ENI PUCCINELLI ORLANDI
IN T E R PR E T A Ç Ã O Autoria, leitura e efeitos do trabalho simbólico 2a Edição
EDITORA VOZES Petrópolis
1998
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Orlandi, Eni Puccinelli, 1942Interpretação; Interpretação; autoria, leitura e efeitos do trabalho simbólico / Eni Puccinelli Orlandi. - Petrópolis, RJ: Vozes, 1996 ISBN 85-326-1606-2 1. Análise do discurso 2. Ciência - Filosofia 3. Ciências Sociais - Filosofia 4. Hermenêutica 5. Linguagem - Filoso fia I. Título.
95-5076
CDD-121.68
índices para catálogo sistemático: 1. Interpretação: Interpretação: Epistemologia: Filosofia 121.68
S U M Á R IO
Apresentação, 9 1. O trabalho da interpretação, 11 2. Entremeio e discurso, 23 3. Discurso: fato, dado, dado, exterioridade, exterioridade, 36 4. Ordem e organização na língua, 45 5. Texto e discurso, discurso, 52 6. Autoria e interpretação, interpretação, 63 7. Dispositivos da interpretação, interpretação, 79 8. Análise, 99 9. Fé e opressão, opressão, 101 10. O teatro da identidade, 114 11. Leitura e discurso científico, científico, 132 Conclusão: Por uma nova noção de ideologia, 144 Bibiografia, 148
3. DISCURSO: F A T O , D A D O , E X T E R IO R ID A D E
Um deslocamento fundamental, no estudo da lingua gem, permite passar do dado para o fato. Este deslocamen to, por sua vez, nos coloca no campo do acontecimento lingüístico e do funcionamento discursivo. Sem comentar mais extensamente esta distinção, tal como ela se explicita para Milner (1989) podemos dizer que, para a análise de discurso, este deslocamento significa a possibilidade de se trabalhar o processo de produção da linguagem e não apenas seus produtos. Se pensamos agora a importância desse modo de se considerarem os procedimentos da análise discursiva, de vemos lembrar que a epistemologia que interessa à análise de discurso não se alinha no paradigma da epistemologia positivista mas no da histórica, e, em relação a esta, no da descontinuidade, suprimindo, com efeito, a separação en tre objeto/sujeito, exterioridade/interioridade, concreto/abstrato, origem/filiação, evolução/produção, etc. E desse modo que a concepção de fato de linguagem, na análise de discurso, traz para a reflexão a questão da historicidade. É no domínio desta questão da historicidade que vamos inscrever esta rápida reflexão sobre a questão dos dados. Resta-nos lembrar que a análise de discurso trabalha com a materialidade da linguagem, considerando-a em seu
duplo aspecto: o lingüístico e o histórico, enquanto indis sociáveis no processo de produção do sujeito do discurso e dos sentidos que (o) significam. O que me permite dizer que o sujeito é um lugar de significação historicamente constituído. Na realidade, estou trabalhando aqui, sem explicitar, uma distinção saussureana, a que distingue forma/substância, distinção esta que compõe o quadro de referência de L. Hjelmslev (1971), que vai desenvolver esta separação, dotando-a de atribuições teóricas particularizantes, o que nos permite passar para uma outra relação, desta vez entre forma abstrata, forma material e substância. Não se trata, no entanto, da mera utilização mas da leitura dessa distinção em um domínio conceptual outro, o do materialismo histórico, ao qual se filia a análise de discurso da Escola Francesa. Como diz D. Lecourt (1978), em relação a Bachelard, trata-se de um tipo de leitura - a leitura materialista - e é preciso saber que esta leitura tem a vantagem de dar atualidade à epistemologia bachelardiana e de preservá-la de "todos esses vampiros - espiritualis tas e positivistas - contra os quais ela se constituiu laboriosamente". É desse (neopositivismo) que queremos preservar a forma lingüística quando a lemos na análise de discurso, sob o modo da forma material. Percorrendo o caminho que vai redefinir o político, pela sua dimensão linguageira, a análise de discurso adquire seu sentido pleno, concebendo, por outro lado, a própria língua no processo histórico-social, e colocando o sujeito e o sentido como partes desse processo. ^ Mas há um certo sentido em que se pode dizer que existem dados em análise de discurso. O que seriam eles? São os objetos de explicitação de que se serve a teoria discursiva para se construir como tal: os dados são os discursos. Os discursos, por sua vez, não são objetos
empíricos, são efeitos de sentidos entre locutores, sendo análise e teoria inseparáveis. Como diz D. Maldidier (1989), "a máquina discursiva (M. Pêcheux utilizou esta expressão para designar seu dispositivo de 1969) estabelecia a teoria de um objeto novo (...) a relação discurso/corpus contribuía para instituir um objeto novo, irredutível ao enunciado longo (ou seguido) dos lingüistas assim como também não redutível ao texto, literário ou não, da tradição. O discurso, sempre construído a partir de hipóteses histórico-sociais, não pode se confun dir nem com a evidência dos dados empíricos, nem com o texto. Quanto ao fechamento do corpus discursivo, ela (a máquina discursiva) não reproduz o fechamento estrutural do texto senão para tentar apreender a relação com um exterior. Este discurso representava, no campo da lingüística, um verdadeiro deslocamento". Este objeto novo constrói uma nova disciplina, a análise de discurso, que vai constituir um acontecimento na "his tória das práticas da lingüística e da história dos questiona mentos dos marxistas sobre a linguagem" (D. Maldidier, idem). E assim que o objeto discurso é pensado ao mesmo tempo que o dispositivo para a análise, dirá ainda D. Maldidier (ibidem). Com efeito, para a análise de discurso, não existem dados enquanto tal, uma vez que eles resultam já de uma construção, de um gesto teórico. Aí entra a questão da interpretação, o que torna esta discussão mais interessante. A questão da interpretação, por sua vez, leva à questão do real e da exterioridade. Começo por dizer que a exterioridade não tem a objetividade empírica do "fora" da linguagem, pois, na análise de discurso, a exterioridade é suprimida para intervir como tal na textualidade. É isto que chamamos discursiviclade. Trata-se portanto de pensar a exterioridade discursi-
va. É no discurso que o homem produz a realidade com a qual ele está em relação. A noção que trabalha a exterioridade discursiva (ou exterioridade constitutiva) é a de interdiscurso. O que define o interdiscurso é a sua objetividade material contra ditória, objetividade material essa que, como diz M. Pêcheux (1988), reside no fato de que algo fala sempre antes, em outro lugar e independentemente, isto é, sob a domi nação do complexo das formações ideológicas. É isto que fornece a cada sujeito "a sua 'realidade' enquanto sistema de evidências e de significações percebidas-aceitas-experimentadas". Aí se explicita o processo de constituição do discurso: a memória, o domínio do saber, os outros dizeres já ditos ou possíveis que garantem a formulação (presentíficação) do dizer, sua sustentação. Garantia de legibilidade e de interpretação: para que nossas palavras façam um sentido é preciso que (já) signifiquem. Essa impessoalidade do sentido, sua impressão referencial, resulta do efeito de exterioridade: o sentido lá. A objetividade material contra ditória. O efeito de exterioridade, por sua vez, é que compõe, ou torna possível, a nosso ver, a relação discursiva real/realidade. Sendo o real função das determinações históricas que constituem as condições de produção materiais e a realidade a relação imaginária dos sujeitos com essas de terminações, tal como elas se apresentam no discurso, ou seja, num processo de significação para o sujeito, constituí do (ideologicamente) pelos esquecimentos: a) o esqueci mento número 1, o que resulta na sensação do sujeito como origem e b) o esquecimento número 2, o que produz a impressão da realidade do pensamento (cf. Pêcheux, 1975). Por aí é que entendemos numa noção discursiva de ideologia o fato de que ela não é consciente: ela é efeito
da relação do sujeito com a língua e com a história na sua necessidade conjunta, na sua materialidade. Ou seja, só podemos ter língua e história conjugadas pelo efeito ideo lógico, pela consideração de sua materialidade específica, ou seja, pela referência ao (inter)discurso. Em outras pala vras, o discurso é essa conjugação necessária da língua com a história, produzindo a impressão de realidade. O gesto da formulação é o gesto ideológico mínimo, o que consu ma o imaginário no sujeito (a sua relação imaginária com a realidade) em que o assujeitamento "se realiza precisa mente no sujeito sob a forma da autonomia" (M. Pêcheux, 1988). A necessidade de compreender isto cientificamente produz, nos anos sessenta, um movimento de reflexão em torno da noção de leitura/interpretação. Para compreender este movimento é preciso com preender o que passa a significar o gesto de leitura, ou, em outras palavras, o que é ler nessa conjuntura teórica. A leitura ganha sentidos que apontam para a formação de um novo espaço disciplinar particular no conjunto das disciplinas praticadas no domínio cias ciências humanas e sociais. Este espaço, a nosso ver, antecipa a necessidade e a localização da análise de discurso, na confluência do que não é da lingüística e do que não é específico às ciências das formações sociais, embora na necessidade de sua inter-relação. No interior do estruturalismo as reflexões, para um conjunto de autores, se sustentam na elaboração da expli citação da natureza da leitura. São autores que, ao colocar em suspenso a noção de leitura, estão, ao mesmo tempo, produzindo um deslocamento em relação aos paradigmas científicos e uma refração na sua filiação aos autores que "lêem". Vejamos alguns deles.
Althusser, na retomada de Marx (ler O capital), ou Lacan, na leitura de Freud, mostram que a "leitura" é na realidade a construção de um dispositivo teórico (uma teoria) que tem como efeito aprofundar, radicalizar - numa postura que separa revisionistas e não-revisionistas - o dito no texto re-significado (interpretado). Em Barthes, a leitura aparece fundamentalmente como uma (re)escritura. E em Foucault, a leitura é a arqueologia (passagem do documento a monumento). Esses movimentos da ciência que recolocam a questão da leitura, mostrando a sua não-transparência, mostram também que a relação (intertextualidade) entre os diferen tes autores, que vão constituindo a ciência, produz a neces sidade de uma re-significação, apresentando-se a leitura como aparato teórico. Isto traz à consideração uma reavaliação da noção de interpretação. Daí decorrem as implicações disciplinares variadas da ordem da interpretação na delimitação das disciplinas científicas: na história (nova), na psicologia, na filosofia, na epistemologia (história da ciência), além de uma nova necessidade de compreender a própria noção de "arquivo" (que torna complexa a relação com o "corpus"). Daí também aparece um espaço determinado que mostra a necessidade de uma região específica para uma disciplina da interpretação que se definisse nessa nova base. Esta disciplina é a análise de discurso. A análise de discurso confronta-se com a noção tradi cional (hermenêutica) da interpretação e produz um deslo camento no que é ler o arquivo hoje (M. Pêcheux, 1982). Ela vai recusar o conteudismo (a separação forma/conteúdo) e, insistindo sobre o fato de que o sentido é produzido, vai restituir a opacidade, a espessura semântica, aos objetos simbólicos: a compreensão, na análise de discurso, é polí-
tia), Ou, como diz M. Pêcheux (1982b), a análise de
discurso se confronta com a necessidade de abrir conjun tamente a problemática do simbólico e do político. Ela desterritorializa, assim, a noção de leitura pela noção mes ma de discurso como efeito de sentidos entre locutores. Ao mesmo tempo, a análise de discurso desloca a noção de instrumento (para a ciência e para a linguagem) o que resulta em outra compreensão do que se tem tratado como interdisciplinaridade, referida à análise de discurso. Entre o espaço da lingüística (ciência positiva da linguagem) e o das ciências das formações sociais (ciências positivas da sociedade), como vimos, não há uma relação comple mentar mas contraditória. A análise de discurso se constitui assim nesse espaço, nesse entremeio, como diria Pêcheux, trabalhando suas contradições. Com efeito, a análise de discurso não vem completar a relação entre a lingüística e as ciências das formações sociais (ela não costura o entremeio entre língua e história), ela trabalha, isso sim, as contradições emergentes da pró pria constituição desses dois espaços disciplinares; ela trabalha a necessidade que relaciona essas disciplinas - a lingüística e as ciências sociais - enquanto territórios distin tos. Por isso, como dissemos, não se pode inscrever a análise de discurso no campo da interdisciplinaridade, tal como esta vem sendo definida. Desse modo, porque estabelece essa relação no espa ço das contradições, a análise de discurso não herda dessas ciências positivas a noção de dado. Ao contrário, a própria existência da análise de discurso, nesse entremeio, atesta mais essa contradição: a que regula a relação entre proces sos e produtos, criando a ilusão de que é possível separá-los e trabalhar apenas os produtos - os dados - em si, autonomamente. Ela vai contestar que, pela observação dos dados empíricos, se possa atingir diretamente a interpretação de
seus sentidos, somando-se o lingüístico ao social, ao histó rico, etc. Finalmente, é importante lembrar que a noção de dado, além das determinações teóricas e disciplinares que a configuram, tal como acabamos de expor, também sofre, no campo específico da análise de linguagem, uma deter minação histórica que deriva do próprio modo como se pratica a atividade científica. Refiro-me aqui à importância fundamental do Natura lismo, no século XIX, na construção das formas da cientificidade, na observação e classificação de dados, sobretudo na atividade de pesquisa de campo no domínio da lingua gem. O discurso naturalista, principalmente no século XIX, tendo no centro a noção de determinação, contribui para a produção de uma aparente estabilidade sem equívocos e unívoca sobre a realidade brasileira, seja ela natural, social ou política (cf. Orlandi, 1992). Entre os mecanismos de produção dessa estabilidade estão os responsáveis pela observação científica da nossa fauna, da nossa flora, de nosso relevo, e da nossa língua. Entre os efeitos de determinação que constroem a objetividade do nosso país estão os que descrevem as línguas indígenas aqui encontradas e constroem uma "fei ção" para a língua portuguesa do Brasil. O trabalho dos naturalistas é que vai instituir os mode los da coleta dos dados (elemento de verificação): colhemse os dados da língua como os das plantas e das espécies animais, ou seja, "naturalmente". Como resultado dessa atividade, constroem-se os inventários, os bancos de dados. Essa é uma marca que fica e que tem administrado a pesquisa de campo da língua no Brasil, desde então: a sistematicidade é um acervo sem história. As línguas brasi
leiras (e elas são muitas) são espécies naturais. Como os índios. A noção de "dado", como objeto encontrado natural mente na língua, se reforça cientificamente pela sustenta ção em um quadro teórico de referência - o do Naturalismo - que é universal mas que ganha contornos específicos na nossa história de país colonizado. São essas, em geral, as considerações que temos a fazer sobre a noção de dado. Como pudemos ver, essa noção não tem um valor operatório positivo, porque em análise de discurso não se trabalha com as evidências, mas com o processo de produção das evidências. O que, em última instância, significa dizer que a noção de dado é, ela própria, um efeito ideológico do qual a análise de discurso procura desconstruir a evidência, explicitando seus modos de pro dução. Para tal, como vimos, é a própria noção de real e a de interpretação que são colocadas em questão. Redefinindo a relação do analista com o dado, com a interpretação, com o real, com a realidade, a noção de discurso promove confrontos teóricos que resultam na redefinição do político, do histórico, da ideologia, do social e do lingüístico. É, finalmente, isso que define a necessidade de uma nova disciplina e a instituição de um novo objeto. É a noção de discurso, afinal, que vai tornar possível, na análise da linguagem, qualquer que seja seu domínio, as reflexões sobre o sujeito e a situação. Na abertura produzida pela análise de discurso, e em especial pela reflexão de M. Pêcheux, o discurso é uma noção fundadora.
