Introdução à filosofia da linguagem
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Penco, Carlo Introdução à filosofia da linguagem / Carlo Penco ; tradução de Ephraim F. Alves. - Petrópolis, RJ: Vozes, 2006. ISBN 85.326.3367-6 Título original : Introduzione alla filosofia dei linguaggio Bibliografia. 1. Linguagem - Filosofia 2. Linguagem Filosofia - História I. Título. CDD-401
06-4573
Índices para catálogo sistemático: 1. Filosofia da linguagem
401
2. Linguagem: Filosofia 401
Cario Pence
Introdução à filosofia da linguagem Tradução de Ephraim F. Alves
'6 EDITORA Y VOZES Petró poli s
© 2004, Gius. Laterza & Figli S.p.a., Roma-Bari A edição brasileira foi intermediada pela Agência Literária EULAMA, Roma.
Título original italiano: Introduzione allafilosofia del linguaggío Direitos de publicação em língua portuguesa: 2006, Editora Vozes Ltda. Rua Frei Luís, 100 25689-900 Petrópolis, RJ Internet: http://www.vozes.com. br Brasil Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra poderá ser reproduzida ou transmitida por qualquer forma e/ou quaisquer meios ( eletrônico ou mecânico, incluindo fotocópia e gravação) ou arquivada em qualquer sistema ou banco de dados sem permissão escrita da Editora.
Editoração: Fernando Sergio Olivetti da Rocha P rojeto gráfico: AG.SR Desenv. Gráfico Capa: Marta Braiman
ISBN 85.326.3367-6 (edição brasileira) ISBN 88-420-7 169-2 (edição italiana)
Este livro foi composto e impresso pela Editora Vozes Ltda. Rua Frei Luís, 100 -Petrópolis, RJ - Brasil - CEP 25689-900 Caixa Postal 90023-Tel.: (24) 2233-9000 Fax.: (24) 2231-4676.
Aos sobrinhos naturais e não-naturais: Alice, Andrea, Beatrice, Bube, Cario, Elisabetta, Eloísa, Emiliano, Enrico, Federico, Flora, Fernando, Francesca 1, Francesca 2, Joyce, Laura, Libera, Manuela, Marcel/o, Margherita, Michele, Nico/e, Oriana, Paulina, Pietro, Sara, Sophia, Stefania, Stefano 1, Stefano 2, Vander, Veronica, Viviana.
Agradecimentos Quero agradecer, em primeiro lugar, aos estudantes dos meus cursos de filosofia da linguagem, e também a diversas pessoas que leram partes do livro e me deram conselhos úteis, às vezes indispensáveis. Claudia Bianchi e Cario Dalla Pozza leram, ambos, duas versões inteiras que eu considerava definitivas e me obrigaram a revolucionar duas vezes a estrutura do livro. Marcello Frixione e Dario Palladino me corrigiram mais de um erro até que finalmente parei de lhes mostrar as últimas versões do texto. Giuseppina Ronzitti, Marina Sbisà e Massimiliano Vignolo apresentaram uma série de sugestões sobre conceitos particulares e ajudaram a tornar menos ambíguas algumas passagens. Diego Marconi forneceu um monte de observações e críticas que me auxiliaram a reescrever diversas partes do trabalho. Nelson Gomes, da Universidade de Brasília, e Murcho Desiderio, da Universidade de Londres (King's College), fizeram a gentileza de me ajudar a construir uma bibliografia em português. A esta altura tenho de admitir que os erros que restaram são na verdade meus. Enfim, Margherita Benzi me ajudou escrevendo ao mesmo tempo um livro sobre temas diversos (causai idade e probabilidade) e criando assim em casa aquela atmosfera de trabalho (fumo, silêncio e um pouco de tensão nervosa), indispensável para a realização de qualquer obra intelectual.
Sumário
Prefácio, 9 Parte I - Filosofia, lógica e lingüística, 11 Introdução, 13 1. Dar razões, 15 2. Linguagem e lógica, 26 3. Semiótica e lingüística, 40 Parte II - Linguagem e representação, 53 4. Sentido, referência e verdade: introdução, 55 5. Nomear objetos: Frege, Russell, Wittgenstein, 67 6. Condições de verdade e mundos possíveis: Wittgenstein e Camap, 83 7. Teorias da referência direta: Kripke e Putnam, 108 Parte III - Linguagem e ação, 123 8. Sentido, tom, força: uma introdução, 125 9. Significado e uso: O segundo Wittgenstein, 134 10. Convenção e atos lingüísticos: Austin e Searle, 152 11. Intenção e conversação: Grice, cortesia e pertinência, 165 Parte IV - Linguagem e comunicação, 181 12. Sentido, contexto e o problema do holismo: uma introdução, 183 13. Holismo e tradução radical: Quine, 190 14. Interpretação e verdade: Davidson, 207
Parte V - Linguagem entre norma e natureza, 21 7 15. Sentido e justificação: uma introdução, 219
16. Significado e inferência: Dummett, Brandom, 227 17. Significado e cognição: inteligência artificial, Fodor, Marconi, 244
Bibliografia geral, 261 Índice onomástico, 263 Índice temático, 265 Índice geral, 269
Prefácio
Este livro tem por objetivo ajudar o leitor ou a leitora a (i) orientar-se no mapa da :filosofia da linguagem contemporânea, identificando os seus conceitos-chave e as correntes principais; (ii) identificar os instrumentos necessários para aprofundar os aspectos da filosofia da linguagem que forem considerados mais apropriados; (iii) exercitar-se na análise e construção de argumentações. Nos capítulos 1, 2 e 3 da primeira parte vou fazer algumas rápidas alusões às relações entre :filosofia, lógica e lingüística. São apenas alusões, e têm como escopo rememorar alguns conhecimentos elementares sobre o problema da linguagem, deixando ao leitor (ou à leitora) com pouca experiência uma certa curiosidade e insatisfação, de modo a estimulá-lo(a) a ir à procura de outros textos. Da segunda parte em diante principia de fato a introdução à filosofia da linguagem no verdadeiro sentido da palavra. Quem desejar pode, sem problemas, começar a partir desse ponto. Muitas vezes, para facilitar a compreensão, direi coisas claras mas não totalmente corretas. Apenas um aprofundamento da matéria permitirá que se compreenda até que ponto certas definições aparentemente não problemáticas podem ser postas em discussão. O livro propõe ao leitor uma idéia bastante consolidada: assim como a discussão em filosofia da mente recebe um forte impulso da revolução das ciências cognitivas, pelo fim do século XX, muitos problemas da filosofia da linguagem também podem ser correlacionados com a revolução lógica do começo do século XX, que teve como pioneiro Gottlob Frege, o inventor da lógica matemática. Nas suas discussões :filosóficas Prefácio 9
Frege definiu uma série de problemas novos, que constituíram um novo campo de pesquisa. Estudar as reflexões de Frege sobre a linguagem ajuda a compreender não só como surgiram certos problemas, mas também como se desenvolveram, muitas vezes como crítica às soluções fregeanas. As partes que vão da segunda à quinta estão organizadas em tomo de quatro grandes temas: (i) a linguagem como representação: a relação da linguagem com a verdade e com aquilo a que as palavras se referem; (ii) a linguagem como ação: a importância das convenções lingüísticas e das intenções no uso da linguagem; (iii) a linguagem como comunicação: o problema da tradução e os aspectos de dependência contextual das nossas proposições; (iv) a linguagem como norma e como natureza: a possibilidade ou não de se reduzir a linguagem a um enfoque meramente naturalista (por exemplo, psicológico, sociológico ou neurofisiológico). Trata-se de quatro áreas de problemas abordados por Frege em suas obras e definidos no trabalho de construção do sistema simbólico (a lógica matemática), que vai abrir o caminho para as linguagens de programação e para as modernas ciências da informática, da robótica e da ciência cognitiva. Cada parte do livro será aberta por um capítulo introdutório que tem como ponto de partida as reflexões de Frege, para em seguida passar a discutir as principais teorias contemporâneas sobre o tema. Alguns parágrafos mais difíceis estão assinalados com um asterisco (*) logo depois do título do parágrafo e podem ser saltados na primeira leitura.No fim dos capítulos se oferece uma Bibliografia essencial, com textos em português (esta bibliografia tem um fim prático: não indico, portanto, as edições originais ou as primeiras edições. Alguns capítulos são seguidos, também, por quadros com informações diversas sobre temas não aprofundados no texto ou sobre aspectos mais técnicos.
10 Prefácio
Parte I FILOSOFIA, LÓGICA E LINGÜÍSTICA
Introdução
Segundo Aristóteles, o ser humano é um animal racional, ou seja, um ser capaz de raciocínio. Mas o que quer dizer "raciocinar"? Raciocinar quer dizer dar razões, isto é,justificações coerentes e dotadas de sentido, numa palavra, "argumentar". A capacidade de raciocinar deve ser exercitada e treinada. Em todas as épocas da história o sono da razão tem gerado monstros. Cabe à filosofia a tarefa de manter viva a luz da razão contra os enganos que procedem da aceitação ingênua e acrítica de qualquer discurso, especialmente se escrito ou recitado nos meios de comunicação de massa. Nos seus apontamentos que remontam à década de 1930, eis o que escrevia Wittgenstein: "Filosofar é: descartar argumentações erradas" (The Big Typescript, § 87.6). Ludwig Wittgenstein (1889-1951) era um engenheiro que resolveu dedicar-se à filosofia. De per si não existe muita coisa em comum entre filosofia e engenharia, mas propor uma analogia pode auxiliar a se compreender melhor a importância do bom trabalho filosófico. É fácil intuir por que se exige dos engenheiros civis um estudo atento dos cálculos e dos materiais para a construção de edifícios que não desmoronem. Cálculos errados e material de construção de má qualidade nem sempre são visíveis a olho nu, mas se revelam com o tempo na fragilidade do edifício, que pode desmoronar, com graves conseqüências para seus moradores. Quando isso acontece, investigam-se as causas do desastre (materiais de má qualidade ou cálculos errados) e, portanto, o culpado, aquele que errou nos cálculos ou escolheu o material. Coisa análoga deveria valer para os discursos. Um discurso também pode ser construído com materiais inferiores (argumentações erradas, falácias). Muitas vezes, porém, como no caso do projeto de um engenheiro, nada de estranho se observa à primeira vista. É necessário ter um olho treinado e um estudo atento para reconhecer os discursos que não têm solidez e que - talvez depois de um certo tempo - desmoronam miseravelmente como um prédio mal construído. Existe uma diferença entre materiais de má qualidade e cálculos errados ou- fora da analogia- entre a falsidade das afirmações e a falta de Introdução 13
correção dos raciocínios. Descobrir a falsidade exige sobretudo um trabalho de pesquisa empírica. Descobrir se um raciocínio está incorreto exige um trabalho de análise conceituai. O trabalho do filósofo é principalmente deste segundo tipo: o filósofo tenta encontrar caminhos para se orientar no mundo dos conceitos, no intuito de esclarecer as relações entre os conceitos (a esse propósito, Kant já falava de "orientar-se no pensamento"). O filósofo da linguagem se defronta com a tarefa de analisar conceitos como, por exemplo, "expressão", "enunciado", "asserção" ou "afirmação", "sentido" etc. Esses conceitos são usados muitas vezes também na linguagem do dia-a-dia. Quando se está conversando e ocorre um desacordo, em geral se pergunta o que significa uma certa expressão, o que quer dizer uma determinada asserção. O filósofo da linguagem não se limita a perguntar-se qual o sentido de uma palavra ou de um enunciado, mas se pergunta o que estão tentando fazer os interlocutores quando falam de sentido; pergunta-se qual o sentido da palavra "sentido". O trabalho do filósofo da linguagem se refere à análise dos conceitos que são habitualmente usados para explicar a estrutura e o funcionamento da linguagem. Fala-se habitualmente de conceitos "semânticos", do grego logos semantikos, ou seja, um discurso ou pensamento referente aos sinais. A palavra "semântica" será usada de maneiras diferentes em lingüística e em lógica: em lingüística, para se referir à teoria das relações semânticas (sinonímia, homonímia, polissemia), e em lógica, para indicar a teoria do modo como os sinais se referem aos objetos. A filosofia da linguagem situa-se na zona limítrofe entre a lógica e a lingüística, e busca acima de tudo analisar as argumentações a favor e contra as diversas visões do sentido que são a cada momento propostas. Seu trabalho é muitas vezes uma investigação dos erros das argumentações dos outros, dos paradoxos que surgem em certas teses, das possíveis contra-argumentações a essas teses. Uma análise do que seria uma argumentação é portanto um pré-requisito indispensável para se iniciar o estudo da filosofia e, de modo particular, da filosofia da linguagem. Nesta primeira parte do livro, depois de uma breve reflexão sobre o que significa argumentar, vamos apresentar alguns conceitos elementares da lógica e da lingüística, que são muitas vezes exibidos nas discussões de filosofia da linguagem.
14 Parte I - Filosofia, lógica e lingüística
1
Dar razões
SUMÁRIO Este capítulo serve de introdução geral para os não-filósofos e põe a ênfase sobre a centralidade do argumentar para a filosofia ( diversamente do que ocorre com a arte ou com a poesia, onde a argumentação, precisamente, não tem cabimento). Em 1.1 se explica o conceito de argumentação, que é um dos principais instrumentos de trabalho do filósofo. Em 1.2 se aborda o problema da forma das argumentações, o tema das falácias e a possível defesa dos equívocos argumentativos. Em 1.3 se lembra a importância da análise lógica no estudo da linguagem e se faz alusão a algumas contraposições no terreno da filosofia da linguagem.
1.1. O que é uma argumentação Todos dizem que estudar filosofia treina a pessoa para o pensamento crítico. Como? Nem sempre isto acontece lendo os textos dos filósofos, muitas vezes dificeis e às vezes obscuros. As argumentações de muitos dos filósofos, inclusive dos mais importantes, nem sempre são um exemplo de clareza. Compreender e portanto discutir as teses contidas nos textos de Platão, Aristóteles, Kant constitui para o filósofo um ponto de chegada. Um bom ponto de partida é treinar para compreender a estrutura das argumentações mais simples, por exemplo, aquelas que se encontram nos jornais e se ouvem nos programas de televisão. 0 QUE É UMA ARGUMENTAÇÃO? Um raciocínio que tende a demonstrar uma tese (conclusão) de ma. . ne1ra persuasiva: (i) tomando por base razões (premissas ou suposições); (ii) usando certas regras ou esquemas reconhecidos. 1. Dar razões 15
Denomina-se "inconcludente" um discurso que não tenha uma conclusão, ou cuja conclusão parece totalmente destacada do resto do discurso. O que significa ''tomando por base razões"? Quer dizer que uma verdadeira conclusão não pode ocorrer por acaso, mas deve seguir razões apresentadas em uma certa ordem, com uma certa conexão. Como se encadeiam entre si as razões usadas para se chegar a uma conclusão? Aresposta é: as razões se encadeiam segundo regras geralmente aceitas e de tal sorte que assegurem a verdade ( se as premissas forem verdadeiras). A esta altura vamos necessitar de uma distinção, fundamental em lógica e explicitada a partir do trabalho de Gottlob Frege: a distinção entre axiomas e regras. Podemos dar as seguintes definições aproximativas: • os axiomas, ou suposições, são aquilo que constitui o ponto de partida do nosso raciocínio, aquilo que se assume ou supõe como verdadeiro; • as regras de inferência são as regras comumente aceitas, que permitem passar das suposições (as premissas do argumento) às conclusões; • a inferência: usa-se o termo "inferência" para falar (i) do ato de passar das premissas às conseqüências segundo regras, (ii) da estrutura desta passagem (ou deste conjunto de passos). Neste segundo sentido se fala de "esquemas de inferência". Uma argumentação é tipicamente constituída por uma inferência ou por uma série de inferências. Usualmente seguimos regras de inferência implicitamente, sem nos darmos conta de que regras estamos efetivamente seguindo. Parte do trabalho dos lógicos consiste em explicitar algumas dessas regras, em particular aquelas que, tendo em vista a verdade das premissas, garantem a verdade da conclusão. Um exemplo clássico de regra de inferência é a regra do Modus ponens ( ou regra de separação), já explicitada pelos estóicos e colocada por Frege como regra-base do seu sistema lógico: sep então q
16 Parte I - Filosofia, lógica e lingüística
Neste esquema de inferência, as primeiras duas linhas constituem as premissas do argumento e a terceira linha, debaixo do traço, constitui a conclusão; ''p" e "q" podem ser substituídas por uma proposição qualquer ( se chover, então me molharei; chove, portanto me molho). O traço representa o sinal de derivação (é como se estivesse no lugar "portanto", "ou seja", "razão pela qual" etc.), e o mesmo esquema pode ser escrito em apenas uma linha deste modo:
Existem diversos modos "regulares" em que as razões (ou premissas) dadas se acham ligadas à conclusão ou à tese que se quer demonstrar. Costuma-se distinguir entre argumentações dedutivas e indutivas, conforme as premissas possam levar a uma conclusão certa ou somente provável. Esta contraposição comporta sutilezas que não cabe aqui aprofundar, tratando-se de uma breve introdução (no caso das argumentações indutivas, onde as premissas tomam provável a conclusão, não se costuma falar de argumentações corretas e incorretas, mas de argumentações fortes ou fracas). Embora a maior parte dos nossos raciocínios cotidianos sejam incertos e aproximativos, e sigam portanto a assim chamada argumentação indutiva ou probabilística, por simplicidade nos limitaremos a falar só de argumentações dedutivas. A opção se deve também ao fato de que argumentações e contra-argumentações dedutivas são muitas vezes usadas na análise conceituai, e portanto em filosofia. Usaremos a seguinte terminologia 1:
1. Em italiano não há uma tradição padrão sobre os termos relativos à argumentação. Aqui usamos "correto" para o inglês sound, seguindo a tradição lógica de traduzir soundness theorem por " teorema de correção". Lembramos, aliás, que em lógica o conceito de soudness não tem nada a ver com a verdade das premissas (dado que a lógica se ocupa somente com a forma dos argumentos). O conceito de "correto" em lógica é portanto diferente daquel e aqui proposto. Com efeito, passando da lógi ca formal ao estudo das argumentações, temos também interesse na verdade da s premissas, e é por isso que introduzimos o termo " fundado" (isto é, "com premissas verdadeiras"). A distinção válido/correto t em a lguma ligação na linguagem natural. Por exemplo, no jogo de futebol se diz "não é válido" para alguém que viola as regras, como alguém que faz gol em impedimento; "não é correto", quando alguém fa z algo pior, por exemplo agarra pela camisa o adversário sem que ninguém perceba. O importante é não se deixar confundir com traduções diferentes e compreender de que modo se usa a palavra "correto" em diversos textos e contextos (em alguns textos, usa-se "correto" no lu gar do que aq ui denominamos "válido").
1. Dar razões 17
Argumentação válida (valid)
Argumentação na qual não é possível que a conclusão seja falsa e as premissas verdadeiras (a conclusão é "conseqüência lógica" das premissas: segue necessariamente).
Argumentação correta (sound)
Argumentação válida e fundada, ou seja, cujas premissas são verdadeiras.
Argumentação boa (good)
Argumentação correta, mas também psicologicamente plausível e convincente.
Ao contrário, usa-se o termo genérico "má argumentação" para falar de uma argumentação incorreta ou inválida, mas também para falar das falácias, um tipo particularmente perigoso de argumentações más, visto que parecem corretas. Vamos falar portanto de: Argumentação inválida
Argumentação na qual a conclusão ( que pode também casualmente ser verdadeira) não segue necessariamente das premissas.
Argumentação incorreta
Argumentação inválida ou com premissas falsas 2 •
Argumentação falaciosa
Argumentação que parece correta, mas não o é. Argumentação incorreta (inválida ou infundada), mas também psicologicamente plausível e convincente.
Fala-se de "passos" da argumentação, e isto recorda a linguagem comum, que fala metaforicamente de "cometer um passo falso". Um passo falso toma uma argumentação inválida ou incorreta. É muito importante distinguir o problema da validade do problema da verdade. Se as premissas são falsas, uma argumentação pode ter uma conclusão falsa e no entanto ser válida, como no exemplo (1). Ao mesmo tempo, uma argumentação não válida pode ter conclusões verdadeiras, como no exemplo (2):
2. Portanto, o termo "incorreto" (unsound) é amplo e inclui em si também os casos de não validade. Por isso, as falácias são muitas vezes definidas como argumentações que parecem corretas, mas não o são, o que abra ng e argumentos inválidos ou válidos mas infundados, ou seja , com ao menos uma premissa falsa. Deste modo uma argumentação correta será sempre fundada e uma in correta poderá se r ou invá lida ou infundada.
18 Parte I - Filosofia, lógica e lingüística
EXEMPLO (1)
EXEMPLO (2)
Os italianos são mafiosos Os milaneses são italianos Portanto: Os milaneses são mafiosos
os italianos são mafiosos os milaneses são mafiosos portanto: os milaneses são italianos
No caso (1), embora a conclusão seja factualmente falsa (basta um só milanês que não seja mafioso para tomar falsa a conclusão), a argumentação é válida, porque decorre logicamente das premissas. Se estas fossem verdadeiras, a conclusão seria também verdadeira. No caso (2), a conclusão é verdadeira, mas o raciocínio não se sustenta. Alguém poderia dizer: que importa? Se a conclusão é verdadeira, deveríamos ficar satisfeitos. Mas não é assim, porque devemos estar interessados não só na solução, mas no modo como se chega a ela. Por que interessar-se na prova ou na demonstração? Porque a demonstração nos dá a garantia de manter a verdade através do raciocínio. Se as premissas são verdadeiras, e se segue uma argumentação válida, então a conclusão será também verdadeira. Devemos portanto distinguir: • a busca da verdade de cada proposição; • a busca da validade dos argumentos. Contra as mentiras é necessário o primeiro trabalho: muitas vezes uma trabalhosa busca empírica de informações escondidas aos olhos da maioria. Contra as más argumentações é necessário explicitar os equívocos do discurso. Para rejeitar ou criticar uma argumentação faz-se mister compreender onde é que está o ponto fraco: se nas premissas ou na estrutura da argumentação.
1.2. Forma dos argumentos e falácias Desde Aristóteles se vem procurando distinguir argumentações válidas e inválidas identificando a suaforma. Por isso a lógica, desde a época de Aristóteles, é chamada de "lógica formal". Por exemplo, as argumentações (1) e (2) acima apresentadas têm duas formas diversas ou dois diferentes esquemas de inferência representáveis em diagramas: 1. Dar razões 19
(1) todos os A são B todos os C são A
(2) todos os A são B todos os C são B
todos os C são B
todos os C são A
A
B
B
e
Como se disse acima, ( 1) é um exemplo de raciocínio válido, ao passo que (2) não tem sustentação. Os diagramas mostram a diferença entre os dois esquemas de argumentação e fornecem a imediata evidência do que vale como conclusão e do que não vale: em nosso caso, o diagrama de Venn mostra em cinza as partes da classe que estão vazias. Pode-se portanto verificar se decorre necessariamente que uma classe esteja incluída ou não em outra (veja Bibliografia sobre o uso dos diagramas no fim do capítulo). Mas verificar com diagramas não basta. Como rejeitar argumentações incorretas? Em uma conversa, na maioria dos casos informal, não podemos usar diagramas. Uma das estratégias mais usadas é apresentar um contra-exemplo. Construir um contra-exemplo quer dizer (i) aplicar a mesma forma ou esquema de argumentação usado no exemplo que parece convincente; (ii) produzir com esta forma, a partir de premissas claramente verdadeiras, uma conclusão altamente implausível ou claramente falsa. Eis um contra-exemplo que mostra a incorreção do segundo tipo de argumentação:
20 Parte I - Filosofia, lógica e lingüística
CONTRA-EXEMPLO (2') os italianos são europeus os franceses são europeus
os italianos são franceses
Erros de argumentação se escondem também nas formas aparentemente mais inocentes e formalmente válidas. Vamos tomar outros dois exemplos de argumentos com a mesma forma lógica (do tipo: p ou q, nãop-q): EXEMPLO (3) ou Pippo tem a carteira de motorista ou então não pode dirigir na estrada Pippo não tem a carteira de motorista
não pode dirigir na estrada EXEMPLO (4)
ou se corta o estado social ou então a economia vai à falência não se corta o estado social a economia vai à falência
O exemplo (3) está correto (é válido e fundado), porque a primeira premissa é certamente verdadeira, dado que as duas proposições são mutuamente excludentes (se uma é verdadeira, a outra é falsa e vice-versa). Também o exemplo (4) é válido (se a primeira premissa fosse verdadeira, a conclusão seria verdadeira), mas está incorreto, neste caso infundado. Este é o que se costuma definir como um "falso dilema". Com efeito, não se diz que a primeira premissa de ( 4) seja verdadeira, dado que as duas proposições não são mutuamente excludentes. Existem diversas alternativas possíveis a p que excluem a verificação de q: por exemplo, também aumentar os impostos ou cortar outros setores de despesa pode permitir que a economia se mantenha de pé. Muitos discursos de políticos ou de vendedores publicitários usam um esquema de racio1. Dar razões 21
cínio desse tipo, que parece fundado por esconder as alternativas. O típico slogan do vendedor: "Compre o produto SUPER-X ou então se contente com produtos inferiores; você quer contentar-se com produtos inferiores? Claro que não! Portanto, compre o produto SUPER-X!" Nem sempre é fácil compreender se um discurso é consistente ou não. As coisas ficam difíceis quando um raciocínio sem consistência parece bem construído. É o caso de (2) e ( 4), exemplos de argumentação falaciosa. Muitas definições de "falácia" têm em comum a idéia segundo a qual (i) são argumentações inválidas ou incorretas, mas (ii) parecem argumentações válidas ou corretas. Ao menos a partir de Aristóteles foi desenvolvida uma ampla investigação para identificar os raciocínios falaciosos e pôr em evidência as suas formas mais comuns. Os retores e os sofistas eram sumamente hábeis em usar argumentos que pareciam cogentes, mas se baseavam em falácias. Uma pessoa pode ser ao mesmo tempo persuasiva e falsa, mas também persuasiva e incorreta no raciocínio (para uma lista de falácias, cf. o Quadro 1). Pode-se resumir assim o que se disse até aqui: • a falsidade (ou falta de :fundamento) daquilo que se diz pode ser desmascarada com a evidência de provas e dados empíricos ou também de hipóteses não contempladas; • a incorreção da argumentação pode ser desmascarada por contraexemplos, ou mostrando qual o elo fraco da cadeia de inferências. O estudo das falácias, ou ao menos a acribia da argumentação, deveria fazer parte do arsenal de qualquer filósofo. Mas faz sentido, de maneira particular, chamar a atenção para esses temas em uma introdução à filosofia da linguagem. Com efeito, é certamente mérito deste setor da filosofia ter afinado a atenção para os equívocos aos quais as ambigüidades da linguagem induzem os falantes pouco cuidadosos.
1.3. Lógica, argumentação e análise da linguagem O ponto de partida para uma nova atenção aos equívocos da linguagem comum se encontra em Gottlob Frege que - como Aristóteles - vê 22 Parte I - Filosofia, lógica e lingüística
na lógica um instrumento útil para esclarecer confusões conceituais. Assim como o microscópio permite estudar aspectos do mundo que não se podem ver a olho nu, da mesma forma uma "ideografia" (um formalismo lógico) pode prestar bons serviços no estudo de aspectos da linguagem que não se podem perceber com a língua falada. O projeto de Frege se realizou, mas apenas em parte. Quer dizer, "em parte", porque outras idéias suas falharam, em particular sua idéia de fundar a matemática sobre a lógica tomando por base sua linguagem ideográfica. O fracasso parcial de sua empreitada teórica não diminui, porém, o resultado de seu trabalho. Alguns até compararam Frege a Cristóvão Colombo que, navegando em busca das Índias, falhou no intento mas descobriu a América. Tentando dar um fundamento lógico à matemática, Frege não obteve sucesso, mas descobriu todo um continente intelectual: a nova lógica e os problemas da filosofia da linguagem. Os filósofos que vieram depois dele, a partir de Russell, Wittgenstein e Carnap, usaram a lógica como instrumento de trabalho. Surgiram diversos projetos de esclarecimento da linguagem científica e da linguagem comum que usaram e ainda usam o microscópio da lógica matemática tal como sugeria Frege. Diversas ambigüidades da linguagem e vários problemas foram esclarecidos. Muitas vezes também se exagerou, pensando que bastaria traduzir um problema em fórmulas lógicas para resolvê-lo. A tradução pode ajudar, não porém substituir a análise filosófica. E diversos filósofos, embora conhecendo a lógica, preferiram enfrentar o estudo da linguagem dedicando-se a uma análise meticulosa dos usos lingüísticos do discurso comum. Também nesses casos o confronto com a formalização (tradução em forma lógica) é útil, nem que seja apenas para mostrar até que ponto a linguagem comum escapa a uma definição rigorosa, e até que ponto as ambigüidades e imprecisões da linguagem têm um objetivo e uma eficácia comunicativa. Distinguem-se, tradicionalmente, duas correntes de pensamento na filosofia da linguagem: • os filósofos das linguagens formais que tentam, mediante a formalização, reconstruir as linguagens científicas (a lógica da física quântica é um dos exemplos mais fascinantes) ou tentam formalizar a própria linguagem comum. Encontramos aqui, por exemplo, as figu1. Dar razões 23
ras de Russell, o Wittgenstein do Tractatus, Camap, Reichenbach, Montague; • os :filósofos da linguagem ordinária que procuram, através da análise dos usos correntes, mostrar a riqueza e a variedade da linguagem, mas também mostrar como alguns problemas típicos da :filosofia podem ter origem em mal-entendidos lingüísticos. Aqui encontramos, por exemplo, o segundo Wittgenstein, Austin, Ryle, Strawson. A contraposição era muito viva na primeira metade do século XX, e aos poucos se foi atenuando. Autores mais recentes como Brandon, Davidson, Dummett, Fodor, Grice, Kripke, Putnam e Quine não são enquadráveis nesses termos. Mas alguma coisa da antiga contraposição continua viva na batalha que, na década de 1950, Strawson chamava de ''batalha homérica", um confronto entre duas facções opostas: 1. a facção que privilegia o estudo do sentido "objetivo" dos enunciados, determinado pela sua estrutura lógica: esta atitude constitui o "paradigma dominante" da filosofia da linguagem que define o sentido de um enunciado como condições de verdade (cf. 4.5 e 6.1); 2. a facção que privilegia o estudo das intenções do falante como o inevitável ponto de partida para definir o sentido das expressões lingüísticas, preferindo a pragmática à semântica (para esta distinção, cf. 3.1 ). Para compreender esta contraposição, é necessário antes de tudo compreender o papel desempenhado pela lógica na determinação dos problemas da análise da linguagem e o papel que assumiu na cultura contemporânea. A relação entre a linguagem e a lógica será o tema do próximo capítulo.
Bibliografia essencial BRANQUINHO, João; MURCHO, Desidério & GONÇALVES GOMES, Nelson (orgs.). Enciclopédia de Termos Lógico-Filosóficos. São Paulo: Martins Fontes, 2006. DOWNES, Stephen. Guia das falácias. ln: Crítica [www.criticanarede.com]. MARCONDES, Danilo. Filosofia analítica. Rio de Janeiro: Zahar, 2004. WESTON, Anthony. A arte de argumentar. Lisboa: Gradiva, 1996. 24 Parte I - Filosofia, lógica e lingüística
1- Falácias Definição de falácia: argumento que parece válido ou correto, mas não o é. Exemplos de falácias informais e formais (as últimas três): • A petitio principii é uma das falácias mais conhecidas ( e usadas). Esta falácia consiste em dar por demonstrada ou assumir entre as premissas (explícitas ou implícitas) a conclusão que se quer demonstrar. Dá origem aos argumentos circulares. EXEMPLO: Deus existe porque a Bíblia o diz. Como é que você sabe que é verdadeiro tudo o que a Bíblia diz? (Porque) a Bíblia é a Palavra de Deus (esta última afirmação pressupõe a existência de Deus, que é justamente o que se quer demonstrar). • A ignoratio e/enchi: usar premissas que não têm nada a ver com a conclusão. EXEMPLO: Este crime de que Pio é acusado é horrível; portanto Pio deve ser condenado. • A ambigüidade de composição: toma-se a parte pelo todo, ou os membros pela classe. EXEMPLO: Os cães são comuns; os husky são cães; os husky são comuns. Aqui se entende mal a segunda premissa, e o raciocínio só vai funcionar se todos os husky forem todos os cães; mas os husky são apenas uma parte dos cães. • A ambigüidade de divisão: algo verdadeiro acerca do todo se considera verdadeiro para a parte. EXEMPLO: Os homens são numerosos. Sócrates é um homem. Sócrates é numeroso. A partir de Frege podemos ver estas falácias como relacionadas também com a confusão de predicados de primeiro nível ( que se aplicam aos indivíduos singulares) e predicados de segundo nível (que se aplicam às classes), " ...é um homem" se predica de indivíduos, e " ... é numeroso" se predica de classes. Evita-se e corrige-se a falácia quando se explicita a diferença, dizendo por exemplo "O conjunto dos homens é numeroso; Sócrates é um homem; Sócrates pertence a um conjunto numeroso". • A afirmação do conseqüente (sep então q, mas q portanto p) é uma falácia chamada tradicionalmente "formal" por violar uma regra formal de dedução, o Modus ponens (se p então q, mas p portanto q). A regra do MP garante a verdade da conclusão a partir da verdade das premissas. A afirmação do conseqüente não a garante. EXEMPLO: Se chove, então faz frio; faz frio, portanto chove.
• A negação do antecedente ( se p então q, não p, portanto não q) é outra fàlácia formal, que viola a regra de dedução doModus tollens (se p então q, não q, portanto não p). O mesmo discurso para a fàlácia precedente (não garante a verdade da conclusão). EXEMPLO: Se chove, então faz frio; não chove, portanto não faz frio.
• O quarto incômodo (ou mais oficialmente quaternio tenninorum) dito de um silogismo (raciocínio com três termos) que parece funcionar mas usa um mesmo termo com dois sentidos diferentes, portanto usa de fato quatro termos ( aqui: a ambigüidade do termo "procurado"). EXEMPLO: As coisas procuradas são caras; os criminosos são procurados; os cnminosos são caros.
1. Dar razões 25
2
Linguagem e lógica
SUMÁRIO
Em 2.1 se apresenta um breve quadro histórico das relações entre a lógica e o desenvolvimento da ciência moderna, detendo-se na figura de Leibniz, cujas idéias em lógica foram desenvolvidas por Boole e por Frege. Em 2.2 se introduz o aspecto mais técnico da revolução lógica de Frege, a saber sua analogia entre conceitos e funções matemáticas e a sua invenção dos quantificadores. Ao fazê-lo, Frege enfatiza a distinção entre o nível da expressão e o nível do conteúdo; isto ajuda, em 2.3, a introduzir algumas distinções filosóficas elementares pressupostas na seqüência do texto. Em 2.4 se mostra como a invenção dos quantificadores permitiu a Frege unificar a lógica das proposições (de origem estóica) e a lógica dos termos, aristotélica, que há mais de dois mil anos iam se desenvolvendo paralelamente (Boole incluído; cf. Quadro 3). Em 2.5 se mostra, finalmente, como a solução fregeana leva à distinção entre forma gramatical e forma lógica, distinção central para o desenvolvimento da análise da linguagem (e retomada no capítulo 6).
2.1. Leibniz e Frege: língua e cálculo Durante mais de dois mil anos, desde o começo da reflexão aristotélica, os filósofos serviram-se da lógica como um instrumento contra as argumentações incorretas ou falaciosas. Durante mais de dois mil anos, a lógica serviu de propedêutica para o estudo das várias partes da filosofia (física, ética, metafisica). A importância atribuída aos novos métodos matemáticos ( álgebra e análise) e ao método experimental tiveram grande impacto sobre a imagem do mundo dos filósofos, mas foi necessário algum tempo até que a lógica tradicional aceitasse o novo espírito científico. Quando Galileu Galilei foi condenado pelos doutores da Igreja por ter 26 Parte I - Filosofia, lógica e lingüística
afirmado que a terra se move, vários estudiosos daquela época usavam a lógica silogística para demonstrar que a terra é o centro do universo. Desde o começo do século XVI até o fim do XVII, efetua-se uma ruptura com a tradição da lógica escolástica por parte dos filósofos em contato íntimo com a ciência, como por exemplo Descartes e Locke. Descartes traz contribuições :fundamentais para a formulação da geometria analítica e Locke se apresenta como um estudioso das novas concepções da física moderna. Ambos são os promotores de um novo método de conhecimento, que não se baseia sobre estéreis silogismos, mas nasce de um estudo das idéias e da visão mecanicista do mundo. Na visão de Descartes, o verdadeiro método se baseia sobre a busca de idéias claras e distintas a partir da reflexão e da dúvida metódica. Quanto a Locke, o problema filosófico central é mostrar como nascem e se desenvolvem as idéias a partir da experiência. A busca do método para a correta representação do mundo passa a ser o centro da reflexão filosófica. A epistemologia (teoria do conhecimento) substitui a lógica e a ontologia como centro e base da filosofia. A lógica e a ontologia tradicionais são postas em dúvida pelos filósofos influenciados por Descartes e por Locke. Essa desconfiança em face da lógica tradicional não vale, porém, para uma figura central na situação política e científica da Europa Continental: Gottfried Wilhelm Leibniz (1646-1716). Leibniz, por um lado, continua trabalhando nos :fundamentos da lógica aristotélica e, pelo outro, desenvolve um filão de pensamento dos séculos XVI e XVII, marginal diante dos desenvolvimentos das ciências experimentais, a arte da memória, a arte combinatória (Lullo) e a busca de uma língua e de uma gramática universais. Em uma época recente, Chomsky irá referir-se a esta corrente com o nome de "lingüística cartesiana", ou seja, aquela postura que afirma existir uma gramática universal inata. A contribuição :fundamental de Leibniz é a integração de língua universal e cálculo combinatório (arte da memória), integração que se deve realizar com os instrumentos da álgebra e da simbolização lógica. Temos aqui, in nuce, a visão da atual lógica matemática.
2. Linguagem e lógica 27
Mas Leibniz estava bem à frente do seu tempo, e suas idéias iriam ser desenvolvidas mais de duzentos anos após, por George Boole ( 1815-1864) e por Gottlob Frege (1848-1925). Pelo final do século XIX, Frege propôs de novo, explicitamente, o projeto leibniziano em seu conjunto. Frege conhecia tanto os trabalhos de Boole e da escola booleana como aqueles de seu contemporâneo Giuseppe Peano (1858-1932), matemático italiano, inventor de uma linguagem formal para representar a matemática. Frege criticava os dois. Criticava a álgebra de Boole que fornecia as regras de um cálculo formal, sem oferecer uma língua universal. Um mesmo símbolo, por exemplo o "x", podia ser interpretado ora como símbolo da multiplicação de números ora como símbolo da intersecção entre classes, ora como símbolo da conjunção entre proposições (cf. Quadro 3). Mas como encontrar uma linguagem na qual se possa falar da matemática, se os próprios símbolos são usados com diferentes sentidos? Era necessário ter uma língua como aquela de Peano. Mas Frege criticava também Peano por ter fornecido uma língua universal para a matemática sem dar ao mesmo tempo um cálculo lógico. Frege queria propor novamente o projeto leibniziano originário, a saber um conjunto constituído por uma língua e por um cálculo. Poderíamos sintetizar o projeto de Frege, inspirado por Leibniz, de acordo com o seguinte esquema. Um sistema formal deve conter tanto uma linguagem como um cálculo assim constituídos:
28 Parte I - Filosofia, lógica e lingüística
LINGUAGEM
CÁLCULO
(ou vocabulário): dá os elementos básicos para formar enunciados. Ex.: Símbolos proposicionais: p, q, r ... Conectivos: -, A ~
Enunciados escolhidos como pontos de partida do sistema. Ex.: p~(q~p) (p~(q~r)) ~((p~q)~(p~r))
ALFABETO
REGRAS DE FORMAÇÃO:
Regras recursivas 3 que constroem, a partir do vocabulário, infinitos enunciados construídos com os conectivos, como por exemplo: -,p,pAq, pvq,p~q
AXIOMAS:
REGRAS DE TRANSFORMAÇÃO OU DERIVAÇÃO:
Regras que permitem passar dos axiomas a outros enunciados chamados teoremas. Ex.: P~Q, P f-Q p V Q,-, p f- Q TEOREMAS:
Ex.: (r~p)~(p~q)~(r~q)) (r~p)~(r~q)~(r~pvq))
2.2. Uma teoria do conceito: o conceito como função Deixando para um estudo sobre textos de lógica a análise dos sistemas formais, vamos aludir aqui ao papel de Frege na história da lógica. A história da lógica ocidental foi marcada pela ruptura entre dois estilos e dois sistemas: por um lado a lógica aristotélica dos termos e, pelo outro, a lógica estóica dos enunciados ( ou das proposições). A contraposição se estendeu por mais de dois mil anos, com algumas tentativas de unificação jamais plenamente bem-sucedidas, até a síntese efetuada por
3. Regras e definições r ecursivas têm um papel importante em lógica ( e nas disciplinas formais como a aritmética, a teoria dos conj untos, a informática) . As definições r ec ursivas defi nem conjuntos de objetos (por exemp lo, números ou fórmulas de uma linguagem) a partir de (i) alguns e lementos de base ( o ze ro, um conjunto de letras proposicionais) e (ii) a partir das regras ou operações tais que, aplicadas um número finito de vezes aos elementos básicos, produzem sempre e lem entos do conjunto definido. Em nosso caso iríamos te r: (i) base: p, q, r são fórmulas da linguagem; (ii) passo: se P e Q são fórmulas da linguagem, então, P, (PAQ), (PvQ), (P~Q) são fórmulas da lingu agem . O passo pode ser repetido (justamente, recursivamente) aplicando-o às fórmulas que se acabou de construir. Por exemplo: se (PAQ) e (PvQ) são fórmulas, então é uma fórmula também (PAQ) ~ (Pv Q).
2. Linguagem e lógica 29
Frege. Um aspecto central do contraste entre as duas escolas ( cf. Quadro 2) é o seguinte: • Os aristotélicos estavam interessados nas relações entre os termos das premissas e as conclusões de um raciocínio. O raciocínio era tipicamente enquadrado na forma transmitida por Aristóteles como "silogismo" ( do tipo "todos os homens são mortais; todos os gregos são homens; portanto todos os gregos são mortais"). • Os estóicos consideravam central para a lógica a relação condicional "se... então", que pode valer entre proposições de qualquer tipo. Para os estóicos, portanto, as premissas silogísticas deveriam ser lidas não como enunciados simples, mas como enunciados complexos, na forma condicional "se alguma coisa é um homem, então é mortal".
A grande virada lógica do século XX é a síntese dessas duas tradições. A chave para esta síntese é a invenção dos quantificadores, ou seja, uma notação matemática para a generalidade ( expressões como "todos" e "alguns"). Antes de passar a este ponto central do trabalho de Frege (cf. 2.4), devemos esclarecer qual o pano de fundo teórico que o precede: a generalização do conceito matemático de função e a teoria do conceito que dele se origina. Uma função matemática
y = f(x) é tipicamente uma correspondência (j) entre dois conjuntos de números, os argumentos (x) e os valores (y). Se por exemplo f representa "+ 1", para cada número x teremos como valor o sucessor de x. E, tal como já havia compreendido Descartes, a uma função pode ser associado um gráfico ou uma figura geométrica (neste caso uma reta). Frege, em busca do ideal leibniziano de um cálculo universal dos símbolos, generaliza o conceito de função. Ele aceita como argumentos e valores não somente números, mas qualquer tipo de objeto. Podemos por exemplo escrever Homem(x) como modo de representar o conceito Homem, ou como abreviação de "x é um homem" ( onde por "homem" se entende uma pessoa adulta do 30 Parte I - Filosofia, lógica e lingüística
sexo masculino). Toda vez que substituímos x por um nome de homem, a expressão assume como valor a verdade. Se substituímos o x por um nome de mulher, teremos como valor a falsidade. Mas o que significa ter como valor a verdade ou a falsidade? Quer dizer que temos uma proposição verdadeira ou falsa: "Sócrates é um homem", "César é um homem" são proposições verdadeiras, ao passo que "Xantipa é um homem" e "Cleópatra é um homem" são proposições falsas. Um conceito é portanto análogo a uma função que tem como valor a verdade se por argumentos tem objetos que caem sob o conceito (os membros da classe denotada pelo conceito) e como valor a falsidade no caso contrário4. Assim se explica a definição fregeana de conceito (que corresponde àquela que Russell vai denominar "função proposicional"):
O conceito é uma função que tem como valores valores de verdade. Essa definição vale para todo tipo de conceito, ou seja, quer para as propriedades quer para as relações. Neste último caso haverá diversas variáveis em vez de uma. Teremos assim: • expressões para propriedades como Homem (x), Bom (x), Corre (x), Pares (x), Ímpares (x); • expressões para relações binárias como Maior do que (x,y), Menor do que (x,y), Ama (x,y), Mata (x,y); • expressões para relações ternárias como Ciumento (x,y,z), Soma de (x,y,z), e assim por diante. De modo análogo ao caso das propriedades, "Ama (x,y)" é a relação que dá lugar a uma proposição verdadeira se substituímos os x e os y pelos nomes, respectivamente, de amante e de amado, e assim por diante. As expressões para propriedades e para relações recebem hoje habitualmente o nome de "predicados a n lugares". Deve-se observar assim que
4. Entre as div ersas funções inventadas pelos matemáticos temos a função característíca, pela qual se um número pertence a um certo conjunto o valor é 1, e se não lhe pertence o valor é O. Frege conhece esse tipo de funções e trabalha em cima desta idéia.
2. Linguagem e lógica 31
não existe diferença formal entre propriedades e relações, uma vez que os conceitos (propriedades e relações) são vistos, todos os dois, emanalogia com as funções. A diferença é o número de argumentos que devem ser saturados. Frege não apenas generaliza o conceito de função, mas faz uma crítica aos matemáticos de sua época, em particular no que tange à confusão entre signo e designado, isto é, entre expressão e conteúdo. Limitando-nos ao caso dos conceitos, podemos dizer: • os conceitos são em geral denotados por predicados, expressões lingüísticas "não saturadas", de tal modo que têm sempre um ou mais lugares de argumento dados com letras variáveis ( as funções matemáticas serão denotadas por functores); • os argumentos, que podem ser quaisquer objetos, serão denotados por termos singulares, isto é, expressões da linguagem que se referem a um objeto individual isolado. Os termos singulares destinam-se a encher ( ou a "saturar") lugares de argumento dos predicados. A metáfora de "entidades saturadas" e "entidades não saturadas", desenvolvida em analogia com a linguagem da química, ajudou Frege a definir com maior clareza a estrutura da sua linguagem formal. Talvez tenha influenciado a seguir também a invenção do termo "atomismo lógico" para um tipo de :filosofia inspirada em suas obras (cf. 5.6). O resultado dessa virada lingüística é notável para a história da lógica. Frege abandona a centralidade da análise feita em termos de sujeito/predicado, que caracteriza a lógica aristotélica; em seu lugar introduz a distinção entre argumento e função, ou seja, entre objeto e conceito. Pode-se resumir deste modo a distinção base da lógica e da ontologia de Frege, tanto em nível de expressão como em nível de conteúdo. EXPRESSÃO
termo singular (nome próprio)
CONTEÚDO
denota
termo conceitual (predicado)
32 Parte I - Filosofia, lógica e lingüística
objeto conceito (propriedades e relações)
2.3. Intermezzo: distinções filosóficas Ao insistir sobre a distinção entre expressão e conteúdo, Frege se insere na tradição filosófica que procura distinguir sempre os níveis de análise. Ele distingue então a análise lingüística da análise ontológica e da análise epistemológica. O problema não se refere apenas à distinção entre tipos de objetos, mas entre tipos de análises. Frege tem atrás de si Immanuel Kant (1724-1804) e acompanha as suas preocupações principais, como a distinção entre a priori e a posteriori, entre analítico e sintético, entre necessário e contingente, embora apresentando respostas diferentes de Kant. Convém, portanto, antes de prosseguir em nosso discurso, deter-nos brevemente para esclarecer três tipos diferentes de perguntas filosóficas:
• pergunta semântica: que tipo de verdade têm os enunciados? • pergunta epistemológica: como conhecemos a verdade deles? • pergunta ontológica: que tipo de realidade corresponde a eles?
A essas perguntas correspondem diversas respostas e diversas distinções teóricas. Demos alguns exemplos:
• Semântica: distinção entre analítico e sintético. A verdade dos enunciados analíticos é dada pelo significado dos termos, e a verdade dos enunciados sintéticos pressupõe uma certa intuição extralingüística. Poder-se-ia dizer que o analítico se refere àquilo que é definido pelo dicionário e o sintético àquilo que é definido pela enciclopédia. • Epistemologia: distinção entre a priori e a posteriori. Diz-se que um enunciado é a priori se a sua verdade é conhecida antes de qualquer experiência, ao passo que se diz a posteriori se exige um processo cognoscitivo empírico de algum tipo, ao término do qual se reconhece a sua verdade (ou falsidade). • Ontologia e metafisica: distinção entre necessário e contingente. Um enunciado é necessário se fala daquilo que não pode ser senão assim; é, portanto, verdadeiro necessariamente se vale em quaisquer 2. Linguagem e lógica 33
condições. É contingente se fala daquilo que poderia ser de outra maneira, ou seja, se é verdadeiro somente em alguns casos ou,justamente, por acaso. Portanto, o reino da lógica é, para Frege e para muitos filósofos, o reino do analítico, do a priori e do necessário. Visto não considerar logicamente importante a distinção sujeito/predicado, Frege deve reformular a definição kantiana de "analítico" ("enunciado no qual o predicado está contido no sujeito"). Para Frege, "analítico" vem a ser aquilo que depende do significado das palavras e decorre segundo regras das verdades lógicas (cf. também 13,1). As relações entre esses níveis de discurso são aliás sobremodo complexas. Para Kant, por exemplo, os enunciados da matemática são sintéticos a priori: sintéticos porque pressupõem a intuição do espaço (para a geometria) e do tempo (para a aritmética); a priori porque a sua verdade é conhecida antes de qualquer experiência. Contra essa idéia Frege assevera que somente a geometria é sintética a priori, mas toda intuição deve ser posta fora da aritmética e a aritmética é, além de a priori, também analítica, enquanto baseada apenas sobre a lógica, portanto somente sobre o significado das expressões. Para os neopositivistas, as verdades analíticas, a priori e necessárias, são tais somente por convenção lingüística ( cf. 6.3 e 6.6). Seriam possíveis outras combinações, como a idéia de verdades necessárias a posteriori e verdades contingentes a priori (cf. 15.2).
2.4. A forma lógica dos enunciados de generalidade V, :3 Vamos retomar o fio do discurso que empreendemos no início de 2.2 e procurar mostrar de que modo Frege unificou as duas tradições da lógica, a estóica e a aristotélica. Dizíamos que a chave é a invenção de um formalismo para as expressões de generalidade. A solução é estender a notação funcional também para termos como "todos" e "alguns". Discute o problema de saber qual seria a forma lógica dos enunciados quantificados e chega às mesmas conclusões dos estóicos. Os enunciados típi-
34 Parte I - Filosofia, lógica e lingüística
cos do silogismo são em geral expressos por uma proposição simples do tipo "todos os A são B"; mas as relações entre os conceitos se tomam mais explícitas usando uma proposição composta com o condicional "se alguma coisa é um A, então ela é um B". Frege, no entanto, observa que "se nos limitássemos apenas a 'alguma coisa' e 'ela', poderíamos tratar somente casos muito simples. Sugere, portanto, que se adote o costume matemático de usar letras variáveis (Escritos póstumos, p. 405). Frege traduz por conseguinte a expressão ''todos" e "alguns" de modo a explicitar com uma variável a possibilidade de referir-se a quaisquer indivíduos: 'ifx Px = para todos os x, x tem a propriedade P
3x Px = para alguns x, x tem a propriedade P Os símbolos V e :3 são chamados, respectivamente, "quantificador universal" e "quantificador existencial". O quantificador liga ou vincula as variáveis ( daqui em diante, sempre que não dê margem a ambigüidade, deixamos os parêntesis depois do sinal do predicado). Este modo de escrever diz respeito quer à propriedade quer à relação que, como vimos em 2.2, podem ser expressas como predicados com um ou mais lugares vazios, em analogia com a notação funcional. Aqui nos limitamos, para simplificar, ao caso dos predicados com um lugar. O passo fundamental para traduzir a lógica aristotélica é transformar proposições do tipo: ''todos os homens são mortais" em Vx (Homem x
~
Mortal x)
que se lê: "para todos os x, se x é um homem, então x é mortal". O silogismo aristotélico é, então, lido à maneira estóica, tendo além disso a explícita referência a uma variável vinculada pelo quantificador: Vx (Homem x ~ Mortal x) Vx (Grego x ~ Homem x) Vx (Grego x
~
Mortal x)
2. Linguagem e lógica 35
Frege realiza deste modo uma nova forma de lógica, o cálculo dos predicados, que contém a silogística aristotélica como uma subparte sua (limitada aos predicados monádicos e a certas relações inferenciais standard). Por isso, o final da introdução do seu primeiro livro de lógica, a Ideografia de 1879, mostra como a sua lógica consegue com facilidade exprimir o quadrado aristotélico das oposições (cf. Quadro 4). Pela distinção axiomas/regras, pela construção da lógica matemática e pela invenção dos quantificadores, Frege merece um lugar de destaque na história da lógica e da matemática. Além de explicitar distinções e demonstrações matemáticas que não se poderiam exprimir com o silogismo, a notação dos quantificadores permite: • tornar operacional a formulação que os lógicos estóicos davam das fórmulas silogísticas, unificando em um único formalismo a lógica dos termos e a lógica das proposições, que haviam ficado separadas também em Boole; • abrir novos caminhos para a abordagem lógica da linguagem matemática e oferecer ao mesmo tempo um poderoso instrumento de análise da linguagem natural. Depois de cerca de dois mil anos de história da lógica, a unificação efetuada por Frege desmente com os fatos a tese sustentada por Kant, na Crítica da razão pura, segundo a qual nada de novo se poderia realizar em lógica formal depois de Aristóteles.
2.5. Quantificadores, forma gramatical, forma lógica (*)* O uso dos quantificadores permite exprimir distinções que ajudam a esclarecer ambigüidades da linguagem comum, em particular as frases que contêm mais de um símbolo de generalidade. Um exemplo simples é "existe um número maior do que cada número", que se pode ler (supondo que x e y variem somente sobre números naturais) como:
* O símbolo(*) indica os parágrafos mais difíceis, que podem ser pulados em uma primeira leitura.
36 Parte I - Filosofia, lógica e lingüística
(1) Vx :3y (y >x)
(2) :3y Vx (y >x)
Obviamente, (1) é a leitura correta, pois dado um número qualquer, sempre existe um maior que ele. Ao contrário, (2) é evidentemente falsa, pois afirma que existe um número natural que é maior do que todos os outros. Um outro exemplo de ambigilidade produzida por generalidade múltipla ( exemplos desse tipo eram verdadeiros quebra-cabeças para os lógicos medievais) é o seguinte: "todos os garotos amam uma garota" que tem um significado ambíguo entre: (1) cada garoto tem uma garota que ama (2) uma garota é amada por todos os garotos A ordem dos quantificadores resolve esta ambigüidade: (1) Vx [(Garoto x
(2) :3y [(Garota y
~ J\
:3y (Garota y
Vx (Garoto x
~
~
Ama x,y)]
Ama x,y)]
A diferença é questão de âmbito ou campo de ação (objetivo) do quantificador: o operador que precede tem no seu raio de ação aquele que segue. Em (1) o quantificador existencial entra no raio de ação do quantificador universal, por conseguinte cada garoto vai encontrar a sua própria garota. Em (2) vale o contrário, por conseguinte todos os garotos voltarão sua atenção para aquela única ( ou ao menos uma) garota identificada pelo operador existencial. Frege insiste assim que se deve distinguir nitidamente entre: • forma gramatical (a forma sujeito-predicado); • e forma lógica: (a forma função-argumento). Trata-se de um desafio importante, inclusive pensando que a distinção sujeito/predicado ocupava um lugar central na lógica e na ontologia da lógica tradicional aristotélica. A distinção entre forma gramatical e forma lógica irá se desenvolver de diversas maneiras na filosofia da lin2. Linguagem e lógica 37
guagem e na lingüística. Essa distinção (inclusive o conceito de âmbito ou raio de ação do quantificador) será muito importante para a teoria das descrições de Russell, considerada por Ramsey e pelo primeiro Wittgenstein um paradigma de filosofia (cf. 5.3). Em lingüística, o primeiro Chomsky irá falar da distinção entre estrutura superficial e estrutura profunda de uma frase, distinção que tem uma certa analogia com a nossa distinção (cf. 3.3). Frege tinha em mente desenvolver a lógica como instrumento para analisar as linguagens científicas e também a linguagem natural. Hoje nem se pode pensar em estudar línguas naturais e teorias científicas sem o auxílio de um formalismo lógico-matemático. As linguagens de programação se tornaram um instrumento indispensável não só para a análise, mas também para a reprodução de certas funções das línguas naturais. Passou-se pouco mais de um século desde as primeiras reflexões de Frege e com a lógica surgiram também outros formalismos e outras tentativas de dar uma representação da linguagem, por parte da lingüística e da semiótica. Esses setores de pesquisa também tiveram, nos últimos anos, uma notável influência sobre a filosofia da linguagem, e convém ter ao menos uma idéia da sua origem e das teses principais. A este tópico se dedica o terceiro capítulo.
Bibliografia essencial FREGE, Gottlob. Lógica e filosofia da lingu.agem. São Paulo: Cultrix/Edusp, 1978 [Trad. de Paulo Alcoforado]. KNEALE, W. & KNEALE, M. O desenvolvimento da lógica. Lisboa: Gulbenkian, 1974. MURCHO, Desidério. O lugar da lógica nafilosofia. Lisboa: Plátano, 2003. NEWTON-SMITH, W.H. Lógica. Lisboa: Gradiva, 1998. PRIEST, Graham. Lógica. Lisboa: Temas e Debates, 2002. TIJGENDHAT, Ernst & WOLF, Ursula. Propedêutica lógico-semântica. Petrópolis: Vozes, 1997.
38 Parte I - Filosofia, lógica e lingüística
2 - Lógica estóica e lógica aristotélica A lógica estóica se ocupava sobretudo com as relações entre proposições, consideradas como entidades autônomas e indivisíveis, que representam fatos. Os estóicos estudaram assim aqueles que hoje denominamos os conectivos lógicos, as palavras que servem para conectar enunciados ou proposições - em particular o condicional "se ... então" . Indicamos aqui, a seguir, um modo habitual de simbolizar alguns conectivos lógicos que se podem encontrar habitualmente nos textos de filosofia:
-, = não
(negação) e .............. (conjunção) v = ou ............. (disjunção) ~ = se ... então .... ( condicional) f-> = se e somente se (bicondicional) A=
Os estóicos definiram as regras que governam o raciocínio proposicional - os assim chamados "indemonstráveis". Registramos a seguir as primeiras duas regras. A vírgula separa a primeira da segunda premissa; o sinal f- indica a dedução ou o "portanto" que assinala a passagem das premissas à conclusão:
p ~ q, p f- q (Modus ponens) p~q, -, q f- -, p (Modus tollens) A lógica aristotélica se ocupava principalmente com as relações entre os termos. Na base do seu trabalho se acha a definição de predicação: uma coisa se predica de alguma outra coisa quando dois termos se podem unir entre si com a cópula ("é"). Por exemplo, "homem" e "mortal". Além disso, identifica como característico do raciocínio o uso de enunciados afirmativos ou negativos, quer sejam universais (todos os prazer es são bons, nenhum prazer é um bem) ou particulares (alguns prazeres são bons, alguns prazeres não são bons). Tendo por base essas idéias, Aristóteles desenvolveu a teoria do silogismo. "Silogismo" é sinônimo de "raciocínio"; o silogismo típico é constituído por três termos distribuídos em duas premissas e na conclusão. Nas duas premissas existe um termo em comum (termo médio). A conclusão estabelece uma relação entre os outros dois termos contidos nas premissas, como no clássico exemplo (onde o termo médio é "homem"): todos os homens são mortais, todos os gregos são homens f- todos os gregos são mortais. São conhecidas 256 formas possíveis de silogismos, dos quais somente 15 são corretas, ou seja, capazes de garantir a verdade da conclusão a partir da verdade das premissas. Deste modo se fornece um critério para decidir, dado um silogismo, se é correto ou incorreto. O estudo do silogismo - que tem hoj e um certo desenvolvimento graças também aos trabalhos de psicologia do raciocínio - atingiu na Idade Média uma sistematização original e de fácil memorização. As relações entre os quatro tipos de enunciados discutidos por Aristóteles foram sistematizadas no "quadrado das oposições" (A: todos os prazeres são bons; E: nenhum prazer é bom; I: alguns prazeres são bons; O: alguns prazeres não são bons). Sobre o quadrado e sobre o modo como é proposto de novo no âmbito da lógica de Frege, cf. o Quadro 4.
2. Linguagem e lógica 39
3
Semiótica e lingüística
SUMÁRIO
Neste capítulo se apresentam algumas idéias dos "fundadores" da semiótica e da lingüística contemporâneas. Em 3.1 se apresenta a divisão de tipos de signos feita por Peirce e a classificação standard dos três níveis da semiótica (sintaxe, semântica, pragmática). Lembram-se então as duas grandes direções teóricas existentes na lingüística do século XX: o estruturalismo e a gramática gerativa. Em 3 .2 se recordam as linhas de fundo da lingüística estruturalista criada por Ferdinand de Saussure, e se alude aos problemas relacionados com a representação do léxico. Em 3.3 se apresenta a primeira versão da gramática gerativa de Noam Chomsky, mostrando como ela recorda a elaboração tradicional do conceito de sistema formal em lógica. Apresenta-se um confronto entre as duas diferentes impostações da lingüística estruturalista e da semântica gerativa. Se Saussure considera a língua como um sistema compartilhado e convencional, a visão da lingüística de Chomsky tem como idéia central o conceito de competência, capacidade biológica inata do falante. Faz-se alusão às idéias de fundo de Chomsky, que permanecem estáveis apesar de modificações nos diversos modelos por ele propostos no decorrer do tempo.
