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A LARANJA MECÂNICA: UM ENSAIO DO OLHAR SOBRE O OLHAR Fransmar Costa Lima

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Para Débora e Rachel Amigas queridas. Para Marcia Tiburi Tiburi olhar único

RESUMO O artigo que ora se apresenta trata a questão do olhar como dimensão simbólica e significativa no filme A Laranja Mecânica, de Stanley Kubrick, baseado na obra homônima de Anthony Burgess. Estender o olhar a sociedade pressupõe uma necessidade constante de releitura cultural onde o reflexo da moralidade se desdobra sobre o ambiente da individualidade. Analisaremos portanto, a questão do olhar e da moral concomitantemente, considerando não apenas a simbologia mas também as contenções impostas enquanto moral e legalidade; além da necessidade histórica das transformações culturais que recaem sobre o universo da constituição humana. PALAVRAS-CHAVE: Laranja Mecânica, olhar, individualidade, moralidade

THE CLOCKWORK ORANGE: AN ESSAY THE LOOK ON THE LOOK ABSTRACT The article presented here deal with the question of how to look at the symbolic and significant in the film A Clockwork Orange, Stanley Kubrick, based on the homonymic book by Anthony Burgess. Extend the look the society presuppose a constant need to cultural reinterpretation where the reflection of morality unfolds on the ambient of individuality. Therefore analyze the issue of the look and moral concurrently, considering not only the symbols but also as restraint imposed moral and legal; beyond the historical necessity of cultural change that fell on the universe of the human constitution. KEYWORDS Clockwork Orange, look, individuality, morality

INTRODUÇÃO A idéia de olhar como simbologia fascina o homem desde o surgimento da linguagem. l inguagem. Desde a pré-história, com suas pinturas rupestres, o olho é representado como associação às

Mestre em Educação, Arte e História da Cultura pela Universidade Mackenzie/SP. Bacharel e Licenciado em Filosofia pela mesma instituição. Professor convidado da UESB – Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia – para o curso de pós-graduação em Educação e Ética para uma Cultura de Paz, em convenio com a Diocese de Floresta/PE. E-mail: [email protected]. ∗

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divindades. Adiante, o deus egípcio Hórus é representado por um olho benevolente, com o significado de poder e proteção. A mitologia grega contempla na deusa Atena o olhar sábio e atento de uma coruja, ao contrário das filhas de Fórcis e Ceto, as irmãs Medusa, Euríale e Esteno, conhecidas como Górgonas e condenadas pela mesma deusa a petrificar tudo o que fosse focado em seu olhar. Curiosamente as Górgonas também compartilham entre si o único olho e dente que possuem. Na mitologia nórdica, o preço pago por Odin a Mimir para que lhe fosse permitido beber da fonte da sabedoria, foi um de seus olhos. O cristianismo e a idade média têm latente a figura do olho que tudo vê, ou o Olho da providência; que representa o olho de Deus a observar a humanidade constantemente. Tal símbolo está presente nos ornamentos de catedrais góticas, na arte medieval e contemporaneamente, na nota de um dólar. É interessante recordar que a capacidade de se alcançar a plenitude da Idéia para Platão, depende de uma mudança radical no olhar do prisioneiro que, no famoso Mito da Caverna,

