Jo José Guilherme Merquior
MIŒEL
OUCAULT oNiûis ismodeCátedra Tradução de Donaldson M. Garschagen
eOTORA
NOVA FRONiEiRA
Em E m Michel Foucault ou o niilismo de cátedra, Jo J o s é Gu G u ilh il h erm er m e M e r q u io r ofere ofe rece ce u m a de d e sin si n ibid ib ida a av a v a lia li a ç ã o crít cr ític ica a d a con co n trib tr ibu u içã iç ã o g l o b a l d e F o u ca c a u lt co m o ‘ "histo "h istoria riado dorr d o p r e s e n t e ”. Seu estu es tud do ab a b ran ra n g e t o d o s o s liv li v r o s d o fi f i ló s o f o , incl in clus usii ve o s úl tim t im o s v o lum lu m e s d e sua su a ina in a c a bad ba d a História da se xualidade.
T l T U L O O R I G I N A L ; F m j ji ji u U ^ ® J.C . M erquior, erquior, I9 I 98S
Cubiicado originalmente originalmente em ing ingl&> pela William William CoUns Sons & C o. U d ./l'o ./l 'onn ian ia n a Paperbacks
Dirciioí Dirciioí de cdiffio cdiffio da o bra cni tlnsua po nusuc nus ucsa sa no Bras Brasil il adquiridas peia peia l-DITORA NOVA FRONTEIRA S/A Rua Maria Angélica, I6R I6R — t^ g o a — C EP EP;; 22.46 22.4611 Tel.: Te l.: 2S62S6-78 7822 22 Endereço tcTcg tcTcgránc ránco: o: NEOFRON NEOF RONT T — TcJ« Tc J«:: 34695 34695 ENFS BR Riüde Janeiro. RJ. Rcvisflo Ijpogr&fíca: N a i r DA.Mr.Tro UMttI:Kro FlOUt^lKtlM PlMO C a k l o s A l d e r i o
M e o e if o s
CIP'Brafil. Catalog^ao-na>fome Catalog^ao-na>fome Sindicato Sindicato Nacional d m Ediiores de Livros. Livros. RJ.
M567m
Merqu Me rquior ior,, Jo& Jo&é Guilherm Guil herme, e, 1941* Mivhc ivhcll Foucault, ou o niilis niilismo mo dc câ i^ n i / J.G . Merqu M erqu ior; traduçAode traduçAode Donaldvon M. Carschag Cars chagcn. cn. <— Rio dc Janeiro : Nova Fronte Fro nteira. ira. 1985 1985..
(CdcçAo Logii)
Biblioi^afia.
i. Foucaull. Michcl. 192&>i9R4.2. Filosona francesa-sic. XX. 3. Niilismo (Pilosolls). (Piloso lls). I. Titulo. Titulo . II. T ítulo: O niilism niilismoo dc cíitedra. cíitedra. 85.0890
CDD — 194
SUMÁRIO
Aos incautos .................................................................... I. O historiado historiado r do presen te .............................. II. A Grande Internação , ou du côté de la fo lie ................................................................... III. III. Uma arqueologia da s ciências h u m a n a s ...... ......... ...... ...... ...... ...... ...... ...... ...... ...... ...... ...... ...... ...... ...... ...... ...... ...... ...... ...... ..... IV. Da prosa pro sa do mundo à m orte do homem .... V. A “ arq ar q u eolo eo logg ia” a v a l ia d a .... .......................... .................. .......... .... VI. O a rq u iv ivoo i r ô n i c o .... ....... .......... .......... ...... .......... .................. .............. ............. VII VII. M apeando a sociedade sociedade c a rc e rá ria ................. VIII. VIII. IX. IX.
X.
9 II 27 49 63 83 11 115 129
A “ crato log ia” de Fo ucau lt: sua teoria d o p o d e r .......... ............... .......... .......... .......... .......... .......... .......... .......... .......... .......... ......... .... 165 165 Políticas do co rp o, técnicas da alma alma:: a his his tória da sexualidade segundo Foucault ....... 183 183 Retrat Retr atoo do ne o-a na rqu ista ............................... 217
No N o tas ta s .................................................... ................................................................................. ................................. ....249 249 Bibl Bi blio iogr graf afia ia .......... .............. ......... .......... .......... .......... .......... .......... .......... .......... .......... .......... .......... .......... ....... 261 261 índice de autores citados ................................................ ................................................ 273
Uma cultura superior tem c om o carac terística preza r rnais as peqi4enas verda des despretensiosas, descobertas através de método rigoroso, que os erros des lumbrantes e deleitosos que brotam de épocas e povos metafísicos e artísticos. N ie
t z sc h e
AOS INCAU IOS
A idéia de publicar no Brasil, concomitanlemente com a edição original inglesa, este antipanegírico de Fojcault nasceu dc uma constatação irritante: a de que, na maioria esmagadora dos casos, a tribo foucaldiana (entre nós, barbaramente autodesignada como “ foucaiiltiana") tem o hábito de ignorar sistematica mente o volume e qualidade das críticas feitas ãs pro ezas histórico-filosóficas de seu ídolo. Portanto, quem quiser brincar de foucaldolatria fará melhor se passar ao largo destas páginas. Porém o caso Foucaull decerto apresenta suficiente interesse para justificar uma aná lise extensa (embora não exaustiva) de sua ambiciosa denúncia da cultura moderna. Sebastião Lacerda acompanhou o projeto desie li vro. desde sua nascente inglesa, com secreta volúpia. Se, porventura, o sofisticado Partido Epistémico Fou caldiano (PEF) ou o inculto Movimento Foucauitiano Pró-Anarquia e Perversão (MOFAP), om em curso de registro na Nova República, vierem a tomar o poder, digo, 0 poder-saber, ou. pior ainda, o saber-poder edi toriais, desconfio que meu amigo Sebastião estará frito: só lhe restaria refugiar-se dc vez na carreira operística
e nos clar o Simone Boccanegra dc século, cantado em Glyndeboume sob a batuta sans pareil do maestro Mauricio Magnavita. Eu bem que avisei. Marília Pes soa e Roberto Lacerda também são muito culpados, pois com andaram a edito ração do livro com a mais bem -h um orada com petência. Devo ainda especiais agradecimentos ao consciencioso tradutor, Donaldson Garschagen, e a meu velho cúmplice José Mario Pe reira Filho, que ajudou a transpor a numerologia das notas para as referências adequadas nas muitas trdduçôes brasileiras do calvo Nietzsche de Saint-Germaindes-Prés, Q ue, aliás — confesso com prazer —, morreu em franca evolução intelectual. J G M Londres, agosto de 1985
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I. o HISTOR IADO R DO PRLSIHNTE
N unca fu i freudiano, nun ea Jui niarxisla e nun ca fu\ eslruturalistu. Mi
c h e l
Fo
u c a u l t
Quando Michel Foucault morreu sm Paris, viti mado por um tum or cereb ral, em jun ho de 1984, o jo r nal Le M onde publicou um necrológio assinado por Paul Veyne, eminente historiador clássico e colega de Foucault no Collège de France. Para Veyne. a obra dc Foucault era " o acontecimen io intelectual nuü s im f)ortante do nossif sécu lo " êvènenw nt de pensée le plus im porta nt de notre siè cle *').Ÿ o\icos concordarão com essa afirmação bombástica. No enlanto, está fora dc dúvida que. ao falecer, o herói dc Veyne era um dos mais influentes pensadores dc nosso tempo. Foucault pode não ter sido o maior pensador de nossa era, mas foi. certamente, a figura central da filo sofia francesa desde Sartre. Ora, desde muito a ma neira francesa de fazer filosofia moderna tem sido bas tante diferente daquela que normalmente é tida como habitual no mundo anglo-saxônico — ao menos até há pouco te m po. Nos países de expressão inglesa, a filo sofia “ norm al” é geralm ente acadêm ica no estilo e ana lítica no método. Vale a pena ressaltar esse ponto por que algumas vertentes continentais do moderno pen samento filosófico, principalmente em áreas de expres-
bào ulciliã. iciri sidu (ãu acaüciiiicub — c, cuin freqüên cia, de maneira pesada — quanto sua contraparte ingle sa, sem, entretanlo, serem rigorosamente analíticas no seniido em que o foram Russell e Wiitgenstein ou Ryle e Austin, ou em que ainda o são, na maioria, pensado res anglo-saxônicos vivos, como Quine. Em contraste, a mais prestigiosa corrente filosófica da França seguiu um caminho muito diferente. É lícito dizer que ludo começou com Henri Berg son. Nascido em 1859, Bergson foi exatamente con temporâneo do iniciador da filosofa moderna na Ale manha. Edmund Husserl. E, como este, exerceu uma longa carreira no magistério — mas suas obras adquiri ram forma cada vez mais ensaística. enquanto multi dões compareciam às suas conferências e ele próprio se tornava uma espécie de ídolo. Logo após sua morte, em 1941. surgiu um novo guru filosófico, dono de um estilo altamente litenirio, na pessoa de Jean-Paul Sartre (1905-1980), o inigualável supcrsíur (mas, nem por isso, incontestado) do pensamento francês até a década de 1960. Tal como Bergson, Sartre aliava a brilhantes do tes literários uma teorização desbragadamente liberta de disciplina analítica. Foi a essa tradição de gUinioitr. antes que de rigor filosófico, que pertenceu Foucaull. Seria grosseira iryustiça sugerir que toda a filosofia gaulesa do século XX deriva dessa sedutora prática li vre e solta, a que som os tentados a ch am ar iíter o fiilosofia” . N ão ob stan te, em nenhum a o utra cu ltura filosòtica moderna encontramos esse lipo dc pensador em lal preeminência. Ademais, a lítero-filosofia fran cesa foi um gênero misto, de qualidade vária. Rara12
mente se revestiu de uma forma literária ostensiva, como a que Nietzsche ousou empregar. Em vez disso, assumiu em geral o aspecto de investigações circuns pectas, como em A evolução criadora (1907), de Berg son, ou até de tratados, como O ser e o nada (1943). de Sartre, ou Fenomenologia da percepção (1945), de Merleau-Ponty. Conludo, aos olhos de leitores de filo sofia educados dentro da moldura analítica (ou ainda nos solenes jargões do padrão teórico alemão), o resul tado finai era praticamente o mesmo. Ora, o ponto de partida de Foucault parece ligado a uma mudança sutil no destino da lítero-fílosofta. Foi como se, após o esgotamento do existencialismo (e da mal orientada tentativa do último Sarlre de combiná-lo com o marxismo), a lítero-filosofía passasse por um pe ríodo de dúvidas interiores. Ao que parece, a maré va zante da síndrome de angústia-e-engajamento, na at mosfera intelectual mais détachée da Quinta República de de Gaulle, lançou esse género teórico numa conside rável desordem. Em conseqüência disso, a filosofia francesa veio a defrontar-se, por assim dizer, com uma opção: ou sc convertia ã analiticidade (uma vez que a apropriação dc temas alemães, sobretudo tomados a Husserl e a Heidegger, já havia sido realizada pelo existencialism o) ou im aginava uma nova estratégia pani sua própria sobrevivência. Os mais brilhantes dentre os jovens filósofos opta ram pela segunda alte rnativa. Em vez de tornarem a filosofia mais rigorosa, resolveram fazer com quc cia sc n utrisse do crcsccntc prestígio das “ciências humanas” (e.g., a lingüística, a antropologia estrutural, os estud os históricos d a escola dos Annales. 13
a psicologia frendiana) hem como da arte e Ütei'atura de vanguarda. Assim, a h'iero-filosofia logrou recuperar sua vitalidade pela anexaçà<* île tiavos cnnicûdos, to mados de emp réstim o a outros domínios intelectuais. Entre esses novos pensadores avultaram Michel Foucault c Jacques Derrida. A "gramatologia” (mais larde rcbatizada como “desconstrução") de Derrida definia-se como uma retomada radical da teoria da lingüística estrutural dc Saussure. Já Foucault voltou-se para a história, porém atento a alguns fascinantes terri tórios inexplorados dentro do passado ocidental: a evo lução das atitudes sociais em relação à loucura, a história da medicina protomoderna, os fundamentos concei tuais da biologia, da lingüística e da economia. Ao pro ceder dessu forma, Foucault logo adquiriu a reputação — juntam ente com o antropólogo C au d e Lévi-Strauss, o crítico literário Roland Barthes e o psicanalista Jac ques Lacan — de ser um dos tetrarcas do estruturalis mo, o modismo intelectual que brotou das minas da fi losofia existencial. Em seguida, dividiu com Derrida a liderança do “ pó s-es truturalism o'’, ou seja, do relacio namento tipo amor-ódio com o espírito estruturalista que veio a prev alecer, na cultura parisiense, a p artir de fins dos anos 60. Foucault era uma personalidade intelectual comple xa. quase indefinível. É possível que sua afirmação mais conhecida seja ainda a agourenta proclamação da “ morte do homem ” , ao fim de Á s palavras e as coisas, uma ousada “ arqueologia“ das estruturas cognitivas, que o colocou em evidência desde meados dos anos 60. Todavia essa elegante distância anti-humanista, jamais 14
repudiada, não o impediu de m oslrar um fraco pela C a lifórnia como paraíso da contracultura, nem, com efei to, de promover uma difamação romântica da razão ocidental, tão passional quanto a tentada por Herbcrt Marcuse. Única estrela do estruturalismo a partilhar plenamente o espírito de maio de 1968, Foucault era um professor polido que adorava escandalizar o í'í7«hiishtficní parisiense, onde era adulado, quer asseve rando solenemente que a obrigação suprema dc um pri sioneiro era tentar a fuga, quer apoiando com entu siasmo a explosão revolucionária do aiatolá Khomeini, em desafio a todos os dogmas esquerdistas. Sua con duta era a dc um radicaJismo excêntrico, assim com o suas obras eram as de um estruturalista rebelde. Tão rebelde que — com o se vé pela no ssa epígrafe rejeitava energicamenie o rótulo de estruturalista. Este livro constitui um ensaio crítico sobre sua obra. Buscarei não só fazer uma avalia(,ão imparcial de Iodos os seus principais textos como também examinar u.Ti razoável volume da bibliografia a seu respeito. Ao mesmo tempo, lentarei explicar os desvios e as mudan ças em seu pensamento, até suas últimas obras — os volumes finais de sua H istória
cscola católica. Terminada a guerra» o jovem Michel tornou-se interno do Lycée Henri IV em Paris, preparando-se para o exam e de adm issão a um a das grandes écoles francesas, a Ecole Normale Supérieure. AH. e na Sorbonne, foi aluno de Jean Hyppolite, tradu tor e intérprete da Fenomenologia do espírito, de He gel, de Georges C anguilhem. historiador da ciência, e do futuro fundador do marxismo estruturalista, Louis Al thusser. Saiu como normalien aos 23 anos de idade, no mesmo ano em que recebeu seu diploma de filosofia. Ingressou no Partido Comunista, mas rompeu com ele em 1951. Menos de um ano depois, insatisfeito com a filosofia. Foucault, que também recebera educação formal em psicologia, voltou-se para a psicopatologia, área cni que viria a publicar seu primeiro livro (1954). Durante quatro anos lecionou no Departamento de Francês da Universidade de Uppsala, sendo então no meado diretor dos Institutos de Francês de Varsóvia e Hamburgo. Durante a estada na Alemanha, completou seu longo estudo sobre a história da loucura, com o qual fez jus ao doctorat d'Etat. Em 1960, tornou-se chefe do Departamento de Fi losofia da Universidade de Clermont-Ferrand, na Au vergne, onde perm anec eu até que a glória o cond uzisse a Paris» após a publicação, cm 1966, sob o prestigioso selo da Gallimard, de A s palavras e as coisas, um clássico nato do estruturalismo no apogeu. No fim da década de i960, lecionou Filosofia na Universidade de Vincennes, uma instituição dc vanguarda, c cm 1970 ganhou a cátedra de História dos Sistemas de Pensa mento no Collège de France — anteriormente ocupada 16
por H yppolite. Concom itantem ente com suas funções magisteriais. Foucault fazia muitas conferências e apresentava certa militância gouchiste: editou o sema nário de esquerda Liberation, estimulou reformas pe nais através de seu Groupe d'information sur les Pri sons e se manifestou a favor do movimento ^ay\ Em Inúmeras entrev istas provou ser também, den tre todos os mestres estruturalistas, o mais desabrído polemista, contra-atacando com vigor as críticas partidas de nuiítres-à-penser como Sartre, ou de contestadores mais jove ns como Derrida. Como descrevia Foucault sua própria filosofia? De certa feita, respondendo a críticas de Sartre, Foucault chegou a dar a ente nd er que o estruturalism o, enq uanto cutegoría, só existia para os Ícigus>, para aqueles que não pertenciam ao m ovim ento.' Q ueria dizer, n atural mente, que a “ tetrarqu ia” que dom inava o pensamento francês nos anos 60 (uma pentarquia, se incluirmos Louis AIlhusser, o senhor do estruturalismo in partihus fidelium , ou seja, na Marxlàndia) não constituía um grupo coerente. No prólogo à tradução inglesa daquele que é tido como seu lípico livro estruturalista, A s pala vras e as coisas, advertiu que, em bora alguns ‘'com en tadores ineptos" na França o houvessem classificado como estruturalista, ele não utilizava "n enh um ih?s m é todos, conceiftfs ou term
"a consciêncitt imfuii’ta Jo sabor moJer/m'*. A partir de então, declarou várias vezes que seu inluito consis tia em escrever “ a história do p res en te".-
Localizar os esteios conceituais de alguns processos-chavc da cuUura moderna, colocando-os em pers pectiva histórica: eis o propósito dc to dos os principais livros de FoucauU publicados nos vinte e poucos anos que mediaram entre História Ja h íu urti na iJaJe clássica (1961) e História Ja sexualuUiJe^ cujo tomo final viria a ser publicado postumamente. O autor desses livros foi um pensador que morreu ainda na meia-idade. Nascido em 1926, FoucauU per tenceu à geração de Noam Chomsky (nascido cm 1928), Leszek Kolakowski (1927), Hilary Piiinam (1926) e Ernest Gellner (1925). Era um pouco mais jo vem do que John Rawis (1921) ou Thomas Kuhn (1922), um pouco mais velho do que Jürgen Habermas (Í929), Donald Davidson ou Jacques Derrida (ambos de 1930); porém consideravelmente mais idoso do que Saul Kripke (1940). Trata-se. na realidade» de um grupo heterogêneo no pensamento coniemporáneo. mas sào eles que, desde meados da década dc 60 e dos primei ros anos da década de 70, tém, de muitos modos, modi ficado o panorama filosófico a ponto de rivalizarem en tre si pela sucessào da classe de 1900-1910 — a classe de Hopper, Gadamer e Quine — como os principais formuladores de nossa perspectiva conceituai fora do domínio científico. Ora, só u metade, no máximo, des ses p ensad ores mais jove ns já tem fama entre o público em geral. E FoucauU parece colocar-se logo em se 18
guida a Chomsky (que não é filósofo por formação) como uma verdadeira celebridade entre todos eles. Por quê? A principal razão para o impacto dc FoucauU pa rece estar no próprio conteúdo de seu trabalho. Um discurso sobre o poder e sobre o poder do discurso: que poderia ser mais atraente para intelectuais e depar tamentos de humanidades, cada vez mais radicais em sua visão do mundo, mas fartos dos dogmas tradicio nais do revolucionismo de esquerda? Na origem da grande audiência de FoucauU está o avolumar-se do cisma intelectual e acadêmico, que. de maneira geral, sobreviveu ao refluxo da revoUa estudantil no decorrer dc toda a última década. Michel FoucauU foi um filó sofo que apresentou nm lipo inusitado de conheci mento (qual dos humanistas de hoje é capaz de discutir a gramática de Port-Royal, os naturalistas anteriores a Darwin ou a pré-história do moderno sistema peniten ciário?), dons invulgares de escritor e. last hiii not feast. notáveis aptidões retóricas a serviço de idéias e pressupostos altam ente aprazíveis a amplos seto res da infclligcnísia ocidental, contribuindo ao mesmo lempo, dc modo decisivo, para forjar essas mesmas noções. É isso que está em jogo . fundamentalmente, na preocupa ção dc FoucauU com uma critica “ história do presen te“ . Esbocemos então — como hipótese de trabalho para com eçar uma análise crític a de seu pensam ento — uma ampla caracterização de seu programa filosófico. I:i vimos FoucauU descrever-se como um historiador do presente. Com efeito, para muitos estudiosos da fi losofia continental ele é o p ensador qne fundin a fdoso 19
fia vom a hislória e que, ao fazê-lo, realizou uma aná lise fascinante da civilização moderna.
Em seus últimos anos de vida. Foucault costu mava delinear seu projeto de uma análise históricofílosófíca da modernidade sugeríndo que ele abrangia duas metas distintas: uma, a identificação das "condi ções históricas" da ascensão d a razão no O cidente; ou tra, 'Uami análise do momenio presente”, para verifi car em quc situação nos encontramos agora em face dos fundamentos históricos da racionalidade como espírito da cultura moderna. A filosofia moderna, explica ele, deriva em grande parte do desejo de investig ar o surgim ento histó rico da razão autônoma, emancipada. Tem como tema, pois, a história da razão, da racionalidade nas grandes formas dc ciência, tecnologia e organização política. Nessa medida, ela está atrelada ã célebre pergunta de Kant: “ Que é 0 lluminismo?" (1784), a que Foucault se re porto u em vários lextos. Com muita perspic ácia, ele observou que na França, a partir de Comte, a indaga ção kantiana tinha sido traduzida como “ Que e a histó ria da ciên cia? ", ao passo que na Alemanha a pergunta ganhou ou tra forma: desde M ax W eber até a “ teoria crítica" dc Habermas, ela atacou o problema da racio nalidade social. Quanto a si próprio, Foucault encarava sua contribuição c o m o um desvio dentro da tradicional preocupação francesa com a razão como conhecimento: ‘'Enq ua nto na Frnnçn historiadores de ciência estavam interessados essencialmente no problema do modo como se constitui um objeto científico, a per20
f>t4Hta que eu fa zia a m im m esm o era a seguinte: vomo fo i que o sujeito hum ano tom ou a si m esm o com o ob je to de possível saber? A través de quais fo rm a s de ra^ cionalidade e condições históricas? E, finalmente, a (jue preço? Esta é a minha pergtmta: a que preço os sujeitos podem fala r a verdade sobre si m esm os? "^ Para Descartes, convém lembrar, o fato de o su je ito humano poder tom ar a si mesmo com o obje to era precisamente o com eço do saber sólido. Para Foucault, porém, com o para os estruturalistas, isto representaria simplesmente uma petição do princípio. Pois se há um ponto em que ele e os estruturalistas estão de acordo é nisto: a idéia de um sujeito-fundam ento deve ser aban do nada. uma vez que, alegam eles, ela implica a primazia de uma consciência transparente e nm Taial tiesdém por aquilo que o estruturalismo precisamente busca: as de terminações ocultas, inconscientes, do pensamento. Assim, o sujeito fundamental — o tema cardeal do ide alismo, de Descartes a Hegel — transforma-se na bête noire do estruturalismo. Em seu ligeiramente enfado nho tratado “ m etodológico” , A arqueologia do saher (1969), Foucaull foi claro: sua tarefa, escreveu ele, consistia em "libertar a história do pe nsam ento de sua sujeição à transcendência". Qual transcendência? Bem, antes de mais nada. a do odiado sujeito: M eu obje tivo era analisar a história na descontinuidade que nenhuma teleologia haveria de reduzir de antemão: (...) permitir que ela fosse desdobrada numa anonimidade sobre a qual ne nhuma constituição transcendental imporia a 21
Jornui do sid eito: abri-la para um a temporalidade (fue nào pro m etesse o retorno de qua kfuer aurora. M eu objetivo era depurada de todo narcisismo transcendental.^
Algumas páginas adiante ele S2 proclama inocente da acusação de que o estruiuralismo ignora a história, afirmando que jamais negou a possibilidade de mu dança do discurso (“ discurso” é a palavra com que ele designa o pensamento como prática social); ludo que ele fez foi privar "a soberania do sujeito" do “direito exclusivo e instantâneo*' de operar mudanças, isto é. de dar origem à história. O que quer Foucault «lizer exalamenlt'? Hoiive comentaristas que julgaram a um só icmpo extravagan te e o bscu ra essa disposição de libertar o pe nsam ento da transcendéncia.5 A m aneira com o Foucaull utiliza as pa lavras mantém-se a milhas üe distância das cautelas da filosofia analítica. Temos a impressão de pisar cm ter reno mais firme quando o trecho citado passa a um exorcismo da “ teleologia” no conhecimento histórico. Aqui, o “ narcisismo transcen denlal’% o sujeito autoconlemplativo. parece estar apontando para aquilo que deu ao historicismo tanta má fama: sua propensão a de fender lógicas da história infundadas, impostas ao regisiro histórico em vez dc serem inferidas dele. Será mesmo a isso que Foucault queria chegar em sua ten tativa de apreender a (pré-)história do presente em di versas práticas sociais, desde a ciência social e a psi quiatria alé o modo como tratamos os criminosos e a
nossa icléiu dc sexualidade? Será cssc o ponto dc parlida de sua história filosófica? Foucault aludiu à conveniência de se considerar seu projeio de uma história do presente como uma es pécie de síntese entre as duas linhas de investigação — a francesa e a alemã — derivadas da indagação kanliana sobre o lluminismo, quer dizer, sobre a natureza da razão moderna. Da Unha francesa — a teoria (comliana) da razã o com o história da ciência —» Foucau lt faz uso seletivo: conserva o foco sobre a razão como ionhcvimcnío, porém deixa de lado a concepção (posilivista) da ciência como corporificaçáo dc uma razão objetiva e racional. Contudo, Foucault aplaude a linha alemã — a teoria (weberiana) da razão como racionali dade social — por ser atenta ã variedade de formas so ciais da razão. Louva seu conceito pluralista, por assim dizer, da racionalidade na cultura moderna. Confessa partilhar da curiosid ade webero-frankfurliana sobre “ as diferentes formas (sociais)” assumidas pela “ as censão da razáo” no Ocidente. Ao enlregar-se a remi niscências sobre seus anos de universidade, lamentou que a França conhecesse tão pouco o pensamento we beriano'' (com certo exagero, já que àquela época soció logos como Raymond Aron ou filósofos como Mcrleau-Poniy já conheciam Weber muito bem — mas não sejamos tão meticulosos). Claramente. FoucauU nos conclamava a ver sua própria em presa couto uinu tciiialiva de conduzir uma investigação da moderna racionalidade, uma investiga ção exigindo sondagem dos fundamentos da ciência so23
ciai (“ com o foi que o sujeito hum ano lom ou u si pr6> prio como obje to de possível saber?” ). Isso, por sua vez, deve ser buscado sem perder de vista todo um “cofijunio de elementos complexos, desconcertantes'", que envolvem ‘'jogo instiíttcional. relações de classe, co.njíitos profissionais, modalidades de saber e (...) toda uma história do sujeito da razão*’: pois tais sâo, diz Foucault, os fenôm enos heterogêneos que ele 'Uentou re m iific dr" ’ à medida que elaborava seu mapa con ceituai para uma história em profundidade de nosso impasse cultural. Foucault foi o primeiro a reconhecer que tal pro grama é, com efeito» colossal, talvez de impossível cumprimento. No entanto, parece-me que, ao menos etn principio, o programa foucaldiano lem um mérito: ele tenta abertamente desfazer-se da idéia nebulosa de uma razão unitária» eco do Sujeito transcendental da metafísica do idealismo clássico. E por que é tão im portante rejeitar tal m etafísic a? É im portante, até im pe rativo, porque ela representa uma visão demasiado antropomórfJca do mundo. O princípio básico da metafí sica idealista é, nas felizes palavras de Maurice Mandeibaum. a crença de que “dentro da experiência hu mana natural pode-se encontrar a chave para a com preensão da natureza suprem a da realidade” / Note -se que a longo prazo, na história da filosofia moderna, essa posição antropocêntrica veio a ser muito mais in fluente do que o oulro componenie, um tanto óbvio, de qualquer definição mínima do idealismo clássico» ou se ja , a crença de que o homem — a chave para nossa apreensão da realidade — é um ser espiritual. Pois, 24
logo após a morte de Hegel (1831), o elemento espiritual do idealismo sucumbiu ao assalto do difuso secularismo do pensamento do século XIX, ao passo que o ponto de vista antropocêntrico da metafí sica idealista sobreviveu vigorosamente, desde Scho penhauer e N ietzsche até Bergson. Heidegger e W itt genstein — todos eles filósofos da experiência do ho mem e intérpretes do ser em lermos demasiado huma nos (como a Vontade de Schopenhauer ou — ironica mente — o “jogo*’ de Nietzsche). Aquilo que Gellner disse de Hegel — que ele nos deu uma metafísica acon chegante, caseira, “ um A bsoluto de suspensórios” '* — poderia na verdade ser estendido a lodo um ánimo filo sófico que foi o principal legado do idealismo alemão à no.ssa ciiltiir». Às vésperas da ascensão do estruiuralismo. a filo sofia continental ainda estava impregnada dessa visão aconchegante, humanizada, da realidade. Por exemplo. 0 sujeito tran scen den tal leva va uma existência m imada, no colo do hisioricismo moderno, isto é. do marxismo restaurado à sua pristina fonte hegeliana por Lukács, com a práxis, ébria de totalidade, no lugar do Esvpírito: e ele vicejava também no tema fenomenológico da ra zão ” viva” como o fundamento a que, superando ” a crise das ciências européias” (título do testamento do próprio H usserl), a filosofia m oderna era instada a re tornar. regenerando assim o espírito ocidental. É des necessário dizer que. pelas razões que acabamos de tnencionar, esse sujeito transcendental náo era dc modo algum “ transce nd ental” num sentido sob renatu ral, mas apenas no sentido de ser uma pista de base 25
para a interpretação da realidade. Falando à revista Tclos em 1983, Foucault confessou que, por volta dc 1960, ele namorara ambas as escolas de pensamen to, o marxi.smo luckacsiano e a fenomenoJogia, aníe.s de .se empenhar em seus próprios estudos histórico-filosófícos. Mas ucabou escolhendo uma posição a partir da qual pudesse lançar uma clara investigação não-idealista da história da moderna racionalidade. Terá sua obra correspondido a essa intenção ou terá malogrado, cedendo, em seu fracasso, a novas formas de cripto-idealismo? Antes de sugerir alguma res posta a essa pergunta , devem os exam inar cada um dos principais estudos de Foucault como hisloriador-filósofo.
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II. A G R A N D E IN T ER N A Ç Ã O , O V DU CÔTÉ DE LA FOLIE
O primeiro livro influente de Foucault, publicado en 1961, foi um alentado volume intitulado História du huvura na uUtdv viùssica. Nessa obra, Foucault de monstra que o “ discurso sobre a louc ura " conheceu no Ocidente quatro fases distintas desde a Idade Média. Enquanto no medicvo a demência era vista como sagrada, na Renascença ela passou a ser identificada com uma forma especial de irônica razâo superior — a sabedoria da loucura, do famoso elogio de Erasmo, também presente nos personagens enlouquecidos de Shakespeare ou no cavaleiro tantas vezes sublime de Cervantes. A ambivalência pré-moderna em relaçào à i nsània foi bem ex pressa no topos da Nau dos In sen satos , que prendeu a imaginação popular na Renascença. Por um lado, p or meio do simbolismo da Nau dos Insensatos, o Ocidente pré-moderno exorcizava a loucura, “ despa chando" seus malucos. Por outro lado. ao que parece, cssas embarcações eram vagamente vistas como “naus dc pcrcgrinaçcio, navios altamente simbólicos dc doidi)x rm busrn da ra7Úo'\ A loucura, quc não era te mida socialmente, e que muitas vezes (como na sátira humanista ou na pintura de Brueghel) desnudava o ab 27
surdo do mundo, apontava para um reino de significa ção além da razão — e assim a loucura era expu lsa mas nào amputada da sociedade: ao aU'ibuir um papel fun cional à insânia, o espírito renascentista se mantinha bastante familiarizado com ela. Eram muitas as pontes, sociais e intelectuais, entre a razão e o desvario. Para o homem do Renascimento, a loucura participava da verdade. De repente, por volta de meados do século XVII, "a loucura deixou de scr — nos Ihiites do mundo, do homem e da morte — uma figura escatológica". O na vio imaginário transformou-se num lugubre hospital, e a Europa converteu seus leprosários, há muito deser tos, em hospícios. Desde o fim das Cruzadas, o declí nio da leprft havia esvaziado os lazaretos — mas agora leprosos morais seriam seus internos: Ao final da Idade Média, a lepra desaparece do mundo ocidental. As margens da comunidade, às portas das cidades, abrem-se com o que grandes praia s que es.se m al deixou de assombrar, m as que também deixou estéreis e inabitáveis durante muito tempo. Durante séculos, essas extensões pertencerão ao desum ano. Do século X V I ao XV II, vão esperar e .solicitar, através de estra nhas encantações, uma nova encarnação do mal, um outro esgar de medo, mágicas renovadas de purificação e exclusão. (...) A lepra se retira, dei xundo sem utilidade esses lugares obscuros c es ses ritos que não esta vam destinados a suprimi-la, mas sim a manté-la a uma distância sacramenta is
da, a fíxá~la nt4ma exaltação inversa. Aquilo quc sem dúvida vai perm anecer por m uito m ais tempo que a lepra, e que sc manterá ainda numa época em que, há anos, os leprosários estavam vazios, sâo o s valores e as ima gens que tinham aderido à personalidade do leproso; é o sev.tido dessa exclu são, a importância no grupo social dessa figura insistente c temida que nào se pòe de lado sem se traçar à sua volta um círculo sagrado.^^
As frases que acabamos de citar foram extraídas do primeiro capítulo de História da loucura. Dão uma boa idéia do estilo de Foucault, mescla peculiar de eru dição e patos. O brilho literário de su a prosa dem onstra aquilo quc clc quei au nicsmu tempo narrar e denun ciar: o Grand Renferm ement {segundo a linguagem bar roca da época), a Grande Internação, que procurou domar a insanidade pela segregação dos loucos como categoria associai. Isto porque, durante a "idade clás sica", no sentido francês (e foucaldiano). que corres ponde aos séculos XVII e X VIII. a loucura foi drasti camente isolada da saúde mental. Os lunáticos não eram mais expulsos da sociedade como pessoas "dife rentes". Passaram a ser confinados em locais espe ciais, e tratados cm coi^unto com outros tipos de transviados — mendigos e criminosos, até mesmo de socupados. Na visão de Foucault, a ética puritana do trabalho não está muito longe de ser apenas uma espécic num gênero: a nova gravidade da burguesia clássi ca. Para a Renascença, a loucura ainda não constituía uma doença; na idade clássica, ela se tornou uma m.o29
Icstiu ociosa. A razáo racíonalista lançava sobre a lou cura uma maldição "patológica", carregada de conota ções éticas. O clássico hospital psiquiátrico náo tinha objetivos psicoterapéuticos: sua preocupação principal, diz Fou cault (capítulo VI), era "aparta r <>n 'corr igir"'. Mas, fora dos hospitais, a idade clássica deu expansão a mui tas "curas físicas" da loucura, notáveis por sua bruta lidade disfarçada em ciência. Os mais graves resultados derivavam de tentativas tão odientas quanto engenho sas de procrastinar ou destruir a "co rrup ção dos hum o res". A loucura, vista como uma forna de deterioração corporal, era atacada por métodos que procuravam ou desviar, externamente, substâncias corruptas ou dis solver, internam ente, as substâncias corruptoras. Entre as primeiras estava o Olcum ccphalicum. de um certo doutor Fallowes. Acreditava ele que na loucura "vapo res escun>s tampam os vasos muito Jlnos peltts quais os espíritos animais devem passar. Com isso, o sangue se vê privado de direção, entupindo as veias do cére bro. onde estagna, a menos que .seja agitado por um movimento confuso que ‘embaralha as idéias'. O Oleum cephalicum lem a vantagem de provocar 'pe quenas pústulas na cabeça', untadas com óleo para impedir que sequem, de modo a permanecer aberta a saída 'para os vapores negros estabelecidos no cére bro'. Mas as queimaduras e cauterizaçóes por todõ o corpo produzem o mesmo efeito. Supõe-se mesmo que as doen ças de pele. c om o u sum a. o ei. zem a c a varío la. poderiam acabar com um acesso de loucura. Nesse caso, a corrupção abandona as vísceras e o cérebro a 30
fim de csptdhar-üv pvUi superficie do corpo e liheriurse m> exterior. Ao final do .século, adquiriu-se o ftáhiti? dc inoculur sarna nos casos mais renitentes de mania. Em sua Instruction de 1785, Doublet, dirigindo-se aos diretores dc hospitais, recomenda, caso as sangrias, banhos e duchas níu) acabem com a mania, que recor ram uos 'cautérios, aos sedcnhos, aos abscessos su perficiais, à inoculação da sa rn a '." Nem iodos os tnitam cntos durante a idade clássica eram tão cruéis c tão tolos. Ao lado das “ terap ias” fí sicas, havia muitas receitas morais, bem documentadas no fartam ente ilustrado capítulo “ Médicos e do en tes” de I/istória da loucura — verdadeira façanha de erudi ção descritiva. Entretanto, o ponto principal ressalta cristalino: no Ocidente clássico, nos albores dc sua modernidade, a loucura lornou-se apenas uma doença — perdeu a dignidade de ser vista como um desvario significativo. Então, cm fins do século XVIIl e durante a maior píirte do século .seguinte, as reformas psíquiátrícus, que tiveram como pioneiros o quaker William Tuke, no York Retreat, e Philippe Pinel, em Pi»ris, isolaram os loucos da companhia de mendigos e criminosos. Se gundo a visão marxista de Foucaull, os pobres deixa ram de ser confinados porque o florescente industrialismo necessitava de mão-de-obra e de um exército de reserva. Q uanto aos dem entes, definidos com o pessoas enfermas, seres humanos que padeciam de um desen volvimento psíquico bloqueado, foram fisicamente li bertados (Pinei quebrou as correntes que os prendiam no nosocômio de Bicêtre. durante o Terror, como um 31
gC8to simbólico) e colocados sob um regime educacio
nal benigno. N o enlan to FoucauU está convencido de que isso só foi feito para melhor capturar-lhes a mente — tarefa confiada à instituição do asilo. Uma vez no asilo, o insano, agora um paciente posto sob a autori dade do discurso psiquiátrico, passa por um “julga m e n t o " profundamente psicológico, do qual "nunva se é liheríuiio (...) exce to (...) pelo rem orso"'^ — a loriura moral torna-se a lei da tirania da raiiâo sobre a loucura. No mundo do hospício, argum enta FoucauU, antes das reformas psiquiátricas de Pine) e outros, os doidos na verdade gozavam de mais liberdade do que as terapias modernas lhes permitem, uma vez que o tratamento pela “ internação clássica” nâo visava a m udar-lhes a consciência. Seus corpos estavam presos por corren tes, mas suas mentes tinham asas — mais larde cor tadas pelo despotismo da razão. Assim, o pensamento ocidental passou a separar firmemente a razáo da desrazào. Nas palavras de Fou cauU. a conversão da loucura em doença, no fim do sé culo XVIIJ, “ romp eu o diálogo” entre a razão e a in sânia. "A lingnagem da psiquiatria. (...) um m on ó logo (ía razão sobre o loucura, só veto a ser estaheleciilo com hase em tal silêncio." A partir daí, "a vida da desrazào" só brilhou nos fulgores da literatura dis sidente, como a de Hölderlin. Nerval, Nietzsche ou Ar taud. Quanto à psiquiatria humanitária, na esteira de Pinei e Tuk e. ela representou nada m enos que “ um gi gantesco encaiLciamcnio moral". Alem do mais. o asilo espelha toda uma estrutura autoritária — a da so ciedade burguesa. Constitui "nm microcosmo no qual 32
cstavant sirnholizados a vasía estrutura da sociedade burguesa e seus valores: relações Familia-Criança, eeniradas m> lema da autoridade pawrna: relações Tniiisgressâo-Castigo. centra das no tema d a jus tiça imediata: relações Loucura-Desordem, centradas no tema da ordem social e mt>ral. Fra dessas relações que o médico derivava seu poder de curar.” ’* Por fím. em nossa própria época, surgiu uma quarta maneira de conceituar a relação razão/loucura. Freud obscureceu a distinção entre saúde mental e in sânia ao considerar que a polaridade entre as duas coí> sas era mediada pelo fenômeno da neurose. No entan to, apesar de sua decisiva suplantação da mentalidade do asilo. Freud conservou um traço autoritário crucial Uü cniregar os menialmenie perturbados ao poder dos médicos da alma. Por certo, História da loucura abre uma legítima ãrca de pesquisa: a investigação dos pressupostos cul turais subjacentes às diferentes maneiras históricas de lidar com uma áre a altam ente perturbado ra do comp orlamento humano. Numa crítica simpática ao livro, o imaginativo epistemólogo Michel Serres disse ser ele uma “ arqueologia da psiquiatria” , provavelmente uma das primeiras vezes cm que o termo foi empregado com referência a Foucault (que o usou. ele próprio, no sub título ou título de seus trés livros seguintes). Para Ser res. História da loucura representa para a cultura da idade clássica “ muito precisamente** (,v« )o que O nas cimento da tragédia, de Nielzsche. representou para a cultura grega antiga: lança luz sobre o elemento dioni síaco reprimido sob a ordem apolínea — “on sait enfin 33
dc quelles nuUs les jours sont vu'.ourés*’, conciui clc, em lírico enlusiasmo.' ' Naturalmente, a câlida acolhida que Foucault recebeu do movimento da antipsiquiatria (Laing et al.) foi uma resposta direta a esse compo nente orgiástico. Nos Estados Unidos, os críticos logo notaram o parentesco, em espírito, se não em tom ou método, com a obra de Norman Brown {Life Aguinst Death, 1959) e seu eloqü ente hino ao id primitivo.'^ Além disso. História da loucura gerou toda uma prole de justificações da psicose, todas escritas com forte ánimo **contraculturar\ a mais conhecida das quais continua a ser o Aiiti-Edipo: capita lismo e esquizofre nia (1972), de Gilles Deleuze e Felix Gualtari. Ao examinarmos o primeiro estudo históriconiosófico importante de FoucauU. cabe-nos perguntar: a história contada p or ele é acurada? Há quem diga que fazer essa pergunta é um equívoco, pois Foucault veio a concordar inteiramente com a rejeição, por Nietzs che, das pretensões da história a alcançar uma objeti vidade neutra. Em “ N ietzsche, genealogia, história " (1971),'^ ele despeja um desprezo niet/schiano sobre “ a história dos historiad ores ", que, buscando a neuiralidade, imaginam um implausível “ ponto de apoio fora do tempo". Quão mais sábia, diz FoucauU, é a '“genea logia" de Nietzsche, que "não reme ser um conheci m ento perspectivado": ela assume ousadam ente "o sis tema da síta própria injustiça". Entretanto, afirmar o direUo de fazer uma história “ presentista" ou m esmo de praticar uma h istória en gagée náo isenta o historiador de seus deveres empíri cos em relaçáo aos dados. Pelo contrário: a fim de 34
mostrar o que deseja, a histoire à thèse, orientada para o presente, deve tentar convencer-nos da exati dão de sua interpretação do passado. Afinal de contas, o próprio Foucault descreveu seu livro como "uma his tória das condições económicas, políticas, ideológicas e institucionais de acordo com as quais se realizou a segregação dos insanos durante o período clássico. No prefácio à edição original de seu livro. Foucault dispôs'se a escreve r uma história “ da própria loucura, em sua vivacidade, antes de qualquer captura pelo sa ber ‘psiq uiátrico” ' — uma larefa, segundo a ju sta obser vação de AIlan Megill, não muito diferente da historio grafia ortodoxa.*’ É verdade que, mais tarde, Foucaull veio a negar que estivesse visando a uma reconstitui ção da loucuru como um rcfcrcnctal histórico indepen dente** — mas não há como desmentir que, na época, ele tinha em mente um objetivo historiográfíco “ no r mal” ao escrever História da loucura. Foucault dese java questionar os relato s históricos anteriores, e não duvidar da legitimidade, para não falar da possibilida de, de fazer pesquisa histórica. Podemos concluir, en lâo, que no jove m Foucaull o “ anti-historiador” ainda nào existe em plenitude. Em seu lugar havia apenas um íwí/ríi-historiador, quer dizer, um historiador que de safiava as interpretações prevalecentes de uma dada parle de nosso passado. Por conseguin te, lem os, afinal, o direilo de perguntar: a história contada por Foucault é acurada? N u m a lucdida iinpoitaute, é. Alc mesmo um dc seus principais críticos, Lawrence Stone, admite que Foucault tende a es tar certo ao pen sar que a internação 35
generalizada no fim do século XVII c no século XVIII representou um retrocesso, sujeitando pessoas men talmente perturbadas, indiscriminadamente, a um tra tamento drástico antes só dispensado a psicóticos peri gosos.*’ O problema começa quando Foucault (a) sa lienta o "diálogo” medieval e renascentista com a lou cura, em contraste com a atitude segregadora em rela ção a ela nos tempos modernos, isto é, racionalistas; (b) insiste em (ratar a ” idade clássica’' — a época da Grande Internação — como sem precedentes na natu reza, e não apenas na escala, de sua atitude cm relação à d em ência, dando grande im portância à conversão dos leprosários em hospitais mentais e ao surgimento de uma concepçào "fisiológica” da loucura como doença: e (c) considera as terapias Tuke-Pinel como métodos novos em folha para enfrentar a doença mental, denun ciando seus procedimentos morais como totalmente re pressores. No capítu lo V de seu esplêndido livro Psycho Poli tics (1982), o falecido Peter Sedgwick desmentiu vários pressupostos básicos do quadro histórico dc Foucault. Demonstrou, por exemplo, que mjito antes da Grande Internação muitas pessoas insanas tinham sido postas sob custódia e submetidas a terapia (por mais primitiva que fosse) na Europa. Antes da era clássica dc Fou cault. havia por lodo o vale do Reno vários hospitais com acomodações especiais para dementes. Havia, desde o sêctdo XV. uma cadeia nacional de asüos de caridade, principalmente para os loucos, na Espanha — sociedade da qual não se poderia dizer que fosse muito propensa a a ceitar o racioralism o .moderno. Da 36
mcbina forma, várías técnicas atestando uma concep çào físiológica rudimentar da doença mental, que. no modelo de Foucaull, são atributos da Idade da Razão, na verdade já abundavam na Europa pré-racionalista. muitas delas sendo oriundas de sociedades muçulma nas. Dietas, jejuns, sangrias e a branda rotação (o luná tico era levado ao esquecimento mediante a centrifuga ção por meios mecânicos) eram algumas dessas técni cas, a maioria das quais remontava ã medicina aiiíiga (uma época, dc qualquer forma, fora do campo de es* tudo de Foucault). Com muita perspicácia, Sedgwick acentua a continuidade nas artes médicas no decurso das eras. Não nega a expansão da “atitude médica“ durante a fase inicial do raciunall^ino modcmo, mas observa nào ser possível derivar a concepção da lou cura simplesmente de um disseminado "racionalismo burocrático” em rUptura com uma suposta longa tradi ção dc permissividade frente à insanidade. H. C. Erick Midelfort reuniu vários aspectos hislóricos que solapam, ainda mais, grande parte dos fundamentos de História da lo u cu ra .^ Midelfort não se coloca, em princípio, contra a desmitificação do llumi nismo por Foucault. Está longe de se posicionar como tm indignado defensor de qualquer relato benevolente sobre os heróicos progressos terapêuticos. Mas exibe um impressionante domínio de fontes escritas sobre a história da loucura e da psiquiatria. Convido o leitor interessado a fazer sua própria colheita na brilhante síntese de Midelfort e a tirar par tido de seu abundante suporte bibliográfico. Contudo, 37