3.1. Nas origens da semiótica É reconhecido como o inventor da semiótica, ou a ciência geral dos signos, Charles S. Peirce (1839-1914), um lógico que se inspirou nos trabalhos de Boole (e na sua idéia de um cálculo universal dos símbolos). Mas, o que é um signo? Uma definição muito geral é a seguinte: um signo é algo que está no lugar de alguma outra coisa. É de praxe, na tradição semiótica, apresentar um modelo de funcionamento geral dos signos com o triângulo semiótica ou semântico:
40 Parte I - Filosofia, lógica e lingüística
idéia
Assim configurado, o triângulo semiótico representa uma visão tradicional. Para Platão, as idéias mediavam a nossa relação com as coisas. Para Aristóteles, as palavras são signos dos "movimentos da alma" que, por sua vez, se referem às coisas. Segundo Locke, as palavras são "sinais sensíveis das idéias". Também para Locke, portanto, os signos não se referem diretamente às coisas, mas por intermédio de uma idéia ou imagem mental. Na tradição filosófica muitos foram, portanto, os intermediários entre os signos e as coisas (poder-se-ia fazer uma longa lista de termos para substituir os que estão nos ângulos do triângulo). Segundo Peirce, o intermediário entre os signos e as coisas é o "interpretante", ou um outro signo que se usa para interpretar o signo dado. O triângulo, no caso de Peirce, passa a ser um esquema daquela que se costuma chamar de "semiose ilimitada": um signo é tal somente se é interpretado com outro signo, um interpretante. Este processo pode ser desenvolvido ao infinito, sem que haja um ponto de chegada final do processo de interpretação. A semiótica pretende ser uma ciência geral dos signos, e não somente dos signos lingüísticos. É a Peirce que se deve uma primeira classificação geral dos tipos de signos: 1. ícone = um signo que se assemelha ao objeto que procura representar (uma pintura, uma imagem... );
2. índice = um signo que está ligado diretamente (causalmente) 5 àquilo que representa (a fumaça é sinal do fogo); 3. símbolo = um signo que é abstraído de toda relação concreta com o representado, mas depende de uma convenção.
5. Pode-se observar que embora a relação entre a fuma ça e o fogo seja um a relação causal, e não mental, interpretar a fumaça como sinal do fogo é uma operação mental de interpretação .
3. Semiótica e lingüística 41
Para todo tipo de signo vale uma distinção :fundamental, aquela existente entre type e token:
• type = tipo de signo; • token = réplica ou ocorrência de um signo. A distinção, indo inclusive além daquela específica leitura que lhe foi dada por Peirce, tomou-se de uso comum em semiótica e em lingüística. Um signo de um mesmo tipo pode ser "replicado" ou ter vários exemplos em diferentes versões. Qualquer palavra pode ser escrita em múltiplos textos ou emitida oralmente muitas vezes. A "réplica" é areprodução fisica de signos de um certo tipo. A distinção é evidente com expressões como "tu" ou "eu"; todo falante pode usar esse tipo de expressão, mas toda réplica dessa expressão na boca de falantes diferentes se referirá a uma outra pessoa. Não somente um mesmo enunciado-tipo poderá ser verdadeiro ou falso na boca de pessoas diferentes (por exemplo ''tu mentes, eu não" dito por dois interlocutores, se é verdadeiro de um é falso do outro). A distinção type/token, ou distinções análogas, assumirá sempre maior realce na análise da linguagem(cf. 7.1 e nota). Nos Estados Unidos a tradição peirceana e a fregeana se encontram nas :figuras de Charles Morris e Rudolf Camap. Ambos reconhecem a importância da semiótica geral, que se subdivide em três campos: Sintaxe
Estudo da relação dos signos com outros signos.
Semântica
Estudo da relação dos signos com os objetos.
Pragmática
Estudo da relação dos signos com os falantes.
Embora o desenvolvimento formal e informal dessas três disciplinas vá assumir aspectos diversos em diferentes tradições, todos concordam quanto à necessidade de estudar - nos três campos de pesquisa - o aspecto sistemático da organização dos signos. A semiótica considera os signos como fazendo parte de um códig o ou sistema. Neste livro não estudaremos os sistemas de signos ou códigos não lingüísticos ( como o canto dos pássaros ou as danças das abelhas estudadas pela zoossemióti42 Parte I - Filosofia, lógica e lingüística
ca, ou os signos gestuais estudados pela prossêmica), mas vamos concentrar-nos em tomo dos sistemas dos signos lingüísticos. Os sistemas lingüísticos ( quer sejam os sistemas artificiais da lógica, quer sejam as linguagens naturais) foram os primeiros sistemas de signos estudados por filósofos lógicos e lingüistas de maneira detalhada. O aspecto sistemático é evidente para a sintaxe, mas a sistematicidade e a coerência valem em linha de princípio também para a semântica e a pragmática.
3.2. Lingüística saussureana: ''langue/parole" Ferdinand de Saussure ( 1857-1913 ), no começo do século XX, lutava na Europa contra a redução da ciência lingüística a mero estudo da evolução das palavras através do tempo, que caracterizava a glotologia tradicional. A idéia-chave era esta: a língua não é apenas uma lista de vocábulos, uma nomenclatura cuja origem histórica se deve estudar. A língua é antes de tudo uma estrutura na qual cada elemento tem um papel e um lugar no sistema, bem definido em relação a todos os outros elementos. Não se deve confundir a língua com a faculdade ou com o fenômeno da linguagem nos seus multiformes aspectos, mas é uma parte dela: a língua é um produto social e um conjunto de convenções. Deve-se fazer uma distinção entre o estudo da língua (Zangue) enquanto conjunto sistemático e o estudo das prolações lingüísticas ocasionais (parole). É necessário, portanto, estudar a língua nas relações sistemáticas das palavras do léxico, em linha de princípios matematizáveis. A cada palavra do léxico corresponde um aspecto fonético e um aspecto semântico, uma forma e um conteúdo; na terminologia saussureana, um significante e um significado. Saussure sugere a imagem de um todo indiferenciado, uma corrente de sons e de pensamento em que a língua produz arbitrariamente cortes. A língua tem portanto um papel de intermediária entre o pensamento e o som: destes cortes nascem as imagens acústicas (significantes) e os conceitos (significados), cuja associação constitui o signo lingüístico. Uma vez definido um signo dentro de um sistema de signos, as convenções irão determinar o valor desse signo dentro do sistema. Define-se deste modo um conceito paradigmático de "signo lingüístico": 3. Semiótica e lingüística 43
o signo lingüístico é uma entidade de duas faces, que liga indissoluvelmente o signifiant e o signifié, expressão lingüística e conteúdo conceituai. O signo é ao mesmo tempo arbitrário e convencional. A lingüística teórica não deve se ocupar com a relação entre a língua e os objetos extralingüísticos ou a atividade do falante e, portanto, os enunciados completos (esses temas são relegados ao estudo da parole). Deve ocupar-se com a sintaxe, ou seja, as relações horizontais dos signos lingüísticos no enunciado, e com a morfologia, isto é, com as relações associativas entre os elementos do léxico. E a semântica? A semântica se interessa pela estrutura dos significados intralingüísticos, ou seja, a organização peculiar do léxico de uma língua. Aqui o conceito de estrutura ou sistema tem uma importância fundamental, como se exprime, fazendo uma comparação com o jogo de xadrez, o lingüista genebrino: "Tal como no jogo de xadrez tudo depende da combinação das diferentes peças, também a língua é um sistema baseado totalmente sobre a oposição das suas unidades concretas". Se for verdade que a língua é um sistema, então: toda expressão (significante) e todo conteúdo (significado) possui um valor dentro do sistema ou estrutura da língua. O valor opositivo depende do fato de que cada palavra do léxico tem um lugar próprio no sistema lingüístico, isto é, no conjunto das outras palavras do léxico. Vale enquanto constitui uma diferença em face de outras palavras, assim como um fonema vale enquanto constitui uma diferença entre duas palavras: pésca [pêssego] e pesca [pesca, do verbo pescar] são duas palavras diferentes; portanto a diferença entre é e etem valor opositivo e distintivo em italiano, e mesmo em outras línguas. Em espanhol [b] e [v] não constituem uma diferença importante, e posso usar indiferentemente [abril] e [avril] ou [abuelo] e [avuelo]. Em italiano as coisas são diferentes: palavras como [baro] e [varo] se referem ora ao jogo de cartas ora ao lançamento de um navio ao mar, e têm portanto sentido diferente. Coisa análoga vale no nível semântico: por exemplo, as palavras do campo do léxico ligado a árvore/madeira/bosque/floresta 44 Parte I - Filosofia, lógica e lingüística
têm outro valor diferencial no sistema alemão e francês ( e italiano), como se pode ver no esquema abaixo, adaptado livremente de Hjelmslev ( outro grande representante da lingüística estruturalista; Saussure oferece o exemplo do francês mouton e do inglês sheep e mutton): ITALIANO
FRANCÊS
ALEMÃO
DINAMARQUÊS
albero
arbre
Baum
trae
Holz
skov
legna bosco
bois
foresta
forêt
Wald
A tabela representa um campo semântico, entendido como um subconjunto estruturado do léxico de palavras que têm uma unidade conceitual própria. Pode-se facilmente fazer uma hipótese que existam âmbitos conceituais presentes em todas as culturas e dependentes dos costumes e dos estilos de vida (o reconhecimento das cores, a criação do gado, a colheita, a moradia etc.). Cada comunidade lingüística desenvolve de maneira original e diferente a terminologia relativa a um campo conceitual. Como se vê acima, a terna bois/arbre/forêt não corresponde à terminologia italiana, porque o significado de "bois" é mais amplo que o significado de "bosco" ou de "legna" respectivamente. Análogas diferenças são apresentadas em alemão e dinamarquês. Depois de alguns anos de trabalho foram se desenvolvendo modos diferentes de conceber o estudo dos significados das palavras do léxico: 1. como o estudo dos diferentes modos como as línguas estruturam o mundo com diversas modificações conceituais; 2. como o estudo dos modos como o mesmo campo conceitual é estruturado em diferentes palavras do léxico. A primeira hipótese é a que reflete mais estritamente o ponto de vista estruturalista; a segunda se afasta do estruturalismo e comporta o estudo dos processos cognitivos em partes independentes da linguagem; admite-se que haja componentes conceituais comuns à espécie humana. Idéias desse tipo se acham na base da semântica dos frames , de Charles Fillmore, que influenciou muitos estudos da disciplina que seria denominada a "semântica cognitiva". Osframes são, com efeito, na ótica do lingüista inglês, estruturas conceituais que se tornam princípios de organização do léxico. 3. Semiótica e lingüística 45
Um dos modos mais difundidos de análise dos campos semânticos e da estrutura do léxico foi tradicionalmente a análise componencial. Por "análise componencial" se entende a decomposição dos significados das palavras em elementos mínimos de significado chamados "traços semânticos" ou "primitivos semânticos". Os diferentes vocábulos do léxico de um certo campo semântico podem ser traduzidos indicando apresença-ausência de traços primitivos, como por exemplo: Masculino
Adulto
Humano
Homem
+
+
+
Mulher
-
+
Menino
+
-
Menina
-
-
+ + +
A análise componencial tem alguns problemas de fundo: como identificar os primitivos semânticos? Eles mesmos são parte do léxico ou são elementos conceituais de natureza não lingüística? A discussão sobre estas questões está aberta. Por outro lado, quer sejam eles traços universais conceituais ou simples termos considerados primitivos por necessidades práticas, a análise em primitivos semânticos tem uma possível tradução em lógica com os postulados de significado (termo inventado por Carnap para os seus sistemas lógicos: cf. 6.5). Os postulados de significado são postulados que definem as relações inferenciais entre os elementos do léxico. Uma tabela como a precedente poderia ser traduzida deste modo: V x (humano x & masculino x & adulto x) t t homem x) V x (humano x & ---, masculino x & adulto x) t t mulher x), etc. Obviamente se poderia criticar o fato de se atribuir um valor positivo ao masculino e ao adulto (a mulher seria um "não-masculino" e o menino um "não-adulto". Por que não chamar ao contrário o homem de "não-mulher" ou "não-menino"?
3.3. Lógica e lingüística chomskyana: competência/ execução A lingüística de Saussure deu origem na Europa, e especialmente na França, a uma revolução que se tomou conhecida com o nome de "estru46 Parte I - Filosofia, lógica e lingüística
turalismo", reação contra o historicismo, que se estendia a todos os setores da cultura. O estruturalismo não demorou a ser aplicado a diversas disciplinas: em antropologia com Lévi-Strauss, em psicanálise com Lacan, e em psicologia com Piaget. Enquanto na Europa se desenvolvia o estruturalismo, nos EUA ia ganhando terreno uma nova revolução em lingüística. Essa revolução, que deve sua origem ao lingüista norte-americano Noam Chomsky, estava intimamente ligada aos desenvolvimentos da lógica, muito mais do que parecia à primeira vista. Sem dúvida, Chomsky compartilhava a idéia de Saussure segundo a qual a língua não é uma simples lista de vocábulos, mas é, sim, dotada de uma estrutura própria. Mas entre os dois projetos há uma enorme diferença, que se pode esquematicamente representar do seguinte modo: LINGÜÍSTICA ESTRUTURALISTA
LINGÜÍSTICA GERATIVA
Refere-se ao sistema da língua, sobretudo como: (i) sistema determinado socialmente; (ii) sistema estruturado de componentes do léxico (semântica).
Refere-se à faculdade da linguagem entendida como: (i) capacidade mental individual e inata; (ii) sistema sintático, módulo que permite produzir frases gramaticais.
À distinção Zangue/parole, de Saussure, Chomsky contrapõe assim a distinção competência/execução. A execução diz respeito à produção efetiva de frases da língua. A competência diz respeito à capacidade de produção de frases bem formadas, e se acha no centro do interesse da lingüística gerativa, ao contrário do que se dá na lingüística estruturalista, onde não há espaço para a abordagem das frases a não ser no nível de análise da parole. Qual é, portanto, para Chomsky, a principal tarefa da lingüística? A lingüística estuda a competência, quer dizer, a capacidade de gerar e reconhecer frases gramaticais; estuda as regras inatas que permitem gerar o sem-número de frases da língua. Chomsky atribui portanto importância central ao enunciado, às regras de formação dos enunciados e às regras de transformação que, a partir de certos enunciados, daí derivam outros mais complexos. O que é este conjunto de regras? É aquilo que se encontra na base da faculdade da linguagem e que explica a "criatividade lingüística", noção correspondente à de recursividade em lógica: 3. Semiótica e lingüística 47
CRIATIVIDADE LINGÜÍSTICA
A capacidade de construir um número potencialmente infinito de frases gramaticais com um vocabulário limitado, seguindo regras. Na primeira versão da teoria chomskyana estas regras são: (i) as regras que geram as frases nucleares da língua e (ii) as regras que transformam essas frases em outras frases mais complexas (daí o termo "gramática gerativo-transformacional"). A teoria do primeiro Chomsky poderia ser representada como uma teoria formal axiomática: PARTE GERA TIVA
PARTE TRANSFORMACIONAL
VOCABULÁRIO: Símbolos não terminais: F, GN, N, V, Art Símbolos terminais: Menina,come,m.açã, uma,a
AXIOMAS: Frases nucleares
REGRAS DE FORMAÇÃO:
REGRAS DE TRANSFORMAÇÃO:
(regras de reescrita) F~ GN +GV GN ~ Art + N GV~V+GN N ~ menina, maçã Art~uma, a V ~come
(X - V ativo - Y) ~
(Y - V passivo - por X) ...
A tabela acima, em tudo análoga à apresentada em 2.1, deveria facilitar a compreensão dos componentes elementares do primeiro sistema de Chomsky. Ele apresenta um sistema formal em que vocabulário é constituído pelos vocábulos do léxico e pelos símbolos teóricos (ou símbolos não terminais): F = Frase, GN = grupo nominal, GV = grupo verbal, V= 6 verbo, N = nome [substantivo], Art = artigo • As regras deformação das frases gramaticais (frases ou fórmulas bem formadas) são chamadas por Chomsky de regras de reescrita porque indicam como reescrever um símbolo com outro símbolo, ou com uma composição de símbolos, de modo a
6. No lugar de "grupo" se usa normalmente "sintagma", tradução do inglês phrase, que não se deve confundir com "frase" (sentence). Daí a "árvore sintagmática" para falar da representação gráfica das frases.
48 Parte I - Filosofia, lógica e lingüística
passar dos símbolos variáveis (símbolos não terminais) às constantes (símbolos terminais), que representam os vocábulos do léxico. As frases compostas a partir das regras de reescrita vão formar o conjunto das frases nucleares da língua. Desse conjunto de frases é possível derivar, com oportunas regras de transformação, vários tipos de frases complexas (interrogativas, passivas, relativas, frases compostas etc.). O exemplo elementar por nós proposto mostra como a partir dessas regras é possível gerar uma frase do tipo: uma menina come a maçã. A frase pode ser representada por um gráfico em forma de árvore do seguinte tipo: F GN
Art
/"'
/1N
/
V
GV
""/
Art 1
uma
1
menina
1
come
1
a
GN
""
N 1
maçã
A árvore é uma representação sintética da aplicação de uma série de regras de reescrita. Ela corresponde a uma parentesização com colchetes: F[oN[Art[uma]N[menina]]av[v[come]aN[Art[a ]N[maçã))]] A esta frase pode-se aplicar a regra de transformação do passivo, substituindo "uma menina" por X e "a maçã" por Y. A transformação diz que, se dois segmentos lingüísticos são intercalados por um verbo transitivo ativo, eles podem ser invertidos, substituindo a forma verbal no ativo por uma forma verbal no passivo seguida da preposição "por". A transformação daria este resultado: a maçã é comida pela menina. A árvore (ou a parentesização com colchetes) é também uma boa maneira para se ver a diversidade de estrutura profunda em cotejo com a aparente identidade de estrutura superficial, ajudando assim a tornar menos obscuras frases ambíguas ( de modo análogo ao trabalho realizado por Frege com os quantificadores ( cf. 2.4). Por exemplo, a frase "una vecchia porta la sbarra" [uma velha leva a barra] pode ser lida de dois modos (traduzíveis facilmente em diversas estruturas em árvore): 1. F[GN[ART[una]N[vecchia]]ov[ v[portaJ[Art[la]N[sbarra]] ]] 2. F[GN[Art[una]Adj[vecchia]N[porta]]av[Pron[la]v[ sbarra]]] 3. Semiótica e lingüística 49
O esquema originário chomskyano sofreu com o tempo numerosas modificações, mas ficou sempre de pé a idéia segundo a qual a gramática deve explicar como certos sons estão ligados a certos significados. Um modo mais recente de apresentar a sua teoria faz explícita referência à diferença entre estrutura superficial e estrutura profunda, do seguinte modo: estrutura profunda
estrutura superficial
forma fonética
forma lógica
Neste esquema, a estrutura profunda que contém a organização dos elementos do léxico ( com algumas informações de natureza semântica como os papéis temáticos de "agente", "paciente", etc.) rege a parte gerativa da gramática, gerando a estrutura superficial. Forma fonética e forma lógica são as interfaces que dão instruções para traduzir em sons a frase e para definir a interpretação semântica. Embora as idéias de Chomsky tenham recebido desenvolvimentos diferentes, algumas permaneceram constantes através das mudanças de teoria: 1. a idéia de diferentes níveis lingüísticos: sintaxe, fonologia, semântica. Desses níveis de descrição, o sintático é gerativo e universal. O fonético e o semântico são interpretações das estruturas sintáticas. A sintaxe, eventualmente integrada por elementos da forma lógica, permanece como a parte gerativa. Ela é o meio que permite unir um som a um significado. A sintaxe das várias línguas leva a diversos acoplamentos de sons com significados; 2. a idéia de uma gramática universal inata, cuja origem Chomsky vai encontrar igualmente nas teorias das gramáticas universais dos filósofos dos séculos XVI e XVII. Os mecanismos inatos que possibilitam a aquisição da língua permitem também explicar o prodigioso desenvolvimento da linguagem nas crianças que não podem ter aprendido pela simples imitação de frases nunca ouvidas antes. Esses mecanismos inatos, 50 Parte I - Filosofia, lógica e lingüística
que encontram aplicações diversas em diferentes comunidades lingilisticas, constituem a competência do falante, que pode ser portanto representada como um sistema interno de regras. A idéia de uma estrutura superficial e de uma estrutura profunda aparece sempre de novo de vários modos na filosofia a partir de Frege, Russell e Wittgenstein. Pelas suas inúmeras intervenções, e de pleno direito, Chomsky é considerado um filósofo do mais alto gabarito. Mas o seu trabalho é :fundamentalmente um trabalho de investigação empírica no intuito de verificar as suas hipóteses sobre as formas da competência inata. Os interesses dos filósofos, especialmente dos primeiros filósofos da linguagem, estão muitas vezes ligados a problemas de caráter mais abstrato e metodológico. Vamos agora penetrar neste campo de estudos, inçado de dificuldades e problemas, um campo que tem muitas ligações com as ciências empíricas, mas também um núcleo temático e conceitual próprio que vai ser apresentado a partir dos primeiros rudimentos, o problema da relação entre a linguagem e os entes extralingilisticos.
Bibliografia essencial CHIERCHIA, G. Semântica. Campinas : Un icamp, 2003. CHOMSKY, Noam. Estruturas sintácticas. Lisboa. Ed. 70, 1980.
- Asp ectos de teoria da sintaxe, Lisboa [s.l. ; s.d.]. - Reflexões sobre a linguagem, Lisboa: SET [s.d.]. NÔTH, Winfried. A semiótica no século XX: São Paulo: Annablume, 1996. PEIRCE, Charles S. Semiótica e filosofia. São Paulo: Cultrix, 1972.
- Semiótica. São Paulo: Perspectiva, 1987. SANTAELLA, Lúcia. O que é semiótica. São Paulo: Brasiliense, 1983 . SAUSSURE, Ferdinand de. Curso de lingüística geral. São Paulo : Cultrix, 1988.
- Saussure/Jakobson/Hjelmslev/Chomsky. São Paulo: Abril, 1978.
3. Semiótica e lingüística 51
3 - Semiótica: Boole George Boole, membro da Analytic Society de Cambridge, com Peacock, Babbage e De Morgan, inventou a álgebra da lógica, um formalismo cujas regras eram válidas tanto para a matemática como para a lógica. Um quadro sinótico ajuda a compreender de que modo, para Boole, os mesmos símbolos poderiam ser interpretados em domínios diferentes (matemática e lógica) e em operações diferentes nesses domínios: CÁLCULO UNIVERSAL DOS SÍMBOLOS SíMBOLOS
x, y,z ...
1
números adição (idempotente) multiplicação 1
o
o
+ X
INTERPRETAÇÃO ARITMÉTICA
INTERPRETAÇÃO LÓGICA
L. das CLASSES classes união intersecção universo classe vazia
L. das PROPOSIÇÕES proposições disjunção OR conjunção AND verdadeiro falso
No livro As leis do pensamento (1864), define assim as leis universais dos simbolos que valem para todas as interpretações: 1. xy = yx (propriedade comutativ a do produto);
2. x + y
= y + x (propriedade comutativa da adição);
3. z(x +y) = zx +xy (propriedade distributiva da multiplicação em relação à adição); 4. z (x - y) = zx - zy (propriedade distributiva da multiplicação em relação à subtração); 5. se x = y então zx = zy, z + x = z + y, x - z = y- z (substitutividade de elementos igu ais relativamente à multiplicação, adição e subtração) ; 6. x 2 = x (lei dos índices). Dessas le is, a mais problemática é a sexta. Boole a explica lembrando que (i) ela vale em aritmética binária. Os números 1 e Omultiplicados por eles mesmos segu em a lei; (ii) vale em lógica dos termos onde a intersecção de uma classe consigo mesma não é outra coisa senão a própria classe; (iii) v ale em lógica das proposições onde a conjunção de uma proposição consigo mesma não muda o valor de verdade da proposição.
Parte I - Filosofia, lógica e lingüística 52
3 - Semiótica: Boole George Boole, membro da Analytic Society de Cambridge, com Peacock, Babbage e De Morgan, inventou a álgebra da lógica, um formalismo cujas regras eram válidas tanto para a matemática como para a lógica. Um quadro sinótico ajuda a compreender de que modo, para Boole, os mesmos símbolos poderiam ser interpretados em domínios diferentes (matemática e lógica) e em operações diferentes nesses domínios: CÁLCULO UNIVERSAL DOS SÍMBOLOS SÍMBOLOS
x, y, z ...
+ X
l
o
INTERPRETAÇÃO ARITMÉTICA
L. das CLASSES números classes adição (idempotente) união intersecção multiplicação universo 1 classe vazia o
INTERPRETAÇÃO LÓGICA
L. das PROPOSIÇÕES proposições disjunção OR conjunção AND verdadeiro falso
No livro,1s leis do pensamento (1864), define assim as leis universais dos símbolos que valem para todas as interpretações: 1. xy = yx (propriedade comutativa do produto); 2. x + y
= y + x (propriedade comutativa da adição);
3. z (x + y) = zx + xy (propriedade distributiva da multiplicação em relação à adição); 4. z (x -y) = zx - zy (propriedade distributiva da multiplicação em relação à subtração); 5. se x = y então zx = zy, z + x = z + y, x - z = y- z (substitutividade de elementos iguais relativamente à multiplicação, adição e subtração); 6. x2 = x (lei dos índices). Dessas leis, a mais problemática é a sexta. Boole a explica lembrando que (i) ela vale em aritmética binária. Os números 1 e Omultiplicados por eles mesmos seguem a lei; (ii) vale em lógica dos termos onde a intersecção de uma classe consigo mesma não é outra coisa senão a própria classe; (iii) vale em lógica das proposições onde a conjunção de uma proposição consigo mesma não muda o valor de verdade da proposição.
Parte I - Filosofia, lógica e lingüística 52
Parte li LINGUAGEM E REPRESENTAÇÃO
·,-------~------- ------~--~-=---------
4
Sentido, referência e verdade: introdução
SUMÁRIO
Neste capítulo mencionam-se inicialmente as principais dimensões do conceito de sentido em Frege, em redor das quais se articula o conteúdo do livro e, a seguir, analisa-se a primeira dessas dimensões: a relação entre o sentido e a referência. A distinção diz respeito, segundo Frege, a todo tipo de expressão lingüística: termos singulares, predicados e enunciados. Em 4.1 se apresenta a distinção entre o sentido e a referência dos nomes (termos singulares) e predicados. Em 4.2 se mostra como Frege aplica a distinção aos enunciados. Frege de_fine co1110 "pensamento" o sentLqo de um enunciªcl_o e afirma que um estudo do pensamento só é possível mediante a análise dos enunciados que o exprimem. Esta tese talvez seja uma das principais fontes da assim_ chamada "virada lingüística". Em 4.3 se apresenta um princípio central de Frege e da semântica posterior, o princípio de composicionalidade ( e os probletnas conexos a ele). Em 4.4 se discute um contra-exemplo à teoria de Frege, o·:problema do discurso indireto, e se vê qual a resposta de Frege. Em 4.5 se apresenta uma conclusão geral sobre a relação entre significado e verdade.
4.1. Sentido e referência de nomes e predicados Ao construir a nova lógica, Frege desenvolve uma análise do conteúdo conceituai ou informatiy9, ao qual dá o nome de "sentido". Frege atribui sentido a todo tipo de expressão da sua linguagem: termós-singularesJ predicados e enunciado~. A sua definição de pensamento como sentido de um 1-.- · enunçiJJd..Q caracteriza_aquela_po~ição qye .$€!_ CO.$lliffiª.4~-~igt1ar como "virada lingüística" do século XX. Muitos autores estão de acordo em considerar que Frege colocou sob o conceito de sentido muitos aspectos nem sempre coerentes entre si. No decorrer deste livro serão apresentadas as 4. Sentido, referência e verdade: introdução 55
diversas dimensões do conceito de sentido como pontos de p11rtid11 do percurso, ilustrando a contraposição entre o sentido e outros aspectos relevantes da reflexão sobre a linguagem, em particular: (i) a a;[erência ou aquilo a que nos referimos quando proferimos o enunciado (Cap. 4); (ii) QJ()rrJ emotivo e a força convencional com a qual o enunciado é proferido (Cap. 8); (iii) o c_gnt(!_xtp lingüístico e extralingüístico em que é proferido o enuncia~o (Cap. 12); (iv) a representação subjetiva ou as imagens mentais que acompanham a compreensão do enunciado (Cap. 15). A cada uma dessas contraposições será dedicado o capítulo introdutório às diversas secções do livro. Para ter uma idéia de conjunto do pensamento de Frege sobre o sentido será necessário, portanto, ler os capítulos 4, 8, 12 e 15, que servem de introdução respectivamente às segunda, terceira, quarta e quinta partes. Neste parágrafo iniciamos a partir da primeira distinção, dentre as mais famosas de Frege, que marcou o começo da semântic~.~~giç·ª· A distinção entre sentido e referência (ou denotação) é desenvolvida por Frege em um dos seus ensaios mais famosos, Über Sinn und Bedeutung1, que discute o conceito de identidade. Em que consiste a identidade? As respostas, à primeira vista, podem ser duas: a identidade é (i) uma relação entre objetos ou (ii) uma relação entre signos. Nenhuma dessas respostas é capaz de explicar a diferença de valor cognoscitivo entre a = a e a = b ou, para citar o exemplo de Frege, entre "a Estrela da manhã = a Estrela da manhã" e "a Estrela da manhã = a Estrela vespertina". Vamos ver por quê. Ambas as expressões,
1. O termo Bedeutung se poderia traduzir, e foi muitas vezes traduzido literalmente por "significado". Neste texto vamos usar "significado" como termo mais geral e, como em muitas discussões sobre Frege, traduziremos o termo fregeano Bedeutung por "referência" ou "denotação". É interessante lembrar que a primeira tradução das obras filosóficas de Frege para o inglês, feita por Geach e Black, foi discutida cuidadosamente por Wittgenstein, que sugeriu o que traduzir e como. Para o termo fregeano "Bedeutung" ele sugeriu o inglês "reference".
56 Parte II - Linguagem e representação
"l ·:s1rcla da manhã" e "Estrela vespertina", indicam Vênus, o último corpo luminoso a desaparecer pela manhã e o primeiro a aparecer à tardinha ( vamos pensar por um momento do mesmo modo que no fim do século XIX, quando não se previra ainda a aproximação de Marte da terra em 2003 ). Abreviemos as duas expressões respectivamente por a e por b. (i) Não basta afirmar que, dado que as duas expressões se referem ao mesmo objeto, a identidade se refere ao próprio objeto; com efeito, não se distinguiria um asserto como este (a = b) de qualquer aplicação do princípio de identidade (a= a). Com efeito, a= a é uma verdade analítica e a priori, enquanto a= b exprime, no exemplo dado, um juízo sintético a posteriori, tal que acrescenta nosso conhecimento e exige experiência (cf. 2.3); (ii) não basta, tampouco, dizer que a identidade é uma relação entre nomes, entre etiquetas diferentes atribuídas ao mesmo objeto, porque o valor cognitivo não tange simplesmente à escolha arbitrária de termos intercambiáveis. Usar os dois nomes "Estrela vespertina" e "Estrela da manhã" como nomes de um mesmo corpo celeste não foi uma decisão arbitrária sobre o uso de duas diferentes etiquetas que se aporiam ao que se sabia já identificar como um mesmo objeto. O uso da igualdade.:'entre os dois nomes neste caso foi o resultado de uma descoberta devida a estudos astronômicos acurados, que corrigiram crenças falsas (por exemplo, que haveria dois corpos celestes diferentes indicados pelos dois nomes). Para indicar a diferença entre a = a e a = b, Frege considera necessário levar em conta um terceiro elemento além do nome e do objeto, asaber, o modo de apresentação do objeto. Uma afirmação de identidade do tipo a= b comporta o reconhecimento que um mesmo objeto é apresentado de duas maneiras diferentes. Frege dá portanto uma definição de sentido, relativamente ao sentido dos termos singular~s:
O sentido de um termo singular é o modQ de apresentação do objeto ao qual o termo se refere.
4. Sentido, referência e verdade: introdução 57
Frcgc nos convida, deste modo, a distinguir sempre cmt1·c: (i) o signo ou expressão lingüística (o nome, o termo singular, neste caso); (ii) o sentido, ou modo de apresentação do objeto; (iii) a referência, ou o próprio obje_to como tal. O tema dos modos que Frege denomina "modos de apresentação" (Art von Gegebenseins, ou "modo de ser dado" de um objeto) vai sobre: à teoria fregeana e vir a ser um elemento importante na discussão ,· viver . contemporânea. Mas nem sempre o uso desse termo representa o ponto J . • l de vista de Frege. E de praxe chamar o seu ponto de vista de antipsicologismo, e para compreendê-lo é mister recordar uma outra distinção feita por Frege entre sentido e representação (Vorstellung) subjetiva (sobre esteponto,cf. também 12.1, 15.1 e 15.3): • a representação, ou imagem mental que se associa naturalmente a uma expressão lingüística, está relacionada com a vida psíquica e muda de indivíduo para indivíduo; • o sentido é objetivo, e aqui com "objetivo" Frege "entende (i) o exprimível em uma linguagem e (ii) apreensível e compartilhável por todos. A distinção entre sentido, referência e representação vale para _todos os tipos de expressão que se usam em lógica, a saber: termos singulares, predicados e enunciados. Para Frege, como vimos em 2.2, os predicado~ são expressões que denotam conceitos (isto é, funções cujos valores são valores de verdade). Uma definição de sentido de um predicado será, portanto, análoga àquela do sentido dos nomes: O sentido de um predicado é o modo de apresentação do conceito denotado pelo predicado; a referência de um predicado é o próprio conceito. Para Frege, ao menos em seus últimos escritos, dois conceitos são equivalentes (são o mesmo conceito) se tiverem a mesma extensão, isto é, se a eles corresponder a mesma classe de objetos. Mas ele não aprofunda o problema do sentido dos predicados. Pode-se levantar a hipótese que o mesmo conceito pode ter diferentes modos de apresentação. Por exemplo, 58 Parte II - Linguagem e representação
animal mdonal e hípecle implume são o mesmo conceito porque determinam a mesma classe, m~~-Q_ modo de apresentar o conceito é difor~1_1t~ (como também o modo para reconhecer os objetos relativos, por exemplo, fazendo uma pergunta inteligente ou olhando para as pernas deles).
4.2. Sentido e referência de enunciados: o pensamento Frege procurava uma teoria semântica sistemática em que cada expressão tivesse tanto um sentido como uma referência. Como estender a distinção aos enunciados? Frege define_~_'..p_e11.same:QJ0" çomQ_Q _$Y-illido de um enunciado e "valor de verdade" como a sua referência. Para chegar a essas duas definições, serve-se de dois argumentos diferentes: 1. O primeiro argumento tem por base uma idéia intuitiva: se dois . enunciados podem ser racionalmente julgados um verdadeiro e o outro falso, então ~!_i.mem pensamentos diferen_t~~ (princípio da diferença intuitiva de pensamentos). Por exemplo, uma pessoa, talvez um tanto inculta, sem contradizer-se pode ~creditar que seja verdade que a Estrela da manhã é um planeta, e ao mesmo tempo acreditar que seja falso que a Estrela vespertina é um planeta. Esses dois enunciados, portant~, repre.:sentam pensamentos diferentes. Na base dessa idéia está o seg~inte argumento: o que há de diferente nos dois enunciados? _Somente expreJ,são "Estrela vespertina" e "Estrela da manhã", expressões com a mesma refer?ncia e sentid9 dffer_~nt~. Se os dois enunciados representam pensamentos diferentes, e a única diferença entre os dois enunciados é o fato de terem expressões com a mesma referência e com sentido diferente, é razoável identificar os pensamentos com os sentidos dos enunciados;
a
2. o segundo argumento tem igualmente uma base intuitiva e se fundamenta sobre a diferença entre poesia e ciência, e sobre os motivos pelos quais estamos interessados na verdade de um enunciado. Frege se pergunta que diferença se dá ao considerar "Ulisses desembarcou em Ítaca" no caso de "Ulisses" se referir a um indivíduo de carne e osso ou no caso de se achar que "Ulisses" seria simplesmente um nome de ficção poética (não se deve esquecer que, no tempo de Frege, era acesa adiscussão sobre a descoberta do verdadeiro Homero e, portanto, sobre a 4. Sentido, referência e verdade: introdução 59
realidade ou não das personagens da Ilíada e da Odisséin). Temos dois casos: (a) "Ulisses" é um nome sem referência. Neste caso iremos estudar a frase do ponto de vista da poesia e dos poemas homéricos e não nos interessaremos pela verdade dos fatos; (b) "Ulisses" é considerado como um nome que se refere a uma personagem real. Estaremos neste caso interessados na verdade e como historiadores tentaremos ponderar se é verdade ou não que Ulisses desembarcou em Ítaca (por exemplo, fazendo escavações arqueológicas etc.). A diferença entre os dois modos de compreender a frase é que no primeiro caso não estamos interessados na verdade,.mas apenas em seu valor poético; e no segundo caso estamos, ao contrário, interessados na verdade. Estamos, a~1,im,i!!_teressados na verdade só quando se pensa que a(partés compone~de um enunciado tenham uma referência. A passagem do interesse pelo sentido ao interesse pela referência coincide com a passagem do interesse pela poesia ao interesse pela verdade. Somente no caso de um nome com r!ferência é que haverá interesse em ocupar-se com a verdade do enunciado e, ao mesmo tempo, haverá interesse pela referência de um constituinte se e somente se estivermos interessados no valor de verdade do enunciado. Portanto é razoável identificar a referência de um enunciado com o seu valor de verdade (uma conseqüência que se costuma atribuir a Frege a partir dessas idéias é que um enunciado que contenha um nome sem referência não tem referência, ou seja, não tem valor de verdade). Podemos, portanto, resumir as conclusões dos dois argumentos anteriores: O sentido de um enunciado é o pensamento que ele exprime; a referência de um enunciado é o seu valor de verdade. A tese sobre a referência é à primeira vista contra-intuitiva, mas tem um grande valor de simplificação em lógica. Toda expressão da linguagem tem uma referência própria (ou, usando a terminologia atual, um "valor semântico"). _O valor semântico de um nome é o objeto denotado e o valor semântico de um enunciad9 é 0_1;e11 valor de verdade. Ao mesmo tempo, junto com o valor semântico, Frege considera o valor cognoscitivo das expressões, ou seja, o sentido. 60 Parte II - Linguagem e representação
4.3. Composlclonalldade e substltutlvldade <)s dois argumentos uduzidos para definir o sentido eu rel'erê11ci11 lk 11111 enunciado pressupõem que se admita um princípio cnnhecido como 11 "princípio de Frege" ou "princípio de composicionalidade", um prinripio central para a semântica:
PRINCÍPIO DE COMPOSICIONALIDADE <>significado de um enunciado é função do significado das suas par-
tes e das suas regras de composição. Usamos a palavra "significado" mas, segundo Frege, poder-se-ia falar tanto da composicionalidade do sentido como da composicionalidade da reforência2 • O princípio permite explicar de que modo, com um repertório linito de expressões dotadas de sentido, é possível construir sistematicamente um número infinito de enunciados dotados de sentido. A contrapartida sintática deste princípio é aquilo que Chomsky designou como "criatividade lingüística" (cf. 3.3). O princípio em geral requer a harmonia entre sintaxe e semântica, como observa Frege em um dos seus últimos escritos ( Ricerche /ogiche, p. 36): "Surpreendentes são as aplicações da língua: com poucas sílabas (pode) exprimir um número imenso de pensamentos .... Isto seria impossível se não pudéssemos distinguir no pensamento partes às quais correspondem partes do enunciado, de modo que a construçãó do enunciado possa valer como imagem da construção do pensamento ..." Junto com este e como contraprova deste princípio, Frege utiliza a lei de substitutividade: LEI DE SUBSTITUTIVIDADE
Duas expressões co-referenciais podem ser substituídas uma pela outra em um enunciado, deixando inalterado o valor de verdade.
2. Neste segundo caso o princípio vem a ser uma expressão do assim chamado princípio de extensionalidade: a referência (ou extensão ou valor de verdade) de um enunciado é função da referência (ou extensão) das partes.
4. Sentido, referência e verdade: introdução 61
/\ lei de suhstitutividude lemhru um principio de Leibniz citado por Frege (/~'adem .wmt quae sihi mutuo substitui possu111, salva verilate)-'. lfü um exemplo de aplicação da lei de substitutividade: se, no enunciado "/\ Estrela da manhã é um planeta", substituo um termo pela mesma referência, por exemplo, "A Estrela vespertina", a referência do todo (isto é, o valor de verdade do enunciado) não muda. O princípio de composicionalidade e a lei de substitutividade valem também para os enunciados compostos: a referência ou o valor de verdade de um enunciado composto depende do valor de verdade dos enunciados componentes, e substituindo um enunciado por outro co-referencial (com o mesmo valor de verdade) a verdade do todo não muda.
4.4. Problemas da substitutividade e princípio do contexto Frege discute dois contra-exemplos de sua teoria: o discurso entre aspas e o discurso indireto não respeitam composicionalidade e substitutividade. De "'Túlio' tem cinco letras" e "Túlio = Cícero" não se pode derivar que "Cícero" tem cinco letras (tem seis!). A questão, aqui, pode ser facilmente resolvida: devemos sempre distinguir entre uso e menção (os medievais falavam de modo formal e modo material). Quando mencionamos (citamos) uma expressão usando aspas, não falamos daquilo a que a expressão se refere, mas da própria expressão. Falamos portanto de objetos diferentes (as referências das expressões e as próprias expressões), e não podemos substituir uma expressão que é usada por uma que é mencionada.
3. Quine observa que a formulação de Leibniz é confusa. A formulação standard do princípio de substitutividade poderia ser esta: (x)(y) (x = y & Fx~ Fy). De fato, o princípio tal como é usado a partir de Frege parece uma contraparte semântica pela referência à verdade - do princípio de indiscernibilidade dos idênticos: VxVyVF (x = y~ (Fx~Fy), isto é, se dois objetos são idênticos, são indiscerníveis. Leibniz, porém, o apresenta como a contraparte semântica do princípio de identidade dos indiscerníveis: vxVyVF((Fx~Fy)~x = y), ou seja, se dois objetos são indiscerníveis, então são idênticos.
62 Parte II - Linguagem e representação
Frcgc utiliza umu solução anúloga para o problema do discurso indirl'lo. Se cm um enunciado composto, que supomos verdadeiro, por 1.·xcmplo: "Pia acredita que a Estrela da manhã é um planeta", substituí111os a oração "a Estrela da manhã é um planeta" por "a Estrela vespertina 1.• um planeta" (enunciados, ambos, verdadeiros), deveríamos obter sempre de novo um enunciado verdadeiro. Mas tal não se dá: Pia poderia não m.:reditar que a Estrela vespertina é um planeta. Dir-se-á que Pia é ignornnte, mas isto não é relevante. Se ela não acredita que a Estrela vespertina é um planeta, o enunciado "Pia acredita que a Estrela vespertina é um planeta" é falso, não obstante se tenha substituído um subenunciado verdadeiro por um igualmente verdadeiro. O princípio de composicionalidade não funciona mais e não posso aplicar a lei de substitutividade. Frege resolve o problema com um lance original, utilizando implicilamente um princípio por ele definido em seus primeiros escritos, o prindpio de contextualidade (que se discutirá mais longamente em 12.1 ).
PRINCÍPIO DO CONTEXTO
Uma palavra só tem significado no contexto de um el"!,unciado. Frege afirma, de fato, que o sentido e a referência não são propriedades absolutas das expressões lingüísticas, mas dependem do contexto do enunciado. Se uma expressão é usada no contexto de um discurso indirelo (como aquele regido por" ... acredita que ... ", então não tem mais o seu sentido e referência normais.
Uma expressão em um contexto indireto assume como referência uma referência indireta, que corresponde ao sentido normal. Isto funciona também intuitivamente, porque nos discursos indiretos nos referimos aos pensamentos mantidos pelo falante e não estamos preocupados com aquilo que o falante declara acreditar. Se digo "Pia acredita que 2 + 2 = 5", não quero certamente dizer que 2 + 2 = 5 é verda-
4. Sentido, referência e verdade: introdução 63
de, mus apenas que este é um pensumento muntic..lo por Pin. No discurso indireto nos referimos a pensamentos, não a valores de verdade. Frege responde assim ao problema de como tratar as atitudes que Russell designará como "atitudes proposicionais". Crer, pensar, saher são atitudes que se referem a proposições (pensamentos). Este problema terá soluções diferentes em vários autores, como por exemplo Camap (cf. 6.6 e 6.7), Kripke (cf. 7.7), Quine (cf. 13.4) e Brandom (cf. 16.4).
4.5. Sentido e verdade: determinação do sentido Vamos concluir com um lembrete da visão geral do sentido de um enunciado que se deriva destas reflexões. Temos dois tipos de valores, o valor cognoscitivo e o valor semântico. O sentido é o valor de conhecimento dos enunciados, e a referência é o valor de verdade. Sentido e referência estão intimamente ligados: o sentido é aquilo que é relevante para a verdade. As preocupações de Frege estão voltadas antes de tudo para a realização de uma linguagem formal capaz de exprimir o raciocínio matemático. Inclusive a distinção entre sentido e referência é válida antes de tudo para a linguagem formal, na qual cada expressão deve ter um sentido determinado, de tal sorte que as condições de verdade sejam também determinadas. Para Frege, equações matemáticas como 2 + 2 = 8 - 4 são constituídas por proposições com a mesma referência (neste caso o número 4) e com sentido diferente. O sentido de cada proposição é determinado e inequívoco, e permite verificar sob quais condições essa equação é verdadeira (neste caso sob a condição de que ambas as proposições matemáticas determinem o mesmo número). É diferente a situação da linguagem natural em confronto com a linguagem matemática. Frege identifica dois problemas que a linguagem natural suscita no que tange à determinação do sentido: (1) a oscilação do sentido dos nomes e (2) o caráter indeterminado do sentido de expressões consideradas fora do contexto de emissão.
(1) Na linguagem natural, diferentes falantes podem atribuir sentidos diversos ao mesmo nome. Por exemplo, na compreensão de alguns, 64 Parte II - Linguagem e representação
A11stótdes terú como sentido "o discípulo de Platão", e para outros "o pH'l'l.'plor de Alexandre". Segundo Frege, essas oscilações do sentido 111\11 criam problemas enquanto os falantes se referem apesar de tudo ao 111csmo indivíduo. Já para outros, como o Wittgenstein cio Tractatus, ou 11111is tarde Kripke, esta solução não funciona: ao contrário do que pensa 1:rcge, os nomes não têm sentido, mas se referem diretamente aos objelos (cf. 5.4). Esse contraste se tornará o fulcro de um desencontro teórico .,, 1hre o estatuto dos nomes na linguagem natural (cf. capítulo 7). (2) Na linguagem natural, muitas vezes, para se saber que tipo de lll'nsamento é expresso por um enunciado, não basta apenas a expressão lingüística. Pense-se por exemplo na frase "a erva do prado é verde", ou "estou cansado" ou "hoje está chovendo". Temos aqui enunciados que 1H10 exprimem completamente um sentido, ou seja, não é possível ava1iar se são ou não verdadeiros, a menos que se conheça o contexto em que foram emitidos, a saber: o tempo, o lugar e o falante. Em bocas diferentes, em tempos e lugares diferentes, esses mesmos enunciados podem dizer ora a verdade ora a falsidade. Isto parece um obstáculo insuperável para um projeto de formalização da linguagem natural, e Frege foi bastante perspicaz para apontar a dificuldade. O des_afio foi enfrentado por mais de um filósofo, em primeiro lugar por David KapJan (cf. 7 .6 e também 14.5).
Bibliografia essencial FREGE, Gottlob. "Sentido y referencia". ln: ID. Lógica e.filosofia da linguagem. São Paulo: Cultrix/Edusp, 1978 [Trad. de Paulo Alcoforado]. ~
Investigações lógicas. Porto Alegre: Edipucrs, 2002 [Trad. de Paulo Alcoforado].
GOTTFRTED, Gabriel. "Gottlob Frege ( 1848-1925): o pai da filosofia analítica". ln: Cadernos de História e Filosofia da Ciência, série 2, vol. 2, n. 1, jan.-jun./1990. Campinas: Unicamp.
4. Sentido, referência e verdade: introdução 65
4 - L61tca de Freie e paradoxo de Hu1111t•II A Lógica de Frege nasce em 1879, com a publicação du ldt•t11.!,l't1/i11 ou Begr(ffi.schr(/i, o livro mais importante de Lógica depois dos Primeims Analíticos de Aristóteles. Para demonstrar que sua lógica era superior à tradicional, devia Frege pelo menos mostrar que ela era capaz de exprimir aquilo que já era expresso pela lógica tradicional. No final da introdução da Ideografia, Frege apresenta o quadrado aristotélico das oposições na sua nova linguagem. Aqui expõe as clássicas correspondências entre "todos" e "alguns": :3x = -,\>'x-,; Vx = -,:3x-,; Vx-, = -,:3x; -,Vx = :3x-,. Estas correspondências são seguidas pelo clássico quadrado das oposições em termos modernos:
(l)todososFsãoG:Vx(Fx~ Gx) Para todos os x, se x é F então x é G
(2) nenhum Fé G: -,:3x (FxAGx) Para nenhum x, x é F e G
(3) alguns F são G: :3x (FxAGx) Para alguns x, x é F e é G
(4) Alguns F não são G: :3x (FxA-,Gx) Para alguns x, x é F e não é G
O quadrado das oposições exprime as relações fundamentais entre proposições: (i) contrárias, não ambas verdadeiras (mas podem ser ambas falsas: todos/nenhum homem é louro) (l-2); (ii)subalternas, isto é, aquelas em que a verdade da segunda depende da verdade da primeira (1-3; 2-4); (iii) contraditórias, ou seja: tais que se uma é verdadeira a outra é falsa (1-4; 2-3); (iv)subcontrárias: isto é, não ambas falsas (mas podem ser ambas verdadeiras: alguns homens são louros, alguns não) (3-4). O sistema de Frege é completado em 1893, com a publicação do primeiro volume dos Princípios da Aritmética, onde Frege pretende dar uma fundação lógica da aritmética, definindo os números e as operações sobre eles em termos puramente lógicos. Em 1903 Russell encontra uma contradição baseada sobre um princípio implícito no sistema de Frege, o princípio de compreensão: dada uma propriedade relativa a classes, existe a classe das classes que gozam dessa propriedade. Eis, em síntese, o argumento de Russell: considerada a propriedade de não pertencer a si mesmos, para o princípio de compreensão existe a classe das classes que não pertencem a si mesmas. Seja Resta classe. Perguntemo-nos se R pertence ou não a si mesma. Podem ocorrer dois casos: ( 1) R pertence a si mesma. Neste caso tem a propriedade que caracteriza as classes de R, portanto não pertence a si mesma. Portanto R E R ~ R !i!: R; (2) R não pertence a si mesma. Neste caso goza da propriedade que caracteriza os seus membros, portanto pertence a si mesma. Portanto R !i!: R ~ R E R. Do que se obteve em ( 1) e (2) se infere a contradição R E R B R !i!: R. A contradição de Russel marca o início da discussão sobre os fundamentos da matemática.
66 Parte II - Linguagem e representação
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Nomear objetos: Frege, Russell, ~ittgenstein
SUMÁRIO
Neste capítulo se delineiam os primeiros contrastes entre Frege, Russell e Wittgenstein. Referem-se antes de tudo à teoria da nomeação (a relação entre nomes e objetos) e, de modo particular, aos termos que dizem respeito a objelos não existentes ("termos não denotativos"). Em 5.2 se apresenta a teoria fre~eana da pressuposição; em 5.3, a teoria russelliana das descrições definidas; l'lll 5 .4, a teoria da imagem do Tractatus de Wittgenstein. Qual é a forma lógica dos enunciados que contêm termos não denotativos? A resposta depende das leorias da nomeação: para Frege, os nomes próprios têm sentido e referência; para Russell, são abreviações de descrições; e, para Wittgenstein, os nomes se refcrem diretamente a objetos. As diversas soluções sobre a forma)ógica, que dependem desses pontos de vista, vão refletir-se sobre os diferentes modos de ver a relação entre a linguagem natural e a linguagem formal (5.5): Frege vê a linguagem formal como uma correção dos limites da linguagem natural, enquanto Wittgenstein, seguindo a teoria das descrições de Russell, procura na forma lógica a essência da linguagem natural (5.6).
5.1. Frege, Russell e Wittgenstein A filosofia contemporânea da linguagem nasce da combinação das relações de três pensadores muito diferentes entre si, mas indissoluvelmente ligados tanto por relações teóricas profundas como por intensas relações pessoais: Frege, Russell e Wittgenstein. Wittgenstein conhecia bem e apreciava os trabalhos de Frege, que procurou quando jovem para aconselhar-se sobre o modo de prosseguir no estudo dos fundamentos da matemática. Frege o aconselhou a ir estudar em Cambridge com Bertrand Russell, o lógico e filósofo que tinha identificado uma contradição no sistema formal fregeano (cf. Quadro 4). Wittgenstein se dirigiu a 5. Nomear objetos: Frege, Russell, Wittgenstein 67
( 'amhridge e nasceu então uma diticil, mas intensu col11hum4-·1\o com o lilósofo inglês, agraciado duas vezes com o prêmio Nobel (de l ,iteratura e da Paz). Wittgenstein exerceu forte influência sobre Russell, evidente cm A .filosofia do atomismo lógico ( 1918) e na segunda edição dos Principia Mathematica ( 1925), monumental trabalho de lógica escrito por Russell e Whitehead, obra que constitui um marco miliar no desenvolvimento da lógica formal juntamente com a Ideografia de Frege ( 1879) e os Grundzüge der Mathematik de Hilbert e Ackermann (1928). O primeiro e fundamental livro de Wittgenstein foi publicado em 1921, com o título de Tractatus logico-philosophicus, título ideado por George E. Moore, filósofo moral do grupo fundador da revolta antiidealista na Inglaterra e colega de Russell. Russell e Moore, aliás, concederam ao jovem Wittgenstein o título de PhD, considerando o Tractatus como a sua tese de doutorado. Embora ligados por uma história comum e pela mesma paixão pela lógica, Frege, Russell e Wittgenstein divergiram muitas vezes sobre algumas idéias fundamentais. Uma dessas divergências dizia respeito ao problema dos termos não denotativos, a saber: expressões como "Pégaso, o cavalo alado", "Sherlock Holmes", "Superman", "Papai Noel". Se os nomes são expressões da linguagem que se referem a objetos, a que se referem tais nomes? E como avaliar os enunciados em que esses nomes aparecem?
5.2. Frege: termos não denotativos e pressuposição Como vimos em 4.1, Frege considera que todo tipo de expressão lingüística da linguagem lógica tem um sentido e uma referência, segundo o seguinte esquema: Nome próprio Sentido
modo de dara referência
Referência
objeto
. ',
Predicado
,,.
Enunciado r
modo de dara referência
pensamento
conceito
valor de verdade
/
Extensão
-
r
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68 Parte II - Linguagem e representação
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1
Frcgc usa o tcnno "nome próprio" no lugar daquele que indicamos cm µcrul como "termo singular", ou termo que tem como referência um único ohjcto. Uma tese fundamental de Frege é que expressões que denotam um só objeto (um indivíduo) pressupõem a existência do indivíduo em questi\o. Se eu digo "o homem que descobriu as órbitas elípticas dos planetas morreu na miséria", ou também "Kepler morreu na miséria", pressuponho que exista alguém que descobriu as ·órbitas elípticas dos planetas ou pressuponho que exista uma pessoa chamada Kepler. O argumento de Frcge para fundamentar essa tese é simples. Se no enunciado "Kepler morreu na miséria" estivesse contido o pensamento que Kepler denota um indivíduo existente, a negação desse enunciado deveria ser "Kepler não morreu na miséria, ou o nome 'Kepler' não denota coisa alguma". Mas a negação normal do enunciado é obviamente "Kepler não morreu na miséria". Nisto se vê que quando se formula uma asserção, pressupõe-se a existência do indivíduo denotado pelo nome próprio que se usa. A existência de um indivíduo chamado "Kepler" é uma pressuposição ou do enunciado em questão ou da sua negação. E esta é a primeira definição da pressuposição semântica: uma pressuposição semântica de p é um enunciado q que deve ser verdadeiro, a fim de que ou p ou não p possam ser verdadeiros; ou, esquematicamente: p pressupõe semanticamente q se (a) se pé verdadeiro então q é verdadeiro, (b) se p é falso então q é verdadeiro. ;
"Kepler morreu na miséria/Kepler não morreu na miséria" pressupõem "Kepler existe"; de forma análoga, "meu tio perdeu o trem/meu tio não perdeu o trem" pressupõem que haja um trem e que exista meu tio. Normalmente, portanto, o uso de um nome próprio (ou de um termo singular) pressupõe a existência do indivíduo denotado pelo nome. Na linguagem natural, porém, é possível introduzir nomes sem referência; 5. Nomear objetos: Frege, Russell, Wittgenstein 69
por exemplo, é possível falar de "Ulisses", mesmo qm, CHlti jumuis tenha existido. Mas não só para os objetos individuais concretos, mus também pura os abstratos, é possível construir expressões que não se relerem a coisa ulguma, por exemplo "a série menos convergente" ou "o maior número inteiro". Com efeito, dado um número, por maior que seja, sempre existe um outro maior, pela própria definição de "número inteiro". Como se comportar, então, com os enunciados que têm termos não denotativos? A teoria lógica de Frege tem na base um princípio fundamental, o princípio de composicionalidade (cf. 4.1 ), em vista do qual tanto o sentido como a referência do todo é função, respectivamente, do sentido e·da referência das partes. Ora, se falta a uma parte a referência, o que se poderia dizer do todo? Que também não tem referência? Mas a referência de um enunciado é um valor de verdade, portanto, para Frege:
um enunciado que contém um termo sem referência é também destituído de referência, ou seja, não tem valor de verdade: não é nem verdadeiro nem falso.
5.3. Russell: descrições definidas e forma lógica Bertrand Russell ( 1872-1970) se rebela contra a idéia de Frege acima mencionada e pensa que o erro está em acreditar que os nomes tenham tanto sentido como referência. A partir de um famoso artigo de 1905, intitulado Sobre a denotação, e na sua introdução aos Principia Mathematica, Russell combate tanto a tese de Frege como a ontologia extremamente rica do lógico Alexius von Meinong, para o qual existem diversos tipos de objetos não existentes, dos quais é possível dar uma classificação (por exemplo, o quadrado redondo será um tipo de objeto logicamente contraditório, ao passo que a montanha de ouro ou Pégaso, o cavalo alado, serão apenas fisicamente não existentes, mas não implicarão nenhuma contradição lógica). Russell, levado aqui por uma forte sintonia com o empirismo, defende uma tese alternativa que pretende aparar "a barba de Platão" e fazer tabula rasa de todos os entes ideais de 70 Parte II - Linguagem e representação
duvidosa existência. Como ponto-chave de sua alternativa a Frege e Mei11ong, Russell defende a tese pela qual o significado de um nome próprio se reduz ao fato de se referir a um objeto. Mas os nomes próprios da linguagem natural não desempenham essa função justamente por não darem garantia de se referirem a um indivíduo. Todos sabemos que Sherlock Holmes não existe nem nunca existiu. Mas se os nomes próprios não necessariamente denotam indivíduos existentes, que outra função desempenham? A resposta é a seguinte: os nomes próprios da linguagem natural são abreviações de descrições definidas. Os nomes próprios são expedientes retóricos úteis por sua brevidade: de fato abreviam descrições como "o autor de Waverley" ou "o amigo do Doutor Watson e protagonista dos romances de Conan Doyle". Deve-se, portanto, distinguir dois tipos de expressões diferentes: 1. as descrições definidas do tipo "o F", como por exemplo "o Presidente do Conselho" ou "o Presidente dos EUA", valem para:todo aquele que satisfaça a propriedade. Os normais nomes próprios êp.tram nesta categoria enquanto abreviações de descrições; 2. os nomes logicamente próprios, como as constantes individuais da lógica matemática, desempenham a função de se referir diretamente a objetos, prescindindo de qualquer propriedade. Deve encontrar essa função na linguagem natural? Nas expressões demonstrativas como "isto" e "aquilo" (por mais estranha que pareça, esta reflexão de Russell antecipa o debate sobre os demonstrativos que vai ocupar lugar central na filosofia subseqüente, como se verá em 7.6). Essa diferença entre tipos de expressão lembra uma tese epistemológica fundamental no pensamento de Russell (e aqui semântica e epistemologia caminham no mesmo ritmo, para o bem e para o mal), e por isso é necessário distinguir entre: (i) conhecimento por descrição, que identifica um objeto enquanto se caracteriza por certas propriedades; 5. Nomear objetos: Frege, Russell, Wittgenstein 71
( ii) cm,hecimento direto, que identifica um objeto dirc,111111c11te, prescindindo de suas propriedades sem mediação conccituul. Uma vez decidido que os nomes próprios são abreviações de descrições, a análise de Russell se desenvolve no plano estritamente semântico. Se os nomes próprios são abreviações de descrições, é desorientador tratá-los como constantes individuais em uma linguagem lógica; noutros termos, é errado traduzir enunciados como "Ciampi é calvo" ou "o Presidente da República é calvo" por uma forma lógica do tipo: Pa
Onde "P'; está no lugar do predicado " ... é calvo", e a está no lugar de "o Presidente da República". A idéia original de Russell é expl[cjJa_r aquilo que se oculta por trás do artigo definido ("o", "a" etc.) que caracteriza as descrições definidas. A presença do artigo definido subentende dois aspectos: a existência e alúnztTilãi[e. do indivíduo que possui as proi.,.,~
/
"o atual rei da França é calvo". Neste enunciado temos uma descrição definida. Para Frege, esta não seria nem verdadeira nem falsa, visto não existir nenhum atual rei da França, dado que a França é uma república. Para Russell, este enunciado esconde a sua verdadeira forma lógica sob uma forma gramatical, que pode induzir a erro, de sujeito-predicado. A sua forma lógica deve explicitar que: 1. existe ao menos um indivíduo que é um atual rei da França; 72 Parte II - Linguagem e representação
,-
2. exi.\'le no máximo um individuo que é um atual rei du i-,runça; 3. este indivíduo é calvo. Abreviando o predicado "atual rei da França" por "F", e o predicado "calvo" por "C", essas três condições podem ser expressas deste modo: ( 1) :3x (Fx
A
\fy (Fy-) x = y)
A
Cx.)