4 . O R D E M E O R G A N I Z A Ç A O N A L ÍN G U A
Há uma diferença necessária entre ordem e organização, quando se passa a um campo de estudos da linguagem que reconhece a contribuição específica da noção de discurso. Essa diferença, basicamente, separa uma tomada logicista ou sociologista da linguagem (ou, em outros ter mos, empiricista ou idealista) de uma perspectiva discursi va, ou seja, aquela em que se reconhece a materialidade da língua e a da história. Começaríamos, então, por dizer que a ordem para nós não é o ordenamento imposto, nem a organização enquan to tal, mas a forma material. Interessa ao analista não a classificação mas o funcionamento. Em nosso caso, especialmente, no estudo da semântica discursiva, o que nos interessa é a ordem da língua, enquan to sistema significante material, e a da história, enquanto materialidade simbólica. Reconhecemos, desse modo, uma relação entre duas ordens: a da língua, tal como a enuncia mos, e a do mundo para o homem, sob o modo da ordem institucional (social) tomada pela história. O lugar de obser vação é a ordem do discurso. Parte-se do princípio de que há um real da língua e um real da história, e o trabalho do analista é justamente com preender a relação entre essas duas ordens de real. Em nossos estudos, bem cedo nos ficou claro - na medida em que o analista de discurso tem uma postura
crítica em relação ao empirismo e a sua contraparte que é o formalismo - que não era a organização da língua que nos interessava (pensada na lingüística sob o modo da oposição ou da regra) mas a sua ordem: ordem simbólica, ordem do discurso. Na análise, não é a relação entre, por exemplo, sujeito e predicado (SN e SV) que é relevante, mas o que essa organização sintática pode nos fazer compreender dos mecanismos de produção de sentidos (lingüístico-históricos) que aí estão funcionando em termos da ordem significante. Para nos instalarmos nesse campo da reflexão, dois deslocamentos se impõem: a) a passagem para a forma material, b) a necessidade de se considerar que a língua significa porque a história intervém, o que resulta em pensar que o sentido é uma relação determinada do sujeito com a história. Assim, o gesto de interpretação é o lugar em que se tem a relação do sujeito com a língua. Esta é a marca da "subjetivação", o traço da relação da língua com a exterioridade. Se a noção de estrutura nos permite transpor o limiar do conteudismo, ela não nos basta pois nos faz estacionar na idéia de organização, de arranjo, de combinatória. É preciso uma outra noção. Esta noção, a de materialidade, nos leva às fronteiras da língua e nos faz chegar à conside ração da ordem simbólica, incluindo nela a história e a ideologia. Foi, sem dúvida, a crítica feita ao conteudismo - en quanto perspectiva teórica (filosófica) que mantinha, ape sar do estruturalismo (ou justamente por ele), a separação estanque entre forma/conteúdo - que nos abriu a possibi lidade de: a) de um lado, transpor a noção sociologista de ideologia e, b) pensar não a oposição entre forma e con-
teúdo, mas trabalhar com a noção de forma material que se distingue da forma abstrata e considera, ao mesmo tempo, forma e conteúdo enquanto materialidade. Em termos analíticos, isso resulta em dizer que a instân cia de constituição da linguagem precede a da formulação, a dos processos de produção determina a dos produtos, o fato de linguagem preside a consideração dos dados. Mais do que isso, a relação entre estrutura e aconteci mento, colocando a interpretação como parte irrecusável da relação do homem com a língua e com a história (M. Pêcheux, 1983), não a inscreve no entanto no campo da manipulação, da intenção, da mera vontade. Algo que está aquém e além do homem, essa relação não se dá no âmbito de seu controle. Essa é uma relação que o constitui enquan to tal. Ao dizer que o inconsciente e a ideologia estão materialmente ligados, M. Pêcheux (1975) coloca a necessidade de uma noção - o discurso - em que isto possa ser considerado, instituindo ao mesmo tempo a especificidade do campo teórico estabelecido pela noção de materialida de. Se em Milner (1976) a materialidade da língua é a garantia de se ter acesso à sua ordem, Pêcheux mostrará a insuficiência desta postura se não se tiver em conta a materialidade da história - para Milner apenas um efeito ideológico. Assim procedendo, Pêcheux abre um espaço entre o formalismo e o sociologismo, duas reduções, a meu ver, que incidem sobre a língua, sobre a sociedade e, conseqüentemente, sobre o sujeito e o sentido. Ultrapas sando desse modo a organização (regra e sistematicidade), podemos chegar à ordem (funcionamento, falha) da língua e da história (equívoco, interpretação), ao mesmo tempo em que não pensamos a unidade em relação à variedade (organização) mas como referida à posição do. sujeito (des(cntramento). Se algo pode nos esclarecer esta postura,
basta dizermos que, ao contrário da completude do sistema (abstrato), a ordem significante é capaz de equívoco, de deslize, de falha, sem perder seu caráter de unidade, de totalidade. A ideologia, aqui, não se define como conjunto de representações, nem muito menos como ocultação da realidade. Ela é uma prática significativa. Necessidade da interpretação, a ideologia não é consciente: ela é efeito da relação do sujeito com a língua e com a história em sua relação necessária, para que se signifique. O sujeito, por sua vez, é lugar historicamente (interdiscurso) constituído de significação. Se a relação com o inconsciente é uma das dimensões do equívoco que constituem o sujeito, sua contraparte está em que o equívoco que toca a história (a necessidade de interpretação) é o que constitui a ideologia. O acesso a esse modo do equívoco - que é a ideologia - pode ser traba lhado pela noção de interpelação, constitutiva do sujeito. Faz parte do mecanismo elementar da ideologia, que é a interpelação do indivíduo em sujeito, o apagamento dessa opacidade que é a inscrição da língua na história para que ela signifique: o sujeito tem de inserir seu dizer no repetível (interdiscurso, memória discursiva) para que seja interpretável. Esse é também um dos aspectos da incompletude e da abertura do simbólico: esse dizer que é uma coisa aberta, mas dentro da história. No efeito da transparência, o sentido aparece como estando lá, evidente. Nesse domínio discursivo, não se está no sujeito psico lógico empiricamente coincidente consigo mesmo. O su jeito é uma "posição" entre outras. O modo pelo qual ele se constitui em sujeito, ou seja, o modo pelo qual ele se constitui enquanto posição não lhe é acessível. Esse é o efeito ideológico elementar. Correlatamente, a linguagem também não é transparente, nem o sentido evidente.
Se, de um lado, na língua, tem-se a forma empírica ("pata"), a forma abstrata (p/b) e a forma material (lingüísticohistórica, ou seja, discursiva), em relação ao sujeito tem-se, em contrapartida, o sujeito empírico (sociológico), o sujeito abs trato (ideal) e o que chamamos de a "posição" sujeito. Ao se passar da instância da organização para a da ordem, se passa da oposição empírico/abstrato para a instância da forma material em que o sentido não é con teúdo, a história não é contexto e o sujeito não é origem de si. Expliquemo-nos: o que interessa ao analista de discur so não é a organização (forma empírica ou abstrata) mas a ordem do discurso (forma material) em que o sujeito se define pela sua relação com um sistema significante inves tido de sentidos, sua corporeidade, sua espessura material, sua historicidade. É o sujeito significante, o sujeito histórico (material). Esse sujeito que se define como "posição" é um sujeito que se produz entre diferentes discursos, numa relação regrada com a memória do dizer (o interdiscurso), definindo-se em função de uma formação discursiva na relação com as demais. Nessa perspectiva, o analista de discurso vai então trabalhar com os movimentos (gestos) de interpretação do sujeito (sua posição), na determinação da história, tomando o discurso como efeito de sentidos entre locutores. São, como dissemos, duas ordens que lhe interessam: a da língua e a da história, em sua relação. Que constituem, em seu conjunto e funcionamento, a ordem do discurso. Em sua materialidade. Para ilustrar essa relação entre organização e ordem, e o que isto acarreta para a consideração do sujeito face à linguagem, vamos tomar a argumentação. Começaríamos por dizer que a argumentação, em análi se de discurso, é vista no processo histórico em que as posições dos sujeitos são constituídas. Desse modo, a
instância da formulação - em que entram as intenções - já está determinada pelo jogo das diferentes posições do sujeito em relação às formações discursivas, jogo ao qual ele não tem acesso direto. Ou seja, as filiações ideológicas já estão definidas e o jogo da argumentação não afeta as posições dos sujeitos. Em outros termos, podemos dizer que, no nível da formulação, o sujeito já tem sua posição determinada e ele já está sob o efeito da ilusão subjetiva, funcionando ao nível imaginário, afetado pela vontade da verdade, pelas suas intenções, pelas evidências do sentido e pela ilusão refe rencial (a da literalidade). Além disso, também os argumentos (por exemplo, falar a favor dos pobres) são produzidos pelos discursos vigen tes, em suas relações historicamente (politicamente, ideo logicamente) determinadas. Os argumentos derivam das relações de discursos. As intenções do sujeito não mudam nada em relação a isso. Elas terão, no entanto, um papel determinante a nível da formulação, que funciona pelas projeções imaginárias. Em suma, nesse nível, o analista trabalha com a organi zação. Para atingir o que constitui a ordem signiíicante, ele tem que considerar o que esta organização indica em relação ao real, seja da língua seja da história. Só assim atravessará a instância do imaginário para apreender, no funcionamento discursivo, o modo de constituição do sujeito e dos sentidos. Esta passagem da organização para a ordem nem é direta, nem automática e se faz a partir de princípios teóricos fundamentais, como a da dispersão (do sujeito), o da não evidência (dos sentidos). Daí nossa proposta de se trabalhar com os gestos de interpretação. A questão seria então a de compreender que relações de sentidos estão determinando a necessidade desses ges
tos de interpretação? Que formações discursivas estão aí em jogo? Mesmo sem o saber, por que o sujeito imprime esta e não aquela direção à argumentação? De que natu reza são seus argumentos? Essas questões podem constituir um percurso para a análise, tomando-se então a organização da língua, a des crição dessa organização, como lugar de passagem possí vel para explicitar mecanismos de funcionamento discursivos que nos levam a compreender fatos da ordem do discurso. Nas análises que apresentaremos mais adiante ficará mais clara essa distinção entre ordem e organização. De todo modo, é pela consideração da forma material - em que o simbólico e o histórico se articulam, os sentidos se produzindo com ou sem o controle do sujeito - que se pode atingir a ordem do discurso.
5. T E X T O E D IS C U R S O
Eu começaria por dizer que o texto é uma "peça"6 de linguagem, uma peça que representa uma unidade signifi cativa. Não hesitaria em começar a reflexão partindo de M.A.K. Halliday na enfatização de ser o texto a unidade primeira. Para ser texto, diz ele (1976), é preciso ter textualidade. A textualidade, por sua vez, é função da relação do texto consigo mesmo e com a exterioridade. Mas, embora as inversões que ele propõe (o texto precede as sentenças; o sentido precede o dizer, etc.) sejam muito a meu gosto, a exterioridade não tem em Halliday nem a mesma nature za, nem o mesmo estatuto que tem na análise de discurso (E. Orlandi, 1992). Passando, pois, para a minha filiação teórica específica, eu diria que as palavras não significam em si. É o texto que significa. Quando uma palavra significa é porque ela tem textua lidade, ou seja, porque a sua interpretação deriva de um discurso que a sustenta, que a provê de realidade significa tiva.
6 "Peça" aqui está mais para "peça de teatro" que para "engenhoca", embora a ambigüidade seja produtiva. .
