Camponeses do Brasil entre a troca mercantil e a reciprocidade
Garamond Universitária
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Conflitos e Uso Sustentável dos Recursos Naturais Suzi Huff Theodoro (org.)
Amazônia – Dinamismo econômico e conservação ambiental
O Amapá nos Tempos do Manganês
Elimar Pinheiro do Nascimento e José Augusto Drummond (orgs.)
José Augusto Drummond e Mariângela de Araújo Póvoas Pereira
Eric Sabourin
Camponeses do Brasil entre a troca mercantil e a reciprocidade
Traduzido do francês por
Leonardo Milani
Copyright © 2009, Eric Sabourin Título original: Paysans du Brésil, entre échange marchand et réciprocité Publicado por Editions QUAE, Versailles, 2007 Direitos cedidos para esta edição à Editora Garamond Ltda.
Rua da Estrela, 79 – 3º andar CEP 20251-021 – Rio de Janeiro – Brasil Telefax: (21) 2504 -9211 e-mail:
[email protected] website: www.garamond.com.br Preparação de originais e revisão Carmem Cacciacarro Projeto gráfico e capa Estúdio Garamond / Anderson Leal Fotografia da capa Patrick Caron
Esta publicação foi financiada com o apoio do Ministério de Assuntos Exteriores da França, mediante o Serviço de Cooperação e Ação Cultural da Embaixada da França no Brasil e do CIRAD (Centro de Cooperação Internacional em Pesquisa Agronômica para o Desenvolvimento, Montpellier, França).
Todos os direitos reservados. A reprodução não-autorizada desta publicação, por qualquer meio, seja total ou parcial, constitui violação da Lei nº 9.610/98.
Dedico esse livro a Nilana, filha de camponeses da Bahia que faz frutificar no nosso lar e junto aos nossos amigos o sentido da vida e os valores herdados da sua família.
Agradecimentos
Agradeço a Dominique Temple pelos seus conselhos e pela leitura do manuscrito em francês, pois a minha abordagem metodológica inspira-se em parte no seu trabalho de construção da te oria da reciprocidade. Agradeço também a Maxime Haubert, Jean Pascal Pichot, Jean Marie Legay, Christine Rawski,
Martine Seguier-Guis, Emilie Coudel e Jean Philippe Tonneau, pela contri buição na revisão do texto em francês. Agradeço a Leonardo Milani pelo esforço de interação na tradução para o português, a Carmen Cacciacarro pela revisão técnica, a Anderson Leal pelo projeto gráfico e ao editor Ari Roitman. Fico grato pelos encorajamentos da professora Maria de Nazareth Baudel Wanderley e do professor Marcel Burstyn para a realização da edição em português. Agradeço o apoio dos Serviços de Cooperação Técnica e Científica da Embaixada da França no Brasil pelo co-financiamento desta edição junto ao CIRAD. Sou grato a Patrick Caron pela fotografia da capa, assim como pelas andanças em comum entre os camponeses do Brasil. Finalmente, testemunho minha gratidão pela paciência e a colaboração das
camponesas e dos camponeses do Brasil com quem tive a honra e o prazer de conversar, trabalhar e pesquisar desde 1990 até hoje.
Sumário
Prefácio à Edição Brasileira
13
Prefácio à Edição Francesa
17
Introdução
21
Comunidades Camponesas e Organização Social da Produção 1. As evoluções de uma agricultura camponesa
29
29
1.1. Origens da agricultura camponesa e familiar 29 1.2. Os camponeses invisíveis diante das políticas 40 2. Comunidades camponesas e reciprocidade