Traduzida em linguagem natural a forma lógica da frase "o atual rei da França é calvo" se traduz em um complicado "Existe um alguém tal que é um atual rei da França e todo aquele que for um atual rei da França então é igual a este, e este é calvo". Este enunciado é falso. De fato, é falso que exista um atual rei da França e esta falsidade toma falso todo o enunciado (a conjunção de p
A
q se é falso um dos dois conjuntos).
Um aparente problema para essa solução russelliana é que, "se o rei da França é calvo" é uma proposição falsa, a sua negação deveria ser verdadeira; mas se "o rei da França não é calvo" fosse verdadeira, isto pareceria pressupor a existência do rei da França, contra a hipótese assumida. Por outro lado, se dizemos que "o rei da França não é calvo" é falsa, porque o rei da França não existe, corremos o risco de violar as leis da lógica, segundo as quais vale p ou não p e tertium nol'l dat~. Segundo Russell, esta discussão nasce de um mal-entendido ligado ao fato de que existem duas diferentes possíveis representações formais da negação do asserto "o rei da França é calvo". As duas soluções dependem da diversidade de âmbito (cf. 2.3) do operador de negação, que tem âmbito amplo em (2) e âmbito restrito em (3): (2) não :3x (Fx (3) 3x (Fx
A
A
\fy (Fy-) x = y) /\ Cx)
\fy (Fy-) x = y)
A
não Cx).
Enquanto (2) for uma fórmula verdadeira, (3) será falsa. Obviamente a (2) é a fórmula que representa a negação de (t); salvando o terceiro • excluído. Quine (cf. cap. 3) elabora uma radicalização da estratégia de Russell propondo substituir os nomes por descrições definidas, usando predicados construídos sobre os próprios nomes. Por exemplo, o termo "Pégaso" é substituído por "o único x que pegasiza". Ainda mais lacil dizer que Pégaso não existe: basta dizer que nada pegasiza. E não há 5. Nomear objetos: Frege, Russell, Wittgenstein 73
prohlcmu cm dizer que existem predicados sem cxtem,au ou cum cxtens110 vazia. Russell, e com ele Quine, alcançam o objetivo de salvar a bivalência (cl'. ()uadro 16): todos os enunciados da linguagem, inclusive os enunciados com termos não denotativos,\têm sempre um valor de verdade.
'
\''
Esta é uma resposta forte à idéia de Frege, segundo a qual enunciados com termos não denotativos não têm valor de verdade (cf. 5.2). Observe-se, além disso, que Russell consegue chegar a essa solução através de uma nítida distinção entre forma gramatical e forma lógica, que se acha na base da revolução lógica de Frege (cf. 2.5). A partir disso se vê que definir qual é a forma lógica de certos tipos de expressão é uma questão que pode encontrar diversas soluções alternativas. A discussão sobre a forma lógica de diferentes tipos de expressão irá se tomar uma das principais fontes de contraste entre correntes filosóficas diferentes, não só em filosofia da linguagem, mas também em metafisica e ontologia. Discutiremos esse ponto em 6.1, depois de ter visto a posição de Wittgenstein sobre o argumento.
5.4. Os nomes do "Tractatus" e a teoria da imagem Wittgenstein é um dos filósofos mais famosos do século XX. As suas duas publicações principais, o Tractatus logico-phi/osophicus e as Investigações filosóficas, deram origem a duas escolas filosóficas que se contrapõem, o neopositivismo do Círculo de Viena, que surgiu por volta dos anos 1920, e a filosofia da linguagem ordinária que se desenvolveu em Oxford, na década de 1940 (cf. 6.1 e 10.1 ). No Tractatus, Wittgenstein, como paladino da nova lógica, desenvolve as idéias de Frege e Russell realizando uma espécie de tradução lingüística do problema kantiano dos limites do pensamento: os limites do pensamento são os limites do dizível. Deve-se dispor, portanto, de 74 Parte II - Linguagem e representação
teoria capaz de revelur a essência da linguagem, que distinga entre 11quilo que pode ser dito (aquilo que se pode pensar) daquilo que não pode ser dito com proposições, mas só pode ser mostrado. Para conseguir isso, deve-se explicitar a forma lógica da linguagem. 1111111
Retomando o princípio do contexto de Frege (cf. a esse propósito 4.4 ), Wittgenstein lembra que os nomes só se dão no contexto de um <'IIUnciado. Todo debate sobre os nomes deve portanto partir do papel que eles têm no enunciado. Uma teoria dos nomes pressupõe, deste modo, uma teoria dos enunciados,, Encontramos no Tractatus duas teorias dos enunciados que se apóiam reciprocamente, embora sejam em parte independentes uma da outra: 1. a teoria do enunciado como imagem; 2. a teoria do enunciado como função de verdade. Veremos no capítulo seguinte o segundo componente da estrutura geral do Tractatus. Aqui falaremos, a seguir, apenas da teoria da imagem. Característica do Tractatus é considerar o enunciado como uma imagem (Bild) da realidade. É necessário, então, partir de uma teoria da imagem ou da representação. Pense-se nos diversos modos como se pode representar um acidente de automóvel: com miniaturas,de automóveis, com um desenho a cores, com um gráfico. Toda imagetn. desse tipo se caracteriza por ter: (i) uma série de elementos que representam objetos do mundo; (ii) um modo de colocar esses elementos que representa o modo como estão situados no mundo; (iii) uma forma específica de representação (tridimensional, a cores, gráfica). Analogamente, um enunciado representa um estado de coisas e se caracterizará por ter: (i) nomes que estão no lugar dos objetos; (ii) uma configuração dos nomes que representa o modo como estão os objetos entre si.
5. Nomear objetos: Frege, Russell, Wittgenstein 75
O enunciado, porém, não possui uma forma especificu de representação, mas tem aquilo que todas as imagens devem todavia ter cm comum com a situação representada: a forma lógica. Como se mencionou há pouco, diversos tipos de imagem têm em comum com a realidade alguns aspectos da própria forma de representação (a escultura tem os aspectos tridimensionais, a pintura as cores, o desenho as proporções etc.). Quanto ao enunciado, que é a imagem constituída por símbolos, não pode compartilhar com a realidade esses aspectos concretos, mas deve ter sempre algo em comum com ela: a forma mais abstrata, ou sua forma lógica. Também os outros tipos de imagens, como a escultura e a pintura, têm em comum com a situação representada a forma lógica, além dos aspectos concretos acima lembrados. Q_enunciado~ todavia, tem em.comum com a realidade repr(!i;e_n!~da som_ente a forma lógica: o modo como os elementos do enunciado estão em relação entre si reflete de maneira essenciàl o modo como os objetos estão em relação entre si na situação representada. Neste quadro se insere a teoria wittgensteiniana da nomeação. Embora se reportando muitas vezes a Frege, Wittgenstein não aceita algumas de suas teses, em particular que os nomes tenham tanto um sentido como uma referência. Ele defende, com efeito, uma tese alternativa: os nomes se referem diretamente a objetos, sem nenhuma mediação cognitiva ou conceituai. A sua análise dos nomes é fundamental para todo o sistema. Com efeito, Wittgenstein indica um objetivo, o de chegar a enunciados analisados em seus componentes últimos, enunciados "atômicos" ou "elementares". A forma lógica dos enunciados elementares é um conjunto de nomes conectados entre si. Os nomes se referem diretamente aos objetos simples. O que seriam os objetos simples não está claro: alguns conjeturam que Wittgenstein estaria pensando nos átomos da tisica, outros nos dados dos sentidos, outros na substância aristotélica, outros enfim que a simplicidade dos objetos dependeria da linguagem escolhida. Mas Wittgenstein nunca dará um exemplo de um objeto simples: consi76 Parte II - Linguagem e representação
dcruvu o prohlcmu du competência dos cientistas, não dos lógicos uu dos lílósofos.
5.5. Revelar a forma lógica: o conceito de sentido e a ontologia Embora não fique definido o que seja um objeto simples, presume-se todavia que existam objetos simples e a pesquisa da forma lógica de enunciados atômicos .e compostos permanece como um ponto firme do Tractatus. Wittgenstein recorda como a forma lógica se acha "traves1ida" na linguagem comum por acordos e convenções que impedem cap1ú-la com clareza. Cabe então ao lógico e ao filósofo mostrar com clare1.a a forma lógica da linguagem, e um exemplo neste sentido é constituído pelo traQll]ho de Russell sob@__ lls des_çi:_iç_ões defini.dill;. Outro exemplo é a análise do verbo "ser". Nas línguas indo-européias, acordos e convenções nos permitem compreender-nos usando o verbo "ser" para várias funções da linguagem: uma análise da forma lógica de enunciados com "é" ajuda a compreender as diferenças profundas que se escondem por trás de uma aparente seme1hança dada ao uso do mesmo verbo na linguagem natural. O vérbo "ser", com efeito, desempenha a tríplice função de cópula, identidadê e existência (TLP 3.323). Na linguagem lógica o verbo "ser" desaparece e é substituído por várias expressões não ambíguas, que manifestam uma forma lógica muito diferente da forma gramatical aparente (nome e cópula). Depois do desenvolvimento da lógica matemática, a forma lógica dos enunciados da linguagem natural que contêm o verbo "ser" se tomou um padrão. Esses enunciados podem, além disso, ser facilmente compreendidos por falantes de outras línguas, como o chinês, que têm uma estrutura onde não há um verbo "ser" polivalente, típico das línguas_ indo-européias. Eis um exemplo padrão de tradução: Todo francês é jovial
\fx(Fx-+(Gx)
inclusão
Abelardo é francês
Fa
pertença
Aldo é o rei da França
a=b
identidade
Existe (vi e) ao menos um francês
:lxFx
existência
5. Nomear objetos: Frege, Russell, Wittgenstein 77
Aqui, diversamente de Wittgcnstcin, distinguimoM nN doiN dilcrcntes usos do verbo "ser" como cópula (isto é, como prcdicuc,:1)0, hem claros cm lógica depois de Cantor e Frege: ( i) o cair de um conceito dentro de outro conceito (inclusão de classes); (ii) o cair de um objeto sob um conceito (pertença de um elemento a uma classe). Na análise da forma lógica, um papel fundamental é desempenhado, segundo Wittgenstein, pela negação da tese de Frege que considera que os nomes têm ~entido e referência. Se para Wittgenstein os nomes não têm sentido, mas apenas referência, por outro lado os enunciados têm um sentido. E uma primeira definição do sentido de um enunciado contém uma referência implícita à forma lógica e ao tema do dizer e do mostrar:
enunciado' mostra o seu septiq,Q. Ele mostra como estão as coisas se é verdade (mostra a condição na qual o emmçi_aclo~eriªverciJldeiro), e diz que as coisas estão assim (TLP 4.022). Noutras palavras, o enunciado mostra o seu sentido quer através das relações entre nomes e objetos quer mediante a sua forma lógica, aquilo que possui em comum com a realidade, a forma do estado de coisas representado. Dedicaremos o próximo capítulo à análise do sentido dos enunciados. Vamos agora concluir este parágrafo com uma alusão à ontologia do Tractatus. Uma análise da forma lógica dos nossos enunciados nos leva, com efeito, a raciocinar sobre a maneira como é feito o mundo e também se o Tractatus começa com uma ontologia, é óbvio que esta procede da análise da linguagem e da teoria da imagem. É mais ou menos como se Wittgenstein se perguntasse: como é que deve ser o mundo se a lingua" gem é essencialmente um conjunto de enunciados constituídos por uma \ concatenação de nomes? Uma concatenação de nomes é a imagem de um estado de coisas. Um estado de coisas, um conjunto de objetos em relação uns com os outros, pode subsistir ou não subsistir. Os _enunciados são efetivamente imagens de _sj!uações possíveis. E isso permite 78 Parte II - Linguagem e representação
l'ompreender como se pode dizer o falso: dizer o falso é proferir um l'lluncia
5.6. Linguagem natural e forma lógica: o atomismo lógico Com a análise de Frege, Russell e Wittgenstein, estamos diante de um contraste de princípio, baseado sobre algumas idéias de fundo comuns. Tal como Frege (cf. 2.5), também Russell distingue forma gramai ical e forma lógica. Assim como Frege ( cf. 1.4), Russell tam,bém reconhece que a linguagem natural é muitas vezes ambígua e le_va a extravios. Mas as duas visões sobre o que seja a forma lógica divergem em duas posições antagônicas: • uma visão reformista ou corretiva afirma que uma paráfrase em forma lógica visa corrigir a linguagem natural e tomá-la menos ambígua; • já uma visão hermenêutica vê na paráfrase em forma_lógica o modo de explicitar a verdadeira estrutura profunda .subjacente à linguagem natural (sua essência). Frege considera que a linguagem natural leva a descaminhos por ser inevitavelmente imperfeita, e pensa que somente uma linguagem simbólica diferente, artificial como o formalismo lógico que ele inventou, pode evitar as ambigüidades e os equívocos típicos da linguagem comum. Russell sugere uma outra idéia: a linguagem comum, uma vez 5. Nomear objetos: Frege, Russell, Wittgenstein 79
corretmnente interpretada, revela uma forma lógi_cn Nllhjnn.•nlc que lhe tira a ambigüidade. Essa idéia de Russell, que emerge l'lurnmcnle em sua teoria das descrições, é considerada muito importante por Wittgenstein que, neste ponto, se põe do lado de Russell: "a linguagem está em ordem tal como é". Se nos engana ou nos parece ambígua, é porque a sua essência ou a sua verdadeira forma lógica nos estão escondidas. Os ''1:f 'ií'~citos_ entendimentos" da comunicação e do discurso nos impedem muitas-vezes de compreender a verdadeira forma lógica daquilo que dizemos. Através da análise, porém, podemos identificar a forma lógica subjacente à superficie gramatical, assim como Russell mostrou parii..digmaticamente que a forma lógica das descrições definidas não é aquela que aparece na gramática superficial. A análise da linguagem deveria levar à identifi,Ǫç_ão..4ª fom.u1 l_ógj_~ das proposições não ul~eriorment~ -11. ~ reduzíveis, ª~_P!"_Qp_Q_~j_ç_é?_es "atômicas". ·.Ã.
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f '.);J.., _ _;_~\
Essa teoria, desenvolvida depois de Russell e Wittgenstein pelos primeiros neopositivistas, recebe o nome de "atomismo lógico". A denominação lembra a análise química que encontrou uma escrita simbólica para descrever as regras com as quais as moléculas são construídas a partir dos átomos ( e da sua estrutura). Assim, de modo análogo, çl_everia a lógica encontrar uma escrita simbólica que permitisse descrever como as proposições complexas são construídas a partir de proposições elementares ou atômicas. Desta maneira se esclarece em parte o trabalho do lógico: dar o esqueleto da linguagem, a estrutura essencial do modo como funciona a relação entre palavras e objetos do mundo sem entrar em pormenores. Nasce, ainda que nos contrastes de visão filosófica, o projeto de uma se-, mân_tic_a fonnaL que tem necessidade de idéias metodológicas claras. Nasce uma coisa que tem, em confronto com a lógica tradicional, o papel da química diante da alquimia. No centro desta análise está o COI!Ç_~ito wittgensteiniano de "sentido", que constitui um desenvolvimento e um esclarecimento das idéias fregeanas. A este ponto se dedica o próximo capítulo.
80 Parte II - Linguagem e representação
Blbllografla essencial ( 'I IATEAUBRIAND, Oswaldo. Logical Forms (Part 1)- Truth and Description. Vol. 34. Campinas: Unicamp, 2001 [Coleção CLE].
l·fü·:
"Da denotação". ln: Russell/Moore. São Paulo: Abril, 1974 [Coleção Os Pensadores - Trad. de vários colaboradores].
Significado e verdade. Rio de Janeiro: Zahar, 1978 [Trad. de Alberto Oliva]. WITTGENSTEIN, Ludwig. Tractatus /ogico-phi/osophicus. São Paulo: Edusp, 1994 [Trad. de Luís Henrique Santos].
5. Nomear objetos: Frege, Russell, Wittgenstein 81
5 - Objetos e forma ló~lca: o Trat·tatu.'i lt1l(lt·t1-phll11.v1111hlc•11,'i I. O mundo é tudo aquilo que acontece 1.1. O mundo é a totalidade dos fatos, não das coisas. 2. Aquilo que acontece, o fato, é o subsistir de estados de coisas 2.01. O estado de coisas é um encadeamento de objetos 2.03. No estado de coisas os objetos estão interconectados, como os elos de uma cadeia 2.1. Nós nos fazemos imagens de fatos 2.12. A imagem é um modelo da realidade 2.13. Aos objetos correspondem na imagem os elementos da imagem 2.2. A imagem tem em comum com o representado a forma lógica de representação. 3. A imagem lógica dos fatos é o pensamento 3.1. Na proposição o pensamento se exprime de modo perceptível pelos sentidos 3.2. Na proposição o pensamento pode ser expresso de tal modo que aos objetos do pensamento correspondam elementos do signo proposicional 3.3. Somente a proposição tem sentido; só no contexto da proposição um nome tem significado 3.326. Para reconhecer o símbolo no signo deve-se considerar o uso com sentido. 4. O pensamento é a proposição com sentido 4.022. A proposição mostra o seu sentido. A proposição mostra como estão as coisas, se ela é verdadeira. E diz que as coisas estão assim 4.024. Compreender uma proposição é saber o que acontece se ela é verdadeira 4.1. A proposição representa o subsistir e não subsistir de estados de coisas 4.2. O sentido da proposição é a sua concordância e não-concordância com as possibilidades do subsistir e não-subsistir dos estados de coisas 4.22. A proposição elementar consta de nomes. Ela é uma conexão, um encadeamento de nomes 4.431. A expressão da concordância e não-concordância com as possibilidades de verdade das proposições elementares exprime as condições de verdade da proposição. A proposição é a expressão das suas condições de verdade. (Frege, portanto, corretamente, as antepõe como explicação dos signos de sua ideografia). 5. A proposição é uma junção de verdade das proposições elementares 6. A forma geral da junção de verdade é: [p, 1; N(é,)J 7. Sobre aquilo de que não se pode falar deve-se calar
82 Parte II - Linguagem e representação
~l
Condições de verdade e mundos ~ossíveis: Wittgenstein e Carnap
SUMÁRIO <>Tractatus de Wittgenstein elabora uma teoria "extensional" da lógica: o
\'11lor de verdade de um enunciado é função do valor de verdade dos enuncialos componentes (6.1). Ao apresentar esta visão da lógica, ele propõe também 1111w definição de "sentido" (ou "significado"), que irá influenciar profunda111cnlc o neopositivismo: conheço o sentido de um enunciado se sei sob quais rnndições é verdadeiro - ou, segundo os neopositivistas, quais são as condi\'1'1cs de sua verificabilidade (6.2). A análise semântica estabelecida por Wittgl·11stein é aperfeiçoada no nível lógico por Alfred Tarski, sobre cujo trabalho Sl' dão aqui apenas algumas indicações gerais (6.3). Boa parte do presente capí11110 é dedicada ao trabalho de Rudolf CamaJ> que, inspirando-se t~mbém nas idéias de Wittgenstein, começa a desenvolver uma semântica modal: uma se111üntica que estuda também as expressões modais, possível, necessário (6.4). <'arnap propõe uma visão filosófica e lógica tomando por base a distinção en1rc "intensão" e "extensão", dois termos que vão substituir a distinção fregeana de sentido e referência, considerada muito vaga para se usar em uma semântica rigorosa (6.5). Camap retoma e reformula alguns problemas herdados de Fregc, como o problema dos contextos indiretos, e traça as linhas de fundo para detectar algumas aporias, como o problema da onisciência lógica que caracteriza as tentativas de formalizar os contextos de crença (6.6). Assim, de Tarski para Camap se lançam as bases para o projeto da semântica modelística, paradigma que deu contribuições efetivas não só para a lógica; mas também para a análise da linguagem natural em lingüística e em informática. O último parágrafo (6.7) menciona algumas direções de aprofundamento deste paradigma. i
6.1. Significado como condições de verdade Para o atomismo lógico, a análise do enunciado deve levar a um enunciado que não se possa analisar ulteriormente, o enunciado "atômi6. Condições de verdade e mundos possíveis: Wittgenstein e Carnap 83
?
%IJtJ&jJ4!11iilr ~
.. ~
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co" ou "elementar". Uma vez definidos os enunciadoa 1t6mlcns, todo~ os outros enunciados serão definidos ~m funç..ão da.q_uele.s e a vcrda~ , destes dependerá da verdade ou falsicll!de dos enunciados atômico!?, De acordo com o princípio de composicionalidade de Frege, o valor de verdade dos enunciados compostos depende do valor de verdade dos enunciados componentes. No Tractatus Wittgenstein define com mais precisão essa idéia com o método das tabelas de verdade, ou seja, mediante um método de decisão pelo qual, dado o valor de verdade dos enunciados compqnentes, é sempre possível decidir em um número finito de passos qual o valor de verdade dos enunciados compostos. O método das tabelas de verdade é a principal contribuição de Wittgenstein para a lógica do século XX, embora o mesmo método tenha sido empregado independentemente pelo lógico Emil Post na mesma época. As tabelas de verdade podem ser apresentadas com o esquema abaixo: pq
pAq
pvq
p~q
vv
V
V
V
VF
F
V
F
FV
F
V
V
FF
F
F
V
Na primeira coluna, com os símbolos p e q no alto, temos as quatro possibilidades de combinação de Verdadeiro/Falso dos enunciados p e q. Podemos chamar essas quatro possibilidades de "estados de coisas" ou situações possíveis, ou ainda, como dirá mais tarde Camap, retomando as idéias do Tractatus, "mundos possíveis". Pode-se supor quepe q sejam enunciados atômicos não mais analisáveis. Nas outras três colunas temos enunciados compostos onde o conectivo indica o modo de composição. Neste caso, "e", "ou", "se ... então". O valor de verdade do enunciado composto depende do valor de verdad~ cl~s enunciado~ COIJl~ ponentes; no primeiro caso, pAq terá valor verdadeiro apenas se ambos os enunciados tiverem valor verdadeiro. O enunciado é, nestes termos, função da verdade dos enunciados componentes.
84 Parte II - Linguagem e representação
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Com a teoria das funções de verdade se define, então, a visão extcnNional da lógica, chamada "cxtcnsional" porque o valor de verdade de 11111 enunciado é chamado também sua "extensão". PRINCÍPIO DE FUNCIONALIDADE
?
A extensão de um enunciado é função da extensão das partes componentes. Embora o Tractatus represente a visão da lógica ou semântica.extensio1111/, também representa a primeira tentativa cabal de identificar um outro 11spccto, que talvez possamos definir como "intensional" da semântica, o l'onceito de sentido como condições de verdade, já esboçado por Frege (e r. 4.5): um enunciado mostra o seu sentido, e é a expressão das suas condições de verdade; portanto o sentido de um enunciado é a condição (ou o conjunto de condições) sob a qual (ou sob as quais) é verdadeiro. Wittgcnstein concatena,. como Frege, sentido e compreensão, e afirma: ' "compreender um enunciado é compreender sob que coqdições é verdadeiro; o sentido de um enunciado consiste nas suas condiç9es de verdade". Esta concepção do sentido vale quer para os enuncia~os atômicos quer para os enunciados compostos. Conheço o sentido d.e.um..en.un_ci.ado se eu sei o que é que acontece se for verdade.iro. O sentido é, por çonscguinte, a situação. descrita pelo enunciado. Isso vale também para os enunciados compostos, como se pode ver a partir de uma análise das tabelas de verdade apresentadas acima. O sentido do enunciado pi\ q (pvq, p__,,q etc.) é dado pela sua tabela de verdade ou, melh~r, "se mostra" na sua tabela de verdade. E o que exprime a tabela de verdade? Exprime as condições sob as quais o enunciado é verdadeiro. Por exemplo, p/\q é verdadeiro com a condição que sejam verdadeiros tanto p como q, e falso em todos os outros casos. Quando se compreende isto, compreende-se o significado do enunciado (isto é, o uso que se faz do enunciado 6. Condições de verdade e mundos possíveis: Wittgenstein e Carnap 85
cm nossa linguagem). Substituindo p e q por quaisquc.,r ,munciudos, as condições de verdade não mudam. Define-se assim, de modo rigoroso, o significado das constantes lógicas (dos conectivos) e portanto de todos os enunciados compostos com esses conectivos. No discurso cotidiano, muitas vezes usamos os conectivos sem refletir a fundo sobre o seu significado exato. Basta porém topar com situações críticas, como a sessão de um tribunal, para perceber a importância de um uso preciso de expressões como "não", "e", "ou" etc. A lógica torna rigorosas as definições dos conectivos e permite igualmente um acordo predso sobre o seu significado.
6.2. Sentido, não-sentido, verificação Um aspecto do Tractatus que deu muito o que discutir entre os filósofos posteriores é a distinção de Wittgenstein entre os diversos tipos de enunciados; uma vez definido o conceito de sentido como condições de verdade.
• enunciados com sentido: enunciados dotados de sentido são enunciados que descrevem estados de coisas. Têm precisas condições de verdade, portanto têm sentido;. • enunciados destituídos de sentido: os enunciados da lógica, no entanto, não descrevem coisa alguma. São uma espécie de grau zero dõ enunciado, porque são ou sempre verdadeiros (tautologias) ou sempre falsos (contradições), independentemente de como se acham as coisas no mundo. Exemplos: TAUTOLOGIA: "chove ou não chove" (p v-,p) CONTRADIÇÃO: "chove e não chove" (p /\-, p). Diversamente dos enunciados com sentido, que têm condições de verdade, tautologias e contradições são verdadeiras ou falsas "sem condições"; 1:_ • enunciados sem sentido: os enunciados da filosofia e da ética, da
estética e da metafisica, que não descrevem coisa alguma. Mas não 86 Parte II - Linguagem e representação
são tampouco assimilúveis aos enunciados da lógica. Não têm, portanto, sentido (unsinnig, nonsensical). A diferença entre eles é principalmente a seguinte: os enunciados da metafisica têm a pretensão de descrever o mundo e são, por conseguinte, desorientadores. Os enunciados da filosofia são um nonsense evidente, de. tal sorte que alguém que os acompanhou os reconhece como destituídos de significado e aprende como usar corretamente a linguagem. Dizer aquilo que se pode dizer; calar sobre aquilo de que não se pode falar. A filo' sofia é semelhante a uma escada: uma vez que se subiu até onde se queria, pode-se deixar a escada de lado. A conclusão de Wittgenstein é um ascetismo lingüístico que não enrontra paralelo na filosofia contemporânea. Se nem todos seguiram o seu ascetismo, muitos, porém, resgataram sua discussão sobre o conceilo de sentido, em particular Moritz Schlick, Friedrich Weismann e os ncopositivistas do Círculo de Viena. O neopositivismo, ou positivismo lógico, reúne diversos estudiosos de língua alemã que se reuniam principalmente em Viena e em Berlim. 1!sta corrente de pensamento, que se propõe como objetivo uni~ a inves1igação empírica com a lógica matemática de Frege e Russell, conhecerá fecundos desenvolvimentos também nos EUA, para onde algqp.s membros do círculo neopositivista (de Camap a Tarski e Reichenbach) emigraram por causa do nazismo. Desde o início, nas reuniões no Círculo de Viena os neopositivistas acolheram com grande entusiasmo a obra de Wittgenstein e a sua distinção entre enunciados empíricos e enunciados lógicos. Para os neop.o.sitivistas, a dimensão da posse do sentido estava reservada aos enunciados sintéticos a posteriori das ciências empíricas e aos enunciados analíticos a priori da lógica e da matemática. Enunciados s1ntéticos e analí1icos eram ambos fundamentais para o desenvolvimento da linguagem científica rigorosa, constituída de empiria e lógica. Neste ponto os neopositivistas não estavam muito afastados de Kant, a não ser pelo fato ,k que o filósofo de Kõnigsberg falava de enunciados "sintéticos a priori" (cf. 2.3), coisa que os neopositivistas rejeitavam como incoerente (cspe6. Condições de verdade e mundos possíveis: Wittgenstein e Carnap 87
cialmcntc tomando por base os desenvolvimentos dm,1 MComctrias não euclidianas). A lição do Tractatus, nas mãos dos neopositivistas, transforma-se no projeto de uma nova teoria do significado. Inicialmente, a tendência da escola (que teve aliás desenvolvimentos complexos e revolucionários em vários campos da filosofia da ciência) era o reducionismo. Uma forma de reducionismo, abraçada pelos primeiros neopositivistas, é a seguinte: REDUCIONISMO NEOPOSITIVISTA
Os enunciados científicos podem ser reduzidos, em linha de princípio, a enunciados de observação direta ("enunciados protocolares") e fórmulas lógicas. O reducionismo se desenvolveu em várias formas, desde a primeira tentativa de reduzir cada ciência à linguagem fenomênica dos dados dos sentidos até a idéia de reduzir cada ciência à linguagem fisicalista. Fez-se uma distinção, além disso, entre redução de conceitos e redução de teorias (se em linha de princípio certos conceitos podem ser reduzidos a outros, nem sempre é possív_el reduzir uma teoria a uma outr~), e assim por diante. O tema do reducionismo perpassa boa parte da discussão sobre o discurso científico mas, fosse qual fosse a forma de reducionismo, por trás do trabalho de reconstrução da linguagem científica havia uma teoria do significado particular, derivada das discussões sobre as teorias de Wittgenstein. Para Wittgenstein, compreender um enunciado significava "saber o que acontece, se ele é verdadeiro". Ele identifica, como já vimos, significado e condições de verdade, mas não discute a respeito do problema de eventuais métodos de verificação. Sua posição parece mais fregeana e platonizante. Como bom lógico, não mostra interesse pelo acesso epistêmico. Mas os neopositivistas dão uma interpretação forte a esta idéia: "saber o que acontece" é para eles saber verificar a verdade do enunciado (e se o enunciado é matemático, saber demonstrá-lo). Pode-se resumir o princípio de verificação em um slogan que se acha tanto em diver88 Parte II - Linguagem e representação
Nos escritos posteriores de Wittgenstein como na obra de Moritz Schlick ( 1KK2-l 936):
"o significado de um enunciado é o seu método de verificação". Esta revisão da definição do significado como condições de verdade, juntamente com a tese do reducionismo, será denominada por Quine "teoria verificacionista do significado" (cf. 13.1). A teoria terá diversos níticos e conhecerá um revigoramento recente, de forma nova e imprevista, em filosofia da linguagem. Eis um breve elenco de críticas e retomadas do discurso sobre a importância da verificação: (i) o "princípio de verificação" tornou-se um critério que teria apretensão de resolver o problema da demarcação entre ciência e nãociência. Dará lugar a discussões em filosofia da ciência entre Carnap, Popper e outros, sobre os temas da controlabilidade e da falsificabilidade das teorias científicas. Popper se tornou conheciE..Q_por sua pretensão de substituir o princípio de verificação pelo-princípio de falsificaçãQ: uma teoria é científica se for suscetível de,falsificação, se admitir hipóteses que possam ser avaliadas empit,jcamente como verdadeiras ou falsas; (ii) o princípio vai sofrer, no entanto, desde o início profundas transformações. Com Carnap se passará da idéia segundo a qual o significado de um enunciado é o método para verificá-lo (ou refutá-lo) a uma versão em termos de probabilidade: os dados empíricos não pQdem confirmar ou falsear definitivamente um enunciado, mas podem aumentar Qu_ diminuir a probabilidade de quç seja verdadeiro; (iii) a teoria verificacionista do significado na sua versão mais simplificada (que compreende a rígida distinção entre enunciados analíticos e sintéticos e a visão reducionista do significado de um enunciado singular à sua verificação empírica) vai ser duramente criticada por Quine, que contribuirá para reforçar uma visão empirista, sem os "dogmas" dos primeiros neopositivistas (cf. 13.1 ); 6. Condições de verdade e mundos possíveis: Wittgenstein e Carnap 89
(iv) o tema geral da importüncia de identiticur o Nii,ulilícmln com condições de verificação (ou de demonstração ou de juslilicação) será resgatado, de forma original, por autores mais recentes, como Michael Dummett e Dag Prawitz (cf. 16.1-16.3 ), em função de uma redefinição de tipo intuicionista do conceito de verdade e em alternativa à idéia clássica do significado como condições de verdade.
6.3. Tarski e a idéia de semântica como teoria dos modelos Na década de 1930, enquanto a discussão sobre as ciências empíricas se concentrava em tomo do problema da verificação, começava a se definir um paradigma de semântica centrado ao redor da idéia de condições de verdade. Alfred Tarski ( 1902-1983) constrói uma semântica formal que apresenta maior riqueza e precisão (inclusive no nível metalógico) em comparação com as teses semânticas de Frege e Wittgenstein. Definem-se assim as linhas essenciais da teoria que será denominada "teoria dos modelos" ou "semântica modelística". Wittgenstein havia definido as condições de verdade para os enunciados compostos com os conectivos lógicos. Mas como definir as condições de verdade para os enunciados simples e para os enunciados quantificados? A solução de Wittgenstein para o problema da quantificação não era adequada. Tarski, com a sua definição de verdade para as linguagens formalizadas, define com rigor as condições de verdade não só para os enunciados simples e para os compostos com os conectivos lógicos, mas também para os enunciados quantificados. Tarski deixa como herança para a semântica posterior a idéia da função interpretação, uma função que interpreta uma expressão em um Domínio D, ou seja, um conjunto de objetos bem definido. A função interpretação ("I"), atribuirá como extensão: • a um termo singular um indivíduo; • a um predicado uma classe; • a um enunciado um valor de verdade. 90 Parte II - Linguagem e representação
Um exemplo: vamos supor uma linguagem lógica do tipo daquele indicado no parágrafo 2.2, com constantes individuais a, b, e, constanll~S predicativas P, Q e esquemas de enunciados A, B etc. e os normais rnnectivos enunciativos. Nesta linguagem é possível formar enunciados do tipo Pa, Pb (a tem a propriedade P, b tem a propriedade P etc.), A, B etc. Supondo que "I" seja a função interpretação, posso interpretar essas expressões da linguagem em qualquer domínio de objetos, rnmo por exemplo:
I (a)= Roma I (b) = Berlim I (P) = a classe das capitais Em termos mais gerais, a teoria tarskiana produzirá enunciados da forma: ( 1) "A /\ B" é verdadeiro se e somente se I(A) = V e I(B) = V :\ : (
(2) "Pa" é verdadeiro se e somente se I(a)
É
. r\
'.,.r
I(P)
(1) corresponde à definição padrão do conectivo de conjunção como é dada pelas tabelas de verdade (ou também à idéia de significado como condição de verdade para os enunciados compostos, que vimos no Tractatus); (2) corresponde a um caso particular da definição das condições de verdade de enunciados simples (enunciados construídos a partir de predicados de um só lugar). Isto é, "Pa" é verdadeiro se e somente se o objeto atribuído pela interpretação ao termo singular "a" pertence ,\ classe de objetos atribuídos pela interpretação ao predicado "P". A parte mais dificil e original do trabalho de Tarski foi a de definir as condições de verdade para as fórmulas quantificadas. Saiu-se bem no trabalho com uma contribuição que será mais tarde resgatada, com algumas variações, em todos os textos subseqüentes de lógica e que se baseia sobre 6. Condições de verdade e mundos possíveis: Wittgenstein e Carnap 91
as noções de sati.~'fárão e atrihuirão. Remetemos rmrn ~NN'-'s textos, ou u textos mais aprofundados que o nosso, o estudo desta soluc;11o larskiana4 • Falta ainda entender por que se fala de "semântica modcl ística". Em Tarski, uma linguagem, como acabamos de ver, é sempre interpretada sobre um domínio, um conjunto de objetos bem definido. E assim se define a noção de "modelo"5, isto é, um par composto por um domínio e uma função interpretação:
M= Para se falar de verdade de um enunciado, importa sempre especificar tanto o domínio D como a função interpretação 1. Expressões iguais podem ter interpretações diferentes em domínios diferentes, mas também no mesmo domínio. Vejamos um exemplo: Seja D o domínio dos seres humanos. Se I interpreta a constante individual "a" no indivíduo Ciampi e o predicado "P" na classe dos chefes de Estado, então Pa é verdadeira porque, tomando por base a cláusula 4. As noções de satisfação e de atribuição são necessárias pela presença na linguagem de fórmulas com variáveis. Se a linguagem, com efeito, tivesse apenas constantes, o jogo se reduziria a casos elementares como (1) e (2) indicados no texto acima. A presença de fórmulas com variáveis dificulta mais o projeto de dar uma definição sistemática da semântica e do conceito de verdade. O problema é oferecer uma definição de verdade para todas as fórmulas da linguagem. Uma definição destas deve ser recursiva, ou seja, deve permitir estender a definição de verdade das fórmulas mais simples às mais complexas. Não há problemas no que tange a fórmulas elementares como Pa e Rab ou para aquelas obtidas mediante os conectivos (por exemplo, a verdade de A & B é reduzida à verdade de A e de B). O problema surge para as fórmulas quantificadas, como v'xPx e 3xPx, que são obtidas antepondo os quantificadores a fórmulas com uma variável individual (no exemplo, Px). Dados um domínio D e uma interpretação I, uma fórmula como Px não pode dizer-se nem verdadeira nem falsa (se Pa significa "2 e par", Px significa "x é par"). A idéia de Tarski é a de juntar a D e I uma atribuição f que associa um objeto de D também às variáveis individuais. Deste modo, se f(x) = 2, tem-se que satisfaz a Px (enquanto, se f(x) = 3, não satisfaz a Px). Deste modo (deixando de lado as complicações técnicas devidas à possível presença de mais variáveis, pode-se dizer que v'xPx é satisfeita se existe ao menos uma atribuição que satisfaça a Px, e que v'xPx é satisfeita se cada atribuição satisfaça a Px. Em substância, Tarski reduz a noção de verdade de uma fórmula à de satisfação: uma fórmula é verdadeira em se e somente se é satisfeita por toda atribuição (e essa definição coincide com a precedente para as fórmulas elementares e as obtidas com os conectivos, e pode-se aplicar também a fórmulas com variáveis individuais e com os quantificadores). 5. A terminologia não é unívoca nos vários textos. Às vezes, com efeito, se costuma falar de "modelo" para dizer que é modelo de um enunciado (ou de um conjunto de enunciados) se torna verdadeiro o enunciado (ou todos os enunciados do conjunto dado). Nesses casos, para falar em geral do par se fala de "estrutura modelo".
92 Parte II - Linguagem e representação
Pa é verdadeira se e somente se l(a) li,r um chefe de Estado.
( 2) acima,
E
l(P), ou seja, se Ciampi
Seja agora D o conjunto dos números naturais. Se a for interpretado sohre o número 5 e "P" sobre o conjunto dos números pares, então Pa é litlso (Pa é verdadeiro se e somente se l(a) for par). Mas se modificamos 11 interpretação de "a" e a interpretamos sobre o número 4, então Pa será verdadeira. O que vem a ser então a semântica formal definida por Tarski? Uma definição que vem de Wittgenstein e Tarski é a seguinte: a semântica formal é uma teoria que especifica as condições de verdade para os enunciados de uma linguagem. Tarski se preocupou não apenas em definir uma semântica formal, mas queria também indicar as condições que toda teoria da verdade em geral deveria satisfazer. Toda definição de verdade deve ser tanto formalmente correta (a definição não deve usar o conceito de verdade no lado direito da equivalência) como também materialmente adequada (deve produzir recursivamente todos os enunciados verdadeiros da linguagem). A este propósito Tarski identifica uma condição de adequação formal e material. Esta condição recebe o nome de "Convenção T" (de ''Truth" ou "Convenção V" de "Verdade"). A Convenção T tem por base a distinção entre linguagem objeto e metalinguagem, uma reformulação da distinção tradicional entre uso e menção (cf. 4.4). É necessário distinguir6 : • a linguagem objeto: aquela cujas propriedades se estão estudando; • a metalinguagem: a linguagem que se usa para falar da linguagem objeto.
6. Lembramos que somente na década de 1930, com os trabalhos de Gõdel e Tarskl, tem início a parte fundamental da lógica chamada "metalógica", qual seja, o estudo formal das propriedades dos sistemas lógicos (coerência, completude etc.).
6. Condições de verdade e mundos possíveis: Wittgenstein e Carnap 93
Tomemos um enunciado do inglês, por exemplo: "snow is white" (neste caso o inglês é a linguagem objeto). A pergunta de Tarski é esta: sob quais condições este enunciado é verdadeiro? Usando como metalinguagem o português, pode-se dizer que: "snow is white" é verdadeiro se e somente se a neve for branca. Tarski generaliza esse modo de proceder e formula a seguinte
CONVENÇÃOT
Toda teoria da verdade é formalmente correta e materialmente adequada se for possível derivar todos os bicondicionais do tipo: o enunciado N é verdadeiro se e somente se E. "N" representa o nome de um enunciado da linguagem que se quer analisar (a linguagem objeto), e "E" representa a sua tradução na metalinguagem. Desta maneira, a aplicação do esquema T fornece não o significado do termo "verdadeiro", mas a sua extensão, a saber, o conjunto de todos os bicondicionais (isto é, um pàra cada enunciado da linguagem). Tarski afirma que só se pode fazer isto para as linguagens formalizadas, porque a linguagem natural é fonte inesgotável de ·antinomias (como a antinomia do mentiroso: estou mentindo. Portanto, se digo a verdade estou mentindo, isto é, digo o falso. Por outro lado, se minto, isto é, se digo algo falso, então digo aquilo que estou fazendo, portanto digo a verdade). Outros aplicarão, ao contrário, a Convenção T à linguagem natural (cf. 14.1). O primeiro a desenvolver as idéias de Tarski e discuti-las no âmbito da filosofia foi Rudolf Carnap em um ensaio intitulado Significado e necessidade, onde o filósofo procura aplicar a semântica formal também ao discurso modal. Apresentamos aqui algumas de suas idéias principais.
6.4. Carnap, extensão, intensão e o significado cognitivo Rudolf Carnap ( 1891-1970), um dos raros discípulos de Frege em .lena, inicia uma redefinição dos conceitos semânticos de base, tornan94 Parte II - Linguagem e representação
do-se assim o precursor de 1111111 série de desenvolvimentos cm scmfmtica que aqui deixaremos de lado, para nos concentrarmos em alguns problemas gerais como são formulados por ele. Tradicionalmente, vários autores, a partir da Escola de Port Royal e incluindo Leibniz e John Stuart Mill, fizeram uma distinção, com terminologia diferente, entre:
• extensão (denotação) de um conceito, ou seja, a classe de objetos que caem sob o conceito; • intensão (conotação ou compreensão) de um conceito, ou seja, a propriedade ou o conjunto das propriedades compartilhadas pelos objetos que caem sob o conceito. Quanto maior a extensão, tanto menor a intensão. Os quadrúpedes são uma grande classe caracterizada pelo ser animais com quatro patas. <>s cães são uma subclasse dos quadrúpedes e possuem um número maior de propriedades específicas: além de terem quatro patas, possuem uma cauda, balançam o rabo, latem etc. Mas o número dos cães é obviamente muito inferior ao número dos quadrúpedes. Camap reconstrói a _aicotomia tradicional de modo original, recordando as noções de mundos possíveis (Leibniz) e de possíveis estados de coisas (Wittgenstein). Camap define o conceito de: DESCRIÇÃO DE ESTADO
Conjunto de enunciados atômicos tais que para cada enunciado vale ele ou a sua negação. As descrições de estado de Camap correspondem às combinações de situações ou possíveis estados de coisas dadas no lado esquerdo das tabelas de verdade, e constituem o primeiro passo para a definição rigorosa de "mundo possível" que será desenvolvida a seguir. De agora cm diante, usaremos para fins de simplicidade o termo "mundo possível", pondo provisoriamente de lado algumas diferenças entre Camap e a semântica modelística subseqüente. Intuitivamente, por "mundo possível" se entende um estado do mundo que pode ser diferente do mundo real, cuja descrição não é contraditória. 6. Condições de verdade e mundos possíveis: Wittgenstein e Carnap 95
Contcmporaneamcntc ao lógico norte-amcric11110 ,\111111.0 l'hurch, Camap oferece uma reconstrução racional da lógicu frcgcuna. Ele reescreve em termos de intensão e extensão grande parte du4uilo 4uc Frege havia expresso em termos de sentido e referência, embora realçando que a dicotomia fregeana não se identifica com a dicotomia tradicional. Do ponto de vista geral, falar de extensão é falar de indivíduos, classes e valores de verdade, ao passo que falar de intensão é falar de conceitos individuais, propriedades e proposições. Camap toma rigorosa a distinção de um modo que foi seguido pelos estudiosos de semântica depois dele. Um modo de traduzir a idéia de intensão é considerá-la como uma fimção de mundos possíveis a extensão 7. Toda expressão da linguagem formal tem uma intensão e uma extensão: • a extensão de um termo singular é um indivíduo, a sua intensão uma função de mundo possíveis a indivíduos: um conceito individual; • a extensão de um predicado é uma classe, sua intensão uma função de mundos possíveis a classes: uma propriedade; • a extensão de um enunciado é um valor de verdade, a sua intensão uma função de mundos possíveis a valores de verdade: uma proposição. Já a intensão de um enunciado diz sempre portanto sob quais condições ou em quais mundos possíveis ou situações possíveis um enunciado é verdadeiro. Embora com diferenças na terminologia, mantém-se a idéia de fundo do significado como condições de verdade:
a intensão é uma função de mundos possíveis a extensões; a intensão de um enunciado é uma função de mundos possíveis a valores de verdade. Com o conceito de "intensão" Camap oferece um explicatum do conceito de "significado cognitivo" ( contraposto a "significado emotivo"). Não basta, porém, uma definição, mas é necessário ter um rigoroso critério de identidade entre significados ou intensões. Associar a uma
7. Uma definição alternativa, mas equivalente, seria dizer que a intensão de um enunciado é o conjunto dos mundos possíveis em que ele for verdadeiro.
96 Parte II - Linguagem e representação
dclinição um critério de idcntidude para as coisas que são definidas era 11111 princípio fregeano de fundo: temos um objeto somente se houver um 1.Titério de identidade para o idcntific
6.5. Modalidade, verdade e postulados de significado O principal problema de Camap em Significado e necessidade ( 194 7) é oferecer uma semântica da lógica modal (cf. Quadro 6). A lógi-: cu modal trata as assim chamadas "verdades aléticas", verdades que dizem respeito à verdade possível ou necessária. Se a lógica modal tinha uma sintaxe bastante clara, faltava ainda uma interpretação semântica satisfatória. Ou seja, os conceitos de "possível" e "necessário" correspondem a quê? Depois da rejeição das verdades sintéticas aprip1jde ~~Qb,para os neopositivistas, analítico, a priori e necessário eram três características que andavam pari passu. A única necessidade era, como asseverava Wittgenstein, a necessidade lógica. Wittgenstein observarª de que modo tautologia e contradição eram respectivamente verdadeiras e falsas prescindindo de como estão as coisas no mundo; daí decorre que elas são verdadeiras ( ou falsas) em qualquer descrição do mundo ou em qualquer mundo possível. É o que também dirá Camap na sua definição das noções lógicas de "possível" e "necessário": 6. Condições de verdade e mundos possíveis: Wittgenstein e Carnap 97
Possível== verdadeiro cm qualquer mundo posslvcl (l'lll ulguma descrição de estado). Necessário= verdadeiro em todos os mundos possíveis (cm todas as descrições de estado). Mas o que é uma verdade necessária? Identifica-se com a verdade lógica? E esta se identifica com a verdade analítica? Camap mªntém 3 idéia de fundo da necessidade como característica da linguagem. As verdades da matemática e da lógica, consideradas por Camap analíticas, necessárias e a priori, são, portanto, tais por convenção. As verdades analíticas e necessárias são verdadeiras em virtude do significado. Existem porém dois modos diferentes em que a verdade pode depender do significado: (i) por um lado alguns enunciados são verdadeiros em virtude do significado das constantes lógicas. São tautologias ou verdades lógicas (verdadeiras em todos os mundos possíveis): "chove ou não chove" "os cães são azuis ou os cães não são azuis". Esses enunciados são verdadeiros para o significado de "ou" e de "não"; é possível substituir os vocábulos lexicais do mesmo tipo sintático por qualquer outro vocábulo e a verdade não muda em nada; (ii) por outro lado algumas verdades dependem do significado dos termos não lógicos e constituem um tipo de verdade diferente das verdades lógicas. Por exemplo: "os solteiros são homens não casados" é uma definição lexical que depende apenas do significado das palavras. Não é uma verdade empírica .que depende de como é feito o mundo: se Jorge me diz que é solteiro, sei por definição que é não casado. Mas não é tampouco uma verdade lógica, verdadeira em todos os mundos possíveis. Com efeito, a lógica não faz distinções entre vocábulos lexicais do 98 Parte II - Linguagem e representação
mesmo tipo e não tcriu prohlemas para descrever um mundo com solteiros casados, onde a definição se tomaria falsa. Camap sugere que se fale 11 este propósito de "postulados de significado" que imponham restri~ôes aos mundos sobre os quais se pode falar com sentido 8. Esses postulados podem ser expressos por relações inferenciais do tipo: 'rlx (solteiro(x)~não casado(x))
Que se lê deste modo: "para todos os x, se x é solteiro, então x é não rasado". Camap distingue, portanto, na idéia de enunciado analítico dois aspectos: • enunciados logicamente verdadeiros, verdadeiros em virtude do significado das constantes lógicas. São verdadeiros em todos os mundos possíveis, portanto necessários; • enunciados verdadeiros para os postulados de significado: dependentes do significado dos termos do léxico. São verdadeiros em todos os mundos compatíveis com os postulados de significado. Como havíamos mencionado (cf. 4.2), a idéia de Camap será usada e desenvolvida para dar apresentações sistemáticas do léxico de uma língua e das relações inferenciais entre as palavras (do tipo: se x é uma rosa, então x é uma flor; se x é uma flor, então x é um elemento do reino vegetal etc.). As redes semânticas, ou representações das relações conceituais e lexicais desenvolvidas pelos processadores de informação, podem ter uma representação como conjuntos de postulados de significado (cf. Quadro 17). Do ponto de vista da teoria dos modelos, os p9stµ8. O próprio Wittgenstein, logo depois do Tractatus, percebera não ser possível ter uma descrição completa do mundo com enunciados atômicos, se estes fossem, por exemplo, enunciados indicando pontos coloridos. Com efeito, como não existe um mundo em que Pia seja ao mesmo tempo núbil e casada, assim também não existe um mundo onde um objeto seja vermelho e azul ao mesmo tempo .. Para Wlttgensteln, isto comportava a necessidade de estudar uma "sintaxe" da linguagem que fosse além das definições da lógica e identificasse corpos!'cle significado) (a idéia faz pensar nos campos semânticos) definidos por uma sintaxe própria, por ekemplo, o campo das cores. O significado não é dado ao enunciado isolado, mas a um campo de enunciados ligados por relações sintáticas e inferenciais.
6. Condições de verdade e mundos possíveis: Wittgenstein e Carnap 99
lados de significado fixam restrições sobre os munc.loN posslveis: com efeito, dizem não existir mundo possível (ou melhor, se l'xistc, não é acessível) em que se possa verificar que alguém é solteiro e casado ao mesmo tempo.
6.6. Problemas da modalidade: substitutividade e onisciência lógica As expressões modais como "é necessário que" ou "é possível que" levantam problemas ligados à composicionalidade e à substitutividade, dois princípios centrais da semântica já usados por Frege (cf. 4.3). As expressões modais, com efeito, introduzem contextos particulares, onde esses princípios não valem. Consideremos o princípio de substitutividade, reformulado em termos camapianos de extensão (Frege iria falar de referência ou Bedeutung): duas expressões com a mesma extensão são substituíveis, mantendo-se a verdade do todo. Vamos por exemplo tomar um enunciado formado por um nome e um predicado como Pa, substituamos o nome por um nome co-referencial (ou co-extensional) e obteremos um enunciado com a mesma extensão - isto é, com o mesmo valor de verdade - do enunciado originário: (l) Pa (2) a= b (3) Pb
(Pense-se no exemplo de Frege dado em 4.2-4.4, substituindo "P" por "é um planeta" e "a" e "b" respectivamente por "Estrela da manhã" e "Estrela vespertina". Nos contextos modais, porém, tal princípio não vale, como se vê pelo exemplo seguinte (onde "a" = 9 e "P" = "necessariamente maior do que 7):
100 Parte II - Linguagem e representação
( 1') necessariamente 9 > 7 (2 ') o número dos planeias= 9 (3 ') necessariamente o número dos planetas> 7
Se ( 1') é verdadeiro, (3 ') é no entanto falso, não obstante seja obtido de ( 1') mediante a substituição de um termo. Efetivamente, que o número dos planetas seja 9 é um fato contingente e não necessário. Portanto, não se pode fazer essa inferência. Nos contextos modais substituir expressões co-referenciais ("9" e "o número dos planetas") não garante a manutenção do valor de verdade do enunciado e viola o princípio de substitutividad_~. A resposta de Camap a este problema é restringir a substitutiy_idade nos contextos modais: os contextos modais são "intensionais", tais que vale para eles um princípio de substitutividade limitado às expressões com a mesma intensão. Nos contextos intensionais (por exemplo, nos contextos modais) uma expressão é sempre substituível salva veritate por uma outra que tenha a mesma intensão. Voltando ao nosso exemplo, as expressões "9" e "o número dos planetas" não têm a mesma intensão, pois enquanto "9" se refere ao mesmo número em todos os mundos possíveis, "o número dos planetas" pode referir-se a números diferentes em diferentes mundos possíveis. Portanto, não tendo a mesma intensão, as duas expressões não podem ser substituíveis. A solução de Camap, geralmente aceita e desenvolvida em semântica, será todavia criticada por Quine que, em exemplos como estes, acha motivos para criticar a lógica modal (cf. 13.4). Tendo solucionado o problema da substitutividade nos contextos modais, Camap se defronta então com o problema do discurso indireto de Frege, ou das atitudes proposicionais de Russell (cf. 4.4). Nos contextos regidos por "x sabe que ... " ou "x acredita que ... " cai não apenas o princípio de substitutividade para expressões co-referenciais, mas tam6. Condições de verdade e mundos possíveis: Wittgenstein e Carnap 101
bém o princípio de substitutividadc para cxpressõcH ~~111ii11lcnsionnis. Os contextos doxásticos (contextos de crença, do grego do.m, opinião) e epistêmicos (contextos de conhecimento, do grego epistcmc, conhecimento) são, portanto, contra-exemplos para a substitutividade muito mais graves que os contextos modais. Vejamos logo um exemplo em que não vale a substitutividade com expressões que têm a mesma intensão: Pia sabe que 2 + 2 = 4 Necessariamente (2 + 2
=
4)
~
(4294967297
=
641 x 6700417))
Pia sabe que 4294967297 = 641 x 6700417
As duas fórmulas matemáticas são verdadeiras em todos os mundos possíveis, portanto - se ter a mesma intensão quer dizer ser verdadeiro nos mesmos mundos possíveis - as duas fórmulas têm a mesma intensão. Mas não se pode pressupor que Pia conheça toda a matemática só baseando-se no fato de que saiba que 2 + 2 = 4. A lógica intensional é sumamente poderosa. Se usada para descrever as crenças de uma pessoa, toma a pessoa "logicamente onisciente". Ela com efeito representa o ponto de vista do sistema lógico (ou de Deus, se o quisermos), mas não é capaz de dar conta plenamente das limitações dos seres humanos. Este problema dará lugar a diversas tentativas de solução. Poder-se-ia sugerir que Pia simplesmente sabe, ou seja, que se estudasse ou calculasse bastante só poderia reconhecer tudo aquilo que é logicamente equivalente ao que já sabe. Camap envereda por outro caminho e sugere que, diante dos contextos de crença ou de conhecimento, é necessário utilizar um critério mais forte da identidade de intensão, ou seja, é mister procurar a identidade de estrutura intensional (que serve para Camap como um explicatum do conceito de sinonímia). Nos contextos de crença e de conhecimento duas expressões são intersubstituíveis salva veritate, se tiverem a mesma estrutura intensional (= se tiverem a mesma estrutura sintática e os constituintes que ocupam lugares correspondentes tiverem a mesma intensão. 102 Parte II - Linguagem e representação
Deste modo, expressões com a mesma intensão podem divergir nu ,·slrutura intensional como no caso das fórmulas matemáticas acima ucluzidas. Para que tenham a mesma estrutura intensional, é necessário ulgo mais: que os constituintes tenham não só a mesma intensão, mas se111111 organizados sintaticamente do mesmo modo. É o caso de um cálculo escrito ora com os algarismos arábicos e ora com os números romanos. Por exemplo: "2 + 5" e "II plus V" são duas fórmulas, ou enunciados, que têm a mesma estrutura sintática e que são formados por consti111intes de idêntica intensão: essas fórmulas, portanto, compartilham a mesma estrutura intensional. A partir de Benson Mates muitos levantaram dúvidas sobre a proposta de Camap. Diversos autores tentaram outras soluções, desenvolvendo diferentes formas de lógicas epistêmicas e doxásticas com diferentes tipos de restrições. Uma solução, puramente "sintática", é a teoria fodoriana da "linguagem do pensamento" (cf. 17.4), ou do mecanismo rnmputacional com que se supõe funcione o pensamento. Segundo esta perspectiva, a palavras diversas correspondem representações sintáticas ou computacionais diferentes na linguagem do pensamento, suficientes para impedir a substitutividade e isto bastaria para justificar todo tipo de limitação cognitiva.
6. 7. Desenvolvimento das semânticas modelísticas (*) A semântica da lógica modal esboçada por Camap foi redefinida, de maneiras diferentes, por Hintikka, Kripke, Lewis e Montague. Aqui me limito a apontar alguns problemas com que se defrontaria quem quisesse encarar o argumento. Um modelo de Kripke não se limita a um par · 'D,1>, mas inclui também um conjunto de mundos possíveis e uma relação definida sobre eles. Assim a função interpretação associa uma extensão a termos individuais e predicados não uma vez por todas no modelo, mas de modo cada vez diferente para cada mundo possível. Poderíamos dizer que no interior de um modelo de Kripke há diferentes modelos , um para cada mundo possível. Em síntese, um modelo de Kripke é, por conseguinte, um quádruplo onde: 6. Condições de verdade e mundos possíveis: Wittgenstein e Carnap 103
(i) D é o domínio que pode cm linha de principio NCI' l'onsidcrado igual para todos os mundos (mas Kripke admite que cm ulguns mundos é possível que faltem alguns elementos do domínio): (ii) W é um conjunto não vazio, distinto do domínio, constituído por mundos possíveis, entre os quais se distingue o mundo real ou efetivo (os outros mundos terão certas relações entre si e com ele); (iii) R é uma relação de acessibilidade entre mundos: R pode ser reflexiva, simétrica, transitiva, de equivalência. A essas distinções correspondem diferentes tipos de lógica modal, ou seja, diferentes concepções da necessidade e da possibilidade (cf. Quadro 6 no fim do capítulo); (iv) I é a função interpretação que consigna a cada constante não lógica e a cada mundo possível uma extensão naquele mundo. Existem algumas divergências quanto às idéias de Camap que importa sublinhar: • para Camap um mundo possível depende da linguagem dada. O domínio contém somente os indivíduos denotados por constantes individuais da linguagem. Esta restrição não vale nos modelos de Kripke (nem, tratando-se disto, em Tarski); • para Camap a avaliação dos enunciados modais corresponde à suposição que a relação R seja universal, isto é, que cada mundo seja acessível a todos os outros; • Camap identifica a necessidade com a verdade lógica, ou verdade em todas as descrições de estado ou em todos os mundos possíveis; a verdade lógica toma-se agora verdade em todos os modelos de Kripke, cada um dos quais pode ter diferentes mundos possíveis e diferentes interpretações. A complexidade do desenvolvimento da semântica modelística depende da quantidade de elementos que em cada caso são postos em jogo. A idéia inicial de modelo é simples (um domínio de indivíduos e uma função que interpreta nomes, predicados e enunciados respectivamente sobre indivíduos, classes e valores de verdade). Nasce a seguir a idéia de inserir no modelo um conjunto de mundos possíveis e uma relação de aces104 Parte II - Linguagem e representação
sihilidade entre mundos. Segue-se a exigência de inserir uma indicaçiiu do tempo relativamente à qual deve valer a interpretação. É por conscJJ,Uintc inserido no modelo um índice com algumas coordenadas (mundo possível, tempo, espaço, falante, auditório etc.). Vem a seguir o problema de distinguir o contexto de emissão desse índice de coordenadas. Surge além disso o problema de explicar a dinamicidade da interpretação relativamente à evolução do discurso. Limito-me a elencar, a seguir, as principais linhas de elaboração da semântica modelística recordando que, especialmente depois dos traba1hos de uma aluna de Montague, Bárbara Hall Partee, a semântica mode1ística começou a se articular mais estreitamente com a lingüística (em particular a gramática gerativa), com fecundos intercâmbios.