É assim que, na compreensão do que é texto, podemos entender a relação com o interdiscurso, a relação com os sentidos (os mesmos e os outros). Mas posso chegar mais perto daquilo que é minha proposta na análise da iinguagem: o texto é um objeto histórico. Histórico aí não tem o sentido de ser o texto um documento mas discurso. Assim, melhor seria dizer: o texto é um objeto lingüístico-histórico. A partir dessa definição, tenho procurado entender o que é o texto para a análise de discurso francesa. Acho interessante aproveitar esta oportunidade para explicitar melhor o que é o (linguístico) histórico para o analista de discurso. Afirmando que seria um erro considerar a análise de discurso, tai como ele a concebe, simplesmente como o exercício de uma nova lingüística livre dos preconceitos da lingüística "tradicional", M. Pêcheux (1975) dirá que o discurso introduz um descentramento na própria linguísti ca. Esta mudança, portanto, não reside, como ele diz (idem), num outro modo de abordar seu objeto, dentro de novas necessidades impostas pela pesquisa, etc. A especi ficidade da análise de discurso está em cjue o objeto, a propósito do qual ela produz seu "resultado", não é um objeto iingüístico mas um objeto sócio-histórico onde o linguístico intervém como pressuposto. Há, pois, diz ainda ele (ibidcrn ), um efeito de separação-clivagem entre a prática lingüística e a análise cle discurso. Segundo Pêcheux é, pois, abuso de linguagem o uso do termo "lingüística do discurso" para designar, de fato, uma lingüística dos textos quando ela ultrapassa o domínio da análise da frase, muitas vezes recoberta, por outro lado, pela expressão "lingüística da fala". A análise concreta de uma situação concreta pressupõe que a materialidade discursiva em urna forma ção ideológica seja concebida corno uma articulação de
processos (Pêcheux, ibidem). A este respeito, Pêcheux remete à observação de P. Fiala e C. Ricloux (1973, p. 45): o texto - diriamos, o discurso - não é urn conjunto de enunciados portadores de urna e até mesmo várias signifi cações. E antes um processo que se desenvolve de múlti plas formas, em determinadas situações sociais. Se estas considerações nos colocam já em situação de compreender a natureza do social, que é levado em conta na análise de discurso, outras observações se impõem a fim de tornar mais preciso esse campo de distinções. Essas observações dizem respeito ao fato de que, na análise de discurso da Escola Francesa, tenho preferido talar não em história mas em historiei d ade do texto. Ao longo de meu trabalho tenho colocado já repetidas vezes que um texto, do ponto de vista de sua apresentação empírica, é um objeto com começo, meio e fim, mas que, se o considerarmos como discurso, reinstala-se imediata mente sua incompletude. Dito de outra forma, o texto, visto na perspectiva do discurso, não é uma unidade fechada embora, como unidade de análise, ele possa ser considera do uma unidade inteira - pois ele tem relação com outros textos (existentes, possíveis ou imaginários), com suas con dições de produção (os sujeitos e a situação), com o que chamamos sua exterioridade constitutiva (o interdiscurso: a memória do dizer). História e historicidade A AD é um marco na história das idéias lingüísticas em uma mudança que toca essa distinção entre história e historicidade que estamos propondo para a reflexão. No século XIX, a noção de história relacionada à língua a atomizava, vendo nessa relação uma dimensão temporal expressa na forma cia cronologia e da evolução.
A fundação da lingüística, com a noção de língua como sistema, já não pode acolhei esta concepção de história e tampouco a de língua como seu produto. São várias as tentativas de ajuste, de adaptação através da elaboração de noções como a pancronia, a relação temporal entre diferentes estados do sistema, etc. - mas elas acabam sempre por colocar a história como algo exterior, complementar ou em relação de causa e efeito com o sistema linguístico. Com a AD - e isto que estamos chamando historjcidade - a relação passa a ser entendida como constitutiva. Desse modo, se se pode pensar uma temporal idade, essa é uma temporaíidade interna, ou melhor, uma relação com a exterioridade tal como ela se inscreve no próprio texto e não como algo lá fora, refletido nele. Não se parte cia história para o texto - avatar da análise de conteúdo se parte do texto enquanto materialidade histórica. A temporalidade (na relação sujeito/sentido) é a temporalidade do texto. -i
Não se trata, assim, de trabalhar a historicidade (refleti da) no texto mas a historicidade do texto, isto é, trata-se de compreender como a matéria textual produz sentidos. São, pois, os meandros do texto, o seu acontecimento como discurso, a sua "mise-en-oeuvre", como dizem os franceses, ou, como podemos dizer, o trabalho dos senti dos nele, que chamamos historicidade. Claro que há uma ligação entre a história lá fora e a historicidade do texto (a trama de sentidos nele), mas ela não é nem direta, nem automática, nem de causa e efeito, e nem se dá termo-a-termo. É, pois, preciso admitir que esta relação é mais complexa do que pretendem as teorias da literalidade e que deixam pensar que a análise de discurso, que a análise de discurso francesa pratica, vê nos textos os "conteúdos" da história.
Nesse sentido é que tenho afirmado que, entre a evidência empírica e a certeza do cálculo formal, há uma região menos visível, menos óbvia, mas igualmente relevan te, que é a da materialidade histórica da linguagem. O texto pode ser um bom lugar para se refletir sobre isso. Pela análise da historicidade do texto, isto é, do seu modo de produzir sentidos, podemos falar que um texto pode ser - e na maioria das vezes o é efetivamente atravessado por várias formações discursivas. É nesse sen tido que falei - mesmo antes de conhecer os trabalhos de J. Authier (1984) - em heterogeneidade do discurso (E. Orlandi e E. Guimarães, 1988). Nesse trabalho já propúnha mos que se considerasse a relação proporcional texto : discurso :: autor : sujeito, como uma relação que se fazia da unidade para a dispersão (e vice-versa) 7, no sentido de produzir urna relação consistente entre linguagem e história. Também em minha distinção entre "inteligibilidade, interpretabilidade e compreensão" (E. Orlandi, 1988, p. 101 ) está dito que a compreensão é a apreensão das várias possibilidades de um texto. Para compreender, o leitor deve se relacionar com os diferentes processos de significação que acontecem no texto. Esses processos, por sua vez, são função da historicidade, ou seja, da história do(s) sujeito(s) e do(s) sentido(s) do texto enquanto discurso. Sem esque cer que o discurso é estrutura e acontecimento (M. Pêcheux, 1983), o objetivo da AD é compreender como um texto funciona, como ele produz sentidos, sendo ele concebido enquanto objeto lingüístico-histórico. Eis outra via possível de se pensar a historicidade na perspectiva em que a estamos colocando: história do sujeito e do sentido. Inseparáveis: ao produzir sentido, o
7. Fm lermos formais deve-se ler - (: = está-para) e (:: = assim como) - assim: o sujeito está-para o autor assim como o discurso está-para o texto.
sujeito se produz, ou melhor, o sujeito se produz, produzin do sentido. É esta a dimensão histórica do sujeito - seu acontecimento simbólico - já que não há sentido possível sem história, pois é a história que provê a linguagem de sentido, ou melhor, de sentidos8 Daí o equívoco como condição do significar, sendo o mais importante deles o que cria a ilusão referencial, a da literalidade. Não se pode falar em anterioridade de sentido, seja na estrutura, seja no acontecimento. O sentido se dá no encontro dos dois, na sua relação. Daí uma das muitas maneiras de se entender a afirmação de Canguilhen (1980) de que o sentido é relação a. Pois bem, podemos assim dizer que a historicidade é função da necessidade do sentido no universo simbólico. O texto é justamente esse objeto (linguístico) histórico, se o pensamos como essa unidade que se estabelece pela historicidade enquanto unidade de sentido. Da análise
Não nos interessa, nessa perspectiva discursiva, a organização do texto. O que nos interessa é o que o texto organiza em sua discursividade, em relação à ordem da língua e a das coisas: a sua materialidade. Quando dizemos que o texto é uma unidade significa tiva, estamos afirmando a presença da ordem da língua, enquanto sistema significante. Mas não apenas isso. Referimos mais acima que a história "afeta" a linguagem de sentidos. Desse encontro resulta o texto, logo textualidade que é história, que faz sentido.
8. Tendo que traduzir isto para o inglês, para uma comunicação em Lancaster, alarguei minha compreensão desse processo já que a tradução exigia precisão: "The history provides language of senses".
Nossa proposta é a de trabalhar nesse lugar particular em que se encontram a ordem da língua e a ordem da história. A noção que resulta mais clara, na observação do encon tro dessas ordens na análise da linguagem, é a noção de "fato" que, por sua vez, deriva de um deslocamento produ zido sobre a noção de "dado". O dado tem sua organização, o fato se produz como um objeto da ordem do discurso (lingüístico-histórico). Na perspectiva dessa relação dado/fato, quando afirmo que um texto não é um documento mas um discurso, estou produzindo algo mais fundamental: estou instalando na consideração dos elementos submetidos à análise - no movimento contínuo entre descrição e interpretação - a memória. Em outras palavras, os "dados" não têm memória, são os "fatos" que nos conduzem à memória lingüística. Nos fatos temos a historicidade. Observar os fatos de lingua gem vem a ser considerá-los em sua historicidade, enquan to eles representam um lugar de entrada na memória da linguagem, sua sistematicidade, seu modo de funcionamen to. Em suma, olharmos o texto como fato, e não como um dado, é observarmos como ele, enquanto objeto simbólico, funciona. Como o texto é o fato de linguagem por excelência, os estudos que não tratam da textualidade (discursividade) não alcançam a relação com a memória da língua. Essas considerações nos permitem afirmar que o texto é uma unidade complexa - um todo que resulta de uma articulação - representando, assim, um conjunto de rela ções significativas individualizadas9 em uma unidade dis
9. "Inclividualização" deve ser entendida aqui no sentido em que Foucault diz que há diferentes formas de individualização dos sujeitos nas diferentes formações sociais.
cursiva. A individualização dessas relações é que pode ser apreciada através da noção de heterogeneidade (diferen ça), tal como a definimos mais acima. Isto é fundamental para a análise do texto. O texto é heterogêneo: 1) Quanto à natureza dos diferentes materiais simbóli cos: imagem, grafia, som, etc. 2) Quanto à natureza das linguagens: oral, escrita, científica, literária, narrativa, descrição, etc. 3) Quanto às posições do sujeito. 4) Além disso, podemos trabalhar essas diferenças em termos de formações discursivas (FD). Nesse caso, temos um princípio importante que é o de que um texto não corresponde a uma só FD, dada a heterogeneidade que o constitui, lembrando que toda FD é heterogênea em rela ção a si mesma (Courtine, 1982). Suponhamos que o analista esteja trabalhando com o discurso feminista e que ele o caracterize como a FDx, com sua configuração própria, onde x = feminista. Na análise, ele disporá de uma multiplicidade de textos que ele pode considerar no conjunto de textos que dizem respeito a FDx: o texto 1, o texto 2, o texto 3. Estes textos, por sua vez, estarão atravessados por diferentes FD: FDx mas também FDz, FDn, FDa, FDb, FDy, já que os textos são heterogêneos em relação às FD que os constituem. Podemos ter a seguinte configuração gráfica, pensando a heterogeneidade de cada texto, no conjunto dos textos submetidos à análise: A heterogeneidade do discurso feminista resulta, assim, do fato de que, no texto 1, a FDx convive com FDz e FDy, no texto 2, convive com FDa e FDb, e no texto 3, com FDz e FDn. Essas diferentes relações produzem efeitos de sen-
tidos diferentes, o que terá de ser levado em conta neste discurso. Portanto, na dispersão de textos que constituem um discurso, a relação com as FD em suas diferenças é elemen to fundamental que constitui o que estamos chamando de historicidade do texto. São vários os procedimentos de análise - como relação de parátrases, observação dos diferentes enunciados de ocorrência, relação com diferentes discursos, etc. - mas, qualquer que seja o procedimento, o ponto de partida é sempre o mesmo na relação entre unidade e dispersão: o postulado de que o sentido sempre pode ser outro e o sujeito (com suas intenções e objetivos) não tem o controle daquilo que está dizendo. Isto nos leva a duas ordens de conclusões também muito importantes: 1) Um sujeito não produz só um discurso, 2) Um discurso não é igual a um texto. Daí que a relação proposta na AD é: a) Remeter o texto ao discurso, b) Esclarecer as relações deste com as FD, pensando as relações destas com a ideologia. A AD está assim interessada no texto não como objeto final de sua explicação, mas como unidade que lhe permite ter acesso ao discurso. O trabalho do analista é percorrer a via pela qual a ordem do discurso se materializa na estruturação do texto. O texto, dissemos inúmeras vezes, é a unidade de análise afetada pelas condições de produção. O texto é, para o analista de discurso, o lugar da relação com a repre sentação física da linguagem: onde ela é som, letra, espaço, dimensão direcionada, tamanho. É o material bruto. Mas é
também espaço significante. E não é das questões menos interessantes a de procurar saber como se põe um discurso em texto. Dos resultados
Na perspectiva do discurso, o texto é lugar de jogo de sentidos, de trabalho da linguagem, de funcionamento da discursividade (cf. E. Orlandi, 1983, p. 204-205). Como toda peça de linguagem, como todo objeto simbólico, o texto é objeto de interpretação. Para a AD esta sua qualidade é crucial. É sua tarefa compreender como ele produz sentido e isto implica compreender tanto como os sentidos estão nele quanto como ele pode ser lido. Esta dimensão, eu diria ambígua, da historicidade do texto, mostra que o analista não toma o texto como o ponto de partida absoluto (dada a relação de sentidos) nem como ponto de chegada. Quando se trata de discurso, não temos origem e não temos unidade definitiva. Um texto é uma peça de lingua gem de um processo discursivo muito mais abrangente. Feita a análise, não é sobre o texto que falará o analista, mas sobre o discurso. Uma vez atingido o processo discur sivo que é o que faz o texto significar, o texto ou os textos particulares analisados desaparecem como referências es pecíficas para dar lugar à compreensão de todo um proces so discursivo do qual eles - e outros que nem mesmo conhecemos - são parte. Sem esquecer que todo dizer, discursivamente, é um deslocamento nas redes de filiações (históricas) de sentidos (Pêcheux, 1983). Não são, pois, só aqueles textos os responsáveis pelos processos de significação que se atinge. Eles tampouco estão relacionados só aos processos que eram objeto de sua análise. Desse modo, não só não existe relação termo-
a-termo entre a linguagem e o mundo como também não existe relação termo-a-termo entre os textos que são os materiais de análise e os resultados dela. A mediação da própria análise, da teoria e dos objetivos do analista são parte da construção do texto como unidade da análise. Isto é também parte da historicidade. É nesse sentido que dizemos que o corpus não é nunca inaugural em AD. Ele já é uma construção (fato). Esta talvez seja a melhor maneira de argumentar contra as posições positivistas. Não pela referência à ilusão da evidência das marcas, mas pela lembrança de que esses objetos que são nossos materiais de análise só o são em sua provisoriedade. A duração dos textos é trabalho do arquivo . 10
10. "Arquivo" aqui está sendo usado no sentido da AD. Para compreender esta noção confira C estos de leitura, E. Orlandi et alii, Ed. Unicamp, 1994.
