xenofontes, por perspectivas e estilos diferentes, dão-nos um Sócrates sábio e modelar. Platão chega mesmo a dizer que Sócrates foi o homem mais justo que ele conheceu. Muito diferente dessa imagem é a que nos deixou Aristófanes, um comediógrafo, contemporâneo de Sócrates. A partir dele, temos um Sócrates malvestido, pobre, que vivia nas nuvens e se utilizava de artifícios retóricos (aqui, no sentido pejorativo). Tais registros divergentes e, provavelmente, não isentos de valores ‒ derivados sejam da excessiva admiração ou da função ridicularizante, típica da comédia clássica ‒ colocam Sócrates muito mais como um personagem. Disso deriva o que os estudiosos chamam de “a questão socrática”. socrática”. Mesmo assim, sabemos que Sócrates jamais saiu de Atenas e que morreu em 399 a.C., durante o regime democrático. Morte que fez dele uma espécie de mártir da Filosofia. Lembramos que a maior parte dos textos que falam de Sócrates são posteriores a sua morte. Sabemos, também, que ele vivia na ágora ‒ praça pública ‒ e nos ginásios questionando figuras ilustres e quem mais se aproximasse das rodas de debates promovidas por sua estratégia dialogal. Em razão disso, muitos jovens o seguiam. E uma das acusações que o levaram a julgamento foi corromper corromper os jovens; a outra, outra, não crer nos deuses. – 209 –
História, Filosofa e Sociologia da Educação Saiba mais
Para saber mais sobre Sócrates assista ao filme Sócrates (1971). (1971).
Conta-se que, em certa ocasião, um amigo de infância e membro do partido democrático de Sócrates, Querefonte, indo a Delfos, cidade grega onde ficava o mais célebre oráculo da Antiguidade, teria consultado o Oráculo, perguntando se havia homem mais sábio que Sócrates. Recebeu a resposta de que não havia ninguém mais sábio que Sócrates. Ora, Sócrates vivia dizendo que nada sabia. Como interpretar esse aparente contrassenso? O próprio Sócrates, personagem de Platão, na Defesa de Sócrates (21b-e), responde: Quando soube daquele oráculo, pus-me a refletir assim: “Que quererá dizer o deus? Que sentido oculto pôs na resposta? Eu cá não tenho consciência de ser nem muito sábio nem pouco; que quererá ele, então, significar declarando-me o mais sábio? Naturalmente, não está mentindo, porque isso lhe é impossível.” Por longo tempo fiquei nessa incerteza sobre o sentido; por fim, muito contra meu gosto, decidi-me por uma investigação, que passo a expor. Fui ter com um dos que passam por sábios, porquanto, se havia lugar, era ali que, para rebater o oráculo, mostraria ao deus: “Eis aqui um mais sábio que eu, quando tu disseste que eu o era!” Submeti a exame essa pessoa ‒ [...]Eis, Atenienses, a impressão que me ficou do exame e da conversa que tive com ele; achei que ele passava por sábio aos olhos de muita gente, principalmente aos seus próprios, mas não o era. Meti-me, então, a explicar-lhe que supunha ser sábio, mas não o era. A conseqüência foi tornar-me odiado dele e de muitos dos circunstantes. circunstantes. Ao retira retirar-m r-me, e, ia conclu concluindo indo de mim mim para para comigo: comigo: “Mais “Mais sábio sábio do que esse homem eu sou; é bem provável que nenhum de nós saiba nada de bom, mas ele supõe saber alguma coisa e não sabe, enquanto eu, se não sei, tampouco suponho saber sa ber.. Parece que sou um nadinha mais sábio que ele exatamente em não supor que saiba o que não sei.”
Tal fragmento é indicativo de que Sócrates era um filósofo no sentido mais etimológico do termo: não um sábio, mas um amigo da sabedoria, ou seja, alguém que busca a sabedoria. Mas como se dá essa busca? – 210 –
O homem e sua relação com o mundo: Filosofa e Educação
Sócrates costumava dizer que nada ensinava, mas procurava ajudar as pessoas a buscarem no interior de si mesmas o conhecimento que tinham. Tal perspectiva é claramente essencialista ou metafísica, pois revela uma concepção inatista do conhecimento: de alguma forma nossa alma já traz – antes mesmo de nosso nascimento, que corresponde ao estabelecimento de uma relação corpo-alma, matéria-espírito – o conhecimento do Bem, do Justo e do Belo. Entretanto, tal conhecimento se encontra adormecido. Assim, segundo Sócrates, o que ele fazia era ajudar as pessoas a recuperar esse conhecimento que estava dentro de si. Para tanto, Sócrates inquiria seus interlocutores.
O depoimento de Sócrates, no fragmento da Defesa de Sócrates, apresentado anteriormente, aponta para o método socrático que possuía duas etapas: 2
2
primeira, a ironia ‒ do grego eironia ‒, ‒, perguntar, fingindo ignorância ‒ que tem um caráter negativo, pois desconstrói a opinião (dóxa ) apresentada pelo interlocutor sobre algo; segunda, a maiêutica ‒ maieutiké , relativo ao parto 8 ‒, mais positiva, pois consistia em, a partir de outras perguntas, dar à luz as ideias que cada um tem dentro de si.
Para Sócrates, conhecer era relembrar ( anámnesis ).). Mas, para entendermos tal concepção, devemos aceitar um fundamento religioso no pensamento socrático e sua concepção de alma ( psykhé ).). Ao final da parte Vida e obra do volume Sócrates da coleção Os pensadores, José Américo Motta Pessanha esclarece: 8 Sócrates revela (Platão, Teeteto, 148e-151a) que age como as parteiras, mas, enquanto estas trazem ao mundo corpos, ele traz ideias. Sócrates reforça que, assim como as parteiras, ela apenas ajuda no nascimento, não faz nascer. Lembremos que Sócrates era filho de uma parteira, Fenárete. – 211 –
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Na verdade, Sócrates criou uma nova concepção de alma ( piquê ),), que passou a dominar a tradição ocidental. Antes, como em Homero, a psiquê era era o “duplo” “duplo” que podia se desprender provisoriamente durante o sono ou definitivamente, com a morte, mas que nada tinha a ver com a vida mental ou as “faculdades” da pessoa. [...] É a partir de Sócrates – ou pelo menos é na literatura referente a ele e que se seguiu à sua morte – que surge a concepção de alma como sede da consciência normal e do caráter, a alma que no cotidiano de cada um é aquela realidade interior que se manifesta mediante palavras e ações, podendo ter conhecimento ou ignorância, bondade ou maldade. E que, por isso, deveria ser o objeto principal da preocupação e dos cuidados do homem. (1987, p. XXI).
É essa concepção de alma que costura a relação entre conhecimento e atitudes, fundamentando um “já-saber”. É porque outrora a alma vislumbrou a perfeição e depois caiu, agarrando-se à matéria ou bebendo no rio do esquecimento, que a alma participa das ideias, ideias , esquecendo-as posteriormente. Cabendo ao mestre provocar no discípulo o desejo de autoconhecimento. Sócrates tomou para si uma máxima que encontramos no Oráculo de Delfos: “Conhece-te a ti mesmo”. Dessa forma, é preciso pensar bem para viver bem. Outra máxima atribuída a ele: “Uma vida sem reflexão não vale a pena ser vivida”. A ética de Sócrates parte da ideia de que a ação moral está intimamente ligada ao grau de conhecimento do bem. Conhecer o bem, de forma racional, implica agir bem. Ter Ter conhecimento racional (epistéme ) é ser virtuoso. Esta, para ele, é uma relação direta. Assim como os sofistas, Sócrates não se preocupa com a questão cosmológica pelo arkhé ; traz a reflexão filosófica para um domínio centrado no homem e em suas questões. Questionar sobre a natureza do bom, do belo e do justo envolve o agir humano, tanto no aspecto individual (ética) como no coletivo (política). Em oposição às tradições orientais, o homem ocupa o centro do pensamento na cultura ateniense do período Clássico, eis por que podemos falar num humanismo entre os gregos. Mesmo sendo complicado estabelecer um limite, na obra platônica, entre o que é de Sócrates e o que é de Platão, muitos estudiosos, ao classificar as obras de Platão, denominam os Diálogos da juventude como “socráticos” ou “aporéticos”. Para esses estudiosos, os Diálogos da juventude estão mais próximos do que seria o pensamento de Sócrates; já os posteriores a esta fase começariam a apresentar ideias propriamente de Platão. Outra característica – 212 –
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dos Diálogos da juventude de Platão é serem inconclusos, ou seja, há uma pergunta que inquieta os personagens, conduzidos por Sócrates. Eles procuram uma definição para determinado objeto de estudo, mas não a encontram, descobrindo, apenas, que as certezas que tinham sobre o objeto são apenas opiniões parciais, que não servem para definir universalmente o objeto de estudo. A esse questionamento que fica sem resposta chamamos aporia. Eis o porquê da denominação aporético. Vamos agora ao pensamento de Platão.
10.5 Platão: uma utopia, a educação dos governantes Platão nasceu em Atenas 9 por volta de 428 a.C. e morreu em cerca de 348 a.C. Assim, viveu entre o apogeu e o declínio de Atenas e foi contemporâneo do enfraquecimento de Esparta, duas das mais importantes pólei (plural (plural de pólis ) da época e que eram inimigas. É significativo que, dez anos após a morte de Platão, Filipe da Macedônia domine a Grécia, perdendo, esta, para sempre, sua autonomia. Platão era de família influente e, por sua origem, tendia para a vida política. Entretanto, a Grécia vivia em guerra; após o domínio de Esparta sobre as cidades gregas, instaurou-se, em Atenas, um regime tirânico, denominado o Governo dos Trinta, do qual participavam parentes e amigos de Platão. Esse governo impopular foi derrubado pela democracia. Mas, ao que parece, mesmo essa democracia recuperada não tinha a pujança da democracia dos tempos de Péricles. Foi durante essa retomada da democracia que Platão presenciou o julgamento, a condenação e a morte de seu mestre: Sócrates. Todas Todas essas circunstâncias levaram Platão a desacreditar da carreira política, o que deixa claro na Carta VII (325c-326b): A mim, que observava essas coisas e os homens que faziam política, quanto mais examinava as leis e os costumes e avançava em idade, tanto mais me parecia difícil ser correto o dedicar-me à política. Pois, sem amigos e companheiros fiéis, não é possível agir. – Ora, não era fácil achar quem tomasse a iniciativa, uma vez que nossa cidade não 9 Há quem diga que tenha nascido em Égina, uma pequena ilha do mar Egeu que se tornou possessão de Atenas. – 213 –
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era administrada mais nos costumes e usos dos ancestrais, e não era possível conseguir com facilidade outros novos amigos e companheiros. – A corrupção corrupção dos artigos artigos das das leis leis e dos costume costumess alastrava alastrava tão espanto espantosasamente, que eu, que de início estava pleno de ímpeto para pa ra realizar o bem comum, olhando para eles e vendo-os sendo completamente levados de qualquer modo, acabei em vertigem. Não deixei, contudo, de esperar um momento adequado, se, na verdade, a situação e todo o governo melhorassem, para ainda aproveitar qualquer ocasião de realizar o bem comum. Acabei por entender que todas as cidades de agora são mal governadas, pois têm legislação quase incurável, e falta uma preparação extraordinária aliada à fortuna. Fui obrigado a dizer, louvando a verdadeira filosofia, que a ela cabe discernir o politicamente justo em tudo dos indivíduos, e que a espécie dos homens não renunciará aos males antes que a espécie dos que filosofam correta e verdadeiramente chegue ao poder político, ou a espécie dos que têm soberania nas cidades, por alguma graça divina, filosofe realmente.
Após a morte de Sócrates, Sócrates , Platão deixou Atenas, fez diversas divers as viagens; viagen s; cogita-se que tenha ido ao Egito, à Ásia Menor, a Creta, ao Sul da Itália e à Sicília. Numa dessas viagens é provável que tenha encontrado Arquitas, governador de Tarento, da escola pitagórica. Voltando a Atenas, em torno de 387 a.C., fundou a Academia – para alguns a primeira escola superior do Ocidente – com o objetivo de formar o autêntico filósofo, através dos estudos científicos. Mais ou menos nessa época teria escrito a maior parte de seu mais conhecido Diálogo A república repúblic a .
Fonte: SANZIO,
Rafael. Escola de Atenas, pintado de 1508 a 1511. Afresco. Stanza della Segnatura, Vaticano.
Em A república , Platão construiu uma cidade ideal como contraponto à cidade real, corrompida. Nessa cidade idealizada o filósofo é o governante. – 214 –
O homem e sua relação com o mundo: Filosofa e Educação
Mas, para que este chegue a governar, governar, tem de passar por uma longa etapa de educação. Educação essa que servirá para pôr os olhos na direção correta, evitando que a alma seja corrompida. Sabemos que por, por, ao menos três ocasiões, Platão tentou implantar tal proposta. Em todas elas se saiu malogrado. Algo que leva alguns estudiosos a compararem esta obra do período intermediário da produção platônica com outra da velhice, que, ao que parece, ficou inacabada: As leis. Vamos contextualizar um pouco a Educação da época. Esparta e Atenas eram as cidades modelares também nesse campo. Na primeira predominava uma rígida educação militar: aos sete anos os jovens eram tirados de suas famílias, entregues ao Estado; havia treinamento atlético militar rigoroso, com a finalidade de modelar os espíritos à coragem; os educandos viviam em comunidade e passavam por diversas provas, semelhantes, ou piores, às militares de hoje. A segunda seguia um modelo mais privado, onde a edução ficava sobre a responsabilidade da família; além de aspectos tradicionais da paideia aristocrática aristocrática – ginástica e música –, devido à ascensão de outras classes sociais, Retórica e Oratória se tornaram partes do “currículo “currículo escolar”. Para saber um pouco mais sobre a educação ateniense, tomemos uma passagem do livro História da Educação, de Maria Lúcia de Arruda Arr uda Aranha: Vimos que, passado o período heróico, a educação ainda é aristocrática e uma incumbência da família. No final do século VI a.C., já terminando o período arcaico, aparecem formas simples de escolas. Embora o Estado demonstre algum interesse, o ensino não se torna nem obrigatório obrigatório nem gratuito e continua predominantemente sob a iniciativa particular. particular. A educação se inicia aos sete anos. Se a criança criança é do sexo feminino, permanece no gineceu, parte da casa onde as mulheres se dedicam aos afazeres domésticos, pouco importantes em um mundo essencialmente masculino. Se é menino, desliga-se da autoridade materna e inicia a alfabetização e a educação física e musical. pedagogo go, o menino dirige-se à pales pales Acompa Acompanha nhado do por um escrav escravo, o, o pedago tra tra [lugar [lugar para exercícios de luta], onde pratica exercícios físicos. Sob a pedótriba (instrutor orientação do pedó (instrutor físico), é iniciado em corrida, salto, lan pentatlo lo, çamento de disco, de dardo e em luta, as cinco modalidades do pentat competição famosa de jogos. Aprende assim a fortalecer o corpo e a exercer domínio sobre si próprio, já que a educação física nunca se reduz à mera destreza corporal, mas vem acompanhada pela orientação moral e estética. – 215 –
História, Filosofa e Sociologia da Educação
Além Além do preparo preparo físico, físico, a educaçã educaçãoo musical musical é extre extremam mament entee valoriz valorizada ada,, e por isso o pedagogo também leva a criança ao citarista, ou professor de cítara. Os gregos eram amantes da música (a arte das musas), de significado muito amplo, abrangendo a educação artística em geral. geral. Assim, qualquer jove jovem m bem-ed bem-educa ucado do aprend aprendee a tocar lira lira ou outros outros instr instrum ument entos, os, como como cítara e flauta. É cultivado o canto, sobretudo sobre tudo coral, bem como a declamação de poesias, geralmente acompanhada por instrumento musical. mu sical. A dança é expressão abrangente que inclui in clui o exercício físico e a música. [...] O ensino elementar de leitura e escrita, durante muito tempo, merece menor atenção e cuidado do que as práticas esportivas e musicais já referidas. referidas. O mestre é geralmente uma pessoa humilde, mal paga e sem o prestígio do instrutor físico. Com o tempo, à medida que aumenta a exigência de melhor formação intelectual, delineiam-se três níveis de educação: elementar, secundária e superior. superior. grammata , literalmente “letra”), O gramático ( grammata “le tra”), também chamado didáscalo (didasko, “eu ensino”), costuma reunir, em qualquer canto – sala, tenda, esquina ou praça pública – um grupo de alunos para ensinar-lhes leitura e escrita. Usa métodos que dificultam a aprendizagem, em que é acentuado o recurso da silabação, repetição, memorização memorização e declamação. Geralmente as crianças aprendem apren dem de cor os poemas poemas de Homero, de Hesíodo, as fábulas fábulas de Esopo e de outros autores. Escrevem em tabuinhas enceradas e fazem os cálculos com o auxílio dos dedos e do ábaco, instrumento de contar constituído de pequenas bolas.
A educação elementar elementar completa-se por volta dos 13 anos. As crianças mais pobres saem então em busca de um ofício, enquanto as de família rica continuam os estudos, sendo encaminhadas ao ginásio, palavra com diversos sentidos. Inicialmente designa o local para a cultura física onde, com freqüência, os gregos se apresentam despidos (daí sua origem etimológica: gimno. “nu”). Com o tempo, as atividades musicais as direcionam para discussões literárias, abrindo espaço para o estudo de assuntos gerais com matemática, geometria e astronomia, sobretudo sob a influência dos filósofos. Com a criação de bibliotecas e salas de estudo, o ginásio adquire feição mais próxima do conceito de local de educação secundária. Dos 16 aos 18 anos, a educação adquire uma dimensão cívica de preparação militar, instituição que se desenvolve por volta do século IV a.C. e é conhecida como efebia (efebo (efebo significa jovem). jovem). Após a abolição do serviço militar em Atenas, a efebia passa a constituir a escola em que se ensina filosofia e literatura. – 216 –
O homem e sua relação com o mundo: Filosofa e Educação
Apenas com os sofistas se inicia uma espécie de educação superior. superior. Eles também se dedicam à profissionalização dos mestres e à didática, didá tica, cuidando inclusive da ampliação das disciplinas de estudo. [...] Como se vê por este relato, a educação formal for mal atende aos filhos da elite, excluindo os demais. Segundo o legislador Sólon, “as crianças devem, antes de tudo, aprender a nadar e a ler; em seguida, os pobres devem exercitar-se na agricultura ou em uma indústria qualquer, ao passo que os ricos devem se preocupar com a música e a equitação, e entregar-se à filosofia, à caça e à freqüência aos ginásios”. Isso significa também que não há preocupação com o ensino profissional, pois os ofícios são aprendidos no próprio mundo do trabalho. Uma exceção é a medicina, profissão altamente al tamente considerada entre os gregos. Os ensinamentos de Hipócrates (460-377 a.C.) são acrescidos de inúmeras observações, que tornam tor nam a medicina parte integrante da cultura geral grega, ao lado de considerações éticas e regras de conduta. Segundo o helenista Werner Jaeger, esta posição de prestígio decorre da sua relação com a paidéia , ou seja, o médico é co locado ao lado do pedótriba (professor de ginástica), do músico e do poeta. Se o homem sadio é um ideal grego, é preciso entender que ginastas e médicos concebem a cultura física na sua dimensão espiritual. (1996, p. 52-53).
Com elementos da paideia espartana espartana e da padeia ateniense , Platão compôs sua paideia , que transparece, principalmente, no Diálogo A república . Vemos, nesta obra platônica, elementos da velha paideia , como a ginástica e a música. Entretanto, Platão expulsa de sua cidade ideal algumas artes como certos tipos de pintura e de poesia. Há vasta literatura sobre a censura a essas artes imitativas. Partamos da fala do próprio texto platônico: Logo, devemos começar por vigiar os autores de fábulas, e selecionar as que forem boas, e proscrever as más. As que forem escolhidas, persuadiremos as amas e as mães a contá-las às crianças, e a moldar as suas almas por meio das fábulas, com muito mais cuidado do que os corpos com as mãos. Das que agora se contam, a maioria deve rejeitar-se. (PLATÃO, A república , II, 377c).