• Semântica intensional (Montague): Montague elabora a semântica modelística com o projeto de fornecer uma análise sistemática de fragmentos da linguagem natural, de modo que a análise sintática se tome o máximo possível isomorfa da análise semântica. Ele usa uma gramática categorial que lhe permite efetuar distinções entre as diversas categorias sintáticas, às quais faz corresponder uma distinção em tipos semânticos extensionais e intensionais. Sua técnica continua sendo até hoje um paradigma de refinamento lógico. • Teoria dos quantificadores generalizados (Barwise e Cooper): a teoria estende a análise dos quantificadores a formas do tipo "a maior parte dos x" etc., definindo-os em termos conjuntísticos como é tradição na semântica modelística. Diversamente de Montague, Barwise e Cooper procuram identificar alguns princípios semânticos gerais e universais, que possam valer para todas as línguas possíveis. • Semântica situacional (Barwise e Perry): a semântica situacional constitui uma tentativa de inserir na análise semântica a representação dos contextos de prolação, denominados "situações de discurso". O significado é dado pela relação entre situações de discurso 1.• situações espácio-temporalmente colocadas. • Teoria da representação do discurso (Kamp): aluno de Muntuguc. Kamp tenta mostrar como a semântica deve conter sinnis dos clf..•. mentos introduzidos no discurso. Faz-se então neccssúrio clulmrnr 6. Condições de verdade e mundos possíveis: Wlttgensteln e Carnap 105
específicas estruturas de representação do discurso llllC possum ser ligadas entre si. Isto permite resolver a análise semímticu composicional de frases articuladas com pronomes pessoais do tipo "todo camponês que possui um burro o espanca". • Semântica dinâmica (Groenendijk): a semântica dinâmica, nascida de idéias de Groenendijk, é agora um conjunto de teorias desenvolvidas de maneiras diferentes, do qual faz parte a própria teoria de Kamp e da qual são exemplos recentes os trabalhos de Robert Stalnaker. Na semântica dinâmica se identifica o significado de um enunciado não com as condições de verdade, mas com o efeito que a sua emissão produz no contexto em que a conversa tem lugar. Se por um lado estamos aqui longe do paradigma clássico do significado, pelo outro o contexto é concebido como um conjunto de mundos possíveis (aqueles compatíveis com aquilo que é pressuposto, chamado "terreno comum" ou common ground).
Bibliografia essencial KIRKHAM, Richard L. Teorias da verdade. São Leopoldo: Unisinos, 2003. SCHLICK & CARNAP. Popper/Schlick/Carnap. São Paulo: Abril, 1975 [Coleção Os Pensadores - Vários ensaios]. SCHLICK, Morris. Sentido e verificação. ln: Textos de filosofia [http://www. cfh. ufsc.br/-wfil/textos.htm]. TARSKI, Alfred. "A concepção semântica da verdade e os fundamentos da semântica". ln: BRANQUINHO, João. Existência e linguagem. Lisboa: Presença, 1990. WITTGENSTEIN, Ludwig. Tractatus logico-philosophicus. São Paulo: Edusp, 1994 [Trad. de Luís Henrique Santos].
106 Parte II - Linguagem e representação
6 - Mu11do11 po111dvels e lógica modal A semântica modelística surge em Tarski como teoria dos modelos e se desenvolve interpretação semântica da lógica modal com Camap e Kripke. Aqui damos algu11111s idéias essenciais da lógica modal cuja interpretação foi a semântica modelística.
l'I 11110
Sejam 1 1e O dois signos para dois operadores proposicionais interpretados de tlefúult como operadores de necessidade e possibilidade:
/,tÍgica modal mínima (proposicional) Sistema M Axiomas AO. Tautologias verdade funcionais AI. i i(A~B) ~ (LJA~ IB)
Regras RI.A. A ~Bf-B R2.AH.IA
Mantendo as regras dadas e acrescentando outros axiomas, é possível definir diversos sistemas modais:
Sistema T Sistema B Sistema S4 Sistema S5
M+A2.DA~A T+A3.A~D O\ T+A4. DA~[J D\ T+A5. OA~[l O\
A lógica modal mínima tem apenas um axioma específico. A partir dela se costuma distinguir diversos tipos de lógicas:
(1) as lógicas modais a/éticas onde se interpreta D e O como "necessário" e "possível". Elas acrescentam ao axioma AI o axioma A2: D A~ A; (2) lógicas deônticas onde se interpreta D e O como "obrigatório" e "permitido". Elas substituem o axioma A2 pelo axioma D A~ O A; (3) lógicas epistêmicas onde se interpreta o operador de necessidade IJ como "sabe que" ou "acredita que" (para as lógicas doxásticas); (4) lógicas temporais podem utilizar formas das lógicas modais aléticas. Tomemos por exemplo S4, onde a relação de acessibilidade é reflexiva e transitiva, mas não simétrica; isto dá a idéia de acessível como "possível no futuro". Um modelo de Kripke é definido também por uma relação R de acessibilidade entre elementos de W: w1Rw2 se lê "o mundo w2 é acessível porw 1". Dada esta relação, é possível redefinir os conceitos de necessidade e possibilidade: • um enunciado é necessário em um mundo w I se e somente se for verdadeiro em todos os mundos acessíveis por w 1; • um enunciado é possível em um mundo w 1 se e somente se existe um mundo w 2 acessível por w 1, no qual é verdadeiro. As diversas relações de acessibilidade são um modo perspícuo de distinguir os diversos sistemas lógicos modais. A relação de acessibilidade é respectivamente: para T: reflexiva para B: reflexiva e simétrica para S4: reflexiva e transitiva para S5: reflexiva simétrica e transitiva (equivalência).
6. Condições de verdade e mundos possíveis: Wlttgensteln e Carnap 107
7
Teorias da referência direta: Kripke e Putnam
SUMÁRIO
Neste capítulo se apresenta aquele que foi durante muito tempo considcrudo como um dos principais desafios ao paradigma fregeano: a teoria da referência direta (ou teoria causal da referência). Com efeito, a reação contra Fregc nasce de algumas reflexões sobre o conceito de referência e de uso feitas na década de 1950 por Strawson (7 .1 ), das quais surgem duas diferentes reações: por um lado, o resgate da visão fregeana dos nomes próprios feito por John Searlc (7.2) e, pelo outro, a distinção original entre usos das descrições elaborada por Donnellan (7.3). Saul Kripke (e com ele Hilary Putnam), em parte em consonância com as reflexões de Donnellan, não aceita a visão fregeana do sentido dos nomes e a reatualização que dela faz Searle. Kripke apresenta um programa alternativo, reportando-se a John Stuart Mille à idéia de uma conexão causal e intencional entre a origem de um nome (o batismo) e seu uso na comunidade (7.4 ). Para Kripke e Putnam, nomes próprios e nomes de substância se referem aos objetos, sem nenhuma mediação conceituai mediante os "sentidos" fregeanos. A referência não é determinada por conteúdos mentalmente apreendidos, mas pela conexão direta entre falantes e mundo. Nascem assim as teorias "duais" que abordam dois aspectos do conteúdo: aquele que depende do mundo e aquele que depende da mente (7 .5). A perspectiva da referência direta se consolidou e ganhou maior clareza com a teoria de David Kaplan sobre a lógica dos demonstrativos (7.6). Trabalhos recentes levam a uma convergência entre as exigências da teoria da referência direta e os problemas levantados pela visão fregeana, de modo particular a idéia de sentido como dimensão cognitiva que não se pode não levar em conta (7.7).
7 .1. Denotação e referência Vimos no capítulo 5 qual era a divergência entre Frege e Russell no tocante ao valor que se deve atribuir a enunciados com termos não denota108 Parte II - Linguagem e representação
11v11s. Em 1950, F.P. Strawson mostm que o trabalho de Russell, cmhorn 11111ilo ucurado, constitui apenas uma solução parcial do problcmu. ( 'om ,•kllo, a análise de Russell apresenta um limite, pois não distingue" entre: 1. expressão lingüística (expressão-tipo),
2. uso de uma expressão em um dado contexto.
<>uso de uma expressão é sua ocorrência atual ou o fato de ser pro1111 nc iada em um dado contexto e com certa intenção. No tocante ao ,•111111ciado completo, então, vamos distinguir daqui em diante entre:
1. enunciado ou frase (sentence): a seqüência-tipo de palavras; ~. pro/ação ou enunciação (utterance): o uso da frase em um contexto.
Ora, tendo por base a distinção entre expressão-tipo e uso, Strawson l'l'l'orda que as palavras "denotação" e "referência" se aplicam respectivumcnte ao primeiro e ao segundo desses casos, do seguinte modo: 1. a denotação é uma relação entre uma expressão e aquilo que denota, dadas as regras e as convenções da linguagem;
2. a referência vem a ser uma relação entre falantes e objetos, ou melhor, uma relação entre uma expressão e aquilo a que o falante pretende referir-se na específica ocasião de uso. Se a denotação é dada pelas regras convencionais e pelo sistema lingiiístico, a referência depende da intenção da pessoa que fala e - por l'Xcmplo - nada impede que use "o atual rei da França" inclusive para se rcforir a uma pessoa real. Se Frege e Russell não se referiram explicita111cnte a esta distinção, de agora em diante deve-se distinguir entre "denotação" e "referência". A seu modo Russell tem razão na sua análise,
9. Aqui simplificamos um pouco a classificação de Strawson, que distingue também entre "uso" e "emissão" (utterance). Poderíamos dizer que o primeiro é um ato Intencional e a segunda um ato meramente físico, uma simples reprodução sonora ou gráfica do tipo. Neste caso a "emissão" corresponde ao conceito de "réplica" (token: cf. 3.1). Podem existir diversos usos de uma mesma réplica: basta que se pense em uma mesma réplica escrita, como por exemplo "estou fora do escritório", usada em diferentes ocasiões (e com objetivos diversos).
7. Teorias da referência direta: Kripke e Putnam 109
mas seu trabalho se limita ao conceito de denotação (e 111\0 l'.t1sm1lmente seu artigo leva o título On denoting). Referir-se não é algo feito por uma expressão, e sim algo que nós fazemos ao usar uma expressão. Portanto, Frege (cf. 4.2) está com a razão na medida em que se ocupa com a referência; se usamos um termo singular com a intenção de nos referirmos a uma coisa que não existe, temos de reconhecer que nos enganamos e o enunciado que proferimos não terá valor de verdade.
7 .2. Descritivismo Mas a discussão não acabou aqui. John Searle reexamina a divergência entre Frege, Russell e Wittgenstein, discutida por Strawson, e tenta resolver o conflito. Por um lado, há teorias para as quais os nomes têm um sentido, mas só de modo contingente uma referência (Frege) e, pelo outro, as teorias para as quais os nomes têm essencialmente uma referência, mas não um sentido (Wittgenstein no Tractatus). Mas qual seria a função específica dos nomes próprios da língua natural? Diversamente dos demonstrativos, os nomes próprios não têm necessidade da presença do objeto no contexto para se referirem, e diversamente das descrições, podem referir-se, prescindindo das características dos objetos. Embora os nomes próprios não especifiquem nenhuma característica, usar referencialmente um nome equivale a pressupor que um número suficiente, mas não especificado, de asserções descritivas seja verdadeiro acerca de um certo objeto. Esta idéia reflete algumas considerações desenvolvidas no "segundo" Wittgenstein (cf. capítulo 9). Wittgenstein (e com ele Searle) observa que se disséssemos que Moisés nunca existiu, não só pretenderíamos dizer que não existe nenhum indivíduo com o nome de "Moisés", mas que uma série de características, irrenunciáveis para se usar o nome de "Moisés", não se aplicam a indivíduo algum. Um nome próprio tem um sentido? A esta pergunta responde Searle deste modo: não, caso se queira dizer que os nomes são usados para especificar características de objetos; e sim, caso se pretenda que os nomes estão ligados logicamente às características dos objetos. Searle resume a sua "teoria do cacho" (cluster theory) com este slogan: 110 Parte II - Linguagem e representação
"os nomes próprios não são abreviações de descrições, mas ganchos cm que se penduram descrições". Searle dá assim uma certa coerência às reflexões divergentes de Frege e Russell sobre a relação entre nomes e descrições e contribui para constituir a posição que vai receber depois o nome de "descritivismo". Segundo o descritivismo, embora um nome próprio não funcione como uma descrição (tem como função referir-se a um indivíduo), é necessário que possua a soma das propriedades que comumente se atribuem ao seu portador. Se um indivíduo não possuísse ao menos algumas das propriedades atribuídas a Aristóteles, não poderia ser Aristóteles. Esta posição será objeto da mais forte crítica que se tenha dirigido ao paradigma fregeano na filosofia da linguagem, a crítica de Saul Kripke.
7 .3. Nas origens das teorias da referência direta Enquanto parecia que a discussão de Searle tinha finalmente estabelecido a paz entre os filósofos, o debate se acendeu novamente, com violência, justamente sobre o conceito de referência e de uso de uma expressão. Forte crítica à visão tradicional é a que parte de uma distinção feita por Keith Donnellan entre uso referencial e uso atributivo de uma descrição: • no uso atributivo o falante quer referir-se a qualquer objeto que satisfaça à descrição; • no uso referencial o locutor pretende referir-se a um certo objeto, usando uma descrição, seja ela apropriada ou não. Visão análoga, embora parcialmente alternativa, é oferecida por Saul Kripke com sua distinção entre:
• referência semântica: aquilo que certas expressões denotam segundo o uso padrão da língua; • referência do falante: aquilo a que o falante quer referir-se usundo certas expressões, sejam elas apropriadas ou não. 7. Teorias da referência direta: Krlpke e Putnam 111
Em todos estes casos se reconhece um uso das descrições 4ue serve para.fixar a referência, mesmo quando a descrição é equivocada. Insiste-se deste modo na relação direta entre uso de uma expressão e objeto ao qual o falante se refere. Vou lembrar, a seguir, alguns exemplos-padrão da literatura (acerca dos quais convém deter-se um pouco e raciocinar calmamente). Se eu digo "seu marido é gentil com a senhora" indicando aquele que é, sem que eu saiba, o amante da senhora, quero referir-me a ele, e não ao mesmo marido que de nada sabe. Da mesma forma, se digo "o assassino de Smith é louco" indicando a pessoa acusada de assassinato a se agitar na cela dos acusados, uso a descrição de modo referencial: quero então me referir àquele homem. Uso, porém, a descrição de modo atributivo, se digo, por exemplo, vendo Smith esquartejado no chão, "o assassino de Smith é louco", pensando em quem quer que ele seja. Se no caos de uma festa me refiro a uma pessoa indicando-a como "o homem que está bebendo Martini", refiro-me a este, mesmo que esteja, sem que eu saiba, bebendo champanhe. Comum às diversas maneiras de apresentar o problema da ambigüidade da referência é a idéia central segundo a qual existiria um modo direto de se referir a indivíduos que prescinde do preciso valor descritivo das expressões usadas (que para Russell, no entanto, seria um elemento da descrição definida fundamental para que possa ser transformada em uma notação lógica correta). Aquilo que é uma ocasião especial para o uso referencial das descrições definidas toma-se a característica principal dos nomes próprios, considerados - como no Tractatus - tais que se referem diretamente aos objetos, sem mediações cognitivas ou descritivas. Começa assim uma crítica ao descritivismo ou à "teoria descritivista da referência", definida por Kripke como o conjunto de idéias que são comuns a Frege e Russell, ao segundo Wittgenstein e a Searle. Onde se pode achar uma alternativa? Kripke recorda a distinção de John Stuart Mill ( 1806-1873) entre conotação e denotação (cf. 6.4 sobre a distinção geral entre extensão e intensão ). Segundo Mill, os nomes não possuem conotação, mas só denotação. O nome "Darthmouth" significa l 12 Parte II - Linguagem e representação
"na fbz (mouth) do rio Darth", mas se com o tempo II lil:,. do 1111 Nl' d,·Nlo casse e a cidade com esse nome ficasse bem longe d11 dl'S'-'111hrn·11d11rn do rio, o nome cumpriria da mesma forma a sua função. ( 'om cl'cilo, 11 1'1111 ção dos nomes é denotar e não conotar: o fato de que tenham conol11ç1\o . '.· absolutamente secundário e irrelevante para a sua função (poder-se-ia acrescentar que não se acham nomes nos dicionários, que justamente explicam o sentido das palavras). Kripke - com o risco de assimilar com muita facilidade o conceito fregeano de sentido ao conceito milliano de conotação - invoca portanto Mill contra Frege, quando apresenta uma visão alternativa do comportamento lógico dos nomes próprios.
7 .4. As críticas de Kripke e a teoria causal da referência Saul Kripke ( 1940-), seguindo os passos de Russell, aceita a diferença entre nomes e descrições. Segundo Kripke, os nomes próprios da linguagem natural têm justamente as características que Russell atribuía aos nomes "logicamente próprios". De acordo com Kripke, os nomes próprios são termos que designam rigidamente, ou seja: designam um e um só objeto em todos os mundos possíveis (diversamente do que ocorre com as descrições definidas- ao menos quando usadas de modo atributivo - que podem designar diversos objetos em vários mundos possíveis). Segundo Kripke, portanto, é errado pensar que os nomes próprios têm um sentido (como afirma Frege), e que este sentido consiste em uma ou diversas descrições definidas (como afirmam Russell ou Searle ). Diversos argumentos, baseados sobre a diferença de comportamento lógico entre nomes e descrições, mostram que a teoria descritivista é falsa e leva a caminhos errados, e principalmente:
• argumento modal-metafisico: se "Aristóteles" fosse sinônimo de "o filósofo nascido em Estagira, autor da Metafisica", então o enunciado "Aristóteles nasceu em Estagira e escreveu a Metafisica" seria analítico e, portanto, necessário. Noutros termos, seria necessário que Aristóteles tivesse nascido em Estagira etc. Mas seria possível que Aristóteles houvesse nascido em outro lugar, e é um fato con7. Teorias da referência direta: Kripke e Putnam 113
tingente que haja nascido justamente cm Estagiru, ussim como poderia ter morrido muito jovem e não ter escrito a Metc{/isim. Por conseguinte, nome e descrição não são sinônimos e nenhum enunciado do tipo "Aristóteles = fulano de tal" é necessário; • argumento epistêmico: se ficássemos sabendo que Aristóteles não foi o preceptor de Alexandre Magno, deixaríamos de usar a descrição, mas nem por isso cessaríamos de acreditar na existência de Aristóteles. Além disso, se Aristóteles não houvesse sido o preceptor de Alexandre e ninguém ficasse sabendo, então enunciados verdadeiros com o nome "Aristóteles" passariam a ser - sem que o soubéssemos - falsos. Por exemplo, o enunciado "Aristóteles escreveu a Metafisica" se tomaria falso, porque o (verdadeiro) preceptor de Alexandre não escreveu a Metafisica; • argumento semântico: de fato, a cada passo fazemos hipóteses de situações contrafactuais (situações que poderiam ter acontecido mas não ocorreram na realidade). Por exemplo: "Se Aristóteles não tivesse sido o preceptor de Alexandre, Alexandre não teria sido um grande general". Na situação contrafactual em que Aristóteles não é o preceptor de Alexandre, não posso identificar Aristóteles com o preceptor de Alexandre. Com efeito, o antecedente ("Se Aristóteles não houvesse sido o preceptor de Alexandre Magno) seria contraditório (dado que equivaleria a afirmar "Se o preceptor de Alexandre Magno não houvesse sido o preceptor de Alexandre Magno"). Ademais, se Aristóteles fosse sinônimo de "o preceptor de Alexandre Magno", dizer "Aristóteles foi o preceptor de Alexandre Magno" seria uma tautologia, ao passo que é um fato empírico contingente (cf. o argumento modal metafisico).
Dizia a tradição fregeana que o sentido de um nome é um modo de dar a sua referência. Como então se dá a referência, se não é mais praticável este caminho? Kripke propõe a seguinte imagem: um nome é atribuído a um indivíduo com um batismo inicial, que estabelece uma relação direta entre nome e objeto; de pessoa a pessoa, como em uma cadeia, mantém-se a intenção originária de se referir sempre ao mesmo objeto. Conclui-se, portanto, que: 114 Parte II - Linguagem e representação
referência do nome depende de um batismo inicial l' da l'lldl·111 rnwml que liga esse batismo ao uso subseqüente do nome 1111 ro1111111id111k
11
Nasce deste modo a teoria causal da referência. Em vez de se lillnr do sentido de um nome se fala de cadeia causal que liga um nome ao oh1cto designado. Presume-se que a cadeia causal aconteça sem intemap~·ôes ou mudanças, e se mantenha a intenção de sempre se referir ao ob1eto que se acha na origem da cadeia, o objeto do batismo inicial.
7.5. Putnam e as teorias duais O novo paradigma em pouco tempo se tomou predominante, sobretudo entre os filósofos norte-americanos. A teoria da referência direta foi estendida por Saul Kripke e Hilary Putnam ( 1926) à análise dos termos de gêneros naturais, como "tigre", "água", "ouro" etc., e por Kaplan :\ análise dos demonstrativos. Entre os seus resultados se conta o desenvolvimento de teorias "duais" da referência, onde - no conteúdo de uma expressão lingüística - se distingue um componente mental e um componente real ( ou, noutros termos, conteúdo estrito e conteúdo amplo). Não se afirma que os nomes próprios e os nomes dos gêneros naturais sejam totalmente sem sentido ou que não estejam ligados a descrições. Afirma-se, isto sim, que embora o sentido tenha um componente cognitivo, esse componente não determina a referência. Seria então necessário distinguir dois tipos de teorias do significado: teorias da compreensão, que dizem respeito às práticas de uso dos falantes, e teorias da referência, que estão relacionadas com os aspectos causais e objetivos da fixação da referência. O ponto de partida desse tipo de distinção foi esclarecido por Putnam. Afirma este que é impossível aderir ao mesmo tempo a duas teses sustentadas por Frege, a saber: 1. o sentido determina a referência; 2. o sentido é captado mentalmente, é portanto um conteúdo mental.
7. Teorias da referência direta: Kripke e Putnam 115
Putnam sugere um experimento mental cm que se imugi nu que numn terra "gêmea" (em tudo semelhante à nossa) um líquido cm tudo scmc·· lhante à água tenha uma diferente fórmula química (como XYZ cm vez de H20). Antes de conhecer a química, terráqueos e habitantes da terra gêmea julgavam estar usando o mesmo líquido, e o definiam com umu série de descrições comuns a ambos (o líquido que se bebe, o líquido incolor que sai das torneiras etc.). Pode-se portanto dizer que, usando a palavra "água", habitantes da terra gêmea e terráqueos estão mentalmente se referindo ao mesmo conteúdo (as mesmas descrições da água). Mas, embora no mesmo estado mental e com o mesmo significado, os habitantes da terra gêmea e os terráqueos se referiam, sem o saber, a dois tipos de realidades diferentes, que suas descrições não conseguiam discriminar. Por conseguinte, o estado mental e as descrições conexas a um nome de tipo natural não determinam a referência, que é ao contrário determinada por uma relação direta com o mundo. Por outro lado, se alguém quisesse sustentar que o significado determina a referência, deveria achar algo que permita determinar a diferença entre aquilo a que se referem (isto é, entre água e água gêmea, entre H 20 e XYZ); mas neste ponto algo não poderia ser aquilo a que Oscar e Oscar gêmeo se referem mentalmente, dado que, por hipótese, as descrições que atribuem à água são as mesmas. Por conseguinte se deveria negar que o sentido seja um conteúdo mental, isto é, uma coisa que captamos com a mente. Não há remédio: as duas teses de Frege não podem coexistir. Não há um único conceito teórico como o "sentido" de Frege, capaz de desempenhar ambos os papéis (determinar a referência e ser um conteúdo mental). Esses papéis devem, portanto, ser distintos, e uma semântica deve trabalhar sobre dois níveis ou sobre dois aspectos que denominaremos, com uma terminologia usada depois do artigo de Putnam: • o conteúdo amplo: aquilo a que efetivamente os locutores se referem, e que é determinado pelo mundo; • o conteúdo estrito: aquilo que os falantes têm em mente, mas que não basta para determinar sem perigo de equívoco o que existe no mundo. 116 Parte II - Linguagem e representação
Hssu posi1;ào deu origem ao desenvolvimento de "tcorim, d111mi" 1111 1,• 111111s do "duplo aspecto". Um aspecto, no qual é rclcvunh: 11 l'llllll·i'ldo 11111 pio, diz respeito às condições de verdade dos enunciados, e o 11111m 11spw h ,, que pertence ao conteúdo estrito, diz respeito aos pmct•,,·so.,· mt ·111,11.,· d11 ,·omprccnsão. As teorias duais se desenvolveram pelo menos em duns di ll'\'lles diferentes: (i) uma visão psicológica e mentalista do significado, ,ksenvolvida em particular por Jerry Fodor e (ii) uma visão "exlernis111·-social" do significado, desenvolvida por Tyler Burge. O debate neste n1111po põe em jogo não só a definição do significado, mas o problema da rnmpreensão e levanta, deste modo, a questão da competência semântica. Voltaremos mais adiante a esses aspectos (cf. 9.6 e 17.3). Limitamo-nos aqui a recordar um outro instrumento conceituai usado no argumento de Putnam: o uso dos demonstrativos ("este" ou "aquele"). O demonstrativo serve para fixar a referência. Os terráqueos, que hntizaram com o nome de "água" o líquido incolor, continuam usando o seu nome com a intenção de referir-se sempre àquele tipo de substância. Toca-se assim um setor da linguagem com o qual até então poucos filósofos se tinham ocupado: o campo das expressões demonstrativas e indicais em geral. Sobre este tema uma das principais contribuições para a semântica veio de David Kaplan.
7 .6. Kaplan e os demonstrativos ( *) Os indicais são expressões como "eu", "aqui", "agora", que indicam um falante, um lugar e um tempo sem descrição alguma. Os demonstrativos são expressões como "este" ou "aquele", que indicam objetos acompanhados de um gesto demonstrativo. Observa David Kaplan que os indicais e os demonstrativos ( que Russell considerava tais por desempenharem a função de "nomes logicamente próprios": cf. 5.3) têm um comportamento lógico peculiar, que não é assimilável nem aos nomes próprios nem às descrições definidas. Basta dar um exemplo:
(1) Eu estou aqui agora é um enunciado que, quando proferido, é sempre verdadeiro. Isto não vale para o correspondente enunciado que use nomes próprios como: (2) Cario Penco está em Varigotti no dia 10/05/02. 7. Teorias da referência direta: Krlpke e Putnam 117
O enunciado (2), diversamente do enunciado ( 1), pode ser verdadeiro ou falso, pois não há nada que lhe garanta a priori a verdade. Pelo contrário, toda enunciação de ( 1) é sempre verdadeira, ainda que se refira a pessoas diferentes, a vários tempos e a diversos lugares. Além disso, embora sempre verdadeira, essa enunciação não exprime uma necessidade lógica. Eu, com efeito, poderia estar noutro lugar; é puro acaso contingente da vida que eu me encontre no lugar onde estou agora. Como abordar, então, uma enunciação desse gênero? Responde Kaplan: se quisermos abordar indicais e demonstrativos, deveremos inserir em nossa análise um elemento a mais. Não basta falar de mundos possíveis (ou situações contrafactuais ou possíveis estados de coisas). Deve-se inserir em nossa análise semântica o conceito de "contexto de enunciação", ou seja, uma referência explícita ao tempo e ao lugar onde o enunciado é proferido, e ao falante que o profere. Se por contexto entendemos então ao menos a terna , podemos dizer que "eu estou aqui agora" é verdadeiro em todos os contextos, embora não seja uma verdade necessária, isto é, embora não seja verdadeiro em todos os mundos possíveis. Deve-se por conseguinte distinguir: • o caráter de "eu": a regra que diz que "eu" se refere à pessoa que emite a expressão no contexto, ou ao falante no contexto; • o conteúdo de "eu": a intensão ou o conceito individual ou a função (designador rígido) que te dá o mesmo indivíduo em todos os mundos possíveis (Kaplan, por fim, simplificará dizendo que o conteúdo é o próprio indivíduo). Esta distinção conteúdo/caráter é um novo animal do nosso zoológico semântico, uma distinção que se pode aplicar a todas as expressões. O caráter é o significado lingüístico do tipo de expressão, ao passo que o conteúdo está ligado ao token, ao uso da expressão em um contexto. Já o caráter é, do ponto de vista da semântica formal, a função que, dado um contexto, dá um conteúdo. De modo informal, pode-se dizer que, dado um contexto, quem conhece o caráter de "eu" sabe a quem se está referindo quando ouve usar a palavra "eu". Isto é algo que todos sabemos fazer: a semântica procura representar formalmente esta habilidade com clareza e rigor. 118 Parte II - Linguagem e representação
7. 7. Quebra-cabeças da crença, neofregeanos e neo-russellianos e*) A teoria da referência direta está ligada à semântica modelística. Mas por outro lado a semântica modelística - como já vimos - tem difirnldade (por exemplo o problema da onisciência lógica) para tratar dos rnntcxtos de crença (cf. 6. 7). Parece que os contextos de crença continuam sendo um problema de fundo para a teoria da referência direta: 11.10 se vê claramente como esta teoria será capaz de explicar aquilo que I.'.· facilmente explicado por uma teoria fregeana, ou seja, o fato de que de "x acredita que Vésper é um planeta" não posso derivar "x acredita que l .úcifer é um planeta", embora Vésper e Lúcifer denotem o mesmo objelo ( cf. 4.4 ). Para Frege, a diferença de valor cognitivo, dada pela diferen\"ª de sentido dos dois nomes, permite bloquear a derivação; mas se a se1rn1ntica dos nomes próprios deve deixar de lado os sentidos fregeanos, não se vê como bloquear esta passagem. Portanto, uma teoria da referência direta esbarra em dificuldades onde a teoria fregeana oferece uma solução fácil. Saul Kripke respondeu a essa crítica demonstrando que tanto a visão de Frege como a da referência direta encontram a mesma dificuldade quando enfrentam este tipo de problema. Mostra ele como, a partir da assunção de dois princípios comumente usados e aceitáveis quer em uma visão fregeana quer em perspectiva milliana se cai em um quebra-cabeças a propósito dos enunciados de crença. Os princípios comuns, que Kripke mantém como universalmente aceitos, são os seguintes: princípio de tradução: se um enunciado exprime uma verdade em uma linguagem, uma tradução sua em uma outra linguagem exprime uma verdade também na outra linguagem; princípio de decitação: se um falante normal e não confuso conceitualmente aceita sinceramente "p", então ele acredita que p. Se aceitamos estes princípios, somos obrigados a atribuir aos sujeitos falantes crenças contraditórias. Isto acontece no caso de Pierre que 7. Teorias da referência direta: Kripke e Putnam 119
acredita que Londres é bela, tendo visto uma foto da cidude, cm Puris, quando era criança (exprimira a sua crença com "Londres esl jolie"), e acredita que não é bela uma vez que teve experiência dos bairros pobres da capital da Grã-Bretanha (exprime-se em inglês dizendo "London is not pretty"). E não se dá conta de estar falando da mesma cidade. Nós, porém, se seguimos os princípios de tradução e de decitação, não podemos senão atribuir a Pierre a crença que Londres é bela e não é bela, u partir do assentimento que Pierre dá a ambos os enunciados e da equivalência de tradução "Londres est jolie" e "London is pretty" (o argumento de Kripke necessitaria de uma certa elaboração; aqui remetemos à leitura do ensaio). Conclui Kripke: a solução fregeana não basta para resolver as dificuldades dos enunciados de crença, e devemos rever pelos fundamentos o nosso conceito de "conteúdo de uma crença". Sobre esse ponto lógicos e filósofos estão hoje trabalhando, inclusive para atender às exigências dos técnicos em informática que querem respostas para seus robôs, máquinas que acreditam naquilo que nós acreditamos. Mas o problema é: cremos o quê? Houve muitas tentativas de mediação entre a posição descritivista e a referencialista. Por um lado, autores como Gareth Evans e John McDowell mostraram que as idéias de Frege sobre o sentido dos enunciados com nomes sem referência (cf. 4.2 e 7 .1) devem ser reinterpretadas enquanto esses sentidos exprimem, como diz muitas vezes Frege, "pensamentos fictícios". Os pensamentos no sentido forte devem ter suas raízes em uma referência direta aos objetos. Por outro lado, autores como Fodor e Burge reconheceram que a teoria da referência direta é correta na medida em que define o conteúdo "metafisico" de nossas asserções. É mister, todavia, reconhecer que os modos de apresentação que preocupavam Frege devem assumir um papel em nossa representação da linguagem e da compreensão, embora não toquem as condições de verdade objetivas. A discussão tende para uma convergência entre os que podem ser definidos como "neo-russellianos" e "neofregeanos". John Perry e François Recanati estão à procura de formas de mediação entre a visão descritivista fregeana e as teses da referência direta. A grande fratura entre 120 Parte II - Linguagem e representação
1'l'lcrcncialistas e dcscritivistas não é, portanto, lilo 1tl'l'llll11ul11 rn11111 p11 n:l'in e quase todos continuam falando, mesmo fazendo 11111il11s dislin \'1ks, sobre os "modos de apresentação da referência" tn111h(•111 l'OIII rl'ln \'llo aos nomes próprios.
Bibliografia essencial I IILARY, Putnam. "Possibilidade/necessidade". ln: Enciclopédia Einaucli. Lisboa: INCM, 1988, p. 90-111.
"É a água necessariamente H20?" ln: Realismo de rosto humano. Lisboa: Piaget, 1999. MURCHO, Desidério. Essencialismo naturalizado. Coimbra: Angelus, 2002. SEARLE, John. Mente, linguagem e sociedade. Rio de Janeiro: Rocco, 2000 [Trad. de F. Rangel]. SILVA GRAÇA, Adriana. "Referência e denotação". ln: Disputatio, maio/2002. STRA WSON. "Sobre la referencia". ln: Ryle/Austin!Quine/Strawson. São Paulo: Abril, 1975 [Coleção Os Pensadores].
Parte 111 I LINGUAGEM E AÇÃO
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Sentido, tom, força: uma ~tradução
SUMÁRIO
Neste capítulo se discute o conceito fregeano de sentido em contraposição 11 outros elementos da sua visão da linguagem: a força e o tom. Esses dois aspectos ganharão amplo desenvolvimento na filosofia subseqüente, especialmente com Austin e Grice. Apresenta-se, em 8 .1, a distinção entre compreender, julgar e afirmar. São três tipos de ação que se referem ao pensamento. A força assertória exprime lingüisticamente o reconhecimento da verdade de um pensamento. Afirmar é, portanto, uma ação lingüística que corresponde ao ato mental do julgar, e pressupõe o ato mental do compreender. Em 8.2 e 8.3 se discute o conceito de sentido como aquilo que permanece através das diferen\as de tom. Quando usa os termos "tom" ou "colorido" da linguagem, Frege quer referir-se aos aspectos que não dizem respeito ao juízo sobre a verdade dos enunciados, mas à relação do enunciado com as intenções dos falantes. 1isses aspectos são traduzidos pelas diferenças gramaticais e pelos diferentes modos como um falante, embora não afirmando explicitamente uma coisa, a dá a entender ao auditório. O capítulo se encerra com uma breve discussão sobre o t:onceito de contexto e sobre a idéia fregeana dos pensamentos como entes de um reino platônico objetivo (8.4 ). Este é o modo pelo qual Frege salva a objetividade dos pensamentos diante da subjetividade dos processos mentais da t:ompreensão, que muitas vezes depende do contexto de emissão.
8.1. A distinção sentido/força e o problema da compreensão Em seu artigo O pensamento, escrito em 1918 e lido atentamente por Wittgenstein ao qual o enviara, Frege estabelece uma distinção entre: 1. o apreender um pensamento - o pensar; 2. o reconhecimento da verdade de um pensamento - o julgar; 3. a manifestação deste juízo - o afirmar (ou asserir). 8. Sentido, tom, força: uma introdução 125
Enquanto os dois primeiros são atos ou processos mcntuis, o tcrccirn é um ato ou processo lingüístico. Frege distingue assim entre a com111·,• ensão do pensamento ou sentido de um enunciado, o Juízo sobre sua ver dade e a asserção que se pode fazer proferindo o enunciado como vcrdn deiro. Já na Ideografia (1879) ele usa um sinal particular para exprimirn que ele depois denominará "força assertória". Para Frege, julgar é umn ação: a ação mental do reconhecer a verdade. A expressão lingüística dl• um juízo é a asserção, e esta ação lingüística deve ser reconhecida no simbolismo lógico através de um sinal especial. O sinal de força assertória ( r) indica, portanto, que o enunciado logo após o sinal é usado parn afirmar que tudo aquilo que se diz é verdadeiro 1• Mas nem sempre um enunciado se usa com força assertória: um mesmo enunciado pode ser usado, por exemplo, com força de interrogação, ou também simplesmente tomado em conta sem ser julgado verdadeiro. Estes casos ocorrem muitas vezes na ciência, quando não se tem certeza da verdade de uma hipótese: as hipóteses são análogas a perguntas, são enunciados cujo sentido não se afirma como verdadeiro até que sua verdade seja reconhecida. Algo análogo vale para os enunciados condicionais: se afirmo "se eu perder o avião então não chegarei a tempo", não estou afirmando que vou perder o avião ou que vou chegar atrasado, mas apenas que, se eu o perder, não chegarei a tempo. O antecedente e o conseqüente do condicional não são afirmados, afirma-se apenas o condicional em seu conjunto. Uma teoria da linguagem deverá, então, distinguir em uma enunciação lingüística o sentido ou conteúdo informativo da enunciação e a força. Pode-se definir a força do seguinte modo: a força de um enunciado indica o modo ou o objetivo em que o enunciado é proferido (por exemplo, para afirmá-lo como verdadeiro ou para perguntar se é verdadeiro).
1. O sinal de asserção de Frege 1- foi também usado por Russell nos Principia mathematica, e de novo discutido por Reichenbach, mas não teve muita continuidade na lógica do século XX. Sob certos aspectos, herdeiro do sinal de asserção (mas que não se deve confundir com ele) é o sinal metateórico de derivação, que indica a conclusão de um argumento ou uma demonstração (do tipo p,p -t ql-q).
126 Parte III - Linguagem e ação
/\ força diz respeito uo modo ou ao objetivo geral com o qual se proh'n.· um enunciado: para afirmar a verdade do pensamento expresso ou p11rn perguntar se é verdadeiro. Dada a definição fregeana de pensamen111 como sentido de um enunciado, a distinção sentido/força passa a ser 11ssim um componente central do paradigma fregeano, distinção contra a qual se vai pronunciar Wittgenstein (cf. 9.1) e sobre a qual, embora de 111aneira diferente de Frege, Austin desenvolverá uma teoria das ações lingüísticas (cf. 10.4).
8.2. Sentido, tom e inferência O mesmo sentido pode ser expresso em várias línguas, em diversos dialetos ou até de modos diferentes na mesma língua. Noutros termos, o mesmo sentido pode ser expresso por enunciados com um tom diferente. Pelo termo "tom" Frege entende o particular colorido dado pela forma µ,ramatical ou pela escolha dos vocábulos (ou mesmo, talvez, pela forma de pronunciar e pelo contexto). Expressões como "o policial atirou no niminoso" ou "the policeman shot the criminal", "o policial acertou o meliante", "o bandido foi atingido pelo policial", embora exprimindo diversos matizes conotativos, são enunciados com o mesmo sentido ou com o mesmo conteúdo conceituai ou informativo. As diferenças de forma gramatical ou estilística não devem fazer esquecer o sentido ou núdco cognoscitivo (informativo) comum, que caracteriza tais enunciados e que Frege às vezes chama de "conteúdo conceituai". O conteúdo conceituai, por conseguinte, é o que se mantém constante na tradução de uma língua para outra, mas também em diversos modos de se exprimir na mesma língua. Não basta, porém, afirmar que o sentido é aquilo que se mantém constante na tradução ou na diversidade de estilos. Necessita-se de uma definição de "sentido" independente da idéia de tradução. Frege a oferece na Ideografia, dando uma definição de identidade de sentido: pode-se atribuir o mesmo sentido a enunciados dos quais se inferem as mesmas conclusões (por exemplo, de todas as frases supracitadas e outras óbvias premissas colaterais se pode deduzir que o bandido foi ferido, que o po8. Sentido, tom, força: uma introdução 127
licial usou uma arma, que a pessoa forida poderá ser incriminada etc.). Podemos, portanto, apresentar uma nova definição de sentido:
sentido ou conteúdo conceituai de um enunciado é o seu potencial inferencial. Por "potencial inferencial" se entende a capacidade de um enunciado de permitir diversas inferências, ou seja, de se tirar do enunciado um certo conjunto de conseqüências. Esta maneira de ver o sentido como potencial inferencial é uma característica muito discutida na filosofiu contemporânea sob diversas etiquetas, como "semântica do papel inferencial" ou "semântica do papel conceituai". A idéia de fundo dessas tendências (cf. cap. 16) é esta: compreender o sentido de um enunciado equivale a conhecer as principais inferências que estão ligadas a ele (para compreender o sentido de "aquela poltrona é vermelha", devo saber que o vermelho é uma cor e que uma poltrona é um objeto fisico que serve para a pessoa sentar-se). Esta definição é sob certos aspectos ainda mais geral que a definição do sentido como condições de verdade, mas com certas restrições as duas definições podem ser integradas. As condições sob as quais um enunciado é verdadeiro determinam efetivamente a classe de todas as conseqüências.
8.3. Sentido, tom e intenção Portanto, o sentido ou conteúdo cognitivo de um enunciado se distingue não só da força com a qual se emite o enunciado, mas também do tom ou colorido retórico associado a ele. Enquanto o sentido se revela claramente na forma lógica, o tom se revela na forma gramatical. Uma das conseqüências mais notáveis das reflexões sobre o conceito de tom e sobre a diferença entre forma gramatical e forma lógica (cf. 2.4 e 2.5) diz respeito à distinção entre sujeito e predicado, distinção considerada central em lógica, durante séculos, mas não assim por Frege:
128 Parte III - Linguagem e ação
distinção sujeito/predicado é um aspecto da gram{1tica que pmll· ~l'I relevante para influenciar os falantes, e diz respeito então ao tom. 11111~ niio ao sentido ou conteúdo conceituai.
11
Expressões com diferentes sujeitos gramaticais podem ter o mesmo sentido e um tom diferente (por exemplo, "os gregos derrotaram os persas em Platéia" ou "os persas foram derrotados pelos gregos em Platéia"). O mesmo se pode dizer das diversas nuances da língua, que Fregc chama às vezes de as "vestes" com as quais o sentido se cobre. Frege atribui enorme valor à poesia, e insiste muitas vezes sobre a diferença entre poesia e ciência. Reconhece humildemente que não se pode pedir muita coisa à sua ideografia ou escrita formal. Ela pode servir assim como o microscópio serve ao olho nas análises científicas, mas não se lhe pode imputar a incapacidade de captar os aspectos poéticos, bem como não se pode imputar ao microscópio a incapacidade de nos fazer gozar de um pôr-do-sol a olho nu. Mas que função tem o tom? Ele tem, sobretudo, a função de comunicar aquelas intenções dos falantes que não se podem reduzir ao conteúdo cognitivo explícito e direto, mas dependem, como diz Frege, da relação do falante com as circunstâncias e o auditório. Nas diferenças de tom se revelam diferenças nas atitudes dos falantes. Frege faz poucas alusões a esses aspectos, mas essas poucas alusões são bastante claras. Ele recorda que muitas vezes se exprimem também coisas que se quer dar a entender, mas não se dizem expressamente. Vejamos por exemplo a diferença entre "aquele cão latiu a noite inteira" e "aquele vira-lata latiu a noite inteira". Os dois enunciados têm o mesmo sentido, mas com o sentido quero implicitamente dar a entender algo diferente do primeiro, embora sem o afirmar explicitamente (por exemplo, que tenho uma baixa opinião do cão). Com este exemplo Frege, em um texto de 1897 intitulado Lógica, distingue "entre os pensamentos expressos e aqueles que o ouvinte é induzido a considerar verdadeiros" (tradução italiana, p. 131 ). Essa distinção é retomada sucessivamente por diferentes autores que ana1isam o tema da intenção: nem sempre o conteúdo literal daquilo que dizemos corresponde àquilo que pretendemos dar a entender. 8. Sentido, tom, força: uma introdução 129
Poderíamos resumir assim a distinção entre sentido e tom do modo seguinte: Sentido conteúdo cognitivo direto
Refere-se ao conteúdo cognitivo expresso pelo enunciado e à sua verdade.
Tom conteúdo indireto
Diz respeito às intenções dos falantes e àquilo que se sugere, mas não se afirma explicitamente.
Frege não dedicou muita atenção ao conteúdo indireto, visto que seu principal trabalho estava ligado à representação lógica do discurso ma . temático, onde tudo deve ser explícito e claro, e onde as intenções dos falantes têm pouca relevância. Mas os filósofos que seguiram Frege dedicaram muito mais atenção aos fenômenos da comunicação e do diálogo, onde o conteúdo indireto dependente das intenções do falante e do contexto tem uma importância preponderante (cf. 11.3).
8.4. Sentido e contexto de uso: o porquê do "terceiro reino" Como já observamos em outro tópico (cf. 4.5), Frege destaca que em enunciados do tipo "esta árvore está coberta de folhas", a simples seqüência de palavras não é a expressão completa do pensamento. Se não se sabe a que árvore se está fazendo referência com "esta", ou quando e onde se proferiu a frase, não se tem como captar o pensamento completo. Fica-se, portanto, na situação em que o enunciado exprime não mais e sim menos em cotejo com um pensamento completo: • por um lado, uma enunciação exprime muitas vezes algo mais do que um pensamento, isto é, exprime quer a força quer aspectos de colorido e tom que vão além do mero conteúdo cognitivo do enunciado, que se pode avaliar como verdadeiro e falso (cf. 8.2-8.3); • pelo outro, muitas vezes a simples seqüência das palavras de um enunciado não basta para exprimir um pensamento, mas o exprime somente se completada por aspectos temporais e por outras "circunstâncias concomitantes" dadas pelo contexto (como expressões dos olhos e outros aspectos do comportamento).
l 30 Parte III - Linguagem e ação
No primeiro caso, quando se tala de tom se estão tocando us inten\lks dos falantes e, deste modo, entra-se no terreno da psicologia. Mas 111111hém no segundo caso se faz necessário que a compreensão do pensallll'lllo toque aspectos contextuais ligados às circunstâncias concomitanll'N, 110 tempo e ao lugar da enunciação e às intenções dos falantes. Pare1·,· cnlão que o pensamento depende de situações ocasionais e das rela~1ks entre os falantes, e perde aquela objetividade que Frege pretendia 1,·servar ao reino do sentido enquanto contraposto à representação sub1, ·ti ,•a (c[ 4.1 e 12.1). /\ postura com a qual se considera o pensamento principalmente em 11111a perspectiva psicológica é comum na época de Frege. Muitos dos SL'IIS contemporâneos tendem a situar o pensamento no mundo das representações subjetivas e a defini-lo como alguma coisa que diz respeito L'Ssencialmente à psicologia. Como é que Frege reage a este comportamento? A reação de Frege consiste em um lance retórico que coloca os pensamentos em um "terceiro reino", um modo de ver que foi com razão definida "platonismo fregeano": os pensamentos pertencem a um reino que não é constituído nem por entes fisicos (coisas do mundo externo) nem por entes psíquicos (representações mentais), mas é um terceiro reino, o reino dos pensamentos2. Para justificar essa tese, Frege afirma que os pensamentos têm validade atemporal: eles são um patrimônio comum da humanidade. Um exemplo de pensamento atemporalmente verdadeiro? O teorema de Pitágoras. Frege argumenta que se o teorema de Pitágoras fosse um ente psíquico, existiriam inúmeros teoremas: cada um teria o "seu" teorema de Pitágoras e seria impossível uma ciência comum. Mas isto não ocorre: o teorema de Pitágoras é sempre verdadeiro independentemente do fato de que alguém o compreenda deste modo ou daquele. Da mesma maneira, "a grama do prado é verde" é eternamente verdadeiro ou falso. 2. Um modo de ver análogo, "laicizado", é proposto mais tarde também por Knll 1'11p per, que fala de um "terceiro mundo", o mundo dos produtos culturais.
8. Sentido, tom, força: uma lntrodu1,au lJ 1
embora o enunciado cxprimu um pensamento que pode ser reconhecido por uma pessoa somente cm um certo tempo e um certo espaço. O problema é que temos acesso aos pensamentos mediante o processo mental do compreender, que se deve ocupar com aspectos ligados não apenas ao espaço e ao tempo, mas também às intenções e_ aos gestos dos interlocutores: isto implica o problema de explicar a compreensão. A solução fregeana para os riscos de se subordinar o pensamento à psicologia dos interlocutores é radical: separar o processo mental do compreender do conteúdo daquilo que se compreende, "expulsar os pensamentos da mente" (Dummett). Temos acesso aos pensamentos mediante o processo mental do compreender, que é situado no tempo e no espaço e na psicologia do falante, mas a verdade dos pensamentos não depende da nossa compreensão. A compreensão é apenas o processo mental que permite colocar o falante em contato com o pensamento objetivo e eterna e atemporalmente verdadeiro. E Frege conclui: compreender é um processo misterioso, "o mais misterioso de todos os processos", porque põe em contato uma ação psíquica subjetiva (o ato mental do apreender um sentido) e uma realidade objetiva (os pensamentos ou sentidos dos enunciados). Mas, como vimos no início do capítulo, compreender o significado é apenas o primeiro passo da ação que é para Frege a ação lingüística por excelência: a asserção (ou afirmação). Frege se utiliza do trabalho de análise do contexto para identificar o conteúdo da asserção. Não é por conseguinte casual que o entrelaçamento de idéias propostas por Frege levará à elaboração da visão da linguagem como algo essencialmente ligado à ação, e em geral ao contexto de enunciação. A influência mais direta deste conjunto de teses fregeanas se percebe no segundo Wittgenstein que, em certas características, radicaliza alguns aspectos dessas teses (como o da dependência contextual do sentido), enquanto denuncia e se contrapõe a outros aspectos (por exemplo, a maneira de ver a compreensão como um misterioso processo mental).
132 Parte III - Linguagem e ação
Entre os autores que se inserem nesta reflexão sobre a linguagem como ação merecem lugar especial John Austin, que fez do conceito de "força" o gonzo de sua teoria da ação lingüística, e Paul Grice, que se ocupa com esse tipo particular de intercâmbio lingüístico constituído pela conversação. Com estes temas entramos de forma mais decisiva na dimensão pragmática, no estudo das relações entre expressões lingüísticas e falantes.
Bibliografia essencial FREGE, Gottlob. "Sentido y referencia". ln: ID. Lógica e filosofia da linguagem. São Paulo: Cultrix/Edusp, 1978 [Trad. de Paulo Alcoforado]. - Investigações lógicas. Porto Alegre: Edipucrs, 2002 [Trad. de Paulo Alcoforado]. lntelectu, n. 9, out./2003 [www.intelectu.com]. MIGUENS, Sofia. Racionalidade. Porto: Campo das Letras, 2004.
8. Sentido, tom, força: uma Introdução 133
9
Significado e uso: o segundo Wittgenstein
SUMÁRIO
Sem dúvida, Wittgenstein é profundamente influenciado por Frege. De modo particular, quer no Tractatus quer nas Investigações filosóficas, Wittgenstein cita o princípio fregeano do contexto, mas lhe dá uma interpretação liberalizante. Isto há de ter conseqüências na sua filosofia da linguagem, centrada em tomo do conceito de "jogo de linguagem" (9.1 e 9.2). Deste contexto nasce a idéia segundo a qual o significado de uma palavra é o seu uso na linguagem (9.2). O conceito de jogo de linguagem (ou jogo lingüístico) considera, então, a linguagem como um tipo de ação regulamentada: surge, portanto, o problema de como se pode executar adequadamente a ação lingüística ou noutros termos - como será possível compreender as regras e ter a certeza de aplicá-las corretamente. Este é hoje um tema reconhecido como central na obra do segundo Wittgenstein (9.3). Para Wittgenstein, a filosofia é uma luta contra o enfeitiçamento a que somos submetidos pela linguagem. Esta atitude sua foi definida como "quietismo" e está centrada na idéia que a filosofia deixa tudo como está e procura apenas dar sossego aos tormentos do intelecto (9.4). Apesar de seu quietismo, algumas das idéias de Wittgenstein produziram enorme impacto, não só em filosofia, mas também noutros campos científicos: alude-se aqui ao tema das semelhanças de família (9.5) e às suas conseqüências no debate sobre a divisão do trabalho lingüístico.
9.1. Princípio do contexto e virada pragmática Influenciado pelas obras de Frege, pelo qual nutria enorme admiração, Wittgenstein desenvolve, após o Tractatus, uma atormentada crítica de sua obra de juventude. Em uma carta onde comenta o Tractatus, sugeria Frege a Wittgenstein que produzisse mais exemplos. As Investigações filosóficas, publicadas postumamente em 1953, são a aceitação desse conselho: aqui os exemplos e os experimentos mentais desempe134 Parte III - Linguagem e ação
11h11m papel essencial. O livro representa um marco no panornmu lilosólll'O internacional: embora sejam mantidas algumas das idéias centrais do fraC'latus (por exemplo: a filosofia é uma atividade e não uma doutri1111 ). o conjunto do trabalho se apresenta como antagonista da primeira ohra. Diversas coisas mudam e se desenvolve, sobretudo, uma análise dus múltiplas funções da linguagem. A linguagem não é somente um 111eio ,para descrever o mundo, um meio cuja estrutura lógica essencial é possível pôr em evidência, como propusera Russell. Ao contrário, Witt~cnstein se preocupa (i) em aprofundar os diferentes usos da linguagem que Frege tinha esboçado quando falou de tom e força, e (ii) em desenvolver a idéia segundo a qual o sentido sempre depende do contexto. Wittgenstein enfatiza assim o fato de que a linguagem está indissoluvel111ente ligada a um contexto de ações, usos, instituições. Neste ponto ele vai levar às últimas conseqüências o princípio fregeano de contextualidmle, utilizado no Tractatus onde "um nome tem uma referência só no rnntexto de um enunciado" (cf. 4.4). Nas Investigações filosóficas, o filósofo mantém o princípio de contextualidade e o antipsicologismo que a ele está ligado, embora refute o "platonismo" fregeano do terceiro reino. Para Wittgenstein, o significado de uma palavra não é • nem um objeto, • nem uma imagem mental, • nem um ente do terceiro reino, mas é o uso da palavra em um contexto dado. É como se Wittgenstein transferisse o significado do céu do terceiro reino para o solo da prática lingüística. Lugar central ocupa nesta sua complexa relação com as idéias de Frege o conceito de "jogo de linguagem": um jogo de linguagem é um contexto de ações e palavras no qual uma expressão pode ter um significado. A grande diferença em relação a Frege é a aparente recusa a sistemutizar a análise da linguagem e, de modo particular, o não querer utiliznr 11 distinção sentido/força. Para Wittgenstein, essa distinção sistemútic11 não é praticável por causa da variedade dos jogos de linguagem. ( '0111 efeito, o sentido de uma expressão não pode ser isolado do seu uso no 9. Significado e uso: o segundo Wlttgensteln 135
jogo e du diferença que comporta o fato de ela ser usudu cm oulrnsjogoN. O uso cm um jogo lingüístico inclui, além disso, aquele elemento lllU.' Frege denominava "força": se existe força, esta é intrínseca ao uso no jogo de linguagem e é assim inerente ao sentido da expressão. O sentido ou significado só pode, portanto, dar-se considerando o jogo de linguugem no seu conjunto e nas diferenças com outros jogos. · Mas ainda resta muito trabalho para o filósofo, em particular o estudo dos mal-entendidos provocados por um mau uso da linguagem. Nislo Wittgenstein é herdeiro da visão fregeana da filosofia como luta contra os mal-entendidos da linguagem. Neste capítulo vamos limitar-nos a algumas breves alusões a alguns conceitos-chave da filosofia da linguagem de Wittgenstein, desenvolvida através da discussão dos temas clássicos d11 disciplina: a nomeação, a proposição, o significado. A importância da generalização que ele faz do princípio fregeano do contexto vai se revclur cada vez mais importante no desenvolvimento da filosofia contemporânea, ainda que utilizada de maneiras diferentes e com resultados diversos dos que ele havia proposto. Sobre este ponto vamos nos debruçar mais longamente nos capítulos 13 e 14. Já nos capítulos 1Oe 11 vamos seguir o desenvolvimento da idéia da linguagem como ação e, portanto, as análises de tipo pragmático, aquelas que dão relevância à relação entre signos e falante (caso nos atenhamos à definição de "pragmática", dada em 3 .1 ).
9.2. Jogo de linguagem e significado como uso Wittgenstein critica duas das tradicionais teorias do significado: (i) a idéia segundo a qual a língua é uma nomenclatura e que aprender uma língua equivale essencialmente a aprender a associar palavras e coisas, por definição ostensiva ("isto se chama N"); (ii) a idéia segundo a qual o significado é uma imagem mental associada a uma palavra. A análise das primeiras páginas das Investigações tem por intuito mostrar a multiplicidade dos usos das palavras e dos enunciados, a partir da tese que uma palavra - segundo o princípio de Frege - só tem significado no contexto de um enunciado. Embora aparentemente semelhantes (sons emitidos pela voz, ou sinais traçados em uma folha de papel), as expressões lingüísticas têm funções múltiplas e muito diferentes 136 Parte III - Linguagem e ação
,•11ll'l' si (justumente como pregos, martelo, pinçu e cola, embora tmlus 1 l'l•ms coisas possam ser categorizadas sob uma única etiqueta, como "111Nlrumentos de trabalho", desempenham funções diferentes não redu, 1Vl'IS a uma essência comum). Para compreender a diversidade das fun\'1ks da linguagem convém estudar exemplos específicos de usos lin~11is1icos em situações particularmente simples. Wittgenstein propõe qlll' s~ façam experimentos mentais em que se veja a linguagem entrar ,·111 função de uma situação idealizada (ou simplificada). Podemos imalJ.111111" que a linguagem usada nesta situação seja uma linguagem primitivu rnmpleta. Nasce deste modo o conceito de "jogo de linguagem", um 1'1111lcxto de ações e palavras em que se definem os usos - ou seja, os sig11i licados - das próprias palavras. 1
No pensamento de Wittgenstein o jogo de linguagem desempenha dois papéis: 1. é um instrumento para o estudo da linguagem: estudando as situa-
ções idealizadas muito restritas é possível esclarecer alguns aspectos da linguagem; 2. é um dado de onde se pode partir: pode-se falar da linguagem, não procurando a sua essência como no Tractatus, mas descrevendo diferenças e semelhanças dos jogos de linguagem. No início das Investigações filosóficas, Wittgenstein apresenta um jogo de linguagem elementar, que enriquecerá no decorrer do livro: dois pedreiros trocam material de trabalho dizendo os nomes de objetos, como "tijolo", "ladrilho", etc. O ponto do exemplo é que mesmo uma linguagem tão simplificada não pode ser reduzida às teorias (i) ou (ii). Com efeilo, as enunciações verbais dos pedreiros não são simplesmente nomes de objetos ou imagens correspondentes; elas correspondem, isto sim, àquilo que, na linguagem cotidiana, seriam ordens, ou seja, proposições complelas. Toda linguagem é um jogo, no sentido de ser constituída por regras e pela sua aplicação (os "lances" do jogo ou "jogadas"). Como no jogo do xadrez, por exemplo, limitar-se a dizer "isto é um peão" não equivale a fuzer um lance do jogo, e para fazer um lance é mister movimentar o peão segundo as regras, assim também no jogo de linguagem não se fnz nenhum movimento a menos que se pronuncie um enunciado. O menor lance de um jogo de linguagem é a emissão de um enunciado. 9. Significado e uso: o segundo Wlttgensteln 137
A conclusão desta análise mostra que: o significado de uma palavra é o seu uso no contexto de um enunciado e, por conseguinte, no contexto de um jogo de linguagem. Se o significado é definido como uso (no jogo de linguagem), tira-se toda a aura metafisica ao significando, denunciando a existência de vários pontos de vista teóricos: • os significados não constituem objetos de um tipo especial, como os "sentidos" de Frege, entes que pertencem ao "terceiro reino"; • os significados não podem ser reduzidos à referência, como sustenta por exemplo quem reduz o papel dos nomes próprios ao mero ato de fornecer a referência, o objeto denotado; • não se podem reduzir os significados a entes mentais, como é usual em psicologia e na tradição empirista dos significados como idéias. O uso é algo observável objetivamente, não uma entidade abstrata ou psíquica. Pode-se, por conseguinte, dar uma descrição objetiva dos usos lingüísticos e dos significados das nossas expressões, reportando-as ao contexto em que são originariamente usadas. Muitas das vezes, numerosos mal-entendidos da linguagem dependem do fato de se usar uma palavra fora do contexto que lhe é apropriado (veremos em 9.4 um exemplo desse tipo a propósito da palavra "saber"). Na primeira parte das Investigações filosóficas, do§ 1 ao§ 137, desenvolve Wittgenstein uma crítica rigorosa a diversos aspectos das teorias de Russell e do próprio Tractatus. Uma primeira análise sua critica a idéia segundo a qual a linguagem está baseada em definições ostensivas (do tipo "isto se chama N"). Wittgenstein mostra que para se compreender semelhante definição é necessário já estar de posse de um certo tipo de noção. Por exemplo, para compreender o enunciado "isto se chama sépia" é mister que se saiba que se está falando de uma cor e não de uma outra propriedade qualquer. A intuição de fundo sobre a multiplicidade dos usos lingüísticos tem dado origem a aplicações diferentes por parte dos filósofos que vieram depois de Wittgenstein. Waismann, que conviveu com Wittgenstein por 138 Parte III - Linguagem e ação
muitos anos, na década de 1930, cunha o termo "tcssitura ahcrta" pum falar da dependência contextual do significado. Muitas outras idéias se inspiram na lição wittgensteiniana, e entre estas queremos recordar: (i) a visão dos diversos usos das descrições definidas, uso atributivo e uso referencial (7.3); (ii) a variedade de usos lingüísticos examinada por Austin com sua teoria dos atos ilocucionais (10.4); (iii) a teoria do significado como condições de assertibilidade, sustentada por Michael Dummett (16.3); (iv) a teoria do significado como conjunto de condições de uso, defendida por Robert Brandom (16.4); (v) a proposta de não se falar mais em termos de significado, mas em termos de competência lingüística observável, como faz Diego Marconi (17.5).
