SAUL A. KRIPKE
O NOMEAR E A NECESSIDADE INTRODUÇÃO
RICARDO SANTOS
TRADUÇÃO
RICARDO SANTOS E TERESA FILIPE
gradiva
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Título original Naming and Necessity © Saul Kripke, 1972, 1981 Obra originalmente publicada no volume: G. Harman e D. Davidson (eds.), Semantics of Natural Language, D. Reidel Publishing Co., Dordrecht e Boston, 1972. Edição revista e aumentada: Saul A. Kripke, Naming and Necessity, Blackwell Publishing Ltd, Oxford, 1980. Todos os direitos reservados. Tradução autorizada e feita a partir da edição original inglesa publicada por Blackwell Publishing Ltd. A qualidade da tradução é da responsabilidade de Gradiva Publicações, S. A. e não de Blackwell Publishing Ltd. Nenhuma parte deste livro pode ser reproduzida sob qualquer forma sem a prévia autorização escrita do proprietário detentor dos direitos originais, Blackwell Publishing Ltd. Tradução Ricardo Santos e Teresa Filipe Introdução Ricardo Santos Revisão de texto Rui Augusto Capa Armando Lopes (arranjo gráfico) Fotocomposição Gradiva Impressão e acabamento Multitipo — Artes Gráficas, L.da Reservados os direitos para Portugal por Gradiva Publicações, S. A. Rua Almeida e Sousa, 21 - r/c esq. — 1399-041 Lisboa Telefs. 21 397 40 67/8 — Fax 21 395 34 71
[email protected] /www.gradiva.pt 1.* edição Novembro de 2012 Depósito legal 351 170/2012 ISBN 978-989-616-508-6 Colecção coordenada por AIRES ALMEIDA ( C e n t r o d e F il o s o f ia d a U n iv e r s id a d e d e L is b o a )
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Para a M argaret
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Indice
Introdução à edição portuguesa..................................... P refácio............................................................................
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Primeira palestra..................................................................... 67 Segunda palestra..................................................................... 127 Terceira palestra...................................................................... 169 Adenda.............................................................................. 231 índice remissivo................................................................ 241
Introdução à edição portuguesa
Saul Kripke nasceu em Nova Iorque em 1940 e é um dos m ais criativos e influentes filósofos analíticos do nosso tempo. O Nomear e a Necessidade é a sua obra mais conhecida. Juntamente com o artigo «Identity and N ecessity»1 (uma apresentação m ais resum ida das m esmas ideias), trata-se da sua obra de estreia como filósofo. É baseada em três palestras que proferiu na U niversidade de Princeton em Janeiro de 1970. Kripke tinha então 29 anos e já firmara uma reputação como lógico brilhante, graças à publicação de trabalhos im portantes sobre lógica m odal, lógica intuicionista e teoria da recursão. 1 Originalmente publicado em Identity and Individuation, ed. por Milton K. Munitz, Nova Iorque: New York University Press, 1971, pp. 135-164. Reimpresso como Capítulo 1 em: Saul A. Kripke, Philosophical Troubles: Collected Papers, Volume I, Nova Iorque: Oxford University Press, 2011, pp. 1-26. Este artigo baseia-se numa palestra dada por Kripke na Universidade de Nova Iorque cerca de um mês depois das palestras de Princeton.
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Foi durante a sua adolescência, nos anos cinquenta, que Kripke se interessou pela lógica m odal — a lógica do necessário e do possível, que procura form alizar o raciocínio correcto acerca das relações entre a m aneira como as coisas são, a maneira como elas têm de ser e as diferentes maneiras como poderiam ser. Aos 18 anos, era estud ante de licenciatu ra na U niversidade de Harvard quando conseguiu a proeza de publicar, no prestigiado Journal o f Symbolic Logic, um artigo com uma demonstração de completude para a lógica modal. A época era ideal para um jovem talentoso alim entar um interesse por lógica modal: tratava-se de um ramo da lógica m atem ática m oderna que estava naquele preciso momento a desenvolver-se, acom panhado de uma discussão filosófica muito acesa acerca do possí vel uso ou das possíveis interpretações dos sistemas formais propostos. Os principais intervenientes eram Rudolf Carnap, W. V. Quine e Ruth Barcan Marcus. Carnap e Marcus foram os primeiros a publicar, nos anos 1946-47, sistemas axiom áticos de lógica modal quantificada (quer dizer, sistemas que com binavam a já bem conhecida lógica de predicados com a lógica modal proposicional de C. I. Lewis). E Carnap tentou recuperar a ideia leibniziana de conceber as verdades necessárias como verdades em todos os mundos possí veis, para lançar as bases de uma semântica formal para esta nova lógica. M as Q u ine, p rofesso r em Harvard, era muito crítico do empreendim ento e con siderava que o projecto de uma tal lógica pouco valor teria. Segundo Quine, a lógica m odal violava um prin cípio básico de raciocínio e, por isso, não seria possível dar-lhe uma interpretação que fizesse realmente sen tido e que a tornasse uma teoria aplicável. N este debate, Kripke ocupava uma posição inter média. Por um lado, como Carnap, Marcus e m uitos outros, acreditava na possibilidade de desenvolver 10
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uma lógica m odal madura, com um sistema dedutivo e uma semântica formal em harmonia entre si, e com uma interpretação intuitivamente aceitável. Ele próprio trabalhava nesse sentido e, em artigos que publicou entre 1959 e 1965, acabou por contribuir decisivamente (em conjunto com Stig Kanger, Richard M ontague e Jaakko Hintikka) para a criação da chamada «semân tica dos mundos possíveis», que se im pôs como a se mântica canónica para a lógica modal. M as, por outro lado, reconhecia a importância das objecções de Quine. O princípio invocado por Quine, geralm ente conheci do por princípio da indiscernibilidade dos idênticos (ou «lei de Leibniz»), diz que se x e y são o mesmo objecto, tudo o que for verdadeiro de x será também verdadeiro de y. Aparentem ente, uma das coisas que é verdadeira de qualquer x é ser necessariamente idên tico a x (pois todos os objectos são necessariamente idênticos a si próprios). Daqui segue-se que ser neces sariamente idêntico a x é uma propriedade que y tam bém tem, já que x e y são o mesmo. Ou seja, aquele princípio tem como consequência que todas as identi dades são necessárias: qualquer afirm ação de iden tidade, se for verdadeira, será necessariamente verda deira. M as, ao que parece, m uitas identidades são contingentes. Um exemplo disso é o que foi celebrem ente dado por Gottlob Frege, da identidade entre Héspero e Fósforo. O facto de a prim eira «estrela» visí vel à tarde ser a m esm a que a últim a «estrela» visível de manhã e o facto de ambas serem afinal o planeta Vénus correspondem a descobertas empíricas feitas pelos astrónomos e, por isso, deve tratar-se de verda des contingentes, pois, como dizia Kant, a experiência ensina-nos que as coisas são de uma certa m aneira, mas não que não possam ser de m aneira diferente. Um segundo exemplo, dado por Quine, contrasta a iden tidade «9 = 5 + 4» (uma verdade necessária, conhecida
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a priori) com a identidade «9 = o número de planetas do sistem a solar» (uma verdade obviam ente contin gente, já que o sistema solar poderia ter m enos, ou mais, planetas do que efectivam ente tem)2. Um terceiro exemplo, sobre o qual Kripke se interessou especial mente, é o da identidade, defendida pelos m aterialis tas como identidade contingente, entre uma pessoa e o seu corpo, ou entre os estados mentais de uma pes soa e os estados físicos do seu cérebro. Kripke consi derava que exemplos como estes revelavam uma difi culdade real, que precisava de ser respondida. Em Fevereiro de 1962, Ruth Marcus visitou Harvard e participou num encontro apresentando o artigo «Mo dalities and Intensional Languages». Quine leu um com entário que veio a ser publicado com o título «Reply to Professor M arcus». Seguiu-se uma discus são em que também participaram Kripke, Follesdal e McCarthy. Esta discussão foi gravada, posteriormente tran scrita, revista pelos diversos in terven ien tes e publicada num volume da revista Synthese3. A partici pação de Kripke nesta discussão revela bem a posição 2 Em 2006, a União Astronómica Internacional estipulou uma nova definição de «planeta», de acordo com a qual Plutão deixou de contar como planeta. Passou então a considerar-se que o sistema solar tem oito planetas. A causa próxima desta revisão da classi ficação tradicional foi a descoberta de Éris, um corpo esférico que também orbita o Sol e que é maior do que Plutão. Éris e Plutão integram agora o grupo dos «planetas anões». 3 Os textos de Marcus e de Quine foram publicados em Synthese, 13 (1961), pp. 303-322 e 323-330. A tjranscrição da discussão foi publicada em Synthese, 14 (1962), pp. 132-143. Posteriormente, fo ram incluídos nas colectâneas: W. V. Quine, The Ways of Paradox and Other Essays, ed. rev., Cambridge, Massachusetts: Harvard University Press, 1976, pp. 177-184, e R. B. Marcus, Moãalities, Nova Iorque: Oxford University Press, 1993, pp. 3-23 e 24-35. Kripke menciona a sua presença nesta discussão na última parte da se gunda palestra (cf. pp. 162 e ss.).
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interm édia descrita no parágrafo anterior. E revela tam bém um elemento novo: o seu interesse pela su gestão feita por Quine de que, para ultrapassar a sua objecção e conseguir dar uma interpretação intuitiva às fórmulas válidas do sistema, talvez o lógico modal deva adoptar o essencialismo, isto é, a perspectiva fi losófica tradicional segundo a qual as propriedades que um objecto tem se dividem em propriedades es senciais (necessárias) e propriedades acidentais (con tingentes)4. Em O Nomear e a Necessidade, a sugestão será plenamente aceite. Com este pano de fundo, Kripke dedicou-se inten samente, a partir do ano académico 1963-64, às ques tões filosóficas suscitadas pelo problema de interpre tar intuitivamente a lógica modal quantificada. O modo como resolveu o problema de Quine, embora tenha recolhido o contributo e a influência de muitos outros investigadores (como M arcus, Prior, Sm ullyan, F 0 Ilesdal, Hintikka, Putnam e Kaplan), é extraordinaria mente original e muito rico em consequências para diversas áreas do pensam ento filosófico. Kripke con cluiu que, apesar de todas as aparências, não existem identidades contingentes. Muitos objectos poderiam ser bastante diferentes do que realmente são, mas nenhum objecto poderia não ser ele próprio. Aristóteles pode ria não ter sido professor de Alexandre, 0 Grande, poderia não ter sido aluno de Platão, poderia até não ter sido filósofo — mas não poderia não ser Aristóteles. E isso em nada mudaria, caso Aristóteles tivesse dois
4 Na discussão, Quine afirma: «I think essentialism, from the point of view of the modal logician, is something that ought to be welcome» (em Marcus, Modalities, op. cit., p. 30). No entanto, ele próprio considerava que o essencialismo era uma perspectiva ina ceitável, por razões que explicitou em Word and Object, Cambridge, Massachusetts: MIT Press, 1960, pp. 199-200.
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nomes diferentes, como aconteceu, por exem plo, com Cícero, que também se chamava «Túlio». Cícero é Túlio, ou seja, eles são a mesma pessoa — e não é possível que fossem pessoas distintas. Do mesmo m odo, defen de Kripke, também não é possível uma situação em que Héspero não fosse Fósforo. M uitas pessoas, no entanto, julgam que a identidade «Héspero = Fósforo» é contingente. O que elas concebem, quando form u lam esse juízo, é, por exemplo, uma situação em que o últim o corpo celeste visível de manhã (nas épocas apropriadas do ano) não é Héspero, mas sim algum outro corpo. Mas isso, se pensarm os bem, não é uma situação em que Héspero não seria Fósforo. O que se trata é de uma situação em que Héspero — ou seja, Fósforo —- não seria visível de manhã na posição em que costumam os observá-la. Contudo, não foi a identidade «Héspero = Fósforo» uma descoberta empírica? Sim, foi; só que daí não se segue que seja contingente. Ao contrário do que toda a gente parece pensar, pelo menos desde Kant, Kripke afirma que a distinção em pírico/ a priori nem sempre coincide com a distinção contingente/necessário. A pri meira é de natureza epistem ológica, dizendo respeito ao modo como podemos chegar ao conhecim ento das coisas, enquanto a segunda é de natureza m etafísica, dizendo respeito ao modo como as próprias coisas são, às propriedades ou características que fazem parte da sua essência, por oposição àquelas que são apenas aci dentais ou contingentes — ou seja, propriedades que as coisas têm no mundo/real (ou actual), mas não têm noutros mundos possíveis. Fica assim aberta a porta para a existência de verdades a priori contingentes e de verdades a posteriori necessárias. Como exemplo das prim eiras, Kripke dá a afirmação de que a barra de platina que está conservada em Paris, e que foi adop tada como metro-padrão, tem um metro de compri14
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mento. Na sua perspectiva, uma pessoa para quem o term o «um metro» se defina com o o com prim ento daquela barra saberá a priori, por meio da própria definição, que a afirm ação é verdadeira, apesar de expressar algo que poderia ser diferente do que é (pois é óbvio que aquela barra poderia ser mais comprida, ou menos comprida, do que realmente é). Mais im por tantes, e m ais numerosos, são os exemplos apresenta dos de verdades necessárias que só podem ser conhe cidas por procedim entos empíricos: a água é H20 , o ouro tem o número atómico 79, a luz é um feixe de fotões, o calor é o m ovimento das m oléculas, os relâm pagos são descargas eléctricas, as baleias são m am ífe ros, etc. O modo como Kripke analisa estes exemplos e justifica o seu carácter m etafisicam ente necessário é muito interessante e resulta numa m aneira de encarar o conhecim ento científico, que contrasta fortemente com o que podemos encontrar num filósofo empirista como Quine, para quem as teorias científicas são estru turas linguísticas subdeterm inadas pelos dados dispo níveis, que nos ajudam a prever e a controlar «estim u lações dos nossos receptores sensoriais» à luz das estim ulações passadas. Em clara oposição a qualquer forma de anti-realismo, Kripke considera que a inves tigação científica é um em preendim ento que, quando é bem -sucedido, descobre a própria essência das coi sas, sejam elas espécies, substâncias ou fenóm enos naturais. Kripke recupera, portanto, o essencialismo da filo sofia tradicional, de m atriz aristotélica. O próprio Quine costumava caracterizar o essencialism o dizen do que consistia em considerar que os objectos têm algumas propriedades que são necessárias. Mas quan do se tratava de esclarecer a noção de necessidade, o que Quine tinha para dizer era, invariavelm ente, que uma afirmação com a forma «necessariamente p» será 15
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verdadeira se e som ente se o enunciado que ocupa o lugar de «p» for analítico. E um enunciado será analí tico se for verdadeiro apenas em virtude do significa do dos termos que o com põem (havendo duas espé cies principais de tais enunciados: as verdades lógicas e os enunciados que se deixam reduzir a verdades lógi cas quando substituím os certos termos por expressões sinónim as que os definem). Ora, um facto histórico muito significativo é que, até Kripke, todos os interve nientes no debate provocado pela objecção de Quine à lógica modal entenderam a necessidade com base nesta noção de analiticidade. Isso é muito claro no caso de Ruth Marcus: quando defende que todas as identida des são necessárias, Marcus vê-se na situação insólita de ter de defender que «Héspero é Fósforo» é uma verdade analítica, determ inada pelas regras semânti cas da linguagem, e que poderia ser conhecida a priori pela sim ples consulta de um bom dicionário! Uma das principais inovações de Kripke foi precisam ente ter recuperado o velho sentido metafísico da necessidade, de acordo com o qual quando afirmamos, por exem plo, que as baleias são necessariamente mamíferos, não estamos a querer dizer que basta com preendermos a frase «as baleias são mamíferos» para saberm os que é verdadeira, nem sequer que uma baleia não-m amífero seria totalm ente inconcebível, mas, mais literalm ente, que ser um mamífero é o que, entre outras coisas, ser uma baleia é, de tal modo que, devido a essa natureza intrínseca, nenhum ser poderia ser uma baleia sem ser um mamífero. Não se trata aqui de um essencialism o trivial, em que somente propriedades formais ou lógi cas, como o ser idêntico a si próprio, seriam reconhe cidas como necessárias. Pois Kripke considera que «pode m uito bem descobrir-se a essência em pirica mente» (p. 174). Há páginas de O Nomear e a N ecessi dade que ficarão por muito tempo associadas à reabi
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litação da m etafísica como disciplina filosófica, de que Kripke foi um dos principais responsáveis e que m odi ficou consideravelm ente o panorama da filosofia con temporânea. Trata-se, nomeadam ente, das páginas em que se defende que a origem de um objecto, ou a sua constituição m aterial, é uma das suas propriedades essenciais. Além de analisar alguns exemplos (a rai nha Isabel II de Inglaterra não poderia ter sido filha do presidente Trum an, a mesa de m adeira que tenho à minha frente não poderia ter sido feita de água conge lada do Tam isa), Kripke esboça um argumento quase-form al (cf. p. 178, nota 56) em defesa desta tese, o qual se revelou especialmente controverso. Mas voltem os à necessidade da identidade e ao exemplo «9 é o número de planetas» dado por Quine, que Kripke equipara a outros como «Benjamin Franklin é o homem que inventou as lentes bifocais» ou «Gòdel é o homem que demonstrou a incompletude da arit mética». Perante casos tão flagrantes de contingência, como se pode m anter aquela tese? E im portante obser var que, nestes exem plos, a identidade é afirm ada usando, de um lado, nomes próprios («9», «Franklin», «Gòdel») e, do outro, descrições definidas, isto é, ex pressões com a forma «o objecto (ou indivíduo) que é (ou que fez) tal e tal». De acordo com a teoria das descrições definidas de Russell5, nomes e descrições são expressões de categorias muito diferentes, de tal m odo que um enunciado com a forma gram atical «a é o indivíduo que fez F» não é realm ente uma simples afirm ação de identidade, mas antes uma afirmação mais complexa cuja forma lógica pode ser indicada através da seguinte paráfrase: «Existe um e um só 5 Bertrand Russell, «On Denoting», Mind, 14 (1905), pp. 479-493. Reimpresso em Bertrand Russell, Logic and Knowledge, Lon dres: Routledge, 1992, pp. 41-56.
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indivíduo que fez F e a é esse indivíduo»6. Embora m an ifeste sim patia pela teoria das d escriçõ es de Russell, Kripke desvia-se dela ao tratar as descrições como designadores, isto é, como termos que teriam sentido por si próprios e que serviriam para referir um objecto. No caso de uma descrição definida como «o inventor das lentes bifocais», se existe um e um só indivíduo que inventou as lentes bifocais, esse indiví duo é o referente da descrição. Quem inventou real m ente essas lentes foi Franklin e, por isso, no mundo actual, é ele o referente da descrição. Mas quando fa lamos de modalidades, consideram os tam bém situa ções contrafactuais, que não aconteceram m as pode riam ter acontecido — aquilo a que se tornou habitual cham ar «outros mundos possíveis». Num mundo pos sível em que não foi Franklin, mas sim um dos seus irmãos, que inventou as lentes bifocais, será esse ir mão o referente da descrição. Portanto, o referente de uma descrição é, em cada mundo possível, o objecto ou indivíduo (se existir algum ) que, nesse m undo, satisfaz as condições incluídas na descrição. Esta flexi 6 A teoria de Russell prevê que, quando um operador frásico — como a negação ou o operador de necessidade — é aplicado a uma frase do género de «9 é o número de planetas», o enunciado resul tante é ambíguo, podendo expressar dois pensamentos diferentes, em muitos casos com valores de verdade distintos. Kripke refere-se a essas ambiguidades de âmbito nas pp. 115-116 (e na nota 25), dando como exemplo o contraste entre pensar, acerca do homem que ensinou Alexandre (¿.e., acerca de Aristóteles), que ele poderia não ter ensinado Alexandre e pensar que poderia ter acontecido o seguinte: o homem que ensinou Alexandre não ensinou Alexandre; o primeiro pensamento é verdadeiro, mas o segundo é logicamente falso. Uma tentativa muito influente de resolver o paradoxo de Quine com base nestas distinções de âmbito e no princípio russelliano de que as descrições são símbolos incompletos (sem referente) que se definem em contexto foi a de Arthur F. Smullyan, «Modality and Description», Journal of Symbolic Logic, 13, 1948, pp. 31-37.
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bilidade das descrições torna evidente que a necessi dade da identidade não se aplica em geral a afirm a ções que usam descrições como, por exemplo, «o in ventor das lentes bifocais é o inventor do pára-raios». Há obviam ente mundos possíveis em que não foi a mesma pessoa a inventar as duas coisas. E que dizer dos nomes, isto é, dos nomes próprios como «Franklin», «Paris» ou «Grécia»? Para cada nome, como é que se determina o objecto por ele referido, em cada situação ou mundo possível? Um dos principais objectivos de Kripke em O Nomear e a Necessidade é refutar a chamada «teoria descritivista dos nomes», que dominava a filosofia da linguagem desde o início do século. Embora costume atribuir a teoria descriti vista aos seus fundadores, Frege e Russell, Kripke não está aqui interessado em fornecer uma interpretação exacta do pensam ento de cada um destes autores e das óbvias diferenças entre eles. O seu alvo preferen cial é uma ortodoxia, quer dizer, uma teoria dos nomes que considera ser aceite pela generalidade dos filóso fos, a qual tem na sua base um conjunto de ideias formuladas por Frege e por Russell, mas que também incorpora desenvolvimentos posteriores, como é, por exemplo, a chamada «teoria do feixe». O elemento cen tral da teoria descritivista é a ideia de que cada nome está estreitamente associado a uma descrição do objecto nomeado. Isto é especialmente plausível a respeito dos nomes de figuras históricas. Visto que não conheci pessoalmente Aristóteles, a quem é que me refiro quan do uso o nome «Aristóteles»? Os descritivistas respon dem que me refiro, m uito provavelm ente, ao autor das obras que compõem o Corpus Aristotelicum. Do mesmo modo, quando uso o nome «Manuel Arriaga», devo estar a referir-me ao homem, que não conheci, mas que sei ter sido o prim eiro presidente da República Portuguesa. Russell dizia que, quando uso um destes
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nomes, o pensamento que está na minha mente só pode ser expresso de modo explícito se substituirmos o nome pela descrição associada — pois julgava que um indiví duo que não conheci directamente não pode fazer parte do meu pensamento. Como é óbvio, isto levantava a questão de saber se os diversos falantes de uma língua entendem da mesma maneira os nomes que usam , isto é, se as descrições que associam a cada nom e são as mesmas ou se são diferentes. Outra dificuldade, talvez ainda mais básica, é que o utilizador de um nome, se lhe perguntarem qual é a descrição que associa a esse nome, pode naturalmente responder que associa várias descrições e que não consegue escolher uma só. Devo associar «Aristóteles» a «o autor das obras do corpus», a «o fundador do Liceu» ou a «o criador da silogística»? D iversos filósofos responderam a isto dizendo que associamos ao nome não uma descrição única, mas um conjunto — ou algo m ais vago: um feixe —- de des crições, e que, para os diversos utilizadores do nome, o seu referente é o objecto que satisfaz a m aioria, ou uma m aioria ponderada, dessas descrições. Na concepção descritivista há m aneiras diferentes de caracterizar a relação entre o nome e a descrição (ou o feixe de descrições) que lhe está associada. Uma interpretação bastante frequente de Frege diz que o sentido de um nome (por oposição ao seu referente) é dado por uma descrição. Russell preferia dizer que o nome abrevia uma descrição. Outros autores dirão an tes que o nome é sinónimo da descrição ou que o nome se define pela disjunção das descrições que fazem parte do feixe que lhe está associado. Outros ainda conside ram que os nomes não têm significado linguístico, mas que o objecto por eles referido é determinado pelo feixe de descrições associado. Kripke não está m uito inte ressado nos pormenores de cada uma destas versões, pois considera que a concepção descritivista está radi-
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cálm ente errada, nos seus traços mais gerais e básicos, independentem ente do modo como seja depois desen volvida. Ainda assim, distingue duas versões princi pais do descritivism o — o descritivism o como teoria do significado dos nomes e o descritivism o como teo ria acerca do modo como é fixada a referência dos nomes — e comenta que é sobretudo a primeira que faz dele uma teoria poderosa e elegante, e que explica a atracção que exerceu durante tanto tempo. Num esforço para isolar o que seria o núcleo fundamental do descritivism o, partilhado por todas as suas varian tes, Kripke formula um conjunto de teses caracterís ticas. As m ais im portantes são as seguintes: (i) cada nome tem uma colecção C de propriedades que lhe corresponde, de tal modo que um utilizador do nome acredita que o seu referente tem as propriedades in cluídas em C; (ii) o utilizador do nome acredita que uma ou algumas das propriedades incluídas em C seleccionam um e um só objecto; (iii) se há um e um só objecto que tem a m aioria, ou uma maioria ponderada, das propriedades incluídas em C, então esse objecto é o referente do nome; (iv) se não há nenhum objecto único que tenha essa m aioria (ponderada) de proprie dades, então o nome não tem referente. As diversas objecções que Kripke dirige a estas teses, e às suas consequências, podem ser classificadas em três gru pos: argumentos m odais, argumentos epistém icos e argumentos semânticos. O objectivo destes argumen tos é mostrar que a teoria descritivista está errada desde a sua base e que, por isso, nenhum a rectificação ou aperfeiçoamento poderá salvá-la, devendo antes pro curar-se uma nova abordagem. Na sua versão mais forte, enquanto teoria do signi ficado, o descritivism o considera que o significado de um nome próprio é dado por uma descrição definida. Esta ideia tem uma consequência inaceitável, a qual
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foi apontada por John Searle quando propôs o feixe de descrições como aperfeiçoam ento da teoria7. Efectiva mente, se o nome «Aristóteles» significasse «o autor das Categorias e do De Interpretatione e dos Primeiros Analíticos, etc.», isso im plicaria que um a afirmação como «Aristóteles escreveu as Categorias» seria uma verdade analítica, exactam ente do mesmo m odo que «nenhum homem solteiro é casado» é uma verdade analítica, devido ao facto de o term o «solteiro» signifi car «que ainda não se casou». Mas as verdades analíti cas são verdades necessárias, enquanto ser autor das Categorias é uma propriedade contingente de Aristóte les. Para evitar esta consequência, Searle propõe que o significado do nome é dado, não por uma, mas por um feixe de descrições. Nesta perspectiva m odificada não tem de haver uma propriedade única que Aristóteles possua necessariam ente, mas há uma colecção mais ou menos vasta de propriedades tais que Aristóteles possui necessariam ente um número suficiente delas. Segundo Kripke, esta m odificação deixa intacto o pro blema, uma vez que A ristóteles poderia não ter ne nhuma das propriedades que geralm ente lhe atribuí mos. As propriedades que geralm ente associamos a Aristóteles são propriedades contingentes, por isso, não podem ser elas que definem o significado do nome «Aristóteles». Este argumento m odal põe em relevo uma diferença im portante no com portam ento semân tico de nomes próprios e descrições definidas. Quan do dizem os, por exemplo, «o professor de Alexandre poderia não ser filósofo», estamos a considerar uma situação contrafactual ou um mundo possível no qual Alexandre foi ensinado por um e um só homem (que não tem de ser Aristóteles), o qual não seria um filó7 John R. Searle, «Proper Names», Mind 67, 1958, pp. 166-173. Veja-se a citação de Searle na p. 115.
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sofo. Quando usamos uma descrição para descrever uma situação contrafactual, referimo-nos ao indivíduo, seja ele qual for, que satisfaz a descrição nessa situação. Mas quando usamos um nome, o que se passa é muito diferente. Se dizemos que Aristóteles poderia não ser filósofo, ou que poderia nunca ter saído de Estagira e ter m orrido muito jovem , é sempre de Aristóteles que estamos a falar. Estam os a considerar situações possí veis nas quais Aristóteles não tem as propriedades que tem no mundo actual, mas em todas elas «Aristó teles» refere-se a A ristóteles. Para caracterizar esta diferença, Kripke introduz a noção teórica de designador rígido: um designador rígido é um termo singular que designa o mesmo objecto em todos os mundos pos síveis. A tese de que os nomes próprios são designadores rígidos8 é uma das principais teses positivas defendidas em O Nomear e a Necessidade. Ao contrário dos nomes, as descrições não são designadores rígi dos; e o que os argumentos m odais fazem é explorar esta diferença fundam ental para m ostrar que o signi ficado dos nomes não pode ser dado por meio de descrições. Os argumentos epistém icos contra o descritivism o têm por alvo principal a tese (ii), segundo a qual o
8 A questão de saber se um nome continua a designar o mesmo objecto nos mundos possíveis em que esse objecto não existe é controversa. As declarações de Kripke a esse respeito parecem ser divergentes: confronte-se a resposta afirmativa dada na nota 21 do prefácio de 1980 (nas pp. 64-65) com a resposta negativa dada em «Identity and Necessity» (in Kripke, Philosophical Troubles, op. cit., p. 10) e com a resposta neutra relatada por David Kaplan em «Afterthoughts» (in Themes from Kaplan, ed. por J. Almog, J. Perry e H. Wettstein, Nova Iorque: Oxford University Press, 1989, pp. 569-570 e nota 8). Veja-se também, sobre esta questão, Nathan Salmon, Reference and Essence, Princeton: Princeton University Press, 1981, pp. 31-41.
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utilizador de um nome acredita que um certo conjunto de propriedades associadas ao nome é tal que existe um e um só objecto que as possui. Contra isto, Kripke aponta exemplos em que m uitas pessoas usam um nome N sem que consigam realm ente responder à pergunta «Quem é (ou foi) N?» fornecendo uma des crição que só o referente do nome satisfaria. Assim, muita gente usa o nome «Cícero» ou o nome «Feynman» sabendo muito pouco a respeito dos seus refe rentes. No máximo, serão capazes de dizer algo como: «Foi um famoso orador romano», ou: «Acho que é um físico», sem que julguem que isso é suficiente para identificar o homem a que se referem. Outro exemplo explorado por Kripke é o daquelas pessoas que falam de Einstein, que o identificam como «o homem que descobriu a teoria da relatividade» e que a única coisa que sabem acerca da teoria da relatividade é que foi descoberta por Einstein. Isto é tam bém um contra-exem plo à tese (ii), porque realmente a descrição que estas pessoas estão a fornecer para identificar Einstein mais não é do que «o homem que descobriu a teoria que descobriu»9, o que está longe de ser exclu sivo dele. Além disso, tal como sabemos a priori que um indi víduo solteiro não é casado, também deveríam os saber a priori, se o descritivismo estivesse certo, que Aris tóteles escreveu as Categorias. E, em geral, sendo P uma das propriedades que definem um nome N, deveria ser inconcebível que um utilizador com petente de N viesse a descobrir que, afinal, ao contrário do que ju l gava, o referente de N não tem a propriedade P. Mas 9 Veja-se também a condição de não-circularidade formulada nas pp. 123-124 e 128, e o seu uso para criticar a teoria segundo a qual a propriedade que define e fixa a referência de um nome N é a propriedade de ser o indivíduo chamado N (nas pp. 129-130).
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IN TRODUÇÃO
é óbvio que coisas como ter escrito as Categorias ou ter sido professor de Alexandre não são coisas que possa mos saber a priori acerca de Aristóteles, nem são coisas a respeito das quais não seja possível virmos um dia a descobrir que estamos enganados. As teses (iii) e (iv) são os alvos principais dos argu mentos semânticos contra o descritivismo. A primeira diz que se um conjunto de condições contem pladas no «feixe de descrições» é satisfeito por um e um só objecto, então esse objecto é o referente do nome. A segunda acrescenta que, se não há nenhum objecto único desses (que satisfaça um conjunto de condições contem pladas no «feixe de descrições»), então o nome não tem referente. Kripke apresenta contra-exem plos para ambas. Um deles é um exemplo im aginário, con cebido por Kripke e que se tornou muito conhecido. O exemplo é acerca de Gõdel, o lógico que se tornou especialm ente famoso por ter dem onstrado (em 1931) a incompletude da aritm ética. Em geral, as pessoas que usam o nome «Gõdel» conhecem -no como o ho mem que demonstrou a incompletude da aritmética. Kripke imagina então que não foi realmente Gõdel, mas sim um outro indivíduo, Schm idt, quem dem ons trou a incompletude. Sem que ninguém até hoje tenha descoberto, Gõdel apoderou-se do m anuscrito e publicou-o como se fosse seu. De acordo com a tese (iii), quando usamos o nome «Gõdel», deveríamos então estar a referir-nos a Schm idt, pois é afinal Schm idt o homem que dem onstrou a incompletude. M as, de fac to, mesmo que a fraude imaginada por Kripke tivesse ocorrido, é a Gõdel que nos referim os quando usamos o seu nome. Podemos estar enganados na nossa atri buição do teorema e, no entanto, usar correctamente o nome «Gõdel» para nos referirm os a Gõdel. Por outro lado, também há casos em que usam os um nome acre ditando que o seu referente é o único indivíduo que 25
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fez uma certa coisa, quando, na verdade, essa coisa foi feita por várias outras pessoas. Kripke dá com o exem plo o facto de muitas pessoas falarem de Einstein pen sando que ele inventou a bomba atómica. Uma vez que a bomba atómica foi obra de uma equipa (a que Einstein não pertencia), a tese (iv) prevê que esses usos de «Einstein» não teriam referente. Mas é claro que isso não é assim. As pessoas que julgam erradamente que Einstein foi o inventor da bomba atóm ica não deixam, por isso, de se referir a Einstein quando usam o seu nome. Kripke considera que o conjunto de argumentos que apresentou é suficiente para mostrar, de forma conclu siva, que a teoria descritivista dos nomes, em qualquer das suas versões, está radicalmente errada. Não se trata apenas de defender que há erros localizados ou insu ficiências diversas na teoria descritivista. O que se passa, na perspectiva de Kripke, é antes que «a con cepção de conjunto que esta teoria nos dá sobre como se determ ina a referência [dos nomes] parece estar errada desde as suas bases» (p. 154). Quando tenta caracterizar o que seria o «erro fundamental» do descritivism o, Kripke descreve por vezes uma situação em que uma pessoa está sozinha num quarto, com pleta m ente isolada de todas as outras, e determ ina para si própria que o referente de um nome N é um indivíduo distante (no espaço e no tempo), com o qual nunca teve contacto perceptivo — numa tal situação, parece ria natural o recurso a uma descrição definida, ou a uma m ultiplicidade de descrições, para determ inar o referente do nome. Mas se não é assim que os nomes que usam os adquirem uma referência, como é que isso acontece? Kripke afirma que não tem uma teoria alter nativa para apresentar. Em particular, declara que não dispõe de um conjunto de condições necessárias e suficientes capazes de analisar o que é referir um objecto
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INTRODUÇÃO
(com um nome). Em vez disso, apresenta alguns ele mentos do que considera ser «uma imagem melhor» da prática real de nomear pessoas e coisas. Uma vez que esta «imagem melhor» assenta numa noção cen tral de cadeia causal, a proposta positiva de Kripke ficou conhecida e é mencionada na literatura como «abordagem (ou teoria) causal da referência». Esta nova abordagem começa por sublinhar que, enquanto falan tes, somos membros de uma comunidade. A genera lidade dos nomes que usamos não foram criações nos sas: eles têm uma história m ais ou m enos longa e chegaram até nós por via da nossa interacção com uni cativa com outros falantes; essa história anterior que cada nome — ou que cada uso de um nome — tem contribui decisivamente para lhe conferir uma refe rência. O descritivista erra ao supor que a explicação para a referência dos nomes que eu uso se deve encon trar exclusivam ente em mim próprio, nos meus estados ou processos internos e privados. Os argumentos de Kripke m ostraram, pelo contrário, que muitas vezes o utilizador de um nome sabe muito pouco, ou pode estar bastante equivocado, a respeito do objecto que refere — e, no entanto, refere-se a esse objecto. Não é nenhum m istério que o falante consiga referir-se a pessoas e coisas que nunca viu e de que sabe tão pou co, se tiverm os em conta que ele o faz em virtude da sua pertença a uma com unidade no seio da qual o nome foi transm itido, com a referência que tem, de falante para falante, «de elo em elo», ao longo de uma cadeia causal que se estende desde o «primeiro uso» — aquilo a que Kripke chama «o baptism o inicial» — até ao uso presente, aqui e agora. O que Kripke diz acerca do baptism o inicial e acer ca da transm issão do nome na cadeia de comunicação é assum idam ente m uito esquem ático e insuficiente enquanto teoria da referência. Os casos mais simples 27
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e frequentes de baptism o inicial são aqueles em que um objecto é nomeado por ostensão: na presença de um objecto, e apontando possivelm ente para ele, um certo nome é-lhe atribuído, nome esse que depois se espa lhará e chegará a ser usado por outros falantes que não participaram no baptism o. Mas Kripke também considera casos de baptism o sem ostensão. O melhor exemplo que dá é o da descoberta de Neptuno. Este planeta foi baptizado tendo por base, não uma obser vação em pírica directa, m as uma conjectura astro nómica: a existência de um planeta num a certa posi ção parecia a melhor explicação para as perturbações observadas na órbita de Úrano. Aqui, a concepção descritivista parece ter aplicação, pois a referência do nome «Neptuno» foi inicialm ente fixada pela descri ção «o planeta que causa tais e tais perturbações na órbita de Urano». No entanto, Kripke insiste em que a sua caracterização destes baptism os por descrição se distingue claramente, em diversos aspectos, da teoria descritivista dos nom es. Desde logo, porque estes baptism os por descrição são relativam ente raros, en quanto o descritivism o pretende ser uma teoria geral dos nomes. Depois, porque o nome «Neptuno» e a descrição que lhe fixou inicialm ente a referência con tinuam a ter com portam entos semânticos m uito dis tintos, um a vez que o nom e designa rigidam ente Neptuno em todas as situações possíveis, enquanto a descrição não é rígida. Pois há, sem dúvida, situações contrafactuais em que seria verdade dizer que Neptuno está tão distante que em nada perturba a órbita de Urano. Além disso, na perspectiva de Kripke, a descri ção fixou a referência dos usos de «Neptuno» na fase do baptism o, mas não é ela que fixa a referência dos usos posteriores do nome. Um utilizador competente do nome não tem hoje de conhecer a condição descri tiva por meio da qual se fez o baptismo.
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INTRODUÇÃO
A respeito da transm issão do nome ao longo da cadeia causal que liga os seus diversos usos por dife rentes falantes, Kripke observa que ela tem de obede cer a certas condições para que seja também uma trans missão da referência. Como ele diz, «nem todo o género de cadeias causais que se estendem de mim até um certo hom em conseguirão fazer-m e referir esse ho mem» (pp. 153-154). Uma condição necessária para que a cadeia de comunicação transmita adequadamente a referência é que cada falante, quando aprende ou re cebe um nome de outro falante, tenha a intenção de usar o nome para se referir ao mesmo objecto que o outro falante referia quando usava o nome. É isso que não acontece, por exemplo, quando adopto «Napoleão» como nome para o meu cão. As últim as páginas de O Nomear e a Necessidade, no final da terceira palestra, ilustram bem aquilo que Kripke anuncia no início da primeira palestra: embora os temas centrais da obra sejam temas muito circunscri tos de filosofia da lógica e de filosofia da linguagem — como a necessidade da identidade, a tese da desig nação rígida e a crítica à teoria descritivista dos no m es — , as suas im plicações estendem -se a m uitas outras áreas e problem as da filosofia. M encionei já consequências relevantes para a filosofia da ciência e para a m etafísica. Nas últim as páginas, Kripke ocupa-se da filosofia da mente. Nesta área, os filósofos con temporâneos são predominantemente m aterialistas (ou «fisicistas», como muitos preferem dizer) e rejeitam o dualismo cartesiano segundo o qual a alma e o corpo seriam duas substâncias distintas. Nos anos cinquenta, Ullin Place, Herbert Feigl e J. J. C. Sm art formularam , como alternativa ao behaviorism o lógico de Gilbert Ryle, a chamada «teoria identitativa da mente», que tem como tese central a afirmação de que os estados mentais mais não são do que estados físicos do cérebro. 29
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Num conhecido e influente livro publicado em 1968, com o título A M aterialist Theory o f the M indw, D. M. Armstrong caracteriza a teoria identitativa como uma perspectiva que, à pergunta: «O que é um homem?», responde que é um objecto m aterial com propriedades exclusivam ente físicas; e que, à objecção: «Mas o ho mem pensa, sente e deseja, isto é, tem uma mente, que é algo que não existe no mundo físico», responde muito simplesmente que a mente é o cérebro. O Nomear e a Necessidade termina com uma surpreendente crítica a esta teoria”, na qual Kripke aplica à alegada identida de m ente-cérebro as ideias que antes desenvolveu a respeito da identidade, da necessidade e da contin gência, dos designadores rígidos e não-rígidos e das identificações teóricas descobertas pela ciência. Nos seus traços mais gerais, o argumento antimaterialista de Kripke é do seguinte género: se a m ente é o cérebro, então eles são necessariam ente idênticos; mas o cérebro poderia existir sem a mente; logo, a mente não é o cérebro. A prim eira premissa é uma aplicação do princípio da necessidade da identidade. E a segunda prem issa corresponde a uma intuição muito forte, que é reconhecida e partilhada pela generalidade dos filó sofos, tanto dualistas como m aterialistas. De facto, o materialism o visado por Kripke afirma que as correla ções ou correspondências entre estados m entais e esta dos físicos do cérebro — que, uma vez descobertas pela 10 Londres: Routledge and Kegan Paul. 11 Existem diferentes versões da teoria identitativa. Uma distin ção habitual é entre (i) a teoria que afirma que cada tipo de estado mental é idêntico a algum tipo de estado físico (a chamada teoria da identidade tipo-tipo), e (ii) a teoria que defende que cada estado ou acontecimento mental particular é idêntico a algum estado fí sico particular (a teoria da identidade espécime-espécime). Kripke argumenta contra estas duas versões da teoria, embora dê mais atenção à primeira.
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ciência empírica, confirmarão a tese filosófica da iden tidade — são contingentes. Kripke usa como exemplo a hipótese m aterialista de que a dor é a estimulação das fibras C 12. Mesmo para os que defendem esta hipó tese (ou outras do mesmo género), parece evidente que a estimulação das fibras C poderia ocorrer no corpo de uma pessoa sem que essa pessoa tivesse dores — por exem plo, os seres hum anos poderiam ter uma constituição diferente da que têm, devido à qual essa estim ulação lhes provocasse cócegas em vez de dores. Mas o reconhecim ento do carácter contingente desta correspondência entre um estado físico e um estado mental não é consistente, insiste Kripke, com a afirm a ção m aterialista de que essa correspondência é uma identidade. E o materialista não pode querer assem e lhar as supostas identidades entre estados m entais e físicos com identidades como a que se verifica entre o inventor das lentes bifocais e o inventor do pára-raios, porque «dor» e «estimulação das fibras C» (ou o termo científico que a investigação vier a colocar no lugar deste) são designadores rígidos. Kripke demora-se a considerar e a afastar uma pos sível objecção ao seu argumento, que exploraria uma analogia entre a identificação m aterialista e as identi ficações teóricas que discutiu antes, como, por exem plo, a identificação entre a água e H20 , ou entre o calor e o movimento molecular. A objecção consistiria em dizer que em ambos os casos as identidades des cobertas são necessárias (e, por isso, o argumento de Kripke teria uma prem issa falsa), mas há uma ilusão de contingência que se pode explicar (e que seria res ponsável pela nossa tendência natural para aceitar a 12 As fibras C são um dos tipos de fibras nervosas que ligam os receptores da dor — os nociceptores, existentes em diversos teci dos do corpo humano — ao sistema nervoso central.
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premissa como verdadeira). Quando antes analisou o caso do calor, Kripke teve o cuidado de distinguir o calor enquanto fenóm eno exterior da sensação através da qual o percepcionam os, e a que cham amos precisa m ente «sensação de calor». As pessoas que julgam que o calor poderia não ser m ovimento molecular, e que acham im aginável uma situação em que calor e m ovi mento m olecular fossem coisas distintas, estão iludi das. Efectivam ente, estão a im aginar uma situação em que não houvesse correspondência entre, por um lado, o m ovimento das m oléculas, ou seja, o calor, e, por outro, a nossa sensação de calor; por exemplo, uma situação em que, em virtude de diferenças no sistema nervoso, a sensação de calor fosse antes causada por feixes de fotões (ou seja, pela luz) e em que o m ovi m ento das m oléculas (ou seja, o calor) fosse antes per cepcionado por sensações de outro tipo. E é claro que, numa tal situação, o calor, apesar de não ser sentido como calor, seria movimento das moléculas. Não pode ria então passar-se o mesm o no caso da dor? Não po deríam os imaginar uma situação em que a dor, sendo idêntica à estim ulação das fibras C, não fosse no en tanto sentida por nós como dor? Kripke defende que não, e que, por isso, os casos não são análogos. Uma situação em que a estim ulação de fibras C não fosse sentida como dor é uma situação em que ela não seria dor, ou seja, em que essa estim ulação existiria sem dor. A distinção que fizem os no caso do calor — entre o calor como fenómeno externo e a sensação interna de calor — não pode fazer-se a respeito da dor. Se (em qualquer mundo possível) um certo fenóm eno não é sentido como uma dor, então (nesse mundo) esse fenó meno não é uma dor; e se ele é sentido como dor, então é uma dor. Kripke também explica isto dizendo que os termos «calor» e «dor», apesar de serem ambos designadores rígidos, têm uma diferença im portante: a refe32
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rência do primeiro foi fixada por uma propriedade acidental do fenóm eno (a saber, a propriedade de cau sar em nós a sensação de calor), enquanto a referência do segundo foi fixada por uma propriedade essencial do fenóm eno (a saber, a propriedade de ser sentido como dor). O calor não tem necessariam ente de ser sentido como calor, tal como a água não tem necessa riamente de ter o aspecto ou as qualidades superficiais que tem. Mas a sensação de dor é uma propriedade essencial de toda a dor. Por conseguinte, se a correlação entre a dor e a estim ulação das fibras C é meramente contingente, elas não são o mesmo fenómeno. O mesmo se poderia dizer de outras correlações entre aconteci mentos m entais e processos físicos. Este argumento de Kripke contra a teoria identitativa da mente está longe de ter convencido a genera lidade dos filósofos. Pelo contrário, gerou um imenso debate que se prolonga até hoje e do qual resultou uma extensa bibliografia. Numa interessante nota de rodapé no final da discussão, Kripke afirma precisa mente que considera que a relação entre a mente e o corpo é um problema «com pletam ente em aberto» e confessa a sua «extrema perplexidade» a seu respeito (p. 229, n. 77). Aí faz tam bém notar que a crítica à teo ria identitativa não faz de si um adepto do dualismo car tesiano, até porque o dualism o não parece com patível com a tese da essencialidade da origem (segundo a qual «uma pessoa não poderia ter vindo de um esperm ato zóide e de um óvulo diferentes daqueles em que efec tivam ente teve origem») que defendeu antes. Por fim, declara que «não temos uma concepção clara de alma ou de eu» e m anifesta simpatia pela «crítica de Hume à noção de um eu cartesiano». Esta sinopse dos principais tem as e problem as tra tados em O Nomear e a Necessidade revela a grande 33
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originalidade e a riqueza do pensam ento filosófico do jovem Kripke, que até aí se tornara conhecido sobre tudo como um brilhante e precoce lógico m atemático. Desencadeadas pelo trabalho inicial em lógica modal (que levou à criação da semântica dos m undos possí veis) e pela reflexão subsequente sobre a objecção de Quine e sobre o problema de encontrar uma interpre tação intuitivam ente aceitável para os sistemas de ló gica m odal quantificada, estas ideias foram sendo desenvolvidas ao longo da década de 1960, sem que no entanto daí resultasse qualquer publicação. Final mente, em Janeiro de 1970, Kripke deu três palestras em Princeton, que foram gravadas e posteriormente transcritas. A transcrição, revista pelo autor e enrique cida com notas de rodapé, foi publicada em 1972, num volume colectivo organizado por Donald Davidson e Gilbert Harman. A pesar do trabalho de revisão, a publicação preserva as marcas da oralidade que esteve na sua origem . O leitor quase pode assim «ouvir» Kripke desenvolver o seu pensamento, livremente, sem o apoio de um texto ou sequer de notas escritas, se guindo apenas um plano muito rudim entar dos assun tos que pretendia abordar (e de alguns que tinha decidido não abordar, como, por exemplo, o problema da existência). Uma decisão a que Kripke perm anece fiel durante todo o trabalho é a de manter a exposição isenta de qualquer aparato técnico. E é, de facto, adm i rável a capacidade que dem onstra de explicar ques tões difíceis, que envolvem distinções bastante subtis, de uma m aneira que parece acessível a qualquer um. Além de um pensador criativo e profundo, Kripke é um óptimo comunicador. A clareza da sua exposição é exemplar. Para isso tam bém contribui o recurso cons tante a exemplos, muitos dos quais se tornaram clás sicos da filosofia contem porânea. Em bora seja um pensador com interesses vastos, Kripke não parece 34
INTRODUÇÃO
estar interessado em construir um sistema filosófico. O seu m odo de fazer filosofia é m ais localizado: encontra um problema que o deixa perplexo e dedica-se a ele intensamente, procurando esclarecê-lo e, se possível, resolvê-lo. Se o trabalho num problema de uma área o leva m uitas vezes a apreciar as conse quências que poderá ter para outras áreas, isso acon tece não em virtude de uma vontade de sistema, mas como resultado da própria concentração e da deter m inação com que segue cada ideia até onde ela o levar. As reacções à publicação de «O Nom ear e a N eces sidade» foram várias e imediatas. M uitos consideram que esta obra revolucionou a filosofia. De modo mais cauteloso, talvez possamos dizer que a renovou. Teve a audácia de questionar «certezas» antigas e o mérito de abrir direcções novas. No final da década de 1970, eram já centenas as publicações que de um modo ou de outro se lhe referiam, discutindo as suas teses e argumentos ou explorando as suas consequências. Em 1980, surgiu O Nomear e a Necessidade como livro, com um novo prefácio em que o autor explica um pouco a origem das ideias nele contidas e esclarece alguns pontos, procurando desfazer incompreensões e dissi par equívocos que julga ter detectado nalguns leitores. De então para cá, o número de artigos, livros e disser tações escritos sobre aspectos desta obra, ou por ela influenciados, cresceu exponencialm ente. M uitas das questões aqui levantadas continuam a ser debatidas, sem que os participantes tenham chegado a acordo. Entretanto, o pensam ento de Kripke continuou a de senvolver-se em diversas áreas. Vários artigos seus surgiram, desde os anos setenta até hoje, em revistas e volum es de filosofia. Em 1982, publicou um livro influente, e tam bém muito discutido, sobre o famoso «argumento da linguagem privada» apresentado nas 35
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Investigações Filosóficas de W ittgenstein'3. Recentem en te, foi publicado o prim eiro volum e dos seus Collected Papersu . Enquanto se aguardam os próximos volumes, sabe-se que muitos trabalhos seus continuam inéditos. E ainda muito cedo para dizer qual será o lugar de Kripke na história da filosofia. M as, à distância de quarenta anos, parece-me seguro dizer que O Nomear e a N ecessidade tem lugar reservado entre as principais obras da filosofia do século xx. A pesar da já referida clareza de exposição, o leitor que pretenda fazer um estudo mais aprofundado de O Nomear e a N ecessidade deve ter em conta que é uma obra que dialoga e se confronta com teses, teorias e concepções filosóficas anteriores. Poderá, por isso, querer preparar-se para esse estudo, ou acompanhá-lo, com a leitura de algum as obras através das quais possa obter um conhecim ento independente dessas p e rsp ectiv as a n terio re s. Eis então um a su g estão económ ica de leituras preparatórias básicas: F r e g e (1891), «Funktion und Begriff», in K lein e Schriften , ed. I. Angelelli, Hildesheim: Georg Olms, 1967,
G o ttlo b
pp. 125-142. Tradução inglesa de Peter Geach: «Function and Concept», in The F reg e R eader, ed. M. Beaney, Oxford: Blackwell, 1997, pp. 130-148. G o t t l o b F r e g e (1892), «Über Sinn und Bedeutung», in K lein e Schriften , op. cit., pp. 143-162. Tradução inglesa de Max Black, in The F rege R eader, op. cit., pp. 151-171. B e r t r a n d R u s s e l l (1919), In tro d u ç ã o à F ilo s o fia M a tem á tica, trad. Adriana Silva Graça, Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2007, cap. XVI: «Descrições», pp. 243-261. 13 Saul A. Kripke, Wittgenstein on Rules and Private Language, Oxford: Basil Blackwell, 1982. 14 Saul A. Kripke, Philosophical Troubles: Collected Papers, Volume I, Nova Iorque: Oxford University Press, 2011.
INTRODUÇÃO
R u s s e l l (1912), Os P rob lem as da F ilo so fia , trad. Desidério Murcho, Lisboa: Edições 70, 2008, cap. 5: «Co nhecimento por contacto e conhecimento por descrição», pp. 107-118. R F. S t r a w s o n (1959), In dividu als, Londres: Routledge, 1996, cap. 6: «Subject and predicate (2): logical subjects and particular objects», pp. 180-213. J o h n R. S e a r l e (1969), O s A ctos de F ala, trad. Maria Stela Gonçalves, Coimbra: Almedina, 1981, cap. 7: «Problemas de Referência», pp. 207-229. K e i t h D o n n e l l a n (1966), «Reference and Definite Descri ptions», P hilosophical R eview , 75, pp. 281-304. W. V. Q u i n e (1953/1961), «Reference and Modality», in Quine, From a Logical Point o f View, 2.a ed. rev., Cambridge, Massachusetts: Harvard University Press, 1980, pp. 139-159. A r t h u r F. S m u l l y a n (1948), «Modality and Description», Jou rn al o f S ym bolic Logic, 13, pp. 31-37. R u t h B a r c a n M a r c u s (1961), «Modalities and Intensional Languages», in Marcus, M od alities, Nova Iorque: Oxford University Press, 1993, pp. 5-23. H i l a r y P u t n a m (1970), «Is Semantics Possible?», in Putnam, M in d , L a n g u a g e a n d R e a lity , Cambridge: Cambridge University Press, 1975, pp. 139-152. D. M. A r m s t r o n g (1968), A M aterialist T heory o f the M ind, Londres: Routledge and Kegan Paul. B e rtra n d
R ic a r d o S a n t o s
Universidade de Évora Outubro de 2012
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Prefácio
A minha intenção inicial era de rever ou aumentar O Nomear e a Necessidade consideravelm ente. Passou já bastante tempo e apercebi-me entretanto de que qual quer revisão ou expansão considerável iria retardar indefinidam ente o aparecim ento de uma edição sepa rada e m enos dispendiosa de O Nomear e a Necessidade. Além disso, no que diz respeito à revisão, há boas razões a favor de se conservar uma obra na sua forma original, mesmo com todas as suas imperfeições. Segui, pois, uma política de correcção muito conservadora para esta edição. Foram corrigidos erros óbvios de im pressão e efectuaram-se pequenas m odificações para que várias frases ou formulações ficassem mais claras1. A nota de rodapé 56 ilustra bem a minha política con servadora. Nessa nota corrigiu-se a nomenclatura de letras utilizada para os vários objectos, inexplicavel mente confusa na impressão original; mas não faço 1 O meu agradecimento a Margaret Gilbert pela sua valiosa ajuda neste trabalho de edição.