convém salientar desde logo alguns pontos: 1) há muitas comprovações de crueldade na Idade Média contra os dem entes; 2) no fím da Idade Média e na Renascença, os loucos já sc encontravam com freqüência confinados, em celas, prisões e até jaulas; 3) com ou sem ‘’diálo go ” , durante aqu eles tem pos, a loucura era freqüentemente ligada ao pecado — mesno na mitologia da Nau dos Insensatos; e, nessa m edida.era vista sob uma luz muito menos benévola do que sugere Foucauit (as mentes pré-modernas aceitavam a realidade da loucura — “ loucura com o parte da verdade” —, da mesma forma que aceitavam a realidade do pecado; mas isso náo quer dizer que prezassem a loucura, assim como nào prezavam o pecado); 4) como demonstrou Martin Scliiciik (clc pióp iiu uni bcv eio ciílico de Foucault). os prim eiros hospícios m odernos surgiram a partir de hos pitais e mosteiros medievais, e não da reabertura dos leprosários; 5) a Grande Internação teve como objetivo primordial não a m arginalidade, mas sim a pobreza — a pobreza crim inosa, a pobreza louca ou a pobreza pura e simples; a idéia de que ela prenunciava (em nome da burguesia ascendente) uma segregação monii não su porta exam e alento; 6) de qualquer forma, tal com o fri sou Klaus Doerner (outro crítico dc Foucaull), não houve confmamcnto. de controle estatal, uniforme: o modelo inglês e o alemão, por exemplo, afastaram-se muito do Grand Renferm ement de Luís XIV; 7) a pe riodização de Foucault parece errônea. Em fins do século XVIII. a internação dos pobres já era vista, dc maneira geral, como um fracasso: mas foi então que a internação dos loucos realm ente ganhou impulso, como 38
tnostram conclusivamente as estatísticas referentes à Inglaterra, à França e aos Estados Unidos; 8) Tuke e Pinei não “ inve ntara m ” a do ença mental. Em vez disso, devem muito a terapias anteriores e com fre qüência utilizavam também seus métodos; 9) ademais, na Inglaterra oitocentista, o tratamento moral náo constituía um elemento tão central na medicalização da loucura. Longe disso; como mostra Andrew Scull, os médicos encararam a terapia moral de Tuke como um ameaça leiga à sua arte e se esforçaram para evitá-la ou para adaptá-la à sua própria atuação. Mats uma vez, os monólitos cronológicos de Foucault desabam ante a abundância de provas históricas que os contradizem. Com efeito, essa sinistra crónica de arrogante tira nia médica nâo e de maneira aiguina apoiada pclus da dos reais sobre a terapia na era do asilo. David Rothman {The Discovery o f Asylum , 1971), historiador so cial quc realizou pesquisas inovadoras sobre o desen volvimento das instituições mentais nos Estados Uni dos à época de Jackson, documentou que. em meados do século XIX, verificou-se um afastamento dos méto dos psiquiátricos em favor de métodos apenas custo diais. O relato de Rothman coincide à perfeição com o ‘niilismo terap êutico ” da épo ca — a relutância médica a passar do diagnóstico ao tratamento, com base numa concepção pessimista dos poderes da medicina (meio século mais tarde, o jov em Freud ainda teve de com ba ter essa ideologia médica, muito arraigada em Viena).*' \íf. bom notar que Kothman nao esta de modo algum su gerindo quc o asilo custodiai (em contraposição ao psi quiátrico) fosse boa coisa. Pelo contrário, para ele o 39
espírito custodiai estava ligado ao controle burguês das categorias sociais “ perigosas” . Mas. se ele tem razão, o que estava na ordem do dia como fenômeno repres sivo em relação à Insânia era a passivUladc medica, e não a psiquiatria aJtamente intrometida que Foucauit quer apresentar como serva de uma Razão despotica mente intervencionista e arregimentadora. Em essência, o livro de Foucault é uma argumen tação passional contra aquilo que aprendemos a ver como sendo o humanitarismo do lluminismo. Por con seguinte. os especialistas sobrc aquele período, como Lawrence Stone, dificilmente poderiam ter deixado de se opor a tal desafio às suas concepções mais equili bradas.“ E que devem os pensar da idéia da criação da psiquiatria como "um gigantesco encarceramento m oral” ? A verdade é que os hospícios particulares e os velhos asilos estatais costumavam ser escandalosa mente mal-administrados, e que as reformas de pionei ros como Tuke e Pinei, conducentes ao surgimento dos prim eiros hospitais psiq uiátricos modern os, em bora náo fossem tão angelicais como no passado se pensou, repre sentaram atos genuínos de filantropia esclarecida. A acusação de “ sadismo m oralizante” . aplicada po r Fou cault à infância da psiquiatria, é um exemplo de melo drama ideológico. É muito bom tcmar posição du cótv de la fo lie — só que, na ânsia de se colocarem os insanos no papel dc vítimas da sociedadc, pode-se facilmente esquecer que muitas vezes eles sáo profundamente in felizes e que o Magelo de que padeciam exigia terapia. A idéia de que a atitude cducação-e-não-grilhões fosse apenas um artifício carcerário repressivo (ainda que in40
conscienie) não resiste ao exame crítico. A fobia anti burguesa de Foucault te nde a fazê-lo rejeitar a filan tropia vitoriana//I Umtne. mas um humanitário de classe média menos tendencioso, chamado Charles Dickens, que se escandalizara com os asilos de pobres em Lon dres, ficou vivamente impressionado — observa o Dr. J. K. Wing em Reasoning ahottí M aihess'^ —«com a atmosfera humana dos pequenos hospitais psiquiátricos dos Estados Unidos, onde médicos e aiendentes chega vam a partilhar a m esa com o s pacientes. Seria incorreto extrapolar daí. e, na v erdade, de m uitos ou tros testem u nhos positivos contemporâneos, e pintar um retrato idí lico de humanitarismo psiquiátrico. Contudo, tam pouco há qualquer motivo forte, apoiado nos fatos, para chegarmos à conclusão oposta c declararm os a plena m edicalização da loucura durants a prim eira era da psiquiatria “ bu rgu esa” parte integrante de uma me donha sociedade (para usarmos um adjetivo mais tarde transformado por Foucault em slogan) "curcçrán ã". Na realidade, desde 1969 dispomos do corretiv o natural ao quadro maniqueísta de Foucault — a bem pesquisada “ história social da insanidade e da psiquia tria” na sociedade burguesa, realizada por Klaus Docrner. Seu livro Os loucos e a burguesia, um estudo comparativo das experiências britânica, francesa e iilcmã. está longe de discordar inteiramente de Fou cault na descrição da alvorada da psicoterapia (ainda quc lhe aponte a tendência pani generalizar excessiva mente a partir do caso francês). Onde Doerner real mente se afasta de História da loucura é na avaliação do fenômeno. 41
Tomemos seu conciso capítulo sobre Pinei (11,2). ou ainda o capítulo (1,2) sobre o médico londrino que ele. com justiça, resgata das sombras do esquecimento como tendo sido o primeiro a oferecer uma abordagem global da psiquiatria, abarcando a teoria, a terapia e o asilo: William Battie (1704-1776). Os métodos de alienistas esclarecidos, como Pinei, provocaram uma mudança decisiva — do isolamento dos dementes a um retorno da loucura à visibilidade social, em asilos abertos à contemplação de parentes, psiquia tras e estudantes de medicina. Mas enquanto Foucault prontamente vitupéra a tendência ''objetifi cante” da contemplação médica no regime de observa ção sob o qual os pacientes eram colocados. Doerner frisa que a primazia dos "tratamentos morais" foi uma das grandes causas do abandono de métodos terapeuticos tradicionais; e, nessa medida, representou uma considerável rejeição da “atitude de distanciamento” (lembremo-nos do hospital americano de Dickens). Da mesma forma, Doerner. que capta com agu deza a influência de idéias rousseaunianas sobre a edu cação moral náo-autoritária (Pinei era devoto de JeanJacques) e não despreza a difusão da sensibilidade pré-rom ántica às vésperas das reformas psiquiátricas, ju lga profundam ente humanitário o programa cura-enão-assisténcia dc Battie na Londres dc meados do sé culo XVIIL Nào foi à loa que o livro de Battie, Tre atise on Madness (1758), constituiu um ataque (pron tamente repelido) contra o niilismo terapêutico da famí lia Monro, cujos membros tinham sido proprietários c adm inistradores d o Hospital Bedlam du rante dois sécu42
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Uxs. Alem disso, ao ressaltar o aspecto dc alienação da insânia, como com prova o próprio título de seu í^ / |^ ^ méifico-phihsophUfuc sur raliénaíton meníule oii~yiT'* manie (1801), Pinei recolocou a loucura dentro do ho mem — fosse na menie ou no corpo. No entanto, ao fazé-lo. ele destacou menos a loucura-como^doença (a h tie noire de Foucaull) do que a insânia t om o caso indi vidualizado. Ora, esse foco no indivíduo (um prenuncio dc Freud) constituía» patentemente, ura extraordinário progresso — paralelo , na verdade, a uma m udança se melhante ocorrida na medicina física contemporânea, a qual, como veremos mais adiante, viria a ser brilhanicmente exposta por Foucault em seu livro seguinte. IXierner só pode concluir que Foucaull, a despeito de tci sidu o criadui da "priiiiciia atilude iiiipuilanlc” ein relação ã sociologia da psiquiatria, oferece um relato "demasiado unilateraP’ — um relato onde a dialética do lluminismo é "resolvida unilateralmente em termos dc seu aspecto destrutivo” . Em O nascimento da clínica (1963), Foucaull examinou um período muito mais breve, a rica história da medicina entre o último terço do século XVIII e a Restauração Francesa (1815-1830). Concentrando-se cm velhos (ratados médicos, dos quais faz fascinantes interpretações, o livro, encomendado por Canguilhem, exuma diferentes "estruturas perceptivas” que sustenliiram três tipos sucessivos de teoria e prática da medici na. Desiacam-se duas mudanças principais. Na pri meira, uma medicina das espécies, que ainda prevaleciíi pela altura de 1770. cedeu lugar ao primeiro estágio 43
da mcdícina ltnk a. A medicina das espécies fazia na nosologia o que Lineu fez na botânica: classificava as doenças como espécies. Supunha que as doenças fos sem entidades sem qualquer ligação necessária com o corpo. A transmissão das doenças ocorria quando al gumas de suas “ qualidades” misturavam-se. através de “ afinidade” , com o tipo de tem peram ento do paciente (ainda se estava próximo de Galeno e suas concepções humorais). Julgava-se que “ ambientes não natura is” favorecessem a disseminação da doença, e por isso se acreditava que os camponeses padeciam de menos en fermidades que as classes urbanas (as epidemias, ao contrário das doenças, náo eram lidas como entidades fixas« mas sim como produtos do clima, da fome e de outros fatores externos). Em contraste, em seus pri mórdios a medicina clínica foi uma nicJicina dos sin tomas: encarava as doenças como fenômenos dinâmi cos. Em vez de entidades fixas, as do ença s eram con sideradas misturas de sintomas. Estes, por sua vez, eram tomados como sinais de ocorrências patológicas. Como resultado disso, os quadros taxionômicos da medicina clássica foram substituídos, na leoria medica, por contínuos te m porais, que permitiam, em particular, um maior estudo de casos. Por fim. no limiar do século XIX. surgiu oulro pa radigma médico: a mente clínica substituiu a medicina dos sintomas por uma " medicina Jos tecidos" — a te oria anãtom o-clínica. As doenças já nào d enotavam es pécies nem conjuntos de sintom as. Em vez disso, agora indicavam lesões em tecidos específicos. Os mé dicos passaram a concenlrar-se muilo mais — na tentaí
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liva Uc adquirir conhecimentos sobre a patologia — no paciente individual. A mirada médica transformou-sc num olhar, o equivalente visual do taur, os médicos passaram a buscar causas ocultas e não apenas sinto mas específicos. A morte — vista como um processo vital — tomou-se a grande mestra da anatomia clínica, revelando, através da decomposição dos corpos, as verdades invisíveis procuradas pela ciência médica. Para Foucault, a morte e o indivíduo —justamente os temas da grande arte e da literatura românticas — agora fundamentavam também o novo “código perceptivo” da medicina — um código que encontrou seu evangelho na Anatom ia geral (1901) de Xavier Bichat (1771-1802). Quando François Broussais (1772-1838; Lxamín ation o f M edic ai Doctrines. 1816), partindo da histologia dc Bichat, baseou o saber médico na fisiolo gia e não simplesmente na anatomia, e explicou as fe bres com o reações patológicas provocadas por lesões em tecidos, completou-se o círculo: a medicina clássica morreu nas mãos dos médicos científicos. A medicina clássica linha um objeto — a doença — e uma meta — a saúde. Ao atingir a maioridade, a medicina clínica substituiu a doença pelo corpo doente como objeto de percepção médica, e a saúde pela normalidade com o o desiderato da arte de curar. Assim, o ideal de normaliiliide, desmascarado como um expediente repressivo cm História da loucura, volta a ser examinado com hostilidade por Foucault ao fim de sua história do nas cimento da medicina moderna. Dessa vez, porém, o quadro se apresenta muito mcnos carregado de preconceito antimodemo e anti45
burguês. Em sua prim eira obra, o pequeno Hvro intitu> lado D oença m entaí e psicologia (1954), Foucault havia muitas vezes raciocinado como um psicanalista d a “ es cola cultural” » atribuindo o distúrbio mental à socie dade capitalista, dominada por contlitos. Em História Ja loucura ele se colocou, mais ousadamente, ao lado da loucura (mítica) contra a razão burguesa. Embora seja pouco provável que ele admitisse qualquer dessas influências, dir>se*ia que ele passou da posição de um Erich Fromm para a de um Norman Brown — trocou uma ênfase no bloqueio sociai da felicidade humana por uma exortação à liberação do id dionisíaco. Em O nascimento da clínica não se percebem tais tran spor tes de emoção. O livro é muito bem escrito — na ver dade. composto com grande habilidade literária, mus seu tom não está m uito distante d a sóbria elegância dos ensaios do próprio Canguilhem sobre a história das idéias científicas. O que O nascimento da clínica fez foi colocar Foucault mais perto do estruturalismo. Um ensaio que fala de códigos e estruturas de percepçáo, que descreve as “espacializaçôes do patológico” e insiste numa ex posição não-linear da história intelectual — na “ ar queologia” como um relato cesurai, á maneira de K uhn , de m udanças paradigm áticas no pensam ento mé dico — nào podia deixar de s er comparado ao estilo te órico que então prevalecia na França. Uma talentosa comentadora, Pamela Major-Poetzl, observou com ra zão que, enquanto História da loucura tentava uiudai nossa percepção corrente da loucura, mas não nossa maneira convencional de pensar a respeito da história» 46
o nascim cnto da vh'nica fazia exatamente isto: 2^ o li vro introduz vários conceitos espaciais caros ao espí rito estruturalista. Por fim, deve-se também observar que o livro inaugura, na obra foucaldiana, a problemática do modo de inserçãíf social d os discursos. Foucault concede um razoável grau de autonomia à formação do discurso. No entanto, isto não é tu do. Elc também deseja inves tigar a maneira coucreta como um dado discurso (por exemplo, o pensamento médico) se articula com outras práticas sociais que lhe são externas. Ao mesm o tem po, lenta com afinco evitar grosseiros dichòs determ i nistas, como as ‘'explicações" generalistas do tipo base'supereslrutura do marxismo (vulgar); e se esforça pur im aginar padrões de explicaçãu mais ílexíveis sem Cíiír nas nebulosas abstrações comuns no marxismo esirutural de Althusser e de seus seguidores, que falam muito dc "sobredeterm inação“ , “ causação estrutural" e “efeito es tru tu ra l", mas raram ente, ou nunca, se em penham num corpo-a-corpo com qualquer material em pírico (como se náo gostassem de sujar as mãos com a análise da história real). Em O nascimento da clinica há capítulos sobre o contexto social de grandes mudanças na teoria e na prálica médicas. Por exem plo, o livro mostra com o o governo, durante toda a Revolução Francesa, coagido pelo aum ento da população enferm a em tempo de guer ra. relutantem ente abriu clínicas para com pensar a falta de hospitais e de médicos competentes. A clínica, por sua vez, possibilitou co nto rna r as guildas médicas e seu saber tradicional, favorecendo assim o lançamento de no 47
vas “ estruturas perce ptivas“ r a medicina. Vemos, pois, que a relação causai entre o contexto social e a mudunça paradigmática no discurso médico tem um ca ráter indireto, até oblíquo. É tudo uma questão de mos trar "como o discurso médico, enquanto prática rela cionada com um campo particular dc objetos, enamtrando-se nas mãos de um certo número de indi víduos designados estatutariamente e com certas fun-^ ções a exercer na sociedade, está articulado em práti ca s que lhe são exte rna s e que não são, elas próprias, de ordem discursiva**.^ “ A rticulado” : eis a palavra estra tégica. Como Roland Barthes gostava de dizer, o estru turalismo am a **artrologias” — disquisiçôes elabo radas sobre elos e conexões.
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III. UMA ARQUEOLOG IA D AS C IÊ N C IA S H U M A N A S
O título deste capítulo é, literalm ente, o subtítulo da obra-prima de Foucault, A s paiavros e as coisas. Surpreendentemente, porém, o livro nâo retoma o pro blema da articulação das práticas sociais e intelectu ais. Antes se compraz numa descrição exuberante e perspi caz destas últimas. Foucault simplesmente utiliza os discursos ocidentais sobre a vida, a nqueza e a lingua gem a fim de apreender o pano de fundo conceituai contra o qual, durante o século XIX, surgiram as ciên cias do homem. O arco dc tempo é aproximadamente o mesmo de História da {oucura: do Renascimento até o presente, estendido até o período contem porâneo para que se possam dizer algumas palavras não só sobre Freud, como lambém sobre a fenomenologia e a antro pologia estrutural. A inspiração para escrever A s palavras e as coi sas. diz Foucault em seu prefácio, occrreu-!he ao ler um conto de Borges, no qual o irônico argentino se re fere a “ certa enciclopédia chine sa’* na qual "os ani mais .sc dividem cm : {a) pcrtcn cen tcs uo imperador, (h) emhalsamados, (c) domesticados, (d) leitões, (e) se reias, (f) fabulo sos, (g) câ es em liberdade, (h) incluídos 49
pri'.u'nte rla.sxiJireiÇíU). (i) que se agitam rí>m{f louvos. (/) 'mumerávcis. (k) líesenhados vom um pincel muifo Jino dc pêlo dc camelo, (',) et caetera, (m) que acabam de quebrar a bilha, (n) aue de longe parecem moscas”. A absurda estranheza de tal classificação su gere a Foucault. através do "encanto exótico de um outro sistema de pensamento", "o limite do nosso’\ Em üutras palavras: a enciclopédia imaginária de Bor ges pode ser vista como símbolo de padrões alheios de categorízaçáo; a fábula aponta para sistemas incomen suráveis dc orden ar coisas. Surge, pois» naturalmente a pergunta: quais são as fronteiras de nosso modo dc pensar? Como é que nós, ocidentais m odernos, orde namos os fenômenos? A arqueologia foucaldiana das ciências humanas é uma tentativa de oferecer uma res posta, apresentada cm perspectiva histórica, a essa pergunta. O assunto dc scu livro são os códigos cuhurais fund am enta is que impõem ordem à experiência. Foucaull empregou o rótulo “arqueologia” para denotar "a história daquilo que torna necessária uma certa forma dc pensamenttt". A “ arqu eolog ia” lida com formas de pensamento necessárias, inconscientes e anônimas, a que Foucaull chama "epistemes'’. Uma “ epistem e” é o " a priori histórico” q ue, "num dado pe ríodo, delimita na l<»talidade da experiência um campo de saber, define o modo dc ser dos objetos que apare cem naquele cam po, apresenta mod elos teóricos á percepçâo cotidiana do homem e dcjlnc as condições cm que ele pode sustentar um discttr.so sobre coisas quv s à o r e c o n h e c i d a s c o m o v e r d a d e i r a s " Como as epis temes são camadas conceituais que sustentam vários n / l
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campos de saber e que correspondem a diferentes épo cas no pensamento ocidental, a análise histórica deve “ dcsen terrá-las” — e daí o modelo arqueológico. No prefácio à Iradução inglesa de As pala vras e as voisas {The O rder o f Things), Foucault descreve a ar queologia do pensamento como uma história dos siste mas de "sah er nào-formal’\ A história da ciência, diz clc. tem po r muito tempo favorecido as “ ciências no bres" do necessário, com o a m atem ática e a física. Por (Milro lado. as disciplinas que estudam os seres vivos, as línguas ou os fatos econômicos eram consideradas demasiado empíricas ou expostas a restrições internas “para se supor que sua história pudesse ser outra i
Km primeiro lugar. em vez de se referirem à física, eles cobrem, como acabamos de ver, uma ciéncia natural (biologia) e duas ciências sociais (economia e lingüísti* ca). Em segundo lugar, normalmente nào correspon dem a princípios conscientes, como os expostos por N ew ton, que proporcionam um modelo para atividade científica, ao especificarem problemas, c estabelecem métodos para sua solução; antes se situam por baixo do nível de teorização consciente e Je percepção metodo lógica. O s paradigmas de K uhn são “ pa drõ es” : operam como modelos concretos compartilhados por pesquisa dores em sua prática científica — uma prática voltada precisam ente para o “ refinamento do paradigm a” . Com o tais, e na medida em que são “ mais que teoria e m enos que um a cosm ovisâo ” , seus paradigmas sào. cm grande parte, abertos, implícitos e até mesmo semi conscientes — mas nâo são por dejt/iição dcsconheeidos pelos cientisíus, como são as epistemes de Fou cault. As redes conceituais dc Foucault estão sempre fora do alcance daqueles cujo pensamento é delimitado por suas leis. Por fim, e exatamente por pertencerem mais à prá tica do que a um inconsciente coletivo científico, os pa radigmas não sào — como frisa o próprio Kuhn — re gidos por regras estritas; mas as epistemes definitiva mente o sào:” elas representam “códigos fundamen tais” , gram áticas generativas de linguagem cognitiva. Em última análise, os dois conceitos designam dois ní veis basicamente diferentes: os paradigmas podem ^er “ mais que teo ria” , porém, com parados com as episte mes, decerto sc encontram no nível de teorias; as cpis52
lemes, por outro lado, sào mais que visòes do mundo — são construídas num estrato ainda mais profundo de (in)conscíência. Kntretanto as epistemes de Foucault são seme lhantes aos paradigmas kuhnianos sob dois outros as pectos: (a) são, para usarm os a palavra famosa do pró prio Kuhn, “ incom ensuráveis", isto é, radicalm ente divergentes umas das outras; e (b) nào perecem em resposta a um cor\junto convincente dc provas e argu mentos contrários, mas sim — com o nas “ mudanças gestálticas" no seio da comunidade científica descritas por Kuhn, equivalentes a conversões religiosas em nuissa, resultantes de misteriosas alterações dc psico logia social — em respo sta a v astas transform ações cul turais. E da m esma forma que as “ revoluções cieniíficas” dc Kuhn seriam precedidas por períodos de crises nos paradigmas, também Foucault (embora com muito n'.enos ênfase) demonstra as dcficicncias e a fadiga de pelo menos duas epistemes: a “ clássica" (séculos XVII-XVIII) e a “ m od ern a" (essencialmente a do sé culo passado). Há, não obstante, uma última e importante dife rença: as crises kuhnianas são tempos de feroz compe tição, quando velhos e novos paradigmas travam um verdadeiro com bate de vida e m orte; e embora a vitória tlnal de um deles surja de causas extra-racionais, esse quadro diu*winiano de luta entre paradigmas parece en cerrar uma homenagem residual à lógica objetiva, imaiK*nte, da discussão científica. Afmal de contas, em ne nhum momento Kuhn assevera que. na perpétua reso 53
lução de problemas que é a ciência, uma vez encon trada solução para um determinado enigma de acordo com um paradigma antigo, ela seja pura e simplesmente desconsiderada ao surgir um paradigma novo.^ Isso pode parecer contraditório, em face da sua evidente re jeição de uma visão cum ulativa da histó ria da ciência; no enlan to talvez a história da ciéncia é que seja, em si mesma, contraditória. Seja como for, a evolução do pensam ento de Kuhn, conform e o dem onstra no fa moso pós-escrito à segunda edição de A vsinitura das revoluções vieníifuas (1970), marchou claramente nimo ao reconhecimento de um núcleo de objetividade; ele veio a reconhecer (ou. melhor dizendo, a ressaltar), segundo as palavras de David Paoineau, “ a possibili dade de que existam, atinai de conlas. ceiias bases im parciais de com paração com respeito às quais se po dem demonstrar certas teorias, objetivamenie. melhor do que outras”.^ Foucaull, em contraste, nunca con cede tanto. Na verdade, toda a sua obra. desde A s pa* lavras c as coisas, afastou-se muito dessa admissão; o “ sab er objetivo*’ continuou a ser para ele uma noção com pletam ente estranha. Um a epistem e. por conseguints, pode ser chamada de paradigma, desde que não seja concebida como um padrão, um modelo de trabalho cognitivo. Trata-se de um porão (sous-sttl) do pensamento, uma infra-estru tura mental subjacente a todas as vertentes do sa ber (sobre o homem) numa certa época, uma “ rede** {ftrillf'. na terminologia lévi-straussiana de Foucault) que corresponde a um “a priori histórico*’ — quase uma forma hisioricizada das categorias de Kant. Ora, 54
tais a prioris históricos nâo são somente incompatíveis como lambém incomensuráveis: assim, Buffon, como um verdadeiro espécime da episteme clássica no século XVlll, era simplesmente incapaz de ver o sentido da fanlasiosa história de serpentes e dragões de Aldrovantli, naturalista da Renascença. A perplexidade de Bufíbn, diz Foucault. nào se devia ao fato de ser um espí rito menos crédulo ou mais racional: era, antes, conse qüência do falo dc que seus olhos não estavam ligados às coisas do mesmo modo que os de Aldrovandi, porquv nào partilhavam da mvxma episteme (cap. II. 4). A história que Foucaull narra sobre as epistemes — e que não deve ser confundid a, adverte ele, com a hislória da ciência ou mesmo com uma história mais ger;d díis idéias sublinha con sttintem enle as descontinuidades entre seus blocos históricos. Não nos são tlados quaisquer sistemas de saber que caminhem para uma representação mais fiel, uma apreensão mais re* lilisla de um objelo constante, estável. Tudo que oble"deseoniinuidades etiigmàtieas" (cap. VII, I) cnirc quatro epistemes: a pré-clássica, até meados do século XVII; a “ clá ssic a” , até o llm do século X V lll; a ’‘mod erna” ; e uma época verdadeiramente coniemp oíãnea, que só lomou forma por volta de 1950. A pri meira e a última epistemes são esboçadas sucintamente cm A s pala vras e as coisas: só a época clássica e a moderna são descritas plenamente. E é a descrição, não a explicação causal, de sua seqüência que interessa )i Foucault. Como clc afirma francamcntc cm seu prclacio, deliberadamente pôs de lado o problema das causas da mudança epistêmica. 55
Ainda que, como lembramos há poiico, a Intenção de Foucault não lenha sido fazer uma história da ciên cia» ele teve necessariamente de depender de tal disci plina a íim de identificar e organizar seu material. Na verdade refere-se de bom grado a uma tradição especí fica na história (e na filosofia) da ciência: a escola de Bachelard, Cavaillès e Canguilhem. dedicada ã história dos conceitos. Canguilhem é, ele próprio, discípulo e sucessor (na Sorbonne) de Gaston Bachelard (18841962), o mais destacado cpistcmólogo francês nas dé cadas de 1930 e 1940. Em certa medida. Bachelard sig nifica para Foucault o que Mauss significou para Lévi-Strauss» e Blanchot para Barthes: uma abordagem proto -cstruturalista, altam ente fecunda, para a conccitualização de seus respectivos problemas. Bachelard destacou, cm sua busca dc linhagens conceituais, as descontinuidadcs. Durante toda a vida, ele trovejou con tra as “ falsas con tinuidadcs” sup osta mente existentes entre idéias muilo remotas cm seus contextos intelectuais históricos. Em A form ação do espirito científico (1936), evitou uma visão triunfalista, linear, do progresso científico, ao dar ênfase à impor tância dos “ obstáculos epistemo lógicos” . Em O raciífnaiismo aplicado (1949), Bachelard lançou o conceilo de problemática: uma problemática surge dentro de uma ciência em progresso, nunca a partir de um vazio intelectual e cognitivo. Por conseguinte, ela conota nào a verdade ou a experiência em geral, mas sempre obje tos particulares num domínio científico cspccíflco» con templado cm sua dinâmica cognitiva. Juntamenic com o senso dc descontinuidade — aqjilo a que podemos 56
cham ar a visão “ cesural*’ do desenvolvim ento cientí fico —, a noção de problemática foi o segundo grande legado de Bachelard a Canguilhem, AIlhusser e, por meio deles, Foucault. Um terceiro legado, no en tan to. não foi menos importante: as fortes propensões untiimpirisias da epistemologia de Bachelard, que tra çou uma nítida divisão entre a razão científica e o senso comum. *’A ciência nâo é o pleonasmo da expe riência” , escrev eu ele. '® Ao antiem pirismo aliava-se uma profimda des confiança em relação às teorias platônicas da verdade. Bachelard havia aprendido com Léon Brunschvicg, o grande epistemólogo da Sorbonne durante a Belle Epo que, a nào reconhecer nenhuma verdade apriorística: a cicncia náo c dc modo algum um reflexo du verdade; da mesma forma quc o trabalho é uma aniiphysis, o traba lho científico é uma “ antilogia” , uma rsjeição de con ceitos hab ituais. Os cientistas são “ os operários da prova’*, o que significa que tn ibalh am , antes de mais nada, sobre as provas. A ciência avança através do cogi!(irnus de uma com unidade científica para a qual a verdade está não no dado mas sim no consíruído: o racionalismo científico repousa num co-racionalismo — para o qual, entretanto, mesm o na opinião favorável de Canguilhem, Bachelard deu uma explicação demasiado psicologisla. Trés, então, foram os principais legados de Bache lard ã epistemologia estruturalista: (a) cesuralísmo (o tema do romp imento ou “ cortc cpistcraológico” , cen tral em Foucau lt e Althusser); (b) antiem pirismo: (c) uma visão construtivista da ciência, a que pertencem 57
os conccitos da probicmâlica c do virtual colapso da racionalidade, com o tal, em mera “ prá tica” científica. Ademais, desde o começo ele se esforçou para libertar a epistemología do feitiço de Descartes. Enquanto Descartes equipara rvüuíivamenie a ciência a certezas construídas sobre ob jetos simples, Bachelard pede uma indução baseada nos dados complexos de objetijlcações abertas, satisfeitas com meras probabilid ades. '■ E também rejeitava a idéia cartesiana dc verdades cientí ficas imutáveis, reveladas progressivamente a um sis tema de saber que conhece o crescimento mas não. dc modo geral, a mudança estrutural. Isso cra excessiva mente platônico para Bachelard; sic preferia ver a ver dade como um resultado de atividade racional dentro da “ cidade cieiilífica” (uiii eco dc Gcoigcs S u ic l,“ qiic com toda probabilidade teria apreciado a expressão "ouvriers de la preuve" para descrever os cientistas). Hyppolite escrev eu que Bachelard linha o “ rom an tismo da inteligência” . ’^ Com efeito, sua ênfase no risco e na fecundidade do erro às vezes faz lembrar a concepção heróica da ciência exposta por KarI Popper. Contudo, uma coisa é certa; o anticartesianismo dc Bachelard parece situar-se a quilômetros de distância do anticartesianismo dos estruturalistas. Bachelard era um racionalista que se comprazia com o pensamento abstrato c não tinha nada do amor estruturalista à />ncolage intelectual ou à "lógica do con creto". Por outro lado, escreveu muito a respeito ce cesuras e descontinuidades, mas não teorizou sobre blocos epocals na história da ciência. A rigor, advertiu que nào havia sen tido em discutir a alquimia e a química moderna como 58
se pertencessem ao mesmo universo conceituai — mas nunca falou, em termos semelhantes, dc idades dentro da ciência m oderna, isto é, galileana. Significativamen te, quando, ao traçar a crônica dos paradigmas na íísi* ca. Kuhn se baseou em historiadores franceses da ciência, não recorreu a Bachelard, e sim a Alexandre Koyré (1892-1964). Koyré era um russo que estudou com Husserl cm Gottingen, antes de se transferir para o círculo de Emile Meyerson (1859-1933), um racionalista antipositivista, em Paris. Depois da guerra, Koyré passou períodos regulares em Princeton. A fronteira es tanque que ele traçou entre a ciência antiga e a mo derna como mundos culturais (Do mundo fechado ao universo infmito, 1957) — um relato de cosm ov isões científicas radicalmente diversas, cm épocas diferentes — p reparou o cam inho para a teoria dos paradigmas de Kuhn. Koyré antecipa Kuhn c Foucault dc maneira cru cial, ao acen tuar o papel de “ fatores extraiógicos” na aceitação ou rejeição de tcorías científicas. Contra as concepções positivistas, ele insistia em que o valor “ técnico” de um a teoria — seu valor cxplanatório — de modo algum é sempre a chave de sua vitóría na hislôria do pensamento cientifico.” Koyré estivera por demais sob o encanto de Husserl: sabia que, por baixo dos conceitos científicos, existe um Lc’hensweli, um mundo vital, sobrecarrega do com uma pesad a “ infraestrutu ra filosófica” . As eras de sab er de F oucault, as epistemes, são f.chcnxw/dti'n inconscientes. O que faz F’oucault em A s pala vras e as coisas é focalizar a aten ção nas mutações entre as epistemes. Mutação é um 59
conceito biológico criado por Hugo de Vries (18481935) e revivifícado no trabalho de François Jacob {La Logique Ju vivant, 1970), colega de FoucauU no Col lège de France e detentor do prêmio Nobel. Na lingua gem foucaldiana ocorre uma mutaçâo quand o um con junto de preconcepçôes (a in fra-estrutura filosófica de Koyré) cede lugar a outro. Em Foucault, porém, as mutações epistêmicas sào fundamentalmente arbUrárias. As epistemes sucedem umas às outras sem qualquer lógica interior. Além dis so, tendem a constituir blocos de saber radicalmente heterogêneos: a descontinuidade absoluta é a suprema lei interepistêmica. Koyré, em contraste, admitia cer tos elementos estratégicos com uns entre eras cpistemológicns dislnnte«;» tomando assim as cesuras na história do saber menos absolutas, se nào menos marcadas. Em sua opinião, a infra-estrutura filosófica das eras cogni tivas pode combinar aquilo que tinha sido de todo se parado — e até tido por incompatível — anteriorm ente. Exemplo muilo expressivo disso aparece em seu livro EstuJos Jc história Jo pensamento científico (1966), quando ele descreve o solo filosófico da ascensão da ciência moderna em meados do século XVll. Enquanto muitos, como Whitehead, falavam do moderno pensa mento científico como uma vingança de Platáo contra o senhor do saber medieval, Aristóteles, Koyré o repre sentou com o prod uto de uma ímpia aliança entre Platão e Demócrito: ressaltou corretamente o significado da ontologia democrítiana do átomo e do vácuo na queda das noções aristotélicas de substância e atributo, po tencialidade e atualidade. Foi a revivescência de De60
mócríto que deu a um pensador como Gassendi (que, ao contrário de Galileu e Descartes, não era um inven tor cienlífico) lugar tào importante no embasamento te órico da ciência moderna.^* Ora, essa combinação de elementos platônicos e democritianos era inimaginável para a mente antiga. Por conseguin te, lemos: (a) uma concepção cesural, isto é, nào*linear ou simplesmente cumulativa da história; c (b) uma admissão de hetero geneidade apenas relaíiva entre as eras, dado que a pe culiaridade de uma nova era cognitiva pode consistir cm sua capacidade de articular elementos prévios ori ginariamente de todo estranhos entre si.
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IV. DA PR O SA DO M U N D O À M ORTE DO HOM EM
Vejamos, então, as próprias epistemes. A mais an* tiga delas, irrecuperavelmente perdida para nossos há bitos m enta is, é o paradigma da Renascença. Foucauit a retrata como "ti prosa do m u n d o '\ definida pela unidade de palavras e coisas, les mois el les choses, numa teia inconsútil dc semelhanças. 0 homem renascentis ta, pHHi Foucault, pensava em termos de similitudes. Havia quatro ordens de semelhança: a convenienlia li gava coisas próximas umas às outras, como animal e planta, terra e m ar. corpo e alm a, perfazendo uma "grande cadeia de ser” (um topos esquadrinhado, em estudo clássico, pelo mestre da história das idéias, Ar thur Lovejoy). A aemulatlo significava similitude a dis tância: assim, dizia-se que o céu se assemelhava ao rosto pois também tinha dois olhos — o Sol e a Lua. A analogia tinha amplitude ainda maior, baseando-se menos em coisas semelhantes do que em relações se melhantes. Po r fím, a simpatia comparava quase tudo a qualquer coisa, numa identificação praticamente sem limites: considerava-se que, através dela, cada frag mento da realidade era atraído para ou:ro, ^endn todas as diferenças dissolvidas no jogo dessa atração univer sal. A simpatia ligava, cm particular, o destino dos ho 63
mens à tr^ etó ria dos planetas, o ^ s m o a nossos hu mores. Seu poder era tido como tão grande que, dei xada a si mesma, entregaria o mundo inteiro ao domí nio do Mesmo. Felizmente» a simpatia era moderada por seu contrário, a antipatia. A alternância entre elas regulava todas as similitudes. Tomemos como exemplo os quatro elementos: o fogo é quente e seco e daí sua antipatia pela água, que é fresca e úmida. O mesmo se aplica ao ar (quente e úmido) e à terra (fria e seca) — mais uma vez, preva lece a antipatia. Por conseguinte» o ar é colocado entre o fogo e a água» e a água entre a terra e o ar: pois, por ser quente, o ar se avizinha do fogo; e, por ser úmido, acomoda-se com a água... A umidade da água, ela pró pria tem perada pelo calor do ar, abranda a secura fria da terra, e assim por diante. O leitor poderia julga r es tar lendo um a ou duas pá ginas de M yího hg iq ucs de Lévi-Strauss, o mais siste mático levantam ento mod erno de coincidcntiae oppositorum. Na verdade» porém, tais observações vêm dire tamente de algumas anotações contemporâneas a um livro renascentista chamado Lc Grand miroir du monde. Foucault transcreve citações de uma dúzia de es tranhos e curiosos tomos de ciências ancestrais: H is tória do s m onstros, de Ulisse Aldrovandi; Das plantas, de Cesalpinus; as disquisições filosóficas de Tommaso Campanella; a gramática de Petrus Ramus; Á magia natural^ de Giambattista della Porta, e o Tratado das cifras^ de Blaise de Vigenère; Da satilezor de Girolamo Cardan; as obras de Paracelso... Com exceção de Ra64
mus, de Campanella e de Aurcolus Theophrastus Bam bastus von Hohenheim (1493-1541), que sabiam ente adotou o nom de plume menos intimidador, porcm pouco mais m odesto de Paracelsus (“ mais alto que o alto")» todos esses autores» cujo trabalho floresceu aproximadamente entre c. 1520 e 1650, são hoje quase inteiramente desconhecidos, e na verdade ninguém os lé. O fato de fazer citações deles (tal como, anterior mente, de autoridades médicas da antigüidade) e náo de celebridades renascentistas como Leonardo, Eras mo, Rabelais e Montaigne, conferiu ao texto foucal diano uma aura de erudição que. para muitos leitores, obscureceu uma das principais deficiências da forma ção do autor: o fato, muitas vezes observado, de que clc volta c meia não estava familiarizado com a rica li teratura erudita sobre esses assuntos. Com etcito, nem mesmo seu primeiro grande con ceito histórico — a similitude — deixa de te r algum p e digree moderno. Heidegger, por exemplo, numa confe rência publicada originariamente em 1950 e traduzida para o fnm cês em 1962,” delin eou uma antítese entre a corresptmdência (ICntsprcehung), como a lei do pensa mento pré-moderno. e a representação, como a norma do moderno saber. Heidegger explicitamente ligou a ■‘co rrespo nd ência” ao princípio da analogia, para logo contrastá-la com o olhar objetificante. reducionista, da moderna representação. Podemos encontrar alusões semelhantes em Wilhelm Dilthey, que já antes disso c a racterizara o espírito rena scentista como “ pensamento através de imagens” , “ pensamento plástico” , em con65
tmposiçâo à navalha de Occam, a aguda racionalidade ab straia dos filhos de Galileu e D escartes. *“ Assim, a moderna substituição da analogia pela análise como a fo rm a m entis do saber já era um tem a estabelecido na história das idéias muito antes de As pala vras e as coi sas. Mas é de justiça dizer que, se Foucault não foi o prim eiro a detectá-lo, pelo menos foi o prim eiro a dissecá-lo. A episteme da semelhança ou correspondência li nha também um tipo especial de linguagem cognitiva: a assinalação, o sinal dc todas as similitudes. Segundo o saber renascentista. Deus havia aposto uma marca ou “ ass ina tur a" nas coisas (em tudo), a fim de destaca r suas semelhanças mútuas. No enlanto. como as assinalações de Deus eiam, no mais das vczcs, ocultas, o sa ber estava fadado a ser uma exegese do misterioso. N essas circunstâncias, a eraditio muitas vezes raiava a divinatio'. saber era adivinhar. De qualquer forma, sa ber não era nem observar, nem dem onstrar, mas in ter pretar. As assinalações, por sua vez. colocavam os próprio s sinais sob o princípio da correspondência uni versal. A semiótica renascentista obedecia ao regime lernário do sinal, proposto originariamente pelos estói cos: compreendia um significante e um significado, li gados por uma “ con jun tura", isto é, por alguma espé cie de semelhança. Em conseqüência, os signos não eram considerados arbitrários; tampouco era a lingua gem, na "prosa do mundo", uma denotação iransparente. Nâo admira que ela exigisss iniermináveis inter pretações — a procura das significações prim evas, as assinalações das palavras antes dc Babel... 66
De repente, no século XVII, essa episteme da cor respondência desabou: "A utividadv da espirito'*, es creve Foucault, "nào mais consistirá, pois, em apro ximar as coisas entre si, em partir em ùasca de tudo o que nelas po ssa revelar com o q ue um pa rentesco, uma atração ou imia natureza secretamente partilhada, mas, ao contrário, em discernir: isto é, em estabelecer as identidades."^^ Em outras palavras: entra a análise, sai a analogia. E é a essa busca de uma identidade estável e separada das coisas que Foucault, da mesma forma que Heideg ger antes dele, chama representação (já desde o título do terceiro capítulo). A ascensáo da representação, so bre as ruín as da sem elhança, é a prim eira mutação epistêmica descrita cm A s pala vras e as c
nomenclaturu, o saber procurava substituir a scmcItiança infinita por diferenças fínitas. assim com o o con jetural pelo c e r to .A d e m a is , a inathesis tendia a ex cluir a gênese: o saber da ordem era usado para sus pender a hislória. N o máxim o, tudo quanto o pensa mento clássico podia fazer com a história era pensar cm gêneses ideais — utopias projetadas num passado prim evo e idealizado. N ão surpreende que o próprio idioma cognitivo — a “ linguagem " do saber — viesse a ser visto numa luz diferente. A episteme clássica, cocificada nesse sentido na Lógica de Port-Royal (1662), concebia a significação como um regime hiiiário: sendo a linguagem conside rada transparente, não havia mais qualquer pressu posto de elos ocultos (as antigas “ corúuntunis"), c, portanto, nenhum a necessidade — via de regra — dc interpretação elaborada. A "divinatio" fol rapidamente descartada da esfera do saber legítimo. JuIgava-se quc o significante e o significado estivessem ligados de modo arbimlrio, mas também claríssimo. Foucault se detém muito mais na episteme clássica do que em sua predecessora. Ao analisar o conheci mento clássico, dedica todo um capítulo a cada uma das áreas de saber escolhidas: lingüística, história natu ral e economia, cobrindo, respectivamente, a lingua gem, a vida c o trabalho. Examina grande quantidade de vetustas obras poeirentas em cada um desses cam pos, e novam ente nega aos expoentes mais notórios seus privilégios habituais. Descartes recebe tantas menções quanto obscuros gramáticos: a hislória natural 68
dc Lineu e a economia dc Adam Sinilh sâo tratadas em pc de igualdade com vário s autores muito menos coniecid os hoje em día. Essa atitude pouco convencional merece louvor, pois possibilita ao historiador do pen samento lançar um olhar novo sobre muitas ligações perdidas ou sepultas. Logo no começo do livro, Foucaull dá à represenijtção — o espírito da episteme clássica — um símbolo gránco. Reflete sobre um a das jóia s do P rado, Las Mcninas (1656) de Velásquez. Velásquez mostra a si mesmo olhando para o espectador e represenia seus verdadeiros modelos — o rei e a rainha da Espanha — indiretamente, através de um rellexo pouco claro num espelho colocado na parede do fundo do estúdio. O tílulo do q uad ro é irônico: seus verdadeiros sujeitos (quc ix;upam nossa posição como espectadores) não apare cem. Foucault loma esse quadro como símbolo da pró pria represenlação: um saber em que o siy eito é m an tido cm xeque. Um do s ápices da arte barroc a, a, obra de Velás(]uo/ cncerni mais de um único exemplo de tal deslocamonU) do tema nominal. Por exemplo, na manivilliohii iclii quc sc scguc a l.as Meninas, Las/lHanderas, (In Pikidd. (» icnia nii(ot(')gico dc Palus e Aracnc c rcte> MímIm iim lundo. ao passo q uc todo o primeiro plano é iIímIii lido dc niodo soiiorho à prosaica oficina das tece< lus Dii nu*snía lortna quc cin i.