9.3. Compreender e seguir uma regra Fica ainda de pé, para Wittgenstein, resolver o problema do que significa "compreender" o significado. Entre os objetivos polêmicos do filósofo se acha a concepção fregeana da compreensão (cf. 8.4). Frege havia distinguido três "reinos": o fisico, o mental e o reino dos pensamentos ou "terceiro reino". Segundo Frege, os pensamentos são objetivos e independentes da pessoa que os apreende, portanto o compreender - o ato mental de apreender pensamentos - é um processo misterioso no qual o subjetivo e o objetivo - o reino mental e o reino dos pensamentos - entram em contato um com o outro. Wittgenstein pretende manter a objetividade do pensamento, criticando ao mesmo tempo a idéia do compreender como um misterioso processo mental. Afirma ele que para o filósofo "não há nada escondido": não devemos sair à procura de essências misteriosas "por trás" daquilo que estamos vendo (diversamente, por exemplo, de um cientista interessado em analisar os processos neurofisiológicos que nos estão escondidos à primeira vista e que regulam o funcionamento do cérebro). O filósofo não realiza pesquisas empíricas, mas pesquisas conceitunis, 9. Significado e uso: o segundo Wlttgensteln 139
portanto não precisa explicar, mas deve limitar-seu d,wc'l'C'l'c'I' o funcionamento da linguagem: descrevendo-se o uso, com efeito, licam esclarecidos os conceitos. Temos tudo diante dos olhos: compreende quem sabe usar de maneira apropriada as palavras. O filósofo não vai estudar a co~preensão do ponto de vista dos processos psíquicos internos ou dos processos cerebrais, mas vai analisar a gramática da palavra "compreensão". Desta análise gramatical se infere que o compreender não é um processo mental (embora seja acompanhado de processos mentais), mas uma capacidade objetiva e publicamente controlável: compreender é a capacidade de usar corretamente os sinais. Como diz um parágrafo muito citado das Investigações filosóficas, e que constitui um exemplo da ampliação do princípio do contexto: "compreender um enunciado é compreender uma linguagem. E compreender uma linguagem é dominar uma técnica". Mas, o que quer dizer usar "corretamente" os sinais? O que é que garante a correta compreensão e a correta aplicação dos sinais? Wittgenstein levanta este problema a partir do § 188 das Investigações filosóficas, onde começa a desenvolver aquela argumentação que é considerada por muitos a argumentação fundamental da obra. A discussão tem algumas de suas origens também nas investigações sobre os fundamentos da matemática. A própria matemática, com efeito, abre o caminho para a dúvida. Depois da contradição de Russell (cf. Quadro 4 ), que tinha posto em xeque a fundamentação logicista da aritmética, filósofos e matemáticos tinham enveredado por diferentes caminhos para dar uma fundamentação segura à certeza matemática: (i) Russell e Camap tentavam dar uma versão atualizada do logicismo fregeano; (ii) Hilbert e Bemays fundamentavam a certeza matemática em cima de demonstrações finitistas de não contrariedade; (iii) Brouwer e Heyting baseavam a certeza matemática sobre a intuição.
140 Parte III - Linguagem e ação
Wittgcnstcin critica todas essas três respostas ao problema e dedicu particular atenção à solução proposta pelos intuicionistas. Para estes é a intuição - portanto um estado mental - que fundamenta a certeza matemática. Mas, embora seja uma alternativa ao platonismo fregeano, esta resposta não é ainda satisfatória. Com efeito, a idéia segundo a qual possa existir um estado mental particular, que nos garanta na correta execução de uma regra, subentende a idéia segundo a qual a linguagem é uma atividade essencialmente privada e que a compreensão de uma regra é dada por uma intenção ou por um processo mental misterioso, que antecipa magicamente o desenvolvimento futuro da fórmula. Será possível que a compreensão e a aplicação correta de uma regra se baseiem sobre processos mentais internos, sobre a intuição? Herdeiro da suspeita fregeana quanto à intuição, Wittgenstein assevera que nenhum estado mental pode nos dar a garantia de seguir corretamente aregra. A expressão de uma regra não é a expressão de uma intenção interior, mas de uma prática pública. Se fosse apenas a expressão de uma intenção interior, toda regra poderia ser reinterpretada de maneiras sempre diferentes: esta possibilidade mostra que a visão intuicionista é falaciosa. Para demonstrá-lo, Wittgenstein dá um exemplo3 :
3. Kripke desenvolveu um exemplo análogo em um famoso ensaio seu acerca de Wittgenstein. Imaginemos que eu nunca tenha efetuado a soma 57 + 68. Como farei para ter certeza de que tendo por base a regra da adição o resultado seja 125? A formulação da regra da adição admite diversas interpretações. Por exemplo, a interpretação segundo a qual para este par especial de números o resultado é 5. Denominemos esta interpretação da regra "quadição". Dado que jamais realizei a operação 57 + 68, o que é que me demonstra que no passado usei a adição ou a quadição? Não há nada (nem fatos físicos, nem fatos mentais) no meu comportamento passado que me permita decidir. O meu comportamento é com efeito compatível com a adição e a quadição. A única garantia da correteza da regra está na prática da comunidade lingüística, e não na mente ou nas disposições do indivíduo falante. Para Kripke, o paradoxo wittgensteiniano das regras tem a forma de um paradoxo cético. Wittgenstein, assim como Hume, daria uma resposta cética ao paradoxo. A conseqüência é que, se não podemos basear-nos sobre um estado de fato físico ou mental para identificar sem equívocos o significado de uma regra, devemos abandonar a visão do significado como condições de verdade. Com efeito, o significado neste modo de ver depende de como é o mundo, depende dos estados de coisas. Se não existe um estado de coisas que nos possa garantir que uma regra está correta, então como podemos falar de significado? A rf!s· posta neste caso é que se pode falar de significado de outras maneiras, como condlc;;ln de assertibilidade ou justificação, tese usada por Michael Dummett, para apres1mt111 uma versão particular do slogan wittgensteiniano "o significado é o uso". A lntttrprttl l'I ção "cética" de Kripke deu margem a um intenso debate que envolveu, entrn out, 1111, Crispin Wright e John McDowell.
9. Significado e uso: o segundo Wlttgen1teln 141
Se a regra "acrescente 2" fosse a expressão de umu intc11~1\o interior, não fica claro como é que poderíamos controlá-la ou husear-nos nela. Dado que a compreensão é objetivamente verificável, poderíamos verificar que uma criança aprendeu "acrescente 2" se dá seqüência a uma sucessão com 2, 4, 6, 8 etc. Mas o que dizer se, chegando a 1.000, continuasse com 1004, 1.008, 1.012 etc.? Nós diríamos que ela.não compreendeu a regra como nós a entendíamos, mas a criança poderia sempre dizer que havia compreendido "acrescente 2 até 1.000, 4 até 2.000, 6 até 3.000 etc." Nada em seu comportamento passado, nem no nosso, excluía essa possibilidade, enquanto não surgisse a ocasião. Concluindo, toda formulação da regra pode dar ensejo a diferentes interpretações. Cada pessoa pode ouvir a formulação de uma regra e interpretá-la de um modo que nos soe absolutamente padrão até se verificar, mais adiante, que divergimos quanto a algumas aplicações da regra (é também possível que não nos demos conta de existirem diversas interpretações pelo fato de não surgir jamais o caso controverso). A tese conforme a qual toda formulação de uma regra pode dar azo a diversas interpretações se toma ainda mais evidente quando se pensa nas ordens sobre como se comportar: qualquer ordem pode sempre ser interpretada de maneiras novas e imprevisíveis, e não existe limite para as possíveis interpretações que chamaremos de "bizarras". Desta forma nos encontramos diante de um aparente paradoxo: PARADOXO DAS REGRAS
Uma regra parece determinar um modo de agir, mas todo modo de agir pode se tomar compatível com a regra (Investigações filosóficas,§ 201). Este paradoxo esconde um mal-entendido de fundo: o mal-entendido, afirma Wittgenstein, está em procurar uma garantia de certeza em uma interpretação da regra. Mas se a interpretação da regra (ou a inten~·ão de seguir a regra) não nos garante a certeza de segui-la corretamente, o que poderá garanti-la? Wittgenstein, aqui, opõe à interpretação da regra a prática do seguir uma regra, prática desenvolvida no contexto 142 Parte III - Linguagem e ação
de uma comunidade lingüística. Seguir uma regra é um háhito, umu prnxc. Importa sempre distinguir, portanto, ao menos três diferentes níveis cm que se fala de regras: • a expressão ou formulação de uma regra; • a interpretação de uma regra; • a prática do seguir uma regra. Todos esses três níveis se acham presentes em nosso agir social; o resultado da discussão de Wittgenstein é que a interpretação sozinha não hasta e interpretar uma regra não quer dizer necessariamente segui-la corretamente (crer seguir uma regra não é seguir uma regra!). Não se pode seguir uma regra privatim e - dado que a linguagem ou o conjunto dos jogos de linguagem é um fenômeno governado por regras - não existe uma linguagem privada. Sobre este ponto desenvolve Wittgenstein uma análise em que mostra que não pode existir em linha de princípio uma linguagem privada das próprias sensações que seja inacessível aos outros. Se alguma coisa é uma linguagem, então é um fenômeno público e constituído pelo acordo dos falantes quanto ao uso dos signos.
9.4. Mal-entendidos lingüísticos: empírico e gramatical Para Wittgenstein, como também para Frege, a filosofia é uma luta contra o enfeitiçamento da linguagem (cf. 1.3), contra os mal-entendidos que provêm de um mau uso da linguagem cotidiana (embora, e divergindo aqui de Frege, o segundo Wittgenstein dê menor importância ao auxílio oferecido pela lógica formal). Por conseguinte, a filosofia é um trabalho de esclarecimento conceitual e deve ajudar a distinguir entre o empírico e o gramatical, isto é, entre usos descritivos e usos normativos da linguagem. Wittgenstein dedica várias páginas à análise da diferença entre os enunciados na terceira pessoa (descritivos) e os enunciados na primeira pessoa (não descritivos). Essa idéia, que Austin desenvolverá com a análise das enunciações performativas (cf. 10.2), é usada por Wittgenstein 11 propósito dos enunciados sobre dores ou sobre cores. Uma das primeirns fontes de perplexidade filosófica é esta pergunta: "Como é que posso s11· ber que os outros vêem o que eu vejo? Como é que os outros sentem o lllll' 9. Significado e uso: o segundo Wlttgti11s11,111 l 4J
eu sinto'!" A resposta intuitivu fixemo-nos aqui no tcmu dn dor 6 a seguinte: "Só cu sei que estou sofrendo a minha dor". Pum Wittgcnstcin, esta resposta é ao mesmo tempo falsa e não tem sentido: • éfàlsa, caso seja considerada como um enunciado descritivo, empírico, que descreve um fato: eu sei que estou com dor. Mas isto é falso porque outras pessoas podem saber que estou com dor, vendo o meu comportamento ou através de meios mais sofisticados (análises neuronais etc.); • não tem sentido, porque de fato um enunciado desse tipo não é usado como enunciado empírico, não descreve coisa alguma, embora pareça fazê-lo. Que não é um enunciado empírico se pode verificar pelo menos de dois modos: se o enunciado fosse empírico, (i) eu deveria procurar critérios para lhe verificar a verdade; mas quando sei que estou sentindo uma dor, não busco critérios, sinto a dor e basta; e (ii) o enunciado deveria poder ser verdadeiro ou falso. Por conseguinte, deveria ser possível, por exemplo, que eu não saiba que estou sentindo uma dor, ou que possa duvidar disso (coisa que está implícita na gramática do verbo "saber"). Mas isso fica tipicamente excluído por quem afirma o enunciado acima.
O enunciado "só eu sei que estou sofrendo a minha dor" esconde fundamentalmente uma verdade gramatical: que os enunciados referentes à dor desempenham funções radicalmente diferentes se expressos na primeira ou na terceira pessoa. • Expressos na terceira pessoa, "ele está sentindo uma dor" e "ele sabe que está sentindo uma dor" são enunciados descritivos, que necessitam de critérios objetivos para serem julgados verdadeiros ou falsos (se por exemplo ele se acha sob anestesia total, não sabe de nada); • expressos na primeira pessoa, "estou sentindo uma dor" e "sei que estou sentindo uma dor" são enunciados gramaticais travestidos, que indicam a diferença com que se devem tratar os enunciados na terceira e na primeira pessoa. O enunciado na primeira pessoa não descreve coisa alguma (e não precisa, portanto, de verificação), mas funciona como expressão de dor que substitui o grito inarticulado. Aprende-se um novo modo de exprimir a dor. 144 Parte III - Linguagem e ação
Esse é um exemplo do trabalho de esclarecimento da diferença entre usos empíricos e gramaticais de um enunciado. Muitas vezes um enunciado gramatical é apresentado como se estivesse sujeito a verificação empírica, ao passo que não o é. Essa análise recorda a critica do Tractatus aos enunciados sem sentido da metafisica, que pretendem ser descritivos ao passo que não descrevem coisa alguma (cf. 6.2). Eles desempenham, todavia, uma função, depois que seu papel de enunciados gramaticais tenha sido esclarecido. O trabalho do filósofo consiste em mostrar o nonsense escondido na idéia de usar esses enunciados como empíricos, tornando evidente e patente o nonsense, mostrando sua função gramatical e reconduzindo assim o enunciado do uso "metafisico" ao seu uso normal (por exemplo, o uso para exprimir a própria dor). A posição de Wittgenstein, como já se viu, denominada por alguns "quietismo", sustenta que não há problemas filosóficos, mas que a filosofia consiste somente no esclarecimento e na conseqüente dissolução de problemas aparentes, dos quais temos um caso exemplar nas reflexões de senso comum sobre a dor. Esta posição recebeu duras críticas de alguns filósofos - entre os quais o primeiro foi Karl Popper- como inútil restrição da concepção da filosofia.
9.5. Semelhanças de família: uma teoria dos conceitos Seja qual for o juízo final que se possa dar sobre a filosofia quietista e assistemática de Wittgenstein, não se pode no entanto negar que ela também tenha contribuído para suscitar novas teorias. Um exemplo destas se encontra no tema das semelhanças de família (ou ares de família), reconhecido como um dos mais importantes aportes às novas teorias do conceito que se desenvolveram nos últimos anos do século XX. O que é um conceito? As teorias tradicionais do conceito são geralmente de dois tipos contrapostos: idealistas ou platonizantes contru empiristas. Os platonizantes dirão que o conceito é uma essência, umu idéin da qual as coisas particulares participam de algum modo; os empirislns, por outro lado, vão dizer que o conceito é uma abstração das propri,·du 9. Significado e uso: o segundo Wlttgnr1111~111 14~,
des particulares de indivíduos semelhantes. Mas, plutonizuntcs ou empiristas, de Platão a Locke, de Frcge aos nco-cmpiristas, todos assumem a idéia seguinte: um conceito especifica um conjunto de propriedades (necessárias e suficientes) que determinam uma classe de objetos. O contraste entre platonizantes e empiristas se refere ao modo como são definidas essas condições ou propriedades necessárias e suficientes, não ao fato de que existam. Wittgenstein dirige uma crítica radical aos pressupostos gerais da teoria clássica do conceito. Algumas vezes nos seus escritos se refere à idéia de "essência" e a Platão, mas o discurso vale de modo geral para todas as teorias e, particularmente, para a fregeana. Wittgenstein propõe como exemplo o conceito de "jogo". Qual é a essência do jogo? Quais as propriedades que caracterizam todos e exclusivamente os jogos? Uma breve análise, esboçada por Wittgenstein no § 66 das Investigações filosóficas, mostra que não é possível definir um grupo de propriedades que sirvam para definir todos e exclusivamente os jogos. Encontramos porém uma rede complicada de semelhanças e diferenças entre diversos tipos de jogos. Não existe uma essência comum a todos os jogos e exclusivamente a eles, não existe nenhum conjunto de propriedades necessárias e suficientes para definir todo caso de jogo. No entanto, apesar de não termos uma definição unívoca de "jogo", usamos normalmente o predicado "jogo" (ou o conceito correspondente). Como é possível? A resposta consiste em evitar dar como ponto pacífico a visão clássica do conceito e observar com atenção como usamos os conceitos. Muitas vezes várias exemplificações de um conceito têm parentesco entre si como os membros de uma família: alguns têm certas características em comum com outros, mas não se diz que haja uma característica comum a todos os membros da família.
146 Parte III - Linguagem e ação
Todavia reconhecemos os membros por um certo ar de famíliu. Wittgenstein fala assim de "semelhanças (ou ares) de família" por acreditar que expressões como "jogo" e muitas outras ainda exprimem conceitos vagos, conceitos que não têm um conjunto de propriedades bem definidas que os caracteriza de maneira determinada. Isto não quer dizer que usamos os nossos predicados de semelhanças de família de maneira arbitrária. Com efeito, há transições e passagens intermediárias de um conjunto de propriedades para outro, de sorte que lemos razões para chamar todos os casos com o mesmo nome. Não é uma questão puramente arbitrária que algo tenha o nome de "jogo". Um esquema gráfico com uma sucessão de desenhos de rostos pode dar a idéia das "passagens intermediárias" entre exemplares de uma família (aqui apresento uma versão estilizada; quem tiver habilidade gráfica poderá fazer um desenho melhor): :-)
;-)
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Na figura, entre o primeiro membro e o último membro não há nenhuma característica comum, mas existem transições e membros intermediários que se apresentam de tal modo que dois membros próximos da série das figuras tenham sempre algo em comum. A referência a transições e a membros intermediários de uma família de conceitos traz à lembrança análogas considerações feitas por Goethe sobre o "método morfológico" para a classificação de plantas e animais. Wittgenstein certamente leu Goethe (discutiu inclusive a sua teoria das cores) e foi por ele profundamente influenciado. De origem goetheana são certamente algumas de suas reflexões sobre o conceito de estereótipo ou protótipo, que passamos agora a apresentar.
9.6. Protótipos, estereótipos e divisão do trabalho lingüístico A apresentação das idéias de Wittgenstein sobre os predicados de semelhança de família não ficaria completa sem a idéia de esquemu 011 protótipo. Wittgenstein insiste sobre a seguinte idéia:
9. Significado e uso: o segundo WlttQM"lnl11 14 7
há dois modos d(/i.•renles ele se usar uma ima~c·m:
(i) como imagem de um exemplar; (ii) como imagem de um tipo, ou como esquema de uma série de objetos que, embora aparentados, são diferentes entre si. Wittgenstein apresenta como exemplo a imagem de uma folha (o que leva a pensar nos estudos de Goethe sobre as plantas): devemos distinguir (i) a representação de uma só folha e (ii) a representação de umu folha usada como esquema ou protótipo de folha em geral. Usar uma imagem como esquema não significa que a imagem represente todas as propriedades que caracterizam uma classe de objetos (assim como o jogo de futebol ou o de xadrez não compartilham todas as propriedades de todos os jogos). Mas usa-se a imagem como um esquema prototípico, reconhece-se que alguns exemplos de folha podem diferir da imagem em certos aspectos, mas sempre poderão ser reduzidos ao esquema geral mediante exemplos intermediários. As reflexões de Wittgenstein sobre as semelhanças de família e sobre os protótipos introduzem a discussão acerca de três temas centrais também em epistemologia: (i) o tema do esquematismo e da imaginação; (ii) o tema da imprecisão e dos conceitos vagos; (iii) o tema da divisão do trabalho lingüístico. Aqui vamos limitar-nos a destacar o terceiro desses temas, desenvolvido por Hilary Putnam, filósofo que tentou mais de uma vez reelaborar de maneira sistemática algumas idéias de Wittgenstein, especialmente aquelas sobre o caráter público e social da linguagem e sobre adiversidade dos usos lingüísticos. Putnam desenvolve um argumento, baseado no conceito de "delegação" e na compreensão de palavras comuns e aparentemente dominadas por todos os falantes. A minha compreensão da palavra "ouro" difere amplamente da compreensão que dela possui um ourives ou um garimpeiro. Como podemos então nos entender, se os conceitos, as imagens, as crenças ligadas à palavra "ouro" são diferentes em cada interlocutor: Eis a resposta de Putnam: 148 Parte III - Linguagem e ação
(i) antes de mais nada, o significado é algo compartilhado pela comunidade dos falantes (que muitas vezes usam uma palavra de/e~ando a outros a responsabilidade por seu uso correto ou pelo seu sentido exato); (ii) deste domínio comum faz parte também um estereótipo tendencialmente comum a todos os indivíduos da comunidade, que constitui o "padrão mínimo" do conhecimento do significado de uma palavra. Podemos resumir a tese de Putnam em um slogan mais ou menos simplificado: DIVISÃO DO TRABALHO LINGÜÍSTICO
Nenhum falante sozinho conhece de maneira exaustiva o significado das palavras. O conhecimento do significado se acha distribuído na sociedade e os falantes normalmente "delegam" ("deferem") aos eruditos muitos aspectos do significado, utilizando na maioria das vezes estereótipos simplificados. Deste modo esboça Putnam uma visão que poderíamos denominar "extemismo social" e que será desenvolvida por Tyler Burge, isto é, a idéia que o significado de certas palavras é fixado pelo uso socialmente determinado na comunidade dos falantes, e quem usa uma palavra a usa segundo o significado oficial, mesmo que não tenha plena consciência disso. Em muitos casos, os eruditos determinam o "verdadeiro significado" de uma palavra (e também sua referência). Pode-se discutir o quanto essa idéia é coerente com as idéias de Wittgenstein sobre a importância do uso quando se vai definir o significado. As idéias de estereótipo e de delegação constituem com certeza um desenvolvimento original de idéias wittgensteinianas, de modo especial de sua discussão sobre os conceitos por semelhança de família e sobre o uso esquemático de imagens ou paradigmas. Tais idéias frmun desenvolvidas não só na filosofia da linguagem, mas também na inteligência artificial, com a noção de "frame" de Minsky, que se refere explicitamente a Wittgenstein, e em psicologia com o desenvolvimento do conceito de protótipo por Eleanore Rosch. O debate em torno dos COlll'l'i9. Significado e uso: o segundo Wlttgensteln 149
tos de estereótipo e de dclcgaçilo reforçou a idéia de cncnrur cm scpnru· do dois aspectos da investigação semântica (cf. 7.5) distinguindo os Sl'· guintes problemas: (i) como fixar a referência das expressões do léxico; (ii) como podemos dizer que "compreendemos" a linguagem, embora nem sempre os nossos atos individuais de referência acertem perfeitamente no alvo. Este último tema é o tema da competência léxica, sobre o qual se voltará a discorrer em 17.5.
Bibliografia essencial Caderno de História e Filosofia da Ciência, série 3, vol. 14, n. 2, jul.-dez./ 2004. Campinas: Unicamp [Vários ensaios]. EDMONDS, David & EIDINOW, John. O atiçador de Wittgenstein. Lisboa: Temas e Debates, 2003.
Manuscrito - Revista Internacional de Filosofia, vol. XVIII, n. 2, out./1995. Campinas: Unicamp [Número especial sobre Wittgenstein com bibliografias sobre Wittgenstein em português]. SCHMITZ, François. Wittgenstein. São Paulo: Estação Liberdade, 2004 [Coleção Figuras do Saber- Trad. de José Oscar de Almeida Marques]. WITTGENSTEIN, Ludwig. Investigações filosóficas - Vol. Wittgenstein. 3. ed. São Paulo: Abril, 1984 [Trad. de José Carlos Bruni].
150 Parte III - Linguagem e ação
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"··-·--···--·--·----------------9 - l<'rames e redes semintlcas
Marvin Minsky, quando apresenta o conceito de "frame", se reporta explicitamente a Wittgenstein e à idéia das semelhanças de família. O problema é como fazer esta idéia aplicável a um programa de computador, que possa tratar conceitos essencialmente vagos. Um frame é uma estrutura de dados que representa as características de um conceito, mas para cada característica do conceito fornece (i) uma série de valores possíveis e (ii) um valor default, na falta de mais informações. Deste modo, um frame pode ser mudado e enriquecido. Por exemplo, o frame "TIGRE" irá conter alguns elementos como: PROPRIEDADES
VALORES
VALORES DEDEFAULT
felino
tem patas: come: tem pêlo: vive na: peso: medidas:
1-4
4
antílope, zebra, gnu, homem amarelado-listras pretas branco-listras-cinza savana, floresta, zôo < 180 kg h< lm;c<2,5m
antílope amarelado-listras-pretas floresta 120kg h = 80cm; c
= 180cm.
Os valores constituem possíveis exemplificações das propriedades dos elementos da classe. Os valores de "default" são os valores atribuídos automaticamente ao sistema na falta (default) de ulteriores informações. Isto quer dizer que os valores de default contribuem para formar um estereótipo de tigre, o que as crianças aprendem da primeira vez se expostos à TV e aos filmes de Piero Angela: tem quatro patas, devora antílopes, tem o pêlo amarelado e listras pretas e vive na jângal. Mas cada uma dessas informações pode variar em condições particulares: os tigres siberianos são brancos-cinza, alguns tigres vivem no zoológico etc. É útil que uma criança tenha um estereótipo claro; mas conviria justamente que os adultos - e agora também os computadores - tivessem conceitos um pouco mais elásticos, capazes de atribuir valores novos além dos valores de default. Quando se trata de sistemas computacionais (como também no nível de um sistema humano), haverá funções específicas que são ativadas (IF NEEDED = se for necessário), quando as informações forem discordantes com os valores do frame. Por exemplo, se o tigre for pequenininho e se encontrar no piso de um cômodo da casa, há de se tentar determinar se estamos falando de um tigre de brinquedo e não de um felino normal. Os frames se organizam em redes (redes semânticas). A diferença entre uma rede de frames e um conjunto de postulados de significado tradicionais (cf. 6.5) é dada pela presença dos valores de default. Para que possa ser traduzida em um conjunto de postulados de significado, uma rede semântica com valores de default deve utilizar formas diferentes do cálculo predicativo clássico (por exemplo, lógicas nifo monotônicas ou lógicas probabilísticas).
9. Significado e uso: o segundo Wlttgem.t11111 1~ 1
10
Convenção e atos lingüísticos: Austin e Searle
SUMÁRIO
Neste capítulo se apresenta e se discute a teoria dos atos lingüísticos de Austin. Em l 0.1 se enquadra historicamente a discussão no contexto da Inglaterra da primeira metade do século XX; em 10.2 se introduz uma famosa distinção de Austin, a distinção entre atos performativos e constatativos, que para ele foi o ponto de partida para criticar a visão neopositivista do significado; em 10.3 se analisa o conceito de condições de felicidade, termo geral de Austin para um critério do bom sucesso de um ato lingüístico ( como se há de ver, também os atos lingüísticos podem falhar ou sofrer abusos). Em 10.4 se introduz, no sentido estrito, a verdadeira teoria dos atos lingüísticos de Austin, seguida. nos dois parágrafos subseqüentes (10.5 e 10.6), de um aprofundamento sobre aspectos particulares (o ato lingüístico indireto, o problema da classificação e o problema da formalização da teoria).
10.1. A cultura filosófica de Cambridge e de Oxford Na primeira metade do século XX, Oxford e Cambridge representavam o centro da filosofia no mundo de língua inglesa. À Cambridge de Russell e de Wittgenstein se contrapunha a Oxford do debate entre o neopositivismo de A. Ayer ( 1910-1989) e a filosofia da linguagem ordinária de G. Ryle (1900-1976) e de J.L. Austin (1911-1960). Se tradicionalmente Cambridge era platônica, Oxford era aristotélica e não por acaso John L. Austin, um dos seus principais representantes, era também oresponsável pelas traduções de Aristóteles. Aristotélico no espírito, Austin ficava aborrecido com o caráter vago do apelo ao uso lingüístico que era moda entre os adeptos do segundo Wittgenstein, fascinados pelo slogan "o significado é o uso" (cf. 10.2). Austin estava procurando uma defini152 Parte III - Linguagem e ação
sistcmiltica que parecia impossível de se propor cm um quadro wittgcnstciniano.
\'1lo
Se os entomólogos conseguem classificar milhares de espécies de horboletas, por que não podemos classificar os usos lingüísticos ao invés de logo declarar que existem infinitos usos da linguagem, quando listamos apenas uns quinze (como o faz Wittgenstein nas Investigações /i/os~ficas)? Austin mantém uma relação ambígua com Wittgenstein, que é para ele uma fonte de profunda influência, mas também objeto de nítica. Mantém, contudo, uma relação vigorosamente crítica em relação 110 neopositivismo e ao seu máximo expoente inglês da época, Alfred J. Ayer, famoso por seu ensaio Linguagem, verdade e lógica (1936), no qual divulgava as idéias do Círculo de Viena na Inglaterra. Os dois livros principais de Austin, Sentido e sensibilidade e Como fazer coisas rnm palavras (ambos póstumos), têm por objetivo criticar duas idéiaschave do positivismo: (i) a idéia segundo a qual o verdadeiro conhecimento se refere aos "dados de sentido";
(ii) a idéia segundo a qual tudo o que há para dizer sobre o significado de um enunciado é apresentar as suas condições de verdade e de verificabilidade. Aqui nos vamos dedicar principalmente ao segundo aspecto.
10.2. Os performativos, os constatativos e o limite do critério neopositivista de significação Os filósofos muitas vezes deram enorme importância à função descritiva da linguagem. Serve a linguagem para descrever o mundo, e o significado de um enunciado é dado pelas condições nas quais o enunciado é verdadeiro, como sugeriam Frege e o primeiro Wittgenstein (cf. 4.5 e 6.1 ). Numa palavra, o significado de um enunciado mantém estreita correlação com a situação representada. O Tractatus havia excluido da dimensão do sentido os enunciados que não tivessem função descritiva. Declarava-se que os enunciados da ética e da estética eram sem sentido (cf. 6.2). Os neopositivistas tinham ainda por cima dcclurndo que esses enunciados não possuíam valor cognoscitivo, mas purumcnlL' 10. Convenção e atos lingüísticos: Austln e Seerle 153
emotivo. Para Ayer, por exemplo, os enunciados du étic1111110 s110 verilicáveis, mas exprimem sentimentos ou ajudam a fazer que apareçam estimulando à ação. Muitas vezes as proposições éticas são ordens disfürçudas, são expressões de normas e não descrevem coisa alguma: "é teu dever dizer a verdade" é simplesmente um modo para exprimir esta ordem: · "dize a verdade!" O principal problema dos neopositivistas do Círculo de Viena, ao qual Ayer se reporta, era encontrar um critério de significação que permitisse distinguir entre enunciados aceitáveis pela ciência, enunciados que pudessem descrever efetivamente dados de fato, e enunciados que não pudessem ser aceitos na ciência, mas fossem considerados sem sentido ou metafisicos. O critério exigia que os enunciados aceitáveis tivessem claras condições de verdade e que, além disso, pudessem ser verificáveis. Quanto aos enunciados da ética e da estética, que não descrevem dados de fato, não poderiam ser considerados como dotados de sentido. Prescindindo do problema da ética e da estética, pensa Austin que é por demais apertado o leito de Procusto para se decidir o que deverá ter ou não significado. Como argumento contra o critério de significação dos neopositivistas ele formula um contra-exemplo, constituído por proposições da linguagem comum que: (i) não descrevem estados de coisas (não são asserções com condições de verdade determinadas); (ii) não podem ser reduzidas à simples expressão de emoções (e não contêm expressões modais); (iii) não é fácil negar-lhes um sentido determinado (evidentemente não se trata de casos de "nonsense"). Trata-se de enunciados no indicativo ativo, e ainda por cima na primeira pessoa, e tais que o ato de os proferir comporta conseqüências proporcionais bem determinadas. Proferindo esses enunciados, observa Austin, executamos determinadas ações com exatas conseqüências. Por exemplo: l. "batizo este navio Queen Mary", e enquanto o digo, quebro agarrafa de champanhe no casco para batizar o navio; 154 Parte III - Linguagem e ação
2. "aceito como minha legítima esposa a senhorita Y", dito diante do juiz de paz ou do padre; 3. "declaro que todas as minhas terras irão como herança para o meu primogênito", escrito em um testamento com firma reconhecida no cartório; 4. "é proibido fumar", escrito num cartaz pendurado na sala de aula ou em outros recintos fechados. Austin define essas enunciações4 (ou proposições, elocuções) como "enunciações (ou proposições) performativas" (performative utteran<'<'S) porque com elas se executa (do verbo to perform) uma certa ação. 1~stas se contrapõem às "enunciações constatativas" (ou "constativas"), que têm como função descrever um estado de coisas. Se para as enuncia4rões constatativas vale o critério de significação dos neopositivistas, para as enunciações performativas não vale a mesma coisa. Deve-se, por conseguinte, achar um critério mais amplo de significação, que não se limite a identificar o significado com as condições de verdade ou com as condições de verificabilidade.
10.3. Condições de verdade e condições de felicidade Antes de tudo, quando se trata de enunciações performativas, não se pode dizer que sejam verdadeiras ou falsas. São ações, são atos, e uma ação não é nem verdadeira nem falsa; faz-se (bem ou mal) ou não se faz. Das ações se pode dizer que são ou bem-sucedidas ou malsucedidas (isto é, "sem efeito" ou "nulas"), se emitidas em circunstâncias não apropriadas. Não se pode falar aqui de "condições de verdade", mas não se pode também negar que essas enunciações têm um uso determinado e, por conseguinte, têm sentido. Dado que as ações são definidas não pelo serem verdadeiras ou falsas, mas pelo fato de serem bem-sucedidas ou malsucedidas, Austin de-
4. Lembre-se da diferença entre "enunciado" e "enunciação" ou proposição (d. /. 1) .
10. Convenção e atos lingüísticos: Austln e Searle 155
nomina as condições gerais para o bom êxito de uma uçi\o "condiçôcs lk felicidade". Surge então a pergunta: sob quais condições as proposições performativas constituem ações bem-sucedidas? Quais as condições de felicidade que tomam as enunciações aceitáveis como ações l?em-sucedidas'l CONDIÇÕES DE FELICIDADE
Condições a que uma enunciação performativa deve satisfazer para que possa constituir uma ação correta ("feliz"). Austin realiza um exame profundo dessas condições, distinguindo-as em dois tipos diferentes, que levam em conta os aspectos sociais e convencionais de uma parte, e os aspectos individuais, ligados às intenções dos falantes, da outra: 1. condições que se referem à convenção: as enunciações performativas devem responder a determinadas convenções, de outra forma são absolutamente nulas. Se me caso diante do barman, e não diante de um padre, o matrimônio não se realizou; 2. condições que dizem respeito à intenção: as enunciações performativas devem ser sinceras e exprimir a reta intenção. Se prometo, mas não tenho a intenção de manter a palavra, mesmo assim minha promessa não é nula: terei de responder, apesar disso, se não cumprir a palavra. Ao mesmo tempo, o meu ato é menos pleno que o ato da promessa dita com a intenção de cumpri-la. A violação desses dois tipos de condição vai levar, por conseguinte, a dois diferentes tipos de conseqüências: lances no vazio
A ação não teve efeito (não foram respeitadas as convenções).
Abusos
Houve a ação, mas o agente cometeu um abuso (não foram respeitadas as intenções esperadas).
Observe-se que, no que tange ao ato realizado, violar uma convenção é mais grave que faltar com a sinceridade. Com efeito, caso se viole a con156 Parte III - Linguagem e ação
wm;i\o, o ato é nulo e não se realiza; o matrimônio celchrado no hur mlo ll'lll efeito algum cm meu estado civil. Se porém se tem uma intenção insincera, mas o ato foi realizado segundo a convenção de praxe, o ato existe, foi feito e funciona. Mesmo que me case coagido, será necessária uma outra ação legal explícita para me desligar dos laços matrimoniais. Austin põe intenso pathos neste aspecto contra os teóricos da interioridade das boas intenções. Uma ação lingüística tal como uma promessa é regulada por certas convenções lingüísticas. Fazer uma promessa não é somente um ato interno, mas uma ação pública e social que te compromete com o interlocutor e não só com tua consciência. Depois de ter apresentado a contraposição entre atos performativos e constatativos, procura Austin compreender o que é que caracteriza os performativos. Talvez a primeira pessoa no indicativo? Não se diz, pois, enunciados como "é proibido fumar" também são performativos. Além disso, também as enunciações constatativas têm um componente de ação: são com efeito asserções, e asserir (ou afirmar) é também um tipo de ação. O próprio Frege tinha apontado no asserir uma ação que se deve reconhecer em lógica com um sinal particular, por ele denominado "sinal de asserção", distinguindo assim o sentido ou conteúdo cognitivo do enunciado, e a força com a qual o enunciado é proferido (cf. 8.1 ). Austin com certeza conhece Frege (traduziu dele, para o inglês, os Fundamentos da aritmética) e não lhe escapa a importância da distinção fregeana (embora nunca a cite explicitamente). De fato, Austin generaliza a idéia fregeana da distinção entre sentido e força, e apresenta uma teoria geral da "força ilocutória": toda prolação lingüística é uma ação, um ato lingüístico total, e todo ato é, portanto, caracterizado por uma certa força. A distinção entre enunciações performativas e constatativas se mostra assim como se fosse um artificio retórico para introduzir uma visão geral da linguagem como ação. Usar a linguagem é uma ação que contém tanto aspectos constatativos como aspectos performativos. Uma teoria da linguagem deve ser, por conseguinte, inserida em uma teorin geral da ação.
10. Convenção e atos lingüísticos: Austln e Senrle 151
10.4. A teoria dos atos llngü(stlcos Austin propõe uma teoria da ação lingüística que pretende ser umu generalização das teorias da linguagem que o precederam, cm particular as teorias inspiradas no trabalho de Frege, mas também as teorias dos lingüistas. A teoria da ação lingüística deve, deste modo, compreender como parte própria sua os resultados das teorias da linguagem que a definem como nos três níveis de fonética, sintaxe e semântica. Austin vê esses três níveis como o primeiro degrau de uma ação lingüística: toda ação lingüística, para ser tal, deve dar-se em uma linguagem assim como a definiram os lingüistas e os filósofos. Austin chama este aspecto da ação lingüística de "ato locutório". Mas o ato lingüístico que Austin quer descrever na sua totalidade tem outros dois aspectos. O segundo aspecto, que Austin denomina "ato ilocutório", é o herdeiro da sua análise dos performativos e traz à mente o fato de que um enunciado é sempre emitido com uma certa força (uma asserção, uma ordem etc.). O terceiro e último aspecto do ato lingüístico é determinado pelo contexto em que é proferido e diz respeito às conseqüências do próprio ato. A este Austin chama de "ato perlocutório". Pode-se resumir em um esquema a distinção proposta por Austin para descrever a ação lingüística no seu conjunto: Ato locutório (ato de dizer algo)
É definido fundamentalmente (embora Austin use outra terminologia) pelos aspectos fonéticos, sintáticos e semânticos (ao dizer "semântica" Austin pensa aqui em uma análise do sentido e da referência em termos mais ou menos fregeanos).
Ato ilocutório (ato que se realiza no dizer algo)
É aquilo que toma o lugar do enunciado performativo; é a expressão da força ilocutória. Ao dizer algo, sempre o dizemos com uma força particular: asserção, pergunta, promessa, súplica, ordem etc.
Ato perlocutório (ato que se realiza com o dizer algo)
É definido como o ato que se refere às conseqüências não convencionais que se obtêm com o dizer algo (cf. os exemplos a seguir).
A teoria de Austin pode ser facilmente ilustrada com um exemplo. Tomemos um ato lingüístico realizado em um determinado contexto:
158 Parte III - Linguagem e ação
"Dispara nela!" O alo locutório:
"Ele me disse 'dispara nela!', querendo dizer com 'dispara' dispara e com 'nela' visando a ela". Distinguem-se assim pelo menos três aspectos: l. o aspecto fonético é dado pelo som com que se emite o enunciado em português; 2. o aspecto sintático revela que a construção é dada por um verbo na segunda pessoa do imperativo tendo um pronome feminino como objeto da ação; 3. o aspecto semântico deve identificar o sentido e a referência das expressões "tu" (subentendido), "disparar" e "ela". Além do "tu" subentendido há um autor da emissão que se poderia explicitar. A forma lógica poderia ser uma coisa deste tipo: [falante] ordena a [interlocutor] ([ o interlocutor] atira em x ). O ato ilocutório:
"Ele me incitou a atirar nela (ou aconselhou, mandou disparar nela)". O ato se caracteriza pela força convencional com que é emitido o enunciado. Se a situação considerada apresenta uma relação hierárquica entre x e y tal que x tenha o direito de dar ordens a y (se x for um superior no exercício das suas funções), então o ato é uma ordem. De outra forma, é de se presumir, trata-se de uma sugestão ou de um conselho. O ato perlocutório:
"Ele me persuadiu a atirar nela" ou "Ele me induziu a atirar nela". Uma coisa é sugerir, outra é convencer: deve-se distinguir o que fazemos convencionalmente ao dizer "atira nela", e o efeito que obtemos ao dizê-lo em uma certa situação. Nossa ação pode ter como resultudo o convencer alguém a disparar. Pode-se dizer que enquanto o ato ilm.:11tt'I rio diz respeito à caracterização do ponto de vista do agente, o 11101wrlo cutório caracteriza as conseqüências do ato sobre o ouvinte. 10. Convenção e atos lingüístlcos: Auslln r• •,rw lrt 1•,•J
10.5. Atos llngülstlcos indiretos e classlflcaçlo dos atos(*) Embora lhe consagre dois capítulos, a definição de ato perlocutórin ficou em Austin um tanto obscura e não recebeu muitos desenvolvimentos (a não ser indiretamente, nas teorias de Grice). Isto se deve talvez tanto a uma certa ambigüidade, na definição do conceito de ato perlocutório, entre objetivos e resultados da ação, como à não-previsibilidade dos resultados perlocutórios. A parte mais original, e também mais clara, da teoria de Austin é aquela referente ao ato ilocutório: (1) o ato ilocutório se refere, sobretudo, aos aspectos convencionais do tipo de prolação; (2) para o ato ilocutório valem as restrições (as condições de felicidade) já propostas para os performativos (cf. 10.3). A teoria de Austin teve boa sorte em diversos setores, inclusive pela difusão de suas idéias feita por vários autores, entre estes Habermas, na sua Teoria do agir comunicativo e, sobretudo, Searle, ao resgatar de maneira original a teoria dos atos lingüísticos. Searle analisa um problema que parece um contra-exemplo da teoria austiniana da força ilocutória convencional. Perguntas como "sabe que horas são?" ou "pode passar-me o sal?" ou "poderia abrir a janela? não exigem uma resposta direta à pergunta. Se respondo "sim", não respondo apropriadamente. Que tipo de força têm então essas perguntas? Decerto não se pode negar que tenham a força de uma pergunta. No entanto, ao mesmo tempo, é bastante claro que desempenham a função de ordens ou pedidos (conforme a posição hierárquica da pessoa que as profere). Segundo Searle, essas perguntas constituem atos lingüísticos indiretos e comportam, assim, uma força "indireta". Fornecem uma condição preparatória para que se possa desencadear uma ação: antes de passar o sal, é necessário ter condições para o fazer. Antes de dizer a hora, é necessário saber que horas são. Sem pedir diretamente que se realize a ação, os atos lingüísticos indiretos sugerem isto implícita e indiretamente. 160 Parte III - Linguagem e ação
Pode-se acrescentar que o aspecto "direto" do ato lingüístico indireto (nestes casos a pergunta) vale mesmo assim, ainda que a meias: não é uma resposta feliz dizer "sim", ao passo que se pode responder "não", dando uma justificação. Posso por exemplo dizer: "desculpe, mas não posso passar-lhe o sal porque tenho o braço engessado/não está a meu alcance etc." ou então "gostaria de abrir a janela, mas estou muito resfriado, por isso prefiro deixá-la fechada", ou também - como pode facilmente acontecer- "(Não), estou sem o relógio". Se a "condição preparatória" não for satisfeita, à pergunta "indireta" se pode responder como a uma pergunta "direta", uma verdadeira pergunta. Esse tipo de análise feita por Searle se insere no problema de propor critérios para uma classificação dos atos lingüísticos. Austin havia proposto uma classificação baseada sobre os performativos explícitos, ou seja, sobre os verbos na primeira pessoa do singular. Searle propõe uma outra classificação baseada sobre a procura de critérios explícitos, e rejeita a tentativa de Austin por considerá-la demasiadamente intuitiva e sem um critério ordenador. Um exemplo de critério ordenador discutido por Searle é a "direção de adaptação": é mister distinguir se um ato exige que se adapte o mundo à linguagem, como a ordem, ou se exige que a linguagem se adapte ao mundo, como uma descrição (sobre a classificação dos atos lingüísticos, cf. o Quadro 1O, no fim deste capítulo). Discutindo os critérios para a classificação, Searle distinguiu entre dois tipos de regras que governam os atos lingüísticos: 1. regras constitutivas: são as que definem o tipo de jogo que se está jogando, como por exemplo as regras do xadrez. Se, embora usando as peças do xadrez, não sigo as suas regras, então não estou jogando xadrez, mas um outro jogo qualquer; 2. regras regulativas: são as que sugerem o modo de se comportar (por exemplo, como preparar e como desenvolver estratégias em uma partida de xadrez). Com essa distinção Searle de fato reproduz, mas de outro ponto de vista, a distinção de Austin entre lances no vazio (atos nulos) e abusos (cf. 10.3). Com efeito, se as regras constitutivas "constituem" o ato, a sua violação toma o ato nulo. Não se pode jogar xadrez com as rcgrus lh, jogo de damas. No entanto, sempre se joga xadrez, mesmo que, seg11i11 10. Convenção e atos lingüísticos: Austln e SC!lnrln l 61.
do ns regras constitutivas, udotu-se um comportumento bizarro (prn exemplo, joga-se para perder e não para ganhar). t'~ um abuso do ,iot,tu que pode ter motivações absolutamente extrínsecas (por exemplo, Sl' perco, um amigo meu ganha uma aposta).
10.6. Atos lingüísticos: problemas de . formalização(*) Outros autores fazem uma crítica radical a Austin e a toda classificução pormenorizada dos atos lingüísticos, seguindo em certos aspectos o caminho aberto por Wittgenstein, que via na dependência do significado do contexto um obstáculo insuperável para uma classificação no sentido cabal da palavra. Por exemplo, Levinson sustentou que uma classificação pormenorizada dos atos lingüísticos é uma empreitada pouco útil do ponto de vistu lingüístico, porque o tipo de força ilocutória é muito dependente do contexto, como o mostram os atos lingüísticos indiretos. Por isso se poderiam considerar somente os três atos lingüísticos fundamentais (asserção, pergunta e ordem) e deixar para o contexto a tarefa de clarificar o significado das nossas proposições. Deste modo, uma proposta como a de Levinson traz à mente uma antiga proposta de Hans Reichenbach (1891-1953) que, na sua Introdução à lógica simbólica, desenvolvia formalmente as idéias de Frege sobre a força ilocutória generalizando-a a ordens e perguntas. Para Reichenbach, cada uma dessas forças ilocutórias deve ser expressa por um sinal do simbolismo lógico, e parece apropriado usar,junto com o sinal de asserção de Frege (f--), sinais que lembrem os sinais usuais da língua falada (para a ordem !; e para a pergunta ?). Teríamos, deste modo, uma forma geral da distinção entre sentido e força de Frege: um mesmo sentido, ou conteúdo proposicional, pode ser usado com diferentes tipos de força. Seja o nosso conteúdo proposicional o fato de que César paga os impostos, que abreviamos com "paga os impostos (César)". Teríamos então: ?- paga os impostos (César)
!- paga os impostos (César) f- paga os impostos (César). 162 Parte III - Linguagem e ação
Recordando que o sentido é identificado com as condições de verd111k·. podemos dizer que com a pergunta nos questionamos se as condi\'Úcs de verdade estão satisfeitas, com a ordem mandamos que sejam sul isfcitus e com a asserção afirmamos que estão satisfeitas. A tentativa de Reichenbach, que precedeu as reflexões de Austin, 11:io teve um desenvolvimento significativo. As tentativas para apresenlar uma formalização da teoria dos atos lingüísticos foram desenvolvidas nos últimos anos do século passado, e obtiveram alguns resultados interessantes. Podemos lembrar os trabalhos que se reportam, deste ou daquele modo, à lógica intuicionista, uma lógica onde o significado das rnnstantes lógicas é dado, não pelas condições de verdade, mas por condições de justificação ou prova lógica (cf. Quadro 16).
A idéia consiste em usar o conceito de justificação para dar o significado das ações lingüísticas: com efeito, tal como sugerimos no início deste capítulo, uma ação não pode ser verdadeira ou falsa, mas pode ser justificada ou não justificada. Martin Lõf e Carlo Dalla Pozza são dois autores que trabalharam nesta direção. Prescindindo das diversas soluções possíveis para o problema da formalização dos atos lingüísticos, fica ainda de pé a idéia conforme a qual uma forma geral das proposições deveria incluir um sinal de força que precedesse um sinal de conteúdo proposicional: F(p)
Noutras palavras, não se pode pensar em uma teoria do significado que não tenha entre os seus componentes uma teoria da força. Esta temática terá notável desenvolvimento inclusive para os sistemas automáticos de compreensão, desenvolvidos na inteligência artificial (cf. 17 .1 ).
Bibliografia essencial AUSTIN, John L. Quando dizer é fazer: palavras e ação. Porto Alegre: Artes Médicas, 1990 [Trad. de Danilo Marcondes de Souza Filho]. HABERMAS, Jürgen. Verdade e justificação: ensaiosfilosóficos [s.n.t.1
10. Convenção e atos lingüísticos: Austln e Seerle 163
1O- ClaHlflcaçlo dos atos llntciU1tlco1 Austin A classificação se baseia nos "performativos explícitos" (na primeira pessoa): (i) veritativos:
DEF. emissão de um juízo baseado em razões ou provas;
Ex.: julgo, calculo, aprecio, avalio, diagnostiço ... DEF. exercício de poderes, direitos e influência no ato de promover decisões; Ex.: ordeno, nomeio, licencio, comando, concedo, aconselho ... (iii) comissivos: DEF. compromisso do falante com uma certa linha de ação; Ex.: prometo, proponho, juro, consinto, aposto ... (iv) comportativos: DEF. comportamento social em reação a vários tipos de ações ou acontecimentos; Ex.: agradeço, desculpo-me, aplaudo, suplico, despeço-me ... (v) expositivos: DEF. organização de um discurso ou conversação; Ex.: afirmo, declaro, nego, menciono, pergunto, respondo ... A classificação de Austin suscitou muitas dúvidas, e já o próprio Austin indicava os vários casos de verbos comuns a mais de uma classe. (ii) exercitivos:
Searle: Searle faz uma classificação em grandes classes de ação, tomando por base três categorias: (1) Objetivo ilocutório: asserção ( 1-); ordem(!); compromisso (C); expressão (E); declaração (D). (2) Direção de adaptação: ,l.. = direção da linguagem para o mundo; muda a linguagem para se adaptar ao mundo; i = direção do mundo para a linguagem; muda a realidade para se adequar à linguagem. (3) condições de sinceridade: seguindo as pegadas de Austin: (i) assertivos ( 1) (ii) diretivos (1) (iii) comissivos (1) (iv) expositivos (1)
1- (2) ,l.. (3) crer no que se afirma;
! (2) i (3) vontade de ação futura; C (2) i (3) intenção de realizar a ação; E (2) - (3) possibilidade de exprimir estados psicológicos; (v) declarativos (1) D (2) ,l.. i (3) crença e vontade de ação futura.
Uma classificação mais fina pode ocorrer, acrescentando outras categorias: 4. força; 5. interesse; 6. instituições extralingüísticas; 7. status do falante; 8. estilo da execução; 9. relação com o resto do discurso; 1O. verbo performativo; 11. conteúdo proposicional.
164 Parte III - Linguagem e ação
--:;-;-i Intenç_ão e con_v:rs~ção:
Grice,
~ t e s 1 a e pert1nenc1a
SUMÁRIO
Neste capítulo se introduz o leitor a diversos aspectos centrais da teoria de Paul Grice, que vê na intenção de se fazer compreender a chave para explicar a linguagem e o significado. A teoria de Grice foi muitas vezes contraposta às teorias que dão maior importância à convenção ou à prática social, e é muitas vezes considerada como uma alternativa à tradição fregeana. Como se recorda, no entanto, em 11.1, alguns aspectos do pensamento de Grice, e de modo partimiar a diferença entre o conteúdo explícito e o implícito, ligam o seu trabalho ús intuições de Frege. Em 11.2 se discute o papel do princípio de fundo da teoria da conversação de Grice, o princípio de cooperação. Nos dois parágrafos subseqüentes ( 11.3 e 11.4) se fornecem as linhas de fundo da teoria das implicações conversacionais, que são uma aplicação deste princípio. No parágrafo final ( 11.5) são indicadas algumas linhas atuais de pesquisa que se reportam ao pensamento de Grice.
11.1. Significado e intenção: o significado do falante Austin dedicou amplo espaço ao papel da convenção ao definir a ação lingüística e o significado, mantendo porém uma forte atenção no tema da intenção. O tema da intenção ganha um papel central no trabalho do inglês Paul Grice (1913-1988). No início dos anos 1950, Grice apresenta uma visão da linguagem que vai no sentido contrário ao da prioridade da linguagem sobre o pensamento, sancionada pela tradição fregeana. Ele vê o significado lingüístico como algo de essencialmente derivado da intenção do falante (e nisto segue de perto o significado literal do verbo inglês to mean - significar, dar a entender, pretender, intencionar - de onde pmcl'de o substantivo meaning = significado ou sentido. 11. Intenção e conversação: Grice, cortesia e pertln~ncla 165
Para Grice, quando um falante diz alguma coisu com sentido
,,11,•r
dizer essencialmente: 1. produzir um efeito (uma crença) em quem o ouve; 2. fazer com que aquele que o ouve reconheça que ·o falante tem a intenção de produzir esse efeito (essa crença). A teoria de Grice é mais pormenorizada e complexa, mas em vez de seguir os seus detalhes, neste trabalho será mais útil nos determos sobre o seu núcleo essencial: o significado do falante é a intenção de produzir um efeito - uma crença- e fazer de tal modo que o ouvinte seja capaz de reconhecer sua intenção. Será verdade? Alguns duvidam. Nem sempre desejamos que o ouvinte reconheça a nossa intenção de induzir nele um comportamento ou uma crença. Basta-nos, muitas vezes, que siga aquilo que dizemos, e algumas vezes procuramos fazer com que não perceba as nossas intenções. Mas não se pode negar que o falante que tem a intenção de se comunicar queira, seja como for, produzir algum efeito no ouvinte. Este aspecto do significado é análogo ao que Austin denomina "ato perlocutório". Tendo por base a sua idéia que o significado depende antes de tudo da intenção do falante, Grice vai distinguir dois aspectos do significado: 1. o significado ocasional do falante (dependente das intenções) é o significado que reflete a definição dada acima. Acha-se essencialmente ligado aos processos mentais do falante. A teoria da mente assume aqui o papel-guia com relação à teoria da linguagem e do significado; 2. o significado semântico (dependente das convenções): seria o significado que se consolida socialmente dada a convergência dos significados dos falantes, que podem ser totalmente ocasionais, mas que se uniformizam no uso e com o tempo. O significado semântico é o significado padrão, tal como é reconhecido em uma comunidade lingüística.
166 Parte III - Linguagem e ação
A distinção entre significado do falante e signilicmlo scmtintico 1.~ rclomada cm diversos contextos por outros autores (entre os quais, por exemplo, Kripke com a diferença entre referência semântica e rc'.f,•1ú1 da do falante, a que já nos referimos (cf. 7.3). Que a intenção seja importante na produção do discurso ninguém o nega. Que o significado dependa principal ou exclusivamente da intenção e, por conseguinte, dos processos mentais é uma tese de Grice, que se opõe de fato à tradição fregeana segundo a qual o sentido é algo de objetivo e não depende dos processos mentais com os quais o apreendemos. Por outro lado, também para Frege muita coisa depende das intenções dos falantes: as intenções dos falantes direcionam em primeiro lugar a escolha das expressões lingüísticas que exprimem um certo sentido e, em segundo lugar, a escolha do tom com que se quer dar a entender conteúdos não asseridos, mas tacitamente entendidos (cf. 8.3).
11.2. Lógica e conversação: o princípio de cooperação Se em um certo sentido a visão do significado, centrada em tomo da intenção, se opõe ao clássico paradigma fregeano, Grice desenvolve até as últimas conseqüências dois aspectos da teoria de Frege: (i) a idéia dos conectivos lógicos e do seu funcionamento lógico e (ii) o conceito de "tom" e de conteúdo implícito naquilo que se diz. (i) Estudando os conectivos lógicos e as suas definições em lógica (cf. o Quadro 2 e o item 6.1 ), observa-se que muitas vezes essas definições não correspondem ao modo como os conectivos são usados na linguagem cotidiana (especialmente o "se ... então"). Qual o motivo? Grice, em vez de denunciar a falta de adequação da lógica, denuncia a inadequação da nossa compreensão da linguagem cotidiana. Poderia valer para ele o que vale para o Wittgenstein do Tractatus, ou seja, a linguagem natural está em ordem do jeito que está; mas os tácitos entendimentos que facilitam a compreensão aos falantes são enormemente complicados (cf. 5.6). Se fôssemos capazes de tomar explícitas as regras da linguagem cotidiana, perceberíamos que os desvios do uso padrão dos conectivos lógicos dependem das regras da conversação comum. ldcntili, 11. Intenção e conversação: Grice, cortesia e pertlnênc:ln l f> /
car essas regras implícitas é, portanto, uma ohriguçi\o de primciru ordem para um filósofo da linguagem. (ii) Como já se viu em 8.3, o tom revela aquilo que, apesar de não ser explicitamente dito, se dá a entender. Frege distingue claramente entre aquilo que um falante diz e aquilo que dá a entender, por exemplo medianh.' a escolha do vocabulário. Grice desenvolveu este tema analisando como funciona a conversação. Esta idéia está bem representada por uma de suas mais originais propostas, qual seja o conceito de "implicação": implicação não é aquilo que se diz claramente, mas aquilo que "se dá a entender" nu conversação. É mister, portanto, de modo geral distinguir entre: • o que se diz: o explícito ou o significado literal; • o que se dá a entender: o implícito ou o significado entendido. Percebe-se o implícito através de uma derivação ou implicação, que pode ser convencional ou conversacional, ou seja, pode depender ou do significado convencional das palavras ou do contexto do discurso e das intenções do falante. Implicação convencional
Revela algo que não é dito, mas se dá a entender utilizando as convenções lingüísticas.
Implicação conversacional
Revela algo que não é dito, mas se dá a entender utilizando o contexto da conversação.
Um exemplo de implicação convencional é o enunciado: "é pobre, mas honesto". Dado o significado de "mas", é óbvio que o falante não diz, mas dá a entender que os pobres em geral são honestos, ou que a pobreza poderia ser um motivo para atos desonestos (provavelmente o furto). Isto é derivado das convenções que regem o uso de "mas", e por isso a implicação se diz "convencional". Outras implicações requerem algo mais do que o conhecimento das convenções lingüísticas, a saber: informações fornecidas pelo contexto e pelas regras da conversação. Antes de definir este tipo de implicações (conversacionais) é necessário então definir quais são os princípios gerais da conversação usados para "dar a entender" uma coisa ao interlocutor. Recorda Grice que a conversação segue certas regras, que descartam como inadequados cer,68 Parte III - Linguagem e ação
los comportamentos. Essas regras são a expressão de um principio gemi
subentendido cm cada conversa, e ao qual Gricc dá o nome de "principio de cooperação": PRINCÍPIO DE COOPERAÇÃO
( 'onforma a tua contribuição conversacional a tudo o que é requerido pela intenção comum, no momento em que ocorre. Grice apresenta este princípio como um princípio normativo, ao qual todo falante deve submeter-se. Aparentes violações do princípio podem ser sempre interpretadas de modo a salvar o máximo possível a racionalidade do falante, segundo um princípio básico ideado por Quine 1..: desenvolvido por Davidson, princípio de caridade ou benevolência (cf. 13.2 e 14.4). De acordo com este princípio, deve-se interpretar a proposição do próprio interlocutor de modo a maximizar-lhe a racionalidade ou a sensatez. Assume-se com isto que o interlocutor seja racional. Toda expressão de aparente irracionalidade deveria - antes de se declarar sem mais nem menos que o interlocutor está louco ( coisa que pode sempre acontecer) - ser reinterpretada à luz da contribuição que a proposição poderia dar à conversa. Deste modo o princípio de cooperação de Grice e o princípio de caridade ou de benevolência se apresentam como dois princípios simétricos e complementares. O primeiro diz como deveria comportar-se um falante, o segundo como o ouvinte deveria interpretar o falante (de modo a tomar o máximo possível racionais as suas proposições). Mas também se pode ler o princípio de Grice de outro modo, como princípio descritivo: a conversa é uma ação coletiva que funciona de um certo modo e obedecendo a certas regras. Para descrevê-la é necessário compreender quais são os principais lances permitidos e o que comporta fazer um lance dentro na conversação. Pode-se então ler o princípio também como princípio constitutivo da conversação como tal, não relacionado tanto à ação do falante ou à do ouvinte (cada um pode ter os seus objetivos mais ou menos ocultos) quanto principalmente ao funcionamento do discurso: para que haja diálogo, importa haver cooperação. Sl• 11. Intenção e conversação: Grice, cortesia e pertlnfncla 169
faltar esta, não haverá nem poderá haver diálogo. ( '01110 diz Aristóteles, se uma pessoa não obedece aos aspectos elementares da racionalidade Aristóteles estava pensando no princípio de não contradição ··· e ao mesmo tempo fala com você, é como se fosse um vegetal. Não é possível diulogar com ela.
11.3. Máximas e implicação conversacional Grice apresenta algumas "máximas da conversação" que especificam o princípio de cooperação segundo as categorias kantianas de quantidade, qualidade, relação e modo. Não é por acaso que ele se reporta implicitamente a Kant. Nos Fundamentos da metafisica dos costumes, discutindo acerca da promessa, Kant sustenta que não é possível assumir como máxima universal dizer uma mentira; se todos mentissem, e a sinceridade fosse puramente casual, não haveria nenhuma conversação possível. Isto implica que dizer a verdade é um pressuposto da racionalidade. É óbvio então que se pode mentir por objetivos precisos, e ser racional ao seguir esses objetivos; mas para fazer isto é necessário saber distinguir o verdadeiro do falso e assumir que - via de regra - os falantes esperam que você diga a verdade (se não, de que serviria mentir)? Eis as máximas de Grice: MÁXIMAS DA CONVERSAÇÃO
1. QUANTIDADE
dê uma contribuição tão informativa quanto tenha sido solicitado (não mais!);
2. QUALIDADE
não diga o que achar que é falso ou aquilo de que não tenha provas adequadas;
3. RELAÇÃO
seja pertinente;
4. MODO
seja claro (evite obscuridades ou ambigüidades inúteis).