6 . A U T O R I A E IN T E R P R E T A Ç Ã O
Tenho procurado compreender a questão ideológica inscrita na interpretação. Esta questão nos toca particularmente pois M. Pêcheux trata a significação, pensando a relação da língua, de um lado, com a lalangue (o inconsciente) e, de outro, com o interdiscurso (a ideologia). Segundo Pêcheux, inconsciente e ideologia estão materialmente ligados. Esta ligação material se faz pela relação comum com a língua. Em outras palavras, a compreensão do lugar da interpretação nos esclarece a relação entre ideologia e inconsciente, tendo a língua como lugar em que isso se dá, materialmente11. A ordem simbólica, configurada pelo real da língua e pelo real da história, faz com que tudo não possa ser dito e, por outro lado, haja em todo dizer uma parte inacessível ao próprio sujeito. Estaremos falando da interpretação em duas instâncias: a) tanto como parte da atividade do analista, como b) enquanto parte da atividade linguageira do sujeito. Inicialmente, devo dizer que a análise de discurso (AD) distingue-se da hermenêutica em vários aspectos: a) pela
11. Para a compreensão da noção de forma material, confira outros textos neste volume.
natureza do sujeito interpretante (não-psicológico); b) pelo fato de que, na AD, a interpretação é precedida pela descrição (descrição e interpretação se colocam como um batimento, diz Pêcheux, 1990); ou seja, a linguagem, na AD, não é transparente. Em suma, interpretar, para o ana lista de discurso, não é atribuir sentidos, mas expor-se à opacidade do texto (ainda Pêcheux), ou, como tenho proposto (Orlandi, 1987), é compreender, ou seja, explici tar o modo como um objeto simbólico produz sentidos, o que resulta em saber que o sentido sempre pode ser outro. Vejamos, nessa perspectiva, como podemos considerar o estatuto discursivo da interpretação, refletindo sobre seu modo de existência no sujeito. Começaremos por dizer que a interpretação é uma injunção. Face a qualquer objeto simbólico, o sujeito se encontra na necessidade de "dar" sentido. O que é dar sentido? Para o sujeito que fala, é construir sítios de significância (delimitar domínios), é tornar possíveis gestos de interpretação (Orlandi, 1993). Se encaramos este processo na perspectiva ideológica, como estamos propondo, podemos dizer que é nessa instân cia de constituição imaginária dos processos de produção dos sentidos que intervém o que temos criticado como conteudismo (Orlandi, 1992). Este supõe uma relação termo-a-termo entre pensamento/linguagem/mundo, como se a relação entre palavras e coisas fosse uma relação natural e não lingüístico-histórica. Daí a ilusão de se defini rem os sentidos pela pergunta ingênua: o que "x" quer dizer? Sem dúvida, é do conteudismo que resulta o que temos chamado de "perfídia da interpretação", ou seja, o fato que consiste em considerar o conteúdo (suposto) das palavras e não - como deveria ser - o funcionamento do discurso na produção dos sentidos.
O modo como as ciências humanas e sociais conce bem a ideologia é ancilar à perfídia interpreta ti va: conside rando que a linguagem é transparente, essas ciências visam os conteúdos ideológicos, concebendo a ideologia como "ocultação". Assim, elas deixam pensar que, pela busca dos conteúdos (o que ele quis dizer?), se podem descobrir os verdadeiros sentidos do discurso, que estariam escondidos. Se não nos ativermos aos conteúdos da linguagem, pode mos procurar entender o modo como os textos produzem sentidos e a ideologia será então percebida como o pro cesso de produção de um imaginário, isto é, produção de uma interpretação particular que aparecería, no entanto, como a interpretação necessária e que atribui sentidos fixos às palavras, em um contexto histórico dado. A ideologia não é um conteúdo "x" mas o mecanismo de produzi-lo. Uma concepção discursiva de ideologia estabelece que, como os sujeitos estão condenados a significar, a interpretação é sempre regida por condições de produção específicas que, no entanto, aparecem como universais e eternas. Disso resulta a impressão do sentido único e verdadeiro. Um dos efeitos ideológicos está justamente no fato de que, no momento mesmo em que ela se dá, a interpretação se nega como tal. Quando o sujeito fala, ele está em plena atividade de interpretação, ele está atribuindo sentido às suas próprias palavras em condições específicas. Mas ele o faz como se os sentidos estivessem nas palavras: apagamse suas condições de produção, desaparece o modo pelo qual a exterioridade o constitui. Em suma, a interpretação aparece para o sujeito como transparência, como o sentido lá. Estas considerações nos levam a afirmar que não se pode excluir do fato lingüístico o equívoco como fato estrutural implicado pela ordem do simbólico. Há, como
diz Pêcheux (1990), "um trabalho do sentido sobre o sentido, tomado no relançar indefinido das interpretações". Se é assim que se faz presente a ideologia, também aí é que intervém a história. O processo ideológico não se liga à falta, mas ao excesso. A ideologia representa a saturação, o efeito de completude que, por sua vez, produz o efeito de "evidên cia", sustentando-se sobre o já dito, os sentidos institucio nalizados, admitidos por todos como "naturais". Pela ideologia há transposição de certas formas materiais em outras, isto é, há simulação. Assim, na ideologia não há ocultação de sentidos (conteúdos) mas apagamento do processo de sua constituição. Uma outra forma de ver a questão da interpretação é a que se vincula ao arquivo. Refletindo-se sobre esta ques tão, na perspectiva do arquivo tal como o faz Pêcheux (1981), pode-se chegar ao fato de que há uma divisão social do trabalho da leitura, de tal modo que ela tem suas diferentes formas na história, embora, basicamente, se possam distinguir: a) o modo literário e b) o modo científico da relação com os sentidos, sendo essa relação sobredeterminada pela divisão entre o corpo social dos que têm direito à interpretação, distinto daqueles que fazem o trabalho cotidiano de sustentação da interpretação que deve ser, a que se estabiliza. Distinção entre intérpretes e escreventes. Seria o que, no meu entender, se pode pensar como a administração sócio-histórica da apreensão dos sentidos, na produção (necessária?) inevitável da literalidade. Jogo histórico que administra a equivalência entre o um necessário (na sua relação com o equívoco), a vocação da unidade - o real da língua, a sua ordem significante - e o um universal - o imaginário: a organização sintática, o efeito de literalidade, o apagamento da inscrição da língua na história para fazer sentido. Pela divisão social da leitura, os gestos de interpretação são já determinados, os sítios de
seja, o interdiscurso, o trabalho histórico da constituição da interpretação (o dizível, o repetível, o saber discursivo). A interpretação se faz, assim, entre a memória institu cional (arquivo) e os efeitos da memória (interdiscurso). Se no âmbito da primeira a repetição congela, no da segunda a repetição é a possibilidade mesma do sentido vir a ser outro, em que presença e ausência se trabalham, paráfrase e polissemia se delimitam no movimento da contradição entre o mesmo e o diferente. O dizer só faz sentido se a formulação se inscrever na ordem do repetível, no domínio do interdiscurso13. Vejamos agora algumas reflexões que nos situam a questão da autoria na perspectiva discursiva. Em um trabalho anterior (Orlandi, Guimarães 1988 e Orlandi 1987) tomamos a reflexão de Foucault sobre a questão da autoria, tal como ele a define em seu texto A ordem do discurso (1975): o autor é o princípio de agrupa mento do discurso, unidade e origem de suas significações. O que o coloca como responsável pelo texto que produz. Passamos, assim, da noção de sujeito para a de autor. Se a noção de sujeito recobre não uma forma de subjetividade mas um lugar, uma posição discursiva (marcada pela sua
13. Em seu texto Independência e morte (1993), Eduardo Guimarães define o interdiscurso em sua relação com a língua. Ele dirá: "... podemos dizer que o interdiscurso é a relação de um discurso com outros discursos. No sentido de que esta relação não se dá a partir dos discursos já particularizados. É ela própria a relação entre discursos que dá a particularidade, ou seja, são as relações entre discursos que particularizam cada discurso. (...) Não é um locutor que coloca a língua em funcionamento por dela se apropriar. A língua funciona na medida em que um indivíduo ocupa uma posição de sujeito no discurso, e isso, por si só, põe a língua em funcionamento por afetá-la pelo interdiscurso. Produzindo, assim, efeitos de sentido". Em nossas palavras isso significa que sempre já há discurso e que o dizível é exterior ao sujeito (cf. Orlandi, 1992).
descontinuidade nas dissenções múltiplas do texto) a no ção de autor é já uma função da noção de sujeito, respon sável pela organização do sentido e pela unidade do texto, produzindo o efeito de continuidade do sujeito. A partir daí - à diferença de Foucault, que guarda a noção de autor para situações enunciativas especiais (em que o texto original, "de autor", se opõe ao comentário) - procuramos estender a noção de autoria para o uso corrente, enquanto função enunciativa do sujeito, distinta da de enunciador e de locutor (Orlandi, 1987). Com isto, a função-autor, para nós, não se limita, como em Foucault (1983), a um quadro restrito e privilegiado de produtores "originais" de lingua gem (que se definiríam em relação a uma obra)'4. Para nós, a função-autor se realiza toda vez que o produtor da linguagem se representa na origem, produzindo um texto com unidade, coerência, progressão, não-contradição e fim. Em outras palavras, ela se aplica ao corriqueiro da fabricação da unidade do dizer comum, afetada pela res ponsabilidade social (Orlandi, 1993): o autor responde pelo que diz ou escreve pois é suposto estar em sua origem. Assim, estabelecemos uma correlação entre sujeito/autor e discurso/texto (entre dispersão/unidade, etc.). A nosso ver, a função de autor é tocada de modo particular pela história: o autor consegue formular, no interior do formulável, e se constituir, com seu enunciado, numa história de formulações. O que significa que, embora ele se constitua pela repetição, esta é parte da história e não mero exercício mnemônico. Ou seja, o autor, embora 14
14. Essa função de autoria, distinta da que estamos aqui referindo, em Foucault (1983), fala sobre a instauração da discursividade: "quando os autores não são apenas autores de suas obras, mas quando produzem alguma coisa a mais: a possibilidade e a regra de formação de outros textos". A isto preferimos chamar "discursos fundadores" (cf. Orlandi et alii, 1983).
não instaure discursividade (corno o autor "original" de Foucault), produz, no entanto, um lugar de interpretação no meio dos outros. Esta é sua particularidade. O sujeito só se faz autor se o que ele produz for interpretável. Ele inscreve sua formulação no interdiscurso, ele historiciza seu dizer15. Porque assume sua posição de autor (se representa nesse lugar), ele produz assim um evento interpretativo. O que só repete (exercício mnemônico) não o faz. O que nos leva a distinguir: a) a repetição empírica, exercício mnemônico que não historiciza de, b) a repetição formal - técnica de produzir frases, exercício gramatical que também não historiciza - de, c) a repetição histórica, a que inscreve o dizer no repetível enquanto memória constitutiva, saber discursivo, em uma palavra: interdiscurso. Este, a memória (rede de filiações), que faz a língua significar. É assim que sentido, memória e história se intrincam na noção de interdiscurso. É porque a história se inscreve na língua que esta significa. Daí o equívoco necessariamente constitutivo da significação que é ao mesmo tempo sistema e aconteci mento. A inscrição do dizer no repetível histórico (interdiscur so) é que traz para a questão do autor a relação com a interpretação, pois o sentido que não se historiciza é ininteligível, ininterpretável, incompreensível (cf. Orlandi, 1987). Isto nos leva a afirmar que a constituição do autor supõe a repetição, logo, como estamos procurando mos trar, a interpretação. Mais extensamente podemos mesmo
15. Em um trabalho chamado "Final feliz", Maria Angélica L. Carneiro tem um conjunto de "dados" expressivos a este respeito.
afirmar que o dizível é o repetível, ou melhor, tem como condição a repetição. Não porque é o mesmo, mas é o que é passível de interpretação: o que é passível de ser repetido, efeito de pré-construído (já dito) na relação com o interdiscurso. Se insistimos em falar dessa função-autor é porque nela aparece de forma mais visível o efeito da historicidade inscrita na linguagem e torna, conseqüentemente, mais claros certos aspectos da interpretação. Por outro lado, o aspecto histórico da noção de sujeito - forma-sujeito, em análise de discurso - pode ser melhor compreendido, em sua função de autoria, através da con sideração do que temos tratado como silenciamento. É também nesse lugar - entre tantos outros - que podemos falar da incompletude da linguagem tal como a temos considerado. O incompleto na linguagem é o lugar do possível, é condição do movimento dos sentidos e dos sujeitos. E na incompletude que inscrevemos a questão do silêncio, e, por esta via, a da interpretação como movimen to. Há certas condições - as que são chamadas de plágio - em que há estancamento desse movimento da interpre tação, lugar em que há silenciamento da autoria (E. Orlandi, 1992).