mesma, e não por causa das figuros insubstanciais que a habitam (o fidalgo na porta dos fundos em Las M eni nas', a de usa e sua vítima, A racne, em Las Hilandcras). Em ambas as telas, ademais, a maneira de encenar o tema nobre revela o prazer do pintor em organizar o espaço não somente através da perspectiva, mas pela escansão de camadas de luz, que sublinham planos em retrocesso. Tal jogo de luz. juntamente com os múlti plos ponto s de in teresse ótico, vai de encontro à centralidade normal da figura ou do grupo principal, confe rindo assim ao espaço um dramatismo (tipicamente barroco) não necessariam ente manifestado pelo te m a do quadro. Os historiadores da arte estão acordes em que Velásquez iniciou sua carreira em Sevilha, por volta dc 1620, influenciado poi Caiavaggio e Zuibmáii; por conseguin te, muito apreciava os valores tácteis (representados vigorosamente em duas de suas telas hoje na Grã-Bretanha, A velha cozin hando ovosy em Edim burgo, e O aguadeiro de S evilha . na Apsiey H ouse, I-ondres). No entanto ele acabou por adquirir um es tilo eminentemente pictórico, que o tornou o mais ' ‘mod erno” , isto é, p roto-impressionista, do s mestres barrocos. Contem porâneos seus. como o poeta Quevedo, logo se aperceberam do novo papel do colorismo — legado da arte veneziana da Renascença — nas mãos do pintor da corte de Filipe IV. Um momento decisivo nessa evolução foi alcançado com Vénus ao espelho (Rokeby Venus, c. 1650). na National Gallery. Londres — mas Las M eninas e Las Hilandcras sâo amplamente consideradas como o testamento pintado — e alta mente “ pictórico” — de Diego Velásquez.'“ 70
Dctívc-mc por um instante no significado estéti CO da pintura de Velásquez porque proporciona uma Ixise firme a quem deseje embarcar na vasta metáfora que Foucault traça de Las M enin as como um ícone da “elisão do sujeito” . Luca G iordano, o virtuose do pin cel no estilo barroco tardio, chamou Las M eninas de “a teologia da pintura” . N u m certo sentido, essa frase parece ajustar-se ainda melhor a Las IJilanderas. É possível que a admoestação que Palas faz à pobre Aracne, prestes a ser transformada em aranha, verbere as ambições intelectuais da pintura, devidamente re presentadas pela ta peçaria tecid a por A racne, que re produz nada menos que O rapio de Europa, de Ticiano, o maior nome da pintura de cavalete clássica. No primeiro plano, poi outro lado, Velásquex banha de co res, amorosamente, suas humildes cardadoras e fian deiras. uma clara referencia à seriedade da pintura como o f í c i o . . Las H ihn dera s consiitui uma fábula sobre o orgulho humano. Que dizer de Las Meninas"} Para começar, o qua dro não tinha esse título ao tempo de Velásquez. E seu nome original, ” A família” , diz muito sobre o signifi cado verdadeiro de seu siyeito deslocado. É como se Velásquez desejasse prestar uma vibrante homenagem, despida de solenidade, a seus amados soberanos. No ccntro da cena, iluminada po r seus cabelos louros e seu esplêndido tr^e de seda, ele colocou a Infanta Marga rida Maria, primogênita do segundo casamento do rei. A meio caminho da escada do fundo, pintou o inten dente de tapeçarias da rainha, um primo do pintor. Dom José Velásquez. Toda a cena está envolvida por um 71
ciimu doméstico, uma atmosfera dc dccorosa familiari dade: som ente o anão jovem brinca com o cão, e ainda assim sua perna esquerda constitui uma espécie de re flexão posterior; análises cuidadosas mostraram que sua posição é um inspirado acréscimo pentim ento. O pintor da corte representa a si próprio numa modés tia digna, trabalhando num retrato do casal real. Como poderia m ostrar tam bém este último, sem lhe dim inuir a majestade? Por isso. não o faz; satisfaz-se com asso ciar seu parente ã homenagem e, acima de tudo, com dar destaque à filha querida dos monarcas, cercada por suas damas de honra, sua aia e seus bufôes. Não ocu pava M argarida Maria, no coração do rei, o lugar antes pertencente ao Infante Baltasar Carlos, a quem Velásqucz retratara de modo táo adrniiávcl? vSigiiifícativamente. uma infanta mais velha, Maria Teresa, nascida das primeiras núpcias do rei. e futura esposa de Luís XIV, está ausente do quadro. Sucede que, à época, ela criticava com severidade a política do pai. De qualquer forma, Filipe IV recebeu bem o tributo de Velásquez: conservava a tela na alcova real. Anos mais tarde. fez com que a cruz vermelha da Ordem de Santiago, que ele concedeu a Velásquez pouco antes da morte deste, fosse pintada sobre o peito do pintor. Assim, L as M eninas significa menos a ocultaçâo de um sujeito que o respeito por ele. Para Foucault, no entanto, o quadro sintetiza “« representação Ja repre sistem a epistêm ico em que sentação clássica ' u m aquilo em torno do qual gira a representação deve ne cessariamente permanecer invisível. Velásquez, a in fanta e seu séquito acham-se, todos, empenhados em 72
olhar para o rei e a rainha — e estes para eles. O rei só aparece no espelho na medida em que não pertence ao quadro. Seus olhares sào recíprocos; seu status, desi gual, O casal real é o ob jeto (sujeito) da repre sentaçã o, porém não pode (nas circunstâncias do quadro) ser ele próprio representado... Não haveria nenhum denso mistério se Foucault tivesse aceito, como faz a história da arte, que. em úl tima análise, U j s M enin as é um «/íí-retrato de Velás quez. pintado em homenagem ao rei. É. portanto, ób vio que, apesar de lodo o brilhantismo de seus longos comentários sobre o quadro — um pórtico encantador para o elegante edifício conceituai que é A s palavras e íis nnsas —, no fundo Foucault não está ’’lendo” Las Meninas', em vez disso, está projetando na tela céle bre um im portante postu lado leórico de seu livro. Que postulado? O axioma de que. na epistem e clássica, o sujeito está destinado a fugir ã sua própria representa^'ão. Tudo se torna bem mais claro se tivermos em mente o que aconteceu, de acordo com Foucault, na mutação seguinte — o desaparecimento da episteme clássica. Por volla de 1800. com efeito, sucedeu " u m a rnuíaçâo da Ordem em História"', as coisas "esvapanun do espaço da tábua"**' e proporcionaram ao saber "espaços internos" que não podiam ser representados r.o sentido clássico de medida e taxinomia. Sob as des> continuidades da Taxinomia universalis. de Lineu. por exemplo, insinuou-sc um novo conceito de vida, refratúiio ãs tabulações da história natural e aílrmando uma funtãslíca continuidade entre os organismos e seus amn
bientcs. A histó ria natural — um código de saber sem qualquer espaço para uma história da natureza**’ — ce deu lugar à hioh)gUi. Entrementes, a filologia suplan tava a gramática geral clássica: a linguagem. Já não mais vista como representação transparente do pensa mento, foi dotada de profundidade histórica. Quanto á economia, a análise das trocas foi substituída por outro fenômeno, mais profundo: a produçáo. Com o tempo, a “ análise das riqueza s” do século X V ll viu-se substi tuída pela economia política. Assim, a vida, o trabalho e a linguagem deixaram de ser vistos como atributos de uma natureza estável e passaram a ser encarados como domínios com historicidade própria. A História, nova deusa do saber, "progrcssivamcnti* imporá suas leis à análise da produção, ã dos seres arganizjulos, e/tjhn ã dos grupos lingüísticos. A História dá lugar às organi zações analógicas, assim como a Ordem abriu o cam inho das identidades e das diferenças sucessivas." É importante observar que tudo quanto as três dis ciplinas clássicas partilham com suas sucessoras — bio logia. economia política e filologia histórica — é o sim ples contorno de très em piricidades — a vida. o traba lho e a linguagem — antes como áreas do que como ob jetos. Isto porque as novas ciências de modo algum dão prosseguim ento às suas irmãs arcaicas. Estas foram mais deslocadas do que verdadeiramente substituídas. Diz Foucault: "Filologia, biologia e econ
}:ramtcs sct;mvnto.s tc óricos c cfttc <>murmúrio con tinuum ontológico prccnchia."*'* Ninguém sabe com certeza o que vem a ser o murmúrio de um continuum ontológico, mas não im porta: a mensagem está bastante ciam . O que Foucaull deseja proclamar, cm seu fervor cesunU, é que não pode haver ponte alguma entre quaisquer epistem es ciadas. Seja qual for a continuidade, ela só pode existir, naturalmente, dentro de epistemes. Assim, pode-se de tectar certo grau de crescimento cumulativo no seio da episteme pós-clássica. ou moderna, a que Foucault de dica os trés últimos dos dez capítulos de A s pala vras e iiS coisas. Numa primeira fase, que se estende aproxi madamente dc 1775 ate o limiar do século XIX, os autüich uunicvaraiii a hÍ2>lui ícizar a vida. o trabalho c a linguagem; mas ainda tentavam lidar com essas novas cmpiricidades com o arsenal conceituai das represe nta ções clássicas. A maneira como Lam<;rck considerava as estruturas orgânicas em mutação, o conceito de tra balho de Adam Smith e as idéias de William Jones so bre raízes lingüísticas cam biantes equivaliam a esse frágil meio-termo. Depois, mais ou menos de 1795 a aproximadamente 1825. constituiu-se uma vigorosa episteme moderna. Com Cuvier na biologia. Ricardo na Kconomia e Bopp na filologia, a fo rm a m entis do saber clássico fez-se cm pedaços. No pensamento biológico, a função superou a estrutura. O estudo da linguagem (ixou-se num tumulto de raízes em evolução. Na eco nomia. a circulação dos bens passou a ser explicada como um resultado visível de demorados processos dc produção. Por toda parte, as regularidades superficiais 75
do saber clássico eram subslítuíduí> pur forças mais profundas, mais sombrias» mais densas; nas mais diversas disciplinas, o pensamento moderno impôs cate gorias dc explanação dinâmicas, históricas. Ora, o principal argumento de Foucault e que, em tudo isso, o híuricm — o (principal) sujeito desses três discursos científicos — ganhou reconhecimento em sua existência fatual, contingente. Enquanto a episteme clássica era articulada "segtmJo llnfuis tfuc dc modo ídgum isolavam um dominio próprio c especifico do h o m e m " . todas as categorias da moderna episteme eram. ao contrário, profundamente antropológicas: em última análise, todas elas se articulavam na “ analítica da finitude (hum ana)” . Foucault nos convida a des pertar dessa “ m odorra antropológica", que é o oxigê nio do saber moderno. Pois somos perseguidos pela história e pelo humanismo; e somos presas da história, como uma forma de pensamento, por causa de nossa obsessão humanista — nossa maneira, mesmerizada í>elo humano, de encarar a realidade. Se, sob a epis teme clássica, faltava o homem como o sujeito central do saber — tal como o modelo real cm Las Meninas —, a episteme moderna fez muito mais do que restau rar o equilíbrio: ela carregou nas tintas, esquecendo-se de que o homem, como o fulcro do saber, através de sua finitude pessoal ou coletiva, nâo passa de uma fi gura transitória no desfile inescrutável das epistemes: "Corno a arqtn'idogia dc nosso pensamento mos tra fiicihn ente, o ho nw m é uma invenção de data recente. E talvez esteja aproximando-se do Jim. 76
Sc aqtu'Uis c/ispttsiçõcs vic.ssc/u « dcsaparcccr tai vomo apareceram, se, por algum acontecimento de que po dem os quando m uito pressentir a possi bilidade, mas de que n
clássictf — en tão se pode apostar que o homem desvaneceria, como. na orla do mar, um rosu) desenhado na are ia .’
Essas frases ominosas formam as últimas linhas de As palavras e as coisas. Não foi esta, exatamente, a prim eira vez que o estruturalism o protestou contra o poniu dc vÍ2»la liunianu no Nubcr. Jú nãu havia LcviStrauss tranqüilamente proposto a dissolução do homem como mela da ciência social? Não obstante, a despeito dc algumas sugestões comuns, os dois pensa dores não estão dizendo a mesma coisa. Enquanto Lévi-Strauss enunciava um desejo em nome da ciência, 0 que fez Foucaull. num de seus momentos mais crípti cos, foi algo inteiramente diferente: ele aludiu a uma perspectiv a que mais se assem elha a um destino do sa ber. Q uando chegar a maré da próxim a epistem e, o homem, como espaço do saber, será levado pelas águas. Qual o significado desse estranho oráculo? Façamos uma breve recapitulação. A episteme moderna, a da história e não a da ordem, desdobra-se como uma analítica da finitude humana. O homem é um ser tal que é nele — por meio dele — que compre endemos o que torna o saber possível. Sem dúvida. 77
admite Foucault» a n atureza humana já desem penh ava papel sem elhante no século XVIII. Na época, contudo, aquilo em que empiristas como Condillac se concen travam eram apenas as propriedades de representação — as faculdades m entais — que possibilitavam a exis tência do saber: a consciência que o homem tinha de si mesmo, a memória, a imaginação. Para uma análise do homem amcrcío, como o tema do saber pós-cíássico, isso não bastava . Em vez de um a ab«.trata “ natu reza hu m an a“ , deu-se lugar central ao homem com o uma "realidade espessa** e. como tal, um “objeto diíTcir"' — nada de facilmente captado na transparência das re presentações estáticas, na episteme cristalina da ordem e de suas árvores tabuiares claras e precisas. Uma ana lítica da finitudu exigia que as prccondiçõe.s do saber fossem esclarecidas por meio dos próprios conteúdos empíricos dados na vida humana: o corpo do homem, as relações sociais desse homem, suas normas e valo!CS.
Ora. isso colocou o homem, do ponto de vista epistemológico, numa p>osiçào canhestra. Por um lado, conhecer o homem resumia-se em apreender as deter minações da existência humana concreta nos fatos da vida, do trabalho e da linguagem, todos os quais mol dam o homem, antes mesmo de set nascimento, como indivíduo. De oulro lado, porém, a pesquisa sobre a na tureza físiológica e sobre a história social do saber, preocupada em desnudar o conteúdo em pírico da saga do homem na terra, não podia deixar de pressupor um certo nível de razáo transcendental, uma vez que, a fim de separar a verdade do erro, e a ciência da ideologia, 78
o saber necessita de um critério crítico com algum apoio externo . Em con seqüên cia, o homem — o fulcro do saber na episteme moderna — está fadado a ser "um estranho duplo empírico-transcendental'' — um requisito epistemológico quase impossível de atender de modo satisfatório. Não surpreende, portanto, que essa ambígua figura de saber" esteja ameaçada pela perspectiva de dissolu ção. As reflexões de Foucault sobre esse tópico, vital na economia de A s pala vras e as coisas, sào extrema mente breves. O que quererá ele dizer, exatamente, com a ambigüidade (sua própria expressão) do duplo humano? Seja o que for, trata-se j»em dúvida de um enigma estritamente epistemológico. Nào há higar aqui para o scmi-anjo, scmifcra dc I’ascal, nem para a duali dade kantiana de liberdade moral e determinismo natu ral. N a verdade o que Foucault parece ter cm m ente é a atividade fenomenológica. A fenomenologia, afirma de. promete apreender a um só tempo o empírico e o transcendental, pois essa é a meta de seu programa, a análise da experiência vivida (Erlehnis, vècu). O feno* monólogo concentra-se na experiência porque a ex periência vivida é ao mesmo tem po o espaço onde to dos os conteúd os em píricos sào dado s à consciência e a matriz original que lhes dá sentido. A fenomenologia, acrescenta Foucault, urdiu um "discurso misto" numa última tentativa de resolver o problema empíricotranscendental. Mas a tentativa malogrou, uma vez que os fenomenólogos não enfrentaram a verdadeira ques tão: o homem, epistemologicamente falando, existe de verdade? 79
Quanto ao próprio problema do “duplo”, Foucault não se alonga — o que é deveras lamentável, já que se pode considerar essa noção o coração filosófico de As paia vras e as voisas, a sede de seu principal argumento contra a herança do saber moderno. Foucault apenas admite a enigmática “ ob scurida de’’ da que stão e, dei xando as coisas assim, prefere aludir, na mesma breve seção do livro, a um dilema correlato mas claramente distinto: a oscilação, no sab er moderno, en tre o “ posi tivismo" (a redução da verdade dfo homem ao empíri co) e a “ esca tolog ia" (a antecipação da verdade num discurso de promessa). Positivismo e escatologia sào chamados de “arqueologicamente indissociáveis". Sua alternância, bem visível em pensadores como Comte e Marx, esiá, na opinião de Foucault, fadada a ocujjer no âmago do saber enquanto prevalecer a episteme m oderna, antropológ ica. No entanto ela é um sinal se guro da “ingenuidade pré-crítica" do pensamento mo derno — uma inocência teórica que a fenomenologia só eliminou ao preço de seu próprio fracasso. E que dizer das ciências humanas propriamente ditas em ludo Isso? O livro nào pretende ser uma ar queologia delas? Em A s palavras e as coisas, as ciên cias humanas lêm como função examinar o significado do homem para si mesmo. Biologia, economia e filolo gia esmiuçam a vida. o Irabalho e a linguagem em si mesmos, não naquilo que representam para o homem. Mas a psicologia, a sociologia e o estudo da cultura in vestigam os motios dados da significação em seus pro cesso s e ativ ida de s.'■* 80
Mas isso não é ludo.’’ As ciências humanas, que tratam das significações humanas, são constantemente autocríticas: assim que tomam um conjunto de signifi cações normalmente empregado pelo homem como animal vívente, p rodutivo ou falante, tratam-no com o a superficie de algum sentido mais profundo. As ciências humanas nutrem-se da crítica da consciência humana. Sua função mais autêntica é desmistificadora. Sua vo cação não é 0 incremento do saber rigoroso, preciso (as ciências humanas não sáo ciências, diz Foucault), mas nm ir-e-vir crítico entre a consciência e a inconsciên cia: "(...) há ciência humana náo onde quer que o honwm esteja em questão, mas onde quer que se anahscm, na dimensão própria do inconsciente, normas, n'iras, conjuntos significantcs que desvelam à cons ciência as co ndições de suas for m a s e de seus c on teúdos:'^^ O inconsciente tem importância crucial para a te oria do conhecimento de Foucault. A episteme do ho mem é também reino de seu duplo: do Outro ou do "impensado" {impensê), rótulo aplicado por Foucault i\ ludo que recaia fora da auto-representação do homem c n qualquer ponto dado do saber. Para o homem, "o Outro” é "náo somente um irmão, mas um gêmeo": está ligado a ele num a "ine vitáv el dualidade” . Ora, existem certos saberes — a psicanálise, a etnologia — que se especializam em m anter em sua força m áxima o impclo autocrítico das ciências humanas. Sáo "contiuciciicius” em plena cuça au Outio, uo impensado. l'in suma, ao inconsciente, esteja ele no homem (psiCitnálise) ou na cultura (etnologia). E acima e aJém des81
sas abordagens do impensado, eis que chcga agora à maioridade uma disciplina que oferece uma decifração ainda mais fundamental: a lingüística estrutural. É a terceira e a mais forte das contraciências, porque seu objeto espraia-se po r todo o campo do homem e porque é a única das trés suscetível dc formalização.*^ Resga tando assim essas contraciéncias do d epreciado ” sono antropológico” do saber moderno, Foucault rendia preito à essência da “ revolução estruturalista” : a pro víncia de S aussure, Lévi-Strauss e Lacan. O cumprimento logo foi devolvido, ao menos pela ala mais jovem da brigada estruturalista. Chamando a arqueologia de F oucault de um a “ heterologia” , Michel Serres descreveu-a com o uma “ etnologia do saber eu rop eu” .^* Um sab er descrito com o o antípo da do ideal do lluminismo: preso à cultura cm vez de universal, re lativo à cpo ca em vez de cumulativo, e erodido n ão por uma dúvida saudável, mas pela inumana capacidade deslruidora do tempo. Um saber em que as ciências humanas não são ciências, e em que a própria ciência não possui qualquer estabilidade lógica, nenhum crité* rio duradouro de verdade e de validade. O que A s pa lavras e as coisas proclama é o eclipse do homem como um solo de pensamento; o que realiza é uma per turbadora sugestão de que o próprio saber talvez não seja mais que nossa persistente auto-ilusão.
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V A "A R Q U E O L O G IA ’' A V A L IA D A
palavras e as coisas c um livro longo, admiravclmemc bem escrilo, cheio dc observações penetran tes c que levanta todo um conjunto de relevantes ques tões em epistemologia e história do pensamento. É tnrnbém, muitas vezes, uma prosa filosófica demasiado ■‘literária’', salpicada de afirmações gnõmicas, suges tões tantalizantes e uma propensão para efeitos dramá ticos em lugar de argumentação lógica.'’ Há uma fa chada de precisão, até m esmo um apego ã simetria (“ o i|iiudrilátero da linguagem” , "o trilátero do sa be r” rtc.). pt)rém o efeito geral é bastante aparatoso: iembra iim mestre do gênero apocalíptico que vez por outra se ilcdicasse a escrever "more geometrico", um Spengler hiincando com o estilo de Spinoza. Como avaliarmos sniis idéias e, sobretudo, sua visão?
O projeto de Foucault consiste em fazer um relato histórico, em profundidade, do surgimento das ciências humanas. Como vimos, o livro resume uma busca dos \(n lig o s fim d a m eníais" de nossa cultura, que goverMitni declara o prefácio — "sua Imguagem, seus estpn'mas perceptivos, suas trocas, suas técnicas, seus valores, a hierarquia de suas práticas". Era intuito de 83
Foucault, naturalmente, desvelar os códigos cultiiríus, ao descrevê-los em suas formas c articulações, iniie pvnilentemvníi' lic suas refcrcm h s vxperienciais na realidade social e física, o que pôs a arqueologia de Foucault, quisesse ele ou não, na companhia do estru iuralismo e levou muitos a compararem sua empresa aos modelos teóricos de Lévi-Strauss (as redes exten sas da mente selvagem) ou de Barthes (os minicódigos semióticos que sustentam as significações literárias “ intransitivas” ). No enlanto toda a escavação histórica foi execu tada com o fito de elucidar o impasse do saber/«í/í/c^rno. Nesse sentido. A s pala vras e as coisas, “ u m a e x plo ração parcial de uma região lim itada” , que, nào obslantCf forma, cm suas próprias palavras, juntamente com História da loucura e O nascimento da clínica, o esboço de ” um coryunto de experitnentos dcscriíiv<>s'\^^ representa uma primeira tentativa de realizar aquela histórica crítica do presente que defme o ambi cioso propósito de Foucault como um filósofo para ho je . A anatom ia das m utações epistêm icas era um prérequisito para compreender a ascensão e queda do ho mem como sustentáculo de uma certa espécie histórica de saber. A medida que nossa mudança sísmica na camada de pensamento ganhar ímpeto, afirma Foucault, o sa ber contem porâneo provavelm ente nào só deixará de ficar inebriado de história, como se livrará também dc seu entranhado antropucciiirisuio. Com toda a ccrtcza, os “’hum an istas” , inclusive os radicais munidos de um equipamento cognitivo arcaico, protestarão contra tal 84
diagnóstico e tal p erspectiva. Mas que clamem em vão. Os arqueólogos não tém tempo para sentimentos eletííaci>s — devem revestir-se de coragem para cumprir seus penosos deveres como prim itifs d'u n savoir nonv(vn. É essa, em linhas gerais, a mensagem do Fou cault da melhor safra, a de 1966. Por acaso, podemos dizer dela — como tem sido dito dos excelentes Méilocs e Pomerols do mesmo ano — que tenha chegado ao mãximo dc sua qualidade por volta de 1985? A resposta depende muito do que encontramos ao descermos da visão ã tarefa prosaica, mas indispensá vel, de averiguar o valor real de suas concepções particvílares. C oloca r M arx jun to de Ricardo parece s er b as tante convincente, A afirmativa de Foucault de que o marxismo está na episteme do século XIX “como |)cixe na água” (/l.y paiavras e as coisas^ cap. VIII, 2) só poderia provocar protestos numa cullura intelectual lao impregnada de Marx como era a da França na dé cada de 60 (Sarlre: o m arxismo é ” a filosofia insuperá vel de no sso tem po ” ); mesmo assim , ele acertou o alvo L'in cheio. Pois além de partilhar com o pessimista RiciuxU) a historicização da economia, por força de cate gorias como a escassez e a produção, Marx, o revolufiomirio, partilha lambém com seu século, como vi mos, a aliança ímpia entre o positivismo e a escatologia. Hã maneiras bem piores de apreender a essência lilosófica do marxismo. Infelizmente, porém, a maior parte das ousadas upíniõc» históricas dc Foucault está longe dc scr tão exala. Por exemp lo, ele m inimiza a diferença entre o penMimcnto racional e a magia na Renascença. Para ele, 85
a magia e a ciência humanista üa época eram par tes integrantes da mesma epistem e — a norma da seme lhança e da assinalação. No entanto, como os especiaiistas em magia hum anista são o s primeiros a admitir, a linguagem das assinalaçôes jamais abrangeu todo o sa* ber renascentista» nem mesmo — observa um crítico — naquele momento, em fins do século XVI. em que mais se escreveu sobre ela.** Não somente o predomínio da analogia sobre a análise não era total, como muitas vezes encontrou ferrenha oposição. Na França, por exemplo, havia durante a Renascença uma tradição humanista dominante que escarnecia da magia, do hermetismo e da mixórdia das arengas de Paracelso, das profecias astrológicas e de lodo brU -à-hrac das “«ssinalaçoes” e "correspondências". Os literatos da geração de Montaigne eram um cxempio disso: longe de combinarem a erudição e o ocultismo, condenavam a "(livintítio" em nome da "ermlitio". O próprio Montaigtie troçava dos almanaques astrológicos e da mentahdade horoscópica {Ensaios, tivro 1, cap. XI, *‘Des prognostications").*^ Tam pouco, é claro, a oposição se limitava ã França: o fundador da anatomia, Andréas Vesalius (1514-1564), que nascera em Bruxelas e ensi nava em Piídua. mostrava-se igualmente obstinado na rejeição de todas as doutrinas de assinalaçôes. Ademais, ao insistir numa cesuni absoluta entre o pensam ento renascentista e a epistem e clássica, a par tir de meados do século XVII, Foucault torna quase ininteligível a evid ente e decisiva continuidade e ntre os esforços de Copérnico (um inovador científico que não desprezava crenças herméticas) e a linha de Kepler86
(iiilíleii. que foi a fonte cia ciência moderna. Contudo, continuidade houve, a despeito da diferença entre as distintas inclinações epistêmicas desses homens. De um lado, os historiadores da ciência lêm ressaltado a importância do neoplatonismo florentino do final do sé culo XV para o heliocentrísmo de Copérnico, sendo o neoplatonismo, na época, o transmissor normal das imdiçôes hermética e cabalística da alia magia e do hilozoísmo — inclusive a mística do Sol. De outro lado, siibemos, estribados na autoridade insuspeita dos me lhores intérpretes das idéias hermético-cabah^sticas da Renascença, que Copérnico realizou sua revolução as tronómica (publicada em 1543, o mesmo ano de Dc hiunani corpíjris fabrica, de Vesalius) através de puros cálculos matemáticos, sein ajiuUt de crenças mágicas', c que um século mais tarde Kepler — que ainda consi derava sua descoberta das órbitas planetárias uma con firmação d a “ m úsica das esfe ras ” — estabelecia nítida ilistinçâo entre a verdadeira matemática e as maneiras niisticas (pitagórica ou hermética) de lidar com os números.^’ A conclusão é simples: tocados ou nào por crenças í.f>ropriadas ao espírito analógico, os cientistas da Re nascença, de Copérnico a Kepler, realizaram seus avanços em substancial continuidade com a matemati/ução galileana da natureza. Com efeito, o “ oc ulto” lOfUinuou a atuar como uma boa motivação ocasional pitia a análise m atem átic a até pelo menos um século e meio depois dc Kcplcr. Como nos recordou rcccntcnicnte Richard Westfall, o velho interesse de Newton pela alquim ia ensinou-lhe a considerar as idéias dc ação 87
e de força suscetíveis de tratamento malemálico, em contraposição a uma descrição mecanicista do céu.*^ Em suma, a “análise” nâo foi prejudicada — quanto mais tragada — pela “ analogia” ; e o sa ber empíricodemonstrativo encontrou seu próprio caminho sem se escravizar à “ interpretação” especulativa. 0 cresci mento da matemática na astronomia e na física foi a es trada real desse progresso cognitivo. 0 problema é que Foucault se importa pouco (multo menos, por exemplo, que Koyré) com a matematização do mundo desde os primeiros passos da ciência moderna. Em seu quadro da episteme clássica, definido como sendo de mathesis-cumAax\nom\íi, logo se toma óbvio que sua idéia predileta era antes a tabu lação que a medida. Se GalUeu, Descartes e Newton não têm grande peso em A s palavras c as coisas, nâo é apenas devido ao partis-pris anil-” heróico” da obra — é também porque, segundo entende Foucault, o mecanicismo e a matemática não eram genuínas estruturas epistêmicas, que tudo impregnassem no saber da épo ca. N a verdade, entretanto, a darmos crédito a rela to s clássicos como Science and lhe Modern World, dc Whitehead, a matemática ocupou um lugar crucial na ascensão e na consolidação da ciência moderna. Esta última pòs-se ao lado de Pitágoras e de Platáo contra Aristóteles, porque este era o gênio da taxinomia e porque o avanço do saber necessitava de alguma coisa alem dc classificações mais ou menos precisas; necessi tava do poder gcncralizante que só podia vser propor cionado pelos números e por aquela generalização da 88
própria ariim éiica que é a álgebra. O iriunfo da cícncia moderna foi uma vingança dc Eucüdes e Arquimedes contra o longo predomínio da física aristoiéiica. Dü n n te séculos» o s círculos eru ditos julgaram que, e n quanto a física qualitativa de A ristóteles ' ‘ex plicava “' a natureza, as teorias matemáticas (como a astronomia ptolemaica) m eramente “ salvaguardavam as aparên cias*'. Sobreveio enlâo a revoluçáo copemicana. Em sua esteira, Gaüleu exaltou Arquimedes e criticou a fí sica aristotélica precisamente por seu caráter não-matcmático. Entrementes, a antiga controvérsia entre a Icoria matemática e a paleofísica já havia sido resolvi da, em favor da primeira, por Kepler, exímio matemá tico que atribuía du as m etas à astronom ia: “ salvaguar dar as aparências" c "contemplar a csnuítau ilo uni verso". vale dizer, explicar a natureza.*^ O título com pleto da obra máxim a de N ew to n diz ludo: “ Princípios matemáticos de filosofia natural'". N a verdade, nas áreas investigadas em A s pala vras e as coisas, o mecanicismo e a matemática nâo rrurn em nenhum sentido preeminentes: eram irrele vantes para a gramática e a filologia, e primavam pela miscncia na história natural e ha biologia; quanto à matcmática na economia, não como pura estatística, mas com forte função analítica, data de uma formação te órica bastante tardia na cpistemc moderna: a escola neoclássica liderada por Jevons, Monger, Walras e Mitrshall, cujo núcleo — a teoria da uiilidade marginal • foi ex po slo pela primeira vez por Jevo ns, num enMM' iido em Cambridge, cm 1862. com o título Noticia 89
sohre uma teoria matetuátiva fferal Ja economia poUti va. A história natural pcrmanecsu, é claro, obstina damente taxinómica durante a idíide áurea da matemá tica francesa — a eni de La gran gee Laplace. de Monge e Carnot. Mas a questão é a seguinte: será que Fou cault tinha o direito — depois de restringir tanlo a faixa de ciências sob exame — de apresentar como univer salm ente válida uma epistem e cuja descrição repo usav a em base tão estreita? De qualquer maneira, não se pode ignorar uma quesiáo im portante: com o foi que, no decorrer de dois séculos de puro gênio matemático (desde Descartes, Newton, Leibniz e dos Bernouillis até Gauss. Boole, Riemann e Cantor), o solo incons ciente du ciéncin ocidental pcrmancccu basicamcntc taxinômico? Como observou Piaget, enquanto a taxi nomia — a episteme tabular da idade clássica de Fou caull — ocupa lugar relativamente modesto na escala do pensamento lógico, o cálculo ncwtoniano pressupõe um grau bem mais elevado de sofisticação lógica.*^’ Como pode a mesma episteme sustentar tão distintos níveis de pensamento? Até mesmo Canguilhem. sem pre sim pático ao projeto de Foucault, preocupou-se com o m enosprezo pela física na bela arqu itetura d e A s pala vras e as coisas — e percebeu que um exame pró prio da física haveria de solapar a te oria foucaldiana do cesunüismo estrito. A objeção de Canguilhem pa rece bastante válida: a seqüência Galileu-Newton-Maxweil-ninstcin não ofcrecc luptuius Ncinclhanlcs às que podem ser encontradas entre, digamos, Buffon c Darwin. Noulras palavras. Newton nâo é refutado por 90
Rinstein, como Darwin não c desmentido por Meiidci. Logo, não hã muito sentido na rígida cesura inserída por Foucault enlre a epistem e clássica c a m oderna. Na verdadeira história da ciência» alguns discursos clássiCOS (por exem plo, N ew ion) in teg raran -se na episteme subseqüente: outros (por exemplo, a história natural), não. Tampouco essa dificuldade para a arqueologia pode ser descartada m ediante sua sim ples desconside ração, a pretexto de que pertence a outro lipo de es tudo — única desculpa dada por Foucault. Não posso lieixar de subscrever a dúvida de Canguilhem: é real mente possível, no caso do saber tcària>, no sentido científico, apreender suas especificidades conceituais sn n rcfcrvm ia a um a norma, isto e, sem levar em contu seu sucesso ou fracasso como leoría científica?'^* Dificilmente o problema leria surgido se Foucault iião houvesse insistido em que "numa t uUura v num aado momvnto, nunca ha mais que uma episteme que (Icjhie as condições de possibilidade de lodo saber". Lm outras palavras, as epistemes são monólitos — são, cnfaticamente. blocos unitários de saber. Conseqüen temente, a cada mutação epistêmica as coisas simples mente deixam, de súbito, de ser "percebidas, descritas, enunciadas, caracterizadas, classificadas e sabidus do mesmo modt)" que antes.’o Também em seu prefácio Foucault solicita que vejamos a histó ria natunil de Lineu e de BufTon como relacionadas, não com os trabalhos p osteriores de C uvier ou Darwin, m as com c«iuj>05s diMiiiios. porém contemponineos, como a "gram ática gen il’*clássica ou a análise das riquezas de h iw ou T urgo t... Co m parada com as ‘vastas mudan 91
ças” na estrutura epistêmica ao fim do século XVIII, diz Foucault, a "quase-continuidade" dc idéias entre as duas épocas é apenas um “ efeito superficial” . A bem dizer, em ArqucoUtgia t h saher ele nos adverte que as epistemes não devem ser consideradas con ceitos “ totalitários” , isto é, holísticos: o predomí nio de uma episteme não significa que todas as cabeças pensavam segundo as mesm as linhas numa dada era e cultura. Em A s paUivros e as coiscs, FoucauU escreve, quase a modo de desculpas: "a atísência de halizamenio tneiodolófiico pode ter deixado a impressão de que (...) a a/iãlise estivesse sendo conduzida em termos de totalUlade cultural"'^' — mas na realidade uma epis teme não é nada disso. Contudo, a ressalva náo é de modo algum satisfa tória. ao menos por duas razões. Em primeiro lugar, é difícil perceber como o conceito de episteme em A s pa lavras e as coisas poderia ter sido interpretado erra damente como holístico: na verdade, é o próprio texto que o faz parecer assim — um tsxto que. diga-se de passagem. FoucauU nunca se deu ao trabalho de corri gir. Em segundo lugar, e isto é mais importante, as coi sas não poderiam mesmo se passa: de outra forma: isto porque, se se com eça atribuin do às epistem es uma fle xibilidade e uma heterogeneidade excessivas, se elas se tornam verdadeiramente pluralísticas, então o que se ganha cm exatidão fatual. históri:a. perde-se do lado interpretativo. Já que. ã força de sofrer qualificações, dificilmente cada episteme ainda poderia manter o sta tu s de infra-estrutura cognitiva compulsória. 92
Combinada com uma visão esianque dos cortes epislemológicos, a exposição que FoucauU faz das epistemes como monóliios obriga sua arqueologia a desdenhar, gritantemenie. pelo menos seis espécies de fenômenos. Primeiro, o retrato das epistemes como monólitos lotalmente desligados entre si leva à desconsideração dos fluxos dc pensamento transcpistcmicos. No entan to, se a abordagem epistêmica se recusa a considerar esses fenômenos, ela é acometida de um sério proble ma. cujo nome é (uiacronismo. E, na verdade, parece que, quanto mais nos atemos ã periodização de Fou cauU. menos suas epistemes resistem ao exame: pois cm todas elas há “anacronismos” em abundância. Mcncioncmos apenas quatro exemplos evidentes. No capítu lo sobre a epistem e da Renascença, Fou cauU dá grande valor à Grantmairc do humanista Peirus Ramus (Pierre de la Ramée), publicada originariamente em 1572. Tomando a obra de Ramus como es plêndido espécim e da inclinação analógica da epistem e das correspondências, clc alega que. para Ramus, as “ pro pried ade s" intrínsecas das letras, das sílabas c das palavras eram estudadas com o marcas sobrenaturais de forças “ m ágicas" com o simpatia e antipatia. O ra, Georgc Huppert, professor da Universidade de Illinois e membro do círculo de Chicago, demonstrou ser a Graoiatica de Ramus “ uma ob ra extraordinariam ente lijcida (...) de maneira alguma maculada por filosofia hci nictica ou cs|>ccuíação cscolástica ü»obre a qualidade tias palavras". A teoria da linguagem de Ramus u‘vcla-se muito empírica e racional: assim, quando ele 93
fala cias '‘propriedades" das palavras, refere-se U. somente àquiio que lhes é ciaranente apropriado, como os artigos precederem substantivos e pronomes, etc. Ironicamente, enquanto o cartesiano Marsenne, que escreveu meio século depois de Ramus, ainda se perguntava, em bora com relutância, se haveria co rres pondências ocultas entre as palavras e as coisas, signi ficados conhecidos por Adão c perdidos desde a Que da. Ramus era claro: para ele, as palavras não passa* vam de transcrições fonéticas: daí suas propostas para que fossem aban don adas letras mortas com o o em ung ou o .Vcm tesrnoifínvr.^' Definitivamente, com a devida vênia de Foucault, não existe aí nenhum traço de interpretações mágicas, nenhuma propensão para o oculto. Ou tro exemplo notável de má interpretação de Fou cault é o tratamento que ele dispensa ao omitólogo re nascentista Pierre Belon, cuja História da natureza dos pássaros foi publicada em 1555. Até A s palavras e as coisas, todos eram acordes cm considerar o Iralado de Belon — obra de um homem que realizou« sozinho, muitas dissecçôes. além de haver batizado 170 espécies de aves européias, ganhando com isso a admiração dos naturalistas que se lhe seguiram — como um notável exemplo de anatomia comparada. Publicada na década seguinte ã da grande o bra d c Vesalius, sua Histoire des oyseaux continha, em texto e em gravuras, a primeira comparação pormenorizada dos esqueletos do homem c das aves. Foucault sabe disso, mas se recusa a deixar-se embair pelas piedosas lendas da ideologia do progresso científico: com um verdadeiro esprii de sys94
time, ele afirma laxativamente que, apesar de toda a sua precisão, a análise de Belon só pode ser vista como anatomia comparada "por um oUtar niunUío dos conhrvimaiíos do séctdo XIX. Ocorre que o vrívo pelo quid deixamos chefiar ao nosso soher as ftíiuras da sx’melhança recolyre nesse ponto (e quase somente nesse ponto) aquele que o saber do sévulo XV! dispu sera sohre as coisas*’, Pobre Buffon. que com lanta freqüência cita Belon em sua própria História das aves... Talvez ele não soubesse distinguir uma mera “coincidência” epistêmica de uma genuína anatomia comparada. Ou, quem sabe. ocorresse, como argu menta Huppert.’^ que Belon fosse de fato um magnífico observador, um arguto taxinomista (já lhe foi alé credi tado haver imaginado uma nomenclatura binária, como a de Lineu), um extraordinário pioneiro da história na tural — de modo que negar a seu trabalho um prop ósito científico e ao mesm o tempo com pará-lo, em “ nível arqueológico” , à fantástica teratologic de Aldrovandi não passa de bobagem? Outro anacronismo em termos epistêmicos: Fou cault fala da estrutura orgânica como um conceito per tencente ao pensamento biológico na episteme pósclássica. Nada disso, diz o renomado erudito George Sebastian Rousseau, autor de Orfiunic Form: the Life ttf an Idea (1972), Tivesse Foucault lido a literatura moderna sobre os naturalistas do século XVIll (por cxcmplo, o estudo de Philip Ritterbush, publicado em I9M). e teria p*:rcebido que a estrutura orgânica, como pressuposto metafísico, não era de nx>do algum uma novidade cm Cuvier, e sim um conceito de longa es9.S
tirpc e, cm particular, com uma rica história na Era do lluminismo.’* Ao que parecc, a rigidez de sua noção arquicesural de episteme levou Foucault a interpretar de modo muito errôneo figuras e tendências do pensamento da expressão de um Ramus, de um Belon e do organicismo. Em contraste» no nosso exemplo final dc anacro nismo epistêmico. também destacado vigorosamente por G. S. Rousseau, o problem a não foi de má com pre ensão, e sim de informação deficiente. Em A s pala vras V as coisas, as obras dos lógicos e gramáticos de Port-Royal receberam destaque na descrição da epis teme clássica. Com efeito, a Lófiica de Port-Royal (1662) ocupa posição especial na análise de Foucault, pois aparece com o um curioso caso de consciência cognitiva entre regras epistêmicas, normalmente in conscientes. Assim, 0 regime semiótico clássico, que Foucaull Julga atuar inconscientemente em todos os demais campos do saber clássico, foi na realidade enunciado por Arnauld e Nicole, lógicos de Port-Royal, e não — como as outras coordenadas principais da episteme clássica — inferido do discurso clá.ssico por Foucault. Quanto ã Grammaire générale el raisítnée (1660), de Port-Royal, atribuída a Arnauld e Lancelot, trata-se. naturalmente, de um dos mais puros exemplos do saber clássico. O pensamento gramatical de PortRoyal, centrado como está numa teoria da representa ção, é lido por Foucaull como uma Jóia na episteme da ordem e da clareza — um perfeito p fm ln n t pani a filo sofia cartesiana. Infelizmente, porém, sucede que o grande modelo dos gramáticos dc Port-Royal. segundo 96
o lesienuinho do próprio Lancelol, não foi Descartes, mas um certo Sanclius. Ora, Sanctíus, aliás Francisco Sjnche?. de Ias Brozas (1523-1601), publicou sua suma tie mil páginas, Xíincrva, seu Je l ausis li/iguae itiíhuie. cm... 1585, ou seja. no apogeu da voga da doutrina das nssinalações e da literatuni hermética.’*Eis um grande enigma para o elegante quadro das epistemes foucaldiunas; pois a Minerva deve mais a Quintíliano que a qiiiilquer antecipação da filosofia m oderna: e, no en tan to. foi Sanctius. e não Descartes, que a gramática de IMrt-Royal exaltou como sua principal fonte teórica. S,uictius e, como outros já observaram, o velho ScaliUcr (Julius Caesar Scaliger), cujo próprio trabalho grainaíical foi publicado consideravelmente mais cedo, em IMO.” A segunda categoria de fenómer.os sistematica mente desdenhados pela arqueologia de Foucault sào oH hiaios epistêmicos. Ora, a história da ciência está cheia de debates entre, por um lado. defensores de concepções antiquadas e, por outro lado, desbravado res c seus seguidores: e mais de uma vez o choque enhr eles pôs em oposição diferentes propensões epistê micas dentro do período de vida que Foucault atribui a unui episteme. Jan Miei apontou um exemplo revela dor: a correspondência entre Pascal e o padre Noël a icspeito do vácuo.’“ O padre Noël linha sobre o vácuo ulcias confusas, que envolviam comparações arbitráiMs 0 , de modo geral, uma inclinação para a pirotecnia aiialógica, utilizando princípios **anim;stas'’ como as doutrinas dos quatro elementos e dos humores. Pascal defendia um empregô menos equívoco dos termos e 97
umu vi&ão mcnob uiUrüpumóiríca üa nuiurc^;
liheniiln seria o “ elemento** fogo. Em 1670. um vonlcmporâneo de Boyle, o químico alemão J. J. BcI licr. declarou que se tratava de terra oleosa, ou graxa ihrrít piniiiiis), formulando assim a idéia dc que o floKsiico era uma substância. Mais tarde, no decurso do piiinoiro te rço do século X V IIl, outro quím ico alemão, (icorg Ernsl Stahl, desenvolvendo essa idéia, criou o tcnno flügísticü e tornou o conceito corrente. Em 1750, «I (loutrina do flogístico tinhapa. No ultimo quartel do sécu lo — justa m en te a cpoca do desaparecimento da episteme clássica — tal iliíutnna mostraria formidável resistência, tomando-se o principal alvo do fundador da química, Lavoisier. Iliisiaríi lemb rar que, quando Jo sep h Priestley, na década iK* 1770. conseguiu isolar o oxigênio, pelo aq uccim cn to dl* alguns óxidos, a explicação que deu para tal proeza iiui verdade, ligeiramente antecipada pelo sueco Carl Williclm Scheele) ainda estava tão vazada nas antigas »onccpçòes quím icas que ele chamo u o oxigênio de “ ar ilrsllogislicado” . Min
Ora. desde muito sabia-se (por exemplo, Boyle) (|nc. no ato da combustão, as substâncias tiravam altfuina coisa do ar, com o que aumentavam de peso; e quando, nos mesmos anos das experiências de Pries tley com o oxigênio, Lavoisier demonstrou que o auincnto dc peso dos metais calcinados se devia ao fato iU‘ tirarem um “ fluido elástico” do ar, o dogm a do flosofreu uin gulpc inuital. Lavoisier realizou seu oiiiquc formal em 1783. Em 1800, todavia, Priestley liMuhi revidava; naquele ano, publicou uma Doutrina do 99
flogistivo vstahclecida e a com posição da ãfiua refuia' da. A liçâo desses fatos da história da química é dupla. Primeiro, a idéia do fiogístico, rào importa quâo errô nea como explicação, teve inegável papel heurístico. Com efeito, levou a muitas experiências, conespondeu ã primeira generalização fecunda na química e prenun ciou alguma coisa como uma verdadeira “ problem áti c a ” . Já se disse que, a partir de 1750, surgiu um a histó ria da química, ao passo que antes da disseminação da teoria do fiogístico tudo que na realidade havia era uma simples história de químicos — cada qual com suas próprias opiniões e problem as diferentes, sem uma mesma Fra)^cstelhmfi, uma colocação comum das ques tões da disciplina. Segundo, e náo obstante todo esse va lor heurístico, a cren ça no fiogístico era, c laram ente, um velho fantasma aristotélico que assombrava a ciência européia quando a epistem e clássica Já estav a em plena maturidade. É significativo que seu criador. Stahl, fosse também um teórico da biologia vitalista, que pra ticamente fez reviver o conceito aristotélico de psique.*^® Em sum a. o fiogístico m arcou um visível “ re torno do reprimido” em termos da evolução do pensa mento científico. Todavia, tal arcaísmo serviu, dialeticamente, de instrumento para a inauguração da quí mica como ciência (a ponto dc o próprio Lavoisíer ter usado o conceito do fiogístico para descrever suas pri meiras experiências) e, de qualquer forma, é de lodo inexplicável dentro do quadro aiqueuiógico de Fou cault. No máximo, a longevidade da teoria do ílogístico parece mais fácil de explicar com a ^ u d a de uma socio^ 100
da cicncia. A revolução de Lavoisier foÍ bem acoMmia por matemáticos e físicos, mas vista com resseniiiiiento pela maioria dc seus colegas químicos, que se «ipcgavam a seus preconceitos stahlianos, mesmo i|UH»do críim descobridores de real valor, como Priesilcy, I*! a profissão, e não a epistem e. que lança luz so hre um debate científico que o próprio Priestiey — t(k'm do mais, hábil teólogo — considerou uma das iiiiiiH acesas controvérsias da história inielectual, Ainda (i«tsim, ninguém que acredite em monólitos epistêmicos jiiutcría sequer com eçar a entender a ascensão e queda (Io ílogístico. A física, a matemática e a química realmente parei«-ni iiesmentir o exagerado cesuralismo de Foucault. Siio inodos dc pensamento que passam poi tiês cpis> tiMues (a matemática) ou que reali;cam seu próprio »»'iinçD mediante um retorno dialético de formas passaiUs dc pensamento (a química). As problemáticas tranMpislêmicas, os hialos epistêmicos e os retornos dialéIKON — ludo isso são fenômenos estranhos (com efeito, u haiários) lanto ao cesuralismo estrito co m o ã concrpçào de que as epistemes sejam infra*estruturas conifiiuais homogêneas e compactas. De modo geral, conhulo. são questões mícrepistcmivas. Três outros prohloinas. por outro lado, desafiam ainca mais abertalíiriitc o segundo dogma — as epistemes como monólilos l>ançam dúvida sob re a ju ste za da descrição que iMuicaull faz das realidades intracpistêmicas. <) primeiro desses problemas refere-se ao fato de MIM*. íonuiílas sincronicaniente, as epistemes de Foui.'iiuh - contra riando sua alegada unidade com pacta — 101
parecem englobar muita fwterogeneiüode. Vimos isso no caso da magia e da ciência, muitas vezes magia-cciéncia, durante a Renascença, tanto na astronomia (Kepler) como na história natural (Belon). Poderíamos acrescentar, pedindo emprestada uma arguta sugestão de Pierre Burgelin,*" o caso do nominalismo na alvo rada da era renascentista — uma tendência filosótlca claramente voltada para a lógica c a abstração e. por tanto, difícil de harmonizar com a pensée sauvage da epistem e dc “ sem elha nça " de Foucault. Os leitores familiarizados com as modernas descrições do plura lismo do pensamento renascenti.sta, como as de Paul Oskar KristcUer, não ficarão de modo algum descon certados com a ideia dessa coexistência (pacífica ou não) de racionalismos pré modernos, como a niosoHa nominalista, com o pensamento do movimento humanivSta, mais retórico que lógico.'*' Mais uma vez, o pro blema é em grande parte inexistente — ou m elhor, só existe com o problem a para a rigidez da “ história verti cal" de Foucaull. Um terceiro exemplo de dificuldade intraepistèmica, ã qual Burgelin também foi o pri meiro a aludir.**' trata de um fato importante nas ciên cias biológicas durante a episteme clássica: até onde. na verdade, pode a episteme da ordem tabular, descrita por Foucault, acom odar as teorias enunciadas pelos cham ados “ m icroscopistas clássicos" em Bolonha, Londres e nos Países Baixos na segunda metade do sé culo X V ll? Com o foi que conceitos como os da “ gera ção espontânea" c do homúnculo entraram nas mentes (poderosas em relação a ou tros aspectos) da geração de Malpighi e Hooke — um grupo de observadores dc 102
primciru ptanu» que nabccidtii quuiido Galileu e Dcscuiles já publicavam suas obras principais?"^ Se as epistemes são mais diferenciadas, interna^ mente, do que o olhar arqueológico admite, nào será surpresa sabermos que, em nome de sua obsessão uni< tária. A s palavras c as coisas muitas vezes sobrestima a posição e o prestígio de certas tendências intelec tuais. Assim, enquanto Foucault alça, como vimos, a gramática de Port-Royal à posição de jma teoria da re presenta ção válida para toda a idade clássica, Gcorges Gusdorf, no volume VI de sua monumental obra Lcs Sciences humaines ei Ia c<>nscience occiüeníale — tra balho cuja bagagem dc erudição apequena a dc Fou caull —, demonstra que o forte impuso normativo da "gram maire iíênêrale et raisonnce"»co m sua intenção de dar forma tlxa e acabada ao uso lingüístico, sofreu obs tinada resistência por parte dc uma instituição estraté gica como a Academia Francesa. Não é estnmhíssimo vermos a Académie colocar-se contra uma das áreas mais prezadas pela episteme da ordcni? No entanto foi exatamente isso que aconteceu; de 1647 a 1704, ela re sistiu a todas as tentativas de fazer com que sua autori dade fosse utilizada para converter o uso da língua francesa num jardim francês v e rb a l.A s si m , repousa nos ombros de Foucaull todo o ônus de provar a idéia de que o espírito clássico se havia entregue inteira mente ao logicismo da “ gramática geral” . Se suas epis temes sc assemelham a monólitos. é claro que o mesmo não acontecia com a cultura clássica. Por fim, hã problemas intra-epistêmicos que sur gem de uma perspectiva diacrônica. Duas espécies 103
ocorrem à mente quase de imediato. Em primeiro lu gar. pode haver vokipsos dentro de uma mesma epis teme. Assim, como demonstrou Jean-Claude Cheva lier, historiador da gramática, a gramática dc PortRoyal, ióia inigualável na coroa da episteme clássica de Foucaull. foi muitíssimo mal compreendida ao tempo da EnvychpéiUc'^*' — muito antes que sobreviesse, se gundo Foucault, a mutação epistêmica seguinte. Em segundo lugar, podem ocorrer vortes intra-epistcmiios. Jan Miei'” apontou um sxcmplo notável: as importantes mudanças na perspectiva filosófica e no pensam ento científico por volta do fim do Grand Siè cle. como parte integrante daquilo que há muito tempo Paul Hazard, de modo um tanto bombástico, chamou * KK “ a crise do espírito euro peu ” . Isso. naturalmente, suscita a vasta e espinhosa questão da atitude geral dos philosophes, como herdeiros de Bayle e de Locke e como admiradores de Newton, em relação à filosofia do século XVII — uma questão cujo estudo, na opinião de especialistas, ainda está por ser feito de forma ade quada."’ Conhecemos a aversão dos philosophes pelo esprit de système. Desde a obra clássica de Ernest Cassirer (1932), entendemos que o lluminismo modifi cou significativamente o conceito de razão. Enquanto que para D escartes, Spinoza ou Leibniz, a razão era “ o território das verdade s e tern as ” , o século seguinte Já não via a razão como um tesouro de princípios e ver dades fixas, mas simplesmente como uma faculdade, o poder original do espírito, apreendido tão-som ente no exercício de suas funções analíticas. 104
No em am o. como o próprio Cassirer se deu ao trabalho de ressaltar, ludo representou anies uma mu dança de ênfase do quc uma diferente concepção do saber. A rigor, o saber dos particulares veio a ser mais prezado do que o saber dos universais: a ênfase do co nhecimento passou de "principios” para " f e u ô m v ’ n o s ' \ Mas a autoconfiança da razão c a disposição de análise nunca foram ameaçadas. Ainda que fosse muito inclinado para o pirronismo dc Bayie c lenha alcançado ioda sua perspectiva dc “ moderno paganismo” no novo ceticismo dc Hume,” o lluminismo. de modo ge ral. não renegou a iradição do racioniilismo moderno, iniciada no “ século do génio” — a era de G alileu. Des cartes e Newton. Os phUosophcs colocavam a ciência de Newton muito acima da física cartesiana: mas não tinham nenhum escrúpulo em defender o Discurso s
derar a dcscartcsianização da física» da metatîsica c da psicologia, vendo-a com o uma questão periférica, sob a alegação de que a idade clássica foi uma única episte me que abrangeu tanto Descartes como Condillac, Leibniz e os ideólogos? Foucault descreveu suas paisa gens epistêmicas com contrastes exagerados: coloque mos alguns declives onde ele vê somente precipícios, o tudo-ou-nada de montanhas escarpadas e vales planos. Miei está certo em reexaminar o que Hazard intuiu sem explicar: a metamorfose do racianaiismo ocidental desde aproximadamente 1690. E a transformação do pensam ento ocidental no limiar do século XVIIl é um poderoso argum ento contra uma concepção monolítica das epistemes. Na verdade» a niptura rela tiva de 1690 constituiu uma descontinuidade limitada na estrutura do saber no começo da era moderna. Obviamente» de nada adianta repudiar essa descontinuidade — ou, na opinião de Foucaull, tantas coniinuidades — como simples “ efeito superficial". Melhor faríamos em meditar sobre Bache lard — o M estre da Teoria do C orte — e recon hec er de uma vez por todas a ocorrência de rupturas também dentro de uma dada episteme. Com efeito, Bachelard chegou a aceitá-las até mesmo dentro da obra de um mesmo pensador — possiblidade que Althusser tornou famosa com sua lese a respeito do corte epistemológico entre o jovem Marx e o Marx de O vapUíd. Evidentemente, há muitas coisas que a arqueologia foucaldiana não consegue explicar na crônica histórica, da ciência e do pensamento. Alguns fenômenos pertur106
Uidoics, luiilu cnlic aa cpi^lumci» üe HuucauU como dentro delas, simplesmente não sc encaixam na detlnição que ele próprio deu para os paradigmas históricos do saber. Rematemos agora nossa apreciação com um exame do delineamento filosófico de A,v palavras c as voísas. Vimos que FoucauU se m ostra continuam ente desinteressado pelo crescimento cognitivo. Não se im porta nem um pouco com a verdade do saber. N a ar queologia das epistemes, o saber é "consuivrado à p a n e de todos tts critérios relacionados a seu valor racionar’.^' O que faz o arqueólogo, em contraposição ao cpistcmólogo, é simplesmente verificar algumas con dições históricas da possibilidade de determinado nú< mero de formas do saber, com tota. descaso pela "crescente perfeição" destas últimas — em outras pa lavras, por seu incremento em termos de verdade» ra cionalmente avaliado. Podemos, por conseguinte» dizer que a análise de FoucauU não se preocupa com a "es tória” da ciência — a narrativa de seu progresso no caminho do saber verificável, objetivo. Ora. na história das idéias, geralmente se consi dera que quem mostra pouco ou nenhum interesse pela “estória” do saber concentra-se em sua história — o que é normalmente feito por meio dc uma abordagem hist(frista, ou seja, voltada para descrever e acentuar a singularidade de uma certa época ou momento cultu ra!. Na história do saber, em contraposição ã sua "es tória” , as estrutura s conceituais sáo fixadas firme mente em scu contexto de significação original, não importando seu valor para as idades subseqüentes. No entanto, também com relação a isso /U palavras e as 107
c buscadas pela histo riografia ordinária. E Foucault está também próximo ao objetivo de Spengler: revelar diferenças fundamen tais entre culturas históricas, cm vez de ressaltar seus traços comuns. Como Burckhardi, padroeiro da histó* ria da Renascença, ou seu pretenso discípulo, Huizinga, o grande intérprete do crepúsculo da Idade Média, a arqueologia de Foucault gera um “ efeito alién ante” ; oferece um passado intrinsecamente estnmho e bizar ro .” Com relação a esse pon to, alguns espirituoso s se sentirão tentados a acrescentar que. a julgar por sua prática com o historiador, Foucault realmente torna o passado pouco familiar — principalm ente para os histo riadores profissionais, que com freqüência não conse* 108
gviem reconhecer sua disciplina nas suas versões dclur piidas por FoucauU. No enlanto, não sejamos m esqui nhos. Ao desfamiliarizar o passado, FoucauU não esiá iiitindo graluiiamenie. Seu objetivo, ao moslrar a estranhc/a dos mundos que perdemos, é compelir a nós. modernos, a fazer um levantamento de nossa ídentid;tde cultural mediante a percepção da distância que nos separa de formas mais antigas de vida e dc pensa mento. A alienação da história, portanto, funciona como U11 dos susteniãculos do propósito Je FoucauU: a apreensão crítica da modernidade como um modo de existência. White coloca FoucauU numa ala estrutura lista que ele cham a de “ dispersiva*’ porqu e ela se compraz no “ m istério“ d a “ incdulívcl variedade da naiureza hum ana” . Em vez de integrar as diferenças tiuma hunianitas com um , os estruturalistas “ dispersi vos“ exultam com a heterogeneidade juliural, com a dispersão e a diferenciação social do homem. Fazer história como desfamiliariza,'ão, a partir de uma persp ectiva “ disp ers iva ", tem uma séria implica ção: a historU ização rmlu al dos objetos sob exame historiográfico. Se uma pessoa está Investigando a lou cura de um ponto de visia dispersivo, a loucura como liil simplesmente desaparece: ludo o que resta é um de terminado jogo social datado, um conjunto de signifi cados rotulados como tais. Ê por isso que FoucauU, o qual certa vez escrev eu que em H isíórh da hmcnra ele lutviii piocurado captar a loucura em si mesma, mais tarde veio a afirmar que tudo que havia feito fora ape nas um inventário de diferentes conceitos históricos da 109
insanidade. Em 1961» ele uínda falava de pcrcepções mutáveis da loucura. Em 1970, argumentava que tais percepções náo passavam dc invenções da loucura: a percepetiva dispersiva, culturalis:a. achava-se agora plenam ente explicitada; as realidades estavam in teira mente dissolvidas em conceitos sociais e cm práticas sociais, historicamente dados. Pela mesma razão, Paul Veyne, seu colega no Col lège de France (e único historiador de renome a derra mar louvores irresiritos sobre sua obra)» saudou Fou cault com o um “ historiador em sua forma mais pu ra” . Foucault, afirma Veyne» e o primeiro positivista verda deiro, uma vez que a idéia de objetos históricos inde pendentes de seus significados sociais (m utantes) é per feitamente metafísica — e foi Foucault quem nos ensi nou a nos livrarmos dela. E isso» por sua vez. elc fez por le var N ietzsche ao pé da letra: as coisas nào lém significado por si mesmas, mas apenas na medida em que a criatura histórica» o homem» lhes atribui signifi cado. Com perspicácia, Veyne considera a arqueologia foucaldiana como um reben to da Genealogia vas". Em “ N ietzsche, genealogia, história” — seu prin cipal escrito sobre N ietzsche — o próprio Foucault de clara que o que distingue o "genealogista“ do historia dor crítico c a consciência de que o verdadeiro segredo das coisas é o fato de não possuírem qualquer essência 110
sccreia, nenhuma origem oculla, nenhum fundamento num énico.’* A história goza de ete rn a juven tude (com o giwiava dc dizer Webcr em seus momentos nieizschiunos); equivale a uma perpétua criação, não conhe cendo nem leis causais nem metas fínais. O nietzschíanismo dc Foucauit, embora tardiamente confessado« ujLda a explicar sua persp ectiva “ dispersiva*’ — seu menosprezo por qualquer pesquisa estruturalista de un versais invariantes. Com efeito, já em 1967, ele dife renciava sua investigação do paradigma estruturalista: "Difíro da queles qu e são cham ado s estruturalistas por niuf estar grandemente interessado pelas possibilida des formais apresentadas por um sistema como a linH U d iie m ."'* '’
Nao obstante, nunca haverá cautela excessiva quíindo se trata de usar Nietzsche como esteio de uma teoria da história como saber. Isso porque Nietzsche nãü se satisfaz em criticar, em nome dos interesses vi tais do presen te, a historiografia “ filológica” , “ museológica” , a história feita com ânim o dissecador. im pes soal. com espírito de antiquário. Foi bem mais adiante, vergastando toda a concepção da própria objetividade histórica, a idéia — como ele formulou — da história como um “espelho” dos acontecimentos (Genealogia, 111, 26). Nietzsche atacava duas espécie» de historio grafia “ esp ecu lar” : as narrativas académ icas “ ascéti cas” e as evocações “estéticas” do passado; o método de Ranke e a arte de Renan. Em ambos os casos, po rem, depreciava a objetividade especular, vendo-a como niilismo — o pior dos pecados no código de vida nietzschiano. Por conseguinte, o resultado de seu ataIII
qu e con ira o “ peso Ua lilsióiía'* tbi um dcsdém voluntá rio por toda preocupação historiográfica com a verdade do passado — uma preocupação que, compreensivelmentc, Veyne nào está disposto a jogar fora. Nietzsche pode libertar a história da metafísica determ inista, mas ele também mala a busca de objetividade em nome dos direitos superiores da “ vida ” . Não ensinou que a ver dade nào é objetividade, e sim uma vontade de “justi ç a ” {Cífnsiclerações inaiurais. 11, 6)? Justiça, decerto, nas m ãos de juizes sem perdão, personalidades fortes cuja própria vitalidade os coloca acima da massa da humanidade. Em tal clima dc pensamento, a verdade é suplantada pela vontade arbitrária — e a história como saber vira tão-somente um ''free for ali" para perspec tivas antagônicas. Para resumir, Nietzsche, o antideterminista, pode servir ao historiador; mas Nietzsche, o pcrspectivi.sta, tira o tapete de sob os pés do historia d or ao destruir a justificativa de seu ofício: a apreen são fidedigna do passado. N esse sentido, não é de surpreender que Foucault pareça mais nietzschiano que Veyne. Analisem os sua prim eira discussão sobre o m estre, “ N ietzsche, Freud, Marx” (1964), escrita como uma comunicação para um simpósio em Royaumonl. Já se disse com acerto que, nesse ensaio, Foucault atribui ao trio uma posição que pertence em in ente m ente a N ielzsche. A posição con siste cm considerar que todo iníerpre/anihini já c uma interpretação. A morte da interpretação, diz Foucaull, é a crença dc que e.xistem sinais de alguma coisa, vale dizer, alguma essência oculta, ã nossa espera no fim de nossas jorn ad as interpreiativas; ‘ a vida da interpreta112
Oio. ffi'Uf i fKitrário, co/isistc cm acrcdifur quv sò vxisí c m i m c r p n u i ç ô v s " . O saber moderno, crítico, é deccrlo uma hcrmencutica da profundidade; mas isso não deve ser visto como uma procura de estruturas profun das; em lugar disso, devemos compreender o pleno im pacto analítico do que viu N ietzsche: que a interpretaVào “ tornou-se (...) uma tarefa infinita*'.^* Isso foi lido na atmosfera prestigiosa e elegante dos simpósios de Koyaumont — na cara da estrela ascendente do estruluralismo: e o lexto e quase contemporâneo da elabo ração de A s paltívrüs e as coisas.