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qualquer m enção ao facto de o argumento da nota me parecer agora ter problemas de que não tinha noção quando a escrevi e que pelo menos requerem uma discussão mais aprofundada2. As m esmas considerações levam-me a desistir de qualquer tentativa séria de usar este prefácio para am pliar o meu argumento anterior, para colm atar la cunas, para responder a críticas sérias ou para enfren tar dificuldades. Tirando uma tal am pliação no prefá cio, há obviam ente passagens na monografia, além da nota 56, que poderia modificar. Continuo a defender as teses principais desta obra, e a pressão para fazer uma revisão ampla não é grande. Contudo, usarei este prefácio para descrever sucintam ente o contexto e a génese das ideias condutoras da m onografia e para discutir umas quantas incom preensões que parecem ser comuns. Lamento ter de desapontar aqueles leitores que já acharam satisfatória a exposição destes aspec tos feita na monografia. Acrescentarei relativamente poucas coisas novas para lidar com o que me parecem ser os problemas mais substanciais da m onografia. As questões que explicarei um pouco mais — na maioria relacionadas com a modalidade e com a designação rígida — podem já ter ficado claras para a m aioria dos leitores. Por outro lado, os leitores que sim patizaram
2 Apesar de ainda não ter tido tempo para estudar com cuidado a crítica de Nathan Salmon (Journal of Philosophy, 1979, pp. 703-725) a esta nota de rodapé, parece-me que a sua crítica ao argu mento, embora relacionada com a minha, não é provavelmente a mesma: ele reconstrói o argumento de uma maneira que não corresponde exactamente à minha intenção e que o enfraquece desnecessariamente. Também julgo que não tinha qualquer ambi ção de, nesta pequena nota, provar rigorosamente «o essencialismo a partir da teoria da referência» e de nada mais. A nota era tão condensada que os leitores poderiam facilmente reconstruir os pormenores de maneiras diferentes.
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PREFÁCIO
com algum as das objecções aqui m encionadas podem muito bem ter razão ao desejarem um tratam ento mais aprofundado. Temo que, na m aioria dos casos, para convencer muitos dos leitores que se sentiram inclina dos a acreditar nas objecções, o espaço perm itido num prefácio para o tratam ento das questões em disputa seja sim plesmente demasiado curto. Em certa medida, um tratamento rápido das objecções pode fazer mais mal do que bem, uma vez que o leitor que estava confuso pode pensar que se isto é tudo o que se pode oferecer como resposta, então a objecção original devia ter funda mento. Ainda assim, julguei que devia registar breve mente porque é que penso que certas reacções não têm razão de ser. Espero em alguns casos poder vir a escre ver de modo mais desenvolvido. Aqui, peço ao leitor que entenda que, nos limites deste prefácio, não é possível levar a cabo uma discussão aprofundada3. Os leitores que ainda não conhecem este livro po dem usar o prefácio para obter um m aior esclareci mento de certas questões e uma história breve da sua génese. Recomendo que esses leitores não comecem pelo prefácio, mas que voltem a ele para mais esclare cimentos (caso seja necessário) depois de lerem o texto principal. O prefácio não está escrito de m aneira a formar um todo autónomo. As ideias apresentadas em O N omear e a N ecessidade formaram -se no início dos anos sessenta — foram for m uladas na sua m aior parte por volta de 1963-64. É claro que o trabalho se desenvolveu a partir de um
3 Assim, não discuto aqui algumas das críticas que foram publicadas, porque são tão frívolas que espero que não lhes seja dado grande crédito; há outras que não discuto porque são dema siado substantivas; e outras ainda, simplesmente por falta de es paço. Deixo ao leitor o cuidado de decidir em que categoria cai qualquer exemplo particular.
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trabalho formal anterior na teoria dos m odelos da ló gica modal. Já quando trabalhava em lógica m odal me parecia, como disse W iggins, que o principio leibniziano da indiscernibilidade dos idénticos4 era tão evi dente como a lei da contradição. Sempre me pareceu bizarro que alguns filósofos pudessem ter duvidado dele. O estudo da teoria dos modelos da lógica modal (a semántica dos «mundos possíveis») só poderia con firmar esta convicção — os alegados contra-exem plos envolvendo propriedades modais acabavam sempre por assentar nalguma confusão: os contextos envolvi dos não expressavam propriedades genuínas, havia confusão de âmbitos ou confundia-se a coincidência entre conceitos individuais com a identidade entre indivíduos. A teoria dos modelos tornou isto completa mente claro, embora já devesse ter sido suficientemente claro ao nível intuitivo. Deixando de lado considerações rebuscadas, que derivam do facto de x não ter de existir necessariamente, era claro a partir de (x) □ ( i = i ) e da lei de Leibniz que a identidade é uma relação «interna»: (x) (y) (x = y 3 □ x = y). (Que pares (x, y) poderiam ser contra-exemplos? Pares de objectos distintos não pode riam ser, pois aí o antecedente seria falso; e nenhum par formado por um objecto e ele próprio poderia sê-lo, pois então o consequente seria verdadeiro.) Se «a» e «b» são designadores rígidos, segue-se que «a = b», se for verda de, é uma verdade necessária. Se «a» e «b» não são designadores rígidos, já não se pode tirar essa conclusão acerca da afirmação «a = b» (embora os objectos designa dos por «a» e «b» sejam necessariamente idênticos). Ao falarmos de designadores rígidos, estamos a falar de uma possibilidade de que não há dúvida que existe 4 O princípio segundo o qual os idênticos têm todas as proprie dades em comum; esquematicamente, (x) (y) (x = y a Fx . 3 . Fy). Que não deve confundir-se com a identidade dos indiscerniveis.
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num a linguagem m odal form al. Logicam ente, não estam os ainda com prom etidos com nenhum a tese acerca do estatuto daquilo a que vulgarm ente cham a mos «nomes» na linguagem natural. Temos de distin guir três teses diferentes: (i) que objectos idênticos são necessariamente idênticos; (ii) que afirmações de iden tidade verdadeiras entre designadores rígidos são neces sárias; (iii) que afirmações de identidade entre aquilo a que chamamos «nomes» na linguagem real são neces sárias. (i) e (ii) são teses (evidentes) de lógica filosófica, independentes da linguagem natural. Estão relaciona das entre si, embora (i) seja acerca de objectos e (ii) seja metalinguística. ((ii) «segue-se» grosso modo de (i), usando a substituição de designadores rígidos por quantificadores universais — digo «grosso modo» porque há ques tões delicadas acerca da rigidez que são aqui relevan tes, veja-se a nota 21 nas pp. 64-65; a dedução análoga para designadores não-rígidos é falaciosa.) Tudo o que estritam ente se segue de (ii) acerca dos cham ados «nomes» da linguagem natural é que ou não são rígidos ou as identidades verdadeiras entre eles são necessá rias. A ideia intuitiva que temos do nomear sugere que os nomes são rígidos, mas acho que a certa altura supus vagam ente, influenciando pelos pressupostos dom i nantes, que uma vez que obviamente existem identida des contingentes entre os cham ados nomes vulgares, esses nomes vulgares não podem ser rígidos. Contudo, era já claro a partir de (i) — sem nenhum estudo da linguagem natural — que a suposição, comum às dis cussões filosóficas do materialism o dessa altura, de que os objectos podem ser «contingentemente idênti cos», é falsa. A identidade seria uma relação interna mesmo que a linguagem natural não contivesse ne nhum designador rígido. A referência equivocada a objectos «contingentemente idênticos» servia ilegitim a mente de muleta filosófica: perm itia que os filósofos
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pensassem em certos designadores sim ultáneam ente como se fossem não-rígidos (ocorrendo por isso em «identidades contingentes») e como se fossem rígidos, escam oteando-se o conflito ao se pensar nos objectos correspondentes como «contingentem ente idênticos». M esmo antes de me ter apercebido claram ente da ver dadeira situação no que diz respeito aos nomes pró prios, sim patizava pouco com a doutrina obscura de uma relação de «identidade contingente». Proprieda des que identificam um e um só objecto podem coin cidir contingentem ente, m as os objectos não podem ser «contingentem ente idênticos». Por fim apercebi-me — e isso deu início ao já m en cionado trabalho de 1963-64 — de que os pressupostos aceites contra a necessidade de identidades entre no mes vulgares eram incorrectos e que a intuição natural de que os nomes da linguagem vulgar são designa dores rígidos pode de facto ser defendida5. Parte do esforço para tornar isto claro envolveu a distinção entre usar uma descrição para dar um significado e usá-la para fixar uma referência. Assim, neste estádio, rejei tava a teoria descritivista tradicional enquanto expli cação do significado, embora a sua validade enquanto explicação de como se fixa uma referência não fosse questionada. Provavelmente, durante algum tempo dei-me por satisfeito com esta posição, mas o passo seguinte foi naturalm ente questionar se a teoria descritivista fornecia uma explicação correcta m esm o do modo como eram fixadas as referências dos nomes. O resul tado aparece na segunda palestra. Daí até me aperce
5 Tornou-se também claro que um símbolo de qualquer lingua gem, real ou hipotética, que não seja um designador rígido é tão diferente dos nomes da linguagem natural que não se deveria chamar-lhe um «nome». Em particular, isto aplicar-se-ia a uma hipotética abreviatura de uma descrição definida não-rígida.
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ber de que as mesmas considerações se aplicam aos termos para espécies naturais foi um pequeno passo. As outras ideias principais chegaram naturalm ente à m edida que as coisas «se encaixavam». Não devo deixar de prestar uma justa homenagem ao poder do complexo de ideias então dominante, derivado de Frege e de Russell, que aí abandonei. A maneira na tural e uniforme como estas ideias parecem dar conta de uma variedade de problemas filosóficos — a sua mara vilhosa coerência interna — explica suficientemente a atracção duradoura que exerceram. Tenho-me sentido chocado com a prevalência de algumas ideias na comu nidade filosófica que pouco ou nada me atraem, mas nunca coloquei nesta categoria a teoria descritivista dos nomes próprios. Apesar de, tal como outros, ter sempre sentido alguma tensão neste edifício, demorei tempo a libertar-me do seu poder de sedução. Embora a ideia agora já seja familiar, farei aqui uma apresentação sucinta da ideia de designação rígida e da intuição acerca dos nomes que lhe subjaz. Considere-se: 1) Aristóteles gostava de cães. Uma compreensão adequada desta afirmação envol ve uma compreensão quer das condições (extensionalmente correctas) nas quais ela é de facto verdadeira, quer das condições nas quais um curso da história contrafactual, semelhante ao curso real nalguns aspectos mas não noutros, seria correctamente descrito (em parte) por (1). É de supor que todos concordam que há um certo homem — o filósofo a quem chamamos «Aris tóteles» — tal que, de facto, (1) é verdadeira se e somente se ele gostava de cães6. A tese da designação rígida diz 6 Quer dizer que qualquer pessoa (mesmo Russell) concordaria que isto é uma equivalência material verdadeira, dado que existiu realmente um Aristóteles.
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simplesmente — deixando de lado certas subtilezas7 — que o mesmo paradigma se aplica às condições de ver dade que (1) tem quando descreve situações contrafactuais. Ou seja, (1) descreve de modo verdadeiro uma situação contrafactual se e somente se o mesmo homem acima mencionado tivesse gostado de cães, caso essa situação se tivesse verificado. (Esqueçamos as situações contrafactuais em que ele não teria existido.) Por contraste, Russell julga que (1) deve ser analisada como algo do género de8: 2) O últim o grande filósofo da Antiguidade gostava de cães,
7 Ignoramos, em particular, a questão de saber o que se deve dizer de situações contrafactuais em que Aristóteles não teria exis tido. Veja-se a nota 21 nas pp. 64-65. 8 Considerando que «o último grande filósofo da Antiguidade» é a descrição que Russell associa a «Aristóteles». Que não se ofen dam os admiradores do epicurismo, do estoicismo, etc; se algum leitor julgar que o verdadeiro referente da descrição apresentada é alguém posterior a Aristóteles, basta que esse leitor substitua a descrição por outra. Penso que Russell tem razão quanto ao facto de as descrições definidas poderem ser interpretadas, pelo menos às vezes, não rigi damente. Como menciono na nota 22 nas pp. 112-113, alguns filó sofos julgam que há, além disso, um sentido rígido das descrições definidas. Tal como digo nessa nota, não estou convencido disso, mas se estes filósofos tiverem razão, a minha tese principal não será afectada. Ela contrasta nomes com descrições não-rígidas, como defendeu Russell. Veja-se a secção 2, pp. 258-261 do meu artigo «Speaker's Reference and Semantic Reference», Midwest Studies in Philosophy, II, 1977, pp. 255-276 (também em Contemporary Perspectives in the Philosophy of Language, editado por Peter A. French, Theodore E. Uehling, Jr. e Howard K. Wettstein, Minneapolis: University of Minnesota Press, 1979, pp. 6-27), para uma breve discussão da relação da ideia de descrições definidas rígidas com as descrições «referenciais» de Donnellan. Também discuto a relação de ambas com a noção de âmbito.
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e que esta, por sua vez, deve ser analisada como: 3) Exactamente uma pessoa foi última entre os gran des filósofos da Antiguidade e todas as pessoas assim gostavam de cães. As condições de verdade efectivas de (3) concor dam extensionalmente com as de (1) que acima mencio námos, partindo do princípio de que Aristóteles foi o último grande filósofo da Antiguidade. Mas, contrafactualm ente, as condições de Russell podem divergir muitíssimo das supostas pela tese da rigidez. Relati vamente a uma situação contrafactual na qual alguma outra pessoa que não Aristóteles tivesse sido o último grande filósofo da Antiguidade, o critério de Russell faria do gosto de cães dessa outra pessoa a questão rele vante para a correcção de (1)! Até aqui julgo que não disse nada que não tenha já antes tornado claro. Mas a explicação deve tornar pa tente que algumas críticas são incompreensões. Algu mas pessoas julgaram que o sim ples facto de dois in divíduos poderem ter o mesmo nome refuta a tese da rigidez. É verdade que nesta m onografia, para sim pli ficar, falei como se cada nome tivesse um único porta dor. De facto, no que diz respeito à questão da rigidez, não penso que isto seja uma sim plificação excessiva. A credito que m uitas questões teóricas im portantes sobre a semântica dos nomes (provavelm ente não to das) ficariam praticam ente inalteradas caso as nossas convenções im pedissem dar-se o mesmo nome a duas coisas distintas. Em particular, como irei explicar, a questão da rigidez não seria afectada. Para a linguagem tal como a conhecem os, podería mos falar dos nomes como termos que têm um refe rente único, se adoptássem os uma term inologia análo ga à prática de dizer que as palavras homónim as são 47
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«palavras» diferentes, segundo a qual quando usamos sons que foneticam ente são os mesmos para nomear objectos distintos estaríam os a usar nomes diferentes9. Não há dúvida de que esta term inologia não está de acordo com o uso mais com um 10, mas julgo que pode ter m uitas vantagens para efeitos teóricos. Contudo, o mais im portante é que, seja como for que uma teoria filosófica decida tratar esses nomes «hom ónim os»11, isso é irrelevante para a questão da rigidez. Como falante do meu idiolecto, chamo «Aristó teles» a som ente um objecto, embora saiba que há outras pessoas, incluindo o homem a quem chamo
9 Na realidade, o critério deveria ser mais fino, e depende da perspectiva teórica que se adopte. Assim, na concepção defendida nesta monografia, duas «cadeias históricas» totalmente diferentes, que por mero acidente atribuíssem ao mesmo homem nomes que foneticamente são o mesmo, deveriam provavelmente ser considera das como criadoras de nomes diferentes apesar da identidade dos referentes. A identidade pode muito bem ser desconhecida para o falante ou expressar uma descoberta recente. (Do mesmo modo, é de supor que um descritivista que contabilize os nomes como sugerimos haveria de considerar que dois nomes foneticamente idênticos mas com diferentes descrições associadas são dois nomes diferentes, mesmo que se dê o caso de as duas descrições serem verdadeiras de um só e o mesmo objecto.) Mas o ter referentes diferentes será uma condição suficiente para que os nomes sejam diferentes. Devo sublinhar que não estou a exigir nem sequer a defender este uso, mas a mencioná-lo como uma possibilidade pela qual nutro simpatia. A tese de que a rigidez não tem nada a ver com a questão de duas pessoas terem nomes que foneticamente são o mesmo é independente do facto de se adoptar ou não esta convenção. 10Mas é possível que um uso de «Quantos nomes existem nesta lista telefónica?» seja uma excepção (Anne Jacobson). 11 Ao usar este termo, não pretendo comprometer a análise com uma perspectiva particular (veja-se também a próxima nota de rodapé), embora sugira a minha própria. Quero simplesmente dizer que duas pessoas podem ter nomes que foneticamente são o mesmo.
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«Onassis», ou talvez «Aristóteles Onassis», a quem foi dado o mesmo nome. Outros leitores podem usar «Aris tóteles» para nomear mais do que um objecto (pessoa ou anim al de estimação) e, para eles, (1) tem condições de verdade ambíguas. Quando mencionei «as condi ções de verdade» de (1), assumi forçosamente uma leitura particular de (1). (E é claro que o descritivista clássico faz o mesmo; isto não está em discussão entre nós. Por uma questão de simplicidade, os descritivistas clássicos também tinham tendência para falar como se os nomes tivessem referências únicas.) Na prática, é habitual supormos que o que se quer dizer num uso particular de uma frase se compreende pelo contexto. No caso presente, o contexto tornava claro que o que estava em questão era o uso convencional de «Aristóte les» para designar o grande filósofo. Dado este enten dimento fixo de (1), a questão da rigidez é então: E a correcção de (1), assim entendida, determinada, relati vam ente a cada situação contrafactual, pelo facto de que uma certa pessoa única teria gostado de cães (caso se tivesse verificado essa situação)? A esta questão res pondo afirmativamente. Mas Russell parece estar com prom etido com a tese oposta, mesmo quando o que (1) expressa se encontra fixado pelo contexto. Russell só pode ler (1) como (3) se um tal entendim ento de (1) estiver previam ente fixado (não poderia fazê-lo se «Aristóteles» significasse «Onassis»!); mas viola-se a exigência de rigidez. Esta questão não é de modo algum afectada pela presença ou pela ausência na linguagem de outras leituras de (1). Pois, para cada uma dessas leituras particulares, podemos perguntar se o que é expresso seria verdadeiro numa situação contrafactual se e somente se algum indivíduo fixo tivesse a proprie dade adequada. Esta é que é a questão da rigidez. Deixem-m e então recapitular o que já disse, igno rando por agora os problemas delicados acerca das 49
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«proposições» que m encionarei no final deste prefá cio. Para dizerm os alguma coisa sobre «as condições de verdade» de uma frase como (1), temos de consi derar que ela expressa uma proposição só — caso contrário, as suas condições de verdade, mesmo em relação ao m undo actual, seriam indeterm inadas. Por isso, palavras am bíguas ou hom ónim as (talvez «cão» em (1)) têm de ser lidas de uma maneira de term inada (canina!), têm de se atribuir referências determ inadas aos indexicais, as am biguidades sin tácticas têm de ser resolvidas e tem de se fixar se «A ristóteles» nom eia o filósofo ou o m agnata dos navios. Só depois de estar dada uma tal leitura é que Russell pode propor uma análise como (3) — e é justo que nunca ninguém lhe tenha apontado uma falha a esse respeito. Então, a minha objecção a Russell é que, se ele tivesse razão, nenhuma das m últiplas pro posições expressas pelas várias leituras de (1) (assu mindo que em todas as leituras «Aristóteles» é um nome próprio) estaria em conform idade com a regra da rigidez. Q uer dizer, nenhum a dessas p rop osi ções está em conform idade com a regra que diz que há um só indivíduo e uma só propriedade tais que, em relação a cada situação contrafactual, as condições de verdade da proposição são a posse da propriedade por esse indivíduo nessa situação. (Apoio-me no facto de que, na p rática, R u ssell in terp reta in v ariav el mente os nomes vulgares de modo não-rígido.) E irre levante que (1) possa expressar mais do que uma pro posição: a questão está em saber se cada uma dessas proposições é ou não avaliada da m aneira que estou a descrever. A tese aplica-se a cada uma dessas pro posições tom ada separadam ente. Para que isto seja claro não é preciso que questões de porm enor sobre como é que a teoria deve incorporar o facto de a nossa prática linguística perm itir que duas coisas tenham o
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que foneticam ente é o m esm o nom e estejam deci didas12. Outra incompreensão diz respeito à relação entre rigidez e âmbito, que, aparentem ente, tratei de m anei ra demasiado breve. Parece muitas vezes que se supõe que todas as intuições linguísticas que aduzi a favor da rigidez poderiam ser igualm ente bem explicadas tratando os nomes em várias frases como designadores não-rígidos com âmbitos longos, de modo análogo às descrições com âmbito longo. Seria de facto possível interpretar algumas dessas intuições como resultado de am biguidades de âmbito, e não de rigidez — isto eu reconheci na monografia. Nessa medida, a objecção justifica-se, mas parece-me errado supor que todas as nossas intuições podem ser explicadas desta maneira. Tratei da questão de forma bastante breve, na página 116 e na nota 25 que a acom panha, mas parece que m uitos leitores não repararam na discussão. Na nota de rodapé aduzo alguns fenóm enos linguísticos que, julgo eu, apoiam a intuição da rigidez e não uma ex plicação em termos de âmbito. Parece até que muitos destes leitores não deram pelo teste intuitivo da rigi dez, que enfatizei nas páginas 99-100. Não vou repetir ou desenvolver estas considerações neste prefácio, embora pareça que foram formuladas de maneira de12 Por exemplo, alguns filósofos assimilariam os nomes próprios aos pronomes demonstrativos. A referência dos nomes varia de elocução para elocução da mesma maneira que a de um pronome demonstrativo. Isto não afecta as questões aqui discutidas, uma vez que a referência de um pronome demonstrativo tem de ser dada para que se expresse uma proposição definida. Embora não tenha discutido a questão na presente monografia, é claro que faz parte da minha concepção (cf. p. 100, nota 16) a tese de que «isto», «eu», «tu», etc., são tudo termos rígidos (ainda que, obviamente, as suas referências variem com o contexto de elocução). A rigidez dos pronomes demonstrativos foi sublinhada por David Kaplan.
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m asiado breve. As exigências próprias de um prefácio obrigarão a que as observações seguintes sejam talvez também demasiado breves, mas irei discutir a questão do âmbito ã luz da presente explicação da rigidez. Chegou até a ser afirm ado que a minha própria concepção se reduz a uma tese acerca do âmbito e que a doutrina da rigidez é sim plesmente a doutrina que diz que a linguagem natural tem uma convenção se gundo a qual um nome, no contexto de qualquer frase, deve ser lido com âmbito longo, nele incluindo todos os operadores m odais13. Esta últim a ideia está especial m ente longe da verdade; em termos de lógica modal, representa um erro técnico. Tratarei dela primeiro. (1) e (2) são frases «simples». Nenhuma contém operado res, m odais ou outros; por isso, não há espaço para quaisquer distinções de âm bito14. Nenhuma convenção 13 Veja-se Michael Dummett, Frege, Duckworth, 1973, p. 128. Infelizmente, muitas das outras ideias ou observações de Dummett sobre a relação da rigidez com o âmbito estão tecnicamente erra das — por exemplo, na mesma página, diz que defendo que as descrições nunca (?) são rígidas e equaciona esta perspectiva com a tese de que «no interior de um contexto modal, deve sempre considerar-se que o âmbito de uma descrição definida exclui o operador modal». Alguns dos seus comentários acerca das intuições linguísticas também me parecem estar errados. Não posso tratar destes assuntos aqui. 14 Na verdade, as frases em questão estão temporalmente mar cadas e, por conseguinte, podem ser interpretadas numa lingua gem formal com operadores temporais. Se tratarmos o tempo desta maneira (embora possa ser tratado de outras maneiras), então podem colocar-se outras questões de âmbito devido aos operado res temporais. Contudo, a questão em causa é acerca da relação do âmbito com os operadores modais, o que não se coloca nestas frases mesmo que na sua análise se usem operadores temporais. Há duas maneiras de tornar literalmente verdadeira a afirmação de que as frases em causa não dão origem a quaisquer questões de âmbito: ou tratando o tempo sem usar operadores ou (melhor) entendendo a cópula em (1) e em (2) de modo não-temporal.
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a respeito do âmbito em frases mais com plexas afecta a interpretação destas frases. No entanto, a questão da rigidez faz sentido em ambos os casos. A minha tese é que «Aristóteles» em (1) é rígido, mas «o último grande filósofo da Antiguidade» em (2) não o é. Não há nenhuma hipótese acerca de convenções sobre o âmbito em con textos modais que expresse esta tese15; trata-se de uma doutrina acerca das condições de verdade, relativamente a situações contrafactuais, de todas as frases (ou das pro posições por elas expressas), incluindo as frases simples. Isto mostra que é sim plesmente um erro tentar redu zir a rigidez ao âmbito da maneira indicada. Também assinala uma fraqueza da reacção (bastante mais com preensível) que consiste em tentar usar o âmbito para substituir a rigidez. Segundo a doutrina da rigidez, um quadro ou uma imagem que pretenda representar uma situação correctamente descrita por (1) tem ipso facto de pretender representar o próprio Aristóteles enquanto amigo de cães. Nenhum a imagem que pretenda repre sentar alguma outra pessoa e o seu gosto por cães, mesmo que represente o outro indivíduo com todas as propriedades que usamos para identificar Aristóteles, representa uma situação contrafactual correctamente descrita por (1). Não é óbvio que, por si m esmo, isto representa as nossas intuições a respeito de (1)? A intui ção é acerca das condições de verdade, em situações contrafactuais, de uma frase simples (ou da proposição 15 A tese de que os nomes são rígidos em frases simples é, no entanto, equivalente (se ignorarmos complicações que derivam da possível não-existência do objecto) à tese de que, se um operador modal governa uma frase simples que contém um nome, as duas leituras, com âmbito longo e com âmbito curto, são equivalentes. Isto não é o mesmo que a doutrina que diz que a linguagem natu ral tem uma convenção que apenas permite a leitura com âmbito longo. De facto, a equivalência só faz sentido para uma linguagem em que se admitam as duas leituras.
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por ela expressa). Não há nenhuma interpretação com âmbito longo de certos contextos modais que possa substitui-la. Uma teoria será tanto melhor quanto mais conseguir preservar esta intuição. Uma outra observação, que não depende tão directa m ente de situações contrafactuais, pode lançar luz sobre o assunto. Na m onografia defendi que as condi ções de verdade de «Poderia ter sido o caso que Aristó teles gostasse de cães» estão em conform idade com a teoria da rigidez: é irrelevante para a verdade da afir m ação citada que haja uma prova de que alguma pes soa que não Aristóteles poderia ao mesmo tempo ter gostado de cães e ser o m aior filósofo da Antiguidade. A situação mantém-se se substituirmos «o maior filósofo da Antiguidade» por qualquer outra descrição definida (não-rígida) que julguem os que identifica Aristóteles. Do mesmo modo, defendi eu, «Poderia ter sido o caso que Aristóteles não fosse um filósofo» expressa uma verdade, embora «Poderia ter sido o caso que o maior filósofo da Antiguidade não fosse um filósofo» não expresse, o que contraria a teoria de Russell. (Poderia dar-se um exemplo análogo para qualquer outra des crição identificadora não-rígida.) Ora, a últim a frase citada expressaria uma verdade se a descrição usada fosse lida, contrariamente à m inha intenção, com âm bito longo. Por isso talvez se pudesse pensar que o problem a deriva sim plesm ente de um a tend ência (inexplicável!) para atribuir uma leitura de âm bito longo a «Aristóteles» enquanto se atribui às descrições uma leitura de âmbito curto; no entanto, as frases que contêm nomes e descrições estariam em princípio su jeitas a ambas as leituras. O que eu quis dizer, no entanto, foi que o contraste se m anteria se todas as frases envolvidas fossem explicitam ente formuladas com âm bitos curtos (talvez inserindo um sinal de dois pontos após o «que»). Além disso, apresentei exem54
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pios (acima referidos) para indicar que a situação com nomes não era de facto paralela ã situação com descri ções de âmbito longo. M uitas vezes parece que estes exemplos escaparam aos defensores da concepção con trária, mas não é essa aqui a minha questão. A concep ção contrária tem de m anter que a nossa linguagem e o nosso pensam ento são de certo modo incapazes de m anter clara a distinção e que é isto que dá origem à dificuldade. É difícil ver como pode isso ser assim: como é que fizemos a distinção, se não podemos fazê-la? Se a formulação com uma cláusula com eçada por «que» é realm ente tão embrulhada que não consegui mos distinguir uma leitura da outra, o que dizer de: 4) O que (1) expressa poderia ter sido o caso. Não expressa isto a asserção que se deseja, sem am biguidades de âmbito? Se não expressa, o que é que o faria? (A formulação poderia ser um pouco mais natural num diálogo: «Aristóteles gostava d e cães.» «Isso não é verdade, mas poderia ter sido.») Ora, o que sustento é que a nossa com preensão de (4) está em conformidade com a teoria da rigidez. Nenhuma situa ção possível na qual alguém distinto do próprio Aristó teles goste de cães pode ser relevante. A m inha observação m ais im portante é, então, a de que temos uma intuição directa da rigidez dos nomes, exibida pela nossa compreensão das condições de ver dade de frases particulares. A lém disso, há vários fenóm enos secundários — como os que menciono na monografia (e outros ainda) a respeito de «o que diría mos» — que testemunham indirectamente a favor da rigidez. Então como é que Russell (para nomear ape nas um caso) foi propor uma teoria m anifestamente incompatível com as nossas intuições directas de rigi dez? Uma das razões é que Russell, aqui como noutros
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sítios, não tomou em consideração questões m odais; e a questão da rigidez dos nomes na linguagem natural raramente foi considerada de forma explícita depois dele. Em segundo lugar, Russell julgava que vários argumentos filosóficos tornavam necessária uma teo ria descritivista dos nomes e uma teoria elim inativa das descrições. Russell reconhecia que as suas teses eram incompatíveis com as nossas reacções ingénuas (embora a questão da rigidez não fosse m encionada), mas havia argumentos filosóficos poderosos que lhe pareciam impor a adopção da sua teoria. Relativamente à questão da rigidez, a minha própria resposta tomou a forma de uma experiência m ental do género daquela que brevem ente esbocei para a «identidade e schmidentidade» nas páginas 171-172 da presente m ono grafia. No caso presente, im aginei uma linguagem formal hipotética na qual se introduziria um designador rígido «a» com a seguinte cerimónia: «Seja 'a' um termo que denota (rigidamente) o único objecto que tem efectivamente a propriedade F, quando falamos de qualquer situação, real ou contrafactual». Parecia-me claro que, se um falante introduzisse dessa maneira um designador na linguagem, então, em virtude do seu próprio acto linguístico, ele estaria em posição de dizer «Sei que F a» e, no entanto, «Fa» expressaria uma verdade contingente (desde que F não seja uma pro priedade essencial do único objecto que a possui). Em prim eiro lugar, isto mostrava que se deviam separar as questões epistémicas das questões de necessidade e contingência, e que fixar uma referência não é dar um sinónimo. Mais im portante ainda, esta situação indi cava que os dados geralm ente aduzidos para m ostrar que os nomes seriam sinónimos de descrições pode riam ser antes racionalizados por este modelo hipotético. Além disso, o modelo satisfazia as nossas intuições de rigidez. A ssim sendo, parecia que o ónus da prova 56
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cabia principalm ente ao filósofo que quisesse negar a nossa intuição natural de rigidez. Como disse antes, a observação suplementar de que os falantes nem se quer fixam as referências por m eio de descrições identificadoras do tipo habitual só veio mais tarde. Direi de forma breve alguma coisa acerca dos «mun dos possíveis»16. (Espero vir a desenvolver isto noutro lugar.) Na presente monografia argumentei contra os usos equivocados do conceito que vêem os mundos possíveis como se fossem planetas distantes, semelhan tes ao que está à nossa volta mas existindo de alguma m aneira numa dim ensão diferente, ou que conduzem a problemas espúrios de «identificação transmundial». Além disso, se quisermos evitar o Weltangst e confu sões filosóficas que muitos filósofos têm associado à term inologia dos «mundos», recomendo como possi velmente melhor a utilização de «estado (ou história) possível do mundo» ou «situação contrafactual». De vemos lem brar-nos também de que a term inologia dos «mundos» pode muitas vezes ser substituída pelo dis curso m odal — «é possível que...». Mas não quero 16 Algumas das piores incompreensões da rigidez teriam tido muito menor difusão se as discussões filosóficas relevantes tives sem sido conduzidas no contexto de uma apresentação rigorosa feita em termos da «semântica dos mundos possíveis». Não fiz isso na presente monografia, porque não quis que o argumento dependesse fortemente de um modelo formal e porque queria que a apresentação fosse filosófica, e não técnica. Para os leitores muito familiarizados com a semântica intensional, o simples esboço de uma apresentação das minhas teses nesses termos, sem um desen volvimento explícito, deveria ser claro. Ainda assim, algumas incompreensões do conceito de rigidez — incluindo alguns aspec tos destas que mencionei neste prefácio — levaram-me a pensar que uma apresentação técnica poderia eliminar alguns mal-enten didos. Considerações de tempo e de espaço acabaram por me levar a tomar a decisão de não incluir esse material, mas talvez faça uma tal exposição formal noutro lugar.
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deixar a impressão exagerada de que repudio por com pleto os m undos possíveis, ou até de que os vejo como um mero instrum ento formal. O uso que eu próprio fiz deles deve ter sido suficientem ente abundante para prevenir qualquer m al-entendido desses. De facto, há algumas maneiras de conceber os «mundos possíveis» que repudio, e outras que não. Uma analogia com algo que aprendemos na escola — que, de facto, é mais do que uma analogia — ajudará a esclarecer o que penso. Dois dados normais (chamemos-lhes «dado A» e «dado B») são lançados e ficam dois números virados para cima. Para cada dado, há seis resultados possíveis. Portanto, há trinta e seis estados possíveis do par de dados, no que respeita aos números que ficam virados para cima, embora só um desses estados corresponda à maneira como os dados efectivamente acabarão por ficar. Apren demos todos na escola a computar as probabilidades de vários acontecimentos (assumindo que os estados têm a mesma probabilidade). Por exemplo, uma vez que há apenas dois estados — (dado A, 5; dado B, 6) e (dado A, 6; dado B, 5) — que dão um total de onze, a proba bilidade de conseguir um onze é de 2/36 = 1/18. Quando fazíamos estes exercícios escolares de pro babilidades, estávamos de facto a tomar conhecimento, em tenra idade, de um conjunto de «mundos possíveis» (em m iniatura). Os trinta e seis estados possíveis dos dados são literalmente trinta e seis «mundos possíveis», se ignorarm os (ficticiamente) tudo o que há no mundo que não seja os dois dados e o que eles mostram (e ignorarm os o facto de que os dados — um deles ou ambos — poderiam não ter existido). Só um destes m inim undos — o que corresponder à m aneira como os dados de facto saem — é o «mundo actual», mas os outros tam bém nos interessam quando perguntamos quão provável ou im provável foi (ou irá ser) o resul tado real. Ora, neste caso elementar, podem evitar-se
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certas confusões. Supusemos que os dados caem real mente e que um dos trinta e seis estados é real. Ora, o «mundo actual» neste caso é o estado dos dados que efectivam ente se realiza. Uma outra entidade, mais «concreta» do que este estado, é a entidade física lesniewskiana-goodmaniana que é a «soma» dos dois dados. Esta entidade física complexa («os dados», entendidos como um só objecto) está diante de mim na mesa, depois do lançamento, e a sua posição real determina o estado real d'«os dados». Mas quando na escola fala mos de trinta e seis possibilidades, não tem os de modo algum de postular que há trinta e cinco outras entida des, existentes numa qualquer Terra do Nunca, que correspondem ao objecto físico que está à minha frente. Como tam bém não temos de perguntar se estas enti dades fantasm áticas são compostas por «contrapartes» (fantasmáticas) dos dados individuais reais ou se são de algum modo compostas pelos mesmos dados indi viduais, eles próprios, só que «noutra dimensão». As trinta e seis possibilidades, incluindo a que é real, são , estados (abstractos) dos dados, e não entidades físicas complexas. Um aluno não deve receber notas altas por perguntar: «Como é que sabemos, no estado em que o dado A tem seis e o dado B tem cinco, se é o dado A ou o dado B que tem seis? Não será que precisamos de um 'critério de identidade transestadual' para identificar o dado com um seis — e não o dado com um cinco — com o nosso dado A?» A resposta é, claro está, que o estado (dado A, 6; dado B, 5) é-nos dado enquanto tal (e distinguido do estado (dado B, 6; dado A, 5)). O pedido adicional de um «critério de identidade transes tadual» é tão confuso que nenhum aluno com petente seria tão perversamente filosófico para o fazer. As «pos sibilidades», muito sim plesmente, não nos são dadas de modo puramente qualitativo (como em: um dado, 6, o outro, 5). Se fossem, haveria apenas vinte e uma 59
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possibilidades distintas, e não trinta e seis. E os estados não são pares-de-dados fantasm áticos, vistos ao longe, a respeito dos quais pudéssemos colocar questões epistemicamente significativas da forma: «Que dado é aquele?» Do mesmo modo, quando pensamos em estados qua litativam ente idênticos como (A, 6; B, 5) e (A, 5; B, 6) e os consideram os distintos, também não temos de supor que A e B são distinguíveis qualitativamente nalgum outro aspecto, como, por exemplo, a cor. Pelo contrário, no problema de probabilidades, a face numé rica voltada para cima é entendida como se fosse a única propriedade que cada dado tem. Por fim, ao con cebermos este pequeno exercício inocente sobre o lança m ento dos dados, com possibilidades que não são des critas de modo puramente qualitativo, não assumimos nenhum compromisso m etafísico obscuro com dados como «particulares puros», o que quer que isso seja17. Os «mundos possíveis» são pouco mais do que os minimundos do exercício de probabilidades em grande escala. É verdade que a noção geral envolve problemas que a versão em miniatura não envolve. Os mundos em miniatura estão firmemente controlados, no que respeita aos objectos envolvidos (dois dados), às propriedades relevantes (o número virado para cima) e (por isso) à ideia relevante de possibilidade. Os «mundos possíveis»
17 Relativamente aos estados possíveis do mundo inteiro, não pretendo afirmar categoricamente que, tal como no caso dos da dos, existem estados (contrafactuais) qualitativamente idênticos mas distintos. O que afirmo é que, se houver um argumento filo sófico que exclua mundos qualitativamente idênticos mas distin tos, não poderá basear-se simplesmente na suposição de que os mundos têm de ser estipulados de modo puramente qualitativo. O que defendo é a legitimidade de determinar os mundos possíveis tanto em termos de certos particulares como de modo qualitativo, haja ou não, de facto, mundos qualitativamente idênticos mas dis tintos.
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são «maneiras como o mundo poderia ser» totais, ou estados ou histórias do mundo todo. Pensar na totalidade de todos eles envolve uma idealização muito maior, e muito mais questões paradoxais, do que o menos ambi cioso caso análogo da escola básica. Não há dúvida de que o filósofo dos «mundos possíveis» tem de ter cuidado para que o seu aparato técnico não o leve a colocar per guntas cujo carácter significativo não é suportado pelas nossas intuições originais de possibilidade, que deram sentido ao aparato. Além disso, na prática não podemos descrever um curso de acontecimentos contrafactual com pleto e não precisamos de o fazer. Uma descrição prática daquilo em que a «situação contrafactual» difere rele vantemente dos factos reais é suficiente; a «situação con trafactual» poderia ser entendida como um minimundo ou um miniestado, limitado aos aspectos do mundo re levantes para o problema em questão. Na prática, isto requer menos idealização do que se tivéssemos de consi derar histórias inteiras do mundo ou a totalidade das pos sibilidades. Para os objectivos que aqui temos, a analogia com o exercício elementar de probabiblidades fornece-nos um bom modelo para tirarmos as conclusões ade quadas a respeito dos «mundos possíveis». Em princípio, não há nada de errado em tomá-los, para fins filosóficos ou para efeitos técnicos, como entidades (abstractas) — a inocência do caso análogo da escola básica deveria acalmar quaisquer ansiedades a esse respeito18. (Na rea18 Não penso nos «mundos possíveis» como algo que forneça uma análise redutiva em qualquer sentido filosoficamente signifi cativo, isto é, que revele a natureza última, de um ponto de vista quer epistemológico quer metafísico, dos operadores modais, das proposições modais, etc., ou que os «explique». No desenvolvi mento efectivo do nosso pensamento não há dúvida de que os juízos que envolvem locuções modais directamente expressas («po deria ter-se dado o caso de») vêm antes. A noção de um «mundo possível», embora tenha as suas raízes em várias ideias comuns de
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lidade, a noção geral de «espaço de am ostragem» que está na base da moderna teoria das probabilidades é precisam ente a noção de um tal espaço de mundos possíveis.) Contudo, devemos evitar as armadilhas que têm uma aparência muito mais tentadora para os filó sofos com os seus grandes mundos do que para as crianças da escola com as suas versões m odestas. Não há razões especiais para supor que os m undos possí veis têm de ser dados qualitativam ente, ou que tenha de haver um problema genuíno de «identificação transmundial» — o facto de estarem envolvidos estados maiores e mais complexos do que no caso dos dados não faz, quanto a isto, qualquer diferença. O «mundo actual» — ou melhor, o estado ou a história real do mundo — não deve confundir-se com o enorme objecto disseminado que nos circunda. Este últim o também poderia chamar-se «o mundo (actual)», mas não é o
maneiras como o mundo poderia ter sido, surge num nível muito maior, e posterior, de abstracção. Na prática, ninguém que não consiga entender a ideia de possibilidade deverá ser capaz de entender a de um «mundo possível». Filosoficamente, não preci samos de assumir, de modo algum, que um tipo de discurso é «anterior» ao outro, independentemente dos objectivos em causa. O que principal e originalmente motivou a «análise em termos de mundos possíveis» — e aquilo em que essa análise esclareceu a lógica modal — foi o facto de ela permitir tratar a lógica modal através das mesmas técnicas conjuntistas da teoria dos modelos que tinham dado tão bons resultados na sua aplicação à lógica extensional. Também é útil para clarificar certos conceitos. Reiterando um outro aspecto: a noção da totalidade dos estados do mundo inteiro que são possíveis no sentido (metafísico) mais amplo envolve um certo grau de idealização, assim como outras questões filosóficas que não discuti. Se restringirmos os mundos a uma classe mais pequena de minimundos, todas as questões rela cionadas com os designadores rígidos, por exemplo, permanecem essencialmente as mesmas. O mesmo acontece com as questões de semântica modal.
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objecto que aqui é relevante. Por isso, os mundos pos síveis mas não actuais não são duplicados fantasmáticos do «mundo» neste outro sentido. Talvez estas confusões fossem menos prováveis se não fosse o aci dente term inológico de se ter utilizado «mundos pos síveis» em vez de «estados», ou «histórias possíveis», do mundo, ou «situações contrafactuais». Não há dú vida de que elas teriam sido evitadas se os filósofos aderissem às práticas comuns das crianças da escola e dos teóricos das probabilidades19. Uma últim a questão: alguns críticos das minhas doutrinas, e alguns sim patizantes, parecem tê-las lido como se afirmassem, ou pelo menos implicassem , uma doutrina da substituibilidade universal dos nomes pró prios. Uma tal afirmação equivaleria a dizer que uma frase que contenha «Cícero» expressa a mesma «propo sição» que a frase correspondente com «Túlio» em vez de «Cícero», que acreditar na proposição expressa por uma é acreditar na proposição expressa pela outra, ou que elas são equivalentes para todos os efeitos semân ticos. Russell parece ter defendido uma perspectiva deste género para os «nomes logicamente próprios», e trata-se de uma perspectiva que parece adequar-se bem a uma concepção puramente «milliana» do nomear, em que apenas o referente do nome contribui para aquilo que é expresso. Mas eu nunca tive a intenção de ir tão longe (nem Mill, tanto quanto sei20). A ideia que
19 Compare-se, por exemplo, o «realismo moderado» a respeito dos mundos possíveis de Robert Stalnaker, «Possible Worlds», Noíis, vol. 10, 1976, pp. 65-75. 20 Michael Lockwood («On Predicating Proper Names», The Philosophical Review, vol. 84, n.° 4, Outubro, 1975, pp. 471-498) diz (p. 491) que Mill não considera que «Cícero é Túlio» signifique o mesmo que «Cícero é Cícero», mas que defende antes a ideia de que aquela frase significa que «Cícero» e «Túlio» são co-designativos. Diz também (p. 490) que Mill vê uma tal componente metalinguística
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tenho de que por vezes a frase «Héspero é Fósforo» poderia ser usada para levantar uma questão empírica, enquanto «Héspero é Héspero» não poderia, mostra que não trato as frases como se fossem com pletam ente intermutáveis. Além disso, indica que o modo de fixar a referência é relevante para a nossa atitude epistémica a respeito das frases expressas. Como se relaciona isto com a questão de saber que «proposições» é que estas frases expressam? Essas «proposições» são objecto de conhecimento e de crença? Em geral, como se devem tratar os nomes em contextos epistémicos? Estas são questões muito difíceis. Não tenho nenhum a «dou trina oficial» a seu respeito, e, de facto, não sei se o aparato das «proposições» não colapsa nesta área21.
em todas as afirmações que envolvam nomes. Não levei mais adiante o estudo da interpretação de Mili e, por isso, não tenho posição sobre qual é exactamente a sua doutrina. 21 As razões por que acho estas questões tão difíceis encontram-se no meu «A Puzzle About Belief», em Meaning and Use (ed. A. Margalit), Reidel, 1979, pp. 239-283. É claro que pode haver mais do que uma noção de «proposição», dependendo do que exigirmos da noção. A tese da rigidez implica, sem dúvida, a intermutabilidade de nomes co-designativos em contextos modais, com a salva guarda habitual acerca da possível não-existência. Relativamente à rigidez: muitas vezes, tanto neste prefácio como no texto desta monografia, ignoro deliberadamente questões deli cadas que derivam da possível não-existência de um objecto. Também ignoro a distinção entre a rigidez «de jure», em que se estipula que a referência de um designador é um só objecto, este jamos nós a falar do mundo actual ou de uma situação contrafactual, e a mera rigidez «de facto», em que acontece uma descrição «o x tal que Fx» usar um predicado «F» que em todos os mundos possíveis é verdadeiro do mesmo objecto único (por exemplo, «o menor número primo» designa rigidamente o número dois). A minha tese acerca dos nomes é claramente a de que eles são rígidos de jure, mas na monografia dou-me por satisfeito com a afirmação mais fraca da rigidez. Uma vez que os nomes são rígi dos de jure — veja-se a p. 135 — , digo que um nome próprio de
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Por isso, contornei estas questões; não se deve ler ne nhuma doutrina firme relativam ente a isso nas mi nhas palavras.
signa rigidamente o seu referente mesmo quando falamos de situa ções contrafactuais nas quais esse referente não teria existido. As questões acerca da não-existência são assim afectadas. Várias pes soas me persuadiram de que todas estas questões merecem ser mais cuidadosamente discutidas do que o foram na monografia, mas tenho de as deixar aqui.
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Primeira palestra: 20 de Janeiro de 19701
Espero que algum as pessoas encontrem algum a relação entre os dois tópicos do título. De qualquer modo, mesmo que não encontrem, essas relações serão desenvolvidas ao longo destas palestras. Além disso,
1 Em Janeiro de 1970 dei três palestras na Universidade de Princeton, que aqui se encontram transcritas. O estilo da transcrição mostra bem que dei as palestras sem usar um texto escrito e, de facto, mesmo sem quaisquer notas. O presente texto é uma versão ligeiramente revista da transcrição original; aqui e ali, acrescentei uma passagem para desenvolver o pensamento, reescrevi uma frase ou outra, mas não fiz qualquer esforço para alterar o estilo informal do original. Muitas das notas de rodapé foram acrescentadas, mas algumas são apartes originalmente feitos nas próprias palestras. Espero que ao ler o texto o leitor tenha estes factos em atenção. Imaginá-lo falado, com as pausas e as ênfases certas, pode, ocasio nalmente, facilitar a compreensão. Foi com algumas reservas que concordei em publicar estas palestras sob esta forma. O tempo dis ponível e o estilo informal exigiram que encurtasse a discussão,
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devido ao uso de instrumentos que envolvem a referên cia e a necessidade na filosofia analítica actual, as nossas perspectivas acerca destes tópicos têm realmente impli cações vastas, que se estendem a outros problemas filo sóficos, que tradicionalmente se poderia pensar estarem muito distantes — como, por exemplo, o problema da relação entre a mente e o corpo ou a chamada «tese da identidade». Esta forma de m aterialism o vê-se hoje muitas vezes intricadamente envolvida em questões acerca do que é necessário ou contingente na identidade de propriedades — e noutras questões deste género. Por isso, para filósofos que pretendam trabalhar em vários domínios, é de facto muito importante que estejam es clarecidos acerca destes conceitos. Ao longo destas pa lestras talvez venha a dizer alguma coisa acerca do pro blema da relação entre a mente e o corpo. Também gostaria de chegar a falar acerca das substâncias e das espécies naturais (mas não sei se conseguirei incluir isso). De certa m aneira, a minha abordagem destes assun tos irá ser bastante diferente daquilo que as pessoas actualmente pensam (apesar de existirem tam bém al guns pontos de contacto com o que algumas pessoas que não pudesse tratar de certas objecções, e assim por diante. Em especial nas secções finais sobre as identidades científicas e sobre o problema da relação entre a mente e o corpo, tive de sacrificar o tratamento exaustivo das questões. Tive de omitir por inteiro alguns tópicos que seriam essenciais para uma apresentação com pleta do ponto de vista aqui defendido — em particular, o tópico dos enunciados de existência e o dos nomes vazios. Além disso, a informalidade da apresentação pode bem ter resultado numa menor clareza em certos pontos. Todos estes defeitos se aceitaram em proveito de uma publicação mais rápida. Espero que um dia ve nha talvez a ter oportunidade de apresentar um trabalho mais completo. Uma vez mais digo que espero que o leitor tenha em atenção que está em grande medida a ler palestras informais, não só quando encontrar repetições ou imperfeições, mas também quando encontrar irreverência ou sarcasmo.
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têm vindo a pensar e a escrever, e se as não menciono em palestras informais como esta, espero que isso me seja perdoado)2. A lgum as das m inhas perspectivas podem, à primeira vista, surpreender alguns por pare cerem obviam ente erradas. O meu exemplo preferido (que, provavelm ente, não vou defender nas pales tras — até porque nunca convence ninguém) é este: é comum na filosofia contem porânea afirmar-se que há certos predicados que, apesar de serem de facto vazios, ou seja, apesar de terem extensão nula, a têm contin gentemente e não por qualquer género de necessidade. Bem, isso eu não contesto; mas um exemplo que nor malmente é apontado é o do unicórnio. Assim, diz-se que, apesar de todos termos descoberto que não exis tem unicórnios, é claro que poderiam ter existido unicór nios. Sob certas circunstâncias, teriam existido uni córnios. E este é um exemplo de algo que eu julgo que não é verdade. Na minha perspectiva, talvez a ver dade não se deva colocar em termos de dizer que é necessário que não existam unicórnios, mas apenas que não é possível dizermos sob que circunstâncias 2 Aproveito a oportunidade para acrescentar uma nota e assinalar que Rogers Albritton, Charles Chastain, Keith Donnellan e Michael Slote (além dos filósofos mencionados no texto e, em especial, Hilary Putnam) expressaram, de maneira independente, perspectivas que têm pontos de contacto com vários aspectos do que digo aqui. Albritton despertou a minha atenção para os problemas da necessi dade e da aprioridade nas espécies naturais, ao colocar a questão de saber se poderíamos descobrir que os limões não são frutos. (Não estou certo de que ele aceitasse todas as minhas conclusões.) Recor do também a influência das primeiras conversas com Albritton e com Peter Geach acerca da essencialidade das origens. Mantenho o pedido de desculpas apresentado no texto; estou ciente de que a lista desta nota está longe de ser exaustiva. Não tentarei sequer enumerar os amigos e os estudantes que me auxiliaram com as suas estimulantes conversas. Pelo apoio na revisão da transcrição, Thomas Nagel e Gilbert Harman merecem um agradecimento especial.