Para que uma palavra faça sentido é preciso que ela já tenha sentido. Essa impressão do significar deriva do interdiscurso - o domínio da memória discursiva, aquele que sustenta o dizer na estratificação de formulações já feitas, mas "esquecidas", e que vão construindo uma história dos sentidos. Toda fala resulta assim de um efeito de sustenta ção no já dito que, por sua vez, só funciona quando as vozes que se poderíam identificar em cada formulação particular se apagam e trazem o sentido para o regime do
anonimato e da universalidade16. Ilusão de que o sentido nasce ali, não tem história. Esse é um silenciamento neces sário, inconsciente, constitutivo para que o sujeito estabe leça sua posição, o lugar de seu dizer possível. Dessa ilusão resulta o movimento da identidade e o movimento dos sentidos: eles não retornam apenas, eles se transformam, eles deslocam seu lugar na rede de filiações históricas, eles se projetam em novos sentidos. Desse silêncio, que é um silêncio (constitutivo) sobre a interpretação (ela se apaga no momento mesmo em que se dá), resulta a ilusão que permite ao sujeito experimentar os "seus" sentidos. Esta seria a "censura original", radical, a que torna possível o discurso do/no sujeito. O plágio, por seu lado, é um subproduto desse silen ciamento necessário. Mas ele tem suas particularidades, ao se dar no nível da autoria: o plagiador silencia seu trajeto, ele cala a voz do outro que ele retoma. Não é um silencia mento necessário mas imposto, uma forma de censura: o enunciador que repete e apaga, toma o lugar do autor indevidamente, intervém no movimento que faz a história, a trajetória dos sentidos (nega o percurso já feito) e nos processos de identificação (nega a identidade ao outro, e, em consequência, trapaceia com a própria). Estanca assim o fluir histórico do sentido. Esquece que o dizer é sempre heterogêneo, e que é nesse percurso que vai entre o já dito e o futuro discursivo que o sentido e o sujeito podem (ou não) ganhar novas determinações, produzir (ou não) des locamentos. Porque entre o dito e o não-dito é irremediável que haja um espaço de interpretação que não se fecha. Lugar de equívocos, de deslocamentos, de debates, de
16. Neste ponto, podemos aproximar as reflexões de Courtine (s.d.) quando fala do anonimato da voz do interdiscurso e Bakhtine (1976) quando refere à conversão da palavra alheia em palavra própria.
possíveis. O plagiador, na verdade, nega essa possibilidade pois ao reduzir o movimento dos sentidos, acentua a impres são de realidade do pensamento (ilusão referencial que produz o sentimento de que há uma relação natural entre as palavras e as coisas) e a do sujeito como origem de seu dizer (ilusão de que os sentidos nascem nele). Ao censurar, o plagiador se fecha narcisicamente na vontade que o dizer comece e acabe nele mesmo e não se deixa atravessar nem atravessa outros discursos. O que resulta na asfixia do sujeito e na rarefação dos sentidos. Ilude-se com a existên cia da idéia absoluta e "esquece" que todo dizer é neces sariamente incompleto (assim como o sujeito). Mas há, também, outra maneira de compreender este fato. Ele poderia ser considerado como o sintoma de uma mudança na função da autoria. Estaria então havendo um deslocamento na forma da função-autor que mostraria (exibiría) o giro interpretativo da dispersão, a desnecessida de de um marco de origem do dizer e de um sujeito na origem como responsável pelo dito, pela sua coerência, não-contradição e unidade. Estar-se-ia então devolvendo o texto à sua dispersão e o sujeito à sua descontinuidade. Estaria assim se produzindo uma forma de dizer que deixa ria passar a fragmentariedade, a dispersão e a não-unidade do sujeito e dos sentidos. Essa seria então uma outra relação do sujeito com a interpretação, que teria suas conseqüências na produção da unidade do texto e continuidade do sujeito. Haveria uma reorganização dessa relação, uma outra forma histórica da autoria. Como o autor é função da forma-sujeito e dos modos de individuação sócio-historicamente determinados, se este for um deslocamento efetivo da relação com a interpretação, deve ser acompanhado de transformações no tecido da formação social. Não se pode descartar o fato de que esteja havendo uma transformação na relação sujeito/autor.
Tendo feito esta digressão pelo trabalho histórico da própria noção da autoria para compreender sua(s) forma(s) histórica(s) e o fato de que ela se transforma, voltemos à nossa reflexão sobre a relação autor interpretação. Tratando dos modos de assunção da autoria pelo aluno no discurso escrito, S. Gallo (1992) mostra que o fecho arbitrário, mas necessário, de um texto torna-se fim por um efeito da posição-autor, o efeito de sua unidade e de sua coerência. A textualidade, no discurso escrito, resulta desse processo. Podemos também tratar esta questão, pensada em relação à interpretação, através da distinção proposta por J. Authier (1984) entre heterogeneidade mostrada e heterogeneidade constitutiva que, em relação à alteridade, no domínio simbólico, coloca a relação com o outro (mostra da) e o Outro (constitutiva). Em seu trabalho, J. Authier (idem) faz intervir o campo da psicanálise, o da lingüística e o da análise de discurso. Em nosso caso, embora pressupondo o campo da psicanálise e o da lingüística, trataremos especificamente do campo discursivo. Nesse campo, o outro é o interlocutor (efetivo ou virtual) e o Outro é a historicidade, concebida sob a forma do interdiscurso. Por outro lado, não nos interessa a questão da relação da autoria com a escrita/oralidade mas, como dissemos no início, o estatuto (ideológi co) da interpretação no discurso. Esses dois deslocamentos, produzidos em relação aos trabalhos citados acima, nos colocam em um outro domínio de questões e de elabora ção dos conceitos discursivos. Com efeito, podemos dizer que a posição-autor se faz na relação com a constituição de um lugar de interpretação definido pela relação com o Outro (o interdiscurso) e o outro (interlocutor). O que, em análise de discurso, está subsumido pelo chamado efeito-leitor. Assim se configura
a determinação ideológica da autoria. O autor se produz pela possibilidade de um gesto de interpretação que lhe corresponde e que vem "de fora"17. O lugar do autor é determinado pelo lugar da interpretação. O efeito-leitor representa, para o autor, sua exterioridade constitutiva (memória do dizer, repetição histórica). Procedendo à distinção entre o outro e o Outro, como ela pode ser concebida em análise de discurso, podemos dizer que o autor, relativamente à injunção à interpretação, fica determinado: a) de um lado, pelo fato de que não pode dizer coisas que não têm sentido (a sua relação com o Outro, a memória do dizer) e b) deve dizer coisas que tenham um sentido para um interlocutor determinado (o outro, seja ele efetivo ou virtual). Desse modo a historicidade se atualiza na função-autor através da interpretação. De um lado, a historicidade como relação às condições de produção do dizer, no processo de sua formulação que define o quem, o para quem, o onde, etc. sob o modo das formações imaginárias. Aí se confrontam a história do dizer do autor e a história de leituras do leitor. De outro, a historicidade aparece enquanto interdiscurso, enquanto constituição (e não formulação) do dizer, ou melhor, como o conjunto do dizível e do interpretável. Nesse caso, o Outro não é o interlocutor mas o lugar da alteridade constitutiva, presença do outro sentido no sentido, presen ça da ideologia. Com efeito, a autoria ao mesmo tempo constrói e é construída pela interpretação.
17. Tanto a lingüística como as teorias pragmáticas pensam a exterioridade como algo que está fora (no exterior da linguagem). No caso da análise de discurso, que se alinha com as teorias não-positivistas mas históricas, em que não há separação estanque entre sujeito/objeto, exterioridade/interioridade, etc., temos procurado mostrar (cf. Orlandi 1993a, 1993b) que não se trata do fora enquanto tal mas da exterioridade constitutiva, aquela que não é do domínio empírico, mas simbólico.
O fechamento do texto, que aparece como responsa bilidade do autor, necessário mas ao mesmo tempo arbitrá rio, resulta dessa dupla (e dúbia) determinação da inter pretação. A formulação (do autor) está determinada pelo interpretável referido às condições de produção e pelo interpretável referido ao dizível. O fechamento do texto é também, em si, um efeito. Ele deriva da ilusão interpretativa que, no nosso imaginário, tem a forma da dominância da história da situação (o dizer remetido ao contexto de situação), quando, na realidade, é a história da filiação (o dizer remetido ao interdiscurso) que, ao determinar a relação com o contexto de situação, determina, nesse movimento, a interpretação. É isso que estamos afirmando quando dizemos que a relação com os sentidos é indireta. Como não temos acesso direto ao interdiscurso, ele se simula por seus efeitos na formulação (intradiscurso). O que é tangível, ainda que projetadas nas formações imaginárias, são as suas condições de produção, pensadas como situação no sentido estrito, o da circuns tância da enunciação. É a esta historicidade que temos acesso. No entanto, a constituição do sentido se dá fora de nosso alcance direto, na relação com o interdiscurso. Este se apresenta como uma história que não se situa. Ele não está alocado em lugar nenhum. É uma trama de sentidos. Por isso a instância da formulação não nos leva imediata mente ao interdiscurso. Passa pela opacidade, pela espes sura semântica, pelo corpo da linguagem que, na análise de discurso, chamamos sua materialidade, sua discursividade, sua historicidade. Em uma palavra, pela ideologia. Daí que, se o fecho tem sua eficácia na produção do efeito de unidade, de coerência e de não-contradição, porém pela incompletude da linguagem - todo texto tem a ver com outros textos, existentes, possíveis ou imaginá rios, pois ele tem sobretudo uma relação necessária com a exterioridade, estabelecendo assim suas relações de senti-
do - e pela dispersão do sujeito - que aparece em sua descontinuidade no texto - o autor não realiza jamais o fechamento completo do texto, aparecendo, como diz Pêcheux, ao longo do texto pontos de deriva possíveis, oferecendo lugar à interpretação, ao equívoco, ao trabalho da história na língua. Em relação à análise, dizemos que, em todo gesto interpretativo (ou em todo sítio significante), há pontos de fuga que se descolam da descrição. Ainda uma vez, com a noção de discurso se trabalha a incompletude da linguagem, não como algo negativo, mas como o lugar do possível. Para concluirmos, diriamos que os retornos - movimen tos interpretativos - que hoje se fazem a Saussure não podem prescindir de desenvolvimentos teóricos como os da análise de discurso que procuraram estender a noção de funcionamento para outros objetos simbólicos, como a textualidade, não se restringindo só ao sistema da língua. Isso só foi possível porque se propôs uma prática analítica que não dividiu língua e fala como quem separa o social e o histórico, mas se deslocou a distinção para língua e discurso, sendo que a noção de discurso acolhe o histórico e o social, conjuntamente, sob o modo da ideologia. Para tal, a própria teoria do discurso teve de re-significar as noções de história e de social)18. Esta necessidade deriva da maneira como a noção de discurso vai-se configurando em seus sentidos e em sua capacidade teórica. Isto certa-
18. O social se apresentando não como traços sociológicos empíricos (classe social, idade, sexo, profissão) mas como formações imaginárias que se consti tuem a partir de relações tal como elas funcionam no discurso, havendo em Ioda língua mecanismos de projeção para que se constitua essa relação entre a situação - sociologicamente descritível - e a posição dos sujeitos, discursiv,imente significativa. O histórico, por sua vez, é definido não como fatos e datas, como evolução e cronologia, mas como significância, ou seja, como trama de sentidos, pelos modos como eles são produzidos.
mente tem a ver com a maneira como esta noção trabalhou noções como estrutura, descrição, interpretação19, e, so bretudo, como ela trabalhou suas relações com duas outras formas de conhecimento que lhe estão pressupostas: a da psicanálise (para a noção de sujeito) e a do marxismo (para a noção de história), não como aplicação, mas em suas relações contraditórias e muitas vezes indistintas.
19. O que significa o retorno a Saussure enunciado em tantos temas de encontros atualmente? Pode significar pelo menos duas coisas: a) de um lado, um desconhecimento dos deslocamentos produzidos por teorias como a psica nálise ou a análise de discurso, que aqui destaco por ser meu domínio de interesse, e em que enfatizo a contribuição trazida sobretudo pela própria noção de discurso, agora trabalhada em sua especificidade (teórica e analítica). Isto significa, para mim, a esterilização do pensamento de Saussure, pois é ilusório pensar que os sentidos dos textos de Saussure estão fechados nos textos de Saussure; e, b) de outro, uma releitura, ou seja, uma forma de re-significações que agora podem significar de outras maneiras já que, pela consideração dos processos discursivos, sabemos que é isso mesmo a leitura: saber que os sentidos podem ser outros, ou melhor, são outros; c) menos generoso, mas também possível, é o retorno ao nome de Saussure, para legitimarem-se grupos de influência e favorecerem-se do prestígio do fundador, pessoas que, na verdade, em sua formação, ignoraram Saussure. Para esses, na realidade, esse não é um retomo.
7 . D I S P O S IT I V O S D A IN T E R P R E T A Ç Ã O
A questão O contexto intelectual em que aparece a análise de discurso (anos 60) é marcado por uma transformação na noção de leitura. Ela é posta em questão. Este fato, como dissemos, pode ser pensado a partir de trabalhos como os de Althusser (ler Marx), de Lacan (ler Freud), de Foucault (a Arqueologia), de R. Barthes (leitura/escritura). No trabalho intelectual, a leitura aparece como construção de um dispositivo teórico. Dispositivo aqui tem ã ver com o reconhecimento da materialidade dos fatos. No caso, da materialidade da linguagem, da sua.não transparência, e da necessidade, consequentemente, de um dispositivo para ter acesso a ela, para trabalhar sua espessura lingüística e histórica: sua discursividade. A teoria e o dispositivo analítico
A região teórica específica em que trabalho, entre outros, contribui para a pesquisa sobre leitura, consideran do a opacidade do texto, a não transparência da linguagem. I ssa região teórica tem como característica a passagem da poção de funcionamento da língua para o discurso, e a (nristrução de um dispositivo analítico fundado na noção i@efeito metafórico.
