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316D813s Autor: Dubar. Claude. Título: A socialização : construçã 271821 111836 UFES BC AG
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Martins Fontes
índice ES/ÍT obra foi publicada originalmente1 em franecs eoin o título LA SOCIALISATION: CÒNSTRUCTION DÊS IDENTITÉS SOCIALES ET PROFESS1ONNELLLS, por Armaml Colin, Paris. Copyright © Annanã Colín/HER Éditeur, 2000, 3» edição. it €> 2005, Limaria Martins Fontes Editem Ltda., São Paulo, para a presente edição. l2 edição 2005 Tradução ANDRÉA STAUEL M. DA SILVA Acompanhamento editorial Luzia Aparecida dos Santos Preparação do original Maria Fernanda Alvares Revisões gráficas Rita de Cássia Sam Sandra Garcia Cortes Dinarie Zorzaneüi da Silva Produção gráfica Geraldo Alves Paginação/Fotolitos Studio 3 Desenvolvimento Editorial
Prefácio à 3? edição Introdução
XIII XXV
PRIMEIRA PARTE
SOCIALIZAÇÃO E CONSTRUÇÃO SOCIAL DA IDENTIDADE 1. A socialização da criança na psicologia piagetiana e seus prolongamentos sociológicos 1. A abordagem piagetiana da socialização 2. Durkheim e Piaget: um debate inacabado 3. Uma aplicação em sociologia da educação 4. Uma transposição para a socialização política 5. Uma abordagem "genética" e "restrita" da socialização Bibliografia
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
Título original: La socialisation : constmcticm dês identités sociales et professionnelles. Bibliografia. ISBN 85-336-2192-2 1. Identidade (Psicologia) 2. Identidade social 3. Socialização 4. Socialização profissional I. Título. 05-5740
francesa
3 4 10 16 22 26 32
2. A socialização na antropologia cultural e no funcionalismo 35 1. Cultura e personalidade: uma abordagem "culturalista" da socialização 36 , 1.1. A hipótese da personalidade básica 45 1.2. A socialização na abordagem culturalista 49 2. A "suprema teoria" da socialização: Parsons e o sistema LIGA 51
CDD-303.32 índices para catálogo sistemático: 1. Socialização : Ciências sociais 303.32
Todos os direito? desta edição para o Brasil reservados à Livraria Martins Fontes Editora Ltda. Rua Conselheiro Rjmnlho, 330 01325-000 São Paulo SP Brasil Tcl. (11) 3241.3077 Fax (U) 3101.1042 c-mail: infoSmartiHStonlcs.com.br http:llwww.mcirtinsfontes.com.br
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2.1. A teoria da Ação segundo Parsons 2.2. A socialização: o sistema LIGA Críticas ao funcionalismo: da hipersocíalização à socialização antecipatória 3.1. A contenda da hípersocialização 3.2. Merton e a socialização antecipatória: a teoria do grupo de referência 3.3. Um estudo empírico: formação contínua e contramobilidade social . Uma abordagem funcional e "generalizada" da socialização Bibliografia.
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3. A socialização como incorporação dos habitus.. \. Uma definição problemática do habitus Classes sociais e habitus: posições e trajetórias.... 2. Uma problemática ambígua dos campos sociais .. 3. Do habitus à identidade: da dupla redução à dupla articulação 4. Uma abordagem "causal-probabilista" da socialização Bibliografia
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5. Para uma teoria sociológica da identidade 1. O ponto de partida: a dualidade no social 2. O cerne da teoria: uma articulação de dois processos identitários heterogêneos 3. Um mecanismo comum aos dois processos: a tipificação 4. O processo identitário biográfico 5. O processo identitário relacionai 6. A identidade como espaço-tempo geracional Bibliografia
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4. A socialização como construção social da realidade 1. A dualidade do social: trabalho e interação (Hegel); ação instrumental e ação comunicativa (Habermas) 2. Socialização comunitária e socialização societária: uma leitura de MaxWeber O deslocamento operadb por MaxWeber 3. A socialização como construção de um Si-mesmo na relação com o Outro (G. H. Mead) 4. Socialização secundária e transformação social (P. Berger e T. Luckmann) 5. Uma abordagem "compreensiva" da socialização. Bibliografia
AS ABORDAGENS DA SOCIALIZAÇÃO PROFISSIONAL
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6. Das "profissões" à socialização profissional 1. História e terminologia 2. A questão das "profissões": um consenso dos pais fundadores da sociologia? 3. Institucionalização da sociologia das "profissões" nos Estados Unidos 4. A teoria funcionalista das "profissões" 5. A abordagem do interacionismo simbólico 6. A socialização profissional em Hughes 7. Alcance e limites do paradigma interadonista.... Bibliografia
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7. Profissões, organizações e relações profissionais. 1. A "profissão" como organização: processos sociais esfruturantes 2. A organização profissional do trabalho na produção capitalista: a dupla fonte do poder 3. Profissionalização e desprofissionalização: debate permanente e duplo movimento recorrente .... 4. A qualificação como produto codificado de "modelos profissionais"
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4.1. O modelo do operário: valorização pelo resultado e identificação com um cargo (Job) 4.2. O modelo do oficial: valorização pela função e identificação com um status 4.3. O modelo do físico: valorização pela formação e identificação com a disciplina (setor, indústria...) 4.4. Na tipologia de Moore encontra-se um quarto espaço de identificação, constitutivo do modelo da EMPRESA 5. A qualificação como resultado instável das relações profissionais 6. Socialização, organização e relações profissionais: uma comparação internacional Bibliografia , Das profissões aos mercados de trabalho 1. Profissão e mercado de trabalho: indagações fecundas 2. Mercado primário e mercado secundário: a hipótese dualista 3. Mercados de trabalho fechados e modo integrado de socialização profissional Qualificação e mercado interno de trabalho 4. Mercados secundários de trabalho e modo al" ternativo de socialização profissional? 5. Mobilídades profissionais e mercados de trabalho: uma pesquisa empírica A. L. Stinchcombe (1979): tipos de mobilidade e segmentos do mercado de trabalho na Noruega.... Bibliografia
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10. Do operário por ofício ao "novo profissional": a identidade bloqueada 1. A identidade para o outro: o modelo do operador polivalente e administrador 2. A identidade "biográfica" para si: diplomas técnicos e carreiras 3. A identidade "relacionai" para si: reconhecimento suspenso e conflito latente 4. Uma articulação problemática entre as duas transações 5. Uma (nova) identidade de ofício? 6. A crise do espaço social de reconhecimento 7. A crise das "ideologias defensivas de ofício" 8. Configuração identitária e geração: a transformação do ensino profissional
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11. Do modelo "carreirista" ao processo de mobilização: a identidade de responsável em promoção interna 289 1. A identidade para o outro: o modelo da evolução pela e na empresa 289
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TERCEIRA PARTE
A DINÂMICA DAS IDENTIDADES PROFISSIONAIS E SOCIAIS Introdução à terceira parte
9. Do modelo do distanciamento ao processo de exclusão: a identidade de executor "estável" ameaçada , 255 1. A identidade para o outro: a exclusão fora do modelo da competência 255 2. A identidade "biográfica" para si: saberes práticos e estabilidade de emprego 256 3. A identidade "relacionai" para si: dependência do chefe e trabalho instrumental 259 4. Uma identidade de classe ou de fora do trabalho? . 261 5. Crítica ao "modelo do distanciamento" 264 6. O processo de exclusão: a articulação impossível das transações 266 7. Configuração identitária e geração: a gênese biográfica da identidade ameaçada 268 273 273 274 277 278 279 282 284 286
2. A identidade "biográfica" para si: evolução profissional e formação contínua interna-e "integrada" 3. A identidade "relacionai" para si: reconhecimento recíproco e mobilização para o trabalho .. 4. A transação bem-sucedida? Coincidência real ou aparente? 5. Uma (nova) identidade de empresa? 6. Uma identidade competitiva? 7. Modelo fusional ou negociatório? 8. Configuração identitária e geração: a gênese estrutural da identidade promovida
Agradecimentos 291 292 293 295 297 298 300
12. Do "modelo afinitário" ao processo de recapacitação: a identidade autônoma e incerta 303 1. A identidade para o outro: assalariados que constituem um problema 303 2. A identidade biográfica para si: a contramobilidade social 304 3. A identidade relacionai para si: postura crítica e senso de oportunidade 307 4. Uma articulação instrumental das duas transações ! 308 5. Identidade em formação ou identidade de rede? .. 310 6. Uma identidade social individualista? 312 7. Configuração identitária e geração: o estudante tradicional, o assalariado estudante 317 Bibliografia da terceira parte
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Conclusão. As formas elementares da identidade profissional e social atual 323 Lista de siglas índice temático índice onomástico
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Agradeço imensamente os colegas que, ao criticar as sucessivas versões deste manuscrito, me obrigaram a mais clareza e rigor em minha escrita: Béatrice Appay, Catherine Cailloux, Catherine Marry, Catherine Paradeise, Pierre Doray, Henri Mendras e Jean-René Treanton, a quem se dirigem especialmente esses agradecimentos. Agradeço também Martine Laplanche, Violaine Lecerf e Véronique Testelin, que examinaram e corrigiram os sucessivos textos: sem sua paciência e seu profissionalismo, esse resultado não teria sido alcançado.
Prefácio à 3? edição francesa
O termo "socialização" faz parte desses conceitos básicos da sociologia (e também da antropologia e da psicologia social) que possuem tantos universos de significação quantos são os pontos de vista sobre o "social". Por isso, as teorias da socialização praticamente não se distinguem das grandes teorias das ciências sociais. Pensei ser útil, por ocasião desta terceira edição, voltar às razões que me conduziram a agrupá-las em quatro conjuntos, na primeira parte deste livro (capítulos l a 4). Essas razões são também, em parte, as que me levaram a colocar no cerne desta obra a noção de identidade (capítulo 5) - ou melhor, de "forma identitária" (terceira parte) - que, desde a primeira edição (1991), sofreu inflexões significativas. Também me explicarei quanto a isso. Enfim e sobretudo, o fato de ter claramente privilegiado a socialização e as identidades profissionais (segunda parte) me foi, de diversas maneiras, e com razão, criticado1. Também voltarei a isso. Na mesma ocasião me esforçarei para indicar em que meus trabalhos e obras posteriores (mencionados nesta nova edição) modificaram - ou inflectiram - um pouco as concepções iniciais defendidas na obra. 1. Principalmente por François de Singly em Lê sói, k couple et lafamille [O indivíduo, o casal e a família], Paris, Nathan, 1997, pp. 14 e 220.
XIV
A SOCIALIZAÇÃO
As teorias da socialização O agrupamento e a ordem de exposição dos grandes pontos de vista sobre a socialização obedecem a uma preocupação com a ordem histórica. Proponho, de fato, uma certa leitura da história das ciências sociais que tentarei explicitar. Se parti da teoria de Piaget, e do debate PiagetDurkheim que encerra Lê Jugement moral chez l'enfant [O juízo moral na criança] (1932), é porque ele foi, me parece, um dos primeiros a colocar claramente - e a tentar superar -> ao menos em língua francesa2, a oposição entre "individualismo" e "holismo" (e, conseqüentemente, entre psicologia genética e sociologia positiva) na abordagem das ciências sociais. Durante muito tempo, a noção de socialização, na França, permaneceu ancorada na questão dos processos e mecanismos de "socialização da criança", ou seja, das maneiras de analisar o acesso "biográfico" dos seres humanos à qualidade de seres sociais, de seu nascimento à idade adulta. Se Piaget critica Durkheim por supervalorizar a coerção e subestimar a cooperação, é porque o fundador da sociologia francesa permanecia prisioneiro de uma concepção "holista" do social, que Piaget recusa em nome de uma concepção "relacionista" das sociedades modernas, fundamentada principalmente na observação das atividades infantis. A socialização já não pode, segundo Piaget, ser pensada e analisada como uma inculcação, pelas instituições, de "maneiras de fazer, de sentir e de pensar" a seres passivos e egoístas. As atividades e as interações que ela implica constituem, segundo ele, um vetor primordial da socialização das crianças. As objecões a essa maneira "genética" (e, às vezes, vista como "restrita" porque limitada à ontogenia) de considerar 2. A tradição sociológica alemã parte de outra concepção da socialização (So:iali:tcniug) enraizada na filosofia da história de Hegel e ancorada na questão da gênese da individualidade e da modernidade (cf. a noção de Vergeifilschaftun^sm Simmel). Abordo-a no capítulo 4.
PREFACIO A 3." EDIÇÃO FRANCESA
XV
a socialização um processo de desenvolvimento regido por mecanismos gerais, se não universais, vieram dos antropólogos e principalmente dos "culturalistas" americanos (Ruth Benedict, Margaret Mead, Ralph Linton...). A partir dos anos 1930, as pesquisas etnográficas sobre populações diversas, que Durkheim teria qualificado de "primitivas", chegavam todas à mesma conclusão: não há nenhuma lei geral que reja a educação das crianças nas sociedades tradicionais. Não há complexo de Édipo generalizado, nem tampouco "estágios" identificáveis por toda parte. A socialização como aprendizagem da cultura de um grupo é tão diversa quanto as próprias culturas. Às vezes dominam as práticas mais autoritárias, às vezes as mais permissivas. ÀS vezes recorre-se a instituições especializadas, às vezes a educação é completamente difusa. Às vezes as crianças são educadas pela mãe, às vezes por outras pessoas (por exemplo, nas ilhas Marquesas, pelos maridos secundários). Se por quase toda parte encontram-se cerimônias de iniciação que marcam a passagem à idade adulta, elas não ocorrem na mesma idade e, em geral, concernem apenas aos meninos. Ainda é possível defender uma teoria geral da socialização das crianças? É o que Talcott Parsons e sua equipe tentarão elaborar em uma obra intitulada Family, Sodalization and Interaction Process [Família, socialização e processo de interação] (l 955), que desenvolve um ponto de vista tipicamente "funcionalista", ligado a uma interpretação própria da psicanálise. Para superar o obstáculo das variações empíricas das instituições das práticas de socialização, eles constróem uma espécie de modelo sistemático, uma "metateoria"3 fundamentada em um postulado simples: as sociedades, sejam quais forem, devem, para sobreviver, reproduzir ao mesmo tempo sua cultura e sua estrutura social. Elas apenas podem fazê-lo garantindo a interiorizacão das funções sociais vi3. No sentido de que ela não está diretamente ligada a observações empíricas, mas provém de um modelo teórico.
XVI
A SOCIALIZAÇÃO
tais pelas crianças ao longo de sua socialização, primeiramente na família, depois na escola e enfim no mercado de trabalho. Agentes socializadores intervém, no decorrer do processo, para garantir ao maior número de crianças essa interiorização ativa que lhes permite, no final do trajeto, quando se tornam adultos, serem por sua vez "socializadores". Essa posição será criticada por um artigo célebre de Wrong (1961) que a qualifica de "concepção hipersocializada" do ser humano. Historicamente, o funcionalismo entra em crise, primeiro nos Estados Unidos, em seguida em todos os outros lugares, ao longo dos anos 1960-1970. Torna-se claro que a "suprema teoria" de Parsons, como a chama Wright Mills, não permite interpretar os movimentos sociais, culturais e políticos que nesse período se manifestam por toda parte nos países ocidentais e que questionam os modelos educacionais. Quer se trate do feminismo, quer do movimento pela igualdade dos direitos, quer da luta de classes, todos esses movimentos sociais revelam e contestam não somente o caráter fundamentalmente desigual das sociedades industriais "avançadas" mas também as formas de dominação sobre as quais repousam: dominação masculina, dominação cultural, dominação econômica. Essas formas de dominação são produzidas e reproduzidas por instituições de socialização (a família, a escola, as forças armadas, as Igrejas, as grandes empresas etc.) que perdem, assim, sua legitimidade "natural" e seu caráter "consensual". Desse modo, desenvolvem-se teorias "críticas" da socialização, principalmente "marxistas" e "estruturalistas", que fazem dela o mecanismo de reprodução da dominação social, da dominação de classe particularmente. Na França4, a teoria exposta por Bourdieu e Passeron em La Reproduction. Éléments d'une théorie dn système d'enseignement [A reprodução: elementos 4. Na mesma época, são produzidas teorias semelhantes nos Estados Unidos ou na Grã-Bretanha; c/., por exemplo, Bowles, S. e Gentis, H., Schooling in Capítalíst America, Nova York, Basic Book, 1976; ou Berstein, B., Class, Codes and Contrai, Londres, Routledge and Keagan, 1971.
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XVII
para uma teoria do sistema de ensino] (1970) é uma de suas versões mais conhecidas. Ela será levada a se tornar complexa e a se desenvolver em dois níveis: o primeiro, institucional, faz do sistema de ensino um aparelho de imposição simbólica da cultura burguesa legitimando a reprodução das desigualdades sociais; o segundo, individual, é feito dos habitus de classe Incorporados ao longo da socialização, concebida como um processo de impregnação das condutas pelas condições sociais, mais precisamente de um ajustamento das condutas aos destinos mais prováveis, assegurandç assim subjetivamente a reprodução legítima das posições de origem. Será ao longo dos anos 1980 que novas correntes, nascidas geralmente nos Estados Unidos ou na Grã-Bretanha durante o período precedente, promoverão novos conceitos e novas concepções da socialização, resumidos por mim na expressão "construção social da realidade". Em particular, a redescoberta de Max Weber e de sua posteridade fenomenológica (Schultz), e também de Georg Simmel e de sua posteridade interacionista (Mead), vai fecundar a abordagem construtivista de Peter Berger e Thomas Lückmann, The Social Construction of Realíty [A construção social da realidade] (1966). É a partir dessa obra que a distinção entre "socialização primária" e "socialização secundária" permitirá que o conceito se emancipe do campo escolar e da infância, se aplique com um sucesso crescente ao campo profissional (e também a outros) e, sobretudo, se conecte às problemáticas da mudança social. Se a, socialização já não é definida como "desenvolvimento da criança", nem como "aprendizado da cultura" ou "incorporação de umjzabitus", mas como "construção de um mundo vivido", então esse mundo também pode ser desconstruído e reconstruído ao longo da existência. A socialização se toma um processo de construção, desconstrução e reconstrução de identidades ligadas às diversas esferas de atividade (principalmente profissional) que cada um encontra durante sua vida e das quais deve aprender a tornar-se ator.
XVIII
A SOCIALIZAÇÃO
Esse "retorno do ator" - sem falar no do sujeito1' - é também a emergência de uma concepção nova da socialização, da qual Max Weber e Georg Simmel haviam esboçado premissas hoje amplamente reapropriadas em inúmeras pesquisas ao mesmo tempo "compreensivas" e "construtivistas". É ao estudar ações coletivas (ou organizadas) como elaborações sociais e ao reconstituir os "mundos" dos atores (simultaneamente suas visões do mundo e suas categorizações da ação) que se tem mais chance de reconstituir e compreender os processos de socialização que permitem a coordenação das ações e a negociação dos "mundos" que sempre são mistos de interesses e de valores. Esses processos de socialização produzem identidades de atores que não se reduzem nem a habitus de classe nem a esquemas culturais. Sobre a noção de identidade e o conceito de forma identitária É verdade que a noção de identidade ocupa nesta obra um lugar tão importante quanto o da socialização6. Gostaria simplesmente, neste prefácio, de explicitar o vínculo entre as teorias "construtivistas" da socialização, como as que acabei de evocar, e a problemática "sociológica" da identidade, tal qual é apresentada no capítulo 5 e aplicada empiricamente na terceira parte deste livro. E, ao fazer isso, me esforçarei para justificar a decisão de utilizar a expressão "forma identitária", que usei como substituta da de identidade, após a primeira edição deste livro. ?. Tratei essa questão da subjetividade em relação com a construção identitária em La crifc dês identiiés. L'mterpréíation d'une mutation [A crise das identidades. A interpretação de uma transformação]. Paris, PUF, 2000 (col. "Lê lien social"). f. A crítica formulada por Francis de Chassey com respeito à passagem das problemáticas estruturais da socialização às abordagens interacionistas da identidade é inteiramente justificada, mas procede de urna recusa em constatar o "retorno do ator" -na sociologia recente. Cf. Utinam, tí" 8,1993, pp. 177-84.
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XIX
A partir do momento em que se recusa a reduzir os atores sociais - inclusive e primeiramente as pessoas concretas que constituem o objeto das pesquisas empíricas - a uma "categoria" preestabelecida, seja ela socioeconômica (sua CSP [categoria socioprofissional] ou sua origem social), seja sociocultural (seu nível escolar ou sua origem étnica) ou, às vezes, a uma combinação das duas -, a questão central, para o sociólogo que aborda um "campo" qualquer, torna-se a da maneira pela qual esses atores se identificam uns com os outros. Essa questão é indissociável da definição do contexto de ação que é também contexto de definição de si e dos outros. Como ator (tomado como tal), cada um possui certa "definição da situação" em que está inserido. Essa definição inclui uma maneira de se definir a si próprio e de definir os outros. Ela recorre a categorias que podem ter origens diversas e toma a forma de argumentos que implicam interesses e valores, posições e posicionamentos. O primeiro procedimento do sociólogo de campo, pareceme, é coletar, nas melhores condições possíveis, essas diversas "definições de situação", que são condições de sua compreensão das regras da ação situada, tais como são subjetivamente definidas pelos atores. Essas autodefinições de atores, em um contexto dado, não são estritamente determinadas pelo próprio contexto. Cada um dos atores tem uma história, um passado que também pesa em suas identidades de ator. Não se define somente em função de seus parceiros atuais, de suas interações face a face, em um campo determinado de práticas, mas também em função de sua trajetória, tanto pessoal como social. Essa "trajetória subjetiva" resulta a um só tempo de uma leitura interpretativa do passado e de uma projeção antecipatória do futuro. As identidades de ator estão assim vinculadas a formas de identificação pessoal, socialmente identificáveis. Elas podem assumir formas diversas, assim como são diversas as maneiras de exprimir o sentido de uma trajetória, ao mesmo tempo sua direção e sua significação.
XX
A SOCIALIZAÇÃO
Existem, assim, dois eixos de identificação de uma pessoa considerada ator social7. Um eixo "sincrônico", ligado a um contexto de ação e a uma definição de situação, em um espaço dado, culturalmente marcado, e um eixo "diacrônico", ligado a uma trajetória subjetiva e a uma interpretação da história pessoal, socialmente construída. E na articulação desses dois eixos que intervém as maneiras como cada um se define, simultaneamente como ator de um sistema determinado e produto de uma trajetória específica. Essa dualidade torna problemáticas as identificações: entre as definições "oficiais", atribuídas por outrem, e as identificações "subjetivas", reivindicadas por si e submetidas ao reconhecimento de outrem, todas as combinações são possíveis, em um contexto dado. A elucidação dessas formas de identificação socialmente pertinentes em uma esfera de ação determinada - o que denomino formas identitárias constitui o objetivo da "abordagem sociológica das identidades" desenvolvida aqui, no capítulo 5 e na última parte. Ela articula dois sentidos do termo "socialização" e do termo "identidade": a socialização "relacionai" dos atores em interação em um contexto de ação (as identidades "para o outro") e a socialização "biográfica" dos atores engajados em uma trajetória social (as identidades "para si"). ÀS vezes denominei esses dois sentidos: socialização das atividades e socialização dos indivíduos. Eles resultam de uma concepção de ator que se define a um só tempo pela estrutura de sua ação e pela história de sua formação. Acrescentarei uma última observação epistemológica. Mesmo que não esteja explicitada como tal no livro, a posição assim definida sobre a identidade é estritamente nominalista8. Não existe nenhuma identidade "essencial" em 7. O que geralmente não é levado em conta nem pelas diversas versões da análise estratégica, mesmo as mais culturais (a de Sainsaulieu, por exemplo), nem pelas diversas teorias da reprodução, mesmo as mais construtivistas (a de Bourdieu, por exemplo); cf. "Formes identitaires et socialisation professíonnelle", Revue française de sociologie, 1992, XXXIII-4, pp. 505-7. 8. Esse ponto é longamente explicitado em La crise dês identités. Paris, PUF, 2000.
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qualquer que seja o campo social e, a fortiori, na história humana. Todas as identidades são denominações relativas a uma época histórica e a um tipo de contexto social. Assim, todas as identidades são construções sociais e de linguagem que são acompanhadas, em maior ou menor grau, por racionalizações e reinterpretações que às vezes as fazem passar por "essências" intemporaís. Do mesmo modo que a definição que se dará de alguém por ocasião de sua morte não estava contida em sua "identidade nominal" por ocasião de seu nascimento, a identidade "cultural" de um grupo qualquer nunca é nem "natural" nem "dada" a priori, mas construída por ações individuais e coletivas. Todas as identidades, coletivas e pessoais, são assim consideradas em processos históricos e contextos simbólicos. É por isso que o termo "identificações" decerto daria menos margem a contra-senso. Mas o de identidade tem a vantagem de enfatizar uma das dimensões mais importantes da abordagem desenvolvida longamente neste livro: a subjetividade no cerne dos processos sociais. Identidades profissionais e Si-mesmo íntimo: vida de trabalho e vida privada Entre as críticas mais intensas dirigidas a essa problemática da identidade, as que me censuram por minimizar a importância da vida privada, do amor e/ou da família, enfim, da intimidade9, me pareceram tão importantes que consagrei a elas uma parte substancial de uma obra recente intitulada La crise dês identités (PUF, 2000). As formas identitárias em questão em A socialização não são "identidades pessoais" no sentido de designações singulares de si, mas construções sociais partilhadas com todos os que têm trajetórias subjetivas e definições de atores 9. E o caso de François de Singly, op. cit., que qualifica minha abordagem de universalista porque ela repousa em uma equivalência socialização "primária" = família + escola; socialização "secundária" = trabalho.
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A SOCIALIZAÇÃO
homólogas, principalmente no campo profissional. Se defendi a tese da centralidade do trabalho na vida pessoal e do lugar eminente das identificações profissionais na vida social, é porque o contexto econômico e social de "crise" me parecia suficientemente embasado por todos os tipos de pesquisas para defender essa posição. A privação de trabalho é um sofrimento íntimo, um golpe na auto-estima tanto quanto uma perda de relação com os outros: uma ferida identitária geradora de desorganização social10. Inversamente, o fato de ser reconhecido em seu trabalho, de travar relações — mesmo conflituosas - com os outros e de poder se empenhar pessoalmente em sua atividade é, ao mesmo tempo, construtor de identidade pessoal e de criatividade social. Desse modo, o sociólogo não reduz o trabalho nem a uma simples troca econômica (tempo contra salário) nem a uma simples dimensão "estatutária", exterior à subjetividade. No entanto, isso não significa que a identidade no trabalho seja a única dimensão da identidade pessoal, do que pode ser chamado, não sem precaução, de Si-mesmo. Jamais pretendi identificar as formas de identificação profissional ao conceito de Si-mesmo, tal como foi produzido por uma ou outra das correntes da psicologia social. A questão difícil é, aqui, a da articulação das esferas de atividade na vida pessoal e a existência (ou não) de uma identificação principal por si ou pelos outros. Uma das teses mais importantes dos últimos trabalhos de Françoís de Síngly é a da primazia crescente da vida privada sobre as outras esferas sociais e da importância cada vez mais decisiva do Outro significativo (o cônjuge especialmente) na socialização "secundária" na idade adulta. É na e pela relação amorosa que se constróem, junto e li10. Cf. Lazarsíeld, P., Jahoda, M. e Zeisel, H., Lês Chômeurs de Maríenthal [Os desempregados de Maríenthal], Paris, Minuit, 1981 (l? ed., 1932); e também Bourdíeu, P. (ed.). La misère du monde [A miséria do mundo], Paris, Seuil, 1996.
PREFÁCIO À 3:' EDIÇÃO FRANCESA
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vremente11, identidades pessoais que são também formas do "Eu conjugai" que asseguram e preservam a construção do "Si-mesmo íntimo". Por isso, a dupla transação pela qual se constróem (e se destroem) "formas identitárias" se torna complexa e se desdobra, segundo concirna aos papéis públicos ou à intimidade privada. Tudo se passa como se a subjetividade já não fosse apenas "socialmente construída" mas também, e cada vez com mais autonomia, "intimamente trabalhada". A questão é saber quais relações existem, na idade adulta, entre as categorias ale identificação que provêm das instituições "oficiais" e as categorias "indígenas" que emergem das interações da vida cotidiana. Ela é indissociável do problema das fontes de reconhecimento de si, e também da estrutura das atividades (de trabalho mas também sexuais, familiares, lúdicas, culturais...) na organização da vida social e psíquica. A relação entre as diversas esferas de atividade é portanto uma questão essencial na construção da subjetividade: o "si-mesmo íntimo", inclusive (e talvez sobretudo) nas relações amorosas, se nutre das experiências familiares, profissionais, políticas etc., e tenta, com a ajuda dos outros (Outro significativo e generalizado), mas também solitariamente, enredá-las. Esse enredamento permite, por si só, a produção compreensiva e narrativa de uma "identidade pessoal" que articula as diversas esferas da existência. Quando se consegue coletá-los, esses "relatos de vida" são fontes extremamente ricas para o sociólogo (assim como para o antropólogo, para o psicólogo clínico, para o historiador...). Mas é preciso analisá-los e interpretá-los12. É aí que começam os problemas... Abril de 2000 11. Cf. Singly, F. de, Libres ensemble. L'mdmidualisme dans Ia vie commune [Livres junto. O individualismo na vida comum], Paris, Nathan, 2000. 12. Cf. Demazière, D. e Dubar, C., Anah/ser lês cntretiens biographiques. 1'cxemple dês reate d'ínsertion [Analisar os relatos biográficos. O exemplo das narrativas de inserção], Paris, Nathan, 1997.
Introdução
O termo "identidade" está ressurgindo tanto no vocabulário das ciências sociais como na linguagem corrente. Fala-se, em toda parte, em "crise das identidades" sem saber direito o que essa expressão engloba: dificuldades de inserção profissional dos jovens, aumento das exclusões sociais, desconforto diante das transformações, confusão das categorias que servem para se definir e para definir os outros... Como em todos os períodos que se seguem a uma grande crise econômica, a incerteza quanto ao futuro domina todas as tentativas de reconstrução de novos padrões sociais: os de ontem já não convém e os de amanhã ainda não estão estabelecidos. No entanto, a identidade de uma pessoa é o que ela tem de mais valioso: a perda de identidade é sinônimo de alienação, sofrimento, angústia e morte. Ora, a identidade humana não é dada, de uma vez por todas, no nascimento: ela é construída na infância e, a partir de então, deve ser reconstruída no decorrer da vida. O indivíduo jamais a constrói sozinho: ele depende tanto dos juízos dos outros quanto de suas próprias orientações e autodefinições. A identidade é produto das sucessivas socializações. Essa noção de socialização deve ser esclarecida, redefinida, até mesmo reabilitada. Ao longo da história das ciências sociais - história ainda muito curta se comparada à das ciências da matéria ou da vida -, o termo "socialização" foi
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utilizado em sentidos muito diversos e está carregado de conotações atualmente às vezes consideradas negativas ou ultrapassadas: inculcação das crianças, doutrinamento dos indivíduos, imposição de normas sociais, coerções exercidas por Poderes tão ameaçadores quanto anônimos... A ponto de alguns sociólogos estarem tentados a banir essa noção do vocabulário científico de sua disciplina. Mas suprimir uma palavra não elimina um problema essencial: como circunscrever a dinâmica das identidades sem considerar sua construção, tanto individual como social? A apresentação sucinta de algumas grandes teorias centradas, parcial ou totalmente, na análise dos processos de socialização consagra-se a primeira parte deste livro, concebida como uma iniciação. Ela constitui um convite à (re)leitura de alguns textos e autores importantes; é acompanhada da apresentação esquemática de algumas pesquisas recentes inspiradas por essas grandes correntes teóricas; termina em uma problemática do que poderia constituir atualmente as bases de uma teoria sociológica operacional da construção das identidades. Entre as múltiplas dimensões da identidade dos indivíduos, a dimensão profissional adquiriu uma importância particular. Por ter se tornado um bem raro, o emprego condiciona a construção das identidades sociais; por passar por mudanças impressionantes, o trabalho obriga a transformações- identitárias delicadas; por acompanhar cada vez mais todas as modificações do trabalho e do emprego, a formação intervém nas dinâmicas identitárias por muito tempo além do período escolar. A segunda parte apresenta algumas aquisições importantes e pouco conhecidas das ciências sociais nesse campo específico da socialização profissional. Da sociologia das "profissões" nos Estados Unidos à economia dos "mercados de trabalho", passando pelo estudo das "relações profissionais", ela explora algumas fontes importantes das pesquisas atuais sobre a dinâmica das identidades profissionais. A terceira parte sintetiza os resultados empíricos de várias pesquisas francesas sobre essa dinâmica identitária, rea-
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lizadas nos últimos vinte e cinco anos. Apresenta tuna tipologia das identidades salariais em processo de reestruturação nas empresas e na sociedade francesas. Apóía-se em trabalhos recentes, que às vezes acabaram de ser concluídos, mas também em estudos mais antigos, reinterpretados à luz desses trabalhos. Mostra enfim a que ponto a identidade profissional se tornou um objeto importante - mas sempre em construção e em debate - da sociologia francesa atual.
PRIMEIRA PARTE
Socialização e construção social da identidade
Capítulo l
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A socialização da criança na psicologia piagetiana e seus prolongamentos sociológicos
O termo "socialização", aplicado à criança, designa um dos objetos essenciais da psicologia genética. A literatura consagrada ao desenvolvimento da criança é imensa, e constitui uma reserva importante de resultados e de análises empíricas para toda teorização dos processos de socialização1. Mas é raro encontrar nela reflexões epistemológicas sobre as condições da abordagem científica e sobre os problemas suscitados pela confrontação dos pontos de vista disciplinares (biologia, psicologia, sociologia). É o caso do texto de J. Piaget, publicado na primeira parte de Étttdes sociologiques [Estudos sociológicos] e intitulado "Uexplication en sociologie" [A explicação em sociologia] (1965). Ele aborda de frente a questão das relações entre a explicação sociológica e as explicações psicológicas e biológicas, e desenvolve, quanto aos fatos de socialização, posições sugestivas. Estas, sem dúvida, constituem a primeira tentativa de superação das oposições entre os pontos de vista psicológico e sociológico - oposições fundadoras da sociologia, segundo Durkheim -, e a primeira tentativa estimulante de definição de uma abordagem sociológica L Entre as inúmeras sínteses de pesquisas sobre a socialização da criança, citemos, em língua francesa, a reunida por Daval (1964), já antiga mas sempre sugestiva, e a de Doise e Deschamps (1986), mais recente, e, em língua inglesa, as antigas de Erikson (1950) e de D. A. Goslin (1969) e as recentes de Bruner (1983) e de Malewska-Peyre e Tap (1991).
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da socialização que seja complementar e não antagônica às abordagens psicogenéticas e principalmente à que Piaget elaborou e aperfeiçoou ao longo de sua obra. Essa "nova" abordagem da socialização foi parcialmente aplicada tanto no campo da sociologia da educação como no da sociologia política. 1. A abordagem piagetiana da socialização Piaget se interessa antes de mais nada pelo desenvolvimento mental da criança, e o define como uma construção contínua mas não linear, que procede por estágios sucessivos e constitui o que Piaget chama de processo de equilibração, ou seja, "a passagem perpétua de um estado de menor equilíbrio a um estado de equilíbrio superior" (1964, p. 10). Esse processo põe em ação dois elementos heterogêneos: estruturas, variáveis, definidas como "formas de organização da atividade mental" sob seu duplo aspecto inseparavelmente cognitivo e afetivo; e um funcionamento constante que provoca a passagem de uma forma a outra por um movimento de desequilíbrio seguido de um restabelecimento do equilíbrio pela passagem a uma forma nova. Esse desenvolvimento mental tem sempre uma dupla dimensão, individual e social: as estruturas pelas quais em geral todas as crianças passam são sempre a um só tempo "cognitivas" (internas ao organismo) e "afetivas", ou seja, relacionais (orientadas para o exterior). Assim, o reflexo de sucção do recém-nascido é, ao mesmo tempo, a manifestação de uma tendência instintiva e a expressão das primeiras emoções dirigidas à mãe ou a quem assume o papel dela. Para Piaget, essas estruturas evolutivas.que ele utiliza para definir os estágios (cuja quantidade, dependendo de seus escritos, varia...) do desenvolvimento da criança são indissociáveis das condutas definidas, não em termos behavioristas, como simples reações a estímulos externos (o conheci-
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do esquema E —> R* analisado principalmente por Pavlov), mas como respostas a necessidades provenientes da interação entre o organismo e seu entorno físico e social. Desse modo, toda ação (gesto, sentimento, pensamento...) é concebida como uma tentativa para reduzir uma tensão ou um desequilíbrio entre as necessidades do organismo e os recursos do entorno. Ela tem como finalidade um objetivo a alcançar (restabelecer o equilíbrio) e é definida pelos instrumentos utilizados para realizá-lo. Acaba quando a necessidade é satisfeita, ou seja, quando o equilíbrio é (re)encontrado. Esse modelo hoineostático (movimento definido como restabelecimento de um equilíbrio com o entorno), na época muito difundido nas ciências da vida, leva Piaget a conceber o desenvolvimento da criança - e portanto sua socialização, que constitui um de seus elementos essenciais - como um processo ativo de adaptação descontínua a formas mentais e sociais cada vez mais complexas. Essa adaptação é descrita por Piaget, em cada estágio, como a resultante e a articulação de dois movimentos complementares, ainda que de natureza diferente: - a assimilação consiste em "incorporar as coisas e as pessoas de fora" às estruturas já construídas. Assim, a sucção é primeiramente, para o recém-nascido, um reflexo de incorporação bucal do mundo (vivido como "realidade a ser sugada", segundo os termos de Piaget) que o leva a generalizar sua conduta (chupa seu próprio polegar, os dedos de outra pessoa, os objetos que lhe são apresentados...) a tudo que lhe proporciona prazer, depois de ter discriminado na prática o que correspondia à sua necessidade vital (o seio da mãe, a mamadeira...). Do mesmo modo, o reflexo do sorriso é reservado de início a certas pessoas (quinta semana) antes de ser generalizado a todo rosto humano. Mais tarde ele se transformará em expressão voluntária de um sentimento diferenciado. Essas condutas desencadeiam, assim, formas de assimilação específicas a cada estágio de desenvolvimento Estímulo -> Resposta. (N. da T.)
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da criança: elas constituem uma modalidade de relação com o mundo adaptado, por um tempo, ao estado de maturação biológica da criança. Quando a criança evolui, novas formas de assimilação tornam-se necessárias e possíveis; - a acomodação consiste em "reajustar as estruturas em função das transformações externas". Assim, as modificações no entorno são fontes perpétuas de ajustes: quando se passa do seio à mamadeira, o reflexo de sucção se modifica; os sorrisos se modificam conforme as pessoas que se debruçam sobre o bebê... Essas variações contribuem para o que Piaget chama de "construção do esquema prático do Objeto", condição da descoberta ativa da permanência dos objetos (materiais ou humanos) mesmo quando estão ausentes. Elas também permitem as estruturações do espaço e do tempo e a emergência das modalidades sucessivas de reconhecimento das relações de causalidade. Esses quatro elementos (esquemas práticos, espaço, tempo e causalidade) entram na composição das estruturas mentais características de cada um dos estágios significativos do desenvolvimento da criança. As estruturas mentais são indissociáveis das formas relacionais pelas quais elas se exprimem para com outrem. Desse modo, a cada estágio distinguido por Piaget, é possível fazer corresponder formas típicas de socialização que constituem modalidades de relação da criança com outros seres humanos. Passa-se assim, segundo o autor, do egocentrismo inicial do recém-nascido, caracterizado por "uma indistinção entre o eu e o mundo", à inserção terminal do adolescente escolarizado no mundo profissional e na vida social do adulto. Entre esses dois estágios extremos, a criança terá aprendido primeiro a exprimir sentimentos diferenciados graças à estruturação de percepções organizadas (e à solicitação de seu entorno imediato), depois a imitar seus próximos diferenciando claramente o pólo interno (o Eu) do pólo externo (o Objeto), em seguida a praticar, graças à fala, as trocas interíndividuais, descobrindo e respeitando as relações de coerção exercidas pelo adulto, enfim a passar da coerção à cooperação graças ao domínio conjunto da
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"reflexão como discussão interiorizada consigo" e da discussão COIBQ "reflexão socializada com outrem", que lhe permitem adquirir simultaneamente o sentido da justificação lógica e o cia autonomia moral (cf. quadro 1). Essa passagem da coerção à cooperação, ou seja, da submissão à ordem social (parental e escolar) à autonomia pessoal na cooperação voluntária (com os adultos e com as outras crianças), constitui um ponto essencial na análise piagetiana da socialização. E com base nesse ponto que, em 1932, em O juízo moral na criança, Piaget define o núcleo de sua concepção e a diferencia da de Durkheim. Quadro l Desenvolvimento mental e socialização em seis estágios* segundo Piaget (1964) j Os estágios de l desenvolvimento l " (versão 1964)
Dimensão individual: estruturas mentais
Dimensão social: formas de socialização
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I. Estágio dos reflexos
Tendências instintivas
Egocentrismo inicial
'•
II. Estágio dos primeiros hábitos motores
Percepções organizadas
Primeiros sentimentos diferenciados
III. Estágio da inteligência sensório-motora
Regulações elementares de ordem prática
Imitação como primeira "socialização da ação"
IV. Estágio da inteligência intuitiva
Imagens e intuições representativas "gênese do pensamento"
Submissão aos adultos por coerção
Passagem às operações Explicações pelo atornismo
Sentimentos e práticas de cooperação
Construção de teorias Pensamento hipotético-dedutivo Categoria do "possível"
Inserção social e profissional
' V. Estágio da inteligência concreta VI Estágio da inteligência abstrata - formal
* A partir do fim dos anos 1960, Piaget se referirá mais a um desenvolvimento em quatro estágios: sensório-motor (I, II e III), pré-operatório (IV), operatórío concreto (V) e formal (VI).
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Para compreendê-la bem, sigamos o autor na descrição de seu exemplo favorito: o jogo de bolinhas de gude.
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Um grupo de crianças joga bolinha de gude. Tanto do ponto de vista da prática das regras quanto do da consciência destas, a conduta das crianças varia em função da idade... Os "pequenos", literalmente falando, não jogam. Eles manipulam as bolinhas segundo esquemas perceptivos e motores absolutamente simples... A criança responde às propriedades do objeto (forma, consistência, tamanho...) segundo alguns esquemas corporais (empurrar, puxar, amontoar etc.). A criança brinca sozinha, mesmo que haja muitas; não há cooperação. Portanto não há, literalmente falando, o sentimento de que um ganha e o outro perde. Isso porque, na verdade, ela não tem consciência de que algumas jogadas são permitidas e outras proibidas... Os "grandes", ao contrário, estão totalmente empenhados no jogo. Se são perguntados sobre as regras, respondem: "nós que fizemos as regras... podemos mudá-las, se estivermos de acordo, mas, enquanto elas não forem modificadas, todo o mundo deve respeitá-las" (Piaget, 1932).
Nessa obra de juventude, Píáget distínguia quatro estágios que correspondiam, entre outras, a quatro concepções da norma: - o estágio "motor e individual" (antes dos dois anos): não se pode falar efetivamente de norma, a não ser de "regras motoras"; — o estágio "egocêntrico" (dos dois aos cinco anos), que começa quando a criança recebe do exterior o conjunto das regras codificadas. Nesse estágio, mesmo brincando juntas, as crianças brincam cada uma por si. A confusão do eu e do mundo exterior e a falta de cooperação constituem apenas um único e mesmo fenômeno: o egocentrismo que não pode ser limitado senão, pela coerção; - o estágio da cooperação nascente (sete-doze anos): cada jogador procura superar os outros, o que provoca o aparecimento da preocupação com o controle mútuo e da unificação das regras, que, no entanto, permanecem ínfor-
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mais ainda que parcialmente negociadas (à medida que se faz necessário); - o estágio da codificação das regras (depois dos doze anos): os jogadores se conscientizam da existência e da necessidade de regras formais, cuja coerência eles verificam na esfera intelectual e cuja justificação eles discutem na esfera moral. Portanto, é possível associar essas quatro formas sucessivas de socialização a quatro maneiras de atuar: uma maneira gestual e motora que é regulada apenas pela repressão direta, que pode ser afetuosa ("jogo de mão, jogo de vilão!") ou violenta (um par de bofetadas); uma maneira solitária e egocêntrica que não pode ser regulada senão pela coerção ("se você não vier comer, não terá nada..."); uma maneira cooperativa mas informal que sempre pode degenerar e que deve ser controlada de modo menos ou mais discreto ("não, isso não é permitido..."); uma maneira .cooperativa, formalizada e dinâmica, baseada na negociação recíproca e na adaptação comum às situações: a regulamentação inclui então a consciência das regras sociais existentes e a capacidade de atuar coletivamente com elas. O próprio Piáget resume o processo geral da socialização da criança por meio das quatro transformações seguintes (1964, pp. 71-5): - a passagem do respeito absoluto (aos pais) ao respeito mútuo (crianças/adultos e crianças entre si); - a passagem da obediência personalizada ao sentimento da regra: esta torna-se, no último estágio, a expressão de um acordo mútuo, um verdadeiro "contrato"; - a passagem da heteronomia total à autonomia recíproca, que implica, no último estágio, a fixação de sentimentos novos, como "a honestidade, o coleguismo, o fair-play, a justiça"; — a passagem da energia à vontade, que constitui uma "regulagem ativa da energia" (supondo uma hierarquização entre dever e prazer, notadamente). Ao fim do processo de socialização da criança, "os valores morais se organizam em sistemas autônomos compa-
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ráveis aos agrupamentos lógicos". Encontramos o "núcleo" da concepção piagetiana da socialização: a reciprocidade entre estruturas mentais e estruturas sociais, a correspondência, em cada estágio, entre as operações lógicas e as ações morais, ou seja, sociais: "a moral é uma espécie de lógica dos valores e das ações entre indivíduos, assim como a lógica é uma espécie de moral do pensamento" (1964, p. 72). 2. Durkheim e Piaget: um debate inacabado Na segunda parte de O juízo moral..., Piaget inicia um debate construtivo com Durkheim, debate que se insere em uma "confrontação das teses essenciais da sociologia e da psicologia genética, concernindo justamente à natureza empírica das regras morais". Esse debate faz, de início, aparecer uma série de convergências entre as primeiras análises de Piaget e as contidas, por exemplo, em L'édutation momle [A educação moral] (Durkheim, 1902-1903) ou em De Ia division dn travail [Da divisão do trabalho social] (Durkheim, 1893). • social S' Piaget endossa a definição durkheimíana da educação como "socialização metódica da jovem geração" (Durkheim, 1911, ed. ir. 1966, p. 92), com a condição de precisar bem como aliás faz Durkheim - que essa socialização não é própria somente à geração precedente mas aos próprios indivíduos. Cada geração deve se socializar com base nos "modelos culturais transmitidos pela geração precedente" (Durkheim, 1902-1903, ed. fr. 1963, p. 4). A socialização também é, para Piaget, uma "educação moral", mas não é inicialmente, como para Durkheim, uma transmissão, pela coerção, do "espírito de disciplina" complementado por um "vínculo com os grupos sociais" e interiorizado livremente graças à "autonomia da vontade" (Durkheim, 1902-1903). Para Piaget, ela é antes de tudo uma construção, sempre ativa e até interativa, de novas "regras do jogo" que implicam o desenvolvimento autônomo da "noção de justiça" e a substituição
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de "regras de coerção por regras de cooperação" (Piaget, 1932, p. 419). ' Por outro lado, Piaget reconhece, com Durkheim, que de início a socialização se baseou, historicamente, na coerção externa e na conformidade "natural" a modelos exteriores. Ele .compartilha da teoria do crime desenvolvida por Durkheim (1893): "é somente com a condição de haver sanções que a própria existência da moralidade é assegurada", e elas reforçam o sentimento moral na medida em que o crime é justamente "o que ofende os estados fortes e definidos do sentimento coletivo". Nesse sentido, a socialização comporta uma dimensão repressiva: quem transgride abertamente as regras aceitas por todos deve ser punido, e é essencial que as sanções aplicadas sejam proporcionais à gravidade dos crimes cometidos. Como escreve Piaget: "a exterioridade inicial das relações sociais leva fatalmente a certo realismo moral" (1932, p. 136). Se as regras, assim como as crenças e os valores que as fundamentam, se impõem primeiramente do exterior (tanto na criança como nas sociedades ditas "primitivas"), também é necessário que as sanções "recaiam" sobre quem as transgrediu, contribuindo, assim, para reforçar nos outros o respeito às regras. Piaget e Durkheim também estão de acordo ao reconhecerem a índívidualizacão crescente da vida social à medida que as trocas sé desenvolvem e se tornam complexas. A passagem de uma solidariedade mecânica por "imitação externa" a uma solidariedade orgânica por "cooperação- e complementaridade" (Durkheim, 1893) desenvolve aindividualizacão e a diferenciação das relações sociais. Logo, "a vida social, à medida que se individualiza, torna-se mais interior" (Piaget, 1932, p. 138). É necessário, então, recorrer à autonomia da vontade mais do que ao medo da repressão. A socialização torna-se cada vez mais voluntária. O ponto em que Piaget se distingue de Durkheim é quando este estabelece uma equivalência pura e simples entre os objetivos e os efeitos da coerção externa e os da cooperação voluntária. De fato, como bem observou Nisbet
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(1966, trad. fr. 1984, pp. 114 ss.), na obra Da divisão do trabalho social, Durkheim, depois de ter oposto, termo por termo, as sociedades ditas "primitivas", de solidariedade mecânica, às sociedades industriais, de solidariedade orgânica, relativiza intensamente essa oposição na segunda parte. Ele escreve particularmente que "a divisão do trabalho só pode ser feita entre os membros de uma sociedade já constituída... Há uma vida social exterior a toda divisão do trabalho, mas que esta supõe... há sociedades cuja coesão se deve essencialmente à comunhão de crenças e de sentimentos e... é dessas sociedades que se originaram as sociedades cuja unidade é garantida pela divisão do trabalho" (Durkheim, 1893, 8? ed. fr. 1967, pp. 259-61). Assim, observa Nisbet com propriedade: "A sociedade se torna, na seqüência da obra de Durkheim, um.conjunto complexo de elementos sociais e psicológicos sobre os quais ele havia afirmado inicialmente serem próprios apenas às sociedades primitivas." Efetivamente, "Durkheim faz dos atributos da solidariedade mecânica a característica permanente de todos os fatos sociais" (Nisbet, ia., p. 116). Sem ir tão longe, Piaget também constata e critica o fato de, para Durkheim, a coercão social característica da solidariedade mecânica possuir a mesma função e levar aos mesmos resultados que a cooperação, atributo essencial da solidariedade orgânica: desenvolver, em cada um, uma "consciência coletiva" ao mesmo tempo unificada e exterior ao indivíduo. É essa assimilação' que Piaget recusa, não por "psicologismo", mas porque não partilha com Durkheim a mesma concepção de sociedade moderna e não interpreta da mesma maneira que ele a passagem das sociedades tradicionais às sociedades industriais: "Nossas sociedades civilizadas tendem cada vez mais a substituir-a regra de coercão pela regra de cooperação. Faz parte da essência da democracia considerar a lei um produto da vontade coletiva e não a emanação de uma vontade transcendente ou de uma autoridade de direito divino" (Piaget, 1932, p. 419). Ao contrário de Durkheim, Piaget instaura uma cisão e uma oposição efetivas entre as relações de coercão estabele-
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cidas sobre os vínculos de autoridade e o sentimento do sagrado (sociedades tradicionais) e as relações de cooperação estabelecidas sobre o respeito mútuo e a autonomia da vontade (sociedades modernas). A passagem das primeiras às segundas é apresentada por Piaget como resultado conjunto de uma "evolução intelectual" e um "desenvolvimento moral" que tornam possível a construção voluntária de novas relações sociais, inclusive pelas próprias crianças. O que Durkheim não viu é que "existem relações sociais específicas aos próprios grupos infaiTtis: nem por isso as regras das crianças são menos sociais. Elas repousam sobre outros tipos de autoridade... Alguns pedagogos se perguntaram se essas regras não podiam justamente ser utilizadas em sala de aula" (Piaget, 1932, p. 417). Uma divergência essencial entre Durkheim e Piaget concerne, enfim, à seguinte questão: ainda é possível falar "da" sociedade a propósito das sociedades modernas? Durkheim acha que sim, Piaget duvida: "a moral apresentada ao indivíduo pela sociedade não é homogênea porque a própria sociedade não é uma coisa única2. A sociedade é o conjunto das relações sociais" (Piaget, 1932, id.). Ora, dentre elas, os dois tipos de relação precedentes (coerção/cooperacão) são fundamentalmente diferentes para Piaget, que não pode, pois, definir a socialização simplesmente como integração - mesmo ativa - a uma sociedade unificada. É preciso situar seu debate com Durkheim no próprio nível da concepção do social, e assim esclarecer as condições de uma abordagem sociológica da socialização. A concepção paradigmática3 do social segundo Piaget só será explicitada muito mais tarde, no texto citado no iní2. Gritos meus. 3. Ou seja, a representação rnais geral do que é "o social" entre a comunidade de especialistas das ciências sociais. Considera-se, em geral, que há dois grandes "paradigmas" do social: o paradigma "holista", que considera a sociedade uma totalidade, um "organismo", e o paradigma "individualista" ou "atomista", que a considera um agrupamento de indivíduos autônomos (Boudon e Bourricaud, 1982). Efetivamente, a maioria dos teóricos da sociologia combina elementos desses dois paradigmas.
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cio deste capítulo e intitulado "Lfexplication en sociologie" (1965). Rejeitando tanto G. Tarde, que queria "explicar a sociedade pelo resultado da socialização dos indivíduos", concebida como imitação (1965, p. 28), quanto Durkheim, por ele fazer da "consciência coletiva" uma substância e uma causa, "um foco inconsciente de emanações conscientes" (p. 29), e sem dar razão a nenhum deles nessa polêmica estéril, Piaget qualifica sua própria posição como sendo relativista, definindo assim o que ele chama de "todo social": "nem uma reunião de elementos anteriores, nem uma entidade nova, mas um sistema de relações em que cada uma engendra como relação uma transformação dos termos que ela une" (p. 29). Nem individualista-atomísta, que define o social como agregação de indivíduos, nem holista-organicista, que considera o social uma totalidade realista, a posição de Piaget pode ser qualificada de relacionista-construtivista por considerar a sociedade "um sistema de atividades cujas interações elementares consistem em ações que se modificam umas às outras segundo certas leis de organização ou de equilíbrio" (pp. 29-30). Conseqüentemente, a socialização pode ser definida como processo descontínuo de construção individual e coletiva de condutas sociais que inclui três aspectos complementares: - o aspecto cognitivo, que representa a estrutura da conduta e se traduz em regras; - o aspecto afetivo, que representa a energética da conduta e se exprime em valores; - o aspecto expressivo (ou "conativo"), que representa os significantes da conduta e se simboliza em signos. Piaget não fornece traduções operacionais desses três conteúdos de socialização em pesquisas precisas. Encontraremos traduções sociológicas'diversas desses conteúdos ao longo desta obra (cf. quadro 2). Eles constituem, para ele, a matéria básica com a qual se estrutura o desenvolvimento da criança e se constrói sua socialização ativa. Essa construção repousa na correlação essencial entre estruturas sociais e estruturas mentais, ou seja, entre a so-
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dalizacão concebida como construção de formas de organização das atividades e a socialização concebida como modo de desenvolvimento dos indivíduos. Assim, o social sempre pode se analisar e se reconstruir tanto a partir da análise "objetiva" das formas de organização coletiva e de sua gênese como a partir da análise "subjetiva" dos conteúdos de representações mentais individuais e de sua emergência. A correspondência entre as duas abordagens se fundamenta no paralelismo psicossociológico que postula a reciprocidade entre as representações mentais, interiorizacão das estruturas sociais, e as cooperações sociais, exteriorização das estruturas mentais. Esse paralelismo psicossociológico explica o'fato de Piaget, em suas análises do desenvolvimento da criança, nunca ter podido separar - mesmo por uma abstração metodológica que teria sido legítima - as formas sociais de cooperação das formas lógicas de construção mental. Não somente Piaget sempre se recusou a postular a anterioridade lógica ou cronológica das estruturas sociais sobre as estruturas mentais, mas também nunca operou nenhuma dissociação metodológica entre as duas. "Assim", escreve ele, "se o progresso lógico acompanha o da socialização, deve-se dizer que a criança se torna capaz de operações racionais porque seu desenvolvimento social a torna apta à cooperação ou deve-se, ao contrário, admitir que são suas aquisições lógicas individuais que lhe permitem compreender os outros e que, desse modo, a conduzem à cooperação? Dado que os dois tipos de progresso vão exatamente de par, a questão parece não ter resposta, e só se pode dizer que eles constituem dois aspectos indissociáveis de uma única e mesma realidade a um só tempo social e individual" (1965, p. 158). Agora se compreende melhor a dificuldade do autor em precisar os objetos respectivos da psicologia e da sociologia na análise dos fatos de socialização. Ora ele inclui a primeira na segunda: "A psicologia da criança constitui um setor da sociologia consagrado ao estudo da socialização
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do indivíduo" (1965, p. 23). Ora ele afirma a autonomia da abordagem sociológica: "A análise sociológica dos fatos de socialização supõe um novo método relativo ao conjunto do grupo em questão como sistema de interdependências construtivas" (id., p. 16). Acontece-lhe até reconhecer, com bom humor, a superioridade dessa abordagem: "A sociologia possui o grande privilégio de situar suas pesquisas em uma escala superior à de nossa modesta psicologia e, por conseguinte, de dominar segredos de que dependemos" (Piaget, 1966, p. 248). Mas qual é esse "novo método" que permite à sociologia "se situar em uma escala superior"? Piaget não o precisa em lugar nenhum. Desse ponto de vista, o debate com Durkheim permanece inacabado... Os continuadores de Piaget puderam apenas constatar o fato: "Piaget não criou um paradigma psicossociológico do desenvolvimento cognitivo" (Doise, 1982). Ainda que sua concepção relacionista do social seja claramente explicitada teoricamente e distinta da de Durkheim, ela continua sem tradução metodológica: a distinção do objeto "socialização da criança" entre uni ponto de vista psicológico centrado nas estruturas mentais e um ponto de vista sociológico focado nas formas sociais de cooperação não foi operada por Piaget. Outros conseguiram fazê-lo mais tarde? É possível uma abordagem sociológica de inspiração piagetiana? 3. Uma aplicação em sociologia da educação Em que essa teoria do desenvolvimento psicogenético como equilibração pode ser útil para a análise sociológica? Ela não seria, ao contrário, fundamentalmente oposta ao procedimento "clássico" da sociologia da educação que coloca em evidência, por exemplo, as desigualdades sociais de êxito escolar e de inserção profissional e as determinações do nível escolar e da posição social pela origem social? Não cairemos novamente, com Piaget, em uma dessas pseu-
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doteorias do "homem médio", já criticadas por Durkheim (1897) em sua polêmica com G. Tarde e suas explicações pela imitação? Podem-se encontrar os primeiros elementos interes-santes de resposta a essas questões em um estudo recente de um pesquisador em psicologia que invoca Piaget explicitamente e que procura esclarecer certos mecanismos das desigualdades sociais de êxito escolar. J. Lautrey tentou, assim, demonstrar, por meio de uma pesquisa empírica, a hipótese segundo a qual "as_condicões de vida e de trabalho, ligadas ao status socioeconômico dos pais, determinam suas práticas educacionais, que, por sua vez, influem no desenvolvimento intelectual da criança" (Lautrey, 1984, p. 18). Para operacionalizar essa hipótese, Lautrey construiu três tipos de estruturação do entorno familiar de uma amostra de crianças de uma escola elementar*: uma estruturação frágil correspondendo à ausência de regras e de previsibilidade, portanto pouco favorável à reestruturação em caso de desequilíbrio; uma estruturação rígida feita de regras imutáveis e coercitivas e, portanto, pouco favorável ao desequilíbrio inicial necessário para o desenvolvimento; uma estruturação flexível correspondente a regras condicionais favoráveis a um só tempo ao desequilíbrio e à reestruturação. Ele estabelece a seguinte relação: "quanto mais alta a posição da profissão do pai na hierarquia social, mais flexível é o tipo de estruturação; quanto mais baixa a posição da profissão, mais rígido é o tipo" (id., p. 115). Demonstra, enfim, que "as crianças educadas em uma estruturação flexível do entorno familiar estão mais adiantadas, do ponto de vista do estágio atingido em seu desenvolvimento operatório, do que os outros dois grupos" (id., p. 214). Referindo-se explicitamente ao processo cie equilibração das estruturas cognitivas de Piaget, ele tenta estabelecer assim uma dupla rela* A escola elementar na Franca, destinada a crianças de sete a nove anos, corresponde aproximadamente aos dois primeiros ciclos do ensino fundamental no Brasil. (N. da T.)
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cão entre o entorno educacional familiar e o êxito escolar das crianças, de um lado, e o entorno familiar e "o papel dos pais no sistema de produção", de outro. Essa tentativa repousa em uma série de hipóteses causais que podem ser explicitadas assim (cf. figura 1): - a relação estatística constatável entre o êxito escolar das crianças (medido aqui pelo fato de estar adiantado, no nível adequado ou atrasado em sua escolaridade primária) e a posição social de seus pais (medida pelo grupo socioprofissional do pai) pode ser decomposta por meio de uma variável intermediária: o tipo de estruturação do entorno familiar (medido por meio de um questionário que permite dividir as famílias em três tipos: frágil/flexível/rígida); Posição social dos país
>Estruturação dos deveres e dos papéis na divisão do trabalho
hn torno familiar
Desenvolvimento mental como processo de equilibração
Tipo de estruturação das regras educacionais -* (flexível/rígída/frágil) - Causalidade
f
Indicador
Figura l Esquema explicativo desenvolvido por J. Lautrey (1984) - a relação estatística constatada entre êxito escolar e tipo de estruturação familiar pode ser interpretada por meio do esquema teórico de equilibração das estruturas cognitivas (Lautrey/ p. 237): "um entorno familiar que apresenta ao mesmo tempo perturbações capazes de suscitar desequilíbrios e regularidades capazes de permitir reequilibrações (flexíveis) parece mais favorável ao processo de reconstrução de novas estruturas mentais do que outros que são, por exemplo, ricos em regularidades mas pobres em perturbações (frágil)". Se os alunos que pertencem a famílias de estruturação flexível estiverem, com freqüência signifi-
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cativa, mais "adiantados" do que os outros, é porque seu entorno familiar facilita seu desenvolvimento mental, que se exprime em seu êxito escolar. - a relação estatística constatada entre o tipo de estruturação familiar e o status social medido pela posição socioprofissional do pai (as famílias "flexíveis" têm, com maior freqüência, um status social elevado) pode ser interpretada por meio da seguinte hipótese: os pais transferem para o universo familiar os modos de organização e de estruturação dos deveres que regem seu trabalho profissional. As famílias situadas nos níveis baixos da escala social (pais operários ou funcionários) adotam uma estruturação rígida porque os deveres profissionais dos pais (os do pai, em todo caso) são "concebidos por outros e diretamente submetidos ao controle hierárquico", portanto rígidos. As famílias situadas no alto da escala social (pais executivos ou diretores ou profissionais liberais) adotam uma estruturação flexível porque seus deveres profissionais implicam iniciativas e responsabilidade, portanto são estruturados de maneira flexível. Constata-se: entre o destaque de correlações estatísticas entre variáveis extremamente agregadas e a explicação causai de conjunto, inserem-se hipóteses explicativas complexas que deveriam, por sua vez, ser traduzidas e testadas empiricamente. É possível levantar questões principalmente sobre os seguintes pontos: - o que medem, exatamente, o êxito escolar e, mais precisamente, o fato de estar adiantado, no nível adequado ou atrasado na escola primária? Ele sanciona um nível (estágio?) de desenvolvimento mental da criança ou um grau de adequação entre as regras, os valores e os signos (tipo de linguagem e relação com a linguagem) do universo familiar e os da escola? As pesquisas importantes efetuadas a esse respeito pelo sociólogo inglês Basil Bernstein mostram a extrema importância do código lingüístico que rege as comunicações no interior da família (e, em particular, entre a mãe e os filhos) sobre o êxito escolar dos alunos: os que, de origem popular, utilizam um "código restrito" se encontram
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com maior freqüência em situação de fracasso escolar do que os alunos que utilizam, em seu universo familiar, um "código generalizado" que supõe uma relação com a língua (de tipo abstrato, formal, distanciado...), que é justamente o valorizado pela escola (Bernstein, 1971). Sem serem contraditórias às interpretações de Lautrey, essas análises evitam a noção de "desenvolvimento mental" para se centrarem exclusivamente nas formas de comunicação interpretadas em termos de cultura e de poder e não em termos cognitivos (cf. capítulos 2 e 3); - o que a hipótese da transferência das normas que regem os universos profissionais dos pais (principalmente do pai) para a família e para a educação dos filhos pressupõe? Além de implicar uma representação muito simplificada do funcionamento da divisão do trabalho (de tipo "taylorista"), ela supõe uma correspondência íntima entre condições de vida (familiar) e condições de trabalho (profissional), não somente no plano material (salário e nível de vida), mas também no plano social (organização do trabalho/organização doméstica). Supõe, portanto, uma baixa autonomia da esfera familiar em relação à do trabalho profissional. Não é contraditória à posição de Piaget concernente à multiplicidade crescente dos tipos de relação social e à ausência de unidade do funcionamento social? As normas familiares não podem ser construídas em oposição às do universo profissional (do pai)? Não estariam elas mais relacionadas às que regem as famílias de origem dos pais (da mãe) do que às que estruturam o trabalho profissional (do pai)? As pesquisas recentes sobre a influência do grau de escolaridade e da origem social das mães sobre o êxito escolar dos filhos (Establet, 1988) mostram a que ponto as influências biográficas e culturais, de uma geração a outra, pesam nos resultados escolares das crianças tanto quanto e até mais do que as condições econômicas de seus pais. O estudo realizado entre 1962 e 1972, sob direção de A. Girard, com um grupo de alunos que estava saindo da escola primária na França, evidenciou muito bem essa questão: para rendas
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iguais, o grau de-escolaridade dos pais está claramente correlacionado ao êxito escolar dos filhos, ao passo que o inverso não ocorre; para graus de escolaridade iguais, a renda da família pouco influencia o êxito escolar das crianças (P. Clerc, 1964). ' . Se é, como conclui J. Lautrey, absolutamente verdadeiro que "são as mesmas pessoas que têm as condições de vida e as condições de trabalho mais coercitivas" (1984, p. 240) e que "são as crianças cujos pais têm as condições mais coercitivas que têm o desempenho escolar mais fraco", isso não quer dizer que se possa concluir que há uma determinação direta do desenvolvimento intelectual das crianças pelas condições econômicas dos pais. Há outros mecanismos, além dos que regem a organização familiar em um determinado momento, que influenciam a estruturação cognitiva das crianças. As formas e os conteúdos de comunicação entre filhos e pais (principalmente a mãe) influem tanto quanto as regras da vida comum. Do mesmo modo, estas não podem ser simplesmente deduzidas dos deveres profissionais cumpridos pelos pais (principalmente pelo pai): elas também decorrem dos modelos culturais transmitidos de uma geração a outra ou resultam das formações seguidas pelos pais (principalmente pela mãe). Em todo caso, a pesquisa de J. Lautrey representa uma tentativa interessante de aplicação dos esquemas piagetianos em uma perspectiva sociológica. Ela constitui uma tradução empírica do processo de equilibração como construção de estruturas mentais submetidas a condições sociais necessárias: para passar de uma forma de relações a outra, é necessário poder mudar as regras anteriores, assim como a relação com essas regras. É preciso, portanto, estar em um entorno social "flexível" mas estruturante: a capacidade de construir, na família, esse tipo de "ambiente de socialização" depende das condições de vida, dos valores e do sistema educacional familiar, que constituem, para Lautrey, as três dimensões de seus tipos de estruturação do entorno familiar. A socialização da criança depende enormemente das
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condições sociais - familiares mas também escolares - de sua construção: analisá-las e medir seus efeitos é o objeto tradicional da sociologia da educação (cf. capítulo 3). 4. Uma transposição para a socialização política No preâmbulo à exposição dos resultados de uma pesquisa sobre o universo político das crianças, A. Percheron (1974) desenvolve a definição de uma "nova" abordagem dos fenômenos de socialização, abordagem que também se inscreve na continuidade da problemática piagetiana ao sociologizá-la de maneira operacional. Criticando a abordagem da socialização proveniente de Durkheim, ela propõe uma definição da socialização como aquisição de um código simbólico resultante de "transações" entre o indivíduo e a sociedade (Percheron, 1974, p. 25). O termo "transação" constitui uma transposição direta da equilibracão piagetiana: "Toda socialização é resultado de dois processos diferentes: processo de assimilação e de acomodação. Pela assimilação, o sujeito procuraria modificar seu entorno para torná-lo mais conforme a seus desejos e para diminuir seus sentimentos de ansiedade e de intensidade; pela acomodação, ao contrário, o sujeito tenderia a se modificar para responder às pressões e às coerções de seu entorno." Dessa problemática básica, A. Percheron tira um conjunto de conseqüências que constituem sua problemática da socialização política: 1. A socialização é um processo interativo e multidirecional: supõe uma transação entre o socializado e os socializadores; longe de ser adquirida de uma vez por todas, ela implica renegociações permanentes no cerne de todos os subsistemas de socialização. Como escreve A. Percheron, "a socialização assume a forma de acontecimento, de ponto de encontro ou de compromisso entre as necessidades e desejos dos indivíduos e os valores dos diferentes grupos com os quais ele entra em relação" (1974, p. 26).