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existiriam unicórnios. Mais ainda, mesmo que arqueólo gos ou geólogos viessem amanhã a descobrir fósseis que, de modo conclusivo, revelassem a existência de animais no passado, satisfazendo tudo o que, pelo mito do uni córnio, sabemos acerca dos unicórnios, penso que isso não mostraria que existiram unicórnios. Não sei se terei oportunidade de defender esta perspectiva em parti cular, mas trata-se de um exemplo de uma perspectiva surpreendente. (Efectivamente, dei um seminário nesta instituição onde falei acerca desta perspectiva durante algumas sessões.) Portanto, algumas das minhas opiniões são algo surpreendentes; mas comecemos por uma área que talvez não seja tão surpreendente, e introduzamos a metodologia e os problem as destas palestras. O primeiro tópico, no nosso par, é o nomear. Entendo aqui por nome um nome próprio, como o nome de uma pessoa, de uma cidade, de um país, etc. É bem sabido que os lógicos modernos estão também muito interessa dos em descrições definidas: expressões com a forma «o x tal que (pr», tais como «o homem que corrompeu Hadleyburg». Ora, se um e somente um homem corrom peu Hadleyburg, então esse homem é o referente (no sentido dos lógicos) dessa descrição. Nós iremos usar o termo «nome» de um modo que não inclui descrições definidas deste género, mas somente aquelas coisas a que, na linguagem corrente, chamamos «nomes pró prios». Se quisermos um termo comum para cobrir no mes e descrições, podemos usar o termo «designador». D onnellan3 observou que, em certas circunstâncias, um falante particular pode usar uma descrição defini-
3 Keith Donnellan, «Reference and Definite Descriptions», Philosophical Review 7 5 ,1966, pp. 281-304. Veja-se também Leonard Linsky, «Reference and Referents», in Philosophy and Ordinary Language (ed. Caton), Urbana: University of Illinois Press, 1963. Parece-me que a distinção de Donnellan se pode aplicar tanto a
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da para referir não o referente correcto (no sentido em que acabei de defini-lo) dessa descrição, mas alguma outra coisa que ele pretende destacar e que pensa ser o referente correcto da descrição, embora, de facto, não o seja. Assim, podemos dizer «O homem que está ali com um copo de champanhe está feliz», apesar de no seu copo haver apenas água. E, apesar de o seu copo não ter champanhe e de poder estar outro homem na sala que realm ente tem champanhe no copo, o falante teve a intenção de referir, ou talvez, num certo sentido de «referir», referiu, de facto, o homem que ele pensou nomes como a descrições. Dois homens avistam alguém ao longe e julgam que é Jones. «O que está Jones a fazer?» «A varrer as folhas.» Se o varredor de folhas lá ao longe for de facto Smith, então, num certo sentido, eles estão a referir-se a Smith, embora usem ambos «Jones» como um nome de Jones. Quando, no texto, falo do «referente» de um nome, quero dizer a coisa nomeada pelo nome — e.g., Jones, e não Smith — embora, às vezes, possamos dizer correctamente que um falante usa o nome para se referir a outra pessoa. Talvez fosse menos enganador usarmos um termo técnico como «denota», em vez de «refere». Eu uso o termo «refere» de modo a satisfazer o esquema: «O referente de 'X' é X», em que «X» é substituível por qualquer nome ou descrição. Tendo a acredi tar, ao contrário de Donnellan, que as suas observações acerca da referência têm pouco a ver com a semântica ou com as condições de verdade, embora possam ser relevantes para uma teoria dos actos de fala. Por falta de espaço, não me é possível explicar aqui o que quero dizer com isto, e menos ainda defender a minha pers pectiva. Direi apenas o seguinte: ao referente de um nome ou de uma descrição, no meu sentido, chamemos o «referente semântico»; no caso de um nome, esse referente é a coisa nomeada, enquanto, no caso de uma descrição, é a única coisa que satisfaz a descrição. Então, o falante pode, se tiver certas crenças falsas, referir-se a outra coisa que não seja o referente semântico. Julgo que é isto que acontece nos casos de nomeação (Smith-Jones), bem como no caso do «champanhe» de Donnellan; para tratar dos primeiros, não precisamos de uma teoria de acordo com a qual os nomes seriam ambíguos, tal como não precisamos, para tratar do segundo, de nenhuma modificação da teoria das descrições de Russell.
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que tinha o copo com champanhe. Não obstante, usarei o term o «referente da descrição» para indicar o objecto que é o único a satisfazer as condições presentes na descrição definida. Este é o sentido tradicionalm ente usado em lógica. Portanto, se temos uma descrição com a forma «o x tal que
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podemos chamar estas coisas deste modo, apesar de elas não serem as Sagradas Nações Unidas Romanas, estas expressões não se devem considerar como descri ções definidas, mas como nomes. No caso de alguns ter mos, podemos duvidar se se tratam de nomes ou des crições; por exem plo, a palavra «D eus»: será que descreve Deus como o único ser divino ou é um nome de Deus? Mas casos destes não têm necessariamente de nos preocupar. Estou a fazer aqui uma distinção, que é certamente feita na linguagem. Mas a tradição clássica da lógica m oderna opôs-se fortem ente à perspectiva de Mill. Frege e Russell pensaram ambos, e parece que che garam a estas conclusões independentem ente um do outro, que M ill estava errado num sentido muito forte: na realidade, um nome próprio, correctamente usado, seria sim plesm ente uma descrição definida abreviada ou disfarçada. Frege disse especificam ente que uma tal descrição dava o sentido do nom e4.
4 É claro que, em sentido estrito, Russell diz que os nomes não abreviam descrições e que não têm qualquer sentido; mas depois também diz que as coisas a que chamamos «nomes», precisamente porque abreviam descrições, não são realmente nomes. Por isso, segundo Russell, uma vez que «Walter Scott» abrevia uma descri ção, «Walter Scott» não é um nome; e os únicos nomes que real mente existem na linguagem vulgar são, talvez, pronomes demons trativos como «isto» ou «aquilo», usados numa ocasião específica para referir um objecto com o qual o falante está em «contacto», no sentido de Russell. Apesar de não apresentarmos as coisas da mesma maneira que Russell, poderíamos descrever a sua perspec tiva dizendo que os nomes, ou seja, aquilo a que vulgarmente chamamos nomes, têm de facto um sentido. E têm um sentido de uma maneira forte, que é a seguinte: devemos ser capazes de for necer uma descrição definida tal que o referente do nome seja, por definição, o objecto que satisfaz a descrição. O próprio Russell, uma vez que elimina as descrições da sua notação primitiva, pa rece sustentar em «On Denoting» que a noção de «sentido» é ilu
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As razões contra a perspectiva de M ili e a favor da alternativa adoptada por Frege e Russell são realm en te muito poderosas; e é difícil ver — embora possamos suspeitar desta perspectiva, uma vez que os nomes não parecem ser descrições disfarçadas — de que m aneira a perspectiva de Frege-Russell, ou alguma sua variante apropriada, pode não ser verdadeira. Deixem-m e dar-vos um exemplo de alguns dos ar gumentos que parecem decisivos a favor da perspec tiva de Frege e Russell. O problem a básico para uma perspectiva como a de M ili está em saber como pode mos determ inar qual é o referente de um nome, tal como este é usado por um certo falante. De acordo com a perspectiva descritivista, a resposta é clara. Se «Joe Doakes» é apenas uma abreviatura de «o homem que corrom peu Hadleyburg», então quem quer que tenha corrom pido Hadleyburg de modo único é o re ferente do nome «Joe Doakes». Todavia, se o nome não tiver um tal conteúdo descritivo, então como é que as pessoas chegam alguma vez a usar nomes para referir coisas? Bem, elas podem estar em posição de apontar para algumas coisas e assim determ inar ostensivam en te as referências de certos nomes. Esta era a doutrina do contacto apresentada por Russell, que ele pensou que seria satisfeita pelos cham ados nomes genuínos, ou próprios. Mas é claro que os nomes vulgares refe rem pessoas de todo o género, como Walter Scott, para quem não nos é possível apontar. Aqui, a nossa refe rência parece ser determinada pelo conhecimento que temos das pessoas. Aquilo que sabemos acerca delas
sória. Ao expormos a perspectiva de Russell, afastamo-nos então dele em dois aspectos. Primeiro, estipulamos que «nomes» são aquelas expressões que vulgarmente pensamos serem nomes, e não os «nomes logicamente próprios» de Russell; segundo, consi deramos que as descrições, e as suas abreviações, têm um sentido.
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determina o referente do nome como a única coisa que satisfaz essas propriedades. Se eu usar o nome «Napoleão», por exemplo, e alguém perguntar: «A quem te referes?», eu responderei algo como: «Napoleão foi im perador dos Franceses no início do século xix e aca bou por ser derrotado em Waterloo», dando assim uma descrição unicam ente identificadora para determinar o referente do nome. E, assim, Frege e Russell parecem apresentar-nos a explicação natural de como a referên cia é aqui determinada; enquanto M ill não parece apre sentar-nos nenhuma. Existem argumentos subsidiários que, apesar de se basearem em problemas mais especializados, fornecem também motivações para a aceitação desta perspectiva. Um deles é o de que às vezes podemos descobrir que dois nomes têm o mesmo referente e expressar isso através de uma afirmação de identidade. Assim, por exemplo (julgo que este é um exemplo que se tornou banal), vemos uma estrela à tarde e cham am os-lhe «Héspero». (É assim que se chama a da tarde, não é? Espero não estar a trocá-las.) Vemos uma estrela de manhã e chamamos-lhe «Fósforo». Depois, então, desco brimos que de facto não se trata de uma estrela, mas sim do planeta Vénus, e que Héspero e Fósforo são realmente a mesma coisa. Expressam os isto dizendo «Héspero é Fósforo». Certam ente não estamos apenas aqui a dizer que um objecto é idêntico a si próprio. Trata-se de algo que descobrimos. E muito natural dizer-se que o con teúdo real da frase é o de que a estrela que vimos à tarde é a estrela que vimos de manhã (ou, mais preci samente, que a coisa que vimos à tarde é a coisa que vimos de manhã). O verdadeiro significado da afirm a ção de identidade é então dado por isto; e a análise em termos de descrições é isto que faz. Também podemos colocar a questão de saber se um nome tem de facto alguma referência — quando per
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guntam os, por exemplo, se A ristóteles existiu mesmo. Parece natural pensar que o que se pergunta aqui não é se a coisa (homem) existiu. Assim que temos a coisa, sabemos que existiu. O que realmente se pergunta é se há algo que responda às propriedades que associamos ao nome — no caso de Aristóteles, se houve um filó sofo grego que produziu certas obras, ou pelo menos um número considerável delas. Seria óptimo poder responder a todos estes argu mentos. Não sou com pletam ente capaz de ver claro de que modo devo responder a todos os problemas deste género que se podem levantar. Além disso, tenho a certeza de que não terei tempo que chegue para discu tir todas estas questões nestas palestras. Não obstante, estou bastante seguro de que a perspectiva de Frege e Russell é falsa5. M uitas pessoas disseram que a teoria de Frege e Russell é falsa, mas, na minha opinião, abandonaram a sua letra ao mesmo tempo que conservaram o seu espírito, nom eadam ente quando usaram a noção de conceito-feixe. Bem, o que é isso? O problem a óbvio
5 Quando falo da perspectiva de Frege-Russell e das suas va riantes, incluo apenas aquelas versões que oferecem uma teoria substancial da referência dos nomes. Em particular, a proposta de Quine, de que, numa «notação canónica», um nome como «Sócra tes» devia ser substituído por uma descrição como «o socratizador» (em que «socratiza» é um predicado inventado) e que a descrição devia depois ser eliminada pelo método de Russell, não foi apre sentada com a intenção de constituir uma teoria da referência dos nomes, mas sim como uma proposta de reforma da linguagem, que teria certas vantagens. Todos os problemas aqui discutidos se aplicam, mutatis mutandis, a essa linguagem reformada; em parti cular, a pergunta «Como se determina a referência de 'Sócrates'?» dá lugar à pergunta «Como se determina a extensão de 'socratiza'?» Claro que não estou a sugerir que Quine tenha alguma vez dito o contrário.
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para Frege e Russell, aquele que im ediatam ente nos vem à mente, foi indicado pelo próprio Frege, que disse: N o ca so d e n o m e s g e n u in a m e n te p ró p rio s co m o «A ristó teles», as op in iõ es acerca do seu sen tid o pod em divergir. P od e su g erir-se qu e seja, p o r exem p lo : o d iscí pu lo d e P latão e p ro fesso r d e A lex an d re, o G rande. Q uem aceitar este sen tid o v ai in terp retar o sig n ificad o da a fir m ação «A ristó teles n asceu em E stag ira» d e m od o d ife rente d e qu em in terp reto u o sen tid o de «A ristó teles» com o o p ro fesso r estagirita de A lexand re, o G rande. D esd e que o nom in atu m p erm an eça o m esm o, estas flu tu açõ es d e sen tid o são to leráv eis. M as no sistem a d e u m a ciên cia d em o n strativ a d evem ser ev itad as e n ão d ev em o co rrer nu m a lin g u ag em p erfeita.6
Assim, segundo Frege, há uma espécie de im preci são ou fragilidade na nossa linguagem. Umas pessoas podem atribuir um sentido ao nome «Aristóteles», e outras atribuírem um sentido diferente. Mas claro que não se trata apenas disso; mesmo um só falante pode ficar bastante perdido se lhe perguntarem: «Que des crição estaria disposto a pôr em vez do nome?» De facto, pode saber m uitas coisas acerca dele; mas pode sentir claram ente que cada coisa particular que sabe expressa uma propriedade contingente do objecto. Se «Aristóteles» significasse «o homem que ensinou Alexan dre, o Grande», então dizer «Aristóteles foi professor de Alexandre, o Grande» seria uma mera tautologia. Mas certamente que não é; ela expressa o facto de A ris tóteles ter ensinado Alexandre, o Grande, algo que pode ríamos descobrir que é falso. Assim, «ser o professor 6 Gottlob Frege, «On Sense and Nominatum», traduzido por Herbert Feigl em Readings in Philosophical Analysis (ed. Herbert Feigl e Wilfried Sellars), Appleton Century Crofts, 1949, p. 86.
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de Alexandre, o Grande» não pode fazer parte do [sen tido do] nome. A maneira mais comum de sair desta dificuldade é dizer: «Não é realmente uma fraqueza da linguagem vulgar não se poder substituir o nome por uma descri ção particular; isso está bem assim. O que realmente associamos ao nome é uma fam ília de descrições.» Um bom exemplo disso está (se eu conseguir encontrá-lo) nas Investigações Filosóficas, onde se introduz com muita força a ideia de semelhanças de família. Considera este exemplo: quando se diz «Moisés não existiu», isto pode querer dizer diversas coisas. Pode querer dizer: os Israelitas não tinham um comandante quando se retiraram do Egipto; ou: o seu comandante não se chamava Moisés; ou: não pode ter existido alguém que tivesse feito tudo o que a Bíblia conta de Moisés; ou: etc., etc. [...] Mas quando faço uma afirmação acerca de Moisés — será que estou sempre pronto para substituir o nome «Moisés» por urna dessas descrições? Direi tal vez: por «Moisés» entendo o homem que fez o que a Bíblia conta de Moisés ou, pelo menos, uma grande par te disso. Mas quanto? Será que decidi quanto é que tem de ser provado como falso para que abandone a minha proposição como falsa? Terá o nome «Moisés» adqui rido, para mim, um uso fixo e unívoco em todos os casos possíveis?7
De acordo com esta perspectiva, e um locus classicus disso é o artigo de Searle acerca dos nomes próprios8, o referente de um nome não é determinado por uma só descrição, mas por algum feixe ou família de descri7 Ludwig Wittgenstein, Investigações Filosóficas, Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1987, §79. [N. dos T.: A tradução de M. S. Lourenço foi ligeiramente modificada.] 8 John R. Searle, «Proper Names», Mind, 67, 1958, pp. 166-173.
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ções. O referente do nome é aquilo que de algum modo satisfaz um número suficiente ou a m aioria das descri ções da família. Voltarei mais adiante a esta perspec tiva. Ela pode parecer, enquanto análise da linguagem vulgar, um bocado mais plausível do que a de Frege e Russell. Pode parecer que mantém todas as virtudes e remove os defeitos desta teoria. Deixem-m e dizer-vos (e com isto entramos noutro tópico novo, antes de eu tomar realm ente em conside ração esta teoria da nomeação) que há duas maneiras de olhar para a teoria do conceito-feixe, ou até para a teoria que requer uma descrição única. Uma dessas maneiras diz que o feixe ou a descrição única nos dão efectivam ente o significado do nome; e que, quando alguém diz «Walter Scott», quer com isso dizer o ho mem tal que tal e tal e tal e tal. Numa outra perspectiva, poderia dizer-se que, ape sar de a descrição não nos dar de certo modo o signi ficado do nome, é ela que determina a sua referência e que, apesar de a expressão «Walter Scott» não ser sinónima de «o homem tal que tal e tal e tal e tal», nem sequer sinónima da família (se é que alguma coisa pode ser sinónim a de uma família), a família ou a descrição única são aquilo que usamos para determ inar a quem é que alguém se refere quando diz «Walter Scott». E claro que se descobrirmos, quando ouvimos as suas crenças a respeito de Walter Scott, que elas estão efec tivam ente mais próximas de ser verdadeiras de Sal vador Dali, então, segundo esta teoria, a referência deste nome irá ser o Sr. Dalí e não Scott. Julgo que há escritores que negam explicitam ente — e até com mais convicção do que eu faria — que os nomes tenham qualquer significado, mas que, no entanto, continuam a usar esta visão de como se determ ina o referente do nome. Um bom exemplo é Paul Ziff, que, muito enfa ticam ente, afirm a que os nom es não têm qualquer
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significado e que, num certo sentido, não fazem parte da linguagem. Ainda assim , quando fala acerca do modo como determinamos qual era a referência do nome, é esta a concepção que usa. Infelizmente, não tenho comigo a passagem a que me refiro, mas é isso que ele afirma9. A diferença entre usar esta teoria como uma teoria do significado e usá-la como uma teoria da referência tornar-se-á um pouco mais clara adiante. Mas perde-se alguma da sua atracção se não supusermos que nos dá o significado do nome; pois algumas das solu ções para os problemas que m encionei há pouco dei xam de estar correctas, ou, pelo menos, deixam de es tar claram ente correctas, se a descrição não der o significado do nome. Por exemplo, se alguém disse que «Aristóteles não existe» significa «nenhum homem fez tal e tal», ou, no exemplo de W ittgenstein, «Moisés
9 Ziff apresenta com mais pormenor a sua versão da teoria da referência dos nomes em termos de um feixe de descrições no artigo «About God», reimpresso em Philosophical Turnings, Ithaca: Cornell University Press, e Londres: Oxford University Press, 1966, pp. 94-96. Encontra-se uma apresentação mais breve no seu livro Semantic Analysis, Ithaca: Cornell University Press, 1960, pp. 102-105 (em especial, pp. 103-104). Esta última passagem sugere que os nomes de coisas com que temos contacto devem ser tratados de uma maneira diferente (usando a ostensão e o baptismo) do que os nomes de personagens históricas, em que a referência é determi nada por (um feixe de) descrições associadas. Na p. 93 de Semantic Analysis, Ziff afirma que «simples generalizações fortes acerca de nomes próprios» são impossíveis; «podemos apenas dizer o que se passa na maioria dos casos...». Todavia, Ziff afirma claramente que uma teoria em termos de um feixe de descrições constitui um enunciado aproximativo desse género que é razoável, pelo menos no que diz respeito a personagens históricas. Para a perspectiva de Ziff, segundo a qual os nomes próprios vulgares não são palavras que façam parte da linguagem e que tenham um significado, veja-se pp. 85-89 e 93-94 de Semantic Analysis.
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não existe» significa «nenhum homem fez tal e tal», isso poderia estar dependente (e penso que de facto está) de se considerar a teoria em questão como uma teoria do significado do nome «Moisés», e não apenas como uma teoria da sua referência. Bem, não sei. Tal vez só possamos agora afirmar o inverso: se «Moisés» significa o mesmo que «o homem que fez tal e tal», então dizer que Moisés não existiu é dizer que o ho mem que fez tal e tal não existiu, ou seja, que nenhu ma pessoa fez tal e tal. Se, por outro lado, «Moisés» não for sinónimo de nenhuma descrição, então mesmo que a sua referência seja num certo sentido determ i nada por uma descrição, as afirm ações que contêm o nome não podem geralmente ser analisadas substituin do o nome por uma descrição, ainda que possam ser m aterialm ente equivalentes a afirmações que contêm uma descrição. E então a análise das afirmações de existência singular mencionada acima terá de ser aban donada, a não ser que a estabeleçam por algum argu mento especial, independente de uma teoria geral do significado dos nomes; e o mesmo se aplica às afirm a ções de identidade. Em todo o caso, penso que é falso que «Moisés existe» signifique isso. Por isso não tere mos de ver se um tal argumento especial pode efectiva mente ser construído10. Antes de aprofundar este problema, gostaria de falar de uma outra distinção que será im portante para a metodologia destas palestras. Os filósofos têm falado (e, claro, nos últimos anos tem havido bastante contro vérsia em torno da questão de saber se estas noções
10 Os deterministas que rejeitam a importância do indivíduo na história podem defender que, se Moisés nunca tivesse existido, alguma outra pessoa teria surgido para realizar tudo o que ele realizou. Não podemos refutar a sua tese apelando para uma teo ria filosófica correcta do significado de «Moisés existe».
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têm ou não significado) [acerca de] várias catego rias de verdade, a que cham am «a priori», «analítica», «necessária» — e, por vezes, até «certa» é posta no mesmo saco. Os termos são frequentem ente usados como se fosse interessante a questão de saber se há coisas que respondam a estes conceitos, mas pudés semos tam bém olhar para eles como se todos signi ficassem a mesma coisa. Ora, todos nos lembramos de Kant (um pouco) e da distinção que fazia entre «a priori» e «analítico». Por isso talvez ainda se faça esta distinção. Nas discussões contem porâneas são poucas as pessoas, ou nenhuma, que fazem a distinção entre os conceitos de uma afirmação ser a priori e de ser necessária. De qualquer modo, aqui não vou usar os termos «a priori» e «necessário» como se fossem intermutáveis. Considerem os a m aneira como, tradicionalm ente, se caracterizam termos como «a priori» e «necessário». Primeiro, a noção de aprioridade é um conceito da epistem ología. Creio que a caracterização tradicional de Kant é algo como isto: as verdades a priori são aque las que podem ser conhecidas independentem ente de qualquer experiência. Isto traz-nos um outro proble ma com que temos de lidar antes de arrancarm os, porque há outra m odalidade na caracterização do «a priori», a saber: supõe-se que é algo que pode ser conhe cido independentem ente de qualquer experiência. Isso quer dizer que, num certo sentido, é possível (quer, de facto, o conheçamos ou não, independentem ente de qualquer experiência) conhecer isto independentem en te de qualquer experiência. E é possível para quem? Para Deus? Para os marcianos? Ou sim plesm ente para pessoas que têm mentes como as nossas? Para esclare cermos inteiramente estas coisas, teríam os de tratar de uma série de problemas próprios acerca do género de possibilidade que está aqui em questão. Poderá então
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ser preferível, em vez de usarmos a expressão «verda de a priorí» (na medida em que ela é efectivam ente usada), ficarm o-nos pela questão de saber se uma pessoa ou um conhecedor particular conhece alguma coisa a priori ou se acredita que alguma coisa é verda de com base em dados a priori. Não irei aqui aprofundar demasiado os problemas que a noção de aprioridade poderia suscitar. Direi que alguns filósofos de certo modo alteram a modalidade presente nesta caracterização de pode para tem de. Pen sam que se uma coisa pertence ao domínio do conheci mento a priori, então não seria possível conhecê-la empi ricamente. Isto é sim plesmente um erro. Uma coisa pode pertencer ao domínio das afirmações que podem ser conhecidas a priori e, ainda assim, ser conhecida por pessoas particulares com base na experiência. Eis um exemplo que é realm ente do senso comum: qual quer pessoa que tenha trabalhado com uma máquina de calcular sabe que esta lhe pode dar a resposta sobre se tal e tal número é um número primo. Ninguém cal culou ou provou que o número é primo; mas a calcu ladora deu a resposta: este número é primo. Então, nós, se acreditamos que o número é primo, acredita mos com base no nosso conhecimento das leis da física, da construção da m áquina, etc. Não acreditamos nisso, portanto, com base em dados puram ente a priori. Acre ditamos (se é que alguma coisa é a posteriori) com base em dados a posteriori. Pese embora, talvez isso pudesse ser conhecido a priori por alguém que fizesse os cálcu los necessários. Por isso, «pode ser conhecido a priori» não significa «tem de ser conhecido a priori». O segundo conceito em questão é o de necessidade. Por vezes, este conceito é usado de maneira epistemoló gica, e então pode simplesmente significar a priori. Claro que, outras vezes, é usado de m aneira física, quando se faz a distinção entre necessidade física e lógica. Mas a 83
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noção que aqui me interessa não pertence à epistemologia, mas sim à m etafísica, nalgum sentido (espero eu) não pejorativo. Perguntamos se uma coisa poderia ter sido verdadeira ou se poderia ter sido falsa. Bem, se uma coisa é falsa, é óbvio que não é necessariamente verdadeira. Se é verdadeira, poderia ter sido de outra m aneira? E possível que, a este respeito, o mundo tivesse sido diferente do que é? Se a resposta for «não», então este facto acerca do mundo é um facto necessá rio. Se a resposta for «sim», então este facto acerca do mundo é contingente. Em si e por si m esmo, isto nada tem a ver com o conhecimento que alguém tenha de alguma coisa. É com certeza uma tese filosófica, e não uma questão de equivalência definitória óbvia, que tudo o que é a priori seja necessário ou que tudo o que é necessário seja a priori. Os conceitos podem ser ambos vagos. Isso pode ser outro problema. Mas, de qualquer modo, eles dizem respeito a dois domínios diferentes, a duas áreas diferentes, a epistemológica e a metafísica. Considerem os, por exemplo, o últim o teorema de Fermat — ou a conjectura de Goldbach. A conjectura de Goldbach diz que um número par m aior que 2 tem de ser a soma de dois números primos. Se isto for ver dade, é de presumir que seja necessário, e, se for falso, é de presum ir que seja necessariamente falso. Estamos aqui a adoptar a concepção clássica da m atem ática e a supor que, na realidade m atemática, a conjectura é ou verdadeira ou falsa. Se a conjectura de Goldbach for falsa, então existe um número par, n, m aior que 2, tal que, para nenhuns números primos p { e p2, ambos < n, será n = p } + pr Este facto acerca de n, se for verdadeiro, será verificável por cálculo directo, e então será necessário, se os resul tados dos cálculos aritm éticos são necessários. Por outro lado, se a conjectura for verdadeira, então todo o número par m aior que 2 será a soma de dois núme84
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ros primos. Poderia então dar-se o caso de, embora de facto todos esses números pares sejam a soma de dois prim os, ter havido um número par desses que não fosse a soma de dois primos? O que significaria isso? Um tal número teria de ser 4, 6, 8, 10, ...; e, por hipó tese, uma vez que estamos a supor que a conjectura de Goldbach é verdadeira, a respeito de cada um destes número pode m ostrar-se, por cálculo directo, que ele é a soma de dois primos. A conjectura de Goldbach, então, não pode ser contingentemente verdadeira ou falsa; qualquer que seja o seu valor de verdade, pertencer-lhe-á necessariamente. Mas o que com certeza podemos dizer é que, neste m omento, tanto quanto sabemos, a questão tanto pode vir a resolver-se de uma maneira como da outra. Por isso, na ausência de uma prova m atemática que deci da esta questão, nenhum de nós tem qualquer conhe cimento a priori acerca desta questão, seja em que direc ção for. Não sabemos se a conjectura de Goldbach é verdadeira ou falsa. Por isso, neste momento, é seguro que não sabemos nada a priori acerca disso. Dir-se-á talvez que podemos, em princípio, saber a priori se ela é verdadeira. Bem, talvez possamos. E claro que uma mente infinita, capaz de percorrer todos os números, pode ou poderia. Mas não sei se uma mente finita pode ou poderia. Talvez não exista simplesmente nenhuma prova m atem ática que decida a conjectura. Em todo o caso, isto poderá ser ou não ser o caso. Tal vez exista uma prova matemática que decide esta ques tão; talvez todas as questões m atem áticas sejam decidíveis por uma prova ou refutação intuitivas. Hilbert pensou que sim; outros pensaram que não; outros ainda pensaram que a questão é ininteligível, a não ser que se substitua a noção de prova intuitiva pela de prova formal num sistema único. E certo que, como sabemos por Gõdel, nenhum sistema formal único decide todas 85
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as questões matemáticas. Em todo o caso, e isto é que é im portante, a questão não é trivial; ainda que alguém tenha dito que é necessário, se for verdade, que todo o número par seja a soma de dois primos, não se segue daí que alguém saiba qualquer coisa a priori acerca disso. E nem sequer me parece que se siga, sem algum argumento filosófico adicional (e trata-se de uma ques tão filosófica interessante), que alguém poderia saber algo a priori acerca disso. O «poderia», com o eu disse, envolve uma outra modalidade. Queremos dizer que mesmo que ninguém, talvez até no futuro, saiba ou venha a saber a priori se a conjectura de Goldbach está correcta, em princípio existe uma maneira, que poderia ter sido usada, de responder a priori à questão. Esta afirmação não é trivial. Não é então óbvio que os termos «necessário» e «a priori», tal como se aplicam a afirmações, sejam sinó nimos. Pode haver um argumento filosófico que os relacione ou que talvez até os identifique; mas é pre ciso um argumento, e não apenas a observação de que os dois termos são claram ente intermutáveis. (Defen derei mais adiante que, de facto, eles nem sequer são co-extensivos: existem verdades necessárias a poste riori e, provavelm ente, tam bém verdades contingentes a priori.) Julgo que as razões pelas quais as pessoas têm pen sado que estas duas coisas têm de querer dizer o m es mo são as seguintes: Prim eiro, se uma coisa é verdadeira não só no m undo actual mas em todos os m undos possíveis, então, com certeza, ao passarm os em revista m ental m ente todos os m undos possíveis, deveríam os ser capazes de ver, com o esforço suficiente, se um enun ciado for necessário, que ele é necessário e, assim, ter conhecimento dele a priori. M as, na realidade, não é assim tão óbvio que possamos fazer isto. 86
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Segundo, acho que se costuma pensar que, conver samente, se uma coisa é conhecida a priori, então tem de ser necessária, porque foi sem olhar para o mundo que a conhecemos. Se dependesse de alguma caracte rística contingente do mundo actual, como é que pode ríamos conhecê-la sem olhar? O mundo actual poderia ser um dos mundos possíveis em que ela é falsa. Esta ideia está dependente da tese segundo a qual não pode haver uma m aneira de conhecer algo do m undo actual sem olhar que não seja também uma maneira de conhe cer o m esm o de todos os m undos possíveis. Isto envolve problemas de epistem ología e acerca da natu reza do conhecimento; e não há dúvida de que, posto assim, é m uito vago. M as, por outro lado, não é real mente trivial. Mais im portante do que qualquer exem plo particular de uma coisa alegadam ente necessária e não a priori, ou de uma coisa a priori e não necessária, é vermos que as noções são diferentes e que não é trivial defender que uma coisa, porque é algo que tal vez só possamos conhecer a posteriori, não é uma ver dade necessária. Só porque uma coisa é num certo sentido conhecida a priori, não é trivial que o que assim se conhece seja uma verdade necessária. Um outro termo usado em filosofia é «analítico». Aqui não será tão importante esclarecer melhor esta noção. Os exemplos de enunciados analíticos que hoje em dia é comum dar são do género «os solteiros não são casados». Kant (alguém mo disse recentemente) dá como exemplo «o ouro é um metal amarelo», o que me parece extraor dinário, porque é algo que julgo que poderia ser falso. De qualquer modo, vamos apenas estipular que um enunciado analítico é, num certo sentido, verdadeiro em virtude do seu significado, e verdadeiro em todos os mundos possíveis em virtude do seu significado. Então, o que for analiticamente verdadeiro será ao mesmo tempo (digamos que por estipulação) necessário e a priori. 87
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Uma outra categoria que m encionei foi a da certeza. O que quer que seja a certeza, obviamente não é evi dente que tudo o que é necessário seja certo. A certeza é mais uma noção epistem ológica. Pode conhecer-se uma coisa, ou pelo menos acreditar-se racionalmente numa coisa, a priori, sem que se tenha bem a certeza. Lem os uma dem onstração no livro de m atem ática; embora pensemos que está correcta, talvez estejam os errados. Com etem os erros deste tipo m uitas vezes. Executámos um cálculo, mas esse cálculo pode conter um erro. Há mais uma questão que gostaria de abordar preli minarmente. Alguns filósofos fizeram a distinção entre o essencialismo, ou seja, a crença na m odalidade de re, e a simples defesa da necessidade, ou seja, a crença na m odalidade de dicto. O ra, algum as pessoas dizem : Concedamo-vos o conceito de necessidade11. Uma coisa m uito pior, que levanta problem as adicionais bem maiores, é saber se podemos dizer, acerca de qualquer objecto particular, que ele tem propriedades necessá rias ou contingentes, ou até mesmo fazer a distinção entre propriedades necessárias e contingentes. Repa 11 A propósito, é habitual em filosofia pensar-se que não deve mos introduzir uma noção enquanto não a tivermos definido rigo rosamente (de acordo com alguma noção popular de rigor). Aqui lido apenas com uma noção intuitiva e irei manter-me ao nível de uma noção intuitiva. Quer isto dizer que, a respeito de algumas coisas que são de facto de um certo modo, pensamos que pode riam ter sido diferentes. Eu poderia não ter dado esta palestra hoje. Se isto é verdade, então é possível que eu não tivesse dado esta palestra hoje. A questão epistemológica acerca de como é que uma pessoa particular sabe que eu dei esta palestra hoje é uma questão bastante diferente. Suponho que, nesse caso, a pessoa sabe isto a posteriori. Mas quem sabe se poderia nascer alguém com uma crença inata de que eu iria dar esta palestra hoje? De qualquer modo, por agora, vamos supor que as pessoas sabem isto a posteriori. Em todo o caso, as duas questões são diferentes.
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rem, só um enunciado ou um estado de coisas é que pode ser necessário ou contingente! A questão de saber se um objecto particular tem necessária ou contingente mente uma certa propriedade está dependente da m a neira como ele é descrito. Isto está talvez intimamente relacionado com a perspectiva segundo a qual é através de uma descrição que nos referimos às coisas particu lares. Qual é o exemplo famoso de Quine? O número 9 tem necessariamente a propriedade de ser ímpar? E seguram ente verdade em todos os mundos possíveis que o 9 é ímpar. Digam os que isso é algo que não poderia ser de outro modo. É claro que o 9 poderia igualmente ser identificado como o número de planetas. E não é necessário, não é verdade em todos os mundos possíveis, que o número de planetas seja ímpar. Por exem plo, se existissem oito planetas, o núm ero de planetas não seria ímpar. E por isso pensa-se: Nixon venceu as eleições — mas isso foi necessário ou con tingente? (Pareceria contingente, a não ser que se im a gine algum processo inexorável...) Mas isto só é uma propriedade contingente de Nixon relativam ente ao nosso modo de o referirmos como «Nixon» (supondo que «Nixon» não significa «o homem que venceu as eleições em tal e tal momento»). Mas se designarmos Nixon com o «o hom em que venceu as eleições de 1968», então será seguram ente uma verdade necessá ria que o homem que venceu as eleições de 1968 tenha vencido as eleições de 1968. Do mesm o m odo, a ques tão de saber se um objecto tem a mesma propriedade em todos os m undos possíveis depende não só do próprio objecto, mas de como ele é descrito. E isto que defendem. Encontra-se até sugerido na literatura que, apesar de poder haver alguma espécie de intuição por detrás da noção de necessidade (pensamos efectivamente que algumas coisas poderiam ser de outro modo, enquanto
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outras não), esta noção [de uma distinção entre proprie dades necessárias e contingentes] não é mais do que uma doutrina inventada por algum mau filósofo, que não percebeu que há diversas maneiras de referir a mesma coisa. Não sei se alguns filósofos não perceberam isto; mas, de qualquer modo, está muito longe de ser ver dade que esta ideia [de que tem sentido considerar que uma propriedade é essencial ou acidental a um objecto independentem ente da sua descrição] seja uma noção sem conteúdo intuitivo, sem significado para o homem comum. Suponhamos que alguém dizia, apon tando para Nixon: «Este é o tipo que poderia ter per dido.» E outra pessoa dizia: «Oh, não, se o descreveres como 'N ixon', então ele poderia ter perdido; mas é claro que, se o descreveres como o vencedor, então não é verdade que ele poderia ter perdido.» Ora, qual deles é que está aqui a ser o filósofo, o homem não intuitivo? A mim parece-me óbvio que é o segundo. O segundo hom em tem uma teoria filosófica. O primeiro diria, e com grande convicção: «Bem, é claro que o vencedor das eleições poderia ter sido outra pessoa. Se a cam panha tivesse decorrido de m aneira diferente, aquele que de facto venceu poderia ter sido o derro tado, e o vencedor ser outra pessoa; ou poderia não ter mesmo havido eleições. Por isso, termos como 'o ven cedor' e 'o derrotado' não designam os m esmos objec tos em todos os mundos possíveis. Por outro lado, o termo 'Nixon' é sim plesmente um nome deste homem.» Quando perguntamos se é necessário ou contingente que Nixon tenha ganhado as eleições, estamos a colo car a questão intuitiva de saber se, nalguma situação contrafactual, este homem teria de facto perdido as elei ções. Se alguém pensa que a noção de propriedade necessária ou contingente (esqueçam agora a questão de saber se existe alguma propriedade necessária que não seja trivial [e considerem] apenas o que há de signi
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ficativo na noção12) é uma noção de filósofos sem qual quer conteúdo intuitivo, está enganado. Não há dúvida de que alguns filósofos julgam que o facto de uma coisa ter conteúdo intuitivo é uma prova muito inconclusiva a seu favor. Quanto a mim, julgo, pelo contrário, que é uma prova de muito peso a favor do que quer que seja. De certo modo, não sei realmente que prova mais conclusiva do que essa é que, em últim a instância, podemos ter a respeito de alguma coisa. Em todo o caso, quem pensar que a noção de propriedade acidental não é intuitiva tem as intuições às avessas, julgo eu. Porque é que pensaram assim? Entre as muitas moti vações que há para se pensar desse modo, uma delas é a seguinte: supõe-se que a questão das chamadas pro priedades essenciais é equivalente (e, de facto, é equi valente) à questão da «identidade ao longo dos mundos possíveis». Considerem os uma pessoa, Nixon, e supo nhamos que há um outro mundo possível onde não existe ninguém que tenha todas as propriedades que Nixon tem no mundo actual. Destas outras pessoas, qual delas é Nixon, se é que alguma é? Certamente que têm de nos dar, aqui, algum critério de identidade! Se tiverm os um critério de identidade, então basta que
12 O exemplo que dei afirma que uma certa propriedade de Nixon — a vitória eleitoral — lhe é acidental, independentemente da maneira como o descrevemos. Claro que, se a noção de proprie dade acidental tiver significado, a noção de propriedade essencial tê-lo-á também. Isto não é o mesmo que dizer que existem pro priedades essenciais — embora eu julgue, de facto, que existem. O argumento habitual coloca em questão a inteligibilidade do essencialismo e diz que uma propriedade é acidental ou essencial a um objecto dependendo da maneira como o descrevemos. Não coincide, portanto, com a ideia de que todas as propriedades são acidentais. E é claro que também não coincide com a ideia, defendida por alguns idealistas, de que todas as propriedades são essenciais e todas as relações internas.
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exam inem os, nos outros m undos possíveis, o homem que é N ixon; e a questão de saber se, nesse outro mundo possível, Nixon tem certas propriedades estará bem definida. Também se supõe que estará bem defi nida, em termos de tais noções, a questão de saber se é verdade em todos os mundos possíveis que Nixon venceu as eleições ou se existem mundos possíveis em que ele não as venceu. Mas depois diz-se que é muito difícil encontrar esses critérios de identidade. Às vezes pode parecer que seria mais fácil fazê-lo a respeito dos números (mas mesmo aqui há quem defenda que é bastante arbitrário). Por exemplo, poderíamos dizer, e é sem dúvida verdade, que, se a posição na série dos números é o que faz o número 9 ser o que é, então se (num outro mundo) o número de planetas fosse 8, o número de planetas seria um número diferente daquele que efectivam ente é. Não diríamos, então, que esse número se identifica com o número 9 que há neste nosso mundo. No caso de objectos de outros tipos, como pessoas, objectos m ateriais e coisas desse género, já alguém apresentou um conjunto de condições neces sárias e suficientes para a sua identidade ao longo dos mundos possíveis? De facto, condições necessárias e suficientes de iden tidade que sejam adequadas e que não suponham aquilo mesmo que pretendem estabelecer são, em todo o caso, algo muito raro. Para dizer a verdade, a m ate mática é o único caso que conheço onde essas condi ções são dadas mesmo no interior de um mundo pos sível. N ão conheço condições desse género para a identidade de objectos m ateriais ao longo do tempo, ou para pessoas. Toda a gente sabe como este proble ma é difícil. Esqueçamos isso agora. O que parece mais objectável é que isto está dependente da m aneira erra da de considerar o que é um m undo possível. Nesta concepção pensa-se num mundo possível como se fosse 92
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uma espécie de país estrangeiro. E nós estaríamos na posição de observadores. Talvez Nixon tenha ido para o outro país, ou talvez não, mas o que nos é dado são apenas qualidades. Podemos observar todas as suas qualidades, mas é claro que não podemos observar que alguém é Nixon. Observamos que algo tem cabelo ruivo (ou verde ou amarelo), mas não se algo é Nixon. Por isso, precisaríamos de ter uma m aneira de deter minar, em termos de propriedades, quando é que nos deparamos com a mesma coisa que vimos antes; pre cisaríamos de ter uma m aneira de determinar, quando encontramos um desses mundos possíveis, quem é o Nixon nesse mundo. Pode ser que, no seu tratam ento form al da lógica modal, alguns lógicos acabem por encorajar esta con cepção. Um exemplo notável disso talvez seja eu pró prio. No entanto, intuitivam ente falando, não me pa rece que essa seja a m aneira correcta de pensar sobre os mundos possíveis. Um mundo possível não é um país distante que encontram os ou que observam os através de um telescópio. De um modo geral, um outro mundo possível está demasiado distante. Mesmo que viajássem os mais rápido do que a luz, não o alcança ríamos. Um mundo possível é dado pelas condições des critivas que lhe associamos. O que queremos dizer quando afirmamos: «Num outro mundo possível eu não teria dado esta palestra hoje»? Im aginamos apenas a situa ção em que eu não decidi dar esta palestra ou em que decidi dá-la noutro dia. É claro que não imaginamos tudo o que é verdadeiro ou falso, mas apenas aquelas coisas que são relevantes para o meu acto de dar a palestra; mas, na teoria, tudo tem de ser decidido para que se possa fazer uma descrição total do mundo. Não podemos realmente imaginar isso senão em parte; isso, então, é um «mundo possível». Porque é que não pode fazer parte da descrição de um mundo possível o facto
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de conter Nixon e de nesse inundo Nixon não ter ga nhado as eleições? Poderá questionar-se, claro, se um tal mundo é possível. (Neste caso pareceria, prima facie, claram ente possível.) Mas, assim que vemos que uma tal situação é possível, é-nos dado a reconhecer que o homem que poderia ter perdido as eleições ou que perdeu as eleições neste m undo possível é N ixon, porque isso faz parte da descrição do mundo. Os «mun dos possíveis» são estipulados, e não descobertos por meio de telescópios poderosos. Não há nenhuma razão pela qual não possamos estipular que, quando falamos do que teria acontecido a Nixon numa certa situação contrafactual, estamos a falar daquilo que lhe teria aconte cido a ele. É claro que, se exigirem que os mundos possíveis tenham sempre de ser descritos de uma m aneira pura mente qualitativa, não poderemos dizer: «Suponhamos que N ixon tinha perdido as eleições»; em vez disso, temos de dizer qualquer coisa como: «Suponhamos que um hom em que tem um cão cham ado C heckers, e que se parece com uma certa personagem representada por David Frye, está num certo mundo possível e perde as eleições.» Bem, será que este homem se assemelha o suficiente a Nixon para que o identifiquem os com Nixon? Um exemplo flagrante e muito explícito desta maneira de ver as coisas é a teoria das contrapartes de David Lew is13, mas toda a literatura acerca da m oda 13 David K. Lewis, «Counterpart Theory and Quantified Modal Logic», Journal of Philosophy, 65,1968, pp. 113-126. Este elegante artigo de Lewis também padece de uma dificuldade puramente formal: na sua interpretação da modalidade quantificada, a habitual lei (y) ((x) A(x) z> A{y)) falha, se A(x) puder conter operadores modais. (Por exemplo, (3i/) ((x) 0 ( x^y) ) é satisfazível, mas (3y)0(i/ ^y) não o é.) Uma vez que o modelo formal de Lewis se segue, muito naturalmente, da sua perspectiva filosófica acerca das contrapartes, e uma vez que a falha da instanciação universal para propriedades
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lidade quantificada está cheia de exem plos disso14. Porque é que temos de fazer esta exigência? Essa não é a m aneira normal de pensarm os em situações contrafactuais. Norm alm ente dizemos: «Suponhamos que modais é intuitivamente bizarra, parece-me que esta falha consti tui mais uma razão contra a plausibilidade das suas perspectivas filosóficas. Existem ainda outras dificuldades formais menos im portantes. Não posso desenvolver aqui o assunto. Em sentido estrito, a concepção de Lewis não é uma concepção de «identificação transmundial». O que ele pensa é que as seme lhanças ao longo de mundos possíveis determinam uma relação de contraparte que não tem de ser simétrica nem transitiva. A con traparte de alguma coisa noutro mundo possível nunca é idêntica à própria coisa. Assim, se dissermos «Humphrey podia ter ven cido as eleições (se tivesse feito tal e tal)», estaremos a falar acerca de algo que poderia ter acontecido, não a Humphrey, mas sim a uma outra pessoa, que é uma «contraparte» dele. E no entanto bastante provável que Humphrey não esteja minimamente interes sado em saber se uma outra pessoa, por muito parecida com ele que seja, teria sido a vencedora noutro mundo possível. Assim, parece-me que a concepção de Lewis é ainda mais bizarra do que as noções habituais de identificação transmundial que pretende substituir. As questões importantes, no entanto, são comuns às duas concepções: a suposição de que os outros mundos possíveis são como outras dimensões de um universo mais amplo, de que só podem ser dados por descrições puramente qualitativas e de que, por isso, a relação de identidade ou a relação de contraparte tem de ser estabelecida em termos de semelhança qualitativa. Muitas pessoas me têm dito que o pai da teoria das contrapartes é provavelmente Leibniz. Não discutirei aqui esta questão histó rica. Também seria interessante comparar a concepção de Lewis com a interpretação Wheeler-Everett da mecânica quântica. Sus peito que esta concepção da física possa sofrer de problemas filo sóficos análogos aos da teoria das contrapartes de Lewis; no seu espírito, são concepções muito semelhantes. 14 Outro locus classicus das perspectivas que aqui critico, com maior desenvolvimento filosófico do que o artigo de Lewis, é um artigo de David Kaplan sobre a identificação transmundial. Infe lizmente, este artigo nunca foi publicado. Não é representativo da posição actual de Kaplan.
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este homem tinha perdido.» É desde logo um dado que o mundo possível contém este homem e que, nesse m undo, ele perdeu. O valor das nossas intuições acerca do que é possível pode ser discutível. Mas, se temos uma tal intuição acerca da possibilidade disso (a derrota eleitoral deste homem), então ela é acerca da possibilidade disso. Não temos de identificá-la com a possibilidade de um homem com tal e tal aparência, ou que defende tais e tais ideias políticas, ou como quer que o descrevamos qualitativamente, ter perdido. Pociemos apontar para o homem e perguntar o que lhe poderia ter acontecido a ele, caso as coisas tivessem acontecido de outra maneira. Poderia dizer-se: «Suponhamos que isso é verdade. Isso vai dar ao mesmo, porque a questão de saber se Nixon poderia ter tido certas propriedades, diferentes das que efectivam ente tem, é equivalente à questão de saber se os critérios de identidade ao longo dos m un dos possíveis incluem o facto de Nixon não ter estas propriedades.» Mas não é verdade que seja a mesma coisa, porque a noção habitual de um critério de iden tidade transm undial exige que se dêem condições necessárias e suficientes puram ente qualitativas para que alguém seja o Nixon. Se não podemos imaginar um mundo possível em que Nixon não tem uma certa propriedade, então essa é uma condição necessária para se ser Nixon. Ou, dito de outro modo, é uma propriedade necessária de Nixon que ele tenha essa propriedade. Por exemplo, supondo que Nixon é de facto um ser humano, parece que não podemos pensar numa situação contrafactual possível em que ele seja, digamos, um objecto inanim ado; talvez não seja se quer possível para ele não ter sido um ser humano. Então será um facto necessário acerca de Nixon que, em todos os mundos possíveis em que ele existe, ele seja humano, ou pelo menos não seja um objecto ina-
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nimado. Isto não tem nada a ver com qualquer exigên cia de que haja condições suficientes puramente quali tativas de «Nixonidade» que possamos formular. E de verá haver? Talvez haja algum argumento que mostre que deve haver, mas podemos considerar estas ques tões sobre condições necessárias sem entrarm os em questões sobre condições suficientes. Além disso, m es mo que houvesse um conjunto puramente qualitativo de condições necessárias e suficientes para ser Nixon, a perspectiva que defendo não requer que encontre mos essas condições antes de podermos perguntar se Nixon poderia ter vencido as eleições, assim como não requer que reformulemos a pergunta em termos de tais condições. Podemos muito sim plesmente conside rar Nixon e perguntar o que lhe poderia ter acontecido a ele, caso diversas circunstâncias tivessem sido dife rentes. Por isso, parece-me que as duas perspectivas, as duas maneiras de olhar para as coisas, são realmente diferentes. Reparem que esta questão de saber se Nixon pode ria não ter sido um ser humano é um claro exemplo de uma questão que não é epistemológica. Suponhamos que se descobria que Nixon é afinal um autómato. Isso poderia acontecer. Poderíamos precisar de provas para determinar se Nixon é um ser humano ou um autó mato. Mas isso é uma questão acerca do nosso conhe cimento. A questão de saber se Nixon poderia não ter sido um ser humano, dado o facto de que ele o é, não é uma questão acerca do conhecimento, a posteriori ou a priori. E uma questão acerca de como as coisas poderiam ter sido diferentes daquilo que efectiva mente são. Esta mesa é composta por moléculas. Poderia não o ser? Foi com certeza uma im portante descoberta cien tífica sabermos que era composta por m oléculas (ou por átomos). Mas poderia alguma coisa ser este mesmo 97
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objecto e não ser composta por moléculas? Não há dúvida de que sentimos que a resposta tem de ser «não». Em todo o caso, é difícil imaginar em que cir cunstâncias é que teríamos este mesmo objecto e des cobríamos que ele não é com posto por moléculas. Uma questão bastante diferente é a de saber se ele é de facto composto por m oléculas no mundo actual e como é que sabemos isso. (Abordarei mais adiante e com mais porm enor estas questões a respeito da essência.) Gostaria de apresentar agora um elemento de que preciso na metodologia que irei usar para discutir a teoria dos nomes de que estou a falar. Precisam os da noção de «identidade ao longo dos mundos possíveis» (como é habitualm ente cham ada, embora na minha opinião de uma m aneira um pouco enganadora15) para explicar uma distinção que pretendo agora fazer. Qual é a diferença entre perguntar se é necessário que 9 seja maior que 7 e perguntar se é necessário que o número de planetas seja maior que 7? Porque é que uma coisa é mais reveladora da essência do que a outra? A res posta intuitiva poderia ser: «Bem, repara nisto, o nú mero de planetas poderia ter sido diferente daquele 15 A expressão é enganadora, porque sugere que existe um pro blema especial de «identificação transmundial», e que não pode mos estipular trivialmente de que coisa ou pessoa estamos a falar quando imaginamos outro mundo possível. O termo «mundo possível» também pode ser enganador; é possível que sugira a imagem do «país estrangeiro». No texto, usei por vezes «situação contrafactual»; Michael Slote sugeriu que «estado (ou história) possível do mundo» poderia ser menos enganador do que «mundo possível». Melhor ainda, para evitar confusões, é, em vez de dizer: «Nalgum mundo possível, Humphrey teria vencido», dizer sim plesmente: «Humphrey poderia ter vencido.» O aparato dos mun dos possíveis tem sido (espero eu) muito útil no que diz respeito à teoria dos modelos conjuntista da lógica modal quantificada, mas tem também estimulado pseudoproblemas filosóficos e ima gens enganadoras.
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que de facto é. No entanto, não faz qualquer sentido dizer que o 9 poderia ter sido diferente daquilo que de facto é.» Utilizem os alguns termos de m aneira quase técnica. Digamos que uma expressão é um designador rígido se ela designar o mesmo objecto em todos os m undos possíveis; se não for esse o caso, então trata-se de um designador não-rígido ou acidental. Como é óbvio, não exigimos que os objectos existam em todos os mundos possíveis. Nixon poderia com certeza não ter existido, se os seus pais não tivessem casado (na m aneira normal de estas coisas acontecerem). Quando pensam os que um a propriedade é essencial a um objecto, o que costumamos querer dizer é que ela é verdadeira desse objecto em todos os casos em que este exista. E podemos dizer que um designador rígido de um existente necessário é fortem ente rígido. Uma das teses intuitivas que irei sustentar nestas palestras é a de que os nomes são designadores rígidos. Parece ser seguro que eles satisfazem o teste intuitivo que m encionei acima: embora seja verdade que o pre sidente dos EUA em 1970 poderia ter sido outra pes soa que não o presidente dos EUA em 1970 (por exem plo, poderia ter sido Humphrey), no entanto, nenhuma outra pessoa além de Nixon poderia ter sido Nixon. Da mesma m aneira, um designador designa rigida mente um certo objecto se designar esse objecto onde quer que ele exista; se, além disso, o objecto é um existente necessário, o designador pode ser chamado fortem ente rígido. Por exemplo, «o presidente dos EUA em 1970» designa um certo homem, Nixon; mas algu ma outra pessoa (por exemplo, Humphrey) poderia ter sido o presidente em 1970, e Nixon poderia não o ter sido; por isso, este designador não é rígido. Nestas palestras defenderei, de m aneira intuitiva, que os nomes próprios são designadores rígidos, porque apesar de o homem (Nixon) poder não ter sido presi-
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dente, não se dá o caso de que ele pudesse não ter sido Nixon (embora pudesse não ter sido chamado «Nixon»). Aqueles que defenderam que, para darmos um sentido à noção de designador rígido, teríamos de, prim eira mente, dar sentido à noção de «critérios de identidade transmundial» inverteram as posições da carroça e dos bois; é porque podemos referir Nixon (rigidamente) e estipular que estamos a falar daquilo que lhe poderia ter acontecido a ele (em certas circunstâncias) que as «identificações transmundiais» não levantam qualquer problema em tais casos16. A tendência para exigir descrições puramente quali tativas das situações contrafactuais tem muitas origens. Uma delas talvez seja a confusão entre o epistem oló gico e o m etafísico, entre o a priori e o necessário. Se uma pessoa identificar o necessário com o a priori, e pensar que os objectos são nomeados por meio de pro priedades que os identificam de maneira única, poderá pensar que são as propriedades usadas para identificar o objecto que, sendo conhecidas a priori, têm de ser usadas para o identificar em todos os m undos possí veis, para descobrir qual dos objectos é Nixon. Contra isto, repito: (1) Em geral, numa situação contrafactual as coisas não se «descobrem», estipulam-se; (2) os m un dos possíveis não têm de ser dados de m aneira pura mente qualitativa, como se estivéssem os a olhar para eles através de um telescópio. E veremos daqui a pou co que as propriedades que um objecto tem em todos
16 É claro que não estou a dizer que a linguagem contém um nome para cada objecto. Os pronomes demonstrativos podem ser usados como designadores rígidos e as variáveis livres podem ser usadas como designadores rígidos de objectos não especifica dos. Claro que, quando especificamos uma situação contrafactual, não descrevemos a totalidade do mundo possível, mas apenas a parte que nos interessa.