O tema nietzschiano também nos ajuda a compre ender melhor como Foucault pode prezar as ciências humanas ao mesmo tempo cm quc lhes nega cícnlifícidaile. Ele não está dizendo apenas, é claro, que as ciências humanas não conseguem produzir ciência da maneira como sào em geral praticadas, isto é, com con ceitos nebulosos e métodos frouxos; o que ele nega é que possam dia ser científicas. Ao mesmo tem po, entretanto, não considera isso uma deficiência. As ciências humanas nâo são absolutamente científicas e o homem, de qualquer forma, é uma base epistêmica em cxiinção. N o m áximo, algumas delas — as hipercríticas “ contraciências” , que se dedicam a observar o incons ciente — se justificam, nào pelo que afirmam, mas pre cisamente por desfazerem as interpretações parciais da ciência social “ no rm al” . No entanto , longe de se de^c^pelar face a esse apeno cognitivo, Foucault reju bilu-se. Para ele. o conhecim ento não está voltado para a verdade, mas sim para a perpétua skepsis de íntermi113
náveis inierpretaçòes fortuitas — e sua alma nietzs chiana recusa>se a sentir-se deprimida por isso. N ão obstante, em últim a análise o efeito ideológico causado por A s pala vras e as coisas, conquanto não tão desalenlador como o supuseram vários humanistas irritados com a idéia do aviltamento do homem, não foi, por outro lado, exatamente estimulante. Consti tuindo uma moderna Fcn<»mcnolo^ia do espírito^ mais uma odisséia do pensamento pela história ocidental, o livro de Foucault positivamente não deixa o leitor numa exaltação do presente,^ nem, com efeito — como na errata de Hegel devida a Marx —. do futuro. A meio caminho entre um sombrio apocalipse e o júbilo dioni síaco, as conclusões dc Foucault pareciam apontar ati tudes filosóficas ainda não plenamente assumidas por ele nos meados da década de 1960.
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VI.
o A R Q U I V O I R Ó N/ CO
Três anos depois de A s pala vras c cs coisas^ Fou cault publicou seu próprio discurso sobre o método: A aroucoloaia
sas, discurso significava linguagem clássica, linguagem reduzida à transparência da represenlação. Agora, po rém, Foucault adverte quc os discursos não devem ser tomados como conjuntos de signos referentes a repre sentações; em vez disso, devem scr compreendidos como práticas. Naturalmente, os discursos empregam signos, mas lazem mais do que jsá-los para denotar coisas.9» O objetivo de Foucaull é precisamente des crever essa função adicional dos ciscursos. Ao mesmo tempo, porém, ele afirma quc essa nova perspectiva foi “ o que possibilitou” d izer o que ele disse em sua obra anterior.iai Muitos leitores encontrarão dificuldade para reconhecer os discursos como práticas entre as epistemes de A s palavras e as cífisas^ embora náo seja tão difícil encontrar alguma coisa nessa linha nos con ceitos sociais sobre insanidade subjacentes aos ritos de exclusão em História da loucura. De qualquer forma, o projeto de Foucault em A arqucoloíiia do saher é definido como “uma pura des* erição de cventtfs d i s c u r s i v o s " O eco do jargão fenomenológico (a “ descrição pura” ...) não nos deve iludir: o arqueólogo está sendo incumbido de um traba lho muito diferente da contemplação de coisas permananies. Os discursos são conjuntos altamente precá rios: com pócm -se de declarações quc vivem “ num grupamento provisório” como "uma população de eve ntos no espaço do disc urs o” . Em todo o livro, a palavra evento goza de proeminência. Foucault man tém sua velha ojeriza contra qualquer lipo de íempo contínuo, mas parece também empenhado em ressaltíu* a noção dc eventos invasores, entrccruzantes. a des116
ptíilo dc ioda lentüção de identificar estruturas estáveis sob uma superfície discursiva. Embora nos discursos abundem eventos, o arque ólogo pode extrair deles “ regularidades” d iscursivas e ' condições de ex istên cia” . H á longas e meticulosas elocubrações sobre essas quase-estruturas no capítulo II de arqtteohüUi ito sabe r (“ as regularidades discur sivas” ). Mas Foucaull esforça-se para ac en tua r que a análise que prescreve nada tem em comum com as buscas, inspiradas por lingüistas estruturais, dc uma Grande Vrstruktur. Há várias setas disparadas contra a Iribo saussurean a, com o. p or exemplo, “ deve-se sus pender, náo só o ponto de vista do signifícado (...) como também o do signifícante” . Os estruturalistas búo tratados apenas com o idealistas cie últim a hora. Nietzsche, em contraste, ganha uma aceiiaçáo genera lizada. ainda que em grande parte tácita. Em 1967, enire a publicação de A s pala vras e as coisas e a conclu são de sua seqüência metodológica, Foucault declarou que a arqueologia devia mais à genealogia nietzscheana que ao estruiuralismo. A queda por Nietzsche explica, creio eu. a nova posição antio bjetiv ista de FoucauU. ^ \ í Ar(/ue
cular. qiif*. co nduz a um« “ psicanálise do .saber ob jeti vo**, parece atestar o dcslocamenlo para o sujeito, que reaparece pela poria dos fundos: Bachelard recorre à libido do c ientista a fim de exp licar os problem as com o objeto do conhecimento. E o distanciamento em rela ção a Bachelard não pára por aí. Como observou Do minique Lecourt, Foucault também tende, na Arqueologia, a substituir o conceito bachciardiano de ’‘cor te", demasiado estático para enfrentar o enxame dc even tos d iscursivos, pela categoria dc irrupção. No entanto, a verdadeira t>êíe noire da Arqueoloíiia é a história das idéias, que Foucault caricatura amiúde. Explica ele que a arqueologia difere da história das idéias em quatro aspectos: (a) enquanto a segunda purte no encalço de tem as e idéias expressos em docu mentos, o arqueólogo procura examinar a estrutum do discurso documental em si mesmo: (b) o historiador de idéias deseja traçar a origem c o destino das idéias, ao passo que o arqueólogo sc atém a um discurso per se^ não importa o que o tenha precedido ou que dele lenha decorrido: (c) a história das idéias procura — e o ar queólogo não — causas psicológicas e sociológicas de eventos intelectuais; (d) por fim, o arqueólogo do saber se concentra no discurso tal como eJe é. sem procurar, como o historiador dc idéias, apreender o momento inefável dc origem, a intenção primitiva dos autores. Na prim eira dessas antíteses, Foucault opõe sucin tamente o tratamento do discurso como doeumenío (história das idcias) à análise do discurso como monu mento (arqueologia do saber). Os documentos são por tadores de referência externa: os monumentos são con118
tcmplados por si mesmos. É a famosa distinção feita, cm seu livro Sifinificcido das artes vhuais, pelo pai da iconologia, o historiador de arte Erwin Panofsky (18921968).'®’ Foucaull não lhe faz referência, e talvez le nha chegado à mesma distinção independentemente. Contudo. Panofsky estava bem vivo na Paris de Hns da dccada de 1960: uma tradução francesa de seus LsfU’ dos de icotud o^ia (1939) tinha acabado de ser publicada pela Gailim ard (1967). recebendo aclamação geral. Mas talvez seja melhor que Foucaull não o mencione, pois en Panofsky a diferença documento/monumento tem um significado bastante diverso. Panofsky cila o exem plo de um tríptico da Renânia, de 1471, e do contrato de sua encomenda, com Iodas as especificações iconográficas habituais ( 'no painel ceniral. a Natividade; nas meias-portas laterais, São Pedro c São Paulo"). Diz que o tríptico, como objeto de pesquisa para o his toriador de arte , é um m onum ento, ao passo que o con traio, por ser apenas um instrumento de pesquisa (uma ajuda para a interpretação da intenção artística e para o conhecimento dos costumes estéticos do tempo e do lugar), funciona como um documenlo. Entretanto, acrescenta Panofsky, para um paleógrafo ou para um historiador do direilo, o tríptico bem poderia lomar-se o documento, c o contrato, o monumento. Ademais, ele não estabelece sua distinção num a base ou/ou. de modo que ou uma pessoa só lida com monu mentos e esquece os documentos, ou somente se ocupa com estes, caso em que nao alenta àqueles. Pelo con trário, a iconologia, um método de história da arte oposto à Formgesehiehte de W õlfflin,'“*' procura 119
conccnlrar-sc no amtvtulo histórico dc uma obra dc ar te. Seguindo Charles Sanders Peirce, o filósofo ameri cano do século XIX que é considerado o fundador da semiótica não-saussuriana, Panofsky define o conteú do, em contraposição ao tema de uma obra. como sendo aquele tipo de significado quc a obra trai sem exibir. O conteúd o é aquele significado que “ tran spa rece“ numa obra de arte, sem ser mostrado de qual quer modo ostensivo. Os clcmcnlos do conteúdo, nesse sentido, são as atitudes nacionais, a mentalidade de classe, os antecedentes ideológicos, elc. — em suma, tudo quc seja capaz de condicionar, de modo mais que superficial, a personalidade do artista e, atríivés dela, passar para as várias cam adas dc significado dc sua o b ra .“*^ A mela da iconologia é, po ilanlo, cníalicamente histórica e t ontexímüisia.^^^ Como tal. a icono logia é uma disciplina que segue um caminho oposto à posição anticontextualista defendica por Foucault, em contraposição aos procedimentos normais da história das idéias. Não foi por acaso que um Lévi-Strauss ci tou a iconologia panofskyana como o oposto da crítica estruturalista de orientação formalista. E contudo, querendo ou não, ao rejeitar a postura contextuai. Foucaull coincidia com a corrente principal do estruturalism o. Tam bém ele estava opondo a “ aná lise imanente” a um quadro mais amplo de interpreta ção, capaz dc integrar a atenção sobre o monumento com a consciência de seu ambiente social e cultural. O que disfarça esse parentesco com o formalismo, na te oria do discurso de Foucault. é, naturalmente, sua ên fase no discurso vonu) prática — uma sugestão concei120
tcal acenando claramcntc para uma tradição nãoIbrmalista (marxista). Aiém do m ais. ao utilizar o estriiluralismo e o modelo lingüístico como antônimos dc scu próprio programa metodológico. Foucault deixa a impressão dc que sua arqueologia e o estruiuralismo. digamos, da critica literária pouco têm em comum. Na verdade, contudo, partilham uma importante perspec tiva: a separaçã o da “ análise iman ente“ de uma ab or dagem sintética, repousando num sábio equilíbrio entre o texto e o contexto como fontes de significação. E curioso que, precisamente ã época em que Fou cault compôs seu livro, tal equilíbrio estivesse sendo preconizado pela revisão, feiia em Cambridge, da me todologia da história das idéias — uma larefa crítica re alizada dc forma brilhante, em fins dos anos 60, por eruditos como John Dunn c. principalmente, Qucniin Siíinner."* Skinner subm eteu as “ mitologias anacronísticas“ que infestam a prática da historiografia do pen samento a um exame rigoroso e irrefutável. Até certo ponto, algumas das críticas mais empíricas de Foucault tendem a convergir com as de Skinner (por exemplo, suas objeções ao u so indiscriminado da noçã o de “ infljéncia"). De modo geral, porém, a crítica de Skinner é conduzida em termos que a colocam a milhas de dis tância da histeria estruturalista anti-sujeito e da rejei ção apriorística das intenções autorais. Ela aponta as debilidades da história convencional das idéias sem ab solutamente jogar fora a legitimidade de seu princípio. A arbitrariedade da investida indiscriminada de Fou cault contrasta nitidamente com a cautelosa postura analítica de Skinner. adotada com vistas a evitar tanlo 121
Uh üeficiêiicicts» do tcxtuulísuio míope como as falácias do coniextualismo reducionisla. Sjrpreendentemente, os ensaios de Cambridge a respeito dessa importante problem ática não são mencionados nem por Foucault nem pelos foucaldianos. Alega Foucault que as histórias das idéias ceniram-se na autoria e na inovação, mas que termi nam em contradição, pois, ao buscarem as raízes das idéias (uma das con seqü ênc ias de seu fascínio pela co n tinuidade histórica), paradoxalmente agarram-se àquilo quc impede as idéias dc serem verdadeiramente novas. Contra essa ênfase em autores, inovação e continuida de, a arqueologia acentua a impessoalidade, as regularidades e as dcscontinuidades do discurso. Sua princi pal arma é o conceito de enunciado {cnoncé). As for mações discursivas compõem-se dc enunciados. Fou caull define o enunciado principalmente de forma nega tiva, dizendo o que ele não c. Como núcleos do discur so, os enunciados não são nem proposições lógicas, nem orações gramaticais ou atos de fala. Foucault exemplifica dizendo que um quadro taxinômico num compêndio de botânica, ou uma árvore genealógica, ou ainda uma equação, consiste em enunciados, mas ob viamente não em orações.**’ E muito menos preciso quanto ao que os enunciados são. Parece pensar neles como “ funções” e não como “ coisas” ; e são também com o os “ ev en to s” : m ateriais, porém incorpóreos. Uma razão misteriosa para serem diferentes de propo sições é o fato de estarem — ao con trário destas — sob o domínio da “ esc ass ez” . Seria isso um aceno em di reção à Crí/ictí da razão dialética de Sarlre, em que a 122
categoria escassez desempenha papel essencial? Pro vavelmente, nào. Todavia, uma coisa parece clara: os enunciados manifestam, dc alguma forma, o que está envolvido na produção dc signos. Na medida em que se com põem de enunciado s, as “ práticas discursi vas" sâo conjuntos "de regras anônimas e históricas, sempre espectjicas quanio a tempo e a htgar, e que, para um dado período e dentro de uma zona social, evitnómica, geográfica (?u lingüística, definem o qua dro dentro do q ua l são exercidas as fun çõ es enun ciati vas",^'^ Isso mais parece uma tautologia que uma defi nição, mas percebe-se a idéia geral: "regras históricas" a governarem o discurso. A mesma noção reaparece quando Foucault ulUiza aquela que é — juntamente cam discurso, “ enunciado" e “ evento” — a quarta pa lavra importante de sua Arqueologia do saher: arquivo. Isso porque o "arquivo" é " a primeira lei do q ue pode ser dito, o sistema que governa o aparecimento de enunciados conuf eventos singulares’*.'** O iu*quivo não é nem o sistema lingüístico nem,a tradição, o pe sado corpus dos discursos numa dada civilização.'** Corresponde, antes, ao "jogo de regrai que determina dentro de twia cultura o aparecimento e o desapareci mento dos enunciados". 0 "arquivo", portanto (se conseguirmos, na ver dade, p en eirar a névoa das indefinições de Foucault), é uma máquina geradora de significado social — em opo sição a significado lingüístico. É, de qualquer modo. um priori histórico". O arqueólogo, desnecessário dizer, é um arquivista. Está também implícito que em scu trabalho — a análise de discursos constituídos de 123
eventos-enuncíadus — cie se rende prazerosamenie àquela alergia ao sujeito que é a marca registrada dos estruturalismos. Um arquivista, afinal de contas, nào se ocupa de personalidades, apenas dc documentos e suas classificações. Assim, a arqueologia, como arqui vista, não perde tempo em determinar quem disse ou escreveu o que a quem: isso implicaria sujeitos e, por tanto, antropologismo, uma ilusão humanista e um ví cio idealista. Um lexto dc 1969, "Q ue é um au to r? ” , deixa claro quc devemos livrar-nos de nosso hábito dc procurar a autorid ade de um aulo r. mostrando, em vez disso, como o poder do discurso coage tanto os au tores como seus pronunciamentos.“’ Por uma ou duas vezes, a rejeição do sujeito parece uma lógica de senso comum mas banal, como no caso em que Foucault aíírm aq ue , enqu anto o prefácio de um livro de m atemá tica explicando claramente as intenções do autor lem um sujeito em seu aulor, os teoremas na obra não o têm, na medida em que se referem á sua própria lógica i n t e r n a . N o mais das vezes, porem» a caça ao sujeito é decretada por cHhais especulativos como sujeito é necessaria men te situa do e d e p e n d e n t e " . Por que ■'necessariamente*’ dependente? Foucaull nào nos es clarece. Quanio aos estruluralistas. lão necessitam ne nhum esclarecimen to com relação a isso: eles “ sabe m ” que é assim. D eiendum suhjectum ! Finalmente, a teoria do discurso-arquivo recusa-se a esco lher enlre ciência e ideologia. A seção “ Ciência e saber“ (IV, 6) adverlc que o papel da ideologia na ciência (um papel de peso, afirma Foucaull, quer na medicina, quer na economia política) não precisa de 124
modo ulgum reduzir-se à medida que crescem o rigor científico e a falsificabilidude. Todo o scntido dessas paginas sugere que a única maneira de lular contra a açâo ideológica numa dada ciência consiste não em desmascarar seus pressupostos filosóficos ou seus pre conceitos culturais, menos ainda em ap ontar seus erros e contrad ições, mas antes em qu estionar scu sistem a de constituição do objeto e suas “ opções teó ricas” , vale dizer, questionar a ciência conu) umei prática entre ou tras práticas. Mais uma vez. tal como em As pala vras e as coisas, Foucault náo demonstra nenhum interesse pelo “ valor racional” da ciência , mas adm ite franca mente — na verdade, parece estimular — um questio namento a priori das concepções científicas. Uma arqueologia do saber poderia fazer algo me lhor que suspeitar do saber tão aprioristicamente. Não admira que a arqueologia de Foucault. como "um dis curso si)hrt‘ d isc u rs o s'\* ^ termine por confessar que "p or hora (...) longe de cspec iju ar kn us do qu al se fala, evita o solo ent que pitderia aptdar-.se". São essas as palavras centrais da conclusão do livro, que toma a forma de diálogo. A arqueologia não pode exibir seu próprio título dc legitim idade com o uma teoria crítica. Deveremos louvar sua modéstia ou lamentar que, em nome de uma posição infundada, tantos caminhos esta belecidos para o saber (como a pobre história das idéias) fossem inteiramente rejeitados, sem que muita coisa fundamentada ou sólida fosse oferecida para .substituí-los? Grande parte da Arqueologia (a despeito de sua prosa laboriosa e árdua) foi escrita com a tinta da iro125
nia. Vez por outra, fiiignn) hîc mesmo uma rara faísca de espiriiuosa petulância. Exemplo disso ocorre pró ximo ao fim da Introdução, quando Foucault responde a um crílico imaginário que o apoquenta por causa de suas mudanças de perspectiva: "Não me perffunte quem sou ou (...) peço que permaneça o mesm o: deixe o nítssos buroeroías e à nossa polícia cuidar que nos sos papéis estejam em o rd em ." Professores do Collège de France ou de outros olimpos acadêmicos que se consideram boêmios dissidentes, em guerra com a bu rocracia ou les Jlics, constituem uma possibilidade perm anente na intelectu alid ade francesa, essa cam ada burguesa ansiosa por passar por intelligentsia. Mas, de maneira geral, a ironia do livro é feita de matéria mais grav<». Fia reside, como disse AIlan Megill com muita justeza, “no fato de que, embora pareça ser uma ten^ tativa rigorosamente objetiva de articular uma nova met vo. a máquina do significado discursivo, é no fundo um Weltspiel, um jogo-do-mundo. um cosmo lúdico que engendra perpetuamente novas interpretações ativas 126
(discursos cornu práticas) da vida c du sociedadc. E irata-se, na verdade, de um arquivo al.amente irônico: com ele, nenhum significado parece estável, nenhuma verdade é melhor do que outra. Num abrir e fechar de ulhos. o líder da crescente legião de nconietzschianos, Gilles Deleuze, saudava Foucaull como conquistador "dessa terra incógnita em que uma forma liierãria. uma prop
cara. é claro, de sua vontade de poder. O homem mo derno, aliás, está afrouxando as proibições e as rejei ções, mas se apega com energia à sua vontade de ver dade. As normas internas sào procedimentos de produ ção de discurso que impingem continuidade aos discur sos. Assim, a prática de comentários esforça-se por prender o discurso ao significado origin al, as norm as relativas à autoria impõem o mito da unidade de cons ciência; e as normas classifícatórias de discursos man têm fronteiras entre disciplinas, sufocando, no proces so, questões vitais (por e.xemplo, as descobertas de Mendeí foram viíimas, por muito íempo, de trabaJho biológico com partim entalizado). Por últim o, o acesso ao discurso como saber é também objeto dc controle, o que se faz mais visível na esfera fechada do discurso profissional (por exemplo, médico) e, de modo mais geral, no próprio sistema educacional, "um meú> polí tico (le m unter ou m odifu ar a apr>)príação do discur s o " . Na verdade, nada disso é contradito pelos elásti cos e obscuros conceitos da Arqueologia do saber. Por acaso esse livro não abriga a injunção de "conceber o di.u urso co m o um o violência que praticam os contra as c o i s a s " f '* No entanto, vê-se que essa lista de regras dc exclusão — lembrando um catálogo de queixas es querdistas no espírito de 1968 — está muito distante da inaferrabilidade da vaga noção de “discurso como prá tica” . Agora, o nome do jogo é poder.
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VII. M A P K A N D O a SOClEDADt: CARCERÁRIA
Depois de sua pau sa metodológica — ou a p artir delà — em A urqiu’ologia do subcr e em l.'Ordre du dis cours, Foucault voltou-se resolutamente para uma his tória “ poh'tica" do saber. L'O rdre du discours langou dúvidas sobre o próprio conceito de verdade, uma dú vida que foi tâ 0‘ S0m ente “ s u s p en s a ” na Arqueologia . Daí em diante^ suas categorias epistemológicas tende ram a ser francamente “ politizadas” . Não surpreende que, ao mesmo tempo, Foucault redefinisse o papel dos intelectuais ante a perspectiva de um verdadeiro eclipse da teoria. Debatendo com Deleuze a respeito dos intelectuais e do poder, em 1972, e;e declarou que as massas não precisam de inlelectuais para saberem. Por conseguinte, o papei deles já não consiste em pro porcio nar te oria para o esclarecim ento das m assas; o papel da teoria, a seu turno, se modifica: não se trata mais de um esforço para alcançar consciência, mas apenas de uma iuta "pa ro m inar e capíurar a autorida de". A teoria não é um par de óculos; lembra mais um par dc revólveres. Não capacita uma pessoa a enxergar melhor, e sim a lutar melhor. Os intelectuais deveriam esiar combatendo as formas de poder com as quais es tão envolvidos: saber, verdade, discurso/*^ 129
Note-se que isso está a uma enorm e distâ ncia da fusão, no “ m arxismo de esque rda” , da teoria na práxis, muito bem exemplificada por Gramsci ou peio jo vem Lukàcs: nâo temos aqui nenhuma combinação de teoria e prática, mas antes um colapso da teoria na prá tica. A práxis deixa de ter um lastro teórico: cada prática social dirige scu próprio cspetácuio, e a “ prática teó rica” — a tarefa dos in telectu ais — sería apenas uma deias, não fosse o fato de que, em certo sentido, está fadada a scr uma prática infeliz, condenada à auto-suspeita e a má consciência. Pois o impiedoso desmascaramento da função intelectual por Foucault conclui com mais de uma nota de masoquismo. Por felicidade, já faz muito lempo que o esiahiishmcnt francês descob riu que a m e lhor maneira dc lidar com os impasses (ou acessos autofágicos) de seus intelectuais e comportar-se de ma neira a lembrar a velha piada parisiense: o masoquista pediu ao sádico: “ Bate em mim !” Mas o sádico res pondeu: “ N áo!” A primeira prestação do projeto foucaldiano de uma história política da verdade ou do saber não tentou ser parcimoniosa: sáo trezentas c tantas páginas sobre “ o nascim ento d a prisão” , com o título de Vigiar c pu nir. Certa vez Foucault chamou-lhe "meu primeiro livro", e não sem motivo: trata-se de um sério candi dato ao primeiro lugar, enire seus livros, no que toca a linguagem e estrutura, estilo de exposição e ordena mento de partes. Não é nem um pouco menos absor vente que História Ja loucura, nem menos original que A s palavras v as coisas. Mais uma vez Foucault desencava as mais inesperadas fontes primárias; mais uma 130
vez sua reinterpretação da crônica histórica c tào ou sada quanto aiicianle. Se, no que diz respeito à perio dização. o ensaio sobre o nascimento da prisão lembra 0 nascimento da clinica, cobrindo aproximadamente a mesma épo ca, de m eados do século XVIII a meados do século XIX, em escopo ele é quase igual a A s palavras c as coisas. O saber sobre a vida, o trabalho e a língua proporcionara grande amplitude ao tema do livro ante rior; agora, a idéia de um papel isomórtlco básico de sempenhado pela prisão, pela fábrica, pelo hospital e pela escola em presta a Vigiar e punir uma semelhante universalidade de interesses, ainda que dessa vez o au tor, sem dúvida sensatamente, tenha preferido manter a análise firmemente centrada em apenas uma dessas áreas institucionais: os estabelccimcnlub c os discursos penais. Provavelmente, todo leitor de Foucault se recor da da imagem vivida dos lazaretos transformados em hospícios no começo de História da loucura. Pois Vi giar e punir lem um prelúdio ainda mais sensacional: a execução do pretenso regicida Damiens, que no ano de Nosso Senhor de 1757 malogrou em tirar a vida de l.uís XV, sem chegar sequer a feri-lo. Foucault se de lem nos tétricos pormenores do supíiciamento de Da miens, que teve a carne do peito e dos membros arran cada com tenazes em brasa, a mão com que tentara o crime de lesa-majestade queimada com enxofre, e de pois, o corpo (ou o que sobrara dele) e.squartejado por quatro cavalos e, finalmente, consumido pelo fogo — tudo isso diante da boa gente de Paris, que por nada do mvindo perderia tal espetáculo. 131
Após très reinados, duas revoluções e o Império, nos dias bem burgueses de Luís Filipe. Fieschi, outro pretenso regicida. foi executado sem nada daquela pa vorosa pompa e circunstância. Na mesma época — como demonstra uma meticulosa lista dc regras redigi das para uma Casa de Jovens Detentos em Paris — uma dose de inventividade em nada inferior à pletora de crueldade ritual exibida na mutilação de Damiens era empregada no minucioso quadro dc horários dos prisio neiros. A tortura pródiga do passado dera lu gar à mais meticulosa regulamentação na década de 1830. O objetivo de Foucaull é descrever esses diferentes “esti los pe na is” , esse s con trasta nte s regimes punitivos. A mudança-chave foi assinalada pelo desaparecimento da tortura física. A França pós-napolcônica nào conhcccu nada que fosse, mesmo remotamente, semelhante ao suplício público de Damiens: no entanto mantinha mais dc quarenta mil homens e mulheres na cadeia {aproximadamente um detento por 600 habitantes). Re cuou a punição como espetáculo horripilante; grandes prisões, transform adas em elem entos conspícuos na paisagem urbana, espalh aram suas lorres por lo do o Ocidente burguês. Nascia a “ sociedadc carce rária” . A primeira época penal descrita por Foucault é a idade da tortura pública. Seu cenário é o cadafalso; o soberano, sua ílgura central de puder. Sendo a lei a vontade do rei. violá-la era atacar o monarca pessoal mente. Daí o direito do soberano de revidar em espé cie. numa represália selvagem. A rigor, na prálica pe nal cotidiana, a tortura dantesca c a execução pública estavam longe de serem freqüentes. Na corte do Chãte132
Ici. sede dos prebostes dc Paris, mcnos de dcz por cenlo das sentenças passadas enlre 1755 c 1785 foram penas capilais. Na vcrdade, a maioria das senienças impunha banimento ou mullas. Conludo, miiiias das senienças nào-corporais, ou scja, todas as sentenças para as gaiés. eram acom panhadas de penas menores com ceno grau de tortura, como o pelourinho, a goli lha. os açoites ou a marcação a ferro; assim, lodo cas* ligo sério acabava envolvendo um elenenlo dc "suplí cio” , isto é, de tortura. A tortura era também empregada, naturalmente, como meio de extrair confissões, de modo que a ver dade ritual — uma admissão de culpa literalmente ar rancada ao acusado — podia coroar e justificar uma demonstração dc força multas vezes dc ludo despro porcional ao crim e com etido. N o entanto essa violência aterradora, esse épico lugubre de lélrica punição, lam bém era, na verdade, um tanto limitado. Como regime punitivo, era tào interm itente quanio espetacular. Seu próprio objeto — o corpo do crim inoso — im punha li mites estritos à vingança real. E as vítimas tinham o di reito de amaldiçoar o poder que os abatia: "O suplício pirniiíc (U) co/ulcnado cssas satu rnais ile um insta nte, cm quc nada mais c proibid<> ou punível. At) abrigo da nutrlc quc vai chcgar, o criminoso pode dizer tudo, e os assistentes aclamá-lo. (...) Há nessas execuções, que ,\õ deveriam m ostra r o po der aterrorizante do prín cipe. todo um aspecto de carnaval cm que os papéis sâo invertidos, os f>oderes ridicularizados e os crimim)st>s transft>rmados em heróis."*^ Sempre dado — como bom estruturalista — a *‘in133
vcrsóes sim étricas” , Foucau lt dcciara que **o corpo dos condenados” (título do primeiro capítulo) era o pólo oposto do “ corpo do Rei” . Refere-se aqui ao con ceito legal e político medieval analisado por Emst Kantorowicz (1895-1963) no clássico Os dais corpos do rei (1957, e náo, como informa Foucault. 1959). De acordo com o mito do rei “ nasc ido” génieo, supunh a-se que os soberanos tivessem dois corpos. Um era o corpo na tural, sujeito a decomposição. O outro era o aevum: um corpo eterno, sagrado e místico, uma perpetuidade secular por meio da qual a dignidade da realeza sobre vivia a toda fragilidade humana e vicissitude monárqui ca. K antorow icz demonstrou quão profundamente essa idéia mítica penetrou no pensamento legal inglês. Na vcidade. aiiidu eslava viva iia liteialuia lealisla da In glaterra cromwelliana. Alguns exemplares do Eikon Basilikc incluem um longo poem a, “ M
In thv Kind's ntimi’ thr king himself unrntwncJ. So Joes I he Just destroy the diamond.*
O que FoucauU quer demonstrar é que, da mesma forma que u acvttrn ical dava ao soberano um corpo * Com meu próprio podtT. minha maicslade fcriram;/Km nomc do Rci, o próprio rci dcstronara m ./Eis como o pó desiroi o duim nnic.’*'’
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sacro, o símbolo do corpo político, também o cadafalso linlia cm sua vítima um c orpo q ue era a próp ria antítese tio direito e força do poder real. Sobrevieram então o lluminismo e seu reformismo racional. Vários advogados e magistrados, assim como a crescente “ opinião pública” , na era de Voltaire e Beccaria, perceberam que o sistema violento, mas irre gular, de punição como retaliação exemplar e excessiva não era apenas desumano: estava também fracassando na dissuasão do crime. Além disso, nunca se podia ter muita certez a q uan to à direção tom ada pelos sentimentas da multidão, excitados pelas execuções públicas. A justiça crim inal deveria ser levada a buscar o castigo, não a vingança. Com a voga das teorias de contrato so> ci!ü, o crime veio a ser encarado não mais como um ataque ao soberano, e sim como uma quebra da aliança social, com o que ameaçava a sociedade em seu todo. IVopuseram-se novos métodos de punição, que a um só lempo reparariam o agravo feito à comunidade e rein tegrariam o delinqüen te em seu próp rio lugar den tro del;i. Por conseguinte, a principal preocupação da autori dade penal tornou-se a mente, e nào o corpo, do crimi noso. Enquanto a tortura deveria ser abolida, ima ginou-se "toda itma teciutlogUi dc reprexentações" (lembremo-nos do ca ráte r representacional da episteme clássica); sua finalidade era persuadir os prisioneiros da lógica do castigo que lhes era imposto. Houve muito cuidado em estabelecer uma correspondcncia racional entre os tipos de delito e os graus de punição; as sen tenças deveriam evitar, a todo custo, ser arbitrárias. Os reformadores do século XVlll partilharam plena 135
mente da propensão taxinòmica de sua era: procura vam traçar uma tabela em que cada crime e sua pena fossem perfeitamente legíveis. Conceberam uma classi ficação pormenorizada de crimes e criminosos, dentro de um horizonte de tratamento individualizado a cada transgressor da lei. E o objetivo preponderante de seu humanitarismo foi uma consideração de utilidade so cial. A punição nào deveria gerar terror, e sim penitên cia. As sanções deveriam ser tão didáticas quanio bem fundadas e imparciais, pois de outra forma a meta de reintegração social se perderia. Assim, várias vertentes do pensamento clássico — a teoria do contrato social, o utilitarismo, a semiótica da representação — com binaram-se numa nova justificação do castigo. De senvolvendo teorias de representações mentais relacio nadas com uma doutrina de interesse esclarecido, pen sadores de fins do século XVlll, como os hléologiws, deram ao Ocidente, às vésperas da difusão do indusIrialismo, "u m a espécie de recei(a geral para o e xercí cio do poder sobre os homens: o 'cspírifo' como uma superJJcie dc inscrição para o poder a subm issão dos corpos pel(f controle das idcias'\\-» Foucault é claro: no fundo, o humanitarismo, o lluminismo, contava menos quc a vontade do poder. Por baixo dc seus nobres ideais de emancipação huma na. o llum inismo definia novas “ tecnologias m ora is", conducentes a um grau de controle social muito maior do que o existen te nas socieda des tradicionais. Mais do que punir menos, os reformadores sociais desejavam “punir melhor: punir talvez com uma severidade atenuada. mas (...) punir com mais universalidade e ne136
fcssidíuU': inserir ntais profundam ente no corpo social 0 direito de punir". Em geral, a imagem convencional do lluminismo acenlua seus componentes utópicos. Foucaull concor da. A única diferença é que ele tem uma concepção di ferente da utopia do lluminismo. Para ele, tratava-se üe um esquema totalitário:
“ O sonho de uma sociedade perfeita é facil m ente atribuído pe los historiadores a os fttôso fos c juristas do século X V III: m as héi ta m bém um so nho militar da sociedade; sua referência funda mental era não ao estado da natureza, mas às en grenagens cuidadosamente subordinadas de uma mciquina, não ao címtrato primitivo, mas às coerç()es perm an entes, não a os direitos fun da m en tais, mas aos treinamentos indefinidamente progressi vos, não ã vontade geral, mas ã docilidade auto mática."'^^
Toda uma série dc miragens disciplinares, desde o império-“ m áquina‘’ base ado na disciplina nacional, so nhado pelo (ático Guibert, até o amor de Napoleào pelo porm enor organizacio nal, te ria prefigurado a ordem burguesa na sociedade ocidental do século XIX. O ho mem moderno, escreve Foucault, nasceu em meio a uma pnxuirada He regulamentos: meticulosas regras e sub-regras, inspeções minuciosas, supervisão do m enor fra gm en to da vida e do corpo (...) no conte.xto du escola, do quartel, do hospital ou da oficina " É 137
claro que essa sombria utopia do lluminismo não se con cretizou inteiram ente. No entanto Foucault julga que ela logrou impregnar grandes áreas da cultura mo derna. e a prisão foi o campo por excelência de sua aplicação. Vigiar <• punir sugere a existência de fortes ligações entre as idéias disciplinares da idade clássica e a ascensão de um modelo de instituição penal baseado na “ vigilância” — o nascim ento da prisão no sentido moderno — em princípios e meados do século XIX. TaJ como os sistemas imaginados pelos reformado res esclarecidos, a penitenciária objetivava a transformaçâo moral dos criminosos. Tinha ela também alguns precedentes reais, baseados no trabalho rem unerado, na exortação moral e em toda uma série de deveres e proibições, em reform atório s holandeses e flamengos (desde o Rasphuis dc Amsterdam, aberto cm 1596. até a Maison Force dc Ghent) e na reforma carccrária in glesa do século XVIII. Quando a perda das colônias americanas pôs tlm ã deportação, Blackstone. o mai» famoso jurista da Inglaterra na ép3ca. optou pelo en carce ram en to “ reformador**. Então, na Filadélfia r///«k(T, na prisão de Walnut Street (1790). surgiu a peni* tenciária moderna: celas, orientação moral, o irabalho (tanto como meio de reabilitação quanio como fonte de sustento econô m ico da própria prisão) e — lasJ hní nní Uuisf — dossiês rigorosos e eslrila observação de cada interno. Coroando tudo isso. veio a reconhecida auto nomia das autoridades penais, às quais a sociedade de legava um “ direito de pu nir” profissional, em nome do bem comum. As prisões to rnaram -se a sede de regim es de vigilância total e ininterrupta. Logo se adotou o pn138
iif)piic(fn de Beniham — uma engenhoca arquitetônica angular, com uma torre de vigia no meio. Com o panopíkou ou seus equivalentes, cada cela está ao al cance de uma inspeção central e invisível. Sem saber quando estão sendo observados, os prisioneiros têm de se comportar como se estivessem sendo sempre vigia^ üos. A arquitetura compacta das antigas prisões, que “e nter rav a” os crim inosos, junto s, em profundezas pé treas c p enum brosas (não posso evitar a lem brança dos presos subindo em direção ã luz no segundo ato do F/(U lio de Beethoven), foi substituída por edifícios mais leves, nos quais os internos eram isolados — e perma nentemente inspecionados. Em suma: sai a masmorra oculta, entra a cela transparente. Mas Foucault não se detém nisso. Procura então persuadir-nos de que o panopticon de Bentham, não importa quão rara ou imperfeitamente realizado, não passou dc epítome de uma tendência generalizada da sociedade burguesa — o ímpeto JiscipUnar. O panoptilon. em suma. foi apenas um exemplo visível do panoptismo (um rótulo, na verdade, usado por Foucault como título de um longo capítulo de Vigiar e punir). Da nes m a forma que o “ sonho político” da sociedade tra dicional, expressa no exílio dos leprosos, era a visão de uma comunidade pura, o sonho político de uma cultura moderna e bu rguesa é **uma sociedade disciplinar” . E seu poder modelador compreende várias instituições kisicas: projetar reeortes fin o s da disciplina so bre o espaço confiéso do internamento, trabalha139
los com os m étodo s de repartição analiilca do p o der, individualizar os excluídos, mas utilizar pro cesso s de individualização para m arcar exclusôes — isso é o que foi regidarmcnte realizado pelo poder disciplinar, desde o começtt do sécid o X IX , no asilo psiquiátrico, na casa de correção, no es tabelecimento de educação vigiada e, até certo ponío, nos hospitais. De m odo geral, todas as Ins tâncias de conín>le individual fun cion am num du plo nuído: o da divisão binária e da m arcação (louc<}-não loiHUK pcrigoso-in tfensivo ; normal-anormalí; e o da determinação coercitiva, da re partiç ão diferencia l iqucm é ele: onde deve estar: como caracterizit-lo, como reconhecê-lo, como e.xercer sohre ele, de maneira individual, uma vi gilância constante, e íc .}." ''^
Para que reinasse a disciplina, eram necessárias quatro condições. A primeira era uma arte üe distribui ção espacial, visível sobretudo em técnicas de segrega ção funcionai, tais como aparecem no espaço celular, desenvolvido pela primeira vez cm nosocõmios milita res, como 0 hospital naval de Rochefori, A Ecole Mili taire de Paris também foi construída segundo um mo delo monástico. Em ambos os casos, celas e vigilância estavam intimamente ligadas. O verbete da Encyclopé die sob re “ manufatura*' recom endava a vigilância competente como um método indispensável na produ ção industrial. Foucault descreve a fábrica überkampf em Jouy (c. 1790) com o um caso rev elado r de taylo risme avant la lettre: a “ manu fatura” era dividida 140
numa série de oficinas, cada qual com uma função dife rente
dimentos semelhuntes, é claro, foram postos em prática em fábricas e escolas. Em tudo c por ludo. a cela e a forma, o horário e os códigos gesluais, o exercitamenio e a lática conver giram para criar “ corp os dó ceis” — o eslofo dc que é feita a sociedade disciplinar.*'^ FoucauU levanta uma importanie questáo histórica: enquanto, no começo, esperava-se que as disciplinas neutralizassem os peri gos, na medida em que o Antigo Rsgime cedeu lugar á moderna sociedade burguesa elas vieram a desempe nhar um papel mais positivfi. Antes, a disciplina militar era vista apenas como um meio de impedir saques ou deserção; depois se tornou um método para aumentar a eficiência armada. O mesmo sc aplica às escolas e às oficinas. A organização cuidadosa do iraballio tiiilia ciii mira evitar furtos ou perda de matéria-prima; com o tempo, voltou-se para o aprimoramento da qualificação profissional, da rapid ez e da pro dutivid ade. Assim , as mesmas disciplinas adquiriram funções inteiramente novas. A disciplina baseada na vigilância precisava dele gar supervisão. A observação da hierarquia tornou-se regra, lanto na fábrica (como requeria a complicação da divisáo do trabalho) como na escoUi (onde alunos eram escolhidos para agir como inspetores de comporlamenlo). para não falar nas forças armadas. FoucauU dedica algumas páginas a descrever a gradação do po der de vigilância. Ademais, a sociedade disciplinar não upeiava soiiiciuc em lermos de controles c regulamen tos formais; aplicava também uma “ m icropenalidade” , atrelada a uma verificação minuciosa da conduta: "N
(fficina, na cxcola, n(f cxcrcito funciona conut rcprcssora foda uniu micropcnalidadc do tempo {atrasos, au sências. interrupções das tarefas), da atividade (desa tenção, nef>iigência. falta de zel mesmo tempo ê utilizada, a titulo de puni ção, toda umo .série de pntcess(fs sutis, que vão do vastifio físico leve a privações ligeiras e a pcífuenas humilhações. Trata-se, ao mesmo tempo, de tornar penalizáveis as infrações mais tênues da conduta (...)'