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2. A socialização não é nem só nem essencialmente transmissão de valores, normas e regras, mas sim "desenvolvimento de determinada representação do mundo", e principalmente de "mundos especializados", nesse caso o mundo político. Essa representação não é imposta já pronta pela família de origem ou pela escola, mas cada indivíduo "a compõe lentamente para si, emprestando das diversas representações existentes certas imagens que ele reinterpreta, constituindo um todo original e novo" (iderri). Certamente existem sistemas típicos de "representações automáticas", que permitem "respostas rápidas e estereotipadas" (Moscovici, 1972, p. 282), mas o indivíduo as reorganiza conforme suas aspirações e experiências. 3. A socialização não é essencialmente o resultado de aprendizagens formalizadas mas o produto, constantemente reestruturado, das influências presentes ou passadas dos múltiplos agentes de socialização. Essa "socialização latente" é freqüentemente impessoal, até mesmo não intencional: se é possível falar de aprendizagem, é de uma aprendizagem informal e implícita que "tem um papel ainda mais importante por prolongar o papel da totalidade do ensino e da maioria das mensagens da sociedade" (ia., p. 27). 4. A socialização é principalmente uma construção lenta e gradual de um código simbólico que constitui não, como em Durkheim, um conjunto de crenças e valores herdados da geração precedente, mas um "sistema de referência e de avaliação do real", que permite "se comportar desta maneira de preferência àquela nesta ou naquela situação". Reatualizando a abordagem piagetiana e mobilizando os resultados mais bem fundamentados da psicolingüístíca ao aplicá-los ao campo da política, A. Percheron observa "que jamais há relação 'objetiva' com a política e que todas as noções só assumem sua significação quando relacionadas com outras noções, depois de uma série de mediações e transformações: não há objeto, lei ou partido político a não ser nas representações subjacentes a esses conceitos, e não há representações a não ser no conjunto das atitudes que organi-
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zam toda apreensão do real" e que, portanto, permitem que nele nos orientemos. Assim, "socializar-se é aprender a representar um significado (político, nesse caso) recorrendo a um dos múltiplos significantes que servem para sua representação" (ia., p. 37). 5. A socialização é, enfim, um processo de identificação, de construção de Identidade, ou seja, de pertencimento e de relação. Socializar-se é assumir seu pertencimento a grupos (de pertencimento ou de referência), ou seja, assumir pessoalmente suas atitudes, a ponto de elas guiarem amplamente sua conduta sem que a própria pessoa se dê conta disso" (id., p. 32). A. Percheron recorda uma aquisição essencial da antropologia cultural (cf. capítulo 2): o sinal decisivo de pertencimento ao grupo é a aquisição do que Sapir denominava "saber intuitivo" (1967, t. l, p. 41) e que Halbwachs designava com a bela fórmula "começar a pensar com os outros" (1950, p. 48). Esse saber implica a assunção, ao menos parcial, do passado, do presente e do projeto do grupo, "tais como são expressos no código simbólico comum que funda a relação entre seus membros" (Percheron, id., p. 32). Mas toda abordagem empírica da identidade se tornou particularmente complexa pelo fato de "que não há identificação única" dos indivíduos (cf. capítulo 5). Primeiramente por causa da multiplicidade dos grupos de pertencimento ou de referência, mas também devido à ambivalência das identificações: entre o desejo de ser como os outros, aceito pelos grupos a que pertence ou quer pertencer, e o aprendizado da diferença, até mesmo da oposição com relação a esses grupos, a criança deve construir sua própria identidade por uma integração progressiva de suas diferentes identificações positivas e negativas. Como escrevia Lacan, "o eu é um objeto constituído como uma cebola; poderíamos descascá-lo e encontraríamos as identificações sucessivas que o constituíram" (1953,1981, p. 144). Essa integração das identificações decerto depende do "sistema relacionai do sujeito" (Percheron, id., p. 34), mas apenas se manifesta através da coerência de uma lingua-
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gem, ou seja, da estruturação dos signos e dos símbolos que constitui, afinal, "a modalidade de existência própria a um conjunto de signos que lhes permite estar em relação com uma esfera de objetos" (Foucault, 1969, p. 125). É por isso que, ao definir a socialização política da criança como processo de construção de uma identidade, A. Percheron decide finalmente estudar "certos aspectos dos fenômenos e dos processos de socialização através do estudo da constituição do vocabulário político das crianças, do desenvolvimento das representações que estão associadas a ele e, sobretudo, da organização do vocabulário em dimensões específicas" (id., pp. 37-8). É possível ver exatamente, a partir da exposição dessa problemática, como a vontade de tornar operacional uma abordagem da socialização, definida no início de maneira bem "piagetiana" (cf. quadro 2), leva a uma forma específica de análise da linguagem, nesse caso a análise estatística do vocabulário político de crianças de dez a quinze anos, destinada a "discernir as linhas de força e as dimensões essenciais do campo das representações políticas". É porque a organização das representações - no caso, a estrutura do vocabulário político - permite apreender simultaneamente a estruturação objetiva do campo político, ao referir os sistemas de palavras a posições no espaço em função dos usos lingüísticos das diversas "forças políticas", e as estruturações subjetivas das diversas categorias de crianças, ao referi-las às características sociais (profissão do pai, local de moradia etc.), psicológicas e biológicas (faixa etária) dessas crianças. Os resultados empíricos da pesquisa de A. Percheron confirmam uma hipótese importante: a estruturação do vocabulário político das crianças depende tanto de sua idade quanto das características sociopolíticas de seu entorno. Entre dez-onze anos e treze-quinze anos, produzem-se reorganizações significativas que manifestam uma atividade de reestruturação simbólica da parte das próprias crianças. As representações, assim como as escolhas políticas, não são transmitidas e constituídas de uma vez por todas;
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Quadro 2 Categorias de análise da socialização de A. Percheron reutilizando Piaget Categorias de análise da socialização
PIAGET
PERCHERON
Processo essencial
Equilibração: adaptações sucessivas entre o Eu e o Mundo
Transação Indivíduo/ Instituições: compromisso entre desejos individuais e valores coletivos
Áreas distintas e articuladas
Cognitiva —> regras Afetiva —> valores Expressiva —> signos
Pertendmento
Resultado
Estruturação de uma inteligência formal que permite a construção de um programa de vida "possível"
Relação
,. . . . Identidade social
Construção/seleção de um código simbólico "especializado"
elas são construídas sob forma de rearranjos periódicos, que resultam tanto de novas assimilações de elementos tomados de diversos setores do entorno (família, escola, colegas, bairro, cidade etc.) quanto de acomodações às evoluções desses setores, o que permite reorganizar de maneira bastante coerente os elementos (palavras, fórmulas, posições, símbolos...) de um sistema de representações políticas cada vez mais interiorizado e constitutivo da identidade social que está sendo forjada pela própria criança. Nesse sentido, a pesquisa de A. Percheron efetua uma abordagem de tipo piagetiano, mas a prolonga sociologicamente ao fazer da identidade em construção uma componente do pertencimento social (cf. capítulo 5). 5. Uma abordagem "genética" e "restrita" da socialização A teoria piagetiana da socialização da criança, tanto psicológica como sociológica, permite, enfim, uma dupla rup-
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tura, necessária a toda abordagem operacional dos fatos de socialização: - uma ruptura com uma concepção da "formação"4 em termos de inculcação de regras, normas ou valores por instituições a indivíduos passivos progressivamente modelados por esses esquemas de pensamento e de ação; é essa concepção que ameaça toda abordagem funcionalista da socialização (cf. capítulo 2): ela constitui uma espécie de paradigma simplista e redutor, que Boudon e Bourricaud (1982, p. 483) denominam socialização-condicionamento e que implica a um só tempo uma representação substancialista das instituições (aparelhos de socialização) e uma concepção determinista e mecanicista das práticas individuais (comportamentos aprendidos); - uma ruptura com uma representação linear e unificada da formação em termos de acumulação de conhecimentos ou de progressão contínua das competências. As noções de "estágio" e de processo de equilibração remetem a uma concepção dinâmica da socialização da criança como desestruturação e reestruturação de equilíbrios relativamente coerentes mas provisórios: a passagem de uma coerência a outra implica uma "crise" e a reconstrução de novas formas de transação (assimilação/acomodação) entre o indivíduo e seu meio social. Essa passagem de uma forma de equilíbrio a outra implica uma primeira fase de desestruturação, correspondente a uma crise das formas anteriores de transação, uma segunda fase de desequilíbrio, correspondente a uma acomodação sem assimilação (simples adaptação sem reequilibra cão) ou a uma assimilação sem acomodação (simples cres4. Utilizaremos às vezes o termo "formação" como sinônimo de "socialização", ainda que na França esse termo esteja geralmente associado à idéia de aprendizagem de tipo escolar, de cursos "formalizados" e organizados por instituições para transmitir conhecimentos a indivíduos tidos como ignorantes. Ora, todas as pesquisas científicas sobre a socialização mostram que essa representação está muito distante dos processos reais de aprendizagem socializada.
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cimento sem reequilibração), e uma última fase de reestruturação, correspondente a um novo equilíbrio entre os dois processos. Esse "modelo" pode ser considerado a contribuição mais essencial de Piaget à análise dos processos de socialização. No entanto, ainda resta uma questão essencial: o processo de socialização assim concebido deve ser limitado às crianças, e a adolescência deve ser considerada o período biográfico de conclusão desse processo? No contexto socioeconômico da época, essa posição era defendida por Piaget pelas seguintes razões: - considera-se que a maioria dos adolescentes, no momento de sua inserção na atividade profissional, já atingiu o estágio da inteligência formal: a partir do momento em que as competências necessárias no primeiro emprego recorrem essencialmente a capacidades de raciocínio adquiridas nos termos da escolaridade, o equilíbrio pode se realizar na e pela inserção profissional; - as características sociocognitivas dos adolescentes na entrada da vida ativa estruturam o todo de sua trajetória profissional posterior: as mudanças significativas de situação de atividade são raras e os status adquiridos na entrada valem para toda a vida ativa. As relações socioafetivas que se estabelecem na esfera familiar e na esfera profissional formam um conjunto coerente que assegura aos adolescentes uma integração voluntária em um meio social familiar, estruturante para a personalidade que se tornou adulta. O que acontece quando as condições sociais que permitiam a equilibração das atividades na adolescência já não são preenchidas? O que ocorre quando as organizações de trabalho modificam suas exigências, excluem uma parcela dos jovens e transformam suas regras de funcionamento? Como pensar a socialização quando a inserção em um primeiro emprego torna-se precária ou provisória para inúmeros jovens e quando as mudanças de emprego, de função ou de profissão se multiplicam ao longo da vida ativa? O que provocam a dissociação crescente das esferas da ati-
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vidade social e a não-coincidência sistemática dos acontecimentos (saída da escola, entrada na atividade estável, casamento) entrando no "estágio terminal" de Piaget? É possível responder a essas questões de várias maneiras, que incidem de diferentes modos na própria concepção da socialização como processo "genético". A primeira consiste em considerar que essas transformações invalidam a abordagem piagetiana da socialização em seu todo. É o sentido, por exemplo, da crítica que um comentador de Piaget (Furth, 1981, pp. 152 ss.) dirige quando escreve: "As condições de socialização na família, quando já não condizem funcionalmente com as condições de filiação nas organizações, geram problemas insolúveis para os jovens... a crise da adolescência torna-se aguda e duradoura por causa das disparidades entre competências exigidas, disposições adquiridas e motivações presentes." É por isso que, segundo esse autor, os processos descritos por Piaget "já não podem ser aplicados a condições sociais radicalmente diferentes das que os geraram". Por causa da transformação dos modos de produção e das formas sociais anteriores, o processo de socialização teria se "transformado profundamente" e já não condiria com "os pressupostos do procedimento de Piaget". A partir de agora, ele tenderia particularmente a "concernir à totalidade da vida dos indivíduos", questionando "a idéia de um estágio terminal" e até mesmo "a própria idéia de estágio". A abordagem de Piaget estaria assim historicamente ultrapassada e deveria ser substituída por outra problemática. A segunda, mais fecunda, consiste, ao contrário, em conservar o "núcleo" da teoria piagetiana, ou seja, sua concepção da forma geral e dos mecanismos básicos do processo de socialização: descontínua, procedendo por desequilíbrios e reequilíbrios, implicando um duplo movimento de acomodação e de assimilação, associando estruturas lógicas e formas sociais de cooperação. De agora em diante, esse processo deve simplesmente ser concebido como permanente e mais complexo: permanente, pois a socialização
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já não termina com a entrada no mercado de trabalho (remate do "adulto médio", segundo Piaget), mas se prolonga por toda a vida seguindo o mesmo mecanismo básico (equilibração); mais complexo, pois já não é possível falar de "estágio terminal", e, por isso, a noção de estágio deve ser relativizada. Parece que foi isso que Piaget e seus colaboradores fizeram no último período, levando em conta as mudanças socioeconômícas: "os estágios da teoria piagetiana do desenvolvimento são... períodos de estabilidade relativa... que comportam todo tipo de flutuações que se originam das situações instáveis com as quais o sujeito é confrontado" (Piaget e Garcia, 1987, p. 157). G. Malglaive, comentando esse texto, em sua síntese consagrada aos adultos, acrescenta: "já problemática no que concerne à criança, a referência aos estágios torna-se enganadora, para não dizer nefasta, no que concerne ao adulto" (Malglaive, 1990, p. 157). Os resultados de trabalhos recentes de psicologia cognitiva reintroduzem "o mundo simbólico" como mediação essencial entre as estruturas lógicas e as operações concretas, principalmente recorrendo à noção de "Sistemas de Representação e de Tratamento", emprestada de J.-M. Hoc (1987). Por conseguinte, o funcionamento das estruturas lógicas foi redefinido. Piaget e Garcia escrevem: "Cada período ou cada estágio tem exclusivamente os problemas que o sujeito é capaz de apreender... Em cada período... ele não utiliza uma única razão lógica, mas várias. A linha de construção de cada estrutura segue um desenvolvimento muito complexo que lhe é próprio, e as linhas do desenvolvimento não coincidem. Os estágios de desenvolvimento não são determinados pelo desenvolvimento das relações lógicas como tais5 (qual deveria ser privilegiada?). Dizer que estruturas características operam em cada estágio não é, pois, afirmar que o estágio é definido por uma única estrutura lógica" (Piaget e Garcia, id., p. 158).'A cronologia dos estágios torna-se, então, muito mais incerta: algumas crianças - as5. Grifos dos autores.
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sim como alguns adultos - podent ter êxito em provas "formais" e fracassar em provas "concretas"; podem colocar em prática estruturas formais em certas situações (escolares, por exemplo) e estruturas concretas em outras (situações de trabalho ou da vida cotidiana). Não faltam exemplos de que um raciocínio abstrato feito por um aluno ("criança" ou "adulto") em sala de aula não é transferido para uma situação extra-escolar. É possível ter muita facilidade e ter boas notas em eletricidade nas provas teóricas e não conseguir mobilizar os conhecimentos em um problema prático de instalação elétrica... E porque, na análise do desenvolvimento cognitivo, já não se pode fazer abstração das representações sociais pelas quais os indivíduos dão um sentido a suas situações de aprendizagem. Como escreve G. Vergnaud (MRT, 1989, pp. 54 ss.), "o que um sujeito aprende em uma situação nova para ele depende do que ele faz nela e da interpretação que dá a ela". Referindo-se ao papel atribuído por Piaget, em suas últimas obras, à "tomada de consciência" (1974), o autor precisa as condições de aquisição de um esquema, ou seja, de invariantes lógicas que permitem a generalização ou a transferência de uma competência de uma situação para outra: "Para que essas invariantes se tornem objetos, é preciso que a linguagem e as outras formas simbólicas permitam designá-los e identificá-los e, ao mesmo tempo, que outros sujeitos (os pares, os formadores) possam debater, com o sujeito em formação, sobre a verdade ou a falsidade dos enunciados que lhes concernem." A relação essencial estabelecida por Piaget entre estruturas lógicas e formas sociais sempre é, pois, mediada por representações simbólicas e principalmente pela linguagem, que possui uma função essencial de "codificação das situações vividas" (Bruner, 1983). Portanto, não é possível isolar a análise "genética" do desenvolvimento cognitivo da análise "cultural" dos sistemas simbólicos e das "representa•ções" que servem para definir e interpretar as situações vividas. O processo individual de socialização não se desen-
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volve em um vazio cultural: ele aciona formas simbólicas e processos culturais. A abordagem "restrita" da psicologia genética remete a abordagens "generalizadas", fazendo da socialização, não somente um aspecto do processo de desenvolvimento individual, mas a pedra de toque de todo o funcionamento social.
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* O ano mencionado entre parênteses, após o(s) autor(es), em geral corresponde à data da primeira edição da obra. ** As edições brasileiras encontradas serão indicadas entre parênteses após as referências bibliográficas de cada obra. (N. da T.)
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Capítulo 2
A socialização^na antropologia cultural e no funcionalismo
A psicologia genética esclarece certos mecanismos essenciais que fazem do recém-nascido, egocêntrico e totalmente dependente, um adulto, membro cooperativo e relativamente autônomo da "sociedade". Mas essa abordagem da socialização é "restrita": é centrada unicamente no indivíduo-criança e ignora ou minimiza as enormes variações que podem ser observadas nos "produtos" da socialização conforme as épocas, os tipos de sociedade, os meios sociais, os grupos ou as classes sociais. Ao desvendar e analisar o funcionamento de sociedades diferentes - às vezes ainda chamadas de "primitivas" -, os etnólogos e os antropólogos descobriram a diversidade das formas de socialização. A acumulação de estudos referentes a sociedades "tradicionais" mostra claramente que os adultos produzidos pelas diversas sociedades são tão diferentes quanto os procedimentos educacionais que lhes eram aplicados quando crianças, e que esses procedimentos não podem ser facilmente reduzidos a mecanismos universais1. Como escreve C. Lêfort no prefácio do livro de Kardiner, considerado uma das 1. Desde os anos 1960, trabalhos de antropologia cognitiva (Dougherty, 1985) e de psicologia, transcultural (Warren, 1980) têm reavivado a questão dos "universais cognitivos" e têm mostrado que comportamentos muito diversos, vinculados a formas muito diferentes de aprendizagem, podem remeter aos mesmos processos cognitivos elementares (categorização, generalização, diferenciação, resolução de problemas...).
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obras fundadoras da antropologia cultural: "a interpretação do desenvolvimento da criança está rigorosamente subordinada aos resultados dos estudos realizados em sociedades diferentes" (Kardiner, trad. fr. 1969, p. 19). Não obstante, é possível obter, da comparação desses estudos, um modelo geral do funcionamento da socialização? Veremos que essa foi uma das maiores preocupações de certos sociólogos teóricos das diversas correntes funcionalistas das ciências sociais, e que ela chegou à construção de uma síntese tão ambiciosa quanto frágil. Apesar disso, esses esforços de teorização produziram categorias e modelos de análise que ainda hoje servem para analisar fatos de socialização. Esses instrumentos permitem ao mesmo tempo compreender os limites de toda teoria "generalizada" da socialização e delimitar os problemas que a sociologia empírica deve enfrentar para fazer avançar o conhecimento dos mecanismos concretos da produção social de personalidades. 1. Cultura e personalidade: uma abordagem "culturalista" da socialização x
Apresentando e comparando três sociedades muito diferentes - os pueblo do Novo México, os dobu da Nova Guiné oriental e os kwakiutl da costa noroeste da América —, Ruth Benedict concluía seu estudo deste modo: "A maioria das pessoas são moldadas na forma de sua cultura, em virtude da enorme maleabilidade de sua natureza original: elas são plásticas à forma modelizadora da sociedade em que nasceram" (1935, trad. fr., p. 336). Ela evidenciava uma oposição radical - que se tornou muito famosa - entre a personalidade e organização dos índios zunhi, qualificadas de apolínea por serem "incrivelmente afáveis", fundamentadas na medida e na sobriedade, e que se exprimem por um "cerimonialismo interminável", e a personalidade dos kwakiutl, qualificada de dionisíaca porque movida pela rivalidade per-
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manente entre indivíduos e grupos, permeada por lutas, concorrências e destruições potláchicas2 e que se manifesta por constantes "demonstracoes.de emoções". Além disso, R. Benedict precisava que nem todos os indivíduos se encontravam na mesma situação cômoda em cada uma dessas sociedades, e que somente os que ela chamava de "favorecidos pela fortuna" possuíam as "virtualidades que coincidem estreitamente com os modelos de comportamento escolhidos por sua sociedade" (id., p. 337). Os outros procuram escapar e só conseguem fazê-lo raramente e com dificuldade. Assim, "cada tribo possui seus anormais que não participam" (id., p. 341), mas seus modos de expressão e destinos sociais também variam de uma sociedade para outra: alguns, acusados de feitiçaría, tornam-se feiticeiros (um deles chega ao fim da vida como governador de Zunhi), enquanto outros são fisicamente eliminados; alguns conseguem que lhes seja reconhecido um novo papel em sua sociedade (como alguns homens-mulheres de Zunhi), ao passo que outros fracassam e são rejeitados... (id., pp. 344-9). Para Ruth Benedict, esses indivíduos não concernem de forma nenhuma à psiquiatria, mas sua existência depende do grau de tolerância de sua sociedade. Esse estudo pioneiro foi seguido de muitos outros, alguns dos quais tiveram pretensões mais teóricas. Todos eles se organizam acerca de uma tese comum:* a personalidade dos indivíduos é produto da cultura em que eles nasceram. Mais precisamente, "as instituições com as quais o indivíduo está em contato durante sua formação produzem nele um tipo de condicionamento que, a longo prazo, acaba por criar um determinado tipo de personalidade" (Lefort, 1969, p. 49). 2. O "potlach" dos índios da costa oeste da América do Norte consiste em séries de dons e contradons entre famílias, clãs e tribos com um espírito fortemente agonístico. É o próprio tipo do "fato social total" segundo Mareei Mauss, que o analisou detidamente em seu Essaí sur lê don [Ensaio sobre a dádiva] (Mauss, 1950). R. Benedict também faz do "potlach" um traço importante da cultura kwakiutl, e Lévi-Strauss, em sua obra, faz referências freqüentes a ele, relacionando essas práticas ao conjunto das estruturas de troca (de bens, palavras, mulheres...) dessa sociedade (Lévi-Strauss, 1958).
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É essa posição, explicitada, nuançada e ilustrada por Kardiner, que serve de fio condutor à sua obra intitulada, com propriedade, The Individual and his Society [O indivíduo e sua sociedade] (1939), e que começa com uma crítica argumentada das teses de Freud sobre a universalidade do complexo de Édipo. Retomando, a propósito das ilhas Marquesas (cf. encarte 1), a constatação feita alguns anos antes por Malínowski a propósito, das ilhas Trobriand3, Kardiner constata que não aparece, nessas sociedades, nenhuma manifestação de nenhum complexo edipíano porqiíe não existe nenhuma instituição suscetível de engendrá-lo. Mas o que é uma instituição? É um "conjunto de esquemas de conduta, de modelos (patterri) de comportamentos fixados por efeito da repetição de ações individuais, uma formalização do comportamento humano" (Lefort, p. 36). O conjunto dessas instituições constitui a cultura de uma sociedade que, portanto, é também, segundo a célebre definição de Linton, "a configuração geral dos comportamentos aprendidos e de seus resultados, cujos elementos são adotados e transmitidos pelos membros de uma dada sociedade" (1945, p. 13). Aplicada ao recém-nascido e à criança, a instituição se define, segundo Kardiner, pelo conjunto das disciplinas básicas que fornecem o modelo de "gestão do corpo" da criança, ou seja, as respostas, extremamente variáveis conforme a cultura, às questões referentes a: a) amamentação e alimentação do bebê; b) circunstâncias e modalidades do desmame; c) relação com a nudez, com as roupas, com a envoltura...; d) relação com a limpeza, com os excrementos...; e) atitudes diante da masturbação infantil etc. É esse conjunto de "disciplinas orais, anais e sexuais" que Kardiner 3. Malinowski foi, sem dúvida, graças a suas notáveis pesquisas sobre os trobriandeses, o primeiro a criticar empiricamente a universalidade do complexo de Edipo formulado por Freud, ao mesmo tempo que enunciava os princípios de uma abordagem "científica" funcional da cultura (Malinowski, 1944). Mas, ao contrário de Kardiner e Linton, ele não deu à socialização a importância que lhe darão em seguida os teóricos da antropologia cultural.
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designa "instituições primárias" e que o antropólogo deve se esforçar em observar para compreender as "experiências básicas" a partir das quais o indivíduo incorpora a cultura de seu grupo social à sua personalidade. Como Freud, Kardiner concede à primeira infância uma posição privilegiada na formação do Eu, que ele define como "a soma de todos os processos adaptativos subjetivamente percebidos" (1939, p. 90). Também como Freud, Kardiner atribui uma importância extrema aos mecanismos de frustração que permitem o "trabalho social do instinto" e a formação dos primeiros vínculos sociais (por fixação, introjeção, deslocamento e transferência, segundo as categorias de Freud). Mas, ao contrário de Freud, Kardiner não conclui por nenhum mecanismo universal de estruturação do Eu, e sim constata uma extrema variabilidade das disciplinas básicas que produzem "os traços comuns a todas as personalidades de uma dada sociedade" (id., p. 99). Linton, que realizou um amplo estudo nas ilhas Marquesas (cf. encarte 1), constata que "não há ou há poucas disciplinas básicas". .O recém-nascido é confiado não a sua mãe, mas aos maridos secundários dela, para que "a criança cresça no meio de vários pais sem que nenhum reivindique prerrogativas e exerça autoridade severa, para não haver inflação anormal da imagem parental". A amamentação dura pouco (menos de quatro meses) porque "os marquesanos acreditam que ela torne uma criança difícil de ser educada e menos submissa do que convém" e sobretudo, segundo Linton, porque "as mulheres associam um grande orgulho à firmeza e à beleza de seus seios" e estão "convencidas de que uma amamentação prolongada possa desfigurá-los". O modo de alimentação é brutal: "Coloca-se o bebê deitado no terraço da casa enquanto a mãe fica perto dele com uma mistura de leite de coco e fruta-pão cozida... ela pega um punhado dessa mistura e, segurando o rosto da criança com a mão, enfia-lhe o alimento na boca." Não se faz nenhum esforço para obter um controle anal antes da idade de um ano: "O homem se contenta em tro-
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car o tecido de cortiça sobre o qual a criança fica deitada. Mais tarde, a criança é levada, nos braços do homem, a um local não muito distante e colocada em posição para fazer suas necessidades." As crianças passam a maior parte do tempo na água e aprendem a nadar antes de aprender a andar. Elas estão sempre nuas e nunca ficam sozinhas, já que são constantemente cuidadas (ainda que distraidamente, segundo o autor) pelos maridos secundários. Se os adultos estivessem ocupados, deixavam a criança chorar se estivesse berrando, mas, se ela se tornasse importuna demais, "um adulto a acalmava masturbando-a". AJçm disso, prossegue Linton, "a masturbação das meninas começa muito cedo: a partir de seu nascimento, seus lábios são sistematicamente manipulados para que se tornem maiores e, segundo acreditam, mais bonitos" (Kardiner, ia., pp. 226-7). ENCARTE l
Os habitantes das ilhas Marquesas segundo Linton (1920-1922)
Povo polínésio que vive em uma ilha do Pacífico central, cerca de dez graus ao sul do Equador, os marquesanos são de extrema beleza física, sobretudo as mulheres. Últimos poli-' nésios a serem cristianizados, por muito tempo resistiram às influências dos brancos, chegando mesmo a expulsar os missionários. Assim que foram submetidos, sua reação foi deixar de procriar... Compostas de ilhas elevadas rodeadas de falésias abruptas, as Marquesas são formadas por vales estreitos separados uns dos outros por esporões rochosos. De tempos em tempos, essas ilhas são vitimadas por secas prolongadas e destruidoras, ocasionando colheitas muito ruins e falta de água. Essas secas, que podiam durar até três anos, provocavam uma verdadeira fome, podendo reduzir de um terço a população e, às vezes, levando os indígenas a praticarem o canibalismo. A propriedade agrícola consiste apenas em árvores ou jardins dispersos por todos os vales. A terra é propriedade coletiva da tribo, administrada pelo chefe, mas as árvores e as colheitas são propriedades individuais. A cada nascimento, planta-se uma fruta-pão que será propriedade do recémchegado. No entanto, a pesca fornece a base da alimentação:
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ela é organizada comunitariamente, com redes gigantes colocadas entre os barcos. Outrora, os marquesanos eram robustos canibais, e as mulheres estavam autorizadas a comer carne humana, o que é excepcional. Ainda há um canibalismo cerimonial destinado à incorporação das qualidades do indivíduo (de uma outra tribo) que se come, com uma clara preferência pelas crianças. A instituição dos mestres artesãos é um traço relevante para a cultura marquesana. Personagem importante, o tuhunga (mestre artesão) trabalha sob encomenda, é alimentado por seu cliente durante o trabalho e canta cânticos sagrados enquanto trabalha. Se ele se for, ninguém pode substituí-lo sem saber em que ponto de sua salmodia ele está. Pode, assim, acumular grandes-riquezas e se tornar uma pessoa poderosa. Ensina sua arte, mediante retribuição, aos jovens que o solicitam. A posição" social é determinada pela primogenitura, sem levar em conta o sexo. A adoção é prática corrente. Os marquesanos estabelecem sua genealogia (às vezes até sessenta ou oitenta gerações) através dos parentes que ocupam a posição mais elevada em cada geração. Os casamentos são endogâmicos à tribo, e constata-se uma grande mobilidade. Todas as profissões, exceto.-a,de sacerdote cerimonial - especializado na esfera do além e sem poder econômico -, são abertas às mulheres, mas as mais prestigiosas (tuhungà) são reservadas às filhas primogênitas. Há pouca divisão de trabalho entre os sexos. Entre os marquesanos, a quantidade de homens é duas vezes e meia maior do que a de mulheres. A causa desse fenômeno é desconhecida ou escondida. Por causa disso, o grupo familiar é poliândrico. Há um marido principal e maridos secundários, exceto nas famílias mais pobres... As famílias abastadas podem ter mais de quatro homens para uma mulher, e a casa do chefe tem onze ou doze homens para três ou quatro mulheres. Todos os membros do grupo assim formado têm direitos sexuais uns sobre os outros, sendo esse arranjo uma-espécie de casamento grupai... Se há pouca disciplina entre os marquesanos (Linton não nota nenhuma punição para os delitos, sobretudo para
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o roubo de comida), há no entanto o perigo constante de violar os tabus, o perigo imaginário das ogras (vehini-hai, espíritos-ogras que, acredita-se, roubam as criancinhas e as devoram), o perigo real dos canibais ("se uma razia inimiga encontrasse uma criança vagueando, esta poderia ter certeza de que seria devorada ou sacrificada"). É por isso que, ainda que haja pouca aprendizagem organizada antes da puberdade ("a criança leva uma vida totalmente livre"), se vê, a partir dos oito anos, a formação de grupos mistos (mais meninos do que meninas, dada a relação demográfica) que se organizam para se proteger desses perigos. As crianças podem ficar longe de casa durante dois ou três dias, vivendo da pesca e das razias, dançando, cantando e se entregando a todos os jogos sexuais, à imitação de seus pais (mães e maridos principal e secundários). "As meninas eram instruídas sobre as questões sexuais desde a tenra infância e aprendiam a rebolar e a ter atitudes profundamente impregnadas de sexualidade. A técnica erótica era desenvolvida ao extremo, os dois sexos se vangloriavam com a mesma sinceridade de suas proezas nessa área, sobre as quais discutiam sem pudor. Considerava-se natural que todo encontro entre dois jovens de sexos diferentes, a menos no caso de filhos de uma mesma família, acabasse em ato sexual. As meninas começavam suas danças inteiramente vestidas, mas as acabavam completamente nuas, com os resultados que podemos esperar" (ia., pp. 232-3). Entre a puberdade e a idade do casamento, os jovens formam um grupo conhecido como Kaioi: eles começam, então, a se vestir com roupas complicadas e passam horas pintando o corpo. Tornam-se os principais animadores da tribo, dançando e cantando em festas e cerimônias em troca de generosas recompensas. É somente então — ao que parece, por volta dos quatorze-quinze anos - que começa seu aprendizado: eles aprendem os cânticos e as genealogias oralmente com os sacerdotes. Meninas e meninos aprendem juntos sem regras específicas, mas, "durante o ensino da parte mais esotérica desse saber, o professor, assim como
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o aluno, está submetido a tabus muito estritos" (id., p. 230). É durante esse período que intervinha a iniciação*, que consistia em uma tatuagem minuciosa que podia durar muitas semanas e era feita por especialistas reputados; as meninas eram tatuadas individualmente e sem rito particular, a não ser para as primogênitas de chefes. Os meninos eram tatuados por grupos e, em seguida, tinham direito a uma festa coletiva na qual as meninas dançavam não nuas mas com saias totalmente trançadas "que elas levantavam durante o canto final para mostrar suas partes genitais". Esse gesto "indicava que chegara o fim do período Kaioi e que era hora, para os rapazes, de escolher uma parceira e de se estabelecer". Também no mesmo momento, o jovem começava a estudar "para se tornar membro de qualquer profissão que ele tivesse escolhido" (id., p. 230). Agora se compreende melhor por que Kardiner responde negativamente à questão: "O complexo de Édipo manifesta-se de alguma forma na sociedade marquesana?" (id., p. 297). Não somente o arrtropólogo não coletou "nenhum relato em que se vê o filho matar o pai e possuir a mãe", mas também as razões dessa ausência são evidentes assim que se considera a organização global da sociedade marquesana e a natureza particular das disciplinas básicas às quais estão submetidos seus membros. Nas ilhas Marquesas, o menino não tem nenhuma oportunidade de adotar uma atitude de dependência fusional em relação à mãe; ela se mostra cruel porque frustrada. Se-a dependência é exercida mais para com o pai e os maridos secundários, e uma vez que eles não castigam e nunca frustram a criança, ela não tem nenhuma razão para odiá-los. 4. Linton assinala que a iniciação não acaba por ocasião da cerimônia de tatuagem dos jovens: "Quando um homem chegava aos trinta anos, em particular se se tratasse de um grande guerreiro, ele se submetia a uma nova operação de tatuagem acompanhada da pintura de todo seu corpo." Há, assim, uma relação visível entre a cor dos corpos e seu grau de socialização: os "velhos" eram em geral completamente pintados de verde, o que permitia identificá-los com muita facilidade (Kardiner, op. cit., p. 232).
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Conseqüentemente, a personalidade marquesana é muito diferente da dos adultos ocidentais. Lá se pratica a poliandria e o casamento grupai mas o ciúme lhes é desconhecido, "exceto quando se bebe". As mulheres têm um papel dominante na sexualidade, mas sua potência sexual "depende de preliminares complicadas sem as quais lhes é impossível chegar ao orgasmo... talvez por causa de um condicionamento precoce ao ato prolongado sem orgasmo". Nunca se fala de impotência masculina, que é muito rara. O marquesano é "essencialmente um ser polido", suas "maneiras são suaves" e sua "capacidade de explorar outrem é muito reduzida", sendo seu único objeto de ódio a pessoa capaz de frustrar suas necessidades essenciais ou de humilhá-lo publicamente (o que pode levá-lo ao suicídio). A mulher ocupa, "no folclore, uma posição muito próxima da do pai em nossa cultura, e é por isso que ela constitui o alvo habitual do infortúnio". A socialização da criança marquesana é, portanto, em vários aspectos, diferente da socialização (e até mesmo contrária a ela) da criança ocidental de hoje. As relações da criança marquesana com a mãe são reduzidas ao mínimo, e são os homens que têm a responsabilidade de se ocuparem dela; não há obrigações quanto à limpeza nem imposição de roupas; não há nenhuma restrição sexual ou exigência de obediência; não há escola nem aprendizagem obrigatória antes da puberdade, mas sim uma grande liberdade coletiva dentro dos grupos de crianças; sua instrução começa somente no momento de sua iniciação, quando se torna, membro integral de sua sociedade. Se, por um lado, podemos, a rigor, distinguir algumas fases ligadas tanto à maturação biológica quanto às instituições sociais (sendo o período que vai dos oito anos à puberdade, o dos grupos de crianças, o único claramente delimitado por Linton), por outro, não podemos transportar facilmente para a sociedade marquesana nem uma nem outra das classificações em "estágios" construídas por Piaget^A criança marquesana se impregna progressivamente, por observação e imitação, da
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"cultura" de seu grupo; em seguida a experimenta, de maneira informal, nos grupos que reúnem as crianças de sua faixa etária5: pratica-a, de maneira formalizada, dentro do grupo Kaioi; enfim, é reconhecida como membro de sua sociedade por imitação, que coincide com um curto período de instrução e com seu casamento. 1.1, A hipótese da personalidade básica Portanto a abordagem da antropologia cultural consiste inicialmente em descrever a formação das personalidades individuais como uma incorporação progressiva da cultura de sua sociedade de perten
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do o que ele denomina "estrutura da personalidade básica (Eu) do indivíduo, isto é, o conjunto dos instrumentos de adaptação que um indivíduo partilha com todos os outros em uma dada sociedade" (Kardiner, 1939, p. 291). Essa noção - com freqüência traduzida pela simples fórmula "personalidade básica" e às vezes erigida em "conceito sociológico" (Dufrenne, 1953) - não é simples de compreender e deu margem a interpretações diversas, às vezes caricaturais (Dufrenne, ia., p. 127). O próprio Kardiner apresentou várias definições diferentes dela, entre as quais a que em geral é adotada pela tradição sociológica: "Configuração psicológica particular própria aos membros de uma dada sociedade e que se manifesta por um certo estilo de vida no qual os indivíduos bordam suas variantes singulares" (Kardiner, citado por Dufrenne, ia., p. 128). Se compararmos essa definição tardia à primeira, perceberemos um primeiro "deslocamento" do cultural (instrumentos de adaptação que remetem a instituições no sentido definido anteriormente) ao psicológico (configuração que remete a tipos de personalidade descritos em termos psicológicos). Ora, em sua primeira obra, Kardiner tinha cuidado em distinguir sua noção de "personalidade básica" da de "caráter", concebido como "conjunto de atitudes do eu, habituais ao status social, ao sexo etc., e deles decorrentes" (1939, p. 291). Dizer que um esquimó (um "eu") pode se mostrar teimoso e desconfiado é, para Kardiner, falar de seus traços de caráter. Mas dizer que a personalidade básica de um Esquimó (urrv"Eu") difere da de um marquesano é mostrar que ela é produto de instituições diferentes, que ela íntegra modelos de comportamento diíerentesrqülTela constitui um outro "quadro que contém todas as diferenças de caráter". Em outros termos, é preciso distinguir o "Eu" (personalidade básica) abstrato, reconstruído pelo cientista a partir da configuração das instituições primárias, dos "eu" (caracteres individuais) concretos, que constituem maneiras singulares e únicas de viver as mesmas instituições e de colocar em prática os mesmos modelos.
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Pretender que, em cada sociedade, existe uma "estrutura da personalidade básica" dos indivíduos é elaborar uma hipótese ousada: a de que existe uma coerência entre todos os modelos de comportamento; um núcleo que assegura a unidade das instituições primárias, uma "unidade cultural" suscetível de ser reconstruída de maneira convincente, por meio de alguns traços que formam sistema (o que Linton denomina "cerne psicológico"). No que se refere à personalidade marquesana, Linton distingue, em sua descrição, três traços essenciais que constituem, pois, o "cerne psicológico" da cultura das ilhas Marquesas (Kardiner, 1939, pp. 256-7): - a angústia da falta de comida baseia-se na hipótese de que "inúmeras instituições foram, originalmente, meios de evitá-la, ainda que hoje possam servir para coisas totalmente diferentes". A antropofagia, a ausência de punição para o roubo, a relação dos adultos com a -alimentação das crianças fazem parte, por exemplo, das instituições secretadas, segundo Linton, por essa "angústia primordial"; - a desigualdade numérica dos sexos (cuja causa real é ignorada) está ligada à hipótese de que uma parte da organização dos marquesanos constitui uma adaptação a esse fato tido como primordial: a poliandria, a importância atribuída à paternidade, a "repulsa ao ciúme, que permite preservar os interesses maiores do grupo", a posição dominante da mulher na sexualidade mas também seu "denegrecímento no folclore" (ogra "devoradora de homens") são, entre outras, consideradas por Linton instituições primárias decorrentes desse segundo grande traço do "cerne psicológico dos marquesanos"; - a natureza das disciplinas básicas e principalmente a quase ausência de interditos constituem o terceiro traço significativo desse "cerne". Esse traço corresponde à hipótese clássica da determinação do Eu pelas experiências básicas da primeira infância e, sobretudo, pelo modo de gestão dos corpos e pelas reações originais às frustrações. Esses três traços essenciais permitem definir a estrutura do Eu marquesano? Evidentemente não, já que Kardi-
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ner, em sua síntese final, acrescenta três dimensões às instituições básicas que produzem a estrutura do Eu: as relações entre os sexos (que ele não considera simples efeito da relação demográfica homens/mulheres); a mobilidade social (e principalmente a primogenitura, que tem um papel essencial na circulação dos poderes); a propriedade que determina, segundo Kardiner, a ausência de qualquer outra' ansiedade além da vinculada à alimentação... A indeterminação concernente à composição do "núcleo" fia cultura6 e a imprecisão concernente às relações entre os elementos desse "núcleo" (instituições primárias) não são eliminadas por essa síntese de Kardiner. Recusando privilegiar um traço particular graças a que todos os outros teriam significado (além disso, como saber qual privilegiar?) e não podendo justificar a quantidade e a natureza das instituições básicas necessárias à reconstrução da estrutura básica (as três de Línton ou as seis de sua síntese ou outras...), Kardiner tenta fundamentar sua demonstração na distinção entre as instituições primárias, que produzem a estrutura do Eu, e as instituições secundárias, produzidas por ela: mostrando empiricamente que a configuração das instituições primárias permite, por meio da estrutura do Eu, explicar a totalidade das instituições secundárias (as que concernem essencialmente às crenças e às representações, de um lado, e às práticas simbólicas, de outro), o autor espera validar sua escolha dos traços essenciais da cultura. Mas, ao fazer isso, ele se expõe ao risco da arbitrariedade: cada um poderá selecionar os traços culturais que lhe parecerem mais determinantes em função de seus pressupostos. Basta ler atentamente o quadro de Kardiner (id., p. 301) para constatar que muitas instituições secundárias poderiam ser consideradas primárias, e -vice-versa. Há claramente uma "circularidade 6. Um autor tentou teorizar e generalizar o modelo de Kardiner, propondo cinco dimensões fundamentais para estruturar as instituições primárias e, portanto, o "núcleo cultural de uma personalidade": "a ecologia, o sistema de conservação, as práticas educacionais, as variáveis de personalidade e os sistemas projetivos" (Whíting, 1961, pp. 355 ss.).
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entre os diversos elementos institucionais" que torna "frágil" toda tentativa de introduzir aí uma causalidade convincente (Lefort, id., p. 38). 1.2. A socialização na abordagem culturalista
Considerada o "processo que comanda a formação e o equilíbrio da personalidade", pode a socialização ser decomposta em um conjunto de mecanismos gerais que asseguram a incorporação da cultura nas personalidades individuais dos membros de uma mesma sociedade? Pode ser considerada a hipótese de uma estrutura única para todas essas personalidades que partilham a mesma cultura? Se sim, sob que condições? Linton tentou forjar categorias aplicáveis às sociedades modernas. Ele resume a contribuição essencial da abordagem culturalista em uma fórmula geral: "as sociedades são feitas de tal maneira que só podem exprimir sua cultura por intermédio dos indivíduos que a compõem, e só podem perpetuá-la instruindo esses indivíduos" (1936, p. 301). Mas, ao contrário das sociedades tradicionais, que possuem uma sólida unidade cultural, as sociedades modernas são definidas por ele como "agregados de subculturas e de elementos gerais que resultam de sua interação". Distingue, assim, quatro tipos de traços culturais que intervém na modelagem das personalidades individuais (1936, pp. 304-5): - traços gerais ("núcleo da cultura de uma sociedade"), comuns a todos os membros: a linguagem, os valores básicos, os modelos essenciais de relações sociais, os hábitos comuns...; - traços especializados, comuns a certas categorias socialmente reconhecidas e que partilham o mesmo status social: sexo, faixa etária, classes sociais, grupos profissionais...; - traços alternativos, que decorrem das opções de reação às mesmas situações...; - particularidades individuais, concernentes às escolhas pessoais e essenciais aos processos de inovação cultural...
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Desse modo, Linton pode esboçar um esquema da dinâmica cultural das sociedades modernas: - a quantidade de traços culturais que formam o "núcleo da cultura de uma sociedade" tende a diminuir à medida que ocorre a complexificação social; - quando o "núcleo" se reduz em demasia, a cultura' tende a se tornar um "leque de opções" e nenhum outro modelo de vida coerente é proposto a todos os indivíduos de uma mesma sociedade global: há, então, risco de "desintegração cultural"; - esse risco pode ser evitado com a emergência de um novo tipo de cultura oriunda da "necessidade de um conjunto de idéias e de valores mutuamente compatíveis aos quais todos os membros possam aderir para justificar seu pertencimento comum". Essa emergência implica a reconstituição de um novo núcleo cultural a partir de um rearranjo de elementos antigos e de novos, provenientes de inovadores culturais; ela supõe, paralelamente, a reconstituição de uma nova estrutura de Eu (personalidade básica) por meio de uma socialização comum. Linton - assim como Kardiner e todos os antropólogos culturalistas - acredita na possibilidade e na necessidade de reconstituicão de culturas comuns a todos os membros de uma mesma sociedade. Para isso, ele se fundamenta na convicção de que existe "uma série de experiências subculturais básicas que estão presentes em toda parte, ainda que com freqüências variáveis, em todas as sociedades" (ia., p. 511). Essas experiências básicas remetem, segundo ele, a "elementos psicológicos subjacentes... que nos permanecem ocultos" (id., p. 333). Elas se vinculam, enfim, à necessidade primordial, para o indivíduo, de pertencimento social estável: "cada indivíduo considera os modelos de sua própria cultura guias-de seu comportamento e é raro que ele tente, imitar os modelos de outras subculturas mesmo que as conheça bem" (id., pp. 305-6). É por isso que a socialização da criança é analisada essencialmente como um processo de incorporação progressiva dos traços gerais característicos da cultura de seu grupo
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de origem, aquele que se supõe que defina seu pertencimento social básico. Mesmo que a socialização também seja aquisição de traços particulares de seus futuros grupos estatutários e preparação para as opções e escolhas de seus elementos culturais singulares, ela é primeiro concebida como um treinamento (training) para dominar os elementos básicos da cultura de pertencimento, a que melhor corresponde às "experiências básicas", incorporadas no decorrer da primeira infância. Essa fidelidade às raízes constitui, enfim, uma condição essencial da manutenção e da transmissão, entre as gerações, dos núcleos culturais específicos a cada sociedade. Por isso, toda teoria global das sociedades esbarra na questão de sua reprodução cultural. Como imaginar que uma sociedade possa se conservar se seus membros não aderem a um núcleo cultural comum que transmitiriam à geração seguinte? Mas como pensar essa transmissão quando cada geração pretende construir sua própria cultura? Como conciliar essa exigência de reprodução com a dinâmica cultural das sociedades modernas? Foi em grande parte para responder a essas questões que os teóricos funcionalistas tiveram de,elaborar concepções da socialização que permitissem ao mesmo tempo explicar a reprodução dos "núcleos culturais" e considerar as modificações constatáveis (entre as gerações e ao longo de uma vida) das "personalidades individuais". 2. A "suprema teoria" da socialização: Parsons e o sistema LIGA Entre as tentativas funcionalistas7 de construção de uma teoria "generalizada" (e não "restrita", no sentido do capí7. Para urna apresentação global e uma síntese crítica das diversas correntes funcionalistas, podemos nos remeter ao capítulo que lhes consa^ta G. Rocher em Introduction à Ia sodologie générale [Introdução à sociologia goial] (1968, t. 2, pp. 160-76) e ao artigo de Merton publicado em ÉlémentsrfVthínric et de méthode sodologíque [Elementos de teoria e de método sociológico] f 1 g^5, trad. fr., pp. 65-139).
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tulo 1) da socialização, inclusa em uma Teoria Geral da Sociedade, a de Talcott Parsons é triplamente interessante. Primeiro porque ela parece totalmente "amarrada", ou seja, logicamente acabada em uma espécie de axiomática geral das ciências humanas. Em seguida porque empresta elementos de numerosos autores cujas contribuições pretende sintetizar: Freüd primeiro, mas também Durkheim, Weber, Pareto... Enfim porque foi a partir de sua crítica que se desenvolveram novas abordagens mais operacionais da socialização...
2.1. A teoria da Ação segundo Parsons
O ponto de partida da Teoria de Parsons é a análise da ação humana a partir do desmembramento de um ato elementar em quatro elementos essenciais: "a ação supõe um ator, uma situação parcialmente controlada por ele, uma combinação de/ms e de meios submetidos à escolha do ator por critérios normativos" (Bourricaud, 1977, p. 32). O conjunto dos meios e dos fins às vezes é chamado de objeto por Parsons, retomando um termo essencial de Freud: esse termo lhe permite definir a ação humana como uma relação de objeto, isto é, um comportamento orientado para fins e que tem uma significação para o ator. Portanto ele também se inscreve no prolongamento de Max Weber, fazendo da sociologia a ciência da ação social definida como conduta "que tem uma significação subjetiva", ou seja, "orientada, ao menos parcialmente, pelo comportamento de outrem" (1920, p. 5). Parsons conceitua a ação humana pelas quatro proposições seguintes: - é orientada para fins, o quê implica antecipações por parte do ator; - ocorre em situações estruturadas por recursos;* - é regulada por normas que dirigem a relação do ator para com os meios;
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— implica uma motivação, um gasto de energia aplicado à relação do ator para com o fim que persegue. O que interessa a Parsons é elaborar uma teoria geral que integre todos os elementos da ação humana e que explique suas regularidades e variações. Partindo do ato individual, ele encontra primeiramente a interação, visto que toda ação humana supõe, de algum modo, uma relação com outrem. A interação só será possível, segundo Parsons, se "uma norma comum se impuser simultaneamente aos dois atores". Não será possível se comunicar (suprimir o que Parsons denomina "dupla contingência") se não se possuir um mínimo de código comum (nem que seja uma linguagem gestual que cada um interpreta da mesma maneira...). Essa norma comum somente pode decorrer, segundo Parsons, de uma cultura partilhada, implicando "um sistema de valores subjacentes às normas que orientam os atores" (1937, p. 15). Mas o ato individual- também persegue fins. Estes implicam, para serem visados, motivações que remetem a necessidades do organismo. A ação humana não é somente interação que pressupõe a existência de uma cultura comum aos atores, ela também é satisfação de uma necessidade que pressupõe a existência de um corpo fornecedor de energia necessária à sua execução. Parsons acaba, em uma síntese tardia (1966, capítulo II), por decompor o sistema da Ação em quatro subsistemas, funcionalmente ligados entre si: - subsístema biológico, do organismo neurofisiológico, define-se por suas necessidades e fornece a energia da ação; - subsistema psíquico, da personalidade, define-se por suas motivações, que explicam os fins da ação; - subsistema social, da interação entre atores, impõe normas à ação; - subsistema cultural, dos sistemas simbólicos, aciona valores (e também conhecimentos e ideologias...) e proporciona a informação necessária à ação. r Desse modo, Parsons pode definir a ação como uma "estrutura de interdependência fundada na sobreposição
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sucessiva dos mecanismos de controle da ação": estes, com efeito, podem ser pensados como na cibernética, definida sucintamente como o estudo comparado dos sistemas informáticos e do sistema nervoso humano. Três conceitos essenciais intervém nessa comparação: a informação^, a energia e a regulação, definida aqui como" "controle que consiste em comparar os resultados obtidos às previsões e em desencadear, em caso de desvio, as operações corretivas" (Couffignal, 1963, p. 118). É com base nesse "modelo" cibernético - hoje muito ultrapassado - que Parsons constrói seu Sistema da Ação como uma integração de seus quatro subsistemas, cada um comportando seus mecanismos de regulação (controle) segundo uma "hierarquia cibernética": quanto mais um subsistema controla os outros, mais rico ele é em informação; quanto mais um subsistema é controlado pelos outros, mais rico ele é em energia (Rocher, 1968, pp. 209 ss.). Assim, a cultura controla o sistema social, que controla a personalidade, que controla o organismo. 2.2. A socialização: o sistema LIGA
Entre a definição analítica da Ação, produzida nas primeiras obras de Parsons (1937), e a síntese dos quatro subsistemas do Sistema Geral da Ação, apresentada em obras tardias (1966), surge uma teoria da socialização elaborada em colaboração com Bales (1955), baseada em uma concepção totalmente funcional do sistema social. Este é, efetivamente, construído a partir de quatro imperativos funcionais definidos da seguinte maneira: - a função de estabilidade normativa (às vezes designada pela letra L, de latêncià) significa que o sistema social deve assegurar a manutenção e a estabilidade dos valores e das normas e fazer com que sejam conhecidos e interior%zados pelos atores; - a função de integração (I de integração) significa que o sistema social deve assegurar a coordenação necessária entre os atores, membros do sistema;
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- a função de "perseguição dos fins" (G de goal-attainmenf) significa que o sistema social deve permitir a definição e a concretização dos objetivos da ação; - a função de adaptação (A de adaptação) deve assegurar a adequação dos meios aos fins perseguidos e, portanto, uma adaptação eficaz ao meio circundante. Pode-se facilmente estabelecer uma correspondência entre essas quatro funções do sistema social e os quatro subsistemas da Ação: - a estabilidade normativa (pattern-maintenancé) assegura a articulação do sistema social com o sistema cultural, garantindo o vínculo entre os valores culturais e as normas que regulam a ação; - a integração assegura a coesão interna do sistema social, garantindo a eficácia coletiva das próprias normas; - a perseguição dos fins assegura a articulação do sistema social com o sistema das personalidades, garantindo a compatibilidade entre os objetivos da açab e as normas e valores legítimos da sociedade; - a adaptação assegura a articulação do sistema social com o organismo, controlando a adequação dos meios aos objetivos da ação. É o processo de socialização, por meio do qual todo indivíduo se torna portador de seu sistema social, que assegura a interiorizacão (intemalizaliari), na personalidade, desses quatro imperativos funcionais integrados, designados com freqüência pelo termo "sistema LIGA". A análise detalhada que Parsons (1955) faz deles se apoia em duas fontes essenciais: as aquisições da psicanálise de Freud e os resultados das pesquisas sobre o funcionamento da interação em grupos pequenos (R.-F. Bales, especialista dessas pesquisas, é co-signatário da obra de referência). Ela se organiza em torno das fases essenciais do desenvolvimento da personalidade segundo Freud, mas reinterpretando-as como momentos de um processo "de interiorizacão de objetos por meio das interações constitutivas de um sistema de relações sociais" (1955, p. 40), assegurando o estabeleci-
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mento de um controle social da aprendizagem (learning-social contrai). ' A primeira fase, consecutiva ao "traumatismo" do nascimento, organiza-se em torno da identificação priifiária da criança pequena com sua mãe, que estabelece uma relação de dependência oral (ai) à maneira da possessão (a mãe é "aquela que desejaríamos ter"). Essa fusão original cria uma identidade mãe-filho (mother-child ídentity) que é qualificada de "proto-social", visto que o bebê ainda não está socializado. Com efeito, a atitude dominante da mãe é a permissividade (bl), que permite ao bebê exprimir suas necessidades vitais mas também "interiorizar a mãe como um objeto" (ia., p. 65). Parsons insiste no poder da mãe, primeiro agente socializador: é dela que depende o êxito dessa primeira identificação, ou seja, a generalização de seu universo a outros objetos. A boca é "o veículo dessa generalização" (ia., p. 66) e é a atitude da mãe que permite a extensão dos investimentos do bebê sobre novos objetos. Assim, é ela que permitirá o desencadeamento da primeira função do processo de socialização: o estabelecimento de novas especificidades do objetivo (G), de novas relações de objeto. Mas seu papel não se limita a isso. Constatando, com Freud, que "o superego da criança não se forma à imagem dos pais mas sim à imagem do superego deles" (Freud, 1920, trad. fr. 1981), Parsons e seus colegas também definem a identificação primária como "o primeiro reconhecimento das normas e dos valores como indicadores (standard) que balizam o campo da Ação" (1955, p. 63). A mãe e depois o pai, e eventualmente as pessoas próximas, permitirão à criancinha, por suas atitudes, fazer sua primeira aprendizagem dos standards da ação ao lhe exprimir o que eles pensam lhe ser permitido ou proibido, em função de seus próprios superegos, que não são outra coisa senão a interiorizacão das normas e dos valores de sua cultura. Assim se realiza a primeira função da socialização: a estabilidade normativa (L) não por puro condicionamento mas pela modelagem de atitudes resultante das sanções pelas quais
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os primeiros socializadores respondem às tentativas da criança. Nessa interação, a criança aprende as primeiras normas como sendo respostas a essa passagem da permissividade aos primeiros interditos. A fase anal constitui uma transição essencial entre a dependência oral e o apego amoroso (a2). Ela acompanha, na criança pequena, a primeira diferenciação de si como objeto, em relação à mãe (e não mais em fusão com ela), graças às frustrações engendradas pelos interditos precedentes. Ao estimular, sob formas diversas, o controle do esfíncter (protótipo simbólico do controle de si, segundo Parsons), a mãe também permite ao filho assumir seu primeiro papel autônomo em interação com ela: ao lhe fazer esse favor, "ele não é apenas amado, mas também ama ativamente" (ia., p. 43). Desse modo, pode interiorizar ativamente um conjunto de valores essenciais à cultura de seu grupo social e preparar-se para enfrentar a primeira grande crise de seu desenvolvimento graças ao apoio (b2) que essa primeira autonomia em relação a sua mãe constitui. A crise edipiana acompanha a descoberta do fato de que é preciso "dividir a mãe com esse estranho íntimo, o pai", e provoca "a primeira expansão do universo social", assim como a "diferenciação da identidade sexual". Essa verdadeira revolução no desenvolvimento se efetua por meio do que os autores denominam "fissão binaria", isto é, a passagem de um sistema com dois a um sistema com quatro por um primeiro desdobramento das atitudes (id., p. 79). Essa fissão permite a diferenciação sexual do universo familiar. Diante: 1) da criança dotada de suas primeiras normas (o que é permitido ou proibido a mim, criança pequena), encontram-se, de agora em diante, três grupos distintos; 2) os pais (fonte de aprovação e de reforço das normas); 3) o "nós" das pessoas do mesmo sexo (papai e eu, menino; mamãe e eu, menina; mais, eventualmente, os irmãos e as irmãs, fonte de conformidade sexual);
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4) o Nós familiar constitui o primeiro Objeto coletivo interiorizado pela criança como tal (e não como relação entre mim e outros). Essa "interiorização da coletividade familiar como objeto, assim como seus valores", é qualificada por Parsons como crucial. Já não se trata de uma fusão como na "crise oral", mas de uma identificação coletiva que permite a realização da função de integração social (I) com base na partilha de normas e de valores comuns. Essa identificação é acompanhada de uma "diferenciação sexual do universo social", já que de agora em diante o mundo se divide entre "os que o têm e os que não o têm" (ia,, p. 80). Parsons não retoma a tão célebre quanto controvertida tese de Freud sobre a "inveja do pênis", constitutiva da identidade feminina. Ele defende a idéia de que a identificação ao papel sexual (sex-role identíficatiorí) que acompanha a interiorização da coletividade familiar constitui um mecanismo essencial que assegura, simultaneamente, a integração de um indivíduo ao sistema social e sua adaptação antecipada à divisão sexual dos papéis sociais. Ao se socializar à família (ou "grupo primário"), a criança se define, ao mesmo tempo, como um ser sexuado que deve obedecer a normas específicas. A resolução da crise edipiana permite a instalação da criança na fase de latência (a3) e a consolidação duradoura do sistema dos quatro papéis familiares (pai/mãe/filho/fíIha) em sua personalidade social. A criança poderá, assim, sair da esfera interna da família para experimentar.um primeiro sistema social global (latencij-child society), constituído pelo tripé "família, escola, grupo dos pares" (id., p. 52). Essa experiência é acompanhada da passagem de categorias específicas (os papéis familiares) a "uma categorização universalista" (p. 122) que permite a adesão a regras gerais e imparciais (c/. Piaget, que Parsons invoca para apoiar sua análise) e a interiorização de novos papéis sociais que já não repousam em gratificações imediatas mas no que os autores denominam "negações de reciprocidade" (b3). Ela deverá ser, a um só tempo, um filho ou uma filha em sua fa-
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mília, um (a) aluno(a) em sua classe e um(a) colega em seu grupo etário, e isso sem esperar recompensas particulares que não as de ser conforme às expectativas de seus "agentes socializadores". Mais uma vez Parsons insiste na importância do papel desses agentes no estabelecimento dessa nova função de "perseguição dos fins" (G), que caracteriza com exclusividade essa nova fase. Aprender os ofícios de aluno(a), de filho-filha e de bom(boa) colega não ocorre sem uma colaboração mínima dos professores, dos pais e dos "grandes" (irmão mais velho, irmã mais velha^ etc.) no compartilhamento das mesmas normas (função L) e na integração ao mesmo sistema social (função I). Tudo se sustenta, necessariamente, na teoria de Parsons. A socialização tem fim com a resolução da segunda grande crise, constituída pela adolescência. Trata-se, dessa vez, de "deixar a família de orientação" para ser reconhecido como membro adulto de um grupo de pertencimento de tipo "universalista", e não mais "particularista", como era a família de origem. Trata-se, para o jovem, de entrar em novos campos de interação (casamento, profissão...), aprendendo novos papéis que implicam um reconhecimento social de sua maturidade (a4). Isso implica uma nova relação com as regras sociais, permitindo a "manipulação das sanções" (b4), ou seja, a capacidade de se adaptar a um novo universo institucional, adaptando suas regras a suas motivações, doravante conscientes e reconhecidas como legítimas. Trata-se, de certa forma, de reconstruir uma adaptação (A) voluntária, graças às aquisições interiorizadas de suas socializações anteriores, amplamente experimentadas. É do êxito dessa reconstrução que depende o fim da crise da adolescência e a adaptação social da idade adulta. A figura 2, emprestada do próprio Parsons (1955, p. 41), faz coincidir as quatro fases "biográficas" da socialização dos indivíduos com as quatro funções "estruturais" da socialização concebida como um processo social. Essa correspon-
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dência é totalmente justificada pela apresentação precedente. Com efeito, ela implica que as funções mais decisivas da socialização (a interiorização das normas e dos valores e a integração social) sejam também as que são realizadas mais cedo, e que a personalidade social já esteja amplamente constituída, desde a primeira infância, pela assimilação dos grandes "modos de orientação" da família de origem (as célebres pattern-variables, de que não se tratou aqui, mas que são apresentadas e discutidas em todas as obras francesas consagradas à obra de Parsons). Se não é a única leitura possível da síntese dedicada especialmente à socialização (1955) que contém desdobramentos importantes para a ambivalência e o desvio como "desregramentos da interação e fontes de transformação social" (Bourricaud, p. 144), essa apresentação não está, contudo, em contradição com a estrutura geral da teoria de Parsons, qualificada ironicamente de "Suprema Teoria" por W. Mills (trad. fr. 1967). De fato, esta repousa sobre a idéia de que o processo de socialização deve, em geral, levar à adaptação das personalidades individuais ao sistema social tal como ele funciona em suas estruturas mais profundas, ou seja, as que exprimem o sistema simbólico e cultural existente. A conformidade precoce dos indivíduos às normas e aos valores é assegurada pelos agentes socialízadores que foram, por sua vez, socializados nesse sistema e legitimados para assegurar seu papel socializador. Quanto mais cedo essa conformidade intervier na existência, mais precocemente ela se integrará às personalidades em formação e maior possibilidade ela terá de levar a uma adaptação bem-sucedida. É esse "esquema culturalista" que Parsons partilha com os teóricos da antropologia cultural8 e que ele completa com uma metáfora ci-
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bernética que lhe permite transpô-lo às sociedades modernas e, principalmente, à sociedade americana, em que o conformismo representava, ao menos naquela época, uma norma essencial. O "sistema social", segundo Parsons, representa, desse ponto de vista, o complemento indispensável à "cultura" dos antropólogos e permite a generalização do modelo "culturalista" da socialização às sociedades contemporâneas (Rocher, 1972). Essa generalização será objeto de críticas múltiplas e ácidas que chegam a colocar em dúvida a própria pertinência do ponto de vista funcionalista que guiou sua elaboração.
A: Adaptação a4: maturidade (8-16 object systems) b4: manipulação das sanções
G: Perseguição dos fins a3: latência (4-8 object-family role systems) b3: recusa de reciprocidade Adolescência (c4)
Crise oral (cl) ai: dependência oral (mother-child identity) bl: permissividade
Fase edipiana (c3) a2: apego amoroso (parent-self object differentiation) b2: apoio Fase anal (c2)
L: Estabilidade normativa
Figura 2 O sistema LIGA e a socialização segundo Parsons 8. Parsons consagra uma explanação bastante longa à questão da generalização de seu esquema a culturas tradicionais regidas por outras estruturas de parentesco. Considera sua teoria generalizável, com a condição de distinguir os modelos de papéis (rôle-patterns) de sua aplicação específica a uma dada cultura. Defendendo a tese da universalidade das quatro funções e dos
quatro papéis básicos no "grupo primário" (papéis de pai, mãe, filho e filha), ele considera equivalentes funcionais as diversas formas e combinações assumidas por esses papéis nas diversas culturas (1955, pp. 106 ss.).
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3. Críticas ao funcionalismo: da hipersocializacão à socialização antecipatória 3.1. A contenda da hipersocializacão Em um artigo percuciente, o sociólogo Dennís Wrong (1961) recrimina Parsons por fazer da "sociedade dos homens" uma realidade que não é "muito diferente da sociedade das abelhas", com a diferença de que "o mesmo resultado obtido em um caso pelo instinto é obtido no outro por outros caminhos". Qualificando a teoria de Parsons de "concepção hipersocializada do homem", Wrong denuncia a redução da socialização, por Parsons, a um "puro e simples adestramento", eliminando a questão central levantada, no século XVII, por Hobbes: "Como é possível a coesão social em uma sociedade constantemente ameaçada pela guerra de todos contra todos?" Essa contenda do indivíduo hipersocializado provocou o protesto de Parsons, que redefine a socialização como "sistema de relações dinâmicas" destinado a solucionar o que ele denomina "paradoxo do social", assim enunciado: "as sociedades humanas são compostas de indivíduos autônomos" e, contudo, "não são puros agregados de indivíduos". Segundo ele, sua teoria da socialização explica as condições em que o indivíduo pode ser "solicitado, induzido, obrigado ou motivado a participar da vida social". Ele insiste na importância da passagem da socialização primária, marcada pela dependência e considerada "hierárquica e naturalista", à socialização secundária, submetida às interações e concebida como "igualitária e artificial". À passagem de uma à outra marca uma ruptura na "conquista da autonomia", assegurando a continuidade necessária à manutenção das normas e dos valores da geração precedente. Pois, escreve Parsons, "socializar um indivíduo é torná-lo semelhante aos outros membros do grupo e, em particular, a seus pais". Isso é assegurado, segundo ele, pela identificação, que permite à criança ser "semelhante sem ser idêntica" (Bourricaud, 1977, p. 192).
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Essa contenda da hipersocializacão ressalta um ponto essencial: as identificações eventuais da primeira infância são decisivas para as identidades futuras'do indivíduo? Elas são necessárias à estruturação da personalidade da criança? Asseguram a continuidade das normas e dos valores entre as gerações? Como verificar empiricamente a relação entre estas e os comportamentos ou as representações da idade adulta? Não estaremos diante de um postulado inverificável e por demais arbitrário, proveniente do impacto da psicanálise sobre o conjunto das ciências humanas? É, ao que parece, um dos panos de fundo essenciais dessa contenda. A relação de Parsons com a psicanálise merece ser esclarecida. Lembremos que ele começara a estudar biologia com o projeto de seguir uma carreira médica, foi convertido às ciências sociais por um de seus professores, empreendeu novos estudos de economia e sociologia - principalmente na London School of Economics - e, em 1927, começou a dar aulas no departamento de economia de Harvard, onde publicou, em 1937, seu trabalho mais estrondoso, The Structure of Social Action [A estrutura da ação social], que por outro lado lhe valeu uma desaceleração considerável de sua carreira institucional em Harvardy. No início dos anos 1940 ele se encontra no Hospital Geral da região de Boston, onde empreende um estudo sobre a prática médica, que marcará intensamente a seqüência de sua obra (cf. segunda parte, capítulo 6). E ali que ele descobre a psicanálise, ao mesmo tempo que toma forma sua teoria da Ação, que fornecerá o enquadramento para sua concepção de socialização. Esta é fortemente impregnada das teses de Freud, que 9. Parece que Parsons sofreu reações hostis em Harvard por ter criticado vigorosamente P. Sorokiri, então titular da cadeira de sociologia. Também parece haver uma relação entre essa rejeição relativa e o engajamento de Parsons na análise da prática médica no hospital de Boston. Agradeço Béatrice Appay por ter me feito descobrir esses aspectos importantes da biografia do teórico mais impressionante da sociologia do século XX (Appay, 1989). Para urn relato da biografia de Parsons e urna crítica moderada de sua teoria, cf. também o livro de Gouldner, The Corning Crisis of Western Socíology [A crise iminente da sociologia ocidental] (1970).
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são, de certo modo, reforçadas e generalizadas por sua concepção funcional da estrutura social. De fato, uma vez que Parsons se persuade de que o sistema social - consolidado por valores comuns - constitui a condição do êxito da comunicação (interação) entre os indivíduos e acha que esse sistema não pode ser senão interiorizado nas personalidades, e não exterior a elas, a tese da socialização precoce constitui a solução mais simples para o problema precedente: ao se identificar com seus próximos, a criança interioriza suas normas e seus valores e torna-se, assim, um ator desejoso de se comunicar com quem tem a mesma experiência que ela, reproduzindo desse modo as normas e os valores de sua sociedade e de seu meio de origem. Por isso, a teoria de Parsons não pode evitar produzir uma espécie de axiomática formal, reduzindo as ações individuais a esquemas analíticos preconcebidos (Chazel, 1972). Hipersocializado involuntariamente, o indivíduo, segundo Parsons - seja qual for sua cultura de origem -, torna-se, na idade adulta, um agente socializador que reproduz as normas e os valores que socializaram a si próprio. Desse modo, o paradoxo de Hobbes ("a guerra de todos contra todos") é resolvido: não se faz guerra aos semelhantes, identifica-se com eles. O que acontece se não entramos nesse esquema? Para Parsons, assim como para todos os culturalistas, inscrevemo-nos em uma trajetória de desvio. Quem não sai da primeira infância (ou da adolescência) com esse forte sentimento de pertencimento cultural - seja por não ter conseguido se identificar, seja por, mesmo se identificando, não ter interiorizado normas ou valores particulares - deve assumir sua posição de desviado e lutar para ser reconhecido por outro grupo que não o de sua família de origem ou para inflectir os valores ou as normas do grupo a que quer se integrar. Como escrevia Ruth Benedict a propósito das três sociedades que apresentava, alguns conseguem e podem até mesmo se tornar inovadores prestigiados, outros fracassam e são excluídos, marginalizados ou, nas sociedades modernas, assistidos e até mesmo "psiquiatrizados". Mas,
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em todo caso, são exceções que concernem apenas marginalmente à Teoria Sociológica versão Parsons.
3.2. Merton e a socialização antedpatória: a teoria do grupo de referência
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Ao contrário de Parsons, Merton recusa encerrar-se em uma teoria geral. Ele pleiteia a elaboração de "teorias intermediárias" (middle range theories), estreitamente articuladas às pesquisas empíricas e, portanto, suscetíveis de serem enriquecidas, ou mesmo invalidadas, por elas. Funcionalista no sentido de defensor da "análise funcional" que estuda as relações entre as estruturas de um grupo social e as funções que ele exerce, Merton critica as teorias funcionalistas universais - como, de maneira explícita, a de Malinowski e, de maneira implícita, a de Parsons - que se fundamentam em postulados universais infalsificáveis10 e "tingidos de ideologia". Ele preconiza um funcionalismo heurístico, ou seja, capaz de fornecer hipóteses "submetidas a uma crítica teórica rigorosa, paralelamente à acumulação das pesquisas empíricas" (Merton, trad. fr. 1965, p. 138). Merton se indaga sobre o seguinte fenômeno: por que alguns indivíduos, em determinadas situações, se definem ou se referem positivamente a um grupo social que não é seu grupo de pertencimento? Os exemplos são abundantes: as meninas que acham bobo brincar de boneca e preferem explorar as matas com seus irmãos; os filhos de imigrantes que recusam suas tradições e valorizam as atitudes de seus colegas autóctones; os operários que fazem cursos como os técnicos das empresas em que trabalham; os estudantes que preferem os "bicos" às aulas da faculdade... O primeiro que, ao que parece, introduziu essa noção, Her"íO. "Infalsifícável" é uma tradução do termo utilizado por K. Popper para designar um dos critérios fundamentais de uma teoria científica: o fato de poder "falsificá-la", isto é, demonstrar que ela é falsa confrontando a com um conjunto de procedimentos empíricos (Popper, 1959).