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os m undos contrafactuais nada têm a ver com proprie dades usadas para identificá-lo no m undo actual17. O «problema» da «identificação transmundial» tem algum sentido? É simplesmente um pseudoproblema? Parece-me que podemos dizer o seguinte a seu favor. Embora a afirmação de que a Inglaterra combateu a Alemanha em 1943 talvez não possa ser reduzida a nenhuma afirmação acerca de indivíduos, mesmo as sim, num certo sentido, não se trata de um facto novo e adicional relativam ente à colecção de todos os factos acerca das pessoas e do seu com portam ento ao longo da história. O sentido no qual os factos acerca de na ções não são factos novos e adicionais relativam ente aos factos acerca das pessoas pode ser expresso obser vando que uma descrição do mundo que mencione todos os factos acerca das pessoas, mas que omita os factos acerca das nações, pode ser uma descrição com pleta do mundo, da qual se seguem os factos acerca das nações. De igual modo, talvez, os factos acerca de objectos m ateriais não são factos novos e adicionais relativam ente aos factos acerca das m oléculas suas constituintes. Podem os então perguntar, dada uma descrição de uma situação possível não actualizada em termos de pessoas, se a Inglaterra ainda existe nessa situação, ou se uma certa nação (descrita, por exem plo, como aquela em que Jones vive) que existiria nessa situação é a Inglaterra. De igual m odo, dadas certas vicissitudes contrafactuais na história das moléculas de uma mesa, M , podemos perguntar se M existiria nessa situação ou se um certo agregado de m oléculas, que nessa situação constituiria uma mesa, constitui a mesma mesa M. Em todos estes casos, procuramos, para certos objectos particulares, critérios de identidade 17 Veja-se a Primeira Palestra, p. 105 (sobre Nixon) e a Segunda Palestra, pp. 131-134.
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ao longo dos mundos possíveis que sejam dados em termos dos critérios para outros objectos particulares mais «básicos». Se as afirmações acerca das nações (ou acerca de tribos) não são redutíveis às afirmações acerca de outros constituintes mais «básicos», se existe alguma «textura aberta» na relação entre elas, dificilm ente po demos ter esperança de fornecer critérios de identidade seguros e invariáveis; apesar disso, em casos concretos, talvez sejamos capazes de dizer se um certo agregado de moléculas constituiria ainda M, embora nalguns casos a resposta possa ser indeterminada. Julgo que considerações deste género se aplicam tam bém ao problema da identidade ao longo do tempo; também aqui nos costumam os preocupar com a determ inação, com a identidade de um objecto particular «complexo» em termos de outros mais «básicos». (Por exemplo, se substituirmos várias partes de uma mesa, continuamos a ter o mesmo objecto?18)
18 Há aqui alguma vagueza. Se substituíssemos um pedaço (ou uma molécula) de uma dada mesa por outro pedaço, não teríamos problemas em afirmar que a mesa é a mesma. Mas se houvesse demasiados pedaços diferentes, parece que teríamos uma mesa diferente. O mesmo problema se pode colocar, como é óbvio, a respeito da identidade ao longo do tempo. Quando a relação de identidade é vaga, pode parecer que não é transitiva: uma cadeia de identidades aparentes pode gerar uma aparente não-identidade. Podia aqui ser útil dispormos de uma noção do género da de «contraparte» (mas sem as implicações filosóficas que tem a de Lewis: semelhança, mundos como países estrangeiros, etc.). Poderíamos dizer que a identidade em sentido estrito só se aplica aos particulares (as moléculas), e que aos par ticulares por eles «compostos», isto é, às mesas, se aplica a relação de contraparte. Podemos então declarar que a relação de contra parte é vaga e intransitiva. Mas é utópico acreditar que chegare mos alguma vez a um nível de particulares básicos últimos, para os quais as relações de identidade nunca são vagas, não havendo por isso o perigo da intransitividade. Este perigo não costuma
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No entanto, esta concepção de «identificação transmundial» é consideravelm ente diferente da que é habi tual. Em primeiro lugar, apesar de podermos tentar descrever o mundo em termos de moléculas, não é impróprio descrevê-lo em termos de entidades mais volumosas: a afirmação de que esta mesa poderia ter sido colocada noutra sala é perfeitam ente apropriada, em si e por si mesma. Não temos de usar a descrição em termos de moléculas, ou mesmo em termos de partes maiores da mesa, embora possamos. A não ser que su ponhamos que algumas entidades são «últimas» ou «básicas», não há razão para privilegiarm os nenhum tipo de descrição. Podem os, sem mais subtilezas, per guntar se Nixon poderia ter perdido as eleições — e não costuma ser preciso mais subtileza do que isto. Em segundo lugar, e como acabei de mencionar, não supomos que sejam possíveis condições necessárias e suficientes que determinem que espécies de colecções de m oléculas constituem esta mesa. Em terceiro lugar, a noção que apresento tenta dar os critérios de identi dade de objectos particulares em term os de outros objectos particulares, e não em termos de qualidades. Posso referir-m e à mesa que está à m inha frente e perguntar o que lhe poderia ter acontecido em certas circunstâncias; e tam bém posso referir-m e às suas moléculas. Se, por outro lado, for exigido que descre va cada situação contrafactual em termos puramente qualitativos, então só posso perguntar se uma mesa, de tal e tal cor, etc., teria certas propriedades. A questão de saber se uma tal mesa seria esta mesa, a mesa M, é de facto difícil de responder, uma vez que toda a re ferência a objectos, por oposição a qualidades, desapasurgir na prática e, por isso, podemos, regra geral, falar simples mente de identidade sem receios. Os lógicos não desenvolveram uma lógica da vagueza.
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receu. Diz-se muitas vezes que, se descrevermos uma situação contrafactual como algo que teria acontecido a Nixon e se não supuserm os que essa descrição é redutível a uma descrição puramente qualitativa, en tão estaremos a admitir uns m isteriosos «particulares puros», substratos sem propriedades que subjazem às qualidades. Isto não é verdade: eu penso que Nixon é republicano, e não que ele serve de substrato ao republicanism o (o que quer que isso queira dizer); também penso que ele poderia ter sido democrata. O mesmo vale para quaisquer outras propriedades que Nixon possa ter, com a ressalva de que algumas des sas propriedades podem ser essenciais. O que nego é que um particular não seja m ais do que um «agregado de qualidades», o que quer que isso possa querer di zer. Se uma qualidade é um objecto abstracto, um agregado de qualidades é um objecto de um grau ain da mais elevado de abstracção, e não um particular. Os filósofos chegaram à perspectiva contrária por via de um falso dilema, pois perguntaram: estes objectos estão por detrás do agregado de qualidades, ou será que o objecto não é mais do que o agregado? Nem uma coisa nem outra. Esta mesa é de m adeira, é castanha, está na sala, etc. Tem todas estas propriedades, e não é uma coisa sem propriedades, que esteja por detrás delas; mas não deve por essa razão ser identificada com o conjunto, ou «agregado», das suas propriedades, nem com o subconjunto das suas propriedades essenciais. Não perguntem: como é que posso identificar esta mesa noutro mundo possível, se não for através das suas propriedades? Tenho a mesa nas minhas mãos, posso apontar para ela e, quando pergunto se ela poderia estar noutra sala, estou, por definição, a falar dela. Não tenho de a identificar depois de a ver através de um telescópio. Se estou a falar dela, é dela que estou a falar, da m esm a m aneira que quando digo que as
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nossas mãos poderiam estar pintadas de verde, esti pulei que estou a falar da cor verde. Algumas proprie dades podem ser essenciais a um objecto, na medida em que este não poderia não as ter. Mas estas proprie dades não são usadas para identificar o objecto noutro mundo possível, pois não é necessária essa identifica ção. E as propriedades essenciais de um objecto não têm de ser usadas para o identificar no mundo actual, se é que o identificamos no mundo actual por meio de propriedades (tenho até agora deixado a questão em aberto). Portanto: a questão da identificação transm undial tem algum sentido, quando é colocada como pergunta pela identidade de um objecto via questões acerca das partes que o compõem. Mas estas partes não são qua lidades e o que está em questão não é um objecto se melhante àquele que nos é dado. Os teóricos têm dito muitas vezes que identificamos os objectos ao longo dos mundos possíveis como objectos que se assem e lham, nos aspectos mais im portantes, àquele que nos é dado. Pelo contrário, Nixon, se tivesse decidido agir de outro modo, poderia ter fugido da política, porém, alimentando em privado opiniões radicais. E muito importante observar que, mesmo quando podemos subs tituir questões acerca de um objecto por questões acerca das suas partes, não temos de o fazer. Podem os referir-nos ao objecto e perguntar o que lhe poderia ter acon tecido a ele. Portanto, não começamos por ter mundos (a respeito dos quais se supõe que são de alguma m aneira reais e que podem os percepcionar as suas qualidades, mas não os seus objectos), para perguntar mos depois pelos critérios de identificação transm un dial; pelo contrário, com eçam os pelos objectos, que temos, e que podemos identificar no mundo actual. Depois podemos perguntar se certas coisas poderiam ser verdadeiras dos objectos. 105
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Disse antes que a perspectiva de Frege-Russell, se gundo a qual os nomes são introduzidos por descrição, pode ser entendida como uma teoria do significado dos nomes (e parece que Frege e Russell a entenderam assim) ou sim plesmente como uma teoria da sua referência. Para o ilustrar, eis um exemplo que não envolve o que habitualmente chamaríamos um «nome próprio». Supo nhamos que alguém estipula que 100 graus centígrados é a tem peratura a que a água ferve ao nível do mar. Isto não é com pletam ente exacto, porque a pressão pode variar ao nível do mar. É claro que, historicamente, já foi depois dada uma definição mais exacta. Mas suponha mos que era essa a definição. Outro género de exemplo que encontramos na literatura é o de que um metro é o comprimento de S, em que S é uma certa régua ou barra que está em Paris. (As pessoas que gostam de falar destas definições costumam depois tentar trans form ar «o com primento de» num conceito «operacio nal». Mas isso não é importante.) W ittgenstein diz algo m uito surpreendente acerca disto. Diz: «Há uma coisa acerca da qual não podemos dizer nem que tem um metro de com primento nem que não tem um metro de comprimento, que é o metro-padrão de Paris. Mas é claro que com isto não lhe estamos a atribuir qualquer propriedade extraordiná ria, apenas assinalamos o papel peculiar que desem penha no jogo de linguagem de m edir com uma fita m étrica19.» Na verdade, esta parece ser uma proprie dade bastante «extraordinária» para se atribuir a uma barra. Julgo que W ittgenstein deve estar errado. Se a barra mede, por exemplo, 39,37 polegadas (suponho que temos algum padrão diferente para polegadas), porque é que não mede um metro? De qualquer modo, 19 Investigações Filosóficas, § 50. [N. dos T.: A tradução de M. S. Lourenço foi ligeiramente modificada.]
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suponhamos que ele está errado e que a barra tem um metro de comprimento. Parte do problema que inco moda W ittgenstein é, claramente, o facto de esta barra servir de padrão para medir o comprimento e de, por isso, não lhe poderm os atribuir um com prim ento. Mesmo que fosse assim (mas, de facto, não é), será o enunciado «a barra S tem um metro de comprimento» uma verdade necessária? É claro que o seu com pri mento pode variar com o tempo. Poderíam os tornar a definição mais precisa estipulando que um metro é o comprimento de S num instante fixo íQ. É então neces sariamente verdade que a barra S tem um metro de comprimento no instante f0? Alguém que julgue que tudo o que sabemos a priori é necessário poderia pen sar: «Esta é a definição de um metro. Por definição, a barra S tem um metro de comprimento em tg. Isto é uma verdade necessária.» Mas parece-m e que não há nenhuma razão para se tirar esta conclusão, mesmo para alguém que use a definição de «um metro» que foi dada. Pois não se está a usar esta definição para dar o significado daquilo a que se cham ou o «metro», mas apenas para fixar a referência. (A noção de referência pode ser pouco clara para uma coisa tão abstracta como uma unidade de comprimento. Mas vamos supor que é suficientem ente clara para o que pretendem os aqui.) Essa pessoa usa a definição para fixar uma referência. Existe um certo com primento que ela pretende isolar. E isola-o por meio de uma propriedade acidental, a saber, o facto de existir uma barra com esse com pri mento. Outra pessoa poderia isolar a mesm a referên cia por meio de uma outra propriedade acidental. Mas, em todo o caso, embora use isto para fixar a referência do seu padrão de com primento (o metro), ela ainda pode dizer: «Se esta barra S tivesse sido aquecida em tQ/ então em tQa barra S não teria tido um metro de comprimento.» 107
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Bem, porque é que ela pode dizer isso? Parte da razão pode estar no que pensam algumas pessoas da área de filosofia da ciência, mas não pretendo explorar isso agora. Uma resposta sim ples a esta questão é a seguinte: mesmo que este seja o único padrão de com prim ento usado20, existe uma diferença intuitiva entre a expressão «um metro» e a expressão «o com prim en to de S em tQ». A primeira pretende designar rigida mente um certo com primento em todos os mundos possíveis, com primento esse que, no mundo actual, é o comprimento da barra S em íQ. Por outro lado, «o comprimento de S em tQ» não designa nada rigida mente. Nalgum as situações contrafactuais, a barra po dia ser mais comprida, e noutras mais curta, depen dendo das forças e tensões a que fosse sujeita. Podemos por isso dizer, acerca desta barra (tal como diríamos de qualquer outra que fosse feita do mesmo m aterial e que tivesse o mesmo com primento), que, se ela ti vesse sido submetida a uma dada quantidade de ca lor, se teria expandido até atingir um com prim ento tal e tal. Uma tal afirmação contrafactual, sendo verda deira de outras barras com propriedades físicas idên ticas, será tam bém verdadeira desta barra. Não há nenhum conflito entre esta afirmação contrafactual e a definição de «um metro» como «o comprimento de S em tQ», porque a «definição», correctamente interpre tada, não diz que a expressão «um metro» é sinónima (mesmo quando falamos em situações contrafactuais) da expressão «o comprimento de S em tQ», mas sim
20 Os filósofos da ciência podem achar que a solução do pro blema está em considerar que «um metro» é um «conceito-feixe». O que peço ao leitor é que, a título hipotético, suponha que a «definição» que foi dada constitui o único padrão usado para deter minar o sistema métrico. Julgo que o problema continuaria a colo car-se.
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que determinámos a referência da expressão «um metro» ao estipularmos que «um metro» é um designador rí gido do com primento que é, de facto, o comprimento de S em f . Por isso, isto não transforma o facto de S ter um metro de com primento em t numa verdade neces sária. De facto, em certas circunstâncias, S não teria um metro de comprimento. A razão de isso ser assim está em que um designador («um metro») é rígido, enquanto o outro («o com primento de S em tQ») não o é. Qual é, então, o estatuto epistemológico do enunciado «A barra S tem um metro de com primento em tQ» para uma pessoa que firmou o sistema m étrico por referên cia à barra S? Ao que parece, ela conhece-o a priori. Pois se usou a barra S para fixar a referência do termo «um metro», então, em consequência deste género de «definição» (que não é uma definição abreviativa ou sinónima), sabe autom aticamente, sem m ais investiga ção, que S tem um metro de com primento21. Por outro lado, mesmo que S seja usada como o padrão para um metro, o estatuto metafísico de «S tem um metro de comprimento» será o de um enunciado contingente, desde que se tome «um metro» como um designador rígido: subm etida a forças e tensões apropriadas, por aquecim ento ou arrefecimento, S teria tido um com primento diferente de um metro mesmo em tg. (E enun ciados como «A água ferve a 100 °C ao nível do mar» podem ter um estatuto semelhante.) Por isso, neste sentido, existem verdades contingentes a priori. No entanto, para o nosso propósito, mais im portante do que aceitar este exemplo como um caso do contin gente a priori é o facto de ele ilustrar a distinção entre 21 Uma vez que a verdade que a pessoa conhece é contingente, prefiro não lhe chamar «analítica», exigindo por estipulação que as verdades analíticas sejam ao mesmo tempo necessárias e a priori. Veja-se a nota 63.
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«definições» que fixam uma referência e definições que oferecem um sinónimo. Também se pode fazer esta distinção no caso dos nomes. Suponhamos que a referência de um nome é dada por uma descrição ou por um feixe de descri ções. Se o nome significar o mesmo que a descrição ou que o feixe de descrições, então não será um designador rígido. Não designará necessariamente o mesmo objecto em todos os mundos possíveis, uma vez que noutros m undos poderiam ser outros objectos a ter as propriedades dadas, a não ser, evidentem ente, que tivéssem os usado propriedades essenciais na nossa descrição. Por isso, suponhamos que dizemos: «Aris tóteles foi o melhor aluno de Platão.» Se usássemos isso como uma definição, o nom e «Aristóteles» signifi caria «o m elhor aluno de Platão». Então, é claro que num outro mundo possível esse homem poderia não ter sido aluno de Platão, e algum outro homem teria sido Aristóteles. Se, por outro lado, usam os a descri ção apenas para fixar o referente, então esse homem será o referente de «Aristóteles» em todos os mundos possíveis. O único uso dado à descrição terá sido para indicar a que homem nos queremos referir. M as então, quando dizemos contrafactualmente «suponhamos que A ristóteles nunca se teria dedicado à filosofia», não temos de querer dizer «suponhamos que um homem que foi aluno de Platão, e que ensinou Alexandre, o Grande, e que escreveu isto e aquilo, e assim por diante, nunca se teria dedicado à filosofia», o que até poderia parecer uma contradição. O que queremos dizer é sim plesmente: «Suponhamos que este homem nunca se teria dedicado à filosofia.» Parece plausível supor que, nalguns casos, a referên cia de um nome é realmente fixada por via de uma des crição da mesma maneira que foi fixado o sistema mé trico. Quando o agente mítico viu Héspero pela primeira 110
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vez, poderá ter fixado a sua referência dizendo «Usarei 'Héspero' como nome do corpo celeste que aparece naquela posição no céu.» Desse modo fixou a referência de «Héspero» pela sua posição aparente no céu. Segue-se daqui que faz parte do significado do nome que Hés pero tenha tal e tal posição no instante em questão? Cer tamente que não: se antes disso o corpo celeste Héspero tivesse sido atingido por um cometa, poderia estar vi sível numa posição diferente nesse instante. Numa tal situação contrafactual, diríamos que Héspero não teria ocupado aquela posição, mas não que Héspero não teria sido Héspero. A razão de isso ser assim é que «Héspero» designa rigidamente um certo corpo celeste, enquanto «o corpo naquela posição» não. Um corpo diferente, ou nenhum, poderia estar naquela posição, mas nenhum outro corpo poderia ser Héspero (embora pudesse ser um outro corpo, e não Héspero, a chamar s e «Héspero»). De facto, tal como afirmei antes, defen derei que os nomes são sempre designadores rígidos. Frege e Russell parecem seguram ente ter defendido a teoria segundo a qual um nome próprio não é um designador rígido e é sinónimo da descrição que subs titui. Mas uma outra teoria pode ser a de que esta descrição é usada para determinar uma referência rígida. Estas duas alternativas terão consequências diferentes para as questões que eu estava a colocar. Se «Moisés» significa «o homem que fez tal e tal», então, se nin guém fez tal e tal, Moisés não existiu; e talvez «ninguém fez tal e tal» seja até uma análise de «Moisés não exis tiu». Mas se se usa a descrição para fixar rigidamente uma referência, então é claro que não é isso que se quer dizer com «Moisés não existiu», porque podemos perguntar, se falarmos de um caso contrafactual em que ninguém fez realm ente tal e tal (digamos: condu zir os Israelitas para fora do Egipto): segue-se daí que, num a tal situação, M oisés não teria existido? Não 111
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parece que se siga. Pois M oisés poderia com certeza ter decidido simplesmente passar os dias de modo mais agradável nas cortes egípcias. Ele poderia nunca se ter dedicado à política nem à religião; e nesse caso talvez ninguém tivesse feito qualquer das coisas que a Bíblia conta de M oisés. Em si m esmo, isso não significa que, num tal m undo possível, M oisés não teria existido. Se é assim, então «Moisés» significa algo diferente de «as condições de existência e de unicidade de uma certa descrição são satisfeitas»; e, portanto, isto afinal não fornece uma análise do enunciado existencial singu lar. Se abandonarmos a ideia de que isto é uma teoria do significado e a transform arm os num a teoria da referência da maneira que descrevi, abandonamos algu mas das vantagens da teoria. Os enunciados existen ciais singulares e os enunciados de identidade entre nomes requerem outro género de análise. Frege deve ser criticado por usar o termo «sentido» em dois sentidos. Pois ele considera que o sentido de um designador é o seu significado e também a maneira como é determ inada a sua referência. Ao identificá-los, supõe que ambos são dados através de descrições definidas. Em última análise, acabarei por rejeitar tam bém esta segunda suposição; mas mesmo que fosse correcta, rejeito a primeira. Uma descrição pode ser usada com o sinónim a de um designador ou pode ser usada para fixar a sua referência. Os dois sentidos fregianos de «sentido» correspondem a dois senti dos com que o termo «definição» costuma ser usado. Devemos distingui-los cuidadosam ente22.
22 O sentido fregiano é geralmente interpretado, nos nossos dias, como sendo o significado, o qual deve ser cuidadosamente distinguido de um «fixador da referência». Veremos mais adiante que, para a maioria dos falantes (a não ser que sejam aqueles que inicialmente deram o nome ao objecto), o referente do nome é
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Espero que a ideia da oposição entre fixar a referên cia e definir efectivam ente um termo como significan do outro seja relativam ente clara. Não tem os realm en te tempo suficiente para analisar tudo com grande pormenor. Julgo que, mesmo nos casos em que a opo sição entre designação rígida e designação acidental não pode ser usada para tornar visível a diferença em questão, algumas das coisas a que chamamos defini-
determinado por uma cadeia «causal» de comunicação, e não por uma descrição. Na semântica formal da lógica modal, considera-se geralmente que o «sentido» de um termo t é a função (possivelmente parcial) que, a cada mundo possível H, atribui o referente de t em H. Para um designador rígido, essa função é constante. Esta noção de «sentido» tem a ver com a noção de «dar um significado», e não com a de fixar uma referência. Neste uso de «sentido», o sentido de «um metro» é uma função constante, embora a sua referência seja fixada por «o comprimento de S», cujo sentido não é uma função constante. Alguns filósofos pensaram que, na linguagem natural, as des crições são ambíguas, que umas vezes designam não rigidamente, em cada mundo, o objecto (se houver algum) que satisfaz a descri ção, enquanto outras vezes designam rigidamente o objecto que efectivamente satisfaz a descrição. (Outros, inspirados por Donnellan, dizem que às vezes a descrição designa rigidamente o objecto que se pensa ou que se pressupõe que satisfaz a descrição.) Estas alegadas ambiguidades parecem-me duvidosas. Não conheço nenhum facto que testemunhe a seu favor e que não possa ser explicado pela noção russelliana de âmbito ou pelas considerações a que aludi na nota 3 nas pp. 70-71. Se há de facto ambiguidade, então, no suposto sentido rígido de «o comprimento de S», «um metro» e «o comprimento de S» desig nam a mesma coisa em todos os mundos possíveis e têm o mesmo «sentido» (funcional). Na semântica formal da lógica intensional, suponhamos que se considera que uma descrição definida designa, em cada mundo, o objecto que satisfaz a descrição. É de facto útil dispormos de um operador que transforma cada descrição num termo que designa rigidamente o objecto que efectivamente satisfaz a descrição. David Kaplan propôs um tal operador e chamou-lhe «Dthat».
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ções têm como objectivo fixar uma referência, e não fornecer o significado de uma expressão ou dar um sinónim o. D eixem -m e dar um exem plo. S u p o sta mente, n é a razão da circunferência de um círculo pelo seu diâmetro. A mim parece-me que esta letra grega — mas, para defender isto, não tenho m ais do que um vago sentimento intuitivo — não é usada como abreviatura, nem da expressão «a razão da circunferên cia de um círculo pelo seu diâmetro», nem sequer de um feixe de definições alternativas de n, seja isso o que for. A letra é usada como nome de um número real, que neste caso é necessariam ente a razão da circunfe rência do círculo pelo seu diâmetro. Reparem que aqui «Tc» e «a razão da circunferência do círculo pelo seu diâmetro» são ambos designadores rígidos, e, por isso, não podemos aplicar os argumentos que usám os no caso do sistema métrico. (Bem, se houver alguém que não vê as coisas assim ou que pensa que isto está errado, não importa.) Voltem os à questão que levantei a respeito dos nomes. Como disse, existe uma teoria moderna e popu lar que veio substituir a de Frege e Russell, e que é adop tada até por um crítico tão feroz de m uitas ideias de Frege e Russell (mas especialmente deste último) como é Straw son23. A nova teoria diz que, embora um nome não seja uma descrição disfarçada, ele abrevia, ou então a sua referência é de qualquer modo determ inada por, um feixe de descrições. A questão está em saber se isto é verdade. Como também já disse, existem versões mais fortes e mais fracas desta teoria. A sua versão mais forte diria que o nome é sim plesmente definido como sinónimo do feixe de descrições. Seria então necessá rio que M oisés tivesse não uma propriedade particu lar incluída neste feixe, mas sim a disjunção de todas 23 P. F. Strawson, Individuais, Londres: Methuen, 1959, cap. 6.
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elas. Não poderia haver nenhuma situação contrafactual em que ele não fizesse nenhuma dessas coisas. Penso que isto é claramente muito implausível. As pes soas têm-no dito — ou talvez não tenham tido a inten ção de o dizer, mas tenham usado o termo «necessário» nalgum outro sentido. Em todo o caso, por exemplo, no artigo de Searle sobre nomes próprios, pode ler-se: Para dizer a mesma coisa de maneira diferente, suponha-se que perguntamos «porque temos nomes pró prios?». Obviamente, para nos referirmos a indivíduos. «Sim, mas as descrições poderiam fazer-nos esse serviço.» Mas somente ao preço de termos de especificar condi ções de identidade de cada vez que nos referimos a algo: suponha-se que concordamos em abandonar «Aristóte les» e que passamos a usar, por exemplo, «o professor de Alexandre». Então é uma verdade necessária que o ho mem a que nos referimos seja professor de Alexandre — mas o facto de Aristóteles se ter alguma vez dedicado à pedagogia é contingente (embora eu esteja a sugerir que é um facto necessário que Aristóteles tenha a soma lógica, a disjunção inclusiva, das propriedades que geralmente lhe são atribuídas).24
Se o termo «necessário» for usado da mesma m a neira que tenho usado nesta palestra, esta sugestão tem claram ente de ser falsa. (A não ser que ele conheça alguma propriedade essencial muito interessante ge ralmente atribuída a Aristóteles.) A m aior parte das coisas geralm ente atribuídas a A ristóteles são coisas que ele poderia sim plesmente não ter realizado. Uma situação em que ele não as realizasse seria por nós descrita como uma situação em que Aristóteles não as realizou. Isto não é uma distinção de âm bito, como 24 p. 160.
Searle, op. cit., em Caton, Philosophy and Ordinary Language,
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por vezes acontece no caso das descrições, onde se po deria dizer que o homem que ensinou Alexandre pode ria não ter ensinado Alexandre; apesar de que não poderia ser verdade que: o homem que ensinou Alexan dre não ensinou Alexandre. Isto é a distinção russelliana de âmbito. (Não irei aprofundá-la.) Parece-me claro que não é dessa distinção que se trata aqui. Não só é verdade do homem Aristóteles que ele poderia não se ter dedicado à pedagogia; como também é ver dade que usamos o termo «Aristóteles» de tal modo que, ao pensarmos numa situação contrafactual em que A ristóteles não se tivesse dedicado a nenhuma das áreas e não tivesse obtido nenhum dos sucessos que geralm ente lhe atribuím os, m esm o assim diríam os que essa era uma situação na qual Aristóteles não teria realizado tais coisas25. Bem, há algumas coisas, como a data, ou o período em que viveu, que se podiam mais
25 O facto de a descrição «o professor de Alexandre» poder ser sujeita a distinções de âmbito em contextos modais e o facto de ela não ser um designador rígido são ambos ilustrados quando obser vamos que o professor de Alexandre poderia não ter ensinado Alexandre (e, nessas circunstâncias, não seria o professor de Ale xandre). Por outro lado, não é verdade que Aristóteles poderia não ter sido Aristóteles, embora Aristóteles pudesse não se ter chamado «Aristóteles», tal como 2 x 2 poderia não se chamar «quatro». (O discurso coloquial descuidado, que confunde muitas vezes o uso e a menção, pode com certeza expressar o facto de alguém poder chamar-se, ou não se chamar, «Aristóteles» dizendo que ele pode ria ser, ou não ser, Aristóteles. Tem-me acontecido ouvir estes usos descuidados serem aduzidos como contra-exemplos que mostra riam que esta teoria não é aplicável à linguagem vulgar. Parece-me que coloquialismos destes colocam tão poucos problemas às mi nhas teses como os que os êxitos da «Missão Impossível» colocam à lei modal segundo a qual o impossível não acontece.) Além disso, apesar de ser verdade que em certas circunstâncias Aristóteles não teria ensinado Alexandre, essas não são circunstâncias em que ele não teria sido Aristóteles.
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facilm ente im aginar como necessárias. Talvez essas sejam coisas que geralm ente lhe atribuímos. Existem excepções. Talvez seja difícil im aginar como poderia ele ter vivido 500 anos mais tarde do que quando vi veu de facto. Isso levanta seguram ente pelo menos um problem a. Mas pensem num hom em que não tem qualquer noção da data em que A ristóteles viveu. Muitas pessoas conhecem apenas um feixe vago dos seus sucessos mais famosos. Não só cada um deles individualm ente, mas também a posse da disjunção inteira dessas propriedades, é apenas um facto contin gente acerca de A ristóteles; e o enunciado de que Aristóteles tinha esta disjunção de propriedades é uma verdade contingente. Num certo sentido, uma pessoa pode saber isto a priori, se de facto ela fixar a referência de «Aristóteles» como o homem que realizou uma destas coisas. Ainda assim, não será para ela uma verdade necessária. Por isso, este género de exemplo serviria como um exem plo em que o a priori não im plicaria necessariam ente a necessidade, se a teoria do feixe estivesse correcta. O caso da fixação da referência de «um metro» é um exemplo muito claro em que alguém, apenas porque fixou a referência desta m aneira, pode num certo sen tido saber a priori que o com primento desta barra é um metro, sem considerar que isso é uma verdade neces sária. A tese de que a aprioridade im plica necessidade talvez possa ser m odificada. Ela parece expressar uma visão das coisas que poderia ser im portante, e verda deira, a respeito da epistemología. De certo modo, um exemplo como este pode parecer um contra-exem plo trivial, que pouco tem a ver com o que as pessoas querem realmente dizer quando dizem que só as ver dades necessárias podem ser conhecidas a priori. Bem, se a tese de que todas as verdades a priori são neces sárias deve ficar imune a este género de contra-exem 117
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pio, então precisa de sofrer alguma m odificação. Se perm anecer inalterada, gera confusão a respeito da natureza da referência. E eu próprio não faço ideia de como deveria ser m odificada ou reformulada, ou se uma tal m odificação ou reformulação é possível26. Deixem-m e então dizer o que é a teoria do feixe (ou seja, a teoria dos nomes baseada no conceito de feixe). (E realmente uma boa teoria. O único defeito que julgo que tem é provavelm ente com um a todas as teorias filosóficas. Está errada. Poderão suspeitar que vos es tou a propor outra teoria para a substituir; mas espero que não, porque estou certo de que, se é uma teoria, também está errada.) A teoria em questão pode ser decomposta numa série de teses, com algum as teses subsidiárias se quisermos ver como é que lida com o problem a das afirmações de existência, das afirmações de identidade, e assim por diante. Há ainda mais teses
26 Se uma pessoa decide que um metro é «o comprimento da barra S em f0», então, mim certo sentido, ela sabe a priori que o comprimento da barra S em t0 é um metro, ainda que use este enunciado para expressar uma verdade contingente. Mas, ao ter simplesmente estabelecido um sistema de medida, terá ela por essa via aprendido alguma informação (contingente) acerca do mun do, algum facto novo de que não soubesse antes? A resposta plau sível parece ser que, num certo sentido, não aprendeu nada, ape sar de ser inegavelmente um facto contingente que S tem um metro. Portanto, isso pode ser uma razão para reformularmos a tese de que tudo o que é a priori é necessário, de modo a salvá-la deste tipo de contra-exemplo. Como disse, não sei como deveria ser feita essa reformulação; ela não deve trivializar a tese (e.g., ao definir o a priori como aquilo que se sabe que é necessário, em vez de verda deiro, independentemente da experiência); e a tese conversa con tinuaria a ser falsa. Uma vez que não vou intentar uma tal reformulação, utilizarei consistentemente o termo «a priori» no texto de modo a que sejam a priori os enunciados cuja verdade se segue de uma «definição» fixadora da referência.
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se a tom arm os na sua versão mais forte, como uma teoria do significado. O falante é A. 1) Todo o nome ou expressão designadora «X» tem um feixe de propriedades que lhe corresponde, a saber: a família daquelas propriedades cp tais que A acredita «(pX». Esta tese é verdadeira, porque pode ser sim ples mente uma definição. Agora, é claro que algumas pes soas podem pensar que nem tudo o que o falante acre dita acerca de X tem a ver com a determ inação da referência de «X». Podem estar interessados apenas num subconjunto. Mas podem os lidar com isto mais adiante modificando algumas das outras teses. Por isso, esta tese está correcta, por definição. Mas julgo que as teses que se seguem são todas falsas. 2) A acredita que uma das propriedades, ou algu mas em conjunto, seleccionam um e um só indi víduo. Esta tese não diz que elas seleccionam um indiví duo único, mas apenas que A acredita que o fazem. Uma outra tese diz que ele tem razão. 3) Se há um e um só objecto y que satisfaz a m aio ria, ou uma maioria ponderada, das cp's, então y é o referente de «X». Bem, a teoria diz que supostamente o referente de «X» é a coisa que satisfaz, se não todas as propriedades, pelo menos um número «suficiente» delas. E óbvio que A pode estar enganado nalgum as coisas acerca de X. Fazemos uma espécie de votação. A questão agora é saber se esta votação deve ser dem ocrática ou se entre as propriedades deve haver algum as desigualdades.
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Parece m ais plausível que deva haver alguma ponde ração, que algumas propriedades sejam mais im por tantes do que outras. Uma teoria tem realm ente de especificar como se faz esta ponderação. Acho que Strawson, para minha surpresa, afirma explicitamente que aqui deve reinar a democracia, pelo que as proprie dades mais triviais têm o mesmo peso que as mais cruciais27. É certamente mais plausível supor que há alguma ponderação. Digamos que a dem ocracia não reina necessariamente. Se há alguma propriedade com pletamente irrelevante para a referência, podemos desqualificá-la por inteiro, atribuindo-lhe peso 0. As pro priedades podem ser vistas com o accionistas de uma empresa. Umas têm mais acções do que outras; algu mas até podem só ter acções sem direito de voto. 4) Se o escrutínio não elege um objecto único, então «X» não tem referente. 5) O enunciado «Se X existe, então X tem a maioria das (p's» é conhecido a priori pelo falante. 6) O enunciado «Se X existe, então X tem a maioria das (p's» expressa uma verdade necessária (no idiolecto do falante). Para quem não considere que o feixe faz parte do significado do nome, (6) não tem de ser uma tese da teoria. Uma tal pessoa poderia pensar que, embora determine a referência de «Aristóteles» como o homem que tinha a m aior parte das propriedades (p, há com certeza, ainda assim, situações possíveis em que Aristó teles não teria tido a maior parte das propriedades (p. 27 Strawson, op. cit., pp. 191-192. De facto, Strawson considera o caso em que há vários falantes, reúne as suas propriedades e submete-as a uma votação democrática (em que os pesos são iguais). Não exige uma maioria, mas apenas um número suficiente.
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Como já disse, existem algumas teses subsidiárias, embora eu não pretenda discuti-las em pormenor. Elas forneceriam as análises de enunciados existenciais sin gulares, como, por exemplo, «'M oisés existe' significa que 'um número suficiente de propriedades cp é satis feito'». M esmo quem não utiliza a teoria como uma teoria do significado tem algumas destas teses. Por exemplo, subsidiariamente à tese (4), diríamos que é verdade a priori para o falante que, se não forem satis feitas suficientes propriedades cp, então X não existe. Só se a perspectiva for adoptada como uma teoria do significado, em vez de como uma teoria da referência, é que também seria necessariamente verdade que, se não forem satisfeitas suficientes propriedades (p, então X não existe. Em qualquer caso, o falante saberá isso a priori. (Pelo menos, saberá isso a priori, desde que conheça a teoria adequada dos nomes.) Depois há tam bém uma análise dos enunciados de identidade que segue a mesma orientação. A questão é: são algumas destas coisas verdadeiras? Se forem verdadeiras, dão-nos uma boa imagem de como as coisas se passam. Antes de discutir estas teses, deixem-me assinalar que, m uitas vezes, quando as pessoas especificam as propriedades
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substancialm ente falsa, então M oisés não existiu. Já defendi antes que a história bíblica não nos fornece propriedades necessárias de M oisés, que ele poderia ter vivido sem ter realizado nenhuma dessas coisas. O que pergunto agora é se sabemos a priori que, se Moisés existiu, então de facto realizou algumas ou a maior parte dessas coisas. É realmente este o feixe de proprie dades que devemos usar aqui? Há seguram ente uma distinção que observações deste género negligenciam. A história bíblica poderia ser uma pura lenda ou po deria ser um relato substancialmente falso acerca de uma pessoa real. Neste últim o caso, parece-m e que um especialista na matéria poderia dizer que considera que, apesar de Moisés ter existido, as coisas que a Bíblia conta dele são substancialm ente falsas. Coisas destas acontecem precisam ente nesta área de estudos. Supo nham os que alguém diz que nenhum p rofeta foi alguma vez engolido por um grande peixe ou por uma baleia. Segue-se daí que Jonas não existiu? Parece que ainda resta a questão de saber se o relato bíblico é um relato lendário acerca de pessoa nenhum a ou se é um relato lendário construído em torno de uma pessoa real. Neste últim o caso, é inteiram ente natural dizer-se que, embora Jonas tenha existido, ninguém fez as coi sas que geralm ente se associam a ele. Escolho este caso porque, apesar de ser geralm ente aceite pelos especia listas em estudos bíblicos que Jonas existiu, considera-se que não só o episódio de ter sido engolido por um grande peixe, como até o de ter ido pregar a Nínive, ou as outras coisas que são ditas na Bíblia, são substan cialm ente falsas. Mas, no entanto, há razões para pen sar que estas histórias são acerca de um profeta real. Se tivesse comigo um livro adequado, poderia abri-lo e começar a citar algo como: «Jonas, o filho de Amitai, foi um profeta real, apesar de tal e tal e tal.» Existem razões independentes para pensarm os que não se tra 122
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tava de uma pura lenda acerca de uma personagem imaginária, mas de uma lenda acerca de uma persona gem real28. Estes exemplos podiam ser modificados. Pode ser que aquilo em que acreditamos seja que a Bíblia conta acerca dele que tal e tal. Isto coloca-nos outro problema, pois como é que sabemos a quem é que a Bíblia se está a referir? A questão da nossa referência é reconduzida ã questão da referência na Bíblia. Isto leva-nos a uma condição que devemos explicitar. (C) Para qualquer teoria satisfatória, a explicação por ela fornecida não deve ser circular. As propriedades usadas 28 Veja-se, por exemplo, H. L. Ginsberg, The Tive Megilloth and Jonah, The Jewish Publication Society of America, 1969, p. 114: «O 'herói' desta narrativa, o profeta Jonas, o filho de Amitai, é uma personagem histórica... (mas) este é um livro de ficção, e não de história.» É consensual entre os especialistas considerar que todos os pormenores a respeito de Jonas que aparecem no livro são len dários e que não têm sequer um substrato factual como base, excepto a afirmação singela de que foi um profeta hebreu, o que dificilmente o identifica de modo único. E também não temos de supor que os Hebreus o chamavam «Jonas», pois o som «J» não existe em hebraico; e a existência histórica de Jonas não depende de conhecermos, ou não, o seu nome original em hebraico. O facto de nós lhe chamarmos Jonas não pode, sem circularidade, ser usado para o singularizar. É uma referência independente que lhe é feita em Reis 11, que testemunha a favor da sua historicidade; mas, mesmo que não houvesse qualquer referência desse género, pode ríamos ter razões para pensar que Jonas existiu — por exemplo, se tivéssemos provas de que todas as lendas hebraicas dizem respeito a personagens reais. Além disso, a afirmação de que Jonas é uma lenda acerca de uma pessoa real poderia ser verdadeira, mesmo que não houvesse provas disso. Podemos dizer: «O Jonas do livro nunca existiu», do mesmo modo que podemos dizer: «O Hitler da propa ganda nazi nunca existiu.» Como mostra a citação feita acima, este uso não tem de coincidir com a ideia que o historiador terá sobre se Jonas existiu ou não. Ginsberg está a escrever para o leitor leigo e supõe que este achará o que diz inteligível.
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no escrutínio não devem envolver elas próprias a noção de referência de uma maneira que, em última análise, não seja eliminável.
Deixem-m e dar-vos um exemplo em que a condi ção de não-circularidade é claram ente violada. A se guinte teoria dos nomes próprios foi proposta por W illiam Kneale num artigo intitulado «M odality, De Dicto and De Re»29. Penso que contém uma clara vio lação da condição de não-circularidade. Os nomes próprios vulgares de pessoas não são, como considerava John Stuart Mill, signos sem sentido. Embo ra possa ser informativo dizer a alguém que o filósofo grego mais famoso se chamava Sócrates, é obviamente ocioso dizer-lhe que Sócrates se chamava Sócrates; e a razão disso é simplesmente que a pessoa não pode en tender o uso da palavra «Sócrates» que ocorre no início da afirmação, a não ser que já saiba que «Sócrates» sig nifica «O indivíduo chamado 'Sócrates'».30
Temos aqui uma teoria da referência dos nomes pró prios. «Sócrates» significa simplesmente «o homem cha mado 'Sócrates'». De facto, é evidente que pode não haver um só homem chamado «Sócrates», e umas pessoas podem chamá-lo «Sócrates» e outras não. Certamente, esta é uma condição que em certas circunstâncias pode ser unicamente satisfeita. E possível que, numa certa ocasião, eu tenha chamado «Sócrates» a um só homem. Kneale diz que é ocioso dizer a alguém que Sócrates se chamava «Sócrates». Isso não é ocioso de nenhum
2‘‘ Em Ernest Nagel, Patrick Suppes e Alfred Tarski, Logic, Methodology and the Philosophy of Science: Proceedings of the 1960 International Congress, Stanford University Press, 1962, pp. 622-633. 30 Loc. cit., pp. 629-630.
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ponto de vista. Talvez os Gregos não lhe chamassem «Sócrates». Digamos que Sócrates é cham ado «Sócra tes» por nós — ou pelo menos por mim. Suponhamos que isso é ocioso. (Acho espantoso que Kneale utilize aqui o pretérito; é duvidoso que os Gregos lhe chamas sem mesmo «Sócrates» — pelo menos, o nome grego pronuncia-se de m aneira diferente. Irei verificar a exactidão da citação para a próxima palestra.) Kneale defende esta teoria com um argum ento. «Sócrates» tem de ser analisado como «o indivíduo chamado 'Sócrates'», porque, se não fosse assim, como é que poderíamos explicar o facto de ser ocioso dizer a alguém que Sócrates se chama «Sócrates»? Nalguns casos, isso é deveras ocioso. Neste mesmo sentido, acho que poderíamos obter uma boa teoria do significado de qualquer expressão da nossa língua e construir um dicionário. Por exemplo, embora possa ser inform a tivo dizer a alguém que os cavalos são usados em corridas, é ocioso dizer que os cavalos são chamados «cavalos». Portanto, isto só poderia ser assim, porque o termo «cavalo» significa na nossa língua «as coisas chamadas 'cavalos'». O mesmo se diria de qualquer outra expressão que se pudesse usar na nossa língua. Uma vez que é ocioso dizer a alguém que chamamos «sábios» aos sábios, «sábios» significa simplesmente «as pessoas a que chamamos 'sábios'». Mas é evidente que este não é realm ente um argumento muito bom, nem poderá ser esta a única explicação para o facto de ser ocioso dizer a alguém que Sócrates se cham a «Sócrates». Não vam os agora procurar determ inar exactam ente porque é que isto é ocioso. Claro que qualquer pessoa que saiba como é que a expressão «chama-se» se usa na nossa língua, m esm o que não saiba o que a frase quer dizer, sabe que, se «quarks» quer dizer alguma coisa, então a frase «os quarks cha mam-se 'quarks'» expressa uma verdade. Ela pode não
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saber que verdade está a ser expressa, pois não sabe o que é um quark. Mas o seu conhecimento de que a frase expressa uma verdade não tem muito a ver com o significado do termo «quarks». Poderíam os desenvolver bastante esta questão. Há problemas interessantes que surgem deste género de passagem. M as a razão principal porque a quis intro duzir aqui está em que, como teoria da referência, ela exibiria uma violação clara da condição de não-circularidade. Uma pessoa usa o nome «Sócrates». Com o é que sabemos a quem essa pessoa se refere? Usando a descrição que dá o seu sentido. Segundo Kneale, a descrição é «o homem chamado 'Sócrates'». E, aqui (supostam ente, uma vez que acham que é tão ocioso!), ela não nos diz absolutamente nada. Assim conside rada, a teoria parece não ser de todo uma teoria da referência. Perguntamos: «A quem se refere ela quando diz 'Sócrates'?» E então a resposta que nos dão é: «Bem, refere-se ao homem a quem se refere.» Se isto fosse tudo o que haveria a dizer sobre o significado de um nome próprio, então nunca nos conseguiríam os referir a nada. Há por isso uma condição que tem de ser satisfeita; no caso desta teoria em particular, é óbvio que não é satisfeita. E até curioso verificar que por vezes Russell usa o mesmo paradigma, quando indica «o homem chamado 'Walter Scott'» como sentido descritivo de «Walter Scott». E óbvio que, se os únicos sentidos des critivos dos nomes que podem os conceber tivessem a forma «o homem chamado tal e tal», «o homem cha mado 'Walter Scott'», «o homem chamado 'Sócrates'», então, seja esta relação de chamar o que for, seria real mente isso a determ inar a referência, e não uma des crição como «o homem cham ado 'Sócrates'».
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Segunda palestra: 22 de Janeiro de 1970
Terminámos a palestra anterior a falar de uma teo ria do nomear, que podemos resum ir através das teses que estão aqui no quadro. 1) Todo o nome ou expressão designadora «X» tem um feixe de propriedades que lhe corresponde, a saber: a família daquelas propriedades cp tais que A acredita «cpX». 2) A acredita que uma das propriedades, ou algumas em conjunto, seleccionam um e um só indivíduo. 3) Se há um e um só objecto y que satisfaz a m aio ria, ou uma maioria ponderada, das (p's, então y é o referente de «X». 4) Se o escrutínio não elege um objecto único, então «X» não tem referente. 5) O enunciado «Se X existe, então X tem a maioria das (p's» é conhecido a priori pelo falante. 127
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6) O enunciado «Se X existe, então X tem a maioria das cp's» expressa uma verdade necessária (no idiolecto do falante). C) Para qualquer teoria satisfatória, a explicação por ela fornecida não deve ser circular. As proprie dades usadas no escrutínio não devem envolver elas próprias a noção de referência de uma m a neira que, em última análise, não seja eliminável. (C) não é uma tese, mas uma condição para a satis fação das outras teses. Por outras palavras, as teses (l)-(6) não podem ser satisfeitas de uma maneira que conduza a um círculo, de uma maneira que não conduza a qualquer determ inação independente da referência. O exemplo que dei na última vez de uma tentativa fla grantemente circular de satisfazer estas condições foi uma teoria dos nomes referida por William Kneale. Enquanto lia o que tinha anotado, fiquei um pouco surpreendido com o enunciado da teoria e, por isso, fui ver outra vez. Fui consultar o livro para verificar se tinha copiado correctamente. Kneale usou mesmo o pretérito. Disse que, embora não seja ocioso dizerem-nos que Sócrates era o m aior filósofo da Grécia antiga, é ocioso dizerem-nos que Sócrates se chamava «Sócra tes». Por conseguinte, concluiu ele, o nome «Sócrates» tem de querer dizer sim plesmente «o indivíduo cha mado 'Sócrates'». Como já referi, há passagens em que Russell oferece uma análise semelhante. De qualquer modo, se a enunciam os no pretérito, a condição não é circular, pois poderíamos perfeitam ente tomar a deci são de usar o termo «Sócrates» para nos referirm os a quem quer que os Gregos cham assem «Sócrates». Mas é óbvio que, neste sentido, não é nada ocioso dizerem-nos que Sócrates se chamava «Sócrates». Isso poderia muito bem ser falso. O que sabem os, talvez, é que nós lhe chamamos «Sócrates»; mas daí não se segue que os
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Gregos tam bém o cham avam assim. De facto, pode ser que eles pronunciassem o nome de maneira diferente. Pode acontecer que, no caso deste nome em particular, a transliteração do grego seja tão boa que a m aneira com o a pronunciam os não seja muito diferente do grego. Não é com certeza ocioso dizerem-nos que Isaías se chamava «Isaías». De facto, quem disser isso estará a dizer algo que é falso, pois o profeta não teria de todo reconhecido este nome. E é claro que os Gregos não cham avam «Grécia» ao seu país. Suponhamos que corrigim os a tese para: é ocioso dizerem-nos que nós, ou pelo m enos eu, o falante, cham o «Sócrates» a Sócrates. Num certo sentido, isto é bastante ocioso. Não julgo que seja necessário ou analítico. Do mesmo modo, é ocioso dizerem-nos que os cavalos se cha mam «cavalos», sem que isto conduza à conclusão de que a palavra «cavalo» quer dizer sim plesm ente «o animal que é chamado um 'cavalo'». Como teoria da referência do nome «Sócrates», esta teoria leva im edia tamente a um círculo vicioso. Uma pessoa que estivesse a determinar, para si própria, o referente de um nome como «Glunk» não iria a lado nenhum ao tomar a deci são seguinte: «Usarei o termo 'G lunk' para me referir ao homem a que chamo 'Glunk'.» E bom que tenha alguma determ inação independente do referente de «Glunk». Este é um bom exemplo de uma determinação flagrantem ente circular. Frases do género de «Sócrates cham a-se 'Sócrates'» são realmente m uito interessan tes e, por estranho que pareça, podemos estar horas a falar da sua análise. Uma vez, fiz isso mesmo. Não o farei agora, contudo. (Reparem nas alturas a que podem chegar os m ares da linguagem. E tam bém nos seus pontos mais baixos.) De qualquer m odo, este é um exemplo útil de uma violação da condição de não-circularidade. Talvez a teoria venha a satisfazer todos estes enunciados, mas só os poderá satisfazer se houver
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alguma m aneira de determ inar a referência que seja independente da condição particular: ser o homem chamado «Sócrates». Na últim a palestra já falei sobre a tese (6). Podemos acrescentar que (5) e (6) têm teses conversas. Tal como a formulei, a tese (5) diz que a afirmação de que, se X existe, então X tem a maioria das cp's é verdadeira a priori para o falante. Certas afirmações conversas desta serão igualmente, nesta teoria, verdadeiras a priori para o falante, a saber: se há uma e uma só coisa que tem a maioria das propriedades (p (no sentido adequada mente ponderado), essa coisa é X. Do mesmo modo, uma certa afirmação conversa desta será necessariamente verdadeira, a saber: se alguma coisa tem a m aioria das propriedades (p (no sentido adequadam ente ponde rado), essa coisa é X. Podemos então dizer realmente que é a priori e necessário que uma coisa é X se e somente se é a única coisa que tem a maioria das proprie dades (p. Julgo, aliás, que isto resulta das teses ante riores (l)-(4). E o que (5) e (6) realmente dizem é ape nas que um falante suficientem ente reflexivo apreende esta teoria dos nomes próprios. Sabendo isto, ele vê então que (5) e (6) são verdadeiras. A minha objecção às teses (5) e (6) não será que alguns falantes não co nhecem esta teoria e, por isso, não sabem estas coisas. Na última palestra falei sobre a tese (6). Muitos filóso fos observaram que, se tomarmos o feixe de proprieda des associado a um nome próprio num sentido muito estrito, de tal modo que só uma propriedade é que recebe peso, digamos uma descrição definida para selec cionar o referente — por exemplo, Aristóteles foi o filó sofo que foi professor de Alexandre, o Grande — , então certas coisas, que não são verdades necessárias, irão parecer como se fossem verdades necessárias — neste caso, por exemplo, que Aristóteles foi professor de Ale xandre, o Grande. Mas, como disse Searle, é uma verdade
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contingente, e não necessária, que Aristóteles se tenha alguma vez dedicado à pedagogia. Por isso, ele conclui que temos de abandonar o paradigma original de uma só descrição e passar para o de um feixe de descrições. Resumindo coisas que defendi na sessão anterior, não é esta a resposta correcta (seja ela qual for) para este problema a respeito da necessidade. Pois Searle continua assim: Suponha-se que concordamos em abandonar «Aristó teles» e que passamos a usar, por exemplo, «o professor de Alexandre». Então é uma verdade necessária que o homem a que nos referimos seja professor de Alexan dre — mas o facto de Aristóteles se ter alguma vez dedi cado à pedagogia é contingente, embora eu esteja a su gerir que é um facto necessário que Aristóteles tenha a soma lógica, a disjunção inclusiva, das propriedades que geralmente lhe são atribuídas.31 É isto que não acontece. Não é uma verdade neces sária (em qualquer sentido intuitivo de necessidade) que Aristóteles tivesse as propriedades que geralmente lhe são atribuídas. Há uma certa teoria, que talvez tenha aceitação nalgumas concepções da filosofia da história, que é determinista apesar de, ao mesmo tempo, atribuir um papel im portante ao indivíduo na história. Talvez Carlyle associasse ao significado do nome de um grande homem os seus feitos. De acordo com uma tal concepção, será necessário, assim que um certo indi víduo nasce, que ele esteja destinado a realizar diver sos feitos importantes; e, por isso, fará parte da própria natureza de Aristóteles que ele devesse produzir ideias que viriam a ter grande influência no mundo ocidental. Quaisquer que sejam os méritos de uma tal concepção, 31 Searle, «Proper Names», in Caton, op. cit., p. 160.
