Leila Ferreira
A arte de ser leve
Duas rodas
á pouco tempo, conversando com a dona de um salão de beleza que uncionários e clientes costumam descrever como uma pessoa leve, perguntei o que estava por trás daquela leveza. Como ela conseguia manter o bom humor e a calma em situações que normalmente causariam estresse (por exemplo, passar doze horas por dia ouvindo o barulho ininterrupto de secadores e de vinte mulheres alando ao mesmo tempo)? Conceição respondeu: “Tem gente que vem pro mundo de caminhão e tem gente que vem de bicicleta. Eu sou da turma da bicicleta”. Saí de lá morrendo de inveja. Acostumada a arrastar baús cheios de ansiedade e de medos, tive certeza, naquela hora, de que estava na outra turma: a das carretas com excesso de carga, que traegam perigo-
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samente por estradas sem acostamento. Pensei no tamanho do Scania que usava para transportar minhas complicações, imaginei a bagagem compacta da dona do salão, e decidi que era hora de mudar de vida. Isso em um primeiro momento. Depois vi que “mudar de vida” era uma meta muito ambiciosa. Como jornalista, preeri escrever sobre a perspectiva da mudança (quem sabe depois...?). Foi assim que este livro nasceu. Ele é uma refexão sobre a possibilidade de se viver de orma menos complicada, carregando menos peso. Não alo aqui sobre a leveza que aliena e nos condena à superície. “É preciso ser leve como o pássaro, e não como a pluma”, disse o escritor rancês Paul Valéry. A mesma leveza que o italiano Italo Calvino deende em suas Seis propostas para o próximo milênio . A pluma futua – um voo sem plano, sem direção, sem desaos. Os pássaros riscam o ar com precisão, colocam a leveza a serviço do existir. Uma pedra pode interromper o voo, mas até que isso aconteça as asas sabem onde e como ir. Calvino cita “o pesadume, a inércia, a opacidade do mundo”. Quando penso em leveza, penso na possibilidade de sermos pessoas capazes de deixar o mundo menos opaco, menos pesado, menos inerte. Pessoas que se sentem melhor com elas mesmas e são mais agradáveis, mais delicadas, mais generosas. Acima de tudo, pessoas que conseguem também azer a viagem (cada vez mais rara) de sair delas próprias para enxergar o outro – e o outro pode ser o colega de trabalho, o lho, a amiga de inância, o vizinho, o marido, a namorada, o paciente que esperou vários dias pela consulta, o porteiro do prédio. 12
Há tempos brinco com minhas amigas obcecadas por dietas sobre o perigo que corremos de emagrecer o corpo e car com obesidade mórbida de espírito. Corpos rijos e en xutos, construídos com disciplina mais do que espartana, circulam num mundo cheio de almas adiposas, engordadas pela autocomplacência. Com o corpo, todo o rigor é pouco, mas nos perdoamos com enorme acilidade por nossa impaciência, nossa alta de civilidade, nossa incapacidade de ouvir, nossa rispidez. Achamos natural agir de orma desagradável com os outros porque estamos estressados. Mas nossos comportamentos vão deixando o mundo mais estressante. E não são apenas os outros que nos rodeiam que saem perdendo. O peso na alma aeta proundamente a pessoa que o carrega – ainda que não perceba. Seres que passam a vida arrastando correntes são inelizes. Almas gordas, mais que intoxicar os outros, intoxicam-se. Os antigos egípcios tinham uma crença interessante: achavam que, na longa viagem que os mortos enrentariam até chegar a seu destino, seriam obrigados a participar de um ritual chamado pesagem da alma. Na cerimônia, presidida pelo deus Osíris, o morto azia sua deesa e se declarava inocente de vários pecados. Em seguida, passava por uma prova: seu coração, considerado a sede da consciência, era colocado numa balança. Se pesasse mais que uma pena de avestruz, o morto estaria condenado a uma série de castigos e poderia até ser devorado por um monstro. Almas leves, em paz com a consciência, tinham a chance de seguir seu caminho e eventualmente chegar ao paraíso. 13
Se a pesagem da alma osse eita hoje, pouquíssimas pessoas seguiriam viagem. Independentemente dos pecados, carregamos o peso de cotidianos desgastantes, ambientes de trabalho competitivos, relações pessoais confituosas, problemas nanceiros – tudo que vai nos deixando com o espírito baloo e a alma cinzenta. O que este livro pretende é refetir sobre valores e comportamentos que podem ajudar a diminuir a opacidade da alma e o peso do espírito – atitudes que aumentem a possibilidade de escaparmos dos monstros, ainda que não garantam a chegada ao paraíso. Fala de uma leveza que inclui a angústia, a tristeza, as inseguranças, a precariedade da existência. A insustentável leveza do ser, como propõe o escritor tcheco Milan Kundera? Não sei. Talvez a leveza de ser quando a vida permite ser leve. Que sejam cinco minutos, que seja o tempo de um entardecer ou que dure a paixão mais breve – não importa. Mas que, pelo menos parte do tempo, possamos azer deste mundo um lugar menos complicado, menos estressante, em que seja possível conviver com mais cordialidade e menos impaciência, e aprender a nos respeitar e nos conhecer – um lugar, enm, em que estejamos mais em paz com os outros e com nós mesmos. Atualmente, a la anda até para os problemas. Por isso, a leveza que proponho aqui é aquela que reconhece a existência das sombras e as incorpora. Aquela que admite que a vida é barra-pesadíssima e que nem sempre é possível ver um lado bom no que nos desgasta, nos amedronta, nos az sorer. Mas que, mesmo enquanto estivermos tristes, ansiosos ou depri 14
midos, possamos ser pessoas que não abrem mão da civilidade, da compaixão e do mínimo de elegância para conviver. Travel light, recomendam os guias de viagem, ou seja, viaje leve. Não é sair pelo mundo sem bagagem. É simplesmente eliminar o excesso de peso. Vamos à viagem, pois – lembrando sempre que estamos tratando do mais relativo dos conceitos: a leveza de uns pode ser o peso de outros e vice-versa. O roteiro inclui Portugal, Estados Unidos, Holanda, França, Rio, Belo Horizonte, São Paulo, Araxá e até um povoado chamado Tragédia. Entre as pessoas com quem conversei estão lósoos, educadores, uma atriz, um estilista, um dono de unerária, um grupo de manicures, uma empresária, um sociólogo, um veterinário e uma turma de viúvas que se encontra para rezar o terço, jogar buraco e torcer pelo Cruzeiro – não necessariamente nessa ordem. As conversas vão e vêm e muitas oram acompanhadas por mesas artas. Dieta, ali, somente a da alma. Entre bolos, caés, taças de vinho, um peixe em Estrasburgo, um brunch em Baltimore, um risoto em Belo Horizonte e uma rapadura com queijo em Araxá, cada um contava suas histórias, azia suas refexões, e juntos tentávamos destrinchar algumas estratégias de “bem viver”. O resultado não é um livro de receitas – nem de verdades. É apenas um caderno de anotações eitas a partir dessas conversas. Algumas pessoas que aparecem aqui são leves, outras ensaiam ser. Mas todas acreditam na importância de se refetir sobre a quantidade (e a qualidade) da bagagem que transportamos nessa brevíssima passagem por este planeta. 15
Começando por um item tão rágil quanto essencial, que muitos preerem levar na bagagem de mão para não correr o risco de extravio: a gentileza.
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