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bert Hyman, opunha o grupo de referência (out-groupé) ao grupo de pertencimento (in-groupé) e indagava-se sobre a consideração do primeiro grupo na definição do status de um indivíduo (1942). Merton tenta precisar o sentido dessa noção e elaborar sua teoria (middle range) a partir de uma reíeitura do denso estudo realizado com os soldados americanos durante a Segunda Guerra Mundial, conhecido pelo título de American Soldier. Com efeito, ele se surpreende com o fato de os autores do estudo constatarem correlações inesperadas entre as variáveis de situação dos soldados e as variáveis de atitude. Assim, por exemplo, os que se encontravam em unidades em que as promoções eram rápidas (forca aérea) estavam muito menos satisfeitos e tinham opiniões desfavoráveis sobre suas chances de promoção, enquanto os que estavam em unidades que tinham promoções lentas estavam com mais freqüência satisfeitos e acreditavam mais em suas chances de ascensão (Merton, trad. ir. 1965, p. 210). Para interpretar essas relações, os autores do estudo recorrem à noção de frustração relativa, que implica que cada um julga sua situação se comparando a outra categoria ou outro grupo que não o seu. E o que ocorre no exemplo precedente: "Um alto grau de mobilidade suscita esperanças excessivas que não podem ser satisfeitas: disso resulta uma frustração para quem permanece na mesma posição." O soldado se compara a seu colega promovido a suboficial e se sente frustrado, enquanto o policial se compara a seus pares e se diz satisfeito. A partir da acumulação de exemplos ("45% dos recrutas lotados nas unidades novas sem veteranos se dizem prontos para ir a uma zona de combate, contra 25% dos recrutas nas unidades antigas e 15% dos veteranos"), Merton enuncia uma primeira hipótese, que considera sólida: "Em um grupo, os membros subordinados, ou ainda não integrados, sempre tendem a compartilhar os sentimentos ou a se conformar aos valores do núcleo mais prestigiado e respeitado do grupo." Desse modo, os recrutas das unidades novas se alinham com os outros recrutas, ao passo que os das unidades antigas ali-
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nham-se com os veteranos que, já tendo passado por essa situação, recusam toda idealização da batalha. Aplicando essa hipótese geral a outros casos, Merton levanta a questão "dos mecanismos de assimilação dos valores": os novatos adotam as posições dos mais prestigiados do grupo porque têm mais relações com eles? Têm, de saída, motivações de ascensão individual? Querem ser aceitos pelo grupo dirigente? Formam, entre eles, um agregado ou um subgrupo organizado? Ele resume todas essas questões em uma indagação global sobre as condições da mudança dos valores e das normas que fazem com que os membros de um grupo "identifiquem seu destino com o de outro grupo e já não tenham confiança em seus próprios interesses e valores" (ia., p. 223). Um esboço de resposta é dado pelo próprio autor com a noção de socialização antecipatória. Trata-se do processo pelo qual um indivíduo aprende e interioriza os valores de um grupo (de referência) ao qual deseja pertencer. Essa socialização o ajuda a "se alçar nesse grupo" e deveria "facilitar sua adaptação no grupo". Mas, de acordo com Merton, não há "dados probatórios" a esse respeito no momento em que ele escreve (1950, trad. fr. 1965, p. 227). Examinaremos isso mais adiante. Constatemos, por enquanto, que a noção de socialização antecipatória é aplicada por Merton a adultos, e não a crianças. Trata-se de aprender, antecipadamente, as normas, os valores e os modelos de um grupo ao qual não se pertence. Notemos também que essa noção está logicamente ligada às de "grupo de referência" e de "frustração relativa": é por se comparar aos membros de outro grupo que o indivíduo se sente frustrado em relação a eles e começa a querer "parecer com eles para um dia, talvez, ser reconhecido por eles como "membro". Assinalemos, enfim, que Merton evoca, várias vezes, "casos" de mobilidade que implicam a passagem efetiva de um grupo social a outro, e que associa a eles uma série de designações pejorativas, até mesmo depreciativas: "renegado, traidor, apóstata, cata-vento, dês-
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leal, desertor, herético" (ia., p. 246). Ele explica de enfiada o aparecimento desses rótulos maldosos: "o renegado simboliza, portanto, a fragilidade dos valores e das lealdades de um grupo" (id., p. 246). O que acontece de um ponto de vista funcional se supusermos que a maioria dos indivíduos tendem a se identificar não com seu grupo de pertencimento mas com um grupo de referência mais prestigiado? Várias situações são possíveis. Ou a instituição em que eles se encontram (ou mesmo, como escreve Merton, a estrutura social) oferece oportunidades de mobilidade ascendente ("a socialização antecipatória é funcional somente em uma estrutura social que permite a mobilidade"): a coesão do grupo dá lugar à competição entre seus membros; todos acabam por partilhar as normas e os valores do grupo dominante e alguns conseguem se integrar a ele, sendo os outros excluídos e amargos, ameaçados de anomía. Ou a instituição (ou a estrutura social) quase não permite a mobilidade e o grupo de pertencimento partilha uma frustração coletiva que pode desembocar em uma ação reivindicatória ou em uma dispersão desabusada. Ou, ainda, cada um combina a solidariedade com seus pares e a competição para o acesso às poucas posições em aberto: os valores partilhados são, então, um misto dos valores "dominantes" e dos valores partilhados pelo grupo básico. Ou, enfim, a situação provoca uma segmentação do grupo entre os que aderem aos valores dominantes, os que, mantendo os valores do grupo dominado, os combinam com os primeiros, os que, identificando-se com esses valores, tentam suscitar a ação coletiva, e os que, interiorizando sua impossibilidade de mobilidade, submergem na anomía11. Essa última hipótese repousa na idéia de uma adesão diferencial aos valores do grupo de pertencimento. Tal dife11. Uma tentativa de construção de um modelo das chances de frustração em função da estrutura das situações de interação - e principalmente de competição - foi feita por R. Boudon (1977).
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rença está arraigada nas histófias anteriores dos membros do grupo: aqueles para quem o grupo representa um prolongamento de seu grupo social de origem serão mais apegados a seus valores do que aqueles que conheceram uma mobilidade anterior; o apego destes será diferente conforme essa mobilidade tenha sido ascendente ou descendente. Enfim, o apego pode ser mínimo naqueles que provêm de um grupo social que partilha os mesmos valores do grupo dirigente de sua instituição. Nesse último caso, o grupo de referência não é senão o grupo social de origem do indivíduo. É uma situação doravante bem conhecida na sociologia (Girod, 1971) pelo termo de "contramobilidade social".
3.3. Um estudo empírico: formação contínua e contramobilidade social No fim dos anos 1960, C. de Montlibert analisou o público de um Centre de Promotion Supérieure du Travail [Centro de Promoção Superior do Trabalho] na França. Tratava-se de adultos, na maioria engajados na vida profissional, que freqüentavam cursos noturnos com vistas à obtenção de um diploma, dividido em unidades capitalizáveis. A maioria deles eram empregados como operários e funcionários em empresas ou na administração pública da região da Lorena. O diploma de conclusão (Diplome d'Études Supérieures Techniques) tinha o mesmo nível da licença científica (Bac + 3) e poderia permitir a pretensão a um cargo de direção. A maior parte dos "estagiários" entrava no "sistema de formação" sem diploma profissional prévio ou com um Certificat d'Aptitude Professionnel (CAP) [Certificado de Aptidão Profissional], o que significava que eles deviam freqüentar cursos e acumular "unidades" durante pelo menos cinco anos para ter uma chance de obter o diploma de conclusão (Montlibert, 1968, p. 208). De início, o autor constata uma alta taxa de abandono entre os estagiários: uma porcentagem muito pequena de
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inscritos no primeiro ano chega até o fim do aprendizado. Nem todos os que chegam ao fim tornam-se executivos: dois terços são técnicos superiores ou engenheiros alguns anos depois de sua conquista. Em seguida, ele compara, por meio de um questionário, as características e as atitudes dos alunos inscritos às de um grupo de controle, semelhante à precedente quanto a faixa etária, estado civil e categoria socioprofissional de pertencimento (id., p. 209). Mostra, assim, um conjunto de diferenças significativas entre os dois grupos, tanto no que concerne a suas atitudes quanto a sua trajetória social. Desse modo, enquanto apenas 8% dos adultos do grupo de controle ocupavam uma posição social inferior à de seus pais ('''desclassificação"), 26% dos alunos se enquadravam nesse caso. Constatava-se uma diferença análoga, mas no sentido inverso, quanto às trajetórias de "promoção". Uma das questões que provocava as maiores disparidades era a seguinte: "Há, em seu círculo familiar, pessoas que ocupam uma das seguintes profissões?" Os "estagiários" respondem afirmativamente com maior freqüência do que o grupo de controle quando se trata de profissões intelectuais (engenheiros, diretores, estudantes, professores) e com freqüência muito menor quanto aos itens "operários" e "funcionários". \ Em sua interpretação desses resultados, C. de Montlibert se refere à teoria mertoniana da socialização antecipatória e do grupo de referência: "os alunos que se identificam com os engenheiros não deixam de perceber a 'distância social' que estes mantêm em relação a seus subordinados, e já reproduziriam, por antecipação, esse comportamento: rejeitar mais ou menos os colegas de trabalho não é demonstrar fidelidade aos valores do grupo do qual aspira a se tornar membro?" (id., p. 216). Essas atitudes se explicam pelo fato de que uma fração importante dos adultos que seguiram, em cursos noturnos, uma formação prolongada se situa em uma trajetória de con-
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tramobilidade social: oriundas de famílias situadas nas camadas médias (professores, técnicos superiores) ou superiores (engenheiros, diretores...), essas pessoas não conseguiram obter o baccalauréat* ou um diploma de ensino superior e se empregam como operários ou funcionários. Ao se comparar a alguns membros de suas famílias que pertencem a profissões "intelectuais", eles se consideram desclassificados e sentem uma frustração marcada pelos modelos culturais das camadas sociais "superiores". Sua motivação para freqüentar os cursos, obter o diploma de conclusão e "tornar-se executivo" é explicada por essa defasagem entre os valores e as normas de seu grupo "profissional" fie pertencimento e os de seu grupo "social" de referência, semelhantes ou próximos aos de sua família de origem ou aos da família de seu cônjuge. Assim, estão "subjetivamente" engajados em uma trajetória de ascensão social que, na verdade, é apenas uma maneira de restabelecer sua posição social de origem (daí o termo contramobilidade social, pois, no fim das contas, estarão em uma situação de não-mobilidade intergeracional). Essa interpretação explica, ao menos em parte, as diferenças de atitude entre esse grupo e o grupo de controle dos que não fazem cursos: menos sindicalizados, acreditando menos na promoção interna sem diploma, mais críticos em relação a seus colegas de trabalho, os "contramóbiles" aderem muito menos às normas do grupo a que "objetivamente" pertencem. Eles interiorizaram, ao menos parcialmente, opiniões, atitudes e crenças do grupo de executivos ao qual "subjetivamente" se referem: desvalorização dos executores, hostilidade à ação sindical operária, valorização do diploma etc. Eles estão engajados em um processo de socialização antecipada aos "modelos culturais" de * No sistema de ensino francês, diploma que marca o fim dos estudos ' secundários e dá acesso aos estudos universitários (também é, abreviadamente, chamado de bac). (N. da T.)
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seu grupo de referência: os cursos noturnos são apenas um elemento dessa socialização latente, essencialmente informal, que está enraizada em sua infância, em sua rede de relações familiares e em sua história pessoal12. 4. Uma abordagem funcional e "generalizada" da socialização Para além das diferenças entre as diversas concepções analisadas neste capítulo, uma abordagem comum tende a fazer da socialização o mecanismo explicativo de numerosas condutas individuais e a concebê-la como uma modelagem das personalidades conforme os traços mais estruturantes das culturas tidas como essenciais ao funcionamento social. Façamos um resumo das principais críticas a essa abordagem, seja "culturalista" e elaborada a partir de exemplos de sociedades tradicionais (Kardiner), seja "estrutural-funcionalista" e construída a partir do exemplo da sociedade americana (Parsons): - considera a formação da criança segundo o modelo do adestramento (cf. Wrong) ou segundo o esquema do condicionamento (Boudon e Bourricaud, 1982, p. 483), que implicam a assimilação precoce e inconsciente de esquemas corporais e atitudes culturais que presumivelmente determinam suas condutas futuras. Esse paradigma13 da "socia12. Essa abordagem dos cursos noturnos por C. de Montlibert deve ser situada em sua época: os anos 1960, na Franca, quando o modelo da "promoção social" é dominante em matéria de formação contínua. Mais tarde, as análises das condutas de formação nos adultos franceses se tornarão mais complexas, principalmente por causa do papel crescente das empresas e do aumento do desemprego (Dubar e Gadéa, 1999). 13. "Paradigma" é empregado aqui em um sentido pouco mais amplo que no capítulo 1: designa as representações de um fenômeno (aqui, a socialização) características de certas "correntes" transversais às diversas disciplinas das ciências humanas, e que fornecem "modelos de inteligibilidade" do funcionamento desse fenômeno.
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lização-condicionamento" faz do indivíduo socializado uma espécie de autômato determinado ou programado por suas experiências passadas, e não um ator livre para'escolher e responsável por seus atos; - privilegia as experiências da primeira infância e as "disciplinas básicas" impostas pela cultura do grupo social de origem: as primeiras relações, inconscientes ou recalcadas, marcam o indivíduo mais do que as seguintes, e constituem tipos de personalidades que exprimem a cultura do grupo de origem. Esse paradigma "psicanalítico" impregna, em maior ou menor grau, todas as versões da abordagem cultural-funcional e faz do adulto socializado um produto do complexo parental de que provém; - atribui à cultura, como um todo, uma eficácia sui generis sobre os indivíduos que ela molda ou impregna de maneira, em geral, inconsciente. Esse paradigma "holista" tende a deixar de ser operacional e chega a se tornar um obstáculo à análise sociológica das condutas individuais nas sociedades modernas. Estas tendem a fazer do indivíduo livre e racional o ponto de partida obrigatório de toda análise, e do individualismo a referência de todo discurso mobilizador (L. numont, 1983). Essas críticas tanto filosóficas como científicas invalidam totalmente a abordagem cultural-funcional da socialização, que no entanto foi por muito tempo considerada "clássica" (Gouldner, 1970)? Não pensamos assim, e o uso que Merton faz dela mostra que ela conserva um valor heurístico contanto que seja aplicada a análises empíricas sólidas. Não somente ela permanece útil para analisar e compreender as condutas das pessoas que foram educadas em contextos culturais tradicionais e fortemente integrados, mas também continua a fornecer hipóteses explicativas das condutas individuais consideradas "modernas". Uma parte da sociologia permanece hoje impregnada dessa abordagem e tenta adaptá-la às evoluções das sociedades contemporâneas.
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Capítulo 3
A socialização como incorporação aos habitas
1. Uma definição problemática do habitus Retomado da palavra latina utilizada pela tradição escolástíca e que traduz a palavra grega hexis empregada por Aristóteles para designar "as disposições adquiridas do corpo e da alma", o termo habitus foi utilizado por Durkheim em seu curso publicado com o título de Évolution pédagogique en France [A evolução pedagógica] (1904-1905), em que ele afirma: "há, em cada um de nós, um estado profundo, do qual os outros derivam e no qual encontram sua unidade: é sobre ele que o educador deve exercer uma ação duradoura... e uma disposição geral do espírito e da vontade que mostra as coisas de um ponto de vista determinado... em que o cristianismo consiste em certa atitude da alma, em um certo habitus de nosso ser moral" (ed. 1968, p. 37). É assim que Durkheim define a educação como "a constituição de um estado interior e profundo que orienta o indivíduo em um sentido definido para a vida toda" (ia., p. 38). Bourdieu retoma essa noção filosófica clássica utilizada por inúmeros autores (Héran, 1987) e lhe dá uma definição mais complexa, mais dialética e com a pretensão de ser mais operacional. Ele define o habitus como "sistemas de disposições duradouras e transponíveis, estruturas estruturadas predispostas a funcionar como estruturas estruturantes, isto é, como princípios geradores e organizadores de práticas e
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de representações" (1980, p. 88). Presença ativa e sintética de todo o passado que o produziu, o habitus é a estrutura geradora das práticas "perfeitamente conformes à sua lógica e a suas exigências", ou seja, excluindo as práticas mais improváveis, "antes de qualquer análise, a título de impensável" (1980, p. 90). Produzindo apenas práticas "orientadas pelas condições passadas de produção e adaptadas antecipadamente a suas exigências objetivas", o habitus assegura principalmente "a correspondência entre a probabilidade a priori e a probabilidade expost" (ia., p. 105) e, portanto, "a correlação muito estreita entre as probabilidades objetivas (por exemplo, as chances de acesso a este ou àquele bem ou serviço) e as esperanças subjetivas (as 'motivações' e as 'necessidades')". Uma vez que, ao descartar toda estratégia que lhes pareça arriscada, com base em suas experiências, os indivíduos geralmente acabam por querer praticamente apenas o que têm chance de conseguir, considerando seu passado, o habitus assegura "essa espécie de submissão imediata à ordem que inclina a fazer da necessidade virtude" (id., p. 90, fórmula repetida com freqüência pelo autor). É essa espécie de regulação básica que Bourdieu denomina "processo puramente social e quase mágico de socialização" (id., p. 96), já que ele assegura simultaneamente a adesão subjetiva dos agentes à reprodução de sua posição social e sua participação ativa nessa reprodução, provocando a incorporação de uma "grande quantidade de senso comum, cuja evidência imediata é acompanhada da objetividade que assegura o consenso" (id., p. 97). Assim definido, o habitus parece excluir qualquer possibilidade de mudança social. Se cada indivíduo é condicionado de forma coerente ("tudo acontece como se o habitus fabricasse coerência e necessidade a partir do acidente e da contingência", id., p. 134), desde a primeira infância - tanto em suas posturas corporais como em suas crenças mais íntimas ("os efeitos do habitus se inscrevem de maneira duradoura no corpo e nas crenças", id., p. 96) -, a perceber, a querer e a fazer ("esquemas de percepção, de pensamento
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e de ação") apenas o que é estritamente conforme a suas condições sociais anteriores, não se vê de onde poderia vir a mudança: se cada um reproduzisse estritamente o que conheceu, as condições que engendram os habitus permaneceriam inalteradas pelas práticas oriundas desses habitus. É isso mesmo que Bourdieu quer dizer? Na maioria dos textos em que expõe sua concepção de habitus - em todo caso, nos textos posteriores a La repmduction [A reprodução] (1970) -, ele toma a precaução de lembrar, várias vezes (principalmente 1974, pp. 4, 5,^10, 28; 1980, pp. 103, 104, 105, 134...), que o habitus tende a reproduzir as estruturas de que é produto apenas "na medida em que as estruturas nas quais ele funciona sejam idênticas ou homólogas às estruturas objetivas de que é produto". Essa distinção entre "condições de produção" e "condições de funcionamento" do habitus introduz um elemento fundamental de incerteza na teoria do habitus. Pode-se, com efeito, interpretar as "condições de produção" do habitus de duas maneiras diferentes, situando-se antes no nível individual. É possível traduzir a expressão "estruturas objetivas que produzem o habitus" pela de configuração das situações sociais em que transcorreu a infância de um indivíduo. Tudo depende, então, das relações entre essa configuração de origem e as das situações sociais vividas na idade adulta. Um filho de operário, que por sua vez se tornou operário (e que se casou com uma filha de operário), estará diante de situações "homólogas" às que produziram seu "habitus operário" e reagirá a elas como aprendeu precocemente a fazer, contribuindo, assim, para reproduzir o grupo operário como um todo. Um filho de operário que se torna funcionário de escritório e que se casa com uma filha de funcionário encontrará situações inéditas e deverá inventar práticas para se adaptar a elas: seu "habitus operário" o levará a ser um funcionário de tipo particular, que vive suas situações (familiares, de trabalho, de lazer...) mais como um operário do que como um funcionário. Para se adaptar ele deverá ou converter, ao menos em parte, seu
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habitus de origem ou renunciar a seu status profissional para ficar em uma situação mais conforme ("de estrutura homóloga") à sua condição de origem. Nessa primeira interpretação - perfeitamente culturalista -, o habitus nada mais é que a cultura do grupo de origem, incorporado à personalidade,-importando seus esquemas a todas as situações ulteriores e provocando inadaptações cada vez que essas situações se afastam demais das situações da infância. Ou, como faz P. Bourdieu várias vezes (1974, pp. 5, 19, 22; 1980, pp. 102 ss.), pode-se fazer do habitus não o produto de uma condição social de origem mas o de uma trajetória social definida com base em várias gerações e, mais precisamente, "da inclinação da trajetória social da descendência" (1974, pp. 5 e 29), e então já não será possível definir as "estruturas objetivas" como produzindo o habitus de maneira sincrônica. Um filho de operário, por sua vez filho de camponês e totalmente propenso à ascensão social e a sair da condição operária, não será educado da mesma maneira que um filho de operário, também filho de operário e persuadido de que não é possível sair da condição operária. Enquanto o primeiro poderá ter um "habitus pequeno-burguês" - mesmo sendo de origem operária, mas com uma socialização antecipatória de pequeno-burguês -, o segundo terá um habitus operário "tradicional". A estrutura das situações defrontadas pelo primeiro não será percebida da mesma maneira pelo segundo. Desse modo, o primeiro provavelmente terá um êxito escolar satisfatório, se empenhará nos estudos para "não ser operário como seu pai", ao passo que o segundo sairá da escola mais cedo com, por exemplo, um diploma do ensino técnico breve "para ter um bom ofício (operário) como seu pai". Nessa segunda interpretação, o habitus não é essencialmente a cultura do grupo social de origem mas a orientação da descendência (a "propensão" correspondente à "inclinação" da trajetória familiar, cf. 1974, p. 16), a identificação antecipada a um grupo de referência cujas condições sociais não são as da família ou do grupo de origem.
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Vê-se claramente que as duas interpretações de habitus e de suas "condições objetivas" de produção não são idênticas. Nos dois casos a socialização é uma incorporação duradoura das maneiras "de sentir, de pensar e de agir" do grupo de origem, mas, enquanto no primeiro caso esse habitus é concebido como um produto das "condições objetivas" (um filho de operário tem um habitus operário), no seoimdo caso ele é apresentado como uma impregnação de atitudes subjetivas provenientes da descendência familiar (um filho de operário pode ter um habitus pequeno-burcaiês). No primeiro caso, é possível comparar "objetivamente" situações defrontadas na idade adulta a situações vividas na infância (sua estrutura será homóloga se elas concernirem às mesmas categorias sociais); no segundo, essa comparação já não tem sentido, visto que a situação "objetiva" depende dos "esquemas de percepção, de apreciação e de ação" com os quais os indivíduos a apreendem (situações classificadas socialmente de maneiras diferentes podem ser vividas da mesma maneira). Assim, quando Bourdieu apresenta o habitus como "uma espécie de tendência do grupo a perseverar em seu ser" (1974, p. 30), ele tem o cuidado de indicar que essa tendência "não tem sujeito", que ela é "capaz de inventar, diante de situações novas, novos meios de suprir as funções antigas", e que ela opera "em um nível muito mais profundo" do que as tradições familiares ou as estratégias conscientes dos indivíduos. O grupo pode, pois, "perseverar em seu ser social" assumindo formas diferentes e se adaptando a situações diversas. Da mesma forma, quando Bourdieu afirma que os habitus que engendram as práticas e as "estratégias objetivas" dos indivíduos "sempre cumprem, por um lado, funções de reprodução", acrescenta que elas são "objetivamente orientadas para a conservação ou para o aumento do patrimônio", assim como para "a manutenção ou para a melhora1 da posição do grupo" (id., p. 30). Assim, reproduzir as condições 1. Grifes meus.
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de produção pode significar querer alcançar um status social superior, e não manter seu status social de origem. Para conhecer o habitus de um indivíduo, é preciso conhecer o de seus pais e de seus próximos e, em particular, a relação deles com o futuro, e não somente as "condições objetivas" em que ele foi educado. Poder-se-ia, portanto, apreender a mudança, mas sob a condição de a incluir em uma trajetória social característica de uma descendência ou de um "grupo social" previamente definido como tal. Classes sociais e habitus: posições e trajetórias Com base na definição de habitus como sistema de disposições ligadas a uma trajetória social, é possível discernir, na obra de Bourdieu, um conjunto de habitus específicos associados às grandes classes sociais e que esclarecem seus diferentes modos de socialização? Encontramos múltiplos exemplos disso nos diferentes trabalhos do autor, que opõe as classes sociais, ora por sua posição em um espaço de poder (dominantes/dominadas), ora por sua trajetória global em uma temporalidade de duas ou três gerações (ascendentes/descendentes), ora por uma combinação dos dois critérios (alta burguesia/pequena burguesia ascendente/pequena burguesia em declínio/classes populares). Cada classe ou fração de classe é definida simultaneamente por um estilo de vida (bens consumidos, práticas culturais etc.) e por uma relação específica com o futuro, que inclui seus "recursos em capital econômico e cultural" (volume e estrutura do patrimônio). Uma classe social se torna, assim, "a classe dos indivíduos dotados do mesmo habitus" (1980, p. 100), ou seja, munidos das mesmas disposições para com o futuro por partilharem as mesmas trajetórias típicas. Na maioria das vezes, a descrição dos habitus toma a forma de oposicões de "qualidades" ou de "virtudes" que são extraídas da língua comum e que servem para caracte-
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rizar um estilo de relações, uma maneira de se comportar física e moralmente, uma atitude geral diante do futuro, que se traduz por qualificativos correntes. Os que estão reunidos, por exemplo, no quadro 3, são apresentados pelo autor para enfatizar "um aspecto fundamental entre o grande (ou o amplo) e o pequeno, a partir do qual se engendram todas as oposicões particulares" (1974, p. 26). Assim, no mesmo texto, o pequeno-burguês (em ascensão) é apresentado como "um proletário que se encolhe para se tornar burguês": de origem popular, ele limita sua descendência "com freqüência a um produto único, concebido e moldado em função das expectativas rigorosamente seletivas da classe importadora", concentra-se na família nuclear "estreitamente unida, mas estreita e um pouco opressiva", investe muito na escola e impele sua progenitura ao maior êxito possível, manifesta por sua postura física (o que Bourdieu chama de hexis corporal) que ele deve "se encolher para passar pela porta estreita que dá acesso à burguesia: por ser estrito e sóbrio, discreto e severo em sua maneira de se vestir e também de falar, em seus gestos e em sua postura, sempre lhe falta um pouco de envergadura, amplitude, largura e largueza" (ia., p. 25). Desse modo, tudo o opõe ao (verdadeiro) burguês, que pode dar mostras de largueza (de despesas) e de largura (de idéias), porque tem ao mesmo tempo os meios (econômicos) e os códigos (culturais) para isso: tendo apenas de preservar uma posição adquirida e não necessitando alcançar uma posição superior, o grande burguês manifesta, em todas as suas atitudes, essa "coincidência realizada do ser e do dever-ser que fundamenta e autoriza todas as formas íntimas e exteriorizadas da certeza de si, segurança, desenvoltura, graça, desembaraço, flexibilidade, elegância ou, em uma palavra, natural" (ia., p. 27). Segundo Bourdieu, o pequeno-burguês também se distingue do operário e do camponês que permaneceram em sua condição de origem e que, não tendo a pretensão de se tornar e, portanto, de parecer burguês, podem ser o que são, isto é, de condição "modesta" mas com liberdade de ex-
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pressão, com seu "sólido" sentido da realidade, que não confundem com seus desejos mas que os faz parecerem "pesados" e "desajeitados" quando estão no universo burguês do qual não dominam nem os meios (econômicos) de enriquecer nem o código (cultural) das "boas maneiras" e da linguagem distinta. Quadro 3 Os habitus de classe segundo Bourdieu (Burguês): "distinto"
(Pequeno-burguês): "pretensioso"
(Povo): "modesto"
fácil, amplo (espírito, gesto etc.), generoso, nobre, rico. largo (de idéias etc.), liberal, livre, flexível, natural, desembaraçado, desenvolto, seguro, aberto, vasto etc.
estreito, limitado, embaraçado, pequeno, mesquinho, pão-duro, parcimomoso, estrito, formalista, severo, rígido, críspado, • constrangido, escrupuloso, preciso etc.
desengonçado, pesado, embaraçado, tímido, desajeitado. "incomodado", pobre, "modesto", "bondoso", "natural", franco, sólido.
Fonte: W74, p. 26.
Essa descrição supõe que o habitus, produto da socialização dos indivíduos, exprime a um só tempo uma posição (superior/inferior) e uma trajetória (linear/ascendente) que se traduzem por uma mesma "visão do mundo econômico e social" (o que Bourdieu às vezes denomina "etos de classe") que se afirma em todos os setores da vida pública e privada. Por ter sido precocemente incorporada no duplo sentido de estruturação do "corpo próprio" e de constituição de um "espírito de corpo", essa disposição essencial, característica do pertencimento de classe, pode escapar amplamente à consciência e deixar nos indivíduos a ilusão da escolha, quando eles não fazem senão acionar o habitus que os moldou. Assim reformulada, a questão inicial das relações entre "condições de produção" e "condições de funciona-
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mento" do habitus torna-se um falso problema, já que o indivíduo sempre aplica os mesmos esquemas a todas as situações com que defronta e que, à custa de "retraduções", "transferências" ou "transposições sistemáticas", dependendo das diversas situações, "todas as práticas de um mesmo agente são objetivamente harmonizadas entre si, para além de toda busca intencional de coerência, e objetivamente orquestradas, para além de todo concerto consciente, com as de todos os membros da mesma classe" (1974, p. 31). Segundo Bourdieu, ao assegurar a incorporação dos habitus de classe, a socialização produz o pertencimento de classe dos indivíduos reproduzindo a classe como grupo que partilha o mesmo habitus. 2. Uma problemática ambígua dos campos sociais "Em um campo, agentes e instituições estão em luta, com forças diferentes e segundo regras constituídas desse espaço de jogo, para se apropriar dos ganhos específicos que estão em jogo nesse campo. Os que dominam o campo possuem os meios de fazê-lo funcionar em seu benefício; mas devem contar com a resistência dos dominados" (1980, p. 136). Essa fórmula resume o essencial da teoria dos "campos sociais" elaborada por Bourdieu, complementar à de habitus. Endossando o cabedal comum das análises sociológicas e econômicas consagradas às passagens das sociedades "tradicionais" à sociedade capitalista "moderna", Bourdieu leva em consideração a segmentação crescente do espaço social em áreas ("campos") especializadas dotadas de suas próprias regras de funcionamento. O campo econômico não funciona como o campo escolar nem como o campo da família ou da política. Do mesmo modo que a maioria dos economistas, Bourdieu considera esses "campos sociais" mercados em que se trocam bens específicos, materiais ou simbólicos, e em que capitais de determinado tipo produzem lucros do mesmo tipo segundo regras particulares.
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Mas, ao contrário dos teóricos neoclássicos dos mercados concorrenciais, Bourdieu considera que, em cada campo pertinente do social, a estrutura das trocas é fundamentalmente dissimétrica. Os capitais investidos em cada campo não são somente desiguais, e os lucros obtidos não dependem apenas do volume mas também da estrutura dos capitais investidos. A maioria das análises particulares de Bourdieu coloca em ação um espaço de duas dimensões: "Na primeira dimensão (os agentes são distribuídos) de acordo com o volume global do capital que eles possuem sob diferentes espécies; na segunda dimensão, de acordo com a estrutura de seu capital, ou seja, segundo o peso relativo das diferentes espécies de capital, econômico e cultural, no volume total de seu capital" (1987, p. 152). Um dos exemplos trabalhados com mais regularidade por Bourdieu, por ser considerado particularmente estratégico, é o campo escolar. Para que suas crianças obtenham os diplomas escolares mais elevados, isto é, os mais prestigiosos e, ao mesmo tempo, os mais rentáveis economicamente, as famílias devem investir o capital específico a esse campo, o capital cultural. Com efeito, são as crianças cujos país possuem diploma de ensino superior que têm mais chances de seguir estudos prolongados e obter, por sua vez, diplomas universitários; inversamente, são os filhos de pais sem diploma que, com maior freqüência, vivendam o fracasso escolar (Girard e Bastide, 1973). O volume do capital econômico da família (patrimônio e renda familiar) está muito menos correlacionado ao êxito escolar das crianças do que o volume do capital cultural, medido notadamente pelo grau de escolaridade dos pais. Quando a classe dominante (alta burguesia) se define sobretudo pelo volume de seu capital econômico e quando o volume de seu capital cultural é pequeno (porque não é necessário diploma para possuir e/ou administrar uma empresa), ela sofre a concorrência, no campo escolar2, da pequena burguesia ascenden2. Grifos meus.
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te, provida essencialmente de capital cultural (porque é preciso diploma para se tornar professor, engenheiro ou médico). Para manter sua posição dominante sobre o èonjunto da sociedade, a classe dominante deve converter uma parte de seu capital econômico em capital cultural (Bourdieu, Boltanski e Saint-Martin, 1973) com tanto vigor que as regras do jogo econômico tendam a mudar e a fazer depender do diploma o acesso às posições de direção (permitindo, assim, tornar a dominação econômica mais anônima e, portanto, menos ameaçada pelas lutas das classes dominadas). Desse modo, as crianças da alta burguesia são incitadas, de todas as maneiras possíveis, a fazer cursos superiores (com seus pais compensando seu pequeno capital cultural institucionalizado nos diplomas com um capital cultural objetivado nos livros, obras etc. e sobretudo por uma utilização intensiva e seletiva dos melhores colégios, escolas etc.) e a obter os diplomas escolares mais rentáveis (grandes écoles*), que se tornam condições para ocupar as posições de direção econômica. Assiste-se, assim, a um reequilíbrio da estrutura do capital global (conjunto dos recursos econômicos e culturais), o que permite à classe dominante manter sua posição pela mudança das regras do jogo econômico. Pela mesma razão, a pequena burguesia ascendente se reproduz como tal, já que a maioria de suas crianças não chega a ocupar as posições de direção e deve transferir suas ambições à geração seguinte. Quanto às classes populares, não podem senão se resignar com o mínimo êxito de suas crianças, que se traduz por uma reprodução de sua posição (inferior) de origem. Insistindo na "posição cada vez mais estratégica do campo escolar no conjunto dos instrumentos da reprodução social", Bourdieu, Boltanski e Saint-Martin consideram que a mudança mais importante do período em curso reside na * As grandes écoles são estabelecimentos de ensino superior que se destacam pelo alto nível do ensino, por isso, os que são formados por elas gozam de status especial. (N. da T.)
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"transformação do sistema das estratégias de reprodução das frações das classes alta e média mais ricas em capital econômico... na origem da utilização que elas fazem do sistema de ensino" (1973, p. 62). Retomando uma idéia similar em uma obra recente, Bourdieu precisa que as "duas grandes mudanças" que afetaram o modo de reprodução dominante são, "de um lado, o aumento do peso relativo do diploma escolar (associado ou não à propriedade) em relação ao título de propriedade econômica, e isso até mesmo no campo econômico; de outro lado, entre os detentores de capital cultural, o declínio dos diplomas técnicos em benefício dos diplomas que garantem uma cultura geral de tipo burocrático" (1989, p. 386). Assim, a conversão do capital econômico em capital cultural, fazendo do campo escolar um elemento cada vez mais essencial da reprodução do poder, permite à classe dominante consolidar sua legitimação simbólica. Uma das questões mais delicadas que essa versão da teoria dos campos levanta é a do grau de autonomia de cada campo em relação ao espaço global das classes sociais e à sua estruturação essencial (dominante/dominada) e secundária (ascendente ou pretendente/descendente ou ameaçada). Se o volume do capital cultural depende cada vez mais do volume global do capital da família de origem que converte seu capital econômico em capital cultural à medida que o campo escolar "sobe" na hierarquia dos campos -, não vemos como os mesmos agentes oriundos das parcelas dominantes da classe dominante não acabariam por dominar todos os campos em que investissem seus capitais. A introdução, em certas análises, como nas que finalizam Lê sens pratique [O senso prático], de uma nova espécie de capital - o capital simbólico, cuja função principal é a "legitimação do arbitrário", o que permite transformar "relações arbitrárias de dominação em relações legítimas" (1980, pp. 210-1) -vai no mesmo sentido: cada campo tende a ser estruturado conforme posições de poder que são sistematicamente ocupadas pelas mesmas classes e frações
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de classe. A autonomia relativa, a especificidade das regras do jogo e o modo particular de estruturação funcionam, de fato, como engodo para as outras classes, visto que, no limite, todo membro da parcela dominante da classe dominante pode dominar qualquer campo convertendo uma parte de seu capital econômico em capital, cultural ou simbólico, específico ao funcionamento desse campo. A existência de um tipo de equivalente geral dos capitais, permitindo a conversão de uma espécie em qualquer outra, leva a uma "economia geral das práticas" que justifica a redução de todas as práticas sociais a práticas "econômicas", isto é, instrumentais, implicando ao mesmo tempo o aumento de seu patrimônio (riqueza), a melhora de sua posição (prestígio) e o aumento de seu poder legítimo, ou seja, a estrutura ótima da combinação do capital econômico, do capital cultural e do capital simbólico. A noção de "campo" perde, assim, uma grande parte de seu interesse heurístico. 3. Do habitus à identidade: da dupla redução à dupla articulação A importância do habitus segundo Bourdieu se deve ao fato de que um conjunto coerente de disposições subjetivas, capazes ao mesmo tempo de estruturar representações e de gerar práticas, pode ser pensado e analisado como produto de uma história, ou seja, de uma seqüência necessariamente heterogênea de condições objetivas, seqüência essa que define a trajetória dos indivíduos como movimento único pelos campos sociais, tais como a família de origem, o sistema escolar ou o universo profissional3. Para estabelecer essa correspondência entre condições objetivas e disposi3. Bourdieu retoma um "esquema elementar do pensamento teórico; a ativação do passivo" (Héran, 1987), mas acrescenta a ele a tese de uma correspondência necessária entre as transmissões "passivas" e as incorporações "ativas".
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ções subjetivas, Bourdieu deve operar uma dupla redução que permita especificar a um só tempo o mecanismo de interiorização das condições objetivas e o mecanismo de exteriorização das disposições subjetivas. É à custa dessa dupla redução que o habitus poderá ser definido tanto como produto de condições "objetivas" interiorizadas (aposição e a trajetória do grupo social de origem) quanto como produtor de práticas que conduzem a efeitos "objetivos" (a posição do grupo de pertencimento), reproduzindo, assim, a estrutura social, uma vez que assegura a continuidade do habitus individual. A primeira redução consiste, para Bourdieu, em finalmente dever limitar o conjunto das condições objetivas que produzem o habitus a "uma posição diferencial no espaço social" (1989, p. 9), o que implica definir este como "exterioridade recíproca das posições" e "sistema unificado de diferenças" (idem). Desse modo, o habitus é caracterizado como "geneticamente (e também estruturalmente) vinculado a uma posição", ou seja, produzido por um ponto de vista único e coerente que resume a um só tempo a posição de uma trajetória de classe no espaço das trajetórias possíveis (alta/média/baixa) e a posição de um indivíduo em um campo social qualquer (alto/médio/baixo). Assim que essa homologia das posições é assegurada, o habitus pode ser pensado como incorporação e interiorização dessa posição única. A segunda redução consiste em necessariamente vincular a percepção ou a visão do campo social operadas graças ao habitus - e em particular a classificação que ele produz no interior do espaço social (alto/baixo) - à orientação e à previsão necessária para gerar as práticas, em particular o que Bourdieu denomina "tomada de posição prática sobre esse espaço" ("estou no alto ou embaixo e devo permanecer aqui"). Essa relação necessária entre posição/disposição, visão/previsão e percepção/orientação é freqüentemente denominada conato ou "tendência a se perpetuar segundo sua determinação interna" (idem). Segundo Bourdieu, é o
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que permite "perpetuar uma identidade que é diferente", isto é, posição relativa constante no seio do espaço social considerado "sistema das diferenças constitutivas da ordem social" (idem). É essa dupla redução - da objetividade à "posição diferencial" e da subjetividade à "tendência a perpetuá-la" - que permite assimilar o habitus segundo Bourdieu a uma identidade social definida como identificação a uma posição (relativa) permanente e às disposições que lhe são associadas. Ela permite assegurar a permanência das identidades individuais e a reprodução das estruturas sociais - concebidas ao mesmo tempo como espaços estruturados segundo as mesmas "posições" (alto/baixo) e como relações de dominação (dominantes/dominados) entre "posições" constantemente reproduzidas - através de todas as formas de mudança que nunca constituem senão conversões de estratégias objetivas que não modificam a estruturação do espaço social. Para isso, é necessário e suficiente que cada habitus funcione segundo os mesmos princípios e que todas as estratégias tenham "objetivamente" o mesmo resultado: a reprodução do espaço das posições. É isso que fundamenta a possibilidade de uma "economia geral das práticas" à custa dos mesmos tipos de redução que permitiram a constituição da economia política como disciplina científica em todas as suas versões e em todas as suas correntes teóricas. Uma outra definição de identidade (c/, capítulo 5) implicaria a hipótese inversa de uma irredutível dualidade das lógicas constitutivas do social e, principalmente, da que estrutura as representações do poder e orienta as práticas correspondentes (lógica "relacionai" ou "comunicacional") e da que comanda as estratégias "econômicas" de aumento do capital sob todas as suas formas (lógica "estratégica" ou "instrumental"). Essa posição suporia não assimilar a priori o espaço social das posições (alto/baixo) na esfera econômica ao espaço social das posições (dominante/dominado e também incluído/excluído) na esfera "relacionai" que não podemos reduzir a um campo secundário a serviço
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de estratégias econômicas. É o que faz Bourdieu quando evoca, por exemplo, a existência de um "capital social" constituído pelo conjunto das "relações" que um indivíduo pode mobilizar para seu êxito escolar ou social. Longe de funcionar segundo sua lógica própria, esse campo "relacionai" é descrito como estruturado pelas mesmas regras de otimização dos lucros que estruturam o campo "econômico". Ora, toda uma tradição sociológica sempre se recusou a assimilar a lógica "comunitária" das relações sociais à lógica "econômica" das estratégias de otimização (cf. capítulo 4). É com a condição de distinguir radicalmente - como hipótese teórica e posição metodológica - essas duas lógicas4 que podemos definir identidade social como a dupla articulação problemática de uma orientação "estratégica" e de uma posição "relacionai" resultante da interação entre uma trajetória social e um sistema de ação. Nessa hipótese, já não existe harmonia preestabelecída entre as identidades "para si", produzidas pela trajetória passada, e as identidades "para o outro", incluídas em um sistema de ação (cf. capítulo 5). Em vez de se fundamentar na dupla redução operada pela teoria do habítus, essa teoria da identidade repousa na seguinte dupla articulação: - uma primeira articulação entre "trajetória" e "sistema", que implica a recusa a priori da homologia das posições e do mecanismo sistematicamente reprodutor do habitus. Longe de reduzir a trajetória a uma "posição objetiva", ela a define antes como um "recurso subjetivo", ou seja, um balanço subjetivo das capacidades para enfrentar os desafios específicos de um dado sistema. Longe de assimilar a relação com o sistema (campo social específico e não espaço social geral) a uma posição "objetiva" no sistema (campo), ela a considera uma oportunidade estratégica 4. J.-C. Passeron (1986) parece fazer isso ao distinguir a auto-reprodução escolar da reprodução social. De acordo com ele, "cabe ao historiador, e não ao sociólogo, descrever a renovação das configurações produzidas pelo encontro heterogêneo de processos que só poderão ser tratados como evoluções sistemáticas se forem considerados independentes" (p. 76).
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para a realização dos objetivos dos indivíduos. Por isso, o encontro de uma trajetória e de um sistema já não leva necessariamente ao prolongamento da trajetória e à reprodução do sistema: o balanço das capacidades pode ser positivo ou negativo dependendo das leituras do sistema e de suas oportunidades pelos indivíduos, assim como pode ou não haver oportunidade do sistema dependendo da reconstrução subjetiva da trajetória pelos indivíduos. Por isso, a hipótese "consolidação da identidade/reprodução do sistema" é apenas uma das hipóteses possíveis: a priori, todas as outras também são; - a segunda articulação entre "trajetória anterior" e "estratégia" implica a recusa a priori da continuidade necessária entre as visões de futuro da trajetória - incluindo as avaliações de oportunidade do sistema - e os balanços da trajetória passada que mobilizam as representações investidas no sistema. O passado não determina mecanicamente a visão do futuro; a um tipo de trajetória anterior "objetivamente" discernível não corresponde necessariamente um tipo de estratégia de futuro "subjetivamente" construída. Entre trajetória e estratégia se intercala o conjunto das relações internas ao sistema no qual o indivíduo deve definir sua identidade específica; da mesma forma, entre representação e oportunidade do sistema se interpõe a trajetória dos indivíduos, a partir da qual avaliam características e evoluções prováveis do sistema. Por isso, a hipótese "visões do futuro reproduzindo as percepções do passado" é apenas uma das configurações possíveis da articulação entre representações (e categorias) herdadas da trajetória passada e estratégias (e categorizações) possibilitadas pelas oportunidades do sistema. 4. Uma abordagem "causal-probabilista" da socialização A problemática assim ampliada faz da socialização um processo biográfico de incorporação das disposições sociais oriundas não somente da família e da classe de origem,
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mas também do conjunto dos sistemas de ação atravessados pelo indivíduo no decorrer de sua existência. Sem dúvida, ela implica uma relação histórica de causa entre o passado e o presente, entre a história vivida e as práticas atuais, mas essa causalidade é probabilista: exclui toda determinação mecânica dos momentos seguintes por um "momento" privilegiado. Quanto mais os pertencimentos sucessivos ou simultâneos forem múltiplos e heterogêneos, mais se abrirá o campo do possível e menos se exercerá a causalidade de uma probabilidade determinada. Se as identidades sociais são produzidas pela história dos indivíduos, elas também são produtoras de sua história futura. Esse futuro depende, não somente da estrutura "objetiva" dos sistemas em que se manifestam as práticas individuais e principalmente do estado das relações sociais no interior desse campo, mas também do balanço "subjetivo" das capacidades dos indivíduos, capacidades essas que influenciam as construções mentais das oportunidades desses campos. As identidades resultam, pois, do encontro entre trajetórias socialmente condicionadas e campos socialmente estruturados. Mas esses dois elementos não são necessariamente homogêneos, e as categorias significativas das trajetórias não são necessariamente as mesmas que estruturam os campos da prática social. Essa defasagem abre espaços de liberdade irredutíveis que tornam possíveis e às vezes necessárias conversões identitárías que engendram rupturas nas trajetórias e modificações possíveis das regras do jogo nos campos sociais. Permanece a questão da redução, legítima ou não, de todas as dimensões da socialização a espécies de capitais conversíveis umas nas outras e acumuláveis em um valor único, balanço de todos os investimentos sucessivos e simultâneos. Essa redução não é uma conseqüência necessária do ""modelo" geral de socialização que reconstruímos a partir da obra de Bourdieu, cuja interpretação ainda está sujeita a debate (Accardo e Corcuff, 1989); é, quando muito, uma simplificação cômoda que permite interpretar as
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correlações - mais ou menos fortes - entre posições atuais e posições passadas ou entre posições em campos diferentes. Ela explica uma forma de socialização que decerto permanece amplamente majoritária (a reprodução das posições relativas e das disposições vinculadas a essas posições), mas que não é a única. Privilegia a continuidade sobre as rupturas, a coerência sobre as contradições. Permite explicar a reprodução da ordem social, mas apreende insatisfatoríamente a produção de mudanças verdadeiras. Bibliografia ACCARDO, A. e CORCUFF, P. (1989), La soáologie de Bourdieu, Textes choisis et commentés, Paris, Lê Mascarei. BOURDIEU, P. (1974), "Avenir de classe et causalité du probable", Revite francaise de sociologie, XV, pp. 3-42. (1980), Lê sens pratique, Paris, Minuit. (1987), "Espace social et pouvoir symbolique", Choses dites, Paris, Minuit, pp. 147-66 (Coisas ditas, São Paulo, Brasilíense, 1990). - (1989), La Noblesse d'État, Paris, Minuit. BOURDIEU, P. e PASSERON, J.-C. (1970), La reproduction. Éléments d'une théorie du système d'enseignement, Paris, Minuit (A reprodução: elementos para uma teoria do sistema de ensino, Rio de Janeiro, Francisco Alves, 3? ed., 1992). BOURDIEU, P., BOLTANSKI, L. e SAINT-MARTIN, M. (de) (1973), "Lês stratégies de reconversion", Informations sur lês sciences-sociales, 12 (5), 1973, pp. 61-113. DURKHEIM, É. (1904-1905), Uévolution pédagogique en Trance, Paris, PUF, 2? ed., 1969 (A evolução pedagógica, Porto Alegre, Artes Médicas, 1995). GIRARD, A. e BASTIDE, R. (1973), "De Ia fin dês études élémentaires à 1'entrée dans Ia vie professionnelle ou à 1'université", Population, n?3, pp. 571-93. HÉRAN, F. (1987), "La seconde nature de 1'habitus", Revue francaise de sociologie, XXVIII, 3, pp. 385-416. PASSERON, J.-C. (1986), "Hegel ou lê passager clandestin. La reproduction social et 1'Histoire", Esprit, 6, M 1667, pp. 63-81.
Capítulo 4
A socialização como construção social da realidade
As abordagens culturais e funcionais da socialização enfatizam uma característica essencial da formação dos indivíduos: ela constitui uma incorporação das maneiras de ser (de sentir, de pensar e de agir) de um grupo, de sua visão de mundo e de sua relação com o futuro, de suas posturas corporais e de suas crenças íntimas. Quer se trate de seu grupo de origem, no seio do qual transcorreu sua primeira infância e ao qual pertence "objetivamente", quer se trate de outro grupo, no qual quer se integrar e ao qual se refere "subjetivamente", o indivíduo se socializa interiorizando valores, normas e disposições que fazem dele um ser socialmente identificável. Mas essas abordagens padecem de um mesmo pressuposto que as conduz a reduzir a socialização a uma forma ou outra de integração social ou cultural unificada assentada amplamente em um condicionamento inconsciente. Esse pressuposto é a unidade do mundo social, seja em torno da cultura de uma sociedade "tradicional" e pouco evolutiva, seja em torno de uma economia generalizada que impõe a todos os membros das sociedades "modernas" sua lógica de maximizacão dos ganhos materiais ou simbólicos. As teorias reunidas neste capítulo não admitem esse pressuposto unificador. Elas colocam a interação e a incerteza no cerne da realidade social assim definida como confronto entre "lógicas" de ação fundamentalmente hetero-
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gêneas. Não se mantém o postulado segundo o qual cada indivíduo procura ou se conformar à cultura do grupo e reproduzir suas "tradições" culturais, ou otimizar suas riquezas e suas posições de poder, dependendo do tipo de sociedade em que se encontra. Cada indivíduo é confrontado com essa dupla exigência e deve aprender ao mesmo tempo a se fazer reconhecer pelos outros e a obter o melhor desempenho possível. A socialização não pode, pois, se reduzir a uma dimensão única e consiste, nesse caso, em administrar essa dualidade irredutível. 1. A dualidade do social: trabalho e interação {Hegel); ação instrumental e ação comunicativa (Habermas) Para apreender a origem dessa dualidade do social, é necessário um (breve) desvio filosófico, que concerne à definição mais geral da socialização na tradição alemã e às conseqüências de sua utilização nas ciências sociais. É em um texto de juventude de Hegel - conhecido pelo título de Filosofia do espírito de lena - que Jürgen Habermas (1967, trad. fr. 1973, pp. 163 ss.) afirma ter encontrado o "fundamento do processo de formação do espírito humano" que constitui, segundo ele, a primeira formulação sintética da "unidade problemática do processo de socialização" (Sozializierung) determinado pela articulação de "três modelos de formação heterogêneos". Esse fundamento teórico, que sistematiza "não somente as etapas ao longo do processo de formação do espírito mas sobretudo os princípios^ de sua formação", foi abandonado por .Hegel na Fenomenologia do espírito para ser substituído pela célebre divisão enciclopédica em espírito subjetivo, espírito objetivo e espírito absoluto. Ora, segundo Habermas, a primeira teorização - a de lena - se mostrou e ainda tem se mostrado muito mais fecunda que a segunda:
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não somente por ter influenciado, em parte, o pensamento de Marx e dos "hegelianos de esquerda" que se apropriaram de Hegel abandonando a identidade do espírito e da natureza no saber absoluto, mas sobretudo por ter inspirado várias correntes importantes das ciências sociais que, de uma maneira ou outra, se referem a essa "teoria dos três mundos" (subjetivo, objetivo e social) como matriz de uma problemática operacional do processo de socialização (Sozializienmg) concebido como exteriorização do subjetivo e ínteriorização do objetivo na constituição do mundo social. A socialização é aí definida ao mesmo tempo como "índividualização do recém-nascido" e "movimento de construção do mundo social". Esse estabelecimento de uma relação entre o desenvolvimento dos indivíduos levando a "identidades sociais" e a estruturação dos sistemas sociais que servem de suporte a "mundos sociais" constitui, segundo Habermas, a problemática fundadora das "ciências sociais clássicas", que encontramos tanto em Durkheím (Habermas, 1981, p. 171) como em Weber (ia., p. 210) ou em Marx (ia., pp. 208-9). Todos consideram que "a socialização é o processo explicativo primordial e que não há individualizacão sem socialização" (id., p. 171). No âmbito da filosofia, esse processo de socialização considerado formação do espírito é apresentado por Habermas, retomando Hegel, como a unidade dialética das três mediações entre- o sujeito e o objeto, consideradas "três modelos de relações dialéticas que possuem um valor comparável: a representação simbólica, o processo de trabalho e a interação baseada na reciprocidade" (id., p. 164). A dialética da interação é primeiramente exposta a partir do exemplo da relação amorosa. Na segunda Lição de lena, Hegel define o amor como "o conhecer que se conhece no outro" e, por conseguinte, como resultante de um saber de "mão dupla": Cada um é o mesmo que o outro naquilo em que é oposto a ele. Distinguir-se do outro é, portanto, para ele, colocar-se como o mesmo que o outro e tanto isso é precisa-
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mente um conhecer nisso (...) que sua oposição lhe parece se transformar em identidade para si-próprio, ou seja, que ele se sabe ser si-próprio nessa maneira de se olhar no outro (1973, p. 172).
Essa relação de reconhecimento recíproco não é, pois, apresentada por Hegel como conseqüência imediata da intersubjetividade, mas como reconciliação de um conflito anterior e, portanto, término de um processo social. A luta pelo reconhecimento encontrará sua expressão mais célebre na dialética do senhor e do escravo da Fenomenologia do espírito. Na Filosofia de lena, o jovem Hegel fala de uma "causalidade do destino", tomando como exemplo a punição que atinge quem destrói uma "relação moral". A causalidade do destino não é senão o movimento que faz nascer, "da experiência da negatividade da vida desunida, o desejo de um retorno ao que foi perdido, levando a identificar na existência estrangeira combatida a sua própria existência negada". Leva à definição da identidade como resultado de um reconhecimento recíproco, ou seja, "conhecimento de que a identidade do eu só é possível graças à identidade do outro que me reconhece, identidade essa que depende de meu próprio conhecimento" (id., p. 176). Essa definição básica da identidade do eu como "identidade do universal e do singular", ou seja, do que, em cada um, pertence à espécie (universal) e do que pertence apenas a si mesmo (singular), já não é colocada, no jovem Hegel, como um dado primordial, uma unidade original abstrata da consciência pura ou da apercepção como em Descartes ou em Kant, mas como o produto de um processo conflituoso implicando práticas sociais, relações objetivas e representações subjetivas. O reconhecimento recíproco é, portanto, o ponto de chegada possível, e não o ponto de partida obrigatório, da socialização. Ab contrário do cogito cartesiano ou da posição de Kant que pressupõe, em sua filosofia prática, a autonomia do sujeito, não há, nesse texto de Hegel, "a harmonização prévia daqueles que agem no âmbito de uma intersubjetividade sem rupturas". E não há
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tampouco, como na Fenomenologia do espírito, a possibilidade de um saber absoluto que recapitule os conhecimentos parciais e dependentes dos indivíduos em relação mútua. Segundo Habermas, é por "não vincular a constituição do eu à reflexão de um eu solitário sobre si mesmo, mas por compreendê-la a partir dos processos de sua formação", que o jovem Hegel produz uma problemática fecunda da socialização. Por conseguinte, o importante já não é a reflexão (cogito..?) como tal mas o meio (Mitte) no qual se desenvolve esse processo conflituoso de identificação do universal e do singular. Outras mediações se tornam necessárias para o constituir. A dialética da representação caracteriza o meio no qual se realiza a apropriação subjetiva do objeto pelo sujeito. Classicamente, Hegel distingue a intuição imediata povoada "de produções noturnas da imaginação, do império fervilhante e ainda inorganizado das imagens" (id., p. 182) da linguagem que constitui "a primeira categoria sob os auspícios da qual o espírito já não é pensado como interior mas como um meio que não está nem dentro nem fora, Jogos de um mundo e não reflexão de uma consciência solitária" (p. 184). Por seu caráter de sistema cultural preexistente a toda existência individual e impositor de suas categorias fundamentais ao indivíduo, a linguagem constitui, pois, o primeiro pressuposto de toda interação que engaja, na comunicação, toda uma sociedade e uma cultura singulares, o que Hegel denomina um "povo". A linguagem nunca existe apenas como língua de um povo... Ela é o universal que é reconhecido em si, que ressoa da mesma maneira na consciência de todos; toda consciência que fala se torna imediatamente uma outra consciência na linguagem... É apenas no seio de um povo que a linguagem se torna... expressão do que cada um pensa (p. 193).
' No artigo citado (1967), Habermas consagra pouco espaço ao desenvolvimento dessa mediação pela e na linguagem. É porque, segundo ele, ela só adquire seu sentido em
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suas relações com as duas outras no cerne dos dois sistemas de atividades que ele considera os mais estruturantes da identidade: a atividade instrumental - ainda denominada estratégica -, que une, em torno dos processos de trabalho, as finalidades econômicas e os meios técnicos e organizacionais para alcançá-las, e a atividade comunicativa, que estrutura a interação entre os indivíduos - e portanto sua identidade - por meio das práticas lingüísticas. Contrariamente à abordagem "piagetiana" da socialização da criança (cf. capítulo 1), para Habermas a dialética motriz da socialização não se situa entre o organismo e seu meio, nem entre a maturação subjetiva do indivíduo e ,as incitações objetivas do entorno, mas, como indica o próprio título do artigo, no vínculo entre o trabalho e a interação, isto é, entre a dinâmica das atividades instrumentais - sistemas de ação racional em relação a um fim, segundo a definição de Max Weber - e a natureza das atividades cornunícativas - sistemas de poder e de legitimidade, e também de libertação e de reciprocidade -: "É desse vínculo, escreve ele, que depende de maneira essencial o processo de formação do espírito e da espécie" (id., p. 211). Assim, a dialética do trabalho ocupa, na apresentação de Habermas, um lugar central: encontrando no jovem Hegel uma construção próxima à que Marx e Engels desenvolverão em uma parte essencial de sua obra comum, ele coloca na esfera do trabalho e da troca a origem da identidade e da "institucionalização do reconhecimento recíproco" nas sociedades modernas. Aliás, Marx atribuíra a Hegel a paternidade dessa concepção do trabalho como "essência do homem", principalmente neste célebre texto dos Manuscrits de 1844 [Manuscritos econômico-filosóficos]: O que há de importante na fenomenologia hegeliana... é que Hegel concebe o auto-engendramento do homem como um processo, a objetivação como a desobjetivação, a exteriorização como a superação dessa exteriorização, que ele, portanto, apreende a essência do trabalho e compreende o homem objetivo, o homem verdadeiro por ser real, como resultado de seu .próprio trabalho (p. 209).
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Habermas analisa precisamente a relação, depreendida por Hegel, entre a institucionalização da reciprocidade e a troca dos produtos do trabalho: é na divisão do trabalho e na troca dos produtos do trabalho que se origina a emergência do trabalho abstrato e do dinheiro (a moeda) como equivalente geral, fornecendo o modelo do comportamento recíproco. A forma institucional dessa troca é realizada pelo contrato no qual "a palavra proferida adquire um valor normativo". A ação complementar dos atores "mediada por símbolos que fixam expectativas de comportamentos obrigatórios... é assim que a relação de reconhecimento recíproco... é codificada como tal pelo intermediário de uma institucionalização da reciprocidade que se encontra estabelecida com a troca dos produtos do trabalho" (id., p. 196). A retomada crítica dessa problemática por Marx constitui o sustentáculo de sua teoria da dialética das forças produtivas e das relações sociais de produção, considerada, com ou sem razão, "inversão" da posição hegeliana: o motor da alteração dos sistemas de trabalho e da transformação dos modos de produção está na contradição entre "o poder de dispor dos processos naturais acumulados pelo trabalho" (e de os desenvolver para a satisfação das necessidades sociais) e "o padrão institucional das interações que ainda obedecem a regras naturais e coercitivas" (e principalmente o poder de decidir a natureza da produção, sua organização e a repartição de seus produtos). A dialética forças produtivas/relações de produção, em Marx, retoma portanto, ampliando-a e tornando-a historicamente operacional, a dialética trabalho/interação do jovem Hegel. Ambos partilham o ponto de vista de que "o processo de formação", no decorrer da história universal, depende dos "mecanismos de reprodução da vida social", e que estes se consolidam nas interações travadas no momento do trabalho, que Marx designa pelo conceito de "relações de produção", matriz de sua análise das classes sociais, de sua luta e do processo histórico daí decorrente.
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O que Habermas critica no pensamento de Marx - tal como aparece principalmente na primeira parte da Ideologia alemã - é o fato de ele não explicar o vínculo entre trabalho e interação de maneira dialética e aberta, mas de "reduzir um desses dois momentos ao outro sob o título não específico de prática social"... e, portanto, de "reduzir a atividade comunicativa à atividade instrumental", que, dessa forma, se torna "o paradigma que permite produzir todas as categorias: tudo é absorvido no movimento próprio (Selbstbewegung) da produção". Segundo ele, essa é a razão pela qual "a intuição genial do vínculo dialético entre as forcas produtivas e as relações de produção é objeto de uma falsa interpretação de ordem mecanicista"2 (p. 210). Recusando radicalmente - como o Hegel da Filosofia de lena, antes da totalização do espírito humano no saber absoluto - reduzir um desses dois momentos (trabalho/forcas produtivas e interação/relações de poder) ao outro, Habermas conserva a idéia de uma autonomia irredutível das três mediações essenciais do processo de socialização, em particular das duas dialéticas motrizes: a do trabalho e da produção, de um lado, e a da interação e do poder, de outro: A libertação das forças produtivas da técnica - inclusive a construção de máquinas, suscetíveis de aprendizagem'e de serem guiadas, que simulam o setor de exercício da atividade instrumental muito além das capacidades da consciência - natural e que substituem a ação humana - não se confunde com o fato de depreender normas que possam concretizar a dialética da relação moral em uma interação livre, isenta de 2. Habermas defende a idéia de que não existe teoria operacional da socialização na obra de Marx, já que nela o desenvolvimento das forças produtivas é concebido como determinando necessariamente as relações de produção e, assim, o conjunto das relações sociais (1981, p. 212). Essa constatação é particularmente confirmada pela leitura de uma síntese sobre o lugar da socialização nas abordagens econômicas que invocam o marxismo (Palloix e Zarifian, 1981).
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dominação e baseada em uma reciprocidade vivida sem constrangimento. A libertação da fome e da miséria não coincide necessariamente com a libertação da servidão e da humilhação (pp. 210-1). Habermas distingue, depois de Weber, quatro conceitos fundamentais de ação em sociologia: a ação teleológica ou instrumental, que corresponde à Zweckrationalitãt de Weber; a ação regulada por normas, que corresponde à Wertrationalitat; a ação dramatúrgica (cf. Goffman), que corresponde à Affektual de Weber; e a ação comunicativa, definida a partir do processo de interação concebido como negociação das "definições de situações" e tradução dos "mundos vividos" (Habermas, 1981, tomo l, pp. 98 ss.). Ele defende a hipótese,da polarização dos modos de ação em torno dos dois extremos e da passagem da "regulação conforme a uma norma" à "apresentação comunicativa de si" (tomo 2, pp. 51 ss.). Defende, portanto, a tese da coexistência de dois modos de ação essenciais nas sociedades modernas: a ação instrumental ou estratégica, que estrutura os processos de dominação da natureza (trabalho), e a ação comunicativa ou relacionai, que estrutura os processos de comunicação social (interação). A atividade instrumental corresponde então à dialética do trabalho e ao universo das regras técnicas, e a atividade comunicativa à dialética da interação e ao universo das normas jurídicas radicalmente distinto do da técnica (cf. quadro 4). Assim, para Habermas, não é legítimo (nem "cientificamente" nem "moralmente") reduzir os processos de comunicação social (interação), cuja implicação histórica é "a libertação das formas de dominação e de servidão e sua substituição por formas de reconhecimento recíproco", a produtos ou aspectos dos processos instrumentais e, em particular, dos processos de produção (trabalho). De acordo com ele, a questão da socialização intervém precisamente nessa relação entre trabalho e interação, ou seja, entre processos ou "sistemas" de produção e processos ou "mundos
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Quadro 4 Representação do processo de socialização (Sozializierung) segundo Habermas de acordo com Hegel (Filosofia de lena) Categorias
l Mundo objetivo
Mundo subjetivo
Mundo social
Mediações entre sujeito e objeto
Dialética do trabalho
Dialética da representação
Dialética da interação
Categorias
Ferramentas
Símbolos
Relações
Categorias
Atividade instrumental
"
Atividade comunicativa
Identidades da consciência (momentos da identidade)
Consciência ardilosa (identidade REIVINDICADA)
Consciência da denominação (identidade REPRESENTADA)
Consciência reconhecida (identidade RECONHECIDA)
Instrumentos de socialização
Regras técnicas
Esquemas cognitivos
Normas jurídicas
Exteriorização (Entfremdung) Apropriação
Processos
Esfera
Produção
Cisão/al enação (Entauss jnmg) Reconci iacão
Linguagem
Comunicação
vividos" das relações sociais sem que, de maneira nenhuma, os segundos possam se reduzir aos primeiros. Em outras palavras, tanto para Habermas como para o jovem Hegel, as identidades sociais e, correlativamente, as formas de relações sociais nas quais elas se estabelecem e se exprimem não podem ser deduzidas dos sistemas de trabalho ou de produção nem das "forças produtivas". Reduzir os "mundos vividos" e os processos identitários a um aspecto ou produto dos "sistemas" é suprimir a questão da socialização e, portanto, subtrair toda autonomia às ciências sociais (Habermas, 1981, tomo 2, pp. 33-1 ss.). A crítica de Habermas concerne a uma orientação teórica essencial: aquela que, ao se vincular, de uma maneira ou de outra, ao funcionalismo, postula a existência de um sistema econômico e social concebido como totalidade in-
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regrada e que considera a socialização um processo de integração auto-regulada a esse sistema.
2. Socialização comunitária e socialização societária: uma leitura de Max Weber A importância dada à interação na própria definição do social e a recusa em considerar "a sociedade" uma totalidade unificada e funcional caracterizam toda uma tradição sociológica da qual sem dúvida Max Weber representa o teórico mais fecundo, a quem inúmeros sociólogos se referem ainda hoje3. Cada um faz dele sua própria leitura: a que é proposta aqui insiste na dualidade da socialização concebida como construção de formas sociais significativas mas diferenciadas. Inicialmente, recordemos a posição complexa de Max Weber quanto à própria definição do social como atividade humana dotada de um sentido subjetivo e "que se refere ao comportamento do outro pelo qual orienta seu desenvolvimento" (1921, trad'. fr. 1971, p. 4). Ao contrário da concepção de Marx, a de Weber se recusa a separar as estruturas (Estados, empresas, sociedades por ações, instituições...) dos sistemas de ação que as engendraram e que as mantêm em atividade: "as estruturas... são apenas desenvolvimentos e resultados de ações específicas de pessoas singulares, únicos agentes compreensíveis de uma atividade orientada significativamente" (p. 12). A questão geral da socialização (Sozializierung) não é, pois, para Max Weber, dissociável da questão das formas da atividade humana e principalmente dos modos de orientação de um comportamento individual em relação aos de outrem. 3. Um ressurgimento de interesse pelo pensamento de Max Weber tem se manifestado em vários campos da sociologia desde o início dos anos 1980, e uma edição científica de suas obras completas foi finalmente iniciada na França.