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seja como concepção da história ou como concepção da natureza dos grandes homens, não parece que devesse ser trivialm ente verdadeira, tendo por base uma teoria dos nomes próprios. É um facto contingente, ab que parece, que Aristóteles alguma vez tenha feito qualquer das coisas que hoje lhe são geralm ente atribuídas, qualquer desses grandes feitos que tanto admiramos. Devo dizer que há algo que parece dar razão a este sentimento de Searle. Quando ouço o nome «Hitler», tenho uma «sensação» ilusória de que é quase analítico que esse hom em era mau. M as, na realidade, é bem provável que não seja assim. Hitler poderia ter passado os seus dias todos sossegado em Linz. Não diríamos nesse caso que, então, este homem não teria sido Hitler, pois usamos o nome «Hitler» apenas como nome desse homem, mesmo quando descrevemos outros mundos possíveis. (Foi a esta noção que chamei, na sessão ante rior, um designador rígido.) Suponhamos que decidi mos seleccionar a referência de «Hitler» como o ho mem que mais judeus conseguiu que fossem mortos em toda a história. É desta m aneira que seleccionamos a referência do nome; mas, noutra situação contrafactual, na qual alguma outra pessoa tivesse ganhado este descrédito, não diríamos que, nesse caso, esse outro homem teria sido Hitler. Se Hitler nunca tivesse che gado ao poder, Hitler não teria tido a propriedade que estou a supor que usamos para fixar a referência do seu nome. Do mesmo modo, mesmo que definamos o que é um metro por referência à barra-m etro-padrão, será uma verdade contingente, e não necessária, que essa barra particular tenha um metro de comprimento. Se tivesse sido esticada, teria m ais do que um metro de com primento. E isso é porque usamos o termo «um metro» rigidam ente para designar um certo com pri m ento. M uito embora fixem os o com prim ento que estamos a designar por meio de uma propriedade aci-
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dental desse comprimento, tal como no caso do nome do homem podemos seleccionar o homem por meio de uma propriedade acidental do homem, continuamos a usar o nome para designar esse homem ou esse compri m ento em todos os mundos possíveis. A propriedade que usamos não tem de modo algum de ser conside rada necessária ou essencial. No caso de uma jarda, a m aneira original como este com primento foi seleccio nado foi, julgo eu, pela distância entre a ponta do dedo e o nariz do rei Henrique I de Inglaterra com o braço esticado. Se era este o comprimento de uma jarda, não será no entanto uma verdade necessária que a distân cia entre a ponta do dedo e o nariz do rei fosse de uma jarda. Poderia ter ocorrido um acidente que encurtasse o seu braço; isso seria possível. A razão pela qual não é uma verdade necessária não é a de que poderia haver outros critérios num «conceito-feixe» de ser-uma-jarda. Até mesmo um homem que use estritam ente o braço de Henrique I como o seu único padrão de compri mento pode dizer, contrafactualm ente, que se certas coisas tivessem acontecido ao rei, a distância exacta entre a ponta de um dos seus dedos e o seu nariz não seria exactamente de uma jarda. Desde que use o termo «jarda» para seleccionar uma certa referência que foi fixada como sendo esse comprimento em todos os mun dos possíveis, não tem de usar um feixe de conceitos. Estas observações mostram, julgo eu, como é intuiti vam ente bizarra uma boa parte da literatura sobre a «identificação transmundial» e a «teoria das contrapar tes». Pois m uitos dos que teorizam sobre isso, acredi tando que um «mundo possível» só qualitativamente nos é dado, defendem que Aristóteles deve ser «identi ficado noutros mundos possíveis» ou, em alternativa, que as suas contrapartes devem ser identificadas com aquelas coisas que, noutros mundos possíveis, se asse m elham mais com Aristóteles nas suas propriedades
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mais im portantes. (Lewis, por exemplo, diz: «As tuas contrapartes [...] assem elham -se a ti [...] em aspectos im portantes [...] mais do que as outras coisas nos seus mundos [...] tendo em conta a im portancia dos vários aspectos e os graus de semelhança32.») Para alguns, as propriedades im portantes poderão ser as proprieda des usadas para identificar o objecto no mundo actual. Estas noções são sem dúvida incorrectas. Para mim, as propriedades mais im portantes de Aristóteles con sistem na sua obra filosófica, e as de Hitler no seu papel político sanguinário; mas, como já disse, ambos pode riam não ter tido qualquer destas propriedades. E óbvio que não houve qualquer fatalidade lógica a pairar sobre Aristóteles ou sobre Hitler, a qual tornou num certo sentido inevitável que eles tivessem possuído as pro priedades que neles consideram os im portantes; eles poderiam ter seguido carreiras com pletam ente dife rentes das que seguiram. As propriedades importantes de um objecto não têm de ser essenciais, a não ser que se use «importância» como sinónim o de essência. Um objecto poderia ter propriedades muito diferentes das suas propriedades actuais mais notáveis ou diferentes das propriedades que usamos para o identificar. Deixem-m e esclarecer uma coisa que me têm per guntado: quando digo que um designador é rígido e que designa a mesma coisa em todos os mundos pos síveis, quero dizer que, tal como é usado na nossa lin guagem, ele representa essa coisa, quando nós falamos sobre situações contrafactuais. Não estou seguram ente a dizer que não poderia haver situações contrafactuais nas quais, nos outros mundos possíveis, as pessoas falassem uma linguagem diferente. Não dizem os que «dois mais dois são quatro» é contingente, porque as pessoas poderiam falar uma linguagem na qual «dois 32 D. Lewis, op. cit., pp. 114-115.
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mais dois são quatro» significasse que o sete é par. Do mesmo modo, quando falamos de uma situação contrafactual, falamos dela em português, mesmo que faça parte da descrição dessa situação contrafactual que, nela, todos falaríamos alemão. Dizemos: «Suponhamos que falávamos todos alemão», ou: «Suponhamos que usávam os o português de uma m aneira anormal». Quando fazemos isso estamos a descrever um mundo possível ou uma situação contrafactual na qual as pes soas, incluindo nós próprios, falariam de uma maneira diferente da maneira que falamos. Ainda assim, ao des crever esse mundo, usamos o português com os nossos significados e as nossas referências. E neste sentido que digo que um designador rígido tem a mesma referên cia em todos os mundos possíveis. Também não estou a dizer que a coisa designada existe em todos os m un dos possíveis, mas apenas que o nome se refere rigida m ente a essa coisa. Se disserem: «Suponhamos que Hitler não tinha nascido», o nome «Hitler» refere-se aqui, ainda rigidam ente, a algo que não existiria na situação contrafactual descrita. Dadas estas observações, isto significa que temos de riscar a tese (6) como estando incorrecta. As outras teses nada têm a ver com a necessidade e podem so breviver. A tese (5), em particular, não tem nada a ver com a necessidade e pode sobreviver. Se uso o nome «Héspero» para me referir a um certo corpo planetário quando é observado à tarde numa certa posição celes te, não será por isso um a verdade necessária que Héspero seja alguma vez observado à tarde. Isso de pende de diversos factos contingentes como as pes soas estarem lá para observar e coisas desse género. Portanto, mesmo que diga para mim próprio que vou usar «Héspero» para nomear o corpo celeste que ob servo à tarde numa certa posição no céu, não será necessário que Héspero tenha alguma vez sido obser-
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vado à tarde. Mas pode ser a priori, na medida em que foi assim que determ inei o referente. Se determ inei que Héspero é a coisa que observei à tarde naquele lugar, então saberei, sim plesmente por ter determ ina do assim o referente, que, se existe algum Héspero, Héspero é a coisa que observei à tarde. Pelo menos isto sobrevive, à luz dos argumentos que até agora expusemos. E o que dizer de uma teoria de onde se elim inou a tese (6)? As teses (2), (3) e (4) têm, afinal, um conjunto grande de contra-exemplos. Mesmo quando as teses (2)-(4) são verdadeiras, a tese (5) é geralmente falsa; a verdade das teses (3) e (4) é um «acidente» empírico, algo que o falante dificilmente pode saber a priori. Quer dizer, os princípios que realmente determinam a refe rência do falante são outros, e o facto de o referente coincidir com aquele que (2)-(4) determ inam é um «acidente», do qual não poderíamos ter conhecimento a priori. Som ente num conjunto raro de casos, norm al mente em casos de baptism o inicial, é que (2)-(5) são todas verdadeiras. Que im agem do acto de nomear vos dão estas teses ((l)-(5))? A imagem é esta. Quero nomear um objecto. Penso nalgum a m aneira de o descrever, a ele e só a ele, e então procedo a uma espécie de cerimónia m en tal: cham arei «C ícero» ao hom em que denunciou Catilina; e será essa a referência de «Cícero». Usarei «Cícero» para designar rigidam ente o homem que (de facto) denunciou C atilina, por isso posso falar de mundos possíveis onde ele não o fez. O im portante é que, primeiro, avanço uma condição que determina um e um só objecto, e, depois, uso uma certa palavra como nome do objecto determ inado por esta condição. Pode acontecer que, nalguns casos, façamos efectiva m ente isto. Por exemplo, quando dizemos: chamarei «H éspero» àqu ele corpo celeste que ali está — se
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quisermos considerar que isto é uma descrição33. Esse é um caso em que as teses, realmente, não só são ver dadeiras, como até dão uma imagem correcta de como se determina a referência. Um outro caso poderia ser aquele em que a polícia de Londres usa o nome «Jack», ou «Jack, o Estripador» (se é que queremos chamar um nome a isto), para se referir ao homem, seja ele quem for, que com eteu todos aqueles homicídios ou a maior parte deles. A referência do nome é aqui dada por meio de uma descrição34. Mas em muitos casos, ou na 33 Um caso ainda melhor de determinação da referência de um nome por descrição (e não por ostensão) é a descoberta do planeta Neptuno. Foi formulada a hipótese de que Neptuno seria o plane ta que causava tais e tais discrepâncias nas órbitas de certos outros planetas. Se Leverrier deu realmente o nome «Neptuno» antes de o planeta ser visto, então fixou a referência de «Neptuno» por meio da descrição que acabei de mencionar. Nessa época, ele não podia ver o planeta nem mesmo por um telescópio. Nesse estádio, havia uma equivalência material a priori entre as afirmações «Neptuno existe» e «um certo planeta a perturbar a órbita de tais e tais outros planetas existe em tal e tal posição»; e afirmações como «se tais e tais perturbações são causadas por um planeta, então são causadas por Neptuno» tinham o estatuto de verdades a priori. Contudo, não eram verdades necessárias, uma vez que «Neptuno» foi introduzido como um nome que designa rigida mente um certo planeta. Leverrier poderia muito bem acreditar que se Neptuno tivesse sido desviado do seu curso um milhão de anos antes, não teria causado tais perturbações e, até, que algum outro objecto poderia ter causado as perturbações em vez dele. 34 No seguimento das observações de Donnellan sobre as des crições definidas, devemos acrescentar que, nalguns casos, um objecto pode ser identificado, e a referência de um nome pode ser fixada, usando uma descrição que se-pode vir a revelar falsa do seu objecto. Um exemplo óbvio é o caso em que a referência de «Fósforo» é determinada como a «estrela da manhã», a qual mais tarde se vem a descobrir que não é uma estrela. Nesses casos, não há claramente nenhum sentido no qual se saiba a priori que a descrição que fixa a referência é verdadeira do objecto, embora isso possa acontecer com um substituto mais cuidadosamente enunciado. Se dispomos de um tal substituto, é ele que realmente fixa a referência no sentido pretendido no texto.
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maioria deles, julgo que as teses são falsas. Examinemo-las, então35. Como disse, a tese (1) é uma definição. A tese (2) diz que A acredita que uma das propriedades que ele julga pertencerem ao objecto, ou algum as propriedades em conjunto, seleccionam um e um só indivíduo. Um género de exemplo que as pessoas têm em m ente é o que aca bei de dar: usarei o termo «Cícero» para denotar o homem que denunciou Catilina (ou, para satisfazer a condição de unicidade, que foi o prim eiro a denunciá-lo publicamente). Um e um só objecto é assim seleccio nado como referência. Até mesmo autores que, como Ziff em Semantic Analysis, não acreditam que os nomes tenham qualquer significado, julgam que esta é uma boa imagem de como se pode determ inar a referência. Vejamos se a tese (2) é verdadeira. De uma m aneira mais ou menos a priori, parece que tem de ser verda deira, porque, se não julgarem que as propriedades que têm em m ente seleccionam um e um só indivíduo — se julgarem , por exemplo, que elas são todas satis feitas por dois indivíduos — , então como é que podem dizer acerca de qual deles é que estão a falar? Parece não haver qualquer base para dizerem que estão a falar acerca de um, e não acerca do outro. Geralmente, supõe-se que as propriedades em questão são certas reali zações fam osas da pessoa em questão. Por exemplo, Cícero foi o hom em que denunciou Catilina. De acordo com isto, quando a pessoa média se refere a Cícero, está a dizer qualquer coisa como «o homem que denun35 Algumas teses estão formuladas de maneira pouco rigo rosa no que diz respeito a questões complicadas como o uso de aspas e outros pormenores relacionados. (Por exemplo, as teses (5) e (6), como estão formuladas, pressupõem que o falante está a usar a língua portuguesa.) Uma vez que a intenção das teses é clara, e como elas são em todo o caso falsas, não me preocupei em rectificá-las.
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ciou Catilina» e, assim, seleccionou um certo homem e apenas ele. O facto de terem defendido esta tese durante tanto tempo é uma homenagem à cultura dos filósofos. De facto, a maioria das pessoas, quando pensa em Cícero, pensa apenas num fam oso orador romano, sem qualquer pretensão a pensar que houve somente um orador romano famoso ou que precisamos de saber mais alguma coisa acerca de Cícero para termos um referente para o nome. Considerem os Richard Feynman: m uitos de nós somos capazes de nos referirmos a ele. E um im portante físico teórico contemporâneo. Todos os que estão aqui (tenho a certeza!) são capazes de enunciar os conteúdos de um a das teorias de Feynman de modo a diferenciá-lo de Gell-M ann. Con tudo, o homem comum, que não possui estas capa cidades, pode ainda assim usar o nome «Feynman». Se lhe perguntarmos, dirá: bem, é um físico, ou qualquer coisa desse género. Pode não julgar que isto selecciona uma e uma só pessoa. Mas continuo a pensar que ele usa o nome «Feynman» como nome de Feynman. Mas examinemos alguns casos em que temos de facto uma descrição para seleccionar uma e uma só pessoa. D igam os, por exem plo, qtie sabem os que Cícero foi o primeiro homem que denunciou Catilina. Está muito bem. Realmente, isso selecciona uma e uma só pessoa. No entanto, há um problema, porque esta descrição contém outro nome, a saber, «Catilina». Te mos de ter aqui a certeza de que satisfazem os as con dições de uma maneira que não viole a condição de não-circularidade. Em particular, não podemos dizer que Catilina foi o homem denunciado por Cícero. Se o fizermos, não estaremos realmente a seleccionar uma coisa só, estaremos sim plesmente a seleccionar um par de objectos A e B tais que A denunciou B. Não julga mos que este tenha sido o único par em que tais de núncias ocorreram; por isso, mais vale acrescentarmos
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outras condições, para que a condição de unicidade seja satisfeita. Se dissermos que Einstein foi o homem que desco briu a teoria da relatividade, isso selecciona com cer teza uma e uma só pessoa. Como disse, podemos ter a certeza de que, aqui, todos são capazes de produzir um enunciado compacto e independente da sua teoria e, assim, seleccionar Einstein e apenas ele; mas muita gente, de facto, não sabe o suficiente acerca desta m até ria, por isso, quando lhes perguntarem o que é a teoria da relatividade, dirão que é a teoria de Einstein, caindo assim no mais óbvio círculo vicioso. E então evidente que a tese (2) não é satisfeita quan do dizemos que Feynman é um físico famoso e não lhe atribuím os m ais nada. E, mesm o quando é satisfeita, ela pode não ser satisfeita da m aneira correcta: se dis sermos que Einstein foi «o hom em que descobriu a teoria da relatividade», é um facto que isso selecciona um e um só indivíduo; mas pode não o seleccionar de m aneira a satisfazer a condição de não-circularidade, porque a teoria da relatividade pode por sua vez ser seleccionada como «a teoria de Einstein». Portanto, a tese (2) parece ser falsa. Podíamos tentar rectificar a teoria, associando aos nomes condições (p diferentes daquelas que os filósofos geralm ente usam. Já ouvi falar de várias m aneiras de o fazer; talvez as discuta m ais adiante. Os filósofos pensam geralm ente em realizações famosas do homem nomeado. Não há dúvida de que, no caso de realizações famosas, a teoria não funciona. Um aluno meu disse uma vez: «Bem, Einstein descobriu a teoria da relati vidade»; e determinou a referência de «a teoria da rela tividade» de maneira independente, referindo-se a uma enciclopédia onde se encontrariam os porm enores da teoria. (Isto é o que se chama uma dedução transcen dental da existência de enciclopédias.) Mas parece-m e
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que, mesmo que uma pessoa tenha ouvido falar de enciclopédias, não é realm ente essencial para a sua referência que ela deva saber se esta teoria é explicada em porm enor numa enciclopédia qualquer. A referên cia podia funcionar, mesmo que não existissem enci clopédias. Avancemos para a tese (3): se a maioria dos (p's, adequadamente ponderados, são satisfeitos por um e um só objecto y, então y é o referente do nome para o falante. Uma vez que já estabelecemos qtie a tese (2) está errada, porque deveria o resto da teoria funcio nar? Toda a teoria dependia de sermos sempre capa zes de especificar condições únicas que são satisfeitas. Ainda assim, podem os exam inar as outras teses. A imagem que está associada à teoria é a de que só po demos saber quem uma pessoa é, e saber, assim, qual é a referência do nome, se indicarmos algumas proprie dades únicas. Bem, não vou abordar a questão do saber quem uma pessoa é. Isso causa realmente muita perple xidade. Julgo que sabemos de facto quem é Cícero se soubermos apenas responder que é um orador romano famoso. Estranham ente, se souberm os que Einstein descobriu a teoria da relatividade e não soLibermos nada acerca da própria teoria, saberemos, com base nesse conhecimento, quem é Einstein (a saber: o des cobridor da teoria da relatividade) e quem descobriu a teoria da relatividade (a saber: Einstein). Isto parece ser uma violação flagrante de uma espécie de condi ção de não-circularidade; mas é assim que falamos. Portanto, uma imagem que sugira esta condição deve, ao que parece, estar errada. Suponhamos que a maioria dos
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pessoa tem formação adequada e até é capaz de dar uma explicação independente do teorema da incompletude. Ela não diz apenas: «Bem, é o teorema de Gõdel», ou algo parecido. Ela formula efectivam ente um certo teorema e diz que Gõdel foi quem o descobriu. E então verdade que, se a maioria dos cp's são satisfeitos por um e um só objecto y, então y é o referente do nome «X» para A? Considerem os um caso simples. No caso de Gõdel, isso é praticam ente a única coisa que m uitas pessoas ouviram acerca dele — que descobriu a incompletude da aritmética. Segue-se daqui que quem quer que tenha descoberto a incom pletude da aritm ética é o referente de «Gõdel»? Im agine-se a seguinte situação claram ente fictícia. (Espero que o Professor Gõdel não esteja aqui na sala.)* Suponham os que Gõdel não era, de facto, o autor deste teorema. Um homem chamado «Schmidt», cujo corpo foi encontrado em Viena em circunstâncias m isteriosas há muitos anos, foi quem efectivam ente realizou o trabalho em questão. O seu amigo Gõdel arranjou m aneira de se apoderar do manuscrito e, a partir daí, o trabalho foi atribuído a Gõdel. Na pers pectiva em causa, quando a nossa pessoa vulgar usa o nome «Gõdel», o que realm ente pretende é referir-se a Schmidt, porque Schm idt é a única pessoa que satisfaz a descrição «o homem que descobriu a incompletude da aritm ética». Podíamos, sem dúvida, tentar corrigi-la para «o homem que publicou a descoberta da incom-
* Kurt Gödel (1906-1978) mudou-se de Viena para Princeton em 1940. Até se reformar, em 1976, foi membro do Instituto de Estudos Avançados, centro de investigação muito próximo, mas independente, da Universidade de Princeton. Em 22 de Janeiro de 1970 encontrava-se efectivamente em Princeton, mas bastante doente (cf. Hao Wang, Reflections on Kurt Gödel, Cambridge, Massa chusetts: MIT Press, 1987, p. 130). (N. dos T.)
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pletude da aritmética». E se modificarmos a história um pouco mais, até esta formulação podemos tornar falsa. De qualquer m aneira, a m aioria das pessoas podia nem sequer saber se a coisa foi publicada ou se passou de boca em boca. M antenham os «o homem que descobriu a incompletude da aritm ética». Então, uma vez que o homem que descobriu a incompletude da aritm ética é de facto Schmidt, quando nós falamos de «Gõdel» estamos de facto sempre a referirmo-nos a Schmidt. Mas parece-m e que não estamos. De facto, não estamos. Uma réplica, que discutirei mais adiante, podia ser: o que se devia antes dizer é «o homem a quem geralm ente se atribui a incompletude da aritm é tica», ou algo parecido. Veremos depois até onde chega esta sugestão. A m uitos de vós este exemplo pode parecer estra nho ou pode parecer que uma situação destas rara mente acontece. Também isto é uma homeriagem à cultura dos filósofos. E frequente usarmos um nome tendo por base uma quantidade considerável de infor mação errada. O caso da matemática, que usei no exem plo fictício, fornece bons exemplos disso. Que sabe mos nós de Peano? E provável que o que muita gente nesta sala «sabe» de Peano é que ele descobriu certos axiomas — os chamados «axiomas de Peano» — que caracterizam a sequência dos números naturais. Al guns serão até capazes de os formular. Disseram-me que estes axiomas não foram descobertos por Peano, mas sim por Dedekind. E claro que Peano não era um homem desonesto. Segundo me dizem, nas suas notas de rodapé ele reconhece a influência de Dedekind. Mas a nota de rodapé foi de certo modo ignorada. Portanto, de acordo com a teoria em questão, o termo «Peano», tal como o usamos, refere-se realmente a Dedekind; agora que já sabemos isto, vemos que realmente esti vemos sempre a falar de Dedekind. Mas isso não é
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verdade. E podíam os m u ltip licar indefinidam ente exemplos deste género. E claro que equívocos ainda m ais graves acontecem a um leigo. Num exemplo anterior, supus que as pes soas identificavam Einstein por referência ao seu tra balho sobre a relatividade. Na verdade, era frequente ouvir dizer que Einstein tinha ficado famoso sobretudo pela invenção da bomba atómica. Por isso, quando nos referimos a Einstein, referimo-nos ao inventor da bomba atómica. Mas isto é falso. Colombo foi o primeiro homem a aperceber-se de que a Terra é redonda. E foi também o prim eiro europeu a pisar o hem isfério ocidental. Provavelmente, nenhuma destas coisas é verdade, por isso, quando as pessoas usam o termo «Colombo», estão realmente a referir-se a um grego (se usarem a esfericidade da Terra) ou talvez a um nórdico (se usa rem a «descoberta da América»), Mas não estão. Não parece, portanto, que, se a m aioria dos
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Tese (4): se o escrutínio não selecciona um e um só objecto, o nome não tem referência. De facto, este caso já foi tratado — foi tratado nos meus exemplos anterio res. Primeiro, o escrutínio pode não seleccionar um objecto único, como no caso de Cícero ou no de Feynman. Em segundo lugar, suponhamos que não selec ciona nenhum objecto, que nada satisfaz a maioria (ou mesmo qualquer número substancial) dos cp's. Quer isso dizer que o nome não tem referência? Não: do mesmo modo que podemos ter crenças falsas acerca de uma pessoa, que de facto são verdadeiras de alguma outra, tam bém podemos ter crenças falsas que não são frase «Gõdel demonstrou o teorema da incom pletude» seria falsa, mas «Gõdel usou um argumento de diagonalização na de monstração» seria (pelo menos em certos contextos) verdadeira, e a referência do nome «Gõdel» seria ambígua. Na medida em que continua a haver alguns contra-exemplos, a teoria do feixe de descrições ainda seria, em geral, falsa — e era essa a minha tese principal no texto; mas ela seria aplicável a uma classe de casos mais ampla do que eu pensava. Julgo, no entanto, que não é pre ciso postularmos nenhuma ambiguidade desse género. Talvez seja verdade que, às vezes, quando alguém usa o nome «Gõdel», o que principalmente lhe interessa é a pessoa, seja ela quem for, que demonstrou o teorema, e talvez, num certo sentido, se «refira» a ela. Não acho que este caso seja diferente do de Smith e Jones na nota 3 das páginas 70-71. Se tomo Jones por Smith, posso referir-me (num sentido adequado) a Jones quando digo que Smith está a varrer as folhas; no entanto, não uso «Smith» ambiguamente, umas vezes como nome de Smith e outras como nome de Jones, mas uso-o univocamente como nome de Smith. Do mesmo modo, se julgo erradamente que Aristóteles escreveu tal e tal passagem, talvez possa às vezes usar «Aristóteles» para me referir ao verda deiro autor da passagem, ainda que não haja qualquer ambiguidade no meu uso do nome. Em ambos os casos, se os factos me forem revelados, retirarei a minha afirmação original e o meu uso origi nal do nome. Recordemos que, nestas palestras, o termo «referen te» é usado no sentido técnico de a coisa nomeada por um nome (ou que é a única a satisfazer uma descrição), e que não deve haver aí nenhuma confusão.
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verdadeiras de absolutamente ninguém. E estas podem constituir a totalidade das nossas crenças. Suponha mos, para variar o exemplo sobre Gõdel, que ninguém descobriu a incompletude da aritm ética — talvez a dem onstração se tenha sim plesm ente m aterializado através de uma dispersão aleatoria de átomos numa folha de papel — e o homem Gõdel teve a sorte sufi ciente de estar presente quando este acontecim ento improvável ocorreu. Suponham os, além disso, que a aritm ética é de facto completa. Não seria de esperar que uma dispersão aleatória de átomos produzisse uma dem onstração correcta. Um erro subtil, desconhecido durante décadas, ainda não foi descoberto — ou tal vez tenha sido descoberto, mas os amigos de Gõdel... Portanto, mesmo se as condições não são satisfeitas por um objecto único, o nome pode ainda ter uma referência. Na semana passada falei-vos do caso de Jonas. Com o eu disse, os especialistas em estudos bíblicos julgam que Jonas existiu realmente. E não é porque julguem que alguém foi alguma vez engolido por um peixe gigante ou até que foi pregar a Nínive. Estas condições podem não ser verdadeiras de absolu tamente ninguém, e, no entanto, o nome «Jonas» tem realmente um referente. No caso acima m encionado de Einstein e da sua invenção da bomba, é possível que ninguém mereça realm ente ser chamado o «inven tor» do engenho. A tese (5) diz que o enunciado «Se X existe, então X tem a maioria dos (p's» é uma verdade a priori para A. Reparem que mesmo num caso em que (3) e (4) são de facto verdadeiras, um falante típico dificilm ente sabe a priori que o são, tal como a teoria exige. Eu julgo que a minha crença a respeito de Gõdel é de facto correcta e que a história de «Schmidt» é apenas uma fantasia. Mas a crença dificilmente constitui conhecimento a priori.
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Que se passa aqui? Podemos salvar a teoria37? Pri meiro, podemos tentar e variar estas descrições — não pensar nos feitos famosos de um homem, mas, digamos, nalguma outra coisa, e tentar e usar isso como a nossa descrição. Com muita engenhosidade, talvez alguém acabe por conseguir chegar a algum lado com isto38;
37 Sugeriram-me que alguém poderia argumentar que um nome está associado a um uso «referencial» de uma descrição no sentido de Donnellan. Por exemplo, apesar de identificarmos Gõdel como o autor do teorema da incompletude, estamos a falar dele, mesmo que se descubra que não foi ele que demonstrou o teorema. As teses (2)~(6) poderiam então falhar; mas, apesar disso, cada nome abrevia ria uma descrição, embora o papel da descrição no nomear fosse radicalmente diferente do que Frege e Russell imaginaram. Como disse acima, sinto-me inclinado a rejeitar a formulação de Donnellan da noção de descrição definida referencial. No entanto, mesmo que a análise de Donnellan seja aceite, é claro que esta proposta não deve sè-lo. Pois uma descrição definida referencial, como «o homem que está a beber champanhe», é tipicamente retirada quando o falante se apercebe de que ela não se aplica ao seu objecto. Se fosse descoberta uma fraude gõdeliana, Gõdel deixaria de ser chamado «o autor do teorema da incompletude», mas continuaria a chamar-se «Gõdel». Por conseguinte, o nome não abrevia a descrição. 38 Como Robert Nozick me fez notar, há um sentido em que uma teoria descritivista terá de ser trivialmente verdadeira, a par tir do momento em que disponhamos de uma teoria da referência dos nomes que esteja formulada em termos independentes da noção de referência. Pois se uma tal teoria fornece condições para que um objecto seja o referente de um nome, então é evidente que o objecto é o único que satisfaz essas condições. Uma vez que não pretendo apresentar uma teoria que elimine a noção de referência neste sentido, não conheço nenhum caso de satisfação trivial da teoria descritivista e duvido que exista. (Encontrar uma descrição que use a noção da referência de um nome é fácil, mas tal descri ção é circular, como vimos na nossa discussão de Kneale.) Mas mesmo que houvesse algum caso desses de satisfação trivial, os meus argumentos mostram que a descrição teria de ser de um género completamente diferente do que suponham Frege, Russell, Searle, Strawson e outros defensores da teoria descritivista.
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no entanto, a maioria das tentativas que fazem os en frenta contra-exem plos ou outras objecções. Deixem-me dar um exemplo. No caso de Gõdel, podemos dizer: «Bem, 'Gödel' não significa 'o homem que de m onstrou a incompletude da aritm ética'.» Vejam , tudo o que realmente sabemos é que a maioria das pessoas julga que Gõdel dem onstrou a incompletude da arit mética, que Gõdel é o homem a quem geralm ente se atribui a incom pletude da aritmética. Por isso, quando determino o referente do nome «Gõdel», não digo para mim próprio «através do nome 'Gõdel' passarei a que rer dizer 'o homem que dem onstrou a incompletude da aritm ética, seja ele quem for'». Podia descobrir-se que foi Schm idt ou Post. M as, em vez disso, quererei dizer «o homem que a maioria das pessoas julga que dem onstrou a incompletude da aritmética». Estará isto correcto? Em prim eiro lugar, parece-me que está exposto a contra-exem plos do mesmo género dos que dei antes, embora os contra-exem plos possam ser mais sofisticados. Suponhamos que, no caso de Peano, que m encionei antes, sem que o falante saiba, a maioria das pessoas (pelo menos agora) tem plena noção de que os axiomas da teoria dos números não lhe devem ser atribuídos. A maioria das pessoas já não atribui esse crédito a Peano, m as, agora, atribui os axiomas correctamente a Dedekind. Mas, assim, m es mo o hom em a quem a coisa geralm ente se atribui continuará a ser Dedekind, e não Peano. No entanto, o falante, tendo adquirido a crença antiga e já fora de m oda, pode estar ainda a referir-se a Peano, e m anter uma crença falsa acerca de Peano, em vez de uma crença verdadeira acerca de Dedekind. Mas, em segundo lugar, e talvez seja isso o mais im portante, um tal critério viola a condição de não-circularidade. Como? E verdade que a maioria de nós julga que Gõdel dem onstrou a incom pletude da aritmética. 148
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Porquê? Não há dúvida de que dizemos, e com sinceri dade, «Gõdel dem onstrou a incompletude da aritmé tica». Segue-se daí que acreditamos que Gõdel demons trou a incompletude da aritmética — que atribuímos a incompletude da aritmética a este homem? Não. Ape nas disso, não se segue. Temos de estar a referir-nos a Gõdel quando dizemos «Gõdel dem onstrou a incom pletude da aritm ética». Se, de facto, estivéssem os sempre a referir-nos a Schm idt, então estaríam os a atribuir a incompletude da aritmética a Schmidt, e não a Gõdel — se usássemos o som «Gõdel» como nome do homem a quem estou a cham ar «Schmidt». M as referimo-nos de facto a Gõdel. Como é que o fazemos? Bem, não é por dizerm os a nós próprios: «Através do nome 'Gõdel' passarei a querer dizer o homem a quem a incompletude da aritm ética é geral m ente atribuída.» Se o fizéssem os, entraríamos num círculo. Aqui estamos nós, todos nesta sala. Nesta insti tuição39, algumas pessoas conheceram mesmo o homem, mas em m uitas outras instituições isso não acontece. Todos nós, na comunidade, estamos a tentar determi nar a referência dizendo: «Gõdel há-de ser o homem a quem a incompletude da aritm ética é geralm ente atri buída.» Nenhum de nós conseguirá o menor progresso, a menos que haja algum critério independente para a referência do nome, diferente de «o homem a quem a incompletude da aritm ética é geralm ente atribuída». Senão, não estaremos a dizer nada mais do que «Atri buímos este feito ao homem a quem o atribuímos», sem dizermos quem é esse homem, sem darmos qual quer critério independente da referência e, por isso, a determ inação será circular. Isto é então uma violação da condição que assinalei com «C» e não pode ser usado em nenhuma teoria da referência. 39 Universidade de Princeton.
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É claro que se poderia tentar evitar a circularidade atirando as culpas para outro. Straw son fala disto quando diz, na nota de rodapé que escreve sobre estes assuntos, que a referência de um homem pode derivar da de outro. Embora não possa incluir uma referência à referência do próprio falante ao objecto particular em questão, a descrição identificadora pode incluir uma referência à referência de outra pessoa a esse particular. Se uma des crição putativamente identificadora for deste género, então, de facto, a questão de saber se é uma descrição genuinamente identificadora depende da questão de saber se a referência a que ela se refere é ela própria uma refe rência genuinamente identificadora. Portanto, uma re ferência pode ter credenciais, como referência genuina mente identificadora, que pediu emprestadas a outra; e esta pode tê-las pedido a outra. Mas este regresso não é infinito.40 Posso então dizer: «Olha, através do nome 'Gõdel' passarei a querer dizer o homem que Joe julga que dem onstrou a incompletude da aritm ética.» Joe pode depois passar a coisa para Harry. Temos de ter muito cuidado para que isto não entre num círculo. Temos realmente a certeza de que isso não acontecerá? Se pudéssem os ter a certeza de conhecer uma tal cadeia e de que todos os outros que fazem parte da cadeia estão a usar as condições adequadas e por isso não estão a sair dela, então talvez pudéssem os retroceder até ao homem ao referirmo-nos a uma tal cadeia dessa m aneira, pedindo as referências emprestadas uma a uma. Contudo, embora em geral existam cadeias des tas para um homem vivo, nós não saberemos qual é a cadeia. Não teremos a certeza de quais são as descri 40 Strawson, op. cit., p. 182, nota.
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ções que o outro homem está a usar (para que a coisa não entre num círculo) ou se, ao apelar para Joe, não chegaremos de todo ao homem certo. Portanto, não podemos usar isto como a nossa descrição identifi cadora com nenhum grau de confiança. Podemos até nem nos lembrarmos de quem foi que nos falou de Godel. Qual é a imagem verdadeira do que se passa? Tal vez nunca nos refiramos realmente a nada! Afinal, não sabemos realm ente se alguma das propriedades que usamos para identificar o homem está certa. Não sabe mos se elas seleccionam um e um só objecto. Portanto, o que é que há no meu uso de «Cícero» que faz deste nome um nome dele? A imagem que conduz à teoria do feixe de descrições é mais ou m enos esta: uma pessoa está sozinha num quarto; toda a comunidade dos outros falantes e tudo o resto podia desaparecer; e a pessoa determina a referência para si própria di zendo: «Através do nome 'Godel' passarei a querer dizer o homem, seja ele quem for, que demonstrou a incompletude da aritmética.» Nós podemos fazer isto, se quisermos. Não há nada que nos impeça. E pode mos sim plesmente m anter-nos fiéis a essa determ ina ção. Se o fizerm os, então, se Schm idt descobriu a incompletude da aritm ética, é a ele que nos referimos quando dizemos «Godel fez tal e tal». Mas não é isso que a m aioria de nós faz. Um bebé nasce; os pais dão-lhe um nome. Falam dele aos ami gos. Outras pessoas conhecem-no. Através de vários géneros de conversa, o nome espalha-se de elo em elo, como numa cadeia. Um falante que está mesmo no fim desta cadeia e que, por exemplo, ouviu falar de Richard Feynman, no mercado ou noutro sítio qualquer, pode estar a referir-se a Richard Feynman mesmo que não consiga lem brar-se de quem foi a prim eira pessoa que lhe falou de Feynman ou sequer de ninguém que lhe
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tenha falado de Feynman. Sabe que Feynm an é um físico famoso. Há uma certa cadeia com unicativa que chega ao falante e em cuja outra extrem idade está o próprio homem. O falante está então a referir-se a Feynman, ainda que não seja capaz de o identificar de modo único. Ele não sabe o que é um diagrama de Feynman, não sabe o que é a teoria da produção e aniquilação de pares de Feynman. Mais do que isso: teria dificuldade em distinguir Feynman de Gell-Mann. Portanto, ele não tem de saber estas coisas, mas, em vez disso, há uma cadeia de comunicação com origem no próprio Feynman que foi estabelecida, em virtude da sua pertença a uma comunidade que passou o nome de elo em elo, e não através de uma cerimónia que faz em privado no seu estúdio: «Através do nome 'Feyn m an' passarei a querer dizer o homem que fez tal e tal e tal e tal.» Com o se diferencia esta perspectiva da sugestão feita por Strawson (que já m encionei) de que uma re ferência identificadora pode pedir as suas credenciais emprestadas a outra? Não há dúvida de que Strawson exprim iu uma ideia im portante na passagem citada; por outro lado, é certo que revela pelo menos uma diferença de ênfase relativam ente à imagem que de fendo, dado que confina a observação a uma nota de rodapé. O texto principal advoga a teoria do feixe de descrições. Pelo simples facto de fazer a sua observa ção no contexto de uma teoria descritivista, a perspec tiva de Strawson difere da minha num aspecto im por tante. Ao que parece, Strawson exige que o falante saiba de quem recebeu a sua referência, de modo a poder dizer: «Através do nome 'Gõdel' quero dizer o homem a quem Jones chama 'G õdel'.» Se ele não se lembra aonde foi buscar a referência, não pode dar uma tal descrição. A presente teoria não faz essa exigência. Como eu disse, posso muito bem não me lem brar de 152
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quem foi que me falou de Godel e posso julgar que me lembro, mas estar enganado. Estas considerações mostram que a perspectiva aqui defendida pode conduzir a consequências que efectiva mente divergem das da nota de rodapé de Strawson. Suponhamos que o falante ouviu o nome «Cícero» através de Sm ith e de outros, que usam o nome para se referirem a um famoso orador romano. Contudo, mais tarde julga que quem lhe disse o nome foi Jones, que (sem o falante saber) usa «Cícero» como nome de um prestigiado espião alemão e que nunca ouviu falar de oradores do mundo antigo. Então, de acordo com o paradigma de Straw son, o falante tem de determinar a sua referência através da resolução: «Passarei a usar 'Cícero' para me referir ao homem a quem Jones chama por esse nome», enquanto, na perspectiva presente, o referente será o orador, apesar da impressão falsa que o falante tem a respeito da pessoa que lhe transmitiu o nome. O principal é que Straw son, na tentativa de conciliar a ideia da cadeia de com unicação com a teo ria descritivista, confia naquilo que o falante julga que foi a fonte da sua referência. Se o falante se esqueceu da sua fonte, a descrição que Straw son usa não está à sua disposição; e se ele se recorda de maneira errada, o paradigma de Strawson pode dar resultados erra dos. Na nossa perspectiva, o que é relevante não é a maneira como o falante julga que obteve a referência, mas a cadeia de com unicação efectiva. Julgo que disse no outro dia que as teorias filosófi cas correm o risco de ser falsas e que, por isso, não ia apresentar uma teoria alternativa. Será que acabei de o fazer? Bem, de certo modo; mas a minha caracteriza ção foi bem menos específica do que um conjunto real de condições necessárias e suficientes para a referên cia seria. E óbvio que o nome é transm itido de elo em elo. Mas é claro que nem todo o género de cadeias 153
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causais que se estendem de mim até um certo homem conseguirão fazer-me referir esse homem. Pode haver uma cadeia causal entre o nosso uso da expressão «Pai Natal» e um certo santo histórico; no entanto, quando as crianças usam hoje a expressão, provavelm ente não estão a referir-se a esse santo. Por isso, há outras con dições que têm de ser satisfeitas para fazer disto uma teoria da referência realm ente rigorosa. Não sei se irei fazer tal coisa, porque, em primeiro lugar, agora sinto-me demasiado preguiçoso; e, em segundo lugar, porque, mais do que dar um conjunto de condições necessárias e suficientes para a referência, quero sim plesm ente apresentar uma imagem que seja melhor do que aquela que as doutrinas conhecidas veiculam. Não terei sido muito injusto com a teoria descritivista? Form ulei-a aqui com muita precisão — talvez com mais precisão do que qualquer um dos seus defen sores. Por isso é depois fácil refutá-la. Se eu tentasse formular a minha teoria com precisão suficiente, sob a forma de seis ou sete ou oito teses, talvez ao examiná-las uma a uma elas se revelassem todas também falsas. Isso até pode ser verdade, mas a diferença é a seguinte. Julgo que os exemplos que dei mostram, não apenas que liá algum erro técnico aqui ou algum engano ali, mas que a concepção de conjunto que esta teoria nos dá sobre como se determina a referência parece estar errada desde as suas bases. Parece errado julgar que damos a nós próprios algumas propriedades que de algum modo seleccionam um e um só objecto e que determ inam os a nossa referência dessa m aneira. Estou a tentar apresentar uma concepção m elhor — uma concepção que, se fosse suplementada com mais por menores, poderia ser apurada de modo a fornecer con dições mais exactas para que haja referência. Poderemos nunca alcançar um conjunto de condi ções necessárias e suficientes. Não sei. Tendo sempre
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a concordar com o bispo Butler quando diz: «Tudo é o que é, e não outra coisa» — no sentido não-trivial de que análises filosóficas de um conceito como o de re ferência, em termos com pletam ente diferentes e sem fazer qualquer menção à referência, têm boas probabi lidades de falhar. E claro que, em qualquer caso par ticular, quando nos é dada uma análise, temos de olhar para ela e ver se é verdadeira ou falsa. Não podemos sim plesmente citar esta máxima para nós próprios e depois virar a página. Mas, de modo mais cauteloso, pretendo apresentar uma imagem melhor, sem dar um conjunto de condições necessárias e suficientes para a referência. Condições desse género seriam muito com plicadas, mas a verdade é que é em virtude da nossa relação com os outros falantes da comunidade, regre dindo até ao próprio referente, que nos referimos a um certo homem. Pode haver casos em que a im agem descritivista seja verdadeira, em que de facto um homem atribui um nome dizendo, na privacidade do seu quarto, que o referente deverá ser a única coisa que tem certas propriedades identificadoras. Já dei o possível exemplo de «Jack, o Estripador», assim como o de «Héspero». Mas um outro caso que podemos forçar a caber nesta descrição é quando encontramos alguém e nos dizem o seu nome. A não ser que tenhamos uma crença na teoria descritivista (na sua im portância noutros casos), não é provável que pensemos que esse seria um caso em que oferecemos a nós próprios uma descrição, i.e. «a pessoa com quem me estou agora a encontrar». Mas podemos pôr a coisa nestes term os, se quisermos, e se nunca tiverm os ouvido o nome de outra maneira. É claro que, se nos apresentarem um homem e disse rem: «E o Einstein», já ouvimos falar dele, e pode estar errado, e assim por diante. Mas é possível que este paradigma funcione nalguns casos — em especial, para
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o homem que, pela primeira vez, dá um nome a alguém ou a alguma coisa. Ou se ele aponta para uma estrela e diz: «Aquela será a Alpha Centauri.» Desse modo, ele pode de facto fazer para si próprio esta cerimónia: «Através de 'Alpha Centauri' passarei a querer dizer a estrela que ali está com tais e tais coordenadas.» Mas, geralm ente, esta imagem falha. Geralmente, a nossa referência depende, não apenas daquilo que nós pró prios pensam os, mas das outras pessoas da com uni dade, da história de como o nome chegou até nós e de coisas deste género. É seguindo essa história que che gamos à referência. Apresentar condições mais exactas é muito com pli cado. De certo modo, as condições parecem ser dife rentes quando se trata de um homem famoso e de alguém m enos famoso. Por exemplo, um professor diz aos seus alunos que New ton era famoso por ter sido o primeiro homem a pensar que há uma força que puxa as coisas para a Terra; julgo que é isso que as crianças pensam que terá sido o m aior feito de Newton. Não vou dizer quais seriam os m éritos de um tal feito, mas, em todo o caso, podemos supor que dizerem -lhes sim plesmente que este era o único conteúdo da descoberta de Newton dá aos alunos uma crença falsa acerca de Nezvton, m esm o que nunca tenham ouvido falar dele anteriormente. Se, por outro lado41, o professor usa o nome «George Smith» — quando, de facto, há um homem com esse nome que é seu vizinho -— e diz que George Smith foi o primeiro a resolver a quadratura do círculo, segue-se daqui que os alunos têm uma crença falsa acerca do vizinho do professor? O professor não lhes diz que Sm ith é seu vizinho, nem acredita que Smith foi o prim eiro a resolver a quadratura do círculo. Ele 41 Os aspectos essenciais deste exemplo foram-me sugeridos por Richard Miller.
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não está especialmente interessado em incutir nos alu nos qualquer crença acerca do vizinho. O que ele pretende é inculcar-lhes a crença de que houve um homem que resolveu a quadratura do círculo, mas não é uma crença acerca de qualquer homem em particular — apenas diz o primeiro nome que lhe ocorre — e, por acaso, usa o nome do seu vizinho. Não é nada claro que, nesse caso, os alunos tenham uma crença falsa acerca do vizi nho, ainda que haja uma cadeia causal que se estende até ao vizinho. Não tenho a certeza disto. Em todo o caso, seria preciso acrescentar mais refinamentos para que isto com eçasse a ser um conjunto de condições necessárias e suficientes. Neste sentido, não é uma teo ria, mas julgo que proporciona uma im agem melhor daquilo que efectivam ente se passa. Poderíam os enunciar assim o esboço de uma teoria: Há um «baptismo» inicial. Aí, o objecto pode ser nomeado por ostensão; ou, então, a referência do nome pode ser fixada por uma descrição42. Quando o nome é «trans-
42 Um bom exemplo de um baptismo cuja referência foi fixada por meio de uma descrição é o de Neptuno, que mencionámos na nota 33 da página 137. O caso de um baptismo por ostensão talvez se possa também subsumir no conceito de descrição. A teoria descritivista aplica-se então, antes de mais, aos casos de baptismo inicial. As descrições também se usam para fixar uma referência em casos de designação que só diferem do nomear porque os ter mos introduzidos não se chamam geralmente «nomes». Os termos «um metro», «100 graus centígrados» já foram dados como exem plos; e mais adiante, nestas palestras, outros exemplos surgirão. A respeito da introdução de um nome por via de uma descrição num baptismo inicial, há duas coisas que devem ser enfatizadas. A primeira é que a descrição usada não é sinónima do nome que introduz, mas apenas fixa a sua referência. A segunda é que a maioria dos casos de baptismo inicial são muito diferentes daqueles que originalmente inspiraram a teoria descritivista. Geralmente, uma pessoa que baptiza está num certo sentido em contacto directo com o objecto que nomeia e pode nomeá-lo ostensivamente. Ora,
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mitido de elo em elo», julgo que o receptor do nome tem de ter a intenção, quando o aprende, de o usar com a mesma referência que o homem a quem o ouviu. Se ouço o nome «Napoleão» e decido que seria um bom nome para o meu papa-form igas de estim ação, não satisfaço esta condição43. (Talvez seja uma falha deste género, em que a referência não é m antida fixa, o que explica a divergência dos usos actuais de «Pai Natal» relativam ente ao alegado uso original.) Repare-se que o esboço que tracei está longe de eli minar a noção de referência; pelo contrário, toma a noção de ter a intenção de usar a mesma referência como um dado. Há tam bém um apelo a um baptism o inicial, o qual é explicado em termos da fixação da referência por uma descrição ou em termos de ostensão (se a ostensão não for subsumida na outra categoria)44.
a teoria descritivista inspira-se no facto de muitas vezes poder mos usar os nomes de figuras famosas do passado que já morre ram há muito tempo e com quem nenhuma pessoa viva teve contacto directo; e são precisamente esses casos que, ao que julga mos, não podem ser correctamente explicados por uma teoria descritivista. 43 Posso transmitir o nome do papa-formigas a outras pessoas. Para cada uma delas, tal como para mim, haverá um certo género de conexão causal ou histórica entre o meu uso do nome e o im perador francês, mas essa conexão não será do tipo requerido. 44 A partir do momento em que nos apercebemos de que a descrição usada para fixar a referência de um nome não é sinónima desse nome, podemos considerar que a teoria descritivista pressu põe a noção de nomeação ou de referência. A exigência que fiz de que a descrição usada não envolva ela própria a noção de referên cia de uma maneira circular é outra coisa — e é crucial se preten demos que a teoria descritivista tenha algum valor. A razão está em que o descritivista supõe que todo o falante usa de modo es sencial a descrição que dá num acto inicial de nomeação para determinar a sua referência. E claro que, se introduzir o nome «Cícero» pela determinação «Com 'Cícero' passarei a referir-me ao
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(Talvez haja outras possibilidades de baptismos ini ciais.) Além disso, o caso de George Sm ith faz-nos du vidar da suficiência das condições. M esmo que o pro fessor se refira ao seu vizinho, será claro que ele transm itiu a sua referência aos alunos? O que é que impede a crença dos alunos de ser acerca de qualquer outro homem chamado «George Smith»? Se ele disser que caiu uma maçã na cabeça de Newton, a sua tarefa de transm itir uma referência fica de certo modo faci litada, uma vez que comunicou um erro comum acer ca de Newton. Volto a dizer que posso não ter apresentado uma teoria, mas julgo que apresentei uma im agem melhor do que a que os descritivistas dão. Julgo que o próximo tópico de que vou querer falar é o das afirmações de identidade. São necessárias ou contingentes? Na filosofia recente tem havido disputa acerca do assunto. Em prim eiro lugar, toda a gente concorda que podem os usar descrições para fazer afirmações de identidade contingentes. Se é verdade que o homem que inventou as lentes bifocais foi o primeiro director-geral dos Correios dos Estados Uni dos da América — que eles foram um e o mesmo — , isso é verdade contingentemente. Quer dizer, poderia ter acontecido que um hom em inventasse as lentes bifocais e outro fosse o primeiro director-geral dos Cor reios dos Estados Unidos. Portanto, não há dúvida de que, quando fazemos afirmações de identidade usando
homem a que chamo 'Cícero'», através desta cerimónia ele não está a determinar nenhuma referência. Nem todos os descritivistas julgaram que estavam a eliminar completamente a noção de referência. Talvez alguns se apercebes sem de que alguma noção de ostensão, ou de referência primitiva, seria requerida como suporte. Russell apercebeu-se, sem dúvida.