2.1. Comunidade e reciprocidade 48 2.2. Ferramenta: a teoria da reciprocidade
48
55
3. Duas instituições estruturantes da reciprocidade
3.1. A ajuda mútua agrícola 63 3.2. O manejo dos recursos comuns
69
As Organizações dos Agricultores 1. Movimentos sociais e organizações
63
79
1.1. A diversidade das organizações profissionais 80 1.2. Principais formas de organização camponesa 83
79
1.3. Ferramenta: os modos de coordenação da
ação coletiva, segundo Ostrom
91
2. Líderes, mediadores e “pontes”
97
2.1. Retrato de um líder camponês 98 2.2. Novos mediadores ou novas tutelas?
105
3. Organizações de agricultores e reforma agrária
3.1. As oportunidades desperdiçadas 112 3.2. Tensões entre lógicas familiares e coletivas
112
132
Políticas Públicas e Ações Locais
143
1. Limites e repetições das políticas de desenvolvimento rural 143
1.1. Continuidade e evolução das políticas públicas 144 1.2. Abordagem territorial do desenvolvimento rural 152 2. Interações entre ação coletiva e ação pública
167
2.1. Origens, ganhos e dificuldades 167 2.2. Resultados e perspectivas destas interações
173
3. Reconhecimento público dos dispositivos coletivos dos agricultores
176
3.1. Dois casos de co-construção de instrumentos de políticas públicas 3.2. Organizações camponesas e política de
177
multifuncionalidade da agricultura
186
Mudança Social e Mudança Técnica 1. Trajetórias e dispositivos de inovação
193
194
1.1. O contexto do agreste da Paraíba 194 1.2. Diagnóstico do sistema local de conhecimento e de inovação 1.3. A inovação invisível 205 2. Construção da inovação em parceria
212
2.1. As interações entre agricultores e agrônomos 213 2.2. Os grupos de agricultores experimentadores 218 3. Aprendizagens, formação e intervenção
228
3.1. A Universidade Camponesa do Cariri – Paraíba 3.2. A formação dos jovens oriundos da reforma agrária em Unaí (MG) 234 3.3. Aprendizagem coletiva e reciprocidade 238
229
197
Economia Camponesa, Economia de Reciprocidade 247 1. Papel econômico das redes sociais
248
1.1. Organização, capital social e custos de transação 1.2. Redes e circuitos de comercialização 253 2. Economia e solidariedade
257
2.1. Economia solidária no meio rural 258 2.2. Ferramentas: os fundos de crédito solidário 3. Mercados e reciprocidade
250
263
266
3.1. Diversidade da articulação com os mercados 268 3.2. Os mercados agroecológicos na Paraíba 272
Conclusões: Troca e Reciprocidade 1. Agriculturas camponesas e práticas de
reciprocidade e redistribuição
278
2. Valores de reciprocidade e valores de t roca
282
3. Políticas públicas: que formas de articulação
entre troca e reciprocidade?
285
3.1. Transferência de renda 285 3.2. Políticas de transferência ou de dependência? 3.3. O clientelismo político no Brasil 289
288
4 . Interações entre reciprocidade e troca para
o desenvolvimento rural 292
4.1. Reciprocidade e valores humanos 292 4.2. Valores humanos e bem comum 295
Bibliografia
297
Lista de Figuras, Quadros e Tabelas Lista de Siglas
327
323
277
Prefácio à Edição Brasileira
Os fatos que recordamos aqui confirmam a existência de camponeses no Brasil, não somente em termos de categoria política, mas também de categoria social e sociológica.
Esta afirmação constitui o eixo central das análises apresentadas por Eric Sabourin em seu livro. Para formulá-lo, o autor precisou enfrentar uma “ima-
gem economicamente falsa e politicamente construída da realidade agrícola do Brasil”, que nega a existência de um campesinato na história e na contemporaneidade da sociedade brasileira, ou o percebe como uma parcela de produtores tecnicamente atrasados, socialmente rudes, politicamente inex pressivos, sem lugar, portanto, num projeto de modernização. Esta imagem opaca do campesinato brasileiro é veiculada por correntes de pensamento que expressam as mais variadas mat rizes político-ideológicas. Esquerda e direita
aqui se confundem, em nome de uma certa ideologia do progresso que, no entanto, assimila sem sobressaltos a concentração latifundiária da propriedade da terra, a super-exploração do trabalho agrícola e a destruição do patr imônio
ambiental pela utilização predatória dos recursos naturais. Para essas correntes, a palavra “camponês” é confinada como uma categoria política, mas esta também é rapidamente rejeitada, sob o argumento de
faltar-lhe substrato de realidade. Em contraposição, Eric Sabourin oferecenos a chave para a compreensão da “presença de caracter ísticas camponesas fortes” na sociedade brasileira ao estruturar sua argumentação em torno da permanência de “lógicas camponesas” de resistência e de reprodução. Lógicas de resistência e de reprodução, antes de tudo, para responder às situações de acesso precário e insuficiente aos recursos produtivos, especialmente a terra e a água. Trata-se de uma singular experiência de gestão da fertilidade destes recursos, di retamente potencializada pelo trabalho, que, por
esta razão, é sempre coletivo, no interior da família e da comunidade local. Lógicas de resistência e de reprodução, igualmente, para fazer face à restrita
disponibilidade de recursos monetários e às exigências dos mercados nos quais estão, indiscutivelmente, inseridos.