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Mas, se Max Weber distingue sistematicamente, em suas últimas obras, quatro tipos de ação humana (c/, quadro 5), eje.opõe apenas duas formas gerais de orientação dos comportamentos de um indivíduo em relação aos de outrem: a que ele denomina ação comunitária ou "processo de entrada em comunidade" (Vergemeinschaftung), que traduzimos por "socialização comunitária", e a que ele denomina ação societária ou "processo de entrada em sociedade" (Vergesellschaftung), que traduziremos por "socialização societária"4. Segundo Weber, a diferença essencial entre essas duas "maneiras fundamentais de se relacionar com o comportamento de outrem" é que a segunda repousa em regras (Ordnungeri) estabelecidas "de maneira puramente racional por finalidade" (Zweckrationalitát) e que, portanto, repousam em conformidades subjetivas voluntárias a ' essas regras consideradas "expressões de interesses" comuns mas limitados"/ao passo que a primeira repousa em expectativas (Erivartungen) de comportamentos fundamentados em chances subjetivas de sucesso exprimíveis sob forma de "juízos objetivos de possibilidade", oriundos do costume ou do respeito pelos valores partilhados. Enquanto a socialização "comunitária" pressupõe uma coletividade de pertencimento (Verband) e principalmente uma "comunidade lingüística", a socialização societária é "a expressão de uma constelação de interesses variados e nada mais que isso" (p. 365).' Essa distinção weberiana está explicitamente ancorada na célebre oposição Comunidade-Sociedade que deu título à obra de Ferdinand Tõnnies, Gemeinschaft una Gesellschaft, publicada pela primeira vez em 1887 e que pode ser considerada um dos primeiros - e um dos mais célebres — manuais de sociologia. Nesse texto, F. Tõnnies desenvolve uma oposição radical entre duas formas de agrupamento (Vereiri), 4. Essa formulação evita forjar neologismos inúteis (sociação, societização...) e, sobretudo, confundir a socialização em geral (Sozializierung) com a mera socialização societária (Vergesellschaftung),
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Quadro 5 Categorias da socialização em Max Weber Vergemeinschaftung 'tung nitária")
Fundamento da regularidade
Vergesellschaftung (Socialização "societária")
onal /emocional
racional em relação a valores racional em relação a tins
riedade herdada
Acordo por engajamento mútuo voluntário
Costume a religiosaa
Abandono ao líder
Interesses específicos Fé nos valores
Convenções
Direito
onal/Carismático
Legal-racional
ntimento de cimento comum
Compromisso ou coordenação de interesses motivados racionalmente
legitimidade Forma dominante de disposição Tipos de agrupamento
Família
Outras comunidades afetivas
Nação Instituição Associação Empresa (Anstalf)
(.Verem)
(Betrieb)
das quais uma (a "comunidade") é, de imediato, definida como "vida orgânica e real", "vida comum verdadeira e duradoura" associada a "tudo que é confiante, íntimo, e que vive exclusivamente junto", ao passo que a outra (a "sociedade") é apresentada como "vida virtual e mecânica", "passageira e aparente" e associada a "tudo que é público", constituindo apenas uma "pura justaposição de indivíduos". Está claro que, para Tõnnies, o que constituí o elemento primordial, originário da realidade social e, portanto, objeto elementar da sociologia não'é o indivíduo mas a comunidade, definida como "conjunto das relações necessárias e determinadas entre diferentes indivíduos que dependem uns dos outros", relações organizadas em torno de três relações fundamentais que são, segundo ele: - a relação entre uma mãe e seu filho ("relação maternal mais profunda baseada no instinto e no prazer");
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A SOCIALIZAÇÃO
- a relação entre um homem e uma mulher como cônjuges ("instinto sexual que só se torna relação social pelo hábito de conviver"); - a relação entre irmãos e irmãs descendentes da mesma mãe ("amor fraternal, a mais humana das relações entre os homens"). A imbricação dessas três relações primitivas (filiação, aliança e consangüinidade) é analisada por Tõnnies como a unidade elementar mais imediata que torna possível a "comunidade das vontades humanas" por essa tripla aproximação "de sangue, de vínculo e de espírito", que constitui "a origem de todas as coletividades humanas" (Gesamtheif). Trata-se, para Tõnnies, de uma "forma geral de vontade comum determinante que se tornou tão natural quanto a própria língua" e a única capaz de engendrar os dois sentimentos que estão na base de toda vida comum duradoura: a concórdia (concórdia: aliança cordial e entendimento pacífico) e a compreensão (con-prendere: responsabilidade comum e, portanto, ação coletiva). Para Tõnnies, essa forma comunitária (Gemeinschaff) se opõe completamente à forma "societária" (Gesellschafi), definida como "grupo de indivíduos organicamente separados" no qual é "cada um por si e em um estado de tensão em relação a todos os outros". Enquanto na Gemeraschaffr os indivíduos "permanecem ligados apesar de toda separação", na Geseilschaft eles estão "separados apesar de toda ligação". Essa última forma social, longe de ser "nataral", longe de ser produzida pela "vontade orgânica", é analisada por Tõnnies como o resultado de um processo histórico que não é senão a emergência da sociedade industrial e da reprodução capitalista. O deslocamento operado por Max Weber Se Max Weber retoma parcialmente a oposição instaurada por Tõnnies, é, na verdade, para fazê-la funcionar de maneira completamente diferente. Em primeiro lugar, en-
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quanto para este as características da Comunidade e as da Sociedade constituem representações "realistas" das relações sociais e, portanto, se excluem mutuamente, para Weber trata-se de tipos ideais, produtos de pontos de vista específicos e. não contraditórios sobre o real e, portanto, segundo ele, fã grande maioria .das relações sociais tem em parte o caráteTcie uma socialização comunitária e em parte o de uma socialização societária" (1921, p. 42). Assim, toda relação societária estabelecida por muito tempo tende a fazer surgirem valores sentimentais característicos da relação comunitária (Weber utiliza os exemplos do compartilhamento da mesma unidade militar, da mesma sala de aula, ou do mesmo local de trabalho);f ao contrário, uma relação principalmente comunitária pode estar, em parte, orientada no sentido de uma racionalidade em relação a fins devido à vontade dê todos os seus membros ou de parte deles (Weber cita o exemplo da família "explorada em certas ocasiões por alguns de seus membros como socialização societária'). Em segundo lugar, o esquema analítico de Weber (cf. quadro 5) não opõe dois "estados" sociais estáticos e rígidos, como em Tõnnies, mas dois processos dinâmicos de instauração de relações sociais orientadas por mecanismos diferentes. A socialização societária não é um condicionamento passivo de pertencimento a uma sociedade estabe-' lecida mas uma modalidade de inserção voluntária em relações de "tipo societário". Assim, escreve Weber, "a participação em um intercâmbio cria, entre os parceiros Isolados, relações societárias, pois são obrigados a orientar mutuamente seu comportamento uns em relação aos outros" (ia., p. 43). E, pois, a estrutura da situação de troca que impõe a quem dela quer participar a adoção de um tipo de relações privilegiadas fundamentadas na busca ótima do interesse mútuo. A última diferença, mas não a menor, que Weber introduz em relação a Tõnnies é a definição da passagem histórica de uma socialização comunitária dominante a uma socialização societária dominante em termos de racionalização social. Recusando todo juízo de valor sobre esse pró-
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cesso de modernização, que ele vê agir historicamente tanto na esfera econômica como na esfera política e na esfera religiosa/cultural, Max Weber o analisa como a passagem progressiva a urna forma5 dominante - mas não exclusiva de atividade social orientada por um fim (Zweckmtionalitãt), a um tipo dominante - mas não necessariamente hegemônico - de legitimidade política de tipo racional (legal-radonal) e, portanto, a um processo dominante de socialização "societária" (Vergesellschaftung) fundamentado em regras compartilhadas, em função de interesses coordenados e motivados "racionalmente". Segundo Weber, um dos mecanismos essenciais dessa racionalização instauradora de novas relações sociais reside na fragmentação do espaço social "em áreas jurisdicionais distintas fixadas oficialmente e determinadas por.regras específicas, ou seja, por leis ou regulamentos administrados" (1946, p. 196). Ao contrário da "socialização comunitária", que assume formas unificadoras e repousa sobre o encaixe dos pertencimentos (família, clã, aldeia, etnia...), a socialização societária implica, de*acordo com Weber, uma dissociação e uma autonomização crescente dos campos de atividade social cuja configuração depende das relações entre os interesses dos atores implicados.! Essa fragmentação do social é correlata à burocratização dás instituições, compartimentadas em inúmeras administrações especializadas e impessoais encarregadas de aplicar e de elaborar regulamentações cada vez mais diversas, manifestando, por essa dispersão, a primazia crescente da regra pela regra. A figura do expert profissional dotado do "monopólio legítimo de uma competência testada, fundamentada na especialização do saber e na delegação de autoridade legal" (1946, p. 678) se torna, assim, o produto típico da socialização "societária", mecanismo essencial da racionalização social.
Essa racionalização, traço essencial das sociedades modernas, é apresentada por Weber como um processo tendencial, constantemente atravessado por crises, e não como um movimento linear. Com efeito, do mesmo modo que a predominância da socialização "societária" não abole a existência da socialização "comunitária", a racionalização crescente é acompanhada, de acordo com certas análises weberianas6, da permanência de tensões entre a racionalidade em relação a fins e a racionalidade em relação a valores (Wertrationalitãf), entre o poder legal racional e as outras formas de poder, principalmente a carismática. Tal constatação supõe que o processo de racionalização social seja considerado um conjunto de tendências não lineares e não inelutáveis que se .chocam constantemente contra as lógicas próprias de cacla um dos campos de atividade social, cada vez mais compartímentados. Assim, de acordo com Weber, as classes sociais, definidas em termos puramente "societários" como o conjunto dos indivíduos caracterizados pelas "chances comuns de ter acesso aos bens e aos rendimentos" e, portanto, pelos "interesses econômicos comuns que dependem das condições dos mercados (de bens e de trabalho)", não eliminam os grupos de status, definidos mais em termos "comunitários" como grupos sociais cujos membros partilham o mesmo estilo de vida e aprendem o mesmo ritual de distinções sociais que visam a manter seu nível de prestígio. A socialização "de classe", que é, para M. Weber, um processo voluntário que implica entrar em (inter)ação na-esfera do trabalho para defender seus interesses econômicos, não elimina - sem, no entanto, necessariamente reforçá-la - a socialização "estamental", que continua sendo amplamente imposta aos indivíduos por seu entorno e se desloca na esfera "cultural". Encontra-seso mesmo tipo
3. Max Weber empresta explicitamente de G, Símmel (1917) a noção de "forma social" para designar as "formas de socialização", ou seja, os tipos de organização social e, ao mesmo tempo, os modos de orientação das ações individuais.
6. Para uma apresentação sintética dessa análise, podemos nos remeter a [ R. Nisbet (1966, pp. 107 ss.), J. Habermas (1981, t. l, pp. 228 ss.) e RRaynaud (1987).
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de coexistência entre uma lógica "societária" e uma lógica "comunitária" na esfera política dos partidos, no seio dos quais a burocratização, longe de eliminar os chefes carismáticos, assegura seu retorno periódico necessário à mobilização de tipo "comunitário" dos militantes e dos eleitores. Assim, escreve VVeber, se "a diferenciação entre classe, estamento e partido só foi possível graças a um vasto processo de socialização societária e, em particular, a um âmbito político de atividade (o Estado-nação) no interior dos quais eles operam" (1946, p. 195), inversamente a intervenção racionalizadora do Estado acentua a dissociação entre as esferas econômicas, políticas e culturais, criando "seqüências distintas e autônomas de atividades*comunitárias concorrentes" (ia., p. 201). Desse modo, é possível analisar o processo de racionalização ou de modernização como um processo complexo e aberto que repousa sobre combinações múltiplas entre as duas formas opostas de socialização - "societária" e "comunitária" - e sobre uma articulação não funcional entre as três esferas constituídas pela lógica das atividades de trabalho ("econômica"), pela lógica das representações simbólicas ("culturais") e pela lógica das estruturas de organização e de poder ("política"). A tendência histórica, ao levar ao desenvolvimento simultâneo da lógica "econômica" das atividades (otimização dos resultados), da forma "legal-racional" dos poderes (regulamentação burocrática das relações) e da estrutura "distintiva" das formas culturais (compartimentação e fechamento das áreas), engendra efeitos' perversos temíveis que obrigam a análise a levar em consideração motivações afetivas e orientações éticas dos indivíduos, formas tradicionais e carismáticas de relações de poder e estruturas comunitárias de expressão "cultural". Longe de levar a um tipo de individualidade única e estereotipada, o movimento das sociedades modernas conduziria antes a uma grande diferenciação das identidades de acordo com todas as combinações possíveis entre lógicas de atividade, formas de poder e níveis culturais. A relativa auto-
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nomia dos diversos campos e a não-coincidência crescente entre as posições dos indivíduos nos diversos campos aumentam ainda mais essa diferenciação das identidades. 3. A socialização como construção de um Si-mesmo , na relação com o Outro (G. H. Mead) Foi sem dúvida George Herbert Mead, em sua obra intitulada Mina, Self and Society [Espírito, si-mesmo e sociedade] (1934), quem primeiro descreveu, de maneira coerente e argumentada, a socialização como construção de uma identidade social (um self, no vocabulário de Mead) na e pela interação - ou comunicação - com os outros. Complementar e não antagônica à abordagem de Piaget (cf. capítulo 1), essa teorização tem o mérito de colocar a "ação comunicativa" (e não "instrumental") no centro do processo de socialização e de fazer o resultado da socialização depender das formas institucionais da construção do Sí-mesmo e, sobretudo, das relações comunitárias (e não somente societárias) que se instauram entre socializadores e socializado. Como Max VVeber, Mead considera que "o fato primordial é o ato social que implica a interação de diferentes organismos, ou seja, a adaptação recíproca de suas condutas na elaboração do processo social" (trad. ir., p. 39). O ato elementar é o gesto que constitui uma adaptação à reação do outro. Mas há dois tipos diferentes de gesto. Quando você ouve um barulho muito forte atrás de você, você sai correndo (Mead); quando está chovendo, você abre seu guarda-chuva (Weber): são gestos reflexos que não implicam nenhuma intenção de outra pessoa. Quando alguém lhe estende a mão, você estende a sua, se ele brande o punho em, direção a seu rosto, você recua: são gestos simbólicos7, "símbolos signifi/. É essa associação constante entre a interação e o simbolísmo que faz G. H. Mead ser considerado o fundador do interacionismo simbólico, do qual encontraremos outros representantes na seqüência desta obra.
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cativos que têm um sentido definido" (id., p. 40). Nesse caso, Mead os denomina linguagem e os define a partir do fato de "que causam implicitamente em quem os executa a mesma reação que causam explicitamente naqueles a quem se dirigem" (id., p. 41). Essa reação significativa e simbólica - que "tem o mesmo significado para .todos os indivíduos de uma dada sociedade ou de um grupo social" e que causa a mesma atitude em quem as executa e em quem reage a ela constitui, para Mead, a origem da consciência ou do que ele denomina espírito (Mind) e define como "o fato de adotar a atitude do outro em relação a si mesmo ou em relação a sua própria conduta" (id., p. 41). Assim, a conversação por gestos está, segundo Mead, na origem de toda linguagem, é o "modelo" (patterri) de toda comunicação e a "eseência da significação, visto que ela comporta os dois aspectos de todo processo social: a reação adaptativa do outro e a antecipação do resultado do ato social que ele indica ou inicia; o outro reage adaptando-se a esse gesto: tal reação é o significado do gesto". Essa análise básica reconcilia a sociologia weberiana e a psicologia behaviorista, contanto que se defina o comportamento (social) como uma reação significativa ao gesto de outrem. Ela permite que Mead desenvolva uma análise minuciosa da socialização como construção progressiva da comunicação do Si-mesmo como membro de uma comunidade, participando ativamente de sua existência- e, portanto, de sua transformação. A primeira etapa essencial dessa socialização segundo Mead é a "assunção", pela criança, dos papéis desempenhados por seus próximos, que Mead chama de seus "outros significativos". O papel é justamente esse conjunto de gestos que funcionam como símbolos significantes e associados para formar um "personagem" socialmente reconhecido. A criança pequena começa a se socializar, não imitando passivamente sua mãe ou seu pai, mas recriando, por gestos organizados, o papel da mãe com suas bonecas, ou o papel do pai com suas ferramentas ou seu jornal. Com fre-
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qüência, a criança inventa um "duplo" para ela, com quem brinca de assumir atitudes, inverter os papéis, alterar seus gestos e depois sua voz. Esses "amigos invisíveis, imaginários, que a maioria delas cria em sua vida" servem para "organizar as reações que elas provocam nos outros e que, assim, provocam em si mesmas" (id., p. 127). São particularmente importantes para assumir os diferentes papéis dos outros significativos por meio de "jogos livres" que já são assunções de papéis. Uma segunda etapa será ultrapassada quando - a partir da entrada na escola maternal - a criança passar do jogo livre aos jogos com regras, quando deverá ser capaz de "assumir a atitude de todo indivíduo que participa do jogo". A aprendizagem é longa e progressiva, e freqüentemente a criança continua a brincar mesmo estando com os outros (cf. Piaget, capítulo 1). Quando as crianças se reúnem para "brincar de índio", cada uma pode interpretar os papéis como quiser e "deixar sua imaginação correr solta". Mas, se elas começam uma partida de futebol, será necessário compreender progressivamente que cada jogador tem um "papel organizado", que o goleiro deve permanecer no gol e que o zagueiro deve protegê-lo, que não se pode sair do campo com a bola nem marcar gol com a mão: a criança deverá interiorizar as regras do jogo, ou seja, compreender "que-a atitude de uma provoca a atitude apropriada da outra". A passagem do jogo livre, "em que se assume o papel dos outros significativos", ao jogo com regras, "em que se respeita uma organização vinda de fora", supõe o acesso a uma outra compreensão do outro. Esse "outro" já não é um parceiro singular do qual se assume um papel particular, é a "organização das atitudes das pessoas que estão engajadas no mesmo processo social" , a comunidade, a equipe, o grupo que dá ao indivíduo a unidade do Si-mesmo. Mead o denomina "o outro generalizado" e faz da identificação com ele o mecanismo central da socialização definida como construção do Si-mesmo. A última etapa da socialização consiste, de acordo com Mead, em ser reconhecido como membro dessas comuni-
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dades às quais a criança se identificou progressivamente como Outros Generalizados. Esse reconhecimento do Simesmo implica que o indivíduo não seja somente um membro passivo que interiorizou os "valores gerais" do grupo mas também um ator que preencha no grupo um "papel útil e reconhecido". É nesse processo que intervém uma dialética, até mesmo um desdobramento, entre o "mim" identificado pelo outro e reconhecido por ele como "membro do grupo" (faço parte do time de futebol, vou aos treinos, paguei minha taxa, posso dizer: "eu"*, membro do time X) e o "eu" que se apropria de um papel ativo e específico no cerne da equipe e "que reconstrói ativamente a comunidade a partir de valores particulares ligados ao papel que ele assume" (sou goleiro, "mato-me" para ser selecionado, ajudo o time a ganhar não levando nenhum gol por culpa minha e desenvolvendo uma estratégia de defesa eficaz). Do equilíbrio e da união dessas duas faces do Si-mesmo - o "mim" que interiorizou "o espírito" do grupo e o "eu" que me permite me afirmar positivamente no •grupo - dependem a consolidação da identidade social e, portanto, a conclusão do processo de socialização. Para Mead, portanto, a socialização vai de par com a individualização: quanto mais se é Sí-mesmo, mais se está integrado ao grupo. O que importa nesse processo é o duplo movimento pelo qual os indivíduos se apropriam subjetivamente de um "mundo social", isto é, do "espírito" (Mina) da comunidade a que pertencem, e, ao mesmo tempo, se identificam com papéis, aprendendo a desempenhá-los de maneira pessoal e eficaz. Com efeito, na educação, as crianças começam, ao se identificar com seus próximos (outros significativos), por "absorver" seu mundo social geral (Society), mas o filtrando, a seu modo, por meio de atitudes particulares que a um só tempo definem suas relações específicas com ' Em francês, mói, "mim". (N. da T.)
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os outros e selecionam alguns papéis de preferência a outros (bom goleiro, forte em matemática...). Assim, "a criança das classes populares acabará, não somente habitando um mundo muito diferente do das crianças das classes superiores, mas também se diferenciando de seu vizinho que, no entanto, pertence à mesma classe que ela: por intermédio de seus pais ou de qualquer outro adulto com o qual se identifica, ela poderá interiorizar, nesse -mundo, uma atitude de aceitação de seu destino, de resignação, de ressentimento amargo ou de revolta febril" (Berger e Luckmann, 1966, p. 192). A passagem das primeiras identificações com os outros significativos à construção de uma identidade social por "abstração dos papéis" e "identificação com o Outro Generalizado" não suprime essa tensão entre o pertencimento amplamente vivenciado ("herdado") a comunidades preexistentes e a seleção ativa ("escolhida") de papéis socialmente legítimos. É por isso que G. H. Mead insiste nos riscos constantes de "dissociação do Si-mesmo" que acompanha a socialização (op. cit., p. 122): entre um "mim" que implica necessariamente um esforço de conformidade ao grupo para ser (re)conhecido e um "eu" que sempre corre o risco de ser enfraquecido ou ignorado pelos outros, o Simesmo (self) em construção corre o risco de se encontrar dividido entre a identidade coletiva sinônima de disciplina, de conformismo e de passividade e a identidade individual sinônima de originalidade, de criatividade, mas também de risco e de insegurança. Entretanto, a conclusão de Mead trazf um elemento importante para a leitura realizada de Max Weber: se a sociedade (Society, aqui, como sinônimo de gesellschaft) não pode ser construída sem fidelidade ao espírito (Mina) da comunidade (community como sinônimo de gemeinschaft) na qual ela se ancora, não o pode fazer senão pela ação coordenada de indivíduos socializados (self) que constróem e inventam novas relações, produtoras de social. Socializando-se, os indivíduos criam a sociedade tanto quanto reproduzem a comunidade.
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4. Socialização secundária e transformação social (P. Berger e T. Luckmann) Em sua obra de síntese, consagrada à socialização (1966, trad. ir. 1986), Peter Berger e Thomas Luckmann (B.L.) retomam e prolongam as análises de Mead, introduzindo uma distinção interessante entre socialização primária e socialização secundária. Em sua análise da socialização primária, eles introduzem, no esquema de Mead, a problemática dos saberes elaborada pela corrente fenomenológíca e principalmente por Alfred Schütz (1967). A socialização se define, antes de tudo, pela imersão dos indivíduos no que ele denomina "mundo vivido", que é ao mesmo tempo um "universo simbólico e cultural" e um "saber sobre esse mundo". A criança absorve o mundo social em que vive "não como um universo possível entre outros mas como o mundo, o único mundo existente e concebível, o mundo tout court". Ela faz isso a partir de um saber8 básico que, segundo Schütz, é a um só tempo pré-reflexivo e predeterminado e que funciona como uma evidência mas também como uma reserva de categorias com as quais: - ele "programa" os esquemas pelos quais o indivíduo percebe o mundo objetivo; - ele objetiva o mundo exterior no interior de uma linguagem e de um aparelho cognitivo nela fundamentado; - ele organiza, do interior da linguagem, objetos que são apreendidos como realidades; - ele fornece a estrutura no interior da qual tudo que ainda não for conhecido acabará sendo conhecido um dia (B.L., p. 94). A incorporação desse "saber básico" no e com o aprendizado "primário" da linguagem (falar, depois ler e escrever) constitui o processo fundamental da socialização pri8. O termo inglês "knawledge" deve ser traduzido antes pelo termo "savoir" (saber) do que por "connaissance" (conhecimento).
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mária, já que assegura simultaneamente "a posse subjetiva de um eu e de um mundo" e, portanto, a consolidação dos papéis sociais, redefinidos por B.L. como "tipificações de 'condutas socialmente objetivadas", isto é, ao mesmo tempo "modelos predefinidos de condutas típicas" e códigos que permitem a definição social das situações, ou seja, "as que são pertinentes tanto aos olhos do ego como do outro no contexto de situação comum". A um só tempo "campos semânticos" que permitem categorizações de situação e "programas formalizados de iniciação" que permitem a elaboração e a antecipação de condutas sociais, esses saberes básicos, objetos da socialização primária, dependem essencialmente das relações que se estabelecem entre o "mundo social" da família e o universo institucional da escola. Com efeito, a escola assegura a legitimação de determinados saberes sociais em detrimento de outros — favorecendo também determinados tipos de família - e, desse modo, desempenha um papel decisivo na distribuição social dos saberes. Constata-se claramente, nessa problemática, que os saberes básicos incorporados pelas crianças dependerão não somente das relações entre sua íamília e o universo escolar mas também de sua própria relação com os adultos encarregados de sua socialização. O destaque dos diversos saberes possuídos pelos diferentes adultos "socializadores" e de suas relações,com os diversos "socializados" constitui, assim, uma chave essencial da compreensão dos mecanismos e dos resultados da socialização primária. Mas o interesse essencial do texto de Berger e Luckmann reside na tentativa de construir uma teoria operacional da socialização secundária que não seja pura reprodução dos mecanismos da socialização primária. Se a obra de B.L. comporta algumas fórmulas que podem ser interpretadas nesse sentido ("a estrutura básica de toda socialização secundária deve se parecer com a da socialização primária"), a organização geral do texto conduz a uma teorização muito mais original. De fato, é possível formular a seguinte dupla hipótese: "a socialização nunca é totalmente bem-sucedida" (p. 146)
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e "a socialização nunca é total nem terminada" (p. 188). Portanto, é preciso consagrar um lugar importante à socialização secundária, provisoriamente definida como "interiorizacão de subdivisões de mundos institucionais especializados" e "aquisição de saberes específicos e de papéis direta ou indiretamente arraigados na divisão do trabalho" (p. 189). Trata-se, antes de tudo, da incorporação de saberes especializados - que chamaremos de saberes profissionais que constituem um novo gênero de saberes. São maquinarias conceituais que compreendem um vocabulário, receitas (ou fórmulas, proposições, procedimentos), um programa formalizado e um verdadeiro "universo simbólico" que veiculam uma concepção do mundo (Weltanschauung), mas que, ao contrário dos saberes básicos da socialização primária, são definidos e construídos com referência a um campo especializado de atividades e, portanto, "situados diversamente no interior do universo simbólico como totalidade" (p. 191). A aquisição desses saberes supõe a socialização primária anterior e coloca, a partir de então, "um problema de consistência entre as interiorizações originais e novas". Vários casos são possíveis, desde o simples prolongamento da socialização primária por uma socialização secundária cujos conteúdos estão de acordo ao mesmo tempo com o "mundo vivido" pelos membros da família de origem e, portanto, com os saberes construídos anteriormente, até a transformação radical da realidade subjetiva construída por ocasião da socialização primária. A análise detalhada desse último caso supõe que a socialização secundária possa constituir uma ruptura em relação à socialização primária, como, por exemplo, quando "a criança de mais idade acaba reconhecendo que o mundo representado por seus pais, esse mesmo mundo que anteriormente ela havia considerado predeterminado é, na verdade, o mundo das pessoas sem educação, das classes inferiores" (B.L., p. 194). A tese defendida pelos autores é a de que, nesse caso, "é preciso muitos choques biográficos para desintegrar a realidade maciça interiorizada durante a primeira infância" (p. 195). Esses choques, uma vez que acompanham um duplo processo de "trans-
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formação do mundo" e de "desestruturação/reestruturação de identidade", supõem, para terem êxito, as seguintes condições: - uma tomada de "distância de papéis" que inclua uma disjunção entre "identidade real" e "identidade virtual" (Goffman, 1963); - técnicas especiais que assegurem uma forte identificação com o futuro papel visado, um forte engajamento pessoal (commitment); - um processo institucional de iniciação que permita uma transformação real da "casa" do indivíduo e uma implicação dos socializadores na passagem de uma casa a outra; - a ação contínua de um "aparelho de conversação" que permita conservar, modificar e reconstruir a realidade subjetiva com a inclusão de uma "contradefinição da realidade" (transformação do mundo vivido pela modificação da linguagem); - a existência de uma "estrutura de plausibilidade", isto é, de uma instituição mediadora ("laboratório de transformação") que permita a conservação de uma parte da identidade antiga à medida que ocorre a identificação aos novos outros significativos percebidos como legítimos. Essas condições são ainda mais importantes e difíceis de reunir à medida que a distância entre os conteúdos da socialização primária e os da socialização secundária aumenta. Quando a ruptura é drástica, assiste-se a verdadeiras "alternâncias", ou seja, a transformações totais da identidade, aos "tornar-se outro" do indivíduo no decorrer da socialização secundária. O protótipo histórico da alternância é a conversão religiosa" (B.L., p. 215). Esta só pode durar no seio de uma comunidade religiosa que pode realizar todas as condições precedentes e, principalmente, constituir uma estrutura eficaz de plausibilidade que assegure a separação do convertido de seus antigos correligionários "ao menos durante a fase essencial da iniciação". Os autores assinalam outros dois exemplos típicos de "alternância" que aplicam procedimentos pesados de socialização secundária: o doutrínamento político e a psicoíe-
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rapia. Nos dois casos, a implicação do processo, ou seja, a transformação de identidade, depende da articulação duradoura de um "aparelho de legitimação" e de uma "reinterpretação da biografia passada" em torno de uma estrutura do tipo "antes eu achava... agora sei". A ruptura biográfica deve poder ser vivida e legitimada como uma "separação cognitiva entre trevas e luz", o que supõe que o trabalho "biográfico" de redefinição dos acontecimentos passados possa se inscrever no âmbito de um "aparelho de conversação" inserido, por sua vez, em uma estrutura legitimante de plausibilidade: a reunião de célula ou o tratamento psicanalítico podem, por exemplo, responder a tais exigências. Essa abordagem da socialização "secundária" como conversão da identidade e do mundo social coloca duas questões que não são resolvidas no texto citado: 1. Há estruturas sociais ou tipos de sociedade que implicam, da parte de seus membros, rupturas sistemáticas entre socialização primária e secundária? 2. Em que o "êxito" de uma socialização secundária está ligado às condições e aos resultados da socialização primária? A realização de uma socialização secundária em ruptura com a socialização primária é ligada, pelos autores, a dois tipos de situação muito diferentes. A primeira é aquela em que a socialização primária fracassou por diversas razões (acidentes biográficos etc.): a socialização secundária acaba construindo, então, uma identidade mais satisfatória - ou simplesmente mais consistente - do que a produzida pela socialização primária. A segunda circunstância - que é apenas evocada - é aquela em que as identidades anteriores se tornam "problemáticas", em que as identificações aos outros significativos se tornam fracas, até mesmo inexistentes, e em que se cria um "mercado dos mundos disponíveis" (B.L., p. 234) acompanhado de uma "consciência geral da relatividade de todos os mundos". Essa situação é particularmente provável em um "contexto socioestrutural de grande mobilidade, de transformação da divisão do trabalho e da
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distribuição social dos saberes". Em tais situações, a questão da socialização secundária se torna um problema essencial colocado pela transformação do trabalho, dos saberes e das relações sociais. Ela já não está ligada aos "fracassados" da socialização primária mas às pressões exercidas sobre os indivíduos para modificar suas identidades e torná-los compatíveis com as mudanças em curso. A construção de um aparelho de socialização secundária eficaz se torna, então, um elemento fundamental de êxito do processo de transformação social. A relação entre "êxito" da socialização secundária e "condições" da socialização primária constitui um dos pontos cruciais da teoria. Ainda que recusem toda determinação mecânica da socialização secundária pela socialização primária, eles não podem considerá-las totalmente independentes. A socialização secundária nunca apaga totalmente a identidade "geral" construída no fim da socialização primária. Entretanto ela pode transformar uma identidade "especializada" em outra, mesmo muito diferente, em condições institucionais bem definidas. É necessário precisar quais relações unem a identidade "geral" (e o "mundo" correspondente) resultante da socialização primária às identidades "especializadas" (e os "mundos" associados) construídas, desconstruídas e reconstruídas ao longo da socialização secundária. Essa questão da articulação das identidades "especializadas" (profissionais, culturais, políticas...) no seio de uma identidade "global" (individual e social, Selfand Society, conforme as categorias de Mead) não é resolvida a priori pela abordagem fenomenológica: ela pode apenas ser descrita empiricamente, constatada mas não teorizada (c/, capítulo 5). Apesar desse limite, a problemática da "construção social da realidade" permite abordar a questão da socialização da perspectiva da transformação social e não somente da reprodução da ordem social. Ao vincular a questão da diferenciação do social em "esferas" especializadas dotadas de uma autonomia cada vez maior à constatação da generaliza-
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cão da formação ao conjunto da existência biográfica, essa teoria abre a possibilidade de definir a transformação social como um processo conjunto de "construção de um mundo específico" e de "transformação de uma identidade especializada", e, portanto, de socialização secundária em ruptura com a socialização primária. Essa possibilidade de transformação social "real" - ou seja, não reprodutora das relações sociais e das identidades anteriores — depende antes de mais nada das relações entre os aparelhos de socialização primária e secundária, isto é, entre as instituições de legitimação dos saberes "gerais" (básicos), que asseguram a construção dos "mundos sociais" na infância, e os sistemas de utilização e de construção dos saberes "especializados"', que legitimam a reconstrução permanente dos "mundos especializados". Esses aparelhos de socialização já não podem ser considerados órgãos funcionalmente integrados de uma totalidade social (como nas teorias funcionalistas): eles possuem uma autonomia crescente e contribuem para a construção de "mundos" diferenciados em torno de saberes cada vez mais fragmentados. A coerência e a hierarquização dos saberes já não são garantidas por uma instância única de controle social e de legitimidade cultural. Por isso, os aparelhos de socialização primária (famílias, escolas...) entram em interação com os aparelhos de socialização secundária (empresas, profissões...) provocando crises de legitimidade dos diversos saberes e transformações possíveis dos "mundos legítimos". A alteração dos sistemas de trabalho e de produção e, de maneira mais geral, de ação instrumental pode ser acompanhada de socializações secundárias que questionam as hierarquias e os saberes da socialização primária, principalmente por meio de uma transformação das interações, das relações sociais e, de modo mais geral, da ação comunicativa. Essa transformação social implica que o processo de diferenciação social e de autonomização dos campos da prática social - e sobretudo da ação instrumental de tipo "econômico" - possa entrar em contradição com o processo de ré-
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produção das instituições educacionais e principalmente das relações de autoridade, de dominação e de poder que caracterizam a ação comunicativa ou de tipo "relacionai". Essa contradição só pode ser analisada em relação com os conflitos sociais que opõem grupos ou "atores" sociais definidos não somente por seus interesses "estratégicos" mas também por suas identidades "culturais". É, de fato, graças à transformação possível das identidades na socialização secundária que se podem contestar as relações sociais interiorizadas no decorrer da socialização primária: a possibilidade de construir outros "mundos" que não os interiorizados na infância funda o êxito possível de uma transformação social não reprodutora. Subjetivamente, a transformação social é, pois, inseparável da transformação das identidades, isto é, tanto dos "mundos" construídos pelos indivíduos como das "práticas" decorrentes desses "mundos". Dado que é orientada principalmente para a formação da identidade social, a socialização primária não pode ser bem-sucedida sem um processo de incorporação da "realidade tal como é" (Mead), de adaptação ao "principie de realidade", o que implica a renúncia ao "princípio de prazer" (Freud), de integração à sociedade existente e suas "relações sociais de produção e de reprodução" (Marx). Somente a socialização secundária pode produzir identidades e atores sociais orientados pela produção de novas relações sociais e suscetíveis de, por sua vez, se transformarem por meio de uma ação coletiva eficaz, ou seja, duradoura. Por essa razão, toda análise dos processos e das condições de transformação ou de inovação esbarra na questão da aprendizagem coletiva, pelos atores, das capacidades para "inventar novas maneiras de agir, novas regras e novos modelos relacionais" (Crozier. e Friedberg, 1977, pp. 338 ss.). Para isso, não basta abrir os "espaços de ação", criando "zonas de incerteza" que permitam os "investimentos estratégicos", também é preciso assegurar a existência de um aparelho de formação (socialização secundária) que permita a transformação das identidades de ator em um sentido que não se contente em reproduzir ou adap-
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tar as identidades anteriores mas que permita engajar uma verdadeira criação institucional (Sainsaulieu, 1987). Tratase, portanto, de inventar novas regras federativas, novos grupos (Reynaud, 1989). O sindicalismo pode constituir, por exemplo, um aparelho de socialização secundária que permite a transformação das identidades "dominadas" em identidades "militantes", resistindo à dominação e contribuindo para a produção de novas regras do jogo. As empresas "inovadoras" atualmente procuram elaborar ou controlar um aparelho de socialização desse tipo, que permite transformar identidades de executores em identidades de "assalariados mobilizados" (cf. terceira parte). Nos dois casos, a transformação da socialização e das identidades parece constituir uma condição primordial do êxito da transformação social. Nessa problemática apoiada na articulação entre socialização primária e socialização secundária, a reprodução social aparece como um resultado entre outros - o mais provável na maioria das sociedades não abertamente em crise - dessa articulação, correspondente a uma forte homologia entre os aparelhos de socialização e a uma forte continuidade das identidades. Quando a socialização secundária transforma as identidades resultantes da socialização primária, as relações entre "mundos gerais" e "mundos especializados" se tornam instáveis e podem evoluir ou para uma' crise duradoura ou para uma conversão do mundo social em torno do "mundo especializado" construído na socialização secundária. É preciso, enfim, levar em consideração casos em que, pelo fato de a socialização inicial não ter estruturado identidade social e de a socialização secundária não ter podido construir identidade especializada, desemboca-se em uma desestruturação duradoura dos indivíduos e em sua exclusão do espaço social. Encontramse aqui quatro "modelos de socialização" na articulação dos grandes tipos de ação (Weber), dos mecanismos de aprendizagem (Piaget), das relações entre trajetórias e sistemas, e correspondendo à hipótese fundamental do dualismo social no qual repousa todo este capítulo.
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5. Uma abordagem "compreensiva" da socialização O último elo necessário à elaboração teórica consistia em encontrar a "entrada" principal no fenômeno identitário concebido como produto da socialização. Essa entrada nos é fornecida pela perspectiva fenomenológica e compreensiva, complemento estritamente indispensável do ponto de vista causai desenvolvido no capítulo anterior: é pela análise dos "mundos" construídos mentalmente pelos indivíduos a partir de sua experiência social que o sociólogo pode reconstruir melhor as identidades típicas pertinentes em um campo social específico. Essas "representações ativas" estruturam os discursos dos indivíduos sobre suas práticas sociais "especializadas" graças ao domínio de um vocabulário, à interiorizacão de "receitas", à incorporação de um programa, em suma, à aquisição de um saber legítimo que permita a um só tempo a elaboração de "estratégias práticas" e a afirmação de uma "identidade reconhecida". As dimensões mais significativas dessas representações ativas são: - a relação com os sistemas, com as instituições e com os detentores dos poderes diretamente implicados na vida cotidiana aciona a implicação e o reconhecimento do indivíduo, seu "engajamento" e sua "indiferença", sua participação ou sua contestação, sua identidade virtual reivindicada e sua identidade realmente reconhecida; - a relação com o futuro, o do sistema e o seu próprio, engaja as orientações estratégicas que resultam da avaliação das capacidades e das oportunidades, da interiorização da trajetória e da história do sistema; - a relação com a linguagem, isto é, com as categorias utilizadas para descrever uma situação vivida, por exemplo o modo de articulação das coerções externas e dos desejos internos, das obrigações exteriores e dos projetos pessoais, das solicitações do outro e das iniciativas do eu. E exatamente na compreensão interna das representações cognitivas e afetivas, perceptivas e operacionais, estratégicas e identitárias que reside a chave da construção opera-
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cional das identidades. Essa construção só pode ser feita a partir das representações individuais e subjetivas dos próprios atores. Visto que implica o reconhecimento (ou o nãoreconhecimento) de outrem, ela constitui necessariamente uma construção conjunta. De fato, a representação como dimensão da identidade não preexiste totalmente ao discurso que a exprime. Ela constitui "uma atividade mimética visto que produz algo, ou seja, precisamente a organização dos fatos pelo enredamento" (Ricoeur, 1985). Essa passagem do "representado" ao operacional, do passivo ao ativo, do "já produzido" ao "em construção" permite definir as identidades como dinâmicas práticas e não como "dados objetivos" ou "sentimentos subjetivos". Como conseqüência de seu arraigamento nos dois tipos de ação social - a ação instrumental "estratégica", que supõe uma atuação sobre o mundo, uma caracterização ativa, e a ação comunicativa "expressiva", que supõe o compartilhamento de uma linguagem, de um código e de sua utilização em relações diretas -, essas representações ativas que mobilizam os diversos tipos de saberes constituem os melhores indicadores possíveis das identidades sociais, resultados tanto estáveis como provisórios de um processo de socialização concebido em termos estratégicos e comunicativos. Bibliografia BERGER, P. e LUOKMANN, T. (1966), The Social Constructíon ofReality. A Treatise ofthe Sociology ofKnowledge, trad. fr. La construction sociale de Ia réalité, Paris, Méridiens Klincksieck, 1986 (A construção social da realidade: tratado de sociologia do conhecimento, Petrópolis, Vozes, 20! ed., 2001).
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Capítulo 5
Para uma teoria sociológica da identidade
O recurso à noção de Identidade para concluir esta primeira parte consagrada às teorias da socialização decorre do capítulo precedente, constituindo, ao mesmo tempo, uma empreitada perigosa, pois, como escreve Erikson, "quanto mais se escreve sobre esse tema, mais as palavras se erigem como limite em torno de uma realidade tão insondável quanto por toda parte invasiva" (1968, p. 5). A conceítualizacão esboçada neste capítulo recusa distinguir a identidade individual da identidade coletiva (Tap, 1980), para fazer da identidade social uma articulação entre duas transações (cf. capítulo 1): uma transação "interna" ao indivíduo e uma transação "externa" entre o indivíduo e as instituições com as quais ele interage (cf. capítulo 4). A abordagem subjacente a este capítulo dá grande importância tanto aos processos "culturais" (cf. capítulo 2) quanto às estratégias de ordem econômica (cf. capítulo 3). Ela se concentra em depreender e definir categorias de análise (cf. quadro 6) que sejam operacionais para pesquisas empíricas (cf. terceira parte).
1. O ponto de partida: a dualidade no social As teorias apresentadas no capítulo anterior levam a considerar a divisão do Eu a forma primordial de manifesta-
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cão da identidade • (Laing, 1961, p. 25). É necessário, aqui, voltar à psicanálise e a suas aquisições mais sólidas, Recordemo-nos que, para Freud, o Ego é a um só tempo uma instância defensiva contra as agressões do real externo, uma "agência" de coerência das representações e de adaptação à realidade e uma organização de investimento libidinal. O Ego é permeado por conflitos permanentes entre o Id, portador de todos os desejos recalcados, e o Superego, sede das normas e dos interditos sociais (Freud, 1913, trad. fr., pp. 105 ss.). Sem dúvida foi Lacan quem mais insistiu, em sua leitura de Freud, nessa "discordância primordial na relação do organismo com sua realidade" (Lacan, 1966, p. 93), nessa "subversão do sujeito" em sua atividade desejante (id., 1971, pp. 151 ss.) que ele consolida na fase do espelho e na experiência precoce da criança pequena ("antes de o Eu se objetivar na dialética da identificação com o outro e antes de a linguagem lhe restituir no universal sua função de sujeito", id., p. 90) que percebe, em sua imagem, "sua discordância com sua própria realidade". Essa interpretação da descoberta mais importante de Freud - "a estrutura do sujeito como descontinuidade no real" - parece se opor a outras leituras1 mais "humanistas" e mais "otimistas", como a de Erikson por exemplo, que define deste modo a identidade do Ego: "sentimento subjetivo e tônica de uma unidade pessoal (sameness, já traduzido por similitude) e de uma continuidade temporal ao princípio mais profundo de toda determinação que possuo para a ação e para o pensamento" (1968, p. 14). O autor se apoia sobretudo em uma carta de Freud (1926) que reivindica sua identidade judia, belamente definida como "intimidade bem protegida de uma estrutura psíquica comum" (Erikson, p. 16). No entanto, nem por isso as duas posições precedentes são contraditórias, .já que Erikson insiste no fato de que "a identidade nunca é 1. Para um apanhado das abordagens psicanalíticas da identidade; pode-se ler a síntese de J. Cain (1977) intitulada significativamente Lê double jeu [O duplo jogo].
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instalada, nunca é acabada, visto que o entorno do Ego é móvel" (p. 20) e que os indivíduos passam necessariamente por crises de identidade ligadas a "fissuras internas do ego" 2 (iW.,p. 87). A divisão interna à identidade3 deve enfim e sobretudo ser esclarecida pela dualidade de sua própria definição: identidade para si e identidade para o outro são ao mesmo tempo inseparáveis e ligadas de maneira problemática. Inseparáveis, uma vez que a identidade para si é correlata ao Outro e a seu reconhecimento: nunca sei quem sou a não ser no olhar do Outro. Problemáticas, dado que "a experiência do outro nunca é vivida diretamente pelo eu... de modo que contamos com nossas comunicações para nos informarmos sobre a identidade que o outro nos atribui... e, portanto, para nos forjarmos uma identidade para nós mesmos" (Laing, p. 29). Ora, todas as nossas comunicações com os outros são marcadas pela incerteza: posso tentar me colocar np lugar dos outros, tentar adivinhar o que pensam de mim, até mesmo imaginar o que eles acham que penso deles etc. Não posso estar na pele deles. Eu nunca posso ter certeza de que .minha identidadeL para mim mesmo coincide com minha identídaáe^arajoOutrp. A identidade nunca é dada, ela sempre é construída e deverá ser (re)construída em uma incerteza maior ou menor e mais ou menos duradoura. Abordada dessa maneira, a noção de identidade pode ser incluída em uma abordagem sociológica? Decerto não se ficarmos limitados a uma abordagem fenomenológica da relação ínteríndividual Eu-Outro ou a uma abordagem psicanalítica redutora que considera o Ego elemento de um sistema fechado em relação dinâmica mas "interna" com o 2. Erikson interessou-se particularmente pela crise da adolescência, a respeito da qual elaborou uma teoria próxima da esboçada aqui. 3. Também seria possível a vincular à teoria durkheimiana do homo dupla (ser individual/ser social), resumida principalmente em Éducation et sociologie [Educação e sociologia] (1911). Para as convergências e divergências entre essa teoria e a de Freud, cf. Bastide (1950).
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Id e com o Superego, jogando para o "entorno" o conjunto das instituições e das relações sociais4. Com certeza sim se restituirmqs essa relação identidade para si/identidade para o outro ao interior do processo comum que a torna possível e que constitui o processo de socialização. Desse ponto de vista, a identidade nada mais é que o resultado a um só tempo estável e provisório, individual e coletivo, subjetivo e objetivo, biográfico e estrutural, dos diversos processos de socialização que, conjuntamente, constróem os indivíduos e definem as instituições. O que essa noção traz além - ou de diferente - das noções de grupo, classe ou categoria utilizadas em uma perspectiva macrossocial, ou das noções de papel e de status definidas a partir de uma perspectiva microssocial? A resposta parece clara: ela tenta introduzir a dimensão subjetiva, vivida e psíquica no cerne da análise sociológica. Ela introduz a hipótese paradoxal que de certa forma inverte as posições psicanalíticas "correntes" que opõem o Ego e seu sistema interior (Id, Superego...), considerado essencial, ao Entorno e sua organização "externa", freqüentemente considerada não-essenciaP: "A ironia disso é que, com freqüên' cia, acontece de o que considero a realidade mais pública ser considerado por outros minha fantasia mais pessoal e de o que suponho ser meu mundo 'interior' mais íntimo mostrar-se como o que tenho de mais comum com os outros" (Laing, p. 42).' Essa inversão que faz "do mais íntimo" o que é também "o mais social" não suprime a divisão do Eu como realidade originária da identidade: ela a instala no próprio social6 ao 4. "A psicanálise nunca pôde conceitualizar o entorno de maneira operacional" (Erikson, op. cit, p. 20). 5. Não era a posição de Freud quando ele escrevia: "Todas as relações que até agora foram objetos de pesquisas psicanalíticas podem, com razão, ser consideradas fenômenos sociais" (Freud, trad. fr. 1981, p. 76). Portanto, seria necessário nuancar e distinguir as diversas correntes psicanalíticas, não obstante os escritos mais sociológicos de Freud terem sido, por muito tempo, considerados pela maioria dos psicanalistas os menos científicos e os menos pertinentes (cf. Enriquez, 1983, pp. 32 ss.). 6. Cuja estrutura é ao mesmo tempo produto e reflexo das estruturas cognitivas e relacionais de seus membros (Lévi-Strauss, 1977).
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abordá-lo pelo viés da expressão individual dos "mundos subjetivos", que são ao mesmo tempo "mundos vividos" e "mundos exprimidos", portanto apreensíveis empiricamente (Demazière e Dubar, 1997). Ela se justifica pela tentativa de compreender as identidades e suas eventuais cisões como produtos de uma tensão ou de uma contradição interna ao próprio mundo social (entre a ação instrumental e comunicativa, a societária e a comunitária, a econômica e a cultural etc.), e não essencialmente como resultados do funcionamento psíquico e de seus recalques inconscientes. 2. O cerne da teoria: uma articulação de dois . processos identitários heterogêneos A divisão do Eu como expressão subjetiva da dualidade social aparece claramente através dos mecanismos de identificação. Cada um é identificado por outrem, mas pode recusar essa identificação e se definir de outra forma. Nos dois casos, a identificação utiliza categorias socialmente disponíveis e mais ou menos legítimas em níveis diferentes (designações oficiais de Estado, denominações étnicas, regionais, profissionais, até mesmo idiossincrasias diversas...). Denominaremos atos de atribuição os que visam a definir "que tipo de homem (ou de mulher) você é", ou seja, a identidade para o outro; atos de pertencimento os que exprimem "que tipo de homem (ou de mulher) você quer ser, ou seja, a identidade para si". Não há correspondência necessária entre "a identidade predicativa de si", que exprime a identidade singular de uma pessoa determinada, com sua história de vida individual, e as identidades "atribuídas pelo outro", quer se trate de identidades numéricas que definem oficialmente alguém como ser único (estado civil, códigos de identificação, números de ordem...), quer se trate de identidades genéricas que permitem aos outros classificar alguém como membro de um grupo, de uma categoria, de uma classe. E, no entanto, a identidade predicativa de si
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reivindicada por um'indivíduo é "a condição para que essa pessoa possa ser identificada genérica e numericamente pelos outros" (Habermas, 1981, tomo II, p. 115). Com efeito, é pela e na atividade com os outros, o que implica um sentido, um objetivo e/ou uma justificação, uma necessidade (um "fim", um-zu-Motiv, ou uma "causa", urn-zu-Welt, no vocabulário de Alfred Schütz, indicando a dualidade social), que um indivíduo é identificado e levado a endossar ou a recusar as identificações que recebe dos outros e das instituições. Pensa-se, aqui, na análise exemplar da gênese do comportamento desviante, realizada por Howard Bec•ker a partir de seus estudos sobre os fumantes de maconha e sobre os músicos de jazz: a identidade desviante é forjada no decorrer de um processo (career) que constitui uma "transação entre um grupo e um indivíduo que o grupo considera que transgrediu uma norma". Segundo Becker, não é somente a transgressão mas também e sobretudo a rotulagem (labelling) pelos outros que constitui o desvio. Assim, prosseguindo sua análise, o autor conclui que a identidade desviante é, enfim, o produto de uma transação entre a identificação imposta pelo outro e a subcultura do grupo desviante (Becker, 1963, p. 36), o que acaba fazendo do ato desviante a causa de seu status principal, ou seja, aquele pelo qual o próprio desviante se define e com o qual se identifica ativamente (commitment). Dessa forma, o célebre teorema de Thomas, princípio da predição criadora - segundo o qual "quando os homens tomam determinadas situações como reais, elas são reais em suas conseqüências", e se realiza "uma modelagem do indivíduo pela imagem que os outros têm dele e pela definição que dão dele" (Merton, 1950, pp. 140 ss.) -, só poderá ser operacional se incluir a questão da transação entre a identidade atribuída e a identidade aceita (ou recusada) pelo indivíduo referido7. Não se pode, por exemplo, considerar 7. Encontramos outra análise exemplar dessa transação identitária consecutiva a uma rotulagem ("Você ê um ladrão") no belíssimo texto de Sartre consagrado à biografia de Jean Genet (Sartre, 1952).
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equivalentes um processo pelo qual um toxicômano definido como tal reivindica sua identidade de drogado (Becker) e um processo pelo qual o aluno em situação de fracasso escolar interioriza as predições dê seus professores (Rosenthal e Jacobson, 1968), a não ser que se tenha verificado empiricamente que tanto um como o outro se autodefinem de maneira conforme às predições dos outros. Estamos diante do encontro de dois processos heterogêneos que algumas teorias sociológicas tendem, sem demonstração convincente, a reduzir a um mecanismo único (cf. capítulo 3). O primeiro concerne à atribuição da identidade pelas instituições e pelos agentes que estão em interação direta com os indivíduos. Só pode ser analisado no interior dos sistemas de ação nos quais o indivíduo está implicado, e resulta de "relações de força" entre todos os atores envolvidos e da legitimidade - sempre contingente das categorias utilizadas. A "formalização" legítima dessas categorias constitui um elemento essencial desse processo que, uma vez concluído, se impõe coletivamente, ao menos por um tempo, aos atores implicados. O processo leva a uma forma variável de rotulagem, produzindo o que Goffman denomina identidades sociais "virtuais" dos indivíduos assim definidos (Goffman, 1963, p. 57). O segundo processo concerne à interiorização ativa, à Incorporação da identidade pelos próprios indivíduos. Ela só pode ser analisada no interior das trajetórias sociais pelas e nas quais os indivíduos constróem "identidades para si" que nada mais são que "a história que eles se contam sobre o que são" (Laing, p. 114), e que Goffman denomina identidades sociais "reais". Estas também utilizam categorias que devem, antes de mais nada, ser legítimas para o próprio indivíduo e para o grupo a partir do qual ele define sua identidade-para-si. Esse grupo de referência pode ser diferente do grupo ao qual ele pertence "objetivamente" para outrem (cf. capítulo 2). No entanto, ele é o único que importa "subjetivamente" para o indivíduo. Sem essa legitimidade "subjetiva", não é possível falar de identidade-para-si.
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Vê-se nitidamente: esses dois processos não são necessariamente coincidentes. Quando seus resultados diferem, há "desacordo" entre a identidade social "virtual" conferida a uma pessoa e a identidade social "real" que ela mesma se atribui (Goffman, 1963, trad. fr., p. 12). Disso resultam "estratégias identitárias" destinadas a reduzir a distância entre as duas identidades. Elas podem assumir duas formas: ou a de transações "externas" entre o indivíduo e os outros significativos, visando a tentar acomodar a identidade para si à identidade para o outro (transação denominada "objetiva"), ou a de transações "internas" ao indivíduo, entre a necessidade de salvaguardar uma parte de suas identificações anteriores (identidades herdadas) e o desejo de construir para si novas identidades no futuro (identidades visadas), com vistas a tentar assimilar a identidadepara-o-outro à identidade-para-si. Essa transação, denominada subjetiva, constitui um segundo mecanismo central do processo de socialização concebido como produtor de identidades sociais. As estratégias identitárias podem, pois, ser comparadas aos processos de equilibração segundo Piaget (cf. capítulo 1). A abordagem sociológica desenvolvida aqui faz da articulação entre as duas transações a chave do processo de construção das identidades sociais. A transação subjetiva depende, de fato, das relações para com o outro, constitutivas da transação objetiva. A relação entre as identidades herdadas, aceitas ou recusadas pelos indivíduos, e as identidades visadas, em continuidade às identidades precedentes ou em ruptura com elas, depende dos modos de reconhecimento pelas instituições legítimas e por seus agentes que estão em relação direta com os sujeitos envolvidos. A construção das identidades se realiza, pois, na articulação entre os sistemas de ação, que propõem identidades virtuais, e as/'trajetórias vividas"8, no interior das quais se for8. A noção de "trajetória vivida" designa a maneira como os indivíduos reconstruem subjetivamente os acontecimentos de sua biografia social que julgam significativos. Essas trajetórias podem ser apreendidas por seus relatos implicando categorizações e argumentações específicas (Demazière e Dubar, 1997).
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jam as identidades "reais" às quais os indivíduos aderem. Ela pode ser analisada em termos tanto de continuidade entre identidade herdada e identidade visada como de ruptura implicando conversões subjetivas (cf. capítulo 4). Pode ser traduzida tanto por acordos quanto por desacordos entre identidade "virtual", proposta ou imposta por outrem, e identidade "real", interiorizada ou projetada pelo indivíduo. Portanto essa abordagem supõe a um só tempo uma relativa autonomia e uma necessária articulação entre as duas transações: as configurações identitárias constituem, então, formas relativamente estáveis, mas sempre evolutivas, de compromisso entre os resultados dessas duas transações diversamente articuladas (cf. quadro 6). Tal problemática supõe a concepção e a análise da transação "objetiva" como uma confrontação entre demandas e ofertas de identidades possíveis, e não simplesmente como produtos de atribuições de identidades pré-construídas. Essa transação supõe, portanto - para se articular com a outra -, que o processo de categorização pelo qual se constróem as identidades oferecidas ao indivíduo seja redefinido. Ela deve se conceber como uma negociação verdadeira entre os demandantes de identidade em situação de abertura de seu campo do possível e os fornecedores de identidade em situação de incerteza quanto às identidades virtuais a propor. Essa negociação identitária constitui um processo comunicativo complexo, irredutível a uma "rotulagem"9 autoritária de identidades predefinidas com base nas trajetórias individuais. Ela implica fazer da qualidade das relações com o outro um critério e um elemento importantes da dinâmica das identidades. Supõe principalmente uma redefinição dos critérios mas também das condições10 9. A utilização incontrolada desse termo (labelling) pelos sociólogos se deve, com freqüência, ao fato de que as análises de Goffman ou de Becker que incluem essa negociação identitária terem sido radicalizadas por alguns de seus êmulos, influenciados sobretudo pelo pensamento de Foucault. 10. A distinção é desenvolvida de maneira muito clara por Habermas (tomo II, pp. 118 ss.).
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Quadro 6 Categorias de análise da identidade Processo relacionai
Processo biográfico
Identidade para o outro
Identidade para si
Atos de atribuição "Que tipo de homem ou de mulher você é" = dizem que você é
Atos de pertencimento "Que tipo de homem ou de mulher você quer ser" = você diz que você é
Identidade - numérica (nome atribuído) - genérica (gênero atribuído) *
Identidade predicativa de Si (pertencimento reivindicado)
Identidade social "virtual" Transação objetiva entre - identidades atribuídas/propostas - identidades assumidas/incorporadas
Transação subjetiva entre - identidades herdadas - identidades visadas
Alternativa entre - cooperação - reconhecimento - conflitos - não-reconhecimento
Alternativa entre - Continuidades —» reprodução - Rupturas —> produção
"Experiência relacionai e social do PODER"
"Experiência de estratificações, discriminações e desigualdades sociais"
' Identidade social marcada pela dualidade '
de identidades e de competências associadas às identidades oferecidas. Deve, pois, poder definir, em diversos graus, como uma construção conjunta, o processo de produção de identidades novas incluindo suas confirmações objetiva e subjetiva. A problemática assim definida repousa na hipótese de uma dualidade do funcionamento social habitual, irredutí-
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vel a todo postulado de harmonização funcional, associada geralmente à idéia de "comunidades" integradas, ou a toda redução das condutas a estratégias instrumentais de ordem "societária". Os dois processos coexistem e nenhum mecanismo macrossocial pode garantir, por exemplo, que as trajetórias socioescolares produzirão indivíduos providos de atitudes relacionais pré-adaptadas ao funcionamento ótimo dos sistemas sociais de amanhã. Nenhuma harmonia preestabelecida faz coincidirem as antecipações estratégicas dos indivíduos (em termos de renda, poder e prestígio) com as exigências comunicativas dos sistemas (em termos de empatia, cooperação e trocas). Nenhuma instância simbólica reguladora (a religião, o Estado...) ainda assegura a continuidade necessária entre as identidades reconhecidas ontem e as de amanhã. O que está em jogo é exatamente a articulação desses dois processos complexos mas autônomos: a identidade de uma pessoa não é feita à sua revelia, no entanto não podemos prescindir dos outros para forjar nossa própria identidade. 3. Um mecanismo comum aos dois processos: a tipificação Se os dois processos que concorrem para a produção das identidades - o processo biográfico (identidade para si) e o processo relacionai, sistêmico, comunicativo (identidade para o outro) - são heterogêneos, nem por isso deixam de utilizar um mecanismo comum: o recurso a esquemas de tipificação (Berger e Luckmann, 1966) implicando a existência de tipos identitários, ou seja, "de um número limitado de modelos socialmente significativos para realizar combinações coerentes de identificações fragmentárias" (Erikson, p. 53). Essas categorias particulares que servem para identificar os outros e para se auto-identificar são variáveis tanto de acordo com os espaços sociais onde se exercem as interações como de acordo com as temporalidades biográficas
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e históricas em que se desenrolam as trajetórias11. Assim as categorias pertinentes no campo religioso (praticante/nãopraticante/incréu ou católico/protestante/muçulmano/judeu/ateu etc.) não são as mesmas que as no campo político (direita/esquerda...) ou no campo do trabalho (ativo/inativo, assalariado/não-assalariado, execução/administração etc.). A priorí, nada permite hierarquizar os diferentes campos de identificação nem estabelecer correspondências necessárias entre as posições internas aos diferentes campos (catolico-direita-posto administrativo/não-católico-esquerda-posto de execução): somente a análise empírica pode tentar verificar correlações significativas. Do mesmo modo, nada permite afirmar a priori que as categorias que servem para se auto-identificar ao longo do ciclo de vida sejam as mesmas ou sejam facilmente comparáveis entre si. Pode-se defender a hipótese de que essas categorias dependem muito das fases da vida e que existe uma relativa compartimentação entre as esferas de identificação de um mesmo indivíduo em um mesmo momento: a teoria dos papéis é plenamente compatível com essa hipótese de dispersão das identidades subjetivas (para si) de acordo com as cenas sociais em que o indivíduo se investe sucessivamente (cf. capítulo 4). No entanto, isso não quer dizer que se deva renunciar à noção de identidade social, contanto que ela seja definida e problematizada. No processo de identificação do outro existem categorias mais sintéticas - as categorias sociais que servem para subsumir homologias de posições em sistemas no interior dos quais são incluídos quase todos os indivíduos de uma mesma geração ("a formação da identidade constitui essencialmente um problema de geração", Erik11. Laurence Hírschfeld, antropólogo, demonstrou, em uma pesquisa recente (1988), que existem dois tipos de processo diferentes de "conhecimento social": o primeiro está ligado à identificação do outro por meio de categorizacões - principalmente étnicas - adquiridas precocemente pelas crianças "a partir de traços relevantes", o segundo está ligado à auto-identificação pessoal dos indivíduos e repousa em uma construção progressiva de categorias "vinculadas".
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son, p. 26). Na França, organismos oficiais como o INSEE forjam e modificam categorias gerais (CSP: categorias socioprofissíonais, de 1954 a 1982; PCS: profissões e categorias sociais, desde 1982...) que permitem classificar o conjunto dos indivíduos recenseados segundo critérios que combinam principalmente o pertencimento e a posição "profissional" com o nível e o tipo de estudos "escolares" realizados. Tal prioridade dada aos campos profissionais e escolar é historicamente contingente, mas nem por isso deixa de conferir uma legitimidade particular a essas categorias e, portanto, aos campos sociais a partir dos quais são construídas e reconstruídas (Desrosières et alii, 1983). / Essas categorizações legítimas influenciam necessariamente o processo de construção das identidades para si. Mas elas não as determinam mecanicamente nem as fixam de uma vez por todas. De um lado, os indivíduos de cada geração devem reconstruir suas identidades sociais "reais" a partir: 1) das identidades sociais herdadas da geração anterior ("nossa primeira identidade social nos é sempre conferida", Laing, p. 116); 2) das identidades virtuais (escolares...) adquiridas durante a socialização inicial ("primária"); 3) das identidades possíveis (profissionais...) acessíveis no decorrer da socialização "secundária". De outro lado, as próprias categorias pertinentes de identificação social evoluem no tempo e permitem antecipações recíprocas sobre as quais podem se enxertar as negociações identitárias. Assim, nada é mais importante para a análise sociológica do que discernir os movimentos que afetam os modelos sociais de identificação, ou seja, os tipos identitários pertinentes. Estes não podem ser assimilados às categorias sociais existentes oficialmente em um momento em que elas estão sempre ameaçadas de relativa obsolescência, principalmente nos períodos de crise (Desrosières e Thévenot, 1988). Devem também e sobretudo ser apreendidos a partir das identificações "reais" dos indivíduos entre si e para si próprios. É na maneira como eles utilizam, pervertem, aceitam ou recusam as categorias oficiais que devem ser lidos os processos de iden-
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tificação futura que implicam rearranjos permanentes tanto das áreas quanto das categorias identitárias. Por isso as tipologias dos sociólogos (categorias "científicas") devem tentar considerar o mais possível as tipificações recíprocas dos próprios indivíduos (categorias "indígenas"), produzidas em negociações complexas com as instituições pertinentes, com suas categorias "oficiais" e com seus agentes significativos (cf. Demazière e Dubar, 1997). 4. O processo identitário biográfico Se os modos de construção das categorias sociais a partir dos campos escolar e profissional adquiriram tal legitimidade, é porque as esferas do trabalho e do emprego (assalariado para mais de 80% da população ativa e problemático para mais de 10% desde o início dos anos 1980), e também da formação (escolar mas também profissional, inicial mas também contínua), constituem áreas pertinentes das identificações sociais dos próprios indivíduos (cf. terceira parte). Historicamente nem sempre foi assim e, sem dúvida, foi a partir da crise iniciada no fim dos anos 1960 que esses vínculos "emprego-formação" (Tanguy et alii, 1986) se reforçaram no cerne dos processos identitários, em todo caso para os indivíduos da geração em questão (os que entraram no mercado de trabalho depois da metade dos anos 1970). Dada a evolução das políticas de gestão do emprego ao longo dos anos 1980, tudo funciona como se a totalidade da população economicamente ativa fosse, a partir de então, englobada por esse movimento, inclusive a geração precedente: a "formação" se tornou uma componente cada vez mais valorizada não somente do acesso aos empregos mas também das trajetórias de emprego e das saídas de emprego. Se o emprego é cada vez mais fundamental para os processos identitários (Schnapper, 1989), a formação está ligada a ele de maneira cada vez mais estreita.
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No entanto, isso não significa que seja necessário reduzir as identidades sociais a status de emprego e a níveis de formação. É evidente que, antes de se identificar pessoalmente a um grupo profissional ou a um tipo de formação, o indivíduo, já na infância, herda uma identidade sexual, mas também uma identidade étnica e uma identidade de classe social, que são as de seus pais, de um deles ou de quem tem a incumbência de educá-lo. Efetivamente, a primeira identidade vivenciada e experimentada pessoalmente pela criança pequena se constrói em sua relação com a mãe ou com quem faz as vezes de mãe: por essa razão, a psicanálise permanece incontornável em toda abordagem da identidade individual. Contudo, é nas e pelas categorizações dos outros - e principalmente dos parceiros de escola (seus "professores" e seus "colegas") - que- a criança vive a experiência de sua primeira identidade social. Esta não é escolhida, mas conferida pelas instituições e pelos próximos com base, não somente nos pertencimentos étnicos, políticos, religiosos, profissionais e culturais de seus pais, mas também em seu desempenho escolar. A escola elementar constitui, desse modo, um momento decisivo para a primeira construção da identidade social, 'freqüentemente bem desconectada de todo universo profissional (Isambert-Jamati, 1984). É assim se "aprendemos a ser o que nos dizem que somos" (Laing, p. 116), se devemos construir para nós, através de todas as relações frente a frente, todas as identificações com os outros significativos e depois com o Outro Generalizado (Mead), um "saber sobre o que somos no fundo de nós mesmos". Dessa dualidade entre identidade para o outro conferida e identidade para si construída, mas também entre identidade social herdada e identidade escolar visada, se origina um campo do possível no qual se desenvolvem já na infância, na adolescência, e no decorrer da vida, todas as estratégias identitárias12. Assim, por exemplo, aparece, já na fase 12. Um exemplo particularmente interessante de estratégia identitária no campo do local é desenvolvido por O. Benort-Guilbot a propósito das esco-
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"fálica-motora" (por volta dos cinco anos), uma alternativa na posição que as crianças adotam em relação a sua "identidade conferida": ou "extirpar essa identidade estrangeira de que foi dotada e criar uma identidade para si mesma que se obcecará em fazer confirmar", ou "exibir sua identidade de origem e agarrar-se a ela para a valorizar" (Laing, p. 116). Essa escolha inicial está, segundo Erikson, ligada a uma opção mais primitiva ainda entre a "plenitude" de um "sentimento de confiança básica" que remete a uma integração bem-sucedida resultante de uma "bondade vivenciada" entre o exterior e o interior, ou uma "desconfiança básica" resultante de todas as experiências infantis não coroadas de êxito pela experiência da integração (Erikson, p. 84). A opção parece, em todo caso, recorrente: algumas trajetórias são antes de tudo marcadas pela continuidade inter e intragerações, outras são marcadas por rupturas de toda natureza, o que implica questionamentos de identidades anteriormente adquiridas ou construídas. Entre os acontecimentos mais importantes para a identidade social, a saída do sistema escolar e a confrontação com o mercado de trabalho constituem atualmente um momento essencial da construção de uma identidade autônoma. É claro que o conjunto das escolhas de orientação escolar mais ou menos forçadas ou assumidas representa uma antecipação importante do status social futuro. A entrada em uma "especialidade" disciplinar ou técnica constitui um ato significativo da identidade virtual. Mas, hoje em dia, é na confrontação com o mercado de trabalho que, certamente, se situa a implicação identitária mais importante dos indivíduos da geração da crise13. Essa confrontação assume formas sociais diversas e significativas conforme os lhas do bairro de moradia, na França, durante os anos 1970 (1986, pp. 127 ss.). Outros exemplos muito elucidativos concernem às trajetórias de imigração e aos relatos de imigrantes em C. Camilieri et alii (1990). 13. Da mesma forma, é na experiência da aposentadoria, qualificada por A.-M. Guillemard de "morte social", e portanto no momento da saída do mercado de trabalho, que atuam as estratégias identitárias mais delicadas da geração do entre-guerras (A.-M. Guillemard, 1972).
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países, os níveis de escolaridade e as origens sociais. Mas é de seu resultado que dependem tanto a identificação por outrem de suas competências, de seu status e de sua carreira possível, quanto a construção por si de seu projeto, de suas aspirações e de sua identidade possível. Essa defrontacão com a incerteza concerne de agora em diante a toda uma faixa etária, rapazes e moças, autóctones ou imigrantes, estudantes ou não diplomados. Ela ocorre, para essa geração, em condições históricas particulares (Baudelot, 1988): uma alta taxa de desemprego que atinge de maneira diferente os novos integrantes dependendo dos países, dos níveis de escolaridade, das origens sociais e do sexo; um rápido processo de modernização tecnológica e de mudanças organizacionais nas empresas, na administração pública e no setor de serviços; um prolongamento da transição entre a saída da escola e o acesso a um emprego cada vez menos considerado estável ("para o resto da vida"). É do resultado dessa primeira confrontação que dependerão as modalidades de construção de uma identidade "profissional" básica que constitua não somente uma identidade no trabalho mas também e sobretudo uma projeção de si no futuro, a antecipação de uma trajetória de emprego e a elaboração de uma lógica de aprendizagem, ou melhor, de formação (cf. terceira parte). Seria possível denominá-la occupational identity, para melhor designar, como faziam E. Hughes, A. Strauss e H. Becker, a identificação a toda uma carreira (career), a implicação (commitmenf) em um tipo de atividade e a experiência da estratificação social, das discriminações étnicas e sexuais, das desigualdades de acesso às diferentes carreiras profissionais (cf. capítulo 6). Essa construção de . identidade para si na defrontação com o mercado de trabalho ou com os "sistemas de emprego" coincide ainda mais com o "drama social do trabalho", de que falava Hughes, por comportar atualmente, para uma parcela dos jovens, o risco de uma exclusão duradoura do emprego estável (cf. capítulo 8) e, para todos os jovens, a criação de estratégias pessoais e de apresentações de si ("aprender a se vender")
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que pode ter grande peso no desenvolvimento futuro da vida profissional. Já não se trata apenas de "escolha da profissão" ou de obtenção de diplomas, mas de construção pessoal de uma estratégia identitária que mobilize a imagem de si, a avaliação de suas capacidades e a realização de seus desejos. Essa primeira "identidade profissional para si", mesmo reconhecida por um empregador, tem cada vez mais chances de não ser definitiva. É regularmente confrontada com as transformações tecnológicas, organizacionais e de gestão de emprego das empresas e da administração pública. Está destinada a ajustes e conversões sucessivas. Pode ser tanto mais ameaçada quanto mais tiver sido construída a partir das categorias especializadas e limitadas. Implica projeções no interior de carreiras de futuro, que, para algumas carreiras, ainda não existem e que, para outras, podem ser amplamente modificadas. É, pois, profundamente marcada pela incerteza, ainda que teoricamente acompanhe a passagem da adolescência à vida adulta e, portanto, a uma forma de estabilização social. De que modelos de identificação social os indivíduos que ingressam no mercado de trabalho dispõem atualmente para se definir nos campos do trabalho, do emprego e da formação? As categorias sociais oficiais constituem referências ainda pertinentes? Quais são essas "pessoas coletivas de onde as pessoas individuais extraem o nome comum que as designa" (Boltanski, 1982, p. 7)? Quais são as "identidades de aspiração" que permitem projeções de futuro eficazes para a ação? Se é possível admitir, com razões sociológicas convincentes, que a identidade de executivo ou de engenheiro constitui um modelo pertinente para uma parte dos jovens engajados em estudos superiores de longa duração ou dos adultos já confirmados nessa identidade "para si", o que dizer das outras identidades? A identidade operária ou a identidade técnica constituem modelos unívocos de identificação? Se sim, a que posições elas correspondem nos campos do trabalho, do emprego e da forma-
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cão? Se não, o que as substitui atualmente? A última parte deste livro será, em parte, consagrada a essas questões. Mas apenas em parte, pois o processo biográfico de identificação a esses modelos não basta para a análise: ele interfere necessariamente em um processo relacionai que se deve precisar agora.