está condenado a olhar apenas para o mundo de sombras. Neste caso o

conhecimento é adquirido quando se observa a luz do mundo superior, ou o Mundo das Idéias. Mas porque o olhar é um símbolo tão fascinante para o homem? A arte, a cultura, a religiosidade e a filosofia contemplam sempre no olhar uma condição primordial do homem, e não só por características simbólicas, mas pela capacidade de transcender do objeto dado para a subjetividade ou a proximidade íntima do indivíduo com a significação relevante da existência. Em nosso ensaio sobre a Des-humanização do humano em Dogville (LIMA: 2010) contemplávamos no cinema a dimensão existencial do inspectador , ou seja, um aporte da individualidade a partir da ótica de quem desdobra na subjetividade o significado da arte cinematográfica e, neste caso, não era apenas o olhar do autor ou do diretor de cinema que nos interessavam, mas também daquele que estende seu olhar sobre a obra como posicionamento, interpretação, apropriação e leitura. A obra que pretendemos tratar neste artigo é especialmente significativa sob a dimensão do olhar. Laranja Mecânica (1971), dirigido por Stanley Kubrick – a partir do livro homônimo de Anthony Burgess publicado em 1962 – apresenta uma sociedade futurista (séc. XXI) em uma Inglaterra de governo autoritário. Diante da degradação dos costumes Revista Litterarius. v. 9, n. 2 (jul./dez. 2010).

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britânicos, jovens subversivos reinventam o movimento punk, criando gangs chamadas “druguis”, uma variação do russo druk (amigo). Líder de uma dessas gangs, Alex é o protagonista e, diante de uma sociedade envolvida pela moralidade e conformismo inerentes, expõe suas inclinações juvenis a partir da libertinagem exacerbada associada à ultra-violência. Uma das características marcantes de Alex é a maquiagem exagerada que utiliza sobre o olho direito, com extensões dos cílios de forma que seja dada a impressão de que é um olho muito maior que o outro. Entendemos esta simbologia como um olhar diferenciado da personagem sobre o mundo que insiste em conter sua natureza e liberdade, apaziguando seus ânimos e freando seus instintos. Assim sendo, Alex é puro instinto, apenas vontade, sem nenhuma representação. É sobre este olhar que dedicaremos nossos esforços de reflexão, como dimensão simbólica e significativa, que visa pensar o humano entre a deturpação e a contenção moral.

A LARANJA MECÂNICA: OLHAR E INDIVIDUALIDADE Nossa era é marcada pela constante necessidade de objetivação da existência, uma época em que as questões sociais são tratadas como resultados estatísticos e as condições de vida não prevêem o acaso. Seja na educação, no direito, na economia, ou na política estamos à mercê dos percentuais de desenvolvimento humano. Kierkegaard nos lembra, em A dialética da comunicação ética e ético-religiosa,

que vivemos a idade do ouro da tagarelice e da

conversa fiada. Da mesma forma, Nietzsche encontra em Assim falou Zaratustra, o antídoto para o mal de nosso tempo. Quando trata o último-homem, Zaratustra observa: Que é amor? Que é criação? Que é nostalgia? Que é estrela? - Assim pergunta o último homem e pisca os olhos. A terra se tornou pequena então, e sobre ela saltita o último homem, que torna tudo pequeno. Sua estirpe é indestrutível, como a pulga; o último homem é o que mais tempo vive. 'Nós inventamos a felicidade' - dizem os últimos homens, e piscam os olhos. Abandonaram as regiões onde é duro viver, pois a gente precisa de calor. A gente, inclusive, ama o vizinho e se esfrega nele, pois a gente precisa de calor. Adoecer e desconfiar, eles consideram perigoso: a gente caminha com cuidado. Louco é quem continua tropeçando com pedras e com homens! Um pouco de veneno, de vez em quando, isso produz sonhos agradáveis. E muito veneno, por fim, para ter uma morte agradável. A gente continua trabalhando, pois o trabalho é um entretenimento. Mas evitamos que o entretenimento canse. Já não nos tornamos nem pobres, nem ricos: as duas coisas são demasiado molestas. Quem ainda quer governar? Quem ainda quer obedecer? Ambas as coisas são demasiado molestas... Nenhum pastor e um só rebanho! Todos querem o mesmo, todos são iguais : quem sente de outra maneira segue voluntariamente para o hospício... A gente ainda discute, mas logo se reconcilia, senão estropia o estômago. Temos nosso prazerzinho para o dia e nosso Revista Litterarius. v. 9, n. 2 (jul./dez. 2010).