O que está por trás disso? Tentando responder ao dilema entre o mobilismo – o ser é constante transformação – e o monismo – o ser é uno e sempre o mesmo – que vem da tradição pré-socrática, do debate entre a Escola de Eléia e Heráclito de Éfeso, Platão estabelece a separação entre dois mundos: o dos sentidos, mobista; e o – 217 –
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das Ideias, imutável. Partindo dessa perspectiva, formula, também uma teoria do conhecimento10, que trata as coisas do mundo sensorial como imitações das ideias. E, dessa forma, considera o “conhecimento “conhecimento”” gerado pelos sentidos s entidos como ilusórios, frutos da dóxa (opinião). (opinião). Tal Tal concepção é sintetizada na chamada Alegoria da Caverna, à qual votaremos mais à frente. As artes imitativas – particularmente a poesia homérica, as tragédias e a pintura – são, então, para Platão, imitações de imitações. Dessa forma, estão muito distantes dos modelos dados pelas Ideias. E são tais modelos – essências – que devem ser buscados, no processo de conhecimento. Além disso, Platão pretendia uma reforma nas bases morais e tendia a defender uma concepção religiosa monoteísta, aspectos que se chocam com as características da tradição homérica e das representações dela derivadas na tragédia e na pintura. Muitos estudiosos de Platão defendem que, no fundo, homérica é mais ética do que epistêmica, ou seja, refere-se sua crítica à paideia homérica mais aos aspectos éticos e de conhecimento. Assim, deuses, como os descritos pela tradição homérica, que mudam de forma, são vingativos, têm raiva e outras paixões humanas, não servem como modelo ético para o agir humano. Platão, assim como Sócrates, não tinha grande apreço pela escrita, pois esta era imitação da linguagem oral. No entanto, Platão, diferentemente de Sócrates, deixou-nos obras escritas. Mas optou por um estilo literário que se mostra o mais próximo possível às conversas que tinha na Academia; por isso, escreveu em forma de diálogo. Eis um claro exemplo de pensador que reflete, na sua própria forma de escrever, princípios de seu método, do qual falaremos à frente. 10.5.1 A dialética: muito mais que um método
O método platônico toma por base as etapas do método socrático, já apresentado. O procedimento dialógico adotado por Sócrates serve para fazer 10 Na realidade, esta é uma terminologia mais adequada para a Modernidade. Em vista disso, para alguns estudiosos, não haveria, propriamente, p ropriamente, entre os filósofos gregos, uma preocupação sobre se podemos ou não conhecer e como conhecemos o objeto, mas partiria de um pressuposto de que esse objeto já é um dado. Logo, não podemos duvidar da possibilidade do conhecimento. Tal abordagem é controversa. Mesmo assim, em Platão, seria mais adequado dizer uma Teorias Teorias das Ideias que tem reverberações na questão sobre o conhecimento. – 218 –
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com que os interlocutores descubram a debilidade de suas opiniões (argumentos). No entanto, Platão – e o Diálogo A república é é um bom exemplo disso – não mantém essa característica na totalidade em seu método, indo além no processo de definição conceitual. Assim o processo proposto por Platão vai das opiniões (dóxa – – escuridão) às essências (luzes, ideias – epistéme ). ). Este caminhar prático/teórico é a dialética; para Platão, a única forma em que podemos filosofar. filosofar. O método da dialéctica é o único que procede, por meio da destruição das hipóteses, a caminho do autêntico princípio, a fim de tornar seguros os seus resultados, e que realmente arrasta aos poucos os olhos da alma da espécie do lodo bárbaro em que está atolada e eleva-os às alturas […]. (Platão, A república , VII, 533c-d).
O falar está muito ligado ao raciocínio, à construção dos conceitos, ao ser como essência. O homem é o único animal que fala, tem uma linguagem, produz conceitos, juízos. Assim, Platão aposta que que o homem consegue se aproximar aproximar das coisas em Também crê na possibilidade humana de se chegar – si , ir além das opiniões. Também ou ao menos se aproximar – a algo irrecusável e seguro para todos enquanto todos são racionais. E, se há essa possibilidade, também é possível, pensa Platão, alcançar o Bem, o Justo e o Belo. Uma etapa para esse processo é o procedimento dialogal, o cuidado com as definições conceituais no debate. Entretanto, o cuidado com a linguagem, a tentativa de não se colocar em contradição e o polimento na definição conceitual ainda não são suficientes, pois estão no âmbito da linguagem. E Platão não discorda dos sofistas quanto a ver na linguagem um dizer algo que esta não é. Eis porque os procedimentos dialogais apenas prenunciam uma intuição de conhecimento. E, no fundo, para Platão é essa intuição intelectual que leva o ser humano ao reconhecimento das essências (Ideias). [...] a dialética é o instrumento próprio para chegar ao conhecimento dos objetos do pensamento – as Idéias puras – e, finalmente, ao seu objeto último, a Idéia do Bem. Podemos chamar a dialética de lógica e metafísica, ou simplesmente de filosofia; mas, qualquer que seja denominação, ela é não apenas o estudo de objetos percebidos pela mente (mathémata ); ); mas o exame dos primeiros princípios do ser, e sobretudo daquele que é o primeiro e o último, a Idéia do Bem, causa do ser e objeto final do conhecimento. (BARKER, 1978, p. 194). – 219 –
História, Filosofa e Sociologia da Educação
A dialética dialé tica é o estágio estági o mais elevado elevad o da caminhada caminha da que vai da dóxa à epistéme , ocupando, na “grade curricular” estabelecida em A república repúblic a , o último nível, a educação superior. Depois da música, artes e ginástica, matemática e ciências afins, vem a dialética. Esta dará ao guardião a condição de ver além, de conseguir ver a Justiça, o Bem, as Ideias e tornar-se o verdadeiro Filósofo. Sir Ernest Baker (1978, p. 13-184) atualiza este procedimento, explicando-o: expl icando-o: [...] o professor “extrai” do aluno o que ele tem de melhor; na verdade, seria mais próprio dizer que este “melhor” aparece por si, reagindo à presença de certos fatores externos, e que a arte do professor consiste justamente em expor expor tais fatos diante do aluno.
repúblicaa vemos isso: o “professor”, aqui, No próprio caminhar de A repúblic Sócrates, faz seus alunos descobrirem, ou reconhecerem, o que seja a Justiça em sua essência. Dando estímulos que os desvelarão ao que está escondido no seu “interior”. E aí conhecer-se a si mesmo equivale a conhecer o mundo, as ideias.
Em complemento a uma estratégia mais racional e de uso do raciocínio lógico, o texto platônico recorre a vários Mitos, ou melhor, Alegorias. Mas por que isso? Segundo Platão, há certas coisas muito difíceis de explicar. E mais, há pessoas que não acompanham muito bem uma linguagem lógico-argumentativa. Assim, o recurso aos Mitos ou Alegorias facilitam a compreensão, pois têm uma linguagem poética, sem distorções como as de Homero e outros poetas, e que anima o espírito, provocando a imaginação. Dessa forma o mito completa o diálogo, como nos esclarece François Châtelet no volume 1. A filoso filosofia fia pagã pagã , de História da filosofia: ideias e doutrinas: O método platônico é demonstrativo e seu instrumento é a “arte” dialética. Entretanto, freqüentemente, o discurso lógico busca apoio em imagens ou alegorias, freqüentemente também desemboca em narrações míticas. Às técnicas indutiva e dedutiva ajuntam-se, pois, procedimentos que repousam sobre o valor expressivo da analogia ou da metáfora. […] Nos dois casos, a linguagem do saber é, ela também, parcialmente inapta para dizer o o que é . Duplamente inapta: demasiado envolvida no sensível, ela não consegue dizer completamente a mais alta realidade; demasiado desligada dela, tem dificuldade em fazer entender o que, “lá em cima”, cima”, aprendeu. A imagem, o mito compensam essa insuficiência; compensam-na mas num sentido positivo, se se pode dizer: a narração lendária enriquece a dialética, aumenta – 220 –
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seu vigor, acrescenta acrescenta uma lógica metafórica à lógica da demonstração. (1981, p. 113).
Ao aliar várias estratégias em seus escritos, Platão pretende não só fisgar um leitor ou, para sua época, também, um ouvinte especializado, mas qualquer um que se dispusesse a trilhar a via para fora da caverna. Na Alegoria da caverna, o personagem Sócrates solicita a seus interlocutores que imaginem uma série de seres humanos acorrentados no fundo de uma caverna. Esses seres humanos só podem olhar para o fundo da caverna. Entre eles e uma fogueira, há uma mureta, por trás da qual passam vários viajantes, muitos deles carregando objetos na cabeça. O reflexo desses objetos projeta, no fundo da caverna, sombras, que os prisioneiros acreditam ser a realidade. Alguns até identificam certa regularidade nas sombras e advinham o que virá. Mas eis que um desses prisioneiros é arrastado do fundo da caverna para o lado de fora. Sócrates continua conjecturando que provavelmente tal prisioneiro resistirá e terá dificuldades, no lado de fora da caverna, de olhar para a luz durante o dia, ficando mais à vontade, inicialmente, durante a noite. Mas aos poucos seus olhos se acostumarão à luz e ele poderá, por fim, olhar brevemente para o sol. Esse prisioneiro, ao voltar à caverna para contar a seus colegas o que realmente é a verdade, será visto como um louco. E, em razão de sua insistência em mostrar a verdade, poderá ser morto por seus antigos colegas. Eis um resumo da Alegoria da caverna que você encontra nas primeiras primeir as páginas do Livro VII, do Diálogo A república repúblic a de Platão. Certamente, uma das interpretações possíveis dessa alegoria nos remete ao processo educacional e à função daqueles que buscam tirar outros de sua ignorância. Algo que, não raramente, pode incomodar aqueles que desejam manter o status quo, gerando a morte dos Sócrates que encontramos na vida. Há aí também um caráter soteriológico em relação ao educador, educador, ou seja, uma visão deste como aquele que tem a missão de salvador. No fundo, aquele a quem Platão aponta como o salvador ( soter ) é o verdadeiro Filósofo, que, apesar de tudo, se dispõe à difícil tarefa de administrar uma cidade. Mas, para Platão, apenas a este cabe o papel de administrador ou de conselheiro do administrado por ser ele o que tem uma alma que mais se recorda da ideias, das essências e modelos do mundo. Fica claro, então, o teor essencialista ou metafísico da proposta platônica. – 221 –
História, Filosofa e Sociologia da Educação
Na linha das diferenciações entre Sócrates e Platão – aceitando a possibilidade de estabelecer um limite entre um e outro – é bom lembramos, antes de passarmos para o pensamento de Aristóteles, que, enquanto Sócrates se dedica apenas a questões antropológicas – afastando-se do foco naturalista e cosmológico dos pensadores originários –, Platão alarga seus estudos, estabelecendo relações entre cosmologia e antropologia. Dessa forma, ele também retoma temáticas típicas dos pré-socráticos. A ordem cósmica 11 é tomada como modelo para a ordem política, que deve ser modelo para a autorregulação do indivíduo. Aliam-se, então, teologia, cosmologia, ética e política. Essa retomada também fará parte do pensamento de Aristóteles. Vamos a ele?
10.6 Do realismo aristotélico à mentalidade medieval Aristóteles nasceu em Estagira 12 em 384 a.C. Seu pai, Nicômaco, que morreu quando Aristóteles tinha uns sete anos, foi médico do rei macedônio Amintos, como apuramos em Chaui (2002, p. 334). Mesmo que educado por seu tio, Aristóteles se manteve no ambiente da formação médica. Eis algo que, para muitos comentadores, influenciou sua tendência, mais tarde, aos estudos da natureza e da biologia. bi ologia. Aos dezoito anos Aristóteles vai para Atenas e ingressa na Academia de Platão. É interessante notar que, na faixada de entrada da Academia, estava escrito: “Aqui só entra matemático”. Mas Aristóteles estava mais ligado à biologia. Talvez em razão disso corre uma anedota de que o estagirita tenha entrado pela janela da Academia. Jocosidades à parte, a situação reflete a oposição entre a mentalidade platônica e a aristotélica. Isso, entretanto, não indica que o estagirita foi desafeto de Platão. Muito pelo contrário, ambos tecem elogios entre si. 11 Que, se pensarmos etimologicamente, é um pleonasmo, pois kósmos, em grego, significa: ordenado; ornado. 12 Cidade fundada por gregos, onde se falava grego, mas nos domínios dos macedônios. Algo que fazia com que alguns gregos não vissem os estagiritas como gregos. – 222 –
O homem e sua relação com o mundo: Filosofa e Educação
Depois de um tempo na Academia, Aristóteles funda, em 335 a.C., o Liceu. Este ficava num bosque dedicado às Musas e a Apolo Lício. Compunham o Liceu: uma edificação, na qual encontramos a primeira biblioteca e um museu ligados diretamente ao ensino; um jardim; e uma área de passeio.
O termo grego para passeio é perípatos ; a ação de passear, peripatéô. Termos formados por um prefixo perí- , que indica: a volta de, em torno, sobre ou em vista de; e patéô , que significa: pisar, marchar, caminhar, percorrer; conforme apuramos em Chaui (2002, p. 508). Sabemos que no Liceu as lições, por vezes, eram dadas em caminhadas. Dessa forma, Aristóteles e os estudantes, transitando pelo passeio do jardim liceísta, debatiam animadamente filosofia. Eis o porquê da denominação peripatéticos para os membros da escola aristotélica. A dar conta de alguns relatos, o Liceu alcançou prestígio grandioso, reunindo cerca de dois mil alunos.
Diversas fontes atestam que, a partir dos quatorze anos, Alexandre, o Grande, teve como seu preceptor – um tipo de professor particular – Aristóteles. Os registros de que o estagirita teria ensinado ao futuro imperador são escassos. Entretanto, como aponta Chaui (2002, p. 335-336): Pelos escritos políticos aristotélicos, porém, podemos inferir que, pelo menos, duas ideias foram transmitidas a Alexandre: a de que a Grécia não sobreviveria dividida em cidades rivais, mas precisava ser pacificada sem recorrer a um governo central; e a de que a Macedônia era mais grega do que oriental, que havia diferenças profundas entre os gregos e os “bárbaros” e que não era possível unificá-los, pois os primeiros estavam, por natureza e por costume, habituados à liberdade enquanto os segundos eram, por natureza e por costume, afeitos ao despotismo.
Pelo que sabemos da história, Alexandre não levou em consideração nenhum desses ensinamentos. – 223 –
História, Filosofa e Sociologia da Educação Dica de filme
Para ter em mente um pouco das atitudes de Alexandre em relação a suas conquistas, recomendamos assistir ao filme Alex Alexandr andre, e, o Grande (2004). Nesse mesmo filme, encontramos uma sequência onde aparece Aristóteles dando aulas ao jovem Alexandre.
Alguns Alguns atenienses atenienses começaram começaram a ver Aristóteles Aristóteles com desconfian desconfiança ça por diversos fatores: ele ser de Estagira; ter sido preceptor de Alexandre – muitos gregos não gostaram das investidas, por vezes, violentas do imperador macedônio na Grécia –; ter divergências com outros membros da Academia, principalmente quanto ao papel central da matemática na paideia da Academia. Com paideia da a morte de Alexandre, eclodiram, em Atenas, posições antimacedônicas mais radicais. Eis os motivos que levaram Aristóteles a se retirar de Atenas e, ainda conforme apuramos em Chaui (2002, p. 337), estabelecer-se em Cálcis, na Eubeia, onde não tardou a falecer, falecer, em 321 ou 322 a.C., aos sessenta e três anos. Quanto à sua obra, o que sobrou para a posteridade foram, no geral, escritos para o público interno do Liceu. Escritos esses derivados, na maioria, dos apontamentos que Teofrastos Teofrastos e Eudemo – auxiliares do estagirita no Liceu – fizeram. Esse aspecto diferencia os registros que temos do estagirita daqueles que temos de seu mestre: os de Platão são escritos para os de fora da Academia; os de Aristóteles, para os peripatéticos. Além disso, boa parte do que temos hoje desses escritos se perderam no Ocidente, já no final da Antiguidade. Houve, também, transferências transferências para o mundo Oriental, e, mais tarde, esses escritos foram absorvidos pela cultura islâmica. Com a expansão do Islã, durante o século VI d.C., chegando à Europa Ocidental a partir do século seguinte, na Península Ibérica, os textos do estagirita voltaram à Europa Ocidental. Uma das principais divergências de Aristóteles com o seu mestre é quanto à Teoria Teoria das Ideias. Para esta as essências ess ências (ou Ideias) estão no mundo suprassensível (Mundo Inteligível ou das Ideias), caracterizando uma concepção idealista; já aquilo que tomamos por realidade, o Mundo Sensível, é mera cópia ou reflexo do Mundo das Ideias. Mas o estagirita não vê as coisas assim. Defendendo que as essências estão nas próprias coisas, sua Metafísica – 224 –
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ou Filosofia Primeira 13 considera a substância ou essência (ousía ) um composto de matéria (idéa ) e forma (hýle ). ). A essa perspectiva, muitos dão o nome de realista 14. Mesmo que trilhando caminhos diferentes, o idealismo platônico e o realismo aristotélico são perspectivas essencialistas ou metafísicas, pois ambas procuram determinar a essência de cada coisa, aquilo que define a natureza própria de cada coisa, a despeito de suas características acidentais.
Explicitando melhor. Para Aristóteles, há dois tipos de categorias – predicações, atribuições – para as coisas: substância e acidentes. A substância é aquilo que faz de um objeto o que este é; os acidentes ou atributos são características mutáveis dos objetos, ou seja, com ou sem esses, o objeto continua a ser o que é. Exemplificando: o enunciado “Sócrates é homem” indica uma predicação substancial ou essencial de Sócrates. Já “Sócrates é careca” enuncia um acidente, pois Sócrates outrora ostentava vasta cabeleira
Ao usar esses pares de opostos – substâncias e acidentes –, Aristóteles tentou, assim como seu mestre, responder ao dilema entre monismo e mobilismo, deixados pela tradição pré-socrática. É o que Danilo Marcondes, em Iniciação à história da filosofia , explicita: Contra o monismo de d e Parmênides, Aristóteles Aristóteles defende a concepção de uma natureza plural, na medida em que composta de indivíduos; porém, isso não deve ser visto como problemático, desde que algu13 O termo Metafísica não é empregado por Aristóteles, mas deriva da catalogação das obras de Aristóteles feita por Adrônico de Rodes, no século I d.C., consolidando o que chamamos Corpus aristotelicus . Depois de catalogar as obras que tratavam da natureza, phýsis , sobraram alguns escritos cujos temas não se encaixavam em nenhuma das classificações anteriores. A estes Andrônico deu o nome de Metà tà phýsiká , ou seja, As coisas depois d epois da física: Metafísica. Aristóteles denominava os estudos sobre Ser enquanto Ser Ser,, com Próte Philosophía , ou seja, Filosofia Primeira, conforme apuramos em Chaui (2002, p. 505). 14 É uma estratégia didática opor realismo a idealismo. Entretanto, no fundo, Platão também é realista, só que, para ele, a realidade são as Ideias, e não o mundo concreto. – 225 –
História, Filosofa e Sociologia da Educação
mas distinções básicas sejam feitas acerca da noção de ser. Há, na verdade, segundo Aristóteles, uma confusão em torno dos vários sentidos e usos do verbo “ser” em grego ( einai ). ). As coisas existem de diferentes maneiras, ou seja, o modo de existência da substância individual é diferente do das qualidades, quantidades, e relações, já que estas dependem das substâncias. [...] A mudança só é considerada contraditória pelos monistas porque ela envolve o problema da identidade, é interpretada como equivalendo a dizer que o ser é e não é. Contudo, o verbo “ser” nem sempre expressa identidade, podendo ter um uso atributivo ou predicativo, designando uma característica do objeto. (1998, p. 72-73).
Assim, entende o estagirita, o movimento é a passagem da potência ao ato. Explicando melhor: uma semente tem em si uma potência de se transformar em uma planta. Essa passagem do estado de semente para o de planta não é por acaso. Eis aí outro aspecto importante na perspectiva aristotélica. Para o estagirita, o ser se diz (ou se conhece) pelas causas, que são quatro: 2
Causa formal: forma ou modelo, aquilo que faz a coisa ser o que é.
2
Causa material: aquilo de que algo é feito.
2
Causa eficiente: aquilo que produz mudança em algo.
2
Causa final: o propósito ou a finalidade de algo.
Tomemos um exemplo para melhor explicitar isso. Para darmos conta do que é um copo, Aristóteles diria que temos de fazer as seguintes perguntas: 2 2
2
2
Qual a sua forma? Resposta: cilíndrica (causa formal). De que é feito? Resposta: ou plástico, ou vidro, ou argila (causa material). Como foi feito ou por quem foi feito? Resposta: por um processo industrial; ou por um ceramista (causa eficiente). Para que foi feito? Resposta: para conter algo, por exemplo, a água que bebemos (causa final).