5. O processo identitário relacionai Para realizar a construção biográfica de uma identidade profissional e portanto social, os indivíduos devem entrar em relações de trabalho, participar de alguma forma das atividades coletivas em organizações, intervir 'de «ma maneira ou de outra em representações. Essa perspectiva sobre a identidade nos conduz à definição que R. Sainsaulieu elabora: "maneira como os diferentes grupos no trabalho se identificam com os pares, com os chefes e com os outros grupos, a identidade no trabalho é fundada sobre representações coletivas distintas, construindo atores do sistema social empresarial" (1985, p. IX). Essa definição, ao contrário da que decorre da perspectiva biográfica, ancora a identidade na "experiência relacionai e social do poder" (id., p. 342) e, portanto, faz das relações de trabalho o "lugar" em que se experimenta "o enfrentamento dos desejos de reconhecimento em um contexto de acesso desigual, movediço e complexo ao poder". Para Sainsaulieu, a identidade é menos um processo biográfico de construção de si que um processo relacionai de investimento de si: a noção de "ator de si" remete, não a um simples papel passageiro em um cenário provisório, mas a um investimento essencial em relações duradouras que colocam em questão o reconhecimento recíproco dos parceiros. Trata-se de uma transação objetivamente constatável nas análises das situações de trabalho e dos sistemas sociais empresariais. Dos resultados dessa transação dependem as identidades de quem se engaja ou é engajado nelas.
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Quais são as dimensões pertinentes dessa transação analisadas como relação de poder por R. Sainsaulieu? No quadro sintético que ele elabora no final de sua análise (1985, p. 392) figuram simultaneamente modalidades constitutivas da identidade no trabalho e indicadores por meio dos quais apreendê-las; se conseguirmos distingui-las, encontraremos três dimensões identitárias: - o campo de investimento ("acesso ao poder") permite distinguir os tipos que implicam investimento no trabalho (modelos "negociador" e "promocional" e, em menor grau, "afinitário") do tipo caracterizado por um acesso ao poder no não-trabalho (modelo do "distanciamento") e do tipo associado a um não-acesso em nenhum dos campos (modelo' "fusional"); - as normas de comportamento relacionai são designadas da seguinte maneira: individualismo (modelo do "distanciamento"), unanimismo (modelo "fusional"), solidariedade e rivalidade democrática (modelo "negociador"), separatismo (modelo "afinitário") e integração e submissão (modelo "promocional"); - os valores resultantes do trabalho são os seguintes: econômico (a pessoa dos chefes) para os "distanciados", estatutário (a regra mas também a massa) para os "fusionais", a criatividade (o ofício mas também a expertisé) para os "negociadores", as pessoas (do chefe e dos colegas) para os "afinitários" e um misto dos valores precedentes (a regra e a pessoa dos chefes) para os "promovidos". Ao contrário da tipologia várias vezes reafirmada ao longo de sua análise fundada nos quatro "modelos de relação com o trabalho", considerados "elucidativos das lógicas de atores operários, funcionários, contramestres e técnicos" (distanciamento/fusão/negociação/afinidade), o quadro evocado anteriormente distingue cinco "produtos culturais do trabalho organizado", designados por meio de cinco categorias associadas a grupos profissionais: - os "OS do sexo feminino, imigrantes, empregados jovens" são associados à norma do distanciamento e ao valor "econômico" dominante (o salário);
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- os "OS antigos do sexo masculino e empregados antigos" são definidos pela norma do unanimismo e em relação aos valores da massa, da regra e do status conformes ao modelo fusional; - os "operários profissionais, quadros médios e quadros superiores" são associados às normas democráticas e aos valores do ofício (OP) ou da criação (quadros superiores) conformes ao modelo da negociação; - os "operários profissionais novos, os técnicos e o pessoal móvel" são identificados às normas e aos valores do modelo "afinitário"; - os "contramestres e quadros subalternos" são definidos pela norma "integração/submissão" e compartilham uma parte dos valores do "modelo fusional" (a regra) e uma parte dos valores do modelo do distanciamento (a pessoa dos chefes). Parece, pois, que este último conjunto não corresponde, na análise de Sainsaulieu, a uma identidade no trabalho efetivamente típica: seus membros investem no campo do trabalho como os "negociadores", possuem em parte os mesmos valores que os outros assalariados de sua geração e origem social e se distinguem apenas por normas relacionais específicas. Decerto é por essa razão que eles não constituem um modelo identificador conservado pelo autor na tipologia desenvolvida no prefácio à segunda edição (1985, p. I), reduzida "no decorrer dos anos 1980", visto que os outros tipos são considerados "ainda elucidativos das lógicas de atores ao longo desse período" (id., p. 111). A construção, por Sainsaulieu, das quatro identidades típicas no trabalho14 repousa, enfim, na constatação - ou na hipótese - de uma grande coerência entre lógicas de atores no trabalho e normas relacionais no interior da empresa. Em um esquema recapítulativo produzido posteriormente 14. Em uma obra posterior sobre as evoluções dos anos 1990, Sainsaulieu (1997) reintroduz dois novos modelos: o "profissional de serviço público" e o "profissional por ofício", oriundo do modelo negociatório mas diferenciado de sua versão anterior.
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(1987, p. 213), ele situa essas posições identitárias no interior de um espaço ortogonal estruturado pela dupla oposição individual/coletivo e oposição/aliança: - a identidade do "distanciamento" combina a preferência individual com a estratégia de oposição; - a identidade "fusional" combina a preferência coletiva com a estratégia de aliança; - a identidade "negociatória" alia a polarização no grupo com uma estratégia de oposição; - a identidade "afinitária" alia a preferência individual com uma estratégia de aliança. Esses novos desenvolvimentos teóricos já não estabelecem correspondência entre os modelos ídentitários e as categorias profissionais correntes. Os termos "proliferação" e "fragmentação" fazem pensar que as mesmas posições identitárias podem atualmente ser investidas pelos membros das diversas categorias profissionais - no sentido antigo de acordo com a dinâmica das relações que se estabelecem entre os^indivíduos e as diversas instituições em que eles se situam e, em primeiro lugar, a empresa, cuja função identitária se torna, segundo o autor, cada vez mais fundamental. Essa hipótese vai, em parte, ao encontro da do caráter estruturante da transação objetiva para a construção das identidades virtuais ("para o outro") no cerne do processo relacionai. Ela tem o inconveniente de privilegiar o espaço das relações de trabalho na empresa como elemento prioritário, até mesmo único, dessa transação. A questão aqui é o reconhecimento da identidade pelos e nos investimentos relacionais dos indivíduos. Esse processo implica uma transação que pode ser conflituosa entre os indivíduos, portadores de desejos de identificação e de reconhecimento, e as instituições, que oferecem status, categorias e formas diversas de reconhecimento. Coloca em ação espaços de identificação prioritários (locais em que é reconhecido o "status principal", no sentido de Goffman) nos quais os indivíduos se consideram suficientemente reconhecidos e valorizados. O fato de poder "jogar" com diferentes espaços e, dessa for-
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ma, poder "negociar" seus investimentos e "administrar" seus pertencimentos constitui um elemento essencial da transação objetiva. Os parceiros dessa transação são, com efeito, múltiplos: o grupo dos pares no interior da seção, do escritório ou da equipe de trabalho, o superior hierárquico ou outros responsáveis pela empresa, o dirigente sindical ou o representante local, o formador, mediador do universo e da formação, o cônjuge e o universo da família etc. É possível, com Sainsaulieu, formular a hipótese de que o investimento privilegiado em um espaço de reconhecimento identitário depende estreitamente da natureza das relações de poder nesse espaço e da posição que nele ocupam o indivíduo e seu grupo de pertencimento. Mas nem por isso se pode fazer da empresa, nem mesmo do trabalho (no sentido restrito de local de trabalho), o espaço privilegiado de reconhecimento da identidade social: este depende da legitimidade das categorias utilizadas para identificar os indivíduos. O espaço de reconhecimento das identidades é indissociável dos espaços de legitimação dos saberes e competências associados às identidades15. A transação objetiva entre os indivíduos e as instituições é essencialmente a que se organiza em torno do reconhecimento ou do não-reconhecimento das competências, dos saberes e das imagens de si que constituem os núcleos das identidades reivindicadas. 6. A identidade como espaço-tempo geracional Agora se compreende melhor a necessária articulação dos dois processos Ídentitários que acabam de ser definidos. Se o processo biográfico pode ser definido como uma construção no tempo, pelos indivíduos, de identidades sociais e profissionais a partir das categorias oferecidas pelas ínstitui15. Mas também das imagens de si privilegiadas em um determinado momento de sua biografia: elas podem concernir mais ao espaço habitacional que ao espaço profissional (O. Benoít-Guilbot, 1986), ao espaço associativo na falta de espaço profissional (A.-M. Guillemard, 1972).
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ções sucessivas (família, escola, mercado de trabalho, empresa...) e consideradas a um só tempo acessíveis e valorizadoras (transação "subjetiva"), o processo relacionai concerne ao reconhecimento, em um momento dado e no interior de um espaço determinado de legitimação, das identidades associadas aos saberes, competências e imagens de si propostos e expressos pelos indivíduos nos sistemas de ação. A articulação desses dois processos representa a projeção do espaço-tempo identitário de uma geração confrontada com as outras em sua trajetória biográfica e em seu desenvolvimento espacial. As formas sociais dessa articulação constituem ao mesmo tempo a matriz das categorias que estruturam o espaço das posições sociais (alto/baixo mas também no/fora do emprego) e a temporalidade das trajetórias sociais (estabilidade/mobilidade mas também continuidade/ruptura). A definição geral da identidade como espaco-tempo geracíonal (Erikson, 1968) resume a teoria esboçada neste capítulo e desenvolvida em outro trabalho (Dubar, 1994). A identidade social não é "transmitida" por uma geração à seguinte, cada geração a constrói, com base nas categorias e nas posições herdadas da geração precedente, mas também através das estratégias identitárias desenvolvidas nas instituições pelas quais os indivíduos passam e que eles contribuem para transformar realmente. Essa construção identitária adquire uma importância particular no campo do trabalho, do emprego e da formação, que conquistou uma grande legitimidade para o reconhecimento da identidade social e para a atribuição dos status sociais. Também nesse campo abordagens sociológicas importantes contribuíram para precisar os mecanismos da socialização profissional.
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SEGUNDA PARTE
As abordagens da socialização profissional
Capítulo 6
Das "profissões" à socialização profissional
1. História e terminologia O termo "sociologia das profissões" é uma tradução do inglês Sociology ofthe Professions1, que exige um esclarecimento prévio. Em francês*, o termo "profissão" tem (pelo menos) dois sentidos principais que correspondem a dois termos ingleses diferentes; ele designa ao mesmo tempo: - a totalidade dos "empregos" (em inglês: Occupations) reconhecidos na linguagem administrativa, principalmente nas classificações de recenseamentos do Estado; - as "profissões" liberais e científicas (em inglês: Professions), ou seja, as learned professions, a exemplo dos médicos e dos juristas, notadamente. A terminologia francesa se complica mais ainda se introduzimos um terceiro termo, "métier"**. As "profissões" (liberais) e os "ofícios" têm, no Ocidente, uma origem co1. Nesta segunda parte serão utilizadas a palavra "profissão" para traduzir o termo inglês Profession, a palavra "emprego" para traduzir o termo Occupation, e a palavra "ofício" para traduzir o sentido do termo inglês Craft. Os termos "profissão" e "profissional", assim como "ofício", sem indicação particular, serão utilizados com o sentido geral de atividade remunerada. Para uma apresentação geral desse campo de pesquisa, cf. Dubar, C. e Tripier, P. (1998), Sociologie dês professions, Paris, Armand Colin. * E em português também. (N. da T.) ** Que corresponde, ern português, a "ofício". (N. da T.)
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mum: as corporações. Na Idade Média, a partir do século XI e de maneira plenamente instituída no século XV, "época áurea das corporações", distinguia-se: - quem tinha "direito ao corpo", isto é, quem podia fazer parte de uma corporação reconhecida; - quem não tinha direito: jornaleiros, trabalhadores bracais, pessoas sem qualificação... Em sua síntese histórica, J. Lê Goff (1977) mostra como no momento da criação das universidades, no século XIII, o trabalho era considerado uma arte e concernia a todos os que pertenciam a corporações definidas como "disciplinas dos corpos para garantir a competência jurídica, ou seja, a permissão de exercer e de defender seu monopólio e seus privilégios no interesse do bem comum" (Olivier-Martin, 1938). As artes liberais e as artes mecânicas, os artistas e os artesãos, os trabalhadores intelectuais e os manuais faziam parte de um mesmo tipo de organização corporativa que assumia a forma de "ofício juramentado" em "cidades juramentadas" onde se "professava uma arte". O termo "profissão" deriva dessa "profissão de fé" cumprida por ocasião das cerimônias rituais de admissão nas corporações (cf. encarte 2). O juramento comportava, segundo formas muito variáveis, três compromissos: — observar as regras; - guardar os segredos; — honrar e respeitar os jurados, inspetores eleitos e reconhecidos pelo Poder Real. Com o desenvolvimento e a consolidação das Universidades, artes liberais e artes mecânicas começaram a se dissociar, levando à oposição entre: - as "profissões" oriundas das "septem artes liberales" ensinadas nas universidades e "cuja produção cabe mais ao espírito que à mão" (Grande Encydopédie); - os "ofícios" oriundos das artes mecânicas, "em que as mãos trabalham mais que a cabeça" (J.-J. Rousseau) e que se desvalorizam na sociedade do Antigo Regime a ponto de a Enciclopédia dar deles a seguinte definição no século XVIII:
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"ocupações que exigem a força braçal e que se limitam a determinado número de operações mecânicas". Assim, é possível associar a oposição entre "profissões" e "ofícios" a um conjunto de distinções socialmente estruturantes e classificadoras que se reproduziram através dos séculos: cabeça/mãos, trabalhadores intelectuais/trabalhadores manuais, alto/baixo, nobre/vil etc. Não obstante, "oficiais" e "profissionais" participam do mesmo "modelo" de origem: as corporações - isto é, "corpos, confrarias e comunidades" no interior dos quais os membros "eram unidos por laços morais e por um respeito das regulamentações detalhadas de seus status" - constituem como que "estados" reconhecidos pelo Poder Real (Sewell, 1980, trad. fr., p. 53). Desse modo, como escreve Sewell (cf. encarte 2), "dizer, a propósito do ofício de um artesão, que era sua profissão, denotava um voto ou um juramento público solene". Ao lado da oposição ofício/profissão subsistia o reconhecimento de uma profunda semelhança: a "dignidade e a qualidade" de um "estado juramentado" socialmente legítimo e pessoalmente incorporado graças à "eficácia simbólica dos ritos sociais" (Heilbron, 1986). ENCARTE 2 A profissão de fé corporativista segundo Sewell As atividades das confrarias de ofício demonstram que as corporações eram "corpos e comunidades" tanto no sentido moral quanto no sentido legal do termo, que seus membros eram unidos por laços morais e por um respeito das regulamentações detalhadas de seus status. A natureza desses laços se revela no epíteto "ofício juramentado" - ou "estado juramentado", retomando o termo da carta patente de Henrique III, datada de 1585 -, que freqüentemente qualificava esses corpos e comunidades. O ato essencial que unia entre si os membros de uma corporação era um juramento religioso solene, um juramento com forma similar aos juramentos pronunciados pelos padres por ocasião de sua ordenação, pelos monges quando recebem as ordens, pelo rei em sua
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coroação, pelos cavaleiros quando entram na ordem da cavalaria ou juram fidelidade a seu senhor, ou pelos universitários quando recebem seu diploma de doutorado. Assim, dizer, a propósito do ofício de um artesão, que era sua profissão, denotava um voto ou um juramento público solene. Os juramentos mais importantes eram prestados pelos mestres no momento de sua admissão e, no entanto, fato significativo, os aprendizes geralmente também eram obrigados a prestar juramento quando iniciavam sua aprendizagem. Aprender um ofício não era, pois, somente adquirir a habilidade necessária para exercer uma atividade adulta. Também era entrar em uma comunidade moral com motivações profundas, uma comunidade de homens que prestaram juramento solene de fidelidade e que, filhos espirituais de um santo patrono, o veneravam juntos no dia de sua festa. Em suma, a corporação, não contente em ser uma associação de homens que compartilham a mesma personalidade legal, era também uma fraternidade espiritual juramentada. A carta patente redigida por Henrique III em 1585 revela, enfim, um outro aspecto característico da comunidade moral corporativa. Ratificando os status dos mercadores de vinho e dos albergueiros, o rei estabelecia "perpetuamente o referido estado...". Em outras palavras, o estado juramentado, uma vez criado, existia definitivamente como "corpo, confraria e comunidade". Essa permanência da comunidade se compreendia de duas maneiras. A primeira era que, tão logo instituída pela autoridade real, a comunidade, com seus direitos e privilégios, era reconhecida como um corpo permanente no Estado, e seus estatutos já não tinham de ser novamente ratificados pelos monarcas ulteriores. A segunda era que quem entrava nessa comunidade permanecia membro até o fim da vida - pelo menos em princípio. Essa idéia do pertencimento a uma corporação como engajamento de uma vida era encontrada sob diversos aspectos na linguagem corporativa. Ela estava, antes de tudo, subentendida no termo estado, como era empregado pelo rei na famosa carta patente, e, de maneira mais geral, no vocabulário social do Antigo Regime, e que designava a profissão de um artesão. Conforme o jurista Loyseau, o estado era "a dignidade e a qualidade" que eram "as mais estáveis e as mais inseparáveis de um homem". Por conseguinte, quando um artesão entrava no
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ofício, ele adquiria um estado particular, uma condição social e uma qualidade ontológica permanente que compartilhava com quem exercia o mesmo ofício e que o distinguia dos membros das outras profissões. O estado de um artesão determinava definitivamente sua posição na ordem social e definia seus direitos, dignidades e obrigações, de maneira bastante semelhante ao pertencimento de um indivíduo a um dos três estados do reino, o clero, a nobreza e o terceiro estado, em um nível mais elevado. O ofício era considerado, pois, um meio de estabelecer sua posição na vida.
2. A questão das "profissões": um consenso dos pais fundadores da sociologia? Em sua obra de síntese, R. Nisbet (1966) mostra a que ponto todos os fundadores da sociologia atribuíram uma importância fundamental à análise das atividades profissionais em sua reflexão teórica e em seus trabalhos empíricos. Assim, por exemplo, Lê Play, nos seis tomos de sua obra Lês ouvríers européens [Os operários europeus] (primeira edição, 1855), considerada por Nisbet "a primeira obra de sociologia científica do século XIX" (trad. fr., p. 85), analisa quarenta e cinco tipos de situação operária, combinando não somente três formas fundamentais de família (patriarcal, instável e família-tronco) mas também seis níveis de status internos à classe operária (domésticos, jornaleiros, tarefeiros, chefes de ofício, proprietários simples, proprietários operários), fundamentados em três critérios essenciais: 1) o ofício exercido; 2) a posição ocupada no interior da profissão; 3) a natureza do contrato que vincula o operário a seu patrão. Lê Play insiste constantemente, em meados do século XIX, nas bases econômicas e profissionais da família e da vida comunitária, e considera que "somente a atividade que o homem exerce lhe permite dar um sentido a seu entorno" (Nisbet, p. 89). Assim, "as associações profissionais consti-
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tuem, a seus olhos, uma das glórias da Inglaterra e explicam em larga medida a supremacia intelectual de que ela goza nessa época, especialmente na área científica" (id., p. 91). Do mesmo modo, quando Tõnnies precisa a definição da "Gemeinschaft", ele indii J que a relação típica dessa associação é "a amizade, isto é, uma comunidade de ordem espiritual e intelectual fundada no trabalho em comum, em um ofício comum (Beruf) e, portanto, em crenças comuns" (1887, citado por Nisbet, p. 101). Ele evoca, é evidente, as corporações e as associações de operários como modelos de "Gemeinschaft", ao lado das igrejas e das ordens espirituais. É inútil recordar o lugar ocupado pela atividade exercida - como indicador da "posição nas relações sociais de produção" - nas definições que Marx e Engels dão das classes sociais, cuja luta constitui, para eles, o motor da história. Em uma perspectiva completamente diferente, Durkheim, na conclusão do Suicide [Suicídio] (1897), e depois, de maneira ainda mais explícita, no prefácio à segunda edição de De Ia division du travail social [Da divisão do trabalho social] (1902), faz da reestruturação das corporações, ou melhor, das associações profissionais constituídas "fora do Estado, ainda que submetidas à sua ação", a melhor das soluções suscetíveis de estabelecer "uma disciplina moral de um novo gênero, sem a qual todas as descobertas da ciência e todos os progressos do bem-estar sempre farão apenas infelizes" (1893, 8? ed., p. 440). Durkheim precisa que não se trata de uma restauração das antigas corporações, "varridas de nossas sociedades pela evolução histórica", mas da instauração de associações profissionais de um novo tipo que, reconhecidas tanto pelo Estado quanto pelas famílias de seus membros livremente associados, constituiriam novos "corpos intermediários" providos de uma autoridade legal e asseguradores das bases concretas da integração e da regulação sociais. Vemos, por esses quatro exemplos, a que ponto as análises, reflexões e proposições dos "primeiros sociólogos" sobre as atividades e associações profissionais se inscrevem na continuidade da prática comunitária dos ofícios. Não
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para desenvolver, como tantos outros pensadores conservadores de sua época, uma denúncia nostálgica do individualismo negocista ou dos conflitos sociais, mas para assentar a relação dos homens com seu trabalho em uma perspectiva comunitária e tentar definir as condições de uma organização econômica socialmente viável. Por essa razão, essa sensibilidade e esse tipo de abordagem na verdade não se opõem ao ponto de vista de um Spencer, que via na elaboração e no desenvolvimento das "profissões" um traço essencial de uma sociedade civilizada (1896), nem mesmo de um Max Weber, que, como vimos (cf. capítulo 4), considerava que a "profissionalização" (Verberuflichtung) constituía um dos processos essenciais da modernização, ou seja, da passagem de uma "socialização principalmente comunitária", em que o status é herdado, a uma "socialização essencialmente societária", em que o status social "depende das tarefas efetuadas e dos critérios racionais de competência e de especialização" (1920, capítulo II). Essa oposição entre a transmissão hereditária dos status e dos ofícios (ascriptiorí) e a livre escolha individual das formações e das profissões (achievement) é uma das justificações mais clássicas da diferença entre "ofício" e "profissão", e uma das explicações mais freqüentes para a superioridade das "profissões" na sociologia dominante anglo-saxônica (Boudon e Bourricaud, 1982, pp. 437 ss.). Mas essa oposição não impede uma parte dos sociólogos implicados de transferir para as "profissões" de hoje todas ou parte das suas representações dos "ofícios" de ontem. Desse modo, a profissão freqüentemente adquire uma dimensão comunitária estruturante de todo o sistema social. 3. Institucionalização da sociologia das "profissões" nos Estados Unidos Como salientam Jackson (1970, p. 6), Heilbron (1986, p. 72) e Desmarez (1986, pp. 25-7), o desenvolvimento da sociologia das "profissões" nos Estados Unidos não se origi-
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nou diretamente dessa tradição dos pais fundadores, mas de uma estratégia de profissionalização dos sociólogos confrontados, por ocasião da grande crise de 1929, com demandas do governo Hoover para compreender a evolução da sociedade e ajudá-lo a definir sua política. Ao adotar o grande projeto de William Fielding Ogburn, que visava a promover uma sociologia "neutra" e "imparcial" contra a sociologia "moral" e "implicada", representada principalmente por Small e seus colegas de Chicago, uma fração dos sociólogos americanos se coloca a serviço das agências governamentais e "se constitui em uma comunidade científica ao abrigo do mundo exterior" (Desmarez). Nos anos seguintes, Ogburn e seus aliados se tornam membros influentes das instâncias encarregadas de definir a política de pesquisa em ciências sociais e de promover o Social Science Research Council. Novas orientações são estabelecidas, centradas mais nas parcelas privilegiadas da sociedade do que nos excluídos da evolução social. O interesse pelas associações profissionais aumenta, ao passo que as pesquisas sobre as classes populares ou sobre os sindicatos tendem a diminuir (Desmarez, ia., p. 27). O modelo do "profissional" (professional), distinto tanto do empresário como do operário, se desenvolve rapidamente na literatura sociológica dessa época nos Estados Unidos e no Canadá (Marshall, 1939). Esse ponto de vista é particularmente desenvolvido ao longo da obra ainda considerada uma referência por muitos sociólogos anglo-saxões: The Professions [As profissões], de Carr-Saunders e Wilson, publicada em 1933 e que desenvolve um primeiro ensaio mais sintético, só de CarrSaunders (1928). Com base em uma definição, que se tornou clássica, da profissão ("dizemos que uma profissão emerge quando uma quantidade definida de pessoas começa a praticar uma técnica definida fundamentada em uma formação especializada"), e que assinala bem a continuidade aos ofícios manuais qualificados (skilled), a obra analisa sistematicamente a evolução do trabalho e dos diferentes "empregos" em termos de profissionalização, ou seja:
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1) especialização dos serviços, permitindo aumentar a satisfação de uma clientela; 2) criação de associações profissionais, obtendo, para seus membros, "a patronagem exclusiva dos clientes e empregadores que requeriam o serviço de seu ofício" e, precisa o autor, "colocando uma linha de demarcação entre eles e as pessoas não qualificadas", o que permitia aumentar o prestígio do "ofício" (o exemplo dos cirurgiões ingleses se distinguindo dos barbeiros em 1844 é sistematicamente citado), principalmente definindo e controlando as regras da conduta profissional ainda qualificadas de "códigos de ética e de deontologia profissionais"; 3) mas sobretudo implantação de uma formação específica fundamentada em "um corpo sistemático de teoria", permitindo a aquisição de uma cultura profissional. A obra de Carr-Saunders termina em uma verdadeira apologia do "profissional", concretizando "uma alternativa ao empresário voltado unicamente para o ganho financeiro e representando uma solução para determinados problemas da organização comercial". Dessa forma, as profissões encarnam, segundo o autor, "o ideal de serviço" fundado em uma competência especializada (adequate qualificatiori) e constituem "um progresso da expertise a serviço da democracia". Ê impressionante constatar, como faz J. Heilbron (1986), a grande semelhança entre o conteúdo do verbete "Profession" [Profissão] da International Encydopedia of the Social Sciences, redigido por Carr-Saunders na edição de 1933, e o de Parsons na edição de 1968, onde se lê: "O desenvolvimento e a importância estratégica crescente das 'profissões' constituem, sem dúvida, a transformação mais importante ocorrida no interior do sistema de emprego das sociedades modernas... A emergência maciça do fenômeno 'profissional' (professional complex) supera em significação, do ponto de vista das transformações estruturais da sociedade do século XX, as da especificidade dos modos de organização de tipo capitalista ou socialista" (1968, p. 545). E se, como Marc Maurice (1972, p. 215), observarmos que o essencial da de-
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finição e dos critérios de Carr-Saunders já se encontra em "um dos primeiros estudos sistemáticos sobre uma profissão", o de A. Flexner, em 1915, sobre o trabalho social ("Flexner, com base em seus critérios, reconhecia como profissões verdadeiras apenas o exercício da medicina, do direito, das técnicas de engenharia e das artes: literatura, pintura, música"), deveremos reconhecer uma longa tradição na sociologia das "profissões", em todo caso nos Estados Unidos, marcada por uma notável continuidade de objeto e de delineamento da realidade social. É possível, com J. Heilbron, resumir essa continuidade dizendo que, tanto para Carr-Saunders em 1933 como para Parsons em 1968 (e já para Flexner em 1915), a "profissão" representa "a fusão da eficácia econômica com a legitimidade cultural". Para compreender por que, é preciso se aprofundar no que Chapoulie denomina "teoria funcionalista das profissões" (1973, p. 88), que constitui, sob muitos aspectos, uma teorizacão ex post dessa longa tradição. 4. A teoria funcionalista das "profissões" Em seu célebre artigo "Social Structure and Dynamic Process: The Case of Modem Medicai Practice" [Estrutura social e processo dinâmico: o caso da prática médica moderna] (trad. fr. 1955, pp. 193-255), Parsons faz da relação terapêutica médíco-paciente o modelo da relação entre um "profissional" e um cliente fundada em três dimensões específicas do papel profissional como articulador de normas sociais e valores culturais: - um saber prático, ou "ciência aplicada", articula uma dupla competência: a que é fundamentada no saber teórico adquirido no decorrer de uma formação prolongada e sancionada e a que se apoia na prática, na experiência de uma "relação benevolente". Ao valor do "universalismo da ciência", essa dimensão do papel associa a norma da "valorização da realização" (achievement);
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- uma competência especializada, ou "especificidade funcional", que se apresenta como uma dupla capacidade: a que repousa na especialização técnica da competência e que limita a autoridade do "profissional" unicamente à área legítima de sua atividade, e a que funda seu poder social de prescrição e de diagnóstico em uma "relação mais ou menos recíproca"; - um interesse imparcial (detached concerri), característica da dupla atitude do "profissional", que alia a norma de neutralidade afetiva ao valor de orientação para o outro, de interesse empático pelo cliente e por sua expectativa incondicional. A função médica, como todo papel profissional, é exercida, segundo Parsons, em uma interação com o papel de paciente, cliente do "profissional" e ao mesmo tempo dependente do médico, por seu desejo incondicional de melhorar, e autônomo, devido à limitação do campo da competência do médico e de sua independência em relação a toda tutela hierárquica e pública ("segredo médico"). Se o médico é "obrigado" a se ocupar de seu paciente, o paciente deve contar a seu médico "tudo" que se refere à sua área de expertise: essa obrigação recíproca cria a possibilidade de institucionalização da troca e, portanto, da profissionalização da função médica por meio das instituições de formação, de saúde, de controle profissional etc. Portanto, segundo Parsons, a institucionalização dos papéis em "profissões" resulta, primeiramente, de um equilíbrio das motivações entre a "necessidade" que o cliente tem do profissional e a necessidade, para o "profissional", de ter clientes, característica das "profissões liberais". Ela também decorre de uma dinâmica de legitimação, que pode se apoiar nesse ajuste dos papéis para definir um corpo de saberes independente dos indivíduos que ocupam a função e suscetível de ser ensinado, testado e controlado com a participação dos próprios profissionais e com o reconhecimento do Estado. Esse "modelo" de Parsons não é inteiramente compartilhado por toda a sociologia das "profissões", muito pelo
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contrário. Assim, Maurice constata, ao comparar as características das "profissões", utilizadas por oito autores anglosaxões "entre os mais eminentes" (Flexner, Greenwood, Cogan, Carr-Saunders, Barber, Wilensky, Moore, Parsons), que, "dos dez critérios citados com mais freqüência, eles só concordam a respeito de um: a especialização do saber; vêm, em seguida, a formação intelectual e o ideal de serviço (citado por seis deles)" (1972, p. 215). Constatando que "as pesquisas empíricas que invocam a análise de Parsons estudam os corpos profissionais em si e não a partir de sua posição na estrutura social", Chapoulie, ao contrário, estima que há um grande acordo quanto ao "tipo ideal profissional", seja ele abordado pelo ângulo da conduta, seja pelo da organização, seja pelo da categoria, e que "o monopólio na execução das tarefas profissionais é na maioria das vezes descrito como baseado: — em uma competência tecnicamente e cientificamente fundamentada; - na aceitação e na aplicação de um código ético que regule o exercício da atividade profissional" (1973, p. 92). Mais ainda, Chapoulie acrescenta a isso propriedades derivadas que são, "com muita freqüência, adotadas para completar o tipo ideal: - formação profissional longa em estabelecimentos especializados; - controle técnico e ético das atividades exercidas pelo conjunto dos colegas considerados os únicos competentes; - controle reconhecido legalmente e organizado de acordo com as autoridades legais; - comunidade real (grifo dele) dos membros que compartilham 'identidades' e 'interesses específicos'; - pertencimento pelos rendimentos, o que confere prestígio e poder às parcelas superiores das camadas médias" (ia., p. 93). Entre a definição residual resultante da comparação de Maurice e a definição precisa proposta por Chapoulie, o termo "profissão" muda claramente de extensão. No caso da
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primeira (saber formalizado e ideal de serviço), pode-se incluir um amplo conjunto de grupos profissionais procurando ser reconhecidos como tais; no caso da segunda, devese restringir seu uso a algumas categorias intelectuais que fizeram cursos superiores e que estão organizadas para manter e consolidar seu monopólio sobre um público. Assim, no primeiro caso, dá-se ênfase ao reconhecimento de uma competência (saber legitimado); no segundo, a profissão é um grupo social específico, organizado e reconhecido, que ocupa uma posição elevada fundada em uma formação prolongada. A primeira inclui todos os especialistas altamente qualificados e assalariados a quem se reconhece um saber legítimo, a segunda limita sua quantidade e exclui os membros de todas as "semiprofissões", "quase profissões" ou "pseudoprofissões", a respeito das quais numerosos estudos citados por Chapoulie concluem que estão, quando muito, em processo de profissionalização. Essa variação no campo de extensão do termo o torna, segundo os dois autores, pouco operacional para analisar grupos profissionais concretos. Mas, para além da imprecisão inevitável das definições do termo "profissão", a abordagem funcionalista se distingue dos outros pontos de vista (e principalmente do ponto de vista "interacionista simbólico" que abordaremos em seguida) por uma dupla afirmação: de um lado os profissionais formam comunidades unidas em torno dos mesmos valores e da mesma "ética de serviço", de outro lado seu status profissional apóia-se em um saber "científico" e não somente prático. A primeira é particularmente exposta em um artigo de Goode, um dos principais discípulos de Parsons, a propósito das "profissões" jurídicas (1957): a aceitação, a formação e a difusão de um código de deontologia entre os "profissionais" são apresentadas como as componentes vinculadas de um processo de aquisição de um status "profissional" que permite a um só tempo regular a concorrência interna entre os práticos e pagar o preço da autonomia relativa concedida pelas autoridades legais. A segunda é claramente desenvolvida em um
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breve artigo de Wilensky intitulado "The Professionalizatíon of Everyone?" [A profissionalização de todos?] (1964), em que a posse de um saber teórico graças a estudos prolongados é apresentada tanto como a garantia de uma competência verdadeira e especializada em um setor de atividade e fundada em uma motivação sentida quanto como o meio mais eficaz de evitar a afluência excessiva de práticos na "profissão". Assim, comunidade ética e saber científico, constituindo os dois traços específicos de uma "profissão" descrita em uma perspectiva funcional (cf. capítulo 2), são inseparáveis da distinção cultural e do isolamento social. No entanto, existe uma ruptura bastante grande entre a teorização generalizante de Parsons e o conteúdo das análises empíricas evocadas anteriormente: não se encontram, por exemplo, traduções operacionais das dualidades ressaltadas no "modelo" de origem - teoria e prática, técnico e social, imparcialidade e interesse. Essas articulações são essenciais do ponto de vista funcionalista: primeiramente porque implicam, como escreve Parsons, que "em nossa sociedade a ciência constitua a tradição cultural essencial" (1955, p. 250) e que a crença compartilhada na capacidade que a ciência possui para responder a determinadas "necessidades essenciais" constitua uma condição essencial da eficácia "profissional"; em seguida porque supõem um ajuste eficaz entre as motivações do "profissional" e as de seus clientes, permitindo a validação de sua autoridade e a justificação dos "'privilégios' que lhe são conferidos" (id.); finalmente, e talvez sobretudo, porque significam que um conjunto de atividades ligadas a determinadas "necessidades essenciais" ou a determinadas "funções sociais" devem escapar à lógica comercial e financeira do "mundo dos negócios" e ser confiadas a atores "orientados-para-a-coletividade" e a instituições específicas (id., p. 247). É o caso, por exemplo, de tudo o que diz respeito à saúde, à justiça, às liberdades ou à educação e, talvez de maneira mais considerável, aos serviços personalizados. Segundo Parsons, sem esse conjunto de "relações com os valores", o modelo "pro-
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fissional" não funcionaria nem se legitimaria de maneira duradoura. Ora, foi justamente esse sistema cultural que muitas abordagens críticas contribuíram a questionar e, segundo alguns autores, até mesmo a reduzir a pó.
5. A abordagem do interacionismo simbólico Na coletânea de artigos intitulada Men and their Work [Homens e seus trabalhos] (1958), Everett Hughes analisa, várias vezes, a relação entre o "profissional" e seu cliente à maneira da relação entre o sagrado e o profano, o clérigo e o laico, o iniciado e o não-iniciado. Ele insiste no fato de que o termo "profissional" deve ser considerado uma categoria da vida cotidiana e "que não é descritivo, mas sim implica um juízo de valor e de prestígio" (p. 42). Se não encontramos em Hughes uma "teoria da profissão", ao menos encontramos múltiplas indicações e pistas de reflexões, apoiadas ou não em trabalhos empíricos, que esboçam um padrão de abordagem muito sugestivo. Para Hughes, "o ponto de partida de toda análise sociológica do trabalho humano é a divisão do trabalho". Não se pode separar uma atividade do conjunto das atividades em que ela se insere e dos procedimentos de distribuição social das atividades. Conseqüentemente, as questões mais pertinentes a serem formuladas, diante de qualquer trabalho, são, segundo o autor, as seguintes: O que você considera repulsivo, penoso ou vergonhoso em seu trabalho? Você tem a possibilidade de delegar os trabalhos desagradáveis? A quem? Como? Senão por que você continua a fazê-los? Assim, o "profissional" é a um só tempo quem pode delegar os "trabalhos desagradáveis" a terceiros e conservar apenas o que está ligado a uma satisfação simbólica e a uma definição prestigiosa ("curar os doentes"). Para apreender o fenômeno "profissional", Hughes introduz, no único artigo inédito da coletânea, duas noções essenciais que ele denomina "diploma" (licence) e "manda-
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to" (mandaté). A licence é a autorização legal para exercer determinadas atividades que outras pessoas não podem exercer; o mandato é a obrigação legal de assegurar uma função específica. Ora, ele escreve, licence e "mandato" constituem as bases da "divisão moral do trabalho", que ele define como "o processo pelo qual diferentes funções valorizadas por uma coletividade são distribuídas entre seus membros, tanto grupos como categorias e indivíduos". Objeto de conflitos essenciais, essa divisão do trabalho implica uma hierarquização das funções e uma cisão entre funções essenciais (sagradas) e funções secundárias (profanas). Há duas operações que presidem à seleção dos profissionais: separá-los dos outros (licence) e confiar-lhes uma missão (mandaté). Hughes distingue então dois atributos essenciais dos "profissionais" providos de um diploma e de um mandato. O primeiro é denominado "saber condenável" (guilty knowledgé), espécie de conhecimento inconfessável que caracteriza um aspecto essencial da relação entre o "profissional" e seu cliente: "Justiça, policial, médico, cientista, diplomata, secretária particular... devem ter autorização para ouvir - mantendo-se em silêncio - coisas condenáveis ou, ao menos, informações constrangedoras ou perigosas" (p. 82). O exemplo desenvolvido, mais uma vez, é o do padre, que recebe e absolve os pecados veniais e mortais em troca de um rompimento com o mundo profano, rompimento simbolizado "pela batina (!) e pelo celibato". No centro da profissionalidade, explica Hughes, se encontra uma transação (bargain e não frade, da mesma forma que o cliente é um client e não um customer), um pacto entre um prático, devidamente credenciado (diplomado) e provido de um mandato, e parceiros particulares, pacto que consiste em intercambiar "coisas perigosas" que devem permanecer secretas. Em que consiste essa troca entre quem dá e quem recebe o serviço do "profissional"? Trata-se, escreve o autor, "da transferência legítima, pela sociedade, de uma parte de suas funções sagradas a um subconjunto reconhecido", da projeção do mal, do maldito, do doente - em suma, do tabu
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- sobre "profissionais" legitimados para assumir o saber em questão e conservá-lo em segredo. Se os exemplos canônicos do médico e do advogado são tão freqüentemente associados à figura desse "profissional", é porque os caracteres eminentemente secretos, íntimos e tabu da doença e do crime parecem evidentes. Mas, diz Hughes, é possível estender a análise a um conjunto considerável de atividades: basta que elas tenham sido definidas como "sagradas" e que o segredo de sua importância possa ser preservado. Dessa forma, tudo que concerne a coesão comunitária, aos "ritos de passagem" e às relações entre tempo individual e tempo social (nascimentos, mortes, casamentos...) deve ser confiado a "profissionais" que guardarão segredo sobre as "reais" significações de sua "missão" simbólica. Assim, a própria natureza do saber do "profissional" está no cerne da "profissão": trata-se de um segredo social, confiado pela autoridade a um grupo específico, que o autoriza e lhe concede um mandato para trocar signos de transgressão por marcas de reintegração social e de reabilitação moral. A justificação científica, nessa problemática, não passa de uma cortina de fumaça. Quando passa do sentido estrito de "profissional" ao sentido amplo, Hughes introduz um segundo critério da profissão: a existência de instituições destinadas "a proteger o diploma e a conservar o mandato de seus membros". As organizações profissionais devem manter os profissionais afastados do público dos profanos sempre prontos a acusá-los de charlatanismo ou de abuso de poder. A organização também deve, portanto, proteger o segredo e revalidar regularmente a licença e o mandato: estes constituem intermediários entre o Estado e os profissionais e anteparos entre eles e o público. A organização também deve zelar pela aprendizagem e pela reprodução do ritual entre os profissionais. O ritual constitui, com efeito, uma proteção indispensável contra os "riscos do ofício", e sua importância depende da natureza do mandato: "quanto maior o risco, mais desenvolvido deve ser o ritual". A organização deve
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ainda administrar a questão, eminentemente crítica, segundo Hughes, dos erros profissionais. Enquanto "os profanos consideram as técnicas profissionais um meio, para os profissionais são uma arte". Assim, a organização desempenha uma função essencial de desculpabilização em caso de erro, contanto que as regras da arte tenham sido respeitadas. Mas, caso contrário, a função da organização é se desvencilhar das ovelhas tinhosas, dos falsários e dos incompetentes: eles não souberam "administrar" a essência de sua relação com o cliente, que é de ordem simbólica (manipulação do tabu) e deve se apoiar na confiança e no respeito estrito das regras profissionais ("deontologia"). Um último critério ocupa lugar importante nas análises de Hughes relativas às profissões em sentido amplo. E sua definição como carreira e como meio de socialização. Se o grupo profissional é, segundo ele, "aquele que reivindica o mandato de selecionar, formar, iniciar e disciplinar seus próprios membros, e de definir a natureza dos serviços que ele deve realizar e os termos nos quais deve fazê-lo", e se esse mandato concerne a "determinadas funções sagradas implicando o segredo", ele é necessariamente acompanhado do desenvolvimento de uma "filosofia", de uma "visão de mundo", que inclui os pensamentos, os valores e as significações implicados por seu trabalho. Compreende-se, pois, por que esse mandato pode chegar ao monopólio, excluindo todo não-membro do exercício do trabalho e regulando a totalidade das relações englobadas pela atividade. Compreende-se também como esse mandato é geralmente acompanhado de um conjunto de discriminações contra todas as categorias sociais suspeitas de não serem capazes de cumprir tal mandato e de não saberem conservar tal segredo. Assim, toda profissão tende a se constituir em "grupo de pares com seu código informal, suas regras de seleção, seus interesses e sua linguagem comuns" e a secretar estereótipos profissionais, excluindo, de fato, quem não corresponde a eles. Hughes observa, a esse respeito, como, nos Estados Unidos, esses estereótipos em geral se organizam em torno dos caracteres "branco, anglo-saxão, homem e de
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cultura protestante", que constituem "os traços esperados de todos os status elevados". As lutas dos "novos grupos" de mulheres, de negros de minorias étnicas ou religiosas para "ingressar em profissões" não suprimem os estereótipos, mas os deslocam, principalmente hierarquizando subfunções desvalorizadas (dirty works) e subpúblicos confiados a esses novos grupos. Assim, assinala o autor, não é raro que nos Estados Unidos os contramestres negros vejam confiada a eles a responsabilidade de dirigir unicamente grupos de negros pouco qualificados e sejam chamados de "chefete" (straw boss). Do mesmo modo, as mulheres médicas são freqüentemente confinadas aos cuidados com as crianças e chamadas de "docteur poule" (hen doctor)* etc. Assiste-se, então, a uma hierarquização e a uma segregação interna ao grupo profissional, reservando o essencial do mandato e do segredo unicamente aos profissionais dotados dos traços conformes ao estereótipo dominante. Compreende-se, assim, por que numerosos estudos empíricos conduzidos de acordo com os paradigmas do interacionismo simbólico (cf. capítulo 4) questionam a existência das comunidades "profissionais" integradas e reguladas, conformes ao modelo de Parsons. As pesquisas de Freidson (1970), que retomam e completam as de Hall (1949), insistem nas importantes diferenciações internas ao corpo médico e mostram os ajustes dos médicos às necessidades de seus clientes, diferenciados segundo a classe social. Solomon (1961) ressalta, por exemplo, a correlação entre os pertencimentos étnicos e sociais dos médicos e sua posição na comunidade hospitalar estruturada pela hierarquia das funções do hospital. D. C. Lortie (1959) realizou um célebre estudo, citado várias vezes por Hughes, que mostra a grande heterogeneidade do grupo dos juristas, correlacionando, também aí, as origens sociais e universitárias dos juristas com sua posição no interior da divisão do trabalho jurídico e com a natureza de sua clientela. * Apelido depreciativo, literalmente "doutor-galinha". (N. da T.)
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6. A socialização profissional em Hughes Em um célebre artigo publicado em 1955 e retomado no capítulo 9 de Men and their Work, Hughes formula o que denomina "esquema geral de referência para estudar a 'formação' (training) para profissões muito diversas". Ele o intitula "a fabricação de um médico" e a apresenta como uma espécie de "modelo" da socialização profissional concebida tanto como uma iniciação, no sentido etnológico, à cultura profissional (nesse caso médica) quanto como uma conversão, no sentido religioso, do indivíduo a uma nova concepção de si e do mundo, em suma, a uma nova identidade2. Três mecanismos específicos da socialização profissional são particularmente explicitados por Hughes. O primeiro, denominado "passagem através do espelho", consiste em "olhar o espetáculo do mundo por trás dele, de maneira que as coisas sejam vistas ao contrário, como escritas em um espelho". É uma espécie de imersão na "cultura profissional", que aparece brutalmente como o "contrário" da cultura profana e levanta a angustiante questão sobre como "as duas culturas interagem no interior do indivíduo". A crise e o dilema instaurados pela "identificação progressiva com a função" só podem se dissipar por uma renúncia voluntária aos estereótipos profissionais concernentes à natureza das tarefas (toste, skills), a concepção da função, à antecipação das carreiras e à imagem de si, que constituem, segundo o autor, os quatro elementos básic.os da identidade profissional. Essa descoberta da "realidade desencantada" do mundo profissional poderá "ser bruscamente interrompida se intervier demasiado cedo ou demasiado tarde, ser traumatizante se intervier inoportunamen2. Encontra-se assim, nas análises de Hughes, uma notável síntese entre as contribuições mais sólidas da antropologia cultural (cf. capítulo 2) e as do interacionismo simbólico (cf. capítulo 4), o que permite uma abordagem sociológica da identidade profissional (cf. capítulo 5). Para uma abordagem global dos grupos profissionais, cf. Dubar e Tripier (1988, cap. 5).
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te", excitante ou mesmo embriagante (inspiring) se ocorrer no momento oportuno. O segundo mecanismo importante refere-se ao que se poderia denominar "instalação na dualidade" entre o "modelo ideal" que caracteriza a "dignidade da profissão", sua imagem de marca, sua valorização simbólica, e o "modelo prático" que concerne às "tarefas cotidianas e aos trabalhos duros" e que tem pouca relação com o primeiro. Hughes observa que essa distância entre os "modelos sagrados" e as "diversas vias da prática cotidiana" é um debate constante no interior dos grupos profissionais e que "as lutas para manter o controle sobre as tarefas nobres" constituem uma chave da compreensão do meio profissional caracterizado por "uma tendência constante a que as atividades auxiliares e rotineiras tornem-se fins em si". Assim, no processo de socialização intervém "uma série de escolhas de papéis", ou seja, "de interações com os outros significativos, interações essas que tentam reduzir tal dualidade e representam passagens constantes de um modelo a outro". A constituição de um "grupo de referência" no interior da profissão, representando a um só tempo uma antecipação das posições desejáveis e uma instância de legitimação de suas capacidades, constitui um mecanismo essencial da gestão dessa dualidade. Esse processo de projeção pessoal em uma carreira futura por identificação com os membros de um "grupo de referência" vai ao encontro da teoria mertoniana da "socialização antecipatória" (cf. capítulo 2). A identificação social dos indivíduos em formação decorre de uma lógica da "frustração relativa": comparando-se aos membros de seu entorno dotados de um status social mais elevado, eles forjam para si uma identidade, não a partir de seu "grupo de pertencimento", mas por identificação com um "grupo de referência" ao qual desejariam pertencer no futuro e em relação ao qual se sentem frustrados. Essa identificação antecipada, o que implica a aquisição antecipada, por parte dos indivíduos implicados, de normas, valores e modelos de
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comportamento dos membros de seu "grupo de referência", é consideravelmente favorecida pela existência de carreiras promocionais instituídas permitindo planificar o acesso a esse grupo. Ela permite explicar o grau de engajamento (commitmenf) dos indivíduos em suas tarefas (Becker, 1960). Aplica-se particularmente bem à socialização profissional tal como analisada por Hughes por meio do caso dos médicos. O interesse da abordagem assim resumida reside menos na originalidade e no rigor do "modelo" apresentado do que em sua fecundidade operacional. Não somente ela deu ensejo a vários estudos empíricos que a colocam em prática invocando-a explicitamente, mas também abre pistas metodológicas e teóricas importantes que, ao que parece, foram apenas parcialmente exploradas (Becker e Carper, 1956). Entre as pesquisas empíricas que aplicam esse "modelo", uma das mais célebres é a conduzida por Fred Davis, durante três anos, acompanhando cinco promoções sucessivas de enfermeiras e que se tornou objeto de uma obra (1966) e de uma quinzena de artigos, dos quais um (Davis, 1968) resume as seis etapas da "conversão doutrinai" das enfermeiras da seguinte maneira: - inocência inicial: é o reinado irrestrito dos estereótipos profissionais da enfermeira devotada, altruísta, disponível...; - consciência da incongruência: é o transtorno, a crise consecutiva a conscientização de que a profissão não é exatamente "o que se esperava" e de que as categorias estereotipadas (devoção, altruísmo...) pelas quais as estudantes de enfermagem a representavam são "incongruentes", estranhas ao "mundo" então vislumbrado. O autor fala de "choque da realidade" (reality shock)...; - psyching out ("estalo"): é a intuição, em geral apresentada como brutal, do "que deve ser feito" para se conformar às expectativas das instrutoras, é a arte de "sentir" (o faro), de "adivinhar o que, exatamente, se espera delas"; algumas não conseguem...;
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- simulação do papel: é a instalação no inautêntico, a aceitação do abismo que separa o papel a desempenhar dos estereótipos anteriores, é a colocação em prática do estalo, apesar de suas implicações. Davis fala de alienação de Si...; - interiorização antecipada: é a etapa da constituição de uma dupla personalidade por antecipação da carreira; é a aceitação de uma dualidade entre o eu profano e o eu profissional em troca da oportunidade de uma carreira mais ou menos assegurada...; - interiorização estável: é a aquisição dos reflexos profissionais, a incorporação do papel, permitindo o recalque estabilizado do eu "profano", a instalação em uma nova visão profissional do mundo, reforçada pelos contatos regulares com as "profissionais"... Uma outra pesquisa inspirada pelo "modelo" de Hughes foi conduzida por Dan Lortie com estudantes de direito de Chicago, dos quais se acompanhou uma amostra durante vários anos após sua saída da universidade (in Volliner e Mills, 1966, pp. 98-101). Lortie também constata, nos discursos dos jovens juristas, a admissão da "substituição gradual de imagens estereotipadas" (exóticas e dramáticas) por percepções sutis, complexas e ambíguas, mas radicalmente diferentes (rotineiras e "terra-a-terra"). Constata que o desenvolvimento de uma "autoconcepcão profissional" intervém após o diploma, durante o período em que o indivíduo interioriza uma nova imagem profissional que se torna um aspecto muito significativo de sua personalidade. As respostas dos jovens juristas apresentam uma grande homogeneidade e um grande consenso no que concerne: 1) à opinião de que os estudos os prepararam mal (dois terços dos casos); 2) à opinião de que, para exercer o ofício, os exercícios práticos e as capacidades sociais são muito mais importantes do que os "conhecimentos"; 3) à constatação de que as transformações importantes de sua personalidade intervieram por ocasião de seu mergulho no turbilhão (hurly-burly) do mundo do trabalho após a obtenção do diploma.
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O último mecanismo importante constitui, segundo Hughes, a solução habitual da fase de conversão final - por abandono e recalque dos estereótipos - e de dualidade entre "modelo ideal" e "normas práticas". Diz respeito ao ajuste da concepção de Si, ou seja, de sua identidade em via de constituição, implicando "a tomada de consciência de suas capacidades físicas, mentais e pessoais, de seus gostos e desgostos" com as chances de carreira que o profissional pode razoavelmente esperar no futuro. Trata-se primeiramente de identificar as carreiras possíveis com suas fases significativas de desenvolvimento e suas seqüências específicas de aprendizagem, sabendo que, se algumas carreiras são institucionalizadas, outras são "informais ou não admitidas" mas existem de fato como regularidades de mudanças constatáveis, geralmente ligadas a modificações na composição das atividades. Trata-se, em seguida, de identificar as decisões cruciais que colocam os critérios de sucesso profissional em relação com as oportunidades de mobilidade e que implicam escolhas judiciosas de grupos de referências e de "outros significativos" que vêm determinar a órbita na qual o profissional se inscreverá no futuro. Trata-se, enfim, de colocar em prática estratégias de carreira definidas em termos de exposição a riscos, de projeções de Si no futuro e de previsões mais ou menos realistas sobre a evolução do sistema. Hughes é, então, levado a definir a carreira corno "soma total dessas disposições e orientações, que fornece a chave da distribuição dos profissionais entre os diversos caminhos da carreira e os diversos tipos de prática" (1958, p. 159). 7. Alcance e limites do paradigma interacionista E. Hughes e os sociólogos às vezes agrupados sob o rótulo de "escola de Chicago" tiveram o grande mérito de vincular estreitamente o universo do trabalho aos mecanismos da socialização. Definindo-o como um "drama social" (social drama ofwork), Hughes enfatizava o fato essencial de
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que o "mundo vivido do trabalho" não podia ser reduzido a uma simples transação econômica (a utilização da força de trabalho em troca de um salário): ele mobiliza a personalidade individual e a identidade social do sujeito, cristaliza suas esperanças e sua imagem de Si, engaja sua definição e seu reconhecimento sociais. Mas, sobretudo, a abordagem interacionista simbólica se mostrou fecunda visto que obrigava a sair da análise sincrônica da "situação de trabalho" ou mesmo do "sistema social" (cf. as análises de Elton Mayo e da escola das relações humanas) para as recolocar em uma perspectiva diacrônica com ênfase na carreira, no duplo sentido de planos de carreira e de trajetórias socioprofissionais (Becker e Strauss, 1970). Como escreve P. Tripier (1987), a escola de Chicago permitiu o desenvolvimento de novas abordagens da qualificação ao redefini-la como "uma articulação entre trajetória provável e sistema ocupacional, isto é, entre um sistema de expectativas legítimas (o que posso pretender, considerando o que sei e o que fiz anteriormente?) e um sistema de oportunidades (o que posso esperar, dada a evolução provável das posições profissionais?)". Ao suscitar a perspectivação de análises transversais e estruturais dos sistemas de empregos, ela permitiu o destaque do que Tripier denomina "sistemas ocupacionais"3 e que define como "seleção natural das oportunidades nas biografias". Essa perspectiva coloca a socialização profissional no cerne da análise das realidades do trabalho. Com a condição de dar, do termo "profissional", uma definição muito mais ampla do que a admitida até então pela sociologia das "profissões" (Elliott, 1972). Desse ponto de vista, o balanço das pesquisas da escola de Chicago permanece marcado por ambigüidades importantes. O modelo das "profissões 3. Preferimos traduzir occupaüonal system por "sistema de emprego" e occupatíonal sociahzation por "socialização profissional" para não criar neologismos inúteis. Na perspectiva de Hughes, exercer uma "profissão" ou ocupar um "emprego" exigem uma "socialização profissional".
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liberais" (sentido estrito) continua muito fecundo, mesmo que, como precisa P. Desmarez, sua definição de profissão seja diferente da dos funcionalistas: para eles, "uma profissão é um ofício que conseguiu que seus práticos dispusessem de um monopólio sobre as atividades que ele implica e de um lugar na divisão do trabalho que os impede de tratar com a autoridade do profano no exercício de seu trabalho" (Desmarez, 1986, p. 169). Como observa E Tripier (1984), essa definição ainda é muito marcada pelo contexto dos Estados Unidos e pela referência implícita ao Taft Hartley Act de 1947, que instaura uma distinção jurídica entre as atividades (Professions) cujos membros podem se organizar em associações profissionais e as atividades (Occupations) cujos membros podem se organizar apenas em organizações sindicais. Mesmo que uma minoria de assalariados consiga que sua atividade seja reconhecida como uma "profissão", a maior parte deles não consegue ou consegue apenas parcialmente (fala-se, então, de "semiprofissões"). Esse reconhecimento como "profissão" parece, assim, constituir uma implicação social que depende sobretudo da capacidade dos membros de uma atividade qualquer para se coligar, para desenvolver uma argumentação convincente (Paradeise, 1988) e para se fazer reconhecer e legitimar mediante ações coletivas múltiplas. Isso significa que as atividades assalariadas "comuns" - ou seja, todas as que não estão incluídas nesse processo de profissionalização - não comportam nenhuma socialização profissional? A posição de E. Hughes a esse respeito era claramente negativa (Chapoulie, in Hughes, 1996), e a gama dos "empregos" que foram objeto de análises do tipo "interacionista" tenderia a validá-la (Desmarez cita "os açougueiros, os esportistas, os atores, os carcereiros, os engenheiros de som, os stripteasers dos dois sexos, os policiais, os jogadores de carta profissionais e os contadores"). No entanto, é preciso assinalar que a maioria das noções forjadas a partir do estudo das "profissões" (médicos, juristas...) ou das "semiprofissões" (enfermeiras...), tais como o enga-
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jamento (commitmenf), o estalo (psyching ouf), o choque da realidade..., são freqüentemente vagas e dificilmente transponíveis a outros "empregos", mesmo independentes (Olesen e Whittaker, 1970). Essa constatação é ainda mais verdadeira para o universo da grande empresa e principalmente para seus assalariados menos qualificados (operários, funcionários administrativos...), que permanecem amplamente ausentes das análises interacionistas. Tudo ocorre como se a socialização profissional não concernisse exatamente àqueles cujas condições de trabalho fossem definidas e controladas de acordo com as normas (taylorístas ou não) da grande empresa capitalista. Esta não é analisada como um meio de socialização profissional no sentido definido anteriormente. Sua análise é remetida à sociologia do trabalho, das organizações e das relações profissionais (Industrial Relation), que não utiliza os mesmos paradigmas que a sociologia das "profissões".
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Capítulo 7
Profissões, organizações e relações profissionais
Assim que a sociologia das profissões sai do estreito âmbito da análise das "profissões liberais ou científicas", ela depara com dificuldades consideráveis que explicam plenamente sua fragmentação relativa em múltiplas correntes .teóricas e sua considerável interação com outros ramos da sociologia: sociologia do trabalho, das organizações, das relações profissionais. 1. A "profissão" como organização: processos sociais estniturantes No cerne da sociologia das "profissões" nos Estados Unidos, abordagens diferentes centradas na organização tendem, a partir dos anos 1960, a fazer as teorias funcionalista e interacionista evoluírem. No interior da "corrente" funcionalista, as análises de Merton tiveram um papel importante nessa evolução. Em continuidade às análises interacionistas, os trabalhos de Freidson (1970) atestam particularmente a evolução das problemáticas. Tal evolução também foi induzida pelo desenvolvimento do salariado entre os "profissionais": tanto em grandes empresas capitalistas - é o caso dos juristas americanos, por exemplo -, como também, e talvez sobretudo, em instituições (hospitais, escolas e universidades, centros sociais...) centradas nos serviços aos particulares e não orientadas pelo lucro.
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A contribuição essencial de Merton foi, sem dúvida, ter distinguido as funções manifestas das funções latentes das organizações profissionais e de suas políticas de formação. A propósito de uma análise da formação médica (1957), ele evidenciou os dois processos essenciais pelos quais uma "profissão" se transforma em "organização fechada" utilizando a missão de serviço que lhe é confiada para provocar um "efeito perverso" de segregação social. O primeiro mecanismo é denominado por Merton burocratização das carreiras, e seu instrumento primordial é o diploma, que abre, de uma só vez, o acesso ao conjunto de uma carreira profissional no final de um currículo preestabelecido; Ao generalizar tal modelo de burocratização elaborado a propósito das formações médicas, Merton (1957 a), coincidindo aliás com Hughes (1958, capítulo 10), distingue cinco etapas nesse processo: - para ser reconhecido ou confirmado como "profissão", um grupo de práticos tem interesse, em sua concorrência com outros "empregos semelhantes", em se conectar com uma instituição; - as instituições mais eficazes para essa função são instituições educacionais, o que permite instaurar uma formação profissional específica (formai training); - por sua vez, essa formação, no início aberta a "profissionais", institucionaliza-se como currículo, para se abrir a jovens, e se torna escola profissional (vocational school); - essa escola se integra à Universidade, que permite a multiplicação dos pré-requisitos e dos níveis de formação até a sanção final, o diploma; - a formação assim padronizada e hierarquizada se torna um parâmetro de desenvolvimento das carreiras, sendo que cada nível de formação é associado a um degrau de carreira. Esse processo burocrático permite, primeiramente, estabelecer uma cisão entre os "verdadeiros profissionais" integrados à instituição e que transpuseram todo ou parte do curso e os "falsos profissionais" periféricos que não transi-
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taram pela "via regia". Em seguida, permite distinguir, no interior da profissão, quem entrou pela "porta principal" da via universitária fundada em uma formação geral valorizada e quem entrou pela "porta dos fundos" da via profissional especializada e desvalorizada. Permite, enfim, legitimar o poder interno à profissão por cursos e diplomas de elite reservados a categorias específicas encarregadas da manutenção da "ordem simbólica da profissão" (Freidson). Assim, de "profissão" aberta a todos os que sentem a vocação para a realização de um ideal do serviço (função manifesta), o grupo profissional passa a ser, nesse modelo, uma "organização fechada", preocupada antes de tudo com sua própria reprodução (função latente). Esse mecanismo básico, centrado na formação e na carreira, é complementado por outro, que conduz "de forma natural" o grupo profissional a multiplicar as regulamentações, as normas estatutárias e os privilégios diferenciados para seus próprios membros. Desse modo, a profissão se torna um "corpo" às vezes mais preocupado com seu funcionamento interno e com o respeito a seus procedimentos burocráticos do que com a qualidade dos serviços prestados aos clientes. Uma abordagem clássica da "profissão médica" (Freidson, 1970) acaba, então, por defini-la como uma organização formal e informal "que escapa de tal modo ao controle dos clientes, dos profanos que são seus empregadores e do Estado, que ela praticamente não é incitada a recorrer a outras formas de controle" (trad. fr. 1984, p. 206). Segundo Freidson, três mecanismos concorrem para fazer da profissão médica uma organização: - a divisão das tarefas que se estabelece entre os diversos ofícios implicados, com base em "relações relativamente estáveis", o que permite, por exemplo, "elaborar uma espécie de organograma da divisão das tarefas em medicina, comparável às que podem ser estabelecidas para empresas integradas"; nessa divisão do trabalho, "todas as tarefas organizadas em torno do trabalho de cura são controladas pelos médicos" (ia., p. 48);
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- a existência de porta-vozes oficiais da "profissão", dotada assim de uma identidade jurídica e suscetível "de ampliar suas vantagens jurídicas e estratégicas por meio de negociações com a autoridade soberana". Essa organização "oficial" tem uma função essencial: persuadir o Estado e a opinião pública de que a profissão merece ser mantida e deve se auto-regular; - as redes de relações informais, que estruturam os diversos meios do trabalho e hierarquizam a "profissão" em função dos diversos segmentos da clientela; essa estrutura informal não é reconhecida como uma organização, segundo Freidson, mas tem um papel essencial no reconhecimento das competências profissionais muito mais diversificadas e hierarquizadas do que faz supor a "lenda oficial segundo a qual todo doutor em medicina está apto a trabalhar com a mesma competência técnica e moral" (ia., p. 208). Dessa forma, tal análise leva a vincular a estruturação e a evolução de uma "profissão" à construção e à racionalização de organizações, algumas muito próximas (o hospital, por exemplo) do modelo da grande empresa industrial ou da administração pública. Afinal, o objetivo da organização "profissional", assim como o da organização industrial, não é assegurar o monopólio de uma clientela, mediante o controle da competência de seus membros? Tanto uma como a outra não repousam em uma divisão do trabalho que permite a um só tempo aumentar sua eficácia e hierarquizar, controlando-as, as competências necessárias? O fosso entre o universo das "profissões" e o do trabalho industrial não é, por causa disso, amplamente superestimado? 2. A organização profissional do trabalho na produção capitalista: a dupla fonte do poder Segundo os historiadores do trabalho, tanto na Europa como na América do Norte o nascimento e a expansão das manufaturas foram precedidos e acompanhados por um
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sistema de "trabalho domiciliar" característico do capitalismo mercantil. Nesse sistema, os mercadores enviavam materiais e dinheiro aos artesãos com ateliê doméstico, que trabalhavam em casa, em geral com ajudantes, membros de sua própria família. Os mercadores firmavam contrato com esses trabalhadores domiciliares para a fabricação de bens ou peças que deviam ser entregues em uma data combinada, em troca de uma porcentagem fixa por peça. Os trabalhadores utilizavam os adiantamentos para comprar as matérias-primas e as ferramentas de que necessitavam, e tinham liberdade para trabalhar em seu ritmo e com suas próprias técnicas. Eles eram antes subempreiteiros do que assalariados no sentido moderno do termo: artesãos ou operários por ofício, assumiam a inteira responsabilidade por seu trabalho e pela organização de sua produção (Lallemant, 1990). Durante todo o século XIX e o começo do século XX, os capitalistas mercantis procuraram aumentar seu controle, transferindo o local de produção da casa para a fábrica. Eles julgavam que os trabalhadores autônomos manifestavam aflitivas tendências a beber, dançar e dormir, em vez de entregar a mercadoria no ritmo cada vez mais intenso exigido pela concorrência. É assim que as manufaturas podem ser analisadas como invenções sociais destinadas a quebrar a autonomia dos produtores e a aumentar o poder de supervisão direta dos capitalistas (Marglin, 1970; Derber e Schwartz, 1988). Mas, na maioria das indústrias e durante longos períodos, os proprietários das manufaturas, como os mercadores antes deles, permaneceram dependentes dos trabalhadores por ofício, devido ao conhecimento destes sobre os modos de fabricação dos produtos. O próprio Frederick Taylor, fundador da "organização científica do trabalho", reconhece: "Os trabalhadores em cada um desses ofícios possuíam um saber que lhes fora transmitido confidencialmente. O contramestre e os funcionários administrativos sabiam, melhor do que ninguém, que seu próprio saber e sua competência
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estavam longe de poder igualar o saber e a habilidade (SM/) de todos os trabalhadores sob suas ordens" (citado por Montgomery, 1979, p. 9). Os operários por ofício exploraram individual e coletivamente essa situação para manter, com seus novos empregadores, acordos característicos da "organização profissional do trabalho", que reproduziam algumas características do "trabalho domiciliar" (Montgomery, 1979, p. 9). Segundo a análise clássica de Alain Touraine para a França, o "sistema profissional do trabalho" assegura a manutenção do controle dos "profissionais de fabricação" sobre o processo de trabalho, enquanto o empregador controla o processo de produção. Os operários por ofício utilizam o capital e o equipamento do proprietário, empregam alguns de seus ajudantes, em geral não especializados (às vezes os filhos ou os pais), e supervisionam a maneira como o trabalho é realizado, reservando para si as tarefas mais delicadas. Sua "qualificação" é complexa e repousa no domínio de saberes profissionais adquiridos por experiência e aprendizagem (Touraine, 1955). De acordo com a síntese de David Montgomery para os Estados Unidos, os acordos entre os capitalistas e os trabalhadores por ofício eram decerto variáveis, mas com freqüência compreendiam um compartilhamento dos riscos e dos lucros da empresa. Constituíam, portanto, trabalhadores de um tipo particular, "em parte empregados, em parte administradores e em parte empreiteiros independentes" (Montgomery, 1979, capítulo T). Os acordos internos entre empregadores e "profissionais por ofício" levaram, em certos ramos, a formas de associação coletiva duradoura. Assim, no setor do aço nos Estados Unidos, desenvolveu-se, no fim do século XIX, uma cooperação entre os grandes magnatas do aço e os sindicatos correspondentes. O sindicato de cada indústria firmava contrato com o proprietário para produzir uma quantidade definida de, toneladas de aço, a taxas variáveis segundo os preços do mercado. O proprietário fornecia o imóvel, o material e as ferramentas, e assumia a incumbência de comer-
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cializar o produto final. Os "profissionais por ofício" organizados no sindicato dirigiam todo o resto: recrutamento dos "não-especialístas", divisão das tarefas com eles, organização técnica, horários de trabalho, pagamento dos salários. Ao lado do poder patronal fundado no capital, o poder do sindicato era fundado no monopólio do ofício e na organização do "closed shop"* (Stone, 1970). Em outros ramos ou empresas, não era o sindicato de trabalhadores por ofício mas indivíduos, "profissionais por ofício" particularmente empreendedores, que se tornavam "contratantes internos", negociando com a companhia a produção a realizar e sua parte do bolo, empregando assistentes e supervisionando seu trabalho. Eles constituíam uma aristocracia salarial, freqüentemente ganhando três vezes mais que o operário médio e partilhando com os outros trabalhadores por ofício as tarefas de supervisão e de controle do trabalho dos não-especialistas (Derber e Schwartz, 1988). Muitos outros exemplos de organização profissional do trabalho são analisados na literatura histórica e sociológica. Além das grandes variações nacionais e dos tempos de duração muito diversos, esses exemplos mostram a força histórica de um modelo de organização em três grupos estratíficados que repousam em uma dupla fonte de poder e de legitimidade: - os dirigentes empresariais obtêm seu poder de sua relação com o capital (econômico e financeiro), e sua legitimidade de seu êxito econômico no mercado de bens e serviços; - os "profissionais por ofício" obtêm seu poder de sua relação com o saber (técnico e especializado), e sua legitimidade de sua posição individual e coletiva na organização e no mercado de trabalho; - os assalariados não profissionais (ou não qualificados) são duplamente excluídos, da esfera do capital e da área legítima da competência. * Fábrica ou qualquer outro estabelecimento que só contrata trabalhadores sindicalizados. (N. da T.)