A noção de funcionamento, estendida para o discurso, faz com que não trabalhemos apenas com o que as partes significam, mas que procuremos "quais são as regras que tornam possível qualquer parte". Nessa perspectiva - que introduz o discurso no campo das ciências da linguagem a proposta é então explicitar os mecanismos de funciona mento do discurso (cf. E. Orlandi, A linguagem e seu funcionamento, 1983). O trabalho do analista de discurso é mostrar como um objeto simbólico produz sentidos, como os processos de significação trabalham um texto, qualquer texto. Por seu lado, a definição de efeito metafórico situa a questão do funcionamento na relação do discurso com a língua. M. Pêcheux (1969) vai chamar efeito metafórico o fenômeno semântico produzido por uma substituição contextual, lembrando que esse "deslizamento de sentido" entre x e y é constitutivo do sentido designado por x e y . Como esse efeito é característico das línguas naturais, por oposição aos códigos e às línguas artificiais, podemos considerar que não há sentido sem essa possibilidade de deslize, e, pois, sem interpretação. O que nos leva a colocar a interpretação como constitutiva da própria língua (natural). Em conseqüência, quando se trata da língua natural, não há metalinguagem. Toda descrição está intrinsecamente exposta ao equívoco da língua: "Todo enunciado é intrinsecamente suscetível de tornar-se outro, diferente de si mesmo, se deslocar discursivamente de seu sentido para derivar para um outro" (M. Pêcheux, 1991). A não ser que haja proibição explícita de interpretação. A metáfora, não vista como desvio mas como transferência (Pêcheux, 1975), é assim constitutiva do sentido. Na figura proposta para ilustrar o efeito metafórico, podemos observar os desliza mentos de sentido. Também fica exposta a relação língua e historicidade no discurso, através da metáfora:
a, b, c, d, e, f g, b, c, d, e, f g, h; c, d, e, f g/ h; 1 d, e, f g/ h, i, j, e, f g/ h, i, j, k, f g/ h, i, j, k, I O ponto de partida (a, b, c, d, e, f) e o ponto de chegada (g, h, i, j, k, I), através de deslizamentos de sentidos, de próximo em próximo, são totalmente distintos. No entanto, algo do mesmo está nesse diferente; pelo processo de produção de sentidos, necessariamente sujeito ao deslize, há sempre um possível "outro" mas que constitui o mesmo (o deslize de sentido de a para g faz parte do sentido de a também). Ou seja, o mesmo já é produção da história, já é parte do efeito metafórico. A hjstoricidade está aí repre sentada justamente pelos deslizes (paráfrases) que instalam o dizer no jogo das diferentes formações discursivas. Fala-se a mesma língua mas se fala diferente. Pelo efeito metafóri co. Esse deslize, próprio da ordem do simbólico, é o lugar da interpretação, da ideologia, da historicidade. É assim que podemos compreender a relação entre língua e discurso: a língua pensada "como sistema sintático intrinsecamente passível de jogo e a discursividade como inscrição de efeitos lingüísticos materiais na história" (M. Pêcheux, 1980). Esta forma de conceber o deslize, o efeito metafórico, corno constitutivo do funcionamento discursivo, liga-se ao modo de se conceber a ideologia. Em termos de interprelação, isso nos aponta para o "discurso duplo e uno". Segundo Althusser, a leitura "sintomática", falando de ideo logia, é a que revela o irrevelado no próprio texto que lê, e o remete a um outro texto, presente no primeiro por uma ausência necessária". Essa duplicidade, que faz referir um
discurso a um discurso outro para que elefaça sentido, na psicanálise, envolve a questão do inconsciente. Na análise de discurso, essa duplicidade, esse equívoco, é trabalhado como a questão ideológica fundamental, pensando a rela ção material do discurso à língua e a da ideologia ao incons ciente. Isto que está presente em Pêcheux (1969), na conside ração do efeito metafórico e de sua especificidade em relação a um dispositivo de análise, será formulado mais precisamente no que este autor diz em Discurso: Estrutura e acontecimento (1991): "Todo enunciado, toda sequência de enunciados é, pois, lingüistjcamente descritível como uma série (léxico-sintaticamente determinada) de pontos de deriva possíveis (para nós, deslizes, efeitos metafóricosj, oferecendo lugar à interpretação. É nesse espaço que preten de trabalhar a análise de discurso". Daí a inclusão desse aspecto no dispositivo teórico. Eu acrescentaria que é nesse lugar, em que se produz o deslize de sentidos, enquanto efeito metafórico, onde língua e história se ligam pelo equívoco (materialmente determinado) que se define o trabalho ideológico, em outras palavras, o trabalho da interpretação. Como, parale lamente, este efeito, ao constituir o sentido, constitui o sujeito, podemos dizer que a metáfora também está na base da constituição do sujeito, na perspectiva do histórico, do equívoco, da relação língua/discurso. O equívoco, que na instância do sujeito nos permite compreender a relação com o inconsciente, na instância da história nos põe em contato com o como funciona da ideologia: o que está presente por uma ausência necessá ria. Esta qualidade discursiva do sujeito e do sentido deve constituir o dispositivo do analista. De tal modo, que o deslocamento produzido pelo dispositivo no olhar leitor (a exposição do olhar leitor à opacidade) trabalha a interpre-
tação enquanto exposição do sujeito à historicidade (ao equívoco, à ideologia), na sua relação com o simbólico. Se dissemos mais acima que a interpretação é consti tutiva da língua (não havendo metalinguagem), aqui junta mos que a interpretação é constitutiva do sujeito e do sentido. Não estamos dizendo, com isso, que o sujeito é interpretável ou o sentido é interpretável; estamos dizendo que a interpretação os constitui, ou seja, que a interpreta ção faz sujeito, sujeito, a interpretação faz sentido. sentido. Resulta, então, que a construção desse dispositivo alte ra a posição do leitor para outra posição enquanto lugar construído pelo analista. Esse deslocamento - posição do sujeito/posição do analista - mostra a alteridade do alteridade do cientis ta, ou seja, a leitura outra que ele pode produzir pelo dispositivo. Leitura esta que trabalha o efeito da objetivida de, levando em conta o deslize, o equívoco, a ideologia. Esse deslocamento, por sua vez, mostra um outro: a interpretação, que só é levada em conta em relação aos métodos, métodos, passa a ser considerada como um movimento no objeto, objeto, ou seja, a interpretação do analista (metodológica) tem de levar em conta o movimento da interpretação inscrita no próprio sujeito do discurso. O trabalho do analista é, em grande medida, situar (compreender) - e não refletir - o gesto de interpretação do sujeito e expor seus efeitos de sentido. Assim, podemos dizer que a análise de discurso procu ra desfazer dois modos de existência do apagamento da interpretação: a) o da possibilidade de leitura do próprio analista e, b) o do sujeito que não percebe o gesto de interpretação, pensando apenas reconhecer o sentido já lá. Nesse capítulo vamos falar disso. Antes, porém, e dado o fato de que temos utilizado frequentemente a palavra gesto palavra gesto em em análise do discurso,
gostaríamos de explicitar como a estamos utilizando. M. Pêcheux (1969) diz que gestos são atos no nível do simbó lico. São exemplos: assobios, aplausos, vaias, atirar uma bomba em uma assembléia, etc. Ao utilizarmos a expressão gestos de leitura, como é próprio à análise de discurso, e no meu caso específico gestos de interpretação, interpretação, estamos pois fazendo da leitura, e da interpretação, um ato simbó lico dessa mesma natureza de intervenção no mundo. Uma prática discursiva. Lingüístico-histórica. Ideológica. Com suas consequências. Com efeito, pode-se considerar que a interpretação é um gesto, ou seja, ela intervém no real do sentido. O leitor e o analista: dois efeitos de interpretação
A primeira distinção que estamos propondo separa: a) o gesto de interpretação do analista, que se dá no apoio de um dispositivo teórico teórico e, b) o gesto de interpretação do sujeito comum, que se dá em um dispositivo ideológico com seu efeito de evidência. Esse efeito é o que nega a interpretação no momento mesmo em que ela se dá. Mais adiante falaremos disso. O gesto do analista é determinado pelo dispositivo teórico enquanto o gesto do sujeito comum é determinado pelo dispositivo ideológico. Sem esquecer que determinar significa ser constitutivo e não relação de causa/efeito, muito menos mecânica. Nos dois gestos temos mediação. Mas a mediação da posição construída pelo analista não reflete, ao contrário, trabalha a questão da alteridade. Na mediação do dispositivo ideológico, o sujeito está sob o efeito do apagamento da alteridade (exterioridade, historicidade): daí a ilusão do sentido lá, de sua evidência. O que se espera da mediação, instalada pelo dispositi vo teórico, é que ela produza, como dissemos, um deslo
camento que permita que o analista trabalhe as fronteiras das formações discursivas. Em outras palavras, que ele não se inscreva em uma formação discursiva mas entre em uma relação crítica com o conjunto complexo das formações. Com isso rião pretendemos estar supondo uma posição neutra do analista em relação aos sentidos. Não só ele está sempre afetado pela interpretação, como um dispositivo analítico marca uma posição em relação a outras. Em nosso caso, por exemplo, o dispositivo que estamos propondo é uma posição diferente do da hermenêutica. O que estamos afirmando, sim, é que o dispositivo é capaz de deslocar a posição do analista, trabalhando a opacidade da lingua gem, a sua não-evidência, e, com isso, relativizando (me diando) a relação do sujeito com a interpretação. Pelo processo de identificação, como sabemos, o sujei to se inscreve em uma formação (e não em outra) para que as suas palavras tenham sentido e isto lhe aparece como "natural", como o sentido lá, transparente. Ele não reconhe ce o movimento da interpretação, ao contrário, ele se reconhece nele. Ou melhor, ele se reconhece nos sentidos que produz. É, no entanto, a possibilidade de contemplar o movimento da interpretação, de compreendê-lo, que caracteriza a posição do analista. Nem acima, nem além do discurso, ou da história, mas deslocado. Numa posição que entremeia a descrição com a interpretação e que pode tornar visíveis as relações entre diferentes sentidos. Desse modo, ficamos sensíveis ao fato de que a descrição está exposta ao equívoco e o sentido é suscetível de tornar-se outro. A análise de discurso elabora seu dispositivo, aliando estas questões da deriva - do deslize, do efeito metafórico - à própria ordem da língua. Mas é preciso ressaltar que, ao falar do lingüístico, Pêcheux coloca oportunamente a necessidade de não se pensar apenas esse "outro" lingua-
jeiro mas o "outro" nas sociedades e na história. É só pela referência às sociedades e à história que "aí pode haver ligação, identificação ou transferência, isto é, existência de uma relação, abrindo a possibilidade de interpretar". A língua não se reduz, pois, ao jogo significante abstra to. Para significar, ela é afetada pela história. É também nesse ponto que este autor mostra o risco de uma reflexão estruturalista que veria aí uma máquina discursiva de assu jeitamento dotada de uma estrutura semiótica interna e por isso mesmo voltada à repetição: "no limite, esta concepção estrutural da discursividade desembocaria em um apagamento do acontecimento, através de sua absorção em urna sobreinterpretação antecipadora". Ou, como ele mesmo diz: "corre sempre o risco de absorver o acontecimento desse discurso na estrutura da série na medida em que tende a funcionar como transcendental histórico, grade de leitura ou memória antecipadora do discurso em questão". O risco da estagnação está em se des-historicizar. Não se trata, pois, de um retorno ao estruturalismo pura e simples mente. Já no dispositivo inicial (1969), as noções mais produtivas, analiticamente, eram a de efeito metafórico e de paráfrase (Pêcheux, 1 969), noções comprometidas com a história, com o funcionamento do sistema, com o equí voco, a ideologia. Com efeito, estas noções permitem conce ber o jogo significante como materialidade (lingüística e histórica). As filiações históricas, dirá ainda Pêcheux, são sempre "tomadas em redes de memória, dando lugar a filiações identificadoras e não a aprendizagens por interação: a transferência não é uma 'interação', e as filiações históricas nas quais se inscrevem os indivíduos não são 'máquinas de aprender'" (1991). Nem apenas o jogo descarnado, onde estaríamos ao sabor só dos significantes, nem a coerção do social empírico. Mas a historicidade.