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ERIC SABOURIN
Considerar o camponês um exclusivo produtor para sua própria subsistência seria amputar a dimensão mercantil da sua atividade econômica, da qual não escapa (imposição do mercado) e que é por ele valorizada (desejo de inserção). Contudo, não basta afirmar sua presença nos mercados capitalistas ou as tentativas mais ou menos bem-sucedidas de participação nas chamadas cadeias produtivas; é preciso qualificá-la. Neste caso, a vinculação mercantil
não se orienta em função da remuneração de um capital. O que está em jogo é a sobrevivência da família pela construção/reprodução do patrimônio familiar possível, no presente e no futuro, e d a própria comunidade camponesa.
Com este objetivo, os resultados da produção seguem destinos diversos, porém complementares: “autoconsumo, dons e redistribuições interfamiliares, prestações recíprocas de sementes, alimentos e pequenos animais” e, claro, “a venda para diversos tipos de mercado”. Eric Sabourin formula o princípio explicativo da reprodução camponesa no Brasil em termos de uma interface, uma articulação dialética entre as implicações da troca mercantil e as práticas de reciprocidade. Autores clássicos como Marcel Mauss e Karl Polanyi e os contemporâneos D. Temple, A.
Caillé, M. Chabal, J. Godbout, A. W. Gouldner inspiram, entre tantos outros, esta leitura original e de grande densidade teórica. A teoria da reciprocidade ilumina as práticas de solidariedade prevalecentes nas famílias e comunidades camponesas que ele estudou, particularmente na
Paraíba, fazendo aflorar sob um novo ângulo experiências como as de ajuda mútua e a utilização coletiva de fundos de pastos, não como reminiscências de um passado em extinção, mas como formas atualizadas de construção da vida social. Para além da solidariedade que se mani festa ao nível real, da pro-
dução e da partilha de bens, há a registrar aquela de natureza propriamente simbólica, que a complementa e dá sentido à construção de uma identidade coletiva, expressa nos sentimentos de pertencimento, na partilha e transmissão dos saberes e na adesão a valores humanos compartilhados. A estas “regras ancestrais de reciprocidade camponesa”, Eric Sabourin acrescenta, em sua análise, outras formas de organização, adequadas ao exercício de novas funções, no que se refere à condição profissional – sindicatos –, às relações com o mercado – cooperativas – e ao acesso mais amplo a bens e ser viços – associações. A participação dos camponeses nessas “redes
sociopolíticas e sociotécnicas” favorece “a atualização da dinâmica da ex pansão da reciprocidade”. É neste campo, igualmente, que se pode perceber com mais nitidez os laços sociais que os camponeses constroem, para além do espaço estritamente local, com a sociedade em seu conjunto, através dos quais reafirmam sua própria condição de cidadãos. Mas é nele, igualmen-
CAMPONESES DO BRASIL
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te, que se manifestam as tensões e os conflitos que afetam as posições e as práticas do Estado – pela via das intervenções das políticas públicas – e dos diversos movimentos sociais, representantes de segmentos dos trabalhadores, de agricultores sem terra e de pequenos camponeses. Por desconhecer ou desconsiderar a natureza profunda do campesinato tal como Sabourin a apresenta, alguns destes “mediadores” assumem a bandeira – na verdade, bandeiras, pois são distintas entre si – de uma certa coletivização, que se sobrepõe à centralidade da família e que frequentemente mais se assemelha a uma reprodução tutelada do que à afirmação da autonomia camponesa. É forte a conclusão do autor a esse respeito: “No Brasil como no resto do mundo,
os agricultores assentados confirmam que um projeto de produção coletiva que torne anônimo o trabalho individual não faz sentido na agricultura”. A intervenção do Estado, que nas últimas décadas tem se voltado, sem dúvida de forma positiva, para o apoio à agricultura fami liar, particularmente através do Pronaf, termina, também, por fazer referência a um modelo de agricultor no qual prevalece a dimensão mercantil, através da ê nfase à política de crédito, modelo longe de corresponder ao perfil do conjunto dos camponeses,