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Esse modelo de organização é fundamentalmente instável: o interesse dos diretores é, na verdade, reduzir a autonomia e o poder dos "profissionais por ofício", assegurando para si, por vias diversas, o controle direto da organização do trabalho - o progresso técnico e os novos métodos de administração "científica" têm, em parte, esse objetivo. O interesse dos profissionais é se organizar para defender sua posição e para proteger a "insubstituibilidade" de sua competência (Paradeise, 1987): o sindicato de ofício e o controle das formações têm, em parte, esses objetivos. Quanto aos não-profissionais, seu interesse é poder ter acesso às formações e às carreiras que lhes permitam conquistar os saberes profissionais legítimos, sob o risco de os banalizar e de levar à proletarização geral de todos os assalariados. Compreende-se daí por que a interpretação das evoluções sempre é complexa e polêmica: o fato de a interação constante das duas relações de trabalho (a relação salarial e a relação profissional) corresponder às duas fontes de poder (capital e saber) impossibilita toda visão simplista dos movimentos que tangem à organização do trabalho e à estruturação das atividades na economia capitalista. 3. Profissionalização e desprofissionalização: debate permanente e duplo movimento recorrente É possível construir uma definição comum às duas realidades profissionais que acabamos de descrever em seu movimento interno - a "profissão liberal ou científica" em seu processo de organização, de assalariamento e de diferenciação interna sob controle da cúpula, e o "ofício" (assalariado ou não) integrado na organização capitalista, ameaçado pelas estratégias dirigentes e tentando salvaguardar sua autonomia? Em um artigo de síntese, em que confronta as teses concernentes a esses dois movimentos, MarieJosé Legault propõe a seguinte definição: "a profissão é uma organização suscetível de padronizar a formação, de definir
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o saber legítimo e de controlar a oferta de trabalho por meio do monopólio da referida definição" (1988, p. 164). Aplicase efetivamente aos dois movimentos precedentes e permite, segundo a autora, encontrar um núcleo comum a algumas problemáticas recentes freqüentemente qualificadas de "neomarxistas" e a outras às vezes consideradas "neoweberianas" (Saks, 1983). As primeiras (denominadas "neomarxistas") repousam em uma esquematização comum não necessariamente contraditória às segundas (denominadas "neowéberianas"). A passagem do capitalismo concorrencial ao capitalismo monopolista suscita a concentração do capital e a burocratização das empresas. A proporção do emprego qualificado (profissional no sentido acima) em relação ao emprego total aumenta com a evolução tecnológica e com a especialização das funções de gestão. Tal aumento se manifesta no emprego assalariado das grandes empresas ou órgãos da administração pública burocráticos, e não na forma empresarial do emprego independente. Esta é típica do modo de produção mercantil e se opõe, na teoria marxista, à lógica da organização capitalista. O aumento do emprego profissional assalariado significa, portanto, "a conservação, pelos profissionais assalariados, do hermetísmo do saber1 necessário ao empresário capitalista" (Legault). Diante dessa constatação, M.-J. Legault distingue três correntes principais na literatura sociológica e econômica recente: - uma primeira corrente defende a tese de um determinismo capitalista que conduz a um processo irreversível de proletarização e de desprofissionalização (ou desqualificação), uma vez que há racionalização e assalariamento implicando economia de mão-de-obra e divisão das tarefas (Braverman, trad. ir. 1976); 1. Muitas análises insistem no esoterismo do saber e no seu modo de aprendizagem por impregnação como critério essencial do "ofício" comum às profissões independentes (artesãos, agricultores...) e aos "profissionais por ofício" assalariados (cf. Darré, 1987; Delbos e Joríon, 1984; Pharo, 1985; Tripíer, 1984,-Zarca, 1988).
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- uma segunda corrente defende a tese de uma polarização das qualificações (desqualificação da maioria, superqualificação de uma minoria). Os superqualificados, ao melhorar sua posição, seriam os que participam das tarefas de gestão ou de concepção (Johnson, 1972; Freyssenet, 1974), essenciais para a valorização do capital; - uma terceira corrente desenvolve a hipótese de uma não-proletarização dos profissionais assalariados devido à aplicação de um novo modo de gestão da mão-de-obra pelas empresas, específico a essa categoria de assalariados e que valoriza a profissionalização e os valores da expertise (Larson, 1977; Derber et alii, 1989). Esta última corrente supõe, pois, que perdura o modelo da organização profissional - isto é, alguns aspectos da forma profissional de organização do trabalho e da organização profissional dos assalariados "de tipo corporativo" -, ainda que sob formas novas, ou seja, constantemente renovadas (Segrestin, 1985). Ela implica, portanto, a referência a um duplo espaço que é importante articular: o espaço da organização do trabalho "interno" a empresa, devendo permitir o destaque de zonas de autonomia e de iniciativas dos profissionais assalariados, e o espaço da organização profissional "externa"', transversal às empresas e permitindo aos profissionais assalariados a manutenção de formas de associação, de construção e de defesa de suas competências e capacidades de expertise2. Ao contrário das duas outras correntes, essa não postula nenhuma correspondência necessária, a priori, entre a posição dos indivíduos no interior do processo de trabalho e seu pertencimento de classe (ou sua posição nas relações sociais de produção). Colocar em correspondência as posições ocupadas nos espaços é a única 2. Essa dualidade de espaço é atribuída por alguns autores à manutenção das duas fontes, consideradas irredutíveis, de poder na organização econômica: o poder do capital e o poder do saber ("logocracías") que não pode ser totalmente apropriado pelo capital (Derber, Schwartz e Magrass, 1989, pp. 5 ss.).
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coisa que pode permitir empiricamente definir as identidades profissionais e sociais dos assalariados. Essa posição do problema vai ao encontro da dos pesquisadores ("neoweberianos") que se referem à noção weberiana de "fechamento social" para designar "o processo pelo qual uma determinada categoria social tende a regular em seu favor as condições do mercado diante da competição atual ou potencial dos postulantes (outsiders), limitando o acesso às oportunidades específicas a um grupo restrito de elegíveis" (Saks, 1983). De acordo com essa posição, tanto os profissionais assalariados como os "profissionais" liberais são aqueles que conseguiram "organizar a aquisição e a legitimidade de sua competência, em vastos campos funcionais, com base nos títulos oficiais que possuem" (Larson, 1977). Para isso, devem se dotar de "instituições próprias que, por delegação de poder público, disponham de poder de validar e de sancionar seus membros" (Paradeise, 1987). É necessário, então, que haja, para eles, "vínculos estruturais entre um nível de instrução formal elevado e uma posição reconhecida na divisão social do trabalho" (Larson, idem). Esses vínculos não podem resultar senão de um trabalho de argumentação bem-sucedida, isto é, "de uma aptidão reconhecida para produzir e se apropriar das declarações simulando autoridade" (idem). Tal aptidão deve ser reconhecida não somente pelo público externo, que deve ser persuadido do valor da "necessidade" à qual responde a profissão, mas também pelo público interno, constituído pelos empregadores potenciais e pelos outros profissionais (Paradeise, 1988). O trabalho de argumentação deve, portanto, relacionar a esfera da prática, ou seja, a demonstração da eficácia do profissional na satisfação da "necessidade", à esfera da teoria, ou seja, à legitimidade "científica" da disciplina na qual a profissão se apoia (idem). Esse trabalho de reconhecimento científico da disciplina é particularmente difícil, por necessitar da anuência dos outros "cientistas" das disciplinas já constituídas que formam como que "sistemas anônimos servindo para a construção de novos enunciados
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válidos, de quadros teóricos no interior dos quais as proposições pertinentes devem ser organizadas para ter um sentido" (Larson, 1977). A capacidade dos profissionais para "dominar a definição de uma área autorizada da ciência" constitui, segundo essa abordagem, uma das condições essenciais para o estabelecimento e para a manutenção de um "isolamento simbólico" aos olhos dos outros parceiros implicados em sua atividade. Compreende-se melhor o interesse, para os empregadores, em reconhecer o poder e competência legítimos de profissionais que poderão colocá-los a serviço dos objetivos de sua empresa em troca de salários e de perspectivas interessantes de carreira. É nessa transação entre o reconhecimento, pelo empregador, de uma competência apoiada em um título e a mobilização (commitment), pelo profissional assalariado, dessa competência a serviço da empresa que repousa o "novo (?) modo de gestão da mão-de-obra", que preserva os profissionais da proletarização e mantém uma cisão entre eles e os assalariados que não empreenderam ou que não obtiveram sua "profissionalização". Como toda transação, essa é instável e depende do conjunto das relações que caracterizam a situação dos profissionais que sempre correm o risco de uma desprofissionalização, mas também a dos não-profissionais que sempre aspiram a uma profissionalizaçã o. Não há, portanto, nenhuma lei geral que permita concluir por uma profissionalização generalizada ou por uma desprofissionalização maciça dos assalariados na empresa capitalista. Observam-se, há muito tempo, movimentos cruzados e complexos de integração de "profissionais" que mantêm ou aumentam seu poder de expertise no interior de organizações de tipo burocrático, de desprofissionalização ou "desqualificação" de profissionais por ofício que perdem a autonomia e o comando devido ao progresso técnico e ao enfraquecimento de sua organização interna, de profissionalização ou "requalificação" de novas categorias de assalariados que são capazes de organizar e fazer reconhecer o
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monopólio de sua competência, sem falar das "conversões" de um tipo de profissíonalidade em outro, o que permite a manutenção de status profissionais ao longo das transformações estruturais das empresas. Essas diferentes dinâmicas profissionais sempre podem ser analisadas como resultados incertos e frágeis das transações salariais entre os indivíduos implicados e os parceiros de suas relações de trabalho: seus empregadores mas também seus clientes ou seu público, suas organizações profissionais ou sindicais mas também suas instituições de formação. Essa abordagem se mostrou particularmente fecunda para compreender o movimento secular da socialização profissional3. 4. A qualificação como produto codificado de "modelos profissionais" Entretanto, existem "modelos" que permitem caracterizar os termos da transação precedente entre as competências requeridas pelos empregadores (qualificação dos empregos) e as competências adquiridas pelos assalariados (qualificação dos indivíduos)? Existem correspondências típicas entre os modos de codificação das categorias de emprego e os princípios de codificação das formações pelas quais se definem os indivíduos? Se, definindo a qualificação como socialização profissional (Alaluf, 1986), recusarmos todo postulado de adequação preestabelecida entre os dois processos, poderemos, ao menos, a título de hipótese, discernir por meio da literatura modos de ajuste entre esses dois tipos de codificação. Para apresentar esses modelos hipotéticos, nós nos apoiaremos em dois resultados de trabalhos muito diferentes (pelos países, categorias e períodos abarcados) e, no en3. No entanto, ela peca por não levar em consideração as "transações subjetivas" necessárias aos indivíduos para se engajar em uma dinâmica profissional; por essa razão, o termo "identidade" é pouco utilizado por essas correntes.
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tanto, consideravelmente convergentes. O primeiro é uma síntese, elaborada por W. E. Moore (1969), dos quatro níveis de identidade profissional (Occupational Socialization) discernidos em numerosas análises americanas dos anos 1960. O segundo é uma tentativa de elaboração de três "modelos de valorização da força de trabalho" estreitamente ligados a três tipos de plano de carreira identificados por P. Rivard (1986) por meio de suas pesquisas sobre a qualificação dos quadros nas empresas francesas. O fato de nenhum dos "níveis de identificação" (Moore) corresponder a algum "modelo de valorização" (Rivard) é facilmente explicado pela diferença das populações compreendidas (e certamente também pela dos países de referência). Veremos que outros trabalhos permitem acrescentar um quarto "modelo" aos propostos por Rivard, reforçando assim a convergência das duas sínteses. O ponto de partida da síntese de Moore é a seguinte questão: quais são os limites de identificação legítimos, discerníveis na literatura sociológica, dos assalariados? Ele formula a hipótese de que esses "espaços" resultam em parte da ínteriorizacão de "normas de emprego" (Occupational Norms) que exprimem as principais "formas de lealdade" dos assalariados para com as instituições pertinentes e os Outros significativos (Mead). Estabelece uma distinção importante entre as normas ideais e formais transmitidas pela formação e as normas práticas e informais consolidadas pela experiência do trabalho (cf. capítulo 6). Constata que são essas últimas que estruturam de maneira duradoura as identificações dos assalariados e que asseguram, de sua parte, formas diversas de engajamento profissional contínuo (continuing Occupational commitmenf) que permitem a confirmação de identidades profissionais constituindo também identificações a comunidades profissionais significativas de cada um dos níveis de interesse iniciais. O ponto de partida de P. Rivard é diferente. Ele se indaga sobre as expectativas de carreira dos quadros e sobre as diversas representações comuns a partir das quais indi-
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víduos e empregadores estabelecem seus comportamentos. Vincula essas representações tanto a estratégias típicas de "defesa, imposição, reforço da legitimidade do modelo argumentativo" da competência do assalariado quanto a planos típicos de progressão fundados sobre lógicas econômicas e sociais, específicos e irredutíveis uns aos outros. É essa correspondência entre estratégias de carreira e planos de progressão que ele denomina "modelos de valorização" e que ele apresenta a partir de três figuras ideal-típicas: o oficial, o físico e o operário. Essas três figuras correspondem de maneira muito próxima a três dos espaços de identificação de Moore e às três comunidades a eles vinculadas. É por essa razão que os apresentaremos simultaneamente.
4.1. O modelo do operário: valorização pelo resultado e identificação com um cargo (Job) A unidade elementar de definição do emprego é o CARGO, isto é, um conjunto de tarefas (prescritas), de resultados (previstos) e de meios (atribuídos). O núcleo da competência é a FORMAÇÃO IN LOCO, isto é, a capacidade para produzir resultados, proveniente da experiência e do domínio da atividade de trabalho. O salário sanciona a contribuição para a tarefa principal, a que produz valor agregado incorporado ao resultado do trabalho. A codificação principal é a que classifica os cargos segundo sua importância na produção dos resultados. A codificação dos indivíduos decorre da codificação precedente e repousa nas experiências anteriores (cartão de visita, currículo...) e nas aptidões medidas por testes específicos. A carreira não é concebida senão como uma progressão em cargos cada vez mais importantes, suscetíveis de produzir resultados crescentes. O sucesso profissional é medido por esses resultados: é uma "carreira nos cargos", fundada na acumulação "interna" de competências operacionais.
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A identificação principal é a que vincula o indivíduo a seu grupo de trabalho, que constitui uma verdadeira "comunidade profissional", com sua linguagem particular, suas normas informais, suas alegrias e seus sofrimentos profundamente interiorizados (Moore). Esse grupo se define a partir de um conjunto relativamente fechado de cargos (dosely related set ofjobs) estruturados em torno de um chefe ou de um responsável portador da identidade coletiva. É em relação a ele que se define a lealdade e é por ele que passam todas as antecipações de futuro (Moore). A estratégia de qualificação essencial é uma regulação pelos fluxos controlada pelo empresário. Não há ou há pouca codificação da visibilidade dos resultados obtidos. A argumentação essencial é destinada a valorizar os autodidatas e a reconhecer as diversas formas de experiência profissional úteis à empresa (Rivard).
4.2. O modelo do oficial: valorização pela função e identificação com um status
Aqui, a unidade elementar é a FUNÇÃO, "estado" no sentido do Antigo Regime, por exemplo o mandato atribuído por delegação de um poder central e oficializado por um ato oficial. Trata-se de um serviço a ser assegurado, implicando uma responsabilidade inerente ao status possuído: o oficial é proprietário de sua patente. Esse status é, portanto, inseparável de uma HABILITAÇÃO especializada resultante de uma FORMAÇÃO PROFISSIONAL inicial e contínua. Essa formação constitui uma condição para postular as funções organizadas ao longo de carreiras hierarquizadas de tipo burocrático. A codificação principal é a que classifica os indivíduos nos diversos degraus da progressão das funções. A carreira não pode ser senão a seqüência das funções cada vez mais importantes ocupadas na fieíra. Ela resulta de representações muito complexas que dependem, a um só tempo, de
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fatores demográficos, de decisões políticas e de interações estratégicas entre os parceiros dessa "regulação conjunta" G.-D. Reynaud). A identificação principal é a que vincula o indivíduo a seu status, isto é, à comunidade daqueles que podem cumprir as mesmas carreiras. Quer se trate de associações profissionais, quer se trate de uniões sindicais de ofício, essas comunidades de identificação são transversais em relação às empresas e estruturam identidades profissionais "de tipo corporativo" profundamente aferradas à manutenção e à reprodução de normas oficiais que legitimam a função exercida. A estratégia de qualificação consiste em "criar um grupo de cargos similares e em definir, em seguida, as condições necessárias para ocupar esses cargos" (Rivard). O funcionamento mais freqüente é a cooptação tacitamente aceita por todas as partes implicadas. A argumentação essencial do grupo profissional concerne à utilidade e ao valor das novas funções a serem criadas.
4.3. O modelo do físico: valorização pela formação e identificação com a disciplina (setor, indústria...)
Aqui, a unidade elementar de definição é a ESPECIALIDADE, ou seja, a competência especializada adquirida por meio da formação básica e das habilidades adquiridas mediante os aprendizados cumulativos. Teoricamente há uma correspondência estreita entre a carreira de ensino disciplinar e a carreira "profissional". A carreira sanciona o domínio progressivo da soma dos conhecimentos (saberes formalizados) e das habilidades correspondentes. A codificação principal é a que classifica os indivíduos no interior dos diferentes níveis de conhecimento da disciplina. Ela deve assegurar uma equivalência entre os empregos que correspondem ao mesmo nível em todas as empresas ou instituições. Dessa forma, possibilita-se e se favorece a mo-
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bilidade externa, para contornar as pressões demográficas e assegurar a progressão ao longo das carreiras de especialidade. A identificação principal é a do indivíduo com sua reputação no interior de sua comunidade disciplinar. O que se busca, antes de tudo, é o reconhecimento pelos pares, e o engajamento profissional está profundamente condicionado à esperança de um aumento desse reconhecimento ancorado, com freqüência, na concepção de "vocação" (commitment to a calling, segundo Moore). A estratégia profissional é de acumulação dos saberes e de luta pela manutenção da raridade da formação.
4.4. Na tipologia de Moore encontra-se um quarto espaço de identificação, constitutivo do modelo da EMPRESA Na de Rivard, a lealdade para com o empregador está incluída no modelo do operário, que, na verdade, repousa na articulação de dois níveis pertinentes: o dos cargos e o da empresa que os define e os codifica para alcançar seus resultados. Pelo fato de se interessar apenas pelos quadros e desenvolver o modelo do empregado de produção autodidata que progride em sua empresa a partir de seus resultados produtivos, Rivard não pode separar a identificação com o cargo da identificação com a empresa. Moore, ao contrário, se interessa também pelos assalariados de execução, dos quais uma parcela somente se define a partir do grupo imediato de trabalho. Deve-se dizer que a maioria deles não possui nem qualificação reconhecida nem carreira provável. Portanto, encontram-se excluídos do espaço de qualificação interna às empresas e não se enquadram em nenhum dos modelos de valorização estabelecidos por Rivard. Encontram-se, na literatura sociológica, outras tipologias de "modelos profissionais" que podem ser aplicadas seja a uma categoria de assalariados, seja ao conjunto dos diplomados. Assim, Hughes distingue e opõe o scientist (mo-
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delo do físico), o manager e o professional (1958, pp. 142 ss.), Goldthorpe e Lockwood definem, para os operários e os empregados ingleses, três orientações - instrumental (centrada no resultado financeiro), burocrática (centrada no status social) e solidarista (centrada no grupo de trabalho ou na empresa) - consideradas ideal-típicas (1968, pp. 86 ss.). Todas essas tipologias convergem amplamente e podem ser consideradas variantes dos quatro "modelos" precedentes.
5. A qualificação como resultado instável das relações profissionais Um último ângulo de análise desses "modelos" de qualificação consiste em discernir os sistemas de relações profissionais subjacentes a eles e em caracterizar sua dinâmica histórica. Com efeito, deve-se formular a hipótese de que cada "modelo" corresponde a uma configuração particular de atores entre os quais se negociam a construção, a reprodução e a transformação das qualificações. Um ramo particular da sociologia estuda, há mais de trinta anos, a dinâmica dos sistemas de relações profissionais (Industrial Relations, cf. Dunlop, 1958) em relação com o processo de industrialização e, de maneira mais geral, com a evolução das sociedades industrializadas. Partindo de uma teoria universalista da industrialização, fundada na hipótese de uma convergência de todas as sociedades industriais para um modelo único de relação de trabalho institucionalizada, chega à constatação de uma extrema diversidade das formas de regulação entre os diferentes atores da vida econômica (Sellier, 1986). Essa teoria universalista cede o passo a teorias estratégicas que constatam tal diversidade, questionam as orientações funcionalistas que privilegiavam o consenso e desenvolvem novos modelos de inteligibilidade centrada na hipótese da diversidade irredutível das formas de ação coletiva e de regulação conjunta (J.-D. Reynaud, 1989). Nessa hipótese, a qualificação dos assala-
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riados representa uma implicação essencial entre os três parceiros principais: os empregadores, os trabalhadores e o Estado. A priori, os interesses dos empregadores e dos assalariados são divergentes, até mesmo antagônicos. Os empregadores buscam um ajuste viável (mas não necessariamente ótimo) entre a redução de seus custos de produção e a sobrevivência de sua empresa. Perseguem um duplo objetivo sob pressão: dispor de uma mão-de-obra com as qualidades requeridas para a melhor produção possível, contratar para si essa mão-de-obra ao menor custo possível. Raramente esses dois objetivos podem ser alcançados de modo espontâneo. Portanto, para os alcançar, os empregadores devem negociar, individual ou coletivamente, as condições de trabalho e de remuneração. Inversamente, os assalariados procuram valorizar ao máximo sua força de trabalho e minimizar sua dependência. Eles têm o recurso de desorganizar o processo de produção, seja por defecção individual, seja por ação coletiva. Mas, com freqüência, têm interesse em negociar a valorização de sua competência e em argumentar sua "insubstituibilídade" (C. Paradeise, 1988). Podem, notadamente, se dirigir ao Estado para garantir, valorizar ou aumentar seu diploma escolar e sua competência profissional. Por sua vez, o Estado pode pressionar os empregadores a participar da formação de seus assalariados e a reconhecer os diplomas escolares por ele emitidos. A construção dos espaços de qualificação é, assim, produto de todas essas negociações sobrepostas que fazem se confrontar diversas categorias de atores, possuidores de interesses e representações diferentes mas com o dever de realizar sua "apropriação mútua" (Weber). Essas negociações são cada vez mais descentralizadas e se desenrolam em níveis diferentes com parceiros múltiplos: empresa, ramo profissional, região, nação, âmbito europeu... Elas dependem dos "modelos de competência" que cada ator traz e dos modos de organização herdados das formas históricas de
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desenvolvimento das empresas, dos ramos, das nações. Essa fragmentação da negociação torna cada vez mais difícil a definição de normas profissionais comuns e comporta o risco de uma profusão de regras jurídicas cada vez menos aplicadas 0.-D. Reynaud, 1989). Para que as negociações cheguem a compromissos que codifiquem a um só tempo as exigências requeridas pelos empregadores e as qualidades adquiridas pelos assalariados e que sejam legitimados pelo Estado, é preciso que os parceiros consigam constituir espaços comuns de racionalidade a partir de lógicas diferentes. É necessário, portanto, que eles partilhem um processo conjunto de socialização, implicando uma ação comum (o processo de trabalho), representações comuns (um modelo de competência) e interações positivas (cf. capítulo 4). O âmbito desse processo pode ser: 1) o grupo de trabalho; 2) a empresa; 3) a função; 4) o ramo profissional ou a disciplina. Isso corresponde aos quatro "modelos" precedentes. Os atores pertinentes não são os mesmos em cada caso, mas o que está em jogo é sempre a construção conjunta da profissionalidade dos indivíduos, implicando a articulação de três processos: - o processo de formação inicial e contínua das competências por meio da articulação das diversas fontes destas: saberes formalizados, habilidade, experiência; - o processo de construção e de evolução dos empregos e de sua codificação nos sistemas de emprego; - o processo de reconhecimento das competências, resultado do movimento das relações profissionais. A análise detalhada de uma comparação internacional centrada no destaque de coerências nacionais entre esses três processos permitirá justificar a necessidade de os articular para compreender as dinâmicas da socialização profissional.
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6. Socialização, organização e relações profissionais: uma comparação internacional No final de uma longa pesquisa comparativa entre a França e a Alemanha Ocidental, Mauríce, Sellier e Silvestre publicaram uma síntese organizada em torno da articulação das três relações que eles consideram estruturantes das "coerêndas societais": a relação educacional (ou profissional), a relação organizacional e a relação industrial (MSS, 1982). O ponto de partida de sua análise é a tentativa de explicar as diferenças de hierarquia dos salários entre os dois países: a relação entre o salário médio dos não-operários e dos operários era, em 1970, de 1,42 na França contra 1,33 na RFA; o coeficiente de variação dos salários dos homens era de 55% na França e de 33% na RFA; as diferenças devidas à antigüidade eram muito maiores na França do que na RFA etc. Para explicar essas diferenças sistemáticas, os autores partem de uma análise dos movimentos de mobilidade (educacional, profissional e social), que parecem não somente diferentes entre os dois países mas também "orientados por princípios diferentes". Estes se ancoram na relação educacional e sobretudo na relação formação geral-formacão profissional. Assim, enquanto 68% de um grupo etário seguia uma formação profissional inicial de aprendiz, durante os anos 1960, na RFA, apenas 29% se encontravam nessa situação na França; enquanto apenas 10% dos aprendizes não chegavam a obter seu diploma na RFA, 60% abandonavam sua formação inicial sem obter o CAP na França. A socialização profissional parece ser muito diferente, nessa época, de um país para outro: ao passo que para a maioria dos jovens alemães ela consiste em uma "preparação para a qualificação industrial", para a massa dos jovens franceses ela é sobretudo uma "iniciação a habilidades específicas", complementada em seguida por uma "socialização à empresa". Por isso, o que os autores denominam espaço de qualificação é fundamentalmente diferente nos dois países:
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enquanto na RFA ele se organiza em torno das relações entre sistema de formação profissional e "indústria" (ramo estruturado pelas relações empregadores-sindicatos), na França ele se organiza muito mais em torno das relações entre os assalariados e sua empresa e de uma grande pregnância do Estado sobre a emissão dos diplomas. Dessa forma, segundo os autores, "na França, as tendências à promoção individual prevalecem sobre as tendências favoráveis a uma grande identificação coletiva" (MSS, pp. 80-1). Enquanto na RFA há um "espaço único de qualificação marcada pela aprendizagem operária na base e ampliada em direção aos diplomas profissionais intermediários não operários", na França encontram-se apenas "espaços segmentados pelas triagens/orientações/seleções operadas pelas empresas a partir de uma mão-de-obra pouco diferenciada profissionalmente". Essas diferenças na relação educacional-profissional são, em seguida, relacionadas às características da "relação organizacional", isto é, dos modos de funcionamento dos grupos de trabalho e de estruturação das empresas. A análise enfoca as diferenças de identidade do contramestre francês e do Meister alemão, que refletem "dois modos de organização do sistema de trabalho". Enquanto na França as exigências do cargo freqüentemente contam mais que o perfil dos trabalhadores e se observa o "primado da antigüidade", na RFA é a qualificação dos trabalhadores que prevalece sobre o perfil do cargo e que provoca um "primado da profissionalidade fundada em diplomas de formação profissional". Por isso, o contramestre, na França, tem uma função "essencialmente hierárquica, marcada pela distância salarial em relação aos operários" (poder compensador do salário), e depende essencialmente do "sistema organizacional da empresa (donde sua fragilidade e seu desconforto)", ao passo que na Alemanha ele constitui um mediador entre "gestão técnica e gestão social" e se integra em uma linha de autoridade fundada em competências técnico-profissíonais reconhecidas (do Facharbeiter ao Graduiert Ingenieur
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via Meister*). Essa identidade profissional do Meister é indissociável da "grande autonomia do grupo operário (Arbeiteischaft)" fundada em sua profissionalidade reconhecida e expressa por um "aterro coletivo à eficácia (Leistung)". Ela contrasta, segundo os autores, com a identidade do contramestre francês, cuja profissionalidade - assim como a dos outros assalariados - "depende mais da empresa que o emprega e o designa para seu cargo do que das formações adquiridas" (MSS, p. 208). As diferenças de relação educacional e de relação organizacional estão, enfim, ligadas aos dois "sistemas de relação industrial", isto é, ao conjunto das regras e dos atores que presidem à negociação coletiva das relações de trabalho. Ao caráter estruturante das "indústrias" (ramos profissionais) e à existência de uma "lógica de produção" dominante e conflituosamente compartilhada no sistema alemão, os autores opõem uma polarização nas empresas ("heterogeneidade social e profissional dos ramos") e uma dominação da "lógica administrativa" no sistema francês. Essas diferenças são perfeitamente coerentes com as precedentes: é em torno da relação formação profissional-organização do trabalho fundada na profissionalidade que o ramo ("indústria") se estrutura, na Alemanha, como "espaço de qualificação" e como "lugar essencial das relações profissionais"; ao contrário, é em torno da relação integração à empresaorganização fundada na distinção em cargos que a empresa se constituí na França como "espaço de mobilidade interna" e "lugar de exercício do poder administrativo". Portanto, é ao destaque de "coerências societais" que conduz essa tripla análise do que os autores não denominam "sistema" mas "relações sociais" definidas como "conjunto estruturado de relações de cooperação, competição e dominação que os trabalhadores mantêm entre si por ocasião da produção ou de sua organização" (p. 240). Um con* Do operário especializado ao engenheiro graduado por intermédio do Meister. (N. da T.)
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ceito-chave dessa análise é, segundo eles, o de "socialização" definido como "aprendizagem das relações sociais nos processos de mobilidade (espaços de qualificação)" (MSS, p. 242). É por esses espaços (também denominados "espaços profissionais") serem estruturados de forma diferente na Franca e na Alemanha que os modos de socialização profissional parecem tão profundamente diferentes, e até mesmo opostos, nos dois países: nível de instrução geral/formação profissional, experiência e profissionalidade/antiguidade e eficácia, homogeneidade do ramo/localização dos conflitos na empresa, lógica administrativa/lógica produtiva (quadro 7). Quadro 7 Os espaços profissionais na França e na RFA segundo MSS (1982) França
RFA
Centralização hierárquica e administrativa das decisões + Localização dos conflitos na empresa Experiência profissional (antigüidade)
Co-gestão, descentralização
Homogeneização do ramo
Formação profissional
Para além dos problemas metodológicos ligados à construção da comparabilidade e ao ponto de vista adotado na comparação (Doray e Dubar, 1989), essa análise faz avançar a compreensão das estreitas relações que unem o ensino, a organização do trabalho e o campo das "relações profissionais". Em uma última parte mais teórica, os autores passam em revista as posições adotadas pelas diversas correntes da sociologia e da economia quanto a essas relações estruturantes entre a socialização concebida como "construção social dos atores" e a organização considerada "es-
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truturação dos espaços de trabalho e de mobilidade". Eles consideram, com razão, que os diversos paradigmas (tecnológico, ecológico, acionalista, político...) forjados por essas disciplinas não permitem senão de maneira muito parcial construir abordagens operacionais das "interações entre processos de socialização e lógicas de organização", e que essas abordagens devem se centrar nas lógicas intermediárias (entre o macrossocial único e o microssocial diverso) constituídas pela "construção das identidades coletivas dos atores" (socialização e trajetórias) e pela "estruturação dos espaços de qualificação" (organização e divisão do trabalho). A definição de indivíduo adotada por eles ("ator que contribui para estruturar os sistemas que organizam a lógica de sua ação") corresponde de perto à problemática da socialização adotada na primeira parte deste livro. Bibliografia ALALUF, M. (1986), Lê tenips du labeur. Formation, emploi et qualification ai sociologie du travail, Bruxelas, Ed. de l'Université Libre. BRAVERMAN, H. (1974), Labor and Monopoly Capital, trad. fr. Travail et capitalísme monopoliste, Maspero, 1976 (Trabalho e capital monopolista: a degradação do trabalho no século XX, Rio de Janeiro, Guanabara, 3? ed., 1987). DARRÉ, J.-P. (1985), La parok et Ia technique. Uunivers dês élevenrs du Temais, Paris, L'Harmattan. DELBOS, G. e JORION, P. (1984), La transmissíon dês savoirs. Paris, Ed. de Ia MSH, col. "Ethnologie de Ia France". DERBER, C. e SCHWARTZ, W. (1988), "Dês hiérarchies à 1'intérieur de hiérarchies: lê pouvoir professionnel à 1'oeuvre", Sociologie et sociétés, n? 2, pp. 55-76. DERBER, C., SCHWARTZ, W. e MAGRASS, Y. (1989), Power in the Highest Degree, Nova York, Oxford University Press. DORAY, P. e DUBAR, C. (1989), "À propôs de Ia comparabilité dês systèmes de formation postscolaire en France et au Quebec: au-delà de 1'analyse sociétale", Comparaisons intemational.es, n? 5, 4? trimestre, pp. 46-55. DÜNLOP, J. T. (1958), Industrial Relation Systems, Southern Illinois Universitv Press.
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Capítulo 8
Das profissões aos mercados de trabalho
A renovação da "sociologia das profissões" se acelerou com a crise dos anos 1960 (Estados Unidos) e 1970 (Europa ocidental). O aumento de um desemprego estrutural atingindo principalmente parcelas inteiras da juventude colocou novamente, no primeiro plano das análises, o problema do emprego. A questão principal já não é saber quais atividades constituem "profissões" ou quais indivíduos se tornam "profissionais", mas compreender e, se possível, explicar tanto as transformações do acesso ao emprego corno as reestruturações dos planos de carreira que implicam exclusões duradouras da esfera das atividades reconhecidas. E uma das razões essenciais pelas quais a atenção dos sociólogos se deslocou consideravelmente da análise do trabalho e das profissões para a análise do funcionamento dos mercados de trabalho. Foi assim que eles se juntaram às preocupações mais antigas dos economistas e aos múltiplos esforços destes para produzir novas teorias do (ou dos) mercado(s) de trabalho. Por conseguinte, a ênfase se desviou para as formas de funcionamento das organizações. Veremos, neste capítulo, em que essas novas orientações contribuíram também para renovar as problemáticas da socialização profissional.
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1. Profissão e mercado de trabalho: indagações fecundas Entre as críticas dirigidas à "teoria dominante das profissões", as dos economistas do trabalho são importantes pelo menos por duas razões. De um lado, porque partem de um ponto de vista "societário" sobre o trabalho e não de um ponto de vista "comunitário" sobre as profissões: eles encaram o fato profissional como anomalia, exceção e até mesmo entrave repreensível ao funcionamento do mercado de trabalho. De outro lado, porque a persistência, quando não a extensão, do fenômeno profissional apesar da existência teórica de um mercado de trabalho concorrencial (e de medidas políticas visando à sua instauração) obrigou alguns economistas, americanos notadamente, a elaborar novas teorias do mercado de trabalho que integrassem a dimensão da socialização profissional. Foi, de fato, nos anos 1950 e 1960 que se multiplicaram, nos Estados Unidos, os estudos empíricos que visavam, no confronto com o "modelo" econômico dominante - a teoria neoclássica do "capital humano" -, a explicar as desigualdades salariais. De acordo com esse modelo, o assalariado é concebido "como administrador de um capital que ele constitui a partir de investimentos e cujos serviços, combinados com os do capital material, são transformados em produto (salários)" (Silvestre, 1978, p. 166). Tais investimentos em capital humano definem a oferta de trabalho que encontra a demanda de trabalho das empresas em um "mercado" concebido segundo o modelo da concorrência perfeita, isto é, cuja unidade é mantida pela alocação dos investimentos dos trabalhadores e pela fixação de "salários compensadores" pelas empresas. Segundo esse modelo, as empresas "fixam os salários para assegurar a realização dos investimentos em tipo de capital humano correspondente ao fator 'raro', assegurando-lhes a combinação produtiva ótima" (ia., p. 184). Assim, cada assalariado que teve o mesmo tipo de investimento deve receber o mesmo salário, e as
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desigualdades salariais devem poder se explicar pelas diferenças de níveis de investimentos medidos por variáveis interpretáveis nestes termos: o nível de educação, a experiência profissional e a mobilidade voluntária constituem as variáveis mais comuns medidas pelos estudos empíricos. Ora, se elas aparecem correlacionadas com os níveis de salário, o mesmo ocorre com outras variáveis - às vezes até em maior grau - "que não estão significativamente ligadas aos níveis de investimentos dos trabalhadores". É o que acontece com as diferenças salariais entre homens e mulheres, entre brancos e minorias étnicas, entre rurais e urbanos com grau de escolaridade e trajetória profissional equivalentes. E também o caso da antigüidade na empresa ou na profissão, que aparece, por exemplo, como a mais correlacionada com o salário no estudo de Rees e Schultz (1970) sobre os Estados Unidos - segundo Silvestre, "uma das pesquisas mais sistemáticas efetuadas sobre a formação dos salários em um mercado de trabalho urbano": na grande maioria dos ofícios considerados, "a parte das variândas explicada pela antigüidade atinge 30% e em três de cada doze casos ela ultrapassa 50%" (Silvestre, 1978, p. 199). Em outros estudos (Harrison, 1973), o tamanho das cidades ou a taxa de urbanização também explicam uma parte considerável da variância dos salários (40% a 60%). Todos esses estudos levaram os economistas a reconhecerem "a existência de leis de compartimentação que vão de encontro à unidade econômica do mercado de trabalho: discriminação entre os sexos ou as raças, efeito da origem social, efeito da empresa e das formas de organização coletiva do trabalho" (Silvestre, ia., p. 208). Essas observações permitem reinterpretar, a partir dos anos 1950 nos Estados Unidos, os resultados de algumas pesquisas sociológicas sobre as "profissões". Quando um sociólogo como Goode enfatiza a "comunidade profissional", isso não é a indicação da existência de um "mercado institucionalizado", conseqüência de um monopólio das profissões estabelecidas? Quando Hughes e seus colaborado-
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rés analisam discriminações profissionais contra as mulheres ou contra não-brancos, isso não é indício de uma segmentação do mercado de trabalho? Quando outros estudos mostram que a mobilidade e a distribuição geográfica de determinadas "profissões" (médicos, advogados...) estão ligadas às concentrações da clientela abastada, isso não é, de novo, uma característica de "mercado institucional" ou, segundo a expressão de um célebre artigo de Clark Kerr, o sinal de um processo de "balcanização do mercado de trabalho" (1954)? Essas constatações vão levar alguns economistas a propor novas abordagens e até mesmo uma nova teoria do funcionamento do mercado de trabalho, tomando essas compartimentações internas não como imperfeições do modelo neoclássico (teorias da concorrência imperfeita) mas como modos de estruturação do espaço profissional que explicam o caráter estratégico do que antes era considerado simples obstáculo contingente à concorrência. Uma primeira abordagem em termos de "segmentação do mercado de trabalho", devida a Edwards, Gordon e Reích (1973), se inscreve no prolongamento da análise marxista do funcionamento da força de trabalho e considera a compartimentação do mercado de trabalho o resultado dos modos de gestão da forca de trabalho pelo capital. Ela resulta das "novas estratégias capitalistas de resposta às tensões e contradições suscitadas pelo próprio desenvolvimento", levando a distinguir cada vez mais claramente, ao mesmo tempo que os articula, "dois espaços de mobilização da força de trabalho": um setor central, caracterizado por uma "grande integração dos trabalhadores às estruturas no interior das quais se regula a utilização da força de trabalho", pela existência de uma organização coletiva dos assalariados e de regras negociadas de gestão das carreiras e, portanto, por uma grande estabilidade de emprego, composto sobretudo de homens, brancos, de origem urbana; um setor periférico composto de empregos residuais, não protegidos e cada vez mais precarizados, ocupados por mulheres, es-
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trangeiros ou minorias, de origem rural. Segundo os autores, foram essencialmente as exigências da produção de massa, implicando a planificação da produção e o "controle crescente sobre a utilização direta da força de trabalho", que motivaram a constituição do setor central composto de grandes unidades, com "força de trabalho homogênea e organizada" que deve antes de tudo ser integrada (estabilidade, regularidade, disponibilidade) e regulada (relações industriais) em troca de altos salários e estabilidade de emprego. O excedente é enviado ao setor periférico, que constitui um conjunto de "zonas de menor resistência permitindo aumentar a eficácia global do processo de valorização". O "modelo profissional" recuperado pelas diretorias das grandes empresas constitui, assim, um elemento essencial da integração do setor central. A segunda abordagem, designada por Silvestre (1978, p. 266) com o termo "teorias da estratificação do mercado de trabalho", é, em parte, posterior à abordagem precedente e já não se refere à análise marxista. Ela provém da obra fundadora de Doeringer e Piore (1971), mas também do "modelo da competição pelos empregos" de Thurow (1972) que constituirá, na França, uma das referências do modelo de Lflnégalité dês chances [Desigualdade das oportunidades], de R. Boudon (1973). Na verdade, comporta duas vertentes complementares: uma mícroeconômica e microssodológica centrada na empresa a partir do conceito de mercado interno do trabalho, a outra macroeconômica e sociológica centrada no sistema social definido em termos de estratificação. O nível "macro" é teorizado por Thurow segundo o modelo da "competição pelos empregos". Ele postula que a remuneração de um trabalhador é determinada: 1) por sua posição em uma ordem de preferência estável; 2) pelo tipo de distribuição dos empregos disponíveis. "Os salários dependem das características dos empregos, e os trabalhadores são distribuídos nos empregos disponíveis segundo sua posição na ordem de preferência... Os ajustes do merca-
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do de trabalho traduzem as relações dos indivíduos com os estratos hierarquizados que os acolhem seletivamente" (Silvestre, 1978, p. 267). Assim, o espaço dos empregos é estruturado pelas características de estratificacão do sistema social no qual as hierarquias se formam e os indivíduos se distribuem seletivamente. Considerando a posição social de origem e o grau de escolaridade elementos básicos da estratificacão, Boudon desenvolveu seu modelo das estruturas elementares de mobilidade, que explica a permanência da desigualdade das chances sociais apesar de uma diminuição relativa da desigualdade das chances escolares (1973). O nível "micro" parte da distinção entre mercado interno e mercado externo do emprego, constituindo dois espaços articulados de gestão da mão-de-obra. O mercado interno é definido como "uma unidade de decisão, por exemplo uma empresa, na qual a distribuição do trabalho e a remuneração são governadas por um conjunto de regras e de procedimentos administrativos" (Doeringer e Piore, p. 1). O tipo ideal do mercado interno é "tal que o acesso às posições elevadas é condicionado pela existência prévia de um itinerário profissional em todos os níveis de uma organização na qual esse itinerário se constrói". Esse espaço de mobilidade em que "a progressão e a valorização profissional se constróem baseadas no diploma e na maneira como a experiência profissional é adquirida" é definido, pois, com base no modelo profissional burocrático, no qual o diploma serve para distinguir os assalariados internos dos externos e no qual a carreira serve para assegurar a integração aos objetivos da organização. Tais "planos de carreira" são, com efeito, descritos como "característicos de uma gestão administrada da mão-de-obra" pela qual regras rígidas governam a um só tempo a formação dos salários e a distribuição dos trabalhadores. Nesse modelo, os autores insistem no fato de que "os processos de formação e seus efeitos sobre a empresa na qual se desenrolam são importantes para compreender o funcionamento dos mercados de trabalho internos" (Doeringer e Piore, pp. 17-8). Eles também preci-
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sam que, se a construção do espaço de mobilidade é um fato de socialização, seu funcionamento é um fato de organização: "uma vez lá dentro, as posições e as chances de promoção são amplamente determinadas pela estrutura das organizações" (Silvestre, p. 276). Ao contrário do mercado interno, o "mercado externo" está submetido à concorrência (Doeringer e Piore, 1971). Portanto, as trajetórias de mobilidade, segundo essa formalização, são compostas de dois momentos muito diferentes: o momento anterior à "inserção" que se desenrola no "mercado externo" em uma situação concorrencial e o momento da "mobilidade interna". Se admitirmos que a concorrência no "mercado externo" ocorre principalmente em função dos diplomas e das características da formação escolar, a fase de inserção será tanto mais longa e difícil quanto o nível escolar for mais baixo e a formação profissional tiver sido mais ou menos adaptada ao estado da concorrência. Mas, multiplicando os empregos provisórios e as estratégias de procura de emprego, incluindo a obtenção eventual de formações complementares, a grande maioria dos assalariados deveria, nessa representação, se inserir um dia em uma forma qualquer de "mercado interno" e passar de uma fase de "inserção" essencialmente dependente do nível escolar para uma fase de "qualificação" regida pelas normas formais e informais do "mercado interno". Desse modo, a análise "micro" do funcionamento dos mercados internos se integra na teoria "macro" da estratificacão do mercado de trabalho. Os estratos hierarquizados do sistema social deveriam corresponder aos diferentes níveis de emprego constitutivos das carreiras dos "mercados internos". O nível de entrada de um indivíduo dependeria essencialmente de seu nível escolar, e seu itinerário posterior seria determinado pelas regras de funcionamento do "mercado interno" no qual ele se inseriu. A posição social de um indivíduo em dado momento de sua carreira resultaria, então, da simples combinação de seu nível de escolaridade inicial - que depende, por sua vez, de sua posição só-
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ciai de origem - com as características do mercado interno (ou: mercados sucessivos...) no qual ele se encontra (ou: se encontrou sucessivamente). Nessa formalização, o mercado de trabalho é duplamente estratificado: verticalmente, pelos graus de escolaridade que condicionam os pontos de entrada no mercado de trabalho e refletem a estratificação "societal" do sistema social; horizontalmente, pelos tipos de mercado interno que remetem a modos de gestão dos empregos pelas empresas, modos de gestão esses que condicionam as trajetórias dos assalariados no decorrer de sua carreira e exprimem as características "econômicas" das empresas. Segundo esse modelo, as desigualdades salariais já não se explicam somente pelas diferenças de investimento em "capital humano" dos indivíduos, mas também pelas interações entre tais estratégias individuais e os modos de estruturação dos mercados internos. Dessa forma, os "privilégios" de algumas categorias profissionais resultariam da forte articulação entre determinadas categorias individuais, ligadas a características socialmente valorizadas, e determinadas políticas de gestão interna dos empregos, ligadas a configurações econômicas ou políticas particulares. 2. Mercado primário e mercado secundário: a hipótese dualista A formalização do funcionamento do mercado de trabalho se modifica quando é introduzida uma descontinuidade mais ou menos radical entre "mercado primário" e "mercado secundário" (Berger e Piore, 1980). Dessa vez, a abordagem opõe dois tipos de sistema de empregos que correspondem tendencialmente a dois tipos de processo de trabalho (produção em massa/produção unitária ou em pequena escala). Tal distinção revela, segundo os autores, uma diferença significativa de Incerteza do mercadcrde produtos (demanda estável e previsível/instável e imprevisível) e,
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portanto, das condições de valorização do capital e de utilização da força de trabalho. Esse suposto dualismo do mercado (de produtos/de trabalho) corresponde, grosso modo, nesses autores, ao tamanho das empresas: as grandes se interessam pelos segmentos da demanda estável e previsível, e as pequenas pelas parcelas da demanda instável e imprevisível. Ele também corresponde a formas de organização do trabalho e de modernização tecnológica diferentes. Remete, enfim, a formas institucionais diferentes: apenas as empresas "dominantes" possuem um "mercado interno" e formas de regulação conjunta; as empresas "dominadas", que não os possuem, podem então desempenhar um papel regulador essencial: o mercado secundário "contribui para a flexibilidade econômica graças à maleabilidade da gestão de mão-de-obra, o que não pode se permitir o setor primário confrontado com a amplitude de seus investimentos e com o poder de suas organizações sindicais" (ia., p. 101). Portanto, nessa abordagem, os dois setores são profundamente complementares, ainda que exista entre eles uma descontinuidade fundamental tanto no que concerne ao processo de trabalho como no que concerne às formas de gestão do emprego (Campinos e Marry, 1986, p. 218). Uma característica importante dessa formalização, profundamente ideal-típica, reside na importância dada à formação na definição distintiva dos dois mercados e nas modalidades de acesso dos indivíduos a eles. Com efeito, segundo esses autores, as diferenças entre os mercados de trabalho podem ser explicadas "em termos de meios pelos quais as pessoas aprendem e compreendem seu trabalho". Desse ponto de vista, eles distinguem dois processos de aprendizagem (leamingprocesses). "No primeiro, as pessoas aprendem um conceito abstrato e, quando se encontram diante de uma operação concreta de trabalho, deduzem a maneira de executá-la", o que supõe uma "imagem mental" do produto (mental picture of a car) e o conhecimento dos princípios essenciais que presidem à sua fabricação (rudimentanj principies goveming its operation): a aprendiza-
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gem pode ser qualificada de abstrata, e a compreensão de intrínseca. "Na forma alternativa de aprendizagem concreta e de compreensão extrínseca, as pessoas aprendem as operações particulares diretamente e as organizam mentalmente em relação a espaços externos ou extrínsecos às próprias operações, por exemplo em relação a uma seqüência temporal ou a um espaço físico ou social onde as operações são realizadas" (id., pp. 19-20). Essas duas formas de aprendizagem remetem tendencialmente a modos de socialização diferentes: enquanto a formação "on thejob" é o modo privilegiado da aprendizagem concreta, a formação formalizada é necessária para a aprendizagem abstrata. Além do custo diferente de cada um desses tipos de formação para as empresas, a diferença reside na relação entre o modo de aprendizagem e o grau de incerteza dos mercados de trabalho, entre "uma componente estável associada a uma divisão relativamente extensiva do trabalho, que utiliza recursos altamente especializados, e uma componente instável em que a produção recorre a uma divisão do trabalho menos articulada e utiliza uma força de trabalho menos especializada e, por conseguinte, capaz de mobilidade, o que permite seguir as flutuações da demanda por meio de uma grande variedade de atividades" (id., p, 79). Assim, o "mercado secundário de trabalho" não é, a princípio, considerado a resultante de um movimento de exclusão do conjunto dos "mercados internos" considerados "mercado primário de trabalho", mas estruturação de um novo sistema de emprego, alternativo e complementar ao precedente, e fundado em aprendizagens concretas, permitindo uma adaptabilidade a formas diversas de trabalho pouco especializado e uma mobilidade "horizontal" entre empregos instáveis ligados às incertezas do mercado. O dualismo do mercado de trabalho remeteria, portanto, a dois modos opostos e funcionalmente ligados de socialização profissional. Essa abordagem se articula, em Berger e Piore, a hipóteses sobre a dualidade das estratégias dos indivíduos em
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matéria de emprego e de trabalho, assim como dos sistemas de representação da atividade profissional e da articulação dos papéis na esfera do trabalho e de fora dele. Tais hipóteses vão no sentido de uma ampla adequação - aos modos de funcionamento do "mercado secundário" - das estratégias e representações das categorias culturalmente mais afastadas das formas de mobilização interna ao mercado primário de trabalho: mulheres, adolescentes, camponeses, imigrantes, trabalhadores temporários (Berger e Piore, p. 18; Campinos e Marry, p. 219). Uma das implicações essenciais do movimento de dualização seria, assim, a dissociação crescente dos dois sistemas de representação das relações entre trabalho e fora do trabalho, o primeiro unindo aprendizagem abstrata/mobilização para o trabalho/carreira, e o segundo aprendizagem concreta/mobilização fora do trabalho/empregos precários. A diferença essencial em relação à formalização precedente em termos de estratificação reside na concepção que se faz dos processos de socialização. Na versão dualista, já não existe sistema unificado e estratificado de socialização mas, tendencialmente, dois modos distintos, até mesmo opostos, de socialização integrando as dimensões familiares, étnicas, escolares e profissionais. Para alguns (inseridos no "mercado primário"), mobilização para o trabalho, integração nacional, diploma escolar e carreira profissional formam um sistema de representações e de ação orientado para a estabilidade de emprego e para a realização profissional. Para outros (inseridos no "mercado secundário"), mobilização familiar, particularidade étnica, fracasso escolar e ausência de carreira também constituem um sistema de ação marcado pela instabilidade, pela precariedade e pelo caráter instrumental do trabalho. Ao contrário das abordagens da estratificação, introduz-se uma descontinuidade entre quem está inserido nos "mercados internos" e quem nunca estará, entre quem está incluso, em graus diversos, em um "modelo profissional" e quem nunca se incluirá. Devemos nos indagar sobre a pertinência dessa dícotomia globalizante: nem as pesquisas empíricas parecem vá-
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lidá-la (c/, os exemplos mais adiante) nem as sínteses teóricas mais recentes (Marsden, 1989)1. Mas também devemos constatar o ressurgimento de uma oposição estrutural já encontrada no início de nossa apresentação do "fato profissional": toda construção de uma organização ou de um mercado de tipo "profissional" é acompanhada de processos de exclusão dos "não-profissionais". Os que têm "direito ao corpo" pressupõem os que não têm esse direito. Toda socialização profissional também é seleção e portanto, virtualmente, exclusão. 3. Mercados de trabalho fechados e modo integrado de socialização profissional Em um artigo extraído de sua tese sobre a marinha mercante francesa, C. Paradeise (1984) define "mercados de trabalho fechados" como "espaços sociais em que a alocação da força de trabalho nos empregos é subordinada a regras impessoais de recrutamento e de promoção". Neles ela inclui tanto os "mercados das profissões liberais" quanto o das "profissões com status nacional", mas também os "mercados internos das firmas" e até mesmo "uma quantidade importante de empregos privados, localizados em um setor, em um ofício, em uma firma". Ela lhes atribui alguns dos traços do tipo ideal de burocracia como sistema legal-racional segundo Max Weber, reconhecendo que nem todos pertencem a organizações "burocráticas" privadas ou públicas. Enfim, e sobretudo, constata, a partir do exemplo da marinha mercante, que "a formação constitui a estrutura do mercado sobre a qual ela age de diferentes maneiras": organizando o acesso aos empregos e criando uma ligação rígida entre formação/antiguidade/qualificação/salário, regulando as rela1. Em sua obra, Marsden, apoiando-se em C. Kerr (1954), distingue três, e não dois, tipos de mercado de trabalho: os mercados internos, com qualificações não transferíveís, os mercados profissionais, com qualificações transferíveis, e os mercados ocasionais.
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ções entre os interesses dos três parceiros (Estado, empregadores e assalariados) e assegurando "a reprodução orgânica da competência... por títulos dificilmente negociáveis no mercado de trabalho externo" (id., pp. 356-7). Portanto não é a natureza do trabalho nem sua organização nem mesmo suas relações internas que asseguram o "fechamento" desse tipo de "mercado" institucionalizado: são as condições de funcionamento do sistema de emprego, ou seja, do conjunto das relações profissionais institucionalizadas organizadas em torno de uma "superregra" (Reynaud, 1979) que pretende articular os interesses dos trabalhadores e dos empregadores "recorrendo a procedimentos que escapam às leis do mercado liberal". Como observa C. Paradeise, entre esses procedimentos, os que concernem à formação ocupam um lugar estratégico para regular o acesso aos empregos, o desenvolvimento das carreiras e as remunerações. Trata-se, pois, tanto de "sistemas de formação" como de "mercados primários de trabalho", visto que a formação é definida como um "processo de socialização ao meio marítimo" (1983, p. 357) e inclui, a um só tempo, formações iniciais de inserção no emprego e "formações altemantes que associam a aquisição dos saberes e das habilidades", permitindo a "promoção interna efetiva dos assalariados pela comunicação entre os diversos níveis de formação" e "a progressão ao longo de um ciclo de vida que também é um ciclo de aquisição de experiência". Podese, então, interpretar esse "mercado de trabalho fechado" como um modo integrado de socialização profissional que permite realizar - em determinadas condições econômicas e demográficas evidenciadas pelo autor - uma articulação "eficaz" entre os três "momentos" do processo (formação geral prévia/formação profissional de acompanhamento de carreira/experiência de trabalho ou do ofício constituindo "um poderoso argumento de mobilização e de negociação no jogo institucional"). É essa articulação que permite, notadamente, um funcionamento eficaz da regulação conjunta entre os parceiros implicados.
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Tal interpretação do que C. Paradeise denomina "mercado de trabalho fechado" poderia ser transposta para inúmeros sistemas que integram formação, emprego e trabalho, como os "sistemas profissionais fechados" de tipo corporativo, cuja persistência ao longo de vários conflitos sociais dos anos 1960 e 1970 é analisada por D. Segrestin (1985). É possível confirmar a constatação de que as organizações burocráticas públicas e privadas souberam integrar perfeitamente esse modelo a seu funcionamento, permitindo a pelo menos uma parte de seus assalariados (principalmente executivos) desenvolver uma considerável mobilização para sua empresa em troca de perspectivas de carreira e, para alguns, do acesso a posições de poder. É até mesmo possível ampliar esse "modelo" para determinadas categorias operárias, como as da siderurgia, em que "a aquisição da qualificação se identifica com a passagem por diferentes postos qualificantes e com a progressão ao longo de planos de carreira" (Bonnafos, 1985). Esse "modelo" se mostrou tão geral que serviu de suporte para numerosas concepções "substandalístas" da qualificação, fundadas na idéia de uma "estreita correspondência entre o grau de complexidade das tarefas e as competências utilizadas pelos trabalhadores em sua execução" (Campinos e Marry, 1986, p. 199). Quer essa formalização deva ser compreendida "com referência a uma situação arquetípica", realizando a "identidade do trabalho e do trabalhador" pela figura do artesão (Rolle, 1988, p. 46), quer deva ser interpretada em termos de estratégia patronal destinada a integrar os trabalhadores à empresa e a assegurar sua mobilização produtiva, ela coloca em evidência o lugar estratégico ocupado pela formação, concebida como socialização ao trabalho, à empresa e à carreira, na gestão do emprego. E, de fato, em torno do controle das formas e das regras que asseguram as correspondências entre formação e mobilização para o trabalho, de um lado, e formação e progressão profissional, de outro, que sem dúvida se travam as relações sociais de trabalho mais decisivas: entre a contri-
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buição salarial (mobilização para o trabalho) e a retribuição patronal (esperanças objetivas de progressão no emprego), a formação na empresa constitui a mediação essencial que assegura ao mesmo tempo as condições da mobilização e as esperanças subjetivas de promoção.
Qualificação e mercado interno de trabalho Curiosamente, foi necessário quase meio século para que a sociologia do trabalho francesa restabelecesse relações com as instituições de P. Naville, vinculando estreitamente a qualificação à formação sem dissolver a especificidade da primeira na generalidade da segunda. Com efeito, é inevitável constatar, a exemplo de J.-D. Reynaud (1987, p. 87), que a grande maioria dos estudos franceses relativos à qualificação utilizou, durante mais de vinte anos, uma teoria da qualificação que estaria contida no Traité de sociologie du travail [Tratado de sociologia do trabalho], de Friedmann e Naville (1961 e 1962), e cuja origem ele encontra na "segunda parte de Problèmes humains du machinismc industriei [Problemas humanos do maquinismo industrial] (1946) e particularmente no capítulo consagrado ao automatismo", que ele resume assim: "o estudo das tarefas reais e das tendências da técnica e da organização", do qual a obra de Touraine, L'Évolution du travail ouvrier aux usines Renault [A evolução do trabalho operário nas fábricas da Renault] (1955), representava o primeiro exemplo, seguido de muitos outros. Assim, enquanto os sociólogos do trabalho franceses, abraçando o movimento de penetração do taylorísmo nas empresas francesas e a transferência dos métodos americanos da Job Evaluation*, reduziam a qualificação à qualificação do trabalho, quando não do cargo, os sociólogos da educação abandonavam pura e simplesmente a noção de qua* Avaliação dos postos de trabalho, com vistas a determinar sua importância relativa, abstraindo os indivíduos que ocupam esses cargos. (N. da T.)
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lificação para considerar, a exemplo de Bourdieu e Passeron (1970), o sistema de formação - reduzido ao "sistema escolar" - um instrumento da reprodução social, pré-formador dos habitus da jovem geração que responderá às exigências dos cargos e das funções que ela terá de ocupar em função de sua posição de origem na estrutura de classe (cf. capítulo 3). Dessa forma, trabalho e formação se encontravam continuamente dissociados, do mesmo modo que a qualificação do cargo e a qualificação individual de quem o ocupa. Por isso, ao contrário das recomendações de Navüle, a "estrutura das qualificações" na esfera do trabalho e a "estrutura dos diplomas" na esfera da formação já não eram analisadas conjuntamente mas concebidas como harmoniosamente pré-ajustadas na esfera do sistema de classes e de sua reprodução necessária (Bourdieu e Passeron) ou consideradas simples implicações das relações de força e das lutas sociais (Touraine). Um dos interesses mais tangíveis da "teoria" esboçada por J.-D. Reynaud (1987) é romper com essa cisão para inscrever a qualificação no cerne do funcionamento do mercado de trabalho levando em conta os desenvolvimentos mais recentes da teoria econômica examinados anteriormente. A elaboração teórica de Reynaud se apoia em alguns trabalhos sociológicos recentes, alguns dos quais objeto de comunicações nas Premières journées de sociologie du travail de Nantes [Primeiras jornadas de sociologia do trabalho de Nantes], consagradas à qualificação (Dubar, 1987). Por exemplo, o estudo de J. Saglio mostra uma notável estabilidade das classificações na metalurgia (estruturadas em torno do operário profissional PI, detentor do CAP em três anos) entre 1936 e 1975, época em que os sistemas de trabalho se transformavam radicalmente. Por exemplo, as pesquisas evocadas por P. Tripier (1987) sobre as qualificações dos trabalhadores em informática mostram que um mesmo cargo pode ser denominado, classificado e remunerado de maneira diferente (analista e chefe de programação) dependendo
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dos diplomas e do "potencial" de quem o ocupa. Por exemplo, Margaret Maruani e Chantal Nicole-Drancourt (1987) mostram, em sua pesquisa sobre a organização de um jornal de interior, que as mesmas tarefas são realizadas de um lado por homens, de outro por mulheres, com classificações e remunerações muito diferentes, porque os primeiros são operários da indústria livreira "protegidos", enquanto as segundas são antigas funcionárias não cobertas por um estatuto. Poder-se-iam multiplicar os exemplos mostrando que a análise das tarefas realizadas é totalmente insuficiente para explicar as diferenças de qualificação e que somente ao se levar em consideração o mercado de trabalho considerado "institutional market", isto é, estruturado por relações profissionais mais ou menos institucionalizadas, seria possível compreender os funcionamentos concretos das qualificações e dos salários nos incontáveis ramos profissionais. A partir desses diferentes exemplos e, mais particularmente, das pesquisas de C. Paradeise e D. Segrestin, J.-D. Reynaud elabora um "esboço de teoria" organizado em quatro momentos, que reproduzimos aqui da maneira mais fiel possível (1987, pp. 86 ss.). Nele, a qualificação é definida como: 1) uma regulação conjunta considerada "resultado da combinação das estratégias patronais e salariais concernindo à organização de um mercado de trabalho específico concreto; as regras referem-se a um só tempo às condições de acesso ao emprego, de garantia de emprego e de desenvolvimento de carreira; elas resultam da interação entre regras impostas pelos empregadores e regras que visam a proteger determinada categoria de assalariados; podem chegar a ponto de "moldar" a formação e determinar os diplomas que a sancionam, podem ser parcialmente implícitas e exprimir "regularidades nacionais" impondo-se às duas partes; 2) produto de um mercado interno de trabalho no sentido de Doeringer e Piore (1971), ou seja, que implica uma parcela de gestão administrada das carreiras, chances de pró-
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moção, futuro profissional das pessoas envolvidas; que implica planos de carreira fortemente controlados e dependentes da organização da produção no setor em questão; que implica um controle, com maior freqüência do Estado, dos diplomas que dão acesso a uma carreira; que implica um peso muito grande da formação, da especialização e da hierarquia dos diplomas na organização do trabalho; 3) ligada a um tipo de organização da produção, o que eqüivale a constatar que a regulação conjunta presente na origem do sistema de qualificação também é estruturante da organização da produção; o que leva a buscar os modelos de regulação que estruturam tanto a organização da produção como a hierarquia das qualificações, e, portanto, também a organização da formação, no mesmo "setor"; 4) produzida pelo sistema de relações profissionais que ultrapassa de longe a negociação formal dos parceiros sociais e "repousa em uma cultura profissional e na afirmação de um ator coletivo" (p. 104); trata-se de uma "regulação complexa que não se reduz à negociação coletiva tradicional e que nela se exprime apenas em parte". Esse modelo teórico que faz da qualificação o produto de uma socialização profissional integrada a um "mercado interno" de trabalho coloca, como declara o autor, a questão de sua generalização aos setores em que existem "mercados externos de trabalho com regulação frágil para a mãode-obra comum". Devemos considerá-los não abrangidos pela qualificação ou executores de um outro modelo de socialização profissional? Encontra-se, no interior da sociologia do trabalho e das relações profissionais, a mesma questão que a colocada anteriormente pelos economistas que constróem um modelo de dualismo do mercado de trabalho. Os assalariados que não têm acesso a um "mercado fechado" são empregados "independentemente de qualquer processo de socialização profissional em um conjunto mais integrado" (Silvestre, 1978, p. 282) ou participam de um outro "processo de socialização que repousa em outros mecanismos de aprendizagem" (Berger e Piore, 1980)?
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4. Mercados secundários de trabalho e modo alternativo de socialização profissional? A partir do momento em que uma parcela de jovens corre o risco de já não ter acesso, no decorrer de sua vida ativa, a nenhum "mercado fechado de trabalho" - e, portanto, a nenhum status profissional estável - e que uma parcela de trabalhadores idosos corre o risco de se encontrar precocemente excluída, como interpretar a multiplicação das ações de formação que lhes são destinadas em todos os países industrializados? As pesquisas sobre essa questão, assim como o próprio fenômeno, são muito recentes. No entanto, é manifesto que assistimos, desde o fim dos anos 197Q, à emergência de numerosos dispositivos de formação, cada vez mais complexos, destinados ou a favorecer a inserção dos jovens com menor grau de escolaridade, ou a recapacitar trabalhadores demitidos, ou a ajudar desempregados de longa data a se reinserir no mercado de trabalho (Dubar, 2000, 4f ed.). As populações para as quais se destinam esses dispositivos se encontram em situações de exclusão relativa2, não somente profissional mas também escolar e social: sua formação, fora do emprego e também da escola, não pode, em geral, se apoiar na experiência direta do trabalho (exceto sob a forma de "estágios práticos" que o mais das vezes realizam apenas uma inserção truncada nos grupos de trabalho) e dificilmente pode se estruturar em torno de aprendizados cognitivos formalizados em cursos coerentes (exceto em certas experiências "pesadas" de tipo "remedíação cognitiva"). Sua socialização profissional se mostra, portanto, consideravelmente problemática, tanto do ponto de vista "estrutural" de sua inserção no emprego quanto do ponto de vista "biográfico" de sua construção de uma competência reconhecida. 2. Sobre essa noção, c/, a contribuição de F. Dubet para a obra coletiva coordenada por S. Paugam (1996), Uexclusion, état dês savoírs [A exclusão, estado dos saberes], Paris, La Découverte.
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As pesquisas recentes permitem responder à questão inicial - que formas alternativas de socialização permitem uma inserção no "mercado secundário de emprego" que não seja marcada pela instabilidade permanente e por seu ciclo trabalhos precários/períodos de desemprego/estágios de formação? Não se podem negar os esforços empreendidos pela maioria dos Estados para tentar construir dispositivos múltiplos destinados a alcançar tal objetivo. As formas institucionais de estruturação dessa "transição profissional" (Rose, 1984) variam segundo os países e os públicos implicados, mas por toda parte elas manifestam uma acentuação do papel dos organismos de gestão do emprego na assunção dos "excluídos" (na Franca é, notadamente, o caso da ANPE). Em uma pesquisa coletiva realizada com jovens desempregados de um dispositivo de inserção social e profissional (Dubar et alii, 1987), são analisadas as representações que esses jovens têm do trabalho, do emprego e da formação. A maioria deles parece excluída de forma duradoura do acesso a toda forma de mercado fechado de trabalho e se refere a formas de emprego ("bicos") e de formação ("diplomas de pouca importância") muito distantes das que regem a evolução dos mercados internos de trabalho nas grandes empresas. Entretanto suas representações não são homogêneas e sua análise não permite validar a hipótese de um dualismo nítido (cf. terceira parte). A pesquisa mencionada concluía pela hipótese da emergência de um novo modo de socialização, que chamamos de "pós-escolar". O material coletado permitia a um só tempo desvelar elementos de constituição de um novo aparelho de formação (estágios alternados, procedimentos de atendimento, informação, orientação, estágios em empresas...) e a multiplicação de novas trajetórias combinando períodos de desemprego, de empregos precários e de estágios de formação de diversos tipos (inserção, qualificação, adaptação). Se havia necessidade de prudência
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na interpretação desse novo processo, é porque ele ainda não estava institucionalizado na França. Ainda hoje não há tal institucionalização, mas esse processo se estendeu a uma parcela crescente da juventude francesa (Charlot e Glasman, ed., 1998). O modelo do "mercado secundário" ainda não remete a uma instância claramente definida de estruturação: a rede localizada dos "atores" institucionais (organismos de formação, serviços públicos, pequenas empresas "dominadas", municipalidades...) ainda não pode ser considerada um suporte coerente do novo modo de socialização em gestação. De fato, isso suporia quedos diferentes momentos do processo (formação geral, formação profissional, formação prática) pudessem ser coordenados de maneira eficaz em torno de uma instância que assegurasse a regulação do conjunto. Claramente, esse não é o caso, ainda que tendências de estruturação se desenvolvam por toda parte. Se essa hipótese fosse confirmada no futuro, assístirse-ia a uma transformação importante da socialização profissional, que iria de par com uma dualização crescente do mercado de trabalho. Ao lado da intensificação de um modo "integrado" de socialização, construído em torno da grande empresa de setores ou de "profissões", constituir-se-ia um modo "alternativo" de socialização, centrado na trama das PME dominadas e no aparelho de Estado amplamente descentralizado de abordagem social do desemprego. Os dois espaços sociais correspondentes a esses dois modos de socialização seriam profundamente diferentes, até mesmo inversos: as relações trabalho/fora do trabalho, estabilidade/ progressão, reconhecimento/não-reconhecímento não poderiam ser as mesmas que regem os "mercados fechados". Que formas elas assumiriam então? As que caracterizam os "mercados abertos" mais concorrenciais e mais flexíveis (Piore e Sabei, 1984)? Novas formas de mercados fechados com regulação conjunta mais individualizada (Reynaud, 1989)? E uma questão essencial das políticas econômicas e sociais desse fim de milênio.
