Jean Grondin
O que vem a ser a hermenêutica? No sentido clássico, a hermenêutica designava outrora a arte de interpretar os textos, sobretudo no seio das disciplinas ligadas à interpretação textos sagrados ou canônicos: a teologia,dos o direito e a filologia. No sentido mais estrito, a hermenêutica serve atualmente para caracterizar o pensamento de autores como Gadamer e Ricoeur (19132005), que desenvolveram uma filosofia universal da interpretação e das ciências humanas que acentua a natureza histórica e lingüística de nossa experiência de mundo. A terceira grande concepção faz da hermenêutica uma filosofia universal da interpretação, quando a hermenêutica se vê posta a serviço de uma filosofia da existência. Passamos aqui de uma hermenêutica de textos para uma hermenêutica da existência. Ao assumir a forma de uma filosofia universal do entendimento, a hermenêutica acabou por deixar o terreno de uma reflexão sobre as ciências e por pretensão universal. Veremos aquicriar que uma essa universalidade pode assumir várias formas. Tradução: M
arcos
M
arcionilo
Jean Grondin desenvolve neste livro uma concepção da hermenêutica fundada na ideia de que o sentido que buscamos entender “é sempre o sentido das próprias coisas, daquilo que elas querem dizer, um sentido que certamente ultrapassa nossas parcas interpretações e o horizonte limitado, mas sempre ampliável, de nossa linguagem”. O autor apresenta muito claramente as diferentes concepções da hermenêutica: Heidegger, Bultmann, Gadamer, Ricoeur, Rorty e Vattimo, bem como as conexões com a desconstrução (Derrida) e a crítica das ideologias (Habermas), levando muito em conta a herança da reflexão sobre as ciências sociais (Dil they), da fenomenològia (Hus serl) e da leitura de Nietzsche. Encontramse aqui as diversas acepções do termo a partir das interrogações iniciais dos pensadores relativamente ao en-
tendimento dos textos, da arte, da linguagem, da existência, da história... para finalmente aportar na ideia do alcance universal da hermenêutica. Esse percurso inscreve, então, a hermenêutica na problemática geral do conhecimento, com conseqüências filosóficas e epis temológicas notáveis, porque a hermenêutica sempre quis ser uma doutrina da verdade no campo da interpretação.
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editora afiliada
ESTA OBRA FOI COMPOSTA EM CAMBRIA CORPO 11/15 E IMPRESSA PELA GRÁFICA PAYM EM PAPEL O FF WH ITE PARA A PARÁBOLA
EDITORIAL EM OUTUBRO DE 2012.
(1955) é filósofo e professor canadense, especialista nos pensamentos de Kant, Gadamer e Heidegger. Suas pesquisas concentramse principalmente na hermenêutica, na fenomenologia, na filosofia clássica alemã e na história da metafísica. Ele leciona na Universidade de Montreal desde 1991 e doutorouse com uma tese sobre o conceito de J ean G rondin
verdade em hermenêutica na Universidade deTübingen em 1982. Ele pode ser considerado o principal sucessor da obra de Gadamer e de Ricoeur no campo da hermenêutica contemporânea. Entre suas obras, ainda figuramUuniversalité de 1’herm éncutiq ue (PUF) e Le toum ant her méneutique d e la phénoménologie (PUF).
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Marco s Marcionilo
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1. Fouca ult — a coragem da verdade, Frédéric Gros (org.) 2. Diversidade cultural e mundialização, Armand Mattelart
Jjq 3. 0 Círculo de Viena, Mélika Ouelbani 4. Filosofia da linguagem, Sylvain Auroux 5. A lógica, Pierre Wagner 6. Hermenêutica, Jean Grondin
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Título srci nal: © Pr es se s U n iv e rs it a ir e s d e F ra n c e , 2 0 0 6 Traduzido da 2a ediç ão atualizada: outub ro de 20 08 ISBN: 978-2-13-057087-5 EOIÇÃO BRASILEIRA E ditor : C apa
e projeto
g r A fico
R evisão ; C onselho
editorial
:
:
Marcos M arcionil o Andréia Custódio Karina Mota Ana Stahl Zilles [Unisinos] Angela Paiva Dionisio [UFPE] Carlos Alberto Faraco [UFPR] Egon de Oliveira Rangel [PUC-SP] Gilvan Müller de Oliveira [UFSC, Ipol] Henri que M onteag udo [Un iv . de Santiago de Kanavillil Rajagopalan [Unicamp] Marcos Bagno [UnB] Maria Marta Pereira Scherre [UFES] Rachel Gazolla de Andrade [PUC-SP] Roxane Rojo [Unicamp] Salma Tannus Muchail [PUC-SP] Stella Maris Bortoni-Ricardo [UnB]
CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO NA FONTE SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ_____________
G913h Grondin, Jean Hermenêutica / Jean Grondin ; tradutor Marcos Marcionilo. - São Paulo: Parábola Editorial,2012. 21 cm (Epísteme) Tradução de: l/Herméneutique Inclui bibliografia ISBN 978-85-7934-017-8 1.Hermenêutica.2.Teoria do conhecimento.i.Título.ll.Série. 12-4866.
CDD:121 CDU: 16
Direitos reservados à PARÁBOL A EDITORIAL Rua Dr. Mário Vicente, 394 | Ipiranga 04270-000 São Paulo, SP pabx: [11] 5061-9262 | 5061-1522 j fax: [l1]~2589-9263 home page: www.parabolaeditorial.com.br e-mail:
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Compost ela ]
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ISBN: 978-85-7934-017-8 © d e s ta e d iç ã o : P a r á b o la E d it o ri a l, S ão P a u lo , o u t u b r o d e 2 0 1 2
 memória de meu pai, Dr. Pierre Grondin (1925-2006)
SUMARIO
introdução
0 QUE PODE SER A HERMENÊUTICA................................................... A coiné relativist a de nosso tem po ? ...................... ........................ Três po ssíveis grandes acepções da herm enê utica .................
9
9 11
capítulo i
Concepção
clássica
d a hermenêutica
....................................
17
capítulo II
E mergência d e u m a hermenêutica mais universal no século X IX .............................................................................................. 2 3 1. Fri edr ich Schl eiermache r (1 7 6 8 -1 8 3 4 ) .................................. 2 3 2. Wilhelm Dilthey (1 8 3 3 -1 9 1 1 )..................................................... 32 capítulo
iii
Virada existencial
da hermenêutica
em heidegger
.... 3 7
1. Uma herm enêu tica da fact icidade .............................................. 2 .0 esta tuto d a hermenêutic a em Ser e tem po ........................ 3. Um a nov a he rm en êu tica do en te nd er...................................... 4. Do círculo do en tendim en to ......................................................... 5. A últ ima hermen êu tic a de Heid egger.......................................
38 42 46 50 51
capítulo iv
Contribuição d e B ultmann ao avanço da hermenêutica capítulo v H a n s -G eorg
55
Gadamer : u m a hermenêutica do ACONTECIMENTO DO ENTENDIMENTO.............................................. 6 1 1. Uma herm enê utica não metodo lógica das ciênci as humanas............................................................................................... 61 2. O modelo da arte : o acontecimento do entendim ento .......... 65 3. Os pré-juízos, condições do entendimento: a reab ilitação da trad iç ão............................................................. 67 4. O trabalho da história e s ua co nsc iênc ia ................................. 7 0
5. A fusão dos h orizontes e sua ap licação .................................... 73 6. A linguagem, objeto e elemento da realização herm enêu tica 75
sumário
I7
capítulo VI
H ermenêutica e crítica das ideologias 1. A re ação meto do lógica de Betti................................................... 2. A contribuição de Gadamer s egundo H ab erm as ................. 3. A críti ca a Ga dam er po r Hab erm as......... ...................................
................................
81 81 83 86
capítulo vil
Pa u l R icceur : u m a hermenêutica do conflito
das interpretações
do si histórico
diante
..................... ...........................
93
1. Um perc urs o arb ore sc ente ........................................................... 93 2. Uma fenomenol ogi a tornad a herm enêu tica ......................... 97 3. 0 conf lito das interp retaçõe s: a herm enêu tica da confian ça e da su sp ei ta ..................................................................1 00 4. Uma nova herm enêu tica da explicação e do entendimento, inspirada na noção de texto .........................103 5. A herm enêu tica da c onsciênci a histó rica ..............................1 0 6 6. Uma fenomenologi a herm enêu tica do hom em capa z ...... 109 capítulo viu e desconstrução H ermenêutica ..................................................1 1 3 1. Desconstrução, hermenêutica e interpretação em Derrida 113 ..........................1 17 2. O encontro de Derrida e Gadamer em Paris 3. Os desdobramentos do encontro ........................... .................. 125 ............................1 28 4. O último diálogo entre Derrida e Gadamer .
capítul o i x HERMENÊUTICA PÓS-MODERNA: RORTY E VATTIMO
................1 3 1
1. Rort y: a despedida pragma tista da noção de verd ad e .........1 31 2. Vattimo: "por" um niilismo hermenêutico ................r.............137 conclusão FACES DA UNIVERSALIDADE DA HERMENÊUTICA
........................1 4 1
BIBLIOGRAFIA..............................................................................................1 4 9
8 | HE RME NÊ UT ICA
introdução
O QUE PODE SERA HERMENÊUTICA
A
COIN É RE LATI VISTA DE NO SS O TEM PO? \
^az algum tempo, Jean Bricmont e Alan Sokal montaram uma farsa, a fim de denunciar o char latanismo que, segundo eles, frequentemente grassa nas ciências humanas. Eles submeteram um ar tigo coalhado de absurdos à revista americana Social Text, título que sugere um pouco que toda produção cultural ou científica pode ser considerada como um simples "texto social", logo, como uma interpretação ou uma construção ideológicas. 0 artigo pretendia de monstrar que a física quântica, apesar de sua pretensão à objetividade, não passava de uma construção social. Apinhado de referências às equações de Einstein, mas também aos mais eminentes mestres da "desconstru ção" (entre os quais, Lacan e Derrida), o artigo foi acei to e publicado. Os autores imediatamente divulgaram
a fraude, que provocou numerosas reações no mundo1. 1 J. Bricmont e A Sokal, Imposturas intelectuais. Rio de Janeiro: Record, 2006.
O QUE PODE SE R A HERMENÊUTICA
|9
Se essa polêmica pode nos servir aqui de ponto de parti da, é unicamente porque o termo "hermenêutica" figura va no título do artigo submetido à revista: "Transgredir fronteiras: rumo a uma herm enêutica transformativa da gravitação quântica". Estejamos certos, a ideia ininteli gível de uma "hermenêutica transformativa" não reme te a nada de muito preciso. Mas, ao se valerem do ter mo hermenêutica, os autores retomavam um termo da moda, que às vezes serve para descrever o pensamento contemporâneo "pós-moderno" e relativista, justamente aquele que Bricmont e Sokal buscavam denunciar. Pois é, então, justamente esse um dos sentidos possí veis do termo hermenêutica: designar um espaço inte lectual e cultural onde não há verdade, porque tudo é uma questão de interpretação. Essa universalidade do reino interpretativo encontrou sua primeira expressão na afirmativa fulminante de Nietzsche: "Não há fatos, só interpretações”2. É dessa hermenêutica relativista que Gianni Vattimo pôde dizer que ela era a coiné, a língua comum, de nosso tempo3. Mesmo assim, como lembraremos todo o tempo, essa concepção se encontra nos antípodas daquilo que a hermenêutica sempre quis ser: uma doutrina da ver dade no campo da interpretação. A hermenêutica clás sica realmente quis propor regras a fim de combater a arbitrariedade e o subjetivismo nas disciplinas que têm a ver com a interpretação. Uma hermenêutica votada à
>2 F. Nietzsche, A vontade de poder, n° 48 1. 3 G. Vattimo, L'herm éneutique com me nouvelle koinè, in Éthique de Vinterprétation. Paris: La Découverte, 1991, pp. 45-58.
10 | HE RME NÊ UT ICA
arbitrariedade e ao relativismo encarna, consequente mente, o mais completo dos contrassensos. Contudo, o percu rso que leva da concep ção clássica à hermenêuti ca "pós-moderna" não é destituído de lógica. Ele segue paralelamente a certa ampliação do campo da inter pretação, mas do qual não se tem certeza se ele leva necessariamente ao relativismo pós-moderno.
grandes acepções T r ê s possíveis DA HERMENÊUTIC A
No sentido mais restrito e mais usual do termo, a herme nêutica serve atualmente para car acterizar o pensamen to de autores como Hans-Georg Gadamer (1900-2 002) e Paul Ricoeur (1913-2005), que desenvolveram uma filo sofia universal da interpretação e das ciências humanas que acentua a natureza histórica e lingüística de nossa ^xperiência de mundo. De um lado, esses pensamentos marcaram grande parte dos maiores debates intelec tuais que balizaram a segunda metade do século XX (estruturalismo, crítica das ideologias, desconstrução, pós-modernismo), recepções que fazem parte daquilo que podemos chamar de o pensamento hermenêutico con temporâneo. De outro, os pensamentos de Gadamer, Ricceur e de seus herdeiros frequentemente se vinculam à tradição mais antigk da hermenêutica, quando ela ainda não designava uma filosofia universal da interpretação, e sim simplesmente a arte de interpretar corretamente
os textos. Mas como essa concepção mais antiga é sem pre pressuposta e discutida pela hermenêutica mais re cente, é preciso levá-la em conta em uma apresentação
O QUE PODE SE R A HERMENÊUTICA
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de conjunto da hermenêutica. Desse modo, podemos distinguir três grandes acepções possíveis da herme nêutica, que se sucederam nõ decorrer da história, mas que se mantêm integralmente como concepções abso lutamente atuais e defensáveis da tarefa hermenêutica. 1. No sentido clássico do termo, a hermenêutica desig nava outrora a arte de interpretar os textos. Essa arte se desenvolveu sobretudo no seio das disciplinas liga das à interpretação dos textos sagrados ou canônicos: a teologia (que elaborou uma hermeneutica sacra], o direito (hermeneutica iuris ) e a filologia (hermeneutica profana). A hermenêutica desempenhava, então, uma função auxiliar, no sentido de que vinha secundar uma prática da interpretação , que tinha necessidade, sob re tudo, de um socorro hermenêutico quando tinha de en frentar passagens ambíguasessencialmente ( ambigua ) ounormativo: chocantes. Ela possuía um objetivo propunha regras, preceitos ou cânones que permitis sem bem inter pretar os textos. A maioria dessas regras eram tomadas de empréstimo da retórica, uma das ci ências fundamentais do trivium (ao lado da gramática e da dialética) e no seio da qual encontravam-se com fre quência reflexões hermenêuticas sobre a arte de inter pretar. É esse o caso de Quintiliano (30-100), que trata da exegesis (enarratio ) em seu De institutione oratoria (1, 9), mas especialmente Agostinho (354-430), que compilou regras para a interp retação dos textos em seu tratado so b re i doutrina cristã (396-426), que marcou
toda a história da hermenêutica4. Essa tradição passou 4 Agostinho, La doctrine chrétienne. Paris: Institut d'études augustiniennes, 1997.
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por uma importante renovação no protestantismo, que deu srcem a vários tratados de hermenêutica, em sua maioria inspirados na Rhetorica (1519) de Melanchton (1497-1560). Essaauxiliar tradição, que faz danas hermenêutica uma disciplina e normativa ciências que praticam a interpretação, persistiu até Friedrich Schleiermacher (1768-1834). Mesmo que ele ainda faça parte dessa tradição, seu projeto de uma hermenêu tica mais universal anuncia uma segunda concepção da hermenêutica, que será inaugurada sobretudo por Wilhelm Dilthey (1833-1911). 2. Dilthey conhece bem a tradição mais clássica da hermenêutica e sempre a pressupõe, sem deixar de enriquecê-la com uma nova tarefa: se a hermenêutica se inclina sobre as regras e os métodos das ciências do entendimento, ela poderia ser vir de fundamento m eto dológico a todas as ciências humanas (letras, história, teologia, filosofia e aquilo que hoje se chama de as "ci ências sociais"). A hermenêutica se torna, assim, uma reflexão metodológica so bre a pretensão de verdade e o estatuto científico das ciências humanas. Essa reflexão ’ se eleva contra o pano de fundo do desenvolvimento pelo passaramatribuído as ciências no seus século XIX, su cessoqual amplamente ao puras rigor de métodos, diante dos quais as ciências humanas parecem muito deficientes. Se as ciências humanas quiserem se tornar ciências respeitáveis, devem basear-se em uma meto dologia que cabe à hermenêutica fazer surgir.
3. A terceira grande concepção nasceu muito clara mente em reação a essa compreensão metodológic a da hermenêu tica. Ela assume a forma de uma filosofia uni-
O QUE PODE SE R A HERMENÊUTICA
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versai da interpretação. Sua ideia fundamental (prefigurada no último Dilthey) é que o entendimento e a in terpretação não são apenas métodos encontráveis nas ciências humanas, mas processos fundamentais que podemos encontrar no próprio núcleo da vida. A inter pretação surge então, cada vez mais, como uma carac terística essencial de nossa presença no mundo. Essa ampliação do sentido da interpretação é responsável pelo avanço do qual a hermenêutica do século XX se beneficiou. avançoNietzsche pode invocar dois padrinhos: um padrinhoEsse anônimo, (anônimo porque ele não falou muito de hermenêutica) e sua filosofia uni versal da interpretação, e um padrinho mais evidente em Heidegger, mesmo que ele defenda uma concepção bem particular da hermenêutica, em ruptura com a hermenêutica clássica e metodológica: para ele, a her menêutica não tem inicialmente a ver com textos, mas com a própria existência, que já é penetrada por inter pretações, que a hermenêutica pode esclarecer. A her menêutica se vê, então, posta a serviço de uma filosofia da existência, chamada a um autodespertar. Passamos aqui de uma "hermenêutica de textos" para uma "her menêutica da existência". A maior parte dos grandes representantes da herme nêutica contemporânea (Gadamer, Ricoeur e seus her deiros) situam-se na trilha de Heidegger, mas não se guiram realmente sua "via direta" de uma filosofia da
existência. Eles preferiram diálogo com por as ciências humanas, mais ouretomar menos onegligenciado Heidegger. Desse modo, reataram com a tradição de Schleiermacher e Dilthey, sem com isso subscrever a
14 | HE RM ENÊ UT ICA
ideia de que a hermenêutica estava, por princípio, in vestida de uma função metodológica. Seu objetivo era, especialmente, desenvolver um a melhor h ermenêu tica das ciências humanas, aliviada do paradigma exclusi vamente metodológico, que faz mais justiça à dimen são lingüística e histórica do entendimento humano. Ao assumir a forma de uma filosofia universal do en tendimento, essa hermenêutica acabou por deixar o terreno de uma reflexão sobre as ciências para criar uma pretensão univenal. Veremos aqui que essa uni versalidade pode assum ir várias formas .
O QUE PODE SE R A HERMENÊUTICA
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ca p ítul o I
CONCEPÇÃO CLÁSSICA DA HERM ENÊUTICA
termo hermeneutica só veio a lume no século XVII, quando o teólogo estraburguense, Jo-
O
hann Conrad Dannhauer o inventou para no mear o que se chamava antes dele de Auslegungslehre (Auslegekunst ) ou a arte da interpretação. Dannhauer foi também o primeiro a utilizar o termo no título de uma obra, em sua Hermeneutica sacra sive methodus exponendarum sacrarum litterarum, de 1564, título que resume por si só o sentido clássico da disciplina: a hermenêutica sagrada, ou seja, o método para inter pretar ( exponere : expor, explicar) os textos sacros. Se há necessidade de um método desses é porque o senti do das Escrituras nem sempre é tão claro quanto o dia.
A interpretação {exponere, interpretari ) é aqui o méto do ou a operação que permite alcançar o entendimento do sentido, o intelligere. É importante gravar bem esse vínculo de finalidade entre a interpretação e o entendi mento, porque os termos às vezes assumirão sentidos muito diversos tradição hermenêutica posterior, es pecialmente emna Heidegger.
CONCEPÇÃO CLÁSSICA DA HERMENÊUTICA
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0 termo interpretação vem do verbo grego hermeneuein, que tem dois sentidos importantes: o termo designa, ao mesmo tempo, o processo de elocução (enunciar, dizer, afirmar algo) e o da interpretação (ou de tradução). Nos dois casos, estamos diante de uma transmissão de sen tido, que pode se operar em duas direções: ela pode (1) ir do pensamento para o discurso, ou (2) remontar do discurso para o pensamento. Atualmente, só falamos de interpretação para caracterizar o segundo processo, que remonta do mas discurso par a ojápensamento se en contra por trás, os gregos pensavam a que elocução como um processo "hermenêutico" de mediação de s en tido, designado, então, pela expressão ou pela tradução do pensamento em palavras. O termo hermeneia serve, portanto, para nomear o enunciado que afirma algo. 0 segundo livro do Organon de Aristóteles, dedicado ao enunciado, é um Peri herme neias, que foi traduzido em latim por De interpretatione. Não se trata, é claro, da interpretação no sentido em que nós a entendemos, ou seja, como a explicação do discurso que retorna a sua vontade de sentido, mas, ao contrário, das componentes da própria elocução, já en tendida como transm issão de sentido. Mas se a compre ensão grega do termo é esclarecedora, é porque ela nos ajuda a ver que o processo de interpretação deve, nem mais nem menos, inverter a ordem da elocução, ordem que vai do pensamento ao discurso, do "discurso inte rior" ( logos endiathetos ) ao "discurso exterior" [logos
prophorikos ), como o dirão soberbamente os estoicos. Podemos então distinguir aqui o esforço hermenêutico de explicação do sentido, que remonta do discurso ex
1 8 I HERMEN ÊUTICA
terior para seu interior, do esforço retórico de expres são que antecede a tarefa propriamente hermenêutica e lhe dá todo o seu sentido: não se pode querer inter pretar uma expressão a fim de compreender seu senti do, exceto porque se pressupõe que ela quer dizer algo, que ela é a expressão de um discurso interior. Então, não é por acaso que as principais regras herme nêuticas foram frequentemente extraídas da retóric a, a arte do bem dizer, que se funda na ideia de que o pen samento que se procura comunicar deve ser apresen tado de maneira eficaz no discurso. É especialmente o caso da importante regra hermenêutica do todo e das partes, segundo a qual as partes de um escrito devem ser entendidas a partir do todo constituído por um dis curso e por sua intenção geral, que é a inversão daquilo que Platão regra de composição retórica em apresenta seu Fedrocomo (264 uma c): um discurso deve ser composto como um organismo vivo no qual as partes estão ordenadas a serviço do todo. É claro que o hermeneuta deve conhe cer perfeitamente bem as grandes figuras do discurso, os "tropos" da retórica, se quiser interpretar corretamente os textos. Os grandes teóri cos da concepção clássica da hermenêutica quase sem pre foram professores de retórica. É o caso de santo Agostinho, profundamente marcado pela retórica de Cícero. Antes de ser o teórico da inter pretação, ele foi seu praticante. Encontramos em san to Agostinho várias interpretações ( expositiones ) dos
textos sagrados, especialmente das Epístolas e do Gê nesis, e já em suas Confissões (cujos três últimos livros propõem uma interpretação dos primeiros versículos
CONCEPÇÃO CLÁ SSICA DA HERMENÊUT ICA
|1 9
do Gênesis). Em seu comentário literal do Gênesis, ele retoma a doutrina clássica, que remonta a Orígenes (c. 185-254) e a Fílon de Alexandria (c. 13-54), segundo a qual as Escrituras comportariam um quádruplo sen tido: "Em todos os livros santos, importa distinguir as verdades eternas que são inculcadas ( aeterna ), os fatos que são narrados [facta ), os acontecimentos futuros [futura), as regras pa ra as ações ( agenda ) que são pres critas ou aconselhadas"1. Mas para entender essas verdades, esses fatos, os acon tecimentos que virão e as máximas de ação, há neces sidade de algumas regras (prsecepta ) de interpretação, que Agostinho apresenta em seu De doctrin a christiana. Seu princípio fundamental é que toda ciência tem a ver ou com coisas [res] ou com signos [signa]. Claro que é necessário reconhecer uma prioridade à coisa sobre os signos, dado que o conhecimento dos signos pressupõe necessariamente o conhecimento da coisa por eles de signada. 0 primeiro livro da Doctrina christiana tam bém será dedicado à exposição da "coisa" que quer ser apresentada no texto bíblico, a saber, o relato da criação fundada no Deus trinitário e a salvação que ele propõe. Agostinho distingue, então, dois tipos de coisas, aquelas das quais fruímos por elas mesmas [frui], que têm seu fim em si mesmas, e aquelas que utilizamos[utí] para outro fim. Apenas as coisas eternas oferecem uma fruição real, e o conhecimento delas corresponde ao Soberano Bem,
ao summum bonum. Segundo Agostinho, o fim da Encar 1 Agostinho, La Genèse au sens littéral, t. i. Paris: Desclée, 1972, p. 83
2 0 | HE RM ENÊ UT ICA
nação era exatamente ensinar essa diferença, que se ex prime no princípio do amor (que é, em primeiro lugar, o amor de Deus por sua criatura). Daí Agostinho extrai um primeiro princípio hermenêutico: é preciso interpretar todos os textos em função desse mandamento de amor, que remete tudo o que é cambiante ao que é imutável. Os dieta (ditos) e signa (signos) das Escrituras devem ser entendidos em vista dessa res essencial. Mas para entender em que os signos remetem a essa res, é pre ciso estudar as ciências, particularmente a gramática e a retórica. A retórica também nos ensina a discernir os tropos, as figuras de estilo da Bíblia e a distinguir o sentido próprio do sentido figurado. As regras, de inspiração retórica, da Doctrina christiana serviram de fundamento a toda a exegese medieval. Amplamente retomadas pelo s primeiro s grandes teóricos da herme nêutica protestante (Melanchton, Flácio, Dannhauer), elas foram mantidas até Schleiermacher, quando a her menêutica começa a adquirir nova abrangência.