Existem vários modos de não obedecer a uma dessas máximas. Em primeiro lugar, a pessoa pode se dissociar do próprio princípio de cooperação: neste caso ela se subtrai à conversação. Este passo tem também um valor comunicativo do tipo "não tenho a intenção de continuar falan-
l 70
Parte III - Linguagem e ação
do com você", deixando, contudo, ocultas as ruzões da recusa, que podl.'111 ser depreendidas do contexto (por exemplo, um silêncio de conivência criminosa). Se um falante, no entanto, aceita dialogar, qualquer proposição sua poderá ser avaliada em função do princípio de coopera~·1io, e a violação mais ou menos explícita de uma das máximas virá a ser 11111 modo para desfrutar a própria máxima e dar a entender algo. Este "dar a entender" por meio de violações das máximas constitui aquilo que Grice denomina "implicação conversacional". Podemos identificar pelo menos três casos de violação:
1. aparência: a violação é aparente mas não real e a proposição encontra o seu sentido se for inserida em uma máxima. Por exemplo: A: "Acabou minha gasolina". B: "Depois da esquina há uma garagem". A reação de B parece violar a máxima da relação (pertinência), a menos que se pense que a garagem vende gasolina, esteja aberta etc.; 2. conflito: a violação de uma máxima é explicada por entrar em conflito com outra máxima. Por exemplo: A: "C mora onde?" B: "Em algum lugar no sul da França". A resposta de B viola a máxima da quantidade, assumindo que A esteja interessado em saber a cidade onde C mora; mas também se pode inferir que B não poderia agir de outro modo, para não violar a máxima da qualidade (não diga aquilo de que não tenha provas adequadas);
3. violação explícita: a violação é explícita e a pessoa se burla de uma das máximas da conversação com o fito de gerar uma implicação conversacional. Este é o caso típico no qual Grice se demora mais, mostrando entre outras coisas como certas figuras retóricas (ironia, metáfora, hipérbole, etc.) podem ser descritas em termos de implicações conversacionais. Por exemplo:
• máxima da quantidade: uma carta de recomendação breve e focalizada em pormenores i11í1ll. iN quer dar a entender o pouco apreço que se tem pela pessoa recomendmln: 1
11. Intenção e conversação: Grice, cortesia e pert111~11c ln 1 / 1
• máxima da qualidade:
"Que belo amigo!" (dito de alguém que revelou um segredo): ironia. "Você é um raio!" (dito de alguém muito rápido): metáfora. "Você é um raio!" (dito de alguém que é lento): metáfora+ ironia. "Não estava perfeitamente sóbrio" (referindo-se a um bêbado): litotes; • máxima da relação:
A: "Aquela mulher é feia" (referindo-se à dona-de-casa diante do marido). B: "Neste verão fez um tempo bom, não foi?" A resposta de B viola a máxima da relação e dá a entender a A que não está a fim de continuar a conversa sobre o tema por ele proposto; • máxima do modo:
uma linguagem obscura ou muito polida é usada em geral para dar a entender que não se quer que outros ouvintes (por exemplo, crianças ou estranhos) compreendam o conteúdo efetivo da conversa. A visão geral da linguagem que se depreende da análise de Grice distingue, portanto, o conteúdo literal daquilo que se diz daquilo que se quer dar a entender: às vezes coincidem, às vezes não. Poder-se-ia exprimir esta visão sua distinguindo entre dizer e implicar ou, de modo mais preciso, entre: Significado literal explícito
O expresso pelas palavras.
Significado entendido implícito
O que as palavras dão a entender no contexto.
Um dos episódios familiares do tempo da guerra, dos que mais me impressionaram, é o seguinte. Meus parentes se tinham mudado para o campo. Certa noite, pelo fim da guerra, um grupo de soldados alemães bateu violentamente à porta. Meu pai foi até a janela e berrou com voz estentórea e com a sua melhor pronúncia do alemão que aprendera na escola: "Was wollen Sie? Wir schlafen!" Os soldados pediram desculpas e se afastaram.
172 Parte III - Linguagem e ação
O que acontecera'! Literalmente, as palavras cm alemão queriam dizer: "O que vocês querem? Estamos dormindo!" Certamente meu pui agiu por instinto e não por raciocínio: não havia tempo para isto. Mas os soldados alemães fizeram certamente um cálculo ou uma série de inferências, do tipo: "Aqui tem gente que fala alemão com raiva, portanto há alemães que falam com autoridade; portanto, oficiais de alto escalão já ocuparam a casa; vamos então nos desculpar e ir embora". Mas a implicação, no caso de os soldados invadirem a casa, poderia ter sido retirada ou cancelada, sustentando que simplesmente se queria dizer aquilo que se estava literalmente dizendo (justamente que todos estavam dormindo). Com isto estamos entrando no tema das características gerais das implicações: a cancelabilidade, a calculabilidade e a não-destacabilidade.
11.4. Implicação generalizada (*) A característica principal da implicação conversacional é que aquilo que se dá a entender fica implícito, ou seja, não é afirmado explicitamente. O trabalho de derivação de uma implicação é um trabalho inferencial complexo que deve reunir diversos dados. Eis uma lista desses dados: • significado convencional; • máximas da conversação; • contexto do discurso; • contexto extralingüístico; • base de conhecimentos compartilhados; • acessibilidade dos dados por parte dos interlocutores; • outros. Os exemplos de implicação dados acima são casos particulares que dependem do contexto específico de enunciação. Grice propõe algumas características gerais que valem para todas as implicações da conversação (e que logo veremos), entre as quais: 1. cancelabilidade; 2. não-destacabilidade; 3. calculabilidade. 11. Intenção e conversação: Grice, cortesia e pertinência 17 3
Ele propõe, ainda, junto com uma análise de implicui_:,'lcs conversacionais específicas e dependentes do contexto, a idéia de: IMPLICAÇÃO CONVERSACIONAL GENERALIZADA
O uso de uma expressão de uma certa forma pode veicular via de regra (na ausência de circunstâncias especiais) uma certa implicação. Já vimos a grande importância dada ao artigo definido a partir de Russell (cf. 5 .3 ). Grice, ao procurar um exemplo de implicação generalizada, propõe o uso padrão do artigo indefinido ("um", "uma"). Com efeito, quando usamos o artigo indefinido não dizemos, mas deixamos implícito que estamos falando de algo ou de alguém que não tem uma estrita relação com o falante, de outro modo usaríamos um possessivo como "meu", "seu" etc. ou outros termos mais específicos. Por exemplo: "X tem um encontro com uma mulher esta noite" implica que a mulher não é sua mãe ou sua irmã ou sua mulher. Ou também "X entrou em uma casa" implica que não se trata de sua casa. Isto nos leva logo a analisar uma das características mais importantes da implicação: • cancelabilidade: não se deve esquecer que, para Frege, se pode dar a entender uma coisa, embora não se diga diretamente. Que diferença há entre dizer explicitamente e dar a entender indiretamente? Grice frisa que, no caso da implicação, esta - não tendo sido explicitamente afirmada - pode ser cancelada explicitamente. Posso por exemplo dizer: "X entrou em uma casa; era a casa dele". Mas isto se toma ainda mais complexo nos discursos políticos, que costumam muitas vezes cancelar a implicação (se não desmentem até tudo o que haviam declarado diretamente): "Eu disse isto, mas não quis dizer esta outra coisa", onde "esta outra coisa" é ao contrário o que se insinuava evidentemente. Sempre se pode cancelar uma implicação da conversa; por outro lado, se uma implicação não é cancelada, as regras da conversação deveriam fazer com que tudo o que se dá a entender implicitamente tenha uma força se não igual à asserção explícita, em todo o caso suficiente pelo menos para entrar com uma causa legal (exige-se então uma explícita retratação daquilo que se dá por implícito). O tema do implícito teve um grande desen174 Parte III - Linguagem e ação
volvimento no debate sobre a pragmática, e remetemos a textos de pragmática para um aprofundamento desses temas;
• não-destacabilidade: a implicação conversacional está mais ligada ao conteúdo da conversa do que à forma. Por isso, não se pode "destacá-la" de um enunciado mediante a substituição de alguns termos por seus sinônimos. Se digo "é um gênio", para dar a entender que alguém é um idiota, isto será entendido mesmo que eu diga: "é um prodígio mental" ou "é um crânio"; • calculabilidade: Grice está convencido de que as implicações são calculáveis. A compreensão da implicação - assim como se mencionou no início deste parágrafo - depende de uma reconstrução racional feita por quem participa do diálogo, efetuando um cálculo entendido como uma série de inferências. O aspecto essencial deste processo é que a implicação não se reduz apenas a uma questão de intuição, mas requer um tipo de trabalho inferencial que os falantes executam (às vezes de modo inconsciente) recorrendo a específicos elementos e a regras determinadas (ou máximas), para reconstruir o sentido da conversa.
11.5. Pressuposição, pertinência, cortesia (*) A partir das investigações de Grice se desenvolveram ao menos três direções interessantes, que vale a pena mencionar.
1. Pressuposição e "common ground" Para compreender ou calcular uma implicação conversacional é necessário compreender o que se pressupõe no intercâmbio da conversa: quais são os escopos específicos da conversa, quais as informações necessárias para interpretar o que se diz etc. Um autor que fez do tema da pressuposição o centro do próprio trabalho filosófico é Robert Stalnaker, que esboça uma fusão original entre a posição griceana de fundamentar a teoria do significado e da conversação sobre o conceito de intenção, e o aparelho da semântica modelística, centrada em tomo da idéia de condições de verdade (cf. cap. 6). Segundo Stalnaker, para que uma conversa possa ocorrer com sentido é mister que haja um "terreno comum" aos interlocutores. Esse terreno comum é 11. Intenção e conversação: Grice, cortesia e pertinência 175
o conjunto dos elementos que os falantes pressupõem··- ou no menos deveriam pressupor - em uma conversação. Deste modo se oforccc umu definição alternativa ao conceito de pressuposição semântica inaugurado por Frege (cf. 5.2).
PRESSUPOSIÇÃO PRAGMÁTICA
p pressupõe pragmaticamente q se afirmar que p é apropriado só quando q é conhecido pelos participantes da conversa.
A definição que se baseia sobre a idéia de terreno comum (conhecimento recíproco) e de apropriação deu lugar a um programa de pesquisa de grande alcance, desenvolvido por filósofos, lógicos e lingüistas. Searle desenvolve temas em parte análogos falando de diferentes "fundos" (background) necessários para interpretar o significado de nossos enunciados. Vamos ilustrar aqui, em seguida, uma outra abordagem, mais afim às ciências cognitivas.
2. Pertinência e efeitos cognitivos
A máxima da relação, aquela que diz respeito à pertinência ou relevância, é privilegiada do ponto de vista da geração de implicações. Sobre este ponto trabalharam diversos autores, elaborando a teoria que hoje se costuma denominar "teoria da pertinência". A teoria da pertinência descobre em Grice intuições para elaborar um modelo de comunicação diferente do tradicional modelo do "código", típico da semiótica estruturalista. Na perspectiva semiótica tradicional as línguas são vistas como códigos que associam um pensamento a uma expressão (como no alfabeto Morse um sinal é associado a um outro sinal). A comunicação seria, por conseguinte, uma decodificação do código usado pelo falante, feita pelo ouvinte. Mas a análise de Grice mostrou os limites desta análise, indicando que não se pode fazer uma transposição um a um entre expressão e pensamento veiculado. Com efeito, o processo real de comunicação encerra um trabalho inferencial que comporta um trabalho em cima de vários 176 Parte III - Linguagem e ação
componentes contextuais e não contextuais (cf. 11 .4). Alguns uuton.'N, como Spcrbcr e Wilson, aceitam essa idéia de fundo de Gricc, 11111N 111· mentam o fato de que Grice não dê uma estratégia para indicar os pussos do trabalho inferencial. Eles sugerem, portanto, um modelo ou esquemu cm dois passos, onde no segundo passo se propõem mostrar como os "custos" do trabalho inferencial são sustentáveis apenas com a condição de se obterem certos "beneficios": (i) processos lingüísticos ou semânticos de decodificação que dão o significado convencional; (ii) processos pragmáticos de inferência que fornecem a interpretação daquilo que o falante intenciona comunicar. A chave dos processos pragmáticos se situa no PRINCÍPIO DE PERTINÊNCIA
O falante usa enunciados com conteúdos implícitos ou indiretos quando estes permitem ao destinatário obter sem demora maiores "efeitos cognitivos". Trata-se de uma análise de custo/beneficio. O custo do processo inferencial da implicação é compensado pelo beneficio de um efeito cognitivo que se realiza em menores lapsos de tempo e permite simultaneamente uma certa liberdade de ação. Obtenho um rápido efeito cognitivo se digo "dê um pulo no bar para um café" ao invés de dizer "se você vier ao bar que se encontra à nossa frente, então estou disposto a lhe oferecer um café, se você quiser". Neste último caso estou correndo o risco de que, pela metade do discurso, o interlocutor já se tenha distraído e perdido o fio da meada.
3. Lógica da cortesia Se pergunto "sabe que horas são?" ou "pode passar-me o sal?", não me contento simplesmente com a resposta "sim". A minha proposição tem a força convencional de uma pergunta, mas aforça indireta de um pedido (cf. 10.5). Falar de "força indireta", no entanto, não ajuda a escla11. Intenção e conversação: Grice, cortesia e pertinência 177
recer o motivo e o mecanismo desse entendimento. Umu novu perspectiva nesta direção foi dada por Robin Lakotl com a idéia da lógica da cortesia. O conceito de fundo de Lakoff é que a conversa é regulada por alguns princípios de cortesia, que são universais (embora realizados de modo diferente de cultura para cultura). Isto obviamente cria diversas complicações). Esses princípios refletem a exigência da.convivência civil e do intercâmbio comunicativo, e são três: PRINCÍPIOS DA LÓGICA DA CORTESIA
( 1) não se imponha; (2) ofereça alternativas; (3) ponha o interlocutor à vontade. As três regras são em geral interpretadas como uma passagem progressiva do formal para o informal: ( 1) valeria no discurso formal; (2) no discurso entre iguais, que no entanto não tem familiaridade; (3) no discurso informal entre amigos. Sob ( 1), que poderíamos chamar de "regra da clareza", cairia a análise de Grice. O princípio, com efeito, manda que você não se imponha, isto é, não diga mais do que se pede etc., como se segue das máximas griceanas. Sob este cai, no entanto, um outro aspecto não explicitado por Grice, o respeito pelas regras sociais que se acha na base dos atos lingüísticos indiretos (cf. 10.5), como em "sabe que horas são?" ou "pode me passar o sal?" (proferidos em lugar de "passe-me o sal!" ou "digame que horas são!" com os quais se dá a impressão de impor-se demais ao interlocutor). Inclusive quem se acha em posição superior normalmente não usará imperativos, mas em geral pedidos ("pode abrir ajanela?", "pode me passar o sal?"), para não impor ao outro a própria condição superior. Algo análogo pode acontecer sob o segundo princípio: (2) com efeito, ele manda que se ofereçam possíveis alternativas quer práticas quer cognitivas. Por exemplo, dizer em certos contextos "talvez seja a hora de se ir" permite ao interlocutor contradizer sem muito esforço a opção dubitativa. 178 Parte III - Linguagem e ação
Amhos os princípios podem ser, todavia, considerados como uma aplicação do princípio (3), que é ainda mais geral. Com efeito, (3) comporta tanto ( 1) como também a consciência de que às vezes discursos muito formais podem ser interpretados como "distantes", no caso de um diálogo entre amigos ou quem sabe entre iguais. O princípio (3) é por conseguinte mais geral e fundamental que os outros dois. A este princípio se deveria reportar, portanto, não só o modo como pedimos a uma pessoa desconhecida "poderia dizer-me a hora?", mas também o mais direto "que horas são?", que dirigimos a uma pessoa com a qual temos maior intimidade. Assim como as regras da sintaxe para Chomsky, estes princípios representam para Lakoffum caso de princípios universais comuns a todas as culturas. De fato, contudo, a realização desses princípios muda de cultura para cultura, e as diversas formas em que são realizados em culturas diferentes podem provocar mal-entendidos e episódios aborrecidos facilmente imagináveis (por ocasião do G8, em Gênova, foi dado aos comerciantes um livrinho que explicava as várias formas de cortesia das diversas culturas, uma espécie de vade-mécum, embora talvez tivesse sido mais simples dar a todos os convidados os padrões das regras de cortesia dos genoveses, aparentemente nenhumas).
Bibliografia essencial GRICE, H.P. "Lógica e conversação". ln: DASCAL, Marcelo (org.). Fundamentos metodológicos da lingüística- Vol. 4: Pragmática. Campinas: Unicamp, 1982, p. 81-104. MOURA, Heronides Maurílio de Melo. Significação e contexto: uma introdução a questões de semântica e pragmática. Florianópolis: Insular, 1999. SPERBER, Dan & WILSON, Deirdre. Relevância: comunicação e cognição. Lisboa: Fund. Galouste Gulbenkian, 2001.
11. Intenção e conversação: Grice, cortesia e pertinência 1 /lJ
Parte IV LINGUAGEM E COMUNICAÇÃO
12
Sentido, contexto e o problema do holismo: uma introdução
SUMÁRIO
Nos seus primeiros escritos Frege propõe um princípio metodológico geral: não se deve pensar o sentido das palavras isoladamente, mas só no contexto do enunciado. Existem diversos aspectos fundamentais do princípio do contexto que foram desenvolvidos na filosofia contemporânea. Os parágrafos deste capítulo irão aludir: ( 12.1) à crítica à tese do significado como imagem mental; (12.2) ao papel central do enunciado na análise da linguagem; (12.3) aos problemas relacionados com o holismo.
12.1. O significado não é uma imagem mental Na obra Os fundamentos da aritmética, escrita para apresentar de maneira mais popular os resultados de sua Ideografia, apresenta Frege três princípios metodológicos fundamentais: 1. distinguir sempre objeto e conceito; 2. distinguir sempre subjetivo e objetivo; 3. não considerar o significado das palavras isoladamente, mas só no contexto de um enunciado. O primeiro princípio é uma aplicação da importância que se dá à notação funcional em lógica, ponto sobre o qual já nos demoramos longamente (cf. 2.2). Do segundo princípio vamos falar no capítulo 15, introdutório à quinta parte. Dedicamos este capítulo a um breve comcntúrio ao terceiro princípio fundamental de Frege, aquele que definimos como o "princípio do contexto" (cf. 4.4).
12. Sentido, contexto e o problema do holismo: uma introdução 183
Frcgc critica a lese conforme a qual os signilicados dns palavras sfü, imagens mentais. A tese, que remonta a Aristóteles - as palavras signi licam os movimentos da mente que, por sua vez, se referem aos objetos é retomada por Locke na teoria que se pode definir como a "teoria ideacionista do significado" ou "teoria do significado como idéia": "as palavras, na sua significação primária, estão simplesmente no lugar das idéias na mente de quem as usa" (Locke, Ensaio sobre o entendimento humano, livro II, cap. II, § 2). Segundo Locke, a associação de uma idéia a uma palavra caracteriza a linguagem humana. Um papagaio pode pronunciar a palavra "cubo", mas não associa a palavra à imagem mental do cubo, como o faz ao contrário um falante humano. Frege no entanto argumenta, contra a visão do significado de Locke, que se o significado fosse uma imagem mental não a poderíamos comunicar aos outros. Com efeito, as imagens mentais são subjetivas e diferem de pessoa para pessoa. Se o significado de uma palavra fosse uma imagem mental, não teríamos então como compartilhar os mesmos significados e não se daria nem acordo nem desacordo, pois cada um usaria uma palavra com o seu próprio significado privado, a imagem evocada em sua mente. Frege contrapõe à imagem mental subjetiva e privada o sentido ou valor cognitivo, sugerindo deste modo um contraste insanável entre: (i) sentido, conteúdo objetivo de informação que é expresso mediante a linguagem e é compartilhável por todos, e (ii) representação ou idéia (ldea, Vorstellung), entendida na acepção psicológica ou subjetiva, que permanece encerrada no âmbito privado da própria consciência. Onde se acha então o erro de Locke, erro que o levou a identificar significado e imagem ou idéia da própria mente? Segundo Frege o erro de Locke consiste em considerar as palavras isoladas. Mas as palavras só têm significado no contexto de um enunciado. Só a partir dos enunciados completos é que se pode pôr a pergunta pelo significado de uma palavra. 184 Parte IV - Linguagem e comunicação
O signilicado de uma palavra consiste na contribuição que ela dá uo sentido do enunciado em que aparece. Por isso também as análises de Frege sobre o significado partem sempre do papel das palavras no interior de um enunciado. Basta lembrar a sua análise dos termos singulares presentes em enunciados de identidade do tipo "a Estrela da manhã é a Estrela vespertina" (cf. cap. 4 ). O princípio do contexto se toma assim o eixo de uma nova visão do significado. Negar a tese segundo a qual o significado de uma palavra é a imagem subjetiva que essa palavra evoca em nós comporta atribuir importância aos aspectos objetivos e públicos da linguagem. Este aspecto da tese de Frege ganhou um desenvolvimento particular em Wittgenstein, como vimos no capítulo 9. Ela desempenhará também um papel central no pensamento de Quine, que desenvolve uma visão da linguagem radicalmente antimentalista e comportamentalista. Antes de aludir ao modo como Quine desenvolve o princípio do contexto, convém analisar o alcance mais geral desse princípio.
12.2. Centralidade do enunciado e ontologia analítica O princípio do contexto consagra a prioridade do enunciado sobre suas partes, e encontra sua expressão mais feliz nas primeiras proposições do Tractatus de Wittgenstein, para o qual "o mundo é a totalidade dos fatos, não das coisas" (cf. 5.4). Como a linguagem não constitui uma simples lista de palavras, mas um conjunto potencialmente infinito de enunciados, assim também o mundo não é um mero elenco de objetos, mas é o conjunto dos fatos, o conjunto daquilo que pode ser representado por enunciados verdadeiros. A mesma idéia da centralidade do enunciado vai ser de novo proposta, de outro modo, na tese do segundo Wittgenstein, segundo a qual o enunciado é o lance elementar de um jogo de linguagem (cf. 9.2). Esta postura tem enorme alcance em filosofia e está na raiz do cemtraste entre filosofia analítica, "orientada para a proposição", e filosofiu continental, "orientada para o objeto". Se a filosofia continental pós-kantiana assumiu como tema central a representação e a consciência do oh12. Sentido, contexto e o problema do holismo: uma Introdução 185
jcto, a filosofia pós-frcgeana assumiu como prohlemn principal a análise dos enunciados. Alguns autores, como Tugendhat e Duvidson, sustentaram que a análise semântica (e pragmática) dos enunciados é a principal herdeira da metafisica e da ontologia clássica. O estudo do ser, ou o debate sobre objetos e conceitos (categorias) continua sendo central, mas passa a ser parte de uma análise do funcionamento dos enunciados. A ontologia se configura assim como o estudo da forma lógica dos enunciados, especialmente na sua versão "hermenêutica" (cf. 5.6). Um dos principais promotores de um retorno da temática ontológica, a partir da filosofia da linguagem, foi Quine. Os seus trabalhos visaram principalmente os contrastes teóricos sobre os fundamentos da matemática, que surgiram depois da contradição de Russell. Segundo Quine, as três escolas de filosofia da matemática - o logicismo de Frege e Russell, o intuicionismo de Brouwer e o formalismo de Hilbert - tornam a propor em nossa contemporaneidade as velhas contraposições medievais entre uma ontologia realista, conceptualista e nominalista (os entes matemáticos são objetos platônicos, são conceitos mentais, são entidades fictícias). Antes de decidir entre ontologias contrastantes, é necessário ter um terreno comum de discussão. Mas como achar esse terreno, se os pressupostos divergem? A idéia de Quine é que temos necessidade de uma linguagem em que seja possível esclarecer os desacordos ontológicos. A idéia segue a análise com a qual havia Quine desenvolvido a teoria das descrições definidas de Russell, que apresentamos em 5.3. Quine defende a possível eliminação, em princípio, dos nomes próprios (para evitar que se tenham termos não denotativos como "Pégaso" e a sua substituição por predicados (x pegasiza). Para compreender quais seriam os objetos definidos em uma teoria, bastará deste modo verificar a que se aplica a quantificação (todos os x, alguns x), isto é, o que é que pode ocupar o lugar de uma variável vinculada. Consideramos as variáveis vinculadas, não para descobrir o que há, mas para definir com clareza o que uma certa teoria afirma que existe. Para uma teoria ontológica, existe tudo aquilo sobre o que estamos dispostos a quantificar ou, segundo o célebre slogan forjado por Quine: "ser é ser o valor de uma variável vinculada". l 86 Parte IV - Linguagem e comunicação
Este slogan de Quine não resolve as controvérsias ontológicas, mns é um auxílio inegável para o esclarecimento da discussão. As controvérsias ontológicas tenderão, assim, a ser traduzidas em controvérsias lingüísticas. Aceitar uma ontologia quer dizer, de fato, aceitar um esquema conceituai, uma teoria implícita, um modo de falar. O nosso modo de falar cotidiano normalmente quantifica sobre objetos de dimensões médias que estão ao nosso redor. Para esclarecer os desacordos ontológicos devemos esclarecer os desacordos de esquemas conceituais ou teorias implícitas que usamos. Quine define este processo como "ascensão semântica": a discussão sobre o que são os objetos se transforma em uma discussão sobre o modo como falamos de objetos. Isto não quer obviamente dizer que a ontologia seja mera questão de palavras, nem que o problema semântico seja apenas um problema "lingüístico", mas simplesmente que se pode auxiliar a discussão ontológica mediante o esclarecimento das várias teorias implícitas usadas ao discutir sobre o que existe, ou esclarecendo a forma lógica dos enunciados com que nos propomos descrever o mundo.
12.3. A ampliação do princípio do contexto: o holismo O "princípio do contexto" de Frege foi explicitamente retomado e desenvolvido de várias maneiras por diversos filósofos, em particular por Wittgenstein, Quine e Davidson. Como vimos, Wittgenstein desenvolve de maneira original o princípio fregeano do contexto, ampliando-o para o contexto de ações, convenções e regras em que se proferem os enunciados (cf. 9.1 ). Como veremos mais pormenorizadamente, <)uine e Davidson desenvolvem de maneira mais radical o contcxtu11fom111 fregeano, inaugurando a solução que é definida como a solw;fío "hollH ta" do problema do significado. O holismo é uma teoria que invoca a dependência dns purll'H l 111 n•l11 ção ao todo: aplicado ao significado, vem a ser uma teori11 qt1l' lil111 ,.,,.,, 1
12. Sentido, contexto e o problema do holismo: 11rnn 1111 tocl11c.;ll11 1H7
nificado de uma só palavra ou enunciado depender dn lin1,tu11gcm como um todo, cm uma aparente extensão do princípio fregeuno do contexto: o significado de uma expressão não depende só do contexto do enunciado, mas da totalidade da linguagem. A visão holista do significado tem de encarar pelo menos três sérios problemas: 1. a constituição do significado de uma expressão; 2. a comunicação e o compartilhar dos significados; 3. a composicionalidade do significado. Vejamo-los, brevemente, antes de enfrentá-los mais pormenorizadamente nos capítulos seguintes: 1. É de fato a resposta ao primeiro desses problemas que vai criar os outros dois. Quine admite que não existem particulares enunciados com função constitutiva do significado, como por exemplo os enunciados analíticos. Caindo a distinção entre analítico (constitutivo do significado lingüístico) e sintético (dependente de fatos empíricos), o significado não pode mais ser por uma série de definições analíticas. A constituição do significado de uma expressão depende, portanto, da totalidade da linguagem; mas é contra-intuitivo ter de conhecer toda a linguagem para conhecer o significado de uma única expressão. 2. Se o significado de uma palavra depende de toda a linguagem, para ser compreendida seria necessário que todos usassem a linguagem do mesmo modo. Se isto pode valer para as rígidas linguagens formais, não vale a princípio para as línguas naturais. Ensina a experiência que as pessoas usam a língua de maneiras diferentes, quer dizer: cada pessoa tem seu idioleto peculiar. Se as palavras dependem da totalidade da linguagem usada, cada pessoa atribuiria diferentes significados à mesma palavra. Então, como explicar a comunicação, se não se compartilham os significados? Esta crítica, paradoxalmente, é análoga à crítica que Fregc fazia à tese do significado como imagem, de Locke: como cada 88 Parte IV - Linguagem e comunicação
um associa diversas imagens às palavras, assim também cada um iriu atribuir às palavras diferentes significados dependentes do seu idiolcto. ( 'om isto se tomaria impossível a comunicação. 3. De modo geral, o princípio do contexto fregeano contrasta aparentemente com o princípio de composicionalidade. Este último sustenta, com efeito, que o significado do todo depende do significado das partes componentes, aparentemente contra a idéia que o significado de uma parte dependeria do contexto do enunciado. Entre os dois princípios há uma inegável tensão, que foi interpretada de várias maneiras. Uma das interpretações mais usuais é que a contextualidade tem papel central na análise informal da linguagem e que, uma vez alcançada uma formalização lógica, passa a valer o princípio de composicionalidade. Se porém se afirma que em geral o significado depende da totalidade da linguagem, como será possível dar conta da compreensão baseada sobre a composicionalidade do significado? É óbvio o fato de que compreendemos frases novas com base no significado das palavras presentes no enunciado. Mas se o significado das palavras dependesse da linguagem em seu todo, isto implicaria que para compreender um enunciado deveríamos já compreender toda a linguagem. E, de novo, isto parece fora de propósito. Para tais questões há diversas respostas possíveis, e veremos algumas delas nos capítulos seguintes. A principal ruptura efetuada por Quine diante da tradição fregeana e neopositivista é a crítica à distinção entre verdades analíticas e verdades sintéticas, considerada uma distinção clássica a partir de Kant. É tomando por base esta crítica que iremos discutir os problemas do holismo.
Bibliografia essencial FREGE, Gottlob. "Os fundamentos da aritmética - Uma investigação lógico-matemática sobre o conceito de número". ln: Volume Peirce/Frege. São Paulo: Abril, 1974, p. 201-282 [Coleção Os Pensadores - Trad. de Luís Henrique Santos]. QUINE. "Sobre o que há". ln: BRANQUINHO, João. Existência e lingua~em. Lisboa: Presença, 1990.
12. Sentido, contexto e o problema do holismo: uma Introdução 189
13
Holismo e tradução radical: Quine
SUMÁRIO
Neste capítulo se apresentam duas teses fundamentais de Quine: o holismo e o caráter indeterminado da tradução. A primeira tese procede das suas críticas aos dogmas que ele define como "os dois dogmas do empirismo", ou seja, adistinção analítico/sintético e o reducionismo (I3.l). Dessa crítica nasce um empirismo "liberalizado", que propõe uma visão holística das teorias científicas e da linguagem em geral. O holismo se reforça com a análise do problema da tradução, desenvolvida com um experimento mental de "tradução radical" (13.2). Qualquer comportamento de um falante de uma língua radicalmente diferente da nossa poderá se tornar compatível com diferentes traduções. Embora tenha criticado o reducionismo neopositivista, Quine tende mesmo assim a propor novamente um outro gênero de reducionismo: o comportamento lingüístico e as disposições verbais são, com efeito, algo que é possível reduzir, em última instância, a propriedades neurofisiológicas (I3.3). Conclui-se, em I3.4, com uma discussão das idéias de Quine sobre os contextos "opacos" que o levam a criticar o essencialismo aristotélico sustentado por outros autores (como Kripke ).
13.1. Os dois dogmas do empirismo Se Frege levou o discurso sobre a linguagem da reflexão sobre as idéias para a análise do significado (ou do sentido), Willard van Orman Quine ( 1908-2000) colocou seriamente em dúvida a existência dos significados como entes teóricos aceitáveis, para consagrar-se mais simplesmente aos enunciados. Tal como Frege, Quine admite a importância da distinção entre significar e denotar e se recusa a identificar os significados com idéias contidas na mente. Mas uma vez feitas essas distinções, continua de pé o problema de definir que tipo de ente seria o significado. Ele não acredita que haja uma resposta satisfatória para essa pergunta. Quine se apresenta, deste modo, como um demolidor de grande 190 Piirte IV - Linguagem e comunicação
purtc du tradição filosófica, centrada cm torno da rcllcx.'10 sohrc o si~ulilicado, cm particular dos primeiros herdeiros da revolução lógica frcg1:ana, os neopositivistas lógicos (cf. 6.2). Estes se atinham a alguns princípios fundamentais que, para Quine, são dogmas que se deve abater: 1. a dicotomia analítico/sintético: a idéia segundo a qual os enunciados de uma teoria se dividem em duas classes, os analíticos, necessários e a priori, e os sintéticos e a posteriori; 2. o reducionismo: a idéia conforme a qual todo enunciado com significado pode ser reduzido a dados observáveis imediatos (cf. 6.3). Em um célebre artigo intitulado Os dois dogmas do empirismo, Quine desenvolve uma crítica a estas duas idéias centrais, com a intenção de liberalizar o empirismo. O motor da sua crítica é uma extensão do princípio de contextualidade de Frege, que assenta as bases de uma visão radicalmente "contextualista" do significado: a unidade de significação é a totalidade da linguagem, não um enunciado isolado. Vejamos as linhas de fundo desta dupla crítica à teoria verificacionista do significado. 1. Contra a distinção entre analítico e sintético: A distinção entre enunciados analíticos e sintéticos, esboçada por Hume (relações entre idéias e dados de fato) e Leibniz (verdades derazão e verdades de fato), é definida por Kant: analítico é o enunciado no qual o predicado está implicitamente contido no conceito expresso pelo sujeito; sintético é o enunciado no qual o predicado não está contido no sujeito. Apresentada deste modo, a definição deve ser rejeitada, porque se limita aos enunciados do tipo sujeito/predicado (e já vimos que de Frege em diante a lógica não mais se interessa pela distinção sujeito/predicado). A idéia de fundo, porém, é clara: analítico é o que é verdadeiro em virtude do simples significado das palavras e não em virtude dos fotos. A distinção entre verdades analíticas e sintéticas passa a ser deste modo um dos três pilares do neopositivismo (cf. 6.2 e 6.5). Mas quunto vale esta contraposição? Quine parte da nítida distinção entre significa13. Holismo e tradução radical: Quine 191
do e denotação (ou referência), quer para termos singulurcs quer puru predicados: "Estrela da manhã" e "Estrela vespertina" denotam o mesmo objeto, mas têm significado diferente; "criaturas com coração" e "criaturas com rins" denotam a mesma classe, mas têm significado diferente. Embora aceitando a contraposição entre teoria da referência e teoria do significado, o que Quine não aceita - como já Wittgenstein - é a hipostatização de entes como "os significados". Quando se fala de significado se fala dele para explicar as relações de sinonímia e analíticidade:
• sinonímia: duas expressões estão em relação de sinonímia se tiverem significado igual ("solteiro" é sinônimo de "homem não casado"); • analiticidade: um enunciado é analítico se for verdadeiro em virtude do significado das expressões. Quine levanta dúvidas em tomo desses dois conceitos e em tomo do conceito de significado que pressupõem. Ele mostra, com efeito, que não é possível definir o conceito de analítico - e portanto o conceito de significado sobre o qual ele se baseia - sem cair em um círculo vicioso. O argumento de Quine, em grandes linhas, é o seguinte: (i) para definir o conceito de "analítico" devemos definir o conceito de igualdade de significado, isto é, de sinonímia; (ii) para definir "sinônimo" devemos definir "necessário", porque a sinonímia requer os contextos intensionais; (iii) mas as linguagens intensionais pressupõem a compreensão do conceito de analíticidade. Vamos ver melhor estes passos: (i) se queremos definir a analíticidade devemos apoiar-nos no conceito de igualdade de significado ou sinonímia; com efeito, a sinonímia é um conceito que serve para definir a analíticidade, em particular na visão de Frege: DEFINIÇÃO FREGEANA DE ANALITICIDADE
Um enunciado é analítico se puder ser reduzido a verdade lógica substituindo sinônimos por sinônimos. A definição fregeana de analíticidade pode ser ilustrada com um exemplo: "Os solteiros são homens não casados" se reduz a verdade ló192 Parte IV - Linguagem e comunicação
gicu substituindo "solteiro" pelo termo sinônimo "não cusudo" e obtendo "os homens não casados são homens não casados". Este último enunciado é um exemplo típico de verdade lógica. Para definir a analiticidade e, por conseguinte, o significado, devemos então definir a sinonímia; (ii) Quine discute vários métodos para definir a sinonímia, até se deter sobre o que parece confiável e ao mesmo tempo seja tal que não pressuponha o conceito de analítico: a substitutividade. Caso interessante é o de expressões equiextensionais, mas não sinônimas. Expressões com a mesma extensão e diferente significado como "dotado de rins" e "dotado de coração" não poderão ser substituídas nos contextos intensionais, como já sabemos por Carnap (cf. 6.6). Não posso passar de "necessariamente quem é dotado de rins é dotado de rins" a "necessariamente quem é dotado de rins é dotado de coração". Com efeito, o segundo enunciado não é verdadeiro, porque é contingente que as criaturas com rins sejam também criaturas dotadas de coração. Portanto, para falar de sinonímia se deve falar de substitutividade em todos os contextos, incluídos os intensionais; (iii) a esta altura, porém, Quine observa que uma linguagem intensional, com a noção de necessidade que comporta, só é compreensível se já houver sido compreendida a noção de analiticidade. Mas a analíticidade era precisamente aquilo que se queria definir'. A noção de intensão
1. Entre as alternativas a este círculo vicioso, Quine procura uma definição de analiticidade que não dependa da sinonímia. Entre as poucas aceitáveis se acha a que toma como referência as linguagens formais e suas regras semânticas (como os postulados de significado de Carnap, que definem os enunciados analíticos de uma linguagem dada). Mas, segundo a objeção de Quine, essas regras pressupõem uma compreensão informal de analiticidade; e, na falta desta, elas não nos ajudam a explicar o que é a analiticidade. Uma outra alternativa mencionada e não desenvolvida por Quine é a da definição de analiticidade entendida como introdução convencional explícita. É o único caso de definição que não pressupõe a relação de sinonímia. Quine, contudo, pensa que esta definição abrange poucos casos. Entre as críticas feitas a Quine se encontra a de não ter distinguido acuradamente analítico e a priori (Putnam). A partir desta base se distingue uma visão metafísica e uma visão epistêmica da analitlcldade: a primeira, típica dos neopositivistas, estaria definitivamente morta depois de Quine, a segunda, conforme Paul Boghossian, talvez pudesse ser reintroduzida em fllosorla. Convém recordar que o artigo de Quine (de 1951) é anterior à discussão de Carnnp sobre os postulados de significado, publicada na segunda edição de Significado ,, 11r cessidade (1956). Carnap efetua aqui uma distinção mais clara entre verdade MQlf'ft 11 verdade analítica, justamente com base nas críticas de Quine (cf. 6.5). Mas a crlt1u1 de Quine à distinção entre analítico e sintético ainda é considerada válida por rnullu", mesmo tendo em conta a revisão feita por Carnap.
13. Holismo e tradução radical: Quine 193
deveria ter sido um explirntum du noção de signilicudo, 11111s este t!Xplicatum não é capaz, segundo Quine, de alcançar um nível de clareza conceituai suficiente para uma linguagem rigorosa e deve, portanto, ser abandonado (em geral contra a linguagem intensional, ct: 13.4 ). A crítica de Quine provocou diversas reações, ora a favor ora contra, mas deixou com certeza uma indelével marca no panorama filosófico. Com Quine é posta em dúvida uma dicotomia fundamental na história do pensamento filosófico. Nossas proposições não podem ser divididas em duas classes separadas: de um lado as analíticas, cuja verdade depende do significado e, do outro, as sintéticas, cuja verdade depende dos fatos. Todo enunciado depende ao mesmo tempo - embora em diferente medida- da linguagem e dos fatos. Não se pode separar componente lingüística e componente factual na verdade de um enunciado. Isto acarretará conseqüências também no modo de entender as relações entre filosofia e ciência, que estavam rigidamente separadas por essa dicotomia (caberiam aos filósofos as tarefas conceituais da verdade analítica, e aos cientistas caberia descobrir verdades factuais). Não basta uma demonstração para negar a validade de uma distinção consolidada ao longo dos séculos. É necessário também propor uma alternativa, e é o que faz Quine, partindo da crítica ao segundo dogma dos neopositivistas: a idéia segundo a qual uma proposição isolada poderia ter uma confirmação empírica (e ser assim confirmada ou refutada).
2. Contra o segundo dogma Depois de haver criticado a noção de significado em geral, Quine tem de enfrentar o aspecto central da teoria verificacionista do significado, isto é, a tese conforme a qual o significado de um enunciado é o seu método de verificação ou confirmação empírica (cf. 6.2). Esta tese defende, ainda que não necessariamente, um reducionismo fundacionalista: todo enunciado com sentido de uma teoria científica deveria poder ser traduzido em um enunciado versando sobre construções lógicas e dados imediatamente observáveis. O reducionismo, portanto, se baseia sobre a idéia segundo a qual a verdade de um enunciado depende dos dois componentes lógico-lingüístico e factual, e que a sua vcrificabilidade ou "confirmação" depende do componente factual. 194 Parte IV - Linguagem e comunicação
Eslu idéia é posta cm crise por um princípio que Quine lomu de empréstimo ao tisico francês Pierre Duhem: TESE DUHEM-QUINE
A unidade de confirmação empírica de uma teoria não é o enunciado isolado, mas a teoria em sua totalidade. Sendo assim, não é verdade que o significado de um enunciado é a sua verificação empírica, dada isoladamente de outros enunciados, como se cada enunciado isolado tivesse necessidade de uma confirmação empírica individual. Pelo contrário, todo enunciado de uma teoria científica depende estritamente dos outros enunciados da mesma teoria. Uma teoria científica não é um mero conjunto de enunciados verdadeiros, mas um conjunto de enunciados verdadeiros que se sustentam entre si. Uma teoria é como um campo de forças no qual tudo se liga de maneira sistemática. É verdade que apenas a periferia está conectada diretamente ao mundo da experiência (com enunciados sujeitos à observação), enquanto o núcleo da teoria é composto de enunciados teóricos. É óbvio, para Quine e também para todos nós, que a verdade depende tanto da linguagem como dos fatos, mas dessa obviedade não deve descender a existência de dois distintos componentes - factual e lingüístico - tais que alguns enunciados sejam verdadeiros em virtude de um componente, e outros em virtude do outro. A distinção é questão de graus, e de maior ou menor propensão a abandonar o que se considere verdadeiro. Para não abandonar certas verdades da teoria, um enunciado que se configurasse como falso poderia ser salvo modificando outros enunciados da mesma teoria, ou revendo certos pressupostos não claros. Isso aconteceu - como observava Duhem - com a teoria newtoniana, quando se constatou que a órbita de Plutão não era totalmente elíptica. Essa observação deveria ter desmentido a teoria, mas deu ao contrário ensejo a uma nova descoberta a presença de Netuno, que provocava um desvio da órbita de Plutão. I•: essa descoberta permitiu que se tomasse a teoria mais coerente. Como exemplo-limite da possibilidade de reorganizar uma tcmi11 indo mudar-lhe os aspectos centrais, no intuito de os tomar mais cocn:11 13. Holismo e tradução radical: Qul1u, 1Cj!:,
lcs com a observação, Quine lembra que é também posslvcl tocar nos princípios lógicos, considerados imutáveis e a priori. Os princípios lógicos também podem ser modificados, como acontece com o princípio do terceiro excluído (pv-,p) que foi posto em discussão por matemáticos e lógicos intuicionistas 2 ( e entre as lógicas "desviantes" em relação à lógica padrão se podem recordar as tentativas das lógicas quantísticas, úteis para descrever o mundo subatômico, onde parece que não valem alguns princípios lógicos clássicos). Poder-se-ia aduzir que aquilo que vale para uma teoria não vale para uma linguagem, que é apenas um componente de uma teoria científica; mas se pode também sustentar que uma linguagem natural é um modo de estruturar o mundo e contém em si uma teoria implícita; portanto a tese de Quine a propósito das teorias científicas pode ser estendida - e será estendida por ele mesmo - também à linguagem em geral. Se não é possível separar o conhecimento baseado na linguagem das crenças empíricas sobre o mundo, é no fim das contas necessário aceitar o fato de que não apenas o nosso conhecimento, mas também o significado dos nossos enunciados é dado por uma rede de crenças, onde informações lingüísticas conceituais e dados empíricos ou factuais estão inseparavelmente ligados. Ainda que uma linguagem possa produzir enunciados verdadeiros e falsos (e contribuir para formar teorias, a saber, conjuntos de enunciados verdadeiros), não se poderão mais distinguir em uma linguagem os enunciados constitutivos do significado ("os solteiros são adultos não casados") e os enunciados que não são tais ("os solteiros são pessoas disponíveis") ou "há três solteiros no meu palácio'). Embora mantenhamos ainda "intuições" sobre a diferença entre analítico e sintético, deve-se repensar esta distinção como uma questão de graus baseada empiricamente sobre a nossa propensão a manter ou a abandonar certos enunciados. É fácil abandonar o enunciado "há três solteiros no meu palácio", caso fiquemos informados sobre o matrimônio deles, enquanto é difícil abandonar o enunciado "os solteiros são adultos não casados".
2. Cf. Quadro 16.
196 Parte IV - Linguagem e comunicação
13.2. Tradução radical e indeterminação Por "holismo", a partir do ensaio sobre os "dois dogmas", entende-se a posição filosófica que insiste, na esteira de uma ampliação do princípio do contexto fregeano, sobre a dependência do significado das partes isoladas da totalidade da linguagem. Quine cita o segundo Wittgenstein: "compreender um enunciado significa compreender uma linguagem". O significado de uma palavra isolada depende não só do enunciado de que faz parte, mas da totalidade da linguagem em que está inserida. Como então se há de chegar a compreender uma linguagem desconhecida? Tomando como ponto de partida essa pergunta, Quine desenvolve as idéias de um empirismo sem dogmas: a crítica ao reducionismo, como de fato veremos, não implica o abandono de uma visão profundamente empirista. Parte Quine de um experimento mental. Um explorador se encontra em um mundo desconhecido e quer aprender a língua dos nativos: por onde começar? Estamos diante do problema da assim chamada "tradução radical": a tradução radical é uma tradução entre duas línguas e culturas que não tiveram nunca um contato, e por isso o tradutor tem como única base para a tradução as conexões entre expressões verbais e comportamentos observáveis. Tal como Wittgenstein, Quine descarta a busca de entes mentais que correspondam ao significado das palavras: o que se pode verificar é o comportamento lingüístico dos falantes. É necessário, por conseguinte, começar pelas reações de assentimento e discordância dos nativos. Quais enunciados serão tomados como ponto de partida? Os enunciados ohservacionais, isto é, aqueles que são emitidos em concomitância com um fenômeno claramente perceptível: se, por exemplo, quando aparece um coelho o nativo pronuncia "gavagai", o tradutor traduz por "coelho" ou "aqui há um coelho", e confirma a sua teoria se, toda vez que aparece um coelho, o falante dá seu assentimento à emissão "gavagai". Mm, - diante do mesmo comportamento do nativo - outro tradutor ro,krin 13. Holismo e tradução radical: Quina 197
traduzir "partes não separadas de coelho" ou "movimento de coelho", "presença de coelhidade" etc., interpretando de diferentes modos a ontologia dos nativos (o modo como os nativos dividem o mundo cm categorias de objetos). A conseqüência fundamental é o princípio que poderíamos denominar "princípio de indeterminação da tradução", ~aseado sobre a relatividade dos esquemas conceituais: INDETERMINAÇÃO DA TRADUÇÃO
l . pode haver diversas traduções ( manuais de tradução) compatíveis com os dados empíricos, mas incompatíveis entre si; 2. toda tradução é, com efeito, relativa ao esquema conceituai usado pelo lingüista observador ao analisar a linguagem nativa. As hipóteses usadas pelo lingüista, com efeito, não são apenas função do comportamento lingüístico, mas estão relacionadas também com o modo de explicar a construção sintática dos enunciados, as categorias que se devem usar etc. Em síntese, Quine conclui que o comportamento lingüístico de assentimento ou discordância não basta para discriminar a diferença de tradução. Toda tradução depende de uma "teoria de fundo" ou de um esquema conceituai de fundo. Daí se segue que lingüistas diferentes, situados diante das mesmas observações, podem elaborar traduções diferentes. A conclusão de Quine é que não há a tradução exata. Todo tradutor parte de um conjunto de hipóteses analíticas: diferentes conjuntos de hipóteses sobre o modo como analisar a linguagem que se vai traduzir podem dar resultados diferentes, todos compatíveis com a mesma evidência empírica. Toda tradução depende, então, do esquema conceituai que se utiliza ao traduzir. Uma diversidade nas traduções não implica que um manual esteja necessariamente errado; dois manuais podem ser ambos adequados aos dados empíricos. O caráter indeterminado da tradução encontra todavia restrições em alguns princípios normativos que governam todo bom manual de tradução. Um desses princípios gerais nasce da idéia segundo a qual não é fáci I que uma pessoa profira asserções evidentemente falsas; portanto, se 198 Parte IV - Linguagem e comunicação
um manual leva a traduzir muitas frases de modo que parecem evidentemente falsas, provavelmente isso depende de alguma coisa que não se acha no manual. Noutras palavras, sugere Quine, "além de um certo limite, a estupidez do interlocutor é menos provável que a má tradução". Deve-se, portanto, adotar o princípio seguinte (mas a este propósito cf. também 6.2 e 14.4): PRINCÍPIO DE CARIDADE
Escolher a tradução que tome verdadeiro o maior número possível de asserções do nativo. Este princípio ajuda a rever algumas tentativas de impor aos povos primitivos uma particular mentalidade pré-lógica. Esta hipótese, observa Quine, se baseava em um tipo de tradução segundo a qual os indígenas teriam afirmado enunciados do tipo ''p e não p". Mas talvez a tradução estivesse errada, e não a emissão dos nativos, e a mesma coisa concluem efetivamente vários antropólogos, de Malinowski a Lévy-Bruhl (quando abandonará as suas teses sobre a mentalidade pré-lógica dos povos primitivos). Concluindo, traduzir é possível, e até com certa eficiência e utilidade. Mesmo que não haja significados e nem haja tampouco um fato que possa decidir qual é a "verdadeira" tradução, todavia o trabalho de tradução funciona também porque as várias traduções alternativas e compatíveis com os dados estão no entanto sujeitas a restrições pragmáticas de significação e credibilidade.
13.3. Comportamentalismo quineano O fato de Quine não aceitar o reducionismo neopositivista não quer dizer que ele abandona o empirismo e a tentativa de reduzir a análise semântica a uma análise científica. Vimos que segundo Quine se pode folar de significado, sem por isso hipostatizar o termo "significado". Scriu mais apropriado dizer que para ele se poderia prescindir do uso do tcrn111 "significado". Em vez de falar de "compreender o signiticmlo" 011 ,ll• "igualdade de significados", poder-se-ia falar de "eomprecndl~I' 1111111 l':-l13. Holismo e tradução radlcnl: Quine 199
pressiio" ou de "equivalência de expressões". A ciênciH dcvcrin nbandonar qualquer referência aos significados e limitar-se a usar uma linguagem puramente extensional (cf. infra). Também vimos que, tanto para Quine como para Frege, o risco maior cm hipostatizar o significado é a tendência a identificá-los com entes ou processos mentais. Mas Quine escreve (em parte) depois das obras de Chomsky e tem que enfrentar as novas explicações mentalistas do significado, reforçadas pelo fenômeno da riqueza de produção lingüística infanti 1, que não pode ser explicada ao que parece, com a psicologia comportamentalista tipo estímulo-resposta (cf. 3.3). Quine resiste a essa tentação com a idéia de "manter os pés no chão" e raciocinar apenas com os "pontos fixos" que temos diante de nós: (1) a emissão verbal e (2) os estímulos compartilhados. A explicação mentalista estabelece uma meta falsa, quando se levam em conta as análises sobre a tradução mencionadas no parágrafo anterior: com efeito, a pressuposição da explicação mentalista que postula um significado, ou ente mental, correspondente a uma expressão lingüística, não permite que se capte o alcance da indeterminação da tradução. Para Quine, a semântica mentalista exige que, de dois manuais em desacordo entre si, um esteja certo e o outro errado. Como será então possível uma explicação da associação entre expressões lingüísticas e estímulos compartilhados? Quine responde apresentando três formas ou níveis de explicação semântica: 1) mentalista; 2) fisiológica; 3) comportamental. Dadas as suas premissas, é claro que dos três níveis de explicação o mentalista será considerado o mais superficial. O mais profundo, cientificamente ideal e mais ambicioso, é o nível neurofisiológico. Todavia, este nível de explicação, que conquistou notáveis progressos depois dos trabalhos de Quine, na segunda metade do século XX se achava somente no começo. Quine, então, insiste sobretudo em definir o nível que considera ao alcance da investigação empírica contemporânea a ele, ou seja, o nível de análise comportamental. O Parte IV - Linguagem e comunicação
()uinc, seguindo os passos de Gilbert Ryle-'. propõe assim umu forma de comportamentalismo lingüístico: o comportamento lingüístico observável é por um lado aquilo que deve ser explicado e, pelo outro lado, é o único critério para dar uma explicação racional do fenômeno da linguagem. Os três aspectos centrais do comportamentalismo lingüístico de Quine podem ser resumidos da seguinte maneira: • a base de uma análise da nossa capacidade de compreensão dos enunciados é o comportamento e, de modo particular, a disposição a assentir a ou dissentir de certas emissões sonoras em determinadas situações observáveis; • o ponto de partida da análise são os enunciados observáveis, aqueles que se realizam em resposta a estímulos sensoriais atuais; • no que tange a enunciados sujeitos à observação, é possível falar de "significado estímulo", definido como a classe dos estímulos que provocam um assentimento (ou dissentimento) na presença de uma emissão verbal. O resto da explicação se valerá das hipóteses do lingüista que segue o princípio de caridade. O que caracteriza o discurso de Quine, que igualmente nisto segue a Ryle, é a análise disposicional. Uma disposição é uma característica tisica que se pode especificar em diversos níveis de precisão (como a solubilidade, característica tisica de algumas substâncias - como o sal na água - que pode ser especificada no nível de análise da reação química). Muitas vezes a terminologia disposicional é uma abreviação útil em relação a especificações mais acuradas, que nem sempre estão disponíveis (pense-se em uma especificação da fragilidade ou da transportabilidade ). Dado que as disposições para o comportamento são estados ou mecanismos fisiológicos, segue-se que a análise disposicional do compor-
3. Quine assume a mensagem fundamental de Gilbert Ryle (1900-1976), autor da O
conceito de mente, em que ele desenvolve uma crítica ao dualismo cartesiano, que, julga derivado do "dogma" do "espírito na máquina". Mente, pensamentos e crnn1;a111 podem ser explicados em termos de disposições para o comportamento, e e1tud11do11 mediante a observação do comportamento humano ordinário, sem postular umn tt1t1lidade espiritual separada.
13. Holismo e tradução radical: Quine 201
lamento lingi.iístico pode ser reduzida cm linha de princípio a uma ani'llisc naturalista efetuada em termos neurofisiológicos. A visão quinca1111 apresenta uma estratégia reducionista em três passos: a mente consiste nas disposições para o comportamento e estas por sua vez consistem cm estados fisiológicos. Enquanto não pudermos aspirar às expli_cações causais neurofisiológicas do fenômeno lingüístico, deveremos contentarnos com as explicações comportamentais. Estas têm a vantagem, em comparação com as mentalistas, de não gerarem a ilusão de serem mais explicativas do que de fato o são. A análise comportamentalista de Quine se acha em sintonia com o espírito de abertura às ciências e com a procura de uma linguagem científica unitária e não ambígua. Esta, por sua vez, é coerente com uma crítica às linguagens demasiadamente "ricas", como as linguagens intensionais.
13.4. Opaco/transparente e os problemas da modalidade(*) Um aspecto mais técnico das idéias de Quine é o que diz respeito às extremas conseqüências da sua crítica à noção de significado ou intensão. Quine propõe uma reconstrução canônica da linguagem natural em uma linguagem puramente extensional (cálculo dos predicados da primeira ordem com identidade). É a idéia da "regimentação", que desenvolve no final de Palavra e objeto ( 1960). Quine propõe o distanciamento de certos aspectos da linguagem ordinária (como os contextos intensionais ), para obter: • clareza da comunicação científica; • compreensão da função referencial da linguagem; • esclarecimento do nosso esquema conceituai; • simplificação da teoria. O ataque às intensões, chamadas por Quine até de "criaturas do demônio", parte dos problemas que elas suscitam ao princípio de substitutividade, que é um princípio-chave da lógica extensional. O princípio de substitutividade declara que, se substituirmos um termo por um co-refercncial, a verdade absolutamente não muda. Existem várias exceções a 02 Parte IV - Linguagem e comunicação
isso, discutidus já por Frege e Carnap (cf. 4.4 e 6.6). ( 'onsideremos ln.1N exemplos:
/. contextos com aspas: ( 1) Cícero = Túlio
(2) "Cícero" tem seis letras (3) "Túlio" tem cinco letras
2. contextos de crença (4) Cícero = Túlio (5) Pia acredita que Cícero denunciou Catilina (6) Pia acredita que Túlio denunciou Catilina
3. contextos modais (7) 9 = o número dos planetas (8) Necessariamente 9 > 7 (9) Necessariamente o número dos planetas> 7 Quine classifica esses contextos sob a categoria de "contextos opacos" e os contrapõe aos "contextos transparentes" ou extensionais, onde a substitutividade funciona sem problemas. Segundo Quine, nos contextos opacos: • não se usa a modalidade de re, mas a de dieta; • não se pode usar então o princípio de substitutividade. Vejamos a relação entre estes dois pontos. Quine define dois tipos de crença, a crença de re e a de dieta: • a crença de re é a crença de um falante quanto a certas propriedades de um determinado objeto do mundo; • a crença de dieta é a crença de um falante no que tange a uma proposição ou a um pensamento. No contexto de crença "Pia acredita que Túlio denunciou Catilinu", não posso substituir "Cícero" por "Túlio" porque a crença de Piu é de· 13. Holismo e tradução radical: Quine 203
dicto, isto é, rcfcrir-sc-iu II uma proposição cm que clu crê. Se digo, no entanto: "de ( 'icem Pia acredilu que denunciou Catilina", reliro-me i\ própria pessoa, e posso descrevê-la de modos qesconhecidos por Pia, substituindo "Cícero" por "Túlio" ou por outros nomes ou descrições equiextensionais sem mudar a verdade do conjunto. São, portanto, as proposições ou intensões que criam problemas para a substitutividade. De modo geral se pode dizer que, embora os dois primeiros enunciados das temas acima referidas sejam ambos verdadeiros, daí não se segue que as conclusões (3, 6, 9) sejam verdadeiras também, ao contrário, são evidentemente falsas (exceto a 6, que pode não ser verdadeira). Podemos facilmente desembaraçar-nos do primeiro caso, que depende da diferença entre uso e menção (cf. 4.4): em (1) "Cícero" é usado (modo formal) e em (2) é ao contrário mencionado (modo material). Por conseguinte, estamos diante de dois tipos de objetos diferentes (no primeiro caso estamos falando de Cícero, no segundo caso da palavra "Cícero") e a conclusão não se segue. Mas o que dizer dos outros dois casos? Para Frege, seguir-se-ia que nos contextos opacos as expressões mudam a sua referência (cf. 4.4). Para Camap, seguir-se-ia que nesses contextos vale um princípio de substitutividade, não entre as extensões, mas entre as intensões (cf. 6.6). Se seguíssemos Camap, sugere Quine, então deveríamos dizer que há um ente intensional x com o qual Pia identifica quem denunciou Catilina, ou que existe um ente intensional y com o qual julgamos um número necessariamente maior do que 7. Mas o que é necessariamente maior do que 7 se não 9? O que seria este ente intensional? Devemos talvez abandonar os nossos objetos normais e povoar a nossa ontologia com entes estranhos? Existem vários motivos, além da navalha de Ockham4 para não aceitar seres intensionais, e entre estes um possível regresso ao essencialismo aristotélico. Aceitar (7) e (8) e negar (9) implica que alguns entes, como o número 9, têm dois diferentes modos de ser especificados: alguns destes modos são essenciais (por exemplo, ser o quadrado de 3),
4, Entia non sunt multiplicanda praeter necessitatem: não se deve multiplicar os entes além do necessário. O motivo é invocado por muitos filósofos contemporâneos, in primls o Wittgenstein do Tractatus.
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Porte IV - Linguagem e comunicação
outros modos são ines.\·e11ciais e contingentes (por exemplo, Sl'I' o 11i'l111l' rodos planetas). A conclusão de Quine Uunto com outros arµ11llll'lllns muis complexos) é que para realizar a lógica modal quantificudu (nilo NÓ a proposicional) não se pode senão recorrer ao essencialismo aristotélico. Sendo contra o essencialismo, Quine é também contra a lógica moda! quantificada. Se também, com o intuito de argumentar, se aceita uma lógica modal, Quine sustenta que não é possível quantificar dentro dos contextos modais, com modalidade de re. Aqui a distinção entre de dieta e de re se aplica aos operadores modais em vez de aos operadores de crença, como foi mencionado acima: • uma modalidade de dieta implica que o operador modal diga respeito a todo um enunciado (é necessário que p ); • uma modalidade de re implica que o operador modal diga respeito a um indivíduo (a é necessariamente um F). A distinção se pode efetuar através do âmbito do operador (cf. 2.5). Vejamos um exemplo tomando dois enunciados de re aparentemente inócuos, que atribuem propriedades modais a indivíduos: (a) todos os solteiros são necessariamente não casados, mas não são necessariamente militares; (b) todos os tenentes são necessariamente militares, mas não são necessariamente não casados; ou, em fórmulas:
(a') Vx [(Sx ~ D-, Casado x) /\ (Sx~-, D Mx)] (b') Vx [(Tx~
n Mx) " (Tx ~-, n-, Casado x)]
Do caso do Tenente Rossi, que é também solteiro, seguir-se-ia que Rossi é (enquanto tenente) necessariamente militar e (enquanto solteiro) não necessariamente militar e enquanto solteiro é necessariamente não casado, mas não enquanto tenente. Os essencialistas seriam, deste modo, induzidos à contradição. 13. Holismo e tradução radical: Quine 205
Evitu-se u contradição só seus proposições (u) e (h) forem trutudas não como modalidades de re, mas enquanto modalidudes "" di<'lo, isto é, tais que para elas o operador modal é sempre exterior ao quunlificador e diz respeito a todo o enunciado quantificado: (a") lJ [Vx (Sx ~-, Casado x)] /\-, D [Vx (Sx ~ M.x)] (b") fl [Vx (Tx ~ M.x)] /\-, 1] [Vx (Tx ~-, Casado x)]
Destas formulações de dieta não se segue nenhuma contradição. A conclusão de Quine é que não se pode quantificar através de contextos modais. Deve-se abandonar a metafisica dos entes intensionais e as complicações da lógica modal quantificada. Apesar do esforço de Quine, o essencialismo e a lógica modal quantificada serão conduzidos ao auge pelo inventor da semântica para a lógica modal quantificada, Saul Kripke (cf. 7.3 e 7.4).