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prazerzinho para a noite, mas prezamos a saúde . 'Nós inventamos a felicidade', dizem os últimos homens e piscam o olho" (NIETZSCHE in GIACÓIA JR, 1999; grifos meu) 1.

A idade da objetividade exige para tudo uma finalidade prática que execra a unicidade humana. O indivíduo, único apesar de semelhante, encontra na identidade a condição para o exercício de sua humanidade e Zaratustra percebe em suas perambulações que a unicidade não existe mais. O ideal de felicidade e realização da sociedade contemporânea é pela igualdade em seu pior sentido, tamanha a mesmificação do homem que, não sendo mais capaz de fixar um olhar ininterrupto à realidade, pisca os olhos em busca de consolo, satisfação temporária, sucesso e reconhecimento fundados em uma vã-glória que reconhece tão somente a equiparação desprovida de sentido. Tal como um autor que cria um troféu que será entregue a ele mesmo. Nossa necessidade de piscar os olhos , é objeto de fuga da dor provocada pela natureza humana em toda a plenitude dos conflitos inerentes da existência e da individualidade. Não queremos ser o que somos. Renegamos nossa condição e, para que a individualidade não se manifeste é necessário controlar a partir da estrutura do poder político a coletividade. É o caráter coletivo quem deve prevalecer em nossa época. O coletivo aceita a diversão e o prazer como entorpecentes para as inclinações naturais, mas não questiona o eu, ou o caráter ou a conduta porque esse questionamento jamais aceitaria o olhar constante e atento das câmeras que nos observam individualmente. Por piscar os olhos, o olhar sobre a realidade objetiva da contemporaneidade não é pleno mas interrompido, descontínuo e, desta forma, não permite ao indivíduo uma análise clara pois, ao focar uma felicidade aparente permanece desfocado da condição existencial verdadeira. Frente a estas considerações, pode-se dispor lado-a-lado Anthony Burgess, George Orwell e Aldous Huxley, autores das maiores obras literárias da segunda metade do século XX que têm no olhar, contemplado em suas diversas categorias, o trato acerca da relação indivíduo e sociedade. Para Burgess especialmente, o olhar possui um duplo movimento simbólico da individualidade. A maquiagem exagerada do olho direito de Alex sugere, em uma interpretação livre da citação de Nietzsche, seu anseio de permanecer de olhos bem abertos , em uma busca talvez desesperada por contemplar a realidade de sua natureza, rechaçando as condições de submissão impostas pela moralista sociedade britânica de um futuro impreciso. É o próprio 1

Nos servimos aqui da tradução do Prof. Dr. Oswaldo Giacóia Jr.


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Alex quem sustenta este fundamento, quando perdido em seus pensamentos – após uma ‘entrevista’ com P.R Deltoid, responsável designado pelo Estado para o acompanhamento pós-correcional de jovens delinqüentes – reflete : Tá bom, eu ajo errado com esse negócio de craste, de toltchoque e de rasgões a britva e o velho entra-sai-entra-sai, mas se eu for lovetado, pior pra mim, ó meus irmãos, que ninguém pode governar um país com todos os tcheloveques se comportando da maneira que eu me comporto à noite. Portanto, se eu for lovetado e forem três meses num méssito e depois seis meses noutro e aí, como adverte amavelmente o P. R. Deltoid, e a despeito da tenrura dos meus janeiros, irmãos, vai ser o jardim zoológico do outro mundo, eu digo: "Tá certo, mas é uma pena, meus senhores, porque não suporto ficar trancado. Meus esforços, no futuro que estende para mim os seus braços brancos como lírios, serão voltados para que, antes, a noje me alcance, ou que o sangue esguiche seu compasso final em metal retorcido e vidro estilhaçado na estrada, pra não ser lovetado de novo". O que é um belo discurso (BRUGESS, 2004, p. 28).