Ainda explicando o movimento, Aristóteles dirá que tudo tende para a perfeição. Dessa forma, o movimento é derivado da necessidade de suprir alguma carência. Se buscamos conhecimento é porque não o temos e tê-lo é – 226 –
O homem e sua relação com o mundo: Filosofa e Educação
um estado de perfeição. Assim, discorda o estagirita de seu mestre quanto já possuímos as Ideias ou conceitos universais. Para Aristóteles chegamos aos universais a partir da experiência, ou seja, de um conjunto de impressões particulares que, de alguma forma, fazem com que venhamos a construir um modelo e, de um dado momento em diante, passemos a identificar outros objetos semelhantes a um dado conceito. Tomemos Tomemos outra exemplificação para entendermos melhor a diferenciação entre Platão e Aristóteles nesse aspecto. Para Platão a noção de Beleza é inata, ou seja, nossa alma já a carrega, por ter, outrora, outrora, participado da perfeição, do Mundo das Ideias. Ao olharmos para algo belo, temos a lembrança da Beleza. Aristóteles diria que experimentamos uma série de coisas que tomamos por belas, seja por aspectos formais ou sensoriais (que agradam); é desse conjunto de experiências que, a partir par tir de certo momento, formulamos o conceito de Beleza. Ou seja, o conceito de Beleza, para o estagirita, não é algo inato. Entretanto, ainda podemos ver em Aristóteles um inatismo quando indica que nenhum ser adquire aquilo que não está apto a adquirir. Exemplo, não será impossível a um cego saber o que é verde, pois lhe falta a faculdade da visão. O exposto anteriormente releva a diferenciação entre Platão e Aristóteles quanto ao papel dos sentidos na Teoria do conhecimento. O primeiro afirma serem os sentidos fonte de ilusões e, em razão disso, não conduzirem ao conhecimento. Aristóteles, embora ainda privilegie o conhecimento intelectual, dá ao conhecimento sensório um lugar no processo cognitivo. Isso o faz, também, ter outra posição sobre o papel da imitação ( mímesis ) e, consequentemente, das artes imitativas na paideia . Logo no início de sua obra Metafísica , parece apontar para isso: Todos os homens, por natureza, tendem ao saber. saber. Sinal disso é o amor pelas sensações. [...] e amam, acima de todas, a sensação da visão. [...] E o motivo está no fato de que a visão nos proporciona mais conhecimentos do que todas as outras sensações e nos torna manifestas numerosas diferenças entre as coisas. Os animais são naturalmente dotados de sensação; mas em alguns da sensação não nasce a memória, ao passo que em outros nasce. Por isso estes últimos são mais inteligentes e mais aptos a aprender do que os que não têm capacidade de recordar. São inteligentes, mas incapazes de aprender, todos os animais incapacitados de ouvir os sons [...]; ao – 227 –
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contrário, aprendem todos os que, além da memória, possuem também o sentido da audição. [...] Nos homens, a experiência deriva da memória. De fato, muitas recordações do mesmo objeto chegam a constituir uma experiência única. A experiência parece um pouco semelhante à ciência e à arte. Com efeito, os homens adquirem ciência e arte por meio da experiência. A experiência, como diz Polo, produz a arte, enquanto a inexperiência produz o puro acaso. A arte se produz quando, de muitas observações da experiência, forma-se um juízo geral e único passível de ser referido a todos os casos semelhantes. [...] Ora, em vista da atividade prática, a experiência em nada parece diferir da arte; antes, os empíricos têm mais sucesso do que os que possuem a teoria sem a prática. E a razão disso é a seguinte: a experiência é conhecimento dos particulares, enquanto a arte é conhecimento dos universais; ora, todas as ações e as produções referem-se ao particular. particular. [...] Portanto, se alguém possui a teoria sem a experiência e conhece o universal mas não conhece o particular que nele está contido, muitas vezes errará o tratamento, porque o tratamento se dirige, justamente, ao indivíduo particular. particular. Todavia, consideramos que o saber e o entender sejam mais próprios da arte do que da d a experiência, e julgamos os que possuem a arte mais sábios do que os que só possuem a experiência, na medida em que estamos convencidos de que a sapiência, em cada um dos homens, corresponda à sua capacidade de conhecer. E isso porque os primeiros conhecem a causa, enquanto os outros não a conhecem. Os empíricos conhecem o puro dado de fato, mas não seu porquê; ao contrário, os outros conhecem o porquê e a causa. (A, 988a-981b).
Além de apontar para o papel dos sentidos, a passagem supracitada também revela uma hierarquia do conhecimento: passando da sensação ( aisthesis ) para a memória (mnemósine); desta para a experiência (empeiria );); que resulta na arte ou técnica ( tékhne ); ); e, finalmente, na teoria ou ciência ( epistema ). ). Dessa hierarquização dos estágios do conhecimento, temos também, em Aristóteles, a divisão do conhecimento conhecimento em três tipos: 2
praxis ): são os conhecimentos ligados à ética Prático ( praxis é tica e à política,
que não dependem propriamente da verdade, mas dos resultados, pois as ações éticas e políticas afetam a vida de cada um, produzindo felicidade ou infelicidade. – 228 –
O homem e sua relação com o mundo: Filosofa e Educação 2
Produtivo ou poético ( poiesis ): são os saberes que envolvem a
capacidade de produzir algo, que podem ser tanto objetos reais como artísticos. 2
Teórico: são os conhecimentos que se referem à realidade – no
sentido de ser das coisas, essência ou substância –, dividindo-se em: físicos (que tratam do mundo natural); matemáticos (que tratam das quantidades e dos números); e, no nível mais elevado, a filosofia primeira e a teologia.
Vejamos, agora, um pouco da psicologia – entendida, aqui, como tratado sobre a alma ( psýkhé ) – de Aristóteles. O estagirita fala de faculdades ou funções ou partes da alma. Mais uma vez trazemos o texto de Chaui (2002, p. 419-420) para ilustrar melhor. Assim, as almas ou funções são: •
alma ou função nutritiva e reprodutiva, existente em todos os seres vivos ou animados; opera para conservar e reproduzir a vida; [...] não há nenhum exercício de conhecimento;
•
alma ou função função sensitiva, existente somente nos animais e surgindo com diferentes capacidades à medida que se sobe na escala dos seres vivos. [Nessa ordem]: tato, paladar, olfato, audição e visão. Essa alma ou função dá início ao conhecimento: a sensação ( aísthesis). [...] a alma sensitiva possui mais duas funções: a de sentir prazer e dor, e no homem, [também], tem a função de imaginar e lembrar;
•
alma ou função locomotora-apetitiva, existente nos animais dotados de sensação e memória: é o que faz buscar os objetos de prazer e fugir dos que causam dor, ou seja, realiza o movimento do apetite ou desejo; no homem, o apetite ou desejo refere-se não só à sensação, mas também à imaginação. [...] [É] considerada locomotora porque incita à mudança de lugar [...];
•
alma ou função intelectual ou intelectiva, exclusiva do homem, responsável pelo conhecimento intelectual. Essa função subdivide-se em duas: intelecto passivo, quando o conhecimento depende dos objetos oferecidos pela sensação, pela memória, pela imaginação e pelo apetite; intelecto ativo, quando o conhecimento depende exclusivamente da atividade do próprio pensamento.
Aristóteles é o pai da Lógica. Mas o que é a Lógica Lógica e qual seu papel? – 229 –
História, Filosofa e Sociologia da Educação
Resumidamente, a Lógica, para o estagirita, é um instrumento ( órganon) que tem por função assegurar a possibilidade de um conhecimento objetivo, ou seja, universal e necessário. Não entraremos, aqui, em detalhes sobre o funcionamento da Lógica aristotélica, mas cabe indicar que Aristóteles, assim como muitos outros pensadores de sua época, identificou que a linguagem comum apresenta ambiguidades e tais ambiguidades resultam em problemas de comunicação. Ora, se é por meio da linguagem que os seres humanos trocam experiências (conhecimentos), para ter conhecimentos seguros temos que estabelecer regras de raciocínio. Ao tratar das regras de raciocínio, Aristóteles estabelece princípios e classificações de proposições. Combinando regra, princípios e classificações, Aristóteles contribuiu para diminuir os problemas da linguagem comum, facilitando o encadeamento de juízos adequados à formulação do conhecimentos objetivos. Saiba mais
Para entender melhor a Lógica de Aristóteles, consulte algum manual de História da Filosofia. Recomendamos o de Marilena Chaui, Introdução à história da filosofia, volume 1, Dos pré-socráticos a Aristóteles, e o de Giovanni Reale e Dario Antiseri, História da filosofia, volume 1, Filosofia pagã.
Apontamos anteriormente para a questão do papel das artes imitativas em Aristóteles. Cabe retomarmos rapidamente esse aspecto, pois tem implicações pedagógicas. Há na Poética de Aristóteles uma passagem muito comentada, que transcrevemos: É pois a Tragédia Tragédia imitação de uma ação de caráter elevado, completa e de certa extensão, em linguagem ornamentada e com as várias espécies de ornamentos distribuídas pelas diversas partes [do drama], [imitação que se efetua não por narrativa, mas mediante atores, e que, suscitando o “terror e a piedade, tem por efeito a purificação dessas emoções”. (1449b-24-30). (1449b-24-30).
O que Aristóteles parece apontar é que as artes – a tragédia em particular – têm um papel de fazer com que possamos reavaliar nossas próprias – 230 –
O homem e sua relação com o mundo: Filosofa e Educação
atitudes, melhorando nosso caráter. Logo, essa função catártica – de purgação ou purificação – é didática quanto ao aspecto ético. E mais, para o estagirita boa parte do que aprendemos é por imitação, principalmente no campo dos conhecimentos práticos e poéticos. Para Aristóteles, as virtudes éticas e políticas podem ser ensinadas. Algo bem diferente do que Sócrates – personagem de Platão – defende no Diálogo Mênon, por exemplo. Enquanto Platão pensa num governo de aristocratas – poucos e sábios –, Aristóteles pensa numa República governada por alguém que não seja nem pobre nem rico, um homem de classe média. Aliás, a areté – – excelência moral, virtude –, para o estagirita, é resultante de um meio-termo (meso metron) entre uma carência e um excesso, é uma disposição de caráter para o bem agir. agir. Entretanto, concorda com seu mestre que o governante e as leis devem levar os cidadãos à vida harmoniosa. Ética e política têm, em Aristóteles, a finalidade de propiciar a felicidade ou bem-estar (eudaimonia ) para o ser humano. Ser este que o estagirita definiu como animal político e racional, mais precisamente que usa o lógos , ou seja, que fala. Logo, a realização humana, para o estagirita, consiste em desenvolver aquilo que é mais próprio do ser humano: sua racionalidade, orientada pela virtude da mediania, para atingir a felicidade, finalidade da vida humana. Aqui, educar busca conduzir e preparar o ser humano para as boas escolhas, vislumbrando a virtude e a felicidade. 10.6.1 Passando pelo período Helenístico
Antes de avançarmos à mentalidade medieval, é bom lembrarmos que as contribuições deixadas pela mentalidade grega não terminaram como o fim do período Clássico. Ainda sobre o domínio dos macedônios e dos romanos, essa mentalidade deixou um grande legado para o Ocidente. O período Helenístico, por exemplo, legou-nos a formulação dos manuais de gramática, que ainda hoje servem de base para as chamadas Gramáticas Modernas; a matemática euclidiana; a astrofísica de Aristarco de Samos, que, muito antes de Copérnico, apresentou a teoria heliocêntrica. Além dessas contribuições, na filosofia tivemos as visões do ceticismo, do epicurismo e do estoicismo. Filosofias que têm um teor mais prático e tentaram dar respostas a um mundo onde a autonomia política não era mais possível. Restava, então, pensar a autonomia interior. Muitas Muitas dessas filosofias helenísticas chegaram ao mundo – 231 –
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da cultura greco-romana e, por fim, influenciaram e foram influenciadas por uma nova mentalidade que surgia no limiar da Antiguidade: o cristianismo. Eis o apontar para a mentalidade medieval. 10.6.2 A difusão di fusão do Cristianismo Foi no contexto do Império Romano que surgiu o Cristianismo. Como toda religião, inicialmente, sustentou-se na fé. Mas, ao que parece, para o seu desenvolvimento e a sua aceitação, isso não foi suficiente. Por Por quê? O Cristianismo ‒ como o próprio termo indica ‒ difundiu-se a partir das pregações de Jesus de Nazaré pela Judeia, domínio do Império Romano, no primeiro século da Era Cristã. O nazareno se anunciava como filho de Deus, pregando o amor ao próximo, a benevolência e o desprezo aos valores mundanos em troca de outra morada, a verdadeira, no reino dos céus. Com a morte de seu mestre, os nazarenos, como se denominavam os primeiros cristãos, mais particularmente os discípulos de Cristo ‒ os apóstolos ‒, tomaram para si a tarefa de difundir a boa-nova 15. Em suas viagens de evangelização, chegaram a espaços dominados por outras culturas. Entre elas, o espaço da cultura helenística. Embora alguns vejam a cultura helenística como manifestação da decadência da cultura grega, é incontestável que o mundo Ocidental ainda era culturalmente grego. Enfrentar uma tradição milenar não era tarefa fácil. Ainda que alguns dos primeiros grandes padres da Igreja Cristã tenham tentado levar a boa-nova partindo tão somente da fé, isso só servia para propagá-la entre as classes sociais menos privilegiadas. Antes de avançarmos, cabe um esclarecimento. Quando usamos os termos “mentalidade medieval”, não estamos falando de algo restrito à Idade Média, e sim de uma perspectiva que, embora domine e caracterize a Idade Média, nasceu muito antes desta e sobreviveu ao ocaso desta. O mesmo ocorre com o termo “cultura helenística”, que ultrapassou o período Helenístico.
15 Em grego, eu aggelós , literalmente, boa mensagem, evangelho. – 232 –
O homem e sua relação com o mundo: Filosofa e Educação
Para maior aceitação oficial do Cristianismo, a conversão de pessoas de classes mais elevadas se fazia necessária. Para se chegar a elas, um discurso mais elaborado era imprescindível, até porque a habilidade discursiva ‒ o ‒ era uma característica inerente à mentalidade greco-romana. E, se lemlógos ‒ brarmos que, nos primeiros séculos da Era Cristã, os cristãos eram perseguidos, converter autoridades do Império também seria útil. Eis um dos papéis da filosofia tomada pelos filósofos cristãos. É nessa relação entre a classe intelectualizada da cultura pagã e o nascente Cristianismo que encontramos o dilema que perpassou toda a mentalidade medieval: o debate entre fé e razão.
Na linha dessa relação entre cultura grega e cultura cristã, na tentativa de conciliar fé e razão, temos duas grandes perspectivas: a Patrística e a Escolástica. Esta surge já no adiantado da Idade Média; aquela ainda na Antiguidade, com os primeiros padres da Igreja Cristã. Saiba mais
Patrística é a Filosofia dos primeiros Padres da Igreja, caracterizada, principalmente, por defender a fé e procura converter os não cristãos. Tem, predominantemente, um teor platônico.
A Escolástica determina o conhecimento elaborado e ensinado nas escolas medievais, sobretudo nas “palacianas”, que versava sobre a linguagem, a natureza, a filosofia e a teologia. Tem uma ligação muito grande com as Universidades e possui teor, predominantemente, aristotélico.
Mas, antes de nos aprofundarmos nessas perspectivas, precisamos entender melhor os fatores sociais e políticos que evidenciaram o surgimento da mentalidade medieval. – 233 –
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O Cristianismo, assim como as escolas Helenísticas, procura responder a duas inquietações típicas do final da Antiguidade: o medo da morte e o medo dos castigos dos deuses. À primeira inquietação, o Cristianismo responde com a vida após a morte; à segunda, oferece a imagem de um deus único e amoroso, do qual só o bem pode brotar. brotar. A religião oficial, no período do aparecimento do Cristianismo, era a romana. Uma Uma religião politeísta, que havia absorvido absor vido uma série de elementos el ementos da mitologia grega. O fato de o Cristianismo ser monoteísta e universal o contrapõe à religiosidade romana. Mas, como já dissemos em outro momento, a: [...] maior ameaça à estrutura militar e escravista da Roma Imperial é o fato de [o Cristianismo] condenar o militarismo e defender d efender a igualdade entre os homens. Estas divergências levam a uma violenta perseguição aos cristãos. São conhecidas as narrativas de d e uso, por parte dos romanos, de cristãos nos espetáculos de arena, onde estes – os cristãos – eram jogados aos leões. Entretanto, a resistência dos cristãos, produtora de mártires, é um dos fatores importantes de sua divulgação e expansão. E, conforme a crise do Império Romano ia se agravando, muitos se converteram para a nova religião, particularmente cativos e pobres, pois estes visualizavam alento para suas vidas na nova fé. Aos poucos, o Cristianismo vai sendo aceito pelo Império Romano e, finalmente, em 313, com o Edito de Milão, promulgado pelo imperador Constantino, é dada a liberdade de culto aos cristãos. Inicialmente, a estrutura hierárquica do Cristianismo era mais diluída. Nas primeiras comunidades, os presbíteros (ou padres) eram responsáveis pela divulgação da doutrina, da organização das reuniões e pelo culto; os diáconos, pelas questões administrativas; e aos bispos cabia zelar pela preservação dos princípios cristãos. Do século IV em diante, o bispo de Roma passa a ter primazia em relação aos outros e, com Leão I, em 455, cria-se o mais alto posto eclesiástico: o de Papa. A partir daí, a Igreja vai tomando um caráter mais imperial, embora ainda conviva com uma postura mais apostólica. (MARQUES; NESI, 2011, p. 35-36).
No limiar da Idade Média, devemos levar em conta outro elemento: as invasões bárbaras, que aguçam os medos na fase inicial desse período. A própria demarcação historiográfica tradicional da Idade Média está relacionada aos fatos que envolvem os povos bárbaros: a tomada de Roma pelos germanos – 234 –
O homem e sua relação com o mundo: Filosofa e Educação
e a consequente derrocada do Império Romano do Ocidente, em 476; e o ataque a Constantinopla, capital do Império Romano do Oriente, com sua conquista pelos turcos otomanos em 1453. Embora, no geral, os reinos que os diversos povos bárbaros constituíram ao longo dos primeiros séculos da Idade Média não durassem muito, um em especial teve grande importância para a consolidação da Igreja Cristã: o Império Carolíngio, na figura de Carlos Magno. Exemplar é a cerimônia de coroação do Imperador dos francos, Carlos Magno, pelo Papa Leão III, no ano 800. Tal fato pode ser considerado a primeira tentativa de recuperar a antiga unidade do Império Romano, formando o Sacro Império Romano-Germânico. (MARQUES; NESI, 2011, p. 37).
Com a consolidação do poder institucional da Igreja Cristã, estamos próximos do aparecimento da Escolástica. É nesse período, final do domínio da Patrística e início da Escolástica, que surgem as ordem monásticas cristãs; cris tãs; a primeira é a dos Beneditinos, fundada por São Bento, em 529. Como atesta Maria Lúcia de Arruda Aranha, em sua História da educação: Criar escolas não é a finalidade principal dos mosteiros, mas a atividade pedagógica se torna inevitável à medida que é preciso instruir os novos irmãos. Surgem então as escolas monacais (nos (nos mosteiros), em que se aprende o latim e as humanidades. Os melhores alunos coroam a aprendizagem com o estudo da filosofia e da teologia. Os mosteiros assumem o monopólio da ciência e se tornam o principal reduto da cultura. Guardam nas bibliotecas os tesouros da cultura greco-latina, traduzem obras para o latim, adaptam algumas e reinterpretam outras à luz do cristianismo. Monges copistas, pacientemente, multiplicam os textos clássicos. (1996, p. 76).
Eis um resumo do que constituiu o contexto do surgimento s urgimento e desenvolvimento da Patrística. Mas, filosoficamente, como ela se caracterizava? De forma bem básica podemos dizer que a Patrística caracteriza-se pelo uso predominantemente da filosofia platônica ou do neoplatonismo dela derivado para harmonizar fé e razão. Tem, como sintetiza Aranha (1996, p. 72), intenções apologéticas, que buscam defender a fé e converter os não cristãos. Em termos filosóficos, divide-se em duas grandes correntes: a Grega e a Latina. Um dos grandes expoentes da perspectiva latina foi Santo Agostinho. – 235 –
História, Filosofa e Sociologia da Educação
10.6.3 Santo Agostinho
Aurélio Agostinho (354-430), o bispo de Hipona, nasceu em Targa, Nnorte da África, e falaceu em Hipona, quando da invasão dos vândalos. Passou por diversas correntes de pensamento da época, entre elas o maniqueísmo16 e o neoplatonismo. A dar conta de alguns relatos, foi um jovem inquieto de vida não muito exemplar para os modelos cristãos; matava aulas, viveu em concubinato com uma mulher, mulher, pois, na época, por seu estrato social, não poderia se casar com alguém de uma classe social inferior. Tudo isso foi esquecido com sua conversão, que se deu aos 32 anos. Dica de filme
Para se ter uma melhor ideia da vida de Agostinho, recomendamos recomendamos o filme Santo Agostinho: o declínio do Império Romano (2010).
As grandes contribuições de Agostinho para a Filosofia foram, como apuramos em Marcondes (1998): 2 2
2
A formulação formulação das relações entre entre teologia e filosofia, entre razão e fé. A Teoria do conhecimento, enfatizando a questão da subjetividade e da interioridade. A Teoria Teoria da história, que relacionava a Cidade de Deus e a cidade dos homens.