A descrição não é um "cálculo" dos deslocamentos de filiação (como parecería ao olhar do linguista), ela abre sobre a interpretação. Há um trabalho do sentido sobre o sentido. Conceber assim a interpretação como constitutiva é entender os gestos - enquanto atos ao nível do simbólico, como diz Pêcheux - de um modo particular. Estar na língua, com os gestos de interpretação, significa estar sendo traba lhado pela língua em uma perspectiva discursiva, aquela em que a língua faz sentido, em que ela é afetada pela história. Essas considerações nos levam a compreender que o gesto da interpretação é feito de uma "sobrecarga". Ele é carregado de uma relação da língua sobre a língua interpretar é dizer o dito - que, no entanto, aparece como grau zero (o sentido lá). Por outro lado, isso não significa tampouco que a interpretação abre sobre não importa o quê: "a descrição de um enunciado ou de uma seqüência coloca necessaria mente em jogo (...) o discurso-outro como espaço virtual de leitura desse enunciado ou dessa seqüência" (M. Pê cheux, idem). Portanto, longe de dar um procedimento de análise estrutural do texto em seus pontos de fechamento e de deriva, o que me proponho, enquanto analista de discurso, é mostrar a relação da posição do analista com os gestos de interpretação do sujeito. Isto é, descrever "montagens discursivas", detectando os "momentos de interpretações enquanto atos que surgem como tomadas de posição, reconhecidas como tais, isto é, como efeitos de identifica ção assumidos e não negados". Parece-me importante esclarecer aqui que leitura e interpretação não se recobrem. A noção de interpretação é mais ampla, sendo a leitura função da interpretação com
suas características particulares20. Os gestos de interpreta ção são constitutivos tanto da leitura quanto da produção do sujeito falante. Isto porque, quando fala, o sujeito tam bém interpreta. Para dizer, ele tem de inscrever-se no interdiscurso, tem de se filiar a um saber discursivo (uma memória). A tarefa do analista de discurso não é: a) nem interpre tar o texto como o faz o hermeneuta; b) nem descrever o texto. Tenho dito (Orlandi, 1988) que o objetivo é com preender, ou seja, é explicitar os processos de significação que trabalham o texto: compreender como o texto produz sentidos, através de seus mecanismos de funcionamento. Hoje, gostaria de ir mais além: o analista não só procura compreender como o texto produz sentidos, ele procura determinar que gestos de interpretação trabalham aquela discursividade que é objeto de sua compreensão. Em outras palavras, ele procura distinguir que gestos de interpretação estão constituindo os sentidos (e os sujeitos, em suas posições). Entramos assim nas considerações que formam a se gunda parte da reflexão sobre os dispositivos. Vamos nos deter no que constitui o dispositivo ideológico da interpre tação.
20. Nesse sentido, creio que haja uma afinidade entre distinções do campo discursivo, tais como: "texto : discurso :: autor: sujeito :: escrita : oral:: leitura : interpretação". Sendo uma função enunciativa da interpretação, a leitura tem sua especificidade que se deve ao fato de ter uma formalidade, uma inserção mais direta no social com suas normas e sua forma histórica. Resta entender o que significa o "está-para" (:) tal como o enunciamos para todas as relações acima. Certamente, não são termos em oposição. Fica por estudar mais detidamenle a natureza dessa relação. Nesse passo, o que queríamos firmar é que leitura e interpretação não se recobrem e partilham o campo de distinções citado acima.
A divisão do trabalho social da interpretação
Temos dito que há injunção à interpretação. Diante de qualquer objeto simbólico, somos instados a dar sentido, a significar. Além disso, a interpretação se apaga como tal, na medida em que os sentidos são uns e não outros, dadas as condições de produção e, no entanto, eles nos aparecem como naturais. Este é um dos aspectos da ideologia. Por isso, dissemos que há um dispositivo ideológico de inter pretação em todo sujeito falante. Os sentidos nunca estão soltos. Há sempre, na injunção a significar, condições para que eles sejam x e não y, para que eles tenham uma direção, que constituam uma posição do sujeito. Há, pois, mecanis mos de controle dos sentidos. A injunção à interpretação tem sua forma e suas condições. A forma dessa injunção é que faz com que a relação com a interpretação para o sujeito não seja a mesma hoje e, por exemplo, na Idade Média. As formas-sujeito históri cas são diferentes porque a relação com a interpretação é diferente. E nesse sentido que podemos dizer que o assu jeitamento, para o sujeito medieval, se dá pela determinação enquanto o assujeitamento para o sujeito moderno se dá pela interpelação. Isto porque a forma de assujeitamento é histórica e se dá diferentemente na Idade Média e na Modernidade. A determinação se exerce de fora para dentro e é religiosa; a interpelação faz intervir o direito, a lógica, a identificação: na interpelação não há separação entre exterioridade e interioridade, embora, para o sujeito, essa separação continue a ser uma evidência sobre a qual ele constrói, duplamente, sua ilusão: a de que ele é origem do dizer (e, logo, ele diz o que quer) e a da literalidade, ou seja, a de que há uma relação direta, termo-a-termo entre linguagem, pensamento e mundo (aquilo que ele diz só podia ser aquilo e não outra coisa). Daí o sujeito moderno ser, ao mesmo tempo, livre e submisso. A interpelação se
constitui de uma dupla determinação, contraditória: o su jeito é determinado (pela exterioridade) e determina (inter namente). É assim que compreendemos o equívoco constitutivo da ideologia, pelo modo como o sujeito é interpelado: o que lhe parece sua definição é justamente o que o submete. Quanto mais centrado o sujeito, mais ideologicamente determinado. É preciso se pensar a relação do sujeito com a lingua gem como parte da relação do sujeito com o mundo, em termos sociais e políticos. Nessa perspectiva, a transforma ção do estatuto do sujeito em relação ao saber e à lingua gem corresponde à transformação das formas de assujeitamento do indivíduo à religião e ao Estado. A reflexão que articula o sentido, a linguagem e a ideologia visa compreendera ambigüidade inscrita na noção moder na de sujeito que, como dissemos, ao mesmo tempo acolhe o individualismo (como possibilidade de resistência e revol ta) e o mecanismo coercitivo de individuação, de isolamen to, imposto pelo Estado ao indivíduo. O Estado funda sua legitimidade e sua autoridade sobre o cidadão, levando-o a interiorizar a idéia de coerção ao mesmo tempo em que faz com que ele tome consciência de sua autonomia (de sua responsabilidade, portanto). Em relação ao que dissemos mais acima sobre a determinação do sujeito religioso e a interpelação do sujeito moderno, podemos afirmar que a submissão do homem a Deus (à letra) cede lugar à sua submissão ao Estado (às letras, ao jurídico). A subordinação fica menos visível porque se sustenta na idéia de um sujeito livre e não determinado quanto a suas escolhas (cf. Haroche, 1992). Isto tudo tem a ver com a relação do homem com a linguagem e com os sentidos. Em uma palavra: com a interpretação. A submissão à religião - se pensamos a
Idade Média - se faz sobre a interdição à interpretação: o sujeito religioso não interpreta, ele repete a interpretação que lhe é dada. Não há um espaço de interpretação para ele, não há espaço entre ele e o dizer. Ele está colado à letra. Nessas condições não há resistência, há heresia. É interessante observar a história de certas palavras, para se compreender a relação do sujeito à interpretação. A palavra texto, no século XII, significa 'livro do Evangelho"; no século XIV perde seu caráter estritamente sagrado e significa qualquer texto (sagrado ou profano), distinguindo-se, no entanto, o texto autêntico (sagrado) do comentário (profa no). Ainda não há espaço para o intérprete. As palavras interpretação e interpretar datam do meio do século XII, mesmo que a interpretação seja única e dada pelo mestre (na determinatio). A palavra intérprete data do século XIV. Este estado de coisas muda de forma extremamente lenta até que se passa para a idéia de debate, de interpretação, de conflito e até que a ambigüidade passe a ser considera da entre o homem e a língua - e não mais entre o homem e Deus - momento em que começa a se desenvolver uma separação entre objetividade e subjetividade, que é já outra maneira de distinguir o poder da linguagem e de gerir a circulação dos sentidos (e dos sujeitos). Em relação à questão da determinação do sentido, e logo, do espaço da interpretação, o sujeito que na determi nação religiosa dependia de Deus (o lugar da Verdade), no século XVII passa a depender da transparência (literalidade, objetividade) da língua. A interpretação continua a ser uma "falta" que habita o homem, mas o poder que determina já não é Deus, é a língua. Na Modernidade, a responsabi lidade do sujeito encontra parâmetro na precisão (clareza) da língua. No século XVIII, novo deslocamento marca essa rela ção do homem com os sentidos pois é o sujeito que detém a determinação: o texto é vago e ele é seu intérprete. Aqui
temos, então, o alargamento do espaço da interpretação. A subjetividade torna-se a preocupação central, ao mesmo tempo em que o formalismo (a serviço do direito: "se... então") torna-se cada vez mais importante. A obscuridade, a vaguidade é atribuída não a um poder divino, nem à língua, mas ao sujeito. Obscuridade que deve ser regulada. Se, no sujeito religioso, o amor a Deus dá forma à sua relação com os sentidos, no sujeito jurídico, o amor ao Estado se diz na necessidade de não-contradição. A fé, em um, a não-contradição, em outro, regulam a relação do sujeito com a interpretação. De seu lado, a "crença" na literalidade sutura essa impressão de realidade ligada à exigência da não-contradição: o sentido só pode ser "este". Em suma, na transparência da linguagem, é a ideologia que fornece as evidências que apagam o caráter material do sentido, sua historicidade, evitando o corpo das palavras e o do sujeito (cf. E. Orlandi, 1987), regrando a relação com a interpretação, ao mesmo tempo em que faz o sujeito responsável, fonte de seus sentidos. Na relação com a história e o equívoco constitutivo do simbólico, este é o efeito ideológico elementar. Daí que, na posição de analista do discurso, o que fazemos é justamen te não negar o equívoco mas considerá-lo em sua relação com a linguagem; não apagá-lo mas trabalhá-lo. O apagamento do equívoco é que produz a ilusão da evidência. Este é o apagamento característico do dispositivo ideológi co do sujeito-intérprete comum. Resumiriamos o que estamos dizendo a propósito do que seja o dispositivo ideológico da interpretação, afirman do que o gesto de interpretação vem carregado de uma memória (de uma filiação) que, no entanto, aparece nega da, como se o sentido surgisse ali mesmo. É preciso lembrar que todo discurso é um deslocamen to na rede de filiações, mas este deslocamento é justamente
deslocamento em relação a uma filiação (memória) que sustenta a possibilidade mesma de se produzir sentido. O movimento é o de, ao inscrever-se, deslocar. Cada aconte cimento discursivo é inédito e o retorno da memória não é simples reprodução. No entanto, isto não significa, por si, que haja transformação do sentido (sentido "novo"), ruptu ra. A própria mudança, em análise de discurso, resulta de uma relação com o mesmo, já que a noção de repetição empírica, formal e histórica - supõe tanto o fechamento quanto a possibilidade de deslocamento, embora ambos sejam retorno, interpretação. No entremeio - entre o mundo e a linguagem - o sujeito e o sentido, ao se constituírem, o fazem necessaria mente na conjunção dessa relação. Estão expostos ao acaso (mundo) e ao jogo (linguagem), mas também à memória (mundo) e à regra (linguagem). Onde está o mesmo, está o diferente. A separação entre paráfrase e polissemia não é clara nem permanente. O investimento da regra e da memória sobre o sujeito discursivo pode ser visto, em termos gerais, como o fato de que, face à imprevisibilidade da relação do sujeito com o sentido, toda formação social tem formas de controle da interpretação, que são historicamente determinadas. Este controle pode ser mais ou menos marcado institu cionalmente mas sempre se estará exercendo. A forma histórica do sujeito discursivo em nossa formação social, como dissemos, é a que se apresenta sob o modo da autonomia e da submissão, da liberdade e da responsabili dade. Citando Jurandir Freire (Folha de São Paulo, Mais!, 13/11 /94), eu diria que também quanto à ideologia "somos uma teia de acasos e contingências, incontrolável no prin cípio e no fim, e no entanto temos de prestar contas pelo que não sabemos de onde veio e para onde vai". Mas, eu diria, "acreditamos" saber. E é no espaço dessa ilusão que sujeitos e sentidos se movem. Ainda que para serem os
mesmos, já que a diferença é, frequentemente, insuportável (para o sujeito, para a sociedade, para a história). Com efeito, o dispositivo ideológico da interpretação impregna o sujeito-intérprete desse equívoco: a interpela ção do indivíduo em sujeito pela ideologia, ou seja, o de ter de despossuir-se para possuir. Por outro lado, este dispositivo ideológico não se faz do nada. Ele se produz no espaço da relação linguagem/mundo, sócio-historicamente determinada. A relação com a interpretação é também - e sobretudo - a relação com os sentidos do sem-sentido. Veremos como a necessidade, para o sujeito, de domesticar o sem-sentido, e, para a sociedade, a de administrar essa relação, se conjugam no que, com Pêcheux (1980), podemos chamar de a divisão social do trabalho da interpretação21. Uma primeira divisão caracteriza o trabalho social da leitura (M. Pêcheux, ibidem): é a que separa o que é 'literal" do que é "sujeito à interpretação". Essa divisão, por sua vez, ressoa em relação a outras: a) Há os que têm direito à interpretação e os que não têm direito a ela. Eu diria que este é um recorte sobre os agentes; b) Há os textos que são instáveis e os que têm estabili dade de sentidos. Esta divisão é a que separa o "literário" (instável) do "científico" (estável).
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Pêcheux chama divisão do trabalho da leitura. Aqui estamos, propositalmente, lal como fizemos para a noção de "autor" (a partir de Foucault), alargando a questão para a noção de interpretação. Sem dúvida, o fato de se considerar a leitura em seu aspecto mais formal reflete sobre o processo do controle da interpretação. Não nos estenderemos sobre os efeitos dessa relação leitura/ínterpretação. No momento interessa-nos apenas alargar o alcance do que diz Pêcheux sobre a leitura (de arquivo) para o domínio mais abrangente da noção de interpretação.