sobretudo os do Nordeste. Na verdade, esta é uma questão em debate – não só no interior dos movimentos sociais e associações de ag ricultores, mas tam-
bém dentro das próprias instituições governamentais – que vem produzindo consequências práticas. Para Eric Sabourin, as transformações introduzidas mais recentemente nas políticas públicas se inspiram em concepções alterna-
tivas do desenvolvimento rural, comunitário, sustentável, territorial. Apesar dos vários fatores que limitam os impactos destas abordagens, parece claro que delas emerge “um processo de diálogo e de coordenação” que resulta no “reconhecimento público dos dispositivos coletivos dos agricultores”, que têm
a marca da multifuncionalidade e da reciprocidade. Neste contexto, os dispositivos da assistência técnica e da inovação merecem uma atenção toda especial, pois a este tema é dedicado todo o quarto capítulo do livro. Privilegiando a dimensão metodológica, Eric Sabourin debruça-se sobre as experiências por ele vividas em diversas comunidades camponesas da Paraíba e constrói, a partir delas, categorias analíticas que dão conta da diversidade e complexidade das configurações e redes sociotécnicas. À frequente invisibilidade da inovação camponesa, o autor contrapõe a necessidade de descobri-la e construí-la de forma interativa, o que resultou, nos casos analisados, na constituição dos grupos de agricultoresexperimentadores e nos programas de formação, a exemplo da universidade camponesa do Cariri. As relações entre trocas mercantis e práticas de reciprocidade se mani-
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ERIC SABOURIN
festam, em muitos casos, sob a forma de uma “hibridização”, pela qual a participação dos camponeses nos distintos mercados é diretamente marcada por laços de proximidade e impregnada de valores de solidariedade que se expressam, teórica e praticamente, pelas concepções de capital social e economia solidária. Em suas conclusões, o autor retoma a hipótese inicial, ao reiterar a existência de uma agricultura camponesa que mantém com o mercado capitalista
uma tensa relação de autonomia e que atualiza, permanentemente, no plano material e simbólico, estruturas de reciprocidade. Oposta a uma produção centrada no autoconsumo, a economia camponesa é articulada, interna e externamente, pelas próprias formas de produção, ao mobilizar as forças sociais
e os valores das comunidades locais e se apresentar como um caminho para a inclusão social. “Como produzir mais integração do que exclusão? Como produzir a inclusão a partir de valores humanos éticos universais?” Este é o grande desafio que devem enfrentar movimentos sociais, associações e poderes públicos ao pensar o desenvolvimento rural. Longe de pretender dar conta de toda a riqueza e profundidade do est udo apresentado neste livro, minha intenção foi recortar as principais questões trabalhadas para, com isso, aguçar o interesse dos leitores. Eric Sabourin certamente encontrará os seus, sobretudo entre os intelectuais, pesquisadores do mundo rural brasileiro, formuladores de políticas e programas de intervenção para o desenvolvimento rural, militantes das instit uições representativas dos
agricultores e os próprios camponeses. De nacionalidade francesa, pesquisador do CIRAD, ele veio trabalhar no Brasil, sucedendo e antecedendo tantos outros da sua instituição, todos com a mesma competência profissional e engajamento social. Tornou-se afetivamente um brasileiro, pela sua capacidade
de compreender o Brasil e de se comprometer pessoalmente com o desenvolvimento rural, no sentido das comunidades camponesas. Seu livro se inscreve
na longa e rica tradição dos estudos dos que reconhecem nos camponeses atores sociais, protagonistas da construção da nossa sociedade. Sou feliz e muito grata a Eric por ter me convidado a participar, tão de perto, desta sua obra. Maria de Nazareth Baudel Wanderley
Socióloga, professora aposentada da UNICAMP, professora do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal de Pernambuco, pesquisadora do CNPq.