Bibliografia essencial CARNAP, Rudolf. "A analiticidade segundo Quine". ln: Cadernos de História e Filosofia da Ciência, série 3, vai. 4, n. 2, jul.-dez./1994. Campinas: Unicamp [Trad. de Caetano E. Plastino]. QUINE. "Existência e quantificação". ln: BRANQUINHO, João. Existência e linguagem. Lisboa: Presença, 1990. STEIN, S.I.A. O holismo semântico de Willard Quine: uma tentativa sistemática de compreender o significado. Porto Alegre: UFRGS, 1996 [Dissertação de mestrado em filosofia]. VIDAL, Vera. "Empatia e transcendência: reflexões sobre o sistema filosófico de Quine". ln: Principia 7 (1-2),jun.-dez./2003, p. 205-228. Florianópolis.
!06 Parte IV - Linguagem e comunicação
14
Interpretação e verdade: Davidson
SUMÁRIO
Neste capítulo se mostra como o problema da tradução radical pode ser aplicado à compreensão intralingüística. Em Davidson isto leva a ver a teoria do significado como teoria da interpretação ( 14.1 ). Davidson radicaliza o holismo de Quine, criticando um terceiro dogma do qual Quine não se teria livrado, o dualismo esquema-conteúdo (14.2). Tomando por base alguns conceitos originais (a convergência, a triangulação), Davidson procura responder aos problemas do holismo, denunciados por diversos autores com uma nova imagem da comunicação lingüística (14.3-14.4). Encarar o problema da comunicação exige que se dê maior atenção aos diversos aspectos de dependência contextual das nossas proposições, e sobre esta recomendação se encerra a reflexão do capítulo (14.5).
14.1. Tradução, interpretação e teoria do significado No final do seu célebre artigo sobre a tradução radical, referia-se Quine ao seu "equivalente doméstico": a tradução dos discursos de quem fala a mesma língua que você. Donald Davidson (1917-2003) desenvolve esta intuição de Quine: assim como existe um problema de tradução radical, da mesma forma existe um problema de interpretaçlio radical, que vai surgir quando se encontra um falante da nossa mesma Ii11 · gua. Com efeito, uma vez que se aceite a crítica de Quine à distinçiio l'll tre analítico e sintético, daí decorre que a interpretação depl'tuk du" crenças; e se a interpretação depende das diversas crenças dos 011vi11h·i,. as mesmas proposições verbais de um falante podem ser inll'rp11.•l111l11•, de maneira diferente por diferentes ouvintes. Portanto, não s1.· d1'1 ,, ,,, 1, ,, , 14. Interpretaçao., vnnl,ulsii 11~111tl•111111 Jllf
" interpretrn;ão unívoca e absolutamente corretu de umu proposição lingüística. Que conseqüências implica este paralelismo entre u tradução e a interpretação? Antes de mais nada, compreender uma linguagem é algo semelhante a traduzir: é necessário, portanto, elaborar algo que seja análogo a uma teoria da tradução. Davidson a denomina "teoria da interpretação" ou "teoria do significado". Uma teoria da interpretação deveria, com efeito, oferecer a uma pessoa o significado dos enunciados de uma língua, inclusive aqueles da sua própria língua. Mas qual a forma que se deve dar a esta teoria? A resposta de Davidson é uma referência à tradição clássica da semântica lógica, a teoria tarskiana da verdade. Enquanto Tarski pretendia dar uma definição de verdade, Davidson quer dar uma definição de significado e por conseguinte assume o conceito de verdade como primitivo. A teoria do significado é uma teoria que deveria ter como conseqüência todos os enunciados do tipo: ''p" é verdadeiro se e somente se p
onde o primeiro ''p" é o nome do enunciado na linguagem objeto, e o segundo p é o enunciado da metalinguagem que fornece as condições de verdade do enunciado da linguagem objeto. Na metalinguagem mencionamos (entre aspas) as expressões da linguagem objeto. Onde a metalinguagem é uma extensão da linguagem objeto, então as mesmas expressões são usadas no lado direito do bicondicional e mencionadas no lado esquerdo. A metalinguagem é a linguagem na qual falamos e a linguagem objeto é a linguagem acerca da qual falamos. Em certos aspectos a teoria de Davidson é um outro modo de traduzir a teoria clássica do significado como condições de verdade, que já vimos ser uma idéia central da filosofia da linguagem em suas origens (cf. capítulo 6). A teoria põe em evidência, antes de tudo, de que modo a interpretação dos enunciados compostos depende dos enunciados componentes. Pense-se na definição clássica do significado dos conectivos dado pelas tábuas de verdade ("a/\ b" é verdadeiro se a é verdadeiro e b é verdadeiro !08 Parte IV - Linguagem e comunicação
ele.). Duvidson apresenta as coisas de maneira análoga, mas na purte dil'eila do bicondicional não aparece mais o predicado de verdade:
"a /\ b" é verdadeiro se a e b "a v b" é verdadeiro se a ou b "a
~ b" é verdadeiro se não
a ou b etc.
Para os enunciados atômicos a idéia é facilmente explicável com a tradução de uma língua para outra. Usemos como metalinguagem o italiano e como linguagem objeto o alemão. Posso dizer que sei alemão se sei, para cada frase do alemão, sob quais condições uma frase alemã é verdadeira: "Es regnet" é verdadeiro se e somente se está chovendo. Como posso saber se o bicondicional que derivei do meu manual de tradução (de interpretação) é verdadeiro? Baseando-me, como já recordava Quine, sobre o assentimento ou a discordância dos falantes: se estes assentem sempre a "Es regnet" quando chove, então há uma forte evidência de que o significado de "Es regnet" seja "está chovendo". A teoria do significado (ou da interpretação) é assim uma teoria empírica. Algo de análogo vale também no caso homófono: o significado de "está chovendo" é dado pelas suas condições de verdade: "está chovendo" é verdadeiro se e somente se está chovendo. Conhecer o significado de um enunciado é saber o que acontece se ele é verdadeiro. Assim como para Quine havia uma "indeterminação du tradução", também para Davidson existe uma "indeterminação da interpretação" e, como para as teorias da tradução de Quine, será sempre possível construir teorias alternativas do significado. Quine o justificuvn li1lando de diversos possíveis esquemas conceituais, todos compntlvcis com a mesma evidência empírica. Davidson, embora aceitando n 11.'Sl' d, 1 14. Interpretação e verdade: Dnvld•on 209
indeterminismo da tradução, não aceita este modo de inlcrpretú-lo. esta a sua mais famosa crítica a Quine.
n
14.2. O terceiro dogma do empirismo Já vimos que Quine tinha criticado dois dogmas do empirismo: 1. o reducionismo; 2. a distinção analítico/sintético. Ao discutir a tradução radical, Quine, com seu modo de ver a linguagem e as teorias como um todo cujas bordas tocam a experiência, tinha afirmado que a diversidade das traduções possíveis era permitida pelos diferentes esquemas conceituais com que se poderia enquadrar o dado empírico. Isso pode levar a resultados relativísticos: todo esquema conceituai é intraduzível em outro; cada um pode seguir o próprio esquema e obterá suas verdades. Uma confirmação da radical diversidade dos esquemas conceituais parece vir da antropologia. São famosos os estudos do antropólogo Whorf, que mostrou a diversidade dos esquemas conceituais da língua hopi em confronto com a língua inglesa, e elaborou junto com o lingüista Sapir a tese Sapir-Whorf, segundo a qual cada língua constrói uma visão própria do mundo. No entanto, quando Whorf quis mostrar a diversidade do esquema conceituai dos hopi, usou o inglês. E o que resta então do esquema conceituai hopi? Ou é descritível e portanto pode ser traduzido em nossa língua, ou não o é. Se é intraduzível, não podemos falar dele. Mas falamos. Seguindo observações desse tipo, Davidson fundamenta a sua tese: a dicotomia de esquema conceituai/conteúdo empírico é o "terceiro dogma" que se deve abandonar junto com a distinção analítico/sintético. A distinção analítico/sintético é uma forma particular do terceiro dogma: com efeito, o analítico depende do significado (do esquema conceituai) e o sintético depende da experiência (conteúdo empírico). Se renunciamos de verdade - como sugere Quine - à distinção entre 210 Parte IV - Linguagem e comunicação
unulitico e sintético, então devemos renunciar também ao dogmn 11111111 geral que lhe dá sustentação, que permanece inclusive cm ()ui11c l' i.'· próprio do cmpirismo 5 •
14.3. O holismo semântico e o problema da comunicação Enquanto Quine citava Wittgenstein para justificar o seu holismo, a visão holística de Davidson remonta diretamente a Frege. Em um ensaio seu sobre Verdade e significado, onde esboça a sua teoria aqui descrita em 14 .1, Davidson sustenta que só podemos dar o significado de um enunciado (ou palavra) se dermos o significado de todos os enunciados (ou palavras) da linguagem: HOLISMO SEMÂNTICO (DAVIDSON)
"Segundo Frege, uma palavra só tem significado no contexto de um enunciado; no mesmo espírito poderia ter acrescentado que um enunciado (e portanto uma palavra) só tem significado no contexto da linguagem". O holismo semântico é uma extensão do holismo epistemológico de Quine, e prossegue sobre a sua crítica da dicotomia analítico/sintético. A visão holística foi recebida com entusiasmo na filosofia contemporânea, como atesta o livro de Rorty, Afilosofia e o espelho da natureza. Mas esta maneira de ver não está isenta de sérios problemas, apontados em primeiro lugar por Michael Dummett em uma crítica a Quine e Davidson. Vou tentar reconstruir dois pontos essenciais da argumentação de Dummett:
1. com o holismo os significados se tornam privados e individuais: todo indivíduo tem o seu idioleto próprio ou maneira individual de usar as palavras de uma língua. Se o significado de uma palavra não pode ser dado por um conjunto de definições analíticas, mas depende da total ida-
5. Existe uma certa analogia entre a crítica de Davidson e as críticas ao "mito do dado", feitas por Sellars e Austin contra as teorias de Russell ou Ayer.
14. Interpretação e verdade: Davidson 211
de da linguagem, o significado dependerá também dn totnlidude dos usos peculiares do idioleto de um falante. Por exemplo, o signilicado de "mesa" depende para mim também do fato de que a mesa de minha tia está rachada ("a mesa de minha tia está rachada" seria um enunciado sintético, mas, eliminada a distinção analítico/sintético, cada enunciado contribui para constituir o significado). O significado àtribuído às palavras de um indivíduo, dada a visão holística, será então diferente daquele de qualquer outro. Em conclusão, se o significado de uma palavra depende da totalidade da linguagem em que está inserida, ou da totalidade do idioleto de um falante particular, não é possível que dois falantes compartilhem o mesmo significado das palavras. O significado se toma, assim, uma coisa individual e privada;
2. com o holismo a comunicação passa a ser impossível: se cada pessoa usa as palavras com um significado di_ferente, por se acharem inseridas no seu idioleto, não é possível que se dê um verdadeiro desacordo (nem tampouco, neste caso, um verdadeiro acordo). Um desacordo só acontece na base de um acordo sobre o significado das palavras. Se o significado varia de falante para falante, não há nem acordo nem tampouco desacordo. Mas se não pode haver acordo ou desacordo, a comunicação passa a ser um mistério inexplicável. Essas críticas não demonstram que o holismo semântico esteja equivocado, embora mostrem que ele tem algumas conseqüências decididamente implausíveis. Todavia, as críticas aqui apresentadas pressupõem uma visão da comunicação como transmissão de significados compartilhados. Caso se identificasse uma visão alternativa da comunicação, essas críticas perderiam parte do seu mordente. Com efeito, se não se considera a comunicação como a partilha de significados, então os problemas levantados acima deixam de ser pertinentes. Este parece o caminho pelo qual envereda Davidson. Mas qual é a visão alternativa da comunicação que se pode apresentar? Para haver comunicação é necessário que se comunique algo. E compartilhamos o quê, se não compartilhamos os significados entendidos como convenções lingüísticas? A resposta de Davidson é que compartilhamos um mesmo mundo e muitas crenças fundamentais sobre ele. 212 Parte IV - linguagem e comunicação
No processo de interpretação, realizado cm um diálogo intrulingliístico, construímos ao mesmo tempo uma teoria dos significados e das crenças do nosso interlocutor. Cria-se deste modo um círculo: as crenças do interlocutor são derivadas dos significados que consideramos que ele dá às palavras, e os significados das suas palavras são derivados daquelas que pensamos serem as suas crenças. Este círculo não se pode romper de todo e não teremos jamais a certeza de interpretar corretamente a outra pessoa. Como no caso quineano da tradução, a evidência empírica não basta para tirar toda a ambigüidade dos significados e crenças e identificar a interpretação correta. Haverá deste modo diversas interpretações possíveis, compatíveis com as emissões verbais dos nossos interlocutores. Dispomos, porém, de meios para conseguir romper em parte este círculo, e Davidson se detém sobretudo no exame de dois deles, que vamos agora procurar esclarecer.
14.4. Uma visão alternativa da comunicação Davidson sustenta que na comunicação ocorre um contínuo processo de ajustamento e de convergência para significados compartilhados. Usando um slogan se poderia dizer que: a comunicação não pressupõe significados compartilhados, mas é um processo de convergência para os mesmos significados. Na opinião de Davidson, o falante que inicia um diálogo tem uma teoria própria da interpretação: ele espera que o interlocutor dê um certo significado às palavras. Noutros termos, ele tem já uma "teoria antecedente" à conversação. Durante o diálogo, porém, algumas (ou até muitas) de suas expectativas podem ser frustradas. Se, por exemplo, o seu interlocutor usa "epitáfio" em vez de "epíteto" ou "anãozinho" (orig.: "nanetto") em vez de "anedota" (orig.: "anneddoto"), ele terá que corrigir sua teoria inicial e adotar uma "teoria provisória", que se ajuste cmlu vez às emissões do falante. Mas como distinguir, neste caso, um mul-cn·14. Interpretação e verdade: Davidson 213
tendido devido a diferentes significados e um devido u crcnçus diferentes? E como identificar os significados? Oavidson recorre essencialmente a duas estratégias: o princípio de caridade e a triangulação.
1. Uso do princípio de caridade Para distinguir significados e crenças, Davidson oferece uma especificação própria ao princípio de caridade de Quine (cf. 13.2). Enquanto para Quine o princípio de caridade é um subsídio para a tradução, Davidson o considera como um princípio normativo. A interpretação é definida como aquilo que segue o princípio de caridade, ou seja, como o processo interpretativo que tende a maximizar a racionalidade das proposições do falante sobre dois aspectos: • coerência: refere-se à presumível não contraditoriedade das asserções proferidas; • correspondência: refere-se à similaridade das respostas cognitivas ao mundo. Se por exemplo o falante dissesse que na geladeira estão quatro elefantes cor de laranja e que se quisermos fará um suco com eles, eu poderia ser levado a crer que o falante desconhece o sentido de "elefante" ou então está usando a palavra em tom de brincadeira, e quer simplesmente falar de laranjas. Somente deste modo posso interpretar o seu comportamento lingüístico como racional e visando um fim. É um modo para usar uma evidência empírica, não semântica, com o intuito de testar a minha teoria da interpretação.
2. Triangulação A idéia de comunicação como convergência de significados constitui um desafio às visões esquemáticas da comunicação como transmissão de significados predefinidos. Fica ainda de pé, porém, uma pergunta sobre o modo como são.formados os significados, como se realiza diretamente esta convergência, além do recurso à estratégia caritativa de ajustamento da própria teoria interpretativa. A resposta de Davidson é que "a comunicação tem início quando as causas convergem". Isto quer 214 Parte IV - Linguagem e comunicação
dizer que os conceitos c a categorização dos ohjctos nascem quando dois folantes reconhecem uma causa comum das suas emissões lingüísticas. Diferentemente das tradicionais teorias empiristas, para as quais basta a exposição a um objeto para a formação de um conceito, para Davidson não pode haver nenhuma formação de conceitos sem um trabalho a três: uma primeira pessoa (o falante), uma segunda pessoa (o intérprete) e um objeto em um espaço compartilhado. As duas pessoas convergem nas suas reações diante do objeto dado no mesmo espaço compartilhado e constituem deste modo um conceito compartilhado. Nisto, Davidson reconhece a natureza essencialmente social da construção dos conceitos e dos significados lingüísticos.
14.5. Contextos de interpretação ( *) Existe uma lição geral que nasce das discussões acerca do holismo, a saber, a relevância do contexto para a interpretação das expressões da linguagem. A lição geral correria o risco de se tomar um mero lugar comum se não se fizessem distinções um pouco mais refinadas sobre o conceito de contexto. Com efeito, a linguagem tem diversos tipos de relação com o contexto, quer lingüístico quer extralingüístico, e tais relações são muitas vezes relevantes para a própria determinação das condições de verdade dos enunciados. Esse tipo de reflexões se desenvolveu principalmente a partir das reflexões de Kaplan sobre a dependência contextual dos indicais (cf. 7.6). Uma classificação útil dos diversos aspectos da dependência contextual remonta a John Perry, autor da tripartição seguinte: 1. contexto pré-semântico: é o contexto que permite desfazer ambigüidades nas categorias de palavras, ajudando por exemplo a compreender se no enunciado "una vecchia porta la sbarra" a palavra "porta"* é um substantivo comum ou um verbo , e se "la" é artigo ou pronome anafórico (= pronome que se refere a alguma coisa do discurso anterior). Neste nível o esclarecimento da ambigüidade se refere às categorias sintáticas (cf. como se tratou o exemplo dado em 3.3); * "porta" em italiano pode significar "carrega, leva" - do verbo portare - ou "portn", substantivo = porta. N. do T. 14. Interpretação e verdade: Dnvld'iC>ll J l 'l
tendido devido a diferentes significados e um devido u crern;us diferentes? E como identificar os significados? Davidson recorre essencialmente a duas estratégias: o princípio de caridade e a triangulação.
1. Uso do princípio de caridade Para distinguir significados e crenças, Davidson oferece uma especificação própria ao princípio de caridade de Quine (cf. 13.2). Enquanto para Quine o princípio de caridade é um subsídio para a tradução, Davidson o considera como um princípio normativo. A interpretação é definida como aquilo que segue o princípio de caridade, ou seja, como o processo interpretativo que tende a maximizar a racionalidade das proposições do falante sobre dois aspectos: • coerência: refere-se à presumível não contraditoriedade das asserções proferidas; • correspondência: refere-se à similaridade das respostas cognitivas ao mundo. Se por exemplo o falante dissesse que na geladeira estão quatro elefantes cor de laranja e que se quisermos fará um suco com eles, eu poderia ser levado a crer que o falante desconhece o sentido de "elefante" ou então está usando a palavra em tom de brincadeira, e quer simplesmente falar de laranjas. Somente deste modo posso interpretar o seu comportamento lingüístico como racional e visando um fim. É um modo para usar uma evidência empírica, não semântica, com o intuito de testar a minha teoria da interpretação.
2. Triangulação A idéia de comunicação como convergência de significados constitui um desafio às visões esquemáticas da comunicação como transmissão de significados predefinidos. Fica ainda de pé, porém, uma pergunta sobre o modo como são.formados os significados, como se realiza diretamente esta convergência, além do recurso à estratégia caritativa de ajustamento da própria teoria interpretativa. A resposta de Davidson é que "a comunicação tem início quando as causas convergem". Isto quer 214 Parte IV - Linguagem e comunicação
dizer que os conceitos e a categorização dos ohjctos nascem quando dois falantes reconhecem uma causa comum das suas emissões lingüísticas. Diferentemente das tradicionais teorias empiristas, para as quais basta a exposição a um objeto para a formação de um conceito, para Davidson não pode haver nenhuma formação de conceitos sem um trabalho a três: uma primeira pessoa (o falante), uma segunda pessoa (o intérprete) e um objeto em um espaço compartilhado. As duas pessoas convergem nas suas reações diante do objeto dado no mesmo espaço compartilhado e constituem deste modo um conceito compartilhado. Nisto, Davidson reconhece a natureza essencialmente social da construção dos conceitos e dos significados lingüísticos.
14.5. Contextos de interpretação (*) Existe uma lição geral que nasce das discussões acerca do holismo, a saber, a relevância do contexto para a interpretação das expressões da linguagem. A lição geral correria o risco de se tornar um mero lugar comum se não se fizessem distinções um pouco mais refinadas sobre o conceito de contexto. Com efeito, a linguagem tem diversos tipos de relação com o contexto, quer lingüístico quer extralingüístico, e tais relações são muitas vezes relevantes para a própria determinação das condições de verdade dos enunciados. Esse tipo de reflexões se desenvolveu principalmente a partir das reflexões de Kaplan sobre a dependência contextual dos indicais (cf. 7.6). Uma classificação útil dos diversos aspectos da dependência contextual remonta a John Perry, autor da tripartição seguinte: 1. contexto pré-semântico: é o contexto que permite desfazer ambigüidades nas categorias de palavras, ajudando por exemplo a compreender se no enunciado "una vecchia porta la sbarra" a palavra "porta"* é um substantivo comum ou um verbo , e se "la" é artigo ou pronome anafórico (= pronome que se refere a alguma coisa do discurso anterior). Neste nível o esclarecimento da ambigüidade se refere às categorias sintáticas (cf. como se tratou o exemplo dado em 3.3); * "porta" em italiano pode significar "carrega, leva" - do verbo portare - ou "por ln", substantivo = porta. N. do T. 14. Interpretação e verdade: Deivld•mn 'J 1!'l
2. contexto semântico: é a situação que indica u quem se referem os indicais, os demonstrativos e os pronomes anatõricos. Umu vez que se esclareçam as ambigüidades das frases, estas são avaliadas cm cotejo com o contexto semântico. Por exemplo, devemos saber a que(m) se está referindo com o pronome "la" na segunda interpretação: o que é que impede a passagem (sbarra), a velha porta de que se havià falado antes? 3. contexto pós-semântico: uma vez fixados os indicais e os demonstrativos, restam ainda outros aspectos do contexto que dependem de teorias e concepções gerais. Se digo "são nove horas", assumo que são nove horas no fuso horário em que estou, e não o estou especificando. Mas se estou telefonando na América do Norte e digo "são nove horas", talvez seja melhor especificar a qual fuso horário me refiro (poderia especificar dizendo "são nove horas aqui e agora" e "são nove horas lá e agora"). Falar de contexto "pós-semântico" é um modo para indicar que existe um contexto "cognitivo" ao qual se faz referência para interpretar um enunciado. Se por um lado alguns autores ligados à tradição clássica vêem as condições de verdade como algo de "objetivo, dado a partir de um ponto de vista metafisico, por outro lado outros autores procuram relacionar o conceito de condições de verdade com o tipo de contexto que se está avaliando: o conceito de prolação, ou o contexto das pessoas que estão escutando, ou também outros tipos de contexto cognitivo a que é possível fazer referência.
Bibliografia essencial DAVIDSON, Donald. "Verdade e significado". ln: DASCAL, M. Fundamentos metodológicos da lingüística- Vol. 3: Semântica. Campinas: Edição do organizador, 1982, p. 145-180. - "O método da verdade em metafisica". ln: BRANQUINHO, João. Existência e linguagem. Lisboa: Presença, 1990. RORTY, Richard. "Davidson entre Wittgenstein e Tarski". ln: Portal brasileiro da filosofia [http://www.filosofia.pro.br/modules.php?name=News& file=article&sid=49 -Trad. de Paulo Ghiraldelli Jr.]
J16 Parte IV - Linguagem e comunicação
Parte V
LINGUAGEM ENTRE NORMA E NATUREZA
)
15
Sentido e justificação: uma introdução
SUMÁRIO
Neste capítulo, no item 15.1, faz-se uma alusão à idéia fregeana de conteúdo conceituai que inspirou as semânticas referencialistas; analisa-se a seguir a distinção fregeana entre pensamento e pensar, que leva à distinção entre justificação e explicação (entre razões e causas). Alude-se, por fim, ao papel da justificação na definição fregeana do analítico. Em 15.2 se apresentam, muito por alto, as idéias de Kripke sobre as relações entre a priori e a posteriori, entre necessário e contingente, e introduz-se a idéia de espaço das razões (Sellars), idéia que será retomada no capítulo seguinte. Em 15.3 alude-se enfim aos limites do antipsicologismo de Frege Uá estudado em 4.1) com relação aos projetos de naturalização nos diversos campos da filosofia: um antipsicologismo, eventualmente mais elaborado que o de Frege, pode, no entanto, servir ainda de estímulo à filosofia atual.
15.1. O problema da justificação Já mencionamos a centralidade do enunciado na visão de Frege a partir de uma reflexão sobre o princípio do contexto (cf. 12.2). O ponto de partida da reflexão sobre a centralidade do enunciado remonta à primeira obra de Frege - a Ideografia - onde o lógico alemão fala de "conteúdo julgável" ou "conteúdo conceituai'', querendo referir-se ao que pode ser asserido. O que é que se pode asserir, se não um enunciado completo? (Não posso "asserir" palavras isoladas!). Aquilo que é asserível tem premissas e conclusões, ou seja, é (i) asserível tendo por base alguma razão, e (ii) passível de ter um certo número de conseqüências. Isto implica que o conteúdo julgável se situa em uma rede de infcrên· cias, e diversos filósofos insistiram sobre este aspecto como aspecto definidor do significado. 15. Sentido e justificação: uma lntroduc.;ftn J I CJ
Quer como lógico quer como filósofo, Frcge sempre 11trihuiu grundc importância tanto ao tema da dedução, isto é, das co11s<'CfÜci11C'ias de uma asserção (cf. 8.2), como ao problema da justificação, ou seja, das premissas ou daquilo que justifica uma asserção. Em assim fazendo, sempre insistiu, a exemplo de Kant, sobre a diferença entre questões de fato e questões de direito, e sobre a diferença entre causas e ·razões. Isto tem duas conseqüências: por um lado, distinguir o problema da justificação do problema da explicação; por outro lado, pôr em evidência o problema da justificação como elemento central da análise. Vejamos o alcance destes dois aspectos:
1.ji,stificação e explicação: Frege distingue (i) o pensamento como sentido/bjetivo de um enunciado; e (ii) o pensar como processo subjetivo do falante. Com o segundo se ocupa a explicação psicológica dos processos mentais (que não exclui o estudo dos aspectos neurofisiológicos e químicos). Com o primeiro se ocupa principalmente a lógica, que tem como objetivo dar uma justificação das inferências. É necessário, portanto, distinguir cuidadosamente o estudo psicológico do raciocínio efetivo, do modo de racionar dos seres humanos, e o estudo lógico das regras do raciocínio correto. O fato de Kekulé ter descoberto a fórmula do anel do benzeno por haver sonhado com uma serpente que morde a própria cauda não lhe poupou o trabalho de apresentar depois a fórmula em coerência com os princípios da química e com a exata correspondência das valências químicas na fórmula. Noutras palavras, podemos estar interessados nos processos mentais que levaram Kekulé a sonhar com a serpente que morde a própria cauda, resolvendo assim o problema da fórmula do benzeno. Deste modo estudamos as estratégias do raciocínio efetivo (e os vários modos como se descobrem verdades científicas)1. Mas uma vez descoberta a fórmula do benzeno, esta só ganha aceitação se for corretamente inserida no conjunto dos conhecimentos da química e se obtiver, portanto, uma justificação; 2. justificação e análise: Frege, assim como Kant e Leibniz antes dele, sustentava a importância de uma distinção fundamental entre pro1. Pode-se recordar, aqui, a distinção de Reichenbach entre o contexto da descoberta, que estuda os processos inferenciais com os quais se descobrem as novas idéias científicas, e o contexto da justificação, ou o modo como essas verdades são justificadas levando em conta os princípios lógicos e os princípios específicos de cada ciência particular.
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posições unaliticas e proposições sintéticas (puru Leihniz, verdades de razão e verdades de fato). Ele, porém, teve que redefinir o conceito kuntiano de analiticidade: com efeito, acreditava na possibilidade de se reduzir a matemática à lógica, e era para ele essencial sustentar - contra Kant - que a matemática era constituída de verdades analíticas (ou seja, determinadas somente pelas leis do pensamento), embora capaz de produzir conhecimentos novos. A solução se achava, como Frege escreveu a Peano e a Russell em várias cartas, na distinção entre sentido e referência. A verdade da matemática é analítica porque pode ser reduzida a justificações lógicas, mas nem por isso deixa de ser fecunda. Equações matemáticas, como por exemplo 7 + 5 = 15 - 3, aumentam o nosso conhecimento porque nos mostram como uma mesma referência (neste caso o número 12) pode ser dada por expressões que tenham sentido diferente. A redução da aritmética à lógica como a pensara Frege acabou se revelando um fracasso, mas a distinção de sentido e referência e a idéia de uma distinção entre proposições analíticas a priori, justificadas apenas por via lógica, e proposições sintéticas a posteriori, justificadas por via empírica, continuou sempre ocupando um lugar central em Frege. Mas o que resta dessa distinção depois da arrasadora crítica de Quine ao conceito de analítico?
15.2. A priori, a posteriori e o espaço das razões Obtém-se uma resposta parcial a essa pergunta quando se distingue melhor entre o ponto de vista epistemológico e o metafisico (cf. 2.3). Tipicamente se tem afirmado, muitas vezes, que a priori, necessário e analítico se contrapõem a a posteriori, contingente e sintético. No final do século XVIII, Kant ousara saltar a cerca entre as duas classes de proposições falando de proposições sintéticas a priori. No final do século XX, outras soluções são entretanto possíveis, e entre estas ganham um certo destaque os esforços de Kripke para apontar um novo tipo de relação entre metafisica e epistemologia, falando de verdades contingentes a priori e necessárias a posteriori. (i) Enunciados contingentes a priori, isto é, enunciados cuja justificação é a priori, mas cuja verdade é contingente. Temos um exemplo desse tipo de enunciado em "o metro padrão de Paris tem um metro de 15. Sentido e justificação: uma lntroduc;llo "J.J.1
comprimento". A verdade desse asserto é com efeito dclinidn por convenção e, por isso, conhecida a priori. Isto é fora de dúvida, enquanto se permanece no campo da medição definida pelo metro padrão de Paris (poderia alguém, com efeito, objetar, que o metro padrão de Paris não mede um metro conforme outros tipos de medição mais sofisticada atualmente a nosso dispor). Mas o metro de Paris poderià ter tido um comprimento diferente daquele que de fato tem. É um fato totalmente contingente, devido a circunstâncias históricas, que o metro de Paris tenha o comprimento que tem. A verdade do asserto é, por conseguinte, uma verdade contingente. A conclusão é que nos achamos diante de enunciados 9ue apresentam verdades contingentes a priori. /(ii) Enunciados necessários a posteriori: são os enunciados que têm sua justificação dada a posteriori pela experiência, mas cujo status metafisico é necessário. Temos um exemplo de enunciado deste tipo em: "Vésper é igual a Lúcifer". Que Vésper seja igual a Lúcifer, isto é, que a Estrela da manhã seja igual à Estrela vespertina, foi um descobrimento astronômico que modificou as crenças comuns. Fez-se necessário muito trabalho empírico e teórico para compreender que as luzes que apareciam pela manhã e à tardinha eram luzes do mesmo corpo celeste. A verdade do enunciado: "Vésper = Lúcifer" do ponto de vista epistemológico é, portanto, a posteriori. Trata-se de um conhecimento que não provém de pressuposições ou convenções, mas de uma investigação empírica. Por outro lado, em virtude do princípio de identidade sabemos que um objeto é necessariamente idêntico a si mesmo. Mas se Véspere Lúcifer são o mesmo objeto celeste, o asserto de identidade se faz então necessário do ponto de vista metafísico2 • Daí se segue que a afirmação "Vésper = Lúcifer" é necessária a posteriori. Também Wittgenstein que, no entanto, Kripke critica justamente por não ter esclarecido expressões do tipo "o metro padrão tem um metro de comprimento", atribui um grande papel à distinção entre empírico 2. Do ponto de vista lógico se exige também o princípio leibniziano de indiscernibilidade dos idênticos: (x)(y) [(x = y) ~ (Fx ~ Fy)]. Substituindo F pela propriedade que tem todo objeto x de ser necessariamente idêntico a si mesmo, obtém-se: (x)(y) [(x = y) ~ (Nec (x = x) ~ Nec (x = y)]. Dado justamente que Nec (x = x), daí se segue que (x)(y) [(x = y) ~ (Nec(x = y)]. A passagem exige, todavia, a idéia da propriedade de ser necessariamente igual a si mesmo e, portanto, a quantificação de re em contextos modais que Quine, para dar um exemplo, não aceitaria.
2 2 2 Parte V - Linguagem entre norma e natureza
e conceilual, suslenlando que ela diz respeilo nilo lanlo a liJw.,· de e111111ciados, mas a diferentes usos que fazemos
15.3. Pensamento e pensar Vimos que Quine faz uma crítica devastadora à distinção de todos os enunciados em analíticos e sintéticos: veremos em 17.3 uma outra erlli ca de Quine à noção de "justificação", própria da teoria do conheci1m.·11 15. Sentido e justificação: uma introdu(,no ; ;
to ou epistemologia. Destas duas criticas vai surgir umn série de problemas para os filósofos da linguagem que terão de enfrentar o desafio dn naturalização: também a semântica, conforme esse desafio, só pode ser reduzida a uma análise científica dada nos termos da psicologia ou dos estudos sobre a evolução. Frege abre ao menos duas trilha~ para se refletir sobre o problema da naturalização em semântica: l. a reflexão sobre o conceito de sentido como potencial inferencial, a que nos referimos em 8.2. O conceito de sentido como potencial inferencial escapa a uma análise meramente psicológica e impõe que se repensem os aspectos normativos da semântica. As inferências são com efeito reguladas pela relação de conseqüência lógica e esta relação tem um valor normativo; 2. a reflexão sobre a diferença entre sentido e representação subjetiva, sobre a qual falamos em 4.1 e em 12.1. Aqui aludimos à crítica de Frege a Locke. Para Locke, o significado é algo que se acha na mente. Mas não podemos saber o que há na mente de outra pessoa e não podemos assim basear a comunicação sobre o aspecto privado das idéias (sejam elas lockeanas ou cartesianas). Impõe-se, portanto, algo que saia do âmbito do subjetivo e seja apreensível por todos, comunicável e intersubjetivo. Vimos a tentativa, nos últimos escritos de Frege, de fundamentar o caráter objetivo dos pensamentos, contra o risco de os ver contaminados pelos aspectos subjetivos e privados daquilo que para ele é o pensar, isto é, o processo psicológico de compreender pensamentos. Os pensamentos são então definidos como entidades que não são nem psíquicas nem tisicas, mas pertencem a um terceiro reino, que tem muito do mundo platônico das idéias (cf. 8.4). Será válido, ainda hoje, este tipo de antipsicologismo fregeano assim formulado? Não, e seria possível dizer que não é nem necessário nem suficiente para discutir os temas da compreensão, por dois motivos: (i) como mostrou Wittgenstein, a hipótese do terceiro reino, elaborada em função do antipsicologismo, não é necessária do ponto de vista da análise conceituai, pois o compreender não é um processo psíquico, mas uma capacidade. Portanto, é possível uma análise concei224 Parte
V - Linguagem entre norma e natureza
tuul do compreender que não dependa da psil'olo~.111 l' 1111 1111•,01111 tempo não exija os significados como cntidudcs i,ll•111s; (ii) o antipsicologismo fregeano não é suficiente parn Sl' tli!•,nit11 11 problema das representações sobre os quais se discute 1111 ps1rnl11~i11 contemporânea. As imagens mentais subjetivas contra as q1111iN Nl' lança Frege não são as representações mentais supostas pelas teorius psicológicas contemporâneas, onde essas representações são construtos teóricos. Esses construtos teóricos desempenham uma certa função no contexto das teorias propostas, e sua validade e plausibilidade psicológica podem ser empiricamente testadas. Mas o problema levantado por Frege no tocante ao processo mental da compreensão, embora definido de maneira talvez ingênua, não pode ser abandonado com tanta facilidade. O psicólogo estuda o processo mental da compreensão: como explicar o caráter particular desse processo mental, que tem por intuito apreender algo objetivo e independente do sujeito, ou seja, o pensamento e sua verdade? Frege sempre procurou distinguir a análise do sentido da análise dos processos psicológicos, da mesma forma que distinguia a análise lógica do raciocínio correto da análise psicológica do raciocínio efetivo. Deste modo insiste na Lógica de 1897: " ... assim como não crio um lápis quando o pego, também não crio o pensamento no ato de pensá-lo. E menos ainda é o pensamento uma secreção do cérebro, como a bílis do figado" (trad. italiana, p. 126). A verdade de um pensamento, ou o sentido de um enunciado, não depende da taxa de fósforo que se pode encontrar no cérebro de quem o pensa: "se for verdade que César foi assassinado por Brutus, isso não pode depender da estrutura do cérebro do Professor Mommsen" (ibid., p. 141 ). As tendências contemporâneas à naturalização (cf. cap. 17) vêem os fenômenos do sentido ou significado lingüístico como redutíveis a entes teóricos no âmbito de uma ciência descritiva dada em termos psicológicos ou neurofisiológicos. A leitura de Frege suscita uma dúvida sobre a confusão entre as descrições do modo como pensamos de fato e as leis que analisam o modo como devemos pensar. Se não basta o antipsicologismo ingênuo, a crítica à confusão entre descritivo e normativo conti15. Sentido e justificação: uma introduc;Ao 225
nua sendo um aguilhão nas teorias de quem pretende reduzir o discurso sobre o sentido à descrição científica de dados de fato. /\ posição de Frege vai encontrar um desenvolvimento original em alguns autores como Dummett, Brandom e McDowell, embora hoje muitos autores - in primis Fodor-, em companhia de numerosos filósofos, se a~hem mais inclinados a uma visão naturalista da semântica e, portanto, a uma alternativa radical ao ponto de vista fregeano.
Bibliografia essencial FREGE, Gottlob. "O pensamento: uma investigação lógica". ln: Investigações lógicas. Porto Alegre: Edipucrs, 2002 [Trad. de Paulo Alcoforado]. WITTGENSTEIN, Ludwig. Investigações filosóficas - Vol. Wittgenstein. 3. ed. São Paulo: Abril, 1984 [Trad. de José Carlos Bruni].
226 Parte V - Linguagem entre norma e natureza
16
Significado e inferência: Dummett, Brandam
SUMÁRIO
Depois de definir a idéia de "papel conceituai" ou "papel inferencial" e a atitude normativa que nasce da posição de Frege e Wittgenstein (16. l ), apresentam-se as principais teorias do significado que usam os conceitos de justificação e inferência, em vez das condições de verdade, como idéia central para definir o significado de um enunciado. A teoria de Dummett introduziu na filosofia o debate entre realismo e anti-realismo. Ela tem vínculos diretos com Wittgenstein e com o lógico Gentzen, e define o significado como condições de assertibilidade, ou como conjunto de justificações necessárias para afirmar um enunciado. A teoria de Dummett se opõe ao holismo, dando grande importância à composicionalidade do significado (16.2 e 16.3). A teoria de Brandom generaliza a posição de Dummett em uma perspectiva pragmática, na qual se dá especial destaque às ações dos falantes na interação social. Brandom estuda o modo como na linguagem se constrói um constante controle recíproco dos compromissos e dos pontos de vista (16.4). A maneira de ver de Brandom é apresentada também no tocante às suas idéias sobre o conceito de racionalidade (l 6.5).
16.1. Papel conceituai Frege havia falado de: (i) conteúdo conceituai como aquilo que é asserível, portanto como aquilo que tem algum fundamento ou justificação (cf. 15 .1 ); (ii) sentido como aquilo que é comum aos enunciados que tenham as mesmas conseqüências (cf. 8.2).
Seria aproximadamente como dizer que conhece o sentido de um enunciado a pessoa que sabe como justificá-lo e sabe quais as conseqüências que dele se pode inferir. Quem não conhece as conseqi.iênl'ins 16. Significado e inferência: Dummett, Brandorn 227
daquilo que diz, mio sahe hem o que diz. Muitos filósofos sustcnturnm que o significado de um enunciado é o seu "papel inferencial" ou "papel conceituai". Fala-se de "papel conceituai" porque os nossos conceitos estão ligados entre si por uma rede de relações inferenciais (geralmente hierárquicas: se Fido é um cão, e se os cães são quadrúpedes, então Fido herda as propriedades dos quadrúpedes e tem, portanto, quatro patas). Conhecer um conceito como "cão" comporta, então, saber em qual rede de conceitos se situa. Deste modo se acentua a idéia segundo a qual o significado de um enunciado ("Fido é um cão") se acha ligado antes de tudo ao conjunto de relações inferenciais que tem com os outros conceitos. Saber inserir corretamente um enunciado em uma rede de relações conceituais implica um conhecimento prático: saber o que é que se segue da asserção desse enunciado, e saber o que é que me justifica a fazê-la. De um ponto de vista lógico, a inferência que eu derivo se refere às conseqüências que posso tirar da afirmação; a justificação contempla as premissas. Dois aspectos ligados ao significado de um enunciado dizem respeito, por conseguinte, ao conhecimento das premissas que o justificam e das conseqüências que dele se podem depreender. Alguns filósofos acentuaram o primeiro aspecto, outros o segundo: l. a idéia do significado em termos de justificação foi, sobretudo, sustentada por Michael Dummett nas pegadas do segundo Wittgenstein; 2. a visão generalizada do significado como dado pela rede de inferências se acha na base do projeto das semânticas do papel conceituai (Gilbert Harman), ou semânticas inferenciais, entre as quais assume um certo destaque o projeto de Robert Brandom.
16.2. Significado como uso: Wittgenstein e Gentzen Na Gramática filosófica, Wittgenstein afirma que compreender um enunciado é conhecer os seus fundamentos, ou - segundo a expressão de Dummett - saber em quais condições é justificado. Nos mesmos anos cm que Wittgenstein está refletindo sobre o significado como justificação, o lógico alemão Gentzen desenvolve uma nova perspectiva em lógica, e inventa o método da dedução natural. As reflexões de Gentzen 228 Parte V - Linguagem entre norma e natureza
apresentam como observa Dummett forte anulogiu com ns idéins )lCruis do significado como uso, dado que o lógico alemào propõe que se considerem as regras de introdução de uma constante lógica como aquilo que dá a definição (ou o significado) da constante lógica. Em que consistem essas regras? Por um lado, para poder introduzir com sentido uma expressão como ''p e q", devemos ter uma justificação independente para cada uma das duas frases p e q. Pelo outro, se sabemos que ''p e q" é verdadeira ou justificada, podemos sem problema afirmar esta ou aquela frase, e eliminar o conectivo "e". Estas são as regras que justificam a introdução ou a eliminação de um conectivo, e que são habitualmente representadas por fórmulas deste tipo: p q p/\q (/\ - introdução)
p/\q q (/\ - eliminação)
O cálculo da dedução natural é equivalente ao cálculo das tábuas de verdade, mas ao mesmo tempo apresenta diferenças de estilo e de modo de apresentação dos argumentos, e serve melhor para esclarecer os contrastes entre lógica clássica e lógica intuicionista. De modo particular, as regras de introdução e de eliminação dos conectivos intuicionistas da negação e do condicional são diferentes das usadas para os conectivos clássicos. Dando um exemplo, a negação intuicionista não pode ser introduzida como simples mudança de valor de verdade do enunciado (como na concepção do significado como condições de verdade), mas deve ser vista como operação construtiva, que só pode ser feita a partir de uma efetiva demonstração da falsidade do enunciado. Posso introduzir "não p", somente se tenho uma demonstração (ou justificação) da falsidade de p (cf. Quadro 16 no final do capítulo). A lógica clássica foi sempre considerada a lógica do ponto de vistu da divindade, da onisciência. Vimos anteriormente que o problema du onisciência lógica é um dos primeiros problemas que os filósofos se pu16. Significado e inferência: Dummett, Brandom J.J 1
scrnm quando enfrentaram os problemas do discurso indireto, ligados .\s limitações cognitivas dos falantes (cf. o que se disse sobre ( 'arnap cm 6.6 ). A lógica intuicionista é uma das tentativas, que surgiram cm âmbito estritamente lógico, de apresentar uma lógica que respeite as limitações cognitivas dos falantes, evitando postular infinitos atu3:is, e evitando certos princípios lógicos como o terceiro excluído. O próprio Quine havia tomado, por exemplo, a lógica intuicionista (que rejeita o terceiro excluído) para mostrar que nenhum enunciado, por mais fundamental que pareça, pode ser considerado imune de revisão (cf. 13.1). Identificar o significado dos conectivos com as suas regras de introdução e fazer referência à lógica intuicionista representa para Michael Dummett uma maneira de dar corpo e solidez à idéia wittgensteiniana do significado como uso. Dummett critica assim também o modo demasiadamente genérico como o slogan de Wittgenstein foi muitas vezes usado pelos filósofos do senso comum. Ele chega a descobrir um modo para apresentar uma visão do significado alternativa à visão clássica: compreender o significado de um enunciado quer dizer conhecer as condições em que o enunciado é justificável. A palavra ''justificável" pode estar no lugar de "demonstrável" (em Matemática), no lugar de "verificável" (em Física) ou, de maneira geral, no lugar de "afirmável". Topa-se deste modo com uma remissão implícita à tradição neopositivista e ao princípio de verificabilidade, embora haja aqui diferenças profundas quanto ao neopositivismo. Dummett considera como um erro dos neopositivistas o fato de terem tentado eliminar, como pseudoproblemas, muitas perguntas metafisicas (e terem proposto, eles mesmos, uma doutrina metafisica por antonomásia: o fenomenismo ou a idéia segundo a qual só se conhecem os dados dos sentidos). De um modo que recorda a ascensão semântica de Quine (cf. 12.2), Dummett considera que a discussão metafisica pode ser enfrentada esclarecendo as teorias do significado implícitas nas facções opostas (realistas, idealistas etc.). Sua idéia de "teoria do significado" está então prenhe de valor filosófico agregado, não se trata de mera preparação para uma teoria lingüística, mas uma espécie de prolegômenos a toda metafisica futura.
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16.3. Significado e Justificação: Mlchael Dummett Além da influência de Wittgenstein, Dummett sofre também a influência fundamental de Frege e, em particular, da idéia do sentido como correlato à compreensão (compartilhada igualmente por Wittgenstein) e de uma teoria sistemática do significado, baseada sobre a distinção sentido/força (posição não compartilhada por Wittgenstein). Nasce assim a idéia de uma teoria sistemática do significado que procura justificar alguns aspectos fundamentais das idéias de Frege e de Wittgenstein. O ponto de partida estabelece um contraste com Davidson, que foi o primeiro a usar o termo "teoria do significado". Para Dummett, uma teoria do significado não deve ser uma teoria da tradução ou da interpretação. Ele relembra as observações de Wittgenstein, segundo o qual existe um modo de compreender um enunciado que não consiste em dar-lhe uma interpretação (cf. 9.3). Uma teoria da interpretação pressupõe que se possua já uma linguagem. Dummet procura, ao contrário, uma teoria capaz de explicar em que consiste possuir uma linguagem. Concluindo, uma teoria do significado deve ser uma teoria da compreensão. A partir deste pressuposto, Dummett tenta libertar-se de um risco ligado à filosofia de Wittgenstein. Com a equiparação de significado e uso vai surgir, com efeito, o perigo de conceber a compreensão como mera capacidade prática, ou, para usar uma terminologia inventada por Gilbert Ryle, como um saber como (know how) e não um saber que (know that). Contra a idéia de reduzir a visão da linguagem a mera capacidade prática, Dummett sustenta que, dominando o uso da linguagem, temos desta um conhecimento implícito. A teoria do significado - ou da compreensão deve por conseguinte explicar o conhecimento implícito da linguagem. possuído por um falante que tem o domínio da linguagem. Ele concorda, porém, plenamente com as idéias do significado co11111 uso, um outro requisito sobre o qual Dummett insiste: uma tcoriu do si1,t nificado deve refletir o caráter "público". Deve a teoria, noutros '"'rn11,~. 16. Significado e inferência: Dumm~tl, lhn111l11111 J t 1
mostrar como o conhecimento do significado se munilcstu completumente no uso lingüístico (poderíamos dar-lhe o nome de "re4uisito da manifostabilidade").
Portanto, os dois requisitos fundamentais de uma teoria do significado são: • o conhecimento implícito: a compreensão se baseia em um conhecimento implícito, que se manifesta ao seguir tacitamente as regras e os princípios que governam o uso da linguagem; • a manifestabilidade: a compreensão se manifesta no uso da linguagem. O conhecimento implícito, portanto, deve ser manifestável (controlável publicamente) poder ser explicitado por uma teoria do significado. Dummett discute diversas linhas diretrizes de uma teoria desse tipo . .1 untamente com sua peculiar interpretação das idéias de Gentzen como modelo de uma teoria do significado como uso, e a sua adesão à lógica intuicionista, Dummett organiza a sua teoria do significado com base em três linhas de fundo: (i) o significado como condições de assertibilidade; (ii) a distinção sentido/força e os níveis de uma teoria "rica"; (iii) o molecularismo.
(i) Realismo-anti-realismo e condições de assertibilidade No intuito de oferecer uma teoria sistemática do significado, Dummett não pode contentar-se com descrever os "inumeráveis usos lingüísticos" de que fala Wittgenstein, mas deve identificar as características do uso sobre as quais vai fundamentar sua teoria. As duas regras principais de todo uso lingüístico são: ( 1) as regras que estabelecem quando um enunciado é corretamente asserido (as justificações que se podem dar, isto é, as premissas da asserção); (2) as regras que estabelecem as expectativas apropriadas (e que mostram as conseqüências de uma proposição).
32 Parte V - Linguagem entre norma e natureza
llmu pessoa 4ue compreende o significado conhece (ainda 4uc implicitamente) ambos os aspectos do uso, e os manifesta na sua prútica discursiva. Mas se for assim, não se pode sempre identificar o significado com as condições de verdade. O caso é que não se pode atribuir a um falante o conhecimento das condições de verdade, se não se declara como se deve manifestar esse conhecimento. Como deve se manifestar? Na capacidade de reconhecer o valor de verdade quando a condição é satisfeita (por exemplo que A /\ B é verdadeiro quando são verdadeiros tanto A como B). Mas há casos em que não é possível fazer nenhuma verificação das condições de verdade, como no caso de asserções concernentes a conjuntos infinitos; casos em que nenhum ser humano estará jamais em condição de saber se as condições de verdade foram satisfeitas. Dummett apresenta alguns exemplos de enunciados contrafactuais ("se eu tivesse ainda um ano de prazo, escreveria um livro melhor"), de enunciados no passado ("César, ao atravessar o Rubicão, foi picado por um mosquito"), de enunciados sobre domínios infinitos (Conjetura de Goldbach). Como posso dizer que estaria em condição de reconhecer que as condições de verdade foram satisfeitas nesses casos, se não possuo nenhum critério ou nenhuma prova que me permita verificar essas condições? Dummett faz muitas vezes referência à filosofia da matemática da qual tira, como Wittgenstein e Quine, diversos ensejos para reflexão. A partir da contraposição entre platônicos e construtivistas em matemática, Dummett generaliza uma contraposição mais geral entre posições "realistas" e "anti-realistas" em vários campos do saber (da matemática à ética, à psicologia, à lógica). Em matemática o contraste é claro: os platônicos acreditam em um mundo de entes matemáticos que servem de fundamento para a verdade das asserções matemáticas; os construtivistas negam a existência desse mundo e afirmam que as proposições matemáticas são construções de nossa mente. Dummett sustenta que o melhor modo para descrever o contraste metafisico entre "realistas" e "anti-realistas" consiste em explicitur 11s diversas teorias do significado relativas ao campo de investigação. Pum o matemático realista, o significado das asserções matemáticas é dmh, 16. Significado e inferência: Dummett, B1nml11111 J 11
pelas suas condições de verdade, prescindindo da noss11 l'npacidadc de vcrilicú-las. Com efeito, os fundamentos da verdade matcmútica estão fora de nós, em um mundo de entes ideais (como o conjunto infinito dos números naturais) fora do nosso alcance cognitivo. Para os matemáticos anti-realistas, ao contrário, o significado das asserções matemáticas é dado pela sua probabilidade ou demonstrabilidade. A riossa compreensão de um asserto está, portanto, ligada à nossa capacidade de reconhecer uma demonstração dele. Como já fazia Gentzen, Dummett generaliza do caso matemático para a linguagem em geral, tomando por base um paralelismo entre a demonstrabilidade (construtiva) em matemática e a assertibilidade ou capacidade de justificar os próprios assertos na linguagem cotidiana. Ele identifica, por conseguinte, o significado de um enunciado com as suas condições de assertibilidade, ou seja, com as justificações que podemos dar para sustentar a verdade do enunciado. O falante competente sabe quando um enunciado é asserível (e também quando um enunciado, embora verdadeiro, não pode ser asserido em certos contextos, como por exemplo por motivos de cortesia ou para evitar um processo por difamação, se o enunciado não tiver suporte suficiente do ponto de vista legal). Em suma, as condições ( 1) e (2) acima aduzidas comportam algo mais que a mera consideração das condições de verdade e dizem respeito a algo que se pode plenamente explicitar e controlar (algo que é sempre "manifestável" publicamente). As duas condições, ou os dois aspectos do uso de um enunciado, devem estar em harmonia entre si. A harmonia entre as premissas e as conseqüências de uma asserção é uma condição essencial da teoria, mas uma teoria sistemática não pode permitir-se tomar por base as conseqüências das nossas proposições: com efeito, as conseqüências são as mais diversas e dependentes dos contextos. Dummett propõe, assim, identificar o significado com o primeiro aspecto do uso lingüístico: a capacidade de justificar as próprias asserções. Dado que os dois aspectos devem estar em harmonia, é possível identificar o significado com um destes e derivar o outro em seguida. Pode-se deste modo resumir a análise de Dummett com esta idéia: '} 14 Parte V - Linguagem entre norma e natureza
o significado de um enunciado se identifica com m; suas condições de assertibilidadc, isto é, com as justificações necessárias para poder afirmá-lo. Vimos que a concepção geral do significado está ligada à visão da lógica intuicionista. Deste modo, o trabalho de Dummett em teoria do significado é o ponto de partida para uma alternativa geral ao realismo em diversos campos (da filosofia da matemática à ontologia em geral). Dummett desencadeia deste modo um debate sobre o contraste entre realismo e anti-realismo, que vai ocupar um amplo espaço na filosofia da linguagem e no debate sobre a ontologia na passagem do século XX para o século XXI.
(ii) Sentido, força e níveis de uma teoria sistemática rica Com a idéia de jogo de linguagem Wittgenstein havia rejeitado a distinção entre sentido e força proposta por Frege, considerando que a multiplicidade e a infinita variedade dos jogos de linguagem não poderia adequar-se a uma sistematização do tipo daquela proposta por Frege. Dummett envereda, ao contrário, pelo caminho aberto por Austin, sustentando que uma teoria do significado deve utilizar a distinção fregeana de sentido e força. Esta é fundamental em um projeto de teoria sistemática do significado que deve ser organizada em diversos níveis: 1. uma teoria da referência, núcleo duro da teoria sistemática, que determine o modo como a verdade de cada enunciado depende da referência das partes e se constitui como teoria semântica (por exemplo, pondo em correlação termos da linguagem e objetos e classes); 2. uma teoria do sentido, que explique o valor cognitivo dos enunciados e defina o sentido de um enunciado como as suas condições de afirmabilidade ou de justificação. Ela oferece algo mais que uma teoria da referência, fornecendo uma representação dos procedimentos que constituem o conhecimento da referência; 3. uma teoria da força, que descreve o modo pelo qual diversos rn11 teúdos cognitivos podem ser usados em diferentes atos lingíilstin1N.
16. Significado e inferência: Dummett, l\1n111l11111 J , ..,
(iii) Teoria sistemática, holismo<' mol<'rnlari.,·mo Insistimos no fato de que para Dummctt é essencial ter uma teoria sistemática do significado. Isto implica em particular a aplicação constante do princípio fregeano de composicionalidade, que pode ser reelaborado no princípio seguinte: o significado de um enunciado é função do significado das expressões que ocorrem nele e na sua estrutura sintática. Em que consiste o significado das expressões subenunciativas (nomes, predicados etc.) contidas em um enunciado? Tradicionalmente existem, a este propósito, duas teorias contrapostas: Atomismo (Tractatus, Fodor... )
Cada palavra tem o seu significado de modo totalmente independente de qualquer outra.
Holismo (Quine, Davidson ... )
O significado de uma palavra depende da totalidade da linguagem.
Dummett não aceita nenhuma das duas soluções (já vimos em 14.3 a sua crítica à visão holística de Quine e Davidson), mas é dificil descobrir uma solução intermediária que não venha a cair de novo numa ou noutra posição. Para sustentar que o significado de uma palavra não depende da totalidade da linguagem, faz-se mister distinguir os aspectos constitutivos do significado dos aspectos que não são constitutivos; numa palavra, voltar à distinção analítico/sintético. Mas caso não se queira usar essa distinção (depois da crítica de Quine são poucos os que a usam sem problemas) e se queira, no entanto, conservar a idéia que o significado não é atomista, como é que se pode evitar cair no holismo? Caso não se aceite nem o atomismo nem a distinção entre analítico e sintético, fica dificil evitar a conclusão segundo a qual uma palavra depende da rede de todas as inferências possíveis. A análise dummettiana procura enveredar por um caminho novo: define aquilo que é constitutivo do significado não através da distinção entre analítico e sintético, mas mediante a noção de complexidade lógica. Ainda uma vez a análise do significado das constantes lógicas é um paradigma de explicação: para com236 Parte V - Linguagem entre norma e natureza
prccndcr o significado de uma constante lógica é necessário compreender as regras de introdução, ou seja, compreender os enunciados cm que ela aparece como operador principal. Isto implica que não é necessário compreender todos os enunciados em que a constante aparece ou poderia aparecer, mas somente os enunciados de menor ou igual complexidade. Para Dummett vale uma coisa análoga para a linguagem natural. O significado de "frágil" aparece introduzido em enunciados do tipo "este prato é frágil" ou "se é frágil, quebra-se facilmente"; ao passo que expressões como "infelizmente esqueci que se fosse frágil, eu deveria tratá-lo com maior atenção", se baseiam na e exigem a prévia compreensão da palavra "frágil", mas não são condições de sua compreensão. Dummett propõe assim uma teoria alternativa ao holismo e ao atomismo que pode ser chamada de "molecularismo" ou "holismo fraco": molecularismo
o significado de uma palavra depende de um subconjunto limitado da linguagem.
Seguindo o exemplo da dedução natural, uma teoria molecular do significado põe a ênfase sobre a necessidade de identificar os aspectos constitutivos do significado das palavras do léxico, evitando fazer com que o significado de uma palavra dependa da totalidade da linguagem. A teoria sugere, além disso, uma visão simples e coerente da aprendizagem lingüística: não se aprende a linguagem toda de uma vez só, mas de modo construtivo, em blocos. Alguns elementos do léxico são necessários para se compreenderem outros; portanto, é necessário dominar o uso destes antes de aprender os outros.
16.4. Direitos, compromissos e prática social: Robert Brandom Dummett define o significado como justificação também por achar que as conseqüências de um enunciado constituem um conjunto aberto e muito vago para que possa servir de critério definitivo do significado. Robert Brandom transgride esse tabu e afirma que uma teoria do significado deve levar em conta tanto as premissas como as conseqüências lk um enunciado, que ele considera do ponto de vista pragmático e norma 16. Significado e inferência: Dummett, Brandom 237
tivo, como um conjunto de direitos e deveres ou, cm termos mais precisos, de aulorizaç·ões (entillemenls) e compromissos (c·on1111itmc•11ts). Uma teoria do significado deve, portanto, analisar ao mesmo tempo: A justificação de um enunciado
Aquilo que nos autoriza ou capacita a asseri-lo como verdade.
As conseqüências de um enunciado
Aquilo que implicitamente nos comprometemos a sustentar quando o asserimos.