A leia da disciplina visa a generalizar o Homo doci!is exigido pela sociedade “ racion ai” , eficiente, “ téc nica” : uma criatura obediente, trabalhadora, escrup u losa e útil. flexível a iodas as modernas láticas de pro dução e dc guerra. E. em última instância, a principal maneira de obter docilidade é a pressão moral da con tinua comparação entre bons e maus cidadãos. Jovens ou adultos: a disciplina viceja com base nas "sanções normalizadoras". A sociedade burguesa gerou uma ob sessão pela norm a, desde as “ escolas no rm ais” até a manutenção de padrões na produção industrial e a pre ocupação com as normas gerais de saúde no hospital noderno. A sanção normalizadora e a vigilância hierárquica são particularmente visíveis nos exames.^^^ Os exa mes constituem o âmago da disciplina, um de seus procedim entos mais ritualizados, precisamente porque neles estão profundamente entrelaçados a necessidade 143
de observar e o direito de punir. Em nenhuma parte a sobreposição do poder e do saber assume ião perfeita visibilidade. Mas o exame vai mais além. Foucault ob serva que ele se lornou uma prática para os médicos no hospital moderno, o que nào acontecia no hospital tra dicional. De forma ainda mais gerai, aponta a utilização de arquivos e relatórios em tantas áreas da atividade social. A seguir, acentua a mudíinça de função na transcrição de vidas humanas: ou seja, o contraste en> tre a crônica, com sua ênfase no heróico e no memorá vel, e o arquivo, que mede a obediência como o desvio da norma. Argumentando que os métodos disciplinares abaixaram "o limití' tia iniUvidualitiadv desvritivvr\ ao substituírem o ancestral digno de memória pelo homem calculável, sugere por duas vezes que a ciência social ascendeu em conluio com a contemplação objetificante do exame disciplinar, normalizador. O berço das ciên cias do homem, conjetura ele, talvez esteja nos vis ar quivos da observação clínica e penal: os métodos pa> nópticos, na sociedade disciplinar, tornaram possível uma ciência do homem. "O homem conhecivcl (alma, individualitlade, ct>nsciência, comportamento, aqtii pouco hnporta)e o efcito-ohjeto desse in vestim ento ana lítico. dessa thntinaçâo-ohservação."'^^ O objetivo de Foucault. em scu capítulo final sobre o nascimento da prisão (isto é, a prisão na primeira me tade do século XIX), consiste em olhar a penitenciária do ponto de vista dessa sócio-epistemologia da disci plina. FoucauU nos convida a uma pausa para pensar nas m onóton as críticas dirigidas ao fracasso das prisões em coibir a criminalidade e corrigir os crim inosos. Nào (44
dcvvimiiiob, pciguiUu ele, inverter a consideração do problema? Q uando uma pergunta permanece por tanto icmpo sem resp osta, vai-se ve r e descobre-se q ue a própria questão é que era errada. É possível, pois. que. afinal, a prisão não tenha falhado: apenas seu êxito es lava onde ninguém o procurou. Em ve 2 de fracassarem n.i eliminação do crime, as prisões tivvmm succsso em prtHlnzir tfeiinqOênciít: não apenas no sentido empírico dc fomentar tantas socieiníes scelerís quando se espe rava reabilitação, mas precisamente m perspectiva de l>oder/saber. As prisões encerram sistemas punitivos que, segundo afirma Foucaull. têm mcnos por função eliminar os delitos do que "distingui-los, disíribuí-los, iisü'liis" e. ao assim proceder, "tendem a assimilar as tfíinsfiressões da lei numa tática acrai de sujeiçíut".'^'* Foucault é claro: vivemos — como herdeiros direlos dos impulsos e das instituições que se manifestaram |vla primeira vez na ascensão da sociedade burguesa — sob um "reinado universal do norm ativo" dominado por agentes da normalidade e da vigilância: o professor-juiz, o médico-juiz. o educador-juiz, o assistente Hocial-juiz. E tal mundo é nitidamente "uma rede carcrrária" em "forma s concentradas ou dissem inada s". Ao passo que, outrora, o criminoso, tal como o peca dor, cni um proscrito, no reino da disciplina o delin qüente não se acha exatamente fora da lei: ele está "desde o início, dentro dela. na própria essência da lei
seguinte, cslenüe-se "h em aicm da prisão lega l" \ a prisão é, no fu ndo, apenas sua "forma pura'* dentro de um coniimwm de aparelhos disciplinares e instituições “ regionais". Em sua função, pois, "esse poder de pu nir não é essencialmcníe diferente do de curar ou edu c a r " ^’ e, dentro da mesma lógica, "graças ao conti nuum carcerário, a instância quv condena se introduz entre todas as que controlam, transformam, corrigem, m e l h o r a m " . Graças à "tessitur a carcerária da soc ieda de"^ há uma incessante "mistura” da "arte de retificar e do direito de pimir", E assim po r diante, ad nause am. 0 cume retórico é a passagem freqüentemente ci tada: "Devemos ainda nos admirar que a prisão se pa reça com as fáb ricas, com as escolas, com os quartéis, com os hospitais, e que todos se pareçam com as pri sões?"*^'* — o final do capítulo sobre o “ panoptism o” . Como obra de história (filosófica). Vigiar e punir é ao mesmo tempo menos inconseqüente e mais preten siosa do que A s palavras e as coisas. A quarta e última parte, que trata do nascim ento da prisão m oderna pro priam ente dita, tem sido em geral considerada um anti clímax algo frouxo para a retórica do “ pan op tismo ” . N o entanto, de modo gera! Foucault mo.stra-se agora muilo mais cauteloso. Por exemplo, não dá a mesma ênfase lemeníria a cortes absolutos, e. na verdade, tem multo 0 que dizer a respeito de transições e coniinui dades de uma era para outra, como vimos em sua des crição dos precedentes dos aparelhos {dispositifs) dis ciplinares. Basta 1er sua expressiva digressão sobre o papel, na mitologia histó rica, de N apoleão — uma fi gura que combinava o exercício ritual da soberania da 146
itu>narquia tradicional com a pertinácia da vigilância — para perceber com o Michel Foucaull. o nkísirc das rupturas, é capaz de apreender iransições com sulileza. Tampouco ele se esquece, dessa vez, de limilar prudentemente sua geografia à França, eviiando lissim uma das mais gritantes talhas dc Uisíório da hmi tiro e de A s palavras e as coisas: a ausência dc dife renciação geográfica em seus principais conceitos hislóricos.''*’ Por vezes ele se mantém próximo ã história cnipíricii dc maneira verdadeiriímente perspicaz, como aieslam seus breves comentários sobre o debate a res peito da reforma carcerária no regime de Luís Filipe. Nessa época, enquanto Charles Lucas (cilado com freipicncia por Foucault) inspirava um modelo monástico ilc /imisífii cciitrtdc. baseado no trabalho cm comum c no silêncio absoluto, Tocqueville e outros defendiam o ívgiitie pensilvaniano de completo isolumenlo. A onda dc rcv4)ltas em prisões após a adoção das niaisricamcnU\ o processo pelo ifual a hurfiuesia se tun nm . dec4>rrer do sécu lo X V IIl. a classe poUtica147
nteníe donimanlc (ibriíís miúdos, cotidianos e Jísicos, por to dos esses sistem as de micropoder essencialme nte iguaUtáriin c assimétricos que cnnstitucn} as discipli nas."^^' E Foucaull acrescenta que, embora o comrato social possa ter sido considerado como a fonte dc po der “ idear* (0 original francês diz melhor: “ imagina d a ” ), o panoplisnio era a realidade — iima lécnica ge* neralizada e universal de coerção. A burguesia impôs um duplo padrão na área penal. Por um lado. promoveu a reforma penal em seu próprio inleresse. Codificação, julgamenios imparciais, crité rios racionais para a apreciação das provas, presunção de inocência e uma razoável correspondência enire o crime e a pena — ludo isso trabalhava em favor dc uma classe superior instruída, ciosa de seus direitos e dona de riqueza, de prestígio e dc influência política. Por ou tro lado. a mesma classe dominante inventou a vigilân cia, o encarceramento e os inúmeros expedientes re pressores como form a dc conter o descontentam ento social e treinar uma força de trabalho. Há, naturalmente, mais que um gráo de verdade em ambos os cenários. Contudo, a visão que Foucault tem de todo o processo é demasiado maniqueísta. Por 148
que deveria o historiador optar entre a imagem angeli cal de uma ordem burguesa democrátlco-liberal, não inuculada pela dominação de classe, e o quadro diabó> tico de uma coerção onipresente? Por acaso a crônica histórica não é misturada, não mostra legítimas tendên cias libertárias c igualitárias ao lado de várias configu> raçócs de poder de classe e aspectos culturais coerciii V t ) S ?
Todavia a vituperação da burguesia náo é, como vimos, a mensagem central do livro. Os piores golpes MIO dirigidos m enos ã bu rguesia que ao lluminism o. ínnio como época quanto como um fenômeno a longo prazo, evolução cultu ral que ainda persiste: o Ilumiinsnu), lambém chamado modernidade. Num comenlá11(1 sobre um contemporâneo que discutia o panopíU on dc Hcnlham, Foucaull traça uma antítese enlre a antiga M»cicdade, "uma civUizução do espetáculo". e nossa íocicdade, que é uma civilização "náo de espetáculos, rtitis de yi^iláncia". Num mundo que tem como seu icniro não a comunidade e a vida piifclica. mas sim os iiulivíduos privados de um lado e o Estado de outro, as K'laçtîes são reguladas dc uma forma exatamente in versa ao espetáculo. Somos muito menos gregos do que gostamos de acreditar, diz Foucaull. Por irás de missa “ grande abstração d a tro ca “ , treinamos corpos tompulsoriamenle como forças úteis manipuláveis. N(»ssos amplo s circuitos dc com unicação servem ã cenitnIi/açÍK) {sic) do saber: e entre nós "o jog<> das sinais i t r f h w />.v p i > n f o s df * o f y t i o t i o f x t d r r " .
I'm úilima instância. Foucault vê o punitivo e o imccrário como inseridos em algo que participa da na149
lureza deles, sem estar necessariamente ligado a pri sões: “ o disciplinar" como a essência da civilização moderna. E por isso que, finalmente, seu livro fala muito mais de vigilância do que de punição. Como um todo, portanto, O nascimento da prisão se sustenta ou desaba de acordo com sua ousada Kidturkriiik — o menos convincente de seus elementos. Pois o que Fou cault tem a oferecer pode ser considerado um retrato marcuseano do século XVIII: uma impudente carica tura histórica em que o lluminismo aparece como uma idade de interíorização da desumanidade, bastante apa rentada à descrita por Marcuse como a essência de nossa própria cultura “ unidimensional” . No entanto o anátem a de Foucault, em bora nào lodo orij^inai, linha. nHliimIniente. ;ilguns ingredien tes inovadores. Em particular, víile a pena ressaltar dois deles. Como um bom (posto que involuntário) estruturalista, Foucault se recusa a ver o mal — o panoplismo — como um simples efeito de uma dada infra-es trutura sócio-econômica. Marx recebe três ou quatro menções em Vigiar e punir. A mais importante ocorre nas páginas 193-194 (da edição brasileira), onde Fou cault. num longo parágrafo que é uma obra-prima de sofisma teórico, afirma ao mesmo tempo: (a) que na decolagem econômica do Ocidente os processos de acumulação de homens, por meio de métodos discipli nares e de acumulação de capital estudados por Marx, "nã divers(?s": (c) 150
que "a projeção maciça tios métodos militares sobrc a
oraanizaçào i/idusírial" foi ‘’um exemplo” da influénlia dos “esquemas de poder” disciplinares sobre a di visão capitalista do tnihalho. Em outras palavras, as coisas sáo aquilo que a gcnle quer que sejam. Mas. obviamente, Foucaull pre feriria que seu próprio esquerdismo esüvesse isento do incômodo obstáculo representado pe!o determinismo cconômico ou tecno-econòmico. Sua proposta alternaíiva, como materialista, é, como observou bem o histoliador Jacq ues L é o n a r d , o fo co sobrc o ( Viÿiar ( pitnir poderia, na verdade, ser chamado de a primeira icnlativa persistente de oferecer uma genealogia (uma rcduçào nietzschiana de formas de açâo ou saber a configuiu^Ocs de vonladc dc poder) cm lermos forte mente sotmiticos. Foucault é explícito nesse ponto: seu intuito foi narrar a história poh'tica do sorpo. Mas também da alma. Ele considera sua "mivrofí \ú a do poder punitivo" um elemento importante na lienealogia da ” alm a“ m odern a.’’*^ Verberando o m ateliulismo crasso, argumenta ser patentemente errôneo icjcitar a alma como uma ilusão ou um efeito ideológi co. Pelo contrário» sua realidade e bem forte — é periniinentemente produzida naqueles que são punidos, %U|>ervisionados, corrigidos e controlados. A alma. MdHcida da disciplina e da coerção, é a um só tempo "i jrit o e instrum ento de um a anatom ia política: a al ma, prisão df^ c(frpo"y^ O trocadilho favorito dos angnósticos era soma sema, o corpcMúmulo (da aliim). 1’oucault, o anarquista libertino — bom compa* nhoiio dc Roland Barthes, o libertino anarquista — in 151
verte a frase; na sociedade carccrária. c a alma que aprisiona o corpo. Nossa liberdade é nossa vida corpo ral, não colonizada por disciplinas ííociais. Houve um momento em que Foucault não esteve muito distante das “ máquinas desejan tes" de outro destacado neonielzschiano, Gilles Deleuze {Aníi-Hdipo, 1972). Essa ênfase na idéia de que a sociedade fabrica almas (que Foucault iguala a psique, consciência, sub jetividade, personalidade, individualidade, percepção etc., etc.) reafirma o culturalismo de Foucault no âmago de seu radicalismo político. Vigiar v punir foi publicado quando seu aulor já se havia afirm ado como reformador militante de prisões e teórico simpático ã rebelião gauchiste. quando esta irrompeu em 1968. No enlanto. mesmo permanecendo à esquerda da esquer da, ele deu um jeito de manter uma perspectiva nietzs chiana; a despeito das implicações libertinas de sua linguagem, não há nada de “ na ttrista* ' em Foucault: sua crítica da cultura disciplinar não pressupõe nenhum homem natural, nenhum hon sauvage. Ao contrário de Marcuse. Foucaull não trava sua campanha de Kul‘ lurkritik em nome dos instintos naturais. Reside aí a grande diferença enlre o conlra-iluminismo romântico e o nietzschiano — e a primeira grande inovação na crí tica cultural de Foucault. O segundo ponto origina! é sua preocupação com o saber, agora sob o disfarce de poder/saber. Escutemolo: "Temos (...) que admitir ifue o poder produz saher (e nào simplesmente favorecend
rciítnienie implicados: que não há reUição de poder svm eonstindção correlala de um eampo de saher, nem Miher que não suponha e não constitu a ao m esm o ttmpt) relações de poder.’'^'*^ Temos aqui, é claro, um posicionamento muito nietzschiano. Em últim a análi> S C , portanto, pode-se dizer que Foucault está aplicando it lição de Nietzsche a uma coisa com que nos familiari/amos por causa do ímpeto geral do chamado mar xismo ocidental (principalmente o marxismo de Lukàcs c da primeira escola de Frankfurt): ou seja, a fusão de cniica social (isto é, a denúncia da sociedade burguesa) Ci>m uma postura contracultural (a Grande Recusa da civilização moderna). A um exame mais atento, porém, il imagem é menos simples. Nietzsche e os velhos nielzschianos (por exemplo, Spengler) atacaram a cullura moderna como decadente. Os novos nietzschianos ii.i França, marcados como estão pelo impacto do mar xismo, atacam-na como repressora. O que para Nietzs che definia a cultura moderna era sua falta de vitalidadi?; o que a cara cteriza para F oucault — com o também )»uu Adorno ou Marcuse — é a coerção. Foucault. vomo os marxistas, toma o lado das vítimas — uma po^(ç»o pouquíssimo nietzschiana. Ademais, Nietzsche 11.(0 linha aversão pelo lluminismo. Longe disso. Em l»-*lo menos três livros. Humano, demasia do hum atw ( IK7S). Atirora (1881) e A gaia ciência (1882), ele presl(Mi iributo ao espírito crítico da era das Lu zes. Foumuli. por outro lado. mostrou ser. em Vigiar e pimir, iiiimigo ferrenho do lluminismo, retomando a hostilitl idt* já demonstrada em História da loucura (enquanto i|iic As palavras e as coisas, sem dúvida porque esta 153
obra tratava da idade classica em bloco, exibe uma neutralidade bem maior). Assim, no fundo, Foucault acompanha Nietzsche em sua visão da realidade (não existe verdade, apenas interpretações), mas não cm sua visão da história. Ou melhor, o que ele pede emprestado a Nietzsche, no que tange à história, é apenas uma perspectiva form al: a genealogia, ou seja. o problema do surgimento e da descendência dos fenômenos culturais. Na genealogia, velhas formas culturais recebem novas funções, como os lazaretos transformados em asilos psiquiátricos ou as celas monásticas convertidas em cárceres. A genealogia lança luza sobre o pragmatismo da história, sobre a ca pacidade hum ana de verter vinho novo em velhas gar rafas culturais. E vê tudo, naturalmente, do ponto dc vista do poder, ficando a verdade degradada ao papel de um adjutório — ou máscara — da dominação. Lido como um manifesto contracultural nietzschi ano ou neonietzschiano. Vigiar e punir proporciona uma absorvente leitura engíyada; mas como se mostra como história tout court'i Consideremos o juízo dos historiadores. Tomemos uma obra recente e muito bem pesquisada sobre execuções e a evolução da repressão: The Spectacle o f Suffering (198^), de Pieter Spieren* burg, da Univ ersid ade Erasm o de Rotterdam . Seguindo a abordagem pioneira de Norbert Elias, que correla ciona mudanças morais e institucionais. Spierenburg afirma, logo no pórtico de seu livro, que, em Vigiar e punir, Fou cault náo examina a transição de um sistema penal para outro, não explica as m udanças dos modos de repressão relacionando-as a outros processos de 154
ttansformaçâo sociai c não baseia sua análise de cxeciiçôcs públicas em fontes arquivais. Observando que “ fí luihilo de injlifiir a dor e t> caráíer público do c í / . v tf^»o nifo desapareceram da noite para o dia". Spierenhiirg julga "o qtuidro pintado por F codigo penal napoleón ico de 1810, con quanto apri 155
morasse o sistema de detenção promulgado pelas as sembléias revolucionárias, restabeleceu castigos humiíhantes como a marcação a ferro, a golílha ou mesmo a amputação da mão — penas cruéis que só foram aboli das durante a Monarquia de Julho (1830-48). Possuo um cartaz destinado a divulgar um julga mento realizado por um tribunal superior do Départe ment du Nord, em 1813, condenando um certo Fran çois Mouquet. operário, a cinco anos de reclusão mais as custas judiciais e uma hora de golilha (carcan) na praça principal de Douai. O crime hediondo do pobre Mouquet se reduzia — como o proclama o cartaz em letras maiúsculas — ao furto de dois lenços numa ta verna! O episódio, que demonstra bem a ferocidade da justiça burguesa na época — às vésperas da odisséia imortal de Jean Valjean. n'Os niiseráveix de Victor Hugo —. salienta dois aspectos minimizados em Vigiar e punir: a longa sobrevivência de elementos penais do Ancien Régime naquilo que Foucault apresenta como sendo uma nítida “ sociedade disciplina r" pós-tradicional, e a ev olução co ncre ta da justiça de classe (em con traposição ã ordem burguesa, em grande parte homo gênea, que o livro descreve). Léonard toca cm pelo menos irês outras omissões. Primeiro, Foucault náo faz distinção entre diferentes categorias de prisioneiros (presos políticos, homicidas, operários, militares recalcitrantes, prostitutas etc.). bem como nào em preende uma sociologia dc juizes e advogados. Em segundo lugar. Foucaull exagera os efeitos reais da “ norm alização " na sociedade francesa durante a prim eira metade do último século. 0 histo 156
riador do exérc ito, o historiador da edu cação e o histo riador da medicina dificilmente aceitarão o quadro que 1'oucauU pinta dc uma disciplina generalizada: eles tem plena consciência da resistência dos velhos costum es e &i\ freqüente impotência dc tantos regulamentos. Da mesma forma, a pesquisa sobre a história do trabalho tende a prejudicar seriamente a descrição ’‘taylorista” que faz Foucault da atividade industrial normalizada: à cpoca focalizada em seu livro, a França ainda era, pre| X ) n d e r a n t e m e n t e , uma economia camponesa e artesaluil, e levou muito tempo para adotar uma plena divisão tias tarefas industriais nas fábricas. Por fim, observe-se <.|iic Foucault não ressalta de modo adequado a origem c a motivação religiosa dc muitas técnicas dc exercícios ou ritos de exclusão constantes de seu catálogo de dis ciplinas.'"*“ Neste ponto, sinto-m e tentado a acrescentar um uuiro possível pomo de discórdia: a história do perisjncnto pedagógico. Nào encontrei em Vigiar e j)anir qualquer citação dc Emile ou de Pestalozzi. Ora, como SC sabe. o fim do século XVIIl foi uma era de eferves cência pedagógica, predominantemente numa direção cmancipadora ou humanitária. Uma das notas de ro dapé de Foucault refere-se à obra Lu Pédagogie en Irance aux XVII*\. cí XVUI^'. .siècles (1965), de G. Snyders. Entretanto, ele nâo faz nenhum uso do bem ilocumentado contraste, estabelecido por Snyders. entic uma “ pedagogia de vigilância” , que prevaleceu no *cciilü anterior, e os novos mélodos “naturais” de en sino c aprendizado que aos poucos ganharam força na cru do lluminismo. Se. apenas para argumentação, 157
aceitarmos a descrição da escola burguesa como iim espelho da prisão, então no mínimo deveria ser men cionado que essa educação “ carcerária” antes traía, em vez de concretizar, muito do pensamento iluminísta em assuntos educacionais. Uma segunda falha importante em Vigiar v punir refere-se menos a fatos errados do que a más avalia ções de dados históricos. Nesse caso, a principal ví tima é a concepção iluminisla de reformismo. Vimos como Foucault o interpreta: como um programa que só não era totalitário no nome. Todavia isso não coincide com a visão dos historiadores — c não me refiro a in gênuos relatos progressistas. Tomemos, por exemplo. Franco Venluri, que depois de toJa uma vida de pes quisas inovndoras sobre a era do lluminismo, havia acabado dc publicar, poucos anos antes do livro de Foucauh sobre o nascimento da prisão, uma obra es plêndid a, Setteeento riformatore: da Muratori a Beccaria (1969). Cesare Beccaria, muitas vezes chamado pai da pcnologia, é tido unanimemente como a figura-chave no reformismo penal do Século das Luzes: seu mais fa moso tratado. D ei delitti e delle pene, publicado em 1765, quando o autor ainda tinha menos de 30 anos, e aplaudido por Voltaire e pela maicria dos philosophes. não teve rival em toda a Europa, mesmo quando já ia bem avançado o século seguinte. Não adm ira que Fou caull o cite meia dúzia de vezes. Ora, quando o profes sor Venturi proferiu cm Cambridge as confcrcncia» George Macaulay Trevelyan (mais tarde publicadas como Utopia and Reform in the Enlightenment, 1971), 158
cic preferiu estudar a questão do reformismo das Luzes ílo pon(o de vlsla do “ direito de punir“ . Inevitavelnienle. cenlrou seu capítulo na recepção européia das idcius de Beccaria. No enlanto. se tivermos em menie Mia anãllse. logo havemos de perceber que existe algo dc errado no quadro foucaldiana da ideologia penal do século XVIII. Venluri nem sonha em ocultar os ocasionais aspec tos desagradáveis da fantasia social do lluminismo. Cít.i. por exemplo, uma modesta proposta do ahbc MorelIct — transformar condenados em verdadeiros escravos que, nessa qualidade, seriam empregados para pro criar, com duas vantagens — aumentar a força de tra balho e refutar os preconceitos quanto a vícios “ herediiártos*'... O próprio Bcccaria não desdenhava reco mendar a dureza dos trabalhos forçados. No desenho que ele esboçou para ilustrar a terceira edição (em ape nas um ano!) de seu livro, utilizou uma Justiça posando como Minerva (o direilo como sabedoria): mas en quanto a Minerva-juíza desvia os olhos, horrorizada, lias cabeças que o carrasco lhe oferece, lança um olhar HtiiTidenie a várias ferramentas de trabalho pesado: pus, serras e congéneres, Não obstante, Beccaria est.iva longe de sugerir o ativismo disciplinar, as autoriiludes abelhudas, altas e baixas, da sociedade carcet.iria de Foucaull. Ele acreditava que os Juristas e os legisladores "devem tremer de escritpuh ao governar vidas e as fortttnas dos fm/ttens". Recorda Venluri ijuc foi em relação a Beccaria que a palavra “ socialisin“ foi pela primeira vez empregada numa língua moílerna. O termo "s
zado por um beneditino alemão. Aiiseliii Dcslng, para denolar teóricos do dircilo natural como Pufendorf, que colocavam a socialitas. ou o instinto social huma no, na base do direito natural. Mas quando Ferdinando Facchinei — crílico ferrenho de Beccaria — empregou a palavra em italiano em 1765. seu sentido era bem di ferente: referia-se a um autor que desejava uma socie dade de homens livres e iguais.’^’ (Naturalmente, foi apenas muito mais tarde — fora da órbita do estudo de Venturi — que, entre os sainl-simonianos de esquerda> criou-se o substantivo “ socialismo", ligado à idéia de uma regulação central da economia). A questão, po rém, e que o principal reformador penal era um libertá rio igualitarista: por conseguinte, dificilmente se pode rtccitar a idcia de que o IluminisTio concebesse a puni ção como uma horrível doutrina divsciplinar. Julgava Diderot que os planos de Beccaria não passavam de uma ineficaz utopia (na verdade, muitos deles foram proniam ente posto s em prática, especialm ente nos ter ritórios do Império Austríaco, embora não na França). D'Alembert louvou o profundo humanismo da penologia de Beccaria. Paradoxalmente, ao restringir seu pu nhado de citações ao lado utilitário de Oci tlcliJti c dellc pene. Foucaull coloca-se ao lado daqueles que. como Voltaire, se esforçaram por dar uma rígida interpreta ção “ lécnica*’ e não sociológica (quanto mais “ socia lista") a um livro tão fecundo e influente. No entanto o utilitarismo de Beccaria. bastante forte para situar cssc autor entre os principais prejursores reconhecidos de Bentham. não era de modo algum incompatível (como lambém não era, aliás, o de Beniham) com po160
»lorosus linhas dc pensamento libertárias e filanirópiciis. Como reconhece Vcnluri, na prática a maioria dos pl.inos de reforma penal do fim do século XVIII exil»i-t uma mistura de humanitarismo, cálculo econònnco e resquícios de antiga crueldade, transmutados ci.i form as novas e mais racio nais.’'® Mas nem p or um inslanle ele, ou qualquer outro historiador renomado dsi(|uela eni, sugere que o lluminismo possa ser identiiKudo com um mutilante impulso disciplinar tão geneiiili/.ado quanio repressivo. l*or fim. um terceiro tipo dc falha em Vigiar e puitif. enquanto obra de história, reside na natureza das l'iplicaçôrs que oferece. Por exemplo, um dos objctiVi»s centrais de Foucault é dem on strar por que o encarccnimento em penitenciárias veio a scr univcrsalmcnlc •iilolado em muito pouco tempo. A reclusão, afinal de nMUas, tinha sido rejeitada por vários reformadores pciiais: por que terá triunfado tão depressa em toda jtmtc? A resposta de Foucault é dupla. Alega ele que (iii a prisão disciplinar transformava seus internos III n)ii útil forga de trabalho: e (b) de qualquer modo, iiiHlituivões disciplinadoras semelhantes já atuavam cm iMlíiis áreas (as forças armadas, a fábrica, o hospital, a cHCola). A primeira resposta lança a culpa pelo controle lie classe na burguesia ascendente; a segunda põe a viilpa pela “ sociedade ca rcerá ria” na cultura moderna idimi um todo, modelada pela ideologia iluminista. Muh o problema é: se a prisão nasce dt dominação de cl.iNsc, cuiiipic cxpiicar como foi que ela se tornou uma iiMluliide. quase simultaneamente, em países com esiniiuniN de classe muitíssimo diferentes.'^' Porque, em 161
particula r, ela apareceu prim eiro, em fins do século XVIli e começo do século XIX, nos Estados Unidos, onde obviamente o conflito de :;lasses era menos in tenso e generalizado do que na E jrop a? Por outro lado. na feliz observação dc Robert Brown, Foucaull, ao desc reve r o sistema “ carc erário ’*, não dá qua lquer ex plicação pura sua introdução em diferentes áreas insti tucionais e, cspccifícamenle, naquelas que — como a escola c a fábrica — normalmente não constituem “ ins tituições totais” no sentido dado a essa expressão por Erving Goffman; isto é. naquelas instituições que não são. em princípio, espaços institucionais apartados da sociedade maior. Críticos como Brown dispõem-se in teiramente a admitir que, em última análise, Foucaull não está empenhado numa tarefa explanatóría. Nesse caso , replicam , tam pou co ele deveria levan tar o tipo de questão que levanta a respeito das causas da expansão dos padrões disciplinares na sociedade moderna. De qualquer maneira, precisão histórica à parte, as explicações de Foucault são viciadas em si mesmas. Como observou argutamente Karel Williams, o tipo de análise que ele realiza tende corstantemente a ser cir cular; suas conclusões já estão presentes logo de saí da.'^* Noutras palavras, seu método é eminentemente a petição de princípio. Jon E lster dem onstrou que Fou cault incorre naqu ela “ busca obsessiva de significa ção” que muitas vezes esteia pseudo-explicações va zadas cm termos de conseqüências. Dc acordo com Elster, uma das raízes da busca dc significação a todo custo é teológica, e pode ser encontrada na teodicéia de Leibniz, cuja essência é a afirmativa de que o mal e 162
a dor devem ser considerados como condições causais necessárias para o melhor de todos os mundos possí veis. Quando, por exemplo, a escola funcionalista. na teoria sociológica do conflito, declara que o conflito dentro das es truturas burocráticas (e entre elas) as p ro tege contra o ritualismo e a esclerose, temos a mesma espécie de argumento falacioso, inferido de conseqüên cias. Ora, como vimos, Foucault afirma que devería mos deixar de nos surpreender com o malogro da pri são em deter o crime e corrigir os criminosos, e com preender que a finalidade real das prisões é precisa mente manter e produzir a delinqüência, ao, implicita mente, incentivarem a reincidência e converterem o transgressor ocasional em criminoso contumaz. Embora o estilo retórico de Foucault antes sugira mais que afirme a conseqüência-explicação,.seu raciocínio acar reta necessariamente a presunção de que uma pergunta vui bono? — para o que serve a prisão? — nâo constitui apenas um guia heurístico (entre outros) e sim um cami nho privilegiado para chegarmos à verdadeira raison i f è n v das prisões.'^’ Ora, a questão é que explicações teleológicas desse tipo não representam, naturalmente, uma legítima análise causai; elas tão-somente supõem causas sem demonstrarem qualquer mecanismo causai; daí a circularidade e a petição de princípio. N otoriam ente, Foucaull náo reveste suas explica ções teleológicas em termos de agência. Mas tampouco rejeita de lodo a possibilidade de ação planejada. Mais de um ciíticu já u(>oiUou u amplo uso que clc faz de verbos pronom inais, do vago pronome e de outros artifícios verbais, mediante os quais evita especifica 163
mente imputar processos sociais a quaisquer seres hu manos, sem, no enianto, excluir inteiramente a açào planejada. O com entário de Léonard acerta em cheio: "Nào se sahe ao certo se M. Foucault descreve um mecanismo ou uma rnaquinação/*^^* Perto do tlnal dc Vigiar e punir, *'o carcerário’*ou “o arquipélago car cerário'* (sem dúvida um eco de Soljenitsin) reapare ce de modo personalizado. Tais prosopopéias são a nêmesis de uma inveterada fraqueza estruturalista: evi tar a análise que parte do reconhecimento da ação e da intenção. A rejeição do fator agência é sentida como inescapHvel. por medo de cair na metafísica do sujeito (como se as duas coisas andassem necessariamente de braços dados). Em term os rigorosos, no entanto, no foucaldianismo gauchiste de 1975, a ação humana c a um só tempo evitada e não desmentida — um agrado conciliador, por assim dizer, ao gosto radical por te orias conspiratórias da história.