Uma de suas obras específicas sobre educação é De magistro. Obra escrita de foma dialogal ‒ o que aponta para a influência do estilo literário platônico ‒, nela Agostinho estabelece um diálogo fictício com Adelardo ‒ nome de seu filho ‒, no qual discutem sobre o que é ensinar e o que é aprender e qual o papel da linguagem nesse contexto. 16 Segundo o Houaiss eletrônico (2009): “[...] dualismo religioso sincretista que se originou na Pérsia e foi amplamente difundido no Império Romano (s. III d.C. e IV d.C.), cuja doutrina consistia basicamente em afirmar a existência de um conflito cósmico entre o reino da luz (o Bem) e o das sombras (o Mal), em localizar a matéria e a carne no reino das sombras, e em afirmar que ao homem se impunha o dever de ajudar à vitória do Bem por meio de práticas ascéticas [...]”. – 236 –
O homem e sua relação com o mundo: Filosofa e Educação
Danilo Marcondes, em sua obra Textos de linguagem: de Platão a Foucault , apresenta um resumo contextualizado dessa obra: O diálogo De magistro (c.389) nos permite compreender bem a posição agostiniana a respeito da questão do d o inatismo. [...] Na mesma linha [de Platão], Santo Agostinho começa se interrogando sobre o que é ensinar e apreender ‒ o que torna esse diálogo, em sua parte inicial, um dos textos clássicos da pedagogia. lndaga-se, em seguida, sobre o papel da linguagem e da comunicação no processo de ensino e de aprendizagem, fazendo do diálogo também um dos clássicos da teoria da linguagem e do significado, assunto de que Santo Agostinho se ocupou [...] em várias de suas obras, sendo sua teoria do signo de grande influência na tradição filosófica e linguística [...]. Após uma detalhada consideração da natureza natureza do signo e do processo de comunicação (De magistro l-Vlll), Santo Agostinho conclui, na linha das concepções tradicionais na Antiguidade (Platão, Aristóteles, os estoicos), que dada a sua convencionalidade ‒ isto é, as palavras variam de língua para língua e são sinais arbitrários das coisas ‒, o signo linguístico não pode ter qualquer valor cognitivo mais profundo. Portanto, não é através das palavras que conhecemos, e assim sendo não podemos transmitir conhecimento pela linguagem. A possibilidade de conhecer supõe algo de prévio, que torna inteligível a própria linguagem, ou seja: a luz interior. Sua posição é, assim, na mesma direção da platônica, inatista, supondo que o conhecimento não pode ser derivado inteiramente da apreensão sensível ou da experiência concreta, mas necessita de um elemento prévio que sirva de ponto de partida para o próprio processo de conhecer. Santo Agostinho apelará então ao “mestre interior”, Cristo, que representa, nesse sentido, nossa capacidade capacida de inata de conhecer. conhecer. (2009, p. 31-32).
10.6.4 A Escolástica
Em que consistia o método escolástico? Primeiramente, é preciso entender que Escolástica e Universidades Universidades estão intimamente ligadas, conforme salientam Jacques Jacques Le Goff e Jean-Claude Schmitt no Dicionário temático do Ocidente medieval, no verbete Escolástica. Lembrando que as Universidades são um tipo de corporação, não é de se estranhar que o método escolástico reflita um corporativismo. Nesse caso, o corporativismo intelectual: a Escolástica dá “[...] forma normativa ao corpo universitário e, ao mesmo tempo, prescreve os textos a ‘comentar’ ( legere ) [...]” (LE GOFF; SCHMITT, 2002, p. 367), como também prescreve os – 237 –
História, Filosofa e Sociologia da Educação
textos que não devem ser lidos. O papel dos mestres é supervisionar os estudos, evitando qualquer desvio. Nesse contexto, o livro passa a ter uma grande importância. A base do método escolástico é o uso da lógica aristotélica, predominantemente o silogismo ‒ tipo de raciocínio dedutivo, do qual se vai de proposições gerais ou universais para conclusões particulares e gerais. Aliados ao “princípio de autoridade”, os argumentos devem estar sustentados ou nas Sagradas Escrituras ou nos grandes sábios já consagrados pela Igreja. Dessa forma, como resume Maria Lúcia de Aranha (1996, p. 73): Munidos do instrumental para a discussão, surgem inúmeros comentadores dos textos sagrados da Bíblia e dos escritos dos Padres da Igreja que alargam a reflexão pessoal, criando o método escolástico, constituído por várias etapas: a leitura ( lectio), o comentário ( glossa ), ), as questões (quaestio) e a discussão (disputatio).
Os termos que denominam as etapas do método escolástico podem dar a aparência de certa liberdade de expressão ou altos voos. Ledo engano, pois não raro tais procedimentos “[...] acham vinculadas às verdades reveladas e ao estrito controle da ortodoxia religiosa, temerosa dos desvios heréticos” (ARANHA, 1996, p. 74). Na Modernidade, Modernidade, o filósofo filósof o empirista inglês Francis Bacon (1561-1626) apresentará ferrenhas oposições ao método escolástico. Também o eminente filósofo racionalista René Descartes (1596-1650) apontará equívocos nesse procedimento. Ambos consideram que o uso do silogismo não possibilita apontar novos conhecimentos e que o recurso à autoridade impossibilita um conhecimento mais individual. Provavelmente, esteja na radicalização do método escolástico que, com o passar do tempo, se torna distante da vivência cotidiana e abusa da lógica com fins de disputas metafísicas, gerando formalismo e verborragias, um dos motivos da crise da Escolástica. Dica de filme
No filme Em nome de Deus (1988), que se baseia na vida de um dos expoentes da Escolástica, Pedro Abelardo (1079-1142), há uma cena em que aparece o mestre Abelardo dando aulas. Essa cena apresenta o método escolástico em sua forma ainda não tão radicalizada. Outro aspecto interessante, que não tocaremos aqui, é o da educação feminina, particularmente de algumas mulheres que, por fatores variados, ingressavam na vida religiosa. Heloise. – 238 –
O homem e sua relação com o mundo: Filosofa e Educação
A datação do período Escolástico geralmente adotada vai do século IX ao XVI. Outros estudiosos tomam como parâmetro para subdividir esse período a figura de Santo Tomás de Aquino. Dessa forma, temos: 2
Fase Pré-Escolástica Pré-Escolástica – entre os séculos VIII e X
Temos aí a Renascença Carolíngia, o renascimento das artes e da literatura, onde há a organização das “escolas”, cujos programas acabaram por manter a tradição das escolas antigas. 2
Fase da Alta Escolástica – entre os séculos XI e XII
Tem início na crise do sistema sis tema feudal, durante o surgimento de uma espécie de pré-capitalismo; quando aconteceu um renascimento das cidades europeias, o que produziu significativas mudanças políticas e sociais. Encontramos nesta fase duas forças contrárias que agiram, respectivamente, nos séculos XI e XII: a primeira leva a um enfraquecimento das escolas; a segunda produz mais um renascimento pela retomada do estudo da língua grega e pelos trabalhos de tradução dos pensadores bizantinos e muçulmanos, especialmente na Itália e na Espanha. Muitas das obras antigas chegaram por meio da cultura árabe; encontramos textos antigos traduzidos para o siríaco e o árabe, não em sua língua originária, o grego, forçando os tradutores a dominarem pelo menos três línguas. É também a fase onde surgem as primeiras Universidades, que são derivadas das corporações de ofícios ou guildas, onde professores e estudantes se agrupavam, organizadamente, para o estudo das artes liberais ‒ o Trivium e o Quadrivium ‒ acrescidas de noções de história, geografia e ciências naturais. Começa, aí, a substituição do latim pelas línguas nacionais. São deste período, também, a primeira Cruzada e o primeiro cisma da Igreja Cristã, dividindo-a em Romanos e Ortodoxos. Nas artes temos o surgimento s urgimento do estilo Gótico. 2
Fase do ápice da Escolástica – século XIII
É a fase na qual são finalizadas as traduções da obra de Aristóteles, que passa a ser estudado com mais profundidade em vários aspectos. Com a obra de Tomás de Aquino, uma das figuras mais proeminentes da Escolástica, o aristotelismo foi, definitivamente, incorporado à reflexão teológica. – 239 –
História, Filosofa e Sociologia da Educação 2
Fase da crise da Escolástica – do d o final do século XIII ao século XIV
Retomam-se questões da relação entre a lógica e a fé, a filosofia de Aristóteles e o cristianismo. Duns Scot, um dos expoentes desta fase, como seus irmãos franciscanos, nega que a razão pudesse ser fundamento da fé. Segundo ele, enquanto a filosofia pertence ao domínio teórico, a religião é relativa à vida prática. Também Guilherme de Ockham representa essa fase da Escolástica.
10.6.5 Tomás de Aquino Nascido em 1224, na Sicília, Tomás Tomás de Aquino estudou com os beneditinos e, por volta dos vinte anos, ingressou na ordem dos dominicanos. Diferentemente de Agostinho, dedicou-se desde cedo aos estudos. Com seu mestre Alberto Magno estudou, principalmente, teologia. Com trinta e quatro anos, obteve o título em Teologia na Universidade de Paris. Deixou extensa obra. Podemos dizer que o trabalho de Tomás Tomás de Aquino foi, principalmente, a organização do conhecimento teológico medieval. A ele devemos a cristianização, por definitivo, da filosofia de Aristóteles.
Fonte: CRIVELLI,
Carlo. Parte de ‘’Retábulo Demidoff” , 1476. Altar de San Domenico, Ascoli Piceno, Itália. – 240 –
O homem e sua relação com o mundo: Filosofa e Educação
Usando categorias categorias aristotélicas, aliadas aos graus de hierarquia hie rarquia das coisas, formulados por Platão, Tomás Tomás explica que as coisas do mundo têm causa, pois não existe um efeito sem causa nem uma coisa que seja causa de si mesma. Retrocedendo, segundo ele, encontramos algo que, não tendo causa, é a causa de si e a primeira causa de todas as coisas do mundo (o “motor primeiro”): Deus. Eis, resumidamente, a “prova da existência de Deus”. Deus”. Mesmo usando da argumentação lógica, Tomás Tomás prioriza a fé ao afirmar que alguns conhecimentos revelados são superiores aos alcançados com o simples exercício racional. Tais Tais conhecimentos não podem ser demonstrados, mas são verdadeiros, necessariamente, porque provêm da revelação divina. Segundo Aristóteles, tudo caminha para um fim preestabelecido pela própria natureza das coisas. Nessa linha, Tomás de Aquino vê o Universo como algo ordenado e hierarquizado, dando a cada coisa uma função e um grau de perfeição. Assim, tudo que existe é dirigido a um fim último: Deus. O ser humano, explica o aquinatense, como os outros animais e as plantas, constitui-se de corpo e alma. Esta responde pela razão; aquele, pelos sentidos. Caso o corpo seja destruído, desaparecem as faculdades sensitivas. Ainda assim, permanecem as faculdades inerentes à alma, pois esta é imortal. A função dela é, então, obter conhecimento, particularmente, o que não depende dos órgãos dos sentidos. Tomás afirma, ainda, que existem outros conhecimentos além dos revelados: aqueles obtidos por meio dos sentidos e organizados pela razão. Primeiramente, os sentidos recolhem dados do mundo exterior. Depois, a mente humana abstrai a essência desses dados, organizando os conceitos. Tal conhecimento, para o aquinatense, deve levar o ser humano a diferenciar variados tipos de bem do Sumo Bem. Este é Deus. O erro, ao qual o ser humano está sujeito, está em escolher um bem menor ou meramente ligado ao prazer (sensorial). Assim, Assim, a metafí metafísic sicaa teológ teológica ica de Tomás omás susten sustenta ta uma Teor Teoria ia do conhe conhecicimento que, por sua vez, sustenta uma Ética que dá elementos para uma pedagogia. Tal pedagogia, como os outros matizes que estudamos até o momento, é essencialista ou metafísica, vindo como mais um instrumento para alcançar Deus. Percebemos, então, no ocaso da Idade Média, uma crise que virá separar a Teologia da Filosofia, a fé da razão, apontando, entre outras coisas, para o – 241 –
História, Filosofa e Sociologia da Educação
aparecimento de concepções pedagógicas não essencialistas ou não metafísicas. Eis um dos assuntos que veremos a seguir.
Síntese No percurso trilhado neste capítulo, passamos por diversas abordagens da vertente essencialista ou metafísica da pedagogia. Começamos tratando do significado dos termos Filosofia e Educação, que compõem o nome desta disciplina: Filosofia da Educação. Passamos, então, à relação entre Educação e Cultura. Vimos certas formas de Educação não formais ou difusas. Avançando, passamos pelo mundo da Antiguidade Grega, inicialmente tratando das tradições míticas de Homero e Hesíodo. Daí, abordarmos a passagem do Mito à Filosofia, apresentando tanto as características da paideia homé homérica e hesiódica como a abordagem de alguns pensadores originários: os pré-socráticos, seja quanto à crítica a tradição mítica, seja s eja em relação à visão mais racionalista desses primeiros filósofos. Passamos, então, para o ambiente do período Clássico, mostrando o papel dos sofistas ‒ primeiros pedagogos ‒ no contexto da democracia ateniense e as abordagens de Sócrates, Platão e Aristóteles. De um brevíssimo apontar para a cultura helenística e suas contribuições para o desenvolvimento intelectual do Ocidente, vislumbramos o apontar da mentalidade medieval. Ao passarmos pela Idade Média, deparamo-nos com duas correntes: a Patrística ‒ de cunho mais platônico ‒ e a Escolástica ‒ de cunho mais aristotélico. Ainda, caracterizamos cada uma dessas correntes e focamos as ideias de Santo Agostinho e São Tomás Tomás de Aquino, respectivamente, representantes da Patrística e da Escolástica. Em todo esse trajeto o objetivo central foi caracterizar, caracterizar, principalmente, os diferentes enfoques da abordagem essencialista ou metafísica, para fortalecer a indicação de que estas estão focadas em concepções filosóficas que buscam a essência do ser humano e das coisas no mundo. E mais, desejamos que seja entendido que o essencialismo pedagógico não consiste apenas na influência de uma filosofia sobre a Educação. Mais que isso, trata-se de uma perspectiva que reforça o caráter comum de diferentes pensamentos, tanto na Antiguidade como na Idade Média, e mesmo na Modernidade, sobrevivendo em discursos e práticas pedagógicas adotadas ainda hoje, como veremos nos próximos capítulos. É partindo deste fundo inicial que entenderemos, também, na sequência de nossos estudos, as críticas às abordagens essencialistas ou metafísicas e o surgimento de outras abordagens pedagógicas. Então, sigamos em frente? – 242 –
11 A flosofa como suporte para a reexão reexão crítica do educador Geovani da Rocha Gonçalves
A ��������� ���� matéria ligada estritamente ao pensar crítico tem despertado novos interesses em nosso país, principalmente depois que a mesma tornou-se obrigatória no currículo da educação básica. Nas universidades a importância da filosofia para a formação do professor/educador, tem sido motivo de debates, de como pode contribuir na formação destes profissionais que a sociedade afirma serem “formadores de opinião”. opinião”. C�� ���� �����, �����, da importância da filosofia na construção de um suporte para a reflexão crítica do educador, trazemos algumas questões, que não se esgotam, mas servem de instigação para outras reflexões e aprimoramentos.
História, Filosofa e Sociologia da Educação
11.1 A filosofia como suporte para a reflexão crítica do educador Começamos este texto partindo da definição da palavra suporte. Segundo o dicionário HOUAISS da Língua Portuguesa 1, a palavra tem três acepções mais comuns: 2
qualquer coisa cuja finalidade é sustentar (algo); escora, arrimo, sustentáculo
2
aquilo que dá suporte, que auxilia ou reforça; reforço, apoio
2
peça em que (algo) é fixado ou assentado
Assim, colocando o tema em análise, de que forma a Filosofia, Filosofia, enquanto ramo do conhecimento humano acumulado historicamente pode servir de suporte, de sustentação, de reforço, de apoio ou ainda, de base, para uma reflexão crítica do Educador? Num mundo onde o pragmatismo2 impera, onde se buscam resultados práticos na ação do homem, a filosofia pode ser vista de uma forma pejorativa e que não atende a interesses políticos, econômico e até ideológicos. Sob este aspecto CHAUI (2014, p. 20-21) comenta: Ora, muitos fazem esta pergunta: afinal, para que filosofia? É uma pergunta interessante. Não vemos nem ouvimos ninguém perguntar, por exemplo, para que matemática ou física, para que geografia ou geologia, para que história ou sociologia, para que biologia ou psicologia, para que astronomia ou química, para que pintura, literatura, música ou dança? Mas todo mundo “acha” muito natural perguntar: para que filosofia? Em geral, essa pergunta costuma receber uma resposta irônica, conhecida dos estudantes de filosofia: “a filosofia é uma ciência com a qual e sem a qual o mundo permanece tal e qual”. Ou seja, a filosofia não serve para nada. Por isso, costuma-se chamar de “filósofo” alguém sempre distraído, com a cabeça no mundo da Lua, pensando e dizendo coisas que ninguém entende e que são perfeitamente inúteis. Essa pergunta: “para que filosofia?”, tem a sua razão 1 Disponível
em: http://houaiss.uol.com.br/busca?palavra=suporte. Acesso em 30 out.
2014. 2 Pragmatismo:
Doutrina filosófica que adota como critério da verdade a utilidade prática, identificando o verdadeiro como útil; senso prático. – 244 –
A flosofa como suporte para p ara a reexão crítica do educador
de ser. [...]Para quem pensa dessa forma, o principal para a filosofia não seriam os conhecimentos (que ficam por conta da ciência) nem as aplicações de teorias (que ficam fi cam por conta da tecnologia), mas o ensinamento moral e ético. A filosofia seria a arte do bem-viver. Estudando as paixões e os vícios humanos, a liberdade e a vontade, analisando a capacidade de nossa razão para impor limites aos nossos desejos e paixões, ensinando-nos a viver de modo honesto e justo na companhia dos outros seres humanos, a filosofia teria como finalidade ensinar-nos a virtude, que é o princípio do bem-viver.[...]. Essa definição da filosofia, porém, não nos ajuda muito. De fato, mesmo para ser uma arte moral ou ética, ou uma arte do bemviver, a filosofia continua fazendo suas perguntas desconcertantes e embaraçosas: o que é o homem?; o que é a vontade?; o que é a paixão?; o que é a razão?; o que é o vício?; o que é a virtude?; o que é a liberdade?; como nos tornamos livres, racionais e virtuosos?; por que a liberdade e a virtude são valores para os seres humanos?; o que é um valor?; por que avaliamos os sentimentos e ações humanas? Assim, mesmo se disséssemos que o objeto da filosofia não é o conheconhecimento da realidade, nem o conhecimento da nossa capacidade para conhecer, mesmo se disséssemos que o objeto da filosofia é apenas a vida moral ou ética, ainda assim o estilo filosófico e a atitude filosófica permaneceriam os mesmos, pois as perguntas filosóficas - o que, por que e como - permanecem.
Portanto, buscar uma utilidade imediata na filosofia, dificilmente será encontrado, mas nem por isso se pode afirmar que ela não tenha utilidade utili dade ou que não sirva para algo. O conhecimento que a filosofia se propõe, produz resultados na vida do indivíduo, pois orienta as suas ações, tanto no plano individual, como também no social. MARCONDES e FRANCO (2011, p.26), ao comentarem sobre o pensamento filosófico, afirmam: Dificilmente o pensamento filosófico produz resultados práticos imediatos para o próprio filósofo ou para a sociedade; seu objetivo não é a produção de determinados efeitos. Como disse Nietzsche, o filósofo se esforça por compreender o que seus contemporâneos se contentam em viver. A compreensão do filósofo é anterior à dos homens de seu próprio tempo, e esse é um dos motivos por que a maioria dos filósofos só é reconhecida postumamente.
Tendo em vista que nem todos serão filósofos, de que forma então a filosofia pode contribuir na formação do professor? Como ela pode dar suporte às ações de prática docente? – 245 –
História, Filosofa e Sociologia da Educação
Retomemos um pouco a história da filosofia, para relembrarmos que ela nasce num momento, em que as primeiras explicações do mundo eram baseadas em narrativas míticas. Quando o homem percebeu que as explicações míticas não satisfaziam suas necessidades, até por conta de uma u ma série de eventos históricos ocorridos ao longo de centenas de anos, como as navegações, a invenção do alfabeto, da escrita, da moeda, a criação da polis (cidade), (cidade), este buscou algo mais racional para explicar a sua realidade, algo que pudesse ser compreendido por todos. Portanto, a filosofia nasce da inquietação, da não aceitação, do questionamento, da dúvida, da busca de respostas e é esse viés, que permanece até os dias atuais. É esta a busca também que se espera do educador: ser inquieto, instigante, questionador. Mas não é um questionar, indagar, só por questionar ou indagar, para não cair no senso comum de um ceticismo vulgar. vulgar. É um indagar em busca de respostas, respostas, de reflexão e formação de um pensamento racional, totalizante, compreensível, coerente, feito de forma diária e constante. Quando a palavra filosofia foi usada pela primeira vez por Pitágoras3, este ao ser questionado se era um sábio, respondeu que não, que era um filósofo, uma amante, amigo da sabedoria. E assim, entre outros aspectos, filósofo é aquele que busca incessantemente o conhecimento, que ama o saber e acredita estar crescendo intelectualmente, crente inclusive, que quanto mais se busca o saber, menos tem a certeza de que sabe alguma coisa, tal qual afirmara Sócrates quando disse que “só sei que nada sei” . Portanto, a origem do conhecimento racional e por consequência da educação, encontra-se na filosofia suas raízes, pois ela e mãe de todos os saberes que lhes são derivados. Por isso, que a filosofia e a educação andam juntas, de mãos dados. Não há como o profissional da educação ser um bom profissional se ele não for construído, sustentado em bases sólidas de conhecimento, sendo que nesse sentido a filosofia irá contribuir em muito para essa formação. A filosofia desempenha um papel fundamental e imprescindível na formação do Educador, pois ajuda na sua reflexão, no seu senso crítico, papel este também buscado pela educação, pelas escolas, que é formar um cidadão crítico, consciente do mundo em que vive e que possa influir de maneira positiva nas relações sociais, sejam elas políticas, econômicas ou apenas de convívio. 3 O que não
é historicamente comprovado, mas aceito... – 246 –
A flosofa como suporte para p ara a reexão crítica do educador
Em linha semelhante, ao que aqui se expõe, de que a filosofia contribui para uma reflexão crítica, SAVIANI SAVIANI (1996, p.10) comenta o que seja reflexão, enquanto saber diferenciado das opiniões simples do cotidiano: E que significa reflexão? A palavra nos vem do verbo latino “ Yeflectere ” que significa “voltar atrás”. É, pois, um repensar, ou seja, um pensamento em segundo grau. Poderíamos, pois, dizer: se toda reflexão é pensamento, nem todo pensamento é reflexão. Esta é um pensamento consciente de si mesmo, capaz de se avaliar, de verificar o grau de adequação que mantém com os dados objetivos, de medir-se com o real. Pode aplicar-se às impressões e opiniões, aos conhecimentos científicos e técnicos, interrogando-se sobre o seu significado. Refletir é o ato de retomar, reconsiderar os dados disponíveis, revisar, vasculhar numa busca constante de significado. É examinar detidamente, prestar atenção, analisar com cuidado. E é isto o filosofar. Até aqui a atitude filosófica parece bastante simples, pois uma vez que ela é uma reflexão sobre os problemas e uma vez que todos e cada homem têm problemas inevitavelmente, segue-se que cada homem é naturalmente levado a refletir, portanto, a filosofar filosofa r. [...]
A filosofia como suporte para a reflexão crítica do educador, educador, assume uma maior importância, quando se discute, por exemplo, o papel da escola na vida dos indivíduos. Para além da transmissão de conhecimentos, tem sido apontada, a formação de um cidadão crítico, autônomo, que seja capaz de fazer reflexões e que tenha a consciência de seus direitos e deveres. Interessante artigo publicado na internet, FREITAS (2011), ao falar da função social da escola e a formação do cidadão, no qual esta afirma que cabe a escola formar cidadãos que sejam “[...] capazes de compreender a realidade em que vivem preparados para participar da vida econômica, social e política do país e aptos a contribuir para a construção de uma sociedade mais justa [...]”. A mesma autora ainda comenta que a “[...] função básica da escola é garantir a aprendizagem de conhecimentos, habilidades e valores necessários à socialização do indivíduo [...]”. Desta forma, pode-se afirmar que a escola, por seus professores, deverá proporcionar aos alunos o domínio, não só da escrita, da leitura e interpretação, mas deverá inserir em suas propostas conteúdos culturais básicos, das ciências, das artes, das letras e também de temas transversais que façam parte da vida em sociedade. – 247 –
História, Filosofa e Sociologia da Educação
A escola, dentro das concepções modernas de educação, tem, portanto, uma função social. Para OLIVEIRA, MORAES e DOURADO (2005, p.2) Assim, a escola, no desempenho de sua função social de formadora de sujeitos históricos, precisa ser um espaço de sociabilidade que possibilite a construção e a socialização do conhecimento produzido, tendo em vista que esse conhecimento não é dado a priori . Trata-s Trata-see de conhecimento vivo e que se caracteriza como processo em construção. A educação, como prática social que se desenvolve nas relações estabelecidas entre os grupos, seja na escola ou em outras esferas da vida social, se caracteriza como campo social de disputa hegemônica, disputa essa que se dá “na perspectiva de articular as concepções, a organização dos processos e dos conteúdos educativos na escola e, mais amplamente, nas diferentes esferas da vida social, aos interesses de classes” (FRIGOTTO, 1999, p. 25). Assim, a educação se constitui numa atividade humana e histórica que se define na totalidade das relações sociais
Portanto, é pensando nessa função social, de preparar um cidadão crítico, autônomo, que seja capaz de fazer reflexões e que tenha a consciência de seus direitos e deveres, que a filosofia fil osofia vai assumir uma importância de suporte e que irá contribuir na reflexão crítica do educador. Mas para atingir esse objetivo, o professor precisa ser autônomo, capaz de fazer reflexões e que tenha a consciência de seus direitos e deveres. Portanto, não basta ao professor o domínio somente de sua área de formação, ele precisa de outros saberes para formar uma visão de conjunto da sociedade em que vive. E é, nesse contexto, que surge a importância da Filosofia para o professor, pois como afirma André COMTE-SPONVILE “[...] a filosofia é uma prática discursiva (ele procede “por discursos e raciocínios”) que tem a vida por objeto a razão por meio e a felicidade por fim. Trata-se de pensar melhor para viver melhor” Veja-se, por exemplo, que a formação crítica dos alunos e a sua autonomia, esta definido no artigo 35 da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. No art. 35, há a afirmação de que o ensino médio é a etapa final da educação básica, com duração mínima de três anos e terá como finalidades: I - a consolidação e o aprofundamento dos conhecimentos adquiridos no ensino fundamental, possibilitando o prosseguimento de estudos; – 248 –
A flosofa como suporte para p ara a reexão crítica do educador
II - a preparação básica para o trabalho e a cidadania do educando, para continuar aprendendo, de modo a ser capaz de se adaptar com flexibilidade a novas condições de ocupação ou aperfeiçoamento posteriores; III - o aprimoramento do educando como pessoa humana, incluindo a formação ética e o desenvolvimento da autonomia intelectual e do pensamento crítico.” (grifos nosso).
Para atingir esses e outros objetivos, fica claro que a escola precisa ter um norte, um caminho a ser seguido, estabelecendo de forma objetiva o que se quer atingir em cada etapa do ensino. Esses objetivos, no entanto, não são fruto apenas de uma política de estado ou da forma como equipe de direção, equipe pedagógica ou professores acham que deve ser atingido - cada um atuando de forma isolada e “cumprindo o seu papel” – mas, para além disso, é um planejamento que envolve todos da comunidade escolar, escolar, aí entendido o pessoal administrativo, pessoal de apoio, corpo docente, corpo discente, equipe de direção, equipe pedagógica, conselho escolar, associação de pais e mestres, de forma que todo o planejamento escolar reflita os interesses da escola e da comunidade em que ela está inserida. Dessa concepção de construção múltipla de objetivos, estão implícitas algumas ações, como o pensar, o refletir, como algo capaz viabilizar na prática aquilo que se pensa na teoria, e a filosofia vai possibilitar essa visão, se bem trabalhado dentro dos currículos de licenciatura, pois o professor poderá alcançar uma visão holística, totalizante, e não fragmentária, em diversos assuntos. A filosofia tem esse poder de promover a suspensão de juízos 4, levando o indivíduo muitas vezes a duvidar das próprias crenças, de conceitos pré-concebidos e nunca antes questionados. Quando o educador consegue romper com os conceitos pré-formados, quando ele incorpora novos valores ou mesmo quando ele se abre a outras possibilidades e modo de enxergar o mundo, consegue ver o outro também de forma diferente, é capaz de compreender as diferenças e diminuir, por exemplo, a forma preconceituosa como via certos assuntos. Por isso que afirmamos anteriormente que a filosofia é indispensável para o educador. Em monografia sobre o tema que aqui se discute SCARIOTTO (2007, P. 30) afirma: 4
Interrupção temporária do fluxo de ideias prontas que uma pessoa tem sobre determinado assunto. – 249 –
História, Filosofa e Sociologia da Educação
A filosofia deve de ve ter um lugar privilegiado na vida humana, pois além de possibilitar a racionalidade, sempre esteve na origem das mudanças decisivas na história da humanidade, por isso não é inútil como pensam. Tem Tem como objetivo obje tivo a totalidade das da s coisas, desde as raízes, as causas primeiras até as ultimas. Tudo Tudo o que diz respeito a vida refere-se à Filosofia e torna-se ponto de partida de sua reflexão. Ajuda a desvendar os horizontes obscuro e incompreensível para o homem comum, que pouco questiona sobre os sentidos das coisas. A Filosofia é uma atividade humana indispensável. Pode nos livrar do conceito de juízos antecipados, de uma abordagem superficial sup erficial da realidade, realidade , fruto da limitação da compreensão humana, sustentada por aparências, às quais o homem se apega facilmente. Se a filosofia está começando a encontrar novamente um lugar no ensino é porque educadores descobriram que os jovens podem se encantar com ela e que ela contribui significativamente para seu desenvolvimento educacional. Talvez em nenhum outro lugar a Filosofia seja mais bem vinda do que na sala de aula. Toda Toda disciplina parece ser mais fácil de aprender quando seu ensino é inspirado pelo principio aberto, crítico e de rigor lógico característico da Filosofia, ajudando os alunos a refletirem efetivamente sobre os valores que constantemente são importantes para eles.
Esse suporte que a filosofia dá ao educador irá facilitar também seu trabalho em sala de aula e que no conjunto com as outras disciplinas poderão cumprir com aquilo que a Lei trás como uma das metas da educação que é “o aprimoramento aprimoramento do educando como pessoa humana, incluindo a formação ética e (LDB, art. o desenvolvimento da autonomia intelectual e do pensamento crítico.” (LDB,
34, inciso III). Daí que a filosofia não é importante só para o professor, mas também para os alunos. [..]. As teorias são importantes para a formação do professor. Todo professor deveria ter em mente tais teorias para aperfeiçoar seu desempenho em sala de aula; estudar teorias, através da Filosofia da Educação, adentrando em filosofias atuais proporciona ao mestre qualidade no seu desempenho enquanto professor. Pensar sobre a formação do educador em nosso tempo consiste num grande desafio. A educação assume faces diferentes em cada período histórico, mas a essencialidade do professor em buscar a interação com seu aluno não modificou. Para o aluno, que está numa evolução de conhecimento, de aprendizagem, a Filosofia é a essencialidade de sua busca do saber. A Filosofia estimula o pensamento, o estudo, o relacionamento humano e a liberdade da mente. A filosofia ajuda a partir do momento em que oferece subsídios suficientes para o desenvolvimento do aluno na atividade intelectual para pensar. pensar. É imprescindível conhecer os filósofos, – 250 –
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suas histórias, seus pensamentos, pois, são exemplos de homens que chegaram à uma realização, à uma busca pela verdade. São exemplos de como o aluno pode conseguir compreender o seu redor, de como a reflexão é importante para uma sociedade que anseia, e de como a autocrítica é de sumo valor para a sua maturidade. A Filosofia é fundamental na vida de todo ser humano, visto que proporciona a prática de análise, reflexão e crítica em benefício do encontro do conhecimento do mundo e do homem. O educando, tendo a filosofia como companheira, se torna em um individuo de bom discernimento, de bom senso, possível a uma auto avaliação e sempre buscara o novo.
A filosofia assim entendida irá contribuir para a emancipação do próprio professor, sendo uma ferramenta de suporte, não só para a prática da educação em sala de aula, mas também no seu convívio escolar com outros educadores e na vida social.
Síntese Transcorremos neste artigo, ainda que de forma parcimoniosa, que a filosofia, enquanto um dos ramos do saber historicamente construído está estritamente ao pensar crítico e por isso mesmo assume importância para a formação do professor/educador. professor/educador. Este olhar, da importância da filosofia como um suporte para a reflexão crítica do educador, exige de todos uma percepção diferenciada de ver a mesma realidade, percepção esta assentada na crítica reflexiva e visão holística em relação às mudanças que ocorrem na sociedade e que também vai ter reflexo na educação de outros indivíduos.
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História, Filosofa e Sociologia da Educação
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12 Sociologia e Antropologia para a Educação Alexandre Vieira
C�� ���� ��������, pretendemos inserir o leitor no ambiente de trocas entre a sociologia, a antropologia e a educação. Ainda que o façamos como uma aproximação de temas para debates cruzados entre diferentes disciplinas de um mesmo campo de conhecimento, procuramos manter a proposta de abordar o assunto a partir do aprofundamento de tópicos específicos. Privilegiamos as possibilidade de trocas entre saberes, e não a produção de sínteses históricas profundas que pretendam esgotar o campo. Por Por se tratar de um capítulo sobre os fundamentos sociológicos e antropológicos para a educação, seguiremos recapitulando algumas preocupações que clássicos do pensamento social dos séculos XIX e XX produziram e que impactaram nos ambientes de formação de professores e alunos, estivessem em escolas ou universidades da Europa, da América do Norte, da América do Sul ou da África.
História, Filosofa e Sociologia da Educação
12.1 Educação e Sociologia: o empréstimo dos clássicos Em 1920, a Europa perdeu o último pensador clássico da ciência sociológica europeia. Com a morte do alemão Max Weber (1864-1920), desapareceu o sociólogo clássico que compunha o trio ao qual pertenciam o francês Émile Durkheim (1858-1917) e o alemão Karl Marx (1818-1883). Pouca dúvida subsiste quanto ao fato deste triunvirato ser considerado o alicerce por sobre o qual se desenvolveu o pensamento sociológico contemporâneo em suas diferentes ramificações. Esse modo de definir o status e e a importância de um sistema amplo de ideias, o clássico de um saber, está sustentado em consenso acadêmico e muito marketing editorial (ALEXANDER, 1999, p. 39-41). Antes Antes de Marx, Marx, Durkhei Durkheim m e Weber, eber, já existia existia uma preocup preocupação ação intelec intelectual tual e científica com as sociedades modernas, suas culturas cultura s e dilemas. No entanto, o fato de todos esses pensadores terem vivido em contextos de ampla industrialização e estatização da vida social, possibilitou que seus planos rigorosos de investigação e ação os tornassem referência em círculos intelectualizados e militantes de causas manifestas, como a operária, a pequeno-burguesa e a civilizacional. O amadurecimento das sociedades industriais, a massificação da vida urbana e o fortalecimento dos Estados-nação na Europa – e em suas inúmeras colônias e possessões ultramarinas, ainda no decurso do século XIX – ocasionaram um conjunto de grandes transformações e a instalação instalação de cenários plurais de vida individual e social nunca antes experimentados pelos europeus ou, quem sabe, pela própria humanidade.
Marx, Durkheim e Weber tornaram-se, rapidamente, por mérito de suas próprias obras e por terem nascido no epicentro de todas essas transformações, os privilegiados interpretadores dos problemas do seu tempo e foram reconhecidos por amigos e inimigos como mestres de fato.
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Sociologia e Antropologia para a Educação
12.1.1 Educação ou Pedagogia? Se quem estuda a sociedade pode ser chamado de sociólogo, como se deve chamar quem estuda a educação? Educador ou pedagogo? Educadores, todos somos, poderia dizer um iconoclasta como Marx. Contudo, a especificidade da Educação é aquilo que a funda como a atitude de alguém que educa – o que os gregos chamavam de paidós 1, o ato fundante da pedagogia. A educação passaria a ser definida, na era platônica (400-350 a.C.), como uma techné , uma técnica inventada por sofistas como Protágoras, e não uma ciência ou uma filosofia (JAEGER, 1994, p. 348-349). De acordo com Amorin (2003), a palavra “educação”, que em português foi dicionarizada no século XVII, possui origem latina. Sua etimologia indica que educatio é sinônimo de ação de criar ou de nutrir, cultura, cultivo. Designa um ato ou um processo e um efeito. Educação, ao mesmo tempo, significa o ato ou processo de educar ou de educar-se e o conhecimento e o desenvolvimento resultantes desse ato ou processo. O educador e o educando estão unidos pela palavra educação. Além disso, é possível a uma pessoa educar a si mesma, ou seja, ser educador e educado. De acordo com Saviani (2007), desde a Grécia, delineou-se uma dupla referência para o conceito de pedagogia. De um lado, desenvolveu-se uma reflexão estreitamente ligada à filosofia, elaborada em função da finalidade ética que guia a atividade educativa. De outro lado, o sentido empírico e prático práti co inere inerente nte à paide paideia ia (ente (entendida ndida como a forma formação ção da crian criança ça para a vida) reforçou o aspecto metodológico presente já no sentido etimológico da pedagogia como meio, como caminho: a condução da criança.
Tanto o pensamento sociológico quanto o pensamento pedagógico foram disputados e conquistados pelas universidades que surgiram na 1 Paidós é é um termo grego que q ue significa diretamente a palavra ‘criança ‘criança’.’. Dela se origina o termo pedagogia, que ampliadamente, significa ação educativa. A paidós antiga antiga foi utilizada como termo aceptivo para o ideal de educação do homem grego.
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História, Filosofa e Sociologia da Educação
Europa em plena era vitoriana 2. Nesse período, o pensamento pens amento sociológico tornou-se um modo de sugerir que, aquele que o assumisse, possuiria um compromisso prioritário com um programa de estudo e pesquisa de seu objeto especializado – no caso, a sociedade industrial europeia e as suas instituições de reprodução (que incluíam determinado tipo de organização do indivíduo, da família, da escola, da fábrica, dos hospitais e dos serviços públicos). Nesse contexto, o sociólogo pode ser um intelectual, mas não existirá mais como um agente livre de qualquer institucionalização (como Saint Simon, 1760-1825, o espírito livre da revolução, ou Augusto Comte, 1798-1857, o precursor do catecismo positivista), exatamente porque tal distinção tornou-se, por convenção, um usufruto da academia. O sociólogo tornou-se, em fins do século XIX, um profissional educado e formado em universidades. Sua ação no mundo da vida passaria a ser fruto de uma escolha pessoal que, não raro, o identificava por toda uma existência, e xistência, e tem sido assim até hoje. O mesmo se pode dizer daquele que se dedica à Educação ou à Pedagogia (MUCCHIELLI, 2001, p. 38). O pensamento pedagógico, portanto, traduziria, já em fins do século XIX, a existência de alguém que assumiu um compromisso de se dedicar ao longo de um tempo variável a pensar as intrincadas situações de ensino e aprendizagem em contextos determinados. No entanto, muitos se tornaram educadores por paixão ou por necessidade, mais do que por formação universitária. Jean-Jacques Rousseau (1712-1778), o romântico filósofo iluminista, autor de Emílio, ou da Educação (1762), é o melhor exemplo de educador por paixão. Pestalozzi (1746-1827) e Fröbel (1782-1852), professor e discípulo, considerados os primeiros pedagogos europeus contemporâneos, também são exemplos de pessoas que desenvolveram a educação como uma arte, mais do que como uma ciência. Por sua vez, já no último quarto do século XIX, o pedagogo possuía o mesmo condicionante de um sociólogo, antropólogo, economista ou historiador, então, tornou-se um profissional acadêmico que estabeleceu sua intelectualidade em processos institucionais de formação universitária profissionalizante (CAMBI, 1999, p. 415-7). 2 A era vitoriana foi o período em que a rainha Vitória (de 1837-1901) governou o Reino Unido. Durante esse período a Inglaterra anexou a Índia ao império britânico e conduziu o segundo e mais expansivo ciclo da Revolução Industrial.
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Sociologia e Antropologia para a Educação
Dos clássicos citados, apenas Durkheim pode ser visto como um pensador que domina tanto a sociologia quanto a pedagogia. Por vários anos, na França, foi professor, pesquisador e autor em ambas as disciplinas. Dessa forma, pode ser considerado um dos primeiros sociólogos da educação. De Weber, pode-se dizer que se tornou, na maturidade, sociólogo de fato. Mas não possuiu propriamente um pensamento pedagógico, do modo como estamos tratando. Já Marx não pode ser visto como um sociólogo ou um pedagogo no sentido institucional do termo: ele era doutor em filosofia e não privilegiou a pesquisa sobre a sociedade e a educação ou a pedagogia. A sua formação era realmente o que qu e chamamos hoje de transdisciplinar. Durkheim, por comprometimento, compõe os anais da história da pedagogia; Marx e Weber, por empréstimo, os anais da história da Educação. Marx, Durkheim e Weber foram redescobertos editorialmente e não menos sincretizados por novas comunidades linguísticas interessadas em “desvendar” o inaudito em suas obras e vidas. Os “pais fundadores” da sociologia revivem todos os dias em milhares de universidades espalhadas pelo mundo, ainda que de um modo não convencional ou linear. TornaramTornaramse ícones de produtos industrializados como camisetas, brinquedos e revistas; são alvo de piadas ou adoração na internet; são combatidos ou defendidos por “soldados” entrincheirados em suas fileiras ideológicas, enfim, mantêm uma popularidade que, notadamente, atravessa os altos muros dos saberes disciplinares. Todas as tentativas de sacralização ou esfacelamento desses corpos de saberes compõem apenas o choque entre o velho e o novo que nunca cessa e que é a base do ritmo da mudança e da transição, a lei da mudança e do movimento – a dialética. É importante lembrar que, por trás da crítica e do desencanto com a situação do mundo que marcou a visão geral desses pensadores durante boa parte do século XIX, havia vida pulsante pul sante e em abundância, havia esperança, vontade e alegria. Esses pensadores reuniam uma grande quantidade de amigos, alegravam-se com a vida em família e nutriam boas relações por onde fossem. Como simples seres humanos, eram tão vulneráveis às emoções e aos enganos quanto vigorosos na defesa e no convencimento de suas posições e escolhas. – 257 –
História, Filosofa e Sociologia da Educação
12.1.2 Uma páidós chamada Marx e Engels Karl Marx
Friedrich Engels
O autor de O Capital, Karl Friedrich Marx, em comparação com Durkheim e Weber, foi, certamente, o mais popular entre eles. Ao se estudarem os grandes acontecimentos políticos do século XX, essa afirmação parecerá evidente. Revoluções – como a Russa de 1905 e a de 1917, as duas grandes guerras mundiais (1914-1918 e 1939-1945), as experiências da guerra fria (1950-1989), a Revolução Cultural na China (anos 1960 e 1970), a Revolução Cubana (1959), as ditaduras militares que rasgaram a África e a América Latina (anos 1950 a 1985), a corrida espacial e o mundo dividido entre países capitalistas (ou primeiro mundo), países socialistas (ou segundo mundo) e países subdesenvolvidos (ou terceiro mundo) – tiveram, em um dos lados, sempre, a ação humana e estatal orientadas pelas teorias de Karl Marx (HOBSBAWM, (HOBSBAWM, 1995, p. 223-230). Propaganda chinesa durante a Revolução Cultural (1960-1968). A cartilha do comunismo nas mãos dos trabalhadores da cidade e do campo compreendia a base de aprendizagem socialista do povo chinês.
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Sociologia e Antropologia para a Educação
Marx (1818-1883) e Engels (1820-1895), amigos inseparáveis e autodidatas, dominaram saberes disciplinares em vastíssima extensão. Marx especializou-se em economia, história e matemática. Adorava literatura e foi amigo de Charles Darwin, de cujas teorias sobre a evolução das espécies era grande admirador. Então, ainda que não haja um saber pedagógico sistematizado na obra de Marx, tal possibilidade se manifesta potencialmente quando a mente aguçada do velho mouro – como gostava de ser chamado – lidava com a crítica à luta de classes, com a análise da formação e do papel histórico do proletariado e com a proposição de transformação e superação radical da sociedade capitalista industrial, que tudo permeava e influenciava. O materialismo histórico e dialético3, o socialismo científico e a economia política reúnem-se em uma única obra, O Capital (1867), e compõem a síntese final da filosofia, do método e da técnica de Karl Marx, refletindo o trabalho de uma vida inteira. A educação e o ensino no pensamento do filósofo alemão devem, portanto, se vincular a essa extensa e inultrapassável obra. É natural, por sua vez, que a educação em Marx seja compreendida como uma manifestação das condições materiais e históricas da luta de classes no século XIX. A educação contrasta com o trabalho; o Estado se ocupa com a educação das elites, enquanto o capital ocupa o trabalho infantil e feminino nas fábricas. Essa situação, grave ao tempo de Marx, valeu a famosa reivindicação no Manifesto do Partido Comunista: “Educação pública e gratuita para todas as crianças. Eliminação do trabalho das crianças nas fábricas na sua forma atual. Unificação da educação com a produção material etc.” (MARX, 1987, p. 54). Hoje, tal reivindicação nos parece despropositada se observarmos que, de um modo ou de outro, ela é uma preocupação rotineira de sociedades e Estados democráticos. Qualquer marxista atento não deixaria de retrucar a afirmação de que o capitalismo faz realmente melhor o que o socialismo apenas manifestou como utopia. Não é preciso manifestar simpatia por esse ou aquele “ismo” para entender que uma educação pública e o fim do trabalho infantil, mesmo 3 S. M. Rainha do Reino Unido da Grã-Bretanha e da Irlanda, Imperatriz das Índias; S. M. Imperador da Alemanha, Rei da Prússia; S. M. Imperador da Áustria, Rei da Boêmia etc. e Rei apostólico da Hungria: S. M. Rei dos belgas; S. M. Rei da Dinamarca; S. M. Rei da Espanha; o Presidente dos Estados Unidos da América; o Presidente da República Francesa; S. M. Rei da Itália; S. M. Rei dos Países Baixos, Grão-Duque de Luxemburgo etc.; e S. M. Rei de Portugal e de Algarves etc.; S. M. Imperador de todas as Rússias; S. M. Rei da Suécia e Noruega etc.; e S. M. Imperador dos Otomanos.
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compondo o discurso de cada Estado democrático liberal na atualidade, se estabeleceu a partir de um árduo, incansável e doloroso confronto entre forças progressistas (comunistas, socialistas, anarquistas e liberais) e conservadoras (elites no poder, ainda que sejam socialistas, burocráticas e totalitárias) detectadas em cada momento da história do ocidente nos últimos 150 anos. A divisão divisão social social e técnica técnica do trabal trabalho ho – que coloca, coloca, de um lado, lado, as classes classes sociais ricas em condições de usufruir de um sistema de ensino altamente qualificado e, de outro, as classes sociais empobrecidas em condição de servidão fabril – motivou Marx e Engels a definirem que a abolição da divisão do trabalho, a extinção do Estado e o estabelecimento de uma sociedade de indivíduos cooperados em comunidades autogestadas seria o principal programa de combate aos excessos do regime político e econômico do Capital (MARX, 1987, p. 48-50). O detalhe aqui é que Marx e Engels não estão querendo restituir uma paisagem, um cenário pré-capitalista e rural na Europa, em que a artesania se associaria ao mundo bucólico, natural e romântico da lenta vida campesina. Nada seria mais equivocado do que pensar assim. Os autores consideram o capitalismo uma força extraordinária, que possui todo o vigor e reúne condições de riqueza material como nenhum outro sistema econômico jamais foi capaz de condensar. condensar. O problema com o capitalismo não está no desenvolvimento da técnica e da indústria, mas no péssimo usufruto dessas ferramentas, que poderiam salvar a humanidade da pobreza e da fome, como muitos filósofos e economistas iluministas haviam acreditado no século das luzes. Pelo contrário, a gestão capitalista do Estado e da sociedade, de promessa, transformou-se em tragédia. Nunca antes na humanidade houve tamanho aprofundamento das desigualdades sociais e humanas como na Europa capitalista e nas suas possessões coloniais ultramarinas. ATA GERAL REDIGIDA EM BERLIM EM 26 DE FEVEREIRO DE 1885 entre França, Alemanha, Áustria-Hungria, Bélgica, Dinamarca, Espanha, Estados Unidos, Grã-Bretanha, Itália, Países Baixos, Portugal, Rússia, Suécia, Noruega e a Turquia, para regulamentar a liberdade do comércio nas bacias do Congo e do Níger, assim como novas ocupações de territórios sobre a costa ocidental da África.
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Em nome de Deus Todo-Poderoso, S. M. Rainha do Reino Unido da Grã-Bretanha e da Irlanda, Imperatriz das Índias; S. M. Imperador da Alemanha, Rei da Prússia; S. M. Imperador da Áustria, Rei da Boêmia etc. e Rei apostólico da Hungria: S. M. Rei dos belgas; S. M. Rei da Dinamarca; S. M. Rei da Espanha; Es panha; o Presidente dos Estados Unidos da América; o Presidente da Repú blica Francesa; S. M. Rei da Itália; S. M. Rei dos Países Baixos, Grão-Duque de Luxemburgo etc.; e S. M. Rei de Portugal e de Algarves etc.; S. M. Imperador de todas as Rússias; S. M. Rei da Suécia e Noruega etc.; e S. M. Imperador dos Otomanos.
Fonte: Cabeçalho da Ata Geral da Conferência de Berlim sobre o Oeste da África, de 26 de fev fevereiro ereiro de 1885, que definiu os termos de partilha da África entre os impérios europeus.
Portanto, ainda que as políticas educacionais na Europa, durante o período da Revolução Industrial, tenham ampliado o acesso à educação e tenham reduzido sensivelmente o analfabetismo, Marx e Engels, e tantos de seus partidários, não se deixavam confundir. Sabiam claramente que o resultado de tão “benéfica” associação entre Estado e Capital era a constituição dos famosos exércitos industriais de reserva – que sempre se estabeleciam para substituir os contínuos fluxos de trabalhadores derrotados pelos numerosos acidentes de trabalho, pelas dívidas, doenças físicas e mentais, pobreza, fome, esgotamento, desilusão e incapacidade de acompanhamento do alucinante ritmo de alteração das qualificações técnicas requisitado pelo sistema fabril capitalista. capitalista. 12.1.3 O grand petit ami da sociologia francesa Karl Marx morreu na Inglaterra em 1883. Nesse mesmo ano, um jovem jove m catedr cat edráti ático co francê fra ncês, s, de nome nom e ÉMILE ÉMI LE DURKHE DUR KHEIM, IM, aos 25 anos, ano s, iniciou uma carreira que seria marcada pelo brilhantismo e o reconhecimento internacional. Durante 18 anos ininterruptos, o cientista social francês se ocupou com cátedras de ciência da educação em diferentes universidades e liceus na França. Ao contrário de suas obras magnas, como – 261 –
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Regras do Método Sociológico (1895), O Suicídio (1897) e As Formas Element Elem entares ares da Vida Vi da Religiosa (1912), dois dos seus livros sobre Edu-
Émile Durkheim
cação e Pedagogia, foram publicadas a partir da compilação e organização das notas das aulas ministradas pelo sociólogo francês e, curiosamente, cur iosamente, apareceram como obras póstumas. Então, Educação e Sociologia (1922) e Educação Moral na Escola Primária (1992) são obras complementares à monumental A Evoluç Evolução ão Peda Pedagóg gógica ica (1904-1905). Os temas de sociologia e de educação parecem correr em paralelo na obra de Durkheim, mas essa é uma visão enganosa. O cerne do pensamento durkheimiano é o fato social4, a regra sociológica, a relação entre o indivíduo e a sociedade. Por conta disso, todo e qualquer estudo disciplinar de Durkheim mantém-se em estreita relação explicativa com as categorias de seu pensamento sociológico. Não é demais relembrar que Durkheim, assim como Marx e Max Weber, foi um autor abundante na publicação de obras de sociologia, mas também de economia, filosofia social, ciência política, antropologia, psicologia e, é claro, educação. Durkheim conceituou fatos sociais como coisas. Tal conceito, essencial em sua obra e de fácil compreensão para nos aproximarmos do autor, traduzia o indivíduo como um ser manifestado materialmente no mundo das ocorrências sociais externas ao indivíduo e provenientes da Educação, do Direito e dos costumes. Os infindáveis fatos, como as coisas, possuem o mesmo peso valorativo, pois sua existência é pura exterioridade e coercitividade unifocada (DURKHEIM, 2007, p. 7). A educação educ ação é um fato social soci al criado cria do pelo indivídu indi víduo, o, mas manifest mani festado ado como exterioridade em instituições sociais de coerção e disciplinamento, como a família, a escola, a fábrica, a igreja e o Estado. A autonomia e a liberdade no pensamento durkheimiano são temas secundários, uma vez que sobra pouco espaço para a ação livre dos homens. Segundo Durkheim, já nascemos nas cemos em e m meio a miría mi ríades des de insti i nstituiç tuições, ões, ritua r ituais, is, modos mo dos e condut co ndutas, as, 4 Grupo específico de fenômenos que se distinguem das outras ciências por serem exteriores aos indivíduos e provenientes do Direito e do Costume legados pela Educação.
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saberes, práticas jurídicas etc, que nos condicionam por completo. Contudo, o sociólogo francês está ciente de que tal condição provoca muitos conflitos, à medida que os indivíduos são compostos de desejos, vontades e disposições internas e pessoais que se chocam diretamente com essa primazia do social sobre o individual. Mas a libertação de uma regulação social representa o aprisionamento em outra (DURKHEIM, 1978, p. 47-50).
Em seu livro Educação e Sociedade, Durkheim (1978, p. 41) afirma: A educação é a ação exercida, pelas gerações adultas, sobre as gerações que não se encontram ainda preparadas para a vida social; tem por objeto suscitar e desenvolver, na criança, certos números de estados físicos, intelectuais e morais, reclamados pela sociedade política, no seu conjunto, e pelo meio especial, em que a criança particularmente se destine.
Note a perspectiva funcionalista que restringe o processo educacional na infância à ação de interesses do Estado e dos ditames do mundo adulto.
Durkheim, respeitando o mais elevado ethos científico positivista de seu tempo, reservou-se ao que, a seu ver, estava acontecendo, e não prioritariamente ao que se deveria fazer para superar o acontecimento como problema. Ainda Ainda assim, assim, tal espírito espírito positivo positivo,, modulado modulado por princípi princípios os como como isenção isenção e neutralidade, é mero efeito de uma ação particular e estritamente acadêmica. Durkheim foi muito além disso. Como homem de seu tempo, sentiu-se, por vezes, compelido a tratar dos temas centrais de seu contexto político de vida. Clássicas são as suas aulas sobre o fenômeno do comunismo na Europa e os vários encontros engajados com parte da intelectualidade jovem, comunista e francesa. Igualmente notável foi a sua militância em favor do Caso Dreyfus, que resultou na publicação do texto Individualismo e os Intelectuais (1898). A educação, para Durkheim, faz parte do conjunto de fatos sociais que moldam o indivíduo. O Estado, os adultos e a escola formarão o indivíduo – 263 –
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e o prepararão para viver em sua própria sociedade, no estágio em que tal sociedade se encontra. Não há, dessa forma, qualquer distinção significativa entre indivíduo e sociedade, uma vez que o indivíduo se realiza através do modo como os fatos sociais se constituem, sempre coletivamente e externos a ele. Coisas ou fatos sociais mais aprimorados, como o Estado, por sua racionalidade e abrangência usuais, deveriam orientar a ação dos indivíduos, que, de outra forma, poderiam se mostrar conflituosos e desorganizados por estruturas sociais não tão eficazes como a escola, a religião e a família (DURKHEIM, 1978, p. 89). Contudo, Durkheim não é meramente um determinista social. Não radicaliza na defesa da Educação ou de qualquer outro fato social como sendo exclusivamente o resultado do comando direto ou anunciado de instituições maiores que o indivíduo, como o Estado, por exemplo. Tenhamos Tenhamos em mente que o indivíduo é uma existência relevante em seu método sociológico. Mas ainda que existam escolas privadas, ou o fortalecimento do papel da religião ou da família como suporte pedagógico inescapável do indivíduo, a primeira manifestação de existência é o próprio indivíduo. 12.1.4. A sociologia compreensiv c ompreensiva a de um brilhante desencantado Max Weber Nos mesmos anos em que Durkheim esteve envolvido com a finalização e publicação da obra A Evolução Evolução Pedagógica (1904-1905), Maximilian Karl Emil Weber, ou Max Weber, como ficou mais conhecido, publicou O “Espírito” do Capitalismo. Nessa sua obraprima, definiu mais claramente o conceito de capitalismo como um movimento social, histórico e cultural diretamente associado a um amplo conjunto de significados, dependente mais de uma sociologia compreensiva 5 do que de leis inelutáveis da história. 5 Sociologia Compreensiva é o tipo de sociologia criada e utilizado por Max Weber. Por meio da compreensão seria possível possível ampliar o significado dos fatos com base em sua inter-
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O capitalismo, reconhece Weber, existiu em muitos lugares e épocas diferentes, mas somente na Europa e na América do Norte tomou a forma de um anúncio ético particular fundado em virtudes do protestantismo como a honestidade, o trabalho trab alho e a presteza. Tal Tal ética seria condição essencial ess encial para reforçar a lógica interna do capital, construída por expectativas de ganho econômico, aumento de crédito e expansão do capital (WEBER, 2004, p. 45-46). Para Weber Weber,, os processos de racionalização é que moviam os grupos ou atores privilegiados de determinada época a manifestarem suas pretensões de vontade e dominação. Assim, por exemplo, ainda que tenha surgido tardiamente na Alemanha Alemanha (se compar comparado ado com outras outras potências potências europeias europeias), ), o capital capital industrial industrial trouxe consequências sociais e políticas similares às das primeiras nações industrializadas. Dito isso, entendemos, de antemão, que Weber, Weber, Durkheim e, antes deles, Marx, debruçaram-se particularmente na investigação das causas da miséria, dos confrontos e das diferenças profundas nas sociedades industriais. Marx buscou responder suas questões através da lei da história; Durkheim, por meio do método sociológico; e Weber considerou movimentos particulares da história do capitalismo para constituir a sua sociologia compreensiva. Para Marx, importava a luta de classes, para Durkheim, o fato social, e para Weber, o Tipo Ideal6 (QUINTANEIRO, 2002). No caso de Weber, Weber, tal conceito fundou um referencial instrumental que deveria possibilitar a qualquer investigador interessado em seus pressupostos entender as micro e macro relações de dominação entre grupos desde uma perspectiva da compreensão pessoal subjetiva, sem deixar de lado o cuidado com a isenção ou a neutralidade axiológica 7 característica de qualquer cientista. Dos Tipos Ideais, poderia ser depreendida a famosa teoria da dominação em Weber: a dominação racional ou burocrática, a dominação pretação hermenêutica, ou seja, levando-se em consideração a multiplicidade interpretativa dos fatos objetivos. 6 Tipo Ideal ou Tipos Puros é uma designação weberiana para um ferramental analítico que permita ao cientista social fazer aplicações explicativas isento de avaliação moral. A base de aplicação do conceito são os fatos ou fenômenos sociais capturados a partir de características centrais que permitiriam a sua classificação, comparação e generalização. 7 Neutralidade Axiológica é um conceito de corte weberiano que se aplica a necessidade de que as ciências sociais apliquem a máxima objetividade para a explicação de fatos. Ao cientista cabe a capacidade de saber quando excluir seus juízos de valor em favor dos juízos de fato.
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carismática e a dominação tradicional. A educação, ainda que não seja um campo sociológico prioritário para Weber, Weber, seria facilmente interpretada à luz dos tipos de dominação8. A depender de que tipo de relação de dominação predominava em uma escola ou universidade, seria possível compreender, sem maiores julgamentos, as motivações de pessoas (líderes carismáticos ou tradicionais) ou instituições (burocráticas) que mantinham determinado tipo de dominação de um grupo sobre outro (WEBER, 1999). Leia, a seguir, o parágrafo final do famoso panfleto “Política como vocação.”
A política é como a perfuração lenta de tábuas duras. Exige tanto paixão como perspectiva. Certamente, toda experiência história confirma a verdade – que o homem homem não teria alcançado o possível se repetidas vezes não tivesse tentado o impossível. Mas, para isso, o homem dever ser um líder, e não apenas um líder, mas também um herói, num sentido muito sóbrio da palavra. E mesmo os que não são líderes nem heróis devem armar-se com a fortaleza de coração que pode enfrentar até mesmo o desmoronar de todas as esperanças. Isso é necessário neste momento mesmo, ou os homens não poderão alcançar nem mesmo aquilo que é possível hoje. Somente quem tem a vocação da política terá certeza de não desmoronar quando o mundo, do seu ponto de vista, for demasiado estúpido ou demasiado mesquinho para o que ele lhe deseja oferecer. Somente quem, frente a tudo isso, pode dizer “Apesar de tudo” tem a vocação para a política. Fonte: Weber (1999, p. 153).
Dada a primazia da racionalidade do tipo estatal na Europa no início do século XX, Weber Weber foi capaz de sugerir que o tipo que predominaria cada vez mais seria o racional-burocrático. Na compreensão do pensador alemão, a burocracia, com sua impessoalidade tediosa, colocaria os seres humanos em gaiolas de ferro, 8 Tipos de dominação são três tipos puros (tipos ideais) que aparecem por quase toda a obra weberiana. Seus enunciados são: Dominação legal ou burocrática, dominação tradicional e dominação carismática. São usados por Weber para estudar as diferentes sociedades e culturas e agrupa-las por comparação ou generalização.
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no centro de um mundo desencantado. Essa previsão dura e sombria deveria ser aplicada a tudo que fosse permeado pela manifestação da vontade subjetiva do Estado, incluindo, naturalmente, a Escola. A pergunta que fica é: Weber Weber acertou?