CONCEPÇÃO CLÁSSICA DA HERMENÊUTICA
|2 1
ca pítulo I I
EMERGÊNCIA DE UMA HERMENÊUTIC A MAIS UNIVERSAL NO S ÉCULO XIX
i . F riedrich
S chleiermacher
(1768-1
834 )
ontemporâneo dos grandes pensadores do
C
idealismo alemão,doFichte, Hegel de e Schelling, e mais próximo romantismo Friedri ch Schlegel, Schleiermacher foi, ao mesmo tempo, grande filólogo, um teólogo expressivo, um filósofo e um teórico da hermenêutica. Em sua posição de filólo go, ele traduziu os diálogos de Platão, na íntegra, para 0 alemão, para os quais redigiu introduções fundamen tais, que marcam os estudos platônicos até hoje. Mas foi, antes de tudo, no campo da teologia que ele fez car reira. Depois de ter publicado seus poderosos discur sos Sobre a religião em 1799, onde defende a ideia de que a fé exprime um sentimento de dependência total (segundo uma leitura subjetivista que, por sinal, irá ca racterizar sua teologia e também sua hermenêutica),
ele foi nomeado professor de teologia em Halle, em 1804, antes de se tornar, em 1810, o primeiro decano
EMERGÊNCIA DE U MA HERMENÊUTICA MAI S UNIVERSAL N O SÉCULO X IX |2 3
da Faculdade de Teologia da nova Universidade de Ber lim. Ele publicou uma importante obra de dogmática sobre A f é cristã em 1821-1822. Mas Schleiermacher também deu cursos de filosofia: foram publicadas pos tumamente sua Dialética (1839), sua Ética (1836) e sua Estética (1842). Mas ele só nos interessa aqui enquanto hermeneuta. É importante saber que Schleiermacher se formou em Halle, que fora um grande centro de hermenêutica no sé culo XVIII e onde se sucederam antes dele grandes mes tres da hermenêutica racionalista e pietista. Schleier macher propriamente nunca publicou uma exposição sistemática de sua hermenêutica. Durante sua vida, ele publicou apenas o texto dos dois discursos que pronun ciou na Academia de Berlim em 1829: "Sobre o conceito da a partir daslongo sugestões de F. em A. Wolf e do hermenêutica, tratado de Ast". Mas ao do tempo que le cionou, em Halle e em Berlim, Schleiermacher dedicou vários cursos à hermenêutica. Inspirando-se em ma nuscritos de seu mestre, seu aluno, Lücke, publicou em 1838 um apanhado das ideias de Schleiermacher sob o título Hermenêutica e crítica , sobre tudo em vista do Novo
Testamento, título que o inscreve na tradição clássica da hermenêutica ("crítica" designa aqui a disciplina filológica que se interessa pela edição crítica dos textos). A exemplo de todos os grandes teóricos da hermenêu tica, Schleiermacher inspira-se em grande medida na tradição retórica. Já no princípio de sua hermenêuti
ca, realmente lemos que "todo ato de entendimento é a inversão de um ato de discurso em virtude da qual deve ser trazido à consciência o pensamento que se en
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CA
contra na base do discurso"1. Se é verdade que "todo discurso baseia-se em um pensamento anterior"2, não resta dúvida de que a primeira tarefa do entender é reconduzir a expressão à vontade de sentido que a anima: "Busca-se no pensamento a mesma coisa que o autor quis exprimir”. A herm enêutica pode s er compre endida, então, como a inversão da retórica. Desse modo, "a tarefa é entender o sentido do discurso a partir da língua". "Tudo o que se deve pressupor em hermenêutica”, dirá Schleiermacher em um adágio vo tado a uma grande posteridade, "é a linguagem"3. Des tinada à linguagem, a hermenêutica se divide em duas grandes partes: a interpretação gramatical, que enten de todo discurso a partir de uma língua dada e de sua sintaxe, e a interpretação psicológica (eventualmente chamada de "técnica"), que vê no discurso sobretudo a expressão de uma alma individual. Se o intérprete deve sempre partir do quadro global da língua, não é me nos claro que as pessoas nem sempre pensam a mesm a coisa sob as mesmas palavras (o que é verdadeiro es pecialmente das criações geniais que enriquecem o te souro da língua). Do contrário, "tudo seria decorrência da gramática", suspira Schleiermacher. A interpretação psicológica encar na, sem dúvida, a con tribuição mais srcinal de Schleiermacher (Gadamer insistirá nisso, mas para criticar o que ele classificará
1 F. Schleiermacher, Hermeneutik und Kritik ( HuK'), M. Frank [org.]. Frankfurt: Suhrkamp, 1977, p. 76; Herméneutique, M. Simon [trad.]. Pa ris: Labor & Fides, p. 101; trad. C. Berner. Paris: Le Cerf, p. 114. 2 HuK, 78; trad. Simon, p. 102; trad. Berner, p. 115. 3 Herméneutique; trad. Simon, p. 57; trad. Berner, p. 21.
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de deriva psicologizante que levaria a perder de vista a intenção de verdade do entendimento). Se o próprio Schleiermacher deu-lhe desde o princípio o nome de interpretação "técnica", é porque ela busca entender a arte ( techné) bem específica de um autor, sua virtuosi dade característica. A esperança de Schleiermacher é desenvolver uma “hermenêutica universal” que ainda não existia: "A her menêutica como a rte do entender ainda não existe sob uma forma geral, mas existem apenas várias herme nêuticas especiais"4. 0 objetivo aqui é uma hermenêu tica geral que não se limitaria a um seto r restrito , como é o caso das hermenêuticas especiais do Novo Testa mento ou do direito. E se a herm enêutica deve adquirir um estatuto universal, é enquanto arte geral do enten der, Kunst (frequentemente: Kunstlehre] des Verstehens. A tônica reservada ao entender é absolutamente inédi ta. Até então, a hermenêutica era mais encarada como uma arte da interpretação (ar s interp retand i, Auslegungslehre), que devia conduzir ao entendimento. Agora é o próprio ato de entender que tem necessidade de ser assegurado por uma arte, insistência na qual podemos reconhecer o momento subjetivo já visível na teologia do sentimento de Schleiermacher. Essa ênfase segue paralelamen te a uma temá tica típica de Schleiermacher, a da universalização do fenômeno do desentendimento possível. O que é que nos permi
te dizer que determinado entendimento é justo? Nesse 4 HuK, 75; trad. Simon, p. 99; trad. Berner, p. 113.
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sentido, Schleiermacher distingue duas compreensões bem distintas da interp retaçã o: a. Uma ideia segundo distensa, que a qualprática o entendimento se "parte produzdapor si mesmo". Nessa prática, o desentendimento é, sobretudo, a exceção. Essa prática da hermenêutica "exprime o propósito negativamente: é preciso evitar o erro de entendimento". Reconhecemos aqui a concepção clássica da hermenêutica, que fazia dela uma ciên cia auxiliar à qual só se recorria para interpretar passagens ambíguas. b. Uma prática estrita partiria, ao contrário, "do fato de que o desentendimento se produz por si mesmo e que o entendimento deve ser querido e buscado para cada ponto"5. Essa distinção provoca conseqüências maiores. A prá tica distensa da interpretação encontra-se aqui assimi lada a uma prática intuitiva, que não obedece a regra alguma, nem a arte alguma. Ora, ela pressupõe que o entendimento se produz espontaneamente. E se o de sentendimento fosse algo natural que se devesse com bater a todo momento? Essa será a pressuposição de Schleiermacher. O entendimento deverá, então, pro ceder em todos os pontos seguindo as regras estritas de uma arte: "0 trabalho da hermenêutica não deve in tervir apenas quando a compreensão se torna incerta,
mas desde os primeiros começos de todo empreendi mento que visa compreender um discurso". 5 HuK, 92; trad. Simon, p. 111-112; trad. Berner, p. 122-123.
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Dirá Schleiermacher que a hermenêutica carece, por tanto, de "mais método” (die hermeneutischen RegeJn müssen mehr Metho de w erderi)6. Desse modo, Schleier macher abre caminho para uma compreensão mais resolutamente metódica da hermenêutica (que Gada mer também criticará), a fim de conter o perigo do de sentendimento, potencialmente universal. A partir de então, a hermenêutica deixará de ocupar uma função auxiliar para se tornar a condição sine qua non de todo entendimento digno desse nome. No sentido estrito, ela passará a ser uma Kunstiehre, a "doutrina de uma arte" do entender. É por isso que a operação fundamental da hermenêu tica ou do entendimento assumirá a forma de uma re construção. A fim de bem entender um discurso e de conter a deriva constante do desentendimento, tenho de poder reconstruí-lo a partir de seus elementos, como se eu fosse seu autor. A tarefa da hermenêutica será, dessa maneira, "enten der o discurso, de início, tão bem e, posteriormente, melhor que seu autor", seguindo uma máxima frequen temente retomada por Schleiermacher (com varian tes). Essa máxima, sem dúvida, foi usada pela primeira vez por Kant, que dizia em sua Crítica da razão pura: "Nada de surpreendente há em se poder entender Pla tão melhor do que ele mesmo se entendeu, inclusive 'porque ele próprio determinou insuficientemente seu
conceito'" (A 314 / B 370). Schleier macher fará disso 6 HuK, 84; acréscimo não traduzido por M. Simon, p. 106, nem por Berner, p. 118.
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um princípio geral de sua hermenêutica, que seguirá a via de uma explicação genética: a partir de então, en tender quer dizer "reco nstru ir a gênese de..." (verten te genética, e psicologizante, que caracterizará, aliás, as interpretações que começarão a florescer no século XIX). A ideia vem do idealismo alemão: entendemos algo quando apreendemos sua gênese, a partir de um primeiro princípio. Para o romântico Schleiermacher, esse primeiro princípio é a decisão germinal do escri tor. Dessa maneira, Schleiermacher um aspec to psicológico à hermenêutica. Em confere seus discursos de 1829, ele dirá que "a tarefa da hermenêutica consiste em reproduzir o mais perfeitamente possível todo o processo da atividade de composição do escritor"7. Mantendo-se fiel a sua vocação clássica, dedicada à interpretação de textos, a hermenêutica adquire com Schleiermacher um alca nce mais universal. Um primeiro momento de universalidade se anuncia no projeto de uma hermenêutica geral, que deveria preceder, a título de arte do entender, as hermenêuti cas especiais consagradas a tipos de textos definidos (é essa versão da universalidade a que Schleiermacher defende). Mas uma segunda forma de universalidade atualiza-se na ideia segundo a qual a hermenêutica deve poder ser aplicada a todo justo entendimento. Seguindo a prática rigorosa da interpretação que ele preconiza, Schleiermacher, enquanto romântico que
sabe que alguém sempre pode ficar prisioneiro de suas próprias representações, universaliza aqui o risco do 7 HuK, 321; Simon, 186; Berner, 167.
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desentendimento possível. É ele que leva a uma com preensão mais metódica e mai s recon strutora da tarefa vhermenêutica. Um terceiro elemento de universalidade pode ser discernido na ideia, desenvolvida no discurso de 1829, segundo a qual a hermenêutica não deve se limitar apenas aos textos escritos, mas também deve poder ser aplicada a todos os fenômenos de entendi mento: "A hermenêutica não deve estar simplesmente limitada às produções literárias; porque eu quase sem pre me surpreendo no decorrer de uma conversa fami liar fazendo operações hermenêuticas (...); a solução do problema, para o qual buscamos justamente uma teoria, não está de maneira alguma ligada ao fato de o discurso ser fixado para os olhos pela escrita, mas surgirá em to dos os lugares onde venhamos a perceb er pensamentos ou sucessões de pensamento por meio das palavras8". A partir daí, tudo pode se tornar objeto de hermenêu tica. Essa universalização avança paralelamente com uma ampliação da estranheza. Se o discurso falado não fazia parte da alçada da hermenêutica clássica, era jus tamente porque ele era contemporâneo, imediatamen te presente e, portanto, diretamente inteligível. Apenas o discurso escrito, e mais especialmente o dos autores antigos e remotos, comportava um elemento de estra nheza que requeria uma mediação h ermenêutica. Schleiermacher universaliza essa dimensão: o discurso de outros, mesmo que seja meu contemporâneo, en
cerra sempre um momentoé,de estranheza. A primeira condição da hermenêutica efetivamente, que algo de 8 HuK, 314; Simon, 177; Berner, 159.
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estranho deve ser entendido, segundo uma ideia que Schleiermacher toma emprestada de Ast. Essa pro blemática, para não dizer essa aporia, leva Schleier macher a abordar a questão do círculo do todo e das partes (que, mais tarde, dará nascimento ao "círculo hermenêutico"). Schleiermacher conhecia bem essa re gra, simultaneamente re tórica e hermenêutica, do t odo e das partes, mas ele se pergunta expressamente "até onde se pode ir na utilização dessa regra"9. Isso porque ela pode ser ampliada a horizontes de sentido sem pre mais englobantes: uma frase deve ser entendida a partir de seu contexto, o contexto deve ser entendido a partir do todo de um livro, todo que deve ser enten dido a partir da obra e da biografia de um autor, que, por sua vez, deve ser entendido a partir de sua época histórica, época que só pode ser entendida a partir da história em seu conjunto. Pouco antes de Schleierma? cher, o hermeneuta Ast10, aluno de Schelling, realmente reconhecera uma extensão infinita a essa regra: é nejj cessário entender o Espírito de uma época se se quiser interpr etar uma obra . Sçhleiermache r se mostrará , por sua vez, preocupado em limitar a "potencialização" do círculo do todoeesubjetivos. das partes. Do Ele ponto estabe de lecerá seus m ar cos, objetivos vista objetivo, dirá ele, a obra deve se r inicialmente entendida a par tir do gênero literário do qual faz parte. Mas do ponto de vista subjetivo, uma obra também é o feito de seu autor, ela faz parte do todo de sua vida, cujo conhecimento deve esclarecer o entendimento de sua obra.
9 HuK, 330; Simon, 194; Berner, 174. 10 F. Ast, Les príncipes fonda men taux de la gram maire, de Vherméneu tique e t de Ia critique. Landshut, 1808.
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2 .W i l hel m D il th e y ( 1833 - 1911 )
A hermenêutica, que ainda era amplamente considera da como uma disciplina filológica em Schleiermacher, receberá um sentido mais metodológico em Dilthey. A essa altura, entendemos por metodologia uma reflexão 5 sobre os métodos constitutivos de um tipo de ciência. 0 problema de uma justificação metodológica das ciências humanas ainda não existia para Schleiermacher. Ele só veio a se tornar urgente na segunda metade do século XIX, diante do prodigioso impulso pelo qual passaram as ciências exatas, cuja metodologia teria sido proposta por Kant. Kant é, então, amplamente tido como aquele que teria aplicado um golpe mortal à metafísica tradicional, ciência impossível do suprassensível, e que teria trans formado a filosofia em uma metodologia das ciências exatas. Mas o que se passava com as ciências humanas, especialmente a história e a filologia, que conheceram um inegável desenvolvimento no século XIX? Se elas fo rem realmente ciências, devem se basear em métodos que fundamentem seu rigor. É essa reflexão metodo lógica que Dilthey espera poder fazer sob a palavra de ordem, de inspiração kantiana, de uma "crítica da razão histórica". Dilthey apresentou 0 projeto dessa crítica no primeiro tomo de sua Introdu ção à s ciênci as humanas de 1883, que foi 0 único volume a ser publicado durante sua vida. Ao se situar sob 0 patrocínio de uma "crítica da ra zão histórica”, cem anos depois da Crítica da r azão pu ra
de Kant, Dilthey se propõe a expor ali uma fundamenta ção "lógica, epistemológica e metodológica” das ciências humanas. Ela se propõe a fundar as ciências do enten dimento sobre categorias que lhes sejam próprias [lógi
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ca), sobre uma teoria do conhecimento (epistemologia) e sobre uma teoria do método específico. Nessa época, Dilthey está em luta contra dois grandes adversários: de um lado, contra o positivismo empírico de Auguste Comte ou de John Stuart Mill, que afirmam que não exis tem métodos específicos às ciências humanas e que elas devem replicar a metodologia das ciências da natureza se quiserem ser ciências; de outro, contra a "metafísica da história” da filosofia idealista, e de Hegel em especial, que pretendia reconstruir a priori o curso da história gundo as exigências de seu sistema filosófico. Maisseou menos o que Kant fizera lutando contra o ceticismo em pírico de Hume e contra a metafísica visionária, Dilthey buscará conduzir o navio da razão histórica por entre os dois escolhos do positivismo e do idealismo. Em vista de fundar a especificidade metodológica das ci ências humanas, Dilthey se inspira na distinção do histo riador Droysen (1808-1884) entre o explicar ( Erkláren ) e o entender ( Verstehen ). Enquanto as ciências puras tentam explicar os fenômenos a partir de hipóteses e de leis gerais, as ciências humanas querem entender uma individualidade histórica a partir de suas manifestações externas. A metodologia das ciências humanas será, des sa forma, uma metodologia do entendimento. Geralmente lembramos que o termo entendimento e a ideia de uma teoria geral do entender detinham um papel fundamental em Schleiermacher. Entre seus muitos méri
tos, Dilthey era um finodefendido conhecedor obradededoutorado Schleier macher. Depois de ter umadatese sobre a ética schleiermacheriana em 1864 e redigido um estudo fundamental sobre o "sistema hermenêutico" de
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Schleiermacher (que permaneceu inédito até 1966), Dil they publicou uma volumosa biografia de Schleiermacher em 1870. Mesmo que a hermenêutica tenha ficado abso lutamente ausente de sua Introduç ão às ciências humanas de 1883, ela ocupa um lugar de primeira grandeza em um estudo definitivo de 1900, que abre o século da herme nêutica, sobre "A srcem da hermenêutica". Dilthey esbo ça ali, em grandes traços, a história de uma disciplina ain da muito amplamente desconhecida do grande público e da qual teránova sido para ele oligada maiorao teórico, mas eleSchleiermacher lhe confere uma função, grande problema da metodologia das ciências humanas: Trata-se agora de resolver a questão do conhecimento científico dos indivíduos e até mesmo das grandes for mas da existência humana singular em geral. Um conhe cimento possível e quemorais meios sistemáticas temos para che gar a ele?desses (...) Eé se as ciências [as ciências humanas] extraem leis gerais (...) dessa apre ensão do singular, os processos de entendimento e de interp retação tam bém não deix am de estar em sua base. Do mes mo modo, sua ce rtez a, tanto quanto a da história, depende da questão de saber se a compreensão do sin gular pode adquirir uma validade universal11.
É essa a questão a que a hermenêutica procura responder, entendendo-se hermenêutica como "a arte da interpreta ção das manifestações vitais fixadas por escrito". O obje tivo da interpretação é entender a individualidade a par tir de seus sinais exteriores: "Chamamosentendimento o
processo pelo qual conhecemos um interior pelo auxílio 11 W. Dilthey, Origines et dével oppement de l'herméneutique (1900), Le monde de l’esprit. Par is: Aubier 1 9 4 7 ,1 . 1, p. 313.
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de sinais percebidos desde o exterior por nossos senti dos". Esse interior que se trata de entender corresponde ao sentimento vivido (Erlebnis) pelo autor, sentimento que não é acessível diretamente, mas apenas por seus si nais exteriores. O processo de entendimento consiste em "recriar" em si o sentimento vivido pelo autor, partindo de suas expressões. Remontando de uma expressão àEr lebnis, do exterior a seu interior, o entendimento inverte aqui o processo criador, do mesmo modo como a tarefa hermenêutica da interpretação podia ser vista como a inversão do ato de expressão retórica. A tríade da expe riência, da expressão e do entendimento aparece desde então como constitutiva da hermenêutica das ciências humanas. Se assim é, a hermenêutica poderia ser investi da de uma nova tarefa, sugere Dilthey: "0papel essencial da hermenêutica" será "estabelecer teoricamente, contra a intrusão constante do arbitrário romântico e do subjetivismo cético no campo da história, a validadeuniversal da interpretação, base de toda certeza histórica"12. Essa meta subsistirá amplamente como um programa na obra de Dilthey, mas a ideia segundo a qual ela po deria servàirhermenêutica de base metodológica às ciências humanas conferiu uma pertinência e uma visibi lidade que, antes dele, ela realmente nunca conhecera. Até o dia de hoje, destacados pensadores como Emilio Betti e E. D. Hirsch ainda veem na hermenêutica uma reflexão metodológica sobre o estatuto científico das ciências humanas. Para eles, uma hermenêutica que
renunciasse a essa tarefa perderia toda a razão de ser. 12 Idem, ibidem, pp. 332 -33 3.
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Mas há ainda outra ideia na última obra de Dilthey que iria propulsionar o essencial da herança hermenêu tica em uma direção muito distinta. Trata-se da ideia segundo a qual o entendimento que se desdobra nas ciências humanas é justamente o prolongamento de uma busca de entendimento e de formulação que dis tingue de antemão a vida humana e histórica como tal. "A própria vida se articula”, dirá Dilthey, através das várias formas de expressão que as ciências humanas buscam Instalada entender recriando experiência da qualdaelas brotam. sobre umaa filosofia universal vida histórica, a intuição fundamental de Dilthey, prenhe de conseqüências, é que o entendimento e a interpretação não são apenas "métodos" característicos das ciências humanas, mas traduzem uma busca de sentido e de ex pressão ainda mais srcinária da própria vida. Esse caráter "hermenêutico" da própria vida era con firmado pelas ideias quase simultaneamente desenvol vidas pelo último Nietzsche em sua filosofia universal da vontade de potência, para a qual não existem fatos e sim "apenas interpretações". 0 que se perfila em Nietzsche, assim como nosdaúltimos trabalhosdadehermenêutica Dilthey, é então um novo rosto universalidade ou do reino interpretativo, mas que parece questionar justamente o sonho diltheyano de uma fundamentação epistemológica das ciências humanas. Para a maioria dos herdeiros de Dilthey (Heidegger e Gadamer), esse sonho parecerá incompatível com o caráter essencial
mente histórico da vida no qual desembocam os últi mos trabalhos de Dilthey. Ele confrontará a hermenêu tica com novas tarefas.
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ca p ítulo II I
VIRADA EXISTENCIAL DA HERMENÊUTICA EM HEIDEGGER
"V epois de ter sido, até o século XVIII, uma arte II da interpr etação de textos, depoi s uma metoJ dologia das ciências humanas no século XIX, a hermenêutica se transformará em algo completamen te diferente no século XX, uma "filosofia", mas também um termo cada vez mais em voga. É o que ocorre ini cialmente no seio da escola de Dilthey, onde seu aluno Georg Misch se empenha em desenvolver uma "lógica hermenêutica", que quer demonstrar que as categorias fundamentais da lógica e da ciência afundam suas raí zes em uma busca de entendimento da própria vida. Trata-se de uma lógica que Misch apresentou em seus cursos, mas tais cursos permaneceram inéditos até pouco temp o1e desempenharam um modesto pape l na transmissão do pensamento hermenêutico.
1 Georg Misch, Der Aufbau de r Logik au fd em Boden de r Philosophie des Lebens. Gôttinger Vorl esungen ub er Logik und Einleitung ín die Theoríe des Wissens. München: Karl Alber Freiburg, 1994.
VIRADA EXIST ENC IAL DA HERMENÊUTICA EM HEIDEGG ER I 3 7
Sem ser o único —o espírito do tempo também fez sua obra —Martin Heidegger (1889-1976) terá sido o prin cipal artífice da transformação filosófica da hermenêu tica, transformada em uma forma de filosofia autôno ma. Com Heidegger, a hermenêutica mudará de objeto, de vocação e de estatuto. Primeiramente, ela mudará de objeto, deixando de incidir sobre os textos ou sobre as ciências interpretativas para incidir sobre a própria existência. Podemos falar, então, de uma virada existencial da hermenêutica. Ela também mudará de vocação, porque a hermenêutica deixará de ser entendida de ma neira técnica, normativa ou metodológica. Ela passará a ter uma função mais fenomenológica, mais "destruidora" no sentido libertador do termo, que decorre de sua mudança de estatuto: ela será não apenas uma reflexão
que incid e sobre a interpretação (ou seus métodos), ela será também a realização de um processo de interpre tação que se confundirá com a própria filosofia.
i . U m a hermenêutica
d a facticidade
Não se insiste muito nisso, mas Heidegger será, de fato, o primeiro a fazer da hermenêutica o título de uma fi losofia quando apresentar seu pensamento, no título de um de seus cursos (que ele citará em Ser e tempo e também em 1 959) como uma "hermenêuti ca da factici
dade". A facticidade designa aqui a existência concreta e individual que inicialmente não é para nós um objeto, e sim uma aventura na qual somos projetados e para a qual podemos despertar de maneira expressa ou não.
3 8 I HERM ENÊUTI CA
A ideia de uma hermenêutica da facticidade, como a de uma hermenêutica da existência emSer e tempo, de 192 7, comporta um duplo sentido precioso, conforme o duplo sentido do genitivo, sentido em quedesignar o genitivotanto "o medo dos inimigos" (metusnohostiurrí] pode o medo que temos dos inimigos (genitivo objetivo) quanto o medo que os inimigos têm de nós (genitivo subjetivo). No sentido objetivo, a hermenêutica da facticidade quer dizer que a filosofia tem como objeto a existência hu mana, entendida de maneira radical como ens hermeneuticum, como um "s er hermenêutico". Essa concep ção bastante ampla da hermenêutica provém de três fontes: a. Ela provém parcialmente de Dilthey e de sua ideia segundo a qual a vida é, em si mesma, intrinsecamente hermenêutica, ou seja, levada por uma inter pretação de si mesma. b. Ela também terá sido marcada pela concepção da intencionalidade em Husserl, segundo a qual a consciência vive inicialmente no elemento da in tenção de sentido, percebendo sempre o mundo na perspectiva de um entendimento constituinte. c. Sua inspiração vem, em última instância, da filosofia cristã de Kierkegaard, que falara da escolha diante da qual se encontrava situada a existência, que deve decidir a orientação de seu ser, escolha que pressu põe se r a existência u m ser de interpretação. Mas no sentido subjetivo do genitivo, o projeto de uma
hermenêutica "da" facticidade sugere que essa inter pretação deve ser efetuada pela própria existênci a. Em outros termos, o filósofo — ou o autor da hermenêutica
VIRAD A EXISTEN CIAL DA HERMENÊUT ICA EM HEIDEGGER
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da facticidade —não tem como se substituir à própria existência. No máximo, ele pode elaborar "indicações formais" que permitirão à existência se apropriar de suas próprias possibilidades de existência. Mas é a própria existência que cabe elaborar a hermenêutica de sua própria facticidade e que, em certo sentido, ela pratica de maneira mais ou menos inconsciente pelo fato de já viver no interior de algumas interpretações. Essa possibilidade de elucidação se funda sobré o que éinteiramente a existência,regulado quer dizer, umordem espaçodos aberto que não pela instintos, masé que pode determinar sua orientação vital fundamental e se libertar das in terpretaçõe s "alienantes" d e seu ser. Dessa maneira, a facticidade designa em Heidegger o "caráter de ser" fundamental da existência humana e daquilo que ele também chamará de Dasein, digamos, "o ser-que-é-lançado-aí", esse ser que e da oportu nidade meu, que de início não é para mim apenas um "objeto" que se encontra diante de mim, mas uma rela ção consigo ao modo da preocupação e da inquietude radical. Para abordar essa facticidade, o termo herme CA L/Cl
nêutica não foi escolhido por acaso. Ele se funda na própria facticidade, ressalta Heidegger. É desse modo que a facticidade é simultaneamente: a. capaz de interpretação ; b. está em expectativa e necessita de interp retação; c. é desde sempre vivida no interior de determinada
interpretação de seu ser. Simplesmente a facticidade o esquece facilmente, esquecendo-se assim de si mesma. A tarefa de uma
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hermenêutica da facticidade, no sentido do genitivo objetivo, será então lembrar a facticidade a si mesma, arrancá-la de seu esquecimento de si. A hermenêutica é de "ataque", visando à facticidade de cada um: "A her menêutica tem como tarefa torn ar cada Daseirt atento a seu próprio ser, comunicá-lo a ele, expulsar a alienação de si que assola o Daseiri’2. Em outros termos, trata-se de despertar a existência para si mesma: "O tema da hermenêutica é, então, o Dasein de cada um, questionado de maneira hermenêu tica quanto a seu caráter de ser, a fim de elaborar um despertar radical a propósito de si mesmo”. Medimos aqui a distância que separa Heidegger da hermenêu tica clássica: a hermenêutica não tem mais a ver com textos, e sim com a existência individual de cada um, a fim de contribuir para se despertar a si mesma! Visto que se trata de abalar a existência, é preciso "des- ] truir” as interpretações que a mantêm em seu estado de sonolência: “A hermenêutica realiza sua tarefa uni camente pelo viés da destruição”3. Há necessidade de uma destruição porque a existência tenta evitar-se a si mesma. Transpassada pelo cuidado de si, ela tem a preocupação de se aliviar dessa inquietude radical que ela é para si mesma. A existência busca se apaziguar a si mesma, busca se evitar, sucumbindo assim à tendên cia ao "aviltamento" que a segue como sua sombra4. É
Herméneutique 2GA),M. Heidegger, t. 63, Klostermann, 1998, p. 15. de Ia facticité. CEuvres complètes (= 3 Idem, ibidem, p. 32. 4 Cf. M. Heidegger, lnterprétations phénoménologiques dAristote (1992). TER-Repress, 1992, pp. 19.23.
VIRADA EXIST ENC IAL DA HERMENÊUTICA EM HEIDEGGER
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dessa forma que a existência sucumbe por si mesma à mediocridade ditada pelo "se” sujeito indeterminado e pela opinião pública. Ressaltemos que Heidegger não tem realmente um mo delo mais edificante a propor à existência concreta. Ele simplesmente lembra à existência que ela deixa de ser um pouco aí quando se deixa levar e não cuida de se assumir a si mesma. Heidegger opõe a essa existência inautêntica o ideal de autenticidade que já habita a exis tência enquanto espaço aberto capaz de determinar a 'interpretação de seu ser. Não se trata, então, de propor uma nova moral, mas de convidar o Dasein para ser o que ele é, um ser que pode ser "aí" onde caem as de cisões fundamentais quanto a seu ser, mas que muito frequentemente está noutro lugar, distraído, longe de si.
2. O ES TA TU TO DA HERM ENÊUTI CA em
S e r e tempo
0 programa hermenêutico de 1923 será retomado na obra mestra de 1927, mas dessa vez nosto a serviço do novo , projeto de uma ontologia fundamental. Nesse quadro, a filosofia é efetivamente concebiaa comoontologia por que sua questão primeira é a do ser. Segundo Heidegger, a questão é prioritária, e isso em vários sentidos:
a. Inicialmente, ela aparece como fundamental em ci| ência porque todo conhecimento e toda relação com um objeto repousam sobre certa compreensão do ser de que se está tratando (o ser é um pouco a pressuposi-
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ção de toda pesquisa científica, mas que cabe propria mente à filosofia trazer à luz). b. Mais fundamentalmente ainda, a questão do ser se confirma como urgente para a própria existência, se é verdade que a existência se caracteriza "pelo fato de que vai a seu ser por seu próprio ser". Portanto, não há na filosofia questão mais essencial. 0 que ocorre é que a questão hoje "caiu no esquecimento" declara a primeira linha do livro de 1927. É preciso, então, franquear um novo acesso a ela. Para\ tanto, Heidegger propõe seguir o método fenomenológico, gue, inicialmente, supõe um sentido proibitivo: tudo o que será dito dos fenômenos deverá ser objeto de uma legitimação direta. Ora, a dificuldade com o ser é que ele não se mostra, e a questão foi atualmente abandonada, tendo ficado recoberta pela problemática da teoria do co nhecimento. Aquilo que a fenomenologiadeverá fazer ver, dirá Heidegger, é aquilo que não se mostra à primeira vis_ ta, mas que tem necessidade de ser posto em evidência: 0 que é que a fenomenologia deve 'fazer ver'? (...) Mani festamente aquilo que, à primeira vista, justamente não j>e aquilo que, com relação que se mas mostra de mostra, cara e mais frequentemente, estáao retraído, quelogo ao mesmo tempo pertence essencialmente, proporcionan do sentido e fundamento, ao que se mostra à primeira vista e o mais frequentemente5. Desse modo, a fenomenologia será o caminho que per mite acesso ao ser, inclusive como fenômeno funda-:
5 Être et temps , trad.: Martineau, 47; trad.: Vezin, 62 (SZ, 35).
VIRADA EXISTENCIA L DA HERMENÊUTI CA EM HEIDEGGER
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mental, mas que não se mostra por conta do esqueci mento do ser. Mas como fazer ver aquilo que não se mostra, aquilo que constitui o objeto da ontologia? Heidegger resolve o dilema apelando à hermenêutica, bem entendido, à hermenêuti; ca da existencia. A fenomenologia fará, então, uma "virada hermeneutica". Os desenvolvimentos que Heidegger con sagra as noções de fenomenologia e de hermenêutica sugerem fortemente que a dissimulação do fenômeno do ser é o resultado de um recobrimento que nada tem de inocente. Esse recobrimento se funda, realmente, em uma autodissimulação da existência que, ao ocultar o tema do ser, busca sobretudo esquivar-se de seu ser fini to e mortal. A tarefa de uma hermenêutica da existência „ será, então, reconquistar ("redespertar" dizia o curso de 1923) a existência e seu tema o ser, contra riamente a sua tendência de sefundamental, ocultar a si mesma. Trata-se aqui de enfrentar um duplo esquecimento, mas um duplo esquecimento que se sistematizou: o esquecimento da própria existência (isto é, o esquecif mento de si mesma como tarefa e como projeto) e o esquecimento do ser como tema fundamental da filo sofia. Nos dois casos, o esquecimento supõe uma "des truição", ou seja, pôr a descoberto os motivos que pre sidiram à instauração de um pensamento que oblitera o ser como tema fundamental da existência e da filo sofia. Na introdução a Ser e tempo , a insistência incide
sobre o esquecimento ser,esse masesquecimento a seqüência da obra estabelecerá claramentedoque se ali cerça em um esquecimento de si da existência e de sua finitude, que é fundamental.
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Em vista de suprimir esse duplo esquecimento, há ne cessidade de uma hermenêutica, ou seja, de uma des coberta "destruidora” (que sempre deve ser entendida no sentido positivoque do desencapamento que a nu o fenômeno foi encoberto): de umbusca lado,pôr de uma hermenêutica da própria existência, que a tire de seu autorrecobrimento; de outro, de uma hermenêuti ca do esquecimento filosófico do ser, que se anuncia sob onome de uma “destruição" da história da ontologia.
Ser e tempo fará então, em uma página muito densa (SZ, 37), uma caracterização concisa e condensada daqui lo que convém entender por hermenêutica. 0 "sentido metódico da des crição fenomenológica" será resultado da hermenêutica no sentido preciso de que a descrição derivará de um trabalho de interpretação (Auslegung, voltaremos daqui a pouco a este termo crucial). 0 cará ter hermenêutico da fenomenologia vem ressaltar que as duas coisas devem ser "anunciadas" à compreensão do ser que é a de nossa existência: a. o sentido autêntico do ser; b. as estruturas fundamentais de seu próprio ser. Mas para comunicar o sentido autêntico e fundamental do ser e as estruturas do ser que é o nosso, temos de partir de uma “explicitação exp ressa do ser da existên cia", que constituirá o sentido filosoficamente primei ro da hermenêutica em Ser e tempo. Se esse sentido é
chamado de primeirodaéontologia porque ele constituirá o que fu n damento verdadeiro fenomenológica Heidegger quer propor: a fim de redespertar a questão do ser, é necessário partir de uma interpretação expli-
VIRADA EXIST EN CIA L DA HERMENÊUTICA EM HEIDEG GER
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citante do entendimento de ser, mais ou menos expres sa, que é a da própria existência. Tendo em vista essa problemática, entre todas a mais fundamental, é apenas de modo derivado, diz Heidegger, que podemos entender por hermenêutica uma "meto dologia das ciências históricas do espírito". Heidegger afasta-se, assim, da concepção diltheyana da herme nêutica, mas em nome de um pensamento que vincula a hermenêutica à própria existência, seguindo algumas das intuições do último Heidegger.
3. U m a nova
hermenêutica
d o entender
í É desse modo que a hermenêutica promete recordar à existência as estruturas essenciais de seu ser, às quais Heidegger dará 0 nome de "existenciais”. Se é verda de que a existência é habitada por um entendimento (preocupado) de si, consequentemente, 0 "entendi mento" formará um existencial absolutamente funda mental e ao qual Heidegger dará um novo sentido, de terminante para a hermenêutica posterior. Já sabemos que a existência é hermenêutica por ser ela um ser de entendimento. Mas o que quer dizer enten der? Mais uma vez, Heidegger rompe com a tradição anterior, vendo nela menos uma intelecção ( intelligere ) ou um conhecimento e mais um poder, uma capacida
de, um saber fazer ou uma habilidade. Nesse sentido, ele recorre à locução alemã sich auf etwas verstehen, que quer dizer "entender-se sobre algo", "ser capaz de
4 6 | HE RME NÊ UT ICA
algo”. 0 "entender-se sobre" é aqui um verbo pronomi nal, que me implica em seu exercício, porque é sempre uma possibilidade de mim mesmo que se desdobra, e que também se arrisca, no entendimento. Entender, portanto, é poder algo e o que é "podido" nes se poder é sempre uma possibilidade de si mesmo, um "se-entender". Ancorado na existência e em sua inquietude funda mental a propósito si mesmo, tpdoo entendimento entendimento terá a estrutura de umdeprojeto. Ou seja, se dá no seio de uma estrutura de antecipação, de uma antecipação de significatividade, regida pela existência e por sua necessidade de orientação. Mas essa antecipação não decorre necessariamente de um projeto consciente. Ela é o resultado de um "projeto lançado": lançado na existência, o entendimento se nu tre de projetos de entendimento que são tantas outras possibilidades de se livrar de embaraços no mundo. Mas é possível esclarecer esse ser-projetado, trazer à luz essas antecipações e, assim, apropriar-se de seus projetossederealizará entendimento. Essedaquilo esclarecimento do en tender por meio que Heidegger chama de Ausiegung. Heidegger esta recorrendo aqui ao conceito que de fine a tarefa clássica da hermenêutica, a tarefa de in terpretação, mas conferindo-lhe um sentido inédito. A
interpretação é exatamente, dirá ele, a explicitação do " entendimento. Heidegger está jogando aqui com o ter mo alemão Ausiegung, que quer dizer interpretação na linguagem corrente, mas cuja construção evoca a ideia
VIRADA EXISTEN CIAL D A HERMENÊUTICA EM HEIDEGGER
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de um desbastam ento ou de uma explicitação (de onde a preferênci a dos tradu tores por esse term o quando se trata de verter Ausiegung). Dois deslocamentos maiores são operados aqui com relação à problemática clássica da interpretatio. a. 0 que se trata de trazer à luz não é inicialmente o sentido do texto ou a intenção do autor, mas a in tenção que habita a própria existência, o sentido de seu projeto. Esse deslocamento tem tudo a ver com a virada existencial da hermenêutica em Heidegger, que abandona o paradigma da interpretação dos textos (mas sem deixar de ter repercussões sobre ela, como o reconhecerão os herdeiros de Heideg ger que serão Bultmann, Gadamer e Ricoeur). b. A interpretação deixa aqui de ser o "procedimento" que permite atingir o entendimento, segui ndo a estru tura teleológica da interpretação e do entendimento que prevaleceu na concepção clássica da hermenêuti ca. Não, a interpretação é, sobretudo, o esclarecimen* to crítico de um entendimento que a precede. Primei ro, vem o entendimento, depois sua interpretação, na qual o entendimento vem a se entender a si mesmo, a se apoderar de suas antecipações. 0 entendimento é dotado de uma tríplice estrucu ra que vem a ser esclarecida naquilo que Heidegger chama a Ausiegung ou a "interpretação explicitante”. Todo en tendimento possui: a. um "pré-saber" ( Vorhabe ), um horizonte a partir do
qual ele entende; b. uma pré-visão ( Vorsicht ), porque ele se efetua em uma cer ta intenção ou em uma cer ta visada;
4 8 | HE RME NÊ UT ICA
c. uma "pré-apro priação " (’Vorgriff ), dado que ela se desdobra no seio de uma conceitualidade que an tecipa o que há para ser entendido e que talvez não seja inocente. 0 propósito da interpretação explicitante é destacar jpara si mesma ("enquanto tal ou qual") a estrutura de antecipação e aquilo que ela implica. Heidegger aqui está claramente animado por uma intenção de Aufklárung ou de elucidação (que será um pouco tem perada por seu aluno, Gadamer). Em Ser e tempo, Hei degger não pensa, de início, nos modos filológicos da interpretação e do entendimento, ele pensa, sobretudo, em dois tipos de antecipação que estão na expectativa de explicitação ou de "destruição": a. a antecipação de determinada concepção do ser (como presença subsistente: o que é, é o que se es tende em uma presença permanente sob um olhar dominador, concepção que teria dominado toda a história da metafísica); b. a antecipação de determinada concepção da exis tência (o homem como coisa pensante, ou animal
rationale ). A questão de Heidegger aqui é a seguinte: mas de onde vêm esses pré-entendimentos? Eles nunca foram elu cidados por si mesmos? Ser e tempo se propõe a fazê-lo, aplicando à questão do ser e do homem a estrutura do entendimento e da explicação que já é a estrutura
da existência. Dessa forma, a obra pratica, no plano fi losófico, a hermenêutica do ser e da existência que já se opera no seio da existência. Voltamos a perceber a distância que pode separar Heidegger da hermenêuti
VIRADA EXISTEN CIAL DA HERMENÊUTICA EM HEIDEGGER
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ca clássica: não se trata de interpretar o sentido de um texto ou o pensamento de um autor, mas de elucidar o pré-entendimento da existência, a fim de determinar se ela provém de uma apreensão autêntica ou não.
4. Docírculo
d o ent end i m ent o
s Segundo Heidegger, todo entendimento se eleva contra 0 fundo 1 da de algumas ditadas pelo cuidado existência consigoantecipações, mesma. A existência se entende,
então, a partir de certo saber, de certa intenção e se gundo determinada çonceitualidade. Trata-se de outra maneira de dizer que não existe tabula rasa do entendi mento. Ora, contudo é esse ideal da tabula rasa do en tendimento que a metodologia científica quis impor à hermenêutica do século XIX, especialmente em Dilthey: a hermenêutica passa a ser entendida como a discipli na que deve rejeitar o subjetivismo da interpretação, a fim de fundar a pretensão da objetividade das ciências humanas. Aqui se pressupõe que não se pode entender "objetivamente” a não ser que sejam descartados os pressupostos do intérprete e de sua época. De acordo com esse ideal de objetividade, a concepção heideggeriana do entender e da interpretação parece levar a um "círculo" que dá todas as mostras de ser vi( cioso. É que parece não mais existir interpretação ob jetiva, neutra, com toda interpretação parecendo nada
mais que a elaboração de um entendimento prévio. Daí é que vem 0 problema pelo qual mais ou menos se defi nia a herme nêutica clássica: como sair desse círcu lo de
5 0 | HE RME NÊ UT ICA
danação? Como chegar a uma interpretação que seria, enfim, independente das preconcepções do intérprete? Querer sair desse círculo seria, aos olhos de Heidegger, manter a esperança de chegar a um entendimento que deixaria de brotar da existência. Mas não só nada dis so existe, como manter uma ilusão dessas seria passar completamente ao largo do que é o entender, saber uma busca de inteligibilidade que é sempre movida pelas ex pectativas da existência, preocupada consigo mesma. "O que éendecisivo, Heidegger, não é (SZ, sair 153). do círculo, mas trar neleclamará da maneira conveniente" Para ele, isso quer dizer que a tarefa primeira da interpreta ção é não a de ceder a preconceitos arbitrários, mas a de elaborar a estrutura de antecipação do entender a partir das próprias coisas (com isso, Heidegger dá a en tender que não renuncia, de modo algum, à concepção clássica da verdade como adequação à coisa). A máxima hermenêutica de Heidegger consiste, então, em destacar a estrutura de antecipação do entendi mento, em vez de fazer como se ela não existisse. É, en tão, a um exercício de rigor, ou seja, de autocrítica, que Heidegger convida a interpretação. É a esse exercício que é consagrado todo o projeto de Ser e tempo, que se interroga sobre os pressupostos hermenêuticos da compreensão dominante do ser e da existência.
5. A ÚLT I MA HERMENÊUT
I CA DE HEIDEGGER
Essa explicação crítica terá seqüência na última filoso fia de Heidegger, isto é, em sua última "hermenêutica",
VIRADA EXISTENC IAL DA HERMENÊU TICA EM HEIDEGGER
|5 1
que assumirá a forma de uma explicação com a histó ria da metafísica e de sua concepção dominante do ser como presença disponível. Mesmo sendo verdade que Heidegger não fala mais detodos hermenêuti\ oca,último ele radicaliza suaquase exigência dedicando os seus esforços à atualização dos pressupostos do pensamento metafísico, que agora ele considera o responsável pelo esquecimento do ser. Em Ser e tempo, esse esquecimento era amplamente 1; imputado à existência inautêntica, que esquecia sua questão essencial. 0 segundo Heidegger verá nele, sobretudo, a conseqüência do destino da metafísica ocidental: ao submeter o ser à perspectiva da racionalidaJ1 de ("nada é sem razão"), a metaf ísica teria apagado o mistério srcinal do ser, seu surgimento gratuito, sem porquê. Essa metafísica dada racionalidade sua realização na essência técnica: nela,encontraria o ser não passaria de um dado disponível e compatibilizável. f %,: Heidegger está à espreita de outra compre ensão do ser, p menos imperial, menos regida pelo "princípio de ra zão". Seu pensamento visa, de ssa maneira, p reparar um novo começo e a "superar" assim o pensamento metafí sico, que tende a sujeitar o se r à perspectiva do homem ao exigir que ele preste contas. Essa hermenêutica pro longa a visada de SZ no sentido de que seu propósito é destacar os pressupostos da concepção metafísica do ser, em nome de outro pensamento, mais srcinal, mais atento ao surgimento do ser.
Heidegger esboçou esse outro pensamento dispensan do uma atenção renovada, e absolutament e hermenêu tica, ao fenômeno da linguagem e da linguagem poética.
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Ser e tempo já dissera que a tarefa da hermenêutica era anunciar à existência o sentido do ser. Ora, esse "anún cio" já não é o próprio fato da linguagem, no qual o ser sempre assomou à fala? Não é essa capacidade de enten der a linguagem e, com isso, de estar aberto ao mistério do ser que runda nosso Dasein, nosso "ser-aí-na-linguagem"? Portanto, não é de admirar que todo o último Hei degger, em suas reflexões sobre a linguagem, pensada como a "morada do ser” tenha podido dizer que era a falaaque davadovoz hermenêutica” tal, relação seràe"relação do homem6. Além disso,fundamen Heidegger o fez em uma "entrevista” retrospectiva, publicada em 1959, na qual ele retoma nostalgicamente seu projeto de uma hermenêutica da facticidade e em que ele cita, pela primeira vez em trinta anos, textos de Schleiermacher e de Dilthey. Ele quis, com isso, marcar sua solidariedade com a herança da hermenêutica que o precedera, mas afirmando que a linguagem era o elemento da relação hermenêutica, ele também antecipou os desenvolvi mentos da hermenêutica de seus herdeiros.
6 M. Heidegger, D’un entretien de ia parole, Acheminement vers Ia parole (1959). Paris: Gallimard, 1967, pp. 118,120,126.
VIRADA EXISTE NC IAL DA HERMENÊUTICA EM HEIDEGGER
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capítulo IV
CONTRIBUIÇÃO DE BULTMANN AO AVANÇO DA HERMENÊU TICA
mínimo que se pode dizer é que Heidegger propôs uma concepção bastante herética da
O
hermenêutica. Preso à questão dõ^ser e da existência, seu projeto, à primeira vista, não tem lá muito a ver com a concepção clássica da hermenêu- i tica, entendida como arte de interpretar os textos ou j como metodologia das ciências humanas. Tal projeto parec e tão distanciado das preocu pações tradicionais i da hermenêu váriosignorá-lo historiadores da hermenêutica podemtica se que permitir ou enxergar nele um risco mortal |essejyy^á o caso de Betti). Mas para aqueles que podemos chamar dé os descendentes de Heidegger (Bultmann, Gadamer, Ricoeur, Vattimoet alií], são exatamente suas reflexões "revolucionárias" sobre o entendimento, a interpretação e a linguagem
i j j /
que deviam provocar conseqüências para o pensamen to hermenêutico, dedicado à interpretação dos textos e à justificação da pretensão de verdade das ciências i humanas. Podemos dizer que o cuidado desses auto- W
CONTRIBUI ÇÃO DB BULTMANN AO AVANÇO DA HER ME NÊ UTIC A |5 5
ires concentrou-se em aplicar, cada um a sua maneira, j as lições da herm enêutica existencial às questões mais í tradicionais da hermenêutica. 0 primeiro pensador de envergadura a ter mostrado como a concepção heideggeriana podia ser posta a serviço das questões mais clássicas da interpretação de textos foi, sem dúvida, o teólogo Rudolf Bultmann (1884-1976). Antes mesmo de conhecer Heidegger, Bultmann já era um eminente exegeta do Novo Testa mento. Em sua História da tradição sinótica, de 1921, ele dera uma contribuição de primeira plana à leitura histórico-crítica do texto bíblico, insistindo nos estilos e nos gêneros literários do texto sagrado. Ele se tornou professor em Marburgo em 1921, onde desenvolveu toda a sua carreira e onde manteve relações muito es treitas com Heidegger (que também foi professor em Marburgo de 1923 a 1928), mas também com Gadamer (que passou vinte anos em Mar burgo, de 1919 a 1 939). i
Bultmann sempre achou que a interpretação existenciai proposta por Heidegger oferecia uma descrição neutra da existência humana, da qual o teólogo po dia se servir em seu trabalho de interpretação. Desse modo, ele terá sido o primeiro hermeneuta a fazer as ideias de Heidegger frutificarem no campo da exegese. Isso é especialmente evidente no ensaio que ele pu blicou em 1950 sobre "O problema da hermenêutica". Esse texto foi publicado muito tardiamente na obra de
r Bultmann, mas é importante porque ajuda a delimitar \ aquilo que permanecerá para autores como Gadamer e Ricoeur como sendo o "problema hermenêutico".
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Bultmann expõe aquilo que ele chama o problema da hermenêutica apoiando-se no ensaio de Dilthey sobre "A srcem da hermenêutica”, publicado cinqüenta anos an tes. Mas começa criticando a concepção trem endamente restritiva, excessivamente genética, que Dilthey tinha do entendimento: o entendimento é justamente "a reefetuação dos fenômenos internos que se desenvolve ram em seu autor?” Não é ele exatamente a recriação do "acontecimento criador interno do qual eles provêm?”1 Nesse ponto, Bultmann está estigmatizando a orienta ção psicologizante de Dilthey. Segundo ele, ela mascara o próprio sentido do esforço de entendimento, focali zado sobretudo na coisa a ser entendida e a partir da pergunta fundamental que é a do intérprete: Um entendimento, uma interpretação está (...) sempre orientada por uma pergunta determinada, por uma in tenção precisa. Isso implica que ela jamais existe sem uma pressuposição ou, para falar mais exatamente, que ; ela é sempre guiada por um pré-entendimento da coisa sobre a qual ela interroga o texto2. Para Bultmann, o entendimento está sempre voltado para a coisa ( Sache ) do texto, para sua aposta e não para a psicologia do autor. Mas esse entendimento da coisa não pode deixar de ser guiado por um pré-en ten- ^ dimento do intérprete. Por sua vez, esse pré-entendi mento se funda na vida daquele que entende: A pergunta fundamental procede de um interesse que se
funda na vida daquele que questiona. 0 pressuposto de 1 R. Bultmann, Le problèm e de 1'herméneut ique (1950), Foi et comprehension, 1 . 1. Paris: Le Seuil, 1970, pp. 599-626, aqui p. 603. 2 Idem, ibidem, p. 604.
CONTRIBUIÇÃO DE BULTMANN AO AVANÇO DA HER ME NÊUTIC A
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toda interpretação compreensiva é que o interesse do qual falamos está, de uma maneira ou de outra, vivo no texto a ser interpretado e funda a comunicação entre o texto e o intérprete3.
\ Assim, dirá Bultmann, só podemos entender participanj do daquilo que é dito. Bultmann fala aqui de umteilneh‘ mendes Verstehen, de um "entendimento participativo": entender é ter parte com aquilo que entendo. Bultmann também dirá: não posso entender Platão a não ser filo sofando com ele. Bultmann insiste nessa ideia de par ticipação para criticar uma concepção excessivamente "estetizante" do entendimento, segundo a qual o sen tido a entender seria inicialmente a expressão de uma individualidade. Não, diz Bultmann, entender é, sobre tudo, apreender uma possibilidade de existência. Essa possibilidade de existência que está no centro do "problema da hermenêutica”! ^ manifesta nos dois polos do entendimento, que se tornam a partir daí uma questão de, diálogo: entendo semprea partir de minha existên cia, e aquilo que entendo é também umapossibilidade de revelada texto. PauldeRicoeur, quedirá terá pos sido existência muito marcado pelopelo pensamento Bultmann, teriormente que o entendimento incide sobre o mundo que a obra abre para mim e no qual me permite habitar. 0 pré-entendimento do intérprete não deve ser elimi nado, em nome de um ideal metódico de hermenêutica,
ele deve antes ser elaborado para si mesmo e questiona do: "Não se trata de eliminar o pré-entendimento, mas 3 Idem, ibidem, p. 605.
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de elevá-lo ao nível consciente”4. E torná-lo consciente, Bultmann esclarece, é prová-lo pelo texto, fazer com que o entendimento possa ser questionado pelo texto e que, dessa maneira, ele possa ouvir sua reivindicação pruch). Uma revisão do pré-entendimento é sempre[Anspos sível e é ela o produto do trabaího de interpretação. Se, com isso, Bultmann demonstra ter apreendido per feitamente a estreita ligação entre o entendimento e a interpretação-explicitante em Heidegger, seu mérito éconcepção o de ter sido o primeirodoa círculo aplicar hermenêutico expressamenteàsa heideggeriana questões mais tradicionais da hermenêutica, desen volvendo e praticando uma hermenêutica existencial dos textos (Heidegger se limitara explicitamente a um a hermenêutica da existência e da metafísica). Ao afir mar que o entendimento baseava-se em um "interesse fundado na vida", ele antecipava a concepção do en tendimento própria da hermenêutica filosófica de Ga damer (o entendimento como aplicação) e de Ricceur (o entendimento como abertura de um mundo). Des se modo, antes de Gadamer, ele se opunha à concep ção ainda excessivamente estetizante e reconstrutora do entendimento emabria, Dilthey. Sua daí, concepção "partici pativa" do entender a partir caminho para a compreensão do entendimento como um diálogo. 0 retorno dahermenêutica a suas questões mais antigas tornava-se possível desde um solo heideggeriano.
4 Idem, ibidem, p. 618.
CONTRIBUI ÇÃO DE BULTMANN AO AVANÇO DA HERM ENÊU TICA
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capítulo v
HANS-GEORG GADAMER: UMA HERM ENÊ UTICA DO ACO NTE CIME NT O DO ENTENDIMENTO
i . U m a hermenêutica
n ã o metodológica
DAS CIÊNCIAS HUMANAS
esmo que Heidegger já tivesse proposto uma concepção filosófica da hermenêutica, -é apenas coniGadamer que o termo herme nêutica começou a realmente se impor à consciência geral. Em 1960, Gadamer submeteu a seu editor um longo manuscrito intitulado As grandes linhas de uma hermenêutica filosófica. Contudo, o editor avaliou que o termo hermenêutica talvez fosse muito esotérico e trouxesse o risco de espantar os leitores. Solicitado a trocá-lo por algo mais atrativo, Gadamer pensou ini
cialmente em Entendime nto e acontecimento, antes de chegar ao título Verdade e método. Foi essa obra que catapultou a hermenêutica aq centro dos debates filo sóficos, a ponto de o editor insistir para que o termo
GADAMER: UMA HERM ENÊUTIC A DO ACONTECIMENTO DO ENTENDIMENTO | 6 1
hermenêutica figurasse no título de uma coletânea de ensaios que Gadamer viria a publicar em 1967... Apesar de Gadamer ter sido aluno dedaHeidegger e de ter se inspirado muito nele, a transição hermenêutica de Heidegger para a de Gadamer não é automática. Gada mer não retomou d iretamente a "hermenêutica da exi s tência” de seu mestre. Ele tentou repensar, a partir dela, a problemática, mais diltheyana, de uma hermenêutica das ciências humanas (mesmo que Gadamer vá acabar indo além desse horizonte ao esboçar uma hermenêu tica universal da linguagem). 0 que o impressionou em Heidegger foi menos o projeto de uma hermenêutica direta da existência ou de uma retomada da questão do | ser e mais a nova compreensão do círculo hermenêuti co, que não é mais para ser entendido segundo o ideal objetivista de uma tabula rasa. A ideia fundamental de Heidegger dizia que era absurdo esperar alcançar um entendimento expurgado de toda antecipação, logo, fi nalmente "objetivo", porque entender, para um ser fini to, é ser movido por algumas antecipações. Sem anteci pações constitutivas, o entendimento perde toda razão de Por um issoentendimento. não existe interpreta çãoser, quetoda não pertinência. seja guiada por Heidegger afirmava tudo isso, claro, na perspectiva de uma hermenêutica da existência: as antecipações da existência foram elaboradas de maneira autêntica, a partir da finitude de nosso ser, ou não? Por sua vez,
Gadamer aplicará a valorização mais positiva do círcu lo hermenêutico à problemática de uma hermenêutica das ciências humanas. A concepção de Heidegger não deve ter conseqüências para uma hermenêutica que
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se propõe fazer justiça à pretensão de verdade das ci ências humanas? Gadamer parte, então, de Heidegger, mas para renovar a compreensão do problema de Dil they. Mesmo reatando com a interrogação de Dilthey, Gadamer questiona a premissa de Dilthey segundo a qual apenas uma metodologia poderia dar conta da ver dade das ciências humanas. Esse é um pouco o senti do do título Verdade e método : a verdade não é apenas uma questão, de método. 0 método se funda sobre a distância do observador com relação a seu objeto. Ora, esse modelo de "entendimento a distância" é realmente apropriado às ciências humanas? O espectador não está sempre comprometido de certa maneira? Essa concep ção do entendimento vem diretamente de Heidegger: entender é um "se entender a si mesmo". Mas ela também evoca o "entendimento participante” de Bultmann. 0 propósito inicial de Gadamer é justificar a experiência de verdade das ciências humanas (e do entendimento em geral) partindo da concepção "participativa" do entendi mento. Ela é constitutiva daquilo que ele chama, na pri meira linha de sua obra, de o "problema hermenêutico"1. Mas esse "problema" fora encoberto, segundo ele, pela concepção excessivamente metodológica da hermenêu tica proposta por Dilthey. A ideia de Gadamer é que Dil- j they sucumbe a uma concepção da verdade inspirada na ' metodologia das ciências exatas, que declara anátema todo envolvimento da subjetividade. Em vez de seguir cegamente essa metodologia, por sinal, quase em desacordo com sua prática real, as ci-
1 H.-G. Gadamer, Vérité etméthode [VM]. Paris: Le Seuil, 1996, p, 11; CEuvres complètes [GW\,1.1 ,1.
GADAMER: UMA HERM ENÊUT ICA DO ACONTECIMENTO DO ENTENDIMENT O | 6 3
ências humanas fariam melhor se se inspirassem na tradição um pouco esquecida do humanismo, do qual, por sinal, as ciências humanas extraem o próprio nome
(humaniora). A reconquista do problema hermenêuti co começará, portanto, por uma vigorosa reabilitação da concepção humanista do saber nas primeiras seções de Verdade e método. 0 traço característico do huma nismo é que ele não visa inicialmente produzir resulta dos objetiváveis e mensuráveis, como no caso das ciên cias metódicas da natureza. Ele espera, especialmente, contribuir para a formação ( Bildung ) e para a educa ção dos indivíduos desenvolvendo sua capacidade de julgar. Nesse ideal de formação, no qual se forma um senso comum, um senso comum a todos e um sentido do que é comum e justo, se produz uma elevação ao universal, mas que não é o universal da lei científica. Ele corresponde, sobretudo, a um ultrapassamento de nossa particularidade, que nos abre para outros hori zontes e que nos ensina a reconhecer, humildemente, nossa própria finitude. Não se vê aqui um "modo de co nhecimento" que implica o indivíduo e que pode servir de modelo para as ciências humanas? Se esse modelo perdeu para nós sua força coagente é porque o posi tivismo científico impôs um modelo único de saber, o modelo do conhecimento metódico, independente do intérprete. Gadamer não tem nada contra o saber metódico enquanto tal, ele reconhece toda a sua legi timidade, mas avalia que sua imposição como o único modelo de conhecimento tende a nos tornar cegos a outros modos de saber. Uma reflexão que quisesse fa
zer justiça à verdade das ciências humanas, reflexão decorrente daquilo que podemos cham ar uma "herm e nêutica", não seria necessariamente uma metodologia.
6 4 I HERMENÊUTICA
2.O
MODELO DA ARTE:
O ACON TECIMEN TO DO ENTENDI MENTO
Em busca de outro modelo de saber, diferente do modelo da ciência metódica, Gadamer vai se inspirar, na primei ra parte de Verdade e método, na experiência da arte. A obra de arte não oferece apenas uma fruição estética, ela é, num primeiro momento, um encontro de verdade, afir ma firmemente Gadamer. Reduzir a obra de arte a uma questão puramente estética é fazer o jogo da consciência metódica, que reivindica um monopólio sobre a noção de verdade, limitada à ordem daquilo que é cientificamente cognoscível. Não, dirá Gadamer, é preciso também reco nhecer que a obra de arte tem sua verdade. Essa amplia ção da noção de verdade permitirá mais tarde fazer justi ça ao modo de conhecimento das ciências humanas. A fim de pensar esse encontro com a verdade, Gadamer propõe partir da noção de "jogo": entender uma obra de arte é deixar-se levar por seu jogo. Nesse jogo, somos menos aqueles que dirigem e mais aqueles que são le vados, encantados pela obra, que nos leva a participar de uma verdade superior. 0 jogo não tem nada de pura mente subjetivo para Gadamer. Bem ao contrário, aque le que joga se encontra, sobretudo, transportado para uma realidade "que o ultrapassa". Aquele que participa de um jogo se dobra à autonomia do jogo: o jogador de tênis responde à bola que lhe é enviada, o dançarino se gue o ritmo da música, aquele que lê um poema ou um
romance é tomado por aquilo que está lendo. Esse modelo é importante porque a "subjetividade" se encontra bastante implicada aqui, mas ela é importan
GADAMER: UMA HER MEN ÊUT ICA DO ACONTECIMENTO DO ENTENDIMENTO | 6 5
te ao justamente se dobrar àquilo que a obra, em toda a sua objetividade, lhe impõe: o sujeito se encontra enga jado em um encontro que o transforma. Se se tratar de uma obra de arte, o "jogo" se condensa em uma figura, em uma obra que cativa e que descobre para mim algo de essencial, a propósito do que é, mas também a propó sito de mim mesmo. A propósito do que é porque é um acréscimo de realidade que vem se apresentar em uma obra, isto é, uma realidade mais poderosa e ainda mais reveladora que a própria realidade que ela representa, mas que ela me permite conhecer melhor por si mesma. Desse modo, é o quadro Dos de Mayo de Goya, mostran do pobres camponeses espanhóis fuzilados à queima-roupa pelas tropas francesas, que descobre para mim o que é a realidade da ocupação da Espanha por Napoleão. Esse encontro com a verdade encarna ao mesmo tem po um encontro consigo. Há aí uma verdade da qual eu "participo" (será inevitável pensar, mais uma vez, em Bultmann), porque a obra me interpela sempre de maneira única. Por isso é que há tanta variação nas interpretações das obras de arte. Mas a ideia forte de Gadamer é que essa variação é essencial para o pró prio sentido. Seria perversidade querer erradicá-la da interpretação. A experiência de verdade não decorre tanto de minha perspectiva de mim mesmo, decorre antes de tudo da própria obra, que me abre os olhos para o que é. É preciso distinguir a verdade de que fala Gadamer da concepção pragmatista, que reduz a ver dade ao que ela pode ter de útil para mim: não é a obra
que deve se dobrar a minha perspectiva, mas, ao con trário, minha perspectiva que deve se amplificar, ou até se metamorfosear, em presença da obra.
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Há também na experiência da obra de arte um jogo rigoroso, ritmado, entre o "acréscimo de ser" que se apresenta a mim a modo de revelação, ou até de um
áiktat, e a resposta que é a minha: ninguém pode ficar indiferente diante de uma obra de arte que nos suspen de ante sua verdade. Essa revelação que transforma a realidade, "transfigurada" e "reconhecida" em uma obra de arte, também nos transforma. A obra de arte sempre me diz: "Você tem de mudar de vida!" É esse modelo da obra de arte, e do rigor único que é o seu, que Gadamer aplicará às ciências humanas. Se gundo Gadamer, a verdade das ciências humanas de corre mais do "acontecimento" (que se apodera de nós e nos faz descobrir a realidade) do que do método. Nesse sentido, é revelador que Gadamer tenha queri do inicialmente dar a sua obra o título Entendimento e acontecimento. Com isso, ele queria enfatizar que tal vez chegue muito tarde aquele que quiser impor a essa insigne experiência de verdade uma metodologia que lhe garantisse a "objetividade”, Não estaríamos ceden do a um ideal metódico de conhecimento, legítimo em si que deforma a experiência de verdade demesmo, que dãomas testemunho as ciências humanas e que a experiência da arte nos ajuda a redes cobrir?
3. OSPRÉ-JUÉZOS, CONDIÇÕES DO ENTENDIMENTO:
A R E A B IL IT A Ç Ã O D A T R A D IÇ Ã O
A velha receita para fundar a verdade das ciências huma nas consistia em excluir os "pré-juízos" do entendimen
GADAMER: UM A HERMEN ÊUTICA DO ACONTECIMENTO DO ENTENDIMENTO | 6 7
to, em nome de uma concepção da objetividade, herdada das ciências exatas. De uma maneira muito provocante, Gadamer verá nos pré-juízos sobretudo "condições do entendimento". Aqui, ele invoca a análise da estrutura de antecipação do entender em Heidegger, que demons trara que a projeção de sentido era não uma tara, mas uma componente essencial de todo entendimento dig no desse nome. É nesse mesmo sentido que Bultmann defendera que não havia interpretação sem "pré-entendimento" da parte do intérprete. Tanto em Heideg ger como em Bultmann, contudo, essa concepção não abria completamente as portas ao subjetivismo, porque se tratava justamente de desenvolver antecipações que fossem adequadas à coisa a ser entendida. Com efeito, a interpretação era precisamente, nos dois autores, um convite a um exame crítico de seus pré-juízos. 0 próprio Gadamer começará sua análise, muito já se in sistiu nisso, enfatizando o processo derevisão constante que caracteriza o esforço de interpretação: uma inter pretação justa deve se precaver contra o arbitrário dos preconceitos e voltar seu olhar para as próprias coisas2. Portanto, assim como Heidegger, Gadamer não é inimigo da ideia de adequação. 0 que ele especialmente questio na é o ideal, proveniente do Iluminismo, de um entendi mento que seria inteiramente desprovido de pré-juízos. A sutileza da análise de Gadamer é mostrar que essa ob sessão com pré-juízos procede de um pré-conceito não questionado, especialmente de um "pré-conceito contra
os pré-juízos". A cruzada iluminista contra os pré-juízos 2 VM, 287-288; GW, I, 271-272.
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alicerça-se, efetivamente, sobre a ideia segundo a qual só pode ser reconhecido como verdadeiro aquilo que foi fundado na razão com base em uma primeira certeza. É esse o princípio que leva o Iluminismo a desvalorizar todo conhecimento fundado na tradição e na autoridade. Mas isso é desconhecer que também podem existir "pré-juízos legítimos", pré-juízos fecundos que nos são lega dos pela tradição. Gadamer acredita que a oposição entre a razão e a tradição é abstrata, ela mesma tributária de uma tradição, que rechaçaúltima. toda verdade não tenha sidocartesiana, fundada de maneira Mas seráque que existe mesmo algo assim, Gadamer se pergunta, uma ver dade que não deveria estritamente nada à tradição e que seria, então, inteiramente separada da linguagem? Gadamer não está pensando aqui em uma tradição defi nida (o que faria dele o "tradicionalista" que ele não é); ele está pensando especialmente no "trabalho da histó ria”, que vai sendo tramado acima do entendimento. Des se modo, a tradição representa o que não é "objetivável" em um entendimento, mas que o determina imperceptivelmente. 0 entendimento se opera a partir de algumas expectativas objetivos quesempre ela herda dopôr passado e de seu presente,emas que nem pode em pers pectiva. Mesmo que Gadamer mantenha o ideal clássi co, e heideggeriano, de um exame crítico dos pré-juízos, parece-lhe ilusório orientar a verdade do entendimento para um ideal de um conhecimento desprovido de todo pré-conceito. Esse ideal não faz justiça, segundo ele, à
historicidade constitutiva do esforço de entendimento. Em Gadamer, é também essa historicidade que permite ter a expectativa de resolver a questão crítica da herme
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nêutica: como distinguir os pré-juízos legítimos, aque les que tornam possível o entendimento, daqueles que não são legítimos e que cabe à razão crítica superar?3 Ele dirá com frequência: é o recuo no tempo, a distância temporal, que permite fazer a triagem entre os bons e os maus pré-juízos. Vemos isso, por exemplo, na arte con temporânea, mas também em filosofia: como distinguir as contribuições importantes e srcinais daquelas que o são menos? Aqui, só o recuo no tempo oferece algum socorro, permitindo aos grandes e se fazerem valer. Solução maisprogressos ou menos emergirem satisfatória, porque mantém intacta a questão da ponderação das obras contemporâneas, quando colapsa a distância tem poral (mas não toda forma de distanciamento crítico), mas também porque ela rejeita, sem dúvida, instâncias nas quais a distância temporal pode obnubilar grandes obras e interpretações importantes. Mesmo tendo in sistido naquilo que a tradição pode ter de descobridora, e com razão, talvez Gadamer não tenha enfatizado suficientemente o que ela podia ter de recobridora e, às vezes, de repressiva. Mas é verdade que essa crítica pressupõe um conceito muito "moderno" de tradição, justamente aquele que Gadamer pretende relativizar.
4. O
TRABALHO
DA HI S TÓ RI A
E SUA CONSCIÊNCIA
O conceito fundamental da hermenêutica de Gadamer é 0 de Wirkungsgeschichte. 0 termo alemão, que já existia 3 Ibidem, 298, 320; GW, I, 304.
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antes de Gadamer, designa em sua acepção mais cor rente a história da recepção ou, mais simplesmente, a posteridade das obras através da história. É assim, por exemplo, que podemos distinguir a obra de Cervantes de sua posteridade, a Revolução Francesa de sua influên cia sobre a história. Uma vez que esse termo designa um operar da história, e Gadamer enfatizará sua produtivi dade, podemos falar aqui de um “trabalho da história”. A disciplina da Wirkungsgeschichte foi desenvolvida no século XIX por historiadores, orgulhosos de sua "cons ciência histórica" e interessados em estudar, por si mesma, a posteridade das grandes obras: o historia dor que quiser estu dar o pensamento de Platão por si mes mo terá o cuidado de se distinguir de sua posteridade e de seus pré-juízos. Desse modo, a consciê ncia históri ca do trabalho da história devia perm itir esc apar a sua insidiosa determinação, para o maior bem de uma in terpretação objetiva do passado "tal qual ele realmente foi" antes de a história lhe conferir novos sentidos. Gadamer se pergunta se esse ideal de entendimento, que busca manter a Wirkungsgeschichte à distância, faz justiça ao por trabalho da história. fato justamente de estudar a posteridade si mesma implica0 que, por isso, nos subtraiamos a sua eficácia? Não se tem certeza disso, porque a própria interpretação que pretende "objetivar" o trabalho da história se faz em nome de pré-juízos e de um ideal de objetividade que são propriamente o fruto de um trabalho subterrâneo
da história (no caso, do positivismo). Aos olhos de Ga damer, parece menos importante objetivar esse traba lho da história, tarefa impossível porque ela pretende
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'i se tomar senhora de todas as suas determinações, do que reconhecer que todo entendimento se inscreve em um trabalho da história, emanando das próprias obras, mas do qual ela só teve uma consciência parcial. Todo o propósito filosófico de Gadamer é desenvolver uma consciência adequada desse trabalho da história. De início, pode se tratar, como em Heidegger e em Bult mann, de uma consciência que se esforça para iluminar o trabalho da história dentro do qual ela se mantém, a fim de esclarecer sua própria situação hermenêutica. Isso é perfeitamente legítimo no seio da pesquisa histó rica, mas, aos olhos de Gadamer, é fundamental tomar consciência dos limites desse esclarecimento. Isso por que o trabalho da história continua a determinar nossa consciência para além da consciência que temos disso. Uma consciência finita jamais será senhora de todas as suas determinações. Em uma ambigüidade essencial e voluntária, a "consciência do trabalho da história” de signa simultaneamente, como o afirma o prefácio à 2a edição francesa de Verdade e m étod o: a. a consciência lapidada e trabalhada pela história; b. a tomada de consciência desse ser-determ inado e dos limites que ele impõe ao ideal de uma consci ência inteiramente transp arente a si mesma4. A expectativa de Gadamer é exatamente: o reconheci
mento de sua finitude essencial levará a consciência a se abrir à alteridade e a novas experiências. 4 Prefácio à 2a edição, tradu zida da I a tradu ção (parcial) de VM. Paris: Le Seuil, 1976, p. 14.
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5. A FUSÃO DOS HORIZONTES E SUA APLICAÇÃO
Segundo essa consciência que se dá conta de sua finitude, o entendimento aparecerá menos como uma ati vidade do sujeito do que como um advir decorrente do trabalho da história: 0 próprio entender deve ser pensado menos como uma ação da subjetividade do que como uma inserção em um acontecimento de tradição no qual se mediatizam cons tantemente o passado e o presente. Eis o que se deve reconhecer na teoria hermenêutica, que é muito mais dominada pelas ideias de procedimento e de método5.
Essa constante mediação do passado e do presente está na raiz da ideia gadameriana de uma "fusão de horizontes”. Entender o passado não é sair do horizon te do presente, e de seus pré-juízos, para se transpor para o horizonte do passado. É, na realidade, traduzir o passado na linguagem do presente, onde se fundem os horizontes do passado e do presente. Desse modo, a fusão é tão bem-sucedida que não se consegue mais distinguir o que provém do passado nem o que resulta do presente, de onde a ideia de "fusão". Mas essa fusão do presente e do passado também é, mais fundamen talmente, a do intérprete com aquilo que ele entende. Como já vimos no caso da experiência da arte, o en tendimento é uma experiência tão fusional que não se pode mais distinguir facilmente o que provém do obje
5 VM, 312; GW, 1 ,29 5. Ver meu estudo s obre "La fusion des horiz onts". Archives de philosophie. 68 , 200 5,401-41 8.
GADAMER: UM A HERMENÊUTICA DO ACONTECIMENTO DO ENTENDIMENTO | 7 3
to e o que deriva do sujeito que entende. Os dois, então, se "fundem" em um encontro bem-sucedido do sujeito com o objeto, onde podemos reconhecer a versão gadameriana da adasquatio rei et intellectus, da adequação da coisa ao pensamento, que constitui a definição clás sica da verdade. Se há fusão com o presente, é porque o entendimento sempre encerra uma parte de aplicação. No momento em que entende, o intérprete insere algo de seu, mas esse "seu" é também o de sua época, de sua linguagem e de seus questionamentos. Sempre interpretamos uma obra a partir de questionamentos, frequentemente im perceptíveis, de nosso tempo. Entender é, pois, "apli car" um sentido ao presente. Gadamer se vincula aqui à antiga subtili tas applicandi, que ainda fazia parte, no pietismo do século XVIII, da tarefa essencial da herme nêutica. Para um pastor, essa aplicação se operava na homilia que buscava aplicar o entendimento do texto sagrado à situação real dos fiéis. Gadamer lhe confere uma amplitude sem precedentes, afirmando que o en tendimento nada mais é que a aplicação de um sentido ao presente. Aqui, Gadamer se opõe ao ideal metódico e reconstrutor de Schleiermacher e de Dilthey, que quer excluir a intervençã o do presente, percebida como uma ameaça à objetividade. Podemos realmente entender, pergunta-se Gadamer, sem fazer parte do entendimen to, sem que o presente esteja nele implicado?
A tradução oferece um belo exemplo daquilo que Gada mer entende por aplicação: traduzir um texto é fazê-lo falar em outra língua. Claro que os recursos de nossa língua são então aplicados. 0 sentido estrangeiro só
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pode ser vertido para outra língua se formos capazes de entender. Ao transpor o sentido para outra língua, o texto traduzido vem se fundir (no melhor dos casos) com aquele que acaba de traduzi-lo. Diante isso, uma tradução é tanto mais bem-sucedida quando não se tem a sensação de estar lendo uma tradução. Vemos com isso, sobretudo, que a aplicação comporta seu ri gor e sua verdade: não se pode traduzir um texto de qualquer jeito. É o texto estrangeiro que se tra ta de tra duzir, mas isso só é possível quando se aplicam os re cursos de nossa língua. Por isso é equivocado associar a aplicação do intérprete a uma forma de arbitrário subjetivo. Esse modelo de tradução não é qualquer um, dado que ressalta o elemento "lingüístico” de todo en tendimento com o qual Verdade e m étod o se concluirá.
6. A LINGUAGEM, OBJETO E ELEMENTO DA R EALIZAÇÃO
HERMENÊ UTI CA
Entender é traduzir um sentido ou ser capaz de tradu zi-lo. Essa tradução implica exprimir linguisticamente o sentido. Gadamer chega à conclusão de que o proces so do entendimento e seu objeto são essencialmente lingüísticos. Temos aqui duas teses. A primeira é que o entendimento é sempre um processo "lingüístico". Sob um aspecto negativo: não há entendimento que não seja, de certa maneira, expressão lingüística. Entender
é ser interpelado por um sentido, poder traduzi-lo em uma linguagem que é sempre necessariamente a nossa. Temos aqui fusão entre o processo do entendimento e
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sua expressão lingüística. A ideia de Gadamer é que a linguagem não é a tradução, segunda, de um processo intelectual que a precederia e que poderia se desenvol ver sem linguagem. Não. Todo pensamento já é busca de linguagem. Não existe pensamento sem linguagem. Mas aqui se trata de uma evidência que o pensamento ocidental teria teimado em menosprezar desde Platão, ao atribuir à linguagem um estatuto segundo em com paração com o pensamento autônomo. Aqui, Gadamer denuncia um esquecimento da linguagem que teria atravessado toda a noss a tradição ocidental e à qual ele só conhece uma exceção: a ideia, entrevista por Agos tinho, de uma "identidade de essência" fundamental entre o pensamento (o logos ) e sua manifestação lin güística (sua encarnação). Essa linguagem do entendimento pode abarcar todo ser suscetível de ser entendido. Portanto, ela não está restrita a sua própria perspectiva (a de uma língua ou de uma comunidade específica): “A condição lingüística de nossa experiência do mundo não significa um perspectivismo que excluiria outras perspectivas"6. A insis tência não recai, portanto, sobre o limite perspectivista que geraria o caráter lingüístico de nosso entendimen to, mas, ao contrário, sobre a abertura que ele implica: a linguagem, entendida a partir do diálogo, pode se abrir a tudo o que pode ser entendido e a outros horizontes lingüísticos que venham ampliar os nossos. A tradução e o diálogo, em princípio, são sempre possíveis. Isso não quer dizer que nossa linguagem não conheça limites:
nossas palavras são, com frequência, bem impotentes 6 VM, 472; GW, 1,452.
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para exprimir tudo o que sentimos. Mas os limites da linguagem são então também os limites de nosso en tendimento. Toda crítica aos limites da linguagem só pode ser feita propriamente no seio da linguagem. Des se modo, a linguagem absorve todas as objeções que se pudesse querer levantar contra sua competência. Por isso é que Gadamer dirá que a universalidade da lingua gem vai, pari et passu, com a universalidade da razão7: ela mesma se articula em uma linguagem capaz de ser entendida e permanece impensável sem linguagem. Mas se podemos falar de uma universalidade e de uma racionalidade dialógica da linguagem, para designar sua abertura a todo sentido que possa ser entendido, é por que a linguagem é a luz do próprio ser. É daí que surge a segunda grande tese de Gadamer: não apenas a realiza ção do entendimento é uma expressão pela linguagem, como o objeto do entendimento é ele mesmo lingüísti co. Esse é o sentido do famoso adágio de Gadamer: "0 ser que pode ser entendido é linguagem". Isso se aplica claramente aos textos, mas, segundo Gadamer, o mundo que eu entendo é sempre um mundo orientado para a linguagem. 0 mundo só se apesse resenta a mimessa "emangústia lingua gem”. Sempre. Essa parede, médico, não se oferecem inicialmente a meu olhar como reali dades físicas às quais acrescentarei depois designações. Não. 0 que vejo são uma parede, uma casa, e é uma an gústia que me estrangula. Tudo o que pode ser entendi do é um ser que se articula em linguagem. Quando tento
entender o que é determinada coisa, busco um ser que já é linguagem e que pode, então, ser entendido. 7 VM, 424; GW, 1,405.
GADAMER: UMA HERM ENÊUTICA DO ACONTECIMENTO DO ENTENDIME NTO | 7 7
É fundamental ver que a insistência de Gadamer não recai sobre a expressão lingüística do mundo por um sujeito, como na concepção de Humboldt, que faz da linguagem uma "visão do mundo", ou na de Cassirer, que faz da linguagem uma "forma simbólica" de nos sa apreensão do mundo. A ideia central de Gadamer é, mais fundamentalmente ainda, que é a linguagem que faz o ser do mundo aparecer, porque é ela que permite desdobrar a linguagem das próprias coisas. Dessa ma neira, a linguagem encarna a "luz do ser”, na qual o ser das coisas se dá a entender. Muito marcados pelo pensamento moderno, os intérpre tes nem sempre apreenderam bem o alcance dessa tese de Gadamer. Seu propósito não consiste em dizer que o real é sempre apropriado pela linguagem (que seria o real de uma língua ou de uma cultura histórica) e que, consequentemente, o ser propriamente dito seria incognoscível. Ao contrário, ele diz que é a linguagem que nos permite conhecer o sér das coisas. Gadamer critica severamente a ideia moderna (de Humboldt e de Cassi rer, mas que remonta a Kant) segundo a qual o real não receberia sua inteligibilidade a não ser de nossa lingua gem, de nossa visão do mundo ou de nossas categorias. 0 sujeito doador de sentido não se encontra "em face" de um mundo de objetos que seria inicialmente privado de sentido e que só viria a receber sentido a partir de de terminada linguagem. Gadamer denuncia aqui uma con
cepção nominalista instrumentalnas damãos linguagem, que faz da linguagem ume instrumento do sujeito. Gadamer sustenta que a linguagem já é a articulação do próprio ser das coisas; Não se trata de um instrumento
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do qual dispomos. Trata-se, muito mais, do elemento uni versal no seio do qual se banham o ser e o entendimento. Esse elemento universal da dimensão lingüística — do sentido, do ser e do entendimento — habilita a herme nêutica a alimentar uma pretensão de universalidade. Desse modo, a hermenêutica ultrapassa o horizonte de uma reflexão sobre as ciências humanas para vir a ser uma reflexão filosófica universal sobre o caráter lingüís tico de nossa experiência do mundo e do próprio mundo.
gadam
er : uma herm
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capítulo VI
HERMENÊUTICA E CRÍTICA DAS IDEOLOGIAS
I. A REAÇÃO METO DOL ÓGI CA DE B e TTI
r
"^endo vindo a confirmar a po steri ori sua con cepção do trabalho da história, a hermenêu tica de Gadamer suscitou vivas discussões fi losóficas, que contribuíram para ressaltar seu sentido e alcance. A primeira reação proveio do jurista italiano EmilioJtetji (1890-1968), que apresentara uma con cepção rigorosamente metodológica da hermenêutica em sua volumosa Teoria ger al da interpret ação de 195 5 (Milão: Giuffrè Editori). Ela se situava na tradição de
T
Schleiermacher e Dilthey, mas a síntese magistral de Betti era muito mais desenvolvida e hierarquizada do que os esboços de seus dois grandes antecessores. A Teoria generale de 1.000 páginas, não há dúvida, foi bem pouco lida, mas Betti redigiu em alemão dois pan fletos polêmicos nos quais resumia o essencial de seu
pensamento e que tiveram muito mais repercussão: a Fundação de uma teoria geral da interpretação, de 1954, e o ensaio de 1962, A hermenêutica como meto
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dologia ge ra l das ciências human as1. No primeiro pan fleto, ele ainda não está evidentemente se defrontando com Gadamer, mas Betti investe ali contra as doutrinas "heréticas" de Heidegger euma de Bultmann, queinterpre querem ver no pré-entendimento condição da tação. Betti defende com ardor a doutrina clássica, segundo a qual o pré-entendimento é mais prejudicial que benfazejo ao correto entendimento. Ele censura Heidegger por ter invertido o vínculo teleológico natu ral entre a interpretação e o entendimento, fazendo da interpretação o desdobramento do entendimento. 0 ensaio de 1962 desfecha a primeira réplica impor tante contra Verdade e m étodo, seguindo uma linha de ataque previsível, mas que permitirá a Gadamer de finir o sentido de sua hermenêutica em suas respos tas, especialmente no prefácio à 2a edição de Verdade e e método e em seu ensaio de 1965, "Hermenêutica historicismo”2. Betti se concentra, especialmente, na concepção da aplicação defendida por Gadamer, cen surando-o de confundir a significação ( Bedeutung ) de uma obra, ou seja, seu sentido srcinal do ponto de vis ta de seu autor, com a "significância" (Bedeutsamkeit ) que ela possa ter para o intérprete atual. Segundo ele, a tarefa e ssencial da herm enêutic a não é aplicar um sen tido ao presente, o que levaria ao subjetivismo, mas de reconstru ir a intenção do autor. Betti condena a "m eto dologia hermenêutic a” que Gadamer parecia estar pro pondo e que consistiria em se desfazer do método e em
1 E. Betti, Zur Grundlegung e ine r allgemeinen Auslegu ngslehre, 1954, reed.: Tübingen: Mohr Siebeck, 1988; Die Hermeneutik ais allgemeine Methodik der Geisteswissenschaften. Tübingen: Mohr Siebeck, 1988. 2 Em H.-G. Gadamer, Vart de comprendre, 1.1.19 82, pp. 49-87.
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se remeter a seus próprios pré-juízos. É claro, não há dúvida, que.Betti pensava que Gadamer tinha a mesma concepção, metodológica, de hermenêutica que ele.
/
(Gadamer viu nessas críticas uma divergência com suas verdadeiras intenções. Seu objetivo não era propor uma nova metodologia — sobretudo, não a metodolo~giaque Betti lhe imputava! —, mas fazer uma j-eflexão sobre a experiência d e verdade das ciências humanas / f| que busca justamente ultrapassar o quadro de uma metodologia, ainda excessivamente enfeudada nas ci ências exatas. Ele atenuava o alcance da distinção en tre a significação. fsrcinal) e ajsignificância (atual) de uma obra perguntando-se se a significação do passado j podia realmente ser entendida independent emente do j sentido que ela tenha para nós e que adquiriu no de- / correr do trabalho da história. Mas foi outro o debate que contribuiu para se chegar a conhecer melhor a hermenêutica, o debate que opôs Gadamer a Habermas.
2. A
CO NT RI BUI ÇÃ O DE GA D AM ER segundo
H aberm as
No decorrer dos anos 1960, Jürgen Habermas (nascido em 1929) trabalhava em uma lógica das ciências sociais que, um pouco como Gadamer fizera com as ciências
humanas, tentava justificar a contribuição de verdade |j específica das ciências sociais. Sua magistral Lógica das i ciências socia is (1967) foi inicialmente um artigo publi-
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cado em uma revista editada por Gadamer, a Philosophische Rundschau. Em 1961, aliás, sabendo que ele es tava em posição vulnerável em Frankfurt, Gadamer aco lheu o jovem Habermasna sob sua proteção,deconfiando-lhe um lugar de professor Universidade Heildelberg. A Lógica d as ciências sociais assume a forma de uma lon ga resenha crítica das principais contribuições à epis. temologia das ciências sociais. Proveniente da: Escola^ ide FrankftnJra intenção de Habermas é mostrar que as ciências são animadas por um interesse de conheci mento "emancipador" que as habilita a criticar a socieídade existente. Habermas está em luta especialmente contra os sociólogos que sucumbem a uma concepção puramente positivista de sua disciplina. Segundo eles, as ciências sociais teriam a ver com dados empíricos mensuráveis e seus resultados seriam desprovidos de qualquer interesse de conhecimento, porque isso poria em risco sua pretensão de objetividade. Em sua justi ficativa do tipo de conhecimento das ciências sociais, Habermas pôde se inspirar em Gadamer, mas também não deixou de criticá-lo. Como a crítica talvez tenha se tornado mais famosa que a solidariedade entre os dois pensadores, é necessário evocar seu acordo de base: a. Habermas começa por se solidarizar inteiramente com a crítica gadameriana do "entendimento objetivista que as ciências humanas tradicionais têm e si mesmas": Se o homem de ciência procede a uma interpretação
mantendo-se preso a seu ponto de partida hermenêu tico, segue-se que a objetividade do entendimento não pode se r assegu rada pela suspensão dos pr é-juízos, mas
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apenas por uma reflexão sobre o contexto histórico de tradições que desde sempre vincula os sujeitos cognoscentes a seus objetos3.
Daí Habermas extrai a lição de que o pesquisador social é implicado por seu objeto, do qual ele faz parte, e que ele só tem a ganhar ao tomar consciência dos pré-juízos, segundo ele, emancipadores, que orientam sua pesquisa. b. Habermas também aprendeu muito com a concep ção gadameriana da linguagem. É claro que não se pode entender o ágir social fazendo abstração da linguagem na qual o agir se articula, se enten de, mas também se reflete sobre si mesmo. Mas há algo de mais importante ainda que ele descobriu em Gadamer, especialmente a ideia segundo a qual acomo linguagem constitui um dos universo na teorianão wittgenstginiana "jogosfechado, de lin guagem" (que Habermas criticará com o auxílio de Gadamer). A linguagem se encontra investida es pecialmente de uma cap acidad e a se tra nscend er a si mesma. Prova disso é que sempre é possível tra duzir um conteúdo de sentido estrangeiro, como Gadamer o demonstrou. Desse modo, a linguagem pode se abrir a todos os horizontes de sentidos possíveis e superar os limites de um quadro lin güístico dado: "Os círculos lingüísticos não são monadicamente fechados sobre si mesmos, mas po rosos: abertos tanto para o exterior quanto para o
interior"4. Para o exterior enquanto podem acolher 3 J. Habermas, La preténtion à 1'universalité de 1'herméneutique, in Logique des scien ces soci ales. Paris: PUF, 1987, pp. 245-246. 4 Idem, ibidem, p. 190.
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todo conteúdo estrangeiro e traduzi-lo, mas tam bém para o interior, na medida em que a linguagem é capaz de transcender suas próprias expressões, de matizá-las e de encontrar novas expressões p ara aquilo que quer ser entendido. Essa abertura ates ta, aos olhos de Habermas, o potencial de raciona lidade inerente à própria linguagem5. A razão, ele dirá posteriormente, assenta-se na linguagem na medida em que ela é capaz de se transcender a si mesma. Impressionante recepção —e aplicação! — da hermenêutica gadameriana da parte de Haber mas, mas que se duplica em uma crítica severa.
3. A
j
crítica
a
G a d a m e r por H aber m as
Mesmo que Gadamer tenha descoberto 0 potencial de uma “racionalidade comunicativa" capaz de vencer os limites de uma linguagem dada, ele teria comprometi do 0 alcance de sua descoberta, segundo Habermas, ao defender que 0 entendimento se fundava na tradição ou no acordo preexistente que uma comunidade dada carrega. Ora, é possível transcender esse acordo pree xistente por uma "crítica das ideologias". Seu propósito é justamente questionar a ideologia reinante em dada sociedade ou em um grupo como uma forma "sistemati camente distorcida de comunicação", distorcida porque
desvia comunicação de seu natural, queentão, é0 acor do entrea os interlocutores. Essafim crítica é feita, em nome de uma situação de comunicação ideal, irreal sem 5 Idem, ibidem, p. 185.
8 6 I HERM ENÊUTICA
dúvida, mas que não deixaria de ser antecipada em todo ato de fala, desde que acreditemos que o ato de fala é animado por uma vontade de comunicação. Assim como o psicanalista diagnosticar um bloqueio comunicacional em umdeve paciente, o terapeuta social pode desmascarar o pseudoconsenso que dada sociedade ali menta como uma forma de “falsa consciência". Mas ao pôr em questão o acordo preexistente em dada comu nidade, sairíamos do campo da hermenêutica para en trar no campo da "crítica das ideologias”. Afastando-se, graças ao trabalho de reflexão, do quadro da tradição, ela elaboraria um sistema de referência normativo6 que lhe permitiria livrar-se da pertença irrefletida à tradi ção: como o confirma, mais uma vez, a psicanálise, uma tradição trazida à consciência pela reflexão deixaria de nos determinar. Por isso Habermas critica Gadamer por "erigir as tradições culturais como absolutas"7. Só quando consideramos a crítica de Habermas mais de perto é que nos damos conta de que ele também tenta pensar "com Gadamer contra Gadamer"8. Porque é exatamente a concepção gadameriana de linguagem e sua capacidade de autotranscendência que ele brande contra a concepção gadameriana da tradição. Mas podemos realmente falar de uma absolutização das tradições culturais em Gadamer? Não estamos cer tos disso. Gadamer reconhece perfeitam ente que é pos 6 Logique des s ciences sociales, p. 215: "0 direito da reflexão reclama
adeautolimitaçã o daultrapasse abordagem herm enêutica. Ele demanda referência que o contexto da tradição enquantoum tal".sistema 7 Ibidem, p. 218. 8 Ibidem, p. 215.
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sível transcender os limites, digamos "ideológicos”, de uma linguagem ou de uma situação determinada. Por sinal, não é esse o grande mérito que Habermas reco nhece à concepção gadameriana de linguagem? Além disso, Gadamer já des tacara em Verda de e m étod o que a autoridade de uma tradição nada tinha de autoritário, mas que ela se baseava em um ato de reconhecimento e da razão9, por ser, antes de tudo, o reconhecimento de uma superioridade. Portanto, em Gadamer, não se trata de fazer da tradição um critério absoluto. Por si nal, Gadamer o reiterou em sua resposta a Habermas, resposta evocadoramente intitulada "Retórica, herme nêutica e crítica das ideologias": "Parece-me falso dizer que fazemos aqui da tradição cultural um absoluto"10. A dissensão incide, especialmente, sobre a questão de saber se, ao transcender os limites de uma tradição dada em nome da crítica das ideologias, realmente saí\ mos do universo hermenêutico e se a tomada de cons ciência de uma tradição pela reflexão suspende com pletamente a determinação da tradição. É incontestável que a reflexão frequentemente pode quebrar ou suspender a força de uma tradição "dis torcida". Quando me dou conta de que sou vítima de um preconceito deformante, ele pode deixar de me paralisar a partir do momento em que é refletido. Mas 9 VM, 300; GWl, 284.
10 H.-G. Gadamer, Herméneutique et philosophie. Paris: Beauchesne, 1999, pp. 97-98, Ricoeur compreendeu perfeitamente (Temps et récit, t. 3, Paris: Le Seuil, 1985, p. 320): "Fazer das tradições uma avaliação positiva não é, ainda, fazer da tradição um critério hermenêutico da verdade".
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Gadamer também reconhecia muito claramente isso quando escrevia que a tarefa crítica da hermenêutica era elaborar pré-juízos conformes à coisa11. Ocorre que a reflexão também não dissolve toda pertinência à tra dição. A reflexão crí tica de uma tradição inscreve-se em um trabalho da história. Não posso questionar uma tra dição, exceto a partir de outra, mesmo que não me dê conta expressamente disso. 0 questionamento de uma tradição não se faz em virtude de um "sistema de refe rência”, que seria independente do trabalho da história. Mesmo reconhecendo ser possível ultrapassar os limi tes de uma tradição cultural, Gadamer duvida de que o abandono do acordo existente possa se fazer a partir do ponto de equilíbrio de uma crítica das ideologias que pretenda diagnosticar as "patologias” da socieda de. Essa transposição do modelo psicanalítico para as patologias de uma sociedade parece mais problemá tica aos olhos de Gadamer. 0 papel do psicoterapeuta é muito diferente do papel do sociólogo. Em uma cura psicanalítica, você está diante de um doente que solicita a reconhecida competência de um terapeuta. Mas não seria presunçoso da parte do investigador social pre tender que uma parte da sociedade está radicalmente "doente” e se arrogar uma competência de "terapeuta social"? Temos aqui um paciente e uma competência terapêutica bem reconhecidos? Não deixamos o universo hermenêutico quando nos , consagramos à crítica das ideo logias. 0 ultrapassamen-
to do acordo existente não se op era a par tir do sistema 11 VM, 288, 298; GW1, 272, 281-282.
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de referência de uma crític a das ideologias, segura de si mesma e se dizendo apartada da tradição, Ele se realiza sempre no seio do entendimento e do diálogo herme nêuticos, quando os participantes se dão conta de seus limites e chegam a uma melhor compreensão. Pelo fato de ser um “entendimento" e de se desdobrar em uma i linguagem capaz de ser entendida, a reflexão resulta, 1 então, uma vez mais, da hermenêutica e se inscreve em , um advir de tradições. í 0 próprio Habermas se situa no seio de uma tradição, i mais ou menos consci ente e mais ou menos rompida pela reflexão. Aliás, o melhor modo de mostrá-lo é evo j car, com mais de uma geração de recuo, o contexto po lítico e social que formava claramente o pano de fundo da crítica de Habermas, o da revolta estudantil de 1968 e seu questionament o cego de toda autoridade baseada na tradição. Em um contexto político tão pesado, Gada mer só podia aparecer como o "conservador” (que ele jamais quis, nem pretendeu ser], enquanto Habermas, evocando a força emancipadora da crítica ma rxista das ideologias e da psicanálise, outorgava-se o belo papel do progressista. A ironia, gritante quando se pensa nis so, era a seguinte: aquele que defendia com mais ardor o ponto de vista da crítica das ideologias talvez fosse aquele cujo discurso era o mais evidentemente ideologizado. Como Gadamer murmurou bem mais tarde, ■o que talvez faltasse à crítica das ideologias fosse uma
pequena dose de crítica das ideologias12, começando pelas próprias. 12 Entrevista com C. Barkhausen, em Spra che und Lit eratu r in Wissenschaft und Unterricht. Paderborn: W . Fink, 19 86, p. 97.
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Habermas terá reconhecido isso a sua maneira. Depois de seu épico debate com Gadamer, ele foi renunciando cada vez mais à retórica da crítica das ideologias e a sua ideia de uma psicanálise ampliada à ordem social, dedicando todos os seus esforços à elaboração de uma Teoria do agir com unicati vo (1981), cujo núcleo é uma ética do discurso fundada na capacidade da linguagem de se transcender a si mesma. Intuição hermenêutica, se é que existe alguma, visto que ela repousa na ideia gadameriana segundo a qual a linguagem visa primei ramente o acordo com o outro. Ora, intenção de acordo, defende Habermas com razão, é impensável sem deter minado engajamento ético da parte dos interlocutores: ela pressupõe, efetivamente, certo ideal de reciproc ida de, de autenticidade e uma vontade de se render à força do melhor argumento. Ao deixar de buscar fundar es sas normas em uma crítica das ideologias ou na anteci pação de uma situação de comunicação ideal, mas sim no uso pragmático da linguagem, podemos dizer que o último Habermas se reaproximou de Gadamer.
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capítulo VII -----
■v —s**
PAUL RICGEUR: UMA HERM ENÊ UTICA DO SI HISTÓRICO DIANTE DO CONFLITO DAS INTERPRETAÇÕES
i . U m percurso
arborescente
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V ada mais injusto do que abordar a contribuição de Ricceur depois das contribuições Jl. n de Gadamer e de Habermas. Se decidimos fazer assim, é unicamente porque Ricceur fundou uma de suas intervenções hermenêuticas sobre uma tenta tiva de conciliação dos pensamentos de Gadamer e de Habermas1. Mas ele vinculava o conflito entre a herme nêutica e a crítica das ideologias a uma distinção entre dois tipos de herm enêutica, a herm enêutica da confian ça e a hermenêutica da suspeita, que distinguira muito ãntes do célebre confronto entre Gadamer e Habermas.
1 Herméneutique et critique des idéologies (1 973), in Du texte à l'action [TA], Paris: Le Seuil, 1986.
paul
ricceur
: u m a herm
enêuti
ca
d o s i histórico
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A ideia de Ricceur, e talvez a ideia fundamental de sua hermenêutica, é que é preciso penxsar coniuntamente essas, duas hermenêuticas, aquela que se apropria do sentido tal qual eíe se dá consciência na experiência expectativa de orientação e aquela queà se distancia da imediata do sentido para reconduzi-la a uma economia mais secreta. Ricoeur chegou a essa ideia seguindo uma trajetória bem distinta da trajetória de Gadamer. Ela é até mesmo completamente independente da de Gadamer. Seus fun damentos foram lançados nas obras publicadas no cor rer dos anos 1950 e 1960, como A filosofia da vontade (1950, 1960), Da interpretação (1965) e 0 conflito das interpretações (1969), nas quais a presença de Gadamer não é de todo sensível. Por sinal, ela permanecerá muito discreta nas obras posteriores de Ricoeur. Contudo, to dos os dois haurem da mesma tradição hermenêutica de Schleiermacher e Dilthey, Bultmann e Heidegger, mas em graus diferentes e com intenções diferentes. Gada mer é certamente muito mais crítico de Dilthey e mais próximo de Heidegger, com sua hermenêutica universal tentando ultrapassar o paradigma metodológico da her menêutica. Ricoeur, por suaavez, jamais quis seda afastar da problemática metodológic e epistemológica herme nêutica. Poderíamos, então, dizer que ele está mais pró ximo de Dilthey, mas isso seria uma simplificação. Realmente, o percurso de Ricoeur é muito mais complexo que isso, procedendo de outras fontes e talvez resistindo
mais a se deixar reduzir apenas à tradição herm enêutica do que o percurso de Gadamer. Seu trajeto se desenvol veu no fio de vários grandes livros, que se estendem por
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um período de quase sessenta anos, de 1 947 a 2004, en quanto a hermenêutica de Gadamer concentra-se em um único livro, que apresenta uma teoria mais sistemática e que talvez tenha dado srcem a debates hermenêuticos mais expressivos que a de Ricoeur. As obras de Ricoeur se interessam por uma florescente diversidade de discipli nas: filosofia da existência — de onde ele partiu e onde estava mais perto de autores como Gabriel Mareei e Karl Jaspers do que de Heidegger —, teoria do conhecimen to histórico, interpretação da Bíblia, psicanálise, teoria lingüística, teoria da ação, fenomenologia do tempo, fenomenologia da memória e do reconhecimento, teoria da narrativa e ética. Em cada um de seus livros, Ricoeur esboça vastos afrescos históricos que tentam reconci liar as abordagens mais diversas. Esse é o traço secre tamente "hegeliano" desse pensamento, que, contudo, resiste à ideia de uma síntese totalizante (um título de um importante capítulo de Tempo e narra tiva dirá que é preciso "Renunciar a Hegel" em nome do inacabamento da vida e da finitude humana). O oposto dessa riqueza é que, por vezes, pode parecer difícil delimitar o núcleo de sua concepção hermenêutica. A unidade é o único pro blema suscitado por esse pensamento hermenêutico. Problema, porém, completamente relativo, porque ele é o resultado de uma superabundância. Mas há unidade nesse pensamento. E como! Podemos compreend ê-la a par tir dos primeiros impu lsos do per
curso de Ricoeur. Eles devem ser buscados na tradição francesa da filosofia reflexiva, aquela que remonta a Ravaisson, Lachelier e Bergson e que é continuada por autores próximo a Ricoeur como Nabert e Marcel. A fi-
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losofia reflexiva parte da autorreflexão do ego, na tra dição do "conhece-te a ti mesmo" de Sócrates e das me ditações de Descartes. Essa tradição logo atraiu Ricoeur para o existencialismo de Jaspers e a fenomenologia de Husserl, curvada sobre um "ego transcendental" que busca justificar sua experiência. Encantado pela filosofia da existência e sua radicaliza ção da problemática ética, dado que o sujeito é pensado por ela como tarefa de si mesmo, Ricceur começou que rendo ampliar a análise fenomenológica de Husserl ao fenômeno da vontade, na primeira parte de sua Filosofia da vontade (1950). A hermenêutica está ausente dessa obra, mas surge com toda a força no segundo tomo, Finitude e culpabilidade (1960) e mais especialmente no segundo volume do livro dedicado àSimbólica do mal. É aqui que se desencadeia sua "virada hermenêutica” ou aquilo que mais tarde virá a ser chamado de seu "enxer to da hermenêutica na fenomenologia". Seu motivo fundamental é que o ego não pode se co nhecer diretamente, por introspecção, ele não pode se entender, exceto pela via indireta da interpretação dos símbolos (Adão Eva, Jó, orfismo etc.) que grandes se esforçam para dar um esentido ao oproblema do mal. Segundo aquilo que Ricoeur mais tarde veio a cha mar de sua "primeira definição da hermenêutica", ela era à época "expressamente concebida como uma decifração dos símbolos, eles mesmos entendidos como expressões de duplo sentido"2. Nessa perspectiva, a in
terpretação é "o trabalho de pensamento que consiste 2 P. Ricoeur, Refléxion faite. Autobiographie intellectuelle,Esprit, 1995,31.
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em decifrar o sentido oculto no sentido aparente, em desdobrar os níveis de significação implicados na sig nificação literal"3. Esse é o primeiro sentido de seu "desvio hermenêuti co", bem diferente do desvio de Heidegger e de Gada mer. Se o desvio pelo lado "objetai" das experiências lhe foi inspirado por Nabert4, o termo hermenêutica remete a Dilthey e a Bultmann, para os quais a herme nêutica era a teoria da interpre tação das manifestações vitais fixadas por escrito. É claro que Ricoeur não desconhecia que Heidegger tinha querido suplantar Dilthey, mas ele sempre quis resisti r à "ontologização" heideggeri ana da hermenê u tica, ou seja, à confusão entre a hermenêutica e a rea lização fundamental da existência. Segundo ele, essa "veemência ontológica" perderia de vista a orientação epistemológica e, consequentemente, crítica, da her menêutica de Dilthey5.
2. U m a fenomenologia TORNADA HERMENÊUTICA
Apesar de sua resistência à hermenêutica de Heideg ger, o próprio Ricoeur defende a ideia de uma "virada hermenêutica" da fenomenologia. Mas com um sentido
3 P. Ricoeur, Le conflit des interprétations. Paris: Le Seuil, 1969, p. 16. 4 P. Ricoeur, Parcours de la reconnaissance. Paris: Stock, 2004, p. 142. 5 P. Ricoeur, TA, 95. Ver J. Greisch, Paul Ricoeur. Uitinérance du sens, Grenoble: Jérôme Millon, s.d., p. 140.
PAUL RICCEUR: UMA HERM ENÊUTICA DO SI HISTÓ RICO | 9 7
diferente daquele que tem em Heidegger. Essa virada se justifica, em Ricoeur, a partir da impossibilidade de um acesso direto aos fenômenos e ao próprio ego. A seus olhos, "o que a hermenêutica arruinou não foi a fenomenologia, mas uma de suas interpretações, a sa ber, sua interpretação idealista pelo próprio Husserl"6. 0 que a hermenê utica arruin ou foi mais especialmente: a. o ideal husserliano de cientificidade, orientado para uma fundam entação última; b. a primazia da intúição como via de acesso aos fenô menos; c. o primado carte siano e husserliano de uma imanência do sujeito a si mesmo; d. o estatuto de princípio último que, então, se reco nhece ao sujeito; e. a concepç ão ainda excessivamente teórica da autorreflexão no seio da fenomenologia husserliana: dado o ato imediatamente responsável de si, a to mada de consciência do sujeito desenvolve implica ções éticas, que a seqüência do percurso de Ricoeur aprofundará cada vez mais. Contra o pano de fundo dessa crítica, Ricoeur propõe desenvolver, por sua vez, uma fenomenologia herme nêutica que tome o caminho das objetivações como o desvio obrigatório para o conhecimento de si. Notemos que a hermenêutica vem aqui qualificar a fenomeno logia. Era um pouco o contrário em Gadamer, que pro
punha uma hermenêutica fenomenológica, é, uma hermenêutica que retornava ao fenômeno doisto entendi 6 TA, 39.
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mento aliviando-o de seu jugo metodológico. Podemos, então, falar, em Ricceur, de uma virada hermenêutica da fenomenologia e, em Gadamer, de uma virada fenomenológica da hermenêutica7. Mesmo que Ricoeur insista na inflexão hermenêutica da fenomenologia, não se deveriam esquecer, segundo ele, os pressupostos ainda fenomenológicos da her menêutica. O primeiro é que "toda questão incidente sobre um ente qualquer é uma questão sobre o senti
do desse ente". Mas esse sentido está, à primeira vista, dissimulado, opaco, e deve ser trazido à luz por um es forço hermenêutico. "A escolha do sentido é, então, o pressuposto mais geral de toda hermenêutica". Só que isso "não implica, de maneira alguma, que uma subje tividade transcendental tenha o soberano domínio do sentido rumo ao qual se dirige.naAodireção contrário, a feno menologia [pode] ser ela empurrada oposta, a saber, para o lado da preeminência do sentido sobre a consciência de si"8. 0 segundo pressuposto fenomenológico é que a hermenêutica deve justificar a experiên cia do "distanciamento": se a consciência se c aracteriza inicialmente por sua pertença ao sentido, esse sentido pode ser posto à distância e interpretado. 0 terceiro pressuposto é que a hermenêutica reconhece, como Husserl, o caráter derivado da ordem lingüística, com relação aos sentidos e às coisas. Aqui, Ricoeur parece se afastar de Gadamer. Mas isso não é com pletamente ver dadeiro, porque Gadamer também defendia, para falar
7 Ver meu estudo sob re essa questão em Le tournant herméneutique de la phénom énologi e. Paris : PUF, 20 03 , pp. 84 -1 02 . 8 TA, 57.
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como Habermas, a ideia de uma "porosidade" essencial da linguagem, aberta a toda coisa e capaz de se trans cender a si mesma. Ricoeur chega à conclusão de que a lingüística não é autônoma de que ela remete aordem uma experiência de mundo. Mas eessa experiência só se dá por meio de uma hermenêutica que se dedica à interpretação das objetivações de sentido.
3. O CONFLITO DAS IN TERP RETA ÇÕES : A H E R M E N Ê U T IC A D A C O N F I A N Ç A E D A SU SP EI TA
Mas como interpretar as objetivações de sentido? Essa era um pouco a questão da hermenêutica clássica e será a questão de Ricoeur. Podemos nos abandonar à imediatidade dò sentido tal como ela se dá, segundo 0 que parece ser a orientação fundamental da exegese bíblica e que Ricoeur ainda seguia na virada hermenêu tica de Simból ica do ma l de 1960? Se a questão se apre senta com tamanha acuidade, é porque Ricoeur, depois de ter concluído essa obra, viu-se confrontado com ou tras interpretações, mais redutoras, que questionam justamente a leitura ingênua do sentido. Foi assim que vieram a se des tacar duas formas distintas de interp re tação aparentem ente incompatíveis: a. A primeira provém de uma hermenêutica da con fiança ou da "recolecção do sentido”: ela assume 0 sentido tal como se propõe ao entendimento e tal
como ele a consciência, sentido qual se revela umaorienta verdade mais profunda e quenopertence a uma hermenêutica amplificadora a explorar. Ri-
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coeur fala aqui de uma teleologia do sentido. Essa hermenêutica, cujos paradigmas são a exegese bí blica e a fenomenologia da consciência, e stá votada ao entendimento do sentido, ao sentido pleno que Dilthey lhe dava: ela se abre às possibilidades de sentido e à experiência que se dá a entender para além das expressões, b. A ela vem, contudo, se opor uma hermenêutica da suspeita, que desconfia do sentido tal como ele se oferece, porque eleverdade pode abusar da consciência. que aparece como pode não passar de um0 erro útil, de uma mentira ou de uma deformação, cuja arqueologia subterrânea a hermenêutica da suspeita se propõe reconstruir. Essa arqueologia pode ser ideológica, social, pulsional e estrutural. É uma hermenêutica defendida pelos "mestres da suspeita": Feuerbach, Marx, Nietzsche, Freud e o estruturalismo. À hermenêutica amplificadora, teleológica, da confiança vem responder uma inter pretação redutora, consagrada não ao entendimen to, mas à explicação dos fenômenos da consciência, reconduzidos a uma economia secreta e recalcada que se inspira claramente em modelos de explica ção extraídos das ciências exatas. Por ser proveniente da filosofia reflexiva e do existencialismo, poderíamos suspeitar de que Ricoeur está mais próximo da fenomenologia e da hermenêutica da con
fiança. Mas esseele nãoseédedicou o caso. aos Emmestres seus livros dos anos 1960, realmente da suspeita, especialmente a Freud, em Da interp retaçã o (19 65 ), e ao estruturalismo em O conflito das interpretações (1969).
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Ricoeur preconiza nessas obras uma abordagem extra ordinariamente conciliatória, que não renega nada da hermenêutica redutora da suspeita. Sua ideia diretriz é que é preciso ir à escola da suspeita se se quiser des truir as ilusões da consciência ingênua. Essa destruição se apresenta como salutar para a consciência, que chega então a se entender melhor a si mesma. Se o eu se perde na hermenêutica da suspeita, é justamente para melhor se reencontrar, libertado de suas ilusões. Ao reconhecer, desse modo, iguais direitos às duas grandes estratégias interpretativas, Ricceur dá prova de conservar um sentido aguçado das "objetivações" e das "construções de sentido” que é preciso interpretar. É isso o que leva a resistir à tentativa heideggeriana de subordinar tudo a uma hermenêutica ontológica do entendimento9, bem como à tentativa gadameriana de questionar a primazia da perspectiva metódica. Para Gadamer, entender não é se encontrar diante de uma objetivação que é neces sário decodificar, é ser-tomado, é ser-habitado pelo sentido. Gadamer falava desde en tão de uma fusão entre o sentido e aquele que o enten de. É esse evento de entendimento que a hermenêutica devia se esforçar para justificar. Ricceur desconfia, por sua vez, dessa fusão e com eça situando o entendimento diante das objetivações, que as abordagens objetivantes da psicanálise e do estruturalismo viriam nos aju dar a decodificar. Mas não seriam elas a deter a última palavra, porque é sempre uma consciência que tenta
se entender melhor. Seguindo a divisa de Ricoeur nessa época: "Explicar mais é entender melhor". 9 TA, 33.
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4 *Um
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enêu
t i ca
DA EXPLICAÇÃO E DO ENTENDIMENTO, INSPIRADA NA NOÇÃO DE TEXTO
Desse modo, Ricoeur renova a compreensão da distin ção feita por Dilthey entre a explicação das ciências exatas e o entendimento das ciências humanas. Mas não se trata exatamente de uma distinção metodológi ca em Ricoeur entre dois tipos de ciência, mas sim de duas operações complemen tares da consciência naqui lo que ele cham ará sem pre mais de "arco hermenêutico da interpretação", ou seja, o conjunto das operações en trelaça das que compõe m o esforço hermenêutico. Um a consciência crítica deve desconfiar da evidência ime diata do sentido que ela entende e da qual se apropria naturalmente. Ela deve aceitar que esse sentido possa ser posto à distância p elo desvio decapante de uma ex plicação que denuncie as ilusões da consciência. Compreende-se perfeitamente que Ricoeur tenha que rido associar Habermas a uma hermenêutica do dis tanciamento e Gadamer a uma hermenêutica da per tença. Sob essas novas designações, reconhecemos sem esforço as herme nêuticas da suspeita e da confiança: se Gadamer acentua a pertença do entendimento ao sen tido transmitido pela tradição, a crítica das ideologias põe em guarda contra a ideologização que essa com preensão talvez encerre. A consciência hermenêutica, logo a consciência refletida segundo Ricoeur, não pode
ria se permitir ignorar lições de uma hermenêutica da desapropriação. Umaasconsciência desapropriada de suas ilusões não se apropria melhor de si mesma?
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Ao aprofundar essa didática do explicar e do entender, um tema novo veio à luz no itinerário de Ricceur no iní cio dos anos 1970, tema que podemos associar à noção de texto. Ele levou a uma ampliação de sua primeira concepção da hermenêutica: a hermenêutica não esta rá mais voltada apenas para a decifração dos símbolos de duplo sentido, ela terá a ver com todo o conjunto de sentidos capaz de ser entendido e que podemos chamar de um "texto"10. Mas como interpretar os textos? Aqui, mais uma vez, Ricceur foi muito marcado pelas aborda gens estruturais e semióticas (especialmente a de Greimas), que consideram o texto como uma unidade autorreferencial, encerrada sobre si mesma. Levar em conta essas interpretações encarna, aos olhos de Ricoeur, a primeira etapa necessár ia no arco da interpretação: Uma nova época da herm enêu tica se abr iu com o suce s so da anál ise estrutu ral: a explicação é, a pa rtir de então, o caminho obrigatório do entendimento11.
Mas a análise estrutural não seria a única. É que o mun do de um texto nunca é fechado sobre si mesmo, ele abre um mundo que a consciência pode habitar. A no ção de texto remete, aliás, por si mesma, a um ato de leitura pelo qual o mundo do texto se vê apropriar por um leitor que, dessa maneira, vem a se entender me lhor. A partir de então, é na leitura que se realizará a hermenêutica amplificadora do sentido: 1
A interpretação de um texto se realiza na interpretação de si de um sujeito que doravante se entende melhor, se 10 P. Ricoeur, Qu’est-ce qu’un texte?, TA, 137-159. 11 TA, 110.
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entende de outro modo, ou até mesmo começa a se en tender12.
A tarefa essencial da hermenêutica será, portanto, du pla: trata-se de reco nstr uir a dinâmica interna do texto [e de] re stituir a capacidade da obra de se projetar para fora na represen tação de um mundo que eu poderia habitar13.
Essa dialética da explicação que põe à distância e do entendimento que o mundo do texto desdobra leva a uma concepção mais ampla da hermenêutica: A dialética nova enfrentava duas oper ações [o explicar e o entender] que W. Dilthey opusera fortemente no começo do século. Ora, o tratamento dessa situação conflitual pro vocava um remanejamento de minha concepção anterior da hermenêutica, que permanecera até então solidária com a noção de símbolo, entendida como express ão de du plo sentido, e encontrara seu estilo conflituoso na concor rência entre interpretação redutora e interpretação ampl ificadora. A dialética entre explicar e entender, desdobra da no nível do texto enquanto unidade maior que a frase, tornava-se a grande questão da interpretação e constituía, a p artir de então, o tem a e a apo sta da herm enêutica1 4.
Em Do texto à ação, Ricoeur passa a adotar a seguinte definição da hermenêu tica: ela é a teoria das operações do entendimento em sua relação com a interpretação dos textos15. 12 TA, 152.
13 TA, 32. 14 Réflexion faite, 49. 15 TA, 75.
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Aqui, o que mais fascinou Ricoeur foi a extensão quase infinita de que se pode beneficiar a noção de "texto". Tudo o que é capaz de ser entendido pode ser consi derado como um texto: não apenas os escritos, claro, mas também a ação humana e a história, tanto indivi dual quanto coletiva, só são compreensíveis na medida em que possam ser lidas como texto. A ideia que de corre daí é que o entendimento da realidade humana é construído por meio dos textos e das narrativas. Desse modo, a identidade humana deve ser entendida como uma identidade essencialmente narrativa. A teoria da narrativa histórica, desenvolvida nos anos 1980, per mitirá contribuir com uma nova resposta à pergunta diretriz de toda filosofia reflexiva: quem sou eu?
5.
A HERMENÊUTICA
DA CONSCIÊNCIA HISTÓRICA
Ricoeur diz muito frequentemente que o si que se des taca das herm enêutica s da suspeita e do distanciamen to é muito certamente um cogito quebrado. Ele deve renunciar ao ideal de uma transparência integral, mas não pode se enten der a partir de objetivações de senti do, de grandes "textos", literários, filosóficos e religio sos, transmitidos pela história da humanidade e nos quais se configura sua experiência radical da tempora-
lidade. Foi em Tempo e narra tiva (1 982-1 985) que Paul Ricoeur apresen tou essa nova concep ção de herm enêu tica. Ela se situa em continuidade com a nova ampli dão que ele reconheceu à noção de texto (e de leitura)
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em sua hermenêutica do explicar e do entender, mas se encontra mais diretamente posta a serviço de uma fenomenologia de nossa temporalidade essencial: o si não pode dar um sentido a sua experiência radical e insuperável do tempo, exceto pela interpretação da configuração narrativa. 0 "si quebrado" e que se sabe tal pode então se dar conta de suas modestas, mas reais "capacidades" de reconfigurar seu próprio mun do. A hermenêutica narrativa de Ricceur enfatizará co rajosamente os dois aspectos: o caráter trágico da con dição humana, que nunca alcançará um entendimento totalizante de si mesma, mas igualmente a resposta do homem a essa aporia, a parte de iniciativa que compete a ele, apesar de tudo, enquanto homem capaz. No último volume de Tempo e narrativa, os dois mo mentos se entrecruzam em uma "hermenêutica da consciência histórica". A fórmula evoca Gadamer e sua ideia de uma hermenêutica da consciência do trabalho da história. Ricoeur reconhece a Gadamer justamente o mérito de ter insistido no "ser-afetado-pelo-passado": "Não somos os agentes da história, somos apenas seus pacientes", porque "nós nunca estamos na posição ab soluta de inovadores, mas sempre e em princípio na si tuação de herdeiros”. Essa condição provém inicialmen te, como em Gadamer, de nossa condição lingüística: “A linguagem é a grande instituição —a instituição das instituições — que sempre nos precedeu a todos". En quanto seres falantes, somos não apenas dependentes do sistema da língua, sobre o qual insistem as aborda
gens estruturais, mas também das "coisas já ditas, en tendidas e recebidas”. 0 mundo tal qual o experimen
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tamos é, portanto, um mundo que se exprime em uma linguagem e por meio de uma identidade histórica que são recebidos antes. É por isso que, diz agora Ricoeur, "o distanciamento, a liberdade em relação aos conteúdos transmitidos não podem ser a atitude primeira”16. Aqui, Ricoeur se aproxima muito de Gadamer, aliás, talvez mais do que em qualquer outra p arte de sua obra. Todavia, mais uma vez, ele está menos preocupado em conter a distância metódica, objetivante, do que em integrá-la à hermenêutica consciência Sea gundo Ricceur, o próprio da Gadamer teria histórica. reconhecido necessidade dessa integração, quando insistiu na no ção de aplicação e na ideia de que o entendimento era sempre o resultado de uma fusão de horizontes entre o passado e o presente. 0 presente tem uma palavra a di zer no acontecimento de tradição que é o entendimen to, mas se trat a de uma resp osta que se esboça co ntra o pano de fundo de um pertencimento primordial. Nessa altura, Ricoeur classifica de "lamentável"17 a polêmica que opusera a hermenêutica à crítica das ideologias. Ocorre que as posições de Gadamer e as de Habermas procederiam de "dois lugares diferentes", a reinterpretação dos textos recebidos da tradição em um e a crí tica das formas ideológicas de comunicação distorcida no outro. Não se poderia, então, superpor, sem mais, o que Gadamer chama de pré-juízo, no sentido de pré-juízo favorável, e o fenômeno ideológico que interessa a Habermas, isto é, a distorção da comunicação.
16 Temps et récit, t. iii, 31 3 ,3 2 0 ,32 1 , 324. 17 Temps et récit, t. iii, 314. Ricoeur sopesa então o juízo que fizera em 197 3, quando falava de uma dialét ica essenci al entre a herm enêutica e a crítica das ideologias.
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Desse modo, se nós somos os herdeiros da tradição, a . identidade narra tiva que herdamos da história nunca é estável nem fechada. Ela também depende da respos ta que nós podemos lhe dar. A insistência recai aqui na capacidade de resposta e de iniciativa que a distingue. 0 que se descobre aqui é a dimensão ética do homem capaz. Esse será o último ponto central das reflexões hermenêuticas de Ricceur. A pergunta da filosofia refle xiva “quem sou eu?" dará lugar à pergunta não menos hermenêutica que ética: "Que posso eu?”
6. U
m a fenomenologia
HERMENÊUTICA DO HOMEM CAPAZ
Não somos apenas os herdeiros passivos da histó ria. Um espaço de iniciativa nos está reservado. Uma hermenêutica da consciência histórica deve, dessa forma, levar a uma fenomenologia dos poderes do homem capaz. Ao desenvolver uma filosofia her menêutica da ipseidade, o último Ricceur reata com aquilo que ele chama uma de suas "mais antigas con vicções", a saber: 0 si do conhecimento de si não é o eu egoísta e narcísico cuja hipocrisia e ingenuidade foram denunciadas pelas hermenêuticas da suspeita (...) O si do conhecimento de si é o fruto de um a vida exa minada, segund o a palav ra de
Sócrates na Apologia. Uma vida examinada é, em grande medida, uma vida depurada, esclarecida, pelos efeitos catá rtico s das narrativas tanto históricas quanto fict ícias veiculadas por nossa cultura. Dessa maneira, a ipseidade
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é a de um si instruído pelas obras da cultura que ele se aplicou a si mesmo18.
A narrativa va riará, portanto, com asidentidade comunidades, mas também segundo de os acordo indivíduos. Nos dois casos, o si pode reconfigurar, em certa medi da, sua identidade narrativa. Em sua fenomenologia do homem capaz, cujas grandes linhas ele evocou em seu Percurso do reconhecimento, publicado um ano antes de sua morte, Ricoeur parte dos principais usos segundo os quais se diz "eu posso"19: "Eu posso falar, eu posso agir, eu posso contar, eu posso me responsabilizar por meus atos, permitir que eles me sejam imputados como seu verdadeiro autor". Esses quatro usos abrem, respectiva mente, os campos da filosofia da linguagem, da filosofia da ação, da teoria narrativa e da filosofia moral. Mas o título geral do projeto filosófico de Ricoeur con tinua a ser o de uma "hermenêutica do si"20. A fórmula chega quase a lembrar a ideia heideggeriana de uma hermenêutica da facticidade. Isso porque aqui a herme nêutica não incide mais sobre símbolos ou textos, se gundo as duas primeiras concepções da hermenêutica de Ricoeur, mas incide sobre o próprio si. A hermenêu tica assume aqui a forma de uma "ontologia fundamen tal” que dá preferência às noções de ato, de potência e de possibilidade, diferentemente da acepção substancialista que teria prevalecido na filosofia clássica21. A
18 Temps et récit, t. iii, p. 356. 19 Parcours de la reconnaissance. Paris: Stock, pp. 137-163. 20 Soi-même comme un aut re. Paris: Le Seuil, 1990, p. 345; Parcours de la reconnaissance, p. 137 . 21 La mémoire, 1'histoire etVoubli, p. 63 9.
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essa altura, Ricceur parece atenuar a crítica à veemên cia "ontológica" que ainda caracterizava suas primeiras intervenções hermenêuticas. Se a ontologia é para Hei degger um ponto de partida, ela será para Ricceur um ponto de chegada. Podemos ver nessa ontologia hermenêutica do homem capaz o completamento de todo o percurso de Ricoeur, assim como um retorno à problemática reflexiva de sencadeado por seu "desvio pela hermenêutica". Essa hermenêutica do si vem lembrar utilmente que o ser-afetado-pelo-passado, no qual Gadamer insistira, não é a única determinação da consciência. 0 homem, ser de possibilidades, pode reconfigurar seu mundo (as sim como seu passado, pela memória, pelo perdão, pelo reconhecimento). Tendo tirado lições essenciais da escola da suspeita, essa hermenêutica abandona de uma vez por todas a falsa ilusão de uma plena posse de si pela reflexão, mas essa destruição não poderia conduzir a uma resignação fatalista diante do destino implacável do trabalho da história. Ao contrário, ela nos ajuda a redescobrir os recursos éticos do "si capaz" diante do mal e da injustiça reais que o rodeiam. 0 alcance ético dessa hermenê utica do si cai sob o sen tido. Por sinal, Si mesmo como um outro desenvolveu uma "pequena ética”22, que se empenha em delimitar a tensão ética fundamental ao dizer que ela se caracteri za pela "intenção da vida boa com e para os outros em instituições justas". Mas esse senso da justiça e da vida boa não cai do céu. Enquanto seres históricos, somos
22 Soi-même comme un autre , p. 202.
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os herdeiros de promessas fundadoras23, portanto, de esperanças, das quais a hermenêutica do si pretende ser a memória. D essamaneira, Ricoeur nos permite ver que uma hermenêutica sem ética permanece vazia, uma se ética sem hermenêutica é cega.
23 Parcours de Ia reconnaissance, p. 197 .
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capítulo VIII
HERMENÊUTICA E DESCONSTRUÇÃO
I. DESCONSTRUÇÃO, HERMENÊUTICA E INTERPRETAÇÃO EM ÜERRIDA
hoje célebre encontro entre Hans-Georg Ga damer e Jacques Derrida (1930-2004) deu srcem a um verdadeiro confronto entre uma hermenêutica da confiança e uma hermenêutica da suspeita. Esse encontro aconteceu em Paris em 198Í. Contudo, diferentemente dos conflitos de interpreta ção que frequentemente opõem as hermenêuticas da
O
confiança e da suspeita, os dois pensadores tinham ori gens comuns: como Gadamer, Derrida também partira do programa "hermenêutico” de Heidegger em Ser e tempo, mas tendo retido sobretudo o caráter "destrui dor”, ou seja, sua intenção de pôr a descoberto os pres supostos metafísicos da tradição ocidental.
Derrida retoma muito especialmente a ideia heideggeriana segundo a qual o pensamento ocidental, ou "me tafísico” (entendamos com isso o pensamento que, de Platão a Hegel, aspirava a uma explicação totalizante do
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ser), seria regido por uma determinação do ser como presença1: o ser é aquele que se oferece a um olhar que lhe é imposto por sua intenção de dominação. Benefi ciando-se, nesse sentido, de uma formação estruturalista, Derrida aplica essa intuição à compreensão dos signos, o que o leva a questionar a concepção qualifica da de "metafísica" do sentido e da própria verdade. Na lingüística de Ferdinand de Saussure, a noção de senti do se exprime mediante o par significante-significado. 0 significante (ou o signo) remete, então, a uma "pre sença significada", que encarnaria uma presença plena da coisa ou da referência. Mas, a partir do momento em que tentamos pensar esse significado, damo-nos con ta de que só podemos fazê-lo na ordem dos signos ou do discurso. O "sentido” permanece, portanto, diferido para sempre, pelo jogo daquilo que Derrida chama a "différance", onde é preciso entender, ao mesmo tem po, a diferença (pretendida) entre o signo e o sentido e a transcrição (infinita) de sua realização, fato pelo qual jamais sairíamos do império dos signos. Desse modo, Derrida reconhece um papel preponde rante à constituição lingüística do entendimento, o que poderia aproximá-lo de Gadamer. Mas aqui a distância, não há dúvida, é mais considerável aos olhos de Derrida do que a proximidade patente. Derrida, realmente, de monstra ser muito mais "estruturalista" que Gadamer ou até mesmo que Heidegger: enquanto para Gadamer e Heidegger é o ser que a linguagem traz à fala, o “ser” para Derrida não será mais que um efeito da "différon-
1 Ver J. Derrida, La structure, le signe et le jeu dans les discours des sciences humaines, in Üécriture et la différence. Paris : Le Seuil, 19 67 , p. 411 .
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ce", visto que ele permaneceria inatingível fora dos sig nos que o exprimem. Em um texto frequentemente ci tado, Derrida escreverá que não existe "fora do texto"2. Aqui, podemos nos perguntar (e essa será uma das críti cas de Gadamer) se essa desconstrução, a sua maneira, não sucumbe ao nominalismo do pensamento moderno ao se concentrar exclusivamente na ordem dos signos e das oposições lingüísticas. Nesse sentido, o próprio Derrida seria vítima de uma "metafísica da presença", no caso, da presença dos próprios signos. A destruição da metafísica de Heidegger assume, en tão, em Derrida a forma de uma desconstrução da ló gica do pensamento que nos leva a acreditar na ideia de uma presença real do sentido fora dos signos que suscitam sua miragem, mas que só veriam sempre a si mesmos. Essa radicalização do projeto "destruidor” de Heidegger obriga Derrida a demonstrar uma suspeição certa diante do próprio projeto hermenêutico. Se ele lhe parece suspeito, é porque ele o identifica a um projeto de inteligibilidade e de decifração que busca um sen tido último por trás dos signos (concepção que talvez lhe tenha sido transmitida por Ricoeur e por sua her menêutica "recuperadora" do sentido). Não apenas se trata, para Derrida, de uma ilusão metafísica, como ele não deixará de denunciar nela um desígnio imperial de apropriação. A destruição heideggeriana se casa aqui com a crítica da vontade de entendimento em Lévinas, que necessariamente violentaria a alteridade que ela
buscaria "possuir" impondo-lhe seu projeto totalizante. Para Derrida, o imperativo não é "enten der" o outro, 2 De la gramm atologie. Paris: Minuit, 1967, p. 227.
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mas interromper justamente a vontade de entendimen to, tida como emblemática da "metafísica". Em um sentido que não escapou aos comentadores, Der rida também não defende uma concepção que podería mos qualificar de "pan-hermenêutica” porque ela nega justamente a possibilidade de encontrar um sentido fora do discurso, dado que toda relação com o ser derivaria do jogo das interpretações. Diante dessa "universalida de da linguagem”, Derrida distingue cuidadosamente duas estratégias possíveis, ou "duas interpretações da interpretação, da estrutura, do signo e do jogo”: a. "Uma tenta decifrar, sonha decifrar uma verdade ou uma srcem que escapam ao jogo e à ordem do sig no e vive a necessidade da interpretação como um exílio.” Aqui, Derrida está pensando na hermenêu tica clássica, ainda buscacomo apreender, senão perceber ummetafísica, "sentido", que esperado uma presença viva, por trás dos signos. Pode-se pensar aqui em autores como Heidegger, Ricoeur e Gada mer. Derrida opõe a ela bravamente outra interpre tação da interpretação: b. "0 outro, que não está mais virado para a srcem, afirma o jogo e tenta passar para além do homem e do humanismo, com o nome do homem sendo o nome daquele ser que, no decorrer da história da metafísica ou da ontoteologia, isto é, do todo de sua história, sonhou a presença plena, o fundamento assegurador, a srcem e o fim do jogo." Essa ideia
de uma presença plena e imediata não é mais pos sível a partir do estruturalismo, avalia Derrida. É a face “triste” dessa "segunda interpretação”, mas ela
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também comporta uma vertente libertadora e lúdi ca em sua renún cia à ideia de uma verdade coagente. Derrida afirma que foi Nietzsche "quem indicou o caminho” dessa "segunda interpretação da inter pretação" e é com ela que Derrida se solidariza com um entusiasmo certo: Voltada para a presença, perdida ou impossível, da ori gem ausente, essa temática estruturalista da imediatidade rompida é, então, a face triste, negativa, nostálgi ca, culpável, rousseauista, do pensamento do jogo, cuja outra face seria a afirmação nietzschiana, a afirmação jubilosa do jogo do mundo e da inocência do futuro, a afirmação de um mundo de signos sem falta, sem ver dade, sem srcem, oferecido a uma interpretação ativa3.
Desde 1967, Derrida dava a entender que essas duas interpretações da interpretação eram "absolutamente inconciliáveis", sendo seu propósito "agudizar sua irredutibilidade". E, um pouco, eram essas duas interpreta ções da interpretação que iriam se encontrar por oca sião de um debate público organizado entre Gadamer e Derrida no Instituto Goethe de Paris em abril de 1981.
2. O e
ENC ONTRO DE DE RR IDA G a d a m e r e m P a r is
Apesar de seus vários pontos de partida comuns —se pensarmos em sua descendência heideggeriana, em
sua crítica ao cientismo, mas especialmente em sua tese comum, mesmo que diferente, a respeito da uni 3 J. Derrida, VÉcritu re e t Ia différence, p. 427.
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versalidade da linguagem o encontro de 1981 terá, sem dúvida, sido um fracasso na medida em que terá dado lugar a um diálogo de surdos4. Mas é justamente nesseaté sentido qufecundo. e esse enco erápelo ter sido instru tivo, mesmo Elentro terápod sido, menos, um acontecimento cuja importância foi se ampliando com o pass ar dos anos. Gadamer começou apresentando uma conferência so bre "0 desafio hermenêutico"5. Nela, ele fazia alusão ao desafio que seu pensamento hermenêutico quisera destacar, assim como ao desafio que significava para ele o encontro com Derrida, cuja obra lhe era muito familiar (a recíproca talvez fosse menos verdadeira). Em certa medida, Gadamer podia se reconhecer no projeto derridiano que visa desconstruir a linguagem conceituai da metafísica. Mas o mestreaodavocabulário hermenêu tica referia-se com isso especialmente esclerosado do pensamento, aquele que se afastara do "diálogo vivo" do qual procede toda verdadeira língua: a destruição, na acepção positiva, consiste para ele em reinscrever um conceito tornado vazio na língua do 4 Os textos aprese ntad os por ocas ião do encon tro foram publicados na Revue internationale de philosophie, n. 151 (19 84 ). Um a document a ção mais com pleta pode ser e ncon trada na coletânea organizada por D . Michelfelder e R. Palmer, Dialogue and Desconstruction. The Gadamer-Derrida Encounter. Albany: Sunny Press, 1989. Ver ainda a coletânea alemã organizada por P. Forget, Text und Interpretation. Paderbòrn: Fink Verlag. 0 texto apresentado por Derrida figura apenas nas edições americana e alemã. 5 Note-se que o texto de Gadamer publicado pela Revue internationale
de philosophie (=RIPJ tinha apenas oito páginas, quando contava 32 na edição alemã. A versão mais longa desse texto, cujo título se transfor mou em "Texto e interpretação, encontra-se em L'art de comp rendre, t. 2. Paris: Aubier, 1991, pp. 193-234.
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qual ele proveio e que lhe dá todo o sentido6. Mas é justamente essa constante remissão do pensamento ao diálogo da língua viva que o levava a questionar a ideia de que havia uma linguagem fechada da metafísica: Minha ideia própria me parece a seguinte: não existe linguagem conceituai, nem mesmo a da metafísica, que possa circunscrever o pensamento de modo definitivo, por pouco que o pensador se abandone à linguagem, o que implica que ele aceita o diálogo com outros pensa dores, que pensam diferentemente dele7.
Ao lembrar que sua concepção da linguagem brotava da experiência do diálogo vivo e de sua promessa de autotranscendência, Gadamer também evocava, em um espírito benevolente, as esperanças que depositava no diálogo que achava poder desenvolver com Derrida. Gadamer exemplificava essa experiência hermenêutica do diálogo partindo da experiência da arte e da histó ria da filosofia, na qual o intérprete entra em diálogo com aquilo que o interpela, mas não sem sair do diálo go transformado. Ora, o que nos é dito em uma obra de arte, insistia Gadamer, jamais pode ser conceitualmente esgotado. 0 inacabamento da experiência de sentido faz parte essencial da finitude humana. Gadamer que ria ressaltar com isso seu acordo com a ideia derridiana de uma "différance” infinita do sentido.
6 RIP, 336. Gadamer retomará frequentemente em seus escritos posteriore s, especialmente em 'Destruction et déconstruction e "Déconstruction herméneutique" (ambos publicados em La philosophie herméneutique. Paris: PUF, 1996) esse sentido primeiro da destruição heideggeriana, que teria escapado a Derrida. 7 RIP, 1984, 334-335.
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Tendo sido evocados esses elementos comuns, Gada mer explica então por que esse encontro "com a cena francesa” representa todo um desafio para ele. É que Derrida, apesar de sua dívida com a ideia de destrui ção, acusa Heidegger de logocentrismo pelo fato de ele ter persistido em levantar a questão do sentido ou da verdade do ser, pensando o sentido como um dado que se poderia encontrar em qualquer parte. Para Derrida, aqui Nietzsche seria mais radical, com sua ideia segun do a qual a interpretação não seria a descoberta de um sentido, mas a aquiescência com o jogo das perspecti vas e das máscaras. É nesse sentido que seria criticada a leitura heideggeriana de Nietzsche "na França": Nietzs che não seria aquele que teria trazido a metafísica a seu ápice, pensando o ser como valor, mas sobretudo aquele que possibilitaria ultrapassá-la melhor que Heidegger, afirmando o jogo infinito das interpretações. 0 debate, aos olhos de Gadamer, incidia sobre a questão de saber quem, entre Heidegger ou Nietzsche, era o mais radical. Nessa questão, Gadamer punha todas as suas fichas, marcando sua solidariedade, em Heidegger: "Heideg ger vai muito além de Nietzsche". Gadamer censura os herdeiros franceses de Nietzsche por não apreciarem em sua justa medida o caráter exploratório e sedutor de seu pensamento. Isso é que os levaria a pensar que a experiência do ser de Heidegger seria "menos radi cal que o extremismo de Nietzsche"8. Segundo Gada mer, esse não é o caso. A superioridade de Heidegger
provém do fato de que ele conseguiu inscrever a noção 8 RIP, 1984,338. Ver H.-G. Gadamer, VHerméneutique en rétrospective. Paris: Vrin, 20 05 , pp. 1 62 ,1 7 8.
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nietzschiana de “valor" na continuidade da metafísica ocidental. É esse pensamento metafísico do valor (e a aporia de um pensamento que quer promover uma transmutação dos valores) que Heidegger teria supe rado pensando uma experiência do ser que não se re duz a sua manifestação mensurável, logo, um ser que nunca se entrega inteiramente, mas que resguarda uma parte de seu mistério. Ele iria, por isso, mais lon ge que Nietzsche visando a um ser que não se limita a seu valor contábil e a sua utilidade técnica. Essa é uma intuição que Gadamer diz ter retomado com convicção, não sem lhe dar um aspecto derridiano: "Foi por isso que eu sempre me esforcei para man ter em mente o limite imposto a toda experiência her menêutica do sentido"9. A hermenêutica reconheceria perfeitamente que o ser não pode nunca ser objeto de um entendimento totalizante, como aquele que é criti cado por Heidegger e Derrida. Ao reconhecer o limite de toda interpretação do sentido, a hermenêutica con vidava, a partir de então, a se abrir ao outro, "à poten cialidade da alteri dade”: Antes mesmo de ter tomado a palavra para replicar, ele nos aju da, po r sua simple s presenç a, a d escob rir a estreiteza de nossos pré-juízos e a fazê-los explodir10.
Essa abertura ao outro parecia dar testemunho de sua disposição para dialogar com Derrida e para aprender
com ele. 9 RIP, 19 84, 338. 10 RIP, 1984, 340.
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A grande surpresa do encontro de 1981 foi que nada parec ia apon tar para uma disposi ção parecida da parte de Derrida. Depois da exposição de Gadamer, Derrida fez sua conferência a assinatura em Heidegger e Nietzsche, mas na sobre qual não fazia nenhuma alusão a Gadamer. Não haverá quem pense reprová-lo por isso, mas a assimetria era gritante, especialmente porque o mestre da hermenêutica era ali o mais velho. A fim de possibilitar uma aparência de diálogo, os organizado res, então, convidaram Derrida a fazer algumas per guntas a Gadamer no dia posterior ao de sua conferên cia. As três pequenas, mas muito boas, perguntas que ele fez a Gadamer alimentaram todo o debate entre a hermenêutica e a desconstrução. A primeira pergunta de Derrida retomava o apelo à boa vontade do qual Gadamer falara. Essa pergunta pare cia, à primeira vista, muito insólita, porque, na verdade, ela não estava no centro de sua conferência. Gadamer só a invocara para enfatizar a ideia, banal a seus olhos, segundo a qual aqueles que se engajam em um diálo go buscam se entender e dão prova de um mínimo de abertura. Gadamer não via ali nada mais que uma de monstração do senso comum. Ora, é a demonstração dessa demonstração que Der rida questionava. Ele perguntava; esse axioma incon dicional "não supunha que a vontade continua a ser a forma dessa incondicionalidade, o recurso absoluto, a determinação de última instância?"11. É a referência a
Heidegger que dava a essa pergunta todo o seu alcance: 11 RIP, 1984,342.
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Será qu e essa d eterm inação de última instância não per tenceria àquilo que Heidegger chama justamente de de terminação do ser do ente como vontade ou como subje tividade voluntária? Será que o discurso, em sua própria necess idade, nã o perten ce a uma época , a de uma m eta física da vontad e?
Em sua segunda pergunta, Derrida tentou limitar a pretensão dessa boa vontade recorrendo à psicanálise, mas também a Nietzsche. Derrida dá então a entender que sua concepção da interpretação "talvez estivesse mais próxima da interpretação de tipo nietzschiano do que de outra tradição hermenêutica". Espontaneamen te, pensaremos na segunda interpretação da interpre tação que A escritura e a diferença exaltava, àquele que afirma jubilosamente o jogo infinito dos signos, sem verdade, que renuncia por isso à ideia de uma decifração última. Nesse contexto, Derrida foi tocado pela alusão de Gadamer à ideia de um diálogo "vivo”, que ele vinculava a uma busca de sistema: Ontem à tard e tivem os um dos mom entos m ais decis ivos e, em meu entender, dos mais problemáticos, de tudo o que nos foi dito sobre a coerência contextual, coerência sistemática ou não sistemática, porque toda coerência não é n ecessariam ente a forma de um sis tema.
Consequentemente, Derrida associava a hermenêutica à ideia de sistema, quer dizer, de uma vontade de enten dimento, que, para ele, confina com um apetite de do minação e de totalização: entender não é integrar o ou
tro em um sistema totalizante? É na medida em que se opõe a essa vontade de dominação que o pensamento de Derrida pode ser qualificado de anti-hermenêutico.
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A terceira pergunta, p or sinal, focalizava o debate sobre o próprio termo "entendimento": Podemos nos pergu ntar se a condição do Verstehen [en tendim ento], long e de ser o continuum da "relaçã o", com o foi dito ontem, não é a interru pçã o da relação, uma ce rta relação de interrupção, a suspensão de toda mediação.
Derrida identifica aqui o entendimento com uma forma de violência infligida ao outro: a vontade de entender não o outro a se a se conformar aos esque mas obriga de pensamento quedobrar, lhe imponho e que passam, jus tamente por isso, ao largo de sua especificidade? Pergun tando de outro modo: a abertura ao outro não decorre necessariamente de um esforço de "entendimento"? Po demos exprimir essa suspeita sob a forma de um parado xo: será que entendo o outro quando eu o compreendo? A primeira reação de Gadamer foi marcada pela incom preensão. O que o contrariava era que Derrida parecia estar minando a própria possibilidade do encontro ao questionar as próprias noções de boa vontade, de diá logo e de entendimento. Gadamer se empenhou em de fender que sua proposta se encontrava a mil léguas de toda metafísica e que ele estava simplesmente aludindo à vontade elementar de entendimento que é a daquele que abre a boca para ser entendido e os ouvidos para entender o outro. De nada adiantou. Em tais bases, o entendimento com Derrida parecia simplesmente im possível,
Ora, o debate fundamental incidia exatamente sobre a própria possibilidade de entendimento, e é isso o que torna o fracasso do acordo tão interessante nesse caso
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particular. É que, para Gadamer, o entendimento é sem pre pelo menos possível, ao passo que para Derrida ele nunca é verdadeiramente possível. 0 entendimento é sempre possível para Gadamer porque a busca de sen tido investe toda a linguagem, mas isso não quer dizer, porém, que ela jamais seja satisfeita. Talvez seja essa insatisfação do esforço de entendimento que anime a busca de verdade, a abertura a um sentido, mas que se difere sempre, para retomar a terminologia de Derri da. É essa diferença que incita Derrida a desconfiar da vontade de entendimento. 0 entendimento realmente alcança o outro? Não permanece prisioneiro, a despei to de si mesmo, de sistemas, de estruturas e de signos, que funcionam como tapadeira para o que está enter rado sob os signos e que nunca chega a ser dito? O dis curso, poderíamos dizer, é um pouco o pior inimigo do dizer, assim como o entendimento é o pior inimigo do sentido que se deveria entender.
3. OSDESDOBRAMENTOS DO ENCONTRO Um encontro de verdade sempre transforma seus in terlocutores. Mesmo que a primeira atitude de Gada mer tenha sido de estupefação, as objeções de Derrida talvez não tenham caído em ouvidos moucos. Depois do encontro de 1981, Gadamer retomou muitas vezes seu debate com Derrida12. Se0 desafio posto por Der-
12 Ver os textos mais recentes, "Romantisme, herméneutique et déconstruction (1 987) e "Sur la trac e de 1'herméneutique" (1 994), ín Uherméneutique en retrospective, pp. 16 1-2 19.
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rida levou Gadamer a destacar algumas das diferenças essenciais entre seu projeto hermenêutico e o da des construção, talvez ele também o tenha levado a rever tacitamente algumas das teses de sua hermenêutica. A crítica que Derrida fazia à metafísica da vontade ia um pouco longe demais, mas talvez ela tenha levado Gada mer a atenuar o aspecto um pouco "apropriador" do con ceito de entendimento que ele apresentara em Verdade e método. 0 entendimento efetivamente surgia ali como uma forma de aplicação e de apropriação: entender um sentido estrangeiro é torná-lo seu por meio de uma apli cação ou de uma tradução para nossa língua. Ora, essa noção de entendimento não obedece a uma vontade um pouco hegeliana de apropriação? Será que entendo o sentido estrangeiro em sua especificidade quando o apli co a minha situação? Não se poderia dizer exatamente se a crítica de Derrida foi determinante ou não, mas parece que o último Gadamer corrigiu levemente essa concep ção de entendimento. Temos um testemunho discreto disso em uma notinha que ele acrescentou, em 1986, ao capítulo de Verdade e método dedicado à distância tem poral, que precede o capítulo sobre a aplicação: Aqui arrisca mo-no s sempr e, no entendimento, a nos “apro priar" do que é outro e de negligenciar sua alteridade13.
Texto curtíssimo, mas que nesse contexto preciso quase eqüivale a uma autocrítica. É claro que Gadamer nunca voltou a questionar expressamente a ideia de que o enten dimento comporta uma parte de aplicação, mas em 1986,
ele se mostra mais atento ao risco de um entendimento 13 VM, 321; GW 1,305; Vherméneutíque en rétrospective,
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pp. 167.
que, ao se apropriar do outro, talvez faça violência a sua alteridade. Mesmo não tendo falado diretamente da noção de aplicação, é exatamente ela que Derrida tinha em mente quando se interrogava sobre a metafísica da vontade que estaria subjacente ao pensamento hermenêutico. Dessa forma, o encontro da hermenêutica com a desconstrução talvez não tenha sidotão estéril como sempre se diz. E ainda encontramos uma última confirmação disso em uma "definição" da hermenêutica que o último Gadamer não parou de evocar. Em seus últimos escritos, Gadamer ressaltou de bom grado que a alma da hermenêutica consistia em reconhecer que "talvez seja o outro quem tem razão"14. Aqui, o entendimento comparece menos como apropriação do que como uma abertura ao outro e a suas razões. Da mesma maneira, em seus últimos es critos, Gadamer muito menos universalidade da linguagem dofalou que "dos limites da da linguagem” diante de tudo o que pode ser dito. A experiência fundamental de uma hermenêutica da finitude não é mais simples mente a da condição lingüística do entendimento, mas, ao mesmo tempo, a dos limites da linguagem diante de tudo o que deveria poder ser dito15. Não é de todo impossível que essas novas inflexões da hermenêutica gadameriana, sobre a abertura à alteridade do outro e sobre os limites da linguagem, sejam fruto do encontro entre a desconstrução e a hermenêutica. 14 Ver "Un entretien avec Hans-Georg Gadamer". Le Monde , 3 de janeiro
Vhéritage de 85 VEurope. de 1995; Paris: Rivages, 1996, p. 141. in La philosophi e 15 Ver o ensaio de 19 sobre "Les limites du langage", herméneutique, p p. 16 8- 18 4, e "UEurope et Yoikoumene, onde podemos ler (p. 230) que "o princípio supremo da hermenêutica filosófica é que nunca conseg uimos dizer o que gostaría mos de dizer".
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4. O ÚLTI MO DIÁLOGO ENTRE D errida
e
G adam er
Durante muito tempo se acreditou que Gadamer fora o único a dar seguimento a seu diálogo interior com Derri da. Ora, depois da morte de Gadamer, no dia 13 de março de 2002, Derrida confessou que esse diálogo também não deixou de acompanhá-lo nunca. No dia 15 de fevereiro de 2003, Derrida fez uma conferência à memória de Gada mer na Universidade de Heildeberg, intituladaBélíers. Le dialogue ininterrompu: entre deux infinis, le po ème16. O título da conferência, que propunha uma leitura ma gistral de um poema de Celan, já retomava uma ideia cara a Gadamer, a do diálogo. Mas o paradoxo é que Derrida fala de um "diálogo ininterrupto" no momento exato em essa que amorte mortefaz veio interrompê-lo. Contudo, para Derrida, intimamente parte do diálogo que se estabelece entre dois amigos. A lei implacável da amizade é que um dos amigos sobreviverá à morte do outro, cabendo, então, ao sobrevivente carregar seu amigo em si mesmo. O "diálogo ininterrupto" é aquele que Derrida se sabe condenado a prosseguir sozinho, carregando o outro em si, levando o outro em si, se guindo o leitmotiv que ele extrai do verso de Celan: "O mundo se fo i/cabe a mim agora te levar". Tudo se passa como se Derrida quisesse responder com isso à ideia de um "diálogo vivo", evocada por Gadamer em 1981, com a ideia de um diálogo póstumo, no qual o sobrevivente deve permitir falar em si a voz de um amigo defunto.
16 J. Derrida, Béliers. Le dialogue inin terromp u: en tre d eux infinis. Paris: Galilée, 2003.
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A ideia de um diálogo "ininterrupto" também faz eco ao papel mantido pela noção de interrupção por ocasião do confronto de 1981. A terceira pergunta de Derrida indagava se a ideia de entendimento já não devia ser entendida mais a partir da ideia de interrupção do que da de continuidade: Podemos nos perguntar se a condição do Verstehen [en tendimen to], lon ge de se r o continuum da "relação", como foi dito ontem, não é a interru pçã o da relação, uma c erta relação de interrupção, a suspensão de toda mediação.
Essa noção de ruptura talvez tenha algo a ver, aliás, com aquilo que Derrida afirma a respeito do caráter testamentário de toda fala: ela é um legado que sobrevive a seu autor, e que o amigo deve levar em si quando um dos dois se extingue. Derrida deu outro testemunho dessa amizade em um texto que publicou em alemão apenas duas semanas depois da morte de Gadamer, intitulado "Comme il avait raison! Mon Cicérone, Hans-Georg Gadamer" ["Ele ti nha toda razão! Meu Cícero, Hans-Georg Gadamer"]17. Nesse texto, Derrida revelava a terna admiração que sempre alimentara por Gadamer, esse bon vivant, que amava tanto viver e cuja capacidade de afirmar a vida ele invejava, capacidade da qual Derrida se dizia priva do. Por isso, confessa Derrida: Não acredito na morte de Gadamer. Não consigo. Desen volvi o hábito, se posso assim me expressar, de achar
17 Em G. Leroux, C. Lévesque e G. Michaud (orgs,), "IIy aura ce j o u r À la mémoire de Jacques Derrida. Montréal, À 1'impossible, 2005, pp. 53-56; reimpresso na revista Contre-jour, 9 [200 6), 87-91.