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VIII. A "C R A T O L O G IA " D E FO U CAU LT: SU A TEORIA DO PODER
N a últim a página de Vigiar c punir, Foucault res salta que o “ poder de norm alização” não é exercido apenas pela prisão, mas também pelos nossos meca nismos sociais para a produção de saúde> saber e bem -estar. Portanto, acrescenta ele, "a fabricação do irxdividuo disciplinar" nào está entregue apenas a insti tuições de repressão, rejeição e marginalização. O car cerário transcen de o cárc ere. Por conseguinte, o estudo da prisão teria fatalmente de se desdobrar numa ana tomia do poder social em geral — assim como, inevita velmente, numa reconsideração de nosso próprio con ceito de poder. Não admira que tantos textos e entre vistas de Foucault. desde meados da década de 1970. discorram sobre o problema das modernas formas de dominação. Ao procurar uma genealogia do siyeito moderno. Foucault estava automaticamente definindo um ângulo em que o saber está entrelaçado com o poder. Assim, sua investigação do siyeito moderno, por meio das for mas de saber, bem como de práticas e discursos, tinha de se concentrar no que ele chama de poder^saber {pouvoir-savoir)s uma perspectiva nietzschiana em que toda a vontade de verdade já constitui uma vontade de 165
poder. E quanto mais sc aprofundava cm esferas do saber prático sobre o sujeito, mais ele encontrava, à espera de análise, íecnologias do vu. Ao tlm e ao cabo, como nota Colin Gordon. Foucaull elaborou um con ceito de pod er “ tão capaz de tom ar a forma de subjetivização quanto de uma objetivizaçâo".'^^ O eu como instrumento de poder, um produto Ja dominação, antes que como instrumento de liberdade pessoal — este tor nou-se o lema principal de Foucault depois de Vigiar e punir. Como já foi indicado, toda essa problemática pres supunha uma reformulação do conceito de poder. Em resumo, exigia uma teoria do poder produiivo. A teoria das práticas discursivas em A arqueologia do saher e cm L'O rdre du discours pcrmunccia presa a uma con cepção de poder demasiado negativa, que destacava a coerção, a proibição e a exclusão. Depois de Vigiar e punir, Foucault mudou seu foco, Agora advertia: ‘'Te m os de deixar dc d escrever sempre 4>s efeitos do poder em termos negativos: ele ‘exclui’, 'repritne*. 'censura', ‘recalca’, 'ahstrai', 'mascara', 'esvonde’. Na verdade o poder produz: ele produz realidade: produz campos de objetos e rituais da verdade. O Individuo e o conhe cimento que dele se pode ter se originam nessa produçao. r,l)6 Foucault apóia sua argumentação contra as teorias repressivas do poder com uma pergunta retórica cuja estrutura lógica e análoga à de sua pseudo-explicação teíeológica da sobreviéncia das prisões a despeito de terem malogrado na p revenção do crime: se o p o d eré , de falo. meramente repressivo, indaga ele, por que as re 166
lações de poder nâo são muito mais instáveis? Tradu zindo: a causa do poder é sua capacidade dc fazer algo mais do que repressão, tanto quanio a causa da sobreviência da prisão é sua capacidade de fazer aigo mais do que malograr em impedir o crime. Em “O sujeito e o poder’*(publicado como posfá cio ao livro de Dreyfus e Rabinow a seu respeito), Foucaull enunciou sua intenção: desejava estudar o “como" do poder, não no sentido dc “como ele se manitesla?", mas de "p o r qttv m eios é cxvrvulo? ". En tretanto, grande parte do que ele acrescentou a isso Já era rotineiro para aqueles familiarizados com a litera tura analítica sobre o poder, desde Wcber até diversos íilósofos, cientistas políticos e sociólogos contemporâ neos. For exemplo, Foucault revela, um tanto pompo samente. que o poder é exercido sohrv outras pessoas, e nào sobre coisas — é uma questão de dominação, e não de capacidade. Também se dá ao trabalho de frisar que o poder atua sobre nossos atos, e nào — como a pura violência física — sobre nossos corpos. "O poder só ê exercido sobre sujeitos livres e apenas na nu'dida em que são livres." Que grande novidade... Na lingua gem do direito romano: coactus tamen v
c i a n e m c o n s e n l i m e n l o , c " u m a c a tr u tu r a t n í a l it c «íím
aplicada a p(fssivcis afos"\ incitando, seduzindo ou, ■’no extremo'*, coagindo ou pro ibin do .’” iMais interes sante, porém consideravelmente nebuloso: pois de que modo haveremos, em termos analíticos operacionais, de igualar o pod er com uma “ estrutura total de ato s” ? Podemos ver para onde Foucault está caminhando: para o velho fantasm a marxista de uma “ estrutura de poder“ , que se alim enta de um conjunto hipostasiado de interesses de classes. Mas. nesüe caso, é preciso es colher: pois ou se analisa o poder em lermos de ação ou se invocam tais totalidades. O que nâo se pode fazer é as duas coisas ao mcsmo tempo. Note-se, por favor, que não estou dizendo que nâo se pode fazer análise de ciusscs. ou estudar u puder cm relação üs classes: o que é proibido, se a pessoa está realmente interessada em análise e não em palavras de ordem, é fingir que se está m archando cm direçào à análise com “ estrutu ras totais de ação” não especificadas (e talvez de impossí vel especificação). Para começar, se tais conceitos pu dessem ler alguma utilidade, seria, obviamente, em te orias que sustentassem que o poder “ se man ifesta” e não em teorias interessadas em Jemonsirar racional mente por quais nu'ios ele é verdadeiramente exercido — ora, vim os Foucault rejeitar as primeiras. As duas conferências de janeiro de 1976, publica das pela primeira vez (em italiano; na coletânea Mivro fisica do poder (1977), são, em cenos sentidos, mais re compensadoras. Foucaull estabelece uma distinção en tre várias teorias do poder. Há a leoria " c n m ô m i c a " , encontrável tanlo no liberalismo como no marxismo 168
Ela vê o poder como uma coisa que se pode possuir òu alienar, como uma mercadoria. Aqui. o pressuposto bá b á s ico ic o é q u e o p o d e r s o c ial ia l a c o m p a n h a o m o d e to de uma transação legal que envolve troca contratual (ver são liberal ou “jurídica*’) ou, alternativamente, que o po p o d e r é u m a f u n ç ã o d a d o m i n a ç ã o d e c i a s s e , b a s e a d a no controle de fatores econômicos (versão marxista). Há ainda uma teoria "nào-cvonômU "nào-cvonômU a \ Afirma que o po p o d e r n ã o é , b a s i c a m e n t e , o a n á lo logg o d a r iq iquu e z a , atuando em prol da reprodução de relações econômi cas. Será. antes, "acima de tudo uma relação de forTal era a concepção de Hegel, Freud e Wilhelm Reich. Já mostramos por que motivo Foucault aponta defeitos nessa teoria do poder como repressão. Por fim. fim. uma terceira p osição encara o po der não em em termos econômicos ou repressivos, mas comtf guerra. " O p o d e r '\ ' \ afirma Foucault, invertendo o famoso dito de Clausewitz, "ê guerra, uma guerra prolongada por outr
um perpétuo rehu ionamcttto de força".'^^ Por conse> guinte, a repressão é, afinal de contas, real — mas ape* nass como um efeito subordinado do poder. Aparente na mente, mente, então, então, o poder t anto " pro du z” como co mo “ repri repri me” — mas mas “ prod uz” antes de rep repri rimir mir,, sobretudo sobretudo po p o r q u e a q u ilo il o q u e e le r e p r im e — o s in indd iv ivíd íduu o s — j á são, são, em larg largaa medida, “ pro du tos” seus seus.. As conferências de M ivr iv r o jls jl s iva iv a d o p o d e r foram pr p r o n u n c i a d a s n a Itá It á lia li a , no c o m e ç o d e 1976. 1976. U m a n o mais tarde, entrevistado por Lucette Finas para La L a Quinzame Littérair(\ por ocasião da publicação do pr p r im e iro ir o v o lu lum m e d e s u a His H istó tórr ia d a s e x u a lid li d a d e ^ Fou caull dizia o seguinte: "C reio q ue o poder nâo se form a po p o r m e io d e v o n t a d e s (in (i n d i v idu id u a is o u n d e t i v a s ) . tw m é gerado por interesses. O pítder se forma e atua por mei
(nenhuma vontade, nenhuma intenção« nenhum intc resse jamais nos «Oudará a compreender o poder). To davia, (b) absolutamente não se segue a (a). A admis são ds que o poder pode realmente estar en toda parte não nos nos obriga nem um pou co a nos livrarmos de in in tenções e interesses enquanto o estudamos. Um mau exemplo da fobia estruturalista pelo sujeito foi fundido com jma promissora perspectiva dc análise do poder social. Par Para fazermos jus tiça a Fou cault. cabe acresce ntar que (Ls vezes (mas, m esmo assim, só em se js c om entá rios sobre essa espécie de análise, não em seus estudos históricos) ele consegue dar algum sentido verdadeira mente empírico a lodo esse papo anti-sujeito. Des cendo a situações específicas e bcm documsntadas. clc afirma que em tais casos não são aplicáveis interpreta ções em fermos de significação, interesse e intenção subjeiivos. Num texto de 1977, incluído no livro Powerknowledge (A confissão da carne), ele cita como exemplo de tal situação o surgimento na F-ança, entre 1825 c 1830, dc estratégias para fixar em seus locais de trabalho os trabalhadores das primeiras indústrias pe sadas fnuicesas. Em Mulhouse e no Norte, os traba lhadores eram pressionados a se casaren: construí ram-se ciíés onvrières; críaram-se planos de crédito pa p a r a g a r a n t i r o p a g a m e n t o a n t e c i p a d o de a l u g u é is; is ; fundou-se um sistema de pagamento em gêneros em mercearias e tavernas; cm suma, tudo foi tentado no sentido de manter o trabdhador iiuuia lotinu dccciitc de trabalho c de vida. Tais estnitégias foram conside ravelmente reforçadas por iniciativas que. em sua ori 171
gem.cr gem.cram am de d e ins inspi pirr açã açã o imei imeirr amemedi ameme dive verr sa. sa. c o m o m e didas filani filanirópicas rópicas destinadas a aju d are m elhorar moral moral mente as classes operárias ou os atos governamentais que am pliavam pliavam a rede de de ensino. Assim, Assim, a busca de ob je j e t i v o s d i s t i n t o s a m p lio li o u o “ e n q u a d r a m e n t o ’* d o s t r a ba b a l h a d o r e s . O u t r o e x e m p lo lo:: d e s d e o n a s c im e n to d a p ri ri são moderna, os magistrados muitas vezes têm sido obrigados a abrir espaço à opinião psiquiátrica, pois isso se tornou inevitável com a mudança nos pressu po p o s to s “ huma hu mano nos** s** d o m o d e r n o reg re g im e p u n itiv it ivoo . M ais uma vez, um quadro complexo de dominação teria sur gido sem que nos fosse possível lo::allzar um grupo dellnido de atores que o desejasse, de modo claro e in tencional. 0 argum ento de Foucau ll é que, em lais lais caso s, o historiador enfrenta "ncvcssidadi^s vstríiíêgiias que uão siu) vxutíimcnte interesses"', ao fim, temos estraté gias gi as globai globaiss com plexas, mas “ coeren tes e racio na is” , po p o rém ré m j á n â o é p o s s í v e l id idee n tif ti f i c a r q u e m a s c o n c e b e u . Nã N ã o o b s t a n t e , n ã o é fáci fá cill v c r p o r q u e d e v e r í a m o s d e s crever assim a situação. 0 que parece claro é que estão em jogo múltiplos interesses e intenções convergentes (bem como ocasionalmente divergentes). Não se segue, po p o rém ré m , q u e u m a a n á lis li s e em ter te r m o s d e in inte tenn ç ã o e in in teresse seja impossível. Pelo contrário: para entender o que está ou estava acontecendo, temos é que tentar compreender o que cada ator ou grupo de atores ten cionava ao fazer isso ou aquilo; precisamos interpretar assim os planos dos empresários, as campanhas dos fi lantropos. as metas dos magistrados e assim por diante. A ação movida por interesses se faz sentir o tempo to 172
do, mesm o que com tlnalídades tlnalídades con trárias c cfcítos ines ines pe p e r a d o s . O q u e c o m c e r t e z a n ã o e x ist is t e é u m G r a a d e Sujeito — a Burguesia, agindo, como um novo Weltgeist hegeliano, hegeliano, pelas costas de ho m ens reais, reais, engajados engajado s em coisas diferentes. Entretanto nenhun cientista so cial de orientação em pírica pírica jam ais saiu saiu em bu sca de en tidade tão fantástica. Uma.análise de classe tão gros seira, de tipo monolítico, sempre foi de pouquíssima utilidade na ciência social, em contraposição ã ideolo gia política. Os muitos sujeitos diferentes, individuais e “ co letivos ", bastam para exp licar tais tais processos sociais sociais complexos. Por conseguinte, os numerosos exemplos empíricos da complexa ação social que se desdobra no tempo (freqüentemente com muitos efeiios colaterais e resultados indcsejados) absolutamente não Jusiifícam nenhuma rejeição completa e o priori do sujeito. Felizmente, num texto posterior, o já citado O su je j e i t o e o p o d e r , a tardia descoberta de que o poder e exercido sobre sujeitos livres parece desmentir afirma tivas temerárias como "os indivídiu)s são os veículos do p< p<>der, não n ão seu po p o n to de ap aplicaç licação ão (...) o indivíduo indiv íduo é uni efe ito do pod poder".^*“ er".^*“^ 0 verdadeiro interesse de ;\//crofisica do poder reside em outra direçào: em sua ten tativa de esboçar uma macro-história do poder. Essas conferências retomam, em nível mais geral, as idéias de Viciar e punir sobre a evolução dos sistemas dc poder. Nu N u m a s o c ied ie d a d e “ f e u d a l " , d iz F o u c a u lt, lt , o p o d e r era principalmente principalmente so berania e eslav eslav a restrito restrito a “ me canismos gerais" dc dominação; o pocer tinha então "fítuco controle dos detalhes". Mas a idade clássica 173
inventou novos mecanismos de poder» dotudub dc “ técnicas pro cessuais altam ente espec íficas’’, bem como de novos instrumentos e aparelhos. Um novo tipo de poder — a dominação disciplinar — tornou-se "um a d as grandes invenções da soeiedade h urg ue sa'\ k diferença do poder soberano fortuito, que era exer cido sobretudo "sobre a terra c seus produtos", o po der disciplinar concentrava-se em "eorpos humanos e suos operações". Assim, em vez dc pagar tributos des contínuos, o homem moderno era alvo de constante vigi lância. Nascia a sociedade carcerária. E, em vista dessa nova conllguraçâo de poder, desse moderno pa drão “ crático” , Foucault nos exo rta a realizar "unm análise ascendente do potier", partindo "d e seus /nccanismos uijtnitcsimais" na culiura multiforme das sociedades modernas. Mapear o poder nâo a partir de scu centro “ sup erior” (“ análise descen den te“ ), mas sim de seu solo humilde e de sua periferia — tal era o program a de Foucaull nos anos 70. Implicava um senso de poder em suas "formas mais 'regionais' c locais" descendo às situações minúsculas cm suas extremida des. àqueles ponios em que o poder se torna "capi lar".'^' O poder moderno não é só onipresente; é também anônimo e globaíizante; transforma a nós todos, pode rosos e hum ildes, go verna ntes e gove rnados, em den tes de sua maquinaria. No prefácio que escreveu para a edição do Panopticon, de Bentham, intitulado “ O olho do poder” (1977), Foucault se expressa claramente: a característica das sociedades instaladas no século XIX é 0 poder como "uma máquina na qual todos estão 174
presos, aqueles que [oJ exercem tanto qitanlo aqueles sobre quem é exercido " O problem a das epistem es de Foucaull. vale lembrar, é que pareciam monólítos. Será o p ode r foucaldiano, “ estrutu ra total de açào'*, também um monólito? Um bravo foucaldiano marxizanle. Colin Gordon, bate pé: não, não é. Ele está ciente de que os leitores dc Foucaull ficam muitas ve zes com a impressão de "um sistema hiper-realista paranòide, onde as estratégias-tecnohgias-programas de poder se fun d em num regim e monolítico de sujeição social". Contudo, tudo isso é um terrível mal-entendi do, pois "Foucault distingue sua caravterizução de nossas sociedades. ct>mo disciplinares, da fantasia de uma sttciedade disciplinada e povoada por sujeitos dó ceis, obedientes e noiirtaliuulos". Oordon esforça-se por im pedir que a afirm ação de Foucaull de uma (mi presença do poder seja erroneamente interpretada como se equivalesse a uma onipotência dos modernos aparelhos de dominação.“’ Há, com efeito, algumas ressalvas, nesse sentido, nos próprios textos de Foucault. Mas eles também abundam cm frases holísticas, conforme várias de nos sas citações o demonstraram. Como pode o leitor fugir à impressão de um onívoro monólito de poder se, para cada asserção tranqüilizadora. que admite que o poder não abarca tudo, ele tropeça com dezenas de expres sões totalistas com o “ sociedade disciplinadora” . “ ge neralização discíplinad ora‘% “ táticas gerais de sujei ção“, "sistema carcerário generalizado“, "cínitinuum carcerário" , "tess itura carccrária da sociedad e", “ so ciedade de vigilância*’ e assim por diante? Como rcjei175
lar de pruniu a idéia dc uma dominação onipotente se nos é dilo que nossas escolas, hospitais e fábricas sáo, essencialmente, espelhos da prisão, que nossas vidas em toda parie são repressivamente “ norm alizadas” , do berço ao lú m ulo ? Afinal de conlas, se Foucault náo queria dizer isso, por que diabos o dizia a lodo instan te? Como podia um escritor lão articulado, como ele indubitavelmente era, scr lão desíyeilado ou lão des cuidado a ponto de induzir seus leitores a erro num ponto tão crucial? Mesm o que adm itam os a possib ili dade de extrair uma análise dessa arrebatada retórica de denúncia, devemos também reconhecer que, en quanto a aníUise permaneceu irrealizada, a retórica, es sa. nunca falhou. Pode-se, pois, d izer que um a da s pecu liaridades da anatomia do poder feita por Foucault é seu pancratismo', sua tendência a soar como rcdução sistemática dc iodos os processos sociais a padrões de dominação, cm geral não-especifícados. Ora, de um ponto de vista ana lítico, o pancratismo representa uma considerável res ponsabilid ade. Com efeito, dizer que o poder permeia toda a sociedade, ou mesmo que alguma forma de po der se difunde por todas as importantes relações sociais (duas proposições plausíveis), não significa dizer que tudo na sociedade, ou mesmo tudo que ela tem de sig nificativo. traga a marca do poder como traço defini dor. Na filosofia do direito, isto foi percebido por al guns críticos de Kelsen. Enquanto a posição tradicional na teoria do direilo sustentava que a coerção é o husírumcni
conteúdo do direilo fosse a rcgulamcniação da força. Como ele adverte (Reine Rechtslehre, V, § I), em ler mos rigorosos nâo deveríamos jamais dizer que quem comete um delito “ viola a lei” — pelo contrário, é gra ças aos atos ílíticos que a lei cumpre sua tarefa essen cialmente coercitiva, qual seja, reagir a ações ilegais na forma de uma sanção efetiva. O problema, no entender dc Alfonso Ruiz-Miguel. é que, para se identificar lodo o conteúdo básico do di reito com a força regulam entad a, ou a coerção, tem-se de em pregar um conceito dem asiadam ente amplo de pod er. Ora, cm princípio, praticamente toda relação social presta-se a ser vista em term os de poder. Por exem plo , podemos interpretar a exigência legal de que os produ tos alimentícios tragam no rótulo a data-limitc para sua Utilização segura como prova do poder cios consumido res sobre os produtores, em vez de considerá-la como uma norma governamental imparcial destinada a eviiar doenças; da mesma forma, pod
lard: "quomí on parle tant du p ou vo ir.v’esi q u 'il n'esi plu s nulle p a ri” . Poder-se-ia inverter a situação: quanti» mais se vê o poder em toda parte, fucnos se ê cap az de fala r dele. Curiosa, mas compreensivelmente, a filosofia polí tica de FoucauU refletia o fato de de evitar todo o foco nu açào humana, como corolário da maciça rejeição estruturalista do sujeito. Como notou Peter Dews, Foucault pretende "dissolver o cio filosófico — her dado do idealismo alctnáo pela íradtçào marxista — entre a consciência, a auto-reflexão c a liberdade, c nega r qtw su bsista qua lquer potcncial politico prog res sista no ideal do í7 autônonu)”. Em lugar do elo sujeito/liberdade. Foucault propõe "uma relação direto c iticqtíivoca entre a subjctivação c a submissão" De qualquer modo, o próprio FoucauU disse que "a consciência como base de subjetividade ê utna prerro gativa da hurgiH‘sia'\^^° Em sua opinião, a política da luta de classes pode e deve estar comprometida com uma "dessubjetivização" da vontade de pod er.” ’ Ao abismo entre as idéias de FoucauU e o conceito de liberdade no idealismo alemão, poderíamos acres> centar que tampouco ele estava próximo das ideias “ocidentais” (em contraposição às alemãs) de liberdaiic.Grosso modo, três conceitos principais de liberdade preponderaram historicam ente no m oderno pensa mento político: a idéia alemã de liberdade (para usar mos o rótulo de Leo nard Krieger), ba sead a em reflexão e autodcscnvolvimentoi a idéia lockiana de liber dade como independência e segurança, isto é, liber178
üadc da opressão c de interferência arbitrária; e a ideia rousscauniana de liberdade como autonomia ou autodedeterminação. Para os alemães (sobretudo para Fichte e Hegel), liberdade significava predominantemsnte liberdade inicrhr, para Locke seu significado supremo era liberdades civis: e para Rousseau signifi cava primordialmente Uberdade política. Ora. enquanto o desdém de Foucault pelos inte resses, em sua análise do poder, fazia com que lhe fosse de pouca serventia o conceito de liberdade como independência pessoal, o fato de ele combinar subjeti vidade e sujeição, além de minar a idéia de renexão como autodesenvolvimento, descartava a idéia de li berdade com o autonom ia individual. Em conseqüên cia. Fnucault não tinha espaço para o reconheci mento tradicional das diferenças básicas entre regimes liberais e entes políticos despóticos — um reconheci mento partilhad o, com o liberalismo, pela co rrente p rin cipal do pensamento radical, a começar pelo marxismo clássico. Na verdade, Foucaull dava tão pouca impor tância ao hiato en tre as so ciedade s liv re sc as não-livres que. em 1976, teve a coragem de dizer a K. S. Karol, numa entrevista sobre o sistema penal soviético, que os métodos de vigilância empregados na URSS eram apenas uma versão ampliada das técnicas disciplinares criadas originariamente pela burguesia ocidental no sé culo XIX. "Da mesma forma que os soviéticos adotaram os princípios da administração cientifica (...) tam bém adotaram nossax técnicas diM iplina^es, acrescen tando mais atna arma, a disciplina partidária, a
cídidamcnte despropositado cm igualar o Gulag ao laylorismo como "técnicos facii/ttente transplantá veis'' (ibidem) e. como lais, legadas pelo capitalismo à ideocracia comunista. O que a equação deixava ao lar go, em termos de análise histórica, e tudo o que real mente tem importância — todo o meio ideológico e ins titucional que, no Ocidente liberal, nunca permitiu a instalação e a manutenção de guiags, náo importa quão ocidental (na verdade, inglesa) possa íer sido. na ori gem, a idéia dc campos de concentração em pequena escala. Acresce que esse tipo de disparate histórico é, politicam ente, tão perig oso quanto tolo. E nâo se diga que FoucauU estivesse, de algum modo, rejeitando cla ramente o sistema soviético, juntamente com suas téc nicas disciplinares, supostamente emprestadas. Conde nar o Gulag absolutamente não basta: deve-se fazê-lo sem interpretar falsamente sua natureza e suas origens. E justamente o genealogista do poder moderno devia ser a última pessoa a errar nesse sentido. A verdade é que Foucault não se importava muito com a política da liberdade porq ue julgava que a políti ca, como tal, já não tinha importância. A política, em seu entender, era filha da Revolução. Falando a Lc N o u vel Ohscrvatetir em 1977, ele insinuou que toda re volução tende a degenerar em stalinismo, pois tende a ser confiscada pelo Estado revolucionário. Por conse guinte, as revoluções tornaram-se altamente indesejá veis. Segue-se que estamos hoje vivendo " a Jttn da p o lítica". Pois sc c vcidade que a verdadeira política é uma atividade possibilitada pela revolução, e a revolu ção não é mais válida, en tão a poh'tica deve ac ab ar.” ^ 180
A luta de classes — que Foucault nâo tinha ncnhuma iniençâo Ue abandonar — tem de aprender a contornar o peso mono da política. Dois meses mais tarde, ele aplaudia a publicação de Les m aîtres penseurs, de André Glucksmann. Gau chiste ferrenho entre os nouveaux philosophes, Glucksmann acusava — com eloqüência, embora nào convincentemente — a filosofia moderna, desde Hegel, de cumplicidade intelectual na violência de uma histó ria dominada pelo princípio do Estado revolucioná rio.” ^ Na mesm a linha, n' nào-p(^litica" de Foucaull era ura ativismo radical pós-revolucionário que aprovava as "lutas especificas c(?ntra o poder particularizado" de "mulheres, prisioneiros, soldados (onscritos, pa cientes de hospital e homossexuais”. Ao mesmo tem po. contudo, ele não cogitava de ser, ou se tornar, um reformista: linha a reforma na conta de uma idéia "es^ lúpida e hipikrita".''’^ Por que seria? O mais próximo que cheguei de uma resposta foi quando descobri como Foucault gostaria que suas obras funcionassem: " G o s taria de que m eus livros fo sse m (...) coquetéis \h tlo íDv. ou campos minados; gostaria que eles se autodes' truissem ap ós serem usados, com o fo g o s de artifício".'^*' Dada a brilhante contribuição dc Foucault para a niosofia em estilo pirotécnico, essa confissão parece um excelente exemplo de autoconhecimento. O pro b le m , porém , é que os coquetéis Mololov im pressos poccm prejudicar nossa m aneira de pensar sobre poder e política, e o menor dano não será substituir uma se rena anãiise racional por ânimos exaJtados. Não posso deixar dc concordar com Peler Dews: o poder foucali8I
diano, "nào tendo nada dc determinado a que se pu d esse opor, perde todo o vo níetulo i^xpUifiatôrio*’ A elisâo dogm ática do sujeito priva a coerção de seu obje to, deixando a dominação desmateríaiizada. Como até mesmo um admirador. Edward Said, deplorou, nâo há em Foucault uma só palavra sobre como e por que o poder é conquistado, em pregado ou c o n s e r v a d o .'A “cratologia" de Foucault é tão insatisfatória quanto sua história da punição e da disciplina.
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IX. P O L Í T I C A S DO C O R P O , T É C N I C A S OA A L M A : ■4 H ISTÓ RIA DA SE X U A L ID A D E SEG VND O FO UCA ULT
Na obra histórica anterior de Foucault, o eu era visto principalmente como instrumento de poder; era a subjetividade normalizada. Na História da sexualidade, o eu continua pre sa do p od er, mas agora o relato de sua produção pelo poder é feito, po r assim dizer. Co nseqü entem ente, o primeiro plano n ão é mais ocupado por estruturas ou estratégias dc poder, c sim por “ tec nologias do e u “ , visualizadas em seu próprio espaço inierior. Lembremo-nos de que, em sua própria defini ção do projeto. Foucault na verdade estava menos inte ressado no poder per sc do que no papel do poder no surgimento do sujvito moderno. A história sexual é, acima de tudo, uma forma de permitir que a genealogia do sujeito retorne ao centro do palco. "Quando eu esta\^a estudando os asilos, as prisões etv." — escreveu ele em 1981 — "talvez tenha insistido dcmasiadanu'nte nas técnicas de dominaçãtt. (...) Eu gostaria, nos anos vindouros, de estudar as relações de poder partindit das técnicas do A meta confessa de Histó ria da se.xualidade c des tacar o discurso do sexo em relação hs “ técnicas poli morfas do po de r” . Não o sexo com o prática, mas o sexo como tema dc uma prática discursiva multiforme 183
— cssc c o tem a daquele que viria a ser o ultim o pro jeto hisiórico-analítjco de Foucaull. Tal com o Ifisiôria (ia loucura e A s palavras e a s ro h a s, lambem A twíladc th saber começa sua periodização na Renascen ça. Mais uma vez. todavia, a Renascença serve apenas para dar realce à prim eira mutação im portante discer nida por Foucaull: a mudança nas atitudes ocidentais cm relação ao sexo. Desde meados do século XVI. a cultura ocidental com eçou a desenvolver novas e po dero sas técnicas p ara interiorizar as normas sociais refere n tes à moral e. em particular, ao comporiamento sexual. No enianlo esses fatos pós-Renascença foram , por sua vez. um reforço e uma iniensificação do instituto me dieval da conjissão como principal lilual de produção da vcidadc. A codificação do :s da pcnitcncia no Concílio de Latrão de 1215; a substituição do ordálio pelo interrogatório: a criação dos tribunais da Inqui sição — tudo isso leve significado nessa evolução, re fletida. ademais, na carreira da palavra confissão, ter mo que. no passado, foi marca do prestígio atribuído a uma pessoa por outra, mas que acabou denotando o reconhecimento, por uma pessoa, dc suas próprias ações e pensamentos. Com o Concílio de Trento (1545-1563), adotaram-se novos procedimentos para a purificação do clero. Técnicas minuciosas de auioexame. confissão e direção da consciência começaram a ser usadas cm seminários e mosleiros. Enlremenies, o laicato eríi convocado a se confessar com mais fre qüência que antes. Aié a Contra-Reforma tridcniina. u Igreja supervisionava a sexualidade apenas a distância, pois o requisito dc confissões anuais positivamente não se 184
prestava a uma in speção atenta du cum poiiu m enio .se> xual. Falando-se em termos gerais, portanto, a muiaçào ocorreu em 1550: " O htdiviãuo, Juratiív muito tempo, foi autenticado pela rcferêmua dos outros c pela m anifestação de seu vim ido com outrem (familia, lealdade, proteção); posteriormente, passou a ser atttenticado pelo discurso de verdade que era capaz de ter sobre si tnesmo."^*^ Na esfera social, a sexualidade toma forma como uma figura histórica quando o sexo é apartado do reino da aliança prescriliva. É. enfatica mente, uma idéia dc sexo ligado ao surgimento do indi> víduo moderno. 0 hom em ocidental foi assim conv ertido, no início dos tempos modernos, num praticante da arte de esmiu çar ü pecado como intenção, assim como dc atentar a sentimentos de conflito ligados à carne. Com o tempo, a conduta confessional tornou-se parte integrante da vida moderna. “A confissão difundiu a/nplamente seus efeitos: na jus tiça , na m edicina, na pedagogia, nas re lações fam iliares, nas relações amon}sas, na esfera mais cotidiana e rtos ritos mais solenes; confessam-se os crimes, os pecados, os pensamentos e os desejos, confessam-se passados e sttnhos, confessa-se a infân cia: confessam^se as próprias doenças e misérias (...) fazem -se a si próprio, no prazer e na dor, cottfissôes impossíveis de confiar a outrem, com o que se produ zem livros (...) O hom em , no Ocidente, to rnou-se utn atàm ai cotifessante. ’*' Acresce que, desde o século XVlII, demógrafos e administradores começaram a estudar a população, a prostituição e a dissem inação das doenças. "O sexo 185
não se jitiga apenas: administra-sv."**' Ocsde a au ror a d a era industrial, industrial, a civilização civilização coloni colonizou zou nossa b io logia: criou uma "anatomopo "anatomopo litU litU a " — uma política do corpo — em coiyunçào com uma " b h p o l í t i c a " — o pla p lann e j a m e n t o d a p o p u laç la ç ã o . C iên iê n c ias ia s h u m a n a s c o m o a ps p s ico ic o lo logg ia, ia , a m e d icin ic inaa e a d e m o g raf ra f ia c a p t u r a r a m o corpo “confessado” como objeto de preocupação so cial e manipulação governamenial. Mais uma vez celebrou-se uma aliança crucial entre o poder e o sa be b e r . Mas a questão importante é que a sexualidade tomou-se o principal tema de uma onda generalizada de verdade a respeito do indivíduo, que mostrou scr um potencial quase ilimitado para as estratégias de po der social. Uma vez afastado das garras do pecado, o “ animal animal con fessante” continuou continuou a desn ud ar a alma: alma: el ele e o Ho H o n to d o c U is da sociedade disciplinar são, em úl tima análise, gêmeos. "A obrigação da vnnjlssão (...) já j á e s t á tã o p r o f u n d a m e n t e inc in c o rpti rp tira radd a a n ó s q u e n ã o a percebemos mais como tun efeito de utn poder quv nos coage: parece-nos, ao contrário, que a verdade, na região mais secreta de /u>s próprios, nã
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COS concrctoH sobre o s quatiu principais objetos (ou vi> limas) iio controle sócio-sexual: as mu.heres (especialnicnie na figura, táo característica do apogeu da moraliilade burguesa, da histérica); as crianças (sobretudo com relação à masturbação); o adult 3 pervertido; e ■‘popu lações e ra ça s” . Jà A v o n t a i h d e s a b e r , , c m coniraste. pretende ser basicamente uma discussão meJodt)l6gica. O intuito principal consiste em verificar se a miséria sexual da modernidade se deve a proibições di> Uidas pela exploração econômica — uma situação do lipo “ Trab alhe, não faça am or” . Tal era, com efeito, efeito, a visã vi sãoo de Reich e M arcuse; e convém lembrar lem brar que Reich Reich chegou a ela através da discussão da idéia de Freud dc repressão dos instintos como a base de civilização: pura pu ra R e ich ic h . lo lonn g e d e s u s t e n t a r t o d a s a s s o c i e d a d e s humunas, a repressão era tão-somente um estágio históri co, peculiar às sociedades autoritárias. A moderna cul tura ocidental era, em seu entender, esse tipo de sociedmle, onde a repressão necessariamente prevalece em nome da exploração capitalista. Foucault não concordava com essas idéias. Não negava a moderna miséria sexual, mas se recusava a explicá-la como resultado da repressão. Em vez disso, empenhou-se em identificar os ‘'mecanismos positi vos”. que, ao "produzirem" a sexualidade num dado modo cultural, geram infelicidade. Que c o controle do ptKier “ p r o d u t i v o ” , e n ã o d o rep re p ress re ssiv ivoo » q u e a l u a na sexualidade moderna, é atestado pelo faio de que (conloiine ele acentuou numa entrevista a Bernard-Henri I cvy) os poderes dominantes parecem já não temer o 187
Os críti críticos cos culturai culturaiss da “ rep ressã o" , famil familia iari riza za dos com Marcuse, responderiam, naturalmente, que isso isso acontece acontece porque vivemos num mundo de “ dessudessu bli b lim m a ç õ e s r e p r e s s iv a s “ , d e m o d o q u e o s c o m e n tá r io s de Fo ucaull uca ull sobre a rápida “ liber beração* ção*** do s costu m es sexuais no capitalismo avançado sâo inúleis como refu tação da teoria da repressão. F.m minha opinião, a es pé p é c ie d e Kuliurkriiik de Foucault tem, nesse aspecto, a vantagem do realismo descritivo, senão explanalório: ao contrário dos marcusianos. ele pclo menos faia sem rodeios. Ademais, conta agora com o apoio da mais recente pesquisa historiográfíca sobre o sexo burguês, mesmo nos tempos vitorianos. Afinal dc contas. Fou caull não negava o purilanismo vitoriano: apenas o jul gava uma “ digressão digressão e desv io” no plurissec plurissecular ular “pro cesso de colocação do sexo em dhcurso"}^^ Ora, su cede que Peter Gay, embora censure Foucault por seu pr p r o c e d i m e n t o “ a n e d ó tic ti c o * ’, “ q u a s e s e m n e n h u m e s torvo de fatos’*, descreve seu próprio livro recém pu p u b lic li c a d o , Edíicot Edíicotum um o f t he Senses (primeira parte de uma obra alentada, 77ít' Bo B o u r g e o is E x p e r ien ie n c e ) , como uma “ longa onga disc uss ão " con tra aqui aquillo que Foucault Foucault ch am a “ a hipóte hip ótese se repressiv rep ressiva*’.’ a*’.’*** E como indica o subtítulo do livro livro de G ay — “ From Victoria to to Freud** —, — , s u a t e s e é q u e , mesmo mt século XIX. o decoro e a repressão eram, em grande medida, mais um mito que a poderosa realidade que passam por ter sido. Para Foucault, o moderno controle da sexualidade na cultura burguesa era menos uma arma contra as classes inferiores do que uma aulo-idealização da bur guesia. Do mesmo modo que as lécnicas disciplinares m
que surgiram com o nascimento da prisão eram, na ori gem, um meio de controlar as classes irabalhadoras. o discurso sobre o sexo surgiu basicamente como uma tecnologia do eu, controlada pelo burguês que esculpia sua própria imagem. A burguesia formulou um código sexual para sua própria auto-afirmação. Transformou o casal monógamo e heterossexual no padrão dc morali dade e no pilar da sociedade. Todas as outras formas de sexo vieram vieram a ser con sideradas co ntrárias à na tureza e perigosas para a sociedade. No fim. todavia, até mesmo esse aspecto da cultura de classes revelouse um episódio na grande saga do sexo "mis cn 1 'iurs". O sexo herético também tomou seu lugar cm mais dc uma das "espirais de poder e de prazer" des crita critass por F oucault: oucault: pois pois o poder “ produtivo” é bas tante capaz de gerar também prazer, por mais inautên tico que seja. De qualquer modo. a forte posição culturalista de Foucault o impediu de contrapor qualquer coisa coisa parecida parecida com o “ sexo na tural” às figur figuras as do ero tismo moderno. Para ele, o discurso, mais que domar o sexo, “inventa-o". Do começo ao fim de A v o n t a d e d e saher. o sexo é antes social que natural; e no fecho dc seu volume introdutório» Foucaull fez questão de nos alertar contra a propensão a colocar o sexo do lado da realidade, e a sexualidade do lado das idéias como ilu sões. Não: o sexo como discurso é uma idéia que não é nem natureza nem, absolutamente, uma ilusão — e uma realidade histórica. Como ele disse, sucinta e pro vocadoramente, numa entrevista: "Temos tido sexuali dade desde o século XVUl e sexo desde o XIX. O que tinham<}S antes era sem dúvida a carne".^^^ 189
Na N a m e s m a e n l i c v i b t a (“ A c o n f iss is s ã o d a c a m c “ ) Foucault explicou o que queria dizer com discurso so br b r e s e x u a l id a d e . V imo im o s q u e , n o s e n tid ti d o e m p r e s t a do por FoucauU, FoucauU, “ discurso ” sempre sempre con ota poder. poder. Agora ele insiste num conceito correlato, "o disposi^ livo da sexualidade". O dispositivo “consiste em es /r / r a f é g i a s d c r c h t ç õ e s d e f o r ç a s q u e s u s t e n t a m tip ti p o s d e saher e por eles seu» sustentadas". Ao contrário das epistemes, os dispositivos são tão discursivos como náo-discursivos; e aào também “muito mais hetcrofiéneos".^*'^ Os dispositivos são coruuntos variegados, constituídos de discursos, instituições, leis, medidas adm ad m inistrativas, inistrativas, afirmaçõ es científicas, científicas, iniciati iniciativas vas filan filan trópicas etc. Como não possui espaços institucionais be b e m d e f in inii d o s , c o m o a p r isã is ã o , a s e x u a lid li d a d e é o c a m p o po p o r e x c e l ê n c i a p a r a a h e t e r o g e n e id a d e in t r ín s e c a d c lais dispositivos de poder/saber. A v t m t a d e d e s a h e r parece completar um interes sante afastamento daquilo que, a despeito de seus co nstan tes p rotestos, colocava Foucí Foucíiu iullt perto do estruturalismo. Se Vigiar e punir atenuou substancialmente o cesuralismo, a His H istó tórr ia d a s e x u a lid li d a d e simplesmente o deixa de lado. Em certo sentido, o tema do poder su pla p lann ta t o d a s a s c o n s i d e r a ç õ e s a r q u e o l ó g i c a s , e F o u cauU parece ter rompido com a teoria do corte. Ao contrário do relato em três épocas de His H istó tórr ia d a l o u cura (A Nave dos Loucos/A Grande Internação/A Era da Psiquiatria), de A s p a la v r a s e as c í d s a s (semelhança/representaçao/epistem es de 'antropologismo“ ) e de Vigiar e punir (tortura/reforma penal/encarceramento). A v o n t a d e d e s a b e r parece construir-se basicamente 190 190
sobre dois períodos: antes e depois da mise cn (.liscours do sexo. o tempo que antecedeu e o que sucedeu à era confessional. O corte existe, mas é único e náo é apre sentado com espalhafato. Além disso, os volumes seguintes da obra. longe de destacarem o corte ao tempo do início do purita nisme moderno e do moralismo da Contra-Reforma, levam a referência histórica muito mais atrás. De fato, em vez de abordar, como prometido, as sexualidades '‘marginais" da mulher, da criança e dos perver tidos (ou melhor, o discurso ocidental a respeito deles), os volumes 11 e III de História da sexualidade, publi cados em junho dc 1984, tomam um caminho inespera do: tratam das atitudes em relação ao sexo na Antigüi dade. tanto a pagá como a palcocristã. 0 brilhante capítulo final de A vontade de saher havia contrastado, na verdade, duas eras culturais: no passado distante, uma sociedade de sangue, definida por uma ética m arcial, o medo da fome e a punição como tortura; hoje em dia, uma sociedade de sexo. a cultura científica da biopolítica e da s disciplinas normalizantes. N o en tanto, já em 1981 Foucaull revelara um diferente padrão genealógico, retomando ã ascensão do cristianismo na Antigüidade tardia. Examinemos esse novo quadro. No início, A história da sexualidade buscava com preender com o surgiu, na m oderna cultura ocidental, uma experiência da sexualidade: o nascimento e o de senvolvimento de "sexo** e "sexualidade’' como obje tos culturais historicamente dados. Foucaull não dese java em preender nem uma história das idéias sobre o sexo 191
nem umu história üas mentaliüuüch {’*hi:tíoirv dvs tncnialiíés”. um jogo popular entre os historiadores france ses contemporâneos, originado por um dos hderes da escola dos Annales, Lucien Febvrei; desejava ater-se à análise histórica de uma experiência científica: a i ciência (/uc i>individuo tem de si mesmo como sujeito de uma sexualidade. Como vimos, o surgimento de íal experiência parecia-lhc um fenômeno do século XIX, que mais ou menos coincidia com a moderna episteme histórica, a psiquiatrização da loucura e a difusão da penitenciária — para citarm os seus irés grandes esfor ços historiográficos anteriores. N a introdução a O uso do s prazeres — o vol. II na nova estrutura da História da sexualidade — Foucaull declara que seu projeto originai visava correlacionar, dentro de uma dada culiura. “campos de saher, tipos de normatividade e Jormas de subjetividade" ou. an tes, os diferentes “jogos de verdade" que reinavam em cada uma dessas esferas. Além disso, ele diz que, en quanto havia anaIi.sado a formação dc saberes correla cionados com o poder e a subjetividade em estudos como História da loucura, assim como os sistemas de poder num livro com o Vigiar e punir, o exame das formas de ««/r>-reconhecimento dos “sujeitos sexuais** ainda estava por ser feito — daí a necessidade de uma história fou caldiana do “ homem do desejo “ .’"’* Mas por que exatamente sexo?, pergunta Fou caull. Por que são, com lanta freqüência, os prazeres sensuais e as atividades sexuais objeto dc tal preocupa ção moral, muito mais do que outnis experiências, nem 192
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íí ^ um pou co menos vitais, com o a alim entação? \Um a , j resposta vem à m ente: porque o sexo. muito maftíílQ ^5- y qae quase tudo. é também obieto de proibições fundamentais, cuja transgressão é tida como seriíssima. Para Foucaull. porém, essa resposta era puramente tautoló gica. Isso porque muitas vezes a preocupação moral com a sexualidade é mais foiie onde não existe qual que r obrigação ou proibição relativa ao sexo. Deixando de lado as proibições, ele preferiu fundamentar sua pesquisa da pré-histó ria do sujeito sexual no início do dcsenvolvim enio. no Ocidente, das “ técnicas de si ‘*ou (para falar com Plularco) da função “ etopoéiica” . " F u i levado", diz Foucaull. ao término de suas páginas inirodutórias, substituir uma história Jos sistemas üe moral, feita u partir das interdições, por uma história das pritblematÍT.ações éíieas, feitas a imrtir das práti cos de si."''^ Daí o título, O uso dos prazeres — na verdade, um feliz empréstimo da terminologia hedonísiica da Grécia clássica: chresis aphrodision, o uso dos prazeres. Esco lhendo uma abordagem “ arqucogen ealógica” , Foucault discute, nos volumes II e III de História da sexualida de. documentos dc uma determinada natureza: antigos textos prescritivos, ou seja» textos que, não importa sua forma — diálogos, tratados, coleções de preceitos, ciulas —, procuravam, basicamente, propor regras de comportamento (sexual). Tais textos atuavam como “ operadores*’, possibilitando aos indivíduos qu estiona rem sua própria conduta, a fim de formarem sua perso nalidade — a própria substân cia da co nstrução do caráler da “ etopoética". 193
Foucaull começou questionando alguns conceitos convencionais sobre as diferenças entre a cultura pagã e a cristã. Onde se situa a principal clivagem entre a morai sexual do paganismo e a do cristianismo? Muitos responderiam que, enquanto na Antigüidade o sexo tinlia um significado positivo, o cristianismo associou-lhe o pecado e o mal; que, para os cristãos, os únicos parceiros sexuais legítim os eram o casal monogâmico (e, ainda assim, apenas quando voltado para a procria ção), ao passo que os antigos tinham uma visão decidi damente mais liberal e, com efeito, aceitavam os rela cionamentos homossexuais, ao menos entre homens. N a realidade, contudo, a antiga ética sexual no Ocidenle era muito menos permissiva e "dionisíaca". Na verdade, já havia, bem antes do advento do cristianis mo. atribuído valores negativos ao sexo, que dirá à li cença sexual. O mundo antigo exaltava o casal monogàmico como o modelo correio para o amor e a pro criação e até louvava a castidade e a abstinência. Ade mais, já existia um vínculo entre a abstinência sexual e 0 acesso à Verdade, bastante visíveis nos ensinamentos de Sócrates, tais como relatados por Platáo. Foucaull ilustra essa questão com grande habilida de. Cita uma passagem curiosa dc ItUnHÍtição à vUki cicvoía. de Sáo Francisco de Sales (1609): "Contarvos-ci urn exem plo da hon estidade do elefante . Um ele fa n te nunca troca de fê m ea . Am a-a com ternura. Com ela não tem comércio carnal salvo a intervalos de três anos. E is.so apenas por cinco dias, e tão secretamente que ja m a is alguém o viu nesse ato. E ntretanto. n<> sexto dia ele reaparece e a primeira coisa que faz é 194
tíirifiir-se a um rio c iavar o corpo, não querendo retor nar u seu bando antes de purificar-se. Não sào essas bnts e honestas qtuüidades de um animal de tnolde a ensinar a pessoas casadas nào se entregarem detmisHuiamente a prazeres se/isuais e carnais?” Nenhum texto sobre sexo parece mais “ cristão” , é o que normalmente se pensa. No entanto o texto típico dc Sào Francisco, tão transparentemente cristào cm sua preocupação com a castidade, nào passa de uma variação moderna de um tema clássico. Aldrovandi (cue já encon tram os em >45 palavras e as coisas) e ou tros o legaram à ideologia da Contra-Reforma. Mas foi na verdade Plínio, o Velho, o naturalista que morreu na erupção do Vcsúvio em 79 d.C., o primeiro a ficar im pressionado com esses pudicos paquiderm es (cf. sua História natural, VIII, 5. 13). Conquanto nào reconiendasse a purexa do s còruuges com o regra geral, como faria Sào Francisco de Sales, Plínio manifestou clara aprovação de um modelo de comportamento sexual já muito louvado por algumas seitas fílosóficas da época, como os estóicos tardios. Inúmeros ottros textos de monstram tamb ém que as idéias sobre sexo do s gregos e romanos letrados estavam longe de ser lascivas. Em mais de um aspecto, quase prefiguravam a decência e o rigorismo cristão. A grande diferença, de acordo com Foucault, é qie as exortações à austeridade dos antigos não se achavam organizadas num código moral unificado im posto a to dos. Antes eram tidas com o uma espécie de moral de luxo, em face de práticas correntes. Acresce que cssas exortações à austeridade e as principais in195
tcrdivoes legais c rcligiusas üa época não coinci diam, como atesta o falo de não ser a literalura rigorísta dirigida àquelas que eram vítimas das mais duras restrições: as mulheres. O molivo disso é que existem pelo menos irés níveis na histó ria da moraJ: o nível dos verdadeiros cosíumcsi o nível dos vódig(ts morais de uma dada sociedade; e finalmente a maneira como os indivíduos são instados a se constituírem em sujeitos de conduta moral — o nível ascéfico. Ora, entre os an tigos o pensamento moral consciente parece ter-se li gado muito niais ao ascetismo, nesse sentido, do que à codificação moral. Em suma: sempre que o mundo an tigo teorizava sobre sexo, não era absolutamente com ánimo complacentemente permissivo; e tal teorização era dirigidâ. por definição, nao a todos (como as regras de uma comunidade cristã ou muçulmana), mas apenas aos membros naturais da classe dominante: os cidadãos livres do sexo masculino.'*' O uso dos prazeres examina a maneira como a fi losofia e o pensamento médico dos gregos abordaram o problem a da ética sexual em très diferentes áreas da experiência: a dietética (o regime do corpo), a econo mia (a administração do oikos ou lar) e a corte amoro sa. O objeto da ética sexual era ía aphnfdisia, “as obras de Afrodite” (erga Aphnníites), em latim venerea, em francês (aproximadamente) voluptés. Foucault dispôs-se a d elinear a forma geral tom ada pela retlexão moral a respeito de lais prazeres em vários textos — sobretudo de Xenofonte. Platão e Aristóteles —. for mando um campo específico de “ prob lematização” : uma episteme erótica, por assim dizer. 196
Para os autores gregos, a imoralidade no sexo es lava no excesso e na passividade, não na coisa em si. O sexo — em excesso — era visto como perigo potencial, e não como um mal intrínseco. Aulo Gélio atribuiu a Hipocrates o dito de que os orgasmos são pequenos acessos de epilepsia; mas Demócrito, freqüentemente apontado como um dos mestres de Hipocrates, não pensava de m aneira diferente. De qualquer form a, o coito era considerado como uma espécie de mecânica violenta. A frícção do s ó rgãos gen itais. Juntam ente com a movimentação de todo o corpo, levava a um calor e a uma agitação que, como resultado, tomavam tão fluido 0 ’‘humor espermático" que ele acabava espumando {(iphrei/t: espumar), “como todos os fluidos sacudi dos", segundo as próprias palavras de Hipocrates. É claro que a raiz comum de aphrcm e de aphroilisia nào passava despercebida; não havia a própria Afrodite nascido, por artes divinas, da espuma das ondas? O problema da ética sexual resumia-se, pois, num exercício de controle: mérito, no comportamento se xual. eqüivalia a autodomínio. A sabedoria eslava em manter o desejo tão próximo quanto possível da neces sidade física. Não admira que, entre todas as seitas fi losóficas. fossem os cínicos os mais destacados corifeus dessa perspectiva naturista. Um belo dia, Diógencs desafiou a moralidade pública masturbando-se ao ar livre. Dion de Pm sa registrou para nós a sua Jus tificativa: tal gesto, dizia o cínico, rindo, era um re médio natural, um alívio simples e honesto, mediante o qual 0 homem não se fíizia refém da tirania do desejo sem peias. Feito em tempo, tal gesto poderia até ter 197
evitado a guerra de Tró ia.,. Q ue pena Pãris nao te r sido um cínico. Acima dc tudo, o sexo era considerado como uma prova básica para a enkrateia: litcraJmente, o domínio de si mesmo. Na República (IV. 430), Platão definiu a temperança como uma e.spécie de “ordem e controle" impostos sobre os prazeres e desejos. A Ética a Nicôniaco, dc Aristóteles, sublinhava a natureza agónica da enkrateia, uma luta moral diferente da prudência e da sophrosyne, a plácida virtude pela qual se escolhem os atos de acordo com a fria razão. Os homens cncráticos triunfam, primeiro e acima dc tudo, sobre si próprios; sabem como dominar suas paixões a fim de seguir um meio-termo entre a devassidão e a insensibilidade. Os homens livres nao devem ser escravos de seu próprio desejo. A liberdade começa em casa, com a alma: o homem encrático é rei de si m zsm o(basilikos h eau taul E zenkrateia, naturalmente, implicava «aA^.v/.v: pois. sc a virtude é uma luta. dificilmente pode ser alcançada sem exercícios apropriados. Assim, a posição do senhor da oikos. o cidadão li vre da pólis. refletia-se no ideal m;)ral do domínio das paixões. Mas essa ética do guerreiro aplicada à psique era, com o vimos, em inentem ente um assun to de homens. Caracteristicamente. a terceira área sensível da ética sexual, ao lado da dietélica e da economia, ou se ja, a regulam entação da corte am orosa, envolvia menos homens e mulheres que o relacionamento de homens com outros homens. O amor na Grécia (embora não em Roma) significava basicamente a eüca da conquista de rapazes. Foucault tem m uito o que dize r a res p eito.” ^ 198
Começa por observar que, na Antigüidade, o homem que preferia rapazes a mulheres não via a si próprio como um pervertido. Pelo contrário, quando, no Banqucic, Platão distingue entre dois amores, o eros supe rior e “celestial” era dirigido apenas a rapazes jovens. 0 que importava, todavia, era o tipo de amor, e não seu objeto, se homem ou se mulher. Os autores gregos tratavam com o m aior desp rezo os efebos fáceis e ridicu larizavam os efeminados, um dos grandes alvos do riso da antiga comédia. Havia uma repugnância natural, não em relação ao homem que amava rapazes ou àquele que. na juventude, houvesse sido amíido por um ho mem mais velho, mas sim em relação a confiar qual quer função de preeminência social a uma pessoa que se tivesse deixado scr apenas um objeto sexual — pois isso vinha de encontro à nobre lógica da cnkraicUi. Prova disso era a nítida distinção entre o papel do crasfa — o homem mais velho apaixonado — e o do irômeno — o seu amado. Esperava-se que os eròmenos não cedessem com excessiva facilidade aos agra dos, quanio mais ao impulso sexual, dc seus amantes, uma vez que. se o fizessem, imediatamente sc desquali ficavam como futuros cidadãos. O eros da pederastia era claramente assimétrico. Daí a preocupação, de monstrada na literatura, com a complexa psicologia envolvida pela honra dos rapazes — uma preocupação mais tarde transferida, no Ocidente cristão, à moça nú bil ou à jovem esposa, novos objetos co am or cortesão e das dissertações ético-eróticas. Esperava-se que as relações homossexuíüs se de senvolvessem, ou mesmo que se originassem, como 199