Por isso mesmo é que o dizer tem um "peso" ideológi co: porque o gesto de interpretação materializa a inscrição do sujeito em uma formação discursiva, isto é, constitui-se em uma posição. O sentido é sempre sentido para, e não sentido em si. A ambigüidade inscrita na própria noção de assujeitamento - sujeito a e sujeito de - tem relação com a produção dos sentidos no jogo entre formações discursi vas que repartem o sentido, que trabalham a divisão da interpretação. O fato da interpretação é sintoma dessas diferenças, dessa contradição (sujeito a/sujeito de). A ideo logia, então, é o apagamento, para o sujeito, de seu movi mento de interpretação, na ilusão de "dar" sentido. interpretando a interpretação
A ligação entre o que faz de um homem um ser simbólico e o homem como ser histórico está na interpre tação. Se, de um lado, os fatos reclamam sentidos (P. Henry, 1989) e, por outro, o homem está condenado a significar (E. Orlandi, 1990), é esta relação entre essas duas necessi dades, a dos fatos e a do homem, em relação ao significar, que constitui o cerne do gesto da interpretação, e sua eficácia ideológica. Esses gestos, por sua vez, não se dão no vazio. A noção de arquivo é aqui esclarecedora. O arquivo, ou o discurso textual, diz Pêcheux (1980) é o campo de documentos pertinentes e disponíveis sobre uma questão. Há gestos de leitura que constroem o arquivo, que dão acesso aos docu mentos e que dão o modo de apreendê-los nas práticas silenciosas da leitura "espontânea". Essas leituras são organiza das e elas dispõem sobre a relação do literal e do interpretativo. Podemos expandir a noção de arquivo, se pensamos que todo dizer se liga a uma memória. Para dizer, de certo modo, todo sujeito "recorre" a um "arquivo", aos discursos disponíveis. Todo sujeito tem seu "discurso textual".
Os aparelhos de poder de nossa sociedade gerem a memória coletiva. Dividem os que estão autorizados a ler, a falar e a escrever (os que são intérpretes e autores com obra própria) dos outros, os que fazem os gestos repetidos que impõem aos sujeitos seu apagamento atrás da institui ção. Seja essa instituição a Igreja, o Estado, a empresa, o partido, a escola, etc. Em todo discurso podemos encontrar a divisão do trabalho da interpretação, distribuído pelas diferentes posições dos sujeitos: o padre, o professor, o gerente, o líder sindical, o líder partidário, etc. E há uma enorme produção de textos (falados ou escritos) que traba lham esta divisão: regimentos, constituições, panfletos, li vros didáticos, programas partidários, estatutos, etc. Os sentidos não estão soltos, eles são administrados. Por outro lado, o modo de circulação das interpretações também tem sua forma específica. A mídia é um grande evento discursivo do modo de circulação da linguagem. Enquanto tal, ela é um acontecimento de linguagem que impõe sua forma de gerenciamento dos gestos de interpreta ção, sempre na distinção do que se deve apreender como sentido unívoco (literal) e o que admite plurivocidade interpretativa. Com a mídia há uma reorganização do trabalho intelectual e uma nova divisão do trabalho da leitura. Não vamos aqui discutir as diferentes modalidades de administração da interpretação e o investimento tecnológi co na estabilização dos sentidos (e dos sujeitos). Mais importante é compreender que este trabalho da leitura supõe uma certa concepção de língua em que não se reconhece que a língua tem sua materialidade. O que se pretende, então, é que a sintaxe (a língua) - clara e distinta - domestique o sentido (a história, o sujeito). Exceção feita aos poetas e psicanalistas que reconhecem essa materialidade como o "incontornável do pensamen to", ou se apaga essa materialidade ou, mesmo quando se a reconhece, se a considera como objeto de cálculo. Na
perspectiva do discurso, que é a nossa, para fora do cálculo fica o mais importante, o que caracteriza mais fundamente as línguas "naturais": o deslize, a falha, a ambigüidade, que fazem da língua "natural", como diz Courtine (1984), a melhor das línguas. É por aí que o sentido irrompe na sintaxe. Contrariando a arrogância dos literatos (que se protegem em seu arquivo particular) e a mordaz modéstia dos cientistas de arquivo (que não se perguntam quem os utiliza), a análise de discurso se coloca no espaço polêmico das maneiras de ler, criticando o que sustenta o divórcio entre a "cultura" científica e a literária. No que diz respeito ao que estamos desenvolvendo a respeito da interpretação, reconhecer a materialidade da língua na discursividade do "arquivo" é reconhecer tam bém a interpretação, ou melhor, é reconhecer que os fatos estão sujeitos à interpretação e que a língua, na medida em que é constituída pelo deslize, pela falha, pela ambigüida de, faz lugar para a interpretação. Esta talvez seja a melhor forma de compreender, junto com Milner (1978), que a língua é capaz de poesia (e, com Pêcheux, que o incons ciente não é o domingo do pensamento, e, eu acrescenta ria, que a ideologia não é um defeito dos que não têm consciência). Falha, deslize, interpretação, inconsciente, ideologia, são o impossível de que não seja assim. Não dá, pois, para regulamentar o uso dos sentidos. Mas se tenta. Finalmente, toda essa questão tem a ver com a maneira como se concebe a autoria. É a noção de autor que está em questão nas formas de interpretação. O que caracteriza a autoria é a produção de um gesto de interpretação, ou seja, na função-autor o sujeito é Responsável pelo sentido do que diz, em outras palavras, ele é responsável por uma formulação que faz sentido. O modo como ele faz isso é que caracteriza sua autoria. Como, naquilo que lhe faz sentido, ele faz sentido. Como ele interpreta o que o interpreta.
Dada a forma de administração da interpretação, a autoria é afetada por ela. Temos dito com certa insistência (Orlandi, 1992) que a autoria está em franco processo de transformação já que a relação com a historicidade do dizer e os modos de relação com a presença da alteridade tem sofrido mudanças, quer pelos modos como funciona a censura, quer pelo modo como se gere a relação com a "originalidade" na formação social burguesa que tempera, de forma particular, a relação entre determinação e auto nomia. Tudo isso é, enfim, sobredeterminado pela forma como a linguagem circula e, uma vez que a mídia impõe seu modo de relação com a interpretação, a função-autor é certamente afetada por essa sobredeterminação. O analista não pode estar indiferente a todos esses aspectos do funcionamento da interpretação. A vantagem que vejo em um dispositivo analítico como o que temos proposto no campo teórico da análise de discurso é que, como não trabalhamos só com a estrutura mas também com o acontecimento da linguagem, esses aspectos que tocam o acaso, o equívoco e a forma histórica da interpre tação são levados em conta na compreensão de cada gesto de interpretação22. E, o que talvez seja mais importante, com a noção de ideologia, se evita pretender chegar à verdade do sentido, estando, no entanto, atentos às suas diferenças.
22. A maneira como estou propondo considerar o gesto de interpretação na análise de discurso, deslocando o lugar da observação da produção dos processos de significação no texto para o fato mesmo da interpretação que os constitui, desloca também o campo conceituai ligado ao histórico e ao social de uma perspectiva mais dependente de uma produção teórica das ciências sociais, para uma perspectiva mais diretamente ligada à linguagem. É este, sem dúvida, o grande mérito teórico do deslocamento discursivo, o de compreen der o homem antes de tudo enquanto ser simbólico (histórico, ideológico, etc.).
8 . A N Á L IS E
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Embora a interpretação pareça se fazer por um sujeito que apreende um sentido que está nas palavras, esta relação, como vimos, é ao mesmo tempo mais indireta e mais determinada por processos que fogem ao controle do sujeito e que mostram que os sentidos não emanam das palavras. A análise de discurso trata a questão, da interpretação restituindo a espessura à linguagem e a opacidade aos sentidos. Ela propõe, então, uma distância, uma desautomatização da relação do sujeito com os sentidos. Na perspectiva formalista, a proposta para se fazer ciência é "tornar estranho o que é familiar". Porque o que nos é familiar, não conhecemos, só reconhecemos. Na perspectiva da historicidade, que é a da análise de discurso, também se critica a "familiaridade", mas com outros meios e com outros objetivos. Nesse caso se procura desfazer as evidências, ou melhor, se procura não ficar na familiaridade, conquanto esta representa efeitos de evidên cia produzidos por processos de significação bem menos transparentes e mais indiretos. Os sentidos não "brotam" das palavras. Por outro lado, o objetivo desta crítica à familiaridade, à evidência, embora se ligue à questão do conhecimen to/reconhecimento, recusa a transparência da linguagem e faz intervir não a vontade do saber (da verdade) no analista, mas o inconsciente e a ideologia na consideração do sujeito.
Nesse sentido, é interessante observar-se que a ideolo gia não é, como se sabe, consciente. Ela é efeito da relação do sujeito com a língua e com a história em sua necessidade conjunta. Assim, a singularidade não é um efeito da vonta de do sujeito, ela resulta do modo singular com que a ideologia o afeta. São essas as determinações a que nos referimos quando falamos que a relação com o sentido é mais indireta e mais determinada (pela história, pela ideo logia). Se assim é, a interpretação - enquanto dispositivo do analista e gesto do sujeito que diz - nos oferece um lugar extremamente expressivo de observação dos processos de produção dos sentidos e de constituição dos sujeitos. Os trabalhos de análise que apresentaremos a seguir servem para mostrar essa relação com a interpretação. O primeiro, sobre a Teologia da Libertação, expõe a proposta de uma "hermenêutica da libertação" em que o gesto mesmo de interpretar é, em si, o óbice do político. No momento em que atribui sentido, o religioso desliza, sem perder seus sentidos, para os sentidos do político. Desliteralização. Transferência. Metáfora. Coisas significan do: a fé é função da libertação. O segundo exemplar de análise, sobre a paródia e os processos de identificação a nível da língua e da nacionali dade, é uma exposição de procedimentos analíticos que tomam em conta o próprio gesto da interpretação. No caso analisado, este gesto se instaura como paródia. Mais geralmente, todo gesto de interpretação é carac terizado pela inscrição do sujeito (e de seu dizer) em uma posição ideológica, configurando uma região particular no interdiscurso, na memória do dizer. Nossas análises preten dem mostrar como isso se faz e que efeitos de sentidos aí se produzem.
CONCLUSÃO: P o r u m a n o v a n o ç ã o d o id e o lo g ia
O percurso que fizemos leva-nos a compreender melhor a definição de discurso: efeito de sentido entre locutores. Outras questões que aí foram tocadas não são menos importantes e ficam à espera de um desenvolvimento mais amplo, embora já possamos avançar certas perspectivas. É o caso da relação da linguagem com a informatiza ção. Como vimos, isso produz um deslocamento importan te na noção de "autoria". Porque há necessariamente uma re-significação da memória que, pela informatização, é tornada visível ou armazenável, se assim podemos dizer, ou, em outras palavras, representada. Nesse processo de representação, o que se perde dela? O que muda em sua natureza? Há várias instâncias em que ecoa o fato da informatiza ção. Exploramos, no curso de nossa reflexão, algumas delas. Gostaríamos de referir ainda a alguns aspectos desse fato. Na medida em que, pela informatização, a escrita se apresenta sem exterioridade (histórica), a autoria se desloca de um sujeito histórico para um sujeito técnico. Ao mesmo tempo, como movimento conjuntural, a prática dessa escrita passa a ser a mais valorizada - mesmo
quando se trata da escrita não informatizada, ela reflete já essa relação com a informatização - e outros domínios refletem isso. Em nosso caso, gostaríamos de referir ao domínio da ciência. Nessa conjuntura, em detrimento de outras defini ções, se define a língua como sistema formal, privilegian do-se então o percurso psíquico da mesma: a relação linguagem/pensamento é representada pela mente, limi tando-se o psíquico ao cérebro, à cognição, de onde se exclui o inconsciente e a ideologia. Ao colocarmos, no plano da exclusão, a ideologia junto com o inconsciente, o fazemos para afirmar um princípio teórico fundamental na análise de discurso e que tem sido mal formulado: a relação necessária da ideologia com o inconsciente. Temos já um modo de definir essa relação: a ideologia é solidária da noção de inconsciente. Se mais não fosse, pela natureza do sujeito do discurso, que é um sujeito afetado pelo inconsciente. Quando dizemos que inconsciente e ideologia são noções solidárias, estamos afirmando essa relação neces sária sem, no entanto, reduzir a ideologia ao inconsciente. Isso implica em compreender a língua como sistema, mas não como sistema abstrato: a língua como ordem significante que se inscreve na história para fazer sentido. E implica também em considerar o sujeito discursivo enquan to sujeito histórico. Ou seja, sujeito e sentido são constituí dos pela ordem significante na história. E o mecanismo de sua constituição é ideológico. Pela noção de interpretação, tal como a desenvolve mos neste trabalho, ficam mais visíveis essas relações entre sujeito, sentido, língua, história, inconsciente e ideologia. Chegamos então a uma noção de ideologia definida pelo processo histórico-discursivo, portanto enquanto lin
guagem. Essa forma de defini-la torna mais acessíveis os seus modos de existência. Além disso, para os que trabalham a linguagem, a noção de ideologia, assim concebida, explica melhor a questão do equívoco. Estamos aqui falando do equívoco não ao nível do formulado, nível que coloca um problema na relação das palavras com as coisas, mas o equívoco enquanto constitu tivo da relação do sujeito com o simbólico, qual seja, sua relação com a ideologia e com o inconsciente. Equívoco que faz com que quem fala acredite separar aquilo que é sujeito à interpretação daquilo que não o é, quando na realidade há sempre interpretação. Dito de outra maneira: há sempre interpretação e faz parte da ilusão imaginária do sujeito acreditar ser a origem do sentido, projetando-se sobre a literalidade e imaginando que só alguns sentidos são sujeitos à interpretação. Os outros seriam evidentes, naturais à própria língua, literais. Pela noção de interpretação que aqui desenvolvemos, a ideologia aparece com mais precisão em seu lugar na relação com a língua e com o sujeito na produção dos sentidos. A relação, entre si, do marxismo com a psicanálise e com a lingüística marcam a análise de discurso de forma particular, e, sobretudo, dão um "tom" particular à noção de ideologia, demarcando a semântica discursiva da filoso fia marxista da linguagem. A interpretação, por seu lado, se mostra discursivamente como necessidade da relação da língua com a história, ideologicamente constituída. O discursivo pode ser definido como um processo social cuja especificidade está no tipo de materialidade de sua base, a materialidade lingüística, já que a língua consti tui o "lugar material" em que se realizam os efeitos de sentido. Daí decorre que a forma da interpretação - leia-se: