D E B A T E Com a Professora Maria Isabel Limongi Professora Professora do Departam Departament ento o de Filo Filosofia sofia da UFPR
A Inscrição Histórica da Obra Filosófica (em torno de A Nervura N ervura do Real d e Ma rilena Cha uí )
O tem tema que me me proponho a coment comentar ar - a idéia idéia de que a obra fil filosófica osófica deve ser lida e compreendida a partir de sua inscrição histórica - constitui, por assim dizer, um dos objetos de militância de Marilena Chauí. Uma militância que é constitutiva do seu projeto de leitura de Espinosa: compreender a obra espinosana passa por compreender, segundo ela, sua inscri in scri ção históri hi stóri ca . O sentido sentido mais im imediato que se pode dar a esta express expressão ão é o de que a obra está está situada na históri história, a, isto é, que a obra obra se compõe compõe sobre o pano de fundo de uma situação histórica, a qual se deve conhecer de antemão para compreender o lugar que a obra ocupa em seu tempo. Mas se a inscrição histórica de uma obra obra reside reside nisso, é sempre possível dizer que, se é verdade verdade que a referência à história ajuda a compreender a obra, esta referência não é contudo contudo essencial essencial,, se tiverm tivermos por princípio princípio que a obra fala por si mes esm ma - seja porque ela tem uma articulação interna que é possível apontar independente independentem mente ente de sua referência referência à hist históri ória, a, seja porque porque ela toca num conjunto de problemas que transcendem a especificidade da época em que eles foram colocados, podendo ser recolocados nos mesmos termos ou em termos muito semelhantes em outras épocas. A referência à inscrição histórica de uma obra seria, assim, um instrumento que pode eventualmente vir a ajudar na compreensão da obra (como, por exemplo, na compreensão de seu vocabulário), mas do qual se pode prescindir ou o qual se pode pelo menos descartar uma vez usado, quando nossa preocupação se voltar para os aspectos não históricos (alguns diriam: universais) da obra . Contudo, a militância de Marilena no sentido de nos chamar a atenção para a inscrição histórica da obra filosófica e, em particular, da obra de po rque comp reende esta inscrição num sentido diferente dif erente deste Espinosa, porque que acaba mos de caracterizar caracterizar , procura estabelecer justamente que não temos a opção de pôr a história de lado quando queremos ler e compreender
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um texto filosófico. A história não é o cenário da obra, algo que fosse diferente e estivesse do lado de fora da cena que ela nos narra - a história é interna a obra. Ter mostrado isso em relação a Espinosa é, sem dúvida, um dos grandes méritos do livro da Marilena, como assinala Bento Prado Jr. na orelha da edição de A Nervura do Real. O que eu me proponho a fazer aqui é simplesmente insistir sobre este ponto, para tentar compreender um pouco melhor como Marilena faz isso. Interessa-me sobretudo pensar a relação - tambémindicada por Bento - entre os dois vetores de preocupação da Marilena em seu livro: de um lado, há o projeto de dar à obra de Espinosa uma espessura histórica, do outro, o de reconstituir, no interior da obra de Espinosa, o lugar conceitual do singular. Como estes dois aspectos de seu projeto se comunicam? (I) Há pelo menos um sentido em que a inscrição histórica de uma obra constitui umproblema para a sua compreensão: quando se dispõe de antemão de um sentido da história no interior da qual se quer localizar uma obra - nos termos da Marilena, quando se dispõe de uma “cartografia”, entendendo por isso um conjunto de tendências, de correntes do pensamento que caracterizariam uma época e às quais o filósofo se filiaria no sentido de se opor a algumas e desenvolver outras. Na opinião de Marilena, este seria o problema das leituras que fazem de Espinosa intérpretes tais como Negri, Feuer e Kolokowski:
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“A crermos nesses três intérpretes que fez Espinosa? Para expor seu próprio pensamento levou às últimas conseqüências o pensamento judaico, o renascentista e o de seus contemporâneos. (...) Enraizado em seu tempo, mas radicalizando o que seus contemporâneos haviam ousado formular no interior da herança teológica, metafísica e política judaico-cristã, Espinosa teria retirado as conseqüências necessárias e inevitáveis do racionalismo quando este se torna racionalismo absoluto, mas, para isso, teria sido levado a sacrificar tudo aquilo que em seu próprio sistema contrariaria essa tendência, donde a presença quase simultânea de conceitos e temas incompatíveis” (p. 33-4).
Ora, sugere Marilena, não é justamente porque compreendemos a obra a partir de certas correntes do pensamento das quais ela seria um dos representantes, que ela aparece para nós como incoerente? E isto justamente porque procuramos seu sentido fora dela, nas correntes do pensamento às quais a obra se filiaria, correntes estas que, em si mesmas, enquanto “tendências” que traçam no absoluto os caminhos da história, são eventualmente contraditórias ou incompatíveis entre si. Não é também assim
que se criam certas figuras do autor, como as do Espinosa ateu, panteísta, fatalista, ou cartesiano radical, hobbesiano radical, e assim por diante? Estas figuras queremdesignar as aberrações do espinosismo quando este desenvolve e leva às últimas conseqüências as tendências de seu tempo tendências que, no limite, não são outra coisa senão um conjunto de coordenadas históricas que dispomos de antemão e no interior das quais queremos enquadrar a obra. Mas, com isso, segundo Marilena, não apenas dilaceramos a obra entre os diversos vetores históricos que ela viria a representar, como também perdemos de vista a sua singularidade. Este último ponto - como já assinalamos - é particularmente caro a Marilena: compreender a singularidade da obra de Espinosa, a singularidade do seu ponto de vista ou de seu modo de inscrição na história, passa curiosamente por compreender o modo como Espinosa reserva em sua própria filosofia um lugar para o singular, ou para os modos singulares de ver ou refletir a estrutura do real. Assim, Espinosa não é apenas um autor que, como todos os outros, ocupa um lugar singular na história; contrariamente ao que diz a leitura que faz dele um panteísta (entenda-se: alguém que teria suprimido toda distância e diferença entre Deus e os seus modos finitos), Espinosa oferece, alémdisso, os instrumentos teóricos para pensar como uma obra singular, um indivíduo, pode exprimir de maneira singular o que está em seu entorno ou a totalidade da qual ele é a parte. Assim, compreender como Espinosa pensa a relação entre o finito e o infinito, a parte e o todo, Deus e os homens, nos ajuda a compreender como uma obra pode exprimir o seu tempo, sendo, no entanto, diferente dele, ou, emoutros termos, sendo singular e única em relação à história e às tendências de pensamento que caracterizam a sua época. É a partir de uma perspectiva, de um modo de pensar ou de uma “sensibilidade”, que Marilena desenvolve como leitora de Espinosa, no embate com a sua obra, a partir do momento em que se colocou como projeto compreender como Espinosa pensa o singular - sendo, nesse sentido, espinosana -, que ela ilumina a questão da inscrição histórica da obra filosófica. Emrelação a Espinosa - mas creio que isso vale para toda grande obra, pois é nisso que residiria sua grandeza - ela nos diz: “Julgamos que é preciso aceitar o peso da estranheza do pensamento espinosano. Não porque a obra seja um hieroglifo à espera do deciframento que a salvará de incorências, inconsistências, segredos e mistérios, e sim porque, avessa ao que supomos já saber, fracassaremos se quisermos lê-la segundo o que nos é familiar, pois é então que ela se transforma em texto hieroglífico. Espinosa inova porque subverte, expondo suas idéias num duplo registro simultâneo: no do discurso que diz o novo, ao mesmo tempo em que
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se realiza como contradiscurso que vai demolindo o herdado. A poderosa rede demonstrativa dos textos espinosanos é também um tecido argumentativo e por isso a obra se efetua como exposição especulativa do novo e desmantelamento dos preconceitos antigos que referenciam o presente, subvertendo, nos dois registros, o instituído” (p. 37).
A obra é singular em relação à história da qual ela participa porque diz o novo, porque retrabalha um conjunto de tendências, preconceitos e, enfim, os caminhos já percorridos do pensamento, para dizer a partir daí alguma coisa única e que por esta unicidade exprime o seu tempo. Se quisermos compreender como uma obra se inscreve em seu tempo, é para o modo como ela age em seu tempo que devemos voltar nossa atenção - e esta ação da o bra deve ser entendida em sentido espinosano: a ação como sendo a afirmação que de si faz todo indivíduo à medida em que é livre, à medida em que é um princípio ativo autônomo e não apenas o resultado da composição das forças que atuam sobre ele e frente as quais ele seria um produto passivo. Assim, da mesma forma que os modos finitos - os indivíduos singulares - não se diluem em Deus ou na substância de que são modos, não sendo por isso externos à substância ou separados dela, porque exprimem a substância de uma maneira singular e a refletem de um modo único, assim tambéma obra filosófica (e, no limite, qualquer obra, qualquer ação) não se deixa dissolver num suposto conjunto de tendências que viessem a determiná-la, não sendo por isso diferente, destacável da história de que é parte. Ela é imanente a esta história e à sua época na medida em que as diz de um modo novo e único. É talvez isso o que Marilena queira nos dizer ao falar de uma “dimensão instituinte” da obra - instituinte do sentido de uma experiência, que é uma espécie de matéria bruta sobre a qual a obra trabalha: 112
“É essa experiência nua que exige daquele que não adere imediatamente a ela o trabalho de interpretação para conferir-lhe o sentido que possui sem que o saiba. Ora, é exatamente nesse trabalho que a subversão espinosana se põe a caminho, inquietando seus contemporâneos e atordoando seus futuros leitores. Se a uns a obra parece confusa e obscura, se a outros aparece como radicalização do já pensado e já dito, se para muitos não há parâmetros para situá-la senão com os referenciais do futuro, é porque o trabalho do pensamento que nela se realiza vai às raízes dessa experiência para conferirlhe, em seu próprio presente, o sentido que ela possui e que nela se oculta” (p. 45).
É por estar enraizado desta forma em seu tempo, numa experiência à qual se quer dar umsentido elevando-a ao plano do conceito, que o pensamento
espinosano dialoga com os seus leitores - não apenas os seus contemporâneos, mas também aqueles que dele estão distantes no tempo e que, ao observarem Espinosa pensando, dando sentido à experiência que ou menos subversiva, que uma obra (filosófica ou não) se inscreve na história. Compreendemos assim que a história não seja externa, mas interna à obra - e isso num duplo sentido: a obra reflete o seu tempo ao exprimi-lo de uma forma singular, mas ela também faz o seu tempo ao agir sobre ele. Compreendemos também que ler a obra a partir de seu movimento ou de sua lógica interna, no seu tempo lógico , não equivale a retirá-la do seu tempo histórico, pois é a partir de si mesma, de sua individualidade ou de sua estrutura interna - de sua essência singular, diria Espinosa - que a obra diz alguma coisa a respeito de seu tempo e no seu tempo. (II) O problema da inscrição histórica de uma obra se repõe, porém, ainda em outro nível, no nível da relação entre o intérprete e a obra que ele interpreta, no nível do trabalho do especialista cuja obra consiste em oferecer aos outros, aos leitores de seu próprio tempo, uma porta de acesso, uma chave de leitura de uma outra obra que se encontra distante dele e de seus leitores no tempo. Também aqui o trabalho da Marilena como intérprete de Espinosa - umtrabalho ao qual ela se dedica já há mais de 30 anos - é iluminador. Caberia neste plano perguntar: a natureza do trabalho do intérpreteespecialista não é tal que este trabalho se pensa necessariamente como localizado fora da história? Q ueespécie deolhar éo do especialista, quando este pretende ver e dar a ver uma obra em sua verdade histórica, se não um olhar que se pensa capaz de sobrevoar a história? Uma história da qual ele se reconhece herdeiro, é verdade, mas, talvez por isso mesmo estivesse ao seu alcance reivindicar o privilégio de um olhar absoluto, capaz de ver o movimento ou a ação da obra na história. Mas, como é possível ver a operação da obra na história? Esta não seria uma pretensão desmesurada, que termina por projetar o intérprete para fora da história, para um lugar espécie de ponto de fuga projetado para além da superfície histórica - ao qual o sentido da obra enfim se revelaria? Esta é uma dificuldade que à primeiravistaseimpõeaoprojetointelectual daMarilena-leitora-de-Espinosa. Numcerto momento da introdução de A Nervura do Real, Marilena diz o seguinte: “Não são os panteísmos da Kabballah nem os da renascença hermética os
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referenciais mais seguros para nos aproximarmos do pensamento de Espinosa, mas a óptica de Kepler e Huygens, balizas que a matemática e a filosofia natural fincam geométrica e mecanicamente no solo do racionalismo” (p. 61).
É, segundo ela, o olhar kepleriano, imerso no mundo e não mais pensado ao modo de uma tela neutra sobre a qual o mundo se projeta, é este olhar que orienta a pintura holandesa no que ela se distingue da italiana, que nos permite compreender porque a filosofia espinosana, aparentada à pintura holandesa, não comece cartesianamente do cogito ou do sujeito, mas de Deus: como a visão kepleriana, o pensamento se faz para Espinosa no “meio do mundo” (p. 51). Como Kepler, Espinosa recusa a diferença entre lux e lumen , entre uma fonte iluminadora divina e o seu reflexo, sua imagem esfumaçada, que é o que desta luz divina chega à percepção humana uma recusa que nos dá a chave de compreensão de como Espinosa pensa a relação reflexiva (no sentido óptico) entre o intelecto infinito de Deus e o nosso humano intelecto finito. Graças à geometria de Huygens podemos além disso compreender a diferença e as relações entre os tipos de conhecimento elencadas por Espinosa. Graças, enfim, a Kepler e Huygens podemos compreender porque Espinosa não é um panteísta acosmista, embora recuse a transcendência divina, como, enfim, se dão as relações entre Deus e seus modos, entre Na tureza N aturans e Natureza Na turata, tal que elas não sejam idênticas embora tambémnão externas uma à outra.
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Não cabe aqui desenvolver os aspectos da obra espinosana que seriam iluminados pela óptica de Kepler e Huygens. O que queremos é saber o que orienta um intérprete, quando este recusa um conjunto de referenciais (como faz Marilena em relação à Kabballah e ao hermetismo renascentista) e elege outros (a óptica moderna) como os mais adequados à explicitação do sentido de uma obra. De onde fala o intérprete quando faz esta eleição? De onde ele vê a obra? O intérprete busca a coerência interna da obra. Ele é aquele que se pergunta pela possibilidade da conjugação de seus aspectos aparentemente contraditórios. Assim, pergunta-se Marilena num certo momento, reconhecendo esta dignidade própria à figura do intérprete, da qual se investe: “o intérprete poderia indagar: como é possível que, simultaneamente, Deus seja incomensurável e comensurável aos seus modos finitos? Que seja ao mesmo tempo unidade complexa e infinitamente diferenciada enquanto substância única?” (p. 75)
É porque permite ao intérprete responder a estas questões que a referência da óptica de Kepler e Huygens vale mais do que as referências da Kabballah ou do hermetismo renascentista, a partir das quais se constróem as figuras de um Espinosa radical ou contraditório. Mas de onde o intérprete põe estas questões? De onde ele diz: jamais se compreendeu bem ou se atentou para um certo aspecto da obra comentada (no caso do projeto de Marilena, para a positividade dos modos finitos, para o fato de que eles não se diluememDeus,massãodiferentesdeDeus,emboranãolhesejamexternos)? A partir do pressuposto, certamente, de que a obra deva ter uma coerência interna e que a lêem mal todos aqueles que não a encontram. Mas não apenas daí. Até porque parece possível guardar a coerência interna da obra de Espinosa fazendo dele um panteísta. Uma das acusações que pesam sobre Espinosa ou sobre o espinosismo não é justamente a de coerência em excesso, a de ser uma forma de super-racionalismo revertida numa das figuras do ateísmo - o ateísmo especulativo - justamente por ter pretendido reduzir todo o real à forma da razão? Assim, não apenas seria possível guardar a coerência de um Espinosa panteísta como esta coerência foi vista como a contra-face mesma do seu suposto panteísmo. O intérprete que, como Marilena, pretende argumentar contra a tradição de leitura que faz de Espinosa um panteísta não pode, portanto, falar em nome apenas da coerência interna da obra, embora faça parte da figura do intérprete que ele não a perca de vista. Ele poderia ater-se ao plano desta coerência, desde de que as leituras que assim o fizeram - isto é, que insistiram sobre a coerência interna da obra espinosana - não o tivessem feito justamente para recusar ou opor-se a Espinosa e ao modo espinosano de pensar e agir em seu tempo, desde de que estas leituras não tivessem elas mesmas a sua inscrição histórica. O “caso” Espinosa é, assim, exemplar. Ele mostra que o intérprete, quando procura e defende a coerência interna da obra, não o faz ou não o pode fazer a partir de um ponto vista técnico, lógico e a-histórico que ele reivindicaria para si. A coerência que ele visa é uma certa coerência - se quisermos: uma coerência interessada - no caso de Marilena, aquela que nos permitiria escapar de uma outra coerência à luz da qual Espinosa aparece como panteísta. O “caso” Espinosa parece não dar outra opção ao intérprete senão a de colocar suas questões - e de forma explícita - a partir da história das leituras da obra que submete ao seu comentário, a partir daquilo que C. Lefort denominou, a respeito de Maquiavel, “o trabalho da obra”, isto é, o movimento das leituras que a obra engendra e que não são separáveis dela. Se, no caso de uma leitura de Espinosa, é relevante
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perguntar-se pela positividade do singular, é porque a história das leituras de Espinosa fez do singular ou de sua ausência um problema do espinosismo. É porque sabe que o intérprete põe sua questão do interior do trabalho da obra ou da história do pensamento que a obra engendra e que se interpõe entre ela e o seu leitor presente, que se torna importante para Marilena, como uma etapa indispensável de seu trabalho de interpretação, reconstruir a história do espinosismo ou do Espinosa feito panteísta - porque a questão que ela se põe como leitora de Espinosa se põe a partir daí.
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O trabalho da obra Espinosa é a história de um processo, em que os advogados de defesa e de acusação lêem Espinosa a partir dos interesses, das forças, do mundo que eles querem afirmar enquanto agentes históricos que são. É preciso identificar, portanto (e é o que Marilena faz na parte I de seu livro como propedêutica de sua interpretação), o campo de forças em que se inscreveu a obra espinosana e que em grande parte é criado pela obra mesma. E se é preciso descrever este campo de forças, não é para em seguida colocar-se fora dele, na reivindicação de um olhar, enfim, neutro. Ao contrário, o intérprete se inscreve deliberadamente nele - é por isso que o descreveu, para inscrever-se ele mesmo na história: a história do espinosismo, a história da obra espinosana, a história feita por Espinosa e por seus leitores. Este intérprete, que conhece a historicidade das questões que dirige à obra, que se inscreve ele mesmo na história, é o leitor não ingênuo e deve a esta não ingenuidade que ele conquistou como especialista, como alguémque dedicou muito tempo ao trabalho não só da interpretação como também da história da obra, o privilégio do seu olhar, ao pretender abrir aos outros uma via de acesso à leitura que eles mesmos farão de Espinosa. Estes leitores sentirão, então, eles também, o peso da história. Eles saberão que, quando abrem um livro de Espinosa para ler, eles não encontrarão ali uma verdade estática, dada, pois terão aprendido que a obra não é, nos termos de Marilena, “um existente em si” e “não se reduz a uma mensagem que, do fundo do passado, nos aguardaria como pregoeiros de sua verdade” (p.40). A obra tem um trabalho, um movimento que é a sua ação no tempo. E é a partir desta ação que o intérprete a indaga e ensina os outros a indagá-la. É a partir deste movimento que o intérprete age, por sua vez, dando-nos como exemplo o exercício de uma interpretação, ela também, assim como a obra, única e singular.