12.2 Educação e Antropologia: novos olhares O que a sociologia nascente justificou ou combateu do ponto de vista de uma sociedade europeia, industrial e capitalista no século XIX, os administradores coloniais o fizeram em possessões europeias ultramarinas não necessariamente industriais e capitalistas. A antropologia, diz Laplantine (2007, p. 64-65), é um projeto europeu da era moderna. Nasce, em seus rudimentos, com o antropocentrismo característico do último ciclo renascentista, no século XVI. Nesse período, a antropologia não existia como ciência social, nem ao menos era assim chamada. O que passou a existir já no século XVI foi um ethos, uma atitude que a antropologia tomaria como parte da sua própria história três séculos depois. As navegações e a chegada nas Américas mostraram que o olhar do europeu sobre um nova modalidade de existência humana, de fato, produziu um impacto na representação do outro. A antropologia se desenvolve como ciência do homem em relação com a cultura que o cerca somente na segunda metade do século XIX, quando estudiosos como Émile Durkheim, Marcel Mauss e Gabriel Tarde, todos franceses, criaram ou assumiram cátedras de antropologia nas principais universidades do país, por exemplo, a Sorbonne (MUCCHIELLI, 2001, p. 44-45). A antropologia se autonomiza como ciência juntamente com outras ciências sociais. O exemplo mais notório é o da própria sociologia. A tarefa da antropologia antropol ogia como ciência ciênci a social autônoma é seguir segui r procurando pistas que expliquem os elos perdidos entre as sociedades. Assim, Assi m, antropologia antropol ogia pode ser definida defini da como a ciência ciênci a que busca estudar, estud ar, investigar os seres humanos de um ponto de vista da totalidade das suas expressões de vida. O conceito de cultura cultur a serve à antropologia para sustentar sus tentar essa pretensão, uma vez que tudo no mundo externo é manifestação simbólica de experiências de indivíduos em relação com os fenômenos do mundo da vida. O modo inicial utilizado pela antropologia para estudar a humanidade em seu contato com a totalidade do seu ser cultural foi – 267 –
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localizar o ser primitivo, ou seja, estudar as ditas sociedades primitivas como elo vivo do nosso passado cultural com as sociedades civilizadas. E a forte expansão imperial do final dos século XIX forneceu, como nunca antes, a base de encontro entre o civilizado (curioso para entender os elos da sua superioridade racial) e o primitivo (que, geralmente, ao modo de um selvagem, era a comprovação da existência de tais elos). O empreendimento antropológico no século vitoriano foi uma extravagância financiada pelos diversos impérios europeus, que não encontrou outros limites senão os que opõem à vontade de poder a capacidade de fazer. Quanto maior foi a frota mercantil e o poderio militar, mais intensa e devastadora foi a presença das nações ricas da Europa em meio aos territórios conquistados. Seguramente, desde o século XVII, o Império Britânico e o Império Francês estiveram à frente dos projetos de expansão do comércio e dominação de novos territórios por toda a Ásia e a África. As companhias das Índias Orientais, fundadas por vários países ainda na primeira metade do século dezessete, associadas aos resultados promissores do Tratado de Utrecht 9 (1713-1715) possibilitaram um completo reposicionamento geopolítico de França e Inglaterra frente aos maiores impérios modernos ultramarinos até então conhecidos: Espanha e Portugal (LAPLANTINE, 2007, p. 63-74). Com o apagamento da maior parte dos tratados internacionais fundados no marco jurídico de Tordesilhas (1494) e no Tratado de Saragoça 10 (1529), um vasto mundo inexplorado de riquezas naturais e seus misteriosos seres passou a ser descoberto e conquistado pelos Europeus. De olho em um promissor comércio ultramarítimo e transcontinental, os europeus sabiam que a exploração e a dominação territorial da gigante Ásia não poderiam ser conduzidas sobre as mesmas bases do projeto colonizador 9 O Tratado Tratado de Utrecht foi o resultado de dois anos de negociações diplomáticas entre as principais nações européias do início do século dezoito e teve por objetivo revisar o conjunto dos tratados internacionais anteriores. O resultado imediato do Tratado Tratado de Utrecht foi o cancelamento de toda a base normativa que regulava a partilha de territórios ultramarinos, como o tratado de Tordesilhas, Tordesilhas, por exemplo, e a reinstituição de uma nova base jurídica geopolítica. Os principais ganhadores foram Reino Unido e França e os principais perdedores foram Portugal e Espanha. 10 O Tratado de Saragoça foi a complementação jurídica do Tratado de Tordesilhas. Seu ob jetivo foi organizar o demarcação de territórios pertencentes a Portugal e Espanha na Ásia, sobretudo no que trata da normalização da inclusão das ilhas Molucas e das Filipinas nas possessões portuguesas.
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de espanhóis e portugueses. Como bem sabemos, o empreendimento marítimo da península ibérica – que assombrou os europeus ao revelar um imenso continente, mais tarde batizado de América –, mesmo resultando na dizimação de milhares de indígenas e dezenas de civilizações muito desenvolvidas como os Incas, Maias e Astecas, não se comparava em quantidade de habitantes e em diversidade de culturas milenares com as que já existiam na Ásia no momento em que as Companhias das Índias Orientais foram fundadas (HOBSBAWM, (HOBSBAWM, 1995, p. 22). Propaganda de Estado Imperial britânico em seu formato clássico novecentista. A eterna luta da civilização contra a barbárie. Publicado na Puck Magazine com o título: Do Cabo ao Cairo.
Fonte: UDO, Kepler, 1902.
Desde o Cabo ao Cairo ,
Puck Magazine, 10 de dezembro
Portugueses e Espanhóis encontraram nas Américas vastos territórios inexplorados e um número incontável de nações indígenas que viviam, aos seus olhos, como a margem do potencial de riqueza a ser explorada. Pelo contrário, ingleses e franceses criaram as Companhias com o intuito de aprimorar as práticas comerciais já estabelecidas com chineses, indianos, africanos, japoneses, indonésios e outros. Várias dessas civilizações eram totalmente desenvolvidas para os padrões dos europeus, e as culturas estranhas aguçavam a suas curiosidades. – 269 –
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12.2.1 O estabelecimento de uma Antropo Logos educativa
A esse ponto, perguntamos: estamos tratando mesmo da relação entre educação e antropologia? A resposta é: sim, pois, ainda que de forma indireta, a expansão territorial marítima dos séculos XV e XVI e o mercantilismo do século XVII resultaram na industrialização da Europa e, por consequência, na reforma ou substituição de quase tudo que se parecesse com antiquaria. A impressionante aventura humana que resultou nesses três grandes conjuntos de eventos – as descobertas ultramarinas, o mercantilismo e a Revolução Industrial – foram os momentos decisivos em que coisas e saberes foram eliminados, reformados ou criados.
As novas coisas do mundo moderno foram pensadas e instituídas para regular a ação e os interesses dessa nova humanidade, carente de liberdades individuais e riqueza e egocentrada em suas defesas territoriais. Exemplos desse novo momento foram as reformas de universidades, o estabelecimento de novas leis comerciais, civis e bélicas, a criação de academias reais de ciências, a hiperespecialização da construção naval, a reestruturação da arquitetura das cidades, a ligação viária e marítima entre Estados, a criação de novas instituições de controle e disciplina moral e corporal da população como escolas, fábricas, hospitais, presídios, exércitos, oficinas, praças. Enfim, novas profissões profis sões e ocupaçõe ocu paçõess humanas huma nas passa p assaram ram a existi existirr para par a o novo ser humano (FOUCAULT, pp. 2004, 195-202).
A Antropologia, surgida s urgida em meados do século sécul o XIX, ainda que estivesse diretamente associada à biologia e à filosofia natural do século das luzes, manteve uma forte conexão causal com os grandes eventos que deram surgimento à Era Moderna, como descrevemos anteriormente. Podemos inclusive sugerir que a Sociologia está para a construção da interioridade do Europeu assim como a Antropologia está para a sua exterioridade. – 270 –
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Durante séculos, na história da humanidade, os europeus se viram invadidos, combatidos, ameaçados, visitados, dominados por incontáveis povos estrangeiros, como os persas, os unos, os mongóis, os árabes e os turcos. Em todos os momentos de contato com outros mundos, os europeus, basicamente, consolidaram consolidaram escolhas, e a principal delas foi pela manutenção da europeidade. O homem europeu, no início da idade moderna, foi finalmente pacificado pacifi cado por uma contínua e vigorosa disposição de se colocar no centro do mundo. O característico antropocentrismo moderno é a legítima tradução para o estabelecimento de uma longa era de eventos interpretados privilegiadamente pela visão europeia de tudo. Eis então o eurocentrismo, o novo projeto civilizador na terra vigorante até fins do século XIX (ELIAS, 1993, p. 263-274). Como polemiza Foucault (2000, p. 470-473), a Antropologia foi a filosofia social mais pretensiosa na corrida europeia pelo desvendamento dos superpoderes dos homens. E, ironicamente, a antropologia foi a experiência de elucidação do que somos que mais fracassou em seus intentos. A relação relaçã o da Antropologia Antropo logia como nova ciência ciênci a social e humana aplicada à Educação parece óbvia por dedução. Os europeus, ávidos por novas histórias dos mundos incivilizados, produziram relatos de viagem, investigações, ilustrações e crônicas como jamais outro povo havia feito. Desde o século XV, essa cultura do registro escrito passou de costume a obsessão (CAMBI, 1999, p. 21-23). Surgiu, portanto, um expressivo manancial de informações sobre os hábitos, costumes e rituais dos povos periféricos aos europeus que tanto os assombrou e excitou. Vale a sentença: Para um projeto de poder, uma educação de poder. poder. E o poder, poder, na era moderna, ao contrário do largo e profundo medievo, representou poder de saber. O conhecimento, a informação, a descoberta, a investigação, a minúcia, o detalhe, o acontecimento, a ocorrência, o costume, o hábito tornaram-se, rapidamente, o pedagógico, a paidós moderna, que fundou uma nova marca civilizacional na face da terra. Essa atitude de vontade de conhecimento e intensas trocas com as culturas a serem submetidas permeou os grandes projetos de expansão imperial, por exemplo, o império romano na antiguidade ou o império mongol no medievo. Agora, a Europa se via (justificadamente, do seu ponto de vista) como a síntese natural e vitoriosa da história. A busca pelo conhecimento e pela riqueza das coisas do mundo – 271 –
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passaria a ser a mais emocionante aventura dos europeus desde o fim do Império Romano no século IV. IV. (CAMBI, 1999, p. 492-496). A curiosidade generalizada que permeava todos os grandes centros urbanos na Europa a partir das primeiras expedições ultramarinas teve, nas universidades, Liceus e praças públicas, a grande fonte de troca e estabelecimento dos conhecimentos, dos relatos e das crônicas trazidas das viagens pelo mundo. Tal saber sobre o mundo que estava sendo descoberto gerou expectativa nas sociedades europeias na era moderna de um modo parecido com o que sentiríamos se, hoje, a mídia noticiasse a descoberta de algum novo planeta que pudesse ser habitável. Mas o divisor de águas aqui não é necessariamente saber dos tantos novos conhecimentos que chegavam todos os meses das caravelas, dos navios ou das embarcações que atravessavam os mares. A questão central é nos situarmos sobre a qualidade da narrativa, da apresentação dos novos mundos e dos novos seres encontrados. A observação que passaria a ser destacada seria sobre como os habitantes dos novos mundos eram anunciados, como eram retratados, que tipo de acolhimento tiveram na Europa durante toda a era moderna (LAPLANTINE, 2007, p. 40-46). 12.2.2 O aprender por contato e por olhar Por Por mais complexas, plurais e difusas di fusas que fossem as relações estabelecidas entre exploradores e habitantes dos lugares explorados, alguns demarcadores não podem ser dispensados. A relação entre europeus e o resto do mundo foi sempre de fascinação, no primeiro momento, e de recusa, no segundo momento. Foi assim na chegada do europeu nas Américas e nos primeiros contatos com os ameríndios; foi assim no contato dos europeus com os indianos e com os indonésios e com parte das nações tribais africanas: no primeiro momento, os europeus se fascinaram, mas depois se recusaram a aceitar o modus vivendi dos habitantes que viviam em suas terras como verdadeiros detentores da autoridade territorial e governamental de suas próprias culturas (BRUIT, (BRUIT, 1995, p. 31-40). Por sua vez, os europeus que ouviam as histórias dos viajantes ficavam impressionados com o modo como eram representados os habitantes do novo mundo: como bárbaros, selvagens, desumanos, desalmados, impúberes, – 272 –
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antropófagos, preguiçosos, violentos. Enfim, tornaram-se lugares comuns a humilhação, a representação dos povos não europeus como bárbaros que contrastavam com os civilizados pela fraca capacidade de organização social e o pouco respeito a qualquer autoridade política secular ou temporal (LAPLANTINE, 2007, p. 56-57). Por isso, extensas disputas jurídicas colocavam encomendieros e exploradores de um lado e simpatizantes do novo mundo e religiosos de outro, em disputas jurídicas que se prolongavam por meses. A mais famosa, provavelmente, foi a Disputa de Valladolid, em Salamanca, nos anos 15501551, que colocou, de um lado, os financiadores das expedições marítimas que garimpavam riquezas; e de outro, a igreja e seus clérigos, que se dispunham a conduzir os processos de evangelização dos habitantes das Américas. Guiné de Sepulveda e Bartolomé foram os juristas que estiveram no epicentro dessa disputa jurídica, a maior do início da era moderna, cujo resultado foi a recomendação, por parte da Santa Sé, de que os espanhóis parassem com a violência e os massacres sobre os nativos das Américas. Segundo as atas da Junta de Valladolid, Valladolid, os indígenas indí genas deveriam ser protegidos com humanidade, pois eram legítimos filhos de Deus, ou seja, possuíam alma (BRUIT, 1995, p. 104-123). Desde a disputa de Valladolid Valladolid até o momento em que as ciências sociais surgiram e firmaram seu status de fonte de produção de conhecimento válido, já em meados do século XIX, o calor de disputas comparativas sobre o Novo Mundo só se intensificou. O ponto alto desse longo processo de formação da opinião pública europeia foi conhecida como a Querela do Novo Mundo , que teve lugar, sobretudo em França, Inglaterra e Espanha e reafirmou a intenção da Europa de dominar os povos conquistados por representação ou por técnicas de saber-poder. Tal querela, levada a termo em meados do século XVIII, colocou, de um lado, Buffon, Montesquieu e De Pauw como principais denunciadores da degradação das Américas e de tudo que lá existia; e, de outro lado, estudiosos de universidades como a Sorbonne e numerosa opinião pública advinda de todos os cantos da Europa, que reconheciam as Américas como um lugar pleno de riquezas e potencial de transformação (GERBI, 1996). – 273 –
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Em síntese, Buffon apenas deu prosseguimento às teses criacionistas e difusionistas sobre a degenerescência da flora e da fauna das Américas, e o fez com roupagem semi-científica. Muitos depois dele (por exemplo, Hume e Hegel) continuaram julgando e condenando por comparação as Américas como um continente fraco, fecundo em podridão, dado à inércia e à improdutividade. De acordo com esse raciocínio, o “espelho do próspero” seria a Europa, civilização estável, forte, desenvolvida e produtiva. 12.2.3 O século do evolucion evolucionismo ismo darwinista Em diferentes momentos, no século XX, os professores Antonello Gerbi e François Laplantine nos alertaram para uma evidência histórica importante para aqueles que possuem conexão ou interesse nos estudos socioantropológicos e suas implicações nos vários campos disciplinares.
A discussão sobre o “bom ou mau selvagem” e sobre a superioridade da raça europeia ganhou um sonoro enriquecimento no século XIX, quando a Antropologia e a Sociologia passaram a acompanhar o ritmo de “desconstrução” das velhas teses semi-científicas ou criacionistas sobre o desenvolvimento da fauna e flora do Novo Mundo.
De político, o debate sobre as relações entre os europeus eu ropeus e territórios já explor exp lorado adoss passou pas sou a ser biológ bio lógico ico em sua essênci ess ência. a. O darwin dar winism ismoo foi a base para a consolidação de teses científicas sobre a humanidade que inelutavelmente recondicionou a visão que a Europa fazia de si mesma e dos outros. Por outro lado, as teses de Darwin comprovavam que a seleção natural entre as espécies, longe de levar à degeneração e extinção, comprovaria de fato a força adaptativa das espécies. Essa foi uma revolução silenciosa nas bases de conhecimento europeu sobre a biologia e a sociedade que teve rápida repercussão internacional ainda em meados do século dezenove. – 274 –
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Charles Darwin no detalhe da obra do pintor John Collier. Collier.
Diz Darwin (2002, p.39): “[...] é grande a capacidade do homem de ir acumulando, através do processo de seleção, variações sucessivas e ligeiras”. Não é à toa que o socialismo, de forma geral, e Karl Marx, de forma particular, tiveram imediata e declarada simpatia por teses como essas. As queixosas disputas entre as elites aristocráticas e burguesas do século das luzes – que se opunham à aristocracia europeia, à explosão populacional e ao inchaço das cidades que atulhavam as ruas com miseráveis, “bandidos” e “desvalidos” vindos de todos os lugares – ganhariam novo tom. Buffon, De Pauw, Pauw, Hume e Montesquieu eram legítimos l egítimos representantes desse grupo restrito de aristocratas que defendiam o ancien regime contra as massas de “degenerados e criminosos” que invadiam a Europa, vindas de todos os cantos do planeta. Tais autores sustentaram suas ideias publicando obras que legitimavam a contínua desconfiança dos poucos ricos em relação aos muitos pobres. Usavam basicamente a razão e o poder de seu letramento para convencer de suas teses quem fosse necessário. Darwin dedicou sua vida e saúde para ultrapassar teses deterministas e inverídicas como as de Buffon, Lamarck e as de seu próprio avô, a quem tanto admirava. Finalmente, em meados do século XIX, havia bases científicas – 275 –
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para compor resistência contra teses deterministas e antievolucionistas que insistiam em permanecer nos ciclos acadêmicos e nas instituições religiosas que mantinham suas estruturas econômicas convencendo seus séquitos de verdades teológicas metafísicas e mágicas demais para o novo pensamento científico materialista. No caso de Marx e Engels, por exemplo, a luta lu ta de classes estava salva como conceito científico. Ainda que não concordassem com Darwin de um modo geral, os socialistas alemães saudaram A Origem Ori gem das Espéci Esp écies es (1859), de Darwin, por ter aparecido no mesmo ano de Para a Crítica da Economia Política (1859). A luta entre classes seria uma lei da história, assim como a seleção natural das espécies era uma lei da biologia. Assim como apenas as espécies mais adaptadas sobreviveriam, apenas o proletariado seria capaz de vencer a luta evolucionária na senda da contínua transformação e aprimoramento das sociedades políticas (MARX, 1983, p. 371-4). Ainda que a base teórica teóric a de Marx fosse um filosofia filosofi a crítica crític a (o materialismo histórico e dialético), o evolucionismo acrítico darwiniano poderia servir como mais uma frente reforçadora das teses de luta de classes e do sucesso da revolução operária sobre os “burgueses “bur gueses capitalistas”. A seleção natural e a possibilidade de que os homens fossem acumulando variações, mudanças e possibilidades apenas fortalecia a tese da inevitabilidade da história, uma vez que a contínua transformação de todas as formas vivas era a lei da natureza, assim como a lei da história. Ricos e pobres seriam, ambos, forças adaptadas e em constante processo de adaptação (e luta). Ganharia o lado mais adaptado às condições de sobrevivência. Marx não tinha dúvida quanto à vitória histórica da classe trabalhadora sobre as classes proprietárias. 12.2.4 Uma nova Antropologia social O esvaziamento dessas disputas e a realocação da Europa como um projeto incompleto, suscetível, mas em franca evolução e adaptabilidade, feito por Darwin, recolocou o problema de representação do lugar do outro (não europeu) no imaginário e nos planos de formação da mentalidade do novo sujeito do conhecimento. – 276 –
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Já em meados do século XIX, a Europa empreendia um ritmo acelerado de abertura de liceus, escolas e universidades públicas e, por consequência, aconteceu a ampliação da alfabetização das populações mais empobrecidas nas cidades europeias (CAMBI, 1999, pp. 498-501). Lembremo-nos de que esses resultados modernizantes eram fruto de uma democratização forçada, exigida pelo sistema industrial que alimentava um ciclo de enriquecimento e manutenção de poder político e econômico nas cidades europeias mais desenvolvidas.