Alex reverte o olhar da coletividade sobre o indivíduo, a necessidade constante de vigilância e punição para uma observação do real onde prevalece o olhar do indivíduo para a sociedade. O desejo de Alex é crítico, no sentido em que os atos delinqüentes condizem com uma psicótica busca pela identidade e condição da existência. É como se dissesse : reconheço minha culpa e meus crimes, mas a prisão não será a punição capaz de corrigir minhas falhas de caráter. Antes de renunciar a mim mesmo, prefiro buscar a morte com uma dramaticidade estética sem par; como no último movimento de uma ode à minha individualidade.

Toda a narrativa de Burgess acontece em primeira pessoa, e Kubrick respeita esta característica literária em sua adaptação cinematográfica. Este estilo de linguagem particularmente favorece o posicionamento do inspectador , ou do leitor, que se obriga a assumir o lugar da personagem a partir de uma interpretação livre e peculiar. Não se trata apenas de, como um incentivo do mass media, imitar na existência a conduta da personagem mas lançar um olhar crítico sobre a trama e estabelecer temporariamente um paralelo sobre o real, de forma que a realidade não seja observada como piscadelas inconstantes e sim, com um olhar diferenciado, ininterrupto, em busca de seguir além do homem condicionado; se quisermos retomar Nietzsche. É nesse olhar estetizado de quem observa, que a percepção aponta sua janela para o real, o verdadeiro. Não se trata de um ver, como sentido somático, mas de um olhar consciente, quiçá crítico, que ocupa sua condição enquanto recepção estética própria de uma individualidade única. Marcia Tiburi, em seu inédito livro Olho de Vidro, afirma: Revista Litterarius. v. 9, n. 2 (jul./dez. 2010).

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O cego não pode ver, mesmo assim, ele é o portador de um olhar como sedimentações do que a ele se nega. [...] O que chamo aqui de olhar se confunde com o todo da sensibilidade, sendo seu filtro, seu recorte visual. A palavra olhar nos informa da consciência como forma de experiência que nosso corpo ocupa no cenário do mundo. Mundo, entendido como o universo da percepção individual, como o que é sempre “meu” ou próprio de alguém (TIBURI, 2010, no prelo)

O que acrescentamos ao debate iniciado por Tiburi é a crítica para além da consciência da experiência corpórea. Como pode ser observado na obra de Kubrick, Alex detém a consciência do mundo que o cerca, e mesmo assim decide assumir uma conduta que transcende a própria consciência. É curioso como o limite entre a legalidade e a consciência crítica se torna tênue quando o olhar se fixa no cenário do mundo ; a triangulação entre o olhar de domínio, indivíduo,

que vigia constantemente e pune a ação que ultrapassa seus limites, o olhar do

único e singular na perspectiva de quem está imerso no contexto das relações de

poder, exigente da ação e o olhar crítico, consciente das conseqüências que se desdobram a partir da ação do indivíduo, é latente para a edificação da sociedade contemporânea. O problema de Alex em sua consciência subversiva é a constituição da individualidade, ou o fato de não querer ser o mesmo que o comum. É um olhar cego que se dirige ao objeto do problema social, ficando em suspenso a questão: Alex é capaz de um olhar crítico? Mas, irmãos, eles ficarem roendo a unha do pé pra saber a causa da ruindade é que me deixa um bom maltchique ridente. Eles não procuram a causa da bondade, por que então ficar cavucando do outro lado? Se as líudes são boas é porque gostam, e eu nunca desmancharia os prazeres deles, e do outro lado a mesma coisa. E eu estava defendendo esse outro lado. Mais ainda, a ruindade faz parte do ser, do eu , tanto em mim quanto em vocês no odinoque, e este eu é feito por Bog, ou Deus, e é o seu grande orgulho e radoste. Mas o não-ser não pode aceitar o mal, quer dizer, os do governo, os juízes e os colégios não podem permitir o mal porque não podem permitir a individualidade. E não é a nossa História moderna, meus irmãos, a história de bravas individualidades malenques lutando contra essas máquinas enormes? Quanto a isto, meus irmãos, eu estou falando com toda a seriedade. Mas, o que faço, faço porque gosto (BRUGESS, 2004, p. 28, grifos meu).