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descrições — quando dizemos «o x tal que cpx e o x tal que \jfx são um e o mesmo» — , isso pode ser um facto contingente. Mas os filósofos também se têm in teressado pela questão das afirmações de identidade entre nomes. Quando dizem os «Héspero é Fósforo» ou «Cícero é Túlio», o que estamos a dizer é necessário ou contingente? Além disso, também se têm interes sado por afirmações de identidade de um outro tipo, provenientes de teorias científicas. Identificam os, por exemplo, a luz com a radiação electrom agnética entre certos lim ites de comprimentos de onda ou com um feixe de fotões. Identificam os o calor com o m ovi mento de m oléculas; o som com um certo género de perturbação de onda no ar; e assim por diante. Acerca destas afirmações, a tese seguinte é geralm ente defen dida. Em prim eiro lugar, que estas identidades são obviam ente contingentes: descobrim os que a luz é um feixe de fotões, mas é claro que poderia não ser um feixe de fotões. O calor é, de facto, o m ovimento de moléculas; descobrimos isso, mas o calor poderia não ser o m ovim ento de moléculas. Em segundo lugar, muitos filósofos sentem-se extremamente afortunados por terem estes exemplos à sua disposição. Mas por quê? E que estes filósofos, cujas ideias se encontram expostas num a literatura vasta, defendem uma tese cham ada «a tese identitativa» a respeito de alguns conceitos psicológicos. Julgam , por exemplo, que a dor é apenas um certo estado m aterial do cérebro ou do corpo, ou seja do que for — digamos que é a estim ulação de fibras C. (Não interessa o que seja.) Algumas pessoas têm então objectado: «Bem, repara, existe talvez uma correlação entre a dor e estes estados do corpo; mas isso só pode ser uma correlação contin gente entre duas coisas diferentes, porque foi através de uma descoberta empírica que se soube que há tal correlação. Por conseguinte, o que queremos dizer com
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a palavra 'd or' tem de ser algo diferente deste estado do corpo ou do cérebro; e, por isso, têm de ser duas coisas diferentes.» E depois dizem: «Ah, mas como vês, isso está errado! Toda a gente sabe que pode haver identidades contin gentes.» Em prim eiro lugar, como no caso das lentes bifocais e do primeiro director-geral, que já mencionei. Em segundo lugar, no caso (que crêem estar mais pró ximo do paradigma presente) das identificações teóri cas, tais como: a luz e um feixe de fotões, ou a água e um certo composto de hidrogénio e oxigénio. Estas identidades são todas contingentes. Poderiam ser fal sas. Não é, por isso, surpreendente que possa ser ver dade, "corno uma questão de facto contingente, e não de qualquer necessidade, que sentir dor, ou ver a cor vermelha, seja apenas um certo estado do corpo humano. Tais identificações psicofísicas podem ser factos con tingentes, tal como as outras identidades são factos contingentes. E é claro que há m otivações amplamente partilhadas — ideológicas, ou apenas o não querer ter o «pingente nomológico» das conexões m isteriosas que as leis da física não explicariam (correlações um-a-um entre dois géneros de coisas diferentes: estados materiais e coisas de um género completamente diferente) — que levam as pessoas a querer acreditar nesta tese. Acho que a principal coisa de que quero começar por falar são as afirmações de identidade entre nomes. Mas acerca do caso geral defendo o seguinte. Em pri meiro lugar, que as identificações teóricas típicas como «o calor é o m ovimento de moléculas» não são verda des contingentes, mas sim verdades necessárias; e, aqui, é claro que não quero dizer necessárias apenas fisicamente, mas necessárias no mais elevado grau — seja lá isso o que for. (Pode acontecer que a necessidade física se revele ser necessidade no mais elevado grau. Mas essa é uma questão para a qual não quero dar
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como pressuposta nenhuma resposta. Pelo menos para este género de exemplo, poderia acontecer que, quan do uma coisa é fisicamente necessária, ela é sempre necessária tout court.) Em segundo lugar, que a m anei ra como estas verdades se revelaram necessárias não me parece ser uma m aneira através da qual as identi dades mente-cérebro pudessem revelar-se quer neces sárias quer contingentem ente verdadeiras. Esta analo gia tem, por isso, de ser abandonada. E difícil ver o que podemos colocar no seu lugar. É difícil ver, por tanto, com o é que se pode evitar a conclusão de que as duas são efectivam ente diferentes. Regressemos ao caso mais mundano dos nomes pró prios. Este já é suficientem ente m isterioso. Há uma disputa sobre isto entre Quine e Ruth Barcan Marcus45. Marcus diz que as identidades entre nomes são neces sárias. Se uma pessoa julga que Cícero é Túlio e usa realmente «Cícero» e «Túlio» como nomes, essa pes soa com promete-se por essa via a sustentar que a sua crença é uma verdade necessária. Marcus usa o termo «simples rótulo». Quine responde-lhe assim: «Pode mos rotular o planeta Vénus, numa bela tarde, com o nome próprio 'Héspero'. Podem os rotular novamente o mesmo planeta, num certo dia antes do nascer do Sol, com o nome próprio 'Fósforo'. Quando descobri mos que rotulám os duas vezes o mesmo planeta, a nossa descoberta é empírica. E não é porque os nomes próprios eram descrições46.» Em primeiro lugar, como diz Quine, quando descobrimos que rotulám os duas vezes o mesmo planeta, a nossa descoberta foi empí-
45 Ruth Barcan Marcus, «Modalities and Intensional Langua ges» (comentários de W. V. Quine, seguidos de discussão), Boston Studies in the Philosophy of Science, volume I, Reidel, Dordrecht, 1963, pp. 77-116. 46 P. 101.
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rica. Julgo que Quine dá outro exemplo noutro livro, que é este: a mesma montanha vista do Nepal e vista do Tibete, ou algo do género, é de um ponto de vista chamada «monte Evereste» (ouviram isso com certeza) e, do outro ponto de vista, parece que é chamada «Gaurisanker». A descoberta de que o Gaurisanker é o Eve reste pode, de facto, ser uma descoberta empírica. (Quine diz que o exemplo, que lhe foi transm itido por Erwin Schrödinger, efectivam ente é falso. Não pensa ríamos que o inventor da m ecânica das ondas se enga nasse assim tanto. Não sei qual terá sido a origem do erro. E claro que poderíamos im aginar esta situação como tendo realmente acontecido; e trata-se de mais uma boa ilustração do género de coisa que Quine tem em mente.) O que dizer disto? Queria encontrar, do lado oposto, uma boa citação de Marcus neste livro, mas não estou a conseguir encontrá-la. Tendo estado presente nessa discussão, lembro-me47 que ela defendia a perspectiva de que, se o que temos são realm ente nomes, um bom dicionário deveria dizer-nos se têm a mesma referên cia. De modo que bastaria uma pessoa consultar o dicionário para saber que Héspero e Fósforo são o mesmo. Ora, isto não parece ser verdade. Mas, para muita gente, isso parece ser uma consequência da ideia de que as identidades entre nomes são necessárias. Por isso, a ideia de que as afirmações de identidade entre nomes são necessárias tem sido habitualm ente rejeitada. A conclusão de Russell foi algo diferente. Para ele, a questão de saber se dois nomes têm a mesma referência nunca poderia ser uma questão empírica. Isto não é satisfeito pelos nomes vulgares, mas é-o quando nomeamos os nossos próprios dados dos sen tidos, ou algo parecido. Dizemos: «Aqui, isto e aquilo 47 P. 115.
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(designando o mesmo dado dos sentidos com ambos os dem onstrativos).» Podemos então saber sem qual quer investigação empírica que estamos a nomear a mesma coisa duas vezes; as condições são satisfeitas. Uma vez que isto não se aplica aos casos vulgares de nomeação, os «nomes» vulgares não podem ser nomes genuínos. Que havemos de pensar disto? Em prim eiro lugar, é verdade que uma pessoa pode usar o nome «Cícero» para se referir a Cícero e o nome «Túlio» para se referir também a Cícero, sem saber que Cícero é Túlio. Parece então que não é necessário que saibamos a priori que uma afirmação de identidade entre nomes é verdadeira. Não se segue daqui que a afirmação assim expressa, no caso de ser verdadeira, seja contingente. Foi isso que enfatizei na primeira palestra. Existe um sentim ento muito forte que nos conduz a pensar que, se não pode mos saber uma coisa por raciocínio a priori, então tem de ser contingente — poderia ter sido diferente. Julgo, no entanto, que este sentim ento está errado. Suponhamos que nos referimos duas vezes ao mesmo corpo celeste, como «Héspero» e como «Fósforo». Dize mos: Héspero é aquela estrela ali à tarde; Fósforo é aquela estrela ali de manhã. Efectivam ente, Héspero é Fósforo. Existem realmente circunstâncias nas quais Héspero não teria sido Fósforo? Supondo que Héspero é Fósforo, tentemos descrever uma situação possível na qual não teria sido assim. Bem, é fácil. Uma pessoa passa e chama «Héspero» e «Fósforo» a duas estrelas diferentes. Pode até ser nas m esmas condições que se verificavam quando introduzimos os nomes «Héspero» e «Fósforo». Mas estas circunstâncias são circunstâncias nas quais Héspero não é Fósforo ou em que não teria sido Fósforo? Parece-me que não. É claro que estou obrigado a dizer que não são, a partir do m omento em que digo que term os como
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«Héspero» e «Fósforo» são, quando os usamos como nomes, designadores rígidos. Estes termos referem-se em todos os mundos possíveis ao planeta Vénus. Por isso, tam bém nesse mundo possível, o planeta Vénus é o planeta Vénus, e não importa o que qualquer outra pessoa tenha dito nesse outro m undo possível. Como é que nós devemos descrever esta situação? Aquela pessoa não pode ter apontado duas vezes para Vénus e, num caso, ter-lhe chamado «Héspero» e, no outro, «Fósforo», como nós fizemos. Se o tivesse feito, então «Héspero é Fósforo» também teria sido verdade nessa situação. Talvez não tenha apontado nenhum a das vezes para o planeta Vénus. Pelo menos numa das vezes não apontou para o planeta Vénus — digamos que foi quando apontou para o corpo a que chamou «Fósforo». Então, nesse caso, é óbvio que podemos dizer que o nome «Fósforo» poderia não ter referido Fósforo. Pode mos até dizer que, na exacta posição em que encontrá mos Fósforo quando o observám os de m anhã, poderia ter-se dado o caso de Fósforo não estar lá — estaria lá alguma outra coisa que, em certas circunstâncias, até poderia ter sido chamada «Fósforo». M esmo assim, não se trata de um caso em que Fósforo não é Héspero. Poderia haver um mundo possível no qual, ou uma possível situação contrafactual na qual, «Héspero» e «Fósforo» não fossem nomes das coisas de que de facto são nomes. Uma pessoa que determ inasse a sua refe rência por meio de descrições identificadoras pode ria até ter usado exactam ente as m esmas descrições identificadoras que nós. Ainda assim, isso não é um caso no qual Héspero não era Fósforo. Porque não poderia haver um tal caso, dado que Héspero é Fós foro. Isto parece muito estranho, porque, à partida, aqui lo que nos sentim os inclinados a dizer é que a resposta à questão de saber se Héspero é Fósforo tanto poderia
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ter sido «sim» como «não». Não existiam então real m ente dois mundos possíveis — um em que Héspero era Fósforo e outro em que Héspero não era Fósforo — antes de descobrirmos que eram o mesmo? Em pri meiro lugar, há um sentido no qual as coisas poderiam acontecer tanto de uma m aneira como de outra, e no qual é claro que isso não im plica que a m aneira como acabaram por acontecer não seja necessária. Por exem plo, o teorem a das quatro cores poderia ter-se revela do verdadeiro e poderia ter-se revelado falso. O resul tado tanto poderia ter sido um como o outro. Ainda assim, isso não quer dizer que aquilo que se acabou por provar não seja necessário. Como é óbvio, o «po deria» é aqui puram ente «epistém ico» — expressa apenas o nosso estado actual de ignorância ou de in certeza. Mas, no caso Héspero-Fósforo, parece que algo ain da mais forte é verdadeiro. Os dados que tenho antes de saber que Héspero é Fósforo são estes: vejo uma certa estrela ou um certo corpo celeste à tarde e cha mo-lhe «Héspero», e vejo um corpo celeste de manhã e cham o-lhe «Fósforo». Isto é o que eu sei. Existe com certeza um mundo possível no qual um hom em teria visto uma certa estrela numa certa posição à tarde e lhe teria chamado «Héspero», e teria visto uma certa estrela de manhã e lhe teria chamado «Fósforo»; e te ria concluído — teria descoberto por meio de investi gação empírica — que estava a nomear duas estrelas diferentes ou dois corpos celestes diferentes. Pelo menos uma destas estrelas ou um destes corpos celes tes não era Fósforo, caso contrário, as coisas não pode riam ter acontecido dessa m aneira. Mas é verdade. E por isso é verdade que, com os dados que uma pessoa tem antes de iniciar a sua investigação empírica, ela pode ser colocada exactamente na mesma situação num certo sentido, quer dizer, num a situação epistém ica
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qualitativamente idêntica, e chamar «Héspero» e «Fós foro» a dois corpos celestes, sem que eles sejam idên ticos. Por isso, nesse sentido, podemos dizer que as coisas poderiam ter acontecido tanto de uma maneira como de outra. Não é que pudessem ter acontecido de uma maneira ou de outra no que diz respeito a Héspero ser Fósforo. Embora, por tudo o que sabíamos à par tida, Héspero não fosse Fósforo, num certo sentido não poderíamos ter descoberto nada diferente do que des cobrimos. M as, se nos colocarm os numa situação em que tivéssemos exactam ente os m esm os dados (quali tativamente falando), poderia verificar-se que Héspero não era Fósforo; quer dizer, num mundo contrafactual em que «Héspero» e «Fósforo» não fossem usados da m aneira como os usam os, como nomes deste planeta, mas antes como nomes de certos outros objectos, po deríamos ter obtido dados qualitativam ente idênticos e ter concluído que «Héspero» e «Fósforo» nomeiam dois objectos diferentes48. M as, usando os nomes como agora usam os, podemos dizer antecipadam ente que, se Héspero e Fósforo são um e o m esmo, então não há nenhum outro m undo possível em que possam ser diferentes. Usamos «Héspero» como nome de um cer to corpo e «Fósforo» como nome de um certo corpo. Usam o-los como nomes destes corpos em todos os mundos possíveis. Se, de facto, eles são o mesmo corpo, então em qualquer outro mundo possível temos de usá-los com o nomes desse objecto. E, por isso, em qualquer outro m undo possível, será verdade que Héspero é Fósforo. Portanto, há duas coisas que são verdade: em primeiro lugar, que não sabemos a priori que Héspero é Fósforo e só de modo empírico é que 48 Na terceira palestra há uma discussão mais elaborada deste aspecto, na qual também é mencionada a sua relação com um certo género de teoria das contrapartes.
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podemos descobrir a resposta; em segundo lugar, que isto é assim porque nós poderíamos ter dados qualita tivamente indiscerníveis dos dados que temos e deter m inar a referência dos dois nomes pelas posições de dois planetas no céu, sem que os planetas fossem o mesmo. E claro que é apenas uma verdade contingente (ou seja, não é verdadeiro em todos os outros mundos possíveis) que a estrela que se vê ali à tarde seja a estrela que se vê ali de m anhã, porque existem m un dos possíveis em que Fósforo não é visível de manhã. Mas esta verdade contingente não deve ser identificada com a afirm ação de que Héspero é Fósforo. Elas só poderiam ser identificadas se pensássemos que era uma verdade necessária que Héspero seja visível ali à tarde ou que Fósforo seja visível ali de manhã. Mas nenhu ma destas verdades é necessária, mesmo que seja as sim que seleccionamos o planeta. Estas são as marcas contingentes pelas quais identificamos um certo pla neta e lhe damos um nome.
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Terceira palestra: 29 de Janeiro de 1970
Que resultados conseguimos até aqui alcançar, se é que conseguim os alguma coisa? Em prim eiro lugar, defendi que uma maneira muito comum de conceber como é que os nomes adquirem a sua referência, em geral, não se aplica. A referência de um nome não é geralm ente determ inada por certas marcas que identi ficam o objecto de modo único, por certas proprieda des que são satisfeitas unicam ente pelo referente e que o falante sabe ou acredita que são verdadeiras desse referente. Primeiro, as propriedades em que o falante acredita não têm de ser especificadoras de um objecto único. Segundo, mesmo quando o são, pode acontecer que não sejam unicam ente verdadeiras do referente que o falante tem efectivam ente em vista, mas sim de alguma outra coisa ou de nenhuma. E o que acontece quando o falante tem crenças erradas acerca de uma pessoa. Ele não tem crenças correctas acerca de outra
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pessoa, mas sim crenças erradas acerca de uma certa pessoa. N esses casos, a referência parece ser efectiva mente determinada pelo facto de o falante ser um mem bro de uma com unidade de falantes que usam o nome. O nome foi-lhe transm itido por tradição, passando de elo em elo. Em segundo lugar, defendi que, mesmo que nal guns casos especiais, nom eadam ente em casos de baptism o inicial, um referente seja determ inado por uma descrição, por alguma propriedade unicam ente identificadora, o que essa propriedade faz, em muitos casos de designação, não é fornecer um sinónim o, for necer algo que o nome abreviaria; o que a propriedade efectivam ente faz é fixar uma referência. Ela fixa a referência por meio de certas marcas contingentes do objecto. O nome que denota o objecto é então usado para nos referirmos a esse objecto, mesmo quando nos referimos a situações contrafactuais em que o objecto não tem as propriedades em questão. Demos o exem plo do metro. Por últim o, no final da palestra anterior abordámos as afirmações de identidade. As afirmações de identi dade deviam parecer muito simples, mas os filósofos acham-nas bastante enigmáticas. No meu próprio caso, não tenho a certeza de ter conseguido dissipar todas as confusões possíveis que esta relação pode gerar. Alguns filósofos acharam que a relação gera tantas confusões que a m odificaram. Há, por exemplo, quem pense que, se tem os dois nom es com o «Cícero» e «Túlio» e dizemos que Cícero é Túlio, não podemos estar realm ente a dizer, do objecto que é Cícero e tam bém Túlio, que ele é idêntico a si mesmo. Pelo contrá rio, «Cícero é Túlio» pode expressar uma descoberta empírica, como já dissemos. E por isso alguns filóso fos, incluindo até Frege num a fase inicial da sua obra, consideraram que a identidade seria uma relação en 170
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tre nomes. A identidade, dizem eles, não é a relação de um objecto consigo próprio, mas sim a relação que há entre dois nomes quando estes designam o mesmo objecto. Isto até na literatura mais recente aparece. Não trouxe o livro comigo, mas J. B. Rosser, o eminente lógico, escreve no seu livro Logic for M athem aticians49 que dize mos x - y se e somente se «x» e «y» são nomes do mesmo objecto. E com enta que a afirmação correspon dente acerca do próprio objecto, dizendo que não difere em nada dele próprio, é obviam ente trivial; e que por conseguinte é de presum ir que não será isso que que remos dizer. Mas este é um paradigma especialmente invulgar do que deveria ser a relação de identidade, uma vez que só muito raram ente se aplicaria. Que eu saiba, a não ser no m ovim ento nacionalista negro, nunca ninguém foi cham ado «x». Falando a sério, é claro que, na frase aberta «x = y», «x» e «y» não são nomes, são variáveis. E podem ocorrer com a identi dade como variáveis ligadas numa frase fechada. Se dizemos, para todo o x e y , s e x = y então y = x, ou algo parecido — nesta afirmação não ocorrem nomes, nem se diz nada acerca de nomes. A afirmação seria verda deira mesm o que a raça humana nunca tivesse exis tido ou, ainda que existisse, se o fenóm eno dos nomes nunca tivesse sido criado. Se há pessoas que se sentem inclinadas para esta concepção peculiar da identidade, suponhamos que lhes concedíamos a sua concepção. Suponhamos que a identidade era uma relação entre nomes da língua que estamos a usar. Vou agora introduzir uma relação ar tificial cham ada «schm identidade» (que não é uma palavra da nossa língua), estipulando que ela se dá 49 Nova Iorque: McGraw-Hill (1953), veja-se o capítulo VII, «Equality».
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entre um objecto e ele próprio50. A partir daqui, a questão de saber se Cícero é schm idêntico a Túlio já se pode colocar, e, se o fizerm os, teremos a respeito desta afirmação os mesmos problem as que antes, com a afir mação de identidade original, se pensava que origina vam a crença de que a identidade era uma relação entre nomes. Julgo que, se uma pessoa pensar seria mente sobre isto, verá que, por isso, provavelm ente a sua concepção original da identidade não era necessá ria, e provavelm ente não era possível, para os proble mas que originalm ente se queria resolver, e que, por isso, deve ser abandonada, e deve sim plesmente con siderar-se que a identidade é a relação de uma coisa consigo própria. Pode usar-se este género de procedi mento para diversos problemas filosóficos. Concluím os que uma afirmação de identidade entre nomes, quando é verdadeira, é necessariamente verda deira, ainda que possamos não a conhecer a priori. Suponhamos que identificamos Héspero como uma certa estrela observada à tarde e Fósforo como uma certa estrela, ou um certo corpo celeste, observado de manhã; então, pode haver mundos possíveis nos quais teriam sido observados dois planetas diferentes exactam ente nes sas posições à tarde e de manhã. Contudo, pelo menos
50 É claro que a manobra não convencerá um filósofo que queira defender que linguagens ou conceitos artificiais do tipo suposto são logicamente impossíveis. No caso aqui presente, alguns filóso fos julgaram que uma relação, sendo essencialmente binária, não pode dar-se entre uma coisa e ela própria. Esta posição é clara mente absurda. Uma pessoa pode ser a pior inimiga dela própria, a crítica mais severa dela própria e outras coisas parecidas. Algu mas relações —■como, por exemplo, a relação «não é mais rico que» — são reflexivas. A identidade ou a schmidentidade mais não é do que a mais pequena relação reflexiva. Espero desenvolver noutro lugar a utilidade desta operação de imaginar uma linguagem hipotética.
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um deles, e possivelm ente ambos, não teria sido Héspero e, então, essa não era uma situação na qual Héspero não seria Fósforo. Podia ser uma situação na qual o pla neta observado nesta posição à tarde não seria o planeta observado nesta posição de manhã; mas isso não é uma situação na qual Héspero não seria Fósforo. Também podia ser, se as pessoas dessem a esses planetas os nomes «Héspero» e «Fósforo», uma situação na qual um planeta diferente de Héspero seria chamado «Héspero». Mas, ainda assim, não era uma situação na qual o próprio Héspero não seria Fósforo51. Alguns dos problem as que têm preocupado as pes soas nestas situações provêm , como disse antes, de uma identificação ou, como eu diria, de uma confusão entre aquilo que, de antemão, podemos saber a priori e aquilo que é necessário. Certas afirmações — e a afirmação de identidade é para mim um caso para digmático dessas afirmações — , se forem verdadeiras, terão de ser necessariamente verdadeiras. Sabemos a priori, por análise filosófica, que se uma frase de iden tidade dessas é verdadeira, então é necessariamente verdadeira. Uma precisão: quando digo que «Héspero é Fósforo» é necessariamente verdadeira, é claro que não quero negar que poderia haver situações nas quais não exis tisse de todo um planeta como Vénus e, portanto, nem Héspero nem Fósforo. Nesse caso, colocar-se-ia a ques tão de saber se a afirmação de identidade «Héspero é
51 Recordemos que é na nossa linguagem que descrevemos a situação, e não na linguagem que as pessoas nessa situação teriam usado. Por isso, temos de usar os termos «Héspero» e «Fósforo» com a referência que têm no mundo actual. O facto de as pessoas nessa situação poderem ou não ter usado estes nomes para planetas diferen tes é irrelevante. Como é irrelevante o facto de poderem tê-lo feito usando as mesmas descrições que nós para fixar as suas referências.
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Fósforo» seria verdadeira, falsa ou nem verdadeira nem falsa52. E se escolhermos a últim a opção, será «Hés pero = Fósforo» necessária, uma vez que nunca é falsa, ou devemos exigir que uma verdade necessária seja verdadeira em todos os m undos possíveis? Vou deixar estes problemas com pletam ente fora das minhas consi derações. Se quisermos ser mais cuidadosos, podemos substituir a afirmação «FIéspero é Fósforo» pela condi cional «Se Héspero existe, então Héspero é Fósforo» e, cautelosam ente, considerar que só esta é que é neces sária. Infelizmente, esta condicional coloca-nos o pro blema das atribuições singulares de existência, que não posso aqui discutir. Em particular, os filósofos que nutrem sim patia pela teoria descritivista dos nomes defendem m uitas vezes que nunca podemos dizer de um objecto que ele existe. Na sua perspectiva, uma putativa afirmação acerca da existência de um objecto é, na realidade, uma afirmação sobre se uma certa des crição ou propriedade é satisfeita. Como já disse, não concordo com isto. De qualquer m odo, não posso mesmo abordar aqui os problem as da existência. Gostaria agora de assinalar que outras considera ções a respeito da modalidade de re, sobre um objecto ter propriedades essenciais, só podem ser correcta mente encaradas, julgo eu, se reconhecermos a distin ção entre aprioridade e necessidade. Pode muito bem descobrir-se a essência empiricamente. Num artigo de Timothy Sprigge encontram-se alguns exemplos de alegadas propriedades essenciais. O internalista [quer dizer, o indivíduo que acredita que existem propriedades essenciais] diz que a rainha tem de ter sangue real. [Ele quer dizer que esta pessoa tem de ter sangue real.] O anti-essencialista diz que se um 52 Existem as mesmas três opções para «Héspero é Héspero» e a resposta tem de ser a mesma que no caso de «Héspero é Fósforo».
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boletim informativo assegurasse que se provou que a rainha não é de facto filha dos seus supostos pais, mas foi secretamente adoptada por eles, não haveria nenhu ma contradição nisso e, portanto, a proposição de que ela tem sangue real é sintética... Por agora [o anti-essencialista] tomou a dianteira. Porém, chega uma altura em que as suas teses parecem ninharias demasiado rebuscadas. O internalista sugere que não é possível imaginarmos esse ser particular a quem chamamos rainha a ter a propriedade de não ser humana em nenhuma etapa da sua existência. Se o anti-internalista aceita isto, ou seja, se aceita que é logicamente inconcebível que a rainha tivesse a propriedade de (por exemplo) ser sempre um cisne, então aceita que ela tem pelo menos uma propriedade interna. Se, por outro lado, ele diz que o facto de a rainha ser um ser humano é apenas um facto contingente, então diz algo que dificil mente se aceita. Podemos realmente considerar concebí vel que ela nunca tivesse sido humana?53 «Em nenhuma etapa da sua existência» e «sempre» são justificações que Sprigge introduz, ao que parece, para perm itir possibilidades como ela ser agora trans formada num cisne — por uma bruxa má, suponho. (Ou por uma bruxa benevolente.) Uma das confusões que encontro nesta discussão é que, no primeiro caso, Sprigge fala sobre se haveria alguma contradição em supor-se que teria havido um anúncio de que a rainha nasceu de pais diferentes dos que efectivam ente teve. E nisso não há qualquer con tradição. Do mesmo m odo, porém, não há qualquer contradição num anúncio de que a rainha, esta coisa que pensávam os ser uma mulher, seria de facto um anjo com forma hum ana ou um autóm ato astutamente 53 «Internai and External Properties», Mind, 71, Abril de 1962, pp. 202-203.
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construído pela família real, que não queria que o suces sor fosse esse bastardo tal e tal, ou algo do género. Nenhum destes anúncios representa coisas que não pudéssemos descobrir. O que é que estamos a pergun tar quando perguntamos, a respeito desta mulher, se é necessário que ela tenha sangue real ou que seja hu mana? A questão do sangue real é um pouco com pli cada, porque para que seja necessário que ela tenha sangue real tem de ser necessário que num certo mo mento esta linha particular da família alcançasse o poder real; mas este últim o facto parece ser contingen te. Portanto, suponho que é contingente que o seu san gue tenha chegado a ser sangue real. Tentemos refinar um pouco a questão. A questão deveria na realidade ser a seguinte: poderia a rainha — esta m esm a mulher — ter tido pais diferentes da queles que efectivam ente teve? Poderia ela, por exem plo, ter sido filha do Sr. e da Sr.a Truman? É claro que, por m ais fantástico que tal pudesse parecer, não have ria contradição num anúncio de que (espero que isto não seja impossível por causa das idades) ela seria de facto filha do Sr. e da Sr.a Truman. Suponho que até poderia não haver contradição na descoberta de que — parece de qualquer modo m uito suspeito que em ambas as hipóteses ela tenha uma irmã chamada M ar garida — as duas M argaridas fossem uma e a mesma pessoa que vai e vem habilm ente de um lugar para o outro. Em todo o caso, podem os imaginar que desco bríamos todas estas coisas. Mas suponhamos que nada disso foi de facto des coberto. Suponhamos que a rainha realmente proveio destes pais. Para não entrarm os aqui em dem asiadas complicações sobre o que são pais, suponham os que os pais são as pessoas de cujos tecidos corporais provieram o esperm atozóide e o óvulo biológicos. Livramo-nos assim de possibilidades rebuscadas como
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os transplantes de esperma do pai, ou do óvulo da mãe, para outros corpos, de tal modo que num certo sentido outras pessoas poderiam ter sido seus pais. Se isso acontecesse, num outro sentido os seus pais seriam ainda o rei e a rainha originais. Mas, fora isso, pode mos im aginar uma situação na qual tivesse acontecido que esta mesma mulher teria provindo do Sr. e da Sr.a Truman? Eles poderiam ter tido uma filha parecida com ela em muitas das suas propriedades. Talvez até, nalgum mundo possível, o Sr. e a Sr.a Truman tiveram uma filha que efectivam ente se tornou rainha de In glaterra e que até passou por ser a filha de outros pais. Isto ainda não seria uma situação na qual esta mesma mulher a que chamamos «Isabel II» fosse filha do Sr. e da Sr.'1Truman — pelo menos é o que me parece. Seria uma situação na qual havia uma outra mulher que tinha muitas das propriedades que são de facto verda deiras de Isabel. E podemos aqui colocar uma questão: neste mundo possível, terá a própria Isabel chegado a nascer? Suponhamos que não nasceu. Seria então uma situação na qual, apesar de Truman e a sua mulher terem uma filha com m uitas das propriedades de Isa bel, a própria Isabel não existia de todo. Só reflectindo sobre a maneira como descreveríamos a situação é que podemos convencer-nos disto. (Suponho que em m ui tos casos isso quer dizer que não irei convencer-vos disto, pelo menos para já. Mas é algo de que pessoal m ente estou convencido.) Como é que uma pessoa originada por pais diferen tes, a partir de um esperm atozóide e de um óvulo completamente diferentes, poderia ser esta mesma mu lher? Podem os imaginar, dada a mulher, que várias coisas na sua vida poderiam ter mudado: ele poderia ter-se tornado pobre; o seu sangue real poderia ter perm anecido desconhecido, e assim por diante. Diga mos que há uma história prévia do m undo que nos é 177
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dada até um certo momento e que, daí em diante, ela diverge consideravelm ente do seu curso efectivo. Isto parece possível. E por isso é possível que, apesar de ter provindo destes pais, ela nunca tenha sido rainha. Apesar de ter provindo destes pais, foi, como a perso nagem de M ark Twain54, trocada por outra rapariga. O que é m ais difícil de im aginar é ela ter provindo de pais diferentes. Parece-me que qualquer coisa que te nha uma origem diferente não seria este objecto. No caso desta m esa55, podemos não saber de que pedaço de madeira a mesa proveio. Ora, poderia esta mesa ter sido feita de um pedaço de madeira com ple tamente diferente, ou até m esm o de água engenhosa mente endurecida e transform ada em gelo — água retirada do rio Tamisa? E concebível que pudéssemos descobrir que, contrariam ente ao que agora julgam os, esta mesa é de facto feita de gelo proveniente do rio. M as suponhamos que não é. Então, apesar de poder mos im aginar uma m esa feita de outro pedaço de madeira ou até feita de gelo, com a mesma aparência que esta, e apesar de poderm os tê-la colocado nesta mesma posição na sala, parece-m e que isto não é im a ginar esta mesa feita de m adeira ou de gelo, mas sim im aginar outra mesa, semelhante a esta em todos os porm enores exteriores, feita de outro pedaço de ma deira, ou até de gelo.56, 57 54 Em O Príncipe e o Pobre. 55 E claro que estava a apontar para uma mesa de madeira na sala. 5b Estes exemplos sugerem um princípio: se um objecto material
tem a sua origem num certo pedaço de matéria, não poderia ter tido a sua origem em nenhuma outra matéria. É possível que tenham de ser formuladas algumas restrições (por exemplo, a vagueza da noção de pedaço de matéria acarreta alguns problemas), mas, num vasto conjunto de casos, o princípio talvez seja susceptível de algo pare cido com uma demonstração, usando o princípio da necessidade
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da identidade para particulares. Seja «B» um nome (designador rígido) de uma mesa e suponhamos que «A» nomeia o pedaço de madeira de que efectivamente foi feita. Suponhamos que «C» no meia outro pedaço de madeira. Então suponhamos que B era feita de A, como acontece no mundo actual, mas que simultaneamente uma outra mesa D também era feita de C. (Supomos que não há nenhuma relação entre A e C que faça a possibilidade de fazer uma mesa com um depender da possibilidade de fazer uma mesa com o outro.) Ora, nesta situação, B ■£ D; por isso, mesmo que só D tivesse sido feita, e que nenhuma mesa tivesse sido feita a partir de A, D não seria B. Rigorosamente falando, a «demonstração» usa a necessidade da diferença, e não da identidade. Contudo, os géneros de considerações que podem ser usados para estabelecer a última podem também ser usados para estabelecer a primeira. (Suponhamos que Y ; s e X e Y fossem ambos idênticos a algum objecto Z noutro mundo possível, então X = Z, Y = Z e, portanto, X = Y.) Em alternativa, o princípio segue-se da necessidade da identidade juntamente com o axioma «Brouwersche» ou, equiva lentemente, da simetria da relação de acessibilidade entre mundos possíveis. Em todo o caso, o argumento só se aplica se o facto de D ser feito de C não afectar a possibilidade de B ser feito de A, e vice-versa. 57 Além do princípio de que a origem de um objecto lhe é essen cial, os exemplos sugerem outro princípio, segundo o qual a subs tância de que é feito é essencial. Existem aqui várias complicações. Em primeiro lugar, não devemos confundir o género de essência que está envolvida na questão: «Que propriedades tem um objecto de manter para não deixar de existir e que propriedades do objecto podem mudar enquanto o objecto permanece?», que é uma ques tão temporal, com a questão: «Que propriedades (atemporais) é que o objecto não poderia não ter e que propriedades poderia ele não ter sem deixar por isso de existir (atemporalmente)?», que diz respeito à necessidade, e não ao tempo, e que constitui aqui o nosso problema. Assim, a questão de saber se a mesa se poderia ter transformado em gelo é aqui irrelevante. A questão de saber se originalmente a mesa poderia ter sido feita de qualquer coisa que não fosse madeira é relevante. Esta questão está obviamente rela cionada com a necessidade de que a mesa tenha tido origem num dado bloco de madeira e, também, com a questão de saber se esse bloco é essencialmente madeira (e até madeira de uma espécie particular). Assim, geralmente é impossível imaginar a mesa feita de qualquer outra substância diferente daquela de que efectiva-
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Isto são apenas exemplos de propriedades essen ciais58. Não insistirei mais neles, porque quero avançar para o caso mais geral, que m encionei na últim a palesmente é feita sem percorrer mentalmente toda a história do Uni verso, uma proeza difícil de conceber. (Já me sugeriram outras possibilidades de a mesa não ter sido originalmente de madeira, incluindo uma sugestão engenhosa de Slote, mas não acho nenhu ma delas realmente convincente. Não posso discuti-las aqui.) Não é possível incluir aqui uma discussão completa dos problemas das propriedades essenciais dos objectos particulares, mas vou mencio nar mais uns quantos aspectos: (1) Em geral, quando perguntamos intuitivamente se uma coisa poderia ter acontecido a um dado objecto, perguntamos se o Universo poderia ter seguido o curso que efectivamente seguiu até um certo momento, mas divergido na sua história a partir desse ponto, de tal modo que as vicissi tudes desse objecto teriam sido diferentes desse momento em diante. Talvez devêssemos elevar esta característica a um princípio geral acerca da essência. Reparem que o momento em que a diver gência da história efectiva ocorre pode ser anterior ao momento em que o próprio objecto é efectivamente criado. Por exemplo, eu poderia ter sido deformado, se o óvulo fertilizado que me deu origem tivesse sido danificado de certas maneiras, mesmo que seja de supor que eu ainda não existia nesse momento. (2) Não estou a sugerir que só a origem e a constituição substancial é que são essenciais. Por exemplo, se o mesmo bloco de madeira de que foi feita a mesa tivesse antes sido transformado num vaso, a mesa nunca teria existido. Portanto, (digamos que) ser uma mesa parece ser uma propriedade essencial da mesa. (3) Do mesmo modo que a questão de saber se um objecto efectivamente tem uma certa pro priedade (e.g., ser careca) pode ser vaga, a questão de saber se o objecto tem essencialmente uma certa propriedade também pode ser vaga, mesmo quando a questão de saber se ele efectivamente tem a propriedade está decidida. (4) No discurso corrente parecem existir alguns contra-exemplos ao princípio da origem. Estou con vencido de que não são contra-exemplos genuínos, mas a sua análise exacta é difícil. Não posso discutir isto aqui. 58 Peter Geach defendeu (in Mental Acts, Londres: Routledge and Kegan Paul, 1957, Secção 16 e noutros lugares) uma noção de «essência nominal» diferente do tipo de propriedade essencial que consideramos aqui. Segundo Geach, uma vez que qualquer acto de
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apontar é ambíguo, alguém que baptize um objecto apontando para ele terá de aplicar uma propriedade categorial de modo a desfazer a ambiguidade quanto à sua referência e assegurar critérios cor rectos de identidade ao longo do tempo — por exemplo, alguém que atribua uma referência a «Nixon» apontando para ele tem de dizer: «Estou a usar 'Nixon' como um nome deste homem», removendo assim as tentações que o seu ouvinte tenha de pensar que ele está a apontar para um nariz ou para um intervalo de tempo. A proprie dade categorial faz então, num certo sentido, parte do significado do nome; afinal os nomes têm mesmo um sentido (parcial), embora os seus sentidos possam não ser suficientemente completos para determinar as suas referências, como são na teoria descritivista e na teoria do feixe de descrições. Se bem compreendo Geach, a sua essência nominal deve ser entendida em termos de aprioridade, e não de necessidade, e é por isso bastante diferente do género de essência aqui defendido (talvez isto faça parte do que ele quer dizer quando afirma que está a tratar de essências «nominais», e não de essências «reais»). Portanto, «Nixon é um homem», «Dobbin é um cavalo», e outras coisas do género seriam verdades a priori. Não preciso de tomar aqui uma posição acerca desta perspec tiva. Mas gostaria de mencionar brevemente o seguinte: (1) Mesmo que se use um termo categorial para desfazer a ambiguidade quanto a uma referência ostensiva, não é seguramente preciso que a priori o consideremos verdadeiro do objecto designado. Não poderia acabar por se revelar que Dobbin pertence a uma espécie que não é a dos cavalos (embora superficialmente parecesse um cavalo), que Héspero é um planeta, e não uma estrela, ou que os convidados de Lot, mesmo que ele os nomeie, são anjos e não homens? Talvez Geach se deva restringir a termos categoriais menos problemáti cos. (2) Pondo de lado a objecção apresentada em (1), há segura mente um hiato substancial entre premissa e conclusão. São pou cos os falantes que de facto aprendem a referência de um dado nome por ostensão; e, mesmo que o nome tenha chegado até eles por meio de uma cadeia de comunicação com origem numa ostensão, porque deveria o termo categorial alegadamente usado na ostensão fazer para eles, nalgum sentido, parte do «sentido» do nome? Nenhum argumento é aqui apresentado. (Um caso extremo: a mulher de um matemático ouve por acaso o marido a murmurar o nome «Nancy». Fica a pensar se Nancy, aquilo a que o marido se referiu, é uma mulher ou um grupo de Lie. Porque é que o seu uso de «Nancy» não é um caso de nomeação? Se não for, isso não se deve à indefinição da sua referência.)
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tra, de certas identidades entre termos para substâncias, assim com o das propriedades das substâncias e das espécies naturais. Como disse, os filósofos têm -se inte ressado m uito pelas afirm ações que expressam identi ficações teóricas; por exemplo, a afirmação de que a luz é um feixe de fotões, de que a água é H ,0 , de que os relâm pagos são descargas eléctricas, de que o ouro é o elemento que tem o número atómico 79. Para esclarecerm os o estatuto destas afirm ações, talvez tenham os de com eçar por pensar um pouco sobre o estatuto de substâncias como o ouro. O que é o ouro? Não sei se este é daqueles exemplos por que os filósofos se têm interessado especialmente. O seu interesse nos meios financeiros está a dim inuir devido à crescente estabilidade das m oedas59. Ainda assim, o ouro tem interessado muita gente. Está aqui o que Im m anuel K ant diz acerca do ouro. (Kant foi um especulador abastado que guardava o que tinha de baixo do colchão.) Quando introduz a distinção entre juízos analíticos e sintéticos, diz: «Todos os juízos analíticos dependem inteiram ente da lei da contradi ção e são, pela sua natureza, cognições a priori, quer os conceitos que lhes fornecem m atéria sejam empíricos ou não sejam. Pois o predicado de um juízo analítico afirmativo já está contido no conceito do sujeito, do qual não pode ser negado sem contradição. [...] Por esta razão precisa, todos os juízos analíticos são a priori mesmo quando os conceitos são empíricos, como, por exemplo, em 'O ouro é um m etal am arelo'; pois para saber isto não preciso de qualquer experiência para além do meu conceito de ouro como um m etal am are lo. E de facto esse o conceito, e só preciso de o analisar 59 Posso ter falado cedo demais. Isso era o que diziam algumas páginas financeiras quando estas palestras foram proferidas, em Janeiro de 1970.
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sem olhar para além dele60.» Devia ter consultado o texto alemão. «É de facto esse o conceito» soa como se Kant estivesse aqui a dizer que «ouro» significa sim plesm ente «metal amarelo». Se é isso que ele está a dizer, então é especialmente estranho; vamos portanto supor que não é isso que ele está a dizer. Pelo menos Kant julga que faz parte do conceito que o ouro seja um m etal amarelo. Julga que sabemos isto a priori e que não seria possível que um dia descobríssem os que isto é em piricam ente falso. Tem Kant razão acerca disto? Em primeiro lugar, o que eu gostaria de ter feito seria discutir a parte a respeito de o ouro ser um metal. Isto, no entanto, é complicâdo, porque, para começar, não sei muito de química. Ao investigar isto há uns dias num ou dois livros, descobri numa discussão mais fenomenológica dos m etais a afirmação de que é muito difícil dizer o que é um metal. (Fala-se de m aleabilidade, ductilidade e coisas p arecid as, m as nenhum a delas funciona exactamente.) Por outro lado, um texto que li sobre a tabela periódica dava uma descrição dos elementos que são metais em termos das suas valências. Isto pode levar algumas pessoas a pensar logo que há, na reali dade, dois conceitos de m etal aqui em jogo, um con ceito fenom enológico e um conceito científico que depois o substitui. Rejeito esta ideia. Mas uma vez que a manobra parecerá tentadora a muita gente, e que só poderei refutá-la depois de ter desenvolvido as minhas próprias teses, não será adequado usar «O ouro é um metal» como exemplo para introduzir essas teses.
60 Prolegómenos a Toda a Metafísica Futura, Preâmbulo, Secção 2.b. (edição da Academia Prussiana, p. 267). A impressão que tinha da passagem não se modificou quando, mais tarde, consultei rapi damente o texto alemão, embora eu não possa reclamar qualquer competência séria nesta matéria.
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Mas considerem os algo mais fácil: a questão da cor amarela do ouro. Poderíamos descobrir que o ouro, de facto, não é amarelo? Suponhamos que im perava uma ilusão óptica, causada por propriedades peculiares da atmosfera na África do Sul, na Rússia e em certas outras áreas onde há muitas minas de ouro. Suponhamos que havia uma ilusão óptica que fazia a substância parecer amarela; mas que, de facto, quando as propriedades peculiares da atmosfera eram removidas, víam os que efectivam ente é azul. Talvez até um demónio tivesse corrompido a visão de todos os que entram nas minas de ouro (obviamente, as suas almas já estavam corrom pidas) e assim tê-los-ia feito acreditar que esta subs tância é amarela, apesar de o não ser. Haveria, com base nisso, uma notícia nos jornais: «Provou-se que afinal não há ouro. O ouro não existe. O que julgáva mos ser ouro não é de facto ouro»? Im aginem só a crise financeira m undial nestas condições! Aqui temos uma fonte, nunca antes sonhada, de instabilidade no sistema monetário. Parece-me que não haveria uma notícia assim. Pelo contrário, seria noticiado que, apesar de parecer que o ouro é amarelo, de facto provou-se que o ouro não é amarelo, mas sim azul. A razão disso, julgo eu, reside no facto de usarmos a palavra «ouro» como um termo para uma certa espécie de coisa. Outras pessoas descobriram esta espécie de coisa e nós ouvimos falar disso. Na medida em que fazemos parte de uma comunidade de falantes, há por isso uma certa relação entre nós próprios e uma certa espécie de coisa. Julga-se que a espécie de coisa tem certas marcas identificadoras. Algumas destas marcas podem não ser realmente verdadeiras do ouro. Poderíamos descobrir que estamos enganados a seu res peito. Além disso, poderia haver uma substância que tivesse todas as marcas identificadoras que geralmente atribuímos ao ouro e que inicialmente usávamos para o 184
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identificar, mas que não fosse a mesma espécie de coisa, que não fosse a mesma substância. Acerca dessa coisa, diríamos que, apesar de ter todas as aparências que ini cialmente usávamos para identificar o ouro, não é ouro. A pirite de ferro, também chamada ouro dos tolos, é um exemplo bem conhecido. Não é outra espécie de ouro. É uma coisa completamente diferente, que, para um leigo, parece exactamente igual à substância que descobrimos e a que chamámos ouro. Podemos dizer isto, não porque tenhamos modificado o significado do termo ouro e in cluído nele alguns outros critérios que distinguem o ouro da pirite. Parece-me que isso não é verdade. Pelo contrá rio, descobrimos que certas propriedades eram verdadei ras do ouro, além das marcas identificadoras iniciais por meio das quais o identificámos. Estas propriedades, por serem características do ouro e por não serem verdadei ras da pirite de ferro, mostram então que o ouro falso não é de facto ouro. Devíamos ver isto noutro exemplo. Está algures aqui escrito61: «Digo: 'A palavra "tigre" tem significado na nossa língua.' [...] Se depois me perguntarem 'O que é um tigre?', posso responder: 'Um tigre é um felino grande, quadrúpede, carnívoro, de cor amarelo-torrada, com riscas pretas transversais e barriga branca' (baseado na entrada 'tigre' do Shorter Oxford English Dictionary).» Suponham agora que alguém diz: «Apenas disseste o que a palavra 'tigre' significa na nossa língua.» E que Ziff pergunta: «Será mesmo isso?», ripostando, e bem, «Acho que não.» O exemplo dele é: «Suponham que, numa clareira no meio da floresta, alguém diz: 'Olha, um tigre com três pernas!' Terá essa pessoa de estar a fazer confusão? A expressão 'um tigre com três per nas' não é uma contradictio in adjecto. M as se 'tigre' sig61 Paul Ziff, Semantic Analysis, Ithaca: Cornell University Press, 1960, pp. 184-185.
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nificasse, entre outras coisas, quadrúpede, a expressão 'um tigre com três pernas' só poderia ser uma contradictio in adjecto.» Portanto, o seu exemplo m ostra que, se o facto de um tigre ter quatro pernas fizesse parte do conceito de tigre, não poderia haver um tigre com três pernas. Este é o género de caso que m uitos filósofos tendem a explicar como um «conceito-feixe». Podemos ir ainda m ais longe: será uma contradição supor que descobríamos que os tigres nunca têm quatro pernas? Suponhamos que os exploradores que atribuíram estas propriedades aos tigres foram vítimas de uma ilusão óptica, e que os animais que observaram pertenciam a uma espécie com três pernas, diríamos então que se provou que afinal não existem tigres? Julgo que diría mos que, apesar da ilusão óptica que enganou os explo radores, os tigres de facto têm três pernas. Além disso, será verdade que qualquer coisa que satisfaça esta descrição do dicionário é necessariamente um tigre? Parece-me que não é. Suponhamos que des cobríam os um animal que, apesar de ter todas as apa rências exteriores de um tigre que aqui descrevemos, tinha uma estrutura interna com pletam ente diferente de um tigre. Efectivamente, a palavra «felino» foi aqui incluída e, por isso, o que vou dizer não é inteiramente justo. Suponhamos, ao considerar este exemplo, que essa palavra não tinha sido usada. Em todo o caso, o facto de um tigre pertencer a uma qualquer família biológica particular é algo que descobrimos. Se «felino» significa apenas que tem a aparência de um gato, su ponham os que tem realm ente a aparência de um gato grande. Poderíam os descobrir animais nalgum a parte do mundo, a respeito dos quais, apesar de parecerem exactam ente iguais a um tigre, se descobria após exa me que não eram sequer mamíferos. Digamos que eram de facto répteis com um aspecto muito peculiar. Será que então concluímos, com base nesta descrição, que 186
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alguns tigres são répteis? Não. Concluiríam os antes que estes animais, apesar de terem as marcas exterio res por meio das quais originalm ente identificámos os tigres, não são de facto tigres, uma vez que não são da mesma espécie a que chamamos «a espécie dos tigres». Ora, isto, julgo eu, não é porque, como diriam algumas pessoas, o velho conceito de tigre tivesse sido substi tuído por uma nova definição científica. Julgo que isto é verdade do conceito de tigre antes de se ter estudado a estrutura interna dos tigres. Ainda que não conheça mos a estrutura interna dos tigres, supomos — e supo nhamos que bem — que os tigres form am uma certa espécie natural. Podemos então im aginar que haveria uma criatura que, apesar de ter todas as aparências exteriores dos tigres, seria internam ente diferente de les o suficiente para dizerm os que não é a mesma es pécie de coisa. Podemos imaginá-la sem sabermos nada da sua estrutura interna — sem sabermos qual é esta estrutura interna. Podemos antecipadamente dizer que usamos o termo «tigre» para designar uma espécie e que qualquer coisa que não seja desta espécie, mesmo que se pareça com um tigre, não é de facto um tigre. Do mesmo modo que uma coisa pode ter todas as propriedades por meio das quais identificámos original mente os tigres e, no entanto, não ser um tigre, também poderíamos descobrir que os tigres não tinham nenhuma das propriedades por meio das quais originalmente os identificámos. Talvez nenhum seja quadrúpede, nenhum seja amarelo-torrado, nenhum seja carnívoro, e assim por diante; provou-se que, afinal, todas estas propriedades estavam baseadas em ilusões ópticas ou noutros erros, como no caso do ouro. Portanto, o termo «tigre», tal como o termo «ouro», não indica um «conceito-feixe» no qual a maioria (mas talvez não a totalidade) das propriedades usadas para identificar a espécie teriam de ser satisfeitas. Pelo contrário, a posse da maioria destas propriedades 187
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não tem de ser uma condição, nem necessária nem sufi ciente, da pertença à espécie. Uma vez que descobrimos que os tigres, tal como sus peitávamos, formam realmente uma só espécie, então qualquer coisa que não seja desta espécie não é um tigre. E claro que podemos estar enganados quando supomos que existe uma tal espécie. À partida, supomos que eles provavelmente formam uma espécie. A experiência pas sada mostrou-nos que, habitualmente, coisas como esta, que vivem juntas, que têm o mesmo aspecto, que acasa lam entre si, formam de facto uma espécie. Se houver duas espécies de tigres, que têm algo a ver uns com os outros, mas não tanto como julgávamos, então é possível que formem uma família biológica maior. Se não tiverem absolutamente nada a ver uns com os outros, então há realmente duas espécies de tigres. Tudo isto depende da história e do que efectivamente se descobrir. O filósofo que me parece que m ais reconheceu este tipo de considerações é Putnam (as nossas maneiras de pensar sobre estes assuntos desenvolveram -se de modo independente). Num artigo intitulado «It A in't Necessarily So»62, Putnam diz que as afirmações sobre espécies são «menos necessárias» (como cautelosamen-
62 Journal of Philosophy, 59, n.° 22, 25 de Outubro de 1962, pp. 658-671. Em trabalhos posteriores sobre espécies naturais e propriedades físicas, que não tinha tido a oportunidade de ver na altura em que isto foi escrito, Putnam aprofundou estas matérias e chegou a conclusões que (acho que) possuem muitos pontos de contacto com o ponto de vista que aqui expressei. Como mencionei no texto, há algumas divergências entre a abordagem de Putnam e a minha; Putnam não apoia as suas considerações no aparato das verdades necessárias versus verdades a priori que eu invoco. No seu artigo anterior, «The Analytic and the Synthetic», Minnesota Studies in the Philosophy o f Science, vol. III, pp. 358-397, parece estar mais próximo da teoria do «conceito-feixe» nalguns aspectos, su gerindo, por exemplo, que se aplica aos nomes próprios.
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te afirma) do que as afirmações como «os solteiros não são casados». O exemplo que dá é «os gatos são ani mais». Poderíamos descobrir que os gatos são autóma tos, ou dem ónios estranhos (o exemplo não é dele) introduzidos por um mágico. Suponhamos que desco bríamos que os gatos são uma espécie de demónios. Então, na sua perspectiva, e julgo que tam bém na minha, inclinam o-nos para dizer, não que descobri mos que não existem gatos, mas que descobrimos que os gatos, ao contrário do que originalm ente supúnha mos, não são animais. O conceito original de gato é: esta espécie de coisa, em que a espécie pode ser iden tificada por meio de exemplares paradigmáticos. Não é algo que seja seleccionado por uma definição quali tativa de dicionário. Contudo, Putnam conclui que as afirmações do género de «os gatos são animais» são «menos necessárias» do que as afirmações do género de «os solteiros não são casados». Não tenho dúvidas em concordar que o argumento indica que tais afirma ções não são conhecidas a priori e que, portanto, não são analíticas63; a questão de saber se uma dada classe Devo sublinhar novamente que foi um exemplo de Roger Albritton que chamou a minha atenção para este complexo de problemas, embora julgue que provavelmente Albritton não acei taria as teorias que desenvolvi com base nesse exemplo. 63 Estou a pressupor que uma verdade analítica é uma verdade que depende de significados em sentido estrito e que, portanto, é necessária e a priori. Se contarmos como analíticas as afirmações cuja verdade a priori se conhece por via da fixação de uma referên cia, então algumas verdades analíticas são contingentes; esta pos sibilidade está excluída na noção cie analiticidade aqui adoptada. A ambiguidade que existe na noção de analiticidade advém, com certeza, da ambiguidade com que habitualmente se usam termos como «definição» e «sentido». Nestas palestras não tentei lidar com os problemas delicados que dizem respeito à analiticidade, mas direi que alguns dos casos (embora não sejam todos) frequen temente aduzidos para desacreditar a distinção analítico-sintético,
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é uma espécie de animais é algo que precisa de ser investigado empiricamente. Talvez seja este sentido epistem ológico que Putnam tem em vista quando usa o termo «necessário». Perm anece em aberto a questão de saber se tais afirmações são necessárias no sentido não-epistem ológico defendido nestas palestras. Assim, o que devemos investigar a seguir é (usando o concei to de necessidade de que falei): as afirmações do género de «os gatos são animais», ou do género de «o ouro é um m etal am arelo», são necessárias? Até aqui tenho estado apenas a falar do que pode ríamos descobrir. Tenho estado a dizer que podería mos descobrir que o ouro, contrariam ente ao que ju l gávamos, não é de facto amarelo. Se analisássemos o conceito de m etal com m aior pormenor, por exemplo em termos de valências, poderíam os sem dúvida des cobrir que, apesar de considerarm os o ouro um metal, o ouro não é de facto um metal. É necessário ou con tingente que o ouro seja um metal? Não quero entrar em porm enores sobre o conceito de m etal — como disse, não sei o suficiente do assunto. Ao que parece, o ouro tem o número atómico 79. Ter o número atómico 79 é uma propriedade necessária ou contingente do ouro? Não há dúvida de que poderíamos descobrir que estávamos enganados. A teoria dos protões, dos núm e ros atómicos, a teoria da estrutura molecular e da estru tura atóm ica, em que tais ideias se baseiam , poderia vir a revelar-se toda falsa. N ão há dúvida de que não a conhecemos desde tempos imemoriais. Nesse sentido,
em especial os que envolvem fenómenos naturais e espécies natu rais, devem ser tratados em termos do aparato aqui invocado, de fixar uma referência. Repare-se que o exemplo de Kant, «o ouro é um metal amarelo», não é sequer a priori e, qualquer que seja a sua necessidade, é a investigação científica que a estabelece; está por isso longe de ser analítico, em qualquer dos sentidos.
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por isso, poderíamos descobrir que o ouro não tem o número atómico 79. Dado que de facto o ouro tem o número atómico 79, poderia uma coisa ser ouro sem ter o número atómico 79? Suponhamos que os cientistas investigaram a na tureza do ouro e descobriram que o ter o número atómico 79 faz parte, por assim dizer, da própria na tureza desta substância. Suponhamos agora que des cobrimos um outro metal amarelo, ou uma outra coisa amarela, com todas as propriedades que usámos origi nalmente para identificar o ouro e com muitas das propriedades adicionais que viem os a descobrir mais tarde. A pirite de ferro, ou o «ouro dos tolos», é um exemplo de uma coisa com muitas das propriedades iniciais. Como eu disse, não diríamos que esta substân cia é ouro. Até aqui estamos a falar do mundo actual. Considerem os agora um mundo possível. Considere mos uma situação contrafactual na qual, digamos, o ouro dos tolos ou a pirite de ferro se encontravam efectivam ente em várias montanhas dos Estados Uni dos, ou em certas áreas da África do Sul e da União Soviética. Suponhamos que todas as áreas que efectiva m ente contêm agora ouro continham antes pirite ou alguma outra substância com as m esmas proprieda des superficiais que o ouro, mas sem a sua estrutura atóm ica64. Diríamos nós, desta situação contrafactual, que nessa situação o ouro nem sequer seria um ele mento (uma vez que a pirite não é um elemento)? Acho que não. Descreveríamos antes isto como uma situa ção na qual uma substância, digamos que pirite de ferro, que não é ouro, teria sido encontrada nas mesmas 64 Existem até melhores pares de sósias; por exemplo, alguns pares de elementos numa mesma coluna da tabela periódica que se assemelham muito entre si mas que, apesar disso, são elemen tos diferentes.
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m ontanhas que efectivam ente contêm ouro e que essa substância teria as mesmas propriedades pelas quais costumam os identificar o ouro. Mas não seria ouro; seria uma outra coisa. Não devemos dizer que seria ainda ouro neste mundo possível, embora o ouro não tivesse então o número atóm ico 79. Seria um outro m aterial, uma outra substância. (Uma vez mais, saber se as pessoas contrafactualm ente lhe chamariam «ouro» é irrelevante. Nós não o descrevemos como ouro.) E, por isso, parece-m e que isto não seria um caso em que o ouro poderia não ser um elemento, e julgo que não é possível que exista um caso desses (a não ser no sen tido epistém ico de «possível»). Dado que o ouro é este elemento, qualquer outra substância, mesmo que pa reça ouro e que se encontre exactam ente nos mesmos lugares em que de facto encontramos ouro, não seria ouro. Seria uma outra substância; não ouro, mas uma contrafacção. Em qualquer situação contrafactual na qual as m esm as áreas geográficas estivessem cheias de uma tal substância, elas não estariam cheias de ouro. Estariam cheias de outra coisa. Por isso, se esta consideração é correcta, ela vai no sentido de m ostrar que afirmações destas que repre sentam descobertas científicas sobre o que este m ate rial é não são verdades contingentes, mas sim verda des necessárias no sentido mais estrito possível. Não estou apenas a dizer que é uma lei científica, sendo por isso óbvio que podemos imaginar um mundo no qual essa lei não vigoraria. Qualquer mundo em que im aginem os uma substância sem estas propriedades será um mundo em que im aginamos uma substância que não é ouro, se é verdade que estas propriedades formam a base do que a substância é. Em particular, então, a ciência actual diz-nos que faz parte da natu reza do ouro tal como o conhecem os ser um elemento com o número atómico 79. Será portanto necessário, e
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não contingente, que o ouro seja um elemento com o número atóm ico 79. (E então tam bém podemos, da mesma m aneira, investigar com o é que a cor e as pro priedades m etálicas se seguem do que descobrimos que a substância ouro é: na medida em que tais pro priedades se sigam da estrutura atómica do ouro, elas serão propriedades necessárias dele, mesmo que seja inquestionável que não fazem parte do significado de «ouro» e não foram conhecidas com certeza a priori.) O exemplo de Putnam — «os gatos são animais» — cai no mesmo género de categoria. Descobrim os de facto algo muito surpreendente, neste caso. Não encon trámos de facto nada que contrarie a nossa crença. Os gatos são de facto animais! E, então, esta verdade é uma verdade necessária ou contingente? Parece-me que é necessária. Consideremos uma situação contrafactual na qual, em vez destas criaturas (em vez destes ani mais), teríamos de facto pequenos demónios que nos trazem má sorte quando se aproximam de nós. Deve mos descrever isto como uma situação em que os gatos seriam demónios? Parece-me que estes demónios não seriam gatos. Seriam demónios com forma de gato. Poderíamos ter descoberto que os gatos que efectiva mente temos eram demónios. Mas a partir do momento em que descobrimos que não são, faz parte da sua natu reza que, quando descrevemos um mundo contrafac tual no qual haveria por aí estes dem ónios, temos de dizer que os dem ónios não seriam gatos. Seria um mundo que continha demónios mascarados de gatos. Embora pudéssemos dizer que os gatos poderiam reve lar-se demónios de uma certa espécie, uma vez que os gatos são de facto animais, então qualquer ser que seja parecido com um gato mas que não seja um animal, no mundo actual ou num mundo contrafactual, não será um gato. O mesmo se pode dizer até de animais com a aparência de gatos mas com estrutura interna
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de répteis. Se existissem, não seriam gatos, mas sim «gatos dos tolos». Isto tam bém está de algum modo relacionado com a essência de um objecto particular. A teoria m olecular descobriu, por exemplo, que este objecto que aqui está é com posto de moléculas. Foi com certeza uma desco berta empírica importante. Era algo que não sabíamos de antemão; pelo que sabíamos antes, talvez isto pu desse ser com posto de uma enteléquia etérea. Im agi nemos agora um objecto a ocupar exactam ente esta posição na sala e que fosse uma enteléquia etérea. Seria ele este mesm o objecto que aqui está? Poderia ter toda a aparência deste objecto, m as parece-m e que nunca poderia ser esta coisa. As vicissitudes desta coisa pode riam ter sido muito diferentes do que foi a sua história efectiva. Poderia ter sido levada para o Kremlin. Pode ria ter sido desfeita em pedaços e já não existir no presente. Várias coisas lhes poderiam ter acontecido. Mas o que quer que contrafactualm ente im aginem os que lhe teria acontecido diferente do que efectivamente aconteceu, uma coisa que não podemos imaginar acon tecer-lhe é que ela, dado que é composta de m oléculas, continuasse a existir mas não fosse com posta de m o léculas. Podem os im aginar que teríamos descoberto que ela não é com posta de m oléculas. M as, a partir do m omento em que sabemos que isto é uma coisa com posta de moléculas — que esta é a própria natureza da substância de que é feita — , não podemos depois, pelo menos se estou a ver bem as coisas, im aginar que esta coisa poderia não ter sido composta de moléculas. De acordo com a perspectiva que defendo, então, os term os para espécies naturais estão m uito mais próximos dos nomes próprios do que habitualm ente se supõe. A antiga designação de «nome comum» é assim bastante apropriada para predicados que indicam espécies naturais, como «vaca» ou «tigre». Contudo,
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as minhas observações também se aplicam a certos termos de massa para espécies naturais, como «ouro», «água» e outros do género. E interessante comparar as minhas ideias com as de Mill. Para Mill, predicados como «vaca», descrições definidas e nomes próprios são tudo nomes. M ill diz que os nomes «singulares» são conotativos se forem descrições definidas, mas não-conotativos se forem nomes próprios. Por outro lado, Mill diz que todos os nomes «gerais» são conotativos; um predicado como «ser humano» define-se pela con junção de certas propriedades que fornecem condições necessárias e suficientes para a hum anidade — a racionalidade, a animalidade e certos aspectos físicos65. A tradição lógica moderna, representada por Frege e por Russell, parece sustentar que M ill estava errado a respeito dos nomes singulares, mas certo a respeito dos nomes gerais. A filosofia mais recente tem seguido essa via, com a excepção de que, tanto no caso dos nomes próprios como no dos term os para espécies naturais, substitui m uitas vezes a noção de proprieda des definitórias pela de um feixe de propriedades, em que apenas algum as têm de ser satisfeitas em cada caso particular. A minha perspectiva, por outro lado, considera que M ill está mais ou menos certo a respeito dos nomes «singulares», mas errado a respeito dos nomes «gerais». Talvez alguns nomes «gerais» («tolo», «gordo», «amarelo») expressem propriedades66. Num 65 Mill, op. cit. 66 Não irei apresentar nenhum critério para aquilo que entendo por «propriedade pura» ou intensão fregiana. Exemplos inquestio náveis do que se pretende dizer são difíceis de encontrar. A cor amarela expressa seguramente uma propriedade física manifesta de um objecto e, em relação à discussão anterior sobre o ouro, pode ser encarada como uma propriedade no sentido requerido. Na realidade, porém, não deixa de ter um certo elemento referencial que lhe é próprio, pois, na minha perspectiva, a cor amarela é
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sentido im portante, nomes gerais como «vaca» e «ti gre» não o fazem, a não ser que ser urna vaca conte trivialm ente como uma propriedade. E evidente que «vaca» e «tigre» não são abreviaturas da conjunção de propriedades que um dicionário utilizaria para os definir, como pensava Mili. Saber se a ciência pode descobrir em piricam ente que certas propriedades são propriedades necessárias das vacas, ou dos tigres, é uma outra questão, a que respondo afirmativamente. Vejamos como é que isto se aplica ao género de afir mações de identidade, que discuti antes, que expres sam descobertas científicas — como, por exemplo, a afirmação de que a água é H 20 . A água ser H ,0 repre senta seguram ente um a descoberta. O riginalm ente identificám os a água pela impressão característica que provoca ao tacto, pelo seu aspecto característico e tal vez pelo sabor (embora o sabor possa habitualm ente ser um resultado das im purezas). Se existisse efectiva m ente uma substância com uma estrutura atóm ica com pletam ente diferente da água, mas que se assem e lhasse à água nestes aspectos, diríamos que alguma água não é H ,0 ? Julgo que não. Diríamos antes que, tal como há um ouro dos tolos, poderia haver uma água dos tolos, ou seja, uma substância que, apesar de ter as propriedades por meio das quais originalm ente identificám os a água, não seria de facto água. E julgo que isto se aplica, não apenas ao mundo actual, mas até quando falam os de situações contrafactuais. Se
seleccionada e rigidamente designada como aquela propriedade física exterior do objecto que sentimos por meio da impressão visual de amarelo. Neste aspecto assemelha-se aos termos para espécies naturais. A qualidade fenomenológica da própria sensação, por seu lado, pode ser encarada como um cjuale em sentido puro. É possível que esteja a ser muito vago relativamente a estas ques tões, mas não parece que seja aqui necessária maior precisão.
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existisse uma substância que fosse uma água dos tolos, ela seria água dos tolos, e não água. Por outro lado, se esta substância puder adoptar outra forma — como a água polimerizada alegadamente descoberta na União Soviética, com marcas identificadoras muito diferen tes daquilo a que agora chamamos água — , isso será uma forma de água, uma vez que se trata da mesma substância, mesmo que não tenha as aparências por meio das quais originalm ente identificámos a água. Consideremos a afirmação: «A luz é um feixe de fotões», ou: «O calor é o m ovimento das moléculas.» Ao falar de luz, é óbvio que pretendo designar esta coisa da qual temos uma certa quantidade nesta sala. Quando falo de calor, refiro-me não a uma sensação interna que alguém pode ter, mas a um fenóm eno exterior que percepcionam os pelo sentido do tacto e que produz uma sensação característica a que cham a mos a sensação de calor. O calor é o m ovimento das moléculas. Descobrim os também que o aumento de calor corresponde ao aumento do movimento das molé culas ou, em termos rigorosos, ao aumento da energia cinética média das moléculas. Portanto, a tem peratura é identificada com a energia cinética m olecular média. Não falarei da tem peratura, no entanto, uma vez que há a questão de como é que se estabelece a escala real. Poderia estabelecer-se sim plesm ente em term os da energia cinética m olecular média67. Mas o que repre senta uma descoberta fenom enológica interessante é que, quando está mais quente, as moléculas estão a mover-se mais rapidamente. Também descobrimos que a luz é um feixe de fotões, ou seja, que é uma forma de radiação electrom agnética. Originalm ente, identificá67 É claro que há a questão da relação entre a noção mecânica estatística de temperatura e, por exemplo, a noção termodinâmica. Prefiro deixar de lado estas questões, nesta discussão.
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mos a luz por meio das impressões visuais internas características que pode causar em nós e que nos per mitem ver. O calor, por seu lado, foi originalm ente identificado por meio do efeito característico que pro voca num aspecto dos nossos term inais nervosos, ou seja, no nosso sentido do tacto. Im aginem os uma situação em que os seres hum a nos fossem cegos ou em que os seus olhos não funcio nassem. A luz não os afectaria. Seria isso uma situação em que não existiria luz? Parece-me que não. Seria uma situação em que os nossos olhos não seriam sen síveis à luz. Algumas criaturas podem ter olhos insen síveis à luz. É claro que, entre estas criaturas, estão infelizm ente algum as pessoas; cham am -se «cegos». Mesmo que toda a gente tivesse uns tumores vestigiais horríveis e simplesmente não conseguisse ver nada, poderia haver luz por aí; só que não poderia afectar os olhos das pessoas da maneira adequada. Parece-me por isso que esta situação seria uma situação na qual existiria luz, mas as pessoas não conseguiriam vê-la. Portanto, embora possamos identificar a luz por meio das im pressões visuais características que causa em nós, este parece ser um bom exemplo de fixação da referência. Fixamos o que é a luz pelo facto de ser qualquer coisa que está aí fora no mundo e que afecta os nossos olhos de uma certa maneira. Mas depois, quando falamos de situações contrafactuais em que as pessoas fossem cegas, por exem plo, não iríam os aí dizer que, dado que nestas situações nada poderia afectar os seus olhos, a luz não existiria; diríamos antes que isso seria uma situação na qual a luz — a coisa que identificám os como o que de facto nos perm ite ver — existiria mas não poderia ajudar-nos a ver, de vido a um defeito nosso. Talvez possamos imaginar que, por algum milagre, a uma certa criatura, as ondas sonoras perm itir-lhe-
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-iam ver. Quer dizer, as ondas sonoras dar-lhe-iam im pressões visuais iguais às que nós temos, talvez até exactamente com o mesmo sentido da cor. Também podemos im aginar a mesma criatura a ser com pleta mente insensível à luz (aos fotões). Quem sabe que possibilidades subtis e nunca sonhadas poderão exis tir? Diríamos nós que, nesse mundo possível, o som é que era a luz, que estes movimentos ondulares no ar eram luz? Parece-me que, dado o nosso conceito de luz, deveríamos descrever a situação de m aneira dife rente. Seria uma situação na qual certas criaturas, que até talvez fossem aquelas a que cham aríam os «pes soas» e que habitariam este planeta, seriam sensíveis não à luz mas às ondas sonoras, e seriam sensíveis a elas da mesma maneira que nós somos sensíveis à luz. Se é assim, a partir do momento em que descobrimos o que é a luz, quando falamos de outros mundos possí veis, estamos a falar sobre este fenóm eno existente no mundo, e não estamos a usar a expressão «a luz» como sinónimo de «aquilo (seja o que for) que nos dá a im pressão visual, aquilo que nos ajuda a ver»; pois pode ria existir luz e ela não nos ajudar a ver; e até poderia ser uma outra coisa a ajudar-nos a ver. A m aneira como identificámos a luz fixou uma referência. E o mesm o acontece com outras expressões deste género, como «o calor». O calor é algo que identifi cámos (e fixám os a referência do seu nome) pelo facto de produzir uma certa sensação, a que chamamos «a sensação de calor». Não temos um nome especial para designar esta sensação que não seja como uma sensa ção de calor. E interessante que a linguagem seja assim. Porque poderíamos bem supor, pelo que estou a dizer, que fosse ao contrário. Em todo o caso, identificam os o calor e somos capazes de o sentir pelo facto de ele causar em nós uma sensação de calor. O facto de a sua referência ser fixada desta m aneira poderia ser tão
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im portante para o conceito que, se outra pessoa detec tasse o calor através de algum tipo de instrumento, mas fosse incapaz de o sentir, poderíamos sentir-nos inclinados a dizer que o seu conceito de calor não é o mesmo, muito embora o referente seja o mesmo. No entanto, o termo «calor» não significa «o que quer que seja que dá estas sensações às pessoas». Por que, em primeiro lugar, as pessoas poderiam não ser sensíveis ao calor e, apesar disso, o calor continuaria a existir no mundo exterior. Em segundo lugar, supo nhamos que de alguma m aneira, devido a uma dife rença nas suas term inações nervosas, os raios de luz lhes davam realm ente estas sensações. Nesse caso, não seria o calor, mas sim a luz, que dava às pessoas a sensação a que chamamos sensação de calor. Podemos então imaginar um mundo possível em que o calor não fosse movimento molecular? É claro que podemos imaginar que tínham os descoberto que não era. Parece-me que qualquer caso em que alguém pense, e que à prim eira vista pense que é um caso em que o calor — ao contrário do que efectivam ente acon tece — seria algo diferente do m ovimento molecular, seria efectivam ente um caso em que certas criaturas com term inações nervosas diferentes das nossas habi tavam este planeta (talvez fôssem os nós mesmos, se o facto de termos a estrutura neural que temos for con tingente) e em que essas criaturas seriam sensíveis a essa outra coisa, digamos que a luz, de uma maneira tal que sentiam o mesmo que sentimos quando senti mos calor. Mas isto não é uma situação na qual a luz seria o calor, mas sim uma situação na qual um feixe de fotões causaria as sensações características a que nós cham amos «sensações de calor». O m esm o se passa com m uitas outras identifica ções deste género; por exemplo, que o relâmpago é electricidade. Os relâm pagos são clarões de electrici200
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dade. O relâm pago é uma descarga eléctrica. É claro que podemos imaginar, julgo eu, m aneiras diferentes de o céu se ilum inar à noite com o mesmo tipo de clarão sem que haja qualquer descarga eléctrica. Tam bém aqui me sinto inclinado a dizer que, quando im a ginamos isto, imaginamos algo com todas as aparên cias visuais do relâmpago, mas que não é, de facto, um relâmpago. Poderiam dizer-nos: isto parecia um relâmpago, mas não era. Acho que isto poderia até acontecer agora mesmo. Alguém poderia produzir, por meio de um aparato engenhoso, um fenóm eno no céu que iludisse as pessoas levando-as a pensar que tinha havido um relâmpago, embora de facto não ti vesse havido relâmpago nenhum. E nós não diríamos que esse fenóm eno, porque parecia um relâmpago, era de facto um relâmpago. Era um fenóm eno dife rente do relâmpago, o qual é o fenómeno de uma des carga eléctrica; e isto não é um relâm pago, mas sim plesmente algo que nos ilude e faz pensar que houve um relâmpago. O que é que acontece tipicamente nestes casos em que, por exemplo, dizemos que «o calor é movimento molecular»? Há um certo referente que fixámos, para o mundo real e para todos os mundos possíveis, por meio de uma sua propriedade contingente, a saber, a propriedade de ser capaz de causar em nós tais e tais sensações. Digam os que a propriedade de causar nas pessoas tais e tais sensações é uma propriedade contin gente do calor. Afinal de contas, é um facto contingente que tenham chegado a existir pessoas neste planeta. Por isso, não sabemos a priori que fenóm eno físico, descrito noutros termos — em termos básicos da teoria física — , é o fenóm eno que causa estas sensações. Não sabemos, e por fim descobrimos que este fenómeno é de facto o m ovimento molecular. Quando descobri mos isso, descobrimos uma identificação que nos dá 201
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uma propriedade essencial deste fenómeno. Descobri mos um fenóm eno que em todos os mundos possíveis será movimento m olecular — que não poderia não ser m ovimento molecular, porque é isso o que o fenóm e no e68. Por outro lado, a propriedade por que o identifi cámos originalm ente, a propriedade de causar em nós uma sensação tal e tal, não é uma propriedade neces sária, mas sim contingente. Poderia existir este mesmo fenóm eno, mas, devido a diferenças nas nossas estru turas neurais, e coisas assim, não ser sentido como calor. Efectivamente, quando falo das nossas estruturas neu rais, no sentido de serem as estruturas dos seres hum a nos, estou a evitar comprometer-me a respeito de algo que mencionei antes; porque é claro que o ter uma estru tura neural sensível ao calor poderia fazer parte da própria natureza dos seres humanos. Por conseguinte, tam bém isto poderia acabar por se revelar necessário, se suficiente investigação assim o confirm asse. Mas, para sim plificar a discussão, estou sim plesm ente a ignorar esta possibilidade. Em todo o caso, julgo que 68 Algumas pessoas têm-se sentido inclinadas a argumentar que, embora não possamos seguramente dizer que as ondas sonoras «teriam sido calor» se tivessem sido sentidas pela sensação que sentimos quando sentimos calor, a situação é diferente no que diz respeito a um fenómeno possível, ausente do mundo actual e dis tinto do movimento molecular. O que se sugere é que talvez pudesse haver outra forma de calor, diferente do «nosso calor», que não fosse movimento molecular; embora nenhum fenómeno do mundo actual distinto do movimento molecular, como, por exemplo, o som, possa ser um candidato. Têm sido apresentadas propostas semelhantes para o ouro e para a luz. Embora eu não me sinta inclinado a aceitar estas ideias, elas fariam relativamente pouca diferença à substância destas palestras. Alguém que se sinta incli nado a adoptar estas ideias pode simplesmente substituir os ter mos «luz», «calor», «dor», etc., que ocorrem nos exemplos, por «a nossa luz», «o nosso calor», «a nossa dor», e assim por diante. Não irei, por conseguinte, ocupar aqui espaço a discutir esta questão.
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o facto de este planeta ser habitado por criaturas sen síveis desta maneira ao calor não é necessário. Vou concluir com algum as observações sobre a aplicação das considerações anteriores ao debate em torno da tese da identidade entre mente e corpo. Porém, antes de o fazer, gostaria de recapitular as ideias que desenvolvi e acrescentar talvez um ou outro aspecto. Em primeiro lugar, o meu argumento conclui im pli citam ente que certos termos gerais, os termos para espécies naturais, possuem um parentesco com os nomes próprios maior do que geralm ente se pensa. Esta con clusão é segura para diversos nomes de espécies, quer sejam substantivos contáveis com o «gato», «tigre», «pedaço de ouro», quer sejam termos de massa como «ouro», «água», «pirite de ferro». Ela aplica-se igual m ente a certos termos para fenóm enos naturais, como «calor», «luz», «som», «relâmpago», e, elaborando-a um pouco, tam bém deverá ser aplicável aos adjectivos correspondentes — «quente», «alto», «vermelho». Como relembrei, Mill sustentava que, embora alguns «nomes singulares», as descrições definidas, tivessem denotação e conotação, outros, os nom es próprios genuínos, tinham denotação mas não conotação. E além disso mantinha que os «nomes gerais», ou termos gerais, tinham conotação. Termos como «vaca» ou «humano» definem-se pela conjunção de certas propriedades que distinguem a sua extensão — um ser hum ano, por exemplo, é um anim al racional com certas caracte rísticas físicas. A venerável tradição da definição por género e diferença específica é inseparável desta concep ção. Se Kant realmente julgou que «o ouro» poderia ser definido como «metal am arelo», pode bem ter sido esta tradição que o conduziu à definição. («Metal» seria o género e «amarelo» a diferença específica. A diferença específica dificilm ente poderia incluir «ser ouro» sem cair em circularidade.) 203
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A tradição lógica moderna, representada por Frege e por Russell, criticou a posição de M ill acerca dos nomes singulares, mas seguiu-o no que diz respeito aos nomes gerais. Assim, todos os termos, tanto singu lares como gerais, têm uma «conotação» ou um senti do fregiano. Teóricos mais recentes têm seguido Frege e Russell, m odificando as suas concepções som ente neste aspecto: a noção de um sentido dado por uma certa conjunção de propriedades vê-se substituída pela de um sentido dado por um «feixe» de propriedades, no qual só um número suficiente delas é que tem de se aplicar. A perspectiva que defendo, fazendo o contrá rio de Frege e Russell, segue M ill (mais ou menos) no que diz respeito aos termos singulares, mas critica a sua posição acerca dos termos gerais. Em segundo lugar, a perspectiva que defendo afir ma que, tanto no caso de termos para espécies como no dos nomes próprios, devemos ter presente o con traste entre as propriedades a priori mas talvez contin gentes que um termo transporta consigo, dadas pela m aneira como a sua referência foi fixada, e as proprie dades analíticas (e portanto necessárias) que um termo pode transportar, dadas pelo seu significado. Para as espécies, tal como para os nomes próprios, a maneira como se fixa a referência de um term o não deve ser vista como um sinónimo desse termo. No caso dos nomes próprios, há várias m aneiras de fixar a sua refe rência. Num baptism o inicial, ela é tipicamente fixada por uma ostensão ou por uma descrição. Caso não seja assim, a referência é geralm ente determ inada por uma cadeia, que transm ite o nome de elo em elo. O mesmo se pode dizer de um termo geral como «ouro». Se im aginarm os um hipotético (em bora algo artificial) baptism o da substância, tem os de im aginar que ela é seleccionada por alguma definição do género: «O ouro é a substância exemplificada pelos itens que estão ali 204
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ou, pelo menos, por quase todos eles.» Diversos aspec tos deste baptism o são dignos de nota. Em primeiro lugar, a identidade presente na «definição» não ex pressa uma verdade (completamente) necessária: em bora cada um destes itens seja, de facto, essencialm en te (necessariam ente) ouro69, o ouro poderia existir mesmo que estes itens não existissem. No entanto, a definição expressa uma verdade a priori, no mesmo sentido (e aplicando-se as mesmas reservas) em que «1 metro = o comprimento de S»: ela fixa uma referên cia. Creio que, em geral, é desta m aneira que se fixa a referência dos termos para espécies naturais (e.g., es pécies animais, vegetais e quím icas); define-se a subs tância como a espécie exemplificada por (a quase tota lid ade de) um a dada am ostra. D izendo «a quase totalidade» criamos espaço para que possa haver al gum ouro dos tolos na amostra. Se a am ostra original contiver um número pequeno de itens desviantes, eles serão rejeitados por não serem realm ente ouro. Se, por outro lado, a suposição de que há uma substância ou espécie uniform e na am ostra inicial se revela estar radicalm ente errada, as reacções podem variar: umas vezes podemos declarar que há duas espécies de ouro, outras vezes podemos abandonar o termo «ouro». (Não julgo que estas possibilidades sejam exaustivas.) E a alegada nova espécie pode revelar-se ilusória por ou tras razões. Por exemplo, suponhamos que se desco brem alguns itens (seja I o conjunto desses itens) e que se acredita que pertencem a uma nova espécie E. Su ponhamos que, mais tarde, se descobre que os itens que fazem parte de I são realm ente de uma espécie só; 69 Supondo, é claro, que são todos ouro; como digo mais adiante, alguns podem ser ouro dos tolos. Sabemos à partida, a priori, que os itens não são tipicamente ouro dos tolos; e todos os itens que são de facto ouro são, é claro, essencialmente ouro.
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contudo, pertencem a uma espécie já conhecida, L. Um erro de observação conduziu à crença inicial falsa de que os itens que fazem parte de I possuíam uma carac terística C que os excluía de L. Neste caso diríamos com certeza que a espécie E não existe, não obstante o facto de ter sido definida por referência a uma am os tra inicial uniforme. (Reparem que, se L não tivesse já sido identificada, poderíamos muito bem ter dito que a espécie E existia, mas que nos tínhamos enganado ao supor que estava associada à característica C!) Na medida em que a noção de «a mesma espécie» é uma noção vaga, a noção original de ouro também o é. Na prática, a vagueza geralm ente não tem importância. No caso de um fenóm eno natural perceptível pelos sentidos, a maneira como a referência é seleccionada é simples: «O calor = aquilo que é sentido pela sensação S.» Uma vez mais, a identidade fixa uma referência: portanto, é a priori, mas não necessária, dado que o calor poderia existir, e nós não. «Calor», tal com o «ouro», é um designador rígido, cuja referência é fixada pela sua «definição». O utros fenóm enos naturais, com o a electricidade, são originalm ente iden tifica dos com o sendo as causas de certos efeitos expe rim entais concretos. Não pretendo apresentar aqui caracterizações exaustivas, mas apenas exemplos. Em terceiro lugar, no caso das espécies naturais, usamos certas propriedades que acreditamos que são, pelo menos aproximadamente, características da espé cie e que acreditamos que se aplicam à amostra inicial, para colocar dentro da espécie itens novos que esta vam fora da amostra inicial. (Estou aqui a usar «pro priedades» em sentido am plo, de modo a poder in cluir classes maiores: por exemplo, a animalidade e a felinidade, para os tigres.) Estas propriedades não têm de pertencer a priori à espécie; a investigação empírica posterior pode estabelecer que algum as das proprie 206
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dades não pertenciam à amostra inicial, ou que eram peculiaridades da amostra inicial, que não podemos generalizar para a espécie como um todo. (E assim que a cor amarela do ouro pode ser uma ilusão óptica; ou, com maior plausibilidade, embora o ouro originalmen te observado fosse realmente amarelo, poderia desco brir-se que algum ouro é branco.) Por outro lado, um item pode possuir todas as características usadas ori ginalmente e não pertencer à espécie. Assim, um ani mal pode parecer mesmo um tigre e não ser um tigre, como m encionám os antes; elementos diferentes situa dos na mesma coluna da tabela periódica podem ser bastante sem elh antes entre si. Estas falhas são a excepção; mas, tal como na tabela periódica, aconte cem. (Por vezes, o facto de a amostra inicial não ter as características que lhe associam os pode levar-nos a repudiar a espécie, como no caso I-E-L, que vimos antes. Mas isto não é um fenóm eno típico, e muito menos universal; vejam-se as observações sobre a cor amarela do ouro ou sobre se os gatos são animais.) A priori, tudo o que podemos dizer é que a questão de saber se as características originalm ente associadas à espécie se aplicam universalm ente aos seus m embros, ou se se aplicam sequer alguma vez, e se elas são de facto con juntam ente suficientes para determ inarem a pertença à espécie, é uma questão empírica. (E extremamente improvável que a suficiência conjunta seja necessária, mas pode ser verdadeira. De facto, qualquer animal que pareça mesmo um tigre é um tigre — tanto quanto sei —, apesar de ser (metafisicamente) possível que existam animais que se assem elhem a tigres mas não sejam tigres. A aplicabilidade universal, por seu lado, se for verdadeira, pode bem ser necessária. «Os gatos são anim ais» revelou-se um a verdade necessária. Com efeito, de m uitas afirm ações deste género, em especial daquelas que subsumem uma espécie noutra, sabemos 207
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a priori que, se forem verdadeiras, serão necessaria mente verdadeiras. Em quarto lugar, a investigação científica descobre geralm ente características do ouro que são muito me lhores do que o conjunto original. Por exemplo, sabe-se que um objecto m aterial é ouro (puro) se e somente se o único elemento nelè contido é aquele que tem o número atómico 79. Aqui, o «se e somente se» pode ser considerado estrito (necessário). Em geral, a ciência procura, ao investigar traços estruturais básicos, en contrar a natureza e, desse m odo, a essência (em sen tido filosófico) da espécie. O caso dos fenóm enos na turais é parecido; identificações teóricas como «o calor é m ovimento molecular» são necessárias, embora não a priori. O tipo de identidade de propriedades que se usa na ciência parece estar associado à necessidade, e não à aprioridade ou à analiticidade: para todos os corpos x e y, x é mais quente que y se e somente se x tem energia cinética molecular média superior a y. Aqui, a coextensividade dos predicados é necessária, mas não a priori. A noção filosófica de atributo, por outro lado, parece exigir, além da coextensividade necessária, tam bém a coextensividade a priori (e analítica). Repare-se que, na perspectiva aqui apresentada, as descobertas científicas da essência de uma espécie não constituem uma «mudança de significado»; a pos sibilidade dessas descobertas fazia parte do plano inicial. Não temos sequer de aceitar, quando o bió logo diz que as baleias não são peixes, que isso mostra que o seu «conceito do que é ser um peixe» é diferente do que tem um leigo; o biólogo sim plesm ente cor rige o leigo ao descobrir que «as baleias são m am í feros, não peixes» é uma verdade necessária. Em todo o caso, não se supunha que «as baleias são m am ífe ros» nem «as baleias são peixes» fossem a priori ou analíticas.
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Em quinto lugar, e independentem ente das investi gações científicas que acabo de m encionar, a «amostra original» vê-se aumentada pela descoberta de itens novos70. (No caso do ouro, os homens fizeram um es forço tremendo para isso. Aqueles que duvidam da natural curiosidade científica do Hom em deveriam tomar este caso em consideração. Só fundamentalistas anticientíficos como Bryan é que denigrem este esforço.) Mais im portante do que isso, o nome da espécie pode ser transm itido de elo em elo, exactam ente como no caso dos nomes próprios, de tal modo que muita gente que viu pouco ouro, ou que não viu nenhum, pode ainda assim usar o termo. A sua referência é determ i nada por uma cadeia (histórica) causal, e não pelo uso de quaisquer itens. Farei aqui ainda menos esforço para formular uma teoria exacta do que no caso dos nomes próprios. Habitualmente, quando um nome próprio é transmi tido de elo em elo, a maneira como a referência do nome é fixada tem para nós pouca importância. Não interessa nada que diferentes falantes possam fixar a referência do nome de maneiras diferentes, desde que lhe atribuam o mesmo referente. A situação não é provavelm ente muito diferente para os nomes de espécies, ainda que possa ser um pouco maior a tentação de pensar que o metalúrgico tem um conceito de ouro diferente de uma pessoa que nunca o tenha visto. O que é interessante é que a maneira como a referência é fixada nos parece extremamente importante no caso de fenómenos que
70 É óbvio que também existem artificialidades em toda esta descrição. Por exemplo, pode ser difícil dizer quais são os itens que constituem a amostra original. O ouro pode ter sido descoberto por várias pessoas em tempos diferentes, de maneira independente. Não sinto que este género de complicações altere radicalmente o quadro.
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são sentidos: parece-nos que um homem cego que use o termo «luz», ainda que o use como um designador rígido para exactam ente o mesm o fenómeno que nós, perdeu muita coisa, talvez o suficiente para que decla remos que ele tem um conceito diferente. («Conceito» está aqui a ser usado de m odo não-técnico!) O facto de identificarm os a luz de uma certa m aneira parece-nos crucial, ainda que não seja necessário; a conexão íntima pode criar uma ilusão de necessidade. Julgo que esta observação, juntam ente com o que já se disse sobre a identidade de propriedades, pode bem ser essencial para se compreenderem as disputas tradicionais a res peito das qualidades prim árias e secundárias71.
71 Para se entender esta disputa, é especialmente importante perceber que o ser amarelo não é uma propriedade disposicional, apesar de estar relacionado com uma disposição. Muitos filósofos, na ausência de qualquer outra teoria do significado do termo «ama relo», têm-se sentido inclinados a encará-lo como um termo que expressa uma propriedade disposicional. Ao mesmo tempo, sus peito que muitos têm sido inquietados pelo «sentimento intuitivo» de que o ser amarelo é uma propriedade manifesta, tão «aí fora» como a dureza ou a esfericidade. É claro que, na concepção que defendo, a explicação adequada é que a referência de «ser amare lo» é fixada pela descrição «aquela propriedade (manifesta) dos objectos que causa que, em circunstâncias normais, sejam vistos como amarelos (i.e., que sejam sentidos por certas impressões vi suais)»; é claro que «amarelo» não significa «tende a produzir uma sensação tal e tal»; se tivéssemos tido estruturas neurais diferen tes, se as condições atmosféricas tivessem sido outras, se fôssemos cegos, etc., então os objectos amarelos não teriam feito tal coisa. Se tentarmos corrigir a definição de «amarelo» para «tende a produ zir impressões visuais tais e tais em circunstâncias C», veremos que a especificação das circunstâncias C ou envolve circularmente o ser amarelo ou claramente transforma a alegada definição numa descoberta científica em vez de uma sinonimia. Se adoptarmos a concepção do «fixar uma referência», cabe então ao cientista físico identificar a propriedade assim assinalada em termos físicos tão básicos quanto desejar.
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Regressemos à questão da identificação teórica. De acordo com a concepção que defendo, as identidades teóricas são identidades que envolvem geralmente dois designadores rígidos e, portanto, são exem plos do necessário a posteriori. Apesar dos argumentos que já apresentei para sustentar a distinção entre verdade necessária e verdade a priori, a noção de verdade ne cessária a posteriori pode ser ainda algo desconcertante. Uma pessoa pode bem sentir-se inclinada a objectar-me o seguinte: «Na sua exposição, admitiu que o calor poderia ter acabado por não ser m ovimento molecular e que o ouro poderia ter acabado por não ser o elemen to com o número atómico 79. No mesm o sentido, tam bém reconheceu que Isabel II poderia ter acabado por não ser a filha de Jorge IV ou até por não ter origem no espermatozóide e no óvulo que julgávam os, e que esta mesa poderia ter acabado por ser feita de gelo produzido com água do Tamisa. Suponho que Héspero poderia ter acabado por não ser Fósforo. O que quer então dizer quando afirma que tais eventualidades são im possí veis? Se Héspero poderia ter acabado por não ser Fósforo, então Héspero poderia não ter sido Fósforo. E o mesmo se passa nos outros casos: se o mundo poderia ter aca bado por ser diferente, então poderia ter sido diferente. Negar este facto é negar o princípio m odal evidente segundo o qual uma coisa que seja im plicada por uma possibilidade tem ela própria de ser possível. E tam bém não pode escapar à dificuldade declarando que o
Alguns filósofos têm argumentado que termos como «sensação de amarelo», «sensação de calor», «sensação de dor» e outros do género não poderiam estar na linguagem a não ser que fossem identificáveis em termos de fenómenos observáveis exteriores, tais como o calor, o ser amarelo e o comportamento humano associa do. Julgo que esta questão é independente de qualquer ideia de fendida no texto.
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«poderia ter» em «poderia ter acabado por ser dife rente» é m eram ente epistém ico, do mesmo m odo que «O últim o teorema de Ferm at poderia acabar por ser verdadeiro e poderia acabar por ser falso» expressa sim plesm ente a nossa ignorância actual* e «A aritm é tica poderia acabar por ser com pleta» assinala a nossa ignorância passada. Nestes casos m atemáticos, pode mos ter sido ignorantes, mas de facto era m atem atica m ente im possível que a resposta tivesse acabado por ser diferente do que foi. Ora, não é isso que acontece nos seus casos favoritos de essência e de identidade entre dois designadores rígidos: na verdade, é logica m ente possível que o ouro tivesse acabado por ser um com posto e esta mesa poderia realmente ter aca bado por não ser feita de m adeira, quanto mais de um dado pedaço de madeira particular. O contraste com o caso m atem ático não poderia ser m aior e em nada seria m itigado m esm o que, com o sugere, pudesse haver verdades m atemáticas im possíveis de conhecer a priori.» Os que captaram o espírito das m inhas observações anteriores talvez consigam dar eles próprios a minha resposta, mas há um esclarecim ento da minha discus são anterior que é aqui relevante. O objector está certo quando argumenta que, se defendo que esta mesa não poderia ter sido feita de gelo, então também tenho de defender que ela não poderia ter acabado por ser feita de gelo; poderia ter acabado por ser o caso que P implica que P poderia ter sido o caso. Que significado tem
* O último teorema de Fermat afirma que, quando n é maior que 2, a equação x" + y" = z" não tem soluções com números intei ros positivos. Formulado por Pierre de Fermat (1601-1655), o ale gado «teorema» não tinha ainda sido demonstrado em 1970. Foi-o em 1994, por Andrew Wiles, professor da Universidade de Princeton. (N. dos T.)
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então a intuição de que a mesa poderia ter acabado por ser feita de gelo (ou de qualquer outra coisa), ou de que poderia até ter acabado por não ser feita de moléculas? Julgo que quer sim plesm ente dizer que poderia ter havido uma mesa que se parecesse exacta mente com esta, tanto à vista como ao tacto, que esti vesse colocada precisam ente nesta posição na sala e que fosse de facto feita de gelo. Por outras palavras, eu (ou algum ser consciente) poderia ter estado qualitati vamente na mesma situação epistémica em que de facto estou, poderia ter os mesmos dados sensoriais que de facto tenho, a respeito de uma mesa que fosse feita de gelo. A situação é por isso semelhante à que inspirou os teóricos das contrapartes; quando falo da possibili dade de a mesa acabar por ser feita de várias coisas, não estou a ser com pletam ente rigoroso. Esta mesa não poderia ela própria ter tido uma origem diferente da que teve de facto, mas, numa situação qualitativamente idêntica a esta no que diz respeito a todos os dados de que dispunha à partida, a sala poderia ter contido uma mesa feita de gelo em vez desta. Pode por isso aplicar l e à situação algo parecido com a teoria das contrapar tes, mas som ente porque não estamos interessados no que poderia ter sido verdade desta mesa em particular, mas sim do que poderia ou não poderia ser verdade de uma mesa, de modo com patível com certos dados empíricos. É precisamente porque não é verdade que esta mesa poderia ter sido feita de gelo do Tamisa que temos aqui de nos virar para descrições qualitativas e contrapartes. Aplicar estas noções a m odalidades de re genuínas é, do meu ponto de vista, perverso. A resposta geral ao objector pode então formular-se assim: Nenhuma verdade necessária, seja ela a priori ou a posteriori, poderia ter acabado por ser diferente. Contudo, no caso de algumas verdades necessárias a posteriori, podemos dizer que em situações adequadas, 213
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qualitativamente idênticas quanto aos dados empíricos, uma afirmação qualitativa correspondente adequada poderia ter sido falsa. A afirmação imprecisa e inexacta de que o ouro poderia ter acabado por ser um com pos to deveria ser substituída (aproxim adam ente) pela afirmação de que é logicamente possível que tivesse havido um composto com todas as propriedades ori ginalm ente conhecidas como propriedades do ouro. A afirmação inexacta de que Héspero poderia ter aca bado por não ser Fósforo deveria ser substituída pela contingência verdadeira m encionada antes nestas pa lestras: dois corpos distintos poderiam ter ocupado, de manhã e à tarde, respectivam ente, as mesmas posi ções efectivam ente ocupadas por H éspero-Fósforo-Vénus72. O exemplo do últim o teorema de Ferm at dá-nos uma impressão diferente, porque, nesse caso, não nos ocorre nenhuma afirmação análoga, a não ser que seja a afirmação extrem amente geral de que, na ausên cia de prova ou refutação, uma conjectura matemática tanto pode ser verdadeira como falsa. Não apresentei nenhum paradigma geral para a afir mação contingente qualitativa correspondente adequada. Uma vez que estamos a considerar como é que as coisas poderiam ter acabado por ser diferentes, o nosso para digma geral consiste em redescrever qualitativamente quer os dados empíricos anteriores quer a afirmação e 72 Algumas das afirmações que eu próprio fiz antes podem ser imprecisas e inexactas neste sentido. Se digo: «O ouro poderia aca bar por não ser um elemento», falo correctamente; o «poderia» é aqui epistémico e expressa o facto de os dados empíricos não jus tificarem uma certeza (cartesiana) a priori de que o ouro é um elem ento. Também é estritam ente correcto eu d izer que a elementaridade do ouro foi descoberta a posteriori. Se digo: «O ouro poderia ter acabado por não ser um elemento», parece que quero dizê-lo metafisicamente, e, então, a minha afirmação está sujeita à correcção assinalada no texto.
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sustentar que eles só se relacionam contingentemente. No caso das identidades, quando usam dois designadores rígidos, como no caso Héspero-Fósforo que consi derámos, há um paradigma mais simples que pode muitas vezes ser usado para obter o que pelo menos aproximadamente é o mesmo efeito. Sejam «R ^ e «R2» os dois designadores rígidos que ladeiam o sinal de identidade. Então «R^ = R2», se for verdade, é uma ver dade necessária. As referências de «Rt» e «R2» podem bem ser fixadas por designadores não-rígidos «Dx» e «D2», respectivamente; nos casos de Héspero e Fósforo, estes têm a forma «o corpo celeste que está em tal e tal posição no céu ã tarde (de manhã)». Então, muito em bora «Rí = R7» seja uma verdade necessária, «D 1 = D2» pode bem ser contingente, e é isto que muitas vezes conduz ao erro de pensar que «Rx = R7» poderia ter acabado por ser diferente. Passo finalm ente a uma discussão m uitíssimo breve da aplicação das considerações anteriores à tese identitativa. Os defensores desta tese têm-se interessado por vários tipos diferentes de identificações: de uma pessoa com o seu corpo, de uma sensação particular (ou acontecim ento ou estado de ter a sensação) com um estado cerebral particular (a dor de Jones às 6 horas era a sua estim ulação de fibras C nesse instante) e de tipos de estados m entais com os tipos correspondentes de estados físicos (a dor é a estim ulação de fibras C). Estas e outras identificações que surgem na literatura ap resentam problem as a n alítico s, que os crítico s cartesianos têm razão em levantar e que não se podem evitar por meio de um simples apelo a uma alegada confusão da sinonimia com a identidade. Devo dizer que é claro que não há nenhum im pedim ento óbvio ou, pelo menos (digo eu cautelosam ente), não há ne nhum que devesse ocorrer a qualquer pensador inteli gente numa prim eira reflexão mesmo antes de ir dor215
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mir, a que se defendam algumas teses identitativas e se ponham em dúvida ou se neguem outras. Por exem plo, alguns filósofos aceitaram a identidade de sensa ções particulares com estados cerebrais particulares e negaram ao mesmo tempo a possibilidade de identi dades entre tipos m entais e físicos73. Vou abordar prin cipalm ente as identidades tipo-tipo, pelo que os filó sofos em questão ficarão im unes à m aior parte da discussão; mas m encionarei brevem ente as outras es pécies de identidade. Descartes e alguns seguidores argumentaram que uma pessoa ou m ente é distinta do seu corpo, uma vez que a mente poderia existir sem o corpo. E Descartes poderia muito bem ter defendido a mesma conclusão a partir da prem issa de que o corpo poderia ter exis tido sem a m ente74. A resposta que considero absoluta 73 Thomas Nagel e Donald Davidson são exemplos eminentes. As suas perspectivas são muito interessantes, e lamento não poder discuti-las mais em pormenor. É duvidoso que estes filósofos queiram intitular-se «materialistas». Davidson, em particular, fun damenta a defesa da sua versão da teoria da identidade na suposta impossibilidade de correlacionar propriedades psicológicas com propriedades físicas. O argumento contra a identificação espécime-espécime apre sentado no texto aplica-se a estas perspectivas. 74 E claro que o corpo existe sem a mente e, é de supor, sem a pessoa, quando o corpo é um cadáver. Esta consideração, se fosse aceite, já mostraria que uma pessoa e o seu corpo são coisas distintas. (Veja-se David Wiggins, «On Being at the Same Place at the Same Time», Philosophical Review, vol. 77, 1968, pp. 90-95.) Do mesmo modo, pode defender-se que uma estátua não é o pedaço de maté ria de que é composta. Neste último caso, porém, poderíamos dizer antes que aquela «nada mais é do que» esta; e poderia tentar-se a mesma manobra para a relação entre a pessoa e o corpo. As difi culdades apresentadas no texto não se colocariam então da mesma forma, mas surgiriam dificuldades análogas. Uma teoria que diga que uma pessoa nada mais é do que o seu corpo da mesma maneira que uma estátua nada mais é do que a matéria de que é composta
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mente inaceitável é a que aceita com todo o gosto a pre missa cartesiana ao mesmo tempo que nega a conclu são cartesiana. Seja «Descartes» um nome ou designador rígido de uma certa pessoa, e seja «C» um designador rígido do seu corpo. Então, se Descartes fosse real mente idêntico a C, a suposta identidade, sendo uma identidade entre dois designadores rígidos, seria neces sária, e Descartes não poderia existir sem C, e C não poderia existir sem Descartes. Este caso não tem com paração possível com o caso, alegadam ente análogo, da identidade do primeiro director-geral dos Correios com o inventor das lentes bifocais. E verdade que esta identidade se verifica apesar do facto de poder ter havido um primeiro director-geral dos Correios ainda que as lentes bifocais nunca tivessem sido inventadas. A razão disso é que «o inventor das lentes bifocais» não é um designador rígido; um mundo no qual nin guém inventou as lentes bifocais não é ipso facto um mundo no qual Franklin não existiu. A alegada analo gia colapsa, portanto; um filósofo que pretenda refutar a conclusão cartesiana tem de refutar a prem issa carte siana, o que não é uma tarefa trivial. Suponhamos que «A» nomeia uma sensação de dor particular e que «B» nomeia o estado cerebral corres-
teria de defender que (necessariamente) uma pessoa existe se e somente se o seu corpo existe e além disso possui uma certa orga nização física. Uma tese destas enfrentaria dificuldades modais semelhantes às que afectam a tese identitativa comum; e o mesmo aconteceria com quaisquer casos análogos que fossem sugeridos para tomar o lugar da identificação dos estados mentais com esta dos físicos. Temos de deixar para outro lugar uma discussão aprofundada deste assunto. Outra perspectiva que não discutirei, apesar de me sentir pouco inclinado a aceitá-la e de não estar sequer seguro de que tenha sido apresentada com clareza genuína, é a chamada concepção dos conceitos psicológicos como estados funcionais.
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pondente, ou o estado cerebral que algum defensor da tese da identidade pretende identificar com A. Prima facie, pareceria que é pelo m enos logicamente possível que B tivesse existido (o cérebro de Jones poderia ter estado exactam ente nesse estado no m om ento em questão) sem que Jones sentisse qualquer dor e, desse modo, sem a presença de A. Uma vez mais, o defensor da tese da identidade não pode admitir animadam en te a possibilidade e continuar a partir daí; a consistên cia, e o princípio da necessidade das identidades com designadores rígidos, não perm item essa opção. Se A e B fossem idênticos, a identidade teria de ser neces sária. Não se pode escapar à dificuldade alegando que, embora B não pudesse existir sem A, ser uma dor é apenas uma propriedade contingente de A e que, por tanto, a presença de B sem dor não im plica a presença de B sem A. Pode algum caso de essência ser mais óbvio do que o facto de que ser uma dor é uma proprie dade necessária de toda a dor? O defensor da tese da identidade que pretenda adoptar a estratégia em ques tão terá mesmo de defender que ser uma sensação é uma propriedade contingente de A, pois prima facie parece logicamente possível que B pudesse existir sem ne nhuma sensação com que se pudesse plausivelm ente identificar. Pensem numa dor particular, ou nalguma outra sensação, que tenham tido uma vez. Parece-vos plausível que essa mesma sensação pudesse ter existido sem ser uma sensação, da mesma maneira que um certo inventor (Franklin) poderia ter existido sem ser um inventor? M enciono esta estratégia porque me parece ter sido adoptada por m uitos defensores da tese da identi dade. Estes teóricos, acreditando como acreditam que a suposta identidade de um estado cerebral com o estado m en tal correspondente deve ser analisada segundo o paradigma da identidade contingente de 218
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Benjam ín Franklin com o inventor das lentes bifocais, pensam que, tal como a actividade contingente de Ben jam ín Franklin fez dele o inventor das lentes bifocais, também alguma propriedade contingente do estado cerebral deve fazer dele uma dor. Geralmente, dese jam que esta propriedade seja exprim ível em lingua gem física ou, pelo menos, numa linguagem «tem áti camente neutra», para que o m aterialista não possa ser acusado de postular propriedades não-físicas irredutí veis. Uma perspectiva típica é a de que ser uma dor, enquanto propriedade de um estado físico, deve ser analisada em termos do «papel causal» do estado75, ou seja, em termos dos estímulos característicos (e.g., picadas de alfinete) que o causam e do comportamento característico que ele causa. Não entrarei nos pormeno res dessas análises, embora em regra me pareça geral mente que, para além das razões modais gerais que aqui alego, tam bém falham por razões específicas. Aqui basta-m e fazer notar que o «papel causal» do estado físico é visto pelo teórico em questão como uma pro priedade contingente do estado e que, assim, se está a supor que é uma propriedade contingente do estado o facto de ele ser um estado mental, já para não falarmos do facto de ser algo de específico como uma dor. Re pito: o absurdo desta noção parece-me evidente por si mesmo. Ela equivale a dizer que a mesmíssima dor que agora tenho poderia ter existido sem sequer ser um estado mental. Não discuti o problema converso, mais próximo da consideração cartesiana original — a saber: que tal
75 Por exemplo, David Armstrong, A Materialist Theory of the Mind, Londres e Nova Iorque, 1968; veja-se a discussão crítica de Thomas Nagel, Philosophical Review, 79, 1970, pp. 394-403; e David Lewis, «An Argument for the Identity Theory», The Journal of Philosophy, pp. 17-25.
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como parece que o estado cerebral poderia ter existido sem qualquer dor, também parece que a dor poderia ter existido sem o estado cerebral correspondente. Repare-se que ser um estado cerebral é evidentem ente uma propriedade essencial de B (o estado cerebral). De facto, até algo mais do que isto é verdade: não só ser um estado cerebral é uma propriedade essencial de B, como até ser um estado cerebral de um tipo especí fico. A configuração de células cerebrais cuja presença num dado momento constitui a presença de B nesse momento é essencial a B e, na sua ausência, B não teria existido. Portanto, alguém que queira sustentar que o estado cerebral e a dor são idênticos tem de defender que a dor A não poderia ter existido sem um tipo bas tante específico de configuração de moléculas. Se A = B, então a identidade de A com B é necessária, e qualquer propriedade essencial de um tem de ser uma proprie dade essencial do outro. Alguém que queira m anter uma tese identitativa não pode simplesmente aceitar as intuições cartesianas de que A pode existir sem B, de que B pode existir sem A, de que a presença corre lativa de qualquer coisa com propriedades m entais é algo que acontece a B de modo meramente contingente e de que a presença correlativa de quaisquer proprieda des físicas específicas é algo que acontece a A de modo meramente contingente. Tem de afastar estas intuições, através de uma explicação que mostre que são ilusó rias. Esta tarefa pode não ser impossível; vimos antes como é que algumas coisas que parecem contingentes acabam, quando as exam inam os melhor, por se reve lar necessárias. No entanto, a tarefa não é obviam ente uma brincadeira de crianças, e veremos a seguir como é difícil. A última espécie de identidade, a que eu disse que daria m aior atenção, é o género de identidade tipo-tipo exemplificado pela identificação da dor com a
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estim ulação de fibras C. Supostam ente, estas identifi cações são análogas às identificações tipo-tipo científi cas, como é a identidade do calor com o movimento molecular, da água com o hidróxido de hidrogénio, e outras parecidas. Consideremos, por exemplo, a ana logia que se considera haver entre a identificação m aterialista e a do calor com o m ovimento molecular; ambas as identificações identificam dois tipos de fenó menos. A perspectiva habitual considera que a iden tificação do calor com o m ovimento m olecular e da dor com a estim ulação de fibras C são ambas contin gentes. Vimos antes que, uma vez que «calor» e «mo vimento m olecular» são ambos designadores rígidos, a identificação dos fenóm enos por eles nomeados é necessária. E em relação a «dor» e «estim ulação de fibras C»? A discussão anterior deve ter tornado claro qLie «dor» é um designador rígido do tipo, ou do fenó meno, que designa: se algo é uma dor, é essencialm en te uma dor e parece absurdo supor que a dor poderia ter sido algum fenómeno diferente daquele que é. O mesmo se passa com o termo «estim ulação de fibras C», partindo do princípio de que «fibras C» é um desig nador rígido, como vou aqui supor. (A suposição é um pouco arriscada, uma vez que não sei praticamente nada acerca de fibras C, a não ser que a sua estimulação é dita estar correlacionada com a dor76. A questão não 76 Surpreendeu-me descobrir que pelo menos um ouvinte com petente achou que o meu uso de termos como «correlacionado com», «correspondente a» e outros do género já denunciava a minha rejeição da tese da identidade. A tese da identidade, disse ele, não é a tese de que as dores e os estados cerebrais estão correla cionados, mas sim a de que são idênticos. Assim, toda a minha discussão pressupõe a posição antimaterialista que pretendi pro var. Embora me tenha surpreendido ouvir uma objecção que atri bui tão pouca inteligência ao argumento, tentei especialmente evitar o termo «correlacionado», que parece dar azo à objecção. No
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é im portante; se «fibras C» não for um designador rígido, substituam o-lo sim plesmente por um que seja ou suponhamos que no contexto actual está a ser usado como um designador rígido.) Deste modo, a identidade da dor com a estimulação de fibras C, se for verdadeira, terá de ser necessária. Até aqui, a analogia entre a identificação do calor com o m ovimento m olecular e da dor com a estim ula ção de fibras C não falhou; apenas revelou ser o oposto do que habitualm ente se julga — ambas, se forem ver dadeiras, terão de ser necessárias. Isto quer dizer que o defensor da tese da identidade está comprometido com a ideia de que não poderia haver uma estim ula ção de fibras C que não fosse uma dor, nem uma dor que não fosse uma estimulação de fibras C. É certo que estas consequências são surpreendentes e contra-intui tivas, mas não mandemos embora o defensor da tese da identidade demasiado rapidamente. Poderá talvez ele m ostrar que a aparente possibilidade de a dor não ter acabado por ser estim ulação de fibras C, ou de haver um exem plo de um dos fenóm enos que não exemplifica o outro, é uma ilusão do mesmo género que a ilusão de que a água poderia não ter sido hidróxido de hidrogénio ou de que o calor poderia não ter sido movimento molecular? Se sim, terá refutado o carte
entanto, para afastar mal-entendidos, explicarei o meu uso dos termos. Supondo, pelo menos arguendo, que as descobertas cientí ficas acabaram por ser tais que não refutam o materialismo desde o início, tanto o dualista como o defensor da tese da identidade concordam que existe uma correlação ou uma correspondência entre os estados mentais e os estados físicos. O dualista defende que a relação de «correlação» em questão é irreflexiva; o defensor da tese da identidade sustenta que é simplesmente um caso espe cial da relação de identidade. Termos como «correlação» e «corres pondência» podem ser usados de modo neutro sem pré-julgar qual é o lado que está certo.
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siano, não da maneira que a análise convencional faz — aceitando a sua premissa, porém , expondo a falácia do seu argumento — , mas antes da maneira inversa — concedendo que o argumento cartesiano, dada a sua premissa da contingência da identificação, demonstra a sua conclusão, mas mostrando que a prem issa é su perficialm ente plausível embora falsa. Não me parece provável que o defensor da tese da identidade venha a ter êxito num tal projecto. Pretendo defender que, pelo menos, o caso não pode ser inter pretado como análogo ao da identificação científica habitual, tal como exemplificada pela identidade do calor e do m ovimento molecular. Como era a estraté gia que usámos antes para lidar com a aparente contin gência de certos casos do necessário a posteriori? A estra tégia consistia em argumentar que, apesar de a própria afirmação ser necessária, uma pessoa poderia, falando qualitativamente, estar num a situação epistém ica igual à original, e, nessa situação, uma afirmação qualitativa mente análoga poderia ser falsa. No caso de identida des entre dois designadores rígidos, a estratégia pode ser sim plificada: considerem -se os m odos com o se determinam as referências dos designadores; se eles coincidem apenas contingentem ente, é este facto que confere à afirmação original a sua ilusão de contingên cia. No caso do calor e do movimento molecular, a maneira como estes dois paradigmas funcionam é sim ples. Quando uma pessoa diz, de modo inexacto, que o calor poderia ter acabado por não ser movimento molecular, a verdade no que ela diz é que alguém poderia ter sentido um fenómeno da m esm a maneira que sentimos o calor, isto é, senti-lo pelo facto de nos causar a sensação a que chamamos «sensação de calor» (chamemos-lhe «S»), muito embora esse fenómeno não fosse m ovimento molecular. Também quer dizer, além disso, que o planeta poderia ter sido habitado por cria-
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turas que não tinham S quando estavam na presença de m ovimento molecular, apesar de talvez o terem na presença de alguma outra coisa. Tais criaturas esta riam, num certo sentido qualitativo, na mesma situa ção epistémica em que nos encontramos, poderiam usar um designador rígido para o fenóm eno que lhes causa a sensação S (o designador rígido até poderia ser «ca lor»), porém não seria m ovim ento m olecular (e por tanto não seria calor!) o que lhes causava a sensação. Ora, pode alguma coisa análoga ser dita para expli car e afastar o sentimento de que a identidade da dor e da estim ulação de fibras C, se é uma descoberta cien tífica, poderia ter acabado por ser diferente? Não vejo que uma tal analogia seja possível. No caso da aparente possibilidade de o m ovimento m olecular ter existido na ausência de calor, o que realmente parecia possível é que o movimento molecular tivesse existido sem ser sentido como calor, isto é, que ele tivesse existido sem causar a sensação S, a sensação de calor. Nos seres sencientes adequados, será analogam ente possível que uma estim ulação de fibras C tivesse existido sem ser sentida como dor? Se isto for possível, então a própria estim ulação de fibras C pode existir sem dor, uma vez que ela existir sem ser sentida como dor é ela existir sem haver qualquer dor. Uma situação dessas estaria em manifesta contradição com a suposta identidade neces sária da dor e do estado físico correspondente; e che garemos a uma conclusão análoga a respeito de qual quer estado físico que possa ser identificado com um estado m ental correspondente. O problema está em que o defensor da tese da identidade não sustenta que o estado físico simplesmente produza o estado mental; ele pretende antes que os dois sejam idênticos e, desse modo, a fortiori, que co-ocorram necessariamente. No caso do m ovimento m olecular e do calor, há algo, a saber: a sensação de calor, que é um intermediário entre
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o fenómeno exterior e o observador. No caso mental-físico nenhum intermediário desses é possível, uma vez que aqui o fenómeno físico é, supostamente, idên tico ao próprio fenóm eno interno. Uma pessoa pode estar na mesma situação epistémica em que estaria se houvesse calor, mesmo na ausência de calor, sim ples mente por sentir a sensação de calor; e mesm o na pre sença de calor, pode ter os mesmos dados empíricos que teria na ausência de calor, sim plesm ente por lhe faltar a sensação S. Nenhuma destas possibilidades existe no caso da dor e de outros fenóm enos mentais. Estar na mesma situação epistém ica que ocorreria se tivéssemos uma dor é ter uma dor; estar na mesma situação epistémica que ocorreria na ausência de uma dor é não ter uma dor. A aparente contingência da conexão entre o estado m ental e o estado cerebral cor respondente não pode, por isso, ser explicada por meio de algum género de análogo qualitativo, como no caso do calor. A cabám os de analisar a situação em term os da noção de uma situação epistém ica qualitativamente idêntica. O problem a é que a noção de uma situação epistém ica qualitativamente idêntica àquela em que o observador tivesse uma sensação S sim plesm ente é uma situação em que o observador teria essa sensação. Podemos formular a mesma ideia em term os da noção daquilo que selecciona a referência de um designador rígido. No caso da identidade do calor com o m ovi mento molecular, o importante foi considerarm os que, apesar de «calor» ser um designador rígido, a referên cia desse designador foi determinada por uma proprie dade acidental do referente, a saber, a propriedade de nos causar a sensação S. E assim possível que um fenó meno tivesse sido rigidamente designado da mesma maneira como um fenóm eno de calor, com a sua refe rência seleccionada tam bém por meio da sensação S, 225
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sem que esse fenóm eno fosse calor e, portanto, sem que fosse m ovimento molecular. A dor, por seu lado, não é seleccionada por uma das suas propriedades acidentais; ela é, isso sim, seleccionada pela própria propriedade de ser dor, pela sua qualidade fenomenológica imediata. Assim , a dor, diferentem ente do calor, não só é rigidamente designada por «dor», como também a referência do designador é determ inada por uma propriedade essencial do referente. Não é então possível dizer que, embora a dor seja necessariamente idêntica a um certo estado físico, pode-se seleccionar um certo fenóm eno da mesma m aneira que selecciona mos a dor sem que ele esteja correlacionado com esse estado físico. Se um fenóm eno é seleccionado exacta m ente da mesma m aneira que seleccionamos a dor, então esse fenómeno é dor. Talvez possamos expressar a mesma ideia de m a neira mais vívida sem nos referirm os especificam ente ao aparato técnico usado nestas palestras. Imaginemos Deus a criar o mundo; o que precisa Ele de fazer para tornar a identidade do calor e do movimento molecular uma realidade? Aparentem ente, Ele só precisa de criar o calor, ou seja, criar o próprio m ovimento molecular. Se as m oléculas de ar nesta Terra estiverem suficien tem ente agitadas, se houver um fogo a arder, então a Terra estará quente mesmo que não haja observadores para ver isso. Deus criou a luz (e, portanto, criou feixes de fotões, de acordo com a doutrina científica actual) antes de ter criado observadores humanos e animais; e é de supor que o mesmo aconteceu com o calor. Como é que nos parece então que a identidade do movimento m olecular com o calor é um facto científico substancial, que a mera criação de m ovim ento m olecular ainda deixa Deus com a tarefa adicional de transform ar o m ovim ento m olecular em calor? Este sentim ento é realmente ilusório, mas o que de facto é uma tarefa 226
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substancial para a Divindade é a tarefa de fazer que o movimento m olecular seja sentido como calor. Para isso, Ele tem de criar seres sencientes para assegurar que o movimento molecular provoca neles a sensação S. Só depois de ter feito isto é que haverá seres que podem aprender que a frase «o calor é o movimento das moléculas» expressa uma verdade a posteriori pre cisamente da mesma maneira que nós. E em relação ao caso da estim ulação de fibras C? Para criar este fenóm eno, Deus aparentem ente só pre cisa de criar seres com fibras C com capacidade para o tipo adequado de estim ulação física; é aqui irrele vante saber se os seres são ou não seres conscientes. Aparentemente, no entanto, para fazer que a estim ula ção de fibras C corresponda à dor, ou que seja sentida como dor, Deus tem de fazer algo mais do que a mera criação da estim ulação de fibras C; Ele tem de deixar que as criaturas sintam a estim ulação de fibras C como dor, e não como uma cócega, ou como calor, ou como nada, como aparentem ente tam bém estaria em Seu poder. Se estas coisas estão de facto em Seu poder, a relação entre a dor que Deus cria e a estim ulação de fibras C não pode ser uma relação de identidade. Pois se é assim, a estim ulação poderia existir sem a dor; e uma vez que «dor» e «estim ulação de fibras C» são rígidos, este facto im plica que a relação entre os dois fenómenos não é de identidade. Para um certo homem ser o inventor das lentes bifocais, Deus, além de fazer o próprio homem, teve de realizar mais algum traba lho; o homem poderia m uito bem existir sem inventar nenhuma coisa dessas. Não se pode dizer o mesmo da dor; se o fenóm eno existir, não será necessário mais nenhum trabalho para o transform ar em dor. Em suma, a correspondência entre um estado cere bral e um estado m ental parece ter um certo elemento óbvio de contingência. Vimos que a identidade não é 227
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uma relação que possa dar-se contingentem ente entre objectos. Por conseguinte, se a tese da identidade esti vesse correcta, o elemento de contingência não estaria na relação entre os estados m ental e físico. Não pode estar, como acontece no caso do calor e do movimento molecular, na relação entre o fenóm eno (= o calor = o m ovimento molecular) e a maneira como é sentido ou como nos aparece (a sensação S), uma vez que no caso dos fenóm enos mentais não há uma «aparência» para além do próprio fenómeno mental. Tenho estado a enfatizar a possibilidade, ou a apa rente possibilidade, de um estado físico sem o estado m ental correspondente. A possibilidade inversa, do estado m ental (dor) sem o estado físico (estimulação de fibras C), também coloca problemas aos defensores da tese da identidade, os quais não podem ser resolvi dos apelando para a analogia do calor e do movimento molecular. Discuti com maior brevidade problemas sem elhan tes que se colocam às concepções que equacionam o eu com o corpo, e acontecim entos m entais particulares com acontecim entos físicos particulares, sem discutir possíveis réplicas com o mesmo porm enor que no caso tipo-tipo. Direi apenas que suspeito que as considera ções apresentadas indicam que o teórico que pretenda identificar vários acontecim entos m entais e físicos par ticulares terá de enfrentar problemas bastante seme lhantes aos do teórico tipo-tipo; também ele não poderá apelar para os alegados casos análogos habituais. E claro que o facto de as respostas e as analogias habituais não estarem disponíveis para resolver os problemas do defensor da tese da identidade não pro va que não haja respostas disponíveis. Não posso evi dentem ente discutir aqui todas as possibilidades. Sus peito, no entanto, que as considerações que apresentei pesam grandem ente contra as form as habituais de
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materialism o. O materialism o, julgo eu, tem de manter que uma descrição física do mundo é uma descrição completa, que todos os factos mentais estão «ontologicamente dependentes» de factos físicos, no sentido sim ples de se seguirem necessariamente deles. Não há nenhum defensor da tese da identidade que me pareça ter apresentado um argumento convincente contra a ideia intuitiva de que isso não é verdade77.
77 Tendo expressado no texto estas dúvidas acerca da teoria identitativa, devo enfatizar duas coisas: em primeiro lugar, os pro ponentes dessa teoria apresentaram argumentos positivos em defesa da sua tese, a que seguramente não respondi aqui. Alguns desses argumentos parecem-me fracos ou baseados em preconcei tos ideológicos, mas outros dão-me a impressão de serem argumen tos extremamente poderosos a que, de momento, não sou capaz de dar uma resposta convincente. Em segundo lugar, a rejeição da tese da identidade não implica a aceitação do dualismo cartesiano. De facto, a minha ideia de que uma pessoa não poderia ter vindo de um espermatozóide e de um óvulo diferentes daqueles em que efectivamente teve origem sugere implicitamente uma rejeição da perspectiva cartesiana. Se tivéssemos uma ideia clara da alma ou da mente como uma entidade espiritual independente e subsistente, porque é que teria de ter uma conexão necessária com objectos materiais particulares tais como um espermatozóide particular ou um óvulo particular? Um dualista persuadido pode julgar que as minhas ideias sobre espermatozoides e óvulos já pressupõem a oposição a Descartes. Eu tenderia a argumentar em sentido contrá rio; o facto de ser difícil imaginar-me vindo de um espermatozóide e de um óvulo diferentes daqueles que efectivamente me origina ram parece-me indicar que não temos uma concepção clara de alma ou de eu. Em todo o caso, a noção de Descartes parece ter-se tornado duvidosa desde que houve a crítica de Hume à noção de um eu cartesiano. Considero que o problema mente-corpo está completamente em aberto e que é gerador de extrema perplexidade.
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Adenda
Esta adenda contém certas am plificações do texto original que acrescentei em resposta a perguntas que me fizeram, ou para clarificar alguns aspectos, ou para esboçar certos aprofundamentos. a) Unicórnios, pp. 69-70. A luz das observações sobre espécies naturais que fiz na terceira palestra, tentarei dar uma breve explicação da estranha concepção dos unicórnios defendida no texto. Apresentei duas teses: em primeiro lugar, uma tese metafísica segundo a qual nenhuma situação contrafactual pode ser adequada mente descrita como uma situação na qual teriam exis tido unicórnios; em segundo lugar, uma tese epistemo lógica segundo a qual uma descoberta arqueológica de que existiram animais com todas as características que no mito se atribuem aos unicórnios não constituiria, em si e por si própria, uma prova de que existiram unicórnios. Quanto à tese metafísica, o argumento é basicamente o seguinte. Assim como os tigres são uma espécie real,
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os unicórnios são uma espécie mítica. Ora os tigres, como defendo na terceira palestra, não podem ser definidos sim plesmente em termos da sua aparência; é possível que tivesse havido uma espécie diferente, com todas as aparências exteriores dos tigres mas com uma estrutura interna diferente e que, portanto, não fosse a espécie dos tigres. Podem os ser levados a pen sar o contrário devido ao facto de efectivam ente não existirem quaisquer «tigres dos tolos» desse género, de tal modo que na prática a aparência exterior é su ficiente para identificar a espécie. Ora não existe ne nhuma espécie dos unicórnios real e, a respeito das várias espécies hipotéticas diferentes, com diferentes estruturas internas (umas com estrutura de réptil, outras de m amífero, outras de anfíbio), que teriam as aparências exteriores que no m ito dos unicórnios se postula que os unicórnios possuem , não se pode dizer qual destas diferentes espécies míticas teriam sido os uni córnios. Se supuserm os, com o eu suponho, que os unicórnios do mito deveriam ser uma espécie parti cular, mas que a inform ação acerca da sua estrutura interna que o m ito fornece é insuficiente para determ i nar uma espécie única, então não há nenhuma espécie real ou possível acerca da qual possamos dizer que teria sido a espécie dos unicórnios. A tese epistem ológica é mais fácil de defender. Se descobrirm os uma narrativa onde se descreve uma substância com a aparência física do ouro, não pode mos concluir com base nisso que é acerca do ouro que ela está a falar; pode estar a falar acerca de «ouro dos tolos». A determ inação de qual é a substância que está a ser discutida tem de ser feita como no caso dos no mes próprios: pela conexão histórica da narrativa com uma certa substância. Quando se traça a conexão, pode bem descobrir-se que a substância em questão era ouro, ou «ouro dos tolos», ou alguma outra coisa. Do mesmo 232
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modo, a simples descoberta de animais com as proprie dades que no mito se atribuem aos unicórnios não mos traria de m aneira alguma que eram estes os animais de que o mito falava: o mito pode ter sido totalmente ficcionado, e o facto de terem realm ente existido ani mais com a mesma aparência foi pura coincidência. Nesse caso, não podemos dizer que os unicórnios do mito existiram realmente; temos de estabelecer tam bém uma conexão histórica que mostre que o mito é acerca destes animais. Defendo ideias semelhantes a respeito dos nomes próprios ficcionais. A simples descoberta de que hou ve realm ente um detective que fez proezas como as de Sherlock Holmes não mostraria que Conan Doyle es tava a escrever acerca deste homem; é teoricamente pos sível, ainda que na prática seja fantasticam ente im pro vável, que Doyle estivesse a escrever ficção pura que só por coincidência se assem elhasse ao homem real. (Veja-se a advertência típica: «As personagens desta obra são fictícias e qualquer semelhança com alguém, vivo ou morto, é pura coincidência.») Do mesmo modo, defendo a tese m etafísica de que, adm itindo que não há nenhum Sherlock Holmes, não se pode dizer, acer ca de nenhuma pessoa possível, que ela teria sido Sherlock Holmes, caso ele tivesse existido. Várias pes soas possíveis diferentes, e até pessoas reais como Darwin ou Jack, o Estripador, poderiam ter feito as proezas de Holmes, mas não há nenhum a de quem possamos dizer que teria sido Holmes, caso tivesse feito estas proezas. Pois, se houvesse, qual delas seria? Por isso já não poderia escrever, como uma vez escrevi, que «Holmes não existe, mas noutros estados de coisas teria existido». (Veja-se o meu «Semantical Considerations on M odal Logic», A cta Philosophica Fennica, vol. 16, 1963, pp. 83-94; reim presso em L. Linsky (ed.), Reference and M odality, Oxford University 233
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Press, 1971, p. 65 na colectânea de Linsky.) A frase citada dá a impressão enganadora de que um nome ficcional como «Holmes» nomeia um indivíduo possível-m as-não-real particular. Contudo, a ideia substan cial que tentei defender perm anece e é independente de qualquer teoria linguística acerca do estatuto dos nomes na ficção. A ideia era que noutros mundos possí veis «alguns indivíduos efectivam ente existentes po dem estar ausentes e podem aparecer novos indiví duos» (ibid., p. 65); e que, se numa fórmula aberta A(x) um dado indivíduo for atribuído como valor à variá vel livre, surge o problema de saber se (num tratamento da lógica m odal em termos de teoria dos modelos) deve ser atribuído um valor de verdade à fórmula em mundos nos quais o indivíduo em questão não existe. Tenho consciência de que a brevidade críptica des tas observações diminui qualquer força persuasiva que elas pudessem ter. Espero desenvolvê-las noutro lugar, num próximo trabalho em que discutirei os problem as das afirm ações existenciais, dos nomes vazios e das entidades ficcionais. b) De poder a ter de, primeiro parágrafo da p. 83. Um artigo inédito de Barry T. Stroud alertou-m e para o facto de que o próprio Kant comete um erro muito semelhante. Kant diz: «A experiência ensina-nos que uma coisa é assim e assim, mas não que não possa ser de m aneira diferente. Em prim eiro lugar, então, se e n co n trarm o s um a p ro p o sição que só p ossa ser pensada como necessária, estaremos em presença de um juízo a priori [...]. Necessidade e rigorosa universa lidade são pois critérios seguros de um conhecimento a priori» (Crítica da Razão Pura, B3-4). Parece então que Kant considera que, se é sabido que uma proposição é necessária, o modo de conhecimento não só pode ser a priori, mas tem de sê-lo. Pelo contrário, podemos apren234
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der uma verdade matemática a posteriori, consultando um com putador ou mesmo perguntando a um m ate mático. E Kant também não pode alegar que a experiên cia nos pode dizer que uma proposição m atemática é verdadeira, mas não que é necessária-, pois o carácter peculiar das proposições m atemáticas (como a con jectura de Goldbach) consiste no facto de sabermos (a priori) que elas não podem ser contingentemente verdadeiras; uma afirmação matemática, se for verda deira, será necessária. Todos os casos de verdades necessárias a posteriori defendidos no texto possuem o carácter especial que se atribui às afirmações matemáticas: a análise filosó fica diz-nos que não podem ser contingentem ente ver dadeiras, por isso qualquer conhecim ento empírico da sua verdade é autom aticam ente um conhecim ento empírico de que são necessárias. Esta caracterização aplica-se, em particular, aos casos de afirmações de identidade e de essência. Ela pode fornecer-nos uma chave para uma caracterização geral do conhecimento a posteriori de verdades necessárias. Devo dizer que, se a única objecção dirigida a Kant fosse a possibilidade de conhecerm os uma verdade matemática através da consulta de um computador, ele poderia ainda defender: (1) que toda a verdade necessária pode ser conhecida a priori; ou, de modo mais fraco, (2) que toda a verdade necessária, se for conhecida, terá de poder ser conhecida a priori. (1) e (2) envolvem ambos a noção obscura da possibilidade de conhecer a priori, mas, na m edida em que se clarifique a noção restringindo-a ao conhecimento a priori de tipo humano normal, apresento no texto argumentos tanto contra (1) como contra (2). De facto, defendo que vá rias proposições que os filósofos contem porâneos con tariam adequadamente como «empíricas» podem se guramente ser necessárias e pode saber-se que o são.
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Devo talvez mencionar também que não consegui encontrar em Kant a caracterização da verdade a priori como verdade que pode ser conhecida independentemen te da experiência; tanto quanto consigo ver, Kant só se refere ao conhecimento a priori de afirmações particula res, o qual não envolve a modalidade extra. (No texto atribuí imprudentemente a Kant esta caracterização co mum da verdade a priori.) E, com certeza, quando Kant usa «necessário» para um tipo de proposição e «a priori» para um modo de conhecimento, não podemos culpá-lo de incorrer na prática contemporânea comum de tratar os dois termos como sinónimos intersubstituíveis. Nas primeiras páginas da Crítica vê-se claramente que Kant considera que a tese segundo a qual o conhecimento de que algo é necessário tem de ser conhecimento a priori é uma importante, ainda que óbvia, tese substancial. c) Ouvi certas observações que me levam a supor que a condição de não-circularidade poderia ser um pouco mais esclarecida. Em prim eiro lugar, a observa ção que fiz na p. 123 foi erradam ente entendida como se dissesse que uma definição com o «Jonas é o homem que é referido por esse nome na Bíblia» viola necessa riam ente a condição de não-circularidade. Não viola, se a teoria descritivista puder apresentar uma explica ção da referência dos autores bíblicos que seja inde pendente da nossa. Quando discuto Straw son, reco nheço explicitam ente que um falante pode usar uma descrição deste tipo de «passar a batata quente» e que o procedim ento não é circular desde que a descrição do outro falante não acabe por envolver as referências do falante original. Posso assim dizer: «Seja 'Glum ph' o nome da coisa a que Jones cham a 'Glum ph'», desde que Jones não diga sim ultaneamente: «Seja 'Glum ph' o nome da coisa a que Kripke chama 'Glum ph'.» Deter m inações não-circulares da referência com o: «Seja
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'Glum ph' o homem a que Jones chama 'Glum ph'», ou: «Seja 'Gódel' o homem a quem os especialistas atri buem o teorema da incompletude» (dito por um leigo) enfrentam uma outra objecção: geralm ente, um falante não pode ter a certeza de quem foi que lhe transmitiu a sua referência; e, tanto quanto ele sabe, «os especia listas» podem muito bem saber que foi Schmidt, e não Gõdel, quem demonstrou o teorema da incompletude, ainda que o falante leigo continue a atribuí-lo a Gõdel. Portanto, determ inações do referente destas podem muito bem conduzir a resultados errados e não se pode com certeza dizer que o falante sabe a priori (como na tese 5) que isso não acontece. (Vejam-se as minhas críticas a Strawson no texto.) Se, por outro lado, o fa lante tentar evitar a possibilidade deste tipo de erro usando a sua própria referência como paradigma, como em: «Seja 'Glum ph' o homem a que eu chamo 'Glumph' (agora)», ou: «Seja 'Gõdel' o homem que eu acredito que demonstrou o teorema da incompletude», aqui, de facto, a determ inação da referência é circular (a não ser que o falante tenha já determ inado a sua referência de outra m aneira, mas, nesse caso, será essa a condição determinante, e não a que foi enunciada). Muitas vezes corre-se o risco de que a determ inação da referência caia ao mesmo tempo na circularidade e na vulnerabi lidade ao erro, pois o falante pode não saber se aque les a quem «passa a batata quente» não poderão por sua vez passá-la a ele. Podemos encontrar casos fla grantes de vulnerabilidade a ambos os tipos de crítica em determ inações como: «Seja 'Glum ph' o nome do homem a que todos nós na Com unidade C chamamos 'Glum ph'», ou: «Seja 'Gõdel' o nome do homem que hoje em dia na Comunidade C geralm ente se acredita que demonstrou o teorema da incom pletude», caso se suponha que é esta a determ inação usada em toda a Com unidade C. Pois um falante individual pode errar 237
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numa determ inação deste género, se a com unidade em geral tiver tom ado conhecim ento da fraude Schm idt-Gõdel, mas o falante não; e mesmo que ponhamos de parte a possibilidade de erro, a determinação será cir cular se supusermos que todos os falantes, ou pelo menos a grande maioria, da Comunidade C a usam para determ inar a sua referência. Tudo isto está dito no texto, mas as incompreensões levaram -m e a acreditar que uma reformulação resu mida poderia ser benéfica. Uma maneira bastante di ferente de determinar a referência seria: «Seja 'Glumph' o nome do homem chamado 'Glum ph' pelas pessoas que mo transm itiram (quem quer que sejam), desde que esta minha determ inação da referência satisfaça as condições esboçadas no livro O Nomear e a Necessidade e outras condições que tenham de ser satisfeitas.» Como disse na nota 38, uma determinação deste género constituiria uma confirm ação trivial da teoria descritivista nos termos da minha própria concepção, não fosse esta concepção algo im precisa e não envolvesse ela já a noção da referência do próprio falante (em termos da sua intenção de referir o m esm o que aqueles que lhe transm itiram o nome). M esm o que estes dois pro blemas fossem superados, a descrição resultante dificil m ente seria do tipo das que ocorrem a um falante quando lhe perguntam coisas como: «Quem é o Napoleão?», como pretendiam os descritivistas. Ela só ocor reria aos falantes que tivessem assimilado uma com plexa teoria da referência, e é claro que seria esta teoria, e não o conhecimento pelo falante de uma descrição, que forneceria a representação verdadeira de como foi determ inada a referência. d) «Baptismo» inicial, p. 157. Na nota 70 sobre ter mos para espécies naturais, digo que a noção de am os tra inicial a que aí se apela fornece uma representação 238
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simplista da questão. Para os nomes próprios, é claro que reconheço, de modo análogo, que não tem de haver sempre um baptism o inicial identificável; por isso a representação é simplista. E claro que tam bém julgo, de modo análogo ao que disse na nota 70, que tais com plicações não irão m odificar radicalm ente a repre sentação. No entanto, é provavelm ente verdade que os exemplos sem baptismo inicial identificável são mais raros no caso dos nomes próprios do que no caso das espécies. e) Pai Natal, pp. 154 e 158. Gareth Evans fez notar que há casos semelhantes de troca de referência em que a troca não é de uma entidade real para uma entidade ficcional, mas de uma entidade real para outra do mes mo género. Segundo Evans, «Madagáscar» era um nome que os nativos usavam para uma parte de África; Marco Polo enganou-se e, julgando que estava a seguir o uso dos nativos, aplicou o nome a uma ilha. (Evans usa o exemplo para apoiar a teoria descritivista; eu não, como é evidente.) Actualmente, o uso do nome como nome de uma ilha tornou-se tão comum, que com certeza se sobrepõe a qualquer conexão histórica com o nome nativo. David Lewis fez notar que poderia ter acon tecido a mesma coisa ainda que os nativos tivessem usado «M adagáscar» para designar uma localidade mítica. Portanto, pode haver troca de uma referência real para outra referência real, de uma referência ficcional para uma real e de uma real para uma ficcional. Em todos estes casos, uma intenção actual de nos referirmos a uma dada entidade (ou de nos referirmos ficcional mente) sobrepõe-se à intenção original de preservar a referência na cadeia histórica de transmissão. O assunto merece ser amplamente discutido. Mas talvez se possa explicar o fenómeno em termos gerais pelo carácter pre dominantemente social do uso dos nomes próprios que
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enfatizei no texto: usamos nomes para comunicar com outros falantes numa linguagem comum. Este carácter determina que geralmente um falante tem a intenção de usar um nome da maneira como ele lhe foi transmitido; mas, no caso de «Madagáscar», este carácter social deter mina que a intenção actual de nos referirmos a uma ilha se sobreponha à ligação distante com o uso dos nativos. (Provavelmente, o caso de Miller, de «George Smith» vs. «Newton», pode ser assim explicado.) Para se formular tudo isto com precisão, seria sem dúvida preciso dispor de um aparato mais completo do que aquele que desen volvi aqui; em particular, temos de distinguir uma in tenção actual de usar um nome para referir um objecto da mera crença actual de que o objecto é o único que tem uma certa propriedade; e temos de esclarecer esta distinção. Deixo o problema para um futuro trabalho. f) Talvez deva mencionar (amplificando a nota 2 da p. 69) que a concepção histórica da aquisição dos nomes defendida aqui é aparentem ente muito sem e lhante a certas ideias de Keith Donnellan. (Charles Chastain tam bém fez sugestões semelhantes, mas ti nham uma mistura maior de elementos da velha teoria descritivista.) David Kaplan am pliou a sua investiga ção do «Dthat» (mencionada na nota 22) e desenvolveu uma «lógica dos demonstrativos», na qual, diz ele, uma boa parte do argumento deste meu trabalho pode ser formalmente representada. De facto, uma boa parte deste trabalho sugere um certo aparato formal, embora esta apresentação seja informal. g) A terceira palestra sugere que uma boa parte do que a filosofia contemporânea considera mera necessi dade física é, na realidade, necessária tout court. Deixo para um futuro trabalho a questão de saber até onde se pode levar esta observação.
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afirmações de identidade, 42-44,75,81,121,159-168,170-174, 182, 197-205, 208, 211-212, 214-229 afirmações existenciais, 75-76, 78-81, 111-112, 120-122, 174 água polimerizada, 197 água, temperatura de ebulição da, 106-109,157n; estrutura molecular da, 161,182,194-197, 203, 221-222 Albritton, Rogers, 69n, 189n Alpha Centauri, 156 amarelo, 184-185, 195n, 196n, 203, 210n, 211n amostra inicial (de uma subs tância), 204-205, 208-209, 238-239 Aristóteles, 45-55, 76-77, 110, 115-117, 120, 130-132 Armstrong, David, 219n atributo, 208 baleias, 208 «baptismo» inicial, 136, 157-158, 170, 204-210, 238-239
cadeia causal (na referência), ver cadeia de comunicação cadeia de comunicação (na re ferência), 48n, 112n, 113n, 151-158,170,181n, 204, 209, 232-233, 239-240; e troca de referência, 154-158, 239-240 calor, 160-161,197-198,199-203, 206, 208, 211, 221-228 Catilina, 136-139 certeza, 82, 88 Chastain, Charles, 69n, 240 Cícero, 63, 136-139, 153, 158n, 160, 162-164, 170-172 Colombo, C., 144 conceito-feixe, 108n, 114, 133, 186-187, 188n conexão histórica (de um termo com o referente), ver cadeia de comunicação conotação (Mill), 72, 195, 203-204 contextos epistémicos, 63-65 contrapartes, teoria das, 94-95, 102n, 133-134, 213
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correlação (do físico com o m ental), 160-161, 216n, 221n, 222n critério de identidade, ver iden tidade Dali, Salvador, 79 Dartmouth, 72 Davidson, Donald, 216n Dedekind, R., 143, 148 definição qualitativa, 188-189; dois sentidos de, 106-114, 189n, 203-205, 210n; ver tam bém verdade a priori contin gente, fixar a referência de um termo demónios, 189, 193 denotação (Mill), 72, 203 Descartes, R., 216-217, 229n descrições definidas, alegado sentido «rígido» das, 46n, 113n; referente das, 70-72, 145n; uso «referencial» das, 46n, 70-71,113n, 137n, 144n, 147n; relação com os nomes próprios, ver teoria descritivista dos nomes próprios; e distinções de âmbito, 51-55, 113n, 115-116 designador, 70; não-rígido (aci dental), 99, ver também designadores rígidos designadores rígidos, 42-57, 99, 108-114, 114-240 passim; e alegada «ambiguidade» das descrições definidas, 46n, 113n; e existência contin gente, 42,99,173-174; de jure e de facto, 64n, 65n; prono mes demonstrativos como, 51n, 100n; e afirmações de
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identidade, ver identidade, necessidade da; e a tese da identidade entre a mente e o corpo, 215-229 passim ; nomes próprios como, 43-57, 99-105,110-117,131-133, 164-174; e d istin ções de âmbito, 51-55,113n, 115-116; e termos para espécies e fenóm enos naturais, 182-229 passim; variáveis como, 100n; ver também fixar a re ferência de um termo determina a referência (o refe rente) de um termo, 73-81, 106-240 passim; ver também fixar a referência de um termo Deus, 73, 226-227 director-geral dos Correios dos Estados Unidos da América, o primeiro, 160-161, 217 distinção referencial-atributivo, 46n, 70n, 71n, 113n, 137n, 144n, 147n d istinções de âm bito, 51-55, 113n, 115-116 Donnellan, Keith, 46n, 69n, 70-71, 113n, 137n, 144n, 147n, 240 dor, 160-161, 215, 217-229 Doyle, A. Conan, 233 «Dthat», 113n, 240 dualismo cartesiano, 229n dualismo, ver tese da identida de entre a mente e o corpo; cartesiano, 229n Dummett, Michael, 52n Einstein, A., 140-141, 146, 155 electricidade, 182, 200-201, 206
ÍNDICE
elemento, 182,184,191; ver tam bém ouro energia cinética (das molécu las), ver temperatura entidades ficcionais, 231-234, 239; ver também personagens lendárias; Pai Natal; unicór nios entidades míticas, 69-70, 231-232, 239; ver também entida des ficcionais; personagens lendárias epistemología, noção epistemo lógica, ver verdade a priori; verdade a posteriori neces sária espécie, ver espécies naturais; mítica, ver unicórnios espécies naturais, 182-197, 203-215, 231-232, 238-239; ver também propriedades essen ciais; fixar a referência de um termo; também ouro, tigres essência, 97-98,134,179n, 180n, 194, 208, 212, 218; ver tam bém propriedades essenciais essencialismo, inteligibilidade do, 88-105; ver também pro priedades essenciais estado (propriedade, aconteci mento) mental, ver tese da identidade entre a mente e o corpo estado cerebral, ver tese da identidade mente-corpo estrutura interna (de membros de uma espécie), 186-187, 193, 232 eu, 2 2 8 ,229n; ver também pessoa Evans, Gareth, 239 Evereste, 163
REMISSIVO
fenómenos físicos, ver fenóme nos naturais fenómenos naturais, 160, 182, 197-210, 220-229; ver também propriedades essenciais; fi xar a referência de um ter mo; também calor; luz Fermat, o último teorema de, 84, 212, 214 Feynm an, R ichard, 139-140, 151-152 fibras-C, 160, 215, 221-228 fixar a referência (o referente) de um termo, diferente de dar um sinónim o, 56-57, 106-114,114-240 passitn; e termos mentais, ver dor; e espécies naturais, 188-189, 204-205, 209, 238-239; e fenómenos naturais, 198-203, 205-206, 209-210, 220-229; e nomes próprios, ver teoria descritivista dos nomes próprios, nomes próprios; ver também verdade a priori contingente, metro, n, designadores rígi dos, jarda, amarelo Fósforo (planeta), 64, 75, 137n, 160, 162-168, 172-174 fotões, 160-161, 182, 197, 199-200, 226 Franklin, Benjamin, 217-219; ver também lentes b ifocais, o inventor das Frege, Gottlob, 45, 73-79, 106, 111-114, 147n, 170, 195, 204 gatos, 189-190, 193-194, 203 Gaurisanker, 163 Geach, Peter, 69n, 180-181 Gell-M ann, Murray, 139, 152
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Gilbert, Margaret, 39n Ginsberg, H. L., 123n «Glumph», «Glunk», 129, 236-238 Gõdel, K„ 85, 141-153, 237-238 Goldbach, a conjectura de, 8486, 235 H20 , 161,182,196-197,203,221-222; ver também Água Hadleyburg, o homem que cor rompeu, 70, 74 Henrique I, 133 Héspero, 64, 75, 110-111, 135-136,155,160, 162-168, 172-174, 181n Hilbert, D., 85 Hitler, A., 132, 134-135 Holmes, Sherlock, 233-234 Humphrey, H., 95n, 98-99 identidade tipo-tipo (e tese da identidade entre a mente e o corpo), 215-216, 220-229 identidade, «ao longo dos mun dos possíveis», ver «Identi ficação transmundial»; cri tério de, 59, 91-105, 181n; e lei de Leibnitz, 42; condi ções necessárias e suficien tes para a, 92, 96-97, 101-104; necessidade da, 42-44, 159-168,170-174,178n, 179n, 197-208, 211-229; de proprie dades, 208; como uma rela ção, 42-43,170-171; ao longo do tempo, 92,101-104,181n; tran sitiv id ad e da, 102n, 103n; tipo-tipo, ver tese da identidade entre a mente e o corpo; e vagueza, 101-103
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identificação psicofísica, ver tese da identidade entre a mente e o corpo identificação teórica, 160-162, 182, 197-214; e tese da iden tidade entre a mente e o corpo, 220-229 «identificação transmundial», 57-63, 91-105, 133-134 ilusão óptica, e ouro, 184; e ti gres, 186-187 indiscernibilidade dos idênti cos, 42 indivíduos possíveis mas não-actuais, 233-234 intenção, papel da na preserva ção da referência, ver cadeia de comunicação Isabel II, 174-178, 211 Jack, o Estripador, 137, 155 Jacobson, Anne, 48n Jarda, 133 «Joe Doakes», 74 Jonas, 122-123, 146, 236 Kant, Immanuel, 82, 87, 182-183, 190n, 203, 234-236 Kaplan, David, 51n, 95n, 113n, 240 Kneale, William, 124-126, 128 lei de Leibniz, 42 Leibniz, G., 95n lentes bifocais, o inventor das, 159, 217, 227 Leverrier, U. J. ]., 137n Lewis, David K., 94-95, 102n, 134, 219n, 239 lin gu agem «tem aticam en te neutra», 219
ÍNDICE
Linsky, Leonard, 70n Lockwood, Michael, 63n lógica modal quantificada, ver mundos possíveis lógica modal, ver mundos pos síveis luz, 160-161, 182, 194-199, 203, 210, 226 Madagáscar, 239-240 marcas (propriedades) identi ficadoras originais de uma espécie n atu ral, 184-189, 191-194, 197-198, 206-207, 232 Marcus, Ruth Barcan, 162-163 materialismo, 6 8 ,216n, 219-220, 229; ver também tese da iden tidade entre a mente e o corpo mecânica quântica, 95n mesa (composição da), 97-98, 101-105, 178-180, 194, 212-213 m etal, conceito de, 183; ver também ouro, espécies natu rais metro, 106-109, 117, 132, 157n, 170, 205 Mill, John Stuart, 63-64, 72-75, 195-196, 203-204 Miller, Richard, 156n, 240 modalidade de re, ver proprie dades essenciais; cepticismo acerca, 88-105 Moisés, 78, 80-81, 111-112, 114,
121-122 movimento molecular, 160-161, 197, 199-202, 208, 221-228 mundos possíveis, 39-240 passim; e o mundo actual, 58-63,
REMISSIVO
177-178, 180n; concepções correctas e incorrectas de, 57-63, 92-105, 133; identida de «ao longo dos», ver «Iden tificação transmundial»; e probabilidade, 58-63; e se mântica da lógica modal, 42, 57n, 61 n, 62n, 92-93, 98n, 113n, 234; estipulados, não descobertos, 94, 100 Nações Unidas, 72-73 nações, relação com os indiví duos, 101 Nagel, Thomas, 216n, 219n «Nancy», 181n Napoleão, 75, 158, 238 necessidade, 42-44, 81-110, 111 -135 passim, 159-180,188-236, 240; da composição, 97-98, 101-105, 178-180, 194, 212-213; de re, ver propriedades essenciais, modalidade de re; da identidade, ver iden tidade; lógica, 83, 90; como uma noção metafísica, 81-88,189-190,205,234-236; da origem , 174-180, 211-213, 229n; física, 83, 161, 192, 240; ver também verdade a priori contingente, verdade a posteriori necessária Neptuno, 137n, 157n Newton, Isaac, 156, 159, 240 Nixon, Richard, 89-100,103-105, 181n noção metafísica, ver necessi dade, verdade a posteriori necessária nome, «nome com um », 194; «nome geral» (Mill), 195,
245
O NOMEAR E
A NECESSIDADE
203; próprio, ver Nom es ouro, 87, 182-185, 190-193, 195, próprios; «nome singular» 203-210, 214, 232; dos tolos, (Mill), 195, 203; ver também ver pirite de ferro espécies naturais, fenóme nos naturais Ji, 114 nomes próprios, imagem cor Pai Natal, 154, 158, 239 recta da referência dos, 151papel causal (dos estados men -158, 160-240 passim; teoria tais), 219 descritivista dos, ver teoria «particulares puros», 60, 104 descritivista dos nomes pró Peano, G„ 143-144, 148 prios; em contextos epistépersonagens lendárias, 121-123; micos, 63-65; na ficção e em ver também entidades ficcio lendas, 121-123, 154, 157nais -158,233-234, 239; «homóni pessoa, e identidade com o cor mos», 47-51; e afirmações de po, 215-217; ver também tese identidade, ver identidade, da identidade entre a men necessidade da; como desigte e o corpo nadores rígidos, ver designapirite de ferro (ouro dos tolos), dores rígidos; e distinções 185, 191, 203, 205, 232 de âmbito, 51-55, 115-116; problema mente-corpo, 6 8,229n; troca de referência dos, 154ver também tese da identida -158, 239-240; e termos catede entre a mente e o corpo goriais, 181n; e termos para pronomes demonstrativos, 51 n, espécies naturais e para fe 73n, 100n, 163-164, 240 nómenos naturais, 194-196, propriedade necessária, ver 204, 238-239; ver também em propriedades essenciais nomes próprios individuais propriedades essenciais, de in nove, número, 89, 98-99 divíduos, 88-105, 174-180, Nozick, Robert, 147n 194, 211-213, 229n; de espé número atómico, 182, 190-193, cies e fenómenos naturais, 208, 211; ver também ouro 190-193, 197-232 passim; de sensações, 217-229 Onassis, Aristóteles, 49 p ro p ried ad es, co n tin g en tes origem, necessidade da, 174(acidentais) usadas para fi -180, 211-213 xar a referência, ver verda ostensão, 74,157-158,181n, 204; de a priori contingente, fixar ver também «baptismo» ini a referência de um termo; cial, pronomes demonstra disposicionais, 210n; essen tivos ciais, ver essencialismo, pro ouro dos tolos, ver pirite de priedades essenciais; men ferro tais e físicas, ver tese da
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ÍNDICE
identidade entre a mente e o corpo; necessárias, ver essencialism o, proprieda des essen ciais; «puras», 195n; originalmente usadas para identificar uma espé cie natural, 184-189,191-194, 197-198, 206-207, 232 Putnam, Hilary, 69n, 188-190, 193 Quale, 196; ver também tese da identidade entre a mente e o corpo qualidades, primárias e secun dárias, 210 Quine, W. V., 76n, 89, 162-163 radiação electromagnética, 160, 197 rainha, a, 174-178, 211 referente, de uma descrição, 70-72, 145n; de um nome próprio, ver teoria das des crições, nomes próprios; se mântico, 71n; ver também fi xar a referência de um termo relâmpago, 182, 200-201, 203 Rosser, J. B., 171 Russell, Bertrand, 45-56, 63, 73-79, 106, 111-114, 116, 126, 128,147n, 159n, 163,195,204 Sacro Império Romano, 72 Salmón, Nathan, 40n «schmidentidade», 171-172 «Schmidt», 142-151, 237 Scott, Walter, 73n, 74, 79, 126 Searle, John R., 78,115,130-132 sensações, ver calor, tese da identidade entre a mente e o corpo, dor, amarelo
REMISSIVO
sentido fregiano, 73, 77,112, 204 sinonímia, ver verdade a priori contingente, fixar a referên cia de um termo situação epistémica, qualitati vamente idêntica, 166-168, 212-215, 223-226 Slote, Michael, 69n, 180n «Smith, George», 156-159, 240 Sócrates, 76n, 124-126, 128-130 som, 160, 199, 202n, 203 Sprigge, Timothy, 174-175 Stalnaker, Robert, 63n Strawson, P. F., 114, 120, 147n, 150, 152-153, 236-237 Stroud, Barry T., 234 substância, ver espécies natu rais, ouro, água substantivo contável, 203; ver também espécies naturais su bstitu ibilid ad e (de nomes próprios), 63-65 temperatura, 197; ver também calor; temperatura de ebu lição da água, 106-109,157n teorema das quatro cores, 166 teoria descritivista dos nomes próprios, versão do «feixe» distinguida, 76-80, 114-115, 130, 204; condição de não-circularidade im posta a, 123-130, 147n, 149-150, 236-238; como teoria do signi ficado, 44-57, 73-81,106-134, 195, 204; teoria do significa do diferente de teoria da referência, 44, 56-57, 79-81, 106-135 passim, 137n, 157n, 158n, 170; apenas como teo ria da referência, 110-111, 121-123, 135-158, 170
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O NOMEAR E
teoria dos conceitos psicológi cos como estados funcio nais, 217n teoria dos nomes próprios em termos de um «feixe de des crições»; ver teoria descritivista dos nomes próprios termo categorial, 181n termo de massa, 195, 203; ver também ouro, água termo geral, 195-196, 203-210; ver também espécies natu rais, fenómenos naturais termo singular, ver descrição definida, termo geral, nome, nome próprio tese da identidade entre a mente e o corpo, 68, 160-162, 215-229; e dualismo cartesiano, 229n; a respeito de estados particulares, 215, 217-220; a respeito da pessoa e do cor po, 215-217; a respeito de tipos de estado, 215,220-229 tese identitativa, ver tese da identidade entre a mente e o corpo tigres, 185-188, 194-196, 203, 206-207, 231-232 Túlio, 63,160,162-164,170-172; ver também Cícero Twain, Mark, 178 unicórnios, 69-70, 231-233 vacas, 194-196 Vénus, 75, 162-168; ver também Héspero verdade a posteriori necessária, 83-87, 234-236; e proprie-
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A NECESSIDADE
dades essenciais de indiví duos, 97-98, 100-101, 174-180, 194, 211-213; e afirma ções de identidade entre nom es, 162-168, 170-174, 211-215; e matemática, 8387, 166, 212, 214, 235; e tese da identidade entre a men te e o corpo, 215-229; e es pécies naturais e fenómenos naturais, 189-193, 197-203, 206-207, 211-229; e situação epistémica qualitativamen te idêntica, 166-168, 212-215, 223-226 verdade a posteriori, ver verda de a priori, verdade a poste riori necessária verdade a priori (aprioridade), como noção epistemológica, 81-88,117,189-190, 234-236; concepções de Kant acerca da, 82,182,234-236; ver tam bém verdade a priori contin gente, verdade a posteriori necessária verdade a priori contingente, 56, 106-109, 117, 121, 132-133, 136-137, 138-151 passim , 157n, 204-208; ver também fixar a referência de um ter mo, designadores rígidos verdade analítica, 82, 87, 109n, 182, 189, 204 Wiggins, David, 42, 216n Wittgenstein, Ludwig, 78, 80, 106-107, 121 Ziff, Paul, 79-80, 138, 185
1. QUE QUER DIZER TUDO ISTO? Thomas Nagel
12. O SIGNIFICADO DAS COISAS A. C. Grayling
2. A ARTE DE ARGUMENTAR Anthony Weston
13. ELEMENTOS DE FILOSOFIA MORAL James Racheis
3. MENTE, HOMEM E MÁQUINA Paul T. Sagal 4. DICIONÁRIO DE FILOSOFIA Simon Blackburn 5. ELEMENTOS BÁSICOS DE FILOSOFIA Nigel Warburton 6. LÓGICA: UM CURSO INTRODUTÓRIO W. H. Newton-Smith 7. SERÁ QUE DEUS EXISTE? Richard Swinburne 8. A ÚLTIMA PALAVRA Thomas Nagel 9. ÉTICA PRÁTICA Peter Singer 10. PENSE: UMA INTRODUÇÃO À FILOSOFIA Simon Blackburn 11. ENCICLOPÉDIA DE TERMOS LÓGICO-FILOSÓFICOS Org. de João Branquinho e Desiderio Murcho
14. UM SÓ MUNDO: A ÉTICA DA GLOBALIZAÇÃO Peter Singer 15. INTRODUÇÃO À FILOSOFIA POLÍTICA Jonathan Wolff 16. UTILITARISMO John Stuart Mill 17. LINGUAGENS DA ARTE Nelson Goodman 18. QUE DIRIA SÓCRATES? Alexander George (org.) 19. PROBLEMAS DA FILOSOFIA James Rachels 20. O CARÁCTER DA MENTE Colin McGinn 21. A VIDA QUE PODEMOS SALVAR Peter Singer 22. O NOMEAR E A NECESSIDADE Saul A. Kripke