phUia — amizade viril, isema de aspectos camais. De qualquer forma, os gregos menosprezavam o homosse xualismo entre adultos. Enamorar-se dc rapazes que houvessem passado da adolescência não gozavu de le gitimidade moral; por conseguinte, o eros devia ser sa biam ente convertido numa viril pivlia. Ao mesmo tem po» eni entre um homem e um rapaz, e não entre ma rido e mulher, que se formava uma relação socialmente recíproca, fora das peias institucionais. Enquanto as esposas gregas não tinham qualquer autonomia moral reconhecida» os rapazes e os homens, que sc encontra vam nos ginásios esportivos ou na rua, eram pesvsoas da mesma categoria social. Conseqüentemente, as re gras que prevaleciam entre eles pertenciam antes a uma estetica existencial do que a um código moral coletivo. A erótica era isso: uma estilização (a palavra é de Fou cault) da conduta, deixando muito espaço para a ação livre. O nsff (tos prazeres termina com um longo e pon derado comentário a respeito de como Platão» no Banqaete e no Fedro, transformou uma erótica baseada na corte e na liberdade dos amantes masculinos numa erótica dependente de "uma asccse do sujeito e do acesso comum à verdade". Foucaull inseriu magnifi camente scu final platónico no quadro de scu Leitm otiv — a ética de eros. que se situava aiém de toda compla cência pessoal: "E ss a reflexão filosó fica a respeitt) dos rapazes comporta um paradoxo histórico. Os f>refí
tem po c tão severa m ente, con den ado, nrna lefiitimidade onde nos è grato reatnhecer a prova da liberdade (fue eles tinham nesse dom ínio. C ontudo, fo i a sen respeito, muito m ais do que a respeito da saúd e fcom a qual eles também se prcifcupava m), m uito mai^ do. que a «'ír pi’ito da n^ulher e do casam ento (por cuja boa ordem, nu en tan to, eles velavam}, q ue eles Jormularam a exi gência das m ais rigo n na s austeridade^, E verdade que — salvft e.xceção — eles não o condenaram nem proibi ram. Contudo, ê na reflexão sobre o amor pelos rapa zes que se vê a ftrm u la ç ã o do princípio de um a ‘absti nência indej'mida': o ideal de uma renúncia cujo mo delo S ík rates forn ec e com sua resistência sem falh a s ã tentação; e o tema dessa renúncia detém, por cima. um alio valor espiritual." Para nos, modernos» é para doxal ver em tal amor divergente "a necessidade de um combate difícil (...) ctmsigo mesmo, a purijlcação progressiva de um am or que só se dirigi’ ao próprio ser ein sua verdade, e a interntgaçào d
nas décadas áureas do Império Romano? A pergunta é respondida no volume III da História da sexualidade: O cuidado de si. O cuidado d e si tradu z a exp ressão socrática epimeleia heautou. transp osta em latim como cura sui, e inves tiga o tema nos dois primeiros scculos da era cristã. Foucault detec ta — em com paração com o pensam ento clássico — uma desconfiança mais acentuada em rela ção aos prazeres, uma insistência em que os excessos são nocivos tanto ao corpo como à alma: uma maior valorização do casamento e da conjugalidade; e um claro cancelamento dos significados mais elevados an tes ligados à pederastia. De modo geral, não houve qualquer fortalecimento dos códigos morais, mas uma intensificação das exigências de austeridade, com maior ênfase na importância do autocontrole. Entre a era de Sócrates. Demócrito e Hipócrates e a dos últi mos Antoninos e seu medico, Galeno (131-201). os pensadores gregos e rom anos vieram a prezar enorm e mente a continência e. ate. a abstinência. Além disso, passaram a dar mais ênfase ao poder pato gênico do se xo; Foucault fala de "un e ceriaine pa tho hg isation " do coito. Ao mesm o tem po, os filósofos entoavam um verdadeiro hino ao cuidado despendido com a pró pria pessoa. Os estóicos o iransform anim numa arte. atestad a pela definição do homem feita por Epicteto (“ o ser a quem foi confiado o cuidado de si*') e por inúme ros verbos nas cartas e tratados de Sêneca: sihi vacare. se form are , se fac ere , sihi appUcare, suuni fieri. in se recedere, secum morari etc. Sêneca deu também (no De ira) a mais plena descrição de uma nova técnica 202
moral, altamente prezada: o exame de consciência. Um século depois. Marco Aurélio discorria de maneira muito persuasiva sobre o autoconhecimento e o auto< domínio, Mas talvez Foucault mostre ainda mais originiiUdade e perspicácia em suas observações a respeito de estóicos romanos de menor nomeada e de espírito prático, com o Musônio Rufo, eloqüente defensor do casam ento, a d espeito do desdém dos cínicos e epicuristas; e ele se mostra quase cativante em seus comeniários sobre as comoventes páginas dc PKnio sobre a au sência de um marido, e seu amor ardente — tanto cros como philia — pela jovem espo sa que deixara em Ro ma. Até mesmo a primeira poesia moderna do amor conjugal, nas67A'f/í'. de Estácio (45 -96 d.C .), recebe um a menção feliz. O vHtdíuh dc si não desdenha a n^edida em que a mudança social, durante a era helenística, e, mais tar de, na Roma imperial, a partir do período de Augusio, condicionou novas tendências na erótica antiga. Louvando-se nos trabalhos de classicistas como Claude Vatin e Paul Veyne, Foucault observa que a institucio nalização do casamento por mútuo consentimento, na Antigüidade pós-clássica. coonestou a idéia de uma terna corúugalidade. A mesma evolução básica ocorreu em Roma: nos tempos republicanos, o casamento era antes dc tudo uma questão de representação de papéis, sob um regime patriarcal: havia nele pouco espaço para o sentimento. No Império, em contraste, a lei do cora ção tornou-se funcional. Em ambos os mundos, no grego e no rom ano, surgiu uma “ conjugalização” do inlercurso sexual. O surgimento de padrões imperiais e 203
a correspondente conversão da nobreza numa “aristo cracia administrativa'* (nas palavras de Ronald Syme) também contribuíram para a nova consciência do eu: o novo hiato entre o nascimento e o cargo acarretava tanlo uma nova busca de síaíus conio um a interrogação do homem sobre si mesmo. Não houve na Antigüidade qualquer descontinuidade espetacular na pnUica das aphrodisia; a erótica, por outro lado, era nitid am ente dualista: sem pre opu nha o am or “ vulgar" ao “ nob re". Sob o cristianismo aconteceu o oposto: o amor tornot-se unitário (e. natu ralmente, “desedonizado"), ao passo que se traçou uma fronteira ciara para a busca dos prazeres. sepa rando o intercurso heterossexual legítimo dos amores ilícitos do homossexualismo.*'*' Não obstante, o apogeu da Roma im perial já assis tiu à ascensão dc uma tendência teórica conducente a uma erótica unitária. Assim, no D iá h ^o sohre o amor, de Pluiarco, preceptor de Adriano (significativamente, Plutarco foi também autor de alguns Prcvcitos voi\jU‘ sois), onde eros está firmemente inserido em fiamos. ou casamento, o dualismo da erótica clássica é rejeita do. Caracterislicamente, a passagem para um cnts uni ficado se fez em conjunção com uma clara depreciação das práticas bissexuais (aphrodisia unificadas). Plutarco lançou um convincente ataque contra a hipocrisia daqueles que defendiam a pederastia com base em ele vados argumentos filosóficos, disfarçando ao máximo sua base carnal, co m o se A quiles não tivesse chora do à lembrança das coxas de Pátroclo... Plutarco introduziu um conceito importante: charis. o consentimento dado 204
por uma m ulher enam orada — e que, com o observa mos, nào tinha com o ser conc edido por um jove m a um homem mais velho sem que o rapaz ficasse moralmente desqualincado. Assim, a tardia filosoUa pagã. tal como 0 cristianismo, unificou o campo da teoria do amor; mas, ao con trário do s pensad ores cristãos, não cindiu a antiga unidade de amor e sexo, sentimento e prazer. Concluindo, Foucault lembrou o debate, no início cos tempos modernos, sobre a relação enlre o estoi cismo e o cristianismo. Para os humanistas da Renas cença, como Justo Lípsio, Epicteto era um verdadeiro cristão avaní lo leíirc. Na opinião miüs severa de um jansenista com o Arnauld , ele não era nada disso: os es tóicos eram gente virtuosa, mas não cristã. Foucault colocou-se ao lado de Arnauld. Para elc. apesar de ioda a sua evolução moralizante e de sua mudança gerai no sentido de defender o “ paradigm a do elefante” na vida sexual, o pensamento antigo carecia de uma dimensão crucial: o impcío vonfessiona! do cristianismo. Escre vendo na Lomion Review o f Btfoks em 1981, quando seus dois volumes sobre a Antigüidade estavam sendo elaborados, Foucaull discorreu sobre essa queslão, acentuando a posição-chave da "verdade como dever" na cultura cristã. Eis a essência de suas palavras, em dois parágrafos longos, mas bem claros: Como todos sabem, o crisiianismo c ama Cí>nfiS' sâo. Isso signifu a q ae o vristianism
Por exem plo, há a oàrigaçao íie ter com o verdade um conjunto de proposições que constituem dog^ ma, a obrigação de considerar certos livros C(mio fo n te perm anente de verdade e
rcfa (h afastar todas as ilusões, tentações c .v('í///que podem ocorrer na menie e descobrir a realidade do que está ocorrendo dentr<} de nõs. Segundt), a pessoa tem de se livrar de qualquer li gação com esse eu, não porque elc seja uma ilu são, mas porque é realissimt). Quonto mais des cobrimos a verdade sobre nõs mesmos, mais te mos de renunciar a nõs mesmos: t* quanio mais desejamos renunciar a nõs mesmos, mais preci sa m os trazer à luz a realidade de nós m esm os. Eis o que pod eríam os cham ar a espiral da form ulaçã o da verdade e da renúncia à realidade, uma espiral que está na essência das técnica s cristãs do e u .^ ^
Em contraste, a reflexão mora] da Antigüidade sobre os prazeres "não se orienta para uma codificação dos atos, nem para uma hermenêutica do sujeito, mas para uma estilização da atitude e uma estética da existên cia'’.*'*'' Em suma, ei*a um art de vivre, perdido com o triunfo da ansiedade pela salvação. Foucaull encontrou uma comprovação evidente dessa mudança, de arte erótica em controle confessio nal, no contraste entre a atitude pagã em relação ã in terpretação dos sonhos e a maneira como Santo Agos tinho éncara o sexo. O cuidado de si arahsa a Oneírocritica de Arlemidoro de Éfeso, que viveu no século II d .C .‘®* Artemido ro era o anti-Frend: em seus qua tro capítulos sobre os sonhos dc caráter sexual, considera o sexo como o significante de prodígios futuros, em lugar de lom ar o sexual com o o supremo “ significado" 207
cias imagens oníricas. AJém disso, via os atos sexuais sonhados como prenúncios de mudanças na posição social e econômica do sonhador. Foucault argumenta que. em sua onirologia. Arlemidon), nisso um típico an tigo, con sidera a sexualidade como eminentem ente “ re lacional'*, isto é, profundamente vinculada às relações sociais. Santo Agostinho, por outr.'> lado, minimizava o relacionamento com outras pessoas, concentrando-se no problema do eu no conllito von'.ade verst4s sexo. No famoso livro XIV de A l idadc de Deus, ele contrapôs o sexo edênico às relações sexuais depois da Queda. Em nosso estado pecaminoso, o sexo é. para Santo Agosti nho, a epítome da perda do autocontrole. Alterando a velha idéia de que o coito seja uma pequena epilepsia. Santo Agostinho escreveu que o aio sexual é um horri* vel espasmo, no qual o corpo é sacudido por solavan cos aterradores. Em contraste, o sexo no paraíso era uma maravilha de autodomínio. Todo o corpo dc Adão fazia sexo do modo como cada um de nossos dedos controla seus geslos; o sexo e a vontade ainda nâo se achavam dissociados. A lição é clara: desde os primór dios do pensamento cristão, o eros foi colocado sob rude suspeita. O homem confessional substituiu a estética do prazer por uma introspecção dolorosa, censória e repressiva do desejo, agora degradado. A superação espiritual da libido deixa de consislir, como em Platão, em levantar os olhos para o céu e lembrar aquilo que a alma conhecera desde muito tempo, mas esquecera: em vez disso, veio a consistir numa vigi lância constante, atenta ao pecado, em olhar "conti’ nuamente para hoixo e para dentro, a fim de decifrar. 208
cnfrt' (fs
WínV/ritvifr>A J a a h n a, a q u e le s que p ro v ê m ila
libido'':^
Os especialistas no pensamento antigo sem dúvida avaliarão rapidamente as interpretações e conclusões dc Foucault. Uma coisa é certa: ele agora examina as opiniões da literatura especializada com muito mais freqüência que em todos o s seus ou tros panoramas histó' ricos jun tos . Além disso, a qualidade da literatura con sultada é também superior, e a própria literatura é em geral atualizada; para alguém que, em A vontade de saher, ainda se louvava em frágeis apoios historiográficos como The Other Vivtorians (1966), de Steven Murcus, o progresso é notável. E conquanto seja incoiitpaiuveiinente mais difícil lessüscitüi uiii lexto an tigo em grego ou latim, completamente esquecido, do que desenterrar tratados abstrusos da Renascença ou obscuros cód igos disciplinares dc 1800 — de modo que, cm sua arqueologia da sexualidade, a erudição dc Fou cault teria mesmo de se revelar de maneira mais con vencional e menos surpreendente —, foi aqui, e não en: seus trabalhos anteriores, que ele se colocou mais perto do espírito triunfante da nova historiografia: um ânimo desbravador de que foi pioneiro, entre outros historiadores independentes, Philippe Ariès, o cronista da mudança de atitudes em relação è infância e à morte, e em cuja própria morte Foucault escreveu um necrológio encomiástico para Le N o u vel Observateur (aproveitando a deixa para, deselegantemen te, invectivar Lawrence Stone); e um espírito que Pierre Nora e toda uma abalizada equipe tentaram te 209
orizar, mapeando “ novos problemas, novos posicio namentos e novos objetos“ para a história, numa obra em três voUimes. Fairc de 1'hisioire (1977). N a verdade, poderíam os chicanear com rela ção a certas interpretações, cm face de pesquisas recentes. Por exemplo, o quadro da pederastia apresentado por Foucault parece pouco desenvolvido do ponto dc vista sociológico. Ele se mostra, é claro, bastante realista com relação ao antigo costume: nem por um momen to confunde a exagerada espiritualização socrática do eros homossexual, feita por Xenofonte, com a ver dade social. No fim. no entanto, sua análise revela-se menos esclarecedora, sociologicamente, do que a de K. J. Dover, apesar de suas várias referências a Greek Hnnu>scxiuility (1978), desse autor. Ora. Duver co manda atualmente a reinterpretaçáo da pederastia grega, graças à resoluta demolição que fez da tese “ dó rica“ . uma dou trina teutônica baseada no pressu posto de que as raízes de 1'amour f>rev são encontradas no companheirismo marcial (um brilhante represen tante d a teoria dórica. E. Bethe. escreven do pou co an tes da I Guerra Mundial, explicou que a pederastia he lénica repousava num conceito espermático da alma; como as melhores virtudes do homem se localizavam em seu esperma, supunha-se que a pederastia fosse a melhor m aneira de transm itir valentia a um jovem gue r reiro...). Dover rejeitou todo esse disparate militarista “ prussiano” e ressaltou que, na pólis, tudo incentivava a sociabilidade às claras entre os homens. Foucaull, como vimos, tinha consciência do sfaíus diferente das esposas e dos efebos, mas não se deteve na mecânica 210
ambiente social c d c suas lógicas sítuacionais respectivas. Contudo, até onde posso perceber, nada do que que ele ele diz parece co ntrad izer os melhores trabalhos acadêmicos sobre o assunto. Esses dois volumes parecem também conter algu mas mudanças significativas na historiografia de Fou cault. Algumas delas apenas reforçam tendências já discerníveis em A v o n t a d e d e s a h e r . se não antes, como a atenu atenu ação do cesuralís cesuralísm m o (o co ne com a teoria teori a do corte) e a franca admissão de fenómenos evoluti vos. vos. EJe EJe fala fala dc um a “ evo luçã o mu ito ito lent lenta*' a*' do pa ganismo para o cristianismo e, ainda, da antiga erótica clássica para a iirs amandi da Antigüidade tardia. Outras mudanças, porém, trazem à baila novos fatores, inclusive o tema religião. Em 1970, entrevistando Fou cault, cau lt, Jun tam ente com Sérgio Paulo Ro uanet. em em sua nova residência na Rue Vaugirard. perguntei-lhe se pre p rete tenn d ia e s t e n d e r a h istó is tó r i a “ a r q u e o l ó g i c a " ã e x p e riência religiosa. Respondeu-me ele que sim, mas acrescentou que seu verdadeiro interesse nesse campo era a bruxaria.*' No entanto, seu último livro, ainda inédito — A s c o n f i s s õ e s d o r o r n e , quarto e último vo lume de His H istó tó r i a d a s e x u a l i d a d e —, é uma reflexão so bre br e o c r ist is t ian ia n i s m o c o m o a q u i n t e s s ê n c i a d a fé “ c o n f e s sional". Tal como seu mestre, Nietzsche, Foucault clara mente antipatiza com o espírito cristão. No entanto, nos volumes precedentes, nos quais sào comuns as alu sões au cristíuiiisiiiu como o negativo, por assim dizer, da erótica antiga, nada se assemelha à dramatização maniqueísta da história a que antes ele costumava dc SCI)
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entregar se. A rigor, no cristianismo foucaldiano, a autolccnologia e o controle, no desagradável sentido de dominação repressiva, lendem a fundir-se. Mas parece hav er m enos insist insistência ência em Jogar formas ou idades cul turais no papel de vilão. A longa sombra da hermenêu tica cristá do eu e do pecado atrai menos censura, por pa p a r te d c F o u c a u l t , q u e a G r a n d e I n t e r n a ç ã o , a p s iq iquu iaia trização da loucura, o anlropologísmo epistêmico ou o moderno sistema penitenciário. Teria o Kulturkritiker abrandado, ou haveria alguma coisa em seu novo tema que explicasse tal mudança? Suspeito que a verdade esteja na última hipótese — e n a q u ilo il o q u e c o n s t i tu i u m p a r a d o x o n a h istó is tó r i a d o pe p e n s a m e n t o f o u c a l d ian ia n o . E x p liq li q u e m o s p o r q u ê . Em 3CU primeiro vóo original, HLsiôriu HLsiô riu d a íou ío u v u ra. ra . Fuucaull defrontou-se com o problema do que a insânia signif signific icava ava para os ou tros — os sáos, sáos, juize s dos loucos. No N o o u t r o e x t r e m o d e s u a r ica ic a j o r n a d a h istó is tórr ico ic o - f ilo il o s ó f ica, engalfmhou-se com o problen.a do que o sexo signi ficava pa p a r a a p r ó p r ia p e s s o a — a significação da libido como o mais explosivo matetial a ser moldado pela in dividualidade ativa. Mas aqui uma questão intrigante se impõe: .se o último lema de Foucault foi. através da sexualidade, a auto-afirmação ou o autodomínio, ou mcsmo a introspecção oprimida pelo pecado, onde jh eou sua antifiu fohia pelit sujeito? Tanlo a enkrateia como a confissão pressupõem uma plena subjetividade — e x a i a m e n t e a q u ilo il o q u e F o u c a u lt ( n isto is to,, u m b o m eses truiuralisia quase até o flmj nos ensinou a desprezar como miragem metafísica e a recusar como instru mento analítico na explicação dos processos sociais. :i2
Acabamos dc vc-lo uccntuar o foco sobre o siucito cm sua übra madura. Mas a questão que estamos levan tando agora é inteiramente distinta: nào se refere à sub je j e liv li v i d a d e c o m o u m a v a r iáv iá v e l d e p e n d e n te ( p r o d u lo h is is tórico do poder) e sim ao sujeito como uma variável in dependente — como uma força que molda a conduta. Terá ele passado a se concentrar no sujeito não apenas como um tema, mas também como um legítimo fator? Iim outras palavras: poderá ter ocorrido que, na obra de Foucault nos anos 80, o sujeito — e, junta mente com ele, a pura e simples ação humana — te nha por fim. ainda que tacitamente. sido demonstrado, O L reentrado em cena furtivamente? Estaria Foucault fazendo as pazes secretamente com o sujeito? Quanio a mim. acho difícil harmonixíir a narrativa histórica da His H istó tórr ia d a s e x u a l i d a d e com o Le L e itm it m o t iv poder/saber, no qual o sujeito não passa dc um instrumento de do minação. minação. Isso po rq u e,se e,s e o “ animal conf confes essa sant nte* e*** cris tão ainda pode ser visto como algo dessa espécie, uma vez que está constantemente vigiando .seu desejo sob a compulsão de uma lei moral, o sujeito encrático da An tigüidade pagã positivamente não pode. Chegamos aqui a um caso nítido de sujeito saudável, claramente não relacionado com a dominação social sobre o indivíduo. Para alguns outros teóricos, que também investiga ram as significações profundas da história cultural, níída haveria de estranho cm iguaJar o progresso do Ocidciiie cuin um disseminado crescimento do auto controle. Em O proeesstt civilizatório (1939), Norbert Elias argumenta que a civilização representa, acima de 213
tudo. uma passagem geral de coações sociais para a aulocoibiçào {Sc^bstz^^'anfi). O problema de Foucault é que, em sua áspera rejeição dos valores positivos refe rentes à “ civilização” como um proce sso do iníc iníciio da era moderna, realçado pelo Iluminismo e depois pelo liberalismo vitoriano, ele não poderia, em boa lógica, aceitar essa apreciação dos resultados históricos. No entanto, a partir de O uso dos prazeres, sem dúvida deu grande importância à força de vontade do sujeito. “ V ontade“ ê aqui aqui um conceiio-chuve. conceiio-chuve. Com efeito, efeito, muita coisa do que diz Foucault ^obre a cnknneia e o cuidado de si do resoluto estóico poderia ser lida à luz dos estudos modernos sobre a idéia da vontade no pen samento jurídico e niosóflco. Teria sido muito instruti vo ouvir o s comen!'ári comen!'ários os de Fouca FoucauU uU sobre um a o b ra re cente com o A Teo ria do desejo desejo na Antigüidade Antigüidade C lássi lássica ca (1982), do mestre dos estudos clássicos de Heidelberg, Albrecht Dihie. Para o professor Dihie, o conceito da vontade como uma faculdade mental, independente do intelecto ou da emoção, nunca foi empregado na teoria do s antigos antigos gregos — .foi, essencialm essen cialm ente, uma criação de Santo Agostinho, o primeiro a usar a palavra von tade (voluntas) no sentido ocidental moderno, para de signar o âmago do homem moral. Foucault dedicou A s confissões da carne carne — única pane histórica da His H istó tórr ia da sexualidade a disco rrer sobre o cristi cristianismo anismo — ã te ologia ol ogia paleo cristã cristã dos cham ados Padres da Igrej Igreja, a, entre os quais avultou Agostinho. Além do mais, conforme Dihl(^ deíxu claro, o papel crucial atribuído ã vontade nos entrelaçados sistemas agostinianos de psicologia e teologia decorreu principalmente de um auto-exame 214
intc/isivft, coiiiu alcblcim suas Conjtssòcs^^ — C O auto-exame inicnslvo c exatamente aquilo que Fou caul caultt con sidera o traço defm ilóri ilórioo do “ animal animal co n fessante" — o estilo moral do cristianismo, mais tarde secularizado no homem moderno, com relação à téc nica do eu. Mas o conceito agostiniano de vontade, base ado como estava na introspecção e des:imido a ocupar po p o s içã iç ã o tã o c e n t r a i n a d o u t r i n a c r i s i à , r ã o d e c o r r e u d e uma problemática morai-sexuaU e sim moral-religiosa. Além Além disso , se, co m o alega Fo ucau uc ault, lt, e com razâ razâo» o» o au todomínio e a form fo rmação ação da alma (a (a a análise de Foucault náo errou muito o alvo. Seja como for, como Raymond Bellour observou, agora que tantos tabus sexuais desapa receram, a questão premente ainda por responder é a seguinte: como haverá cada um de nós de se (re)definír como sujeito?®' Em nossa cultura hedonista, com efei to. e provável que tal redefinição tenha lugar, primeiro e acima acima de tudo, em relação ao pra zer e ao ao d esejo. esejo. Mas. se assim assim for, a genealogia genealogia foucaldiana foucaldiana do “ homem do desejo*’ possui muita pertinência para seu projeto, 215 215
sob outros aspectos malogrado, ds uma história crítica do presente.
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X. K t l R A l O U ü N t o - AN A H Q U IS IA
Qual o seniido essencial da obra de Miche! Fou cault, o arqueólogo do pensamento, o genealogista do poder/saber, o “ historiador do p resente"? Sào muitos os livros que respondem a essa pergunta. Há dez anos. concluindo seu livro Foucault et Varchèolo^ie du sa voir, Angòle Kremer-Marietti se interrogava se todo o projeto foucaldiano nào seria sustentado por uma m etá fora originai. Encontrou-a na mirada anatômica. Da mesma forma como o anatom ista disseca cadáv eres, tra balhando d a superfície para o interior, desnudando todos os pormenores das camadas corporais, fibra por tlbra. tecido por tecido, membrana por membrana, nervo por nervo, sem jam ais con seguir ap reen de r o segredo da vi da. também o historiador “arqueológico" disseca mui tos discursos e práticas, negando a si próprio a mira gem daquele entendimento global, de totalidades cultu rais passadas, outrora perseguido por fiiósofos-historiadores neo-idealistas. É essa a distância que separa DiUhey de Foucault. Filho de um médico, o arqueólogo do discurso submeteu a história ao bisturi. Este, pois. é o caráter de seu empreendimento. E que dizer da na tureza de seu resultado? Neste ponto, as respostas são muito divergentes. Para Pamela Major-Poetzl {Michel 217
t'om aiilt's Arch aeolog y o f Western Culture. 1983). a essência da mais valiosa contribuição de FoucauU c um novo paradigma para as ciências sociais, baseado em princíp ios análo gos à Icoria do cam po na física modermu A iendo-sc à “ arqueologia*’, M ajor-Poetzl afirma ser esta, como a física moderna, um modelo abstrato que impõe ordem a uma experiência de desordem. Sua opinião, portanto, ê diametraimcnle oposta à de Hubert Dreyfus e Paul Rabinow em Mieh.el Foitcanli: Beyond Structuralism and Hermeneutics (1982). Para Dreyfus e Rabinow, a sabedoria de Foucault consistiu em afas tar-se da arqueologia e de seus pressupostos paraeslruluralisias. caminhando no seitido de uma “ analí tica iníerpretativa*’ do “ po der, da verdade e do co r po“ ; cm síntese, o m elh or em FoucauU é am es sua ge nealogia que sua arqueologia: ou, se assim se prefere, antes seu pós-estruturalismo que seu quase-cstruturalismo. No entanto, se tivermos em mente a índole nietzschiana do pensamento foucaldiano (confessamente mais pronunciada depois dc A s palavras e as coisas), logo perceberemos que o hiato entre FoucauU enquanto arqueólogo e FoucauU enquanto genealogista não representa nenhum abismo. A importância central de Nietzsche na perspectiva de FoucauU é salientada p or seu principal trad utor para o inglês, Alan Sherid an, em M ic hel Foucatdt — The Will to Truth (1980). Sheri dan sugere que seu herói ê o Nietzsche de nosso pró prio fm de siècle. Eis uma possibilidade aliciante, muito mais interessante do que aquelas que — como Annie Guedez num livro muito anterior, Foucaufí (1972) — acab aram praticamen te anexando a arqueolo218
i-ia. com base em seu amipositivismo, à icoria social liricanieme humanista üe Gurvitch e Henri Lefebvre*'^ — dois notó rios adversários do esiruturalism o devido ao suposto objctivisnio e '*iecnocratísmo*' deste, Uma das poucas coisas boas no prolixo estudo de Charles Lemert e Garth Gillan. M k hcl F(nu
crcvcr scu projclo coiiiu um üusafío nietzschiano ao m a rx iv s m o .
Como escolher entre essas leituras? Antes de mais nada, até onde posso perceber, não há como mini mizar a fori^a dc Nietzsche na obra de Foucault, que é é claram ente o principal exem plo de n eonietzcheanism o no pensamento ocidental contemporâneo c. ainda por cima. sem dúvida uma utilização altamente original de N ietzsche. Há uma conhecida caracterização da filoso fia francesa depois da guerra, proposta por Vincent Descombes, no seniido de que, enquan to na décad a de 194Ü a intluència dominante no pensamento francês eram os três h — Hegel, Husserl e Heidegger —, a ma triz dominante nos anos 60 desbcou-se para os très “ m estres da suspeita*': Marx. N ietzsche c Freud. Isso e cspecialmcnte verdade em relação a Foucault, sobre cujos afrescos histórico-filosóllcos paira a sombra do irracionalismo nietzschiano, iniocado por qualquer eco importante dc Hegel. Husserl e Heidegger. No capítulo VII de A fiaia vicm ia. Nietzsche faz uma lista de histó rias ainda por escrever: a história do amor, da cobiça, da inveja, da consciência, da piedade e da crueldade; uma história comparada do direito; outra das puni ções... Alguém pode 1er isso sem l'econhecer instanta neamente ao menos uma parte do projeto histórico dc Foucault? Uma vez que estejamos de acordo quanto ao signiricado cstíuiégico dc suas raízes nietzschianas. tudo que resta a fazer é verificar o v a h r do retorno criativo dc Foucault a Nietzsche. No livro que pessoalmente 220
considero o mais refletido que já se escreveu sobre FüucaiiU — l.iníiutififiitf, potcrc, individiu) (1979) —, Yitlorio Cotcsta encerra sua avaliação dizendo sim ao historiador e náo á sua metafísica du alienação. Cotcsta louva as investigações históricas dc Foucault, mas não consegue dispor-se a aceitar sua antropologia política, por estar ela despida de qualquer visão de relações so ciais náo-alienadas.^ Tal como Nietzsche. Foucault considera a vontade de poder do indivíduo como um òatuni que é também um inevitável fa tu m . As formas de tal libid(f dominandi sem pre mudam ao longo da his tória; sua natureza, nunca. Na medida cm que o desejo de poder é sinônimo do homem, não pode haver qual quer superação da alienação imposla pela violência. A lula contínua sem cessar. Foucault não combale os po deres existentes em nome de uma autoridade mais no bre, mais humana: apenas lu la contra eles porque náo sào mais nem um pouco legítimos do que aquelas for ças, ou resistências, antagônicas. Essa e uma pílula iimarga demais de se engolir na Itália, onde a cultura oposicionista con tinua qua se incólume ao cinism o pari siense subseqüente ao refluxo do existencialismo, numa espécie de ressac a ideológica. Por consequinte. Co testa tenta manter a história critica de Foucault depurada de tal concepção sombria e lúgubre do homem. Contudo, essa avaliação de Foucault encerra dois problemas. Em prim eiro lugar, sua história — como acredito ter sido sobejamenie demonsírado neste livro — está longe dc ser sem pre corrctn. Sem d úviJa, ela muitas vezes descortina novas perspectivas e tem. por isso, virtudes heurísticas. Mas suas desordens concei221
Uiai^ e suas deficiências; explanatórias (e atenção: cia c sempre uma hixtoirc ã íhèsc) pesam mais do que suas contribuições reais. As provas históricas de Foucault são demasiado seletivas e distorcidas, suas interpreta ções excessivamente generalizantes e tendenciosas. Assim, em última análise, longe de valer por si mesma, como pesquisa ou interpretação, sua história fica ou cai com sua Weltanschauung — e. portanto, cai. Verdade que, repetidamente. Foucault negou es tar escrevendo uma história normal. A última vez. creio eu, Ibi na introdução de O uso tios prazeres, onde ele, mais uma vez. advertiu que seus estudos eram **de história’' e não “ de historia do r". Entretanto , nenhum subterfúgio será capaz de protegê-lo quanto a esse ponto. H istoriador ou não, cic co nstan tem en te trabalhava no pressuposto de estar sendo fiel à pers pectiva de cada época com relação a cada sujeito rele vante (insanidade, saber, punição, sexo) e de que seus documentos (por exemplo, registros médicos e admi nistrativos. velhos tratados de muitas disciplinas, ar quivos dc prisões, a literatura sobre a ética sexual, etc.) eram capazes de lhe dar razão. O próprio fato de haver Foucault usado pafavras como “ do cum entos” (como fez, pela úUima vez, na introdução de O uso ilo.f prazeres) demonstra que, apesar de toda a sua preten são “ nietzschiana” de desprezo pe!a verdade objetiva, gostava de tê-la falando a seu favor, como qualquer historiador convencional. Em outras palavras, qualquer que fosse o tipo dc historiografia que pieteiidcsse fazer — a dos historiadores ou qualquer outra —, Foucault era o primeiro a afirmar que as provas eslavam a seu 222
lado. Por conseguinte, nâo podemos de modo algum eximir suas análises históricas do critério pelo qual (ais estudos sào normalmente avaliados. Dai nosso direito dc perguntar: suas interpretações são ccrroboradas pe los dados, ou são demasiado forçadas ou fantasiosas? E a resposta é que, enquanto algumas delas sáo verda deiramente sugestivas e até lançam uma luz genuina mente nova sobre as provas históricas, muitas outras, como vimos, não passam de exorbitâncias nãocoonestadas pelos fatos. Nem mais, nem menos. Em segundo lugar, o veredicto sim-ao-historiador, não-ao-filósofo (nietzschiano) tende a des considerar um aspecto de certo modo importante; Fou cault é de fato um nietzschiano, um nietzschiano em muitos aspectos vitais, mas nao um nietzschiano da cabeça aos pés. Como já foi lembrado, chega até a parecer antin ietzschiano em sua inclinação a um elegante Kulntrpessimismus. A rigor, o que ele diz so bre a morte do homem ao final de A s palavras c as coi sas e de Arqueologia do saber nâo é nenhuma nénia, nenhum lamento fúnebre; mas tampouco parece uma explosão de verdadeiro am or fali, um desafiador hino de esperança. Nietzsche era um pensador nervoso, mas alegre. Foucault, não. Mesmo lan Hacking, o filósofo dc Stanford que lhe mostni tanta simpatia, admite que, ao supor que o otimismo e o pessimismo deixam de ter sentido assim que nos livramos do antropologismo e do mito humanista de um sqjeito transcendental. Foucault não nos oferece "qua lquer sucedâneo para o que quer que hroie de eterno no coração humono",'^^ Nietzs che, em co ntraste, evo cava o Super-Homem e su a ju223
bilantc su|>cravãu do niilísmo passivo, alma da deca< déncia. No fundo talvez do pensamento de Foucault exista um espaço inlermediário entre o cios nietzschia no. positivo, e a moderna relutância quanio à moral. Eíe é bastante nietzschiano para fugir à nostalgia — mas é bastante “ m od erno " para exibir um ceticismo básico com relação às nossas perspectivas culturais. Ora. como também vimos, um dos sinais inequívo cos do afasiamento dc Foucault com respeito à atitude dc N ietzsche em face da história m od ern aé sua sistem á tica depreciação do lluminismo. Lody Carlisle, a temível dama vitoriana, que foi sogra de Gilbert Murray, cos tum ava dizer: “ Se alguém que não acred ita no progres so vier à minha casa. que saia.*’*" Na moradn mental dc Foucault. quem quer que pronunciasse uma palavra amável sobre o lluminismo arriscava-se ao mesmo tra tamento que os infelizes convidados não-progressistas de Lady Carlisle — tinha de sair!... Nada em Foucault nos leva a pen sar que ele gostasse “ do estúpido século XIX". como diz a velha fórmula (na verdade, uma pé rola da ideologia reacionária francesa assinada por Léon Bloy): mas ele também linha aversão pelo que os com tianos chamavam “ a era crítica” : o século de pro gresso e crítica que culminou nas duas revoluções ainda hoje plasmando o mundo: a industrial e a demo crática. Marx, Nietzsche e Freud consideravam-se. orgu lhosamente. herdeiros do lluminismo. FoucauU, certa mente. não. E por isso escreveu .ima história procustlana em que o legado do progresso burguês é grossei ramente desfigurado, quando não simplesmente nega 224
do. Ao fazê-!o, Foucault mosirou-se muito dado a um jogo típico da mais questionável ideologia **contracul> tural*': umu rcelaboraçào do sianificado da história mttdertui a xcrviço dos preconceifos da revtflía cm curso — e profundamente errônea — c
c técnicas, quulquci que iieja sua origem, terminam sendo armas neutras, conquistáveis por forças sociais diferentes: assim, as disciplinas burguesas podem ser transplantadas para sistemas de controle não-burgucses (esqueçamos, por um instante, que ele incluiu o Gu* lag entre as primeiras); a confissão pode migrar de seu contexto religioso para a sociedade secular etc. Ademais, Foucault nâo renuncia a pelos menos uma pretensão à verdade: a de que sua própria analítica do poder é verdadeira. Apontamos um exemplo disso ao lembrar o fato de se apoiar cm documentos históri cos; mas ele estendeu a mesma pretensão ao presente. Na verdade, como ele advertiu (em PowerlKnow'lfdge}, o que está em jogo cm sua obra não é absolutamente uma questão de emancipar a verdade do poder, mas simplesmente de "separar o poder da verdade das fo rm a s de hefíemonia, social, econôm ica e ctdturaf. dentro das quais ela atua no presente". Entretanto note-se a ambivalência dessas palavras: a verdade está sempre carregada de poder; contudo, o elegante jogo de palavras ("o poder da v erdade” ...) insinua a possi bilidade de uma suspensão da escravização da verdade ao poder, A “ sep ara çã o" , p or mais breve que seja, desprende a verdade do domínio da luta social, confe rindo-lhe uma objetividade genuína, embora precária. Essa impressão é fortalecida pela momentânea referên cia gramsciana (“ hegem onia” ), pois a essência da te oria da hegemonia de Gramsci é a apropriação da cul tura por uma classe dominante, ;:om o objetivo de con trole social, e não a identificação da cultura, como tal, com o simples poder de ciasse. 226
Em última análise, püi.s, Foucaull não ousou in cluir sua própria teoria naquilo que ele diz do pensa mento dos intelectuais: que, nos esforços destes, tudo é lula. nada é luz. A Arqucoloaia confessou-se uma te oria “ sem fundamento*’ — no entanto, não disse que seu êxito dizia respeito a uma luta corpo a corpo. Ora, se a demonstração da verdade de sua analítica do poder independe do rude pragmatismo da luta, então .vr//>.v/.\7í' uo menos uma pretensão "para" de verdade. Mas, nesse caso, como não escapou a Cotesta, surge uma contradição entre os critérios dc verdade enuncia dos pela teoria (a verdade é luta, não lu/) e a evidente pretensão da tet>ria de ser aceita c
ro, os alemães e os ingleses, etc.)
ului leórica adequada c reduziram a crítica à negação luf hoc da sociedade contemporânea. Ora, o problema c que esse abandono do princípio de ima razão univer* sal implica ”o fim da filosofia". E Habermas aponta irés culpados principais para esse resjltado inglório: a lintiga crítica frankfurtiana, a ontologia irracionalista de Heidegger e a genealogia foucaldiana.'*^ Habermas assume a posição oposta. Ve a si pró prio. com o também ao norie-americano Rawls, como exemplos de pensamento progressista racional; mas não se esquiva de chamar pensadores como Foucault, Deleuze e Ly otard de “ neo con servad ores” , pois, a seu ver. eles carecem de toda a justificação teórica de uma alternativa ao status quo social no capitalismo avança do.-«f Em seu d ebate tele visado com Chomsky (Am ster dam, 1971), Foucault recusou-se a traçar uma sociedade modelo, alegando que a larefa do revolucionário é con quistar o poder, não fazer prevalecer a justiça, e que, de qualquer modo, noções abstratas como verda de. justiça e natureza humana (todas sustentadas por Chomsky) fatalmente refletem os interesses da classe dominante em nossa cultura.’’’ A crítica de Habermas kicalíza com exatidão o plano tcóríco (em contraposi ção ao ético) do mesmo hiato: a deliberada ausência, em Foucault, de princípios universalistas, que ele jul gava em conluio com “ mitos hum anistas” e. cm liltima análise, com a estrutura de poder da sociedade moder na. Foucault estava bem consciente de haver renun ciado ao ponto de vista universalista defendido por 229
Habermas. Fm seu lugur. expôs o ideal do "intcicctual específico", que proporciona saber crítico sem se arvo rar cm “ mestre da verdade e da ju stiç a ". Enquanto Habermas via o universalismo como uma garantia ra cional de verdade, Foucault só conseguia vé-lo como uma máscara dc dogmatismo. Verdade universal era apenas outro nome para o poder disfarçado como crité rio dc lodo saber. Quanto à escola de Frankfurt, Fou cauU reconheceu o mérito de seus integrantes em iden tificarem o problema dos *‘efeitos de poder" vincula dos à racionalidade historicamente definida no Oci dente desde o início do s tem pos m odernos — mas rejei tou o quad ro filosófico dc sua “ teoria crítica ", po r lhe parecer jungido a uma metafísica da sujeito e eivado dc hiinninismo mar.xista.*‘'‘ Num de seus úilim os cursos no Collège de France, Foucault discutiu o ensaio de Kant sobre o lluminismo. O que Kant examinava, disse ele, era a problemática do presente ("la proh icma íiqiw d'uiU’ ov tua Íité'')\ a ori ginalidade de Kant em "W a s ist AhfliUieritfiíi?'' está na clareza com que aí se esboça "a quvstòo do prcscnic", pois o lluminismo era então o próprio momento vivo da cuUura ocidental. FoucauU acentuou que. desse modo, a filosofia cessava de inquirir a respeito de sua própria inserção numa antiga tradição de exame e especula ção, para ver a si própria, pela primeira vez. como uma atividade profundamente envolvida no destino da co munidade. Kant retirou a questão da modernidade dc sua “ relação longitudinal com os antigos" (ião visível nas "querelas dos antigos e dos modernos”, do co meço dos tempos modernos), inaugurando uma “relo230
ção saí>iíal" entre o pensamento e seu próprio lugar histórico.
Muito mais importante — concUiin Foucaull — que preservar os rem anescentes do IluminLsmo é a tarefa de nos mantermos cônscios de seu valor histórico. Em ou tras palavras, até mesmo ao analisar o loctis clussUns Jo louvor ao Iluminismo, ele não perdeu a oportuni dade de lançar farpas contra sua herança intelectual. Os dois últimos parágrafos do curso são ainda mais in sólitos. Afirmam que Kant "fundou ax Juas f*ran(li\s tradições partilhadas pela fdosofui moderna": a tradi ção da "análise da verdade", ou seja, de constante in vestigação das condições do verdadeiro saber, e a tra dição lunçada em "Q ue c o llum inism o?" — de uma "ontologia do presente". É essa, termina Fou cault, "a opção filosò fu a vom que hoje nos d efronta mos"'. ou uma analítica da verdade ott "um pensa mento critivo que tome a forma de uma ontolofiia de nõs próprios, uma ontolt)gia do presente". Esse último foi o caminho tomado por Hegel. Nietzsche, Weber, pela escola de Frankfurt e por ele mesm o. F oucault.'” Essa interessantíssima afirmação requer alguns comentários. Em primeiro lugar, sua tentativa de jogar Kant contra Kant. por assim dizer, é altamente ques tionável — tanto quanto o é a redução das pesquisas da escola de F rankfurt a uma ontologia do presente (em Ha bermas, a "analítica da verdade" tem uma im portância pelo menos igual). Acima de tudo. o curso nos vende, não uma opção errada (porquanto nada há de errado, naturalmente, em investigar a natureza do presente). 231
mas utnct alterna tiva e rra Ja . Com efeito» p o r que deve ríamos considerar a análise do presente como algo a ser empreendido cm lufior da queslâo do saber válido (em suma: a teoria da ciência) e. em última análise, contra essa última questão? Foucault parece raciocinar como se sua nítida separação entre essas duas atividades fosse um ponto pacífico, cuja legitimidade devêssemos aceitar como óbvia. Na verdade, contudo, não é nada disso, pois, h>n${c
uma considciaçáu adcquaüu do saber que plasma o niundo. Piagei sintetizou suas críticas a Foucault charrando sua obra de um “estruturalismo sem estrutu ras“ . Poder-se-ia lambém deplora r sua cartografia das epistemes sem epistemologia. ou seja, sem uma teoria da ciência. N o Jtni — v « ilespeiío t/i* tmiii sua rctórivu de anli-hunui/iismo — o "humanista" quv havia cm I'oucault triunfou: c por isso seus pa.^s
clade com um sistema cognitivo concede aos cientistas uma capacidade de produção de saber que não pode ser especificada em regras impessoais explícitas. Foucault ressalta o lado negativo: argumenta que normalmente é impossível sair desse tácito sistema dc saber. Fomos deslocados da órbita aberta do saber pessoal tácito para o quadro rígido daquilo que Coilingwood chamou os "pressupostos absolutos” de uiia época cultural. Ora. isso suscita um sério problema para a história "arqueológica^. Pois. como David Leary perspicaz qualquer espécie de mente observou. " se fo r continuidade na história — c o objetivo declarado de Foucault ê demonstrar a desconfinuidade radical na história —, c
Nocicdadc. Assim , as regras da form ação do díscuiso perm item ou proíbem o “ q u é " do saber; e o olho do genealogista procura penetrar através da espessura do discurso para identificar suas raízes históricas — o “ porquê“ daquele “ q u ê" . Todavia, nem a exploração arqueológica nem a sondagem genealógica se importam com o "como** do discurso, com seu valor cognitivo. For conseguinte, nenhuma das duas maneiras foucaldianas de abordar o mundo do saber se empenha em avaliar o quan to de sab er real sobre o mundo existe em todo ele. A conceiilração cin podcrhaher termina li quidando sumariamente o poder do saher, tanlo no plano cognitivo com o no histórico. O problema é que, embora naturalmente ninguém tenha o direito de exigir que Foucault seja um cpistcmólogo, podc-sc perfei tamente indagar se, na sua qualidade dc auionomead(f historiador do presente, e!e podia de falo deixar de lado a “analítica da verdade" envolvida na ciência e em sua disseminação planetária. Para falar claro: o historiador do presente pós a perder o seu projeto. Não há com o negar que. no curso deste, obrigou-nos a rep ens ar dive rsas formas passadas de saber» ou nossas atitudes, tanto passadas quanto prssentes. em relação ã loucura, ã disciplina ou ao se.\o. Mas há uma vasta diferença entre o historiador re flexivo que lança nova luz sobre o passado, ao levantar amplas questões sugeridas pelos fatos, e o historiador doutrinário, que, no mais das vezes, se esforça por comprimir a crônica histórica no leito procustiano das pré-interpretações ideológicas. Braudel pertence à pri meira categoria; Foucaull, à segunda. 235
Um rema te sucinto à que stão da avaliação do valor real das empresas historiográncas de Foucault consisti ria em repe tir qu e, para diz er o mínimo, o grau geral de objetividade que apresentam fica abaixo da média da melhor pesquisa histórica de um século que prestou a Clio tão opulento tributo, em estudos de primeira qua lidade. É claro, porém, que essa não é uma opinião unânime. Entre os comentaristas de Foucaull, é bem mais comum pensar como Dreyfus e Rabinow: " N ã o há, o bviam ente, nenh um apelo simples aos fa iits en volvidos na avaliação das teses hisiórieas de Foucault. Em L'Impossible prison, um grupo de especialis tas m> século XIX di.scute Vigiar e punir. Suas reações variam da cautela à condescendência, muito embora tenham logrado apontar pouquíssimos pontos em que Foucatdt não detenha o controle dos 'fatos'. Como Foucault observa causticamente, a maioria desses Itistoriadores com preen deu m al seu s argumen tos e. po r iss
principais de Viciar e punir. O que ele nâo fez foi uveitá-lus todas, porque os dados históricos muitas ve zes não as corrob oravam . Os m estres estruturalistas — c Foucault. infelizmente, não fugia à regra — tinham o hábito constrangedor de vxquivar-se àa ohjcçõcs vritivüs, ao invvs de confron tá-las\ e, com poucas exceções honrosas, os comentaristas que lhes são simpáticos ra ramente discutem as críticas dirigidas contra seus he róis; ou. quando o fazem, muitas vezes tentam es condê-las em notas de rodapé, como fizeram Dreyfus e Rabinow no caso de L'Impo.'isible prison. Aquelas aspas em "fatos” dizem muito a respeito da preocupa ção com a objetividade entre os foucaidianos. N o enta n to, se os fatos são um a priori sob suspeita, por que se iirp o nar que sejam ‘’poucos* ’ ou muitos, uma questã o de correções "pequenas” ou grandes? Como pode alguém tão saudavelmente liberado de superstições positivistas sucumbir a esses vestígios de nossa "e stú p id a " preocu pação com a verdade fatual? Jacques Bouveresse, uma avis rara entre os mais conhecidos filósofos franceses, fez, em sua cruzada em prol de crítérios críticos de pensamento, uma ousada e extraordinária tentativa (Le Philosophe chez les auto phages} de conv enc er seus confrades na França de que a real tarefa da filosofia não consiste em dizer às pessoas o que pensar, mas simplesmente em eosinar-lhes me diante seu próprio exemplo, como pensar.-'-' A obra de Foucault, todavia, foi um exemplo brilhante e sedutor de uma filosofia demasiado ansiosa por descartar as disciplinas internas do pensamento crítico, numa busca frenética de novos assuntos espetaculares, pronta 237
mente interpretáveis à luz do preconceito ideológico. Nisso, é claro que não estava sozinho. O desdém pela verdadeira validade argumentativa e demonstrativa tem-se tornado, gradual mas contiruamente. a marca de grande parte do pensamento libertário coniem|>oráneo. E libertarismo, com efeito, é o melhor rótulo para a perspectiva de Foucault enquanto teórico social. Mais precisamente, ele foi (embora nào tenha empre gado a palavra) um anarquista moderno; nào é de .se admirar que, de todos os pensadores um dia ligados ao estruturalismo, lenha sido ele quem permaneceu mais próxim o ao espírito de 1968. Existem ao menos três pontos em que Foucaull es lava dc acordo com o fogoso anarquismo que inspirou a revolta dos estudantes (c literalmente hasteou a ban deira negra da ana rquia na Sorbonne ocupad a, em maio de 1968), Primeiro, como a maioria dos participantes ou simpatizantes da célebre chicnliii Foucault preferia movimentos revolucionários descentralizados e não unificados, quanto mais disciplinados. Não só era um espontaneísta. bem mais próximo de Rosa Luxembourg do que de Lenin e Trotsky, como lambém não acredi tava em esquemas socialistas ou na construção do so possível", argumentava ele, cialismo cm geral. “que o coní4>ruo geral de uma futura sociedade seja fornecido pelas recentes experiências com drogas, sc~ xo, com unas e (tutras form as de co/ísciência e de indi‘ vidualidade. Se no século XIX o socialismo cientifico emergiu das Utopias, ê ptfssivel que. no século XX. uma verdadeira socializaçãtí venha a emergir de expe riê n c ia s /'“’’ 238
Segundo, como a maioria dos Iideies du cspírilu de rebelião dos anos 60, Foucault sentia mais entusiasmo por com bates parlicularistas do que pela luta de classes no seu clássico sentido econômico. Na edição de Hs~ prií. o periódico cristão de esquerda, de maio de 1968, Foucault exaltou a luta de “mulheres. prisUmeiros, soldados conscritos, pacienies de hospitais e homos sexuais" como radical e revolucionária, em pé de igualdade com “ o movimento revolucionário do prole tariado” .^^ Em bora con siderasse que ambos os fenô menos eram dirigidos contra "o mesmo sistema de po der". não era difícil perceber para que lado pendia seu coração. Ainda em 1983, numa conversa com o líder sindical não-comunista Edmond Maire,ele conjeturava a respeito dc m aneiras de con toiiiar os métodos “ fron tais" de luta de classes. Por fim, e em harmonia ainda maior com a mais pura tradição anarquista. Foucault obslinava-se cm suspeitar das instituições, por mais revolucionárias que pretendessem ser. Seu debate com os maoístas france ses sobre "justiça popular", estampado em L es Temps M idernes, em 1972. é um exemplo perfeito. Os maoís tas, na época apoiados por Sarlre, desejavam criar tri bunais revolucio nários. Foucault objetou que a justiça revolucionária deveria dispensar inteiramente os tribu nais, uma vez que estes são, enquanto tais, uma insti tuição burguesa, ou melhor: são "burgueses" porque são uma instituição.^ Mas Foucault não se limitou a "seguir” o anarquis mo. Na realidade, o que o tornou um //ív»-anarquista foi a adição de dois novos aspectos à teoria clássica do 239
anarquismo. Príineíto, seu rígido antiutopismo. Os príncipais pensadores anarquistas do século XIX eram também grandes utópicos. Ainda que se mostrassem profundam ente suspicazes cm relação às instituições impessoais, faziam questão de propor novas formas de vida econômica e social, como o mutualismo de Prou dhon ou as coop erativas de Kropotkin. O neo-anarquismo de hoje, em contraste, soa rigorosamente nega tivo. Parece não possuir qualquer pars construens: suas crenças consistem inteiramente naquilo que ele recusa, não em quaisquer ideais positivos. Segundo, em sua doutrina clássica, o anarquismo nào estava absolutamente comprometido com o irracionalismo» como hoje (ao menos desde Marcuse) parece ser o ca so. Pelu contrário: no maior de seus teóricos, Kropot kin, 0 anarquismo até se orgulhava de sua base científi ca. Assim, Foucault aparece como sendo altamente re presentativo de ambos os elementos definidores do neo-anarquismo: ncgaíivismo e irrarionalismo. Se essa mudança na essência do an arquismo foi para melhor ou para pior, é uma questão que deixarei ao julgam ento do próprio leitor. Será possível que o m oderno niilismo tenha imposto essas características àquela ingênua mas nobre tradição do pensamento social? Terá o espectro de Bakunin — o agitador que era, no fundo da alma, um voluptuoso da destruição — terminado por prevale cer sobre o espírito sadio e humanista de Kropotkin? A meu ver, a principal vítima do mergulho neo-anarquista no irracionalismo foi a própria crítica do po der —justamente o núcleo da teoria anarquista. O mais forte argumento do anarquismo clássico, quaisquer que 240
fossem suas ilcficicncias sociológicas, eiu arguta percepção do poder social do poder, isto é, o reconhe cimento de que também as relações de poder são gran des forças plasmadoras da história, e não apenas um epifenòmeno de fatores tecnológicos c econômicos. Desde o começo, o anarquismo não confiou na idéia marxista de que o po der pudesse s er inocente e inócuo, u(na vez despido de seus apoios na estrutura de clas> ses e na exploração social. O ra, os maneirismos conceituais da “ cratologia** de Foucault não parecem ter-se firmado no realismo desses discernimentos. Pelo contrário: por enxergar o poder cm toda parte e por identificar ina maior parte dc sua obra) cultura com dominação, Foucault, como vimos, rcdu/.iu cin muito a força explanatóría de seus conceitos de poder. Os radicais de esquerda elogiam com freqüência a análise de Foucault por sua capaci dade de ap on tar formas c n íveis de poder que passaram despercebidos ao marxismo; mas a verdade é que, em lermos gerais, a obsessão dc Foucault com o poder em pouco contribuiu para aum entar nossa apreensáo obje tiva dos mecanismos de poder, no passado ou no pre sente. Muito se pretendeu, pouquíssimo se demons trou. Ao se tornar “ con tracultural*\ o anarquismo de certo se fez mais glamouroso — mas nem por isso suas garras cognitivas ficaram mais afiadas. E Foucault — depois de Marcuse — foi o grão-sacerdote que oficiou as núpcias do anarquismo com a contracultura. O estruiuralismo, como clima ideológico, fez o pensamento francês capitular ante o credo contracultural. Uma das bases da campanha contracultural foi a 24!