O apelo à linguagem normativa é um apelo à prática social. Pode-se atribuir a uma proposição o caráter de asserção somente se esta proposição estiver inserida em um contexto de práticas e habilidades sociais: a capacidade de responder a quem pede que se justifique uma asserção e a de lhe aceitar as conseqüências. A escolha do binômio sobre o qual Brandom pretende constituir a sua semântica inferencial frisa tanto a idéia fregeana de conteúdo conceituai, enquanto definido como aquilo que se pode justificadamente asserir, como também a definição fregeana de sentido como potencial inferencial, ou como o conjunto de conseqüências que se seguem de uma asserção (cf. 16.1 ). A semântica inferencial, de modo análogo à teoria justificacionista de Dummett, se apresenta como uma alternativa à semântica modelística. Compreender o significado é comprometer-se em uma rede de direitos e compromissos: o significado de um enunciado procede do entrelaçamento das diversas perspectivas com as quais os falantes se comprometem sobre a rede de inferências conexas a ele. Sem ulteriores especificações, isto implica que o significado depende da rede de todas as atividades lingüísticas em que o falante está socialmente colocado e, por sua vez, isto implica uma visão holística da linguagem. Como já foi mencionado (cf. 12.3), o holismo, e também o holismo inferencial, têm dificuldades para resolver o problema da composicioJ 38 Parte V - Linguagem entre norma e natureza
nalidude, que é um dos pilares de uma semântica sistcmútica. ( \uno Sl' pode, com efeito, explicar que o significado de um enunciado dependa de suas partes componentes, se ele depende da totalidade das relações inferenciais em que se acha inserido? Se dois falantes ligam a um mesmo enunciado dois conjuntos diferentes de inferências, para eles dificilmente o significado poderá ser derivado das palavras componentes do mesmo modo. Para Brandom, um caminho de solução é, como já para Davidson (cf. 14.4), um caminho que estude a convergência dos significados no processo social do diálogo e do intercâmbio de opiniões. Vejamos um breve exemplo de análise que pode ser funcional para explicar como se realiza essa convergência: a análise da distinção entre crenças de dieta e crenças de re. Brandom retoma a distinção tradicional entre crenças de dieta e crenças de re (cf. 13 .4), mostrando que a distinção diz respeito não tanto a tipos de crenças, mas a modos de exprimir os pontos de vista diferentes, e diferentes compromissos quanto aos conteúdos de que se fala. Nem sempre os filósofos distinguiram com todo o cuidado entre atribuição de uma crença e subscrição de uma crença. O uso (eventualmente padronizado) dos diferentes relatos de crenças feitos no modo de dieta e de reajudaria a esclarecer a distinção. Um relato de rede uma crença exprime o fato de que quem relata a crença de outra pessoa não a subscreve, enquanto o contrário vale com a crença de dieta. Esses dois aspectos dos relatos de dieta e de re podem ser vistos nos exemplos abaixo. Relato a crença ou o ponto de vista de Pia e em princípio o subscrevo, se me exprimo deste modo:
(de dieta)
"Pia acredita que Benjamin Franklin não inventou o pára-raios".
Pelo contrário, mostro o contraste entre o meu ponto de vista e o dela, e deixo explícito que não subscrevo a crença de Pia, se me exprimo assim:
(de re)
"Pia acredita acerca de Franklin que ele não inventou o pára-raios".
16. Significado e inferência: Dummett, Brandorn '- JlJ
Neste caso, com efeito, não me limito a referir a crcnçn de Pia. mas a relato de tal modo que dou a entender que não estou de acordo, ou que pelo menos me abstenho de subscrever sua crença. Neste caso, posso substituir sem problema "Benjamin Franklin" por "o inventor do pára-raios", dizendo:
(de re)
"Pia acredita acerca do inventor do páraraios que ele não inventou o pára-raios".
Falando deste modo não atribuo uma contradição a Pia, mas me comprometo a subscrever o fato de que Franklin é o inventor do páraraios, que Pia não acredita nisso e que não concordo com ela. Enquanto não posso substituir "Benjamin Franklin" por "o inventor do pára-raios" na primeira sentença de dicto, e não posso afirmar com sentido:
(de dicto)
"Pia acredita que o inventor do pára-raios não inventou o pára-raios".
Neste caso eu atribuiria uma contradição a Pia, e ou eu ou ela seríamos considerados um tanto imbecis. O exemplo dos relatos de dicto e de re constitui apenas um dos casos em que Brandom mostra como é útil analisar as diferenças dos pontos de vista em jogo relativamente aos compromissos e aos direitos para afirmar alguma coisa. Exprimir claramente a diferença entre atribuir e subscrever crenças ou compromissos de outrem é um tipo de atividade. É um exemplo dessa atividade social que Brandom, inspirando-se no baseball e em David Lewis, denomina scorekeeping, ou seja, manter a contagem de pontos da conversa. O scorekeeping implica a identificação dos vários compromissos dos diferentes interlocutores e das relações entre seus compromissos e direitos. Desta prática social nasce uma avaliação da validade das argumentações e a escolha racional e justificada dos melhores argumentos. Esta é a atividade que permite pôr um freio à proliferação infinita de pontos de vista e cria o processo de convergência que permite identificar os compromissos compartilhados pelos falantes na situação de diálogo.
16.5. Racionalidade argumentativa e responsabilidade Brandom insere as referências a Frege e sua proposta de uma semân1ica inferencial em uma perspectiva racional. O ser humano é racional 240 Parte V - Linguagem entre norma e natureza
por ser cupaz de articular as razões e esta cupucidudc se manilcstu
110
deixar explícito aquilo que se supõe implicitamente.
A relação implícito-explícito lembra a lição de Grice, que analisa os aspectos implícitos na comunicação trazidos à luz pelo trabalho das implicações conversacionais (cf. 11.3 ). A implicação conversacional, a capacidade de explicitar o implícito, pode ser compreendida como um cálculo das inferências possíveis em um dado contexto. Pode-se ver esta capacidade inferencial como a característica principal da atividade racional. A questão não é assim tão fácil: a discussão sobre o que é e o que caracteriza a racionalidade é uma questão ainda aberta, que neste livro apenas tocamos de leve. Entre os diversos contrastes que surgiram nesta matéria, aqui nos interessa o contraste entre a racionalidade instrumental, caracterizada pela capacidade de adequar os meios aos fins, e a racionalidade argumentativa, da qual estamos justamente vendo a caracterização a partir de Grice. Existem aspectos de racionalidade também na pesquisa meios-fins, de tal modo que se podem atribuir níveis de racionalidade quer aos animais quer aos agentes econômicos clássicos. O homo oeconomicus é o homem que otimiza os beneficios e que persegue o lucro como um fim buscando os melhores meios para o realizar. Esse tipo de racionalidade (chamada "clássica" pelas teorias clássicas que a defenderam) é definida como meramente "instrumental" porque não coloca em discussão os fins, não se põe o problema de justificá-los, mas somente de procurá-los. Brandom desenvolve um discurso sobre a racionalidade em cima de diferentes bases, mais em sintonia com as idéias de Grice. Resgatando um slogan de Wilfrid Sellars3, ele vê o núcleo da atividade racional no jogo de "dar e pedir razões": tornar explícita uma coisa é colocá-la em uma forma tal que possa ao mesmo tempo servir de razão e ser uma coisa para a qual se pedem razões.
3. Wilfrid Sellars (1912-1989), filósofo norte-americano, mestre de Brandam, é ramo so pela sua intenção de levar a filosofia analítica de Hume a Kant. Brandam às ve1r, parece propor que se transporte a filosofia analítica de Kant a Hegel. Não vamos e o mentar esse projeto, pois escapa ao campo da filosofia da linguagem.
16. Significado e inferência: Dummett, Brando111 J'1 I
Esta prática é pura Hrandom o jogo de linguagem llllC caracteriza a racionalidade humana, diversamente de outros possíveis jogos de linguagem como o jogo dos pedreiros de Wittgenstein. O jogo dos pedreiros parece um simples jogo de ação e reação, mas o jogo de dar e pedir razões é aquilo que distingue o ser ~umano de um executante mecânico, um termostato ou um papagaio. Diversamente do termostato ou do papagaio (cf. também 12.1), o falante que afirma que isto ou aquilo é vermelho ou quente faz a sua asserção como um lance do jogo do dar e pedir razões. Afirmando "isto é vermelho", o falante executa uma ação responsável pela qual deve responder (à pergunta "como é que sabe?" deve poder responder algo do tipo "porque o vi" ou "porque me disseram") e sobre cujas conseqüências se compromete (se é vermelho, não é azul, é colorido, reflete um certo comprimento de onda, é da cor do sangue e do pôr-do-sol etc.). O ato de explicitar e, portanto, o jogo do dar e pedir razões caracteriza a natureza humana que, para usar uma expressão aristotélica, enfatizada por McDowell, é uma "Segunda natureza" gerada pela educação na comunidade lingüística. A perspectiva pragmática na qual Brandom insere as suas reflexões conecta a filosofia da linguagem à ética: a atividade lingi.iística tem uma dimensão essencial de responsabilidade. Dominar a prática discursiva, com efeito, significa saber com que me estou comprometendo ao executar certos atos lingüísticos e o que é que me autoriza a executá-los. O conjunto dos compromissos e dos direitos constitui o significado que deveríamos conhecer para podermos apresentar-nos como falantes de uma comunidade lingüística. Esta dimensão de responsabilidade liga a dimensão da análise lingüística à dimensão ética e abre um campo de reflexão do qual a irresponsabilidade lingüística da nossa época necessita de maneira particular.
Bibliografia essencial DUMMETT, Michael. La verdad y otros enigmas. México: FCE, 1990. PATAUT, Fabrice. "Uma perspectiva anti-realista sobre a linguagem, o pensamento, a lógica e a história da filosofia analítica- Uma entrevista com Michael Dummett". ln: Disputatio, 3, 1997. 242 Parte V - Linguagem entre norma e natureza
16 - Bivalência, terceiro excluido e intuicionismo Ao menos desde Aristóteles é costume princípios fundamentais como: ( 1) princípio de identidade (2) princípio de não-contradição (3) princípio do terceiro excluído (4) princípio de bivalência
distinguir, em lógica, entre diversos A=A -, (A"-, A) Av-.A ou A é verdadeiro ou A é falso
Este último princípio é um princípio metalógico. Segundo o princípio de bivalência, qualquer proposição pode assumir um e um só dos dois valores de verdade, verdadeiro e falso. A validade universal do princípio de bivalência foi posta em dúvida pelo desenvolvimento das lógicas polivalentes, devido ao trabalho da escola polonesa na primeira metade do século XX. O princípio do terceiro excluído foi posto em dúvida pelo intuicionismo de Brower e Heyting. O princípio de não-contradição pelas lógicas paraconsistentes. Vamos aludir aqui brevemente à lógica intuicionista, porque a maneira como critica o princípio do terceiro excluído implica uma redefinição do significado (ou das regras de introdução) das constantes lógicas. O significado das constantes lógicas na lógica intuicionista é o seguinte: • -, A é afirmável se a hipótese que A seja afirmável leva a contradição (..l); • A " B é afirmável se A e B são ambas demonstráveis; • A v B é afirmável se dispomos de uma demonstração de A ou de uma demonstração de B; • A ~ B é afirmável se existe uma construção que transforma uma demonstração de A em uma demonstração de B. Escrevo "afirmável" (ou "asserível") no lugar de "verdadeiro" para recordar a particular concepção intuicionista da verdade. Dessas definições das constantes lógicas segue-se que não são mais válidas diversas leis lógicas, como por exemplo: (i) lei de eliminação da dupla negação: -,-,A ~ A (ii) leis de De Morgan (mas vale a inversa): -,(A " B) ~ (-, A v -, B) (iii) definição do condicional (mas vale a inversa): (A ~ B)~( -, A v B) (iv) princípio do terceiro excluído: A v-, A Vamos dar um exemplo: seja A a Conjetura de Goldbach (todos os números pares são exprimíveis como a soma de dois números primos). O matemático clássico vai dizer: ou são ou não são, portanto vale A v -, A. Mas para fazer isto pressupõe a existência de um mundo independente de entidades matemáticas. Eis como raciocina o intuicionista: para afirmar A v -, A, devo ter uma construção que demonstra que todos os números pares são a soma de dois primos, ou devo derivar uma contradição desta hipótese. Não tendo nem um nem outro caso, não posso afirmar A v -, A.
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Significado e cognição: inteligência artificial, Fodor, Marconi
SUMÁRIO
Um grande desafio às teorias do significado que operam em um quadro normativo vem da semântica cognitiva. Com esse termo se compreende o conjunto de pesquisas que têm por alvo o estudo dos processos cognitivos naturais subjacentes à produção do significado. Sob a etiqueta de "semântica cognitiva" se pretende falar de uma galáxia de investigações que reúne lingüistas, psicólogos, engenheiros e filósofos. É um desafio ao paradigma dominante que se ocupa com os aspectos objetivos e normativos do significado. Em 17. l se apresenta em breves traços a contribuição de Turing que serviu de ponto de partida para a inteligência artificial, um dos núcleos originários das ciências cognitivas contemporâneas. Analisa-se uma das principais tentativas de uma teoria semântica surgida no âmbito da informática: a semântica processual. Em 17 .2 discutem-se as idéias-chave da tese do funcionalismo e das críticas feitas a ela (especialmente pelo experimento mental da câmara chinesa de Searle). Apresenta-se por fim aquela que se pode chamar de "naturalização da semântica" em um de seus protagonistas principais, Jerry Fodor, cujas teses de fundo são delineadas em I 7.3 e 17.4. Conclui-se, em I 7.5, com um exemplo de naturalização "moderada": a idéia de competência léxica de Marconi, que resgata parte da tradição inferencialista e normativa em semântica, embora dando amplo espaço ao valor dos resultados neurofisiológicos no estudo da linguagem.
17.1. Inteligência artificial e semânticas processuais A idéia segundo a qual pensar é antes de tudo, ou em parte, fazer inferências leva a identificar o pensar com um tipo de cálculo (idéia que não é nova e remonta pelo menos a Hobbes e Leibniz). Os processos computacionais dos computadores digitais (que podem facilmente re244 Parte V - Linguagem entre norma e natureza
produzir as inferências lógicas) parecem bons candidatos para representarem os processos de cálculo dos seres humanos, portanto a atividade do pensar ou pelo menos alguns de seus aspectos. Surge assim a idéia de usar os computadores para simular os processos mentais humanos. É este essencialmente o projeto conhecido como "inteligência artificial", que surgiu na década de 1960. Na sua base se acha o desenvolvimento rigoroso do conceito de processo ou algoritmo, elaborado por Alan Turing (1912-1954). Um processo de cálculo, ou algoritmo, é um procedimento determinístico que em um número finito de passos produz um resultado. Turing definiu um modelo matemático dos passos elementares que um ser humano dá quando executa um cálculo: escrever um símbolo, conservá-lo na mente, deslocá-lo, cancelá-lo, seguindo uma certa ordem. O modelo matemático abstrato tem o nome de "Máquina de Turing": as MT definem a classe de tudo aquilo que pode ser calculado através de um algoritmo, isto é, mediante um tipo de cálculo que em princípio pode ser executado com um dispositivo mecânico. Turing demonstrou que há uma MT universal que pode tomar como input quer dados quer outras MT, ou seja, programas específicos com os quais se podem processar os dados. Esta idéia se tomou central na configuração dos computadores atuais, que apresentam a estrutura conhecida como "arquitetura de von Neumann" (do nome do seu ideador, o cientista húngaro, emigrado para os EUA). Tendo à disposição uma máquina capaz de reproduzir qualquer processo de cálculo e, portanto, qualquer inferência, alguns pesquisadores se propuseram simular os processos mentais com os procedimentos de cálculo que um computador poderia executar. Num primeiro momento, a inteligência artificial nasce de um ponto de vista diferente do clássico da semântica de tradição lógico-filosófica. Acha-se, com efeito, interessada em usar os procedimentos algorítmicos para simular processos mentais efetivos, coisa que está geralmente muito longe dos interesses dos lógicos. É costume assim distinguir: • semântica como empreitada matemática - o estudo das condições de verdade dos enunciados da linguagem em uma apresentação formal adequada; 17. Significado e cognição: inteligência artificial, Fodor, Marconi 24
• semântica como empreitada psicológica -- o estudo e.los processos mentais da compreensão com instrumentos ou controles experimentais adequados.
É, porém, inegável que os dois tipos de investigação têm conexões e interesses comuns. Por conseguinte é possível estudar tanto as óbvias divergências como as profundas consonâncias entre as pesquisas da inteligência artificial e os pontos de vista dos lógicos e filósofos da linguagem. A primeira proposta alternativa à semântica modelística em âmbito computacional foi a semântica processual, definida na década de 1970 em tomo da idéia de "micromundo" ou "mundo de brinquedo": um micromundo é o modelo de uma situação idealizada, particular e restrita. O sistema de compreensão da linguagem associado a um micromundo contém ao menos: (i) uma gramática com um analisador sintático, (ii) um motor lógico e (iii) um dicionário muito pormenorizado sobre um campo de objetos restrito bem definido (por exemplo, um mundo de blocos geométricos). Para que se possa fazer o programa funcionar é necessário que a cada verbete do dicionário seja associado um procedimento, e este é o ponto de partida para uma teoria semântica original: a cada símbolo ou expressão da linguagem se associa um procedimento, que é identificado com o significado da expressão.
A idéia de significado como procedimento satisfaz os requisitos fregeanos do sentido ao menos de três modos: • o significado determina a referência: a todo termo singular e predicado é associado um procedimento que dá como resultado o específico objeto ou a classe de objetos presente no micromundo; • composicionalidade: os procedimentos são composicionais. O procedimento associado a "vermelho" se compõe "com os procedimentos associados a "o" e a "cubo" para identificar o único cubo vermelho, se existir, que se encontra na cena (ou na base de dados);
246 Parte V - Linguagem entre norma e natureza
• muíli.,·e cla.fi>rra: u cudu uto lingüístico de base (asserção, perguntu, comando) corresponde um procedimento específico. Uma pergunta desencadeia uma resposta que fornece a informação solicitada; uma asserção deflagra um procedimento de atualização da informação (assumida como verdadeira); um comando desencadeia um procedimento de execução. A idéia do significado como procedimento responde não só a alguns requisitos fregeanos, mas a pelo menos duas idéias do segundo Wittgenstein: • o conceito de significado como uso: se o significado é o uso, como é que se pode representá-lo? Um procedimento é uma boa representação do uso: uma coisa é (d)escrever o procedimento, outra coisa é ativá-lo. Se a descrição do procedimento é uma possível representação das regras de uso da linguagem, a sua ativação corresponde ao uso efetivo. A correção ou plausibilidade da representação abstrata é verificada na sua aplicação efetiva; • o método dos jogos de linguagem: do ponto de vista do método, os micromundos são muito semelhantes aos experimentos mentais dos jogos de linguagem que, simplificando os dados disponíveis, permitem um maior esclarecimento do funcionamento da linguagem (cf. 9.2).
Esta breve reflexão se refere ao momento inicial de um paradigma, aparentemente alternativo à teoria clássica do significado, que recebeu diversos desenvolvimentos em mais de três décadas de investigação. Gostaria então de me limitar a algumas observações gerais: 1. o paradigma processual não é, necessariamente, alternativo ao paradigma clássico (semântica modelística), mas poderia ser integrado a ele, e alguns teóricos assim o conceberam. Seria possível conceber dois níveis de significado, o estrutural, dado pelas intensões, e o cognitivo, expresso por procedimentos associados às intensões. Por exemplo, a intensão de "cão" será uma função que associará a todo mundo possível e todo modelo uma classe de indivíduos. Mas a esta função se poderiam associar procedimentos de reconhecimento que permitam indicar esses indivíduos (por exemplo: procure na cena um objeto com quatro putns que saiba latir e balançar a cauda); 17. Significado e cognição: inteligência artificial, Fodor, Marconi 24
2. o paradigma processual parece antagônico ao "holismo" enquanto o significado é especificado mediante um procedimento hem definido sem necessariamente envolver todo o léxico. Além disso, seria possível dizer que a teoria do significado processual se apresenta como "localista" em vez de "holista". Ela se acha com efeito ligada a representações específicas de certos campos cognitivos ou léxicos. Se isto parece um limite, com o decorrer do tempo levou a um novo tipo de problemas. Consideremos que toda vez que racionamos estamos às voltas com um modelo local; em que relação se encontram os diversos modelos locais? Que relações mantêm entre si e como poderemos passar de um para o outro? A partir de um forte "localismo" se desenvolveram novos problemas, que foram desaguar na discussão dos sistemas "multicontextos" ou "multiagentes"; 3. os procedimentos dos micromundos são relativos a objetos dados em uma simulação, mas em princípio podem existir - e hoje existem - processos de reconhecimento de objetos no mundo real. Os atuais sistemas de reconhecimento têm procedimentos complexos, que unem aspectos não simbólicos (bottom up: percepção de baixo nível) e aspectos simbólicos (top down: interpretação dos objetos percebidos conforme o contexto); 4. a semântica processual ganhou um enorme desenvolvimento também na psicologia, com a idéia de procedimentos como modos de construção de modelos mentais. O principal autor de referência é Johnson Laird. Seus estudos permitiram compreender, por exemplo, por que certos raciocínios são mais dificeis de se aceitar que outros (os procedimentos para construir o modelo ou os modelos corretos são mais complicados); 5. tanto lingüistas como cientistas cognitivos costumam testar as suas teorias em programas de computador ou realizam diretamente essas teorias no nível computacional. A ênfase dada aos aspectos processuais ou algorítmicos é atualmente uma prática consolidada, com os seus problemas específicos (a realizabilidade, a complexidade computacional, a finitude dos sistemas). Os desenvolvimentos da lingüística e da lógica estão muitas vezes estreitamente ligados a programas executados em máquinas.
248 Parte V - Linguagem entre norma e natureza
O uso da simulação feita com os computadores contribuiu 1iuru introduzir alguns temas de caráter mais geral que tocaram também a lilosofia da linguagem, em particular: (i) a tese do funcionalismo; (ii) a tese da semântica naturalizada. A essas duas idéias vamos dedicar os dois parágrafos seguintes.
17.2. Funcionalismo, significado e cálculo A tese geral, segundo a qual os processos que rodam no computador representam de certo modo os nossos processos mentais, deu lugar a duas posturas contrapostas4 em relação às "máquinas pensantes": ( 1) atitude emulativa: os processos computacionais que são trabalhados em um computador são um modo totalmente autônomo de emular a inteligência humana e obter resultados, em certos casos melhores, com meios diferentes dos processos mentais humanos; (2) atitude simulativa: os processos computacionais que são processados em um computador são totalmente análogos aos processos mentais. A inteligência artificial, portanto, simula os processos mentais dos seres humanos. Também só no caso ( 1) é fácil fazer uma comparação entre o computador e o cérebro: as máquinas pensantes estão para o cérebro como as máquinas voadoras (os aeroplanos) estão para o vôo dos pássaros. São dois tipos de arquitetura diferente com objetivos diferentes, mas mostram, todavia, que uma mesma atividade (voar ou pensar) pode ser realizada de diferentes modos e com suportes físicos diferentes (esta é assim chamada tese da realizabilidade múltipla).
4. Esta contraposição fica mais complicada com o debate entre diversos paradlgmn"
em inteligência artificial, de um lado o simbólico e, do outro, o conexionista. Algum. poderiam sustentar que (1) diz respeito ao paradigma conexionista, que tenta efetlvn· mente reproduzir processos mentais e (2) ao paradigma simbólico, que de fato rcpru duz processos culturais. Mas esta solução não seria aceita por todos.
17. Significado e cognição: inteligência artificial, Fodor, Mt1rc:0111
No caso (2) se estabelece uma analogia mais fhrtc entre múquinas e seres humanos, proveniente de algumas discussões sobre o que se entende por "pensamento" depois de Descartes, portanto não mais tudo aquilo que se passa na mente, mas - segundo uma definição de Wittgenstein - a habilidade para usar sinais. Todo tipo de pensamento, enquanto operação com sinais, pode ser reduzido a um certo tipo de operações elementares, como escrever, deslocar ou cancelar um sinal. São estas as operações elementares mínimas de todo algoritmo, definidas rigorosamente pelas teorias matemáticas de Alan Turing. Mas se calcular ou pensar é realizar estas operações, não há diferença a princípio entre mentes humanas e programas artificiais. A única diferença é que a mente humana opera sobre um determinado suporte fisico (o cérebro), enquanto uma simulação dos processos mentais realizada por um computador opera sobre um substrato fisico diferente (feito de silício ou também de outros materiais). Mas as funções de cálculo efetuadas pela mente humana e o sistema artificial são essencialmente as mesmas coisas. Nasce assim o funcionalismo, idéia desenvolvida por diversos filósofos, in primis Putnam e Fodor: FUNCIONALISMO
A mente está para o cérebro assim como o software para o hardware, portanto um estudo dos processos de pensamento independe do suporte fisico (quer conste de neurônios quer de chips de silício. Na década de 1950, Turing havia proposto um teste que denominara "jogo da imitação" (e que ficou posteriormente conhecido como "teste de Turing"), que consistia essencialmente em pedir a um ser humano que reconhecesse se estava se comunicando - através de um terminal de vídeo com outro ser humano ou com uma máquina. Se a pessoa não conseguisse distinguir quando estava falando com um ser humano ou com uma máquina, seria possível afirmar que o comportamento (lingüístico) da máquina era tal que se poderia classificá-la como capaz de pensar. O teste de Turing exprime a crença na tese do funcionalismo acima apresentada: essa tese não sustenta necessariamente que a nossa mente 50 Parte V - Linguagem entre norma e natureza
funciona como umu Máquina de Turing, musque epoNNlwl N111111l111 t11d11 atividade cognitiva por um dispositivo que tenhu II poll'lll'III d,• 1111111 Mi', quina de Turing. A partir dos anos '60, registrou-se mais de uma rcspost11 h111111hlll'llh' positiva à tese de Turing: sabe-se de casos em que alguns Sl'l"l'S 11111111111111'1 foram enganados de fato por programas automáticos (o priml'tro r11s11 remonta ao programa "Eliza", que enganou o diretor de um l>cpnrt11mento de Informática, que se inscrevera no programa sem o saber e pensava que estava falando com um professor um tanto mal-educado). Uma resposta negativa, porém, é sugerida por um experimento mental inventado por Searle, que define a contraposição ( 1) e (2) acima citada como a contraposição entre inteligência artificial "fraca" e "forte", e critica a posição (2) como um projeto sem sentido. Searle discute acerca dos assim chamados "sistemas inteligentes" (computadores com programas de inteligência artificial para a compreensão da linguagem). Sua crítica se apresenta sob a forma de experimento mental: o experimento do "quarto chinês". Imagine um homem fechado em um quarto onde lhe são entregues, ao entrar, algumas folhas escritas em chinês. Ele tem instruções em inglês para converter uma certa série de símbolos em chinês em uma outra série de símbolos em chinês, que terá de entregar ao sair. Embora aprenda bem como transformar certos símbolos em outros símbolos, não terá com isso aprendido a língua chinesa, mas apenas terá aprendido a manipular símbolos sem sentido. As operações do computador são absolutamente análogas ao comportamento do operador do quarto chinês: manipulam símbolos de maneira puramente sintática, mas não compreendem o significado deles. A conclusão de Searle é, portanto, esta: um computador não compreende a linguagem: limita-se a manipular símbolos, e não compreende o seu significado; o computador efetuu manipulações sintáticas, mas não tem acesso à semântica.
17. Significado e cognição: inteligência artificial, Fodor, Mnrn>nl 251
O que caracteriza o uso da linguagem humana é u cupucidade de ligur símbolos a objetos do mundo, capacidade que constitui a intencionalidade a que Searle dá o nome de "intencionalidade originária". Mas os computadores só têm uma intencionalidade "derivada", quer dizer, seus símbolos têm significado apenas porque nós lhes damos o significado próprio. Nem todos se deixaram convencer pelo argumento de Searle e, de modo particular, alguns teóricos se ativeram à tese de fundo do funcionalismo, que encontrou um terreno fértil na evolução da nova ciência cognitiva. A ciência cognitiva é um conjunto de disciplinas que vão da neurofisiologia à lingüística, da psicologia à lógica e à informática, e que propõe uma tarefa que pode ser enfrentada tanto pelos críticos como pelos adeptos da tese de Searle: o estudo dos processos cognitivos. O estudo dos processos cognitivos, hoje, não pode prescindir dos instrumentos oferecidos pelos computadores, tendo por base uma hipótese fraca segundo a qual os processos cognitivos são ao menos em parte independentes da particular realização que lhes dão os humanos (e seus cérebros).
17.3. Semântica naturalizada: Fodor O desafio mais forte que se lança ao paradigma "clássico" do significado, e baseado nos estudos das ciências cognitivas, é a tese da naturalização da semântica. Mas o que se entende por "naturalização"? O termo procede de Quine e da sua tese sobre a epistemologia naturalizada. O específico objetivo polêmico de Quine é a epistemologia do primeiro Camap, uma teoria filosófica segundo a qual todo o conhecimento se fundamentava sobre os dados dos sentidos, crenças imediatas não justificáveis. Teorias como esta foram desenvolvidas, primeiro por Camap e Russell e, depois de Camap, por Al:fred Ayer, e receberam igualmente criticas (como as de Sellars e Austin) que negavam validade ao conceito de "dados dos sentidos" e tentavam desenvolver uma teoria alternativa da percepção. Enquanto as críticas de Sellars e de Austin punham em dúvida o conceito de dados dos sentidos (Sellars falava do "mito do dado", Quine faz uma critica mais radical: não se pode dar uma teoria.filosófica do conhe252 Parte V - Linguagem entre norma e natureza
cimento. Tal como aconteceu com muitos problen11.1s lllle anligmnenle eram próprios da filosofia, e agora são do âmbito das ciências naturnis (in primis da Física), a epistemologia também deve ser submetida a um tratamento científico, noutros termos, deve ser "naturalizada". Isto significa que a tarefa de estudar o que é e como se desenvolve o conhecimento caberá à psicologia, coadjuvada pela semântica. A tese de Quine suscitou diversas reações a favor e contra, ainda que poucos duvidem que um estudo filosófico do conhecimento possa ser feito sem levar em conta as investigações científicas, desde a psicologiu à neurofisiologia. Uma vez definidas as dúvidas sobre a epistemologia ( ou teoria do conhecimento), o problema da naturalização se põe igualmente para a própria semântica: SEMÂNTICA NATURALIZADA
A semântica é parte da psicologia ou de outras ciências naturais (por exemplo, os estudos evolutivos ou a genética). Conectar semântica e psicologia não é difícil: a semântica se ocupa com problemas tais como as atitudes proposicionais, e trata portanto de conteúdos de crenças, desejo, conhecimento, que são tradicionalmente temas que pertencem à psicologia, a qual estuda os processos e os estados mentais. Na história dos estudos sobre a linguagem, o prii;neiro que concebe o estudo da linguagem como parte da psicologia é Noam Chomsky (cf. 3.3). A faculdade da linguagem é vista como uma capacidade inata da mente humana (a "competência lingüística"), e seu estudo faz parte de uma ciência geral dos processos mentais. A linguagem como capacidade inata deve incluir alguns processos muito gerais comuns a todas as mentes, e tais processos são - para Chomsky - processos da sintaxe. O filósofo que estendeu à semântica a atitude naturalista de Chomsky para a sintaxe é Jerry Fodor. A naturalização da semântica de Fodor se buseia, além de sobre a hipótese funcionalista, sobre três pilares principais: 17. Significado e cognição: inteligência artificial, Fodor, Marconi 25
(i) teoria psicológica do senso comum (/
(i) Teoria psicológica do senso comum (folk psychology) Por teoria psicológica do senso comum se entende a teoria implícita que os falantes normais subentendem quando prevêem ou descrevem o próprio comportamento ou de outros mediante as categorias ingênuas de "crença", "intenção" e "desejo". Enquanto para alguns autores, como Stich e os Churchland, afolk psychology é apenas um resíduo do passado e tenderia a desaparecer com o correr do tempo como a teoria do flogístico, para dar lugar a teorias neurofisiológicas da mente, para Fodor a folk psychology é válida tal qual é, e é o resultado de uma longa seleção natural que levou ao desenvolvimento de uma complexa capacidade de interpretação da mente dos outros.
(ii) Teoria modular da mente A nova psicologia científica deve, portanto, basear-se sobre os conceitos desenvolvidos pela nossa psicologia intuitiva, ou seja, sobre os conceitos de intenção, crença ou desejo. Estes conceitos foram selecionados, sugere Fodor, por refletirem a arquitetura da mente que prevê que existem (i) "módulos" como a percepção ou a sintaxe, em parte ou totalmente autônomos ("informacionalmente encapsulados"), e (ii) processos centrais (como o raciocínio e a fixação das crenças) por sua natureza não modulares, porque utilizam informação derivada de diferentes módulos.
17 .4. A linguagem do pensamento O terceiro elemento da naturalização de Fodor é a teoria computacional da mente, em cujo centro encontramos a hipótese da linguagem do pensamento ou "mentalês". Tem por base a idéia que no cérebro existe 254 Parte V - Linguagem entre norma e natureza
um conjunto de representações mentais que possuem formu unúlogn aos enunciados de uma língua. Os processos mentais são processos computacionais (realizados pela atividade dos neurônios) que operam sobre essas representações: se nos fosse possível descrever essas representações, só poderíamos descrevê-las como uma linguagem, a linguagem do pensamento ou mentalês. O mentalês é um conjunto de representações simbólicas que obedece ao princípio de composicionalidade e é atomista, quer dizer, faz um símbolo corresponder a cada conceito. Fodor se contrapõe deste modo a qualquer idéia de significado como papel inferencial. A sua idéia de um sistema atomista e inato provocou muitas críticas, tendo em vista que a linguagem se desenvolve simultaneamente com a sociedade, e é difícil aceitar que "carburador" ou "puxador" sejam conceitos inatos. No entanto, a tese tem seu fascínio e recorda a tese sobre os anticorpos, mais tarde corroborada em medicina. Os anticorpos são um sistema que contém cópias das estruturas do mundo exterior (por exemplo, vírus e bactérias, mas também substâncias artificiais), que poderiam atacar as células sadias de um indivíduo. Essas cópias se encontram, inatas, mas não ativadas, nas células sadias. De modo análogo, o mentalês poderia compreender como inatos todos os conceitos possíveis, mas somente parte deles é ativada no indivíduo. O mentalês resolve também os problemas relacionados com a substitutividade dos contextos de crença. Ele explicaria, por exemplo, por que não se pode passar de "Édipo acredita que ama Jocasta" para "Édipo acredita que ama sua mãe". Com efeito, "Jocasta" e "sua mãe" são duas diferentes acepções do mentalês e não podem ser substituídas na "caixa" das crenças. A diferença entre crenças e desejos depende do lugar onde se põe um mesmo enunciado do mentalês: a diferença entre crenças depende, porém, do específico enunciado do mentalês que se acha na caixa específica. Para completar a naturalização da semântica, Fodor sugere uma visão "causal" das noções semânticas como a referência. Um símbolo do mentalês se refere a um certo tipo de objetos (por exemplo, os cavalos) por ser ativado na presença de cavalos, quer dizer, é causado pelos cavalos. Sem dúvida, podemos enganar-nos e de noite confundir uma vucn com um cavalo. Mas, retruca Fodor, há uma diferença: o símbolo pnrn 17. Significado e cognição: inteligência artificial, Fodor, Marconi
255
"cavalo" seria ativado pelos cavalos, mesmo que nào existissem vacas. Mas não seria ativado pelas vacas, caso não houvesse cavalos. Se esta resposta (a que Fodor dá o nome de "dependência assimétrica") é uma solução para o problema da naturalização da semântica, isto é obviamente uma questão aberta. A naturalização da semântica de Fodor, radical, contrapõe-se às versões "normativas" da tradição clássica. A tendência fundamental da investigação filosófica atual está ligada ao confronto com as disciplinas científicas, também no setor da semântica, e a uma forte tendência à naturalização. No que tange à semântica, uma exceção é o mestre de Fodor, Noam Chomsky, que foi um dos pontos de referência da ciência cognitiva. Chomsky acredita que a dimensão do significado não é naturalizável, e é também irredutível a uma abordagem científica (por exemplo, biológica). Mas a maior parte dos pesquisadores trabalha hoje em outra direção, orientada para a pesquisa dos aspectos naturalizados (e explicáveis mediante as ciências empíricas) do sistema conceituai humano, isto é, do domínio dos significados. Além dos discípulos de Chomsky (não apenas Fodor, mas também Roy Jackendoft), podemos lembrar as tentativas ligadas à neurofisiologia e à redução do significado a estruturas neuronais (Patrícia Churchland e Robert Lakoft); as ligadas à evolução biológica e ao estudo dos processos mentais com modelos biológicos (Stephen Pinker e Ruth Millikan); e finalmente as ligadas a uma visão social da linguagem e a uma descrição sociológica dos usos lingüísticos (como Paul Horwich). Nem todas os recursos à ciência cognitiva ou às contribuições das ciências empíricas para a semântica vão desembocar necessariamente em uma naturalização radical. Temos disso um exemplo no trabalho de Marconi sobre o conceito de completude semântica, com o qual concluímos este rápido percurso.
17 .5. Teoria da compreensão e competência léxica Já Dummett identifica teoria do significado e teoria da compreensão e afirma que em uma teoria do significado não é necessário que apareça a palavra "significado" (coisa estranha: a palavra "eletricidade" não 256 Parte V - Linguagem entre norma e natureza
upurece entre os termos de uma teoria da eletricidade). l>ummett, no entanto, continua falando de sign(ficado cm termos de justificação. Murconi procura, ao contrário, definir uma teoria da compreensão que deixe totalmente de lado a noção de significado. Sua idéia é estender a noção chomskyana de "competência" de um plano meramente sintático ao plano semântico. Poder-se-á, portanto, falar de "competência semântica", a capacidade de conectar palavras e mundo. Essa competência se realiza em vários níveis e, em particular: 1. a competência estrutural, ou seja, a capacidade de construir frases bem formadas com uma semântica correta (aos nomes correspondem objetos e aos predicados classes, e o valor de verdade depende composicionalmente do modo como os enunciados são formados) e com regras de inferência válidas. A capacidade inferencial geral é dada pela competência estrutural, mas é necessário haver uma específica competência para dominar o léxico de uma língua; 2. a competência léxica, isto é, a capacidade de se orientar no léxico de uma língua, de modo que saiba usá-la, de sorte que se possa ser considerado falante competente. Para isso é necessário, porém, distinguir dois aspectos da competência léxica: • a competência inferencial, quer dizer, a parte da competência que conecta todas as palavras do léxico em uma rede chamada geralmente de "rede semântica". Uma rede semântica é uma representação das relações entre as palavras do léxico e pode ser representada por postulados de significado; • a competência referencial, ou seja, a capacidade de associar objetos a sons. Deste modo Marconi não exclui a aceitação e o uso dos programas da semântica modelística, mas resgata aspectos do programa da semântica inferencial, onde uma asserção deve poder ser justificada em parte por inferências e em parte por capacidades referenciais. Dado que sua teoria não é uma "teoria do significado", mas uma teoria da competência, o problema fundamental consiste em fornecer uma arquitetura du competência. Como é que se organiza a competência semântica, e parti17. Significado e cognição: inteligência artificial, Fedor, Marconi 257
cularmentc a competência léxica? Têm fundamento us disti111;ôcs como são representadas no esquema abaixo? competência semântica
estrutural
inferencial
léxica
referencial
Uma parte do trabalho de Marconi consiste em demonstrar que essa subdivisão encontra uma confirmação empírica em diversos dados e experimentos neurofisiológicos: é possível reconhecer um objeto cujo nome se dá, mas não saber dizer nada sobre ele, ou falar de um objeto sem estar em condição de reconhecê-lo no meio de outros. Pessoas que, dependendo dos danos cerebrais que sofreram, não têm competência referencial ou inferencial, representam a demonstração viva de como esses dois tipos de capacidade são em parte autônomos e de como ambos concorrem para a constituição de nossa habilidade de uso dos signos lingüísticos. Poder-se-ia concluir que também o "reconhecimento" perceptivo (ou o "conhecimento direto" de Russell) é em parte dependente da linguagem, embora de modo autônomo do conjunto de inferências. Adimensão semântica, então, não é meramente inferencial, mas é explicada por habilidades de vários tipos, quer inferenciais quer referenciais. A importância atribuída à dimensão referencial e à dependência da arquitetura do cérebro e da mente não leva necessariamente a uma visão radicalmente naturalizada da semântica. A compreensão não se resolve como um mero produto da configuração do cérebro e da sua relação causal com o mundo, porque as instituições da comunidade lingüística contribuem para formar uma normatividade difusa que não tem um princípio ordenador único, mas que concorre para estabelecer normas e regras que constituem, sempre de novo, paradigmas de comportamento lingüístico. O estudo da arquitetura do cérebro e da mente não constitui, portanto, a última palavra no estudo sobre a linguagem, mas ajuda a 258 Parte V - Linguagem entre norma e natureza
compreender as restrições e as possibilidades de organização da competência lingüística e, portanto, da compreensão. Pode-se talvez objetar que o estudo da taxa de fósforo no cérebro não muda o significado das palavras, mas com bom senso logo se pode objetar a Frege que o estudo da taxa de fósforo pode certamente ajudar-nos a compreender de que modo se compreende o significado.
Bibliografia essencial ANDLER, Daniel. Introdução às ciências cognitivas. São Leopoldo: Unisinos, 1998. ENGEL, Pascal. Introdução à filosofia do espírito. Lisboa: Piaget, 1996. SEARLE, John R. Mente, cérebro e ciência. Lisboa: Ed. 70, 1997. TEIXEIRA, João de Fernandes. Filosofia e ciência cognitiva, Petrópolis: Vozes, 2004. -
Filosofia da mente: neurociência, cognição e comportamento. São Paulo:
Claraluz, 2005.
17. Significado e cognição: Inteligência artificial, Fodor, Marconi 2
17 - Semintlcas cognitivas
Exemplo: pegue o cubo vermelho - mi<-romundos (toy worlds) e definições processuais. SHRDLU é um dos primeiros programas de "mundos de blocos" da década de 1970. Constituído de uma gramática, um vocabulário processual e um motor inferencial, o micromundo é realizado em uma tela e permite diálogos com um robô simulado que desloca blocos.
Exemplo: definição processual de cubo. ( CUBE) (NOUN( OBJECT( (MANIPULABLE RECTANGULAR) ((IS?BLOCK) (EQUIDIMENSIONAL?)))))))
Redes semânticas e relações inferenciais. Neste exemplo de rede semântica é possível notar as relações inferenciais entre elementos do léxico; os nós da rede correspondem a conceitos genéricos (exceto os nós em cinza, que correspondem a conceitos individuais). Os arcos ISA (as flechas pretas grossas) representam subsumpção de conceitos e inclusão entre classes; outros arcos (flechas pregas finas) representam atributos ou relações, e os indicados pelas flechas pretas tracejadas representam instanciação (ou pertença de um indivíduo a uma classe). Esta rede pode ser representada também em termos de postulados de significado.
260 Parte
V - Linguagem entre norma e natureza
Bibliografia geral
Antologias e introduções BRANQUINHO, João (org. ). Existência e linguagem. Lisboa: Presença, 1990. HALE, B. & WRIGHT, C. (org.). A companion to the philosophy oflanguage. Oxford: Blackwell, 1997. LUDLOW, P. (org.). Reading in the Philosophy of Language. Cambridge, Mass.: MIT Press, 1997. MARCONDES, Danilo. Filosofia analítica. Rio de Janeiro: Zahar, 2004. MARTINICH, A.P. (org.). The Philosophy of Language. Nova York: Oxford University Press, 1996. Os Pensadores- Vol. XLIV: Schlick, Carnap, Poper. São Paulo: Abril, 1975. - Vol. LI/: Ryle/Austin/Quine/Strawson. São Paulo: Abril, 1975.
Na internet É possível encontrar na internet, com um pouco de sorte e habilidade, todo tipo de referências bibliográficas. Uma sugestão para a filosofia da linguagem em português:
Textos de filosofia/filosofia da linguagem: Portal Brasileiro da Filosofia: http://www.filosofia.pro.br/ Filosofia da linguagem em italiano: http://www.dif.unige.it/risorse/filosofiadellinguaggio
Bibliografia geral 261
,
Indice onomástico
Ackermann, W.68 Aristóteles 13,15,19, 22, 30, 36, 39, 41, 65s, 111, 113s, 152,170,184,243 Austin, J.L. 24, 125, 127, 133, 139, 143, 152-158, 160-166,235,252 Ayer, A. 152-154, 211,252 Barwise, J. 105 Bernays, P. 140 Boghossian, P. 193 Boole, G. 26, 28, 36, 40, 52 Brandom, R. 64, 139,223,226,239 Brouwer, L. 140, 186 Burge, T. 117, 120, 149 Cantor, G. 78 Carnap, R. 23s, 42, 46, 64, 83s, 87, 89, 94-99, 101-104, 107, 140, 193, 203s,230,252 Cartesius, veja Descartes, R. Chomsky, N. 27, 38, 40, 47s, 50s, 61, 179,200,253,256 Church, A. 96 Churchland, Patricia 254, 256 Churchland, Paul 254 Cooper, R. 105 Dalla Pozza, C. 163 Davidson, D. 24, 169, 186s, 207-215, 231,236,239 Descartes, R. 27, 30 Donnellan, K. 108, 111 Duhem, P. 195
Dummett, M. 24, 90, 132, 139, 141, 211,226-238,256s Evans, G. 120 Fillmore, C. 45 Fodor,J.24, 117,120,226,236,244, 250, 253-256 Frege, G. 9-10, 16, 22-23, 25-26, 28-30, 32-38, 49, 51, 55-72, 74-79, 82-85, 87, 94, 96s, 100s, 108-113, 115s, 119s, 125-132, 134-136, 138s, 143, 146, 153, 157s, 162, 165, 167s, 174, 176, 183-188, 190, 200, 203s, 211, 219-221,224-227,235,240,259 Galilei, G. 26 Gentzen, G. 227s, 232, 234 Goethe, W. 147s Goldbach, C. 233, 243 Grice,P.24, 125,133,160, 165-178,241 Groenendijk,J. 106 Habermas, J. 160 Hall Partee, B. 105 Harman, G. 228 Hegel, W.F. 241 Heyting, A. 140, 243 Hjelmslev, L. 45 Hilbert, D. 68, 140, 186 Hintikka, J. 103 Hobbes, T. 244 Horwich, P. 256 Hume, D. 141,191,241
Índice onomástico 263
Jackcndofl: R. 256 Johnson Laird, P. 248 Kamp, H. 105s Kant, 1. 14s, 33s, 36, 87, 97, 170, 189, 191, 220s, 241 Kaplan, D. 65, 108, 115, 117s, 215 Kripke, S.T. 24, 64s, 103s, 107s, 111-115, 119s, 141,167, 190,206,219,221s Lacan,J.47 Lakoff, Robert 256 Lakoff, Robin 178s Leibniz, G.W. 26-28, 62, 95, 191, 220s, 244 Levinson, S. 162 Lévi-Strauss, C. 47 Lewis, D. 103, 240 Locke,J.27,41, 146,184, 188,223s Lõf, M. 163 Lullo, R. 27 Marconi, D. 139, 244, 256ss Mates, B. 103 McDowell,J. 120,141,223,226,242 Meinong, A. von 70s Mill, J.S. 95, 108, 112s Millikan, R. 256 Minsky, M. 149, 151 Montague, R. 24, 103, 105 Moore, E. 68 Morris, C. 42 Peano, G. 28,221 Peirce, C.S. 40-42 Perry, J. 105,120,215 Piaget, J. 47 Pinker, S. 256 Platão 15, 41, 65, 70, 146 Popper, K. 89, 131 Post, E. 84 Putnam, H. 24, 108, 115-117, 148s, 250
264 Índice onomástico
Quine, W.V.O. 24, 62, M. 7.1s, X9, 1>7, 101. 169, 11<6-201. 209-211. 2n. 221-223, 230,233,236, 252s Ramsey, F.P. 38 Recanati, F. 120 Reichenbach, H. 24, 87, 126, 162s, 220 Rorty, R. 211 Rosch, E. 149 Russell, B. 23s, 31, 38, 51, 64, 66-68, 70-74, 77, 79s, 87, 101, 108-113, 117, 126, 135, 138, 140, 152, 174, 186,211,221,252,258 Ryle, G. 24,152,201,231 Saussure, F. de 40, 43, 45-47 Schlick, M. 87, 89 Searle,J. 108, 110-113, 160s, 164, 176 Sellars, W. 211,219,223,241,252 Sperber, D. 177 Stalnaker, R. 106, 175 Stich, S. 254 Strawson, F.P. 24, 108-110 Tarski, A. 83, 87, 90-94, 104,107,208 Tugendhat, E. 186 Turing, A. 244s, 250 Venn, J. 20 Waismann, F. 138 Whitehead, A.N. 68 Wilson, D. 177 Wittgenstein, L. 13, 23s, 38, 51, 56, 65, 67s, 74-80,83-89,93,95,97,99, 110, 112, 125, 127, 132, 134-149, 151-153, 162, 167, 185, 187, 192, 197,204,211, 222-224, 227s, 230-233,235,242,247,250 Wright, C. 141
,
Indice temático
Algoritmo 245, 250 Âmbito (scope) 37-39, 73, 205s Análise disposicional 201 Analítico/sintético 33s, 87, 89, 97, 99, 190s, 196, 223 Antipsicologismo 58, 219, 224s Anti-realismo 227, 232, 235 Antropologia 210 A priori/a posteriori 33s, 57, 87, 97s, 191,196,219, 221s Asserção 126, 132, 158, 162-164, 220 - sinal de 126, 157, 162 Atomismo 236s - lógico 32, 68, 79s Atos lingüísticos 152, 158, 160-164 - indiretos 178 Axiomas 16, 29, 36 Batismo 108, 114s Bivalência 74, 243 Cadeia causal 115 Cálculo dos predicados 36 Campos semânticos 46 Caráter 118 Caridade, princípio de 169,199,201,214 Competência 40, 46s, 51, 139, 150, 244, 253, 256-259 Comportamentalismo 199,201 Composicionalidade, princípio de 55, 61-63,84, 100,189,236,255 Compreender 125, 128, 132, 137-140, 208,215,222, 224s, 228, 230s, 236-238,248,255,259
Comunicação 188s, 207, 21 ls, 214 Conceito 26, 29-32, 35, 38, 85, 87s, 92, 84s, 97, 107, 134, 140, 145-149 Condições - de afirmabilidade 232, 234s - de felicidade 152, 155s, 160 - de verdade 24, 83, 85s, 88-91, 93, 96, 106,117,120, 153-155, 163,208s, 215s,227,229,233s Conhecimento 71s, 153,228, 231-233, 235,252s,258 Constantes lógicas 86, 98s, 236, 243 Constatativo 152s, 157 Conteúdo mental 115s Contexto 56- 63-65, 101, 106, 125, 127, 130,132,211, 215s - indireto (opaco) 63, 83 - princípio do 63, 183, 185, 187, 189 Contra-exemplo 20-22, 55, 62 Convenção 41, 98, 156s, 165 - Convenção T 93s Conversação 165, 167-170, 173-176 - máximas da 170s, 173 Cooperação, princípio de 165, 167, 169-171 Cortesia 175, 177-179 Crença 83, l 02, 119s, 203-205, 239s, 254s Criatividade lingüística 47s Dedução natural 228s, 237 Demonstrativos 108, 110, 115, 117s Índice temático 26
Denotação 70, 108-1 1O, 112, 192 De re - de dicto 203, 239 Descrições definidas 67, 70-73, 77, 80, 112s, 117 Divisão do trabalho lingüístico 134, 147-149 Dizer e mostrar 78 Dogmas do empirismo 190s, 21 O Dor 144s
lntensão 83, 94-97, 101-IIU, 112, 118, 193,202 Interpretação 88, 90-93, 97, 103-105, 107, 134, 141-143, 207-209, 213-216 Intuicionismo 243 Jogo de linguagem 134-138 Justificação 219-223, 227-229, 231,
Epistemologia 27, 33 Extensão 68, 74, 83, 85, 90, 94, 96, 100, 103s Falácias 13, 15, 18-19, 22, 25 Folk psychology 254 Força 56, 127, 23 ls, 247 - e sentido 125-127, 235 Forma lógica 21, 23, 26, 34, 36s, 50, 67, 70, 72-82 Frame 45, 149, 151 Função 29-32, 96 - proposicional 31 Funcionalidade, princípio de 85 Funcionalismo 244, 249s, 252 Fundamentos da matemática 140, 186 Holismo 183, 187, 189s, 197,207, 2lls,215,227,236-238,248 Identidade 56s, 62, 77, 96s, 102, 127 Idioleto 188s Implicação 168, 171, 173-175, 177 - generalizada 173s Implícito 165, 167s, 172-174, 177 Inferência 16-17, 19, 22, 127s, 227s, 236,238s,241 Intenção 128s, 141-143, 156s, 164-167, 169s, 175
266 Índice temático
235,237s,257 Langue/parole 43s, 47
Língua universal 27s Linguagem - formal 28, 32, 64 - ordinária 24 Lógica (tradicional, estóica, aristotélica) 26s, 29, 32, 34s, 37, 39, 80 Manifestabilidade 232 Metalinguagem 93s, 208s Modelo 92, 103-105 - teoria dos modelos 90, 99, 107 Modus ponens 16, 25, 39
Molecularismo 232, 236s Mundos possíveis 79, 84, 95-104, 106s Necessidade 42, 46, 97-99, 104, 107 Neopositivismo 83, 87, 152s, 101,230 Nomes - logicamente próprios 71 - próprios 67, 71s, 108, 110-113, 115, 117, 119, 121, 186 Ontologia 27, 32s, 37, 70, 74, 77s, 185-187,235
Pupcl co11ccill111I (inferencial) 227s Parndoxo - cético 141 - das regras 142 - de Russell 66 Pensamento 55s, 58, 61, 63-65, 125-127, 129-132, 219-221, 224s, 250,254s - pensamentos fictícios 120 Performativo 152s, 157s, 160s, 164 Pertinência 171, 175-177 Platonismo 131, 135, 141 Pressuposição - pragmática 176 - semântica 69 Procedimento(s) 245-248 Processos mentais 117, 125s, 220, 245s,249s,253,255 Protótipo 147-149 Quantificadores 34-38 Quarto chinês 251 Racionalidade 214, 227, 240-242 Recursividade 4 7 Redes semânticas 99 Reducionismo 88s, 190s, 194, 197,199 Referência 55s, 58-62, 64, 109s, 112, 114-118, 120s,230,233,235,240, 246,248,255s - do falante 111 - direta 108, 111, 115, 119s Regras 28s, 36, 47s, 161s - regra de separação (cf. Modus ponens) - recursivas (cf. Recursividade) - seguir uma regra 139-143 Representação 56, 58, 130s, 184s
Scorekeeping 240 Segunda natureza 242
Semântica 33, 42s, 50, 90s, 103-106, 245s - naturalizada Semelhanças de família 134, 145, 147s, 151 Semiótica 40-42, 52 Sentido 55-65, 85-88, 115-117, 125-130, 183-185, 227s, 235s - dos nomes 58, 64, 108 - dos predicados 58, 68s - determinação do 64 - de enunciados 60, 78, 85s, 227s Signo 40-44 - lingüístico 43s Significação, critério de 153-155 Significado - do falante 165-167 - postulados de 46, 97, 99, 257, 260 - teorias do 136, 184, 207-209, 227, 230-233,235,237s Silogismo 25, 27, 30, 35s, 39 Símbolo 40s, 48s, 52 Sinonímia 102, 192s Sintaxe 40, 42-44, 50, 179, 253s Sintético (cf. Analítico/sintético) Sistema formal 28 Substitutividade 61-63, 100-103 Sujeito/Predicado 32, 34, 37, 128s Tácitos entendimentos 80 Tautologia 86, 97s, 107 Teoria - da mente (modular, computacional) 254 - da imagem 67, 74s, 78 - do significado (cf. Significado) - duais 108, 115, 117 Terceiro excluído 196, 230, 243 Terceiro reino 135, 138s, 224 Termos - não denotativos 67s, 70, 74, 1OH, 1M6 - singulares 32
Índice temático 26 7
Terreno comum (common grouml) 175s Teste de Turing 250 Tom 56, 125, 127-131, 167s Tradução 127, 207-210 - indeterminação da 198, 200 - radical 190, 197, 207 Triangulação 207, 214 Triângulo semiótico (semântico) 40s Type/Token 42
Uso 109,152,247 - e menção 62, 93 - significado como 136-139, 149, 228-230, 233, 247 Valor cognoscitivo 56, 64 Verdade - valor de 31, 58s, 62, 64, 68, 70, 74, 83-85,90,96, 100s, 104 Verificação 86, 88-90, 144s, 223, 233
,
Indice geral
Sumário, 7 Prefácio, 9 Parte I - Filosofia, lógica e lingüística, 11 Introdução, 13 1. Dar razões, 15 1. 1. O que é uma argumentação, 15 1.2. Forma dos argumentos e falácias, 19 1.3. Lógica, argumentação e análise da linguagem, 22 Bibliografia essencial, 24 2. Linguagem e lógica, 26 2.1. Leibniz e Frege: língua e cálculo, 26 2.2. Uma teoria do conceito: o conceito como função, 29 2.3. Intermezzo: distinções filosóficas, 33 2.4. A forma lógica dos enunciados de generalidade, 34 2.5. Quantificadores, forma gramatical, forma lógica, 36 Bibliografia essencial, 38 3. Semiótica e lingüística, 40 3.1. Nas origens da semiótica, 40 3.2. Lingüística saussureana: "langue/parole", 43 3.3. Lógica e lingüística chomskyana: competência/execução, 46 Bibliografia essencial, 51 Parte II - Linguagem e representação, 53 4. Sentido, referência e verdade: introdução, 55 4.1. Sentido e referência de nomes e predicados, 55 4.2. Sentido e referência de enunciados: o pensamento, 59 4.3. Composicionalidade e substitutividade, 61 4.4. Problemas da substitutividade e princípio do contexto, 62 4.5. Sentido e verdade: determinação do sentido, 64 Bibliografia essencial, 65
Índice geral 269
5. Nomear objetos: Frcgc, Russell, Wittgcnstcin, 67 5.1. Frege, Russell e Wittgenstein, 67 5.2. Frege: termos não denotativos e pressuposição, 68 5.3. Russell: descrições definidas e forma lógica, 70 5.4. Os nomes do "Tractatus" e a teoria da imagem, 74 5.5. Revelar a forma lógica: o conceito de sentido e a ontologia, 77 5.6. Linguagem natural e forma lógica: o atomismo lógico, 79 Bibliografia essencial, 81 6. Condições de verdade e mundos possíveis: Wittgenstein e Camap, 83 6.1. Significado como condições de verdade, 83 6.2. Sentido, não-sentido, verificação, 86 6.3. Tarski e a idéia de semântica como teoria dos modelos, 90 6.4. Carnap, extensão, intensão e o significado cognitivo, 94 6.5. Modalidade, verdade e postulados de significado, 97 6.6. Problemas da modalidade: substitutividade e onisciência lógica, 100 6.7. Desenvolvimento das semânticas modelísticas, 103 Bibliografia essencial, 106 7. Teorias da referência direta: Kripke e Putnam, 108 7 .1. Denotação e referência, 108 7.2. Descritivismo, 110 7.3. Nas origens das teorias da referência direta, 111 7.4. As críticas de Kripke e a teoria causal da referência, 113 7.5. Putnam e as teorias duais, 115 7 .6. Kaplan e os demonstrativos, 117 7. 7. Quebra-cabeças da crença, neofregeanos e neo-russellianos, 119 Bibliografia essencial, 121 Parte III - Linguagem e ação, 123 8. Sentido, tom, força: uma introdução, 125 8.1. A distinção sentido/força e o problema da compreensão, 125 8.2. Sentido, tom e inferência, 127 8.3. Sentido, tom e intenção, 128 8.4. Sentido e contexto de uso: o porquê do "terceiro reino", 130 Bibliografia essencial, 133 9. Significado e uso: o segundo Wittgenstein, 134 9 .1. Princípio do contexto e virada pragmática, 134 9.2. Jogo de linguagem e significado como uso, 136 9.3. Compreender e seguir uma regra, 139 9.4. Mal-entendidos lingüísticos: empírico e gramatical, 143 9.5. Semelhanças de família: uma teoria dos conceitos, 145 270 Índice geral
'>.t,. l'rolólipos, cslcrcúlipos e divisão do trabalho lingi.iisticu, 147 Bibliografia essencial, 150 1O. Convenção e atos lingüísticos: Austin e Searle, 152 1O. 1. A cultura filosófica de Cambridge e de Oxford, 152 10.2. Os performativos, os constatativos e o limite do critério neopositivista de significação, 153 10.3. Condições de verdade e condições de felicidade, 155 10.4. A teoria dos atos lingüísticos, 158 10.5. Atos lingüísticos indiretos e classificação dos atos, 160 10.6. Atos lingüísticos: problemas de formalização, 162 Bibliografia essencial, 163 11. Intenção e conversação: Grice, cortesia e pertinência, 165 11.1. Significado e intenção: o significado do falante, 165 11.2. Lógica e conversação: o princípio de cooperação, 167 11.3. Máximas e implicação conversacional, 170 11.4. Implicação generalizada, 173 11.5. Pressuposição, pertinência, cortesia, 175 Bibliografia essencial, 179 Parte IV - Linguagem e comunicação, 181 12. Sentido, contexto e o problema do holismo: uma introdução, 183 12.1. O significado não é uma imagem mental, 183 12.2. Centralidade do enunciado e ontologia analítica, 185 12.3. A ampliação do princípio do contexto: o holismo, 187 Bibliografia essencial, 189 13. Holismo e tradução radical: Quine, 190 13.1. Os dois dogmas do empirismo, 190 13.2. Tradução radical e indeterminação, 197 13.3. Comportamentalismo quineano, 199 13.4. Opaco/transparente e os problemas da modalidade, 202 Bibliografia essencial, 206 14. Interpretação e verdade: Davidson, 207 14.1. Tradução, interpre_tação e teoria _do significado, 207 14.2. O terceiro dogma do empirismo, 210 14.3. O holismo semântico e o problema da comunicação, 211 14.4. Uma visão alternativa da comunicação, 213 14.5. Contextos de interpretação, 215 Bibliografia essencial, 216
Índice geral 2 71
Parte V -- Linguagem entre norma e natureza, 217 15. Sentido e justificação: uma introdução, 219 15.1. O problema da justificação, 219 15.2. A priori, a posteriori e o espaço das razões, 221 15.3. Pensamento e pensar, 223 Bibliografia essencial, 226 16. Significado e inferência: Dummett, Brandom, 227 16.1. Papel conceituai, 227 16.2. Significado como uso: Wittgenstein e Gentzen, 228 16.3. Significado e justificação: Michael Dummett, 231 16.4. Direitos, compromissos e prática social: Robert Brandam, 237 16.5. Racionalidade argumentativa e responsabilidade, 240 Bibliografia essencial, 242 17. Significado e cognição: inteligência artificial, Fodor, Marconi, 244 17 .1. Inteligência artificial e semânticas processuais, 244 17 .2. Funcionalismo, significado e cálculo, 249 17.3. Semântica naturalizada: Fodor, 252 17.4. A linguagem do pensamento, 254 17.5. Teoria da compreensão e competência léxica, 256 Bibliografia essencial, 259 Bibliografia geral, 261 Índice onomástico, 263 Índice temático, 265
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