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5. Mobilidades profissionais e mercados de trabalho: uma pesquisa empírica Se há correspondências entre as características de emprego dos indivíduos e os modos de funcionamento dos mercados de trabalho no qual eles se encontram, como apreendê-las empiricamente? Como relacionar "segmentos" típicos do mercado de emprego a "formas" significativas de mobilidades? Uma pesquisa norueguesa foi escolhida como exemplo das complexidades metodológicas e das contribuições sociológicas desse tipo de abordagem. Ela repousa em um objetivo essencial: evidenciar as relações existentes entre perfis de assalariados e modos de gestão do emprego pelas empresas. Tenta, portanto, vincular empiricamente as duas significações do conceito de socialização profissional que constantemente tentamos distinguir e articular: - a estruturação das atividades pelos empregadores; - as trajetórias e as estratégias de emprego dos indivíduos. A. L. Stinchcombe (1979): tipos de mobilidade e segmentos do mercado de trabalho na Noruega3 A pesquisa consiste em uma análise secundária de dados estatísticos referentes a uma amostra de cerca de 7.000 indivíduos da população ativa, divididos em três grupos de acordo com o ano de nascimento (1921,1931 e 1941) - e interrogados sobre sua mobilidade profissional (mudanças de empregos, de empregadores, de ramos de atividade...) desde que começaram a trabalhar até a data da entrevista (1971). A questão à qual o autor tenta responder é a seguinte: em que a segmentação do mercado de trabalho se3. Agradeço a C. Paradeise e P. Bernard por terem me apresentado essa pesquisa.
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gundo grandes tipos de funcionamento influi na mobilidade profissional e social dos indivíduos? Para responder a essa questão, o autor constrói uma tipologia dos setores de atividade, cruzando principalmente a situação dominante do mercado de produtos (concorrencial/monopolista; parcial ou total) com as características dominantes da gestão dos empregos (recrutamento de diplomados ou não/planos de carreira/segmentação interna...). Ele chega, assim, a sete tipos (cf. encarte 3), do setor primário tradicional (agricultura, pesca, caça...) ao dos serviços burocráticos, que permitem o reagrupamento de nomenclaturas de ramos. Em seguida, analisa os grandes movimentos de mobilidade em função da idade e do ano de nascimento, o que coloca em evidência estruturas permanentes de mobilidade segundo a idade e permite validar a hipótese de uma dupla origem da mobilidade: a busca de um emprego melhor em um mesmo setor ou tipo de atividade, por valorização da experiência (aumento da mobilidade com a idade), e a busca de um emprego melhor por falta de perspectiva no setor (mobilidade intensa já no início da carreira). Chega a um modelo que distingue quatro tipos de movimentos significativos por períodos de cinco anos: - um modelo característico dos "mercados abertos", implicando uma grande mobilidade externa, que aumenta com a idade ("quanto mais idade, menos se permanece no mesmo emprego"); - um modelo característico dos "mercados internos", implicando uma taxa elevada de mobilidade sem mudança de empregador e taxas pequenas de mobilidade externa; - um modelo típico dos "mercados profissionais", implicando taxas elevadas de mudança de empregadores ou de ramos, acompanhadas da permanência no mesmo tipo de atividade; - um modelo marcado pela ausência de qualquer mobilidade significativa. Stinchcombe constrói, em seguida, indicadores que permitem associar cada um dos sete tipos de setores a esses
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grandes modelos de mobilidade. Dessa forma, ele define duas dimensões empiricamente mensuráveis de estruturação dos mercados de trabalho: - a continuidade dos empregos medida pela taxa de assalariados que nunca mudaram de tipo de trabalho (categoria) durante os cinco anos, mudando de empregador mas permanecendo no mesmo ramo: uma taxa elevada (+ 42%) é indício de uma grande estruturação interna do setor; - o fechamento do mercado de trabalho medido pela taxa de assalariados que permanecem no mesmo ramo mudando de empregador: uma taxa de mais de 30% é indício de um mercado "relativamente fechado". O cruzamento dessas duas dimensões leva a um quadro tetracórico no interior do qual cada tipo de setor é caracterizado ao mesmo tempo por um modo de estruturação do mercado de trabalho (relativamente aberto ou fechado) e por um tipo de mobilidade de emprego (continuidade ou descon tinuidade): - os mercados relativamente fechados com grande continuidade de ocupações caracterizam os "serviços profissionais" (ex.: educação, publicidade, saúde...), assim como as "pequenas empresas com trabalhadores qualificados" (ex.: área mecânica...); — os mercados predominantemente fechados com grande descontínuidade de ocupações caracterizam os "serviços burocráticos" (ex.: exército, polícia...); - os mercados predominantemente abertos com grande continuidade de ocupação caracterizam as grandes empresas dos setores fortemente capitalistas; - os mercados predominantemente abertos com grande descontínuidade de ocupações caracterizam os setores capitalistas clássicos (bens de consumo...), o pequeno comércio e serviço, e o setor primário tradicional. O quadro 8 resume as relações entre os quatro tipos de mobilidade correspondentes a esses quatro tipos de mercado de trabalho e as medidas estatísticas resultantes da pesquisa.
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Quadro 8 Combinação dos dois indicadores de mercados setoriais segundo Stinchcombe (os números remetem à nomenclatura do encarte 3) Fechamento do Mercado de Trabalho (+ 30% no mesmo setor)
Continuidade de tipo de emprego
+ (42% e mais) na mesma categoria
6. "l Mercados profissionais
- (menos de 42%)
/. Mercados profissionais
(-30%)
4. Mercados internos
5. f Mercados abertos
ENCARTE 3 Classificação dos setores em sete tipos segundo Stinchcombe (1979) 1. Setor primário "tradicional" -> exemplo: pesca/agricultura: - propriedade familiar, pequenas empresas, investimentos baixos; - setor primário "pequeno-burguês": a. recrutamento entre as famílias que já estão no ramo; b. declínio do emprego. 2. Setor "capitalista" clássico (concorrencial) —> exemplo: têxtil: - pequenas firmas em competição no mercado de produtos (MdP)/força de trabalho pouco qualificada/grande proporção de grupos desfavorecidos/salários baixos; v - indústrias de bens de consumo cuja competitividade no MdP é assegurada graças ao emprego de trabalhadores desfavorecidos. 3. Setor competitivo com mercados locais e trabalhadores qualificados —> exemplo: obras públicas/metalurgia/produção gráfica; - monopólio parcial no MdP combinado com uma mão-deobra qualificada (e organizada); - organização de ofício (Crafi) no mercado de trabalho (MdT). 4. Setor capitalista com mercado amplo, trabalhadores qualificados e organização burocrática —> exemplo: químico/correio e telecomunicações:
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A SOCIALIZAÇÃO - monopólio quase total no MdT por razões diversas/salários acima da média; - carreiras estáveis para trabalhadores qualificados e para engenheiros e pesquisadores profissionais: mercado fechado com duas linhas de carreira para execução/direção; - combinação entre regras de antigüidade e de formação: mercado "interno". 5. Setor de comércio e serviços "pequeno-burgueses" e competitivos —» exemplo: comércio varejista/serviços para particulares: - competitivo nos mercados locais, pequenas unidades (comércio varejista), não-assalariados ou empregados de pequenas e médias empresas; - carreiras limitadas mas educação levada em consideração. 6. Setor dos serviços "profissionais" (profissões liberais e eruditas) —> exemplo: artistas/médicos profissionais liberais: - "profissionais" com status obtidos pela educação e reconhecidos em diversas organizações; - não integrados em organizações burocráticas. 7. Setor dos serviços "burocráticos" —> exemplo: bancos-seguros/escolas/hospitais: - tendência ao monopólio, gestão e não-produção; - estrutura ampla de carreiras burocráticas transversais às organizações.
Em conclusão, Stinchcombe considera ter validado a hipótese segundo a qual "a teoria do status alcançado (attainment status) deve ser uma teoria do que os empregadores julgam estimável e, somente em segundo plano, do que os trabalhadores possuem como características consideradas estimáveis pelos empregadores" (pp. 241-2). As imposições estruturais dos mercados de trabalho, através dos setores, são amplamente preditivas dos percursos de mobilidade dos assalariados atuais. Em todo caso, a pesquisa indica uma correspondência (bastante) considerável entre os tipos de organização dos mercados de trabalho e os tipos de mobilidade dos assalariados. Ela vai ao encontro dos resultados de outras pesquisas, francesas notadamente (Des-
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rosières e Gollac, 1982). Portanto, permite sustentar a hipótese de quatro modos de socialização profissional ligados a quatro tipos de mercado e do trabalho como produtor de quatro configurações identitárias típicas, cujos traços mais pertinentes apresentaremos na última parte.
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TERCEIRA PARTE
A dinâmica das profissionais e sociais
Introdução à terceira parte
Os quatro capítulos finais desta obra1 apresentam quatro configurações identitárias oriundas de um conjunto de pesquisas empíricas, exclusivamente francesas, realizadas entre o início dos anos 1960 e o fim dos anos 1980. Privilegiam os resultados de uma pesquisa coletiva empreendida no interior do LASTREE com outros pesquisadores2, centrada na análise aprofundada de inovações de formação em seis grandes empresas privadas que passavam por rápida transformação (LASTREE, 1989). Esses resultados assentam-se no exame e na análise tipológica de 159 entrevistas de tipo não diretivo (Michelat, 1975), realizadas com amostras aleatórias de assalariados (de OS a técnicos, contramestres e quadros médios) abrangidos por essas "inovações", ou seja, incitados a se formar para mudar suas atitudes no trabalho, ampliar ou modificar suas competências e às vezes mudar de emprego, de serviço ou de estabelecimento. 1. As referências bibliográficas estão listadas no fim do capítulo 12. 2. A pesquisa, intitulada "Production et usage de Ia formation par e dans 1'entreprise" [Produção e uso da formação pela e na empresa] e realizada entre 1986 e 1988, foi financiada pelo PIRTTÉM (CNRS), pela Délégation à Ia Formation Professíonnelk [Delegação para a formação profissional], pelo Commissariat General au Plan [Comissariado geral de projetos], pela região Nord-Pas-deCalaís, e reunia, além dos sociólogos do LASTREE, economistas do trabalho e especialistas em ciências administrativas.
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As entrevistas exploram três áreas essenciais: o "mundo vivido do trabalho", a trajetória socioprofissional e principalmente os movimentos de emprego, e a relação dos assalariados com a formação e, em especial, a maneira como aprenderam o trabalho que realizam ou realizarão. É na interseção desses três campos que se define a identidade profissional desses assalariados, concebida a um só tempo como uma configuração que apresenta certa coerência típica e como uma dinâmica que implica evoluções significativas, em resposta às transformações das empresas. Inicialmente, os resultados dessa pesquisa foram aproximados aos das outras pesquisas precedentes do LASTREE, principalmente aos da realizada nos dois Centros de Produção Nuclear durante os anos 1983-1984 (Dubar e En~ grand, 1986) e aos da realizada com uma amostra de jovens sem diploma que freqüentavam o dispositivo de inserção social e profissional dos dezesseis-dezoito anos (Dubar et alii, 1987). Essas duas pesquisas, embora utilizando muito pouco a noção de identidade, chegavam igualmente à construção de quatro tipos de atitudes ou de "lógicas de ação" que combinam relações com o trabalho e a qualificação, trajetórias de emprego ou de desemprego e orientações concernentes à formação. Confrontando três pesquisas, é possível verificar a relativa convergência de seus principais resultados. Esses resultados vão ao encontro das conclusões de inúmeras outras pesquisas sociológicas, recentes ou mais antigas, centradas nas empresas: por exemplo, as consagradas aos assalariados (operários ou técnicos) da siderurgia (Bonnafos, 1988; Agache, 1993); a realizada pela equipe do GLYSI sobre as relações dos operários com suas máquinas (Benoux et alii, 1984); as realizadas por Saínsaulieu, mais antigas, em inúmeras empresas públicas ou privadas (Sainsaulieu, 1977); mais antigas ainda, as feitas por O. Benoit-Guilbot e M. Maurice com assalariados da EDF* (1965) e por Claude e Michel" Ékctricité de Trance, empresa estatal de energia elétrica. (N. da T.)
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lê Durand com uma amostra de grandes empresas durante os anos 1960 (1971). Vias elas também ratificam análises consagradas a categorias que não têm emprego: os demitidos por razão econômica em acordo de reengenharia (Cherain e Demazière, 1989), desempregados de todos os tipos (Schnapper, 1981), desempregados de longa data (Demazière, 1992), assalariados recapacitados (Lerolle, 1991), aposentados (Guillemard, 1972), jovens em formação profissional inicial (Baudelot, 1988; Haicault, 1969; Abboud, 1968). Em todos os casos - e quaisquer que sejam os métodos utilizados -, as pesquisas revelam diferenciações de atitudes, de opiniões e de horizontes das mesmas categorias confrontadas com mudanças importantes (transformações do trabalho, dos modos de gestão do emprego, das políticas de formação) ou situações novas (inserção profissional, desemprego, aposentadoria...). Os capítulos seguintes retomarão elementos significativos dessas pesquisas, para os interpretar em termos de identidade profissional de acordo com a problemática e as categorias definidas na primeira parte (cf. capítulo 5) e incrementadas pela segunda parte. Apresentam cada configuração identitária como a resultante de uma dupla transação entre, de um lado, o indivíduo e as instituições (principalmente a empresa em que trabalha) e, de outro, entre o indivíduo confrontado com uma mudança e seu passado. Descrevem as identidades como produtos da articulação entre uma identidade (virtual) atribuída pelo outro e uma identidade (virtual) para si construída ao longo da trajetória anterior. Empenham-se, enfim, em elucidar a.relação entre as gerações, comparando, com vinte e cinco anos de distância, as atitudes dos jovens confrontados com o mercado de trabalho.
Capítulo 9
Do modelo do distanciamento ao processo de exclusão: a identidade de executor "estável" ameaçada
1. A identidade para o outro: a exclusão fora do modelo da competência São OS que saíram da escola por fracasso escolar, não motivados pela formação, incapazes de fazer contas, que não têm o hábito do rigor e da precisão, pois a empresa fazia produtos de baixa qualidade, que não sabem controlar o próprio trabalho, e difíceis de mobilizar depois de décadas de taylorismo. Essa frase de um diretor técnico, registrada durante estudo sobre as recentes transformações de uma empresa de mobiliário (Zarifian, 1988, p. 78), resume de modo nptável a identidade para o outro atribuída por certos diretores de empresas a quem é considerado a priori desprovido das "novas competências" necessárias à empresa de amanhã e incapaz de adquiri-las. Em todas as empresas estudadas, alguns dirigentes ou funcionários de alto escalão se disser ram persuadidos de que uma parte de seu pessoal era incapaz de "acompanhar as evoluções em curso" e de tirar proveito dos cursos de formação implementados. As designações de OS, de "baixo nível de qualificação" (BNQ), de "servente" e também às vezes de "executores", até mesmo simplesmente de "operários", constituem, cada vez mais, atos de atribuição que visam a categorizar (rotular) não um c°n~
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junto de postos de trabalho definidos a partir de tarefas prescritas, mas um conjunto de indivíduos considerados desprovidos das capacidades para mudar suas atitudes no trabalho, ter acesso à formação e desenvolver suas competências profissionais. São assalariados que, contratados pela empresa para ocupar postos de trabalho para os quais foram então julgados aptos, são virtualmente considerados incompetentes para exercer, na empresa de amanhã, qualquer função que seja. Essa "identidade social virtual" (cf. capítulo 5), assumindo a forma de um juízo antecipado de incompetência, resulta de uma transformação do modelo de gestão do pessoal, que substitui a cotação dos postos de trabalho pela avaliação do "potencial" dos indivíduos, o que P. Zarifian denomina "modelo da competência" (1988, pp. 77 ss.). E, se esses assalariados são considerados implicitamente "sem potencial", em geral é porque não manifestaram os sinais de uma mobilização mínima para a empresa, de uma "boa vontade" de participação nas iniciativas estimuladas pela direção ou pelo alto escalão (círculos de controle de qualidade, equipes de melhoria, briefings etc.), de uma "conversão" mínima às novas normas freqüentemente informais de trabalho ou relacionamento. A isso às vezes se acrescenta a existência de estigmas (alcoolismo, absentismo, patoá...) que reforçam as rotulagens constitutivas dessa identidade virtual de incompetente, ou seja, de inapto para produzir os sinais de uma vontade de adquirir as competências futuras. 2. A identidade "biográfica" para si: saberes práticos e estabilidade de emprego Entre os sinais cada vez mais privilegiados pelas empresas "em transformação", a participação voluntária em cursos de formação diversos comportando seqüências de "nivelamento", "recuperação" ou "sensibilização" é cada vez mais valorizada. Mas a primeira das características comuns
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a todos os assalariados, que resulta dessa lógica, em todas as empresas estudadas, é nunca ter pedido, por iniciativa própria, para seguir um curso de formação desde sua entrada na empresa, e não poder conceber que uma formação que assuma, integralmente ou em parte, uma forma escolar possa lhes ser realmente destinada, ou até mesmo benéfica. É porque sua identidade de trabalhador ou trabalhadora, a identidade para si, se forjou na aprendizagem in loco, na aprendizagem direta do trabalho ("aprende-se olhando e tocando"), na aquisição de saberes práticos na experiência direta das tarefas a realizar. Mesmo entre aqueles que ocupam empregos mais bem classificados - funcionários, contramestres e até técnicos -, o discurso sobre o modo como aprenderam seu trabalho, sua atribuição ou sua função é sempre desvinculado dos conhecimentos escolares, considerados sistematicamente inúteis para exercer o emprego que ocupam. Seu juízo de pertencimento, freqüentemente expresso pelo uso do impessoal anônimo, remete ao grupo daqueles que fazem o mesmo trabalho e aprenderam da mesma maneira, no interior do mesmo espaço restrito, os gestos e as relações de trabalho (LASTREE, 1989, pp. 362-8). Por isso, não podem imaginar se distinguir de seus pares ("os rapazes", "as colegas", "os outros"...) para se engajar sozinhos em uma formação voluntária que não seja imediatamente necessária para o trabalho e que envolva o risco de um fracasso. Aceitam perfeitamente a idéia de uma formação como obrigação interna e coletiva ligada, por exemplo, à introdução de novas máquinas ("formam nos"), mas as formações "inovadoras" não entram nesse contexto. Além disso, na grande maioria dos casos, seu superior ("o chefe") não lhes propôs pessoalmente esses cursos de formação: eles não se excluíram voluntariamente das formações "inovadoras", não se sentem concernidos por elas, não somente por elas não terem nenhuma relação visível com o trabalho deles, mas também por eles não
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poderem esperar nada... e sim temer tudo da parte delas (o fracasso). É aí que encontramos o segundo traço comum a todos os indivíduos referidos nas seis empresas: eles não têm nenhuma esperança de evolução profissional, nenhuma perspectiva profissional a não ser continuar no seu emprego e sobreviver na empresa. Por não terem tido formação profissional inicial (apenas ou muito incompleta ou em uma especialidade sem relação com seu emprego) nem formação contínua, por terem conhecido apenas mobilidades forçadas, por estarem profundamente submetidos a seu cargo ou a sua função e por não estarem inseridos em redes que permitem uma acumulação de saberes técnicos1, eles não podem se projetar em nenhum plano de carreira, interno ou externo à empresa. A única evocação de futuro é a aposentadoria, mesmo que ainda não tenham nem quarenta ,anos: estão persuadidos de que nenhuma recapacitação é possível para eles e que a única chance de permanência no emprego é a busca de uma estabilidade que valorizam de todas as maneiras possíveis. Querem ser reconhecidos em seu cargo, seu emprego, seu trabalho; não podem imaginar que a empresa possa suprimi-lo, pois se identificam com ele e consideram essa eventualidade uma sanção intolerável ("não podem fazer isso comigo"). A estabilidade ligada ao domínio do trabalho, adquirido pela experiência, é aliás um valor essencial para eles: são "sempre os mesmos que vão embora", os que não conseguem fazer direito, os que são instáveis, imaturos. A mudança é uma sanção e não um progresso, pois destrói os saberes práticos acumulados e incorporados graças à experiência que permite o aperfeiçoamento pelo domínio de todos os imprevistos circunscritos à mesma situação "concreta" de trabalho (LASTREE, 1989, pp. 386-7).
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3. A identidade "relacionai" para si: dependência do chefe e trabalho instrumental O espaço potencial de reconhecimento desses trabalhadores se situa, portanto, no interior da situação concreta de trabalho: o cargo, a seção, o escritório, talvez o serviço, nunca a empresa. Esta é uma entidade abstrata que os ultrapassa e suscita incerteza ("desinformados"), desconfiança ("os grandes burocratas") e reações defensivas ("o que nela se trama"). Ela nunca está presente na definição que eles dão de si mesmos. A relação estruturante de sua identidade é a que mantêm com seu superior direto ("o chefe") e é também um ponto comum a todos os indivíduos desse tipo. Essa relação é, inicialmente, uma relação de grande dependência: é o chefe que distribuí o trabalho entre eles, avalia o seu resultado e atribui eventuais gratificações, é em torno dele que se organiza toda a vida de trabalho. Mas tal relação também parece desestabílizada pelas evoluções em curso e pelas inovações analisadas: de uma relação personalizada, às vezes de tipo paternalista, passa-se a uma relação mais anônima, considerada ameaçadora e às vezes estigmatizante. A maioria dos assalariados desse tipo se sentem questionados em seu trabalho, sem poder compreender as razões disso. Por exemplo, pedem-lhes que mudem de cargo, e eles vivem essa incitação como uma sanção desmerecida. Sentem-se atingidos em seu auto-reconhecimento e ameaçados pelas experiências em curso. Estas parecem obscuras, incompreensíveis, inaceitáveis. Acentuam a distância em relação ao "chefe" e provocam divisões internas ao grupo, prejudicando o "bom ambiente". Com freqüência, chegam a provocar um sentimento mais ou menos afirmado de mal-estar, até mesmo de marginalização e às vezes de exclusão quando demissões são evocadas. Esse sentimento é avivado pelo fato de que as "inovações" não são acompanhadas de nenhuma contrapartida financeira. Ora, toda contribuição suplementar para a empresa só tem sentido para eles se for acompanhada de uma retribuição correspondente: "Se o trabalho muda, o salário
1. A conjunção de "mobilidade sofrida" com "ausência de acumulação de saber" conduz os pesquisadores do GLYSI a denominá-los bourlingués (Bernoux et alii, 1984). [Alusão ao verbo bourlingiier, que significa viajar muito e de maneira aventurosa. (N. da T.)]
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deve mudar, se não muda, não se tem nenhuma razão para mudar." Sua retribuição insuficiente, aliás, pode ser analisada como a contrapartida de uma contribuição insuficiente, ao menos assim considerada por seus chefes (BenoitGuilbot, 1965). Chegamos, aqui, ao último traço comum àqueles que compartilham essa identidade, o qual denominamos relação instrumental - "economista" no sentido de Touraine (Touraine e Ragazzi, 1961, pp. 37 ss.) - com o trabalho, ou seja, o fato de que todos dizem trabalhar "para ganhar a vida" e se esforçar, antes de tudo, "para fazer o que se deve pelo que se é pago". Essa dimensão de sua identidade privilegia totalmente a transação objetiva (equilíbrio contribuição/retribuição) sobre a transação subjetiva (relação passado/futuro vivida em termos de estabilidade e de reprodução), o elemento espacial (espaço de investimento e de reconhecimento) sobre o elemento temporal (a vida profissional não é vivida em termos de progressão ou de carreira). Por essa razão, a relação trabalho/fora do trabalho está no centro da identidade deles e não pode ser analisada sem levar em conta as relações sociais de sexo no cerne da família e do grupo de trabalho. Constatam-se, de fato, diferenças significativas entre identidades masculinas e femininas, que, no entanto, se referem à mesma lógica geral. O universo familiar e doméstico interfere com muito mais freqüência no universo de trabalho no discurso das mulheres, mas elas também são muito menos reticentes à idéia de formação - mesmo geral - do que os homens. Para os homens - sobretudo para os mais velhos -, as diversas componentes da identidade (estabilidade de emprego/aprendizagem in /oco/dependência em relação ao chefe/relação instrumental com o trabalho) formam uma espécie de "sistema fechado" que integra uma representação muito tradicional da família e da divisão sexual do trabalho (defesa ou saudade da mulher no lar, ausência de divisão das tarefas domésticas, dependência material...). Nesse sentido, não é possível falar, em relação aos homens, de verdadeiro investimento fora do trabalho. En-
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tre as mulheres - sobretudo entre as mais jovens -, os traços identitários parecem menos integrados e a eventualidade de evoluções posteriores se apresenta com mais freqüência, relacionada com seu papel de mãe: "quando as crianças crescerem...", "se meu marido fosse mais presente...", "se eu pudesse encontrar uma solução...", a idéia de mudar de emprego, de seguir um curso de formação, de realizar outro trabalho, não é totalmente rechaçada. Resta um obstáculo freqüentemente invocado pelas mulheres desse primeiro tipo: seu nível escolar baixo demais, associado a uma falta de autoconfiança e a um medo das situações escolares. O ingresso em cursos de formação exige delas mediações particularmente difíceis, como mostra esta frase de uma operária têxtil: "Não tenho cabeça para aprender... porque sei muito bem que não conseguirei... Se querem realmente me ensinar, que me ensinem aqui (na minha máquina)... com uma operária, como sempre fiz" (LASTREE, 1989, p. 236).
4. Uma identidade de classe ou de fora do trabalho? A identidade assim esboçada nessa primeira análise evidencia, tanto para os homens quanto para as mulheres, uma forte dualidade entre_umaldentidade social virtual de excluído e uma identidade social real de assalariadoj^ecz/íor estável, qüèlroca õ uso de sua força de trabalho põFurn salário. Foi uma configuração identitária muito parecida que qualificamos "de cyerárÍQjmdidanizl_na análise da relação com a formação dos assalariados das centrais nucleares (Dubar e Engrand, 1986, p. 45). Ainda que naquele caso o risco de exclusão estivesse praticamente ausente, por existir um estatuto, os traços depreendidos coincidem amplamente com os que caracterizam os assalariados precedentes antes da implantação das "inovações": - baixa implicação na atividade profissional e relação "instrumental" com o trabalho;
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- valorização do "bom ambiente" e das relações imediatas com os pares; - grande aferro à estabilidade de emprego e à experiência do cargo; - pouca ou nenhuma perspectiva profissional (velocidade lenta de carreira); - origem operária e baixo nível escolar; - referência exclusiva à aprendizagem in loco e ausência de qualquer formação voluntária; - relações de 'dependência com o alto escalão e consciência de uma forte barreira entre os grupos. Interpretáramos essa identidade em termos de identidade de classe, visto que o sentimento de pertencimento operário se traduzia, em 1983-1984, para a maioria dos assalariados que compartilhavam tal lógica, nessa Empresa específica, por uma valorização da ação coletiva, mesmo quando acompanhada de críticas quanto a certas práticas e evoluções sindicais (cf. Dubar e Engrand, p. 45). As duas atitudes praticamente já não aparecem no estudo de 19871989 em grandes empresas privadas em transformação. Essa dualidade entre risco de exclusão e aferro à estabilidade "operária" assume a forma de uma verdadeira dilaceração para os siderurgistas ameaçados de demissão e cuja identidade foi longamente analisada por C. Agache (1993, pp. 41, 99 e 145). Aqueles que compartilham essa "identidade antiga" centrada no amor do trabalho bem-feito, na fidelidade à empresa ("nenhuma falta", "nenhum atraso"), na relação afetiva com o trabalho, valorizando a determinação e a seriedade, a mobilização física e a reciprocidade sentimental com o chefe/ficam dilacerados diante das novas políticas da empresa, que contrata jovens bacharéis, valorizando os meros saberes teóricos e difundindo o novo "modelo da competência". Sua identidade fica dilacerada entre o apego aos saberes práticos que os valorizam e o reconhecimento incontornável dos saberes teóricos que os excluem. Eles não podem admitir ser considerados "incompetentes" por não possuírem nem formação profissional nem
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formação escolar prolongada; mas não podem negar que os diplomas são necessários e que os jovens bacharéis têm conhecimentos que eles nunca terão. Mesmo que defendam a idéia de que "os dois são necessários" (trabalhadores manuais e intelectuais), sabem que, ao passo que os jovens bacharéis acabarão por adquirir experiência, eles jamais adquirirão os conhecimentos teóricos. Por essa razão, sua identidade fica cruelmente desarticulada; a conservação das identificações anteriores constitutivas de sua "identidade para si" também é o que pode provocar sua exclusão futura e a confirmação de sua "identidade para o outro": a impossibilidade de qualquer conversão subjetiva reforça o malogro de toda negociação objetiva. Quando são demitidos, sua recolocação é muito difícil e só pode ser feita "à força" (Lerolle, 1991). As duas transações se reforçam, então, negativamente para provocar uma "lógica de exclusão". A correspondência estabelecida, por ocasião do estudo . nas centrais nucleares, entre "executor estável" e "pertencimento operário" deve, entretanto, ser relativizada à luz dos resultados - bem consoantes aos nossos - de uma pesquisa consagrada às identidades sociais dos técnicos (Bonnafos, 1988, pp. 46-7, 56-67 e 95). Uma das identidades técnicas identificadas pelo estudo corresponde estreitamente a essa primeira configuração que articula as seguintes dimensões: - uma representação da empresa, implicando um papel marginal do indivíduo e um papel preponderante do alto escalão; - uma ausência de vontade de evolução social e uma valorização da "sorte" como fator de promoção; - uma representação do sistema social empresarial como "sistema em que cada um conserva seu lugar"; - uma relação com o trabalho tendo o salário como finalidade; - uma forte integração com o grupo imediato de pertencimento e uma grande dependência hierárquica; - a ausência de qualquer grupo de referência e de qualquer projeção de futuro ("técnicos-técnicos").
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Mesmo não se definindo como operários, mas como técnicos, os assalariados em questão são executores estáveis que combinam a ausência de toda estratégia de evolução profissional (transação subjetiva desfavorável) com um baixo nível de reconhecimento pela empresa (transação objetiva desvantajosa). Seu espaço de investimento permanece problemático e já não está conectado com nenhum sistema de ação coletiva. Mesmo que a curto prazo não estejam ameaçados por nenhuma exclusão, nem por isso estão mais inseridos que os precedentes no novo "modelo da competência". 5. Crítica ao "modelo do distanciamento" Essa configuração de executor estável virtualmente ameaçado de exclusão é congruente com o modelo do "distanciamento", de Sainsaulieu, proveniente de pesquisas em empresa nos anos 1960 e 1970? Na apresentação feita por Sainsaulieu, o "distanciamento" está associado à constatação de "outros cenários de investimento social" e à recusa de qualquer engajamento pessoal nas relações coletivas de trabalho. As análises precisas referentes a esse modelo em Uldentité au travail [A identidade no trabalho] (2? ed., 1985) concernem sobretudo aos funcionários mulheres e ao trabalho de escritório, e postulam ao mesmo tempo "um apego muito forte das mulheres ao valor família" e "uma reprodução, no trabalho, das relações familiares". Essas atitudes levam a "uma troca: a estagnação profissional pela preservação das estruturas familiares tradicionais, vendo no chefe um pai, um conselheiro, e não uma autoridade técnica" (id., p. 167). Associado a uma "dependência total em relação ao trabalho" e a uma "incapacidade de se opor aos outros", o distanciamento engendra uma "identidade coiusória generalizada", ou seja, segundo a definição de Laing, a interiorização de um "jogo em que participam várias pessoas que se enganam mutuamente de maneira complementar"
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(D. Laing, 1961, p. 98). Essa identidade seria a de inúmeras "mulheres na fábrica e no escritório" e resultaria de uma "colusão típica com os chefes", permitindo salvaguardar um investimento prioritário na esfera familiar "sem questionar as relações de dominação" (id., p. 341). Esse "jogo duplo", que permite salvaguardar um "eu duplo" (investido realmente na família e aparentemente no trabalho), afinal não faz mais que reproduzir as relações de dominação na família e no trabalho, mascarando-as por meio de "falsas identidades" ("falsos eu", no sentido de Laing). No final de sua análise, Sainsaulieu formula a hipótese de que "as relações femininas de trabalho poderão evoluir para um maior engajamento coletivo a partir do momento em que os processos de promoção forem desbloqueados" (id., p. 168). Ele também se indaga sobre a seguinte questão: "Esse modelo de relações coletivas de escritório com maioria feminina é o mesmo que o dos homens?" , Nossas análises precedentes levam a questionar duplamente a pertinência da noção de distanciamento para apreender as configurações e as dinâmicas identitárias deste primeiro tipo. Primeiramente, o aumento do desemprego e a rarefação dos empregos não foram acompanhados, na França, por uma diminuição das taxas de atividade feminina: não apenas as mulheres não deixaram de trabalhar fora, mas também aceleraram sua penetração em todos os segmentos do mercado de trabalho. A atividade feminina pode permanecer dividida entre os papéis de mãe/esposa e de mulher ativa/profissional; essa divisão não implica a atitude de distanciamento da esfera do trabalho, ela pode, ao contrário, estimular a criação de estratégias de carreiras complexas, abordando as coisas de um modo diverso do cônjuge (C. Nicole-Drancourt, 1988). Em seguida, a adoção progressiva do "modelo da competência", pelas empresas, torna cada vez mais arriscadas a manutenção e a exteriorização de atitudes de distanciamento no trabalho. Estas podem rapidamente constituir sinais desencadeadores de processos de exclusão. Ora, o que nos pareceu determinan-
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te foi o mecanismo de atribuição, pela empresa, de uma identidade virtual de excluído (identidade para o outro) e não o juízo de pertencimento, pelo indivíduo, a um grupo, uma categoria "distanciada". Quando tal projeção é feita pelos indivíduos, ela concerne à aposentadoria e não ao distanciamento. Dentre as condutas típicas de aposentadoria destacadas pela pesquisa de A.-M. Guillemard, a aposentadoria-distanciamento (1972, pp. 35 ss., 123 ss.) corresponde de maneira bastante estreita aos traços identitários aqui identificados (situação passada de trabalho de executor/baixo nível de instrução/baixa intensidade de atividade/baixo nível de remuneração...). No entanto, o distanciamento consecutivo à aposentadoria não é analisado como uma orientação voluntária, mas sim como uma "alteração ligada à passagem do trabalho ao não-trabalho", um processo de "recolhimento no ser biológico" consecutivo a uma "ruptura com o mundo social" (ia., p. 37). Quando os assalariados dizem não esperar nada mais que a aposentadoria, nunca afirmam desejá-la imediatamente; ao contrário, desejam permanecer na empresa até a aposentadoria, que, aliás, muito raramente é associada a projetos "positivos". 6. O processo de exclusão: a articulação impossível das transações A análise acima é confirmada por um estudo com duas amostras de assalariados vítimas de demissões coletivas que colocam em evidência lógicas típicas de reação salarial (Cherain e Demazière, 1989). Os assalariados que compartilham a identidade de executor aferrado à estabilidade e pouco implicado no trabalho são também os que vivem de maneira mais dolorosa o processo de exclusão de que são objeto. Eles vivenciam a demissão como uma sanção, "procurando a origem de sua exclusão em um conjunto de erros que poderiam ter cometido e, ao mesmo tempo, defendendo-se de os ter cometido". Sentem a supressão de seu emprego como
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um abandono pessoal ("eu já não agradava à Empresa") e de maneira nenhuma vinculam essa decisão ao sistema de atitudes que adotavam antes do desencadeamento das demissões. Eles realmente vivem a demissão como uma exclusão e não como um distanciamento. Encontramos esses mesmos sentimentos na experiência vivida do desemprego sintetizada por D. Schnapper sob o termo "desemprego total" e concernente a assalariados que compartilham a identidade aqui descrita (Schnapper, 1981, pp. 55-115). Os sentimentos de humilhação ("já não nos sentimos homens", p. 56), de degradação ("já não precisam de nós", p. 60), de ausência de futuro ("depois, vou me aposentar", p. 61), de perda de virilidade para os homens ("agora minhas mãos parecem com as de uma mulher", p. 64), de perda de afirmação social para as mulheres ("não me afirmar em alguma coisa", p. 58), de tédio generalizado ("não podemos fazer nada, damos de frente com um muro", p. 85) e, enfim, de solidão ou de dessocialização ("tornamo-nos amargos", p. 99) são sintomas da perda do vínculo social constituído pelas relações de trabalho anteriores e pelo status social proporcionado pelo emprego precedente. Compreende-se ainda melhor a significação da estabilidade na identidade social desses assalariados: é o reconhecimento pela empresa (por intermédio do chefe direto) e, mais ainda, pela sociedade da legitimidade de sua existência tal como são (identidade para si), ou seja, tal como foram produzidos por sua socialização inicial e tal como se produziram por meio dela. Essa identidade básica foi definitivamente reconhecida no e pelo acesso a seu emprego, com o qual se identificaram então. Atentar contra o emprego é atingir a integridade de seus ocupantes. Além disso, é possível se questionar sobre os vínculos implicitamente estabelecidos entre a identidade de executor estável, associada ao estereótipo do "emprego vitalício", e o processo de exclusão iniciado principalmente pelas grandes empresas privadas em modernização, associadas às idéias de inovações, de mudança e de mobilidade. O que
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importa no desencadeamento do processo de exclusão é, ao que parece, menos a posição ocupada pelo assalariado ou sua antigüidade no cargo do que a ruptura da dupla transação característica de sua identidade (cf. capítulo 5). De um lado, devido às transformações nos modos de gestão, o reconhecimento de sua competência é questionado: a transação objetiva é rompida. De outro, devido às modificações do mercado interno de trabalho e à entrada de novos atores na situação de trabalho (jovens diplomados...), os critérios de reconhecimento de si desestabilizam-se e um processo de autodesvalorização se instaura: a transação subjetiva se desestrutura. Segue-se então um círculo vicioso, "produto 'da relação dialética entre as ações dos superiores e dos concorrentes e as reações do agente ameaçado"; como no esquema da predição criadora, "o processo de exclusão engendra, por sua dinâmica própria, os erros e os reveses que lhe servem de motivos" (Boltanski, 1982, p. 436). Esse processo pode concernir tanto aos executivos quanto ao pessoal de execução ou aos contramestres; ele tem tanto mais possibilidade de se desencadear e de se realizar quanto "o indivíduo tende a superestimar o valor que lhe é atribuído no mercado interno de trabalho" e quanto "o papel de que extrai sua identidade se apresenta sob forma mais sincrética e não resiste ao questionamento" (idem). Pode-se chegar, assim, a somatizações ou formas de paranóia (Lemert, 1962) ligadas à desestruturação brutal de identidades vividas como estáveis no interior das grandes organizações. 7. Configuração identitária e geração: a gênese biográfica da identidade ameaçada Na maioria dos estudos citados anteriormente, os indivíduos deste tipo pertenciam a várias gerações sucessivas. No entanto, em estudo mais recente (LASTREE, 1989), a maioria dos assalariados abarcados por esta identidade já
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tinham certa idade e eram antigos na empresa: tendo a maioria entrado nos anos 1960 e 1970, apenas recentemente se confrontaram com a presença de jovens diplomados em empregos próximos, se não similares, aos seus. Seria possível, então, associar a gênese dessa identidade a um modo de entrada no trabalho e de aprendizagem de uma (ou várias) geração (ões) anterior(es) à crise do emprego? Em seu estudo com jovens operários do Sena, com idades entre dezoito e vinte e oito anos, N. de MaupeouAbboud também chegou a quatro categorias de assalariados que compartilham horizontes profissionais muito diferentes. Entre elas, um conjunto reúne o que a autora denomina "verdadeiros OS", que possuem uma bagagem escolar baixa e se situam "distanciados" da vida profissional (N. Abboud, 1968, pp. 65 e 171). Os traços comuns a esses jovens são muito semelhantes aos dos assalariados adultos aterrados à estabilidade e ameaçados (ou vítimas) de exclusão nos estudos precedentes: início precoce no trabalho (com quatorze anos) para ajudar financeiramente a família, trabalho considerado unicamente pelo salário, ausência de qualquer projeto profissional a curto ou longo prazo, privação de qualquer formação profissional, preocupação de permanência no emprego sem apego nem à empresa nem aos sindicatos, prioridade absoluta à categoria do TER e aos bens materiais... Sem evocar o termo "identidade", N. Abboud tornava manifesta uma forte coerência das atitudes, das representações e das condutas, que recusava fazer decorrer mecanicamente das "características da situação objetiva" ou das "concepções genéricas e abstratas em termos de faixa etária". Trata-se, segundo ela, "de uma óptica global sobre o trabalho, a vida profissional e a vida social no interior de um mesmo horizonte profissional". Em um estudo do mesmo tipo com futuros técnicos, no final dos anos.1960, M. Haicault qualificava de "conformes adaptados" os jovens (cerca de 20%) que não tinham nenhuma aspiração a ultrapassar o nível preparado e pareciam "totalmente dependentes do sistema de organização
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e de hierarquia promocional da empresa" (Haicault, 1969, pp. 95 ss.). Encontramos nessas abordagens todas as características essenciais do conceito de identidade social definido no capítulo 5, ou seja, que remete a um só tempo a uma trajetória típica de emprego marcada pela estabilidade e a uma forma de relação social marcada pela dependência. E exatamente essa configuração identitária que encontramos novamente, na situação de ameaça de exclusão, vinte e cinco anos mais tarde, na sociedade francesa. Será que é o mesmo caso, uma geração mais tarde, dos jovens que saem do sistema escolar sem diploma? Eles ainda compartilham essa mesma identidade? Na pesquisa coletiva realizada com os jovens de dezesseis a dezoito anos, não-diplomados, da região do Nord-Pas-de-Calais (C. Dubar et alii, 1987), apenas uma categoria de jovens - entre as quatro também identificadas - compartilhava essa mesma idéia centrada na concepção instrumental do trabalho e na valorização da aprendizagem in loco, o que implica uma extrema dúvida quanto à utilidade da formação escolar e uma dependência passiva nas relações de trabalho (ia., pp. 14652). Esses jovens eram rapazes e moças originários de famílias operárias das quais praticamente nenhum dos membros possuía qualificação; eles haviam abandonado a escola - seja o colégio, seja a escola profissional - sem diplomae sem arrependimento, aos dezesseis anos, com uma forte interiorização do fracasso escolar e uma profunda desvalorização de si próprios. Para eles, toda idéia de exame ou seleção se tornara insuportável. Seu espaço de reconhecimento era limitado ao posto de trabalho descrito unicamente a partir dos efeitos físicos (ruído, cadência, dificuldade...), e • seu tempo biográfico era limitado unicamente ao horizonte do acesso problemático a um emprego precário considerado um meio de ganhar a vida. Três anos depois de deixarem a escola, praticamente todos eles ainda estavam desempregados, depois de terem passado por um ou vários estágios de inserção e, no caso de alguns, de terem tido alguns empre-
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gos de duração limitada. A partir daí, a exclusão era, para esses jovens, a primeira experiência profissional e tendia a se incorporar à identidade deles sob a forma de uma precarízação duradoura da vida profissional2. A dinâmica identitária característica' dessa parcela do salariado aparece com bastante clareza: o risco de exclusão do emprego se encontra a partir de então no centro de uma configuração anteriormente organizada em torno do tripé estabilidade de emprego - trabalho instrumental - dependência hierárquica. É porque a atribuição de uma identidade de OS - e até mesmo de operário - associada ao modelo taylorista foi substituída por uma identidade virtual de incompetente, de inapto para se adaptar às evoluções em curso. Paralelamente, o ato de pertencimento a um status de executor estável, trabalhador manual mas com experiência, que domina saberes práticos e recusa a forma escolar, se desestabilizou com a hipervalorizacão da mudança, com a prioridade dada aos saberes teóricos e com a exortação à formação geral. Por conseguinte, a identidade social "real", proveniente da trajetória ou da geração anterior, já não atrai, e nenhuma outra identidade parece acessível. E nessa brecha que se insinua a ameaça de exclusão para aqueles que estão empregados ou que se instala precocemente o sentimento de exclusão naqueles que saem do sistema escolar ou que estão desempregados. O que acontece quando esse sentimento invade toda a identidade? É suportável uma identidade de excluído definitivo?
2. Ocorre o mesmo com os jovens cujo "mundo socioprofíssional" é organizado em torno do "trabalho protegido". Cf. Demazière, D. e Dubar, C., Analyser lês entretíens biogmphiques, op. cit., pp. 211-70.
Capítulo 10
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Do operário por ofício ao "novo profissional": a identidade bloqueada
1. A identidade para o outro: o modelo do operador polivalente e administrador Um operário que se torne administrador de seu cargo, e não mais um executor, que saiba ajustar sua máquina, calcular uma porcentagem de descarte, compreender a importância da administração dos estoques e dos vencimentos, trabalhar com precisões muito apuradas e estruturas complexas, capaz de levar em consideração a organização da produção, de controlar o produto... Foi assim que o mesmo diretor técnico da empresa de mobiliário definiu o operário ideal, pós-taylorista, totalmente oposto à sua imagem precedente do OS (Zarifian, 1988, p. 79). Em todas as empresas analisadas ao longo da pesquisa sobre as inovações de formação, difunde-se um "modelo da competência" que comporta, menos ou mais, as mesmas componentes (LASTREE, 1989, p. 445): - o âmbito de definição e de estruturação dessa competência já não é o "ofício" (no antigo sentido de corporação e de especialidade), mas a empresa e sua atividade básica (às vezes denominada, em um sentido novo, "ofício" da empresa); - o objetivo dessa competência é o domínio de um cargo concebido freqüentemente em termos de função que implica formas diversas de polivalência, indo desde a capacidade de administrar diversos postos até a ampliação das tareías
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associadas a uma mesma função (exemplo típico: supervisão ativa + manutenção elementar + autocontrole + levantamento informático associado); - uma exigência cada vez mais englobada por essa competência é a compreensão de conjunto dos procedimentos, ou seja, um domínio intelectual mínimo dos processos utilizados e de seus encadeamentos. Já não se trata apenas de seguir procedimentos, mas de compreender para que servem para poder enfrentar os imprevistos (panes, incidentes...) e aperfeiçoar constantemente esses procedimentos; - uma dimensão essencial dessa competência concerne à capacidade administrativa dos assalariados definidos como tal: ".preocupação com a demonstração de resultado", aperfeiçoamento da qualidade, administração dos estoques e dos vencimentos, respeito dos prazos... Esse modelo ideal gera representações do operário de amanhã, que, aliás, na maioria dos casos, já não é designado como um operário: operador, colaborador, polivalente, às vezes até técnico. Tais representações confrontadas com os assalariados existentes atualmente servem para construir identidades virtuais que constituem atribuições antecipadas e mais ou menos coletivas. Cada vez mais, é no confronto com essas identidades virtuais que os assalariados visados devem confirmar ou não suas identidades "reais". 2. A identidade "biográfica" para si: diplomas técnicos e carreiras A maioria dos assalariados abrangidos por essa oferta identitária possui diplomas do ensino técnico (CAP, BEP, bacs técnicos, BTS-DUT...) e ocupa, em sua maior parte, empregos de execução, por vezes muito repetitivos (montadores, operários de fabricação, operadoras de sistema informático, supervisores ou coordenadores de processos automatizados...) mas às vezes mais autônomos (ajustadores,
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operários de manutenção, funcionários administrativos...). O ponto comum entre eles é se definir a partir de um ofício ligado à sua formação inicial e se projetar em uma carreira ligada a essa especialidade e que implica uma progressão regular combinando, de maneira diversa, a antigüidade e o aperfeiçoamento técnico nessa especialidade1. Para alguns, a maioria, seu emprego atual não corresponde à especialidade adquirida e é vivido como uma desclassificação temporária durante a espera de um cargo realmente "qualificado": vivem dolorosamente sua situação de trabalho considerada rotineira, monótona, simplista, desqualificada. Para outros, seu cargo atual é o termo de um percurso profissional ligado à sua especialidade mas cuja definição mudou e no qual, portanto, eles já não se sentem à vontade. Assim, todos se dizem bloqueados em sua situação profissional e inquietos com seu futuro: suas perspectivas anteriores são questionadas pelas novas formas de organização do trabalho e de gestão do emprego, e eles não vêem nenhuma perspectiva de futuro nas formas de polívalênda que lhes são propostas. Aqueles que se engajaram nelas se declaram tão bloqueados quanto os outros e tão incapazes quanto eles de saber "o que lhes acontecerá" (LASTREE, 1989, pp. 389-90). A relação desses trabalhadores com a formação elucida tal sentimento de bloqueio fortemente incorporado à sua identidade. Todos se dizem favoráveis "a" formação e a maioria seguiu cursos de formação, contínua depois que ingressou no trabalho. Mas de que formação se trata? Trata-se quase exclusivamente de cursos de aperfeiçoamento técnico organizados dentro da empresa e concernentes à especialidade deles. Sua referência principal é o sistema de ensino técnico tal como o freqüentaram em sua formação 1. Esse aspecto estruturante do "ofício básico" adicionado à importância da experiência e do aperfeiçoamento leva os pesquisadores do GLYS1 a denominá-los - como em alguns setores industriais - "profissionais" (Bernoux et alii, 1984).
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inicial, e sua concepção básica vincula intimamente a formação à promoção. Por isso, não vêem a utilidade das "formações inovadoras" que são propostas pela empresa e que privilegiam, sob formas diversas, a formação geral. Pelas mesmas razões, resistem profundamente à idéia de cursos fora do horário de trabalho, ainda mais porque, segundo eles, não estão associados a nenhuma perspectiva de futuro. Dessa forma, encontram-se diante de um duplo bloqueio: o representado por uma formação geral não explicitamente ligada a saberes técnicos especializados que eles consideram os únicos úteis para seu "ofício"; e o simbolizado pela incitação ao voluntariado e ao investimento pessoal em formações empresariais não ligadas a planos de progressão profissional. Por isso, mantêm uma relação muito ambivalente com as novas políticas empresariais: elas lhes parecem em total ruptura com o sistema de valores e de crenças que presidira à construção - freqüentemente frágil de sua identidade para si, com base em sua formação inicial. As regras do jogo mudaram, mas eles não podem abandonar aquelas às quais haviam se identificado, ainda mais porque as novas regras lhes parecem obscuras, arriscadas e até mesmo ameaçadoras (LASTREE, 1989, pp. 299-308). Essa ameaça lhes parece manifesta quando são defrontados com a competição de jovens contratados munidos de diplomas mais elevados e que já não compartilham sua identidade de ofício. Sua preocupação essencial é, então, se fortalecer em sua posição e em seu emprego e evitar toda estigmatização por parte de seus responsáveis. Adotam, pois, uma atitude de participação dependente e expectadora: seguem um curso de formação sem levar muita fé nele e multiplicam os sinais de boa vontade. Encontramse, de certa forma, desdobrados: ao continuar acreditando em uma progressão em sua especialidade, defendendo, em seu íntimo, uma identidade de ofício, representam os atores da nova competência sem ilusão e sem saber o que poderão ganhar com isso depois (LASTREE, 1989, pp. 331-7).
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3. A Identidade "relacionai" para si: reconhecimento suspenso e conflito latente A maioria dos assalariados que se definem como bloqueados evoca relações difíceis com a direção. Já não se sentem reconhecidos em seu trabalho e se queixam de estarem reduzidos a simples papéis de executor. Sua frustração é tão mais intensa quanto houve tal reconhecimento no passado, o que lhes permitiu salvaguardar, quando não consolidar, essa identidade de ofício, mesmo que ela não se traduzisse por um engajamento efetivo em uma carreira desse tipo. No vocabulário tradicional das "relações huma,nas", esses assalariados aliam a consciência de uma grande contribuição à constatação de uma baixa retribuição financeira e sobretudo simbólica (Benoit-Guilbot, 1965). Esse questionamento do reconhecimento coincide com as mudanças de política de gestão da empresa e essencialmente com a difusão das novas normas de comportamento no trabalho. A incitação ao autocontrole, por exemplo, é vivida por eles como uma desconfiança, ao passo que sempre consideraram o trabalho bem-feito um valor essencial. Do mesmo modo, os discursos e as práticas concernentes à qualidade lhes parecem decorrer da evidência ou do encantamento: o fato de que podem ser suspeitos de não levarem a qualidade em consideração lhes parece constituir um atentado contra sua identidade. Quanto à "polivalência", eles desenvolvem proposições ambivalentes: distinguem nitidamente entre as incitações para a ampliação das tarefas em torno de uma especialidade básica, o que eles aprovam, e reorganizações que visam a ensinar - superficialmente - várias especialidades e a organizar o revezamento em funções diferentes, correndo o risco de desembocar em uma espécie de dissolução da qualificação, ou seja, para eles, dessa identidade de ofício que tentam preservar a todo custo. Essas reações são fontes de conflitos potenciais com a "nova hierarquia" que privilegia a mobilização coletiva de equipes polivalentes e administradoras sobre a coordena-
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cão burocrática das intervenções ou das operações de "especialistas". Vê-se bem a raiz identitária do conflito potencial: trata-se de renunciar a uma identidade singular de "especialista" para se tomar membro substituível de uma equipe mobilizada para a empresa, isto é, ao menos em um primeiro momento, um assalariado sem identidade singular, um "homem sem qualidade", definido simplesmente por sua disponibilidade e seu "espírito de equipe". Jogar esse jogo, sem meios claros de chegar a uma nova identidade mais valorizadora, é correr o risco de trocar o certo pelo incerto e de se encontrar totalmente dependente das apreciações do alto escalão. Basta que as relações com o superior hierárquico sejam vividas de modo conflituoso para que o processo culmine em um Bloqueio. O risco se toma, pois, demasiado grande, e a defesa da identidade de ofício constitui a resposta menos angustiante à situação assim construída. 4. Uma articulação problemática entre as duas transações O bloqueio pode ser interpretado de maneira esclarecedora pela relação problemática instaurada entre as duas transações constitutivas da identidade. A transação subjetiva permanece positivamente orientada para a esperança de uma progressão futura: o assalariado permanece persuadido de ser capaz de ocupar um cargo mais qualificado, de recuperar e reatualizar os saberes técnicos adquiridos por ocasião de sua formação atual e contínua, de progredir dentro da empresa se oportunidades aparecerem em um estado futuro da situação. O que ele não pode contemplar é começar novamente do zero, transformar essa postura básica que constitui ao mesmo tempo uma relação com os saberes e um conjunto de saberes incorporados. A transação objetiva é totalmente dependente das políticas de gestão da empresa: estas não podem abstrair a pessoa mesmo que possam se apoiar apenas em poucas informações realmente utilizáveis e esclarecedoras (Sainsaulíeu, 1987, pp. 325 ss.).
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Engajar-se em um processo de exclusão de todos os assalariados que compartilham, sob formas diversas, essa identidade não é socialmente imaginável, mesmo por um longo período. Portanto, é preciso negociar com ela, ou seja, construir formas de transação que levem em consideração essas lógicas subjetivas, fazendo-as evoluir rumo a uma eficácia produtiva maior. A solução para essa articulação eficaz não foi definitivamente encontrada em nenhuma das empresas estudadas. Experiências consistindo em recapacitar maciçamente assalariados de uma especialidade tradicional e apurada para uma "competência" ampla definida a partir das exigências dos novos sistemas automatizados e das novas políticas de gestão se multiplicaram, ao longo do último período, em conjunto com a Éducation nationale* (Doray, 1988; MRT, 1989). A transação objetiva entre os assalariados e a empresa permite salvaguardar o núcleo das identidades de ofício resultante das transações subjetivas reatualizadas pelos cursos de formação implantados. Foi respeitando o "modelo de formação" do ensino técnico francês e adaptando-o às trajetórias ídentitárias dos assalariados envolvidos que essas experiências parecem ter conseguido reconstruir identidades profissionais que permitem articular eficazmente as duas transações. Qual a natureza exata dessa identidade? Não há trabalhos suficientes para poder avaliar os desbloqueies permitidos por essas formações que associam de forma mais ou menos estreita a empresa, a Éducation nationale e os próprios assalariados. Nem por isso a hipótese de que o bloqueio caracteriza atualmente toda uma configuração identitária é colocada em questão. 5. Uma (nova) identidade de ofício? A construção de uma identidade de ofício pressupõe uma forma de transação subjetiva que permita a autoconfirmação regular de sua evolução, concebida como o domí* Ministério da Educação. (N. da T.)
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nio progressivo de uma especialidade sempre mais ou menos vivida como uma arte. Mas também supõe confirmações objetivas por uma comunidade profissional dotada de seus próprios instrumentos de legitimidade. A persistência, por toda a história industrial, do "fenômeno corporativista" (Segrestin, 1985) testemunha a que ponto a identidade de ofício, constitutiva das "comunidades pertinentes de ação coletiva" - principalmente sindical -, revelou-se capaz de resistir e de se reproduzir através de todas as formas de racionalização do trabalho e das empresas. É decerto por representar historicamente uma das formas de articulação mais sólidas entre a identidade para si - através do esquema da aprendizagem implicando a progressão aprendiz-companheiro-mestre (Aries, 1973) e a transmissão de uma cultura de ofício através das gerações2 - e a identidade para o outro - através do modelo das relações profissionais fundadas na regulação conjunta das organizações patronais e sindicais (Reynaud, 1989) - que ela representa uma imbricação estável da transação subjetiva, o que permite um desenvolvimento autoconfirmado da identidade e da transação objetiva que fornece as confirmações reguladas desse desenvolvimento autônomo. A última tentativa de desmantelamento das identidades de ofício coincide com a emergência de uma nova configuração produtiva em um ambiente econômico exacerbado pela concorrência. As novas estratégias das grandes construtoras, utilizando tecnologias microeletrônícas e ópticas cada vez mais sofisticadas, alteram as atividades de manutenção nas quais se encontrava a maioria dos operários por ofício; paralelamente, a interpenetração crescente entre a pesquisa e a produção remete para antes da fabricação as atividades de concepção que necessitam do domínio de saberes teóricos sobre os processos; enfim, a modificação dos 2. Cf. a esse respeito as análises de B. Zarca que colocam essa transmissão no cerne da identidade de grupo e que a interpretam como "trama simbólica do processo de identificação" (1988, p. 267). Cf. também as instigantes análises de Delbos e Joríon (1984).
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mercados reintroduz as atividades comerciais e de serviço no cerne das novas dinâmicas econômicas. Todos esses processos levam a um risco de marginalização das atividades estruturadas com base nos ofícios. Deve-se, por isso, concluir pelo enfraquecimento da "identidade de ofício" como forma de estruturação das atividades e como modo de socialização dos indivíduos? A hipótese mais provável que se depreende dos trabalhos mais recentes é que "longe de minimizar os saberes de ofício, longe de apagar as fronteiras entre os procedimentos de fabricação, a automatização invoca um conhecimento ainda mais profundo e analítico das reações do material de produção" (Zarifian etalii, 1988, p. 43). Aprofunda pesquisa de Jeantet e Tiger, com operários (e sua família) confrontados com as diferentes fases de automatização do setor de fabricação de uma grande empresa de material elétrico, confirma esse resultado, complementando-o. Mesmo que os operadores "reconheçam em seus novos equipamentos uma nova forma de autonomia operacional" e que "o problema resida na relação da ferramenta com a matéria", todos estão de acordo em reconhecer que "já não é o mesmo ofício" e que se tornou "um trabalho mental" cuja aprendizagem consiste antes de tudo erft "fazer compreender uma lógica" (Jeantet e Tiger, 1985, pp. 11-3). A análise realizada por Y. Lucas com antigos profissionais e técnicos da aeronáutica também leva a colocar o domínio de novos saberes profissionais no cerne das novas carreiras técnicas (Lucas, 1989). A pesquisa dirigida por M.-C. Vermelle em uma unidade de fabricação de componentes também conclui pela importância estratégica do acesso aos "saberes de procedimento" tanto para o desempenho econômico do serviço como para a construção de identidades profissionais reconhecidas (Vermelle, 1989). Esses novos saberes profissionais, bases potenciais da reconstituição de carreiras e de identidades "de ofício", se mostram, nessas pesquisas, diferentes dos antigos know-how e saberes de especialidade, mesmo reproduzindo uma es-
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trutura similar. Primeiramente, eles são muito mais intelectualizados e requerem a apropriação de saberes teóricos sobre os procedimentos e não apenas saberes empíricos sobre os processos (Vermelle, Zarifian, Lucas, idem). Em seguida, deslocam a qualificação do "gestual operacional" à "conceituaJizacão executora" (Zarifían, ia., p. 45), implicando um "distanciamento do procedimento", uma "representação mental do processo", "uma imagem mental do sistema técnico". Têm, enfim, por finalidade não uma intervenção manual especializada mas uma atividade de diagnóstico que cada vez mais se exerce antes da fabricação: prevenção das panes, imprevistos, defeitos e, sobretudo, participação na "definição das sinopses de instalação" e na "definição ergonômica dos postos de comando" (Zarifian, ia., p. 47). Trata-se, entretanto, de saberes profissionais de ordem operacional e não de saberes científicos de natureza puramente cognitiva. Como os antigos saberes de ofício, supõem o estabelecimento de uma relação entre conhecimentos técnicos, de natureza teórica, e saberes práticos provenientes da experiência. Mesmo que a relação teoria/prática pareça se inverter em favor da teoria, a articulação permanece fundamental e implica, portanto, a um só tempo, experiência acumulada e formação formalizada e progressiva, em relação com essa experiência. Por essa razão, a emergência de novas identidades de ofício fundadas em uma cultura técnica e traduzidas nos planos de progressão profissional constitui a hipótese mais provável concernente às dinâmicas identitárías em curso nas grandes empresas. Como explicar, então, a persistência dos bloqueios anteriormente identificados? 6. A crise do espaço social de reconhecimento Todas as análises históricas (Sewell, 1980) ou sociológicas (Segrestin, 1985) que permitem compreender melhor, pelas alterações tecnológicas, econômicas ou políticas, a re-
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produção das identidades de ofício insistem na extrema importância do reconhecimento, tanto pelos poderes públicos (Estado) quanto pela população (clientes), do grupo profissional portador da identidade coletiva e considerado um verdadeiro ator. Pois, para que uma identidade de ofício exista e se reproduza, é preciso que um grupo profissional exista na sociedade "não como simples testemunha de uma outra época mas como ator em um sistema de ação concreto que se constrói constantemente" (G. Latreille, 1980, p. 323). Durante muito tempo o sindicalismo exerceu esse papel de ator coletivo, pelo menos em determinados setores e ramos profissionais particularmente estratégicos. Ele ainda pode desempenhar um papel, no futuro, no reconhecimento dessas identidades virtuais. Mas, para que tal reconhecimento seja produtor de identidades, é preciso que exista um espaço social no qual grupos profissionais adquiram sua legitimidade não somente perante os empregadores mas também perante o Estado e os consumidores. É por isso que a empresa não pode constituir um espaço pertinente de estruturação e de reconhecimento de identidades deste tipo. A legitimidade dos poderes profissionais exige uma forma de reconhecimento por parte do Estado que a formação contínua assegura apenas de maneira muito parcial. O reconhecimento da utilidade social desses "novos ofícios" exige formas de visibilidade também entre os usuários. Atualmente tais condições estão longe de ser preenchidas. Por essa razão, os indivíduos prestes a se engajar nesse processo identitário não podem, em geral, encontrar as garantias necessárias para seu possível reconhecimento social. O encerramento na empresa e a polarização nos superiores diretos bloqueiam a construção de espaços sociais de reconhecimento. O enfraquecimento dos sindicatos limita a expressão coletiva das reivindicações identitárias. Desse modo, a referência ao ofício continua sendo, com freqüência, puramente defensiva, amplificando os conflitos potenciais com os atores da modernização da empresa.
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7. A crise das "ideologias defensivas de ofício" As identidades virtuais dos "novos ofícios" centrados no domínio dos saberes de procedimento e no reconhecimento de capacidades de expertise diferem das antigas identidades de ofício em uma característica essencial: elas já não serão o apanágio exclusivo dos homens e já não poderão implicar o que C. Dejours denomina "normopatia viril" consubstanciai, segundo ele, ideologias defensivas de ofício (Dejours, 1988, p. 107). Essas aparecem, com efeito, historicamente ligadas "à construção social das relações de exploração entre os sexos no trabalho", ao mesmo tempo que à "defesa contra o sofrimento no trabalho". São inseparáveis da clivagem que valoriza o trabalho masculino (virilidade, perigo, força, coragem...) e desvaloriza o trabalho feminino (repetição, minúcia, acabamento...), clivagem fundada em uma ideologia naturalista de identificação (D. Kergoat e H. Hirata, 1988). Assim, a construção das antigas identidades de ofício (cf. mineiros, trabalhadores da construção civil, caminhoneiros...) implicava, no mesmo movimento, a construção social da virilidade e, segundo C. Dejours, "o engajamento de toda a sexualidade por trás da bandeira da virilidade social" (ia., p. 92). Por isso, essa "identidade viril normopata" é qualificada pelo autor como falsa identidade, no sentido de que constitui uma espécie de uniforme, de invólucro protetor "em forma de palavras de ordem pouco singularizadas de um indivíduo a outro" (id., p. 112). É o que Laíng designa, em um sentido próximo, com o termo "delusão". Estamos aqui muito próximos do "modelo fusional" desenvolvido por Sainsaulieu a propósito dos OS do sexo masculino, "integrados à massa para suportar as imposições e os enfrentamentos e se engajando em 'identificações, projetivas e recíprocas entre pares'" (1985, p. 334). Fundamentalmente defensivas, essas identificações tornam difícil, se não impossível, a construção de relações de reconhecimento recíproco, sobretudo com o outro sexo, considerado
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"naturalmente inferior" na esfera profissional e "naturalmente dominado" na esfera doméstica. Ora, a entrada maciça das mulheres no mercado de trabalho e seu acesso crescente - ainda que marcado pela desigualdade - à formação profissional inicial e contínua tornam mais difícil, atualmente, a reprodução de tais identidades masculinas, ao menos na geração jovem. Aliás, a construção da identidade masculina nos dias de hoje é considerada problemática por C. Dejours, que a define como "a edificação singularizada de uma relação de irrisão e de subversão para com esses esquemas de conduta e de pensamento" (id., p. 115). Decerto é o mesmo caso da construção das novas identidades de ofício que já não sejam essencialmente defensivas mas ofensivas, principalmente no próprio campo da gestão econômica, e que já não sejam marcadas pela "normopatia viril" mas pelo intercâmbio entre os sexos, mutuamente reconhecidos como parceiros em uma atividade qualificada e evolutiva. Percebemos melhor os obstáculos que provocam hoje o bloqueio das identidades estruturadas em torno de um modelo "profissional" no interior das grandes empresas. Na pesquisa referente às centrais nucleares, definíramos essa configuração identitária pela noção de "negociação" (Dubar e Engrand, 1986, pp. 44 ss.), que também é a utilizada por Sainsaulieu para circunscrever a identidade dos técnicos e dos operários profissionais. Uma dupla reciprocidade sobressaía nitidamente das entrevistas feitas naquela ocasião: de um lado, entre sua contribuição para a empresa e a retribuição que ela lhe dava; de outro, entre a vida no trabalho e a vida fora do trabalho. Parecendo conformistas e relativamente passivos em matéria de formação, tinham uma velocidade modal de carreira, característica das antigas carreiras de operários profissionais. Mas bastava que o ritmo de crescimento das atividades diminuísse para que sua progressão fosse bloqueada. Em sua pesquisa sobre os técnicos, G. de Bonnafos também qualifica aqueles que compartilham a identidade de
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ofício de "técnicos bloqueados": consideram que o sistema empresarial bloqueia o exercício de sua competência ("aniquilamento por parte da empresa", "ruína da carreira"...) e que nenhum plano de progressão está aberto para eles. Colocam-se significativamente "ao lado dos operários", de tão enorme que lhes parece a clivagem em relação aos engenheiros. Consideram-se em situação de perda de poder, apesar de seu papel ativo no trabalho. Nenhum deles menciona o sindicato como ator capaz de desbloquear sua situação (G. de Bonnafos, pp. 85 ss.). Em caso de demissão, alguns "miraculados da recapacitação" (Lerolle, 1991) conseguem "levar adiante, em outro lugar, uma carreira bloqueada na empresa de origem", mas outros não conseguem e são considerados, pelos agentes da ANPE, "casos difíceis", que entram em uma "lógica de protelação" (Demazière, 1992). A identidade bloqueada é, portanto, indissociável da crise dos ofícios, de sua organização, de sua legitimidade e das representações que lhes são associadas na Franca. Assim, a importância e o status do ensino profissional são diretamente colocados em questão por esse fenômeno. 8. Configuração identitária e geração: a transformação do ensino profissional No fim dos anos 1950, os rapazes operários profissionais formados nos centros de aprendizagem e empregados em pequenas e médias empresas dos arredores de Paris compartilhavam os valores do ofício: revolta contra os valores autoritários, reivindicação de igualdade com os operários adultos, aferro ao trabalho bem-feito, ao valor do FAZER (N. Abboud, 1968, pp. 66-7). Mas, depois de alguns anos, uma série de choques abalou sua visão de mundo: "Sentem-se bloqueados" (ia., pp. 199-200). Alguns "escolhem a revolta, a consciência de classe, a oposição aos capitalistas; outros se submetem e se desmotivam" (id., pp. 168-
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70)3. Todos viviam intensamente o conflito entre "o sistema de valores, normas e representações construído ao longo de sua aprendizagem" e "as estruturas e políticas industriais que tornam raras as suas possibilidades de promoção" (id., p. 178). Seu horizonte era qualificado de contraditório, seu sentimento dominante era a frustração, pois "não é possível tentar mudar uma situação que no entanto lhes desagrada". Será que nada mudou? A identidade de ofício reproduz, de uma geração a outra, a mesma crise fundada na mesma contradição entre os valores da aprendizagem e as imposições da organização econômica? De um ponto de vista puramente empírico, as observações acumuladas no fim dos anos 1950 coincidem com as que podemos fazer hoje a respeito dos jovens que saem, com ou sem diploma, do ensino técnico breve e que estão ou não empregados (Baudelot, 1988). Com apenas uma nuança: a maioria dos que saem do colégio profissional começa pela experiência do desemprego, dos estágios de inserção ou de qualificação, dos empregos precários. Aqueles que permanecem fortemente marcados pelo modelo escolar buscam "antes a certificação" (Dubar et alii, 1987, pp. 152-7): sabem que o CAP já não é suficiente para encontrar um emprego estável mas é necessário para enfrentar o mercado "secundário" de trabalho. Como seus antecessores, valorizam o FAZER, mas sentem, de maneira confusa, que não é possível fazer (bem) sem saber (teórico). Eles são bloqueados no acesso a formações mais longas e mais gerais: às vezes almejam voltar à escola4. Para os que não saíram da escola, a perspectiva de obter o baccalauréat se encontra, a partir de agora, potencial3. No estudo de M. Haicault sobre os futuros técnicos, aqueles que ela denomina "aspirantes veleidosos" possuíam traços comuns com esses jovens operários: aspiração a uma promoção hierárquica simples no interior do ofício e desmotívação diante dos bloqueios da empresa (Haicault, 1969, pp. 112 ss.). 4. É o caso de jovens como Sophie, cujo "mundo socioprofissional" está organizado em torno do "emprego qualificado". Cf. Demazière, D. e Dubar, C., Analyser lês entretiens biographiques, op. cit., pp. 141-80.