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que Gadamer nunca morreria. Que ele não era homem de morrer. (...) Desde 1981, data de nosso primeiro en contro (...), tudo o que me chegava dele me dava uma serenidade que eu tinha a impressão de que era o pró prio Gadamer, em pessoa, que a comunicava a mim, por uma espécie de contágio ou de irradiação filosófica. Eu gostav a tan to de vê-lo vi ver, falar, rir, andar, até mancar , e comer e beber. Tão mais que eu! Eu invejava a força que afirmava, nele, a vida. Ela parecia invencível. Eu chegava a ponto de me convencer de que Gadamer merecia não morrer, porque nós tínhamos necessidade desse teste munho absoluto, daquele que assiste e participa de to dos os debates filosóficos do século.
É, então, porque Gadamer merecia não morrer nunca que Derrida pensava poder levar infinitamente adian te o diálogo com seu pensamento, ao qual ele confessa ter se furtado um pouco em 1981. A morte brutal de Derrida no dia 9 de outubro de 2004 terá interrompido esse diálogo póstumo. A seus amigos é que incumbe a tarefa de dar seqüência a essa conversação entre "dois infinitos”, a hermenêutica e a desconstrução.
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ca p ítulo I X
HERMENÊUTICA PÓS-MODERNA: RORTY E VATTIMO
TÍ
J1
^ iferentemente de Derrida, Richard Rorty JJ (1 931-2 007) e Gianni Vattimo (193 1-2007) J/ reivindicaram expressamente o pensamento
hermenêutico, mas lhe dar umaOsinflexão de sentido mais "relativista" oupara "pós-moderna". dois se apoiam na célebre fórmula de Gadamer: "O ser que pode ser enten dido é linguagem", mas para chegar à conclusão de que é ilusório pretender que nosso entendimento incida sobre uma realidade objetiva que poderia ser atingida por nos sa linguagem. É porque tudo decorre em última instância da linguagem que seria preciso renunciar ideialeva de uma adequação do pensamento ao real. É isso oà que Ror ty ao pragmatismo e Vattimo a um niilismo feliz.
i. R
: a despedida pragmatista DA NOÇÃO DE VERDADE
orty
Em sua obra Filosofia e o espelho da natureza, publi cada em 1979, Rorty promove uma nova aliança entre
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o pragmatismo norte-americano e a hermenêutica da obediência gadameriana. Sua intenção é mostrar por que a filosofia deve fazer o luto de um conhecimento que se pretendia um simples "espelho do real” onde Rorty vê não mais que uma simples metáfora ou um efeito de linguagem. Ele também questiona a ideia, do minante no mundo anglo-saxão, segundo a qual a filo sofia deveria se r uma "teoria do conhecimento" ou uma epistemologia, cuja tarefa seria explicar como nosso conhecimento se r eporta à realidade. Em si, essa crítica do positivismo ou do empirismo ine rente à epistemologia anglo-saxônica não é srcinal. Ela fora inaugurada pelo pragmatismo de Quine e sua denúncia dos "dogmas do empirismo", entre os quais o dogma da referência ao mundo real, mas também pelo trabalho do historiador da ciência, Thomas Kuhn, que mostrar a, em sua célebre obra sob rei estrutur a das r e voluções científicas (1962), que a aceitação das teorias científicas devia muito mais à linguagem, à retórica e a crenças que derivam menos da prova científica do que dos "paradigmas” em vigor e que definem as normas da racionalidade científica de uma época dada. A srcinalidade de Rorty reside no fato de que ele se afilia claramente ao pensamento de Gadamer, até então pouco conhecido no mundo anglófono, mas sobretudo em sua convicção segundo a qual a própria disciplina da epistemologia deve ser substituída por um pensamento
hermenêutico. capítulo VII leva, por sinal, "Da epistemologia à0 hermenêutica". Mesmo assim,o título: o erro se ria acreditar que a hermenêutica deve substituir a epis temologia porque sua concepção seria mais adequada ou
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mais conforme ao real. Não. 0 interesse da hermenêutica é para ele o de renunciar a essa ideia e de avançar a ideia de uma cultura humana completamente outra: Meu propós ito não é a presen tar a h ermenêutica como uma disciplina que seria a "herdeir a" da epistemo logia, com o se ela visasse satisfazer o vazio cultural que era preenchido, em seu tempo, pela filosofia centrada na teoria do conhe cimento. Na interpretação que vou propor, a “hermenêuti ca” é apenas o nome de uma disciplina ou de um método considerado capaz de nos possibilitar êxito ali onde a teo ria do conhecimento fracassou, assim como ela também não é o nome de um programa de pesquisa. Ao contrário, a hermen êutica é a expressão da esperança de qu e o espa ço cultural aberto pelo declínio da epistemologia não será preenchido, ela é a expressão da esperança de que nossa cultura se tran sform ará em um a cultura na qua l a exigên cia de restrição e de confrontação não se rá mais sentida1 .
Aos olhos de Rorty, a hermenêutica não oferece método, ou um método melhor para alcançar a verdade, ela nos ensina apenas a viver sem a ideia de verdade, entendi da no sentido da correspondência com o real. A busca da verdade pode, então, ser substituída por uma cultura que exalte sobretudo os ideais da edificação e da con versação. Rorty se apoia aqui na ideia de Bildung (cul tura) em Verdade e m étodo. Gadamer a evocara a fim de mostrar que o saber das ciências humanas não era um saber metódico ou à distância, mas de formação, que im plicava uma transformação dos próprios agentes. Rorty extrai daqui conseqüências mais relativistas:
1 R. Rorty, L'homme spécula ire. Paris: L e Seuil, 1 990, p. 34 9; Philosophy and the Mirror ofNature. New Jersey: Princeton Universi ty Press, 1 979 , p. 315.
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Gadamer inicia Verdade e método com uma discussão so bre o papel da tradição humanista que deu à noção de Bildung o sentido de algo "que seria seu próprio fim para si mesmo" . Pa ra que tal noç ão assu ma tod o o seu se ntido, é indispensá vel d ar-se con ta da relati vidade de todo dis curso descritivo em comparação com as épocas, as tradi çõe s e os ac identes históric os dos quai s ele provém. O ra, é isso o que a tradição humanista pode fazer em educa ção, mas é o que uma formação que siga os resultados das ciências exatas não poderia realizar2.
Seguindo esse ideal de formação, a tarefa da filosofia não seria propor descrições mais justas do real, e sim promover a busca da conversação entre os humanos. Isso porque o conhecimento jamais transcenderia a or dem da conversação para alcan çar um mundo de reali dade ou de essências. Mesmo que a obra de Rorty, que pretendia operar uma transformação hermenêutica da filosofia analítica, te nha contribuído muito para levar a conhecer melhor o pensamento hermenêutico no mundo anglo-saxônico, esse é um de seus méritos inegáveis, ele o orientou em um sentido relativista que era completamente alheio a Gadamer: difícil de pensar que um autor que intitula sua obra principal Verdade e método pretenda renun ciar à ideia de verdade! Rorty voltou a louvar as virtudes da hermenêutica tal qual ele a entende em uma conferência que pronunciou no dia 12 de fevereiro de 2000 em Heidelberg, por oca
sião do centenário de Gadamer. Nessa ocasião, ele invo 2 Ibidem, 398; Philosophy, p. 362.
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cou o emblemático adagio: "O ser que pode ser entendi do é linguagem", mas para lhe dar um sentido puramente "nominalista", que ele caracteriza da seguinte maneira: Entendo por "nominalismo” a ideia segundo a qual to das as essências são nominais e todas as necessidades de dicto (próprias ao discurso). Isso eqüivale a dizer que nenhuma descrição é mas verdadeira ou mais conforme à na tureza do ob jeto do q ue qualquer outra de scriçã o3.
Dessa forma, um nominalista coerente insistirá em dizer que o suces so do vocabu lário corp uscu lar no plano da predição e da expli cação não tem a m eno r incid ênci a sobre seu e statu to ontológic o e que a própria ideia de um "esta tuto ontológico" dev e se r abandonada.
Esse abandono da ontologia também é especialmente estranho para Gadamer. 0 título da última parte de Ver dade e m étodo anuncia justamente uma "inflexão ontológica" da hermenêutica sob o fio condutor da lingua gem. Para Gadamer, a linguagem não é anteparo do ser, mas exatamente ao contrário, qual o ser se revela a si mesmo. Aqui nãooseelemento deveria no falar de nomi nalismo, porque a linguagem é para Gadamer a lingua gem das coisas antes de ser a linguagem de nosso pen samento. Toda a crítica gadameriana a propósito do esquecimento da linguagem no pensamento ocidental
visa, por sinal,que denunciar a concepção e nominalista faz da linguagem uminstrumentalista instrumento do 3 R. Rorty, "Being That Can Be Understood is Language". London Review ofBooks, 1 6 de març o de 20 00 , pp. 23-2 5.
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pensamento soberano em face de um real que, sem ela, seria privado de sentido. Ora, é justamente esse nominalismo que Rorty tenta reabilitar: Nós nunca entendemos algo a não ser por meio de uma descrição, mas não existem descrições privilegiadas. Não há meio algum de retroceder para além de nossa linguagem descritiva, rumo ao objeto tal qual ele é em si mesmo, e não porque nossas faculdades sejam limitadas, mas porque a distinção entre o "para nós" e o "em si" é uma relíquia de um vocabulário descritivo, o vocabulá rio da metafísica, que perdeu sua utilidade4. Mesmo que Rorty tente se valer de uma nova "cultura gadameriana", é difícil não reconhecer aqui o apogeu do construtivismo moderno, para o qual o mundo se reduz à concepção que anós façamosdedele. É esse nominalismo que entende linguagem maneira pura mente instrumental que Gadamer critica duramente. O adágio "o se r que pode se r entendido é linguagem" não deve ser entendido, em Gadamer, em um sentido nomi nalista, pelo qual o ser se reduz à descrição que faze mos dele, mas em um sentido ontológico: é o próprio ser que vem se dizer em linguagem e é sua linguagem que nos permite corrigir as descrições inadequadas que propomos dele. Se Rorty interpreta a hermenêutica de maneira tão antiontológica e nominalista, Vattimo extrai dela conse
qüências não menos relativistas, mas que o conduzem a defender a ideia de uma ontologia niilista. 4 Ibidem.
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2. V a t t i m o : “po r ”
u m n i i lism o hermenêutico
Vattimo fala de maneira absolutamente positiva da "vocação niilista" da hermenêutica. Essa tese se faz acompanhar, nele, de uma crítica a Gadamer que não se encontra verdadeiramente em Rorty. Realmente, Vat timo avalia que a hermenêutica não desenvolveu para si mesma a ontologia niilista para a qual secretamente tende. Sem essa ontologia mais radical e mais conse qüente, a hermenêutica permaneceria sendo a coiné do pensamento contemporâneo, mas uma coiné exces sivamente ecumênica e sem contundência real, que se limitaria a dizer que tudo é uma questão de interpreta ção5. A significação filosófica da hermenêutica estaria então diluída. Essa crítica procede de uma leitura assí dua de Heidegger e de Nietzsche, que falaram muito de "niilismo", o que não é exatamente o caso de Gadamer. 0 niilismo quer dizer aqui que nada pode ser dito do ser, porque toda verdade provém da interpretação, da tradição e da linguagem. Uma hermenêutica deveria desembocar, segundo Vattimo, emconseqüente uma ontologia niilista: o ser, em si mesmo, não é nada, reduzindo-se a nossa linguagem e a nossas interpretações. Essa tese, é claro, se expõe à ob jeção de não passar, ela própria, de uma interpretação. Como justificá-la? Só podemos fazê-lo, avalia Vattimo, quando reconhecemos que a hermenêutica pretende
5 G. Vattimo, "La vocation nihiliste de l'herméneutique". Au-delà de Vinterprétation. La signification de Vhermé neut íque p our Ia philosophie. Bruxelas: Éditions de Bosck, pp. 9-22.
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ser uma resposta à história do ser interpretado como advento do niilismo. Desse modo, pode-se ver no "niilis mo" uma "atenuação interminável [do discurso sobre] do ser”6, que teria caracterizado a história de nossa mo dernidade e que justificaria o bem-fundado da herme nêutica como coiné universal. Se quiser ser coerente, a hermenêutica só pode se apresentar como a mais con vincente interpretação filosófica possível de uma situa ção, de uma "época" e logo, necessariamente, de uma proveniência.
Ao se apresentar como o coroamento coerente de uma história e de uma proveniência, a hermenêutica justifi caria sua própria pretensão à universalidade. 0 adágio de Gadamer, "o ser que pode ser entendido é linguagem", deve então ser entendido em um sentido radicalmente niilista, próximo daquele que Rorty lhe conferia, Essa frase, Vattimo avalia, não tem simplesmente o sentido banal de identificar o campo do ent endimento com e ssa espécie de ser que se apre senta como lin guagem.
Contra essa leitura muito atenuada, Vattimo propõe "uma leitura ontológica radical", a da identificação do ser e da linguagem, tese que Gadamer não teria pen sado até o fim, mas que seria a única conseqüência propriamente rigorosa de seu pensamento7. Nessa
perspectiva, o ser se encontra tragado pela linguagem 6 Ibidem, p. 21. 7 G. Vattimo, “Histoire cTune virgule. Gadamer et le sens de 1'être”. Re vue International d e philosophie , n. 213 (2000], pp. 502.505.
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e pela perspectiva que o encerra. Mesmo que se apre sente como "pós-moderna" essa leitura é inteiramente conforme ao espírito da modernidade, que remete todo sentido a uma subjetividade, a diferença de que essa subjetividade se sabe agoracom histórica. Ora, é em sentidos opostos que iam a hermenêutica e a ontologia de Gadamer: não é o ser que é tragado pela lin guagem, mas nossa linguagem que é apreendida pelo ser, sendo a linguagem inicialmente a "luz" do próprio ser. Para ver bem a diferença entre as hermenêuticas, pode ser útil conceder atenção ao papel particular desempenhado por autores como Nietzsche e Heidegger para os herdeiros pós-modernos de Gadamer, tanto Vattimo quanto Rorty (mas também Derrida). O Nietzsche que importa a seus olhos é aquele que estipula que não existem fatos, mas apenas interpretações, e seu heideggerianismo se inspira especialmente na última filosofia de Heidegger, que de fende que nosso entendimento é determinado de parte a parte pelo quadro globalizante da história do ser, pensada como o advento do niilismo. Os autores pós-modernos as sociaram espontaneamente essa perspectiva nietzschiana e heideggeriana ao pensamento de Gadamer, especial mente a sua crítica ao objetivismo em ciências humanas e a sua insistência no papel dos pré-juízos e no caráter lingüístico de nosso entendimento. Ao destacar esses as pectos do pensamento gadameriano, eles acharam que a hermenêutica levava à rejeição danoção clássica de verda de, compreendida como adequação ao ser.
Essa persp ectiva nietzs chiana, contudo , levou-os a pe r der de vista o alcance ainda ontológico da hermenêu
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tica, Para o pensamento de Gadamer, Nietzsche não é realmente um aliado, mas aquele que levou a seu ápice o nominalismo do pensamento moderno que reduz o ser àquilo que ele significa para o pensamento ou para a vontade, sendo a linguagem apenas um instrumento do sujeito. Num contexto desses, no qual tudo depende do sujeito, é claro que não há verdade objetiva, nem va lores coagentes. Mas essa ausência de valor e de verda de só subsiste, observa Gadamer, se nos mantivermos no interior do quadro do pensamento moderno, para o qual o mundo não tem significação, nem ordem, sem a subjetividade doadora de sentido. Ora, é justamente essa ideia de um sujeito soberano que se encontraria em face de um mundo sem forma e que se presume privado de sentido, que a hermenêutica nos permite questionar. Desse modo, a hermenêutica nos auxilia a redescobrir o ser e a superar o niilismo.
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conclusão
FACES DA UNIVERSALIDADE DA HERMENÊ UTIC A
esmo que a hermenêutica represente a coi né de nosso tempo, ela oferece uma face mais contrastada do que geralmente se su
M
põe. Enquanto filosofia, a hermenêutica pretende in tervir na componente universal de nossa experiência de mundo, mas essa universalidade pode ser enten dida de maneira muito diferente. Podemos mostrá-la partindo do adágio mais elementar para exprimir essa universalidade: “Tudo é uma questão de interpreta ção”. Os diferentes sentidos que podem ser atribuídos a essa fórmula podem ser associados aos grandes repre sentantes da hermenêutica, mas também aos "hermeneutas anônimos", que defendem essa tese, mas sem se vincular propriamente à tradição hermenêutica. Vere mos que cada uma dessas interpretações tem conse qüências para a concepção da verdade:
(1) A fórmula "tudo é uma questão de interpretação" pode ser inicialmente lida em um sentido nietzschiano, o de um perspectivismo da vontade de po
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tência, ideia certamente antecipada pelos sofistas do tempo de Platão: "Não existem fatos, existem apenas interpretações". Num contexto desses, não existe verdadeiramente verdade, no sentido de adequação à coisa. Nietzsche acrescenta cruelmente que a ver dade é apenas "essa espécie de erro sem a qual uma espécie de seres bem determinados não poderia vi ver". Aquilo que se tem como verdade não passa de uma perspectiva, entre outras, secretamente ditada por uma vontade de potência que busca se impor. A dificuldade dessa teoria perspectivista é que existem realmente fatos, erros e aberrações abundantes. É um fato, e não uma interpretação, dizer que Paris (e não Marselha) é a capital da França, que uma molécula de água se compõe de um átomo de oxigênio e de dois (e não três) de hidrogênio e que eu nunca fui a Plutão. (2) 0 perspectivismo pode ser entendido em um senti do mais epistemológico: a tese quer então dizer que não existe conhecimento do mundo sem esquema prévio, sem "paradigma” de interpretação (segundo ações tesecientíficas)1. de ThomasSegundo Kuhn emKuhn, A estrutura das revolu toda ciência opera com base em representações gerais do mundo que recortam um quadro de inteligibilidade e de coerên cia no interior do qual podemos distinguir a verdade da falsidade. Mas esse quadro é, ele próprio, variá vel e está sujeito às revoluções científicas que vêm
1 Em 1962, Kuhn ignorav a comp letamen te a tradição hermenê utica, mas ele a evoca con corda ntem ente em seu últi mo livro, A tensão essen cial: tradição e mudança nas ciências. São Paulo: Unesp, 2001.
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CA
alterar os parâmetros recebidos. Um paradigma consegue, então, destronar outro. A verdade aqui é concebível, mas depende de um paradigma dado (a questão da verdade dos próprios paradigmas tam bém é objeto de discussão em epistemologia). (3) A tese "tudo é interpretação" pode receber um sen tido mais genericamen te histórico-, toda interpreta ção é filha de seu tempo. Essa visão corresponde àquilo que podemos chamar de historicismo. É ele que a hermenêutica clássica e metodológica (Dil they) mais frequentemente buscava conter, mas que o relativismo pós-moderno frequentemente saúda como uma libertaç ão: ele nos livraria da con cepção da verdade como adequação, sendo a ver dade não mais que uma "perspectiva útil". Em um regime historicista, a verdade permanece possível, mas interpretar verdadeiramente um fenômeno quer dizer entendê-lo a pa rtir de seu c ontexto. Uma verdade não contextual parece excluída. (4) 0 adágio pode ser entendido de uma maneira mais ideológica: nesse caso, ele significa que toda visão de mundo seria guiada por interesses mais ou me nos declarados. Podemos pensar aqui em Marx, Freud, na crítica das ideologias e em todos aque les que Ricceur cJassifica de os m estr es da suspeita. Essa suspeição dá srcem a uma hermenêutica das profundezas que suscita uma fortíssima pretensão de verdade, mas que permanece um pouco ideal, quando não escatológica: ela não apenas se man
tém como o apanágio do teórico (ele mesmo inicia do na verdade última dos fenômenos), como seu "objeto" não será capaz de conhecê-la plenamente,
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exceto quando for libertado da ideologia que atual mente deforma sua consciência. É essa verdade ideal que o teórico antecipa quando critica o estado existente de uma sociedade ou de uma consciência. Essas são as formas absolutamente atuais e pertinen tes da ubiquidade hermenêutica, mas os principais representantes da tradição hermenêutica defenderam concepções mais definidas dessa universalidade: (5) Para Heidegger, a universalidade da hermenêutica comporta, sobretudo, um sentido existencial: pelo fato de ser uma interrogação para si mesmo, o ho mem é de início um ser votado à interpretação. Ele tem necessidade de interpretação e vive desde sempre no seio de interpretações, mas que ele pode contudo elucidar. Essa dramatização agostiniana da hermenêutica transforma-aum em pouco uma filosofia universal da "facticidade" humana que visa livrá-la do esquecimento de si no qual ela se abisma de tamanho bom grado. Aqui, a verdade-correspondência é seguram ente preservada. Heidegger ressal ta, por sinal, que a tarefa primeira da interpretação é elaborar seus projetos de entendimento diretamen te sobre as próprias coisas. Mas isso quer dizer que é possível esboçar projetos que sejam conformes ao que a existência pode ser quando se assume a si mesma. Se for preciso destruir as "más” interpreta ções, as que são inadequadas ou sobrepostas porque
nos afastam de nossa finitude, isso deve ser feito pela medida de um ideal de autenticidade. (6) Para um autor como Gadamer, assim como para muitos outros, a universalidade da hermenêuti
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ca deve ser entendida, sobretudo, em um sentido lingüístico: toda interpretação, toda relação com o mundo, pressupõe o elemento da linguagem, visto que a realização lingüísticos. e o objeto doNesse entendimento necessariamente universo,são a verdade-correspondência também é possível, mas trata-se sempre de uma adequação das próprias coisas à linguagem. Desse modo, é possível revisar nossas interpretações confrontando-as àquilo que é dito pelas próprias coisas, portanto a sua lingua gem. Esse modo de falar é menos curioso do que parece. Se podemos dizer que a tese segundo a qual "o sol gira em torno da terra" é falsa, é porque ela vem refutar aquilo que "diz" o próprio real , sua "evidência". Desse modo, uma concepção científi ca ou filológica sempre pode ser refutada por um mais adequado entendimento que apele para a lin guagem do próprio real, tendo como evidência as coisas, mesmo que tal entendimento só compareça por meio da linguagem. Essa linguagem é inicial mente para Gadamer a linguagem das próprias coi sas antes de ser a linguagem de nossa mente (a qual a recebe sobretudo das coisas). Essa concepção da universalidade da linguagem não é a única que é defendida em hermenêutica. (7) A tese mais difundida é, sem dúvida, a que vai no sentido pós-moderno (no caso, muito moderno), que vê na linguagem especialmente uma "forma
lização" do "real", quecom fariaa cadu car a própria ideiaesquematização de uma realidade qual nossas interpretações poderiam ser classificadas
FACES DA UNIVE RSALID ADE DA HERMENÊ UTICA
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como em conformidade (sendo a própria realida de "constituída" por nossas interpretações). Essa tese pós-moderna se apoia de bom grado nos sen tidos perspectivista, cognitivo, histórico, ideoló gico, existencial que acabamos de distinguir e, a cada vez, para contestar a ideia julgada quimérica de uma adequação ao real. Podemos associar essa hermenêutica ao perspectivismo da vontade de potência evocado acima (1), mas o pensamento pós-moderno se distingue por sua ideia segundo a qual o sentido seria circunscrito por um quadro interpretativo globalizante, mais ou menos rígido, proveniente ora da história da "metafísica" (Derri da), ora da episteme geral de uma época (Foucault), ora da tradição (Vattimo) ou do quadro de utilidade geral determinado poradequação, nossa cultura (Rorty), também não há mais a não ser noAqui seio de uma ordem dada, mas o apagamento de toda referência extralinguística possibilita uma nova to lerância acerca da pluralidade das interpretações. Se essa caridade é bastante louvável, a dissolução da noção de verdade se revela singularmente fatal para ess a concepção da hermen êutica: por que essa teoria se ria mais verdadeira que qualquer outra? Ora, se a hermenêutica é verdadeiramente universal, é inicialmente porque somos seres que vivem, à primei ra vista, no elemento insuperável do sentido, de um
sentido que nós nos esforçamos para entender e que pressupomos desde então necessariamente. Mas esse sentido é sempre o sentido das próprias coisas, daqui lo que elas querem dizer, um sentido que certamente
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ultrapassa nossas pobres interpretações e o horizonte limitado, mas, graças a Deus, sempre ampliável de nos sa linguagem2.
2 É essa herme nêu tica que tentei desenvolver modes tamen te em meus trabalhos, especialmente em L'universalité de Vherméneutique (1993), onde o objeto da hermenêutica é compreendido a partir da
ideia de um sentido interior, inesgo tável, que buscam os in terp retar por meio de suas expressões externas, e em Du sens de la vie (Montréal: Bellarmin, 20 03), que desenvol ve a ideia de que o sentido que tentam os entender é, antes de mais, o da própria vida.
FACES DA UNIVERSALIDADE DA HERMENÊUTICA
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a r o t i d e a d a t o n
À DIGA CÓNÃO PIA pratique essa ideia
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Quando você copia uma obra, está contribuindo para que nos próximosanososalunosnãotenhammaisoquecopiar,porque:
1. Nãohaveráautoresinteressadosemproduzirtextos.Aprodução de um livro demanda mui to temp o, forma ção específica e dedicação,eelesprecisamtrabalharparaviver. 2. Tambémnãohaveráeditora sinteressadasem investirem obra que ficará estocada, especialmente quando se trataruma de obrastraduzidas.Osalunosdofuturoterãodelerasobrasna línguaemqueforameditadas. 3. E mais: você está contribuindo para acabar com o emprego de funcionár ios de gráficas, editoras, para o fechament o de livrarias, para o empobr ecimen to da cultura do país, além, é claro,de v io la r a lei d e di re it os au to ra is (Lei n° 9.610/98), praticandoumCRIMEprevistonoartigo 184 do Códig o Penal, semprejuízodeterquerepararodanocausado. E para que iss o? A có pia cust a em média R$ 0,10 po r página. Est e livro, r $ o,1o. p o r q u e , então , n ã o t ê -l o ?
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