demolição “ c n ti c a " da heran ça do lluminismo. Michel Foucaull desempenhou um papel fundamental nessa esIraiégia, pois devemos a ele o golpe final da investida contra o lluminismo. Lévi-Strauss, o fundador do esiruluralismo francês é seu primeiro grande Kuhurkriíiker, ainda preza o ideai da ciência e abomina um dos principais ídolos da contnicuhura: a arte m oderna, apocalíptica e enigmática. Foucaull, o modernista nietzschiano, acabou com esses resíduos positivistas. Não muito antes de maio de 1968, em conversa com Paolo Caruso, um hábil entrevistador que o escu tou atentamente, como a Lévi-Strauss e a Lacan, Fou cault estabeleceu uma distinção entre dois tipos histó ricos de filosona. Segundo ele, dc Hegel a Husserl, a filosofia pretendeu alcançar uma apreensão global da realidade. Desde Sartre, no enlanto, ela renunciou a essa ambição e voltou-se para a ação política.*® Dez anos. depois, a imp rensa italiana aind a achava Jeito de se referir a Fouca ult com o “il nuovo S a r ir c " .^ Isso pode parecer puro jornalés — mas não me parece nada longe da verdade. B claro que Foucaull não compartilhava das idéias de Sartre. Em Barthes (para citar outro mestre dos anos 60) ainda havia uma linha, ou tendência oculta, sartriana. nada desprezível. Em Foucault não há, em minha opinião, nenhum eco forte de Sartre — mas existe todo um etos criplo-sartriano, bem sintetizado naquelas palavras a Caruso. Em seu necrológio para o L<' M onde, Roger-Pol Droit fez rcfcrcneias ao contraste entre Sartre, o mattre à penser superconfiante e muitas vezes opiniático, e Foucaull, o pensador sempre em 242
Júvída quanto ao que poderia estar pensando no dia seguinte. No entanto, a despeito de algumas mudanças abruptas de tema ou perspectiva filosófica, o lom de Foucault. em ioda a sua obra. nâo foi nada hesitante — com efeito, parecia bastante positivo, o que sugeria um esiilo inieleclual comum. Ernest Gellner, em seu cáus* lico ensaio sobre Sartre (em Speciariex and prvdk amvnís). falou do “machismo inteívctuui' como um dos ngredienies capitais do espírito da Rive Gauche. No :nachismo intelectual, a força de um argumento não é sustentada por sua qualidade lógica — é transmitida pela inabalável autoconfiança de quem o enuncia. O mportanie é a força com que é apresentado, não sua validade. Assim era com Shaw; assim era com Sartre — e assim foi, também, com FoucauU. Ademais. Foucault também tinha em comum com Sartre uma atitude intelectual. Tal como Sartre, ele era jm hábil apóstolo da filosofia com o arte pela arte da revoUa. Seja o que for que mais possa ter sido para FoucauU, o pensamento era, a seus olhos, eminente mente uma rebelião sem uma causa. E que poderia ser mais sartriano do que a inusitada combinação de sombrio pessimismo (aquele pessimismo a respeito do iiomem e da história que vai desde O ser e o nada até a Crítica da razão dialética) com agitação política? Não resta dúvida de que o papel de Sartre pertenceu, a partir de meados dos anos 70, a FoucauU. A postura sartriana do filósofo como um consagrador não-uiópico da Revollxi Radical foi, prccisamcnle. o que distinguiu FoucauU de seu principal rival pós-csiruturalista. Jacques Derrida: pois em Derrida 243
não há nenhum discurso sobre o poder, nenhuma retó rica de revolta. Além do mais, por trás do negativismo de Foucault — aquela peculiar ausência de horizontes positivos que o separava de seu mestre. N ie tzsche, e, em nosso próprio tempo» tanto dos demais nietzschiano s, os dionisíacos ’’filósofos do de sejo ” , qu anto de pensadores com o Habermas —, por trás daquele nega tivismo esconde-se a soturna concepção sartriana do homem e da história. “ A felicidade não ex iste” é uma afirmativa de Foucault;^^® mas poderia te r sido assinada por Sartre. Muitos já apontaram a afinidade entre o tipo dc li teratura de Foucault e o mercado parisiense de idéias. George Huppert vé o segredo do sucesso de Foucault em St.-Germain-des-Prés na sua capacidade de dar impressão dc esta r dizendo algo de radicalmente novo, enquanto, ao mesmo tempo, suas 'descobertas', para a satisfação do jo v e m leitor, aju.ftam-se de m odo per J'eií
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htsophic'' foi apenas moda passageira: mas é provável que os efeitos da estranha aliança que ela promoveu enire Popper e Soljenitsin sejam duradouros. Curiosamente, quando subiu ao poder a esquerda de Mitter rand, em muitos asp ectos não menos “ desradicalizada“ do que a social-democracia européia, o pensa mento francês parecia mergulhado num verdadeiro ex purgo dirigido contra os radicalismos. Michel Tatu, de Lc M onde, acentua que, enquanto na Grã-Bretanha ou na Alemanha o anticomunismo dos intelectuais flores ceu durante a guerra fria, na França esses foram os lempos em que chegou ao máximo o namoro com o mito da revolução e da construção do socialismo. Hoje vemos a maré em refluxo, No enlanto a retórica radi cal é qiiHse iima formji mental pary a míeHigenfsiei francesa; o hábito está entran had o há muito tem po para ser de todo abandonado de súbito. Por isso, ele tende a persistir, mesmo em escala bastante reduzida e sob más estrelas. O palco estava arm ado , portanto, para al guma espécie de pensamento capaz de defender o baslião do Mito da Revolta — um mito mantido vivo por aquela solene brincadeira dos intelectuais franceses desde os tem pos de B aud eiairee Flaubert: esca nd alizuro burguês. A teoria foucaldiana de poder/saber satisfez essa necessidade com inquestionável talento e muito pa nache. quando nada por te r sabido não perd er tempo em lentar reviver as desgastad as crendices da fé radical no passado. Tal como Sartre, há muitos anos, Foucault ha via aprendido a destilar o Elixir da Pura Negação. Com isso, infelizmente, ele se tornou a figura central de uma lamentável metamorfose da filosofia 245
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continental — um impasse sagazmente descrito e criti cado por Bouveresse.*^^ Tudo começa com a ironia de uma filosofia que, tendo sonoramente proclamado a morte do homem (uma questão epístemológica, decerto — mas com que im plicações morais cuidadosam ente orquestradas!), dedica-se aos mais excitantes proble mas du humanidade (loucura, sexo, poder e punição...) sob a alegação dc que a filosofia, como investigação de antigas abstrações como a realidade e a verdade, a sub je tividade e a história, caducou. Hum ildade?... Bouveresse duvida, pois esses filósofos pós-filosóficos es carnecem das pretensões de todo o saber, mas não se inclinam nem um pouco a estender o ceticismo às suas pró prias concepções negativas, e g'o balizantes, sobre a ciência, a história e a sociedade. Recusando todo de bate crítico, eles parecem laborar no equívoco de que a ausência de método e o desdém pelo rigor argumentativo levem automaticamente a uma percepção virtuosa dos “ problemas reais” . N ào se pejam de pa ssar por escritores, e nào por pensadores profissionais; mas o manto “ literário** mal en co bre um imenso dogm aiismo. Por exemplo, sendo (é claro!) radicalmente “críti ca*’, es.sa nova filosofia abandona-se a uma ilação cla ramente falsa; muitas vezes raciocina como se, do fato de a disposição dc reconhecer uma ilusão, ou uma fraude, no reino das idéias e valores ser, em si mesma, um saudável hábito mental, devêssemos inferir que todo valor e toda idéia nada são senão falsidade ou em buste. Ela não parece entender que, como observou argutamente Hilary Putnam,*^’ degradar a racionalida246
de, de maneira rclatívista. à condição de simples in venção de uma dada cultura histórica é uma atitude tão rcduclonisla qua nto a redu ção da razão ao cálculo cien tifico. ao gosto do positivista lógico. E a nova skepsis. cujo primeiro m estre foi F ouc ault, tem o “ cinismo subversivo” de pregar o irracionalismo e o desmasca ramento do intelecto, ao mesmo tempo em que se manicm muito bem situada nas instituições que tanto se es força po r solapar: ela con stitui uma “ marginalidade oficial". Faz parte de seu negativismo beneficiar-se disso sem maiores escrúpulos morais. Leo Strauss costumava dizer que. nos lempos mo dernos, quanto mais cultivamos a razão, mais cultiva mos o niilismo- Foucault demonstrou que não é absolu tamente necessário fazer a primt»in< coisa a fim de al cançar a segunda. Ele foi o fundador de nosso niilismo de cátedra.
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NO TA S
1 Ver suu entrevísia cm Lo Qttinzaine L itiin ü rf. 46 {!.“ mar. 1968). 2 Cf. Foucauil 1970, cap. VI, 7, in fine, c Foucuuii 1977 a, cap. I, I; elc usou a cxprcMsão ‘’historiador do presente** numa cntrcviita concedida a Bemard-Henry Levy (Lv N m w l Obscrvateur M4, mar. 1977; trad, cm Tvlos 32. verão dc 1977). 3 Cr. seu prefácio à trad, inglesa (1981) di> llvro de Tnngiiilh;m, Tht‘ Normal and tht Palhtthfiical; u epígrafe usada por C. Gordon em seu posfácio a Foucault 1980; e prncipalmcnte a en trevista de Foucaull a Tclos 55 (primavera dc 1983). 4 Foucault 1972, p. 246. 5 Hayden White in Slurrock 1979. p. 83. Antes do volume de Sturrock. White se mosirava muito mais simpático às idéias de Foucault, como se verá. 6 Tt'lits 55 (primavera de 1983), p. 200. 7 Ibid., p. 202. 8 Mendelbaum 1971, p. 6. 9 Geliner 1979, cap. 1. 10 Foucuult 1978, p. 3-6. 11 Id. ibid. 12 Id. ibid., p. 500. 13 Serres 1968. p. 178. 14 Cf. a recensão de Edgar Fnedenberg cm The Neu- York Tirnrs Book Rerk'w, 22 ago. 1965. 15 Trad, inglesa in Foucaull 1977 b. 16 Ver sua segunda resposta a George Steiner (crítico de íiistó-
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ria do fouvura cm The Ncn' Yt>rk Review itf Buo ks), in Diacrilicx V . 1(outono de 1971). p. 60. 17 Mcgill 1979. p. 478. 18 Foucaull 1972. cap. II. 3. 19 Slone. Madnes. The New York /if’viVir t i f Btfoks, !6 dez. 1982. p. 36. 20 Midclfon in Malamenl (org.). 1980. 21 Sobre esse ponio. ver Johnston 1972. p. 223*229. 22 Para a cnlica de outro especialista, ver a recensão dc ft;icr Gay in Comnienrary 40 (oui. 1965). 23 Wing 1978, p. 116. 24 Mjyor-Pocll/ 1983. p. 148. 25 Foucault 1972, cap. IV. 4. 26 Prcfâciu ù tradução inglesa dc /4.v palavras e a.\ eoisas. 27 So bre cs sc po nto, v er Dreyfus & Rabinow 1982. p. 70, c Major-Poctl/ 1983. p. 90. 28 Como frisado por Stove 1982. p. 6. 29 Papineau 1979, p. 42. 30 Bachelarxl 1949, p. 38. 31 Ca nguilhem l% 8 . p. 204-205. 32 C f. B ache lard 1939. cap . VI (L'ep istcm olog ie no n-carlésienne). 33 C f. S orel. De T utilité du p ragm atisme (1921): ex cer lo s in Stanley (erg.) 1976, cap. 8. 34 Cf. Hyppolile 1954. 35 Ver, sobre esse pon to, os judicioso s com en tários de Paola Kabelli na introdução a K oyrc l% 7, p. 37ss. 36 Koyrc 1966, p. 284-296. 37 Die Zeit des Wcslbildes (1938). publicado como o segundo ensaio dc scu livro fía lz^rg i' (1950); trad, inglesa in Heidegger 1977. 38 Dilthey 1905, cap. 1. 39 Foucault 1981. cap. HI. 2. 40 Esse punto havia side também ressaltado por Heidegger (ver nota 46). 41 Sobre a evolução estilística de Velazquez, ver o estudo do 250
rrnornJido especialista E. Lutuenic Ferrari I96C. princip. p. K9-9I e 02-113. 42 Segundo o biógrafo de Vclásqucz do séc. XVIII, Antonio Pa lomino, citado cm John Rupert Martin 1977, p. 167. 43 E ssus es pec ulaçõ es foram su geridas por J. R. M arlin, up. cit.. p. 124. 44 Sobre lodü esse pano dc fundo histórico, ver Lassaigne 1952, p. 6()-65. 45 Foucault 1981, cap. I. in Une. 46 [d. ibid., cap. Il, 1. 47 Id. ibid.. cap. V, 7. 48 Id, ibid.. cap. VII. 1. 49 Id. ibid.. cap. VI, 7. 50 Id. ibid.. cap. IX. 2. 5Ï Id. ibid., p. 404. 52 Para cssas expressões (e outras semelhantes), ver Foucault 1981, cap, IX. 2. 53 Para lodo esse parágrafo, ver Foucauh 1981. cap. IX. 4. 54 Foucault I9SI. cap. X. 2. 55 Id. ibid.. cap. X. 3. 56 Id. ibid.. cap. X, 3. 57 Id. ibid.. cap. X. 5. 58 S e rti s 1968, p. 193 c 198. 59 Resta apenas di/er duas palavras sobre uma coisa que Ilea iiuctsc que nas entrelinhas do livro: as observações de Foucault so3re o status da literatura ao longo dc ioda a seqüência de suas rp'sU'mvs. Na verdade, elc tem duas maneiras tie apresentar a li teratu ra cm te rm os ' ‘arqu eo lógico s ". Por um lado, a liieraiiMa preenche os inte rstíc io s enlre as t'pixwmes: itssim. da mesma forma qu e Dom Quixote assinalou a morle do s.»bcr da Renascen ça, em Sade a violência do desejo marcou o fim vpisivrnv clás sica. Por outro lado, a arqueologia do sab er deu ã literatura “ uma nova maneira de ser*'. Mallarmé, ao atribuir it poesia uma reflexão sobre a linguagem, convertendo a literatura cm lormahsmo, náo trcuxe nenhuma ruptura com lifpiswnw moderna. Antes, levou à consumação um "retorno da linguagem", inscrito na pr»)pria natu-
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rc/ii do dcalino que u cultura ocidental abraçou dcsdc o raiar do scculo XIX. Puru FuucuuU, Mallarmé seguiu um caminho paralelo ;h> de Nietzsche quando sublinhou convincentemente n urgente questão da linguagem. Depois que Mallarmé promoveu o casa* m ento du literatu ra com a linguagem intransitiva, a arte literária só póde alcançar seus grandes m om entos num a experícncía intensifi* cada de limKes existenciais, como em KaDca ou Ailaud. A idéia — e o ideal — lòucaldianos dc literatura moderna começam com Blnnchot (a literatura como uma materialidade intransitiva dc lin* guagem) e termina com Bataille (u literatura como a esiética dn transgressão). T ais noçõ es náo eslâo distantes da ideologia do estruturalismo literário. Além disso, o próprio Foucault dedicou-se ocasionalmente ã crítica liter;íría. como atestam seu pequeno vo lume sobre Raymond Roussel (1963). um romancista experimental menor, seu brilhante ensaio sobre lUiin dv Oiam'. de Klossowski (in Critique. 1964) e scu p erspicaz ensaio sobre Flaub ert (Fantasia oFthe library, !%7. in Foticaiill 1977, p. 87-109). Fsse úllimn tra balh o e m uilo esclarecedo r sobrc as rela ções entre a im agin ação e aquilo que a crítica literária cstruturalista chama de intertextuali* dade. Foucaull tiunlicm escreveu sobre Bataille (ver A preface to tran sgr ess ion |19 63 ‘ in F ouc aull 1977) e sob re Blanchol (cf. seu ensaio La pensée du dehors in Cridque 229, jun. 1966). 60 Cf. FoucauU Rép onse au cercle d’épistémo logic. Coiners fH>ur iA n alyse 9 (vcrâo do 1968). 61 Ver G. S. Rousseau 1972. p. 241. Rousseau alega apoio em Yates 1964. 62 Huppert 1974. p. 205-206. 6.1 Sobre tudo isso, ver Koyré 1961, p 61-69. c Yates. op. cit., p. 153, 155 c 440-443. 64 Cf. Westfall 19«0, p. 407. 65 Sobre a história dc lodo cssc fundu teórico, cf. Mittelsirass 1979. princip. p. 43-53. As palavras lextuiis dc Kepler (in tlpUome astronunùue eopenùeumic) são: eantempfori i^enitimim form am ae
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67 Piagei 1970. cap. VM. 21.
68 Cangiiilhem 1967. p. 612-613. 69 Foucaull J981 cap. VI. 1. grifo men. 70 Id. ibid. cap. VII, 1. 71 Foucaull 1972. cap. i, in fine. 72 Huppcri 1974, p. 200-201. 73 Foucault 1981, cap. II. I. 74 Huppcri. op. CÎI.. p. 201-203. 75 Ci. S. Rousseau 1972. p. 248-249. 76 Id. ibid.. p. 245*246. Rousseau recorrc à autoridade de dois especialistas cm Sancilus. o americano R. LakofT, discípulo de Chomsky (cf. seu ensaio in Lannua^v 45 Î1969; p. 343*364 ’ e o inglcs RichaitJ Ogle, do Centro dc Linguagem da Universidade de Essex. Em Histoire de ia Synta xe ( 1968), Jean-C laudc C he va lier já havia apontado a dívida dc Port-Royal para com Sanclius. 77 Ver o ensaio de Jean-Claudc Chevalier si>brc a gramatica de Pon-Royal in Uinf>am\\. 7 (set. 1967». 78 Miel 1973, p. 239-240. 79 Para todos esses dados históricos, ver Buliertlcld 1957. cap. 1 1
.
80 Sobre esse ponio, ver Singer 1962. p. 281. 81 Burgelin 1967. p. 855. 82 Krisleller 1961. princip. p. 10, 22 e 94-103. 83 Burgelin. op. cil., p. 856. 84 Vemon Fratl. especialista em classificaväo biológica, apon tou outro enigma conceituai do ponio de vísla das caiegorias dc l-oucaull. Dc modo geral, Pnilt aprova basiantc Foucault. mas ob serva
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88 Híi^urd 1935.
89 Wade (977. v. 1. p. 85-86. 90 Cassirer 1932. cap. I. 91 "Piiganismo modcmo" é tim conceito lundamcntal no exccIcnte estudo de Pcicr Gay sobre o lluminismo. Vcr Gay 1966. v. I c. sobre Hume, princip. cap. VII. 3. 92 Mouciujit I98J. Prefácio. 93 White 1973. p. 50-52. Agora um capittilo in White 1978. S>A Id. ibid.. p, 53. 95 Vcyne. Fou caull révolutionn e I'hisioire. Apêndice a V eync 1978. princip. p. 226-231 e 240. 96 Fouciiuli 1977, p. 142. 97 Ver Bcllour 1971. p. 189*207: uma cnlrevisla publicada origi nalmente cm Li'S Lettres fr ançaises 1187 1 15 ju n , 1967). 98 FoucauU 1967. p. 192 e 187. ^ 99 Foucault 1972, cap. II, 3. 100 Id. ibid.. cap. Ill, 1. 101 Id. ibid., cap. I. 102 Id. ibid.. cap. II. I. 103 Id. ibid., cap. III. 3. 104 c r . Kua en trev ista a R. Bcllour cita d a l a no ta 97. 105 U-courl 1972. 106 FoucauU 1972, cap. IV. 1. 107 P-anofsky 1955. Intro du ção (pu blicada orig inalm ente in T . M. Greene (org.). The Meanhi}! o f the I/umanities, Princeton. 1940). 108 P*ar
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110 N esse sentido , o hiato, co rreiam en le o bsc r>'ado ‘por l\>dro (1982. p. 205), enire o foco de Panofsky sobre o conteúdo Ideológtco e a pre ocu pação d e Aby Warbui-g com a Inierpreiaçáo d a arte num comexio dc comportamento social é uma briga dc família — aubas as posições são abordagens antiformalislas. ‘*cuUurnis’'. do estudo da arte. A a rte com o símbolo (Pano fsky)e a arte com o ritual (Warburg) sào perspectivas que cstâo mais próximas uma da outra do que qualquer uma das duas está da arte como forma pura. 111 Cf. Jo hn Dunn . T he ideniiiy o f lhehisiory o f Ideas (1968). hjje in P. L aslelt, W. G .. Runcim an &Q .Skinner(orgs.) Ouenlin Skinner. Meaning and Understanding In Che lllstoi^y of liieas. History and Tlwory. 8: I <1969). p. 3-53. 112 Para todas as defínições negativas do '‘enjnciado**. vcr Fouc.iult 1972. cap. III. 2. 113 Foucaull 1972. cap. Ill, 5. 11-4 Id. ibid .. cap. Ill , 5. 115 Id. ibid .. ca p. tl l, 5. 116 Cf. Fo ucau ll. R éponse a u C ercle d'E pislem ologie. clt. (ver nola 163), p. 19. 117 O que é um aulor? foi publicado originariainente no liulletin di* lo Sociâtâ Française de PhiU)sophie 63 (1969). p. 73-104; irad. inglesa in F ou ca uh 1977b p. 113-138. 118 Fo ucaull 1972. cap.III. 2. 119 Id. ibid.. cap. IV. 120 Id. ibid., cap. V. 121 Megill 1979. p. 487. 122 Delcu^re 1972. p. 44-45 (tradução minha). 123 Foucault 1971. 124 Foucaull 1971. 125 I he inlelleciuals and po w er, origln arlam en e in L'A rv 49 (mar.
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1
1972). p. 3-10: irad. in Teltis 16 (vcrâr de 1973), repiihlk:Hd(i in Foucaull 1977. p. 205-217. 126 Foucaull 1977a. p. 55. 127 Kantorowic? 1957. cap. 2. 128 Foucaull 1977u, cap. II. 1. in fine. 129 Id. ibid.. cap. II. I. 130 Id. ibid.. cap. 111, 1. 131 Id. ibid.. cap. 111. 1■ 132 Id. ibid., cap. III. 3. 133 Pani os úilimos Irés parágrafos, ver Foucault 1977a. cap. Iii. I. 134 Id. ibid., cap. Itl, 2. 135 Id. ibid ., ca p. III, 2. t 136 Id. ibid., cap. III, 2, e cap. IV, 3. 137 Id. ibid., cap. IV, 2. 138 Id. ibid.. cap. IV. 3. 139 Id. ibid., cap. III, 3. MO Id. ibid., cap. III. 3. 141 Para uma boa crílica dc A s píiiu vrm <• as coisas, com relação a esse ponto, ver Pclorson 1970. M2 Foucaull 1977a. cap. IV, 3. 143 Id. ibid.. cap. III, 3. 144 I^onard in Perrol (org.) 1980, p. 19. 145 Foucaull 1977a, cup. I, I. 146 Id. ibid., cap. I, I. 147 Id. ibid., cap. I, 1. I4S Léoníird. op. cii., p. II-I2. 149 Venlu ri 1971, p. 103-105. V enturi m en cio na H ans M üller, Ursprung tind GcschirhU’ th‘S Worfrs ‘So d tíli.w w j’ und svincr Vvrwumdwn. 1967. sobrc o an icriur uso laiino dc “ soc ialista” . 150 Venluri, op. cil.. p. 114. 151 Para es sa critica , vcr a rece nsão de R obcrt Brown de Vi^tiar v punir no Times Lilcniry Sitppienwnt, I6jun. 1978. 152 Cf. o verbele de K. William sobrc Foucault in Winlle (org.), 1981. 153 Elsler 1983, p. 101-105. 154 Léonard, op. cit.. p. 14.
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155 Ver o posfácio dc Colin Gordon sobre Foucault 1980, p. 239. Fnm*>iult 1977a. cap. Ml. 3.
157 Foucaiili 1980a. p. 217 e 220-221. L58 Para lodo esse parágrafo c suas citações, ver Foucault 1980a. p. 87-90, l.'i9 Id, ibiti,. p. 91-92. liiOCf, La Q uin uih w Littvrairc 247 (l.‘*-15 jan. 1977K Tradução m nha. 161 Cf. U ' No uvel Observateur, 13 mar. 1977, p. 105, 162 r-oucault 1977b, cap. 11. 2. 163 Foucault 1980a. p. 98. 164 Foucault 1980a. p. 104-105 c 151. 165 Id. ibid.. p. 99 c 96. 166 Id. ibid.. p. 156. 167 Gordon in Foucault 1980ît. p. 346-347 c 255. 168 Ruiz-Miguel 1983. p. 292. IÉ0 Dews 1984, p. 86-87. 170 Foucault 1977, p. 208. 171 Id. ibid.. p. 222. 172 Cf. h- Nouxx'l Obserx'otetir, 26 jan . 1976. Trad uzido e co nd en sado com o Th e politics o f crime , in Partisan Heview, v. 43. n. 3 (1976). p. 453-59. 173 Cf, /.r Nouvel Observateur, 12 m ar. 1977, p. 113 e 124. 174 Le Nouvel Observateur. 9 maio 1977. 175 Cf. F ou cau lt 1977, p. 212-216 (dc In iellectuuls and p ow er). Cf. A dorno: “ Qu ando con struí meu modelo teórico, nào podia ter adivinhado que as pessoas desejariam realizá-lo com coquetéis Mjlotov*' (apud Jay 1984. p.55). 176 Entrevista a Jean-Louis Ézine in Nouvelles Littéraires 2477 (17-23 mar. I975>. 177 Dews, loc. cit.. p. 92. 178 V e ro en saio so bre Fou cau lt in .Said 1984. 179 Foucault. Umdon Review o f Books, 23 mail) a 3 jun. 1981. p. 5. I«Ü Foucault 1976, p. 58. 181 Id. ibid., p. 59.
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182 Id. ibid., cap. 11, 1. IX.l id. ibid.. cup. III. Lt' L t' N t n n v l O h s iT v a ifu if u r , 12 mar. 1977, p. 105. 185 Foucault 1977b, cap. 1. 186 Gay 1984, p. 468. 187 FoucauU 1980a. p. 211. Esse diálogo dc 1977, A confíssâo du camc. cap. 11de Power Knowledge, foi publicado originariame nte in Ornicar, rcvisla publicada pclo Dcpijrtamenlo de Psicanálise da Universidade de Vinccnncs. 188 FoucauU 1980a. p. [96-197. 189 Foucault 1984, p. 10. 190 Id. ibid.. Introdução. 191 Para os dois últimos parágrafos, cf. Foucault 1984, cap. IV. () cxem pio do clefantc clefantc já havia sido sido m encionado encionado p or Foucau FoucauU U no ar tigo da ijtnd ijtnd on Revie Review w ttfli ttfliottks ottks (v er to la 2 91K p. 5, dc on dc vcm vcm a citaçào. 192 Cf. FoucauU 1984, cap. IV. 193 Id. ibid., cap. IV. 194 FoucauU 1985, cap. IV, 4. Para os comentários prcccdcntes no mcsmo parágrafo, vcr principalmcrie id. ibid.. cap. IV. 2. 195 Id. ibid., cap. VI, 1, 196 Lo 1981. p. 5. L o n d o n R evie ev iew w o f Bo B o o ks. ks . 21 m aio - 3 ju n . 1981. 197 FoucauU 1984, cap. I. 4. 198 FoucauU 1985, cap. I. 199 Foucault, Unidon Review Review o f Book Books, s, cit., p. 5. 21X) FoucauU 1984. cap. I, 3: 1985, cap. I. in fine. 201 Cf. Rouanei (org.) 1971, p.40-4I. 202 Dihlc 1982. p. !27. 203 Bcllour. Unc reverie morale (uma recensão dc () nso dos pro zere ze ress c de O euidado de si). Mufja:Jne Lilteniire. p. 27-29. 204 Guede? 1972, p. 10-46. 205 U m e r l & Gillan 1982. 982. p. 22-25. 22-25. 206 Smart 1983. p. 136-137. 207 Gordon in FoucauU 1980. p. 255-258. 20» Sheridan 19«), p. 218 e 221. 209 Cotcsta 1979. p. 172. 258
210 Hacking, críticu de P tnw r/N niw fciitu ', i\fw i\ fw Ytt Yttrk Kcvii’i Kcvii’ix' o f liiok.\, 14 maio 1981, p. 37. 211 Scgu ndo palavruü palavruü de J . En oc h K>wc K>wclll niim niim artigo .sobr .sobree a bio grafia de Gilbert Murray, por Francis Wcsl, Jimi-s Jim i-s LUvra LU vrary ry S u p pA'nu’ pA'n u’nn t, 27 abr. 1984. 212 Cf. Foucault 1980. p. 197. 213 Cotesta. op. cit., p. 178-80. 214 Inversa m ente. podc*s podc*see argu m entar que N ctzs ch e, ap csa r dc sua aiuaçâo básica como momliMa. c nâo como historiador ou cpistemologo. cpistemologo. cxibe uma atilude atilude em ivla ivlaçûo çûo à verdade que. u de s pe p e ito it o d e id é ias ia s c o n t i ^ r i u s c o m u n s , e r a d e t o d o c o m p a tív tí v e l c o m um i ttanUivismo empirista do tipo i'alibilista. e que ele reveiava. dc qjalquer modo, forte avcrsâo ao niiiismo intclcclual ou ao cetic smo sistemá tico. P ara um a argum entação nesse se ntido, ver Witcox 1974, passim, c principalmente os caps. 2. 4 e 7. A postura séria de Wilcox é uma prova adicionai de que Nietzsche pode muito bem scr cultuado em St.-Germain-des>Prés, mas acaba sen* do mais bcm estudado em Binghamton, NY. 215 Habermas. Lev L evU U tres tr es o n thv th v d isc is c o u rse rs e o f mo{Ierniry mo{Ie rniry (no prelo), pis p is s im . 216 Cf. Roriy 1984. p. 181*197, para uma boa análise da discussão de Habermas. 217 Cf. Chomsky & Foucauh in Elders (org.) 1974. Comentários d; Chomsky a respeito do desacordo entre ambos in Chomsky 1979 1979,, p. 74-80. 74-8 0. 218 Tronibadori 1981. p. 64-65. 219 Um excerto do curso foi publicado no Ma M a g a zin zi n e L iftê if têra rair iree 207. maio 1984; v. p. 39. 220 Kermode Crisis critk;. Ne N e w York Yo rk R evie ev iew w o f B o o k s . 17 maio 1973, p. 37-39. 221 David B. Leary. Michel Foucauh, an historian of sciences humaines, h m n u ú it fth e Hist History o f Ihe Behav Behaviiou ourral Scie Science nces. s. 12 U976K p. 293. 222 Dreyfus & Rabinow, 1982, p. 126. 223 Buuvcicssc 1984. 224 Foucauh 1977. p. 231.
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225 Cf. FoucauU. Réponse à une question. Esprit 371 linuily in Salrtui^iindi 20 (vcrâo-oulono de 1972). p. 225-48. 226 Cf. U Dvh Dvh iit 25 (maio 1983). p. 9. 227 227 Su r la la jus lice popu laire: laire: déb at av ec les m aos. Le L e s T e m p s M o iiernes, 310 bis (1972), p. 335-66: agora cap. l in Foucault 1980a. 228 Vcr sua cnlrevisla corn Paolo Caruso (1967) in Caruso 1969. 229 Cf. L'Eu L' Euro roiH iH‘‘0 . 18 fev. 1977. 230 Cf. a entrevista de Caruso (ver nota 228). 231 Huppert 1974. p. !91. 232 Bou\-crcssc, op. cil., principalmenlc p. 13-14, 44, 85-86. 107, 150. 162 c 172-174. 233 Putnam 1981. p. 126 e 161-162.
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INDICE DE AU rOKES CITADOS
ADORNO, Theodor W.. 153. 228 AG OSTIN HO . Sanlo. 207,208.214 ALDROV ANDI. Ulisse, 55 .64.95, 195 ALTHUSSER, Louis. J6. 17, 47, 57, 106 ARIÈS, PhUippc, 209 ARISTÓTELES, 60. 88. 89. 196, 198 ARNAULD, Anioinc. 9b. 20> ARON. Raymond, 23 ARQUIMEDES. 89 ARTAUD, Antonin, 32 ARTEMIDORO de Éfeso. 207, 208 AULO GÉLIO. 197 AUSTIN. 12
BELLOUR. Raymond. 215 BELON. Pferrr, 94-5, 96, 102 BERGSON, Henri. 12, 13. 25 BERNOUILLIS, 90 BETHE. E.. 210 BICHAT. François Xavier. 45 BLACKSTONE. 138 BLANCHOr, Maurice. 56 BLOY. Lion. 224 BÜULb. U to i^ . 9U BOPP, Franz, 75 BORGES. J-irgc Luis, 49-50 BOUVERESSE. Jacques. 237. 246 BOYLE, Robert. 99 BRAUDEL. Fernand. 235 BROWN. Norman. 35, 46 BROWN. Robert. 162 BACHELARD. Gasion. 56. 57. 58. BROUSSAIS. François, 45 59, 106. 117-8 BRUEGHEL. 27 BAKUNIN. Mikhail. 240 BRUNSCHVICG, U o n . 57 BARTHES. Roland. 14. 48, 56. 84. BUFFON. G. L. Ledere, conäe <-, 55. 90. 91.95 151, 242 BATAILLE. Georges. 219 BURCKHARDT, Jacob. 108 BATTIE. Wüliam. 42 BURGELIN. Pierre. 102 BAUDELAIRE. Charles. 245 BAUDRILLARD. Jean. 177-8 CAM PANE LLA.Tomm aso. 64.65 BAYLE. Pierre. 104. 105 CANGUILHEM. Georges. 16. 43, BECCARM. Ccsare, 135. 158.159. 46. 56. 57. 9). 91 160 CANTOR. Georg. 90 BEC HER . Johann Joachim. 99 CARAVAGGIO. 70 BEETHOVEN. Ludwig van. 139 CARDAN. Girobmo. 64
273
CARLISLE. L ady. 224 CARNOT. La/are. 90 CARUSO. i*aolo. 242 CASSIRKR. Emcsi. 104. J05 CAVA1LLÈS, 56 CERVANTES. 27, 67 CESALPINUS. Andrea. 64 CHEVALIER. Jean-Claudc. 104 CHOMSKY. Noam. 18. 19. 229 CLAUSEWIT7.. Kari von. 169 CO LLINGW OO D. 234 COMTE. Auguslc. 20, 80 CO ND ILLA C, É lícnne Bonmx dc. 78, 106 COPÉRN1CO. 86. 87 COTESTA. Vluorio. 221. 228 CUVIER. Georges. 75. 91. 95 D’Al.FMRF*RT. Irnn I <• Rond. 160 DARWIN. Charles. 19. 90, 91 DAVIDSON. Donald. 18 DE GAULLE, Charles. 13 DEI.EU/.E. Gilles. 34. 127, 129. 152. 229 DEMÓCRITO. 60. 61. 197, 202 DE I’RUSA. Dion. 197 DERRIDA. Jacques. 14. 17. 18. 243. 244 DESCARTES. Rcnc. 21.58.61.66. 68. 88. 90. 97. 104. 105. 106 DESCOMBES, Vinccm. 220 DESING. Anselm. <60 DEWS, fttcr. 178. 181 DICKENS. Charles. 41 DIDEROT. Denis. 160 D1HLE. Albrechi. 214 DILTIICV. Willicliii. 65. 217 DIOGENES, o Cínico. J97 DOERNER. Klaus, 41. 42. 43 DOVER. K .J. , 210
274
DREYFUS. Huberl. 167. 218. 2S6. 237 DROIT. Roger-Pol. 242 DUNN. John, 121 EINSTEIN. Albert. 90. 91 ELIAS. Norbert. 154, 213. 214 ELSTER. Jon. 162 EPICTETO. 202 ERASMO, 27. 65 ESTÁCI0. 203 EUCLIDES. 89 FACCH1NE1. Ferdin:mdo. 160 FEBVRE. Lucien. 192 F IC irrE . Johann Goltlieb. 179 FIN AS. I.uc elte. 170 R.AUBERT, Gustave, 245 FRANCISCO DK SALKS, São. 194. 195 FREUD, Sigmund. 33. 39. 49. 169. 187. 220. 224. 228 FROMM. Erich. 46 GADAMER. Hans-Georg. 18 GALENO. Cláudio. 44. 202 GALILEU. 61. 66, 87. 88. 89. 90. 105 GASSENDI. Picrrc. 61 GAUSS. Carl Friedrich. 90 GAY. Peter. 188 GE LLN EX . EmcM. 18.25.232,243 GILLAN. Garth. 219 GIORDANO, Luca. 71 GLUCKSMANN, André. 181 GOFFMAS, Erving. 162 GORDON Colin. Ibb. l/>, iI9 GRAMSCI, Antonio. 130. 226 GUATTARI. Felix. 34 GUEDEZ, Annie. 218
KRIEGER. Uonanl. 178 KRIPKE.Saut, 18 KRISTELLER, Paul Oskar, 102 HABERMAS, Jürgen. 18, 20, 228, KRO POT KIN. Piotr Alekscicvitch. 240 229, 230, 231. 244 KUHN. Thomas. 18. 46.51-4. 59 HACKING. Ian, 223 HAZARD. Paul, 104. 105. 106 HEGEL. Friedrich, 16,21.25. 114, LACAN. Jiicqucs, 14. «2, 242 169. 179. 181. 220. 231. 242 LAGRANGE. Ltniisdc.90 HEIDEGGER. Marlin. 13, 25. 65, LAING. Rjnald. 34. 225 220, 229 LAMAR CK, Jean-Baptiste de Mo nel, 75 HIPÔCRATES, 197, 202 HÖLDERLIN, Friedrich, 32 LANCELF.OT, Claude. 96. 97 LAPLACE. Pierre Simon. % HOOKE. Robert, 102 LAVOISIER. Antoine l^iirenldc. HORKHEIMER. Max. 228 99, 100. 10 HUGO. Victor. 156 LAW, Johr. 91 HUIZINGA. 108 HUME. Duvid, 105 LEARY. David. 234 HltPPf-R'I. George. 93. 95. 244 LECOURT. Dominique. 118 HUvSSERL. Edm und, 12 .13,25 ,59. LEFKBVRE. Henri, 219 LEIBNIZ. Gottfried Wilhelm. 90. 220, 242 HYPPOLITE, Jean, 16. 17. 58 104, 106, 162 LEMERT. Charles, 219 ILLICH. Ivan. 225 LENIN. 238 LÉONARD.Jacques, 151. 155.156. 164. 236 JACOB. François. 60 LEONARIX) DA VINCI. 65 JEVONS. 89 JONES. William. 75 LÉVY. Bcmard'Hcnri, 187 LÉVI-STRAUSS. Claude. 14, 56. KANT. Immanuel, 20. 54. 230, 231 64. 77, 82. M, 120, 242 LIN EU iCarl von Linne). 44,67.69. KANTOROWICZ. Emsl, 134 73, 91, 95 KAROL. K. S.. 179 LÍPSIO, JuMo.205 KELSEN, Hans, 176-77 KEPLER. Johiinncs. 86-7, 89. 102 LOCKE. John. 104, |05, 179 KERMODE. Frank. 233 LOVEJOY.Anhtir.63 LOYOLA. Inácio de, 141 KHOMEINI, „in/old. 15 KOl.AKOW.SKI. Ix&zek. LUCAS. Charics. 147 KOYRÉ, Atexandre. 59. 60, 87 LUKÁCS. Georg. 25. 1.30. 153 KREMERMARlErn, A n g è l e , LUXEMBOURG. Rosa. 238 217 LYO TAR D. 229 GURVITCH. Georges. 219 GUSDORF. Georges, 103
275
MAIRE. Edmond, 239 MAJORPOETZl. Pamela. 46. 217-8 MALPIGHI. Marccllo. 102 MANDELBAUM. Maurice. 24 MARCO AURÉLIO. 203 MARCUS. Steven. 209 MARCUSE. Herben, 15. 150, 152. 153. 187. 188, 225, 240. 241 MARSENNE. 94 MARSHAÏ.L. T. H.. 89 MARX, Karl, 80. 85. 106. 114. 150. 220, 224, 228 MAUSS. Marcel, 56 MA XW ELL, James C lerk. 90 MHGILL, Allan. 35. 126 MENDEL. Johann. 91. 128 ME NGER . 89 MFRt-FAU-PONTY. fcïaurice. 13. 23 MEYERSON. Emile. 59 MICHELET. Jules, 108 M1DELF0RT. H. C. Erich. 37 MIEL. Jan. 97. 104. 106 MITTERRAND. Fninçois. 245 MONGE, Ga-spard. 90 MO NTA IGNE. 65. 86 MORELLET. abbé, 159 MURRAY. Gilbert. 224
NERV AL. G érard dc. 32 NEW TON. Issm c,5 2.8 7.8 8.89.9 0. 104. i05 N IC O L E. ï H c m . 96 N IE TZSCH E. Friedrich. 2. 13. 25. 32.33..U. I10-J3, 117.126. 153.1.‘•4. 169, 211. 218. 22Ü, 221, 223, 224. 225. 227. 231. 244 N OËL, poJre. 97. 98
276
NORA, Pierre. 2ü9 PANOFSKY. Erwin. 119. 120 PAPINEAU. David. 54 PAR ACE 1 5 0 ( Aurelus Theophras* lus Bomfoiistus von Hohenheim). 64. 65, 86 PASCAL. 31aisc. 79. 97-8 PEIRCE. Charics Saodcrs, 120 FESrALOXZl. Johann Heinrich. 157 PIAGET, Jean. 90. 233 PINEL, Philippe, 31. 32. 36.39,40. 42 P1TÁG0RAS. 88 PLATÀO.60.88.194,196,198,200, 201
PLÍNIO. oVelho. 195. 203 Pl-inTARCD. 19^. 704-5 POLANYI. Michacl. 233-4 POPPER, KARL. 18. 58, 245 PORTA. G nmbaiti&ta della. 64 PRIESTLEY, Joseph. 99. 101 PROUDHCN. Pierre Joseph, 240 PUFENDORF. Samuel. 160 PUTNAM. Hilary. 18. 246-7 QUEVEDC'. Vasco Mouzinho de. 70 QUINE, 12, 18 QU INT1L I.\N0. 97 RABÉLAIS. François, 65 RABINOW , Paul. 167,218.236.237 RAMUS, Intrus. 64. 93-4, 96 RANKE. Lfopold von, 111 RAWLS. Joliii, 18. 229 REICH. Wilhelm, 169. 187 RENAN. Emest, MI RICARDO. David. 75. 85