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mente aberta para os que foram orientados para o ensino profissional. Pela primeira vez em sua história, desde 1987 o sistema escolar francês produz bacharéis profissionais que não foram escolarizados em colégios gerais ou técnicos e que fizeram estágios em empresas. Qual é a identidade desses jovens neoprofissionais que as empresas dizem estar procurando para alimentar seus novos planos de carreira que continuamos a denominar "de ofício"? Será que reproduzirão o percurso identitário de seus antecessores (pais? mães?) egressos dos centros de aprendizagem nos anos 1950-1960 ou dos CET, depois dos LEP, com um CAP ou um BEP nos anos 1970-1980? Se sim, será necessário considerar a identidade de ofício definitivamente bloqueada na sociedade francesa. Se não, será necessário analisar com o maior cuidado os mecanismos dessa produção conjunta (escola/empresa) de uma identidade, estratégica para o êxito econômico da maioria das empresas comuns e para as relações profissionais de uma sociedade moderna. É possível um modelo francês de qualificação operária?
Capítulo 11
Do modelo "carreirista" ao processo de mobilização: a identidade de responsável em promoção interna
1. A identidade para o outro: o modelo da evolução pela e na empresa Acordamos em promover as pessoas com a condição de que elas tenham uma visão mais responsável de seu cargo e que aceitem seguir cursos de formação. Uma vez concluída a formação geral, entram em um processo de progressão: têm muito mais mobilidade, são muito mais capazes de aceitar mudar de carreira, de ofício, até mesmo deslocar-se. Estamos em um processo que se auto-sustenta e prepara o futuro... Tenho certeza de que há necessariamente um ofício do futuro oferecido aos generalistas capazes de se formar em funções apuradas mas também de evoluir rumo a outras funções e, portanto, capazes de fazer a empresa evoluir e de assumir responsabilidades de formadores para com os outros.
Essa citação de um responsável pelos recursos humanos de uma empresa da área mecânica (LASTREE, 1989, pp. 129 ss.) que implantou uma importante inovação de formação (abertura de uma formação geral modular pela empresa, fora do horário de trabalho, para todo seu pessoal) visa precisamente um perfil de assalariado diferente do precedente e aparentemente contrário ao primeiro (cf. capítulo 9). O termo-chave que o designa é evolução, inverso da estabilidade, e seu espaço de desenvolvimento é o da empresa - e não o do ofício -, para cuja evolução esse assa-
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lariado "responsável" contribuí ao mesmo tempo que ela permite a própria evolução profissional dele. A identidade aqui visada (identidade para o outro) é antes de tudo construída pela e na própria empresa, com base em uma reciprocidade dinâmica: em troca de um engajamento pessoal do assalariado em seu trabalho e para o êxito da empresa, esta lhe garante a um só tempo a segurança "subjetiva" do emprego e a progressão provável de sua carreira. A condição de validação e de êxito dessa troca reside no engajamento sem reserva do assalariado na formação implantada pela empresa: oferecendo a prova viva de que essa formação constitui um fa,tor de evolução conjunta da empresa e do assalariado, este poderá, por sua vez, se tornar responsável e formador, alimentando, assim, a dinâmica do sistema. A identidade social virtual desses assalariados em evolução é, portanto, uma identidade de empresa: identificados com ela, com seu êxito e com seu nome, eles não podem, a priori, se definir nem por seu trabalho atual, nem por sua formação inicial, nem por sua trajetória anterior, mas apenas pelo e no projeto empresarial que inclui totalmente a realização potencial dessa identidade. É por intermédio da previsão criadora que vincula o êxito da empresa a seu próprio êxito profissional e social que esses assalariados deverão "construir sua identidade enquanto avançam". À incerteza de tal procedimento responde a integração protetora da instituição-empresa, legitimando, ela mesma, as identidades que produz. Diferentemente do modelo tradicional do "promovido" impregnado do espírito da casa, a progressão interna já não é concebida como uma recompensa por "bons e leais serviços" reservada a alguns eleitos, escolhidos a dedo, mas é apresentada para a maioria como um acompanhamento voluntário do êxito coletivo da empresa. Trata-se, de certa forma, de uma identidade oferecida que deve provar sua virtude mobilizadora à medida que as demandas se desenvolvem. Certamente a competição não está eliminada, e a formação representa o lugar privilegiado em que ela deve se exercer.
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2. A identidade "biográfica" para si: evolução profissional e formação contínua interna e "integrada" O conjunto dos assalariados englobados por essa identidade nas seis empresas da amostra (LASTREE, 1989, pp. 388-9) tem em comum o fato de ter vivido, em seu passado, mobilidades diversas no interior da empresa ou, às vezes, antes de entrar nela. Com menor freqüência de origem operária, e com maior freqüência diplomados (de níveis V, IV ou III), que os precedentes, eles insistem, antes de tudo, em seu percurso interno na empresa e nos conhecimentos daí extraídos quanto a seu funcionamento técnico e social1. Um dos termos-chave de seu discurso sobre sua trajetória "interessar-se" - resume bem a importância desses saberes de organização na estruturação de sua identidade social real. Querer compreender, saber mais, perguntar, documentarse constituem expressões de seu ato de pertencimento à empresa, concebida essencialmente como um sistema sociotécnico originador de saberes específicos, diferentes dos saberes escolares e amplamente valorizados em relação a eles. Não se trata apenas de saberes práticos adquiridos no exercício do trabalho, mas de verdadeiros saberes profissionais que necessitam do estabelecimento de uma relação entre conhecimentos teóricos - adquiridos nas aulas mas também nas conversas e nas práticas de documentação e de autoformação -, saberes práticos, adquiridos in loco e pela experiência, e esses saberes de organização, específicos à empresa e que permitem um estabelecimento de relação eficaz entre os saberes precedentes. Por conseguinte, eles insistem muito na utilização intensiva do sistema de formação interno à empresa e se mostram capazes de apreender alguns de seus elementos de coerência interna, tal como um assalariado que declina as aprendizagens necessárias 1. O vinculo sistemático estabelecido entre o projeto de mobilidade interna e a acumulação de conhecimentos diversos os faz serem designados pelo termo "promocionais" na pesquisa do GLYSI (Bemoux et aíii, 1984).
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para dominar todo o sistema de produção (aprender a função pela formação in loco e mútua; aprender o trabalho pelas visitas dos técnicos e pelas perguntas a eles; aprender o produto graças às formações gerais referentes a "conteúdos" não ligados ao trabalho atual, LASTREE, 1989, p. 329). Essa formação, concebida como "unidade complexa de aprendizagens", contribuí para estruturar uma identidade profissional de empresa e para reforçar um sentimento de pertencimento a uma coletividade estruturada em torno do processo de produção e de sua gestão técnica e social. O acesso a uma linguagem técnica comum constitui, de fato, a aquisição essencial dessas práticas de formação, permitindo "compreender as pessoas com as quais trabalhamos" e compartilhar com elas um conjunto de valores. Graças a tal procedimento, a maioria dos assalariados deste tipo se mostra capaz de exprimir, quando não antecipar, no decorrer das entrevistas, as mudanças em curso na empresa e de poder aproveitar as oportunidades que as acompanham. Alguns já haviam concretizado essas estratégias por promoções internas, outros haviam aprovado planos personalizados de formação ligados a planos de carreira, outros refletiam sobre como poderiam se inscrever no processo em curso. 3. A identidade "relacionai" para si: reconhecimento recíproco e mobilização para o trabalho A maioria dos assalariados que compartilham esta identidade insiste nas boas relações que mantêm com o alto escalão da empresa: "eles recorrem a mim". Quer se trate de problemas técnicos concernentes a panes, imprevistos ou aperfeiçoamentos permanentes, quer de problemas de gestão, por exemplo concernentes ao ânimo do grupo, as atitudes dos responsáveis em relação a eles dão prova de um reconhecimento de suas capacidades e de atitudes de cooperação que favorecem a socialização antecipatória no universo dos contramestres, dos técnicos superiores e até mes-
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mo dos chefes de serviço ou diretores. Por isso, os assalariados em questão já não se definem como executores mas como técnicos, colaboradores, contramestres ou quadros responsáveis. É possível falar, a respeito deles, de uma dimensão administrativa de sua identidade profissional: são os únicos a exprimir preocupações econômicas na execução de seu trabalho - preocupação com a qualidade, com o cliente, com a rentabilidade. Mas, sobretudo, valorizam as tarefas de animação, de contato, de formação mútua: tendo sido reconhecidos e promovidos ou estando subjetivamente certos de sê-lo, tornam-se prosélitos das experiências em curso suscitando reações diversas. Interiorizaram profundamente a lógica da reciprocidade e a restituem sob formas diversas: "o que é bom para a empresa não é ruim para nós, e vice-versa" (LASTREE, 1989, p. 238); "utilizo a política da empresa para evoluir e ao mesmo tempo dou alguma contribuição para ela" (ia., p. 351). Dessa forma, sua identidade de empresa se inscreve em um círculo virtuoso que combina grande contribuição e grande retribuição (Benoít-Guilbot, 1965) e que articula, de maneira dinâmica, as duas transações que a constituem: ao estabelecer uma relação de colaboração recíproca com a instituição à qual se identificam, esses trabalhadores permitem o reconhecimento dos saberes específicos que fundamentam sua esperança de evolução; podem, assim, consolidar essa esperança reestruturando sua trajetória passada como uma antecipação de sua progressão futura. Transação objetiva e transação subjetiva se fortalecem e se confirmam mutuamente na construção de uma identidade tanto reconhecida na empresa quanto socialmente legitimável. 4. A transação bem-sucedida? Coincidência real ou aparente? Ao contrário da identidade precedente, esta aqui parece fazer coincidir identidade para si e identidade para o outro. Parece, pois o sociólogo corre o risco de ser vítima de
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uma ilusão de óptica devido a sua construção de objeto e às condições de realização de seu estudo. De fato, o outro significativo pode ser, nesse caso, aquele por intermédio áe quem advém o processo identitário em questão? Do mesmo modo que nas configurações precedentes o parceiro principal da relação era o "chefe", nessa configuração o parceiro de que depende o reconhecimento vital da identidade não pode ser alguém que a compartilha nem, afortiori, alguém que contribuiu para a construir. É preciso e basta que o sociólogo seja ele próprio identificado como plenamente do lado desse ator para que os entrevistados sistematicamente acentuem, até mesmo construam, os traços conformes a seu modelo identitário... Qual é, pois, o Outro Significativo junto ao qual procurar o ato de atribuição identitário mais estruturante? Pode ser encontrado no interior da empresa, mesmo que a própria definição da identidade para si já inclua a pessoa coletiva? Caso contrário, onde encontrá-lo para que a atribuição possa ter um valor socialmente legítimo? A resposta parece clara: é no cerne do sistema escolar e no reconhecimento dos diplomas que sancionam as formações que tais identidades de empresa podem se legitimar ou não. Ora, efetivamente a maioria das formações - mesmo as de considerável componente geral - abrangidas por essas identidades não são validadas por diplomas nacionais. Os assalariados concernidos continuam sendo, em sua maioria, não-bacharéis, mesmo que tenham seguido cursos de formação geral "de nível bac" nas matérias consideradas estratégicas para a atividade da empresa. É ao comparar essa configuração identitária centrada na empresa com a última, centrada no diploma (cf. capítulo 12), que aparece claramente a falha constitutiva dessa identidade aparentemente harmoniosa. Não somente o reconhecimento identitário fora da empresa permanece muito problemático, mas também o reconhecimento na empresa pelos jovens ingressantes com mais diplomas que eles pode ser conflituoso. Apenas as empresas que recusaram contra-
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tações externas, inclusive para os níveis de responsabilidade dos promovidos - e este não é o caso de nenhuma das seis empresas estudadas -, podem se precaver de tais questionamentos identitários. Nas outras empresas, o reconhecimento dos promovidos não-bacharéis corre o risco constante de ir de encontro à frustração dos jovens bacharéis ingressantes (e a fortíori titulares de um diploma superior). Estes atribuirão aos "promovidos" uma identidade de "carreirista", e não de "responsável". É confrontando essa primeira pesquisa com outras que a ambigüidade, se não a ambivalência, dessa identidade responsável/carreirista aparecerá mais claramente.
5. Uma (nova) identidade de empresa? No interior do Setor que reúne o conjunto das centrais nucleares francesas, a maioria dos quadros eram, no momento de nosso estudo, contramestres promovidos ou agentes de execução. A maioria destes e, principalmente, os que tiveram uma rápida velocidade de carreira possuíam uma identidade de "responsáveis mobilizados na e pela empresa" (Dubar e Engrand, 1986, p. 43), apresentando, em um nível elevado, os traços identitários analisados neste capítulo. Para a maioria deles, essa identificação com a Empresa penetrava quase toda sua vida fora do trabalho e, no caso de alguns deles, alcançava sua identidade de gênero e até mesmo de número (às vezes o nome da empresa servia para identificar o indivíduo para outrem, quase da mesma forma que o sobrenome...). Trata-se de um traço específico a determinadas grandes empresas públicas ou privadas,'ou de uma tendência geral das dinâmicas identitárias em curso? Assistimos a uma espécie de patologia fusional que implica processos de despersonalizacão por imersão em "sistemas de fantasias sociais" (Laing, 1961, pp. 43 ss.) ou, ao contrário, a identificações libertadoras por meio das quais indivíduos têm acesso a reconhecimentos efetivos e a margens
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superiores de autonomia? E a dimensão relacionai dessas identidades de empresa? Quais são a significação e o valor dos reconhecimentos do Outro no interior das relações de poder nas Empresas? Não é um grande risco subtrair a ação comunicativa da ação estratégica e reduzir a identidade social a uma simples posição estatutária? Essas questões são tão mais pertinentes quanto são quase exclusivamente os homens que levam a identificação com a Empresa ao ponto da invasão total de sua vida fora do trabalho. No limite, a transação objetiva é totalmente abolida na transação subjetiva quando o futuro da empresa coincide com o futuro do indivíduo. No final do processo, já não há Outro para reconhecer sua própria identidade. Como escreve Laing: "Experimentam, assim, um sentimento intenso de frustração se já não conseguem encontrar esse outro de que necessitam para estabelecer uma identidade satisfatória" (1961, p. 105). A identificação total com a Empresa, como toda identificação com um grupo, comporta o risco de uma ilusão introjetiva, ou seja, de uma negação fantasística da dualidade irredutível do social, de uma imersão na fantasia da fusão consigo mesmo, de um esquecimento do fato irredutível de que "são os outros que lhe dizem quem você é" (Laing, ia., p. 162). É por acaso que esse processo concerne mais aos homens do que às mulheres? Certamente não se reintroduzirmos na análise não apenas a dominação dos homens sobre as mulheres na esfera do trabalho e do poder mas também os diferentes processos de constituição das identidades sexuais. Não apenas é fazendo recair sobre a esposa o essencial do trabalho de reprodução que os empregados podem Investir totalmente na carreira, mas, também, é se identificando totalmente com a empresa que tentam suportar "o sentimento de vazio e de futilidade que acompanha suas práticas relacionais" (Laing, id., p. 101). Reduzida a uma estratégia ""carreirista", a identidade masculina se mostra, dessa forma, singularmente ilusória.
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6. Uma Identidade competitiva? Em sua pesquisa sobre as identidades sociais dos técnicos, G. de Bonnafos distingue uma identidade de futuro executivo ou futuro engenheiro que possui a maioria dos traços distintivos do "responsável em promoção interna" (1988, pp. 44 ss., 86 ss.). À noção de responsabilidade ela acrescenta a de criação, para explicar seu "mundo vivido do trabalho", valorizando as iniciativas, as resoluções de problemas e os contornos de obstáculos. Estamos próximos do modelo da "obra", caro a H. Arendt (1957), em oposição ao do trabalho mecânico (animal laboram x homofaber): um dos técnicos, aliás, se compara a um ebanista quando contempla seu projeto "depois de ter dado o último toque". Mas o traço mais relevante dessa identidade técnica tendente ao status de engenheiro é a concepção agonística da vida profissional ("para evoluir é preciso brigar"), implicando não somente a competição com os pares ("é preciso se destacar do grupo") mas também a luta contra a organização ("fazer mesmo que não esteja previsto ou autorizado"). Para ser bem-sucedido, é preciso se sentir mais competente, mais dinâmico ("eu adoro trabalhar") e também mais diplomata ("sem relações não se consegue nada") que os outros. A chave da construção dessa identidade de "futuro executivo" reside no acesso a esses saberes de organização que o autor denomina "saberes sociais" e que permitem resistir à especialização e tornar operacionais os saberes teóricos adquiridos em cursos de formação. O domínio desses saberes, mesmo que não sejam reconhecidos por diplomas, representa uma vantagem certa na competição pela -promoção. Esse modelo da competição reforça a aparente coincidência entre a identidade para o outro, interna à empresa, e a identidade para si, forjada por uma socialização antecipatóría ao universo dos funcionários. De fato, a empresa, ao se definir como competitiva, quer atrair e assegurar futuros funcionários também competitivos e que tenham dado pró-
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vás de sua pugnacidade. Ela incita, pois, uma pequena parcela de seus técnicos a competir para ascender a funções de engenheiro mais ou menos reconhecidas posteriormente. Mas, ao fazer isso, provoca efeitos de divisão interna, ao passo que a competitividade da empresa exige cooperação e solidariedade. Portanto, assiste-se, na verdade, a uma dissociação entre a identidade virtual do responsável "animador e fonte de mobilização coletiva" e a identidade "real" do futuro responsável "competidor e agente de rivalidades pessoais". Também aí a identidade do quadro promovido aparece bem mais dilacerada do que em nossa apresentação inicial: não mais executor, embora ainda ligado por relações horizontais a seus antigos pares, ele nunca é plenamente executivo legítimo, por não ser diplomado pelas grandes écoles e por ser incapaz de relações verticais de autoridade com seus antigos semelhantes. 7. Modelo fusional ou negociatório? Na tipologia de Uidentité au travail, o "quadro subalterno autodidata" está ligado, como o OS do sexo masculino, ao modelo fusional, enquanto "o quadro de produção com carreira rápida" está ligado, como os OP, ao modelo da negociação e da "solidariedade democrática" (Sainsaulieu, 1985, pp. 234 e 365). Nenhum desses dois modelos corresponde efetivamente ao processo identitário observado nas grandes empresas privadas em modernização rápida do fim dos anos 1980. A identidade de "responsável promovido" parece se situar bem no meio desses dois modelos elaborados a partir de estudos dos anos 1960. Permanece do "modelo fusional" uma grande identificação com a empresa, cujo exagero, como vimos, podia levar a uma dissolução da identidade por negação da duali•dade. Quanto à situação "clássica" de double bina (Bateson, 1956), isto é, de dupla injunção contraditória entre a exi-
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gência de "colar na base" de que são oriundos e a de aplicar as "regras do topo" que os promoveu, os responsáveis encontrados parecem escapar consideravelmente a ela graças à profunda transformação do papel dos contramestres nas empresas analisadas. A um só tempo técnicos e animadores, os novos contramestres já não são teoricamente sobretudo proferidores de ordens nem administradores de pessoal, mas um recurso técnico e mediadores de formação junto dos grupos de trabalho. Por conseguinte, os responsáveis promovidos se definem, nessas empresas, menos como amortecedores entre a base e o topo do que como administradores-animadores de equipes mais autônomas. Mas nosso método de pesquisa nem sempre nos permitiu confrontar os discursos reunidos com observações diretas: nos casos em que essa confrontação pôde ser efetivada, os resultados foram contrastados (LASTREE, 1989, pp. 32-89). Há uma parcela de "modelo negociatório" nos processos de acesso dos assalariados a seu status de responsável reconhecido. É em troca de um investimento na formação e do domínio de saberes profissionais que a promoção é enfim obtida. E em resposta a uma mobilização efetiva para a empresa que é concedido o reconhecimento da identidade de responsável. E negociando seu plano de formação e de carreira no interior do plano empresarial que os assalariados obtêm os meios para realizar seu trajeto. Trata-se, pois, de uma transação bem-sucedida - e portanto de uma verdadeira negociação - entre o indivíduo e a empresa, e não de uma recompensa por mérito ou de uma seleção por critérios pessoais. Além disso, podemos considerar que uma parte dos promovidos eram "profissionais negociadores" (às vezes até mesmo antigos militantes sindicais) e que seu acesso a funções de técnicos ou de contramestres inscrevese antes em continuidade a sua trajetória anterior do que em ruptura com ela. Ocorre o mesmo em caso de desemprego: os "criadores de empresas" recapacitam sua implicação e seu "gosto pelo trabalho" em um projeto de promoção social já enga-
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jada (Lerolle, 1991) e os raros "desempregados de longa data" fazem as vezes de "voluntários" e se inscrevem em uma lógica de "ativação" (Demazière, 1992). Estaríamos assistindo, por isso, à emergência de um modelo da reciprocidade suscetível de estabilizar essa identidade de "responsável mobilizado", conforme ao modelo administrativo da competência de que ela constitui a pretensa interiorização? Tudo depende do lugar institucional que a "Empresa" ocupará na configuração social futura. Nada está determinado a esse respeito, mesmo que o processo de "reabilitação ideológica da empresa na sociedade francesa" (PIRTTEM, 1987) já tenha produzido efeitos evidentes. A questão do que denomináramos "produção conjunta da qualificação" (Dubar, 1985) permanece, com efeito, colocada mas não resolvida: ainda que um número cada vez maior de empresas esteja engajado em operações conjuntas com a Éducation nationale visando à validação, por diplomas nacionais, das formações amplamente negociadas, o processo está longe de ser generalizado. Por essa razão, o reconhecimento dessas identidades de "responsáveis promovidos" continua frágil. 8. Configuração identitária e geração: a gênese estrutural da identidade promovida Em seu estudo do fim dos anos 1950 sobre os jovens operários parisienses, N. Abboud (1968, pp. 64 ss., 197 ss.) já distinguia nos jovens profissionais diplomados das grandes empresas modernas a presença de um horizonte da mobilidade, sustentado pela esperança de ascensão e pela ambição, para essa parcela de jovens, de "se tornar chefe", de SER alguém (em oposição às categorias do TER e do FAZER dos jovens precedentes). Referindo-se à noção de "carreirização" (J.-R. Treanton, 1961), a autora colocava a questão da generalização dos pla-
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nos de carreira, da mobilidade no interior dessas "grandes empresas modernas", que ela considerava uma condição de realização das aspirações desses jovens à mobilidade. Em seu estudo sobre os futuros técnicos, no fim dos anos 1960, M. Haicault identificava "engenheiros aspirantes" que colocavam sua representação "correta" do mundo profissional a serviço "de uma estratégia de promoção rigorosamente planejada" (Haicault, 1969, p. 128). Ora, vinte e cinco anos depois, é da reativação do mercado interno de trabalho que as empresas estudadas obtêm as condições estruturais para a realização dessas novas formas de promoção e, portanto, para a construção, pela formação, dessas novas identidades de "responsáveis mobilizados". Mais uma vez, verifica-se que mobilidade e formação internas são as componentes estruturais de um sistema de emprego organizado em planos de carreira e concebido como mercado fechado (Paradeise, 1987). Ao contrário das configurações identitárias precedentes, neste caso são as inovações estruturais que tornam possível a realização de potencialidades biográficas que, sem elas, permaneceriam virtuais. Sem a instauração de planos de progressão profissional, a incitação à formação não poderia ter efeitos identitários tangíveis. É no cerne dessa junção entre as práticas pessoais de formações "integradas" e as construções estruturais de planos "internos" de mobilidade que ocorre a articulação entre identidade para si e identidade para o outro. Qual é a situação dos jovens que entram no mercado de trabalho sem diploma ou precariamente diplomados? Uma parte deles aprendeu com sua socialização familiar, escolar ou pós-escolar e/ou com sua primeira confrontação com o mercado externo de trabalho que a formação inicial atualmente não basta para construir uma identidade profissional para si. Esses jovens têm as mais variadas estratégias de emprego e de formação (Dubar et alii, 1987, pp. 157-62), combinando estágios múltiplos, empregos provisórios e formas pessoais de acesso a saberes profissionais. Utilizam intensamente as redes de relações, sobretudo fã-
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miliares (C. Marry, 1983), para ter acesso a empregos, mesmo precários, e a formações, mesmo pouco qualificantes. Concebem a vida profissional como uma evolução permanente durante a qual nunca acabarão de aprender e na qual deverão forjar para si uma identidade aberta a todas as progressões possíveis2. Como definir essa identidade provisória que não pode se organizar em torno de uma especialização profissional apurada sob pena de ser desacreditada antes mesmo de ter sido vivenciada? Como construir uma futura identidade de empresa antes de ter sido contratado? A questão que se coloca é, mais uma vez, a da produção conjunta da qualificação pela aplicação de formas diversas de alternâncias que assegurem a função identitária, tal como o faz, à sua maneira, o Duales System alemão. Além da "qualificação" ou da "competência", é a construção das identidades profissionais e sociais que mobiliza simultaneamente as instituições escolares e produtivas, a produção e a reprodução das gerações de assalariados.
2. É o caso de jovens como Luc, cujo mundo sodoprofissíonal está organizado em torno do "ofício", implicando a criação de urn "negócio próprio". Cf. Demazière, D. e Dubar, C., Analyser lês entreiiens biographiques, op. czf.,'pp. 103-40.
Capítulo 12
Do "modelo afinitário" ao processo de recapacitação: a identidade autônoma e incerta
1. A identidade para o outro: assalariados que constituem um problema Temos problemas com alguns de nossos jovens diplomados. Estão decepcionados com os empregos que ocupam, e a empresa não pode lhes oferecer as carreiras que desejam. Seguem muitos estágios de formação, freqüentemente sem que saibamos, e alguns acabam pedindo demissão para procurar emprego em outro lugar. Na verdade, estão aqui à espera... Essa constatação de um diretor de recursos humanos de uma grande empresa de telefonia sanciona o fracasso relativo, na maioria das empresas analisadas, de uma política de recrutamento de jovens "universitários" sobrediplomados em relação aos empregos nos quais se encontram e consideravelmente deslocados em relação a eles. Esses jovens constituem um problema para as diretorias das empresas por uma dupla razão: de um lado, nenhuma carreira existente parece adaptar-se a eles, e seu futuro na empresa permanece problemático; de outro lado, eles não compartilham, no trabalho, as mesmas atitudes dos assalariados em promoção interna - mais individualistas, menos mobilizados para a empresa, com freqüência são mais críticos e parecem mais instáveis. Está claro que não é essencialmente na empresa que querem construir ou consolidar sua identidade flutuante.
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Alguns assalariados mais velhos e mais antigos também são rotulados de "problemáticos". A empresa inovadora não sabe muito bem como agir em relação a eles: não deseja se privar de seus serviços, reconhece seu potencial, mas teme suas iniciativas individualistas. Às vezes, eles ou elas talharam para si situações consideradas confortáveis, como as denominadas "moquettes" na empresa do setor terciário para designar as secretárias pessoais dos altos executivos, que recusam se inscrever em qualquer operação de mobilidade. Eles têm sua própria rede de relações, internas ou externas à empresa, que escapa à organização formal, assim como os chamados "universitários" na empresa de telefonia. Têm dificuldade em se moldar às normas e aos papéis coletivos, o que às vezes faz com que sejam designados como "individualistas" pelos responsáveis preocupados em realizar as condições de uma "mobilização coletiva" (LASTREE, 1989, pp. 390 ss.). Não é certo que eles tenham efetivamente lugar na empresa do futuro, mesmo que se reconheça seu potencial pessoal e não se pense em excluí-los. Na verdade, eles parecem dificilmente classificáveis, mas esse desvio acaba por se integrar em sua identidade para o outro. Eles não fazem, de fato, nada como os outros e acabamos atribuindo-lhes identidades excepcionais. 2. A identidade biográfica para si: a contramobilidade social A grande maioria dos assalariados abrangidos por este último tipo é de origem não-operária; entretanto a maior parte deles ocupa empregos de execução ademais muito diversificados: operários, funcionários, técnicos. Quase todos os mais jovens são bacharéis ou portadores de um BTS ou de um DUT. Os mais antigos obtiveram um diploma - ou o que consideram equivalente - por formações contínuas voluntárias ou então estão em processo de obtenção (inscri-
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ções para o CNAM, para a preparação do ESEU, da capacite en droit*, de diplomas universitários por unidades capitalizáveis, cursos por correspondência...). Para isso, empenham-se para mobilizar uma parte dos recursos da empresa: inscrevem-se no plano de formação para os estágios que os interessam, às vezes pedem licenças individuais de formação, negociam dias de ausência para seguir cursos. As únicas formações que lhes interessam são externas à empresa e que levam a diplomas reconhecidos: são freqüentemente muito críticos com os "estágios internos", cuja utilidade e cujo caráter integrativo contestam. Para eles, a formação é um direito individual, um investimento pessoal que prolonga, renova ou retifica a formação escolar. As formações que eles seguem ou seguiram são estruturantes de sua identidade: definem-se mais por seu diploma do que por seu trabalho. Têm consciência de que valem mais que o emprego que ocupam e de que são diferentes daquilo que os define oficialmente na empresa. Como no caso de alguns quadros preocupados em se distinguir de seus pares, "tudo é feito, em seu discurso, para negar que o vínculo administrativo, o pertencimento formal a uma categoria possa constituir um traço pertinente de sua identidade social" (Boltanski, 1982, p. 479). De fato, falam muito pouco de sua situação profissional mas bastante de suas formações e de seus projetos, até mesmo de sua atividade exterior, como o montador-eletricista que, tendo obtido um diploma de eletrônica por correspondência ("custou-me três milhões na época"), conserta televisões todos os sábados e nas suas férias (LASTREE, 1989, pp. 380-4). Portanto sua identidade está desdobrada da seguinte forma: a falsa identidade, a identidade oficial, é a que os outros associam à sua situação profissional atual, ao cargo que ocupam, ao grupo ao qual não se sentem "realmente" pertencer. Sua verdadeira identidade - para si - é a que perse* Diploma concedido pelas faculdades de direito aos estudantes (bacha réis ou não) após exame ao final de dois anos de estudo. (N. da T.)
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guem por meio de suas formações ou atividades culturais e cuja busca só não é mais obstinada porque já a encontraram encoberta em sua origem social ou em seu entorno familiar (Montlibert, cf. capítulo 2). Com freqüência, seu grupo de referência também é seu grupo de origem: por isso, eles podem se utilizar dessa identidade virtual para melhor se distanciar das identidades oficiais que lhes podem ser atribuídas - "a autenticidade que os define com exclusividade é o que faz com que escapem à categoria por cima" (Boltanski, idem). Por essa razão, um dos momentos-chave das entrevistas com eles é aquele em que revelam, às vezes nas entrelinhas, freqüentemente por antífrases, sempre depois de ter adquirido confiança no entrevistador, o projeto que acalentam ou que já realizam fora da empresa, essa "outra coisa" às vezes indeterminada para a qual estão "de partida" ou em que às vezes já estão trabalhando, em uma esfera oculta, tão íntima quanto social: "criar uma PME", "trabalhar como cabeleireira por conta própria", "um dia ser professora", "criar meu instituto de pesquisas", "tornar-me jurista" etc. A confidencia não é sistemática, a relação com sua origem social ou seu entorno familiar raramente é explícita, o nível de engajamento no projeto freqüentemente permanece vago, mas toda a entrevista adquire, desse modo, uma coerência nova ao revelar a "lógica afetiva" (Michelat, 1975, p. 232) que está subjacente a ela e que lhe dá sua significação identitária. Esse tipo de revelação que não é sistemático geralmente coexiste com a afirmação de um desejo de evoluir na empresa se esta lhes oferecer oportunidades interessantes. Mas, com muita freqüência, e particularmente para as mulheres, as perspectivas de progressão interna excluem explicitamente o acesso a funções de comando. Elas não querem "se tornar chefe", ter funções de autoridade, ter de "julgar os outros". O que elas desejam é ser "responsáveis por si próprias", não mais trabalhar "na produção", não mais estar submetidas à dependência hierárquica. Sua aspiração identitária é a autonomia (De Terssac, 1992).
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3. A identidade relacionai para si: postura crítica e senso de oportunidade As relações que esses assalariados assim desdobrados mantêm com seus superiores são ambivalentes: reticentes, até mesmo rebeldes, a toda forma de comportamento autoritário, declaram-se, com freqüência, participativos em toda iniciativa que visa a atenuar o caráter rotineiro do trabalho ou os entraves burocráticos da organização. Aprovam o espírito das experiências em curso e em geral participam dos grupos organizados nessa ocasião. ÀS vezes até se apresentam como parceiros ativos de seus responsáveis em suas funções de animador: valorizam o diálogo, as discussões, as iniciativas destinadas a aumentar a autonomia dos executores. Mas também são muito críticos em relação à persistência dos modos de gestão herdados do sistema anterior e que perduram nas experiências em curso. Tornam-se até mesmo abertamente "\indicativos" quando os contramestres lhes parecem incapazes de colocar em prática os projetos participativos ou racionalizadores da empresa. Essa relação pode assumir uma forma conflituosa quando a "competência" de seus chefes é explicitamente questionada. Devem, então, mobilizar redes externas ao serviço, até mesmo recorrer à arbitragem de responsáveis superiores, para evitar entrar em enfrentamentos pessoais ameaçadores. Esses incidentes alimentam o processo de rotulagem de que às vezes são objeto, reforçando, dessa forma, sua dilaceração identitária. É assim que alguns forjam para si, sob pressão de outrem, essa "subcultura desviante" (Becker, 1963) que lhes permite compartilhar com uma rede de semelhantes a mesma postura crítica e os mesmos projetos ou fantasias de sair da empresa. No entanto, suas atitudes relacionais continuam, na maioria dos casos, marcadas pelo individualismo: em geral não manifestam nenhuma consciência de pertencimento a um grupo interno à empresa. Procuram, antes de mais nada, tirar partido das oportunidades, ampliadas pelas inovações,
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para realizar seus objetivos pessoais. Inscrevem-se ativamente nas iniciativas que visam a desenvolver a mobilidade, mas tentam, antes de tudo, utilizá-las em benefício próprio: tirar proveito de formações diplomáticas, ascender a cargos que os deixem com maior autonomia para suas iniciativas externas, escapar às imposições da mobilização coletiva. Desse ponto de vista, inserem-se claramente na categoria dos que recebem uma grande retribuição em troca de uma pequena contribuição, pelo menos assim considerada pelo alto escalão (Benoit-Guilbot, 1965). Desse modo, pervertem os princípios oficiais que presidem à implantação das inovações para os converter em instrumento de realização de seus próprios objetivos (LASTREE, 1989, pp. 416 ss.). 4. Uma articulação Instrumental das duas transações De maneira exatamente oposta à dos assalariados em promoção interna, os indivíduos em busca de autonomia tentam colocar a transação objetiva com a empresa a serviço da transação subjetiva consigo mesmos. Antecipando sua trajetória futura não em função das oportunidades ou dos reconhecimentos oriundos de sua empresa atual mas essencialmente com base em sua história passada e em suas formações anteriores, buscam em suas relações de trabalho e nas transações com seus superiores os meios de consolidar e construir projetos pessoais e alheios, em sua gênese e finalidade, às dinâmicas coletivas da empresa. Praticam um jogo perigoso que só tem chance de dar certo se estiver apoiado em redes afínitárias que os protejam das relações hierárquicas oficiais. É graças às zonas de incerteza resultantes da complexificacão das relações de poder e, às vezes, da fragmentação das formas de transação institucional que eles podem jogar sua própria partida nos espaços desocupados no interior dos jogos institucionais legítimos. Mas também é pelo fato de só muito raramente os projetos coletivos subjacentes a esses jogos legítimos le-
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varem em consideração as aspirações individuais que eles são obrigados a praticar esse contrabando estratégico em um universo solidamente estruturado por "imposições" econômicas externas. A identidade dilacerada desses assalariados revela a ausência quase geral de lugar onde possam ser eficazmente articulados os projetos estratégicos da empresa com os projetos biográficos de seus assalariados (Sainsaulieu, 1987, pp. 359-67). Não apenas a grande maioria das empresas não possui nenhuma informação sistemática sobre as trajetórias de seus assalariados, mas também muito poucas se preocupam em ouvir seus projetos pessoais para elaborar sua gestão de previsão dos "recursos humanos". Podemos, a esse respeito, nos indagar sobre os efeitos do reducionismo economista que geralmente preside às tentativas de elaboração dos planos individuais de carreira (quase exclusivamente dos funcionários) em relação mais ou menos estreita com os projetos empresariais. A redução desses planos a posições sucessivas em grades salariais deixa totalmente de lado a questão das aspirações identitárias e, portanto, das competências efetivas que os assalariados estão dispostos a investir em sua vida profissional. No entanto, todas as mulheres que, no decorrer da pesquisa, foram questionadas sobre as inovações de formação e cuja identidade corresponde ao modelo aqui apresentado insistem na exigência de "desenvolvimento pessoal" e em suas aspirações a um "trabalho interessante e enriquecedor" relacionado com "as possibilidades de sempre aprender mais" e freqüentemente com a transferência desses "ganhos" para a esfera familiar ("ajudar os filhos a terem êxito nos estudos", "abrir seus horizontes", "trocar com eles" etc.). Não se trata da melhoria das condições de trabalho: trata-se de fazer com que o próprio conteúdo das atividades evolua, desenvolvendo principalmente a autonomia interna e as relações externas (contatos com os clientes, com os fornecedores, com os outros prestadores de serviço...). Por esses valores não lhes parecerem realmente mobilizados nas dinâmicas
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internas de sua empresa, essas mulheres reativam aspirações a atividades profissionais externas. Com freqüência, o desdobramento de sua identidade é apenas a contrapartida da dualidade da empresa tal qual a vivenciam: discurso oficial/práticas efetivas; organização formal/ações informais; mudança proclamada/continuidade constatada etc. A partir do momento em que as formas da transação objetiva não são modificadas, nem tampouco as regras informais que a governam (prioridade aos mais conformistas sobre os inovadores, aos homens sobre as mulheres, à adesão sobre a crítica etc.), a única maneira de tentar "se realizar no trabalho" é servir-se delas - aparentando aderir a elas - para fazer progredir a única transação que realmente conta, que é a estabelecida consigo mesmo na realização da identidade para si. Com o risco evidente de um solipsismo soberano se nenhum "outro" exterior validar, sustentar e reconhecer essa transação subjetiva. É grande o risco de constatar que a empresa reconhece apenas os que a servem: querer se servir dela é se arriscar a nunca ser reconhecido por aquilo que queremos ser. 5. Identidade em formação ou Identidade de rede? O espaço privilegiado de reconhecimento desses assalariados definitivamente não pode ser a empresa. Ao se definirem essencialmente por seu diploma ou por sua formação atual ou passada, às vezes também por uma "paixão" externa ao trabalho profissional exercido, eles traem seu desejo de ser, antes de tudo, reconhecidos por seus diplomas, no espaço das posições escolares projetado com freqüência na temporalidade de sua formação contínua. Em seu estudo sobre as identidades profissionais dos operários da siderurgia, C. Agache observa que os "jovens bacharéis", majo-' ritariamente de origem não operária, "definem-se sobretudo não por seu trabalho mas por sua formação" (1993, p. 113). Já não se consideram operários, mas às vezes técnicos
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e com mais freqüência bacharéis. Definem-se por seus saberes e não por suas atividades. Freqüentemente, dizemse "em formação". Como constata Boltanski a propósito dos quadros que freqüentam com assiduidade cursos e estágios de todo tipo, "a intenção de se instruir para além da idade socialmente estipulada para os estudos e de se manter, o maior tempo possível, na situação de aluno ou estudante - ou seja, em uma situação de relativa incerteza quanto ao futuro - tende, sob a pressão das ínjunções objetivas da carreira, a se impor de maneira coletiva a gerações e categorias inteiras de assalariados" (1982, p. 451). Por essa razão, a identidade para si sempre permanece parcialmente virtual: nunca somos nem o que fazemos nem o que somos no presente. Sempre simulamos. Essa construção de uma "situação instável" é denominada por D. Laing "elusão auto-engendrada" (op. cit., p. 63). Ele a define como "uma relação na qual primeiramente finge-se estar longe de seu eu original para em seguida fingir ter renunciado a essa simulação a fim de aparentemente voltar ao ponto de partida" (ia., p. 52). A divisão do eu resulta de uma dissociação voluntária que implica uma dupla simulação: a de um "eu interior" vivido como verdadeiro, autêntico mas indeterminado e não realizado; a de um "eu exterior" vivido como falso, inautêntico mas bem real e atualizado. Essa personalidade, por vezes considerada esquizóide, ou seja, "na qual está ausente o sentimento habitual de unidade da pessoa", deve ser interpretada aqui como uma identidade continuamente desdobrada porque vivida como "em transformação" perpétua. Cada seqüência de formação realizada, cada descoberta cultural intensa, longe de estabilizar uma identidade profissional precisa, engendra um desejo de formação complementar que reativa o desdobramento anterior tanto mais intensamente quanto é acompanhada de uma atividade de trabalho vivida como imposta e regularmente desvalorizada. O processo identitário se autosustenta dessa vontade "de nunca ser aquele por quem todos o tomam" que encontra no ato de formação sua derra-
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deira confirmação. À questão "Então quem é você?", o indivíduo só pode responder "Estou em formação". Dutra interpretação - complementar e não-contraditória - desse desdobramento consiste em explicá-lo por sua posição sempre ambivalente sobre as fronteiras entre o interior e o exterior da empresa e seu forte investimento em redes afínitárias sempre a um só tempo internas e externas. Essas redes lhes permitem monitorar as oportunidades de trabalho suscetíveis de lhes interessar, ao mesmo tempo que adquirem os diplomas ou competências valorizáveis no que C. Sabei chama de mercados abertos de trabalho, atribuindo aos assalariados que neles se colocam uma identidade "de tipo Groucho Marx"], devido a seu jogo com as margens (Sabei, 1991). Perpetuamente em busca de si mesmo, o indivíduo assim investido em suas redes também está - por e em sua formação - em busca de saberes. Esses saberes que estruturam e desestruturam incessantemente sua identidade não são nem saberes praticados oriundos da experiência compartilhada, nem saberes profissionais construídos no ofício praticado, nem saberes de organização vividos em jogos de poder; são puros saberes, teóricos e culturais, isto é, desprovidos de qualquer interesse imediato e que nunca dirão o que fazer mas somente o que saber. Desse modo, essa vontade de saber se auto-engendra no ciclo renovado de seus programas, de seus desmembramentos e de suas progressões indefinidas. Ela traduz, assim, à sua maneira, a busca incessante "daquilo cujo saber só pode aprender que o sabe fazendo agir sua ignorância" (Lacan, 1971, p. 156). 6. Uma identidade social individualista? Em todos os estudos recentes centrados nas identidades sociais em empresas emerge esse tipo de assalariado 1. Que freqüentemente afirma, em seus filmes: "Não ingressaria em um clube que me aceitasse como sócio."
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que freqüentemente é qualificado de individualista e descrito como deslocado tanto em relação às normas coletivas dos grupos profissionais quanto em relação aos jogos de poder integrativos à organização. Na pesquisa realizada com assalariados de centrais nucleares designáramos os indivíduos pertencentes a esse tipo como "ativos inadaptados" que multiplicam as iniciativas de participação e de formação, sem levar em consideração a lógica fortemente estruturante do "sistema de formação-carreíra" (Dubar e Engrand, 1986, p. 46). Não se observava em seu discurso nenhuma consciência de pertencimento a um grupo interno ou externo à empresa, mas notava-se um empenho em utilizar as regras informais da empresa unicamente para consolidar seu projeto individual, vago e incerto na maioria das vezes. O que era identificado como "relação instrumental com a empresa" não podia então estar ligado a nenhuma construção identitária precisa. Mesmo não estando ameaçados de exclusão e tendo renunciado a qualquer idéia de promoção interna, eles não se sentiam pertencer a nenhum grupo profissional em particular e se referiam a projetos exteriores de aparência intensamente mítica ("estabelecer-se por conta própria", "criar sua própria empresa"...). Na pesquisa centrada nas identidades sociais dos técnicos, G. de Bonnafos distingue um conjunto de representações amplamente estruturadas em torno da reivindicação de autonomia e da imagem da empresa como "sistema que dá ao indivíduo uma chance de evoluir" (1988, p. 56). As práticas de formação concebidas como "acumulação de conhecimentos que poderiam ser utilizados em outros lugares" (ia., p. 92) se mostram consideravelmente estruturantes de uma identidade definida como "técnica, colaboradora dos engenheiros". Trata-se menos de uma identidade expressa em termos de pertencimento do que definida em termos de relação personalizada tal como a que pudemos constatar em algumas secretárias qualificadas que se apresentam como "assistentes" ou "colaboradores" pessoais de seu chefe (LASTREE, 1989, p. 360).
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O "modelo afinitário" construído por R. Sainsaulieu sintetiza bem uma parte importante desses traços identitários: "identidade instável e continuamente reconstruída, ela revela um descompasso permanente entre os meios de afirmação de si e as possibilidades de reconhecimento coletivo" (Í985, p. 339). Associada a uma "perda de pertenci mento aos grupos", ao mesmo tempo que a uma "forte implicação nas relações com os chefes e com os colegas", essa identidade que passa por "constrangimentos" e "ansiedades" aparece explicitamente em "crise permanente". Nas pesquisas centradas nas situações exteriores à empresa e ao emprego, aparece também um tipo de identidade com tom intensamente individualista e que vive sua situação não em termos de exclusão mas de chance de "autorealização". Assim, o que D. Schnapper denomina "desemprego invertido" (1981, pp. 116 ss.) corresponde à construção de uma situação na qual os períodos de desemprego são vividos como recuperação de tempo para si, possibilidade de enfim fazer o que dá prazer ("passei um ano devorando livros", p. 118), reatualização de um ritmo de vida estudantil, chance de retomar cursos de cunho acentuadamente cultural ("sociologia, história, psicanálise", p. 125). Esse "mundo vivido" é analisado como um produto do descompasso entre o sistema de valores proveniente da formação inicial (universitária) - "independência, realização de si" - e o universo das normas vivido anteriormente no trabalho (de execução) - "cargos de empregados dependentes e freqüentemente rotineiros" -, descompasso esse que acarreta uma recusa da identidade profissional e uma espécie de volta a uma identidade estudantil. De fato, subjetivamente, esses desempregados (mulheres, na maioria) não "entraram no mercado regular de trabalho" (ia., p. 130). O que o autor designa como "identidade pelo discurso", que substitui a "identidade social habitualmente conferida pela atividade profissional" (id., p. 140), nada mais é senão essa identidade instável em formação, característica dos indivíduos em contramobilidade social que recusaram investir
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em um trabalho considerado desqualificado. As referências à vocação e à criação traduzem tanto a aspiração a "uma outra cultura fundada no autêntico" quanto a rejeição a uma "definição de si forjada a partir do trabalho de execução" O desemprego pode constituir, então, um parêntese no desdobramento, reativando a esperança de escapar a ele de forma duradoura. É o caso de alguns assalariados demitidos qualificados de "verdadeiros recapacitados", que, "decepcionados com sua atividade profissional anterior", encontram um novo equilíbrio em um ofício totalmente diferente (Lerolle, 1991), e de desempregados de longa data "fura-paredes", que se inscrevem em uma lógica de autonomia (Demazière, 1992). O modelo da "aposentadoria-terceira idade" construído por A.-M. Guillemard (1972, pp. 37-8) corresponderia ao remate biográfico dessa identidade. Ele reúne aposentados que se dedicam a "atividades criadoras socialmente reconhecidas" que já haviam sido exercidas, mas de maneira menos intensa, durante a vida de trabalho. Um antigo executivo, que se tornou escritor, utiliza uma expressão significativa para designar essa recuperação de identidade ("em suma, me reencontrei em mim mesmo", p. 38) que ele parece ter perseguido durante toda a vida. É somente graças à aposentadoria, permitindo enfim a liberação do trabalho instrumental ou imposto, que alguns têm acesso a formas mais ou menos reconhecidas e mais ou menos bem-sucedidas de identidade artística, identidade individualista visto que a atividade sobretudo expressiva permanece pouco socializada, o que implica com freqüência reconhecimentos limitados e às vezes frustrações constantes. Do mesmo modo, encontra-se uma minoria de assalariados que vive sua demissão como uma chance de "autorealização em um projeto" (Cheraín e Demazière, 1989), reativando velhos sonhos de infância e projetos profissionais contrariados na adolescência ("eu queria ser professor de educação física, mas, por razões médicas, não foi possível"). Todos insistem no caráter eminentemente pessoal de suas
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iniciativas de emprego e de formação ("fui eu que obtive sozinho minha formação na faculdade") e na sua reação instrumental à empresa em que trabalhavam ("obtive o que tinha para obter em X, inclusive ao sair") e aos dispositivos públicos de acompanhamento das demissões ("aproveito o que pode ser útil para mim, só isso"). Freqüentemente insistem na não-identificação com o antigo emprego, condição necessária para fazer da demissão uma oportunidade de construção de uma nova identidade profissional. Ao contrário dos assalariados que vivem o desemprego ou a aposentadoria em termos de exclusão e que não podem opor resistência eficaz à imposição, por outrem, de uma identidade conforme a esse processo, os indivíduos acima referidos aproveitam o desemprego ou a aposentadoria para reanimar uma identidade para si produzida por um desdobramento e colocada de lado durante todo o período de trabalho. Poderíamos então falar de um reconhecimento identitário mesmo não havendo, na maioria dos casos, a profissionalização dessa atividade, praticada como um lazer? Claramente, não se trata de uma identidade de ofício implicando um espaço profissional estruturado. Trata-se de uma identidade instável, móvel, dilacerada, que corresponde a uma dissociação duradoura entre a identidade para si (herdada de suas origens e projetada em um futuro inapreensível) e a identidade para o outro (atribuída com base na atividade profissional e nos status sociais oficiais). É uma identidade que combina a mobilidade com a ausência (ou a recusa) de sustentação profissional ou organizacional. Constituída em torno da reivindicação de autonomia, ela expõe aqueles que a vivendam aos riscos do "vazio social" (Barel, 1984), da dessocialização ligada ao desdobramento e às vezes até da estigmatização psiquiátrica que acompanha todas as formas ameaçadoras de fechamento em si.
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7. Configuração identitária e geração: o estudante tradicional, o assalariado estudante No caso da geração dos jovens operários parisienses estudados por N. Abboud, há praticamente apenas um tipo de horizonte que pode se aproximar parcialmente da relação com o futuro: é o dos jovens "oficiais" das pequenas empresas tradicionais que, à conquista da "autonomia profissional", procuram se tornar artesãos (1968, pp. 64-5). Definem o trabalho pela aprendizagem e pela formação e vivem sua situação presente apenas de maneira provisória e pela experiência que ela proporciona. Mas constituem uma ínfima minoria entre os jovens operários estudados. Por outro lado, em sua pesquisa sobre os futuros técnicos, M. Haícault identificava um grupo bastante significativo (mais de um terço) de "rebeldes inovadores" com "projetos longínquos à deriva" e não-conformes à orientação inicial, que valorizam muito a auto-realização na profissão; todos estavam na escola técnica (1969, pp. 147 ss.). É também entre os estudantes que se deve procurar a presença de tal identidade na geração do pós-guerra. Essa identidade estudantil se define primeiramente por uma recusa: a da identidade herdada do meio social, manifestação da "tomada de distância em relação à idéia insuportável de uma determinação" pesando nas escolhas de futuro. Em seguida, ela se manifesta pelo apego a uma situação transitória, "pela transfiguração simbólica da necessidade em liberdade", pela vontade de ser apenas um "puro projeto de ser", pela aspiração a um "modelo estudantil" feito de anticonformísmo que mascara com dificuldade uma obediência às normas do meio intelectual e um conjunto de atitudes culturais obrigatórias (Bourdieu e Passeron, 1964, pp. 62 ss.). Se essa identidade era na verdade apenas a dos estudantes de origem burguesa, na época ela impregnou a totalidade do "meio". Ela é típica do "período de estudos" (Verret, 1974) no decorrer do qual, em nome de uma lógica autônoma das aprendizagens, são suspensos os pertencimentos sociais
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anteriores e futuros. Importa, então, não ser nada (de definitivo) para poder ser tudo (o possível): postergar o momento das escolhas implica manter uma identidade em suspenso. O que acontece, na geração seguinte, com essa identidade de espera construída em torno da formação e do período de estudos? A transformação radical das condições da inserção profissional, no sentido de um prolongamento generalizado (Baudelot, 1988), e o fortalecimento do privilégio relativo dos estudantes no acesso ao emprego somado a uma democratização relativa do acesso às diversas formas de ensino superior decerto tendem a fazer o modelo da identidade estudantil evoluir para uma diversificação maior de suas formas dependendo das carreiras e de suas relações com as posições sociais futuras. Há uma taxa crescente de estudantes que ultrapassaram a idade "normal" dos estudos e têm um emprego assalariado. Com freqüência não têm nenhum objetivo preciso na realização de estudos superiores mas investem nela o melhor de si. Sua identidade já não tem muito a ver com a dos estudantes diletantes e filhos de burgueses dos anos 1960, que afetavam uma relação distanciada com os estudos. No entanto, o ponto comum entre eles é a um só tempo recusar sua identidade herdada e querer não visar nenhuma identidade definida: eles estão na incerteza de sua identidade social inteiramente definida para eles mesmos por sua relação com o saber teórico, único vetor aceito de sua identidade presente. Esses verdadeiros estudantes são freqüentemente "falsos assalariados" (Magaud, 1974) que muitas vezes escondem a natureza de seu emprego presente. Enfim, seu desdobramento parece maior e mais duradouro do que no caso dos estudantes típicos da geração precedente. A identidade que recusam é a que herdaram de sua experiência profissional e não somente de sua família de origem. A dissociação entre identidade herdada e identidade visada não comporta somente o risco do que V. de Gaulejac denomina neurose de classe, ela também incluí a prática de um desdobramento permanente da identidade naquela que é mobilizada na esfera do trabalho e naquela
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que é investida - e geralmente reconhecida - na formação ou no universo do tempo livre. Esse desdobramento implica um duplo jogo: simular um investimento mínimo no trabalho para obter em troca as condições para empreender uma formação ou se consagrar a sua paixão; esconder as coerções e as realidades culturais de seu meio de trabalho para obter em troca o reconhecimento no universo da "verdadeira vida"2. Essa forma exacerbada de divisão do si ligada a uma espécie de instalação em uma terra de ninguém situada no cerne da dualidade entre o estratégico e o comunicativo não estaria intimamente ligada ao desenvolvimento de todas as formas "modernas" de mobilidade na incerteza? Ela não constituiria, com a exclusão dos "níveis inferiores" e o bloqueio das identidades de ofício, uma das formas menos espetaculares porém mais maciças da "crise atual das identidades" (Dubar, 2000b)? Bibliografia da terceira parte ABBOUD DE MAPEOU, N. (1968), Lês blousons Meus. Étude sociologique desjeums ouvriers de Ia région parisienne, Paris, Armand Colin. AGACHE, C. (1993), Lês identités professionnelles dam Ia sidérurgie et leur transfonnation, Paris, L'Harmattan. ARENDT, H. (1957), Condition de 1'homme modeme, trad. fr. Flammarion, 1970 (A condição humana, Rio de Janeiro, Forense Universitária, 10? ed., 2003). ARIES, P. (1973), Uenfant ei Ia vie familiale sous VAncien Regime, Paris, Seuil, col. "Points" (História social da criança e da família, Rio de Janeiro, Guanabara, 2? ed., 1981). BAREL, Y. (1984), La société du vide, Paris, Seuil. BATESON, G. et alii (1956), "Toward a Theory of Schízophrenia", Behavioral Science, I, pp. 251-69. BAUDELOT, C. (1988), Lês eleves de LEP: une population diversífiée, Uníversité de Nantes, Departamento de Sociologia, LERSCO, mimeografado. 2. É o caso de jovens como Jean-Paul e Virginie, cujo mundo socioprofíssional se organiza em torno da "função social". Cf. Demazière, D. e Dubar, C., Analyser lês entretiens biographiqiies, op. c/f., pp. 181-210.
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Conclusão
As formas elementares da identidade profissional e social atual
As quatro identidades profissionais típicas precedentes foram reconstruídas a partir de estudos empíricos diversos, amplamente convergentes1. Elas não são deduzidas de nenhuma combinação a priori de variáveis, dimensões ou atributos privilegiados. Ancoram-se na esfera socioprofissional mas não se reduzem a identidades no trabalho. Correspondem a trajetórias sociais diferentes mas não se reduzem a habitus de classe. Mobilizam categorias oficiais, posições em espaços escolares e socioprofissionaís, mas não se resumem a categorias sociais. São intensamente vividas pelos indivíduos implicados e remetem a definições de si tanto quanto a rotulagens por outrem: são formas identitárias no sentido definido no primeiro capítulo da primeira parte. Essas formas identitárias podem ser interpretadas a partir de modos de articulação entre transação objetiva e transação subjetiva, como resultados de compromissos "inter1. Entre os estudos citados, quinze chegam a uma mesma tipologia com quatro tipos (Abboud, 1968; Benoit-Guilbot, 1965; Haicault, 1969; Sainsaulieu, 1977; Dubar e Engrand, 1986; Dubar et alii, 1987; de Bonnafos, 1988; LASTREE, 1989; Agache, 1989; Vermelle, 1989; Cherain e Demazière, 1989; Lerolle, 1991; Demazière, 1992; Agache, 1993; Dubar e Demazière, 1997) e quatro a tipologias com três ou cinco tipos (Guillemard, 1972; Schnapper, 1981; Bernoux et alii, 1984; Baudelot, 1988), próximos dos precedentes já que podem ser ligados ao mesmo "modelo tetracórico" (Dubar, 1990). Cf. bibliografia no fim da terceira parte.
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nos" entre identidade herdada e identidade visada mas também de negociações "externas" entre identidade atribuída por outrem e identidade incorporada por si. Como caracterizar os diversos resultados dessas duas transações? A transação subjetiva pode levar a uma continuidade entre identidade herdada e identidade visada ou a uma ruptura, a uma discrepância, entre a definição de si \ oriunda da trajetória anterior e a projeção de si no futuro. As identidades construídas nos moldes da continuidade implicam um espaço potencialmente unificado de realização, um sistema de emprego no interior do qual os indivíduos mobilizam trajetórias contínuas. Esse espaço pode ser de tipo profissional (seguindo o modelo geral do ofício) ou de tipo organizacional (seguindo o modelo geral da burocracia ou da empresa). No primeiro caso, os indivíduos constróem uma identidade profissional (de ofício) projetando-se em um plano de qualificação, o que implica reconhecimentos de "profissionalidades" estruturantes; no segundo caso, as identidades profissionais (de empresa) são construídas por projeção no espaço de poder hierárquico, implicando reconhecimentos de "responsabilidades", estruturantes da identidade. As identidades construídas nos moldes da ruptura implicam, ao contrário, uma dualidade entre dois espaços e uma impossibilidade de construir para si uma identidade de futuro no interior do espaço produtor da identidade passada. Para encontrar ou recuperar uma identidade, é preciso mudar de espaço. A identidade pró- j jetada pode ser supervalorizada ou desvalorizada em ré- l lação à identidade herdada, ela está em ruptura com esta : , última. A transação objetiva, articulada com a precedente, pode levar a um reconhecimento social ou a um não-reconhecimento. No primeiro caso, há uma instituição que legitima a identidade visada pelo indivíduo: seja a empresa ou a organização profissional que estão na base de seu modelo identitário ou de competência, seja a instituição escolar ou o organismo de formação que estão na base do diploma
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possuído ou dos saberes adquiridos. No segundo caso as pretensões ao reconhecimento não são alcançadas: o futuro da instituição não coincide com o futuro do indivíduo seja ele construído em continuidade a seu passado, seja construído em ruptura com ele. Em termos interacíonistas, o reconhecimento é o produto de interações positivas entre o indivíduo que visa sua identidade "real" e o outro significa- ! tivo que lhe confere sua identidade "virtual"; o não-reconhecimento resulta, ao contrário, de interações conflítuosas, de desacordos entre identidades "virtuais" e "reais". As duas transações2 são relativamente independentes mas necessariamente articuladas. Quando a transação subjetiva se estabelece com base na ruptura, os dois resultados da transação objetiva são possíveis. Ou a ruptura é .acompanhada de urnconflito entre a identidade atrihuída-pelaJnSi_ tituicãojs a identidade Jorjadajgelo indjvíduo^e.alge^cQrifi^ gura um processo de EXCLUSÃOJJUC conduz a_uma.IDENTIDADE AMÈÃçÃDÃ;15u~ã7ffptura é acompanhada de confirmações legítimas, por Outrem, da identidade para si, e aí se configura um processo de CONVERSÃO que conduz a uma IDENTIDADE INCERTA. Os dois tipos extremos (capítulos 9 e 12) correspondem a esses dois modos de articulação. Nos dois casos, a identidade se realiza entre o espaço "interno" do trabalho, do emprego e da empresa e o espaço "externo" do fora do trabalho, do desemprego ou da formação: as trajetórias comportam empregos, formações possíveis e desempregos prováveis. Mas, em um caso, a passagem do trabalho ao fora do trabalho resulta de um conflito e assume a forma de um processo de exclusão; no outro, a passagem é voluntária e acompanhada de formas de confirmação de sua legitimidade pelas instituições (diplomas escolares ou práticas culturais reconhecidas). 2._0 termo "transação" é utilizado aqui no sentido amplo, incluindo a transação com o outro em um S1Stema de ação e a transação consigo mesmo cm um processo biográfico. O emprego de um mesmo termo se justifica pela estrutura comum dos processos relacionai e tóográfico: ela mobiliza uma duauciacte entre o si e o outro e no interior de si mesmo.
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Quando a transação subjetiva repousa na continuidade, os dois resultados da transação objetiva são mais simples de descrever: ou a progressão visada é reconhecida, estimulada, confirmada, e aí se configura um processo de PROMOÇÃO que comporta uma IDENTIDADE DE EMPRESA; ou a progressão visada é invalidada, recusada, infirmada, e aí se configura um processo de BLOQUEIO que comporta uma IDENTIDADE DE OFÍCIO. Nos dois casos, a construção da identidade se realiza em um espaço único que estrutura a natureza das competências e os modos legítimos de reconhecimento: espaço organizacional da empresa ou espaço profissional do ofício. Trata-se das duas principais formas de "mercado fechado de trabalho" correspondentes a dois modos significativos de socialização profissional (cf. segunda parte). Os dois tipos centrais (capítulos 10 e 11) correspondem estreitamente a esses dois novos modos de articulação. Quadro 9 Os quatro processos identitários típicos Transação objetiva Identidade para si
Identidade para o outro
Reconhecimento PROMOÇÃO (interna)
Continuidade
IDENTIDADE DE EMPRESA
(capítulo 11)
Transação subjetiva Ruptura
RECAP.ACITAÇAO (externa) IDENTIDADE DE REDE (capítulo 12)
Nãoreconhecimento BLOQUEIO (interno) IDENTIDADE DE OFÍCIO (capítulo 10) EXCLUSÃO (externa) IDENTIDADE DE FORA DO TRABALHO (capítulo 9)
Assim reconstituído, o espaço social das identidades típicas constitui uma espécie de metaespaço que ultrapassa a esfera do trabalho e engloba a do fora do trabalho. Cada configuração identitária implica uma relação com o espaço social e, portanto, um arranjo dos subespaços que o estru-í
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turam3. Esses subespaços constituem principalmente sistemas de emprego (cf. capítulo 6) nos quais os indivíduos desenvolvem sua trajetória ao longo de planos de carreira reais ou virtuais: planos de carreira empresariais, de ofício, de rede ou de exclusão (fora do trabalho). Cada configuração identitária pode, pois, ser associada a uma espécie de "carreira" (aberta ou bloqueada) no interior desses planos potenciais que constituem espaços típicos de reconhecimento possível. Ela também pode ser elucidada pelos tipos de relação profissional e pelos atores típicos desses diferentes espaços: atores "internos" à empresa, atores que estruturam os ofícios ou os ramos profissionais, atores da formação, atores da gestão social do emprego... (cf. capítulo 7). A' construção das identidades profissionais é, portanto, inseparável da existência dos planos de emprego-formação e dos tipos de relação profissional que estruturam as diversas formas específicas de mercados de trabalho, mercados internos das firmas, mercados profissionais ou de ofícios, mercados externos... (cf. capítulo 8). As configurações identitárías típicas, no campo do trabalho, poderiam abstratamente ser associadas a "momentos" privilegiados de uma biografia profissional ideal: momento da construção da identidade correspondendo tradicionalmente à formação profissional inicial (cf. capítulo 12), momento da consolidação da identidade ligado à inserção e à aquisição progressiva da qualificação nos planos de carreira profissionais (cf. capítulo 10), momento do reconhecimento da identidade, pautado pelo acesso a responsabilidades nas carreiras empresariais (cf. capítulo 11), momento de envelhecimento da identidade e da passagem progressiva à aposentadoria (cf. capítulo 9). Mas, efetivamente, esses "momentos" nunca aparecem reunidos nos diferentes tipos de carreiras profissionais associadas a cada configuração típi3. A noção de configuração identitãria como articuladora dos espaços da vida privada, da vida do trabalho e do simbólico é explorada em La Crise dês identités (PUF, 2000).
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ca: a estabilidade da primeira parece desembocar apenas no risco de exclusão permanente; a progressão em um plano especializado de "qualificação" (ofício) da segunda parece hoje bloqueada; a promoção interna ligada à utilização de "competências" da terceira parece implicar uma grande dependência para com a empresa; a acumulação de diplomas e de formações da quarta parece se prolongar por toda a vida profissional e até mesmo depois dela. Assim se delineiam tipos de temporalidades profissionais distintas que constituem modos de estruturação da identidade profissional por projeções em futuros possíveis. Cruzando os tipos de espaços privilegiados com os de temporalidades estruturantes, chega-se aos espaços-tempo constitutivos das configurações identitárias mais elementares (cf. capítulo 5). Os quatro espaços-tempo desvendados empiricamente combinam os tipos de carreira e os "momentos" dístinguidos acima: o espaço da formação está associado à construção incerta da identidade de rede; o espaço do ofício está ligado à consolidação e ao bloqueio de uma identidade especializada; o espaço da empresa é aquele em que ocorre o reconhecimento de uma identidade confirmada; o espaço do fora do trabalho é aquele em que se (des)estrutura uma identidade de exclusão. Cada configuração elementar típica está associada a um tipo de saber privilegiado que estrutura a identidade profissional e que constitui a matriz de lógicas de ação salarial e de "racionalidades" específicas. Os saberes práticos, pró- j venientes diretamente da experiência de trabalho, não vin- j ; culados a saberes teóricos ou gerais, são estruturantes da j | identidade hoje ameaçada de exclusão; associada a uma lo- j j gica instrumental do trabalho pelo salário (TER), essa iden- \\ tidade esbarra no novo "modelo da competência" difundido nas empresas. Os saberes profissionais que implicam articulações entre saberes práticos e saberes técnicos estão no cerne da identidade estruturada pelo ofício e hoje bloqueada em sua consolidação; associada a uma lógica da qualificação no trabalho (FAZER), essa identidade atualmente é
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incitada a se recapacitar ou a se reestruturar em função dessas novas normas de competência. Os saberes de organização que implicam outras articulações entre saberes práticos e teóricos estruturam a identidade de empresa que implica mobilização e reconhecimento; associada a uma lógica da responsabilidade (SER), essa identidade é hoje valorizada pelo modelo da competência, tornando-se ainda mais dependente das estratégias de organização. Os saberes teóricos, enfim, não vinculados a saberes práticos nem profissionais, estruturam um tipo de identidade marcado pela incerteza e pela instabilidade e consideravelmente orientado para a autonomia e acumulação de distinções culturais (SABER); associada a uma lógica da recapacitação permanente, é ao mesmo tempo produto e alvo das incitações à mobilidade amplamente desenvolvidas nas empresas (também nas públicas) atuais. Essas identidades profissionais e sociais, associadas a configurações específicas de saberes, são construídas por meio de processos de socialização cada vez mais diversificados. A socialização "inicial", durante a infância, combina mecanismos de desenvolvimento das capacidades e construção de "regras, valores e signos" (Piaget) oriundos da família de origem e também do universo escolar e dos grupos etários nos quais as crianças realizam suas primeiras experiências de cooperação. É assim que elas forjam para si as primeiras identidades pjx jLSSÍmilações_e_ acomodações su-' cessivas (cf. capítulo 1). Essa socialização tambéní^cõnTríbüi para fornecer as referências culturais a partir das quais os indivíduos terão de identificar seus grupos de pertencimento e de referência, interiorizar seus traços culturais gerais, especializados, opcionais e individuais (Línton), antecipar suas socializações posteriores (cf. capítulo 2). Estas se inscrevem em trajetórias sociais que implicam, a partir de "disposições" adquiridas durante a educação fundamental, a validação de "capitais econômicos e culturais" a um só tempo desiguais no início e com rentabilidade diferente conforme os campos da prática social (cf. Bourdieu, capítulo 3). Essa
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socialização contínua é inseparável das transformações estruturais que atingem os sistemas de ação e induzem modificações periódicas das identidades previamente constituídas e das "construções mentais" a elas associadas (c/. Berger e Luckmann, capítulo 4). As-identidades, portanto^estãe-ern movimento, e essa dinâmÍ£a^de,.desestruturação/reestruturação às vezes assume a aparência de uma crise asidentidades". CadacortíF guração identitária assumêTTÕJé~TTõT:má^ie~um misto em cujo cerne as antigas identidades vão de encontro às novas exigências da produção e em que as antigas lógicas que perduram entram em combinação e às vezes em conflito com as novas tentativas de racionalização econômica e social (Weber). Esses mistos de permanência e de evolução, de antigo e de novo, de estável que se torna ameaçador e de instável que se torna valorizador são evidenciados por análises empíricas cada vez mais numerosas, que ora insistem na permanência, ora na mudança. Entre a tentação de interpretar os elementos de permanência desses tipos - e sua transversalidade sistemática em relação às categorias sociais - em termos "psicológicos" ou "fenomenológicos" (c/, as categorias de delusão/ilusão/colusão/elusão em Laing) e a tentação de privilegiar os elementos de evolução para deduzi-los das novas estratégias e políticas "econômicas" ou "estruturais" das empresas e do Estado, a apresentação adotada tentou manter o ponto de vista sociológico definido na primeira parte deste livro: as identidades sociais e profissionais típicas não são nem expressões psicológicas de personalidades individuais nem produtos de estruturas ou de políticas econômicas impostas de cima, mas sim construções sociais que implicam a interação entre trajetórias individuais e sistemas de emprego, de trabalho e de formação. Resultados sempre precários ainda que muito fecundos de processos de socialização, essas identidades constituem formas sociais de construção de individualidades, a cada geração, em cada sociedade. As depreendidas aqui concernem à Franca do fim dos anos 1980: não têm outra validade
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senão a das pesquisas empíricas nas quais repousam e que representam apenas uma pequena amostra das que foram realizadas ou que estão em curso. Graças a essas análises, este trabalho poderá ser criticado e retomado em bases mais amplas.