Mesmo sem retomar a questão hobbesiana pela natureza do homem, Alex aponta em um pensamento truncado a miscelânea de fatores que constituem a individualidade contemporânea. Reconhece sua maldade mas, ao contrário da sociedade, que depende do controle desta maldade para existir, aceita-a como dimensão natural da individualidade. Se há


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um olhar crítico em Alex, é no reconhecimento de que a função da sociedade está dada como elemento de controle, domínio e exercício do poder da esfera coletiva sobre a individualidade. Se a sociedade está associada ao domínio e ao controle, a individualidade está associada ao prazer. É um prazer para Alex cometer atos criminosos uma vez que eles representam simbolicamente um olhar satisfatório e prazeroso de rejeição lançado como devolutiva ao olhar vigilante e punitivo de domínio. Esta característica ativa, que exige na delinqüência de Alex uma ação, é própria do olhar contrário ao ver passivo. Em um sistema de domínio e contenção moral, o ideal é que as ações individuais sejam inibidas e o olhar esteja subjugado à sua condição corpórea. Desta forma, aceitamos a distinção entre ver e olhar que sugere Tiburi. Pela palavra olhar reconhecemos a chance de nossa informação sobre as coisas que existem, do mesmo modo sobre nosso direcionamento a elas. Olhar é visar que pode ser compreendido como condição subjetiva-objetiva encarnada por um indivíduo ou grupo. Ver é muito mais e muito menos uma condição somática (TIBURI, 2010, no prelo).

Tiburi se refere ao aparato estético da arte contemporânea, onde existe liberdade para a desconstrução do aparato social e crítico, onde a individualidade se manifesta na subjetividade como verdade perceptiva e receptiva fora do controle social e das relações de domínio. O que surge é uma contraposição entre o indivíduo que anseia por expressar seu prazer e o poder coletivo que controla o prazer autentico e as ações do indivíduo para garantir o poder, exercendo tal poder principalmente através do olhar vigilante sobre a individualidade.

ALEX E A-LEX: PRAZER COMO IMITAÇÃO DA AUTENTICIDADE - ULTRAVIOLÊNCIA, REPRESSÃO E LIBERDADE A linguagem miscigenada de Alex e seus druguis sugere uma dissociação da coletividade capaz de diferenciar o individuo e estabelecê-lo como singular. Esta forma de expressão se manifesta na constituição imagética que a personagem confecciona sobre si mesmo, agindo de forma contrária àquela ação esperada pela coletividade; se veste com roupas escandalosas usando um grotesco protetor genital, fala uma língua diferente, sente prazer na violência e no domínio sobre integrantes da sociedade que o domina. Sua forma de expressar a liberdade e firmar-se como indivíduo singular é através do que ele mesmo chama de ultra-violência.


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Alex é certamente um criminoso e delinqüente, mas também é um gentleman, pois comporta-se como um cavalheiro no melhor estilo britânico. Em seu filme Kubrick caracteriza Alex com todos os utensílios próprios dos ingleses tradicionais, como chapéu e bengala. Neste sentido ele é um contraponto ou reflexo da própria sociedade. A sociedade britânica da ficção construída por Brugess é tão violenta como o próprio Alex, que reconhece na pobreza, na miséria e na competitividade econômica uma forma velada de violência; seu anseio é portanto, ir além dos limites que esta sociedade estabeleceu para encontrar-se com o eu de sua natureza instintiva. Se uma sociedade dita civilizada caracteriza-se pela formulação de suas leis e a obediência que seus membros devem à elas, Alex apresenta-se negativamente como uma contrariedade social. Brugess não batiza sua personagem por acaso, se tomarmos o termo Lex, em latim (lei) e o prefixo de negação A, entendemos que a condição violenta e anti-social de Alex tem sua origem em um jogo etimológico. Se a origem do poder social está na palavra e sua garantia no olhar, o catalisador da violência em A laranja mecânica é, sem dúvida a arte. A estética assume uma condição de mediação entre o poder e a individualidade pois, da mesma forma que pode ser um elemento de contenção e domínio, manifesta-se como ferramenta de expressão e subversão. Não é a toa que a preferência de Alex é pela música. Na cena onde barbariza o escritor e estupra sua mulher, Kubrick vê uma ação ao mesmo tempo violenta e despreocupada, que age contrariando a ordem social com absoluta naturalidade enquanto canta A singin’ in the rain. Brugess por sua vez, estipula uma preferência musical pelo compositor Ludwig Von Beethoven, tratado por Alex com certa intimidade e pelo primeiro nome. É importante lembrar que Beethoven também foi, em sua época, o compositor capaz de romper com os paradigmas da música, tornando mais expressiva e menos sistemática. Pode-se dizer que sua música contém certa dose de violência. O olhar estético lançado por Alex à sociedade e suas leis é um olhar de liberdade, não apenas como uma libertação social, mas possivelmente como uma liberdade que se desdobra para a interioridade do próprio indivíduo. É um olhar sobre o olhar, como se o indivíduo buscasse o isolamento e neste isolamento a compreensão do poder que a civilização alienada e dominadora estabelece, a partir de suas leis, sobre ele. Preso, Alex não é mais capaz de exercitar de outra forma que não seja a interioridade sua liberdade e a incessante procura pela significação de seu eu. Contido em sua cela, sente-se Revista Litterarius. v. 9, n. 2 (jul./dez. 2010).

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ignorado até mesmo por aqueles que antes queriam dominá-lo, pois agora não é sequer elemento de repulsa social, mas objeto de indiferença. Na individualidade a necessidade do olhar faz com que Alex encontre uma possibilidade de voltar a observar o meio que fora por ele repudiado. Em um programa de reabilitação do governo, chamado Projeto Ludovico – talvez uma versão humanizada da experiência do cão de Pavlov – a possibilidade de retorno ao seio do sistema surge como condição de retomada da individualidade. Porém, não existe individualidade no sistema e o olhar de Alex será agora conduzido para longe de si mesmo. O que prevalece neste momento, é o olhar do comum; como uma coletividade que observa a partir de um único indivíduo tudo aquilo que se espera conter.

CONCLUSÃO - DE OLHOS BEM ABERTOS Falar sempre, pensar nunca – Desde que, com a ajuda do cinema, das soap óperas e do horney, a psicologia profunda penetra nos últimos rincões, a cultura organizada corta aos

homens o acesso à derradeira possibilidade da experiência de si mesmo. O esclarecimento já pronto transforma não só a reflexão espontânea, mas o discernimento analítico, cuja força é igual à energia e ao sofrimento com que eles se obtêm, em produtos de massas, e os dolorosos segredos da história individual, que o método ortodoxo se inclina já a reduzir a fórmulas, em vulgares convenções (ADORNO, 2001, p. 62).

Theodor Adorno já vislumbrava a condição da arte, principalmente na música e no cinema, como elementos de alienação e em contrapartida, como ferramentas de libertação. Reduzida à fórmulas, a experiência de si mesmo se aniquila e com ela a individualidade pois o efeito esperado é a condução das massas e o domínio sobre os valores, o caráter e o comportamento. Para que esta aniquilação surta efeito, é necessário que o indivíduo esteja permanente focado na verdade que deve ser. Contrariamente, a mesma arte rompe as diretrizes e é capaz de fixar a realidade como comprometimento da individualidade com sua dimensão estética. O indivíduo assume como verdade de si mesmo a condição subjetiva de fixar o olhar, mas o olhar fixo que se dirige apenas um único ponto torna a existência obsoleta e alienada, alheia à individualidade. É importante observar que, na obra de Kubrick, existe uma fixação do olhar – enquanto o olho de Alex está maquiado, na forma como já falamos – que parte do indivíduo que observa a condição real da existência, e em contrapartida um olhar fixo, direcionado, conduzido, instrumentalizado à uma relação de domínio. Como durante a Revista Litterarius. v. 9, n. 2 (jul./dez. 2010).

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execução de seu tratamento, o olho de Alex é permanente aberto e sua cabeça fixada para que seu olhar não se desvie. Esta é a essência experimental do projeto Ludovico. Condicionar o indivíduo que pretendia olhar a diversidade a um único ponto fixo, de forma que o anseio do primeiro olhar seja substituído pelo segundo, o mesmo olhar dos últimos homens de Nietzsche, o olhar de quem não suporta a realidade e deseja a todo custo, piscar os olhos. Stanley Kubrick é sem duvida um diretor que valoriza o olhar em suas diversas perspectivas. O conjunto de sua obra fala por si. Se Alex é incapaz de mover o olhar ao contemplar as cenas que o condicionarão ao medo e ao desespero de não ser capaz de reconhecer o eu como verdade (e após a experiência seu maior prazer torna-se seu maior pavor) a linguagem cinematográfica significativa de Kubrick revela a possibilidade da retomada do eu como condição existencial. É no olhar de Alex, fixo, tomado de significado por um sorriso incógnito que se descortina a questão de nossa reflexão sobre o olhar de Kubrick: Em nossa época, é possível pensar a liberdade sem recorrer à violência contra si mesmo? Ou a individualidade está controlada de tal forma que a vontade se esvai entre os dedos? Ao final de sua história, Alex reflete sobre sua mocidade: Não, não é somente ser assim como um animal, mas também ser como um daqueles brinquedinhos malenques que a gente videia vender na rua, assim tchelovequezinhos de lata com uma mola dentro e uma borboleta do lado de fora e quando se dá corda, grr grr grr, ele ita, assim andando, ó meus irmãos. Mas ele ita em linha reta e bate direto nas coisas, ploque ploque, e não pode evitar o que está fazendo (BRUGESS, 2004, p. 156).

Laranja Mecânica não é uma obra que exige um olhar fixo, mas abre diversos leques para que as condições da experiência sobre si mesmo se identifiquem com o olhar. Resta saber se, como Alex, existe ainda uma consciência de si que nos permita pensar a possibilidade de evitar ou não a continuidade de nossas ações, irreais, alienadas e condicionadas pelas vulgares convenções da quais nos fala Adorno. Talvez Alex dissesse em um tom que muito se assemelha ao Zaratustra de Nietzsche:

É chegada a hora, ó

irmãozinhos! A hora em que deveis escolher para onde se dirige vosso olhar. A hora em que deveis decidir por sua própria existência ou pela fantocheria de vossa vida. Quereis ir além do homem, ou buscar uma felicidade onde se pisca os olhos?

REFERÊNCIAS Revista Litterarius. v. 9, n. 2 (jul./dez. 2010).

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ADORNO, Theodor. W. Minima Moralia. Lisboa: Edições 70, 2002. BURGESS, Anthony. A Laranja Mecânica. São Paulo: Aleph, 2004. GIACÓIA JR. Oswaldo. O último homem e a técnica moderna. Revista Natureza Humana, v. 1, n. 1. 1999, p. 33-54. KUBRICK, Stanley. Laranja Mecânica. ( A The Clockwork Orange). Warner Bros: 1971 (DVD, Colorido/137 Min). LIMA, Fransmar Costa. Kierkegaard e Dogville: A des-humanização do humano. In: VALLS, Alvaro; MARTINS, Jasson (org.). Kierkegaard no nosso tempo. São Leopoldo: Nova Harmonia, 2010, p. 71-85. NIETZSCHE, Friederich. Assim Falou Zaratustra. Lisboa: Relógio D’água, 2004. TIBURI, Marcia. Olho de Vidro. São Paulo: Record, 2010 (no prelo). Recebido: 04/10/2010 Receivid: 10/04/2010 Aprovado: 16/11/2010 Approved: 11/16/2010


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