Shirley (1987, p. 3-7) nos ajuda a entender que a Antropologia foi uma invenção de britânicos, franceses e holandeses que, desde tempos remotos, já prestavam prest avam mais atenção no comércio c omércio do d o que na religião. rel igião. Alguns A lguns dos mais destacados antropólogos do século XIX, como Tylor, Morgan e Frazer, eram provenientes desses países. A Antropologia foi uma ciência surgida por necessidade do Império vitoriano. O professor Shirley lembra-nos, com precisão de fonte documental, que muitos administradores, fossem governadores ou encarregados diretos de expedições a colônias inglesas, foram os responsáveis por estudos acadêmicos muito completos sobre suas possessões. Talvez Talvez os grandes exemplos sejam o de Sir Stamford Raffles, que fundou a cidade de Cingapura e produziu um inigualável estudo sobre a história e sociedade da ilha de Java. Os chamados “imperialistas eruditos” existiram às centenas. Dica de Filme
O filme Lawrence da Arábia é baseado na biografia de T.E. Lawrence descrita no seu livro Sete Pilares da Sabedoria. Assista ao filme para conhecer mais sobre esse famoso antropólogo, imperialista e erudito.
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Ásia, África, África, Nova Nova Zelândia, Zelândia, Austrál Austrália ia e Índia Índia passaram passaram rapidamente rapidamente a ser habitadas por administradores, e não mais por missionários, naturalistas ou via jantes. jantes. Como já dissemos, o “selvage “selvagem m” seria substituído substituído definitivament definitivamentee pelo “primitivo”, primitivo”, uma espécie de elo perdido da humanidade. A descrição detalhada da vida desses primitivos e tudo mais relacionado aos seus modos de existência, passam a constituir as matérias de etnologia comparada, biologia, psicologia, economia, história e política nas grandes universidades europeias. O projeto totalizador da Antropologia, sustentáculo filosófico dos Impérios Europeus, instruiu as sucessivas gerações de universitários – que ansiavam por respostas cientificas a questionamentos que antes eram respondidos por metafísicas religiosas, pela literatura fantástica ou por sistemas filosóficos abstratos.
O trabalho antropológico, que informou continuamente o novo império mundial, não conseguiu esconder o impacto negativo das dominações territoriais. Além Além disso, disso, a public publicaçã açãoo dos estudos estudos erudito eruditoss sobre sobre as “socied sociedade adess primit primitiva ivass” suscitou crítica e contraposição ativa às políticas imperiais da Europa, por parte de segmentos mais intelectualizados e críticos dos principais países.
12.3 Refundações na educação etnográfica do olhar Bastariam apenas duas décadas desde o fortalecimento do Imperialismo oitocentista para que toda a geração de “pais fundadores” da Antropologia fosse denunciada e criticada por seus mais proeminentes alunos. Já na virada do século XX, isso ficou bem claro na atuação atuação de brilhantes brilhantes pensadores pensadores e etnógrafos etnógrafos como Franz Boas e Bronislaw Malinowski, que constituíram o fundamento de uma nova e disputada forma de ver e anunciar a experiência humana. 12.3.1 O nativo e o fim da divisão do trabalho antropológico
Há um detalhe sobre o movimento geral da antropologia do século XIX que não podemos deixar deixa r passar passa r despercebid despe rcebido. o. Trata-s Trata-see do fato de que – 278 –
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o olhar sobre o outro, “incivilizado, primitivo, atrasado”, era, basicamente, moldado por uma espécie de divisão social do trabalho 11 antropológico. Assim, Assi m, aquele que escrevia escrevi a os grandes grand es tratados tratad os de Antropologia Antropo logia não necessariamente era aquele que coletava as informações diretamente no campo pesquisado: aquele que coletava as informações em campo, geralmente através de fotos e a aplicação de inquéritos intermináveis, não precisava ser o mesmo profissional contratado para sistematizar e preparar os dados coletados em campo para serem enviados ao antropólogo. Dessa forma, a Antropologia surgiu como uma disciplina rigorosamente ri gorosamente assentada em uma sociedade industrial. Então, passou a haver três nomenclaturas, três profissões e três status: o antropólogo trabalhava em seu gabinete; o etnólogo, em seu escritório; e o etnógrafo, com sua prancheta, papel, caneta e uma máquina de fotografia pendurada a tiracolo. O ofício do antropólogo era o de maior prestígio, pois representava o trabalho final, geralmente assinado pelo chefe de uma pesquisa. Mas havia outros postos de trabalhos associados à atividade fim da Antropologia. Em uma dimensão imediata, vinculada com a pesquisa direta de dados, estava o etnógrafo, pessoa responsável pela aplicação em campo dos questionários produzidos a priori na Europa. A aplicação de infindáveis inquéritos, porém, produzia absurdos na deturpação dos contatos entre europeus e nativos (selvagens ou primitivos). Não raro, ficava encarregado disso um pesquisador local, um funcionário de baixa patente, pago para ajudar na administração de uma colônia e dar conta de produzir informações sistematizadas sobre a cultura local. O mesmo se pode dizer do trabalho de organização e sistematização das informações coletadas. Para isso, entrava em cena o etnólogo, ou o técnico de gabinete local, que geralmente fazia seu trabalho, ainda que no mesmo campo de coleta de dados, mas totalmente desconectado da necessidade de abordar qualitativamente os dados dos inquéritos. O etnólogo, como um organizador de dados, era o responsável por produzir dados estatísticos para o antropólogo chefe escrever a “verdadeira “verdadeira”” história de uma civilização. Sir James Frazer e o seu monumental O Ramo de Ouro (1890-1915), obra publicada em treze volumes e admirada por socialistas, anarquistas e 11 Divisão social do trabalho é o processo de crescente particularização da produção de mercadorias. A especialização técnica e a segmentação profissional na indústria ou no comércio é o melhor exemplo.
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aristocratas burgueses, talvez seja o melhor exemplo dessa circunstância comum à época do surgimento da Antropologia como ciência social, em fins do século XIX. O professor Frazer pretendeu abarcar nada menos que a totalidade da vida cultural e simbólica da realeza sagrada em geral localizada em diversas culturas, de diversas regiões. O fato de nunca ter visitado qualquer civilização estudada para realizar estudos originais de campo provocou contínuas reflexões por parte de simpatizantes e antipatizantes da obra desse importante estudioso (FEDOSSEIEV, (FEDOSSEIEV, 2007, p. 68-70). A divisão social do trabalho trabal ho do antropólogo antropól ogo fez com que novas gerações geraç ões de estudiosos da cultura despertassem para os perigos da profissão que tanto os encantava. A perspectiva evolucionista centrava-se exageradamente na ideia de “atraso” do povo primitivo em relação à primazia da elevação das sociedades ditas civilizadas. Ainda assim, tal “atraso” não desconectaria os povos primitivos da humanidade. Ao contrário, os povos primitivos passariam a ser vistos como elos ancestrais da humanidade. A gratidão dos europeus por esses povos foi demonstrada ao clássico modo do paternalismo imperial. Uma vez descobertos os elos ancestrais que explicariam por que as coisas aconteceram de determinada forma, algum tipo de recompensa deveria ser dada a esses povos primitivos colaboradores. E a melhor forma de fazê-lo seria acelerando o seu processo de evolução. Para isso, tão bons tutores não somavam esforços para ensinar aos nativos de qualquer possessão os modos de um civilizado. Saiba mais
Podemos ver, em Tarzan e Mogli, exemplos de mitos que expressam o sucesso da salvação do selvagem da sua condição de bestiário. Vemos, Vemos, através das histórias desses personagens, a pedagogia evolucionista escancarada em sua plena manifestação “antropo-euro-cêntrica”. A heroicidade desses personagens não dissolve, contudo, a percepção de que são “selvagens” e “primitivos” em sua essência.
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Lembremo-nos de que a abordagem do primitivismo, tão cara à antropologia, tinha base evolucionista comum a quaisquer outras ciências sociais e humanas tão novas quanto a própria antropologia. Alguém como o psicólogo francês Gustave Le bon (1841-1931), ou mesmo o psicanalista austríaco Sigmund Freud (1856-1939), podia formular teses evolucionistas sobre a psicologia das massas sustentando “cientificamente” que as multidões são instáveis, superficiais, exageradas e efêmeras (CONSOLIM, 2004, p. 6-8). Laplantine (2007, p. 71), com justiça, nos recorda que não devemos julgar os evolucionistas pela sua mentalidade mais ou menos conservadora. Nem devemos julgar se suas teses ajudaram a consolidar os sistemas de dominação imperial colonialista do século XIX. A teoria evolucionista era voga naquela época e causou grande impacto em amplos círculos de intelectuais, como já nos referimos anteriormente. Nem todos os autores que produziram obras importantes sobre culturas exógenas à Europa eram antropólogos de fato, muitos eram juristas, outros médicos ou geógrafos. O fato a ser notado é que o contexto histórico em que se inseriram lhes permitiu fazer o que fizeram. E os seus sentimentos de contribuição à grande mãe Europa e à humanidade foram, muitas vezes, justificados pelo modo festivo e honroso como eram tratados tais teóricos. Seus compromissos civis e aristocráticos lhes permitiam atuar com a sincera determinação de coletar, sistematizar e formular teses universalistas, confirmadas por vínculos aprioristas , ou seja, teses, e não hipóteses, formuladas como verdade antes das pesquisas práticas que deveriam validá-las. Isso significa afirmar que a confiança na interpretação dos elos perdidos da humanidade dependeria mais da destreza intelectual do chefe da pesquisa do que da qualidade do material coletado em campo. 12.3.2 A aventu aventura ra da Antropologia funcionalista A chave chave que abriu a Antropologi Antropologiaa para o estudo de uma determinada determinada cultura a partir de suas próprias bases estava nas mãos de Franz Boas (18581942), um americano de origem alemã, e de Bronislaw Malinowski (18841942), um polonês radicado na Inglaterra. As posturas pos turas desses desse s pesquisad pesq uisadores ores foram fo ram inversas in versas às de seus professores. profess ores. O primeiro procedimento que realizaram, ainda ai nda que não intencionalmente, foi acabar com a divisão social das tarefas em Antropologia, que antes colo– 281 –
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cava o antropólogo em gabinetes confortáveis na Europa, completamente separado dos etnólogos e etnógrafos. Com esses pesquisadores, tal separação foi abolida. Para eles, seria uma obrigação moral do antropólogo realizar as três tarefas: ele próprio deveria coletar as informações, tratá-las e traduzi-las em contextos analíticos mais elevados. Assim, aquele que escolhesse fazer antropologia deveria ser também o etnólogo e o etnógrafo. É interessante notar que, ao assumir tal postura profissional e científica, o antropólogo estaria se comprometendo com uma mudança radical de procedimentos que ia muito além e mais fundo do que tal fusão sugere. Em campo, dizia Malinowski, o antropólogo não deve mais tratar os habitantes pesquisados como selvagens ou primitivos, mas como anciões que receberiam os antropólogos como visitantes temporários (LAPLANTINE, 2007, p. 75-76). A antropologia estava sendo convidada a deixar o gabinete e, literalmente, se transformar em uma atividade ao “ar livre”. Os “selvagens” ou “primitivos” “primitivos” não mais seriam interpretados por funcionários do Império Britânico e registrados no idioma do império, mas escutados na sua própria língua ou idioma por etnógrafos que falassem a sua língua e vivessem o mais próximo de seus modos de vida cotidianos. Passar um bom tempo, geralmente meses ou anos, entre os habitantes pesquisados tornou-se praticamente uma regra de conduta para essa Antropologia totalmente renovada.
Tal olhar antropológico aplicado à educação, certamente, resultaria em notável alteração no modo como jovens e crianças poderiam ser vistos e trabalhados fora e dentro de sala de aula. Cada criança seria reconhecida em sua natividade que, de dentro de sua microssociedade, a sala de aula, teria a autoridade legítima de manter em seus domínios um convidado muito educado e agradecido – o professor.
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A antropologia, na sua etapa anterior, anterior, era evolucionista de um modo que refletia em suas bases a mesma atmosfera evolucionista que perpassava praticamente todos os domínios de produção de conhecimento na Europa em fins do século XIX. O lugar da criança e do jovem, nessa abordagem evolucionista, era similar, como já mostramos, ao modo como os “primitivos” ou as multidões eram, geralmente, retratados: como seres imaturos, que deveriam ser tutelados e conduzidos ao caminho do desenvolvimento e da aprendizagem por sistemas de saberes, notadamente masculinizados e autoritários. Com Malinowski, Boas, Rivers, Radcliffe-Brown, Evans-Pritchard e outros da mesma geração, a atmosfera metodológica passava pela aplicação do funcionalismo em todos os campos de conhecimento das ciências sociais e humanas e, evidentemente, na educação. O funcionalismo foi uma abordagem que privilegiava a compreensão da totalidade de um campo de pesquisa que se realizava a partir do estudo das funções sociais existentes. Entender a função social do parentesco, dos rituais, do direito indígena, por exemplo, resultaria em uma preocupação, por parte do antropólogo, em estudar a fundo a lógica de operação interna de um sistema, e não mais estudá-lo para tão somente reforçar preconceitos e validar teses aprioristas.
Dentro do contexto educacional, uma abordagem funcionalista tenderia a constituir pedagogias fundadas em um com prometimento dos professores e funcionários de uma escola com as classes de alunos, tendo por referencial o respeito pela visão de mundo desses sujeitos. Em relação ao apriorismo, determinismo e geneticismo evolucionistas, encontramos, no funcionalismo da primeira metade do século sé culo XX, um salto, uma verdadeira transformação reveladora, mais aberta, mais isenta de julgamentos, mais circunstancial, mais orgânica e integradora e mais atenta aos sujeitos pesquisados.
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Ainda assim, o funcionalismo foi uma corrente tão datada e criticada quanto o evolucionaismo. 12.3.3 O olhar etnográfico de Franz Boas Franz Boas
O professor Franz Boas apresentava uma particularidade: era um homem de campo, um etnógrafo no sentido clássico do termo, mais do que um antropólogo. Preferiu viver entre os nativos do que se beneficiar do prestígio da academia. Boas publicou alguns importantes livros, como A Mente Mente do Homem Homem Primitiv Primitivo o (1911), Antropolo Antropologia gia da Vida Modern Modernaa (1928) e Raça, Linguagem e Cultura (1940). No entanto, escrever livros não era o seu objetivo final. Como etnógrafo, gostava mesmo era da pesquisa em campo – Boas estava profundamente comprometido com a demonstração da importância de se pesquisarem microssociedades como totalidades.
Outra peculiaridade do pensamento e método de Franz Boas está relacionada à sua preocupação em não permitir que o olhar da metrópole invadisse ou maculasse a qualidade da cultura nativa que fosse pesquisada. Assim, o antropólogo, durante o estágio de trabalho de campo, deveria cortar completamente a sua comunicação com a Europa ou os Estados Unidos, produzindo, desse modo, um efeito de isolamento e purificação das “contaminações” decorrentes dos vícios do “mundo civilizado” (LAPLANTINE, 2007, p. 78-79). Como frisamos antes, falar, comer e pensar como o nativo do lugar era uma preocupação das mais caras para essa geração de antropólogos. O professor Boas era meticuloso e possuía muitos assistentes para o trabalho de etnografia e de etnologia. Como o professor Franz Boas gostava de colecionar, classificar e arquivar artefatos materiais e imateriais da cultura em que estivesse inserido, era necessário que tivesse uma equipe grande com a qual pudesse contar para dar conta da tarefa. – 284 –
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O Professor Franz Boas possuía arquivos que continham extensas coleções. Sua esperança, ao usar esse procedimento, passava pela crença de que, se houvesse uma dizimação da humanidade, por exemplo, a reconstituição fiel de culturas humanas poderia ser feita a partir da correta reorganização dos artefatos que comporiam a totalidade de uma microssociedade (PEREIRA, 2011, p. 104-105). 12.3.4 Malinowski e o aprendizado radical com o nativo
Bronislaw Malinowski
A meticulosidade do professor Franz Boas suscitou críticas por parte de colegas de profissão. Por exemplo, o antropólogo social polonês Bronislaw Malinowski considerava um exagero tamanha criteriosidade de coleta de dados. Para Malinowski, era suficiente localizar, em meio à cultura pesquisada, um elo comum a que todas as outras estruturas e fenômenos culturais pudessem estar associadas. Com Malinowski, consolidava-se o funcionalismo antropológico feito sob bases de minuciosa pesquisa etnográfica. Malinowski foi quem radicalizou a experiência de ruptura entre a metrópole e as colônias. Sua expectativa, durante duas longas passagens pelas ilhas Trobriand, na Melanésia Central, era conhecer a mente do nativo para descobrir em profundidade o modo como o outro pensava (MALINOWSKI, 1978, p. 16-19). E por isso, melhor do que qualquer um de sua geração, esforçou-se em apreender seus sistemas de crenças e comunicação no cotidiano da pesquisa de campo a partir dessas habilidades de viver em meio a tribo ou comunidade, tendo como suporte o compartilhamento do mesmo idioma e da pesquisa não comparada. Para Malinowski, não importava a história de uma tribo, mas sua condição no momento em que estava sendo pesquisada. Esse detalhe metodológico, anunciado no prefácio de sua obra magna Os Argonautas do Pacífico Ocidental (1922), arrasaria de vez as gastas teses evolucionistas que relacionavam o atraso das sociedades primitivas a um tipo – 285 –
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de incompetência genética ou adaptativa que as impossibilitava de seguir o ritmo das sociedades civilizadas. O historicismo evolucionista, que subjugava as complexas culturas humanas espalhadas pelo globo, não resistiu à análise funcionalista de Malinowski. Os Argonautas do Pacífico Ocidental foi a obra em que o método
malinowskiano apareceu em seu maior esplendor. O etnógrafo polonês utilizou um fenômeno econômico e social, o Kula, para explicar a totalidade da vida cultural dos trobriandeses. O Kula, detectou Malinowski, era o evento mais importante dos habitantes das ilhas Trobriand, Trobriand, a ponto de tudo naquelas sociedades refletir os preparativos para esse grande ritual anual de trocas, inclusive as relações de parentesco, as relações de dominação e de reprodução cultural. A radicalidade radicalidade metodológic metodológicaa de Malinowski Malinowski aplicada aplicada à Educação Educação nos sugeriria um maior isolamento entre o centro da investigação (no caso, a sala de aula ou a escola) e o seu entorno (o Estado). Malinowski tenderia a investigar o modo como as relações de ensino e aprendizagem se estabeleceriam desde uma de suas formações simbólicas principais. Por exemplo, como a comunidade escolar ou as crianças em uma sala de aula se relacionam a partir do momento mais importante do ano escolar. Supondo que sejam as férias de final de ciclo, o professor Malinowski estudaria, na linguagem da escola, o amplo conjuno de rituais e processos simbólicos que surgiriam tendo por base os preparativos para esse evento significativo. Eis o funcionalismo etnográfico de Malinowski em uma conexão com um sugerido campo de pesquisa em Educação.
Síntese Neste capítulo, realizamos algumas aproximações entre o pensamento socioantropológico dos clássicos e o campo da Educação. Ao tratarmos dos grandes temas que atravessaram o século XIX e o início do século XX, estudamos temas que foram decisivos para a instalação de uma sociedade do tipo industrial como a nossa. Procuramos deixar evidente que as principais teorias sociológicas e antropológicas reproduziram e alimentaram um amplo conjunto de compreensões sociais, políticas e culturais. O evolucionismo e o – 286 –
Sociologia e Antropologia para a Educação
materialismo foram concepções filosóficas e científicas experienciadas e discutidas por praticamente todos as novas ciências da sociedade, inclusive a própria Educação. No final do século XIX, o centro das novas concepções científicas sobre a sociedade ainda era o homem, como indivíduo e como humanidade. No entanto, a partir do início do século XX, uma profunda crença na diferença entre esses homens os manteve, em uma perspectiva, na condição de civilizados, desenvolvidos, evoluídos e, em outra, na condição de bárbaros, involuídos, inadaptados. Esse homem que se via como civilizado e bárbaro ao mesmo tempo procurou de todos os modos possíveis sustentar s ustentar o seu plano de positividade e de poder através de variadas práticas de dominação. A racionalidade teológica e as monarquias foram trocadas pela razão de Estado e pela ciência. As antigas oficinas e o sistema medieval de produção, o domus 12, foram trocados pela indústria e pela fábrica como modelo de organização social e institucional. O século XIX, momento em que foram instituídos os fundamentos “científicos” para explicar a própria humanidade, foi o tempo em que nos manifestamos mais voraz e competitivamente sobre a face da terra. Contudo, o mundo ocidental, desesperado pela defesa da visão masculina sobre todas as coisas, não conseguiu sustentar tal projeto. Através das visões trazidas por etnógrafos como Boas e Malinowski, e por sociólogos como Marx, Durkheim e Weber Weber,, parte da humanidade, reduzida aos interesses do capital econômico e ao auto-centramento individualista, teve a oportunidade de experimentar sua própria auto-compreensão e formular ações de enfrentamento e liberação. O resultado desse clamor não tardaria a lançar pistas. O século vinte foi o palco desses anseios de liberação e as guerras e revoluções a sua violenta manifestação estética.
12 Domus é a denominação greco-romano para um tipo de residência comum que abrigava moradia, hospedaria e pequenos comércios e oficinas. Fórmula resistente de organização econômico-social pré-industrial que predominou até meados